Diasdechuva

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TODOS OS DIREITOS DA OBRA RESERVADOS À CAROLINA MANCINI AUTORA: Carolina Mancini PREPARAÇÃO DE TEXTO E REVISÃO: Celly Borges e Marcelo Amado ILUSTRAÇÃO DE CAPA E INTERNAS: Carolina Mancini PROJETO GRÁFICO: Marcelo Amado EDITOR RESPONSÁVEL : Marcelo Amado

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Mancini, Carolina;

Dias de Chuva... – São José dos Pinhais, PR: Editora Estronho, 2016. 332 pg.

ISBN: 978-85-64590-94-6 1. Literatura Brasileira. 2. Mancini, Carolina I. Título CDD-869.93 índice para catálogo sistemático: 1. Literatura brasileira 869.93

Todos os direitos desta edição reservados à Editora Estronho São José dos Pinhais - Paraná - Brasil




A meus pais, que me ensinaram a nunca desistir e que me mostraram que sรณ existe amor onde existe respeito e amizade. A meu marido, que tem me feito viver essa melhor forma de amar.


PRÓLOGO 09 PARTE 1: A SALVAÇÃO 13 Capítulo 1: Uma joia na lama 14 Capítulo 2: O mestre faz seu jogo 20 Capítulo 3: Xeque-mate 35 Capítulo 4: Por trás das cortinas 43 Capítulo 5: Uma fenda na máscara 44 Capítulo 6: Despertar do ventre 47

PARTE 2: AMORES NA CHUVA 67 Capítulo 7: Promessas 68 Capítulo 8: O Ovo do Dragão 88 Capítulo 9: Paladares 95 Capítulo 10: Dimitri 114 Capítulo 11: Pagã 122 Capítulo 12: Um adendo de tranquilidade 152 Capítulo 13: Laços de volúpia e casta 154 Capítulo 14: Dissolução 180

PARTE 3: O PRECIPÍCIO 185 Capítulo 15: Anuncia-se a tempestade 186 Capítulo 16: Desprendida, a folha vai ao céu 192 Capítulo 17: Torna o vinho, para que supere a realidade turva 196 Capítulo 18: Breve 200 Capítulo 19: Dentre a verdade, há desesperança 202 Capítulo 20: Última flor 205


PARTE 4: A RECOMPENSA 209 Capítulo 21: A decisão 210 Capítulo 22: O começo 216 Capítulo 23: As sombras dançam 224

PARTE 5: AMANARA 229 Capítulo 24: Angaretama 239 Capítulo 25: Para as cinzas 270

PARTE 6: DE VOLTA PARA CASA 275 Capítulo 26: A procura 276 Capítulo 27: A terceira face do mestre 282

PARTE 7: TÃO FRIO 287 Capítulo 28: Outro ser 288 Capítulo 29: A Condessa das Almas 298 Capítulo 30: Oferenda 304

PARTE 8: O VOO 317 Capítulo 31: Para sempre 318

EPÍLOGO 325 AGRADECIMENTOS 330



Prรณlogo



G

otas pesadas criam uma sinfonia crepitando nos carros, nas calhas e telhados. O casaco pesa por estar encharcado e não dou importância, fato semelhante ao peso no peito. Ouço o barulho das botas nas poças de água entre a rua e o meio fio. As luzes noturnas dos postes se dividem em mil fragmentos através da cortina translúcida que cai do céu. Eu paro no farol, mas a vida no peito cisma em pulsar. Tento camuflar a batida das botas no asfalto com o som da chuva quase como instinto. Não queria estar aqui. Não queria precisar estar aqui. Desisto de tentar me esquivar das pesadas gotas cristalinas, pois logo vejo a porta do café aberta. Já sentada do lado de dentro observo casais, amigos, solitários muito ocupados consigo. Vejo pessoas comuns, homens de barba por fazer, mulheres embelezadas pela idade, resplandecem sorrisos maduros. Sento e espero. Admirando a chuva bater no vidro, peço um café. Olho para minhas mãos meio azuladas e não resisto a espiar minha pele do pescoço no reflexo do celular desligado. Está ficando difícil controlar a nova forma. Peço também uma vodca. Me distraio com um homem de cabelos na altura da orelha, pele morena, barba por fazer e olhos negros. Sua beleza é madura e sorrio quando o vejo acenar para a garçonete de pernas roliças e cabelo tingido de vermelho. Não, não deve ser ele. Bebo o café antes da vodca. Respiro. Silencio meu peito e quando me viro a garçonete não está mais lá. Ignoro. Talvez eu espere a noite toda. Pego a bolsa de couro e a abro para verificar se meu livro não está molhado. Sinto alívio ao vê-lo seco. Dou o primeiro gole na vodca prevendo que a noite será bem longa.

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Parte 1 A SALVAÇÃO


Capít ulo 1

Uma joia na lama

Quando esta história realmente começa estávamos em julho, mês em que o clima faz degradê monocromático com a atmosfera já cinza de São Paulo. Minha mãe ganhara em seu aniversário uma belíssima gargantilha de ouro, presente de uma senhora já muito idosa para quem ela trabalhava limpando a casa. A mulher deu o presente deixando claro que não se importaria se ele fosse penhorado ou vendido, pois sabia que dinheiro seria muito mais útil que um colar. Essa passagem ela nos contou quando chegou em casa por volta do meio dia, trazendo também um pouco de comida, sobras da casa daquela senhora, para dividir conosco. Minha mãe tinha no rosto alegria que eu não me lembrava de já ter visto. Repleta de esperança ela colocou a joia dentro de um pote e o guardou sobre a geladeira velha. Lá ele ficaria enquanto sua nova dona seguia para outro trabalho e pensava onde poderia vendê-lo. Acontece que meu pai estava cochilando no sofá devido à ressaca, mas acabou despertando no meio do relato de minha mãe e tirou suas conclusões do que fazer com o pedaço dourado de gratidão. Era noite há poucas horas quando minha mãe chegou e contamos que nosso pai havia pegado a joia com o intuito de usá-la para apostar no jogo, seu vício além da bebida. Eu vi a face de minha mãe ser tomada pelo assombro e raiva em segundos. – Fiquem aqui, quietos e se aqueçam – disse ela, recolocando o velho casaco cheio de furos e as luvas gastas. – Para o bem do pai de vocês é melhor que ele não tenha feito nenhuma grande merda, como sempre faz. Estou cansada... – Uma lágrima escapou. – Cansada! – Seus olhos, que tremiam pelo nervoso, nos fitaram. – Estou cansada de vê-los sofrer sem ter culpa. – E ela fechou a porta atrás de si.

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Eu olhei para Leonardo, meu irmão mais velho, imaginando que ele pudesse me acalmar e me explicar o que estava acontecendo, mas demorei a crer no que ouvi. – Olhe, Ju... você precisa ir atrás dela... escondida. – Ele tossiu antes de continuar. – Eu iria, mas não vou ficar bem lá fora com esse frio. Você precisa ir atrás dela. Devo ter respondido com um aceno positivo de cabeça. Leonardo vivia doente e Luana ainda era um bebê, então apenas eu poderia fazer alguma coisa, seja lá o que fosse. Coloquei uma blusa qualquer e uma touca, ambas com o cheiro de mofo, e nas mãos meu irmão colocou-me um par de meias, pois não tínhamos luvas. Saí de casa acreditando cumprir uma missão. – A joia! – enraivecida e incrédula, minha mãe falava sozinha. – Eu poderia comprar os remédios do Leo… Como Pedro pôde fazer isso, meu Deus? Como ele pôde? Na rua ela perguntava por meu pai a conhecidos que cruzassem nosso caminho, mas ninguém o havia visto. Eu a seguia me esgueirando pelas sombras até que um casal com quem ela conversava, me viu escondida atrás de sacos lixo. – Aquela não é sua filha? – perguntou a moça. Minha mãe ao me ver ficou transtornada. Veio em minha direção e, me pegando pelo braço, voltou a andar. – Não devia ter vindo, Júlia – sentenciou. Fomos aos bares perguntar por meu pai e todas as respostas passaram a ser similares. Ele havia aparecido em todos, cantando futura vitória, mas não havia parado para beber em nenhum. Pedro seguia para uma casa de jogos onde só se poderia entrar com algo de valor, era uma residência muito velha e recentemente ocupada só para esse propósito. Minha mãe acelerava cada vez mais o ritmo de seus passos enquanto apertava mais forte meu pulso. A dor era quase pior do que o frio no rosto e nos pés calçados apenas com chinelos. Minha mãe mirava o horizonte tendo os olhos repletos de lágrimas, porém de passos firmes, parecendo não sentir nem o vento e nem o frio. Chegamos em nosso destino: um terreno muito grande, cheio de árvores velhas e malcuidadas, típica propriedade abandonada na periferia, guardava uma construção de paredes altas, com tinta descascada e pedaços de tijolos a mostra, ostentando grandiosidade e abandono. Descemos por uma trilha de terra, visto que o terreno era em declive, e de algum modo, sentia que ali não era um bom lugar. O vento chacoalhava as folhas secas como um aviso para irmos embora, mas não fomos. Dias de Chuva |

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Enquanto era guiada pela mão, meus olhos percorriam o lugar. E tive quase certeza de ter visto sombras se mexendo para trás da casa. Mas em seguida, vi a luz bruxuleante da propriedade, criando diferentes sombras na terra e grama gastos. Preferi não pensar naquilo. Paramos. À porta da frente três homens vestidos com grandes casacos exibiam feições sinistras e carrancudas. Olhavam para nós, sem baixar a cabeça. Dois tinham queixos protuberantes e quadrados, o terceiro, o rosto fino e cumprido. Possuíam olhos tão claros que mal era possível distinguir se eram azuis ou verdes. – Me deixem entrar. Meu marido está aí! – A voz de minha mãe era trêmula. Eu me refugiava atrás dela, espiando com o canto dos olhos as estátuas estrangeiras que guardavam a casa. Os homens murmuraram algo em uma língua desconhecida e continuaram a nos ignorar. – ME DEIXEM ENTRAR! – gritou ela ao investir contra aqueles que a seguravam. De dentro da casa vinha uma música estranha que se confundia com risadas e conversas. Eu aproveitei por não ter sido alvo da atenção deles e, desviando entre suas pernas, passei facilmente para dentro. O térreo estava vazio, mas repleto de poeira. O som de conversas e a música alta me guiavam ao andar superior por uma escada velha de madeira por onde me aventurei sem pestanejar. Quando já alcançava os últimos degraus ouvi minha mãe gritando por mim ainda do lado de fora. Olhei para trás por um instante, dividida entre voltar e seguir as vozes. Mas no mesmo instante os seguranças a deixaram passar, talvez por não acreditarem que ela fosse alguma ameaça. Eu continuei subindo, pois acreditava que encontraria meu pai no lugar de onde vinham aquelas vozes. A escada me levou a um corredor muito amplo, repleto de portas nas laterais, com pessoas conversando animadas. Porém a música, as risadas e alguns sons de copos tilintando e pés dançantes ainda estavam um andar acima de mim. Segui pelo cômodo numa distância que pareceu infinita, principalmente por toda aquela gente a festejar que dificultava minha passagem. Do outro lado da grande sala encontrei uma escada em espiral e no mesmo instante meu coração disparou. Subi com os joelhos bambos. Nunca havia visto um lugar como aquele. O piso brilhante refletia sapatos lustrosos em sua maioria. Mesas redondas de madeira com toalhas felpudas espalhavam-se à direita e à esquerda, e próximo a uma grande janela de madeira descascada e de vidros embaçados, havia uma enorme mesa oval.

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Vi uma quantidade de homens, que eu não consegui contar, rindo e conversando. As mesas eram para jogos de baralho, dominó, roletas e outros. Entre a multidão, sentado na última grande mesa eu o reconheci. – Pai! Pai! – gritei, mas ele não me ouviu, ou não quis me ouvir. Corri na direção dele, já com olhos marejados, puxando-o pela blusa assim que me aproximei, mas ele não se movia. Eu o chamava, pedia para ir embora, e ele continuava estático. Eu olhava em volta e ninguém parecia me ver ou ouvir. Nunca havia tido muita ajuda na vida, mas nada parecia ser tão cruel como aquilo. Todos se preocupavam mais em beber e rir do que fazer algo a respeito do meu desespero. Minha revolta e gritos não pareciam afetar em nada a festa deles. O único que me notou foi um homem de pé, do lado oposto da mesa de meu pai. Um homem gordo e muito bem vestido, de cabelos loiros e ralos, fronte seca e de rosto quadrado onde grandes olhos azuis e cruéis saltavam da face como pedras preciosas. Na mão direita ele segurava uma taça com um drinque verde florescente, e achei que ele ria de mim. Ouvi então a voz ríspida de minha mãe. – Levante-se, Pedro. Vamos embora. Meu pai continuava imóvel. – Levante-se! Olhe para mim. Olhe para sua filha. Esqueceu do seu filho que está quase morrendo? – ela falava isso indignada, e as emoções tomavam conta de sua voz como um pedido de socorro, misto de raiva e tristeza. Mas ele não se levantou, nem ao menos se moveu. Apenas o homem que estava de pé, do outro lado na mesa com jeito de estrangeiro, se dirigiu a nós: – Agora é tarde. Eu queria dizer muitas coisas, falar para que nos devolvessem a joia, que nos poupasse de todo aquele sofrimento, que nós nunca fizemos uma refeição decente e que meu irmão iria morrer, porém, só me vieram as lágrimas que eu não quis conter. Ao nos virarmos em direção à saída, um rapaz olhou-me com uma mistura de pena e surpresa. Seus olhos cinza, de um tom que eu nunca havia visto, se cruzaram com os meus. Ele parecia atento e surpreso. Eu precisava de ajuda, mas não queria admitir. Essa necessidade estava guardada bem fundo e naqueles poucos segundos todas as imagens de minha memória atravessaram minha mente. As noites no frio, a fome, a doença do meu irmão, a extrema magreza da minha irmãzinha, a solidão e tudo o mais de uma única vez, como se ele estivesse vendo todas essas sensações em mim, como se eu fosse uma cortina aberta pelo vento repentino e forte que precede a tempestade, revelando minhas mais profundas necessidades e medos. Dias de Chuva |

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Meu pai não nos seguiu, não olhou para nós quando saímos, nem ao menos se levantou da cadeira. Mais uma vez o silêncio era a única companhia pelo resto da madrugada fria no caminho que eu e minha mãe fazíamos até nossa casa. O sol nascia aos poucos, deixando o marrom que ganha o céu nessas horas, por um laranja pálido e nada convincente de um dia melhor. Quando chegamos meus irmãos dormiam abraçados sobre o colchonete. Tinham juntado todos os cobertores e mantas na tentativa de afugentar o frio. Minha mãe me chamou para junto dela e deitamos com as crianças. Mas eu não dormi, passei toda a noite ouvindo o vento e me lembrando daqueles olhos cinza que me invadiram. E por que o desespero por uma simples joia que significava apenas um tanto de dinheiro? Vivíamos uma época bem difícil onde a sensação mais recorrente, além do desamparo, era a fome. Dificilmente podíamos fazer mais de uma refeição por dia mesmo que minha mãe se esforçasse ao máximo para alimentar a mim e a meus dois irmãos. Eu tinha oito anos, Leonardo, doze e Luana apenas dois. Nossa casa pequena, escondida na periferia da cidade entre tantas outras, era composta por uma cozinha – um tanto cruel e bem inútil por não haver comida para ser feita nela – um quarto com dois colchonetes no chão, um para mim e Luana, outro para Leonardo; e uma sala que servia de quarto a meus pais, com tijolos sem acabamento e repleta de fios emaranhados. De um cômodo para outro o que nos separava no lugar de portas eram cortinas feitas com antigos lençóis que mal guardavam nossos anseios e tristezas. As roupas eram sempre as mesmas, doadas, herdadas, de buracos costurados, remendos de outras cores, um zigue-zague de um arco-íris pobre e envelhecido. Brinquedos ou doces eram artigos de luxo que nem mesmo nos sonhos mais íntimos vinham nos visitar. Para além do silêncio constrangedor entre nós, ou das brigas a tiros na rua, tínhamos por companhia apenas um rádio, nada de televisão ou outro aparelho eletrônico. Nossa saúde era precária. O leite nunca verteu dos seios de minha mãe para a pequena Luana que, desnutrida, tinha no pequeno corpo o desenho mais fiel de nossa miséria, com seus ossos saltando à carne e grandes olhos tristes de sofrimento. Leonardo vivia seus dias entre os ataques de asma e as frequentes crises de pneumonia, e assim como não havia leite para a mais nova, a ele faltavam remédios.

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Na busca de nos resguardar da miséria, minha mãe, Rafaela, trabalhava com fervor em casas de família como faxineira, mas essas famílias normalmente não tinham condições de pagar o justo por seu trabalho, e o dinheiro vindo com tanto suor nunca era suficiente. Ela deixava-nos antes do sol nascer e voltava tarde, quando até a lua já cansava de seu intento. Raras eram às vezes em que podíamos conversar. Não éramos uma família. Ao menos não uma que estivesse dando certo. E isso era provado com facilidade visto que mal conversávamos. Eu não tinha vontade, Leonardo por falta de forças e sua tosse frequente, e a pequena Luana por não conseguir aprender a falar, pois não era estimulada. Éramos um tanto silêncio, e outro tanto escuridão. Em casa tínhamos um pequeno espaço nos fundos, que chamávamos de quintal, um lugar onde eu podia fugir e desenhar com restos de lápis nas beiradas dos cadernos onde espremia as letras, pois suas folhas deveriam durar sempre o ano todo. Eu chorava, pouco e quieta. Estudava e lia com afinco livros que a professora me emprestava, não pela esperança de mudar com o saber, mas para me entreter e fugir do que era real. Mas eu não era a única a fugir da realidade, pois enquanto me embriagava de fantasia, Pedro, meu pai, a figura que faltava nesse quadro, se rendia aos vícios. O nosso maior medo era que em alguma crise de nervos ou de abstinência ele mais uma vez tentasse suicídio e nós o encontraríamos caído no banheiro, sangrando pelos pulsos cortados. Provavelmente por conta desse comportamento o álcool entrou em casa pela porta da frente e nunca mais se foi, fazendo de meu pai seu escravo. Sem dinheiro e repleto de dívidas nos bares, nem seus amigos de copo ofereciam um gole, e assim ele vivia em crise de abstinência frequente. Até que um dia, num jogo bobo de bar, ele ganhou alguns trocados para pagar sua pinga e desde então, contava minha mãe, ele se entregou às jogatinas: outro vício que não tinha fim, prometendo paraísos enquanto nos arrastava para o inferno.

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Capít ulo 2

O mestre faz seu jogo

Três ou quatro dias depois, por volta das cinco da tarde, minha mãe chegava em casa com Leonardo depois de ter passado horas no hospital devido a outro começo de crise. Eles subiam a escada de terra até a porta de casa, quando um vizinho nos chamou, para dizer que haviam encontrado meu pai. Ele tinha bebido muito e tentou se jogar em frente a um carro. Por sorte o motorista conseguiu frear, mas ainda assim, meu pai sofreu fraturas em uma das pernas e nos braços. Nossa mãe ficou um pouco conosco, mas teve de sair, pois havia perdido dois dias de trabalho, e prometera a uma das patroas ir ainda naquele dia para fazer parte do serviço atrasado. À noite fomos nos deitar muito cedo, e não era nem nove da noite quando batidas na porta nos despertaram. Levantei e ainda sonolenta fui ver quem era. Na porta, o mesmo rapaz de olhos acinzentados da casa de jogos estava à espera. Usando um jeans surrado e um casaco grosso. Tinha cabelos compridos despenteados e carregava nas costas uma mochila e nas mãos, sacolas de farmácia. Ele retribuiu minha expressão de susto e confusão com um sorriso, me fez um cafuné e entrou. Naquele mesmo instante meu irmão foi tomado por um ataque de tosse que parecia querer cuspir seus pulmões. Sem cerimônias e sem pedir licença, o rapaz levantou o lençol improvisado que servia como divisória e entrou em nosso quarto. Retirou de uma sacola alguns remédios e os deu a meu irmão. Assim que Leonardo terminou de tomar seus remédios o rapaz voltou à sala. Ele piscou para mim e se pôs a retirar da mochila e colocar sobre o sofá velho uma série de alimentos: um pacote de arroz, um de macarrão, feijão, alguns legumes e fatias de carne enroladas em um saco plástico do açougue. Eu olhava a quantidade de alimentos, maravilhada, sentindo já a boca salivar só de pensar em fazer uma boa refeição.

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Quando terminou seu intento minha mãe chegou. Óbvio, com um estranho em casa, ela voou em sua direção e o empurrou aos gritos: – Quem é você? Saia da minha casa. SAIA! – gritava, o empurrando, para num piscar de olhos se recordar. – Estava naquela casa, não é? Maldito. SAIA DAQUI. Deixe meus filhos em paz. Eu tentava impedir e ele tentava se explicar, quando a voz de Leonardo veio do quarto. – Ele trouxe meus remédios, mãe! Todos paramos de súbito. Minha mãe engolindo em seco o que pensava enquanto ouvíamos nossa respiração cheia de incertezas. – É verdade, mãe – falei com a voz baixa e trêmula. – Ele trouxe os remédios do Leo e comida. – Mas... – Minha mãe tentava organizar seus pensamentos. – Por que fez isso? Você... – Ela estava confusa e não conseguia pensar. – Nós não temos como pagar... – E outra vez ela recuperou sua austeridade. – E deve saber porquê... Antes que alguém falasse algo pior, Leonardo, do quarto, voltou a intervir. – São meus remédios, mãe! Mais um instante de silêncio, porém não tão longo. – Obrigada – ela falou engolindo um bom punhado de dúvida e orgulho –, mas, por favor, vá embora. – Tudo bem, senhora, eu já vou – ele falou de forma polida –, mas por favor, fique com os mantimentos. Espero que sejam suficientes pelo menos por alguns dias. – E retirando-se, continuou: – Tenham uma boa noite e desculpe-me pelo incômodo. Em outro momento, quem sabe, poderemos conversar melhor, senhora. – O estranho pareceu pensar por alguns instantes. – Eu me sinto um pouco obrigado a desfazer o que meu tio lhes fez. – Ele soltou o ar como se escolhesse as próximas palavras, mas depois o segurou, talvez mudando de ideia. – Boa noite a todos. Assim que a porta fechou ela começou a recolocar os mantimentos nas sacolas, e não pude crer que ela as amarrava com a intenção de jogar no lixo. – Não, mãe. É comida, comida mesmo – falei desesperada tentando tirar as sacolas de suas mãos. – Júlia, nós não sabemos o que tem aí – ela foi ríspida. – Ele pode ser um louco. Pode querer nos matar. – Então ele já pode ter feito isso com os remédios que me deu – foi Leo quem disse, agora de pé, se apoiando na parede. – Acho que vale o risco, mãe. Dias de Chuva |

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Num movimento que durou tempo demais, ela concordou com a cabeça e partimos para a tarefa nova: retirávamos os “mantimentos que seriam suficientes pelo menos por alguns dias” das sacolas, mas na verdade era mais comida do que eu já tinha visto em toda minha vida. Antes de nos deitarmos preparamos uma refeição decente para nós quatro e de barriga cheia, como nunca antes havia tido, dormimos um magnífico sono. Ao menos eu dormi. No outro dia minha mãe separou os alimentos de maneira que durasse o máximo possível, sabendo que não se podia contar com que a sorte batesse outras noites em nossa porta. ///

Apesar do frio característico do mês, era meio dia e o sol brilhava incessante sobre nossas cabeças deixando na pele uma sensação de ardor. Eu saí com Luana para uma praça a dois quarteirões de casa, onde havia apenas um balanço antigo, um escorregador descascado e areia velha e suja. Luana passava bastante tempo sentada, brincando com potinhos na areia e eu normalmente fazia companhia, mas naquele dia não conseguia dar muita atenção a ela, pois sentia um incomodo no peito e não me esquecia da visita noite passada. Desviei então os olhos para os banquinhos ao redor do parque. Havia um número razoável de crianças e um pouco afastado, no banco mais escondido, entre algumas árvores mirradas, estava ele. – Vem, Lu… – chamei minha irmã enquanto levantava e batia as mãos na roupa para me livrar da areia nela grudada. Ela fez que não com a cabeça. Mas insisti e a levei pelo braço. Ao me aproximar o “estranho” abriu um grande sorriso e com um gesto de mão pediu para que chegássemos mais perto, porém, me mantive numa distância que achava segura. – Obrigada... – as palavras saiam trêmulas. – Obrigada pela comida e pelos remédios do meu irmão. – Não é por nada – ele respondeu sorrindo. – Eu queria mesmo falar com você. Seu nome é Júlia, certo? – É sim... como sabe? – perguntei, desconfiada. – Eu só sei... – Ele pareceu refletir por um instante. – Seu pai me disse. – Ah, sim... – falei um tanto confusa. Só de pensar em meu pai, sentia as lágrimas surgindo, porém, às contive. – Ele ama muito você e sua família, sabia?

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– Não faz diferença... – disse sem pensar, olhando ainda para meus pés nas meias velhas e sandálias desbotadas. – É, talvez não faça... – ele falou já um pouco frio. – Não me apresentei antes. Eu me chamo Audrick. – Ele esticou a mão, mas não correspondi ao sinal, deixando a estranheza em relação ao nome dele aparecer no meu rosto. – É um nome alemão – ele explicou –, sou estrangeiro. Naquele momento eu não prestei mais atenção ao que ele dizia, porém eu realmente o vi. Ele não parecia real, não era como as pessoas que eu conhecia. Seus olhos de cor cinza iam do claro ao escuro, em degrade, a partir de suas pupilas. O rosto e os lábios eram bem finos. Os cabelos muito compridos, loiros escuros, escorriam pelas costas. Ele usava uma camiseta preta, e nos braços havia algumas tatuagens que não saberia identificar. Ele vestia uma calça jeans bem velha, e um par de All Star. – Então, é verdade que eu me sinto responsável e preciso recompensá-los de algum modo. Foi só então que percebi ter perdido muito do que ele disse. – Tudo bem – respondi. Estar na sua presença me incomodava e queria terminar a conversa. – Não precisa se preocupar, ficaremos bem – falei na tentativa de encerrar o assunto e ir embora. Segurando Luana pela mão me virei, mas ao dar o primeiro passo, Audrick colocou sua mão sobre o meu ombro (e reparei que suas unhas tinham uma tonalidade branca, como se fossem mais grossas do que o normal). Virei-me para olhá-lo e assim afastar a mão dele de meu ombro. – Espere – ele disse mais uma vez, sabendo que eu não tinha notado da primeira –, eu quero ajudar, se você puder me dizer como, seria muito importante para mim. O vento soprou com mais força. Ele ajoelhou-se deixando seus olhos na altura dos meus. Pegou minhas mãos entre as suas e soprou um ar quente que fez com que meus dedos formigassem, e só então notei que todo o ar perto dele era quente. – Não vou fazer mal. Só quero que você tenha a oportunidade de se transformar em tudo aquilo que tem capacidade para ser. Se eu puder fazer qualquer coisa por você, Júlia, eu farei. Mas nunca hesitarei em fazer o que eu tiver de fazer para vê-la melhorar. Ele soltou minhas mãos e quando eu as abri descobri ali uma pedra, mas não uma qualquer. Ela parecia ter sido lapidada e polida no formato de um pequeno ovo vermelho com manchas pretas, nem pesada, nem leve, apenas quente. Dias de Chuva |

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– O que é isto? – Um dia, em umas das terras que vivi há muito tempo, eu descobri que existe um ser mágico de grandes asas e corpo de cobra, que pode entrar nos seus sonhos e torná-los reais. – Um dragão? – disse arregalando os olhos, ao imaginar a criatura. – Bem, eles têm alguma semelhança sim – ele disse, satisfeito por ter minha atenção –, mas o que você precisa fazer é colocar esse ovo embaixo do seu travesseiro e pensar apenas nas coisas boas antes de dormir. Então a magia começará e seus sonhos mais sinceros poderão ser reais. – Eu não sei se devo aceitar... – disse desconfiada. – Se não der em nada, você pode jogar fora depois disso. – Olha... Senhor Au... – Percebi que não havia entendido bem o seu nome. – Audrick! – ele repetiu sorrindo. – Senhor – falei angustiada, puxando Luana –, eu preciso ir embora. – Tudo bem – disse ele, se levantando. – Até breve, pequena Júlia. Segurei forte o braço de minha irmã e enfiei a pedra no bolso da blusa. Fui para casa, mas não sem olhar para trás algumas vezes. ///

– Eu sinto muito, dona Rafaela, ele não deveria ter vindo antes da visita formal de nossa instituição, mas ele insistiu que era urgente... pelo Leonardo, a senhora sabe. Abri a porta e me deparei com minha mãe e aquela moça conversando. – Oi, mãe... – Olá, Júlia, como vai de férias, querida? – Oi, senhora Miriam. Vou bem – respondi, pouco convicta. Miriam era uma mulher elegante, de um modo simples, e bastante simpática. Tinha os olhos redondos e brilhantes que iluminavam tudo a nossa volta. O cabelo preto estava sempre bem arrumado, mas com seus cachos naturais soltos de um modo que, depois de crescida vim saber, no estilo dos anos setenta. Sua pele negra parecia nunca ter tido um arranhão, e suas roupas simples eram sempre vestidos muito bonitos. Ela trabalhava na escola, dentro da secretaria, e tinha uma ONG que arrecadava roupas e alimentos. Seu sorriso era enorme. Ela já havia nos ajudado algumas vezes, porém, com famílias em situações mais difíceis ainda que a nossa, não era sempre que podíamos contar com suas doações.

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– Que bom – disse Miriam sorrindo para mim. – Soube que conheceram o senhor Audrick. Meus olhos se arregalaram. – Sim... é... bem... – gaguejei. Como ela poderia saber? – Ele te disse o nome dele, Júlia? – inquiriu minha mãe, investigando no ar algo de errado. Toda a cena no parquinho passou por um segundo em minha cabeça. – Eu ouvi vocês conversando de lá de fora... – menti. – Eu já disse para não espiar, Júlia – minha mãe me repreendeu. – Não estava espiando, mãe! – Nisso Luana escapou de minha mão e foi para o quarto com seus passinhos capengas. – Eu não queria interromper, mas vocês não paravam de falar e... – Tudo bem, tudo bem – interveio a mulher –, como eu dizia, nós havíamos feito um cadastro de cuidadores, são pessoas de muito dinheiro, ou de coração muito grande, que adotam famílias e dão assistência. – Mas a senhora faz ideia de onde eu conheci esse rapaz? – Ah, infelizmente sim, dona Rafaela. Mas o moço não tem culpa do tio que tem... E pense por outro lado, sem o fatídico incidente, talvez ele não tivesse escolhido vocês para cuidar... Ele veio até mim... se sentiu culpado pelo que aconteceu. – Não acho que posso confiar nele, Miriam! – Pense bem, dona Rafaela. Vocês precisam de ajuda... Era curiosa a posição de minha mãe em relação àquela senhora. A vida fez dela, com muito custo, uma pessoa cheia de cautelas e receios com todos, e dificilmente tratava uma pessoa como seu superior. Nunca que a vida difícil seria motivo para soberba, mas ela com certeza se orgulhava de batalhar dia após dia. Já a outra mulher, mesmo sendo um pouco mais velha, sentia a terra incerta onde pisava, e chamar minha mãe de dona, era uma tentativa de formalizar a visita, o que não durou muito. – Mas como eu vou confiar a um garoto de vinte e poucos anos o bem-estar da minha família? – O senhor Audrick trouxe os remédios do Leonardo! É um bom começo. E ele soube dos remédios através de mim. – Mas ele é um moleque. E estava naquele lugar! – repetia minha mãe. E nada mais continuaria ameno na conversa. Dias de Chuva |

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– Pelo amor de Deus, Rafaela! Olhe para a sua vida. Você não consegue parar em nenhum emprego, pois precisa estar disponível para cuidar dos seus filhos. Vocês passam fome, você nem sabe se o Pedro vai voltar do hospital. Olhe para o Leonardo! Olhe para a Luana! Sua filha tem dois anos e não sabe falar nenhuma palavra, e nem sabemos o que ela pode ter. Vocês precisam de ajuda. Seus filhos precisam de-ses-pe-ra-da-men-te de ajuda. Eu assistia imóvel e muda. Minha mãe respirou fundo, nervosa, quase resignada, esfregando uma mão na outra como se estivesse mais frio do que o normal. – E se ele for um mentiroso, e se for como esse tal tio, um aproveitador? A dona da ONG não sabia mais o que dizer. Suspirou. Abriu sua bolsa, e de lá retirou um objeto dourado que estendeu para minha mãe. – A gargantilha! – exclamou ela. – Ele pede desculpas. Entenda, o tio dele é um jogador, talvez um viciado até, e nada mais. Audrick é estrangeiro, tem uma empresa fora do país, com uma filial aqui na cidade. Nós investigamos. Aqui está a papelada. – Ela estendeu uma pasta cheia de documentos. – Ao menos pense com carinho no caso, Rafaela. Pelas crianças. – Tudo bem! – disse minha mãe pegando a pasta como se pesasse quilos e soltou um longo suspiro. – Eu vou pensar. Elas se abraçaram e a visitante se foi, não sem antes me abraçar também. – Vocês se conheciam? – perguntei para minha mãe, enquanto ela folheava os documentos do cadastro de Audrick, buscando em cada informação, algo possivelmente errado. – Ela e sua ONG me ajudaram muito quando fiquei grávida do seu irmão... – Hum... Ele está melhor? – perguntei. – Seu irmão vai ficar bom... – minha mãe respondeu sem me olhar, só fitando os papéis. – Graças aos... – achei melhor não continuar – É sim... graças aos remédios... – Ela colocou os papéis de lado. – Venha aqui, Ju, vem no meu colo. Eu sentei em suas pernas e recostei a cabeça em seu peito. Ela me abraçou e começou a acariciar meus cabelos. – Ah, minha boneca, será que essa é a nossa chance? – A voz dela soava triste e fraca. – Será que é uma forma de sermos recompensados por tanta dor, e enfim um pouco felizes?

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Por mais que eu também desconfiasse de Audrick, ansiava por ver minha mãe bem, principalmente se isso significasse carinho. Respondi enquanto a abraçava. – Tomara que sim, mãe – falei com a voz falha. – Tomara. Fiquei um bom tempo no seu colo, sentindo o carinho de sua mão quente e respirando o odor do seu peito, como se assim, seu abraço durasse para sempre. Duas noites depois Audrick voltou a aparecer e como minha mãe chegara mais cedo para nos preparar o jantar foi ela quem o recebeu. Lavávamos a louça com água em uma velha bacia de alumínio e como ventava muito, Leo ficara debaixo dos cobertores com Luana. No fogo esquentávamos água para preparar um chá com algumas folhas que minha mãe havia trazido do quintal de um senhor para quem ela lavava e passava. Assim que a água começou a ferver as batidas soaram na porta. Nós duas trocamos um olhar cúmplice antes que ela fosse atender a visita repentina. – Boa noite. – A mesma voz. – Passei por aqui – lembro dele ter titubeado –, bom, achei que talvez as crianças gostassem de uma sobremesa. – Desculpe, senhor – disse minha mãe se esforçando para chamar aquele jovem de “senhor” –, mas nós não temos como pagar nada disso. – Minha senhora, eu que estou em débito com vocês. Só isso... A senhora Miriam me disse que conversaram. Desculpe a hora, mas achei melhor ter a certeza de que já teria chegado. – Deixe ele entrar, mãe – disse Leonardo reconhecendo a voz do estrangeiro. E nós tínhamos outra escolha? Não, é claro que não tínhamos. ///

Assim foi o primeiro mês com a presença de Audrick em nossas vidas. Rápido ele fez amizade com Leonardo com quem se entretinha por bastante tempo, e é absurdo ver como um pouco de atenção, carinho e comida podem fazer uma pessoa melhorar, pois até mesmo Luana já estava enfim ganhando quilos e começando a pronunciar uma ou outra palavra. E as visitas, mesmo não sendo constantes, vinham ficando necessárias e esperadas. Às vezes Audrick aparecia só uma vez na semana, às vezes duas, assim passaram meses, e em alguns finais de semana ele nos levava em algum passeio tendo Miriam também como companhia, por exigência de minha mãe. Houve até algumas tardes em que ambos nos levavam a lugares inimagináveis como museus e teatros. Dias de Chuva |

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Tudo ia bem, até a tarde mágica, quando fomos em um espetáculo musical baseado em uma obra de um famoso dramaturgo (que eu chamava apenas de escritor). Shakespeare, e a famosa peça Sonho de uma noite de verão, onde amores impossíveis são bagunçados e reorganizadas através da magia e capricho de uma criatura mística. Sei que Leo havia achado tudo muito chato e cansativo, enquanto eu já não estava em mim de tanto deslumbre, sem conseguir entender o que havia acontecido, o quão mágico eram aquelas vozes, aqueles sons e cenários. Na volta para casa lembrava-me encantada de cada detalhe, e estava louca para descrever à minha mãe o que eu vivi. Cheguei de mãos dadas com Miriam. Audrick e Leo vinham logo atrás. Ao abrir a porta, a alegria que eu sentia se chocou com a situação de tristeza ali dentro: minha mãe sentada no sofá, pálida como uma folha em branco. Olhos voltados para o chão, tronco curvado e o cabelo despenteado como se mil mãos os tivessem embaraçado. As mãos trêmulas se massageavam inutilmente. Todos, corremos para o lado dela, exceto Audrick. – Crianças, saiam um pouco – minha mãe falava de olhar baixo e voz trêmula. – Preciso falar com a Miriam, sozinha. Sem entender fomos para o lado de fora, junto com Audrick que soube respeitar nosso silêncio. Nos sentamos no degrau esculpido na terra, nosso cuidador ao meu lado esquerdo segurando minha mão e Leonardo à minha direita, os três de costas para a casa. Nosso terreno era inclinado, acima do nível da rua, o que nos dava visão do céu e da grande quantidade de residências sem acabamento do outro lado da avenida onde ficava nossa casa, que seguia em depressão. – Audrick! – Miriam o chamou. – Venha aqui, por favor. Precisamos conversar. Assim que ele entrou fecharam a porta. Eu e Leo não podíamos mais esperar que nos contassem o que acontecia e espiamos a conversa, ele olhando pela fresta da janela, eu com o ouvido atrás da porta. – Pedro está quase bom, terá alta do hospital ainda essa semana – dizia ela –, mas seu estado psicológico é ruim. Ele terá de ser internado em uma clínica especializada para distúrbios mentais. Senti meus joelhos fraquejarem e bambearem, as mãos suaram frio e meu rosto quente. Abri a porta como um soco. – Mentira! – gritei enquanto entrava. – Ele não é louco. Meu pai não é louco... – Calma, Júlia – Leo tentou me segurar.

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Desviei de todos e corri até minha mãe, agarrando seu pescoço num abraço desesperado. – É mentira, mãe, é mentira. Meu pai não é louco. Audrick segurou meus braços fazendo com que eu a soltasse antes que pudesse machucá-la. – Júlia! Júlia! – ele disse depois de me fazer encará-lo. – Me escute, preste atenção. Seu pai não é louco, está bem? Ele não é. – Seus olhos, agora já conhecidos, me encaravam. – Ele apenas está muito triste, muito mesmo. E não pode melhorar sem ajuda médica. Você entende, agora, pequena? Entende? Ele não está louco, só triste. – Ele enxugou uma lágrima minha com o polegar e eu o abracei. Depois de alguns segundos ele tirou meus braços da sua volta, e sentou-se ao lado de minha mãe, mantendo-me ainda perto. – Nós vamos conseguir tratá-lo, Rafaela. Não é tanto dinheiro assim – ele segurou sua mão –, e amanhã mesmo vocês vão até o hospital visitá-lo e providenciaremos tudo, certo, Miriam? – ele disse isso e olhou para a mulher que estava de pé, nos encarando, com uma expressão difícil de identificar. Minha mãe não aguentou, desabou em lágrimas de alívio por finalmente parar de carregar aquele peso. Eu e Leo a abraçamos, acreditando que tudo daria certo. Desde que meu pai fora internado, meus irmãos e eu não o havíamos visitado. Minha mãe ia até o hospital ter notícias e quando retornava costumava dizer que ele passava a maior parte do tempo sob o efeito de sedativos, sendo inútil uma visita. Mas hoje acredito que, talvez, dizer isso fosse apenas o modo dela nos manter longe de outros sofrimentos. No entanto, quase quatro meses haviam se passado, era hora de enfrentar o aperto no peito. As lembranças do reencontro são poucas. Meu pai estava bastante calmo e tudo que perguntávamos demorava tempo demais para responder, sempre evitando olhar direto para sua esposa ou filhos. Audrick e Miriam só apareceram na hora de ajudar minha mãe com as papeladas da transferência para o hospital psiquiátrico, uma tarefa que demorou horas. Era de tarde quando fomos todos almoçar em um restaurante da região e um fato que eu já notara se repetia: Audrick e minha mãe se afastavam de todos para conversar. Não preciso dizer que eu não gostava em nada daquilo. No retorno, Miriam preferiu seguir de metrô, pois tinha um compromisso inadiável, sobrando assim no carro de Audrick o lugar ao lado do motorista, que minha mãe foi ocupar. Estávamos no meio do caminho de volta para casa e duas vezes eles já haviam cochichado, quando Audrick, de súbito, resolveu nos levar em uma grande Dias de Chuva |

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loja de móveis para comprar uma cama de casal e uma treliche, a primeira para minha mãe e a outra, para mim e meus irmãos. Apesar da grandiosidade do lugar, eu estava preocupada demais com a recente aproximação de Audrick e minha mãe e não reparei em nada mais ao meu redor. Depois da compra paramos em frente à loja para tomar sorvete enquanto Audrick fazia algumas ligações. Ele conseguiu contratar um rapaz que trabalhava com carretos na ONG de Miriam para levar até nossa casa os móveis que havíamos escolhido e estavam disponíveis no estoque da loja. Já era tarde da noite quando, em casa, terminamos de montar os móveis. Minha mãe e Audrick improvisaram lanches para o jantar e em seguida ele se ofereceu para ajudar com a louça, enquanto eu e meus irmãos cuidávamos na nova organização do quarto. Eu ficaria na cama de cima, Leo na cama do meio e Luana na cama embutida. Passava da meia-noite quando nosso cuidador veio se despedir, dando um abraço em Leonardo, um cafuné em Luana que já estava adormecida e um forte abraço em mim, que não retribui. Em seguida, minha mãe o levou até o lado de fora, e sem pensar duas vezes, resolvi espiar. Pela fresta da cortina improvisada os vi se abraçarem. – Ele seria um bom pai pra gente – era Leonardo que falava, sendo estúpido, com aquele raciocínio. – Não fala isso – respondi brava. – Nosso pai vai ficar bom e vai voltar pra casa. – Você acha mesmo isso? – Leonardo me olhou pelo canto dos olhos como se o que eu havia dito fosse uma grande besteira. Respirei fundo. – Não sei, Leo – falei sobre a única coisa que tinha certeza –, mas ele, nunca será meu pai. Deixei meu irmão sozinho olhando pela fresta da janela e fui para a cama. Exausta que estava, adormeci sem sonhos. Dali em diante, Audrick ficava ainda mais próximo, tornando-se um membro da família, sendo eu a única com quem ele não tinha grandes conversas. Nos limitávamos a curtos e precisos: “Boa noite”, quando ele chegava e quando ia embora. Certa noite quando ele chegou, fiz questão de sair da sala, onde agora havia além do pequeno e velho sofá, a cama nova de minha mãe, e fui para a treliche. Eu havia colocado uma grande folha de papel Canson presa com fita adesiva no teto para poder pintar deitada na cama. Peguei os lápis de cor e voltei ao desenho que há algum tempo estava fazendo: uma floresta cheia de seres mágicos de uma história indígena que a professora lera na escola. Enquanto isso, de ouvido aguçado, escutei que minha mãe e Audrick falavam sobre a minha postura.

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– Talvez eu devesse conversar com ela, Audrick – dizia minha mãe. – Ela nunca foi uma criança carinhosa, mas isso é exagero. – Não, Rafaela... não prejudique sua relação com ela por minha causa. Eu acho que é ciúme de você. – Ciúme. Só se minha filha estiver louca. – Ela te ama, Rafaela... não é por mal. – Ela é outra menina quando você não está... Além disso… ela não era assim antes... você… se lembra? – Sabia que quando minha mãe cortava as frases daquele jeito, era porque estava confusa. – Eu sei, Rafaela – a voz de Audrick demonstrava tranquilidade –, mas deixe-me falar com ela antes, tudo bem? A Júlia é uma menina forte e não é fácil ser amigo dela. E eu não quero que a relação de vocês seja prejudicada pela minha presença. Não ouvi a voz de minha mãe em resposta, mas acredito que ela deva ter concordado com a vontade dele, pois logo Audrick surgiu levantando o lençol da porta e se aproximou. – Oi – ele disse encostando a cabeça no treliche e mirando os olhos cinza na minha direção –, podemos conversar? – Podemos? – Eu não sabia ao certo se poderíamos. Por isso acho que devolvi a pergunta. – Eu acho que sim, Ju – Audrick disse com segurança. – Júlia! – exclamei. Ele não podia me chamar daquele modo. – Ok. Júlia... – Suspirou. Parecia um pouco decepcionado com meu modo de tratá-lo. – Será que nós podemos conversar lá fora? – Ele apontou para a porta do quarto que dava para o apertado quintal onde uma única planta sobrevivia num balde improvisado de vaso. – Tudo bem... – respondi sem vontade alguma. Soltei os lápis, desci do treliche e saímos. Do lado de fora nos sentamos no chão com as costas na parede da casa, ele encostou a porta e me olhou muito sério. – Você gostaria que eu não viesse mais? – Ele começou. – Não – pensei por um instante em tudo que ele estava fazendo por nós –, não é isso… – Então o que é? – Sua voz era calma, porém muito fria, como se não fizesse diferença a minha resposta. Dias de Chuva |

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– Por que você não contou pra minha mãe que foi até o parque e conversamos aquele dia? – soltei a dúvida que nem sabia existir. – Eu não contei? – ele disse sorrindo. Fiquei surpresa. Será que ele havia dito? Eu deveria perguntar outra vez? Não tive tempo. Ele emendou outra pergunta: – Lembra do que eu te prometi? Fiz que não com a cabeça. – Eu disse que nunca hesitaria em fazer o que tiver de fazer para ver você melhor. Apenas você! – Não sei... – Olhei um tempo para o piso úmido e depois para a parede buscando o que dizer. – O que é “hesitar”? – perguntei envergonhada. Ele riu e passou a mão na longa franja, arrumando-a para trás. – Hesitar, quer dizer deixar de fazer... ou seja, dizer que eu não hesitarei, é dizer eu não deixarei de fazer nada para te ver melhor. Não vou nem pensar duas vezes. – E a minha mãe? – emendei rápido. – O que você quer com ela? – Só quero que ela seja uma boa mãe para você – ele me encarou muito sério –, eu juro que essa é minha única intenção. – Então sorriu. – Vamos deixar esses pensamentos bobos para lá. – Ele me fez um cafuné. Seu contato era quente e de fato me deixou um pouco mais calma. – Você pode confiar em mim quando eu digo que só quero o seu bem. – Esperou que eu concordasse, mas eu não disse nada. Apenas senti que estava acordado daquele modo. – E agora, que tal me mostrar seus desenhos? E para o momento, aquela conversa seria o suficiente se outra desconfiança, fruto de um incomodo muito maior, não tivesse nascido em seguida. ///

Era uma tarde amena de primavera: o sol do crepúsculo ainda no céu dividia espaço com uma garoa fraca e refrescante. Eu havia saído da escola com o pensamento repetitivo no teste que aplicaria ao nosso guardião. Fui direto para casa antes que anoitecesse. Como de costume, minha mãe e Leonardo terminavam de preparar o jantar. Eu estava ansiosa esperando a visita de Audrick e, para minha angústia, ele chegou bem tarde e parecia estar com pressa. O fato era que inúmeras vezes tudo que precisávamos ele parecia prever. Mesmo que não disséssemos, ele estava ali com a surpresa pronta, um doce, um

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livro, um casaco novo. Como justificar essas adivinhações? Como explicar que ele sempre sabia o que desejávamos? Um teste, eu pensava, e só um teste me tiraria a dúvida. Já que eu nunca havia pedido nada a ele, achei que poderia arriscar. E ali estava nosso cuidador, com pressa, sem me dar tempo de planejar o que faria. Audrick, de um modo bastante frio, se desculpava pela hora reafirmando que só apareceu porque prometera, mas incumbida do meu desejo resolvi seguir com o plano e ignorar o fato dele, era provável, não estar num “bom dia”. Então repeti mentalmente: Audrick, eu quero uma caixa nova de lápis de cor. No mesmo instante achei que ele se desconcertou parando de falar, mas em seguida me olhou com o canto dos olhos com uma das sobrancelhas arqueadas de curiosidade, e voltou a conversar com Leo. Achei que meu coração, antes acelerado, fosse parar. As mãos suaram frio e eu quis gritar para saber o que estava acontecendo. Mordi os lábios e engoli a loucura que seria berrar: “Ei! Você leu o meu pensamento ou não?” Passei as mãos frias e suadas nos shorts algumas vezes enquanto ouvia Leonardo contando sobre a escola. Achei que iria chorar. Esfreguei os olhos algumas vezes com as costas das mãos e soltei todo ar que havia segurado sem querer, e então Audrick se despediu. Passei inquieta a noite inteira, sem decidir se era tudo uma fantasia e ele não lia nenhum pensamento nosso, ou se lia, e depois de tudo que fez me achou mal-agradecida por ainda exigir presentes. Na noite seguinte ele apareceu sem avisar trazendo nas mãos um embrulho simples de um papel azul brilhante, que me entregou sorrindo. – Hoje trouxe algo especial para você, Júlia. – Ele piscou. – Pode abrir. Meu coração disparou. Peguei o presente. Abri e lá estava meu pedido. Diferente do que havia imaginado, me senti incrivelmente tola. A situação foi tão difícil para eu lidar que nem mesmo agradeci. Estava paralisada. – Você não vai agradecer o presente? – perguntou minha mãe um tanto sem graça. – Desculpe, Audrick, ela não deve estar se sentindo bem. – Não tem problema. Sei que ela gostou – respondeu se levantando e acariciando meu cabelo. – De todo modo, preciso mesmo ir. Aproveite o presente, Júlia – ele falou com o rosto muito próximo ao meu e piscou. – Nos vemos em breve. – Desculpe – foi o que consegui dizer, olhando apenas o chão de tão envergonhada. – Tenham uma boa noite – Audrick se despediu de nós, e foi embora, me deixando com um buraco enorme no estômago, feito pela confusão e insegurança. Dias de Chuva |

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Nas visitas que se seguiram tudo mudou, eu me apeguei a ele de um modo impensado. Não havia raciocínio mais. Só uma gigantesca gratidão por ele existir. Ele me fascinava, cuidava de nós, era presente e o que mais eu poderia querer? Com toda a paixão e afeto que uma criança poderia sentir, eu fui amando de um modo inocente e sincero, vivenciando saudades imensas nas noites em que ele não vinha, feito um pedaço que me faltava. Em nosso lar muito também havia mudado. Não era só a comida, os novos móveis e os diferentes passeios. Nós conversávamos. Minha mãe menos preocupada com nossas necessidades chegava mais cedo em casa e assim nos ajudava nos estudos e descansava mais. Meu irmão, com o tratamento, já estava mais forte e minha pequena irmã já falava de maneira que nunca acreditamos que fosse acontecer. Eu estava vivendo a felicidade, o que me propiciava acreditar que eu pudesse ter tudo o que desejasse. Eu estudava, pegava livros e livros numa biblioteca onde fiz uma carteirinha, desenhava muito, e minha mãe admirada me dava sempre mais amor e incentivo.

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Capít ulo 3

Xeque-mate

Meu pai era sua próxima batalha. Luta de uma guerra que nem desconfiávamos. O que não sabíamos, ou não prestávamos atenção para ter ciência, é que Audrick se empenhava muito para ser aceito por nós. A primeira dificuldade foi convencer minha mãe a deixá-lo se aproximar, já que a desconfiança é sempre a maior arma de uma mãe de família. Com a presença e apoio de Miriam, essa primeira batalha foi vencida. Mas como seria com meu pai? Era dezembro e com ele não vinha nenhuma boa notícia e nem preparações para festas. Meu pai ainda estava internado, e mesmo Audrick insistindo para que comemorássemos, minha mãe recusou os pedidos de participar de uma festa, preferindo que na véspera de natal ficássemos apenas nós quatro. É verdade que eu e Leonardo imaginávamos que Audrick, sendo rico e gostando de nos fazer surpresas, nos traria algum bom presente no dia vinte e cinco. Mas isso não aconteceu. Um pouco depois do meio dia ele chegou, mas sem sacolas ou embrulhos. Sorrindo, ele deu um abraço forte de Feliz Natal em cada um de nós, e pediu para que nos sentássemos. – Eu tenho uma notícia para vocês que precisará de uma decisão da família. – Audrick fez uma pausa para respirar e passou a mão pelo cabelo comprido, como se repensasse sobre o que diria. – A visita no hospital psiquiátrico foi liberada. Vocês podem visitar o Pedro – nosso cuidador disse essa frase muito rápido, como se quisesse se livrar dela. E só depois respirou, coçando a nuca antes de continuar. – Ele não sabe dessa liberação. O cadastro no hospital tinha o telefone da minha casa, por isso me avisaram. Eu pedi para que não comentassem nada, pois não sabia qual seria a decisão de vocês. – Então mexeu a boca para um lado e para o outro, um gesto que depois eu entenderia como de dúvida e até insegurança. – Assim – ele disse enfim –, enquanto vocês conversam sobre isso, eu estarei lá fora. – Audrick se levantou e saiu. Dias de Chuva |

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Fomos unanimes ao escolher visitá-lo mesmo que não fosse uma decisão fácil diante tanta mágoa que sentíamos. Lembro-me de ter passado as mãos pelo cabelo de forma nervosa, imitando o gesto que, sem querer, copiava de Audrick. Eu amava meu pai, morria de saudades, mas ele já estava guardado fundo no meu peito, num cofre trancado longe do cotidiano, como forma de eu seguir um dia após o outro sem sofrimento. Era um amor que sempre se misturava à raiva e talvez toda minha família sentisse algo parecido. Mas tínhamos que ir, pois havia a possibilidade. Chegamos ao hospital e nos deparamos com uma quantidade razoável de famílias indo visitar os seus. A atendente fez cara de desprezo e pouco caso ao ver a quantidade de pessoas que ela ia precisar liberar na visita do meu pai. Mas logo depois uma moça gentil de olhos amendoados nos acompanhou até ele. Meu pai estava muito mais magro do que o normal. Sóbrio, ainda parecia o mesmo homem triste e perdido. Ele nos abraçou e parecia contente em nos ver, mas logo todos se sentiram incomodados com suas poucas palavras. Ele repetia que desejava ir para casa, pois estava cansado do hospital, e quando minha falou sobre seus vícios, ele não demonstrou remorso algum, nos fazendo crer que seu desejo de retornar era apenas para se reaproximar da bebida e do jogo, e não de nós, isso me fez pensar que, talvez, tivesse sido melhor não ter ido àquela visita. A chegada do ano novo, com seus fogos e euforia, não nos era atrativa, mesmo assim não tivemos como fugir do convite insistente de Miriam para cear com seus amigos e colegas da ONG, pois sua família morava em outro estado. Os fogos já haviam colorido o céu e assustado cachorros e gatos. Minha mãe fazia companhia para anfitriã e outras moças, enquanto Leonardo brincava na rua com alguns meninos – coisas que só acontecem nessas datas, viver a madrugada como se fosse um entardecer. Eu estava no sofá, de cabeça baixa, sem prestar atenção à televisão ligada num programa qualquer, quando ouvi o som de um carro parando na rua e alguns cumprimentos. A porta se abriu: era Audrick. Ele sorriu ao me ver, e eu me afundei no sofá, acuada e contente com a surpresa. – Feliz Ano Novo, Júlia – ele falou se sentando ao meu lado. – Oi – respondi, tentando ficar mais feliz do que estava. O recém-chegado me olhou por alguns instantes, desconfiado. – Ainda está preocupada com seu pai, não é? – Audrick perguntou, segurando minha mão direita. Inspirei de maneira entrecortada, trazendo de volta a

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magoa e uma lágrima me escapou. – Não deveria, minha pequena. Logo ele voltará para casa. – Como você sabe? – Ao mesmo tempo em que queria abraçá-lo e acreditar nele, sentia uma forte vontade de gritar com Audrick. Como podia ser tão positivo? Ter sempre a resposta para tudo? Era preferível ficar em paz, vivendo a raiva que voltava a sentir do meu pai. – Eu apenas sei... – Ele ergueu meu rosto com sua mão delicadamente no meu queixo. Eu mordi o lábio de um lado e segurei a respiração, enquanto mantinha os olhos arregalados nos dele. – Quer dar um passeio e ver uma coisa especial? – Fiquei um tempo sem responder. – Então, quer? – Fiz que sim com a cabeça, engolindo em seco. Por um segundo seus olhos se amarelaram. Por um tempo muito curto, que me fez duvidar do que vi. Ele se levantou e me puxou pelo braço, me rodopiando como numa valsa antes de seguirmos escada à cima. A casa de Miriam era um gracioso sobrado, desses que ficam nas periferias, longe dos centros urbanos e são construídas aos poucos e com empenho dos moradores. Uma grande varanda circundava os quatro lados da casa que ficava em uma esquina. O número de convidados não era grande e estavam todos espalhados na cozinha e no quintal dos fundos, assim, sem sermos vistos, seguimos pelo lado da varanda que dividia a parede de cimento com o vizinho. Naquele lado afastado da casa, havia várias plantas em vasos e hortas suspensas criando um pequeno jardim que exalava diferentes perfumes. Audrick segurou minha mão e nos ajoelhamos em frente a um dos caixotes de madeira com um vaso onde não havia planta alguma. – Agora a magia acontecerá – ele disse com voz suave –, se você acreditar. Perto de meu rosto ele esfregou a ponta do dedo indicador com a do polegar, como quem espalha tempero na comida, mas com a mão virada para cima. Depois de fazer isso algumas vezes, umas faíscas, como minúsculas estrelas, surgiram. Pisquei sem acreditar e as faíscas se tornaram uma chama alaranjada. Ele esticou o dedo indicador e o pequeno fogo se equilibrou ali, feito uma vela. As tatuagens estranhas do seu braço gradativamente ganharam um brilho vermelho. Arregalei os olhos em deslumbre. A luz percorreu seu braço e com a ponta do dedo ele levou a chama até o vaso sem planta, e lá ela flutuou até a terra, onde fez seu pouso. Audrick soprou a chama, e ela dançou bruxuleante num fingir que ia extinguir-se para depois dobrar de tamanho, ganhar pétalas e se transformar em flor. Dias de Chuva |

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Fiz menção de tocá-la, mas hesitei. Audrick me incentivou com um meneio de cabeça e terminei meu intento. Era uma flor vermelha, diferente de tudo o que conhecia, de cinco pétalas pontudas e respingadas de gotículas alaranjadas. Macia como algodão, vibrante como o fogo que era. – Você quer tentar? – ele me perguntou, como quem oferece um doce, com os olhos apertados e sobrancelhas arqueada de um modo arteiro. – Si-sim – gaguejei, com certo medo e insegurança, porém animada. Viramos um de frente para o outro e tocamos nossos dedos indicadores. Mais uma vez suas tatuagens brilharam, e como desenhos vivos, percorreram seu antebraço, seu pulso, sua mão e seus dedos, passando aos meus. Os mesmos desenhos junto a um formigamento ganharam minha mão, primeiro, feito tatuagem negra, depois, azulou-se, circulou meus pulsos, e ganhou meu braço. Audrick afastou sua mão. – Agora veja a chama. É só você ver. Eu a imaginei. Não vibrante e bela como a de Audrick, porém com a cor do céu que eu admirava e do mar com qual eu apenas sonhava. Minhas mãos tremiam de ansiedade. Eu vi Audrick criando a magia, e sabia que podia fazer o mesmo. Eu poderia fazer qualquer coisa. Quando menos percebi uma chama azulada e pequena surgiu nos meus dedos. Mal podia crer na felicidade e por um segundo a chama quase se apagou, tamanha foi minha excitação. – Fique calma, Júlia – Audrick disse em tom acolhedor. – Não perca o foco. Respirei fundo e apontei o dedo sob o qual a chama azul reluzia e a coloquei ao lado da flor vermelha. Ela pareceu estagnar ali, mas não tiraria os olhos até ver a chama virar flor. Audrick colocou sua mão sobre meu ombro. – Esta flor é parte de você, Júlia! – ele sussurrou. – Não se preocupe! Soltei a respiração livrando-me da tensão. Quando o ar de dentro de mim saiu e foi até a chama, uma nova flor enfim surgiu: transparente como cristal, azulada, e ao tocá-la, a percebi fria. Mas era linda, mesmo que fosse como o gelo, era perfeita. – Você pode arriscar, Júlia – ele me encorajava em sussurro. – Vá mais longe. Apontei mais uma vez para a flor e de seu pequeno miolo fios translúcidos ganharam vida, multiplicaram-se e se espalharam rapidamente pelos diversos vasos e plantas, nascendo pelo caminho várias flores azuladas e cintilantes. Audrick repetiu o meu gesto, criando de sua flor pequeninos fios que se trançavam com os meus, desabrochando suas flores vermelhas e ambos colorimos a estufa. E todo o nosso entorno era rubro e azul. Ele pegou-me no colo e ergueu-me até a

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planta mais alta, onde as flores me seguiram. Eu ria, encantada. Não havia visto nada mais belo. E quando sua magia vermelha alcançou a minha flor mais alta, ela mesclou suas cores. De súbito paramos de rir, as flores sumiram, e uma voz nos procurava. O abracei em agradecimento e ele me colocou no chão, depois, de mãos dadas, voltamos para a casa, não sem antes olhar para trás e ver a última flor, azul e vermelha, se apagar. ///

Na segunda semana de janeiro meu pai recebeu alta. Miriam estava adoecida, com uma forte gripe alérgica, e não poderia ir conosco. Assim, também não sendo viável ir com Audrick, a ambulância o trouxe. Mas não havia como esconder as mudanças em casa: os móveis, a comida, a saúde de Leonardo e de Luana, nossa convivência mais afetuosa. Ainda éramos uma família pobre, cheia de limitações, mas vivíamos em paz. Então, com redobrado cuidado, falamos do projeto da ONG, e como tínhamos sido escolhidos por um cuidador. Meu pai achou tudo estranho, confuso, mas aos poucos, depois de dois ou três dias, a ideia parecia mais aceitável. Miriam não pôde vir explicar, então fomos visitá-la e aproveitar para que ela ajudasse a esclarecer os acontecimentos. Ela estava bastante abatida e cansada, mas foi atenciosa e fez de tudo para deixar nítida ao meu pai a legitimidade do projeto. Foi apenas no dia seguinte, quando meu pai se mostrava ansioso para conhecer nosso cuidador, que revelamos o nome e como o tínhamos conhecido. – IMPOSSÍVEL! – ele gritava. – Isso é loucura. Aquele homem? Você não lembra o que a família dele nos fez? Por Deus! – Pedro, se acalme – dizia minha mãe. – Aquela família não presta, Rafaela. Você não deveria ter aceitado a ajuda dele. – Ele é um bom moço. Quer se redimir pelo tio. Não tem nada em comum com aquele homem. – Como você sabe, Rafaela? – Meu pai era tomado pela fúria. – Como você sabe? – Como eu sei, Pedro? Essa é mesmo a pergunta? – Minha mãe começava a se exaltar. – Nesses meses ele foi mais pai dessa família do que você por anos! – O que você está dizendo? – ele quase perdeu a sanidade naquele momento. – O que esse garoto quer com a minha família? Ou será que é em você que ele está interessado? – meu pai cuspiu essas palavras com o ódio lhe fervendo a face. Dias de Chuva |

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– Eu não estou dizendo nada – rebatia minha mãe. – Ele é uma boa pessoa. Tem nos ajudado muito nos últimos meses, e se quer realmente saber, se é isso que está te preocupando, ele nunca tentou nada comigo. Ele é um garoto, não deve ter passado dos 25 ou 26 anos. E ainda mais, foi ele quem custeou todo o seu tratamento. TODO – minha mãe gritava e gesticulava tanto que foi preciso nos esquivar para não ser alvo de seus braços nervosos. – Se fosse o contrário, se ele quisesse algo comigo, acha mesmo que faria tanto por você? Justo você, que abandonou todos nós por seu vício, e quase arruinou de vez essa família? – Não tente me enganar, Rafaela – ele dizia trêmulo de raiva. Acha que não me remoia no hospital sabendo dos homens que poderiam se aproveitar da situação, e vir atrás de você? Eu tinha dificuldade em entender na época, mas depois de adolescente pude perceber como minha mãe sempre foi bonita e chamava atenção aonde ia. – E agora encontro esse... esse... – meu pai gaguejava –, esse monstro dentro de casa... – Monstro, Pedro? Monstro? – ela esbravejava. – Quem é o monstro covarde que tem destruído essa família? – Chega! – Meu pai estava enlouquecido e não iria ceder. – Eu não quero ele nessa casa. Chega desse envolvimento, entendeu? Já CHEGA! – NÃO! Já chega você. Faz anos que você perdeu a voz nessa casa, para não falar de mim e seus filhos. Faça sua escolha agora, Pedro. Ou não precisa mais voltar. Bufando, ele pegou a carteira e saiu batendo a porta. Leo e eu assistimos à discussão sem nos pronunciar. Vimos quando nosso pai saiu sem nada dizer e nossa mãe sentou na beira da cama para levar as mãos ao rosto e se deixar chorar. Luana, assustada com a discussão, também chorava e tive que a pegar no colo para acalmá-la. Meu pai não apareceu nos dias seguintes e nós não fomos procurá-lo. No entanto minha mãe falava disso o tempo todo quando estava em casa. Ora brava, dizia que superaria e viveria a vida sem ele, que tinha sido melhor com meu pai longe e continuaria sendo. Noutros momentos, ela dizia entender como ele se sentia incomodado com a presença constante de outro homem na casa, e depois reafirmava que ele tão tinha direito e nenhuma moral para nos julgar. Confusa, tentava acreditar que já havia passado da hora de entender que o amor havia acabado, para então confessar que sempre desejou que ele mudasse. Passado quase uma semana, achei em minha gaveta de roupas o Ovo do Dragão. Eu havia esquecido completamente da pedra misteriosa que Audrick me

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dera, e no mesmo instante tive uma ideia. Subi no treliche e a coloquei debaixo do travesseiro.

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Uma tempestade caía do lado de fora e raios traziam sua luz fantasmagórica para dentro de casa fazendo com que as manchas de bolor na parede parecessem máscaras numa festa dantesca. Esperei que todos adormecessem e, deitada de lado, coloquei as mãos debaixo do travesseiro, segurando o Ovo do Dragão entre elas. Senti a pedra esquentar e de olhos fechados busquei as imagens do que eu mais desejava: o retorno do meu pai. De um novo pai, disposto a nos amar. Adormeci ao som dos trovões. Estava de pé sobre a terra molhada. Chovia forte, mas não havia vento. Eu olhava para um rio muito largo e segurava a pedra que ganhara de Audrick, quando uma serpente de fogo emergiu da água, revelando sua cabeça colossal e seu corpo esguio que parecia nunca ter fim. Apesar de monstruosa, não me causava medo e eu a via subir ganhando os céus, tirando seu corpo gigantesco de escamas vermelhas de dentro do rio, revelando suas garras e asas num voo perfeito. Passando acima de mim, a serpente-dragão foi na direção contrária às margens do rio, enquanto a seguia do modo mais rápido que pude. A terra à minha frente dava lugar para um mato alto inclinando-se numa colina. Quando cheguei ao topo vi na depressão que seguia após o pequeno morro a serpente rodear um homem cujo corpo expelia uma fumaça densa e preta. Mesmo de longe reconheci meu pai. Só com a proximidade da serpente a fumaça pegou fogo. Rápido como o fogaréu surgiu, a chuva o apagou, ficando meu pai de joelhos no chão enquanto a criatura partia outra vez. Na dúvida entre correr até meu pai e ir de encontro à serpente, mantive-me sobre a colina, onde vi o homem se render à chuva, e deitar-se no chão contente pela água que o aliviava. A cobra voou até o outro lado do rio, mas logo retornou. Curvando o vento e a chuva ao seu desejo, ela parou em frente ao meu pai, que acabara de se levantar, abriu a bocarra e esticou a língua, saindo de dentro de sua boca minha mãe assustada. Meus pais se abraçaram. A serpente pairou no ar exibindo sua barriga de escamas vermelhas e bateu as asas, como em um cumprimento que instintivamente reconheci. De súbito ela voou em minha direção e virando neblina entrou no Ovo do Dragão, que estava firme e seguro ainda em minha mão. Dias de Chuva |

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Acordei suando. A mão em baixo do travesseiro segurava a pedra. Soltei-a, mas a mantive no lugar. Busquei outra vez o sono depois de acalmar a respiração acelerada. Na manhã do dia seguinte meu pai voltou. Parecia abatido e muito cansado, tinha as roupas molhadas e olhar sóbrio. Ele fez um longo discurso sobre aproveitar a nova chance, recuperar nossa família, e que, se Audrick era mesmo tudo o que dizíamos, e os documentos da ONG de Miriam também provavam isso, que ele não tinha escolha a não ser aceitar. Minha mãe o abraçou. Iríamos tentar uma vez mais. É claro que nas visitas seguintes feitas por Audrick ainda havia muita tensão, não sendo à toa que nosso cuidador se aproximou ainda mais de mim e de meus irmãos, enquanto o receio de meu pai ia sendo vencido. Não acredito que deva ter se passado dois meses para que meu pai se incomodasse por estar sem emprego, enquanto éramos sustentados por outro homem. As pessoas começavam a falar, sempre falaram, mas só agora ele as ouvia. E novas cartas, escondidas na manga, eram reveladas por Audrick. Ele arranjou um emprego para meu pai em uma transportadora que prestava serviços para a filial de sua fabricante de vinhos. Não era um trabalho dos melhores, mas até mesmo isso foi calculado, pois ficava longe de casa e meu pai demoraria, de ônibus, talvez umas três horas para ir e outras três horas para voltar. “Sendo assim”, disse Audrick, “achei também que o senhor precisaria de um carro”. E pronto, meu pai também foi conquistado. Audrick firmava austero seu xeque-mate. Havia conquistado a todos, podendo reinar livre em nossas vidas, mas todo bom artista sabe a hora de sair de cena.

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Capít ulo 4

Por trás das cortinas

Alemanha, sua terra natal. Foi para lá que nosso salvador viajou por quase seis meses. Quando chegavam cartas de Audrick, também vinham reservados convites e entradas para os mais variados espetáculos, e mesmo de longe toda a família era intimada a ir. No início eu escrevia nossas impressões, nossos passos, a grande saudade que sentíamos dele – principalmente a que eu sentia – e os nossos sonhos. Porém, ao inquirir sobre o tempo que passaria longe, recebi como resposta a seguinte sentença: “Aproveite agora a família que você nunca teve, pequena Júlia”. Sim, foi isso que aconteceu. Meu pai cresceu rapidamente na empresa e nos mudamos pela primeira vez, não para uma casa luxuosa, mas ao menos uma residência com três quartos e um pouco mais de conforto advindo com a privacidade. Minha mãe optou por parar de trabalhar fora de casa por um tempo a fim de cuidar de nós, mas principalmente de Luana, na tentativa de acelerar o seu desenvolvimento atrasado. Meu irmão em nada lembrava a figura doente e enfraquecida de antes. E eu? Bom, sem tantas preocupações, tela e pincéis só eram deixados de lado para eu ter com os livros, inclusive recebi como presente de aniversário, material de pintura importado da Alemanha. Porém, eu sentia muito a sua falta. Era como se um buraco enorme existisse no peito, e eu tentava preenchê-lo com a dor e a raiva de quem se sente abandonado. Acredito que devido a esse sentimento passei a querer contar para minha família sobre meu sonho com a grande serpente e de como Audrick adivinhava meus – e talvez nossos – pensamentos. Queria contar das flores no jardim de Miriam, das tatuagens que se transmutavam em luz. Mas não havia provas, e com o passar do tempo e a distância dele, eu começava a duvidar da verdade de tudo aquilo, e acabei não contando nada a ninguém, pois a única lembrança palpável era a pequena pedra vermelha que ele havia me dado muito antes de fazer parte de nossa família, e não no dia que transferimos meu pai de hospital, como tive de inventar, pois a levava comigo, presa em uma corrente que passara a usar como colar desde o dia em que meu pai voltou para casa disposto a reconstruir nossa família. Dias de Chuva |

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Capít ulo 5

Uma fenda na máscara

A porta de casa se abriu pelas mãos de Leonardo, revelando a figura do mesmo Audrick. A calça jeans, a camiseta preta lisa, os cabelos soltos. O mesmo sorriso. A mesma presença. Seria maravilhoso tê-lo conosco se não fosse a magoa guardada, sabendo que mais uma vez ele não tinha vindo para ficar. Nosso cuidador percebeu a minha dor e fez tudo que estava ao seu alcance para tentar uma reaproximação, gerando um abismo entre nós pelo seu exagero de mimos. Dias depois eu ainda evitava sua presença ou qualquer diálogo, quando numa noite quente, quase abafada, ele levou a mim e Leonardo para um jantar. O ambiente era o mais refinado que eu já havia visto em toda a vida, comparando-se até às óperas e museus em que estive graças a ele. Nossa mesa era uma das mais reservadas e privativas, rodeada por diferentes vasos de tulipas e colunas de gesso. Tudo ali parecia ser de um valor incrivelmente alto, que eu nem poderia calcular e foi aí que comecei a entender o quão rico nosso cuidador deveria ser. Mas diferente de tudo que Audrick um dia me apresentou, o luxo e grandeza me deixavam insegura e incomodada. Depois do jantar seguimos para pernoitar em sua casa onde um videogame aguardava por mim e meu irmão. Depois de horas de jogos fomos dormir e, como a casa era grande, Audrick propiciou um quarto para mim e outro para Leonardo. A madrugada avançava, mas o sono não vinha me ver, e de qualquer modo, incomodada com a situação, não desejava dormir. Foi então que minha curiosidade me levou a uma aventura pela mansão. Ainda sinto o cheiro do perfume naquela casa que vinha das damas da noite do lado de fora, e do piso frio sob meus pés descalços. A aventura me fez descer para o hall de entrada, evitando fazer barulho no andar dos quartos. De lá segui até uma porta de madeira e encontrei a biblioteca.

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Pensei em desistir quando o aperto no peito começou, como se me avisasse que deveria dar as costas, mas continuei e me aproximei dos livros, todos de capas de couro ou qualquer outro material que parecia antigo demais para estar ali. Olhando as lombadas notei que foram escritos em algum idioma – ou vários – por mim desconhecido. Folheei dois ou três livros, e, em suas páginas velhas, gravuras de todos os tipos de demônios, sacrifícios, e diversos símbolos ganhavam as folhas e saltavam aos meus olhos. Minhas costas se arrepiaram e suei frio, sem conseguir imaginar o motivo de alguém ter tantos livros com imagens horríveis. Deixei-os de lado e passei a olhar os móveis, todos com aparência de serem muito antigos. Uma escrivaninha, uma grande poltrona e atrás desta, junto à parede, à esquerda da porta por onde entrei, um grande quadro de Audrick e outro rapaz, de cabelos negros na altura da orelha e pele morena. Ao centro da sala, havia poltronas e mesinhas menores, com todo tipo de taças e garrafas de bebida. Eu pensava como tudo no aposento contrastava com a simplicidade e praticidade do restante da mansão que eu conhecera, quando ouvi a porta da entrada se abrir e os cachorros latindo do lado de fora, seguido por passos se aproximando. Com medo de ser descoberta corri para trás da escrivaninha, onde me agachei. Quando Audrick entrou, seus olhos estavam amarelos como de um animal, muito abertos e as pupilas dilatadas. Seu casaco estava cheio de sangue e de uma vez foi arrancado e jogado sobre uma das poltronas, num misto de fúria e cansaço junto a um grito gutural, deixando cair-se então sobre o outro sofá. Durante certo tempo sua respiração ficou ofegante e depois ele riu como um insano, tombando a cabeça para trás totalmente perdido no seu estado. Aos poucos parou de rir, mas seu peito ainda arfava. Era um pesadelo o que eu via. As mãos voltavam a suar frio e meu coração disparou, sentindo medo incontrolável de Audrick. Afastando-se do encosto da poltrona ele tirou a camisa rasgada e largou-a no chão me revelando sua pele, além das tatuagens avermelhadas, repleta de cicatrizes de cortes e queimaduras. Na busca de se recompor, ele levantou e andou até uma das estantes de onde retirou um vidro com um líquido verde florescente, até então escondido por alguns livros, e falando consigo, serviu-se de um drinque: – Não era uma boa noite para se fazer isso. Ah, de fato não era. Mas... Wir tun, was es braucht1. – Ele deu um gole. – Menos um maldito, menos um. Zur Hölle2. E mais um brinde ao demônio. 1

Em alemão, “Nós fazemos o que é preciso”

2

Em alemão, expressão de raiva como quem diz “Mas que inferno!”

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Audrick tomou o restante da bebida e os desenhos da pele deixavam a cor vermelha para voltar a serem apenas tatuagens pretas. Mas as cicatrizes continuaram lá. Ao voltar a se sentar na poltrona o brilho da lua, através da janela, iluminou sua face e seus olhos perderam-se em qualquer lugar que não era aquele em que estávamos. Sua íris sumiu. Ele pareceu tonto e de seus lábios um filete de sangue escorria. De súbito Audrick se curvou para frente e vomitou um líquido grosso e escuro. A cena pavorosa pareceu durar uma eternidade, e só quando cessou o vômito ele ergueu-se de volta. Com a boca aberta em uma cavidade anormal, vi um tentáculo dançar de dentro de sua boca descendo pela garganta até sumir. Deixei um grito baixo, daqueles que engolimos em vez de berrar, escapar. Seu rosto se virou em minha direção e rapidamente seus olhos voltaram ao cinza de sempre. Ele limpou com costas da mão o sangue de seus lábios enquanto corria a curtos passos até mim. – Desculpe, Júlia. Desculpe. Ele tentava ser gentil e quis me abraçar, mas eu, apavorada, me esquivei para trás, batendo as costas nos pés da escrivaninha. Ele respirou fundo e eu senti seu calor. As lágrimas brotaram de uma vez. Eu queria gritar e correr, mas minhas pernas e voz deixaram de me pertencer. Audrick me olhou com ternura e tocou o meio de minha testa com o dedo indicador. – Desculpe-me por tudo isso, sim? – ele repetiu e assim que senti seu toque adormeci num único suspiro. O sol entrava pela janela do carro na manhã seguinte enquanto ele nos levava para casa. Meus olhos viam no banco do motorista à minha frente o já conhecido Audrick que retornava, mas não para mim. Eu o olhava e quis acreditar que o que vira durante a madrugada era nada além de um pesadelo, mas o medo ainda acelerava meu coração, dizendo que sim, tinha sido real. Em casa tirei o Ovo do Dragão do pescoço e o escondi. Só me acalmei por saber que no dia seguinte nosso cuidador partiria em outra longa viagem.

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Capít ulo 6

Despertar do ventre

A adolescência chegou rápido, enquanto eu me aprofundava nos estudos das artes plásticas, da literatura e de línguas. O motivo, no entanto, já não era deslumbre pelo conhecimento. Foram pouco mais de quatro anos em que me instruir havia se tornardo uma forma de distrair a mente e não pensar em Audrick. Quando mais uma carta chegou anunciando seu retorno eu estava com quatorze anos. Abri-a sem muita vontade e peguei primeiro a foto que ele me mandara: parecia ter sido tirada pela manhã devido a luminosidade e posição do sol. Ele estava sentado nos degraus de uma linda casa em Leipzig, vestindo uma calça jeans e uma camiseta branca, os cotovelos apoiados nos joelhos, trazendo o semblante tranquilo enquanto ele sorria. Eu olhava incrédula o seu rosto: Audrick ainda parecia o mesmo jovem que eu havia conhecido em uma noite fria e sem esperanças de julho. Como era possível ele não ter envelhecido? Tentei conversar com minha família sobre isso algumas vezes, mas sempre era ignorada. Minha mãe costumava dizer que havia pessoas mais joviais e conservavam por anos o mesmo rosto de vinte e poucos. E eu quase começava a crer que as estranhezas de Audrick eram fruto da minha imaginação. Todos na casa recebiam uma foto de um lugar especial uma vez ou outra. Até que meus pais resolveram juntar todas em uma pequena caixa de madeira de ébano, comprada só para isso. Ficando apenas uma na parede da sala, junto das fotos da família. Mas as enviadas para mim eram escondidas dentro de outra caixa, enfiada no guarda-roupa, em qualquer lugar bem longe da minha visão. Eu não havia mandando nenhuma carta durante todo aquele tempo e mesmo assim, ele sempre me escrevia. No entanto, mesmo que doesse, eu sempre as lia e não sei dizer o motivo, sendo apenas parte da rotina, lia e guardava.

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Quatro anos! E quando achava que ele se contentaria em ser parte de nossa vida através das correspondências, recebi a notícia de seu retorno. Lembro-me de ter sentado na cama e de passar a mão de forma nervosa pelo cabelo enquanto olhava a carta, e sua impecável caligrafia, junto à foto sobre a colcha, sem querer acreditar em seu retorno. Pensei sobre a data em questão e não era próxima, então daria tempo de arranjar uma desculpa para não estar em casa na noite de sua visita. Provavelmente eu não conseguiria evitá-lo por muito tempo, a menos que Audrick logo voltasse para a Europa. Era uma pequena chance, mas melhor do que nada. Suspirei e deitei na cama, olhando o teto. Um pouco de mim faria qualquer coisa para esquecer aquela noite e lembrar só das coisas boas: dos passeios, do pequeno ovo de dragão que eu havia deixado de carregar no pescoço, dos desenhos para os quais ele posava, das histórias de tempos distantes que me contara, das primeiras palavras e sentenças que me ensinou em outras línguas. Queria me lembrar dos olhos, e de como sua estranheza tornava-se beleza diante de mim e poder guardar na memória o sorriso, os pelos de seu braço e nuca ruivos no sol e seu calor natural. Eu podia voltar no tempo e rever as flores vermelhas e azuis no jardim de Miriam. Suspirei, e é provável que eu tenha deixado algumas lágrimas escorrerem. Do corredor ouvi minha mãe me apressar. Havíamos combinado de juntas buscar minha irmã na fonoaudióloga, e de lá iríamos jantar e assistir a um filme no cinema cult da cidade, conhecido pelo repertório muito diferente do que entrava em cartaz nos cinemas dos shoppings. Enxuguei as lágrimas e deixei a foto e a carta sobre a cama, prendi o cabelo e saí do quarto, não sem antes olhar mais uma vez para o sorriso de Audrick naquela manhã de sol. Sentadas no carro, enquanto esperávamos por Luana ainda dentro da clínica, eu tentei arriscar uma das desculpas para adiar rever nosso cuidador. – Mãe, sabe aquela palestra sobre Augusto dos Anjos que eu tava muito a fim de ir? Acho que vai cair no mesmo dia da chegada do Audrick. – Ah! Por favor, Júlia. – Ela estava mais ocupada revirando a bolsa do que prestando atenção em mim. – Você vive fazendo cursos e indo a exposições e sei lá mais o quê. Não sai mais daquele sebo velho, parece até que sua casa é lá... – Mas é uma palestra, mãe – a interrompi. – Ainda estou falando, mocinha. – Ela me olhou com os olhos cerrados. – Além do que, todos nós estaremos em casa para recebê-lo, quem a levaria e a buscaria? – Minha mãe desdenhava de minha vontade gesticulando como quem espanta um inseto no ar, mas nesse caso, era uma forma de se livrar do assunto. – Eu vou na palestra com a Gabriela – emendei minha única amiga na trama.

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– Depois conversamos, Júlia – ela disse como se já estivesse cansada da minha história. – Sua irmã está vindo. Minha mãe ligou o carro no momento em que Luana apareceu e por um instante meu pensamento mudou de direção, reparando como minha irmã estava bonita e saudável. Seus cabelos eram negros como os de meu pai e os olhos verdes herdara de minha mãe, a era pele bronzeada de quem passava horas ao ar livre. Para uma menina de oito anos era muito esperta, e mais simpática do que eu sequer havia pensado em ser quando criança. Luana era sem dúvida a mais amorosa da família. Entendi, então, que todos nós mudamos. Minha mãe mostrou-se ainda mais a mulher linda que era, se vestia bem, mas de um modo simples, mantendo os cabelos castanhos, levemente ondulados e bem cheios – que eu puxei dela. – O Leo e o papai vão nos encontrar, mãe? – perguntou Luana ao sentar no banco de trás do carro. – Não, querida. Apenas seu pai. O Leo vai sair com alguns amigos do serviço, mas estou achando que aquela mocinha de quem ele sempre fala estará lá também. Parece que querem fazer a mesma faculdade. Aí tem coisa... – Quem sabe agora ele desencalha – disse Luana rindo. – Ele não é encalhado, Lu – respondi. – Ele só não é galinha. Só porque é bonito ele deve sair pegando qualquer uma? – Olha quem fala – respondeu minha irmã me dando um tapa no cabelo –, a encalhada número dois. Aff, espero que isso não seja de família. – Ah, sua praga, você vai ver – eu disse ao me virar no banco, tentando alcança-la para devolver a pequena agressão. – Parem. Parem vocês duas – disse minha mãe segurando meu braço e me fazendo sentar direito. – Ou eu levo as duas pra casa e vou sozinha encontrar o pai de vocês. – Tem razão, mãe. Há esperança para todos nós – disse ela, debochada. – Principalmente pra mim, a mais linda – encerrou minha irmã fingindo se abanar. – E você é muito bocuda mesmo, menina... – disse minha mãe rindo. – Mas você tem razão, meus três filhos são lindos. – Hum... Quem dera – resmunguei enquanto olhava minha irmã pelo reflexo do retrovisor. Não que eu tivesse uma aparência ruim, e nem sofria de baixa autoestima, mas a beleza mesmo havia ficado com eles. Leonardo era muito branco, como minha mãe, tinha também os cabelos castanhos, caídos até a orelha. O rosto forte e quadrado de meu pai e uma barba rala. Os olhos eram levemente puxados, que Dias de Chuva |

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meu pai dizia ter vindo de algum antepassado índio e davam a impressão de estar sempre sorrindo, e o sorriso, para variar, era perfeito. Fomos comer em uma lanchonete qualquer, pois nenhuma das três era adepta a lugares caros. Tínhamos dinheiro, pois meu pai havia crescido muito na empresa e havíamos nos mudado para uma casa grande, mas nossos gastos foram sempre guiados para cursos, passeios e conforto dentro de casa. A vida que tínhamos no barraco há seis anos era quase esquecida. Durante o jantar eu voltei a falar da palestra, mas minha mãe ignorou meu pedido e eu resolvi esperar para ver se com meu pai teria mais chances. Meu pai nos encontrou na entrada do cinema. Ele vestia uma camisa de manga comprida, o casaco estava pendurado no braço, e a gravata, provavelmente no bolso da calça. Ele parecia estar na sua melhor fase. Uma barba dava um semblante sério, mas também diferenciado. De magro, seu físico passara a forte e saudável. Ele ainda conservava cabelos grossos, mas um pouco grisalhos. Ele beijou a mim e minha irmã na testa e a minha mãe, nos lábios num beijo doce. Pegamos nossas entradas e enquanto esperávamos o filme seguimos até a cafeteria do cinema. Meus pais pediram um café expresso, Luana e eu preferíamos cappuccino. Mal nos sentamos ao balcão e minha mãe contou a novidade. – Chegou outra carta de Audrick, querido – disse minha mãe. – Ele chega em duas semanas. Meu pai sentiu um peso nos ombros e suspirou. – Bom, já estava na hora... faz quanto tempo? Uns dois anos, talvez mais. – Dois anos sim, pai – respondi. E naquele momento, por algum motivo que eu não entendia, eu e meu pai trocamos o mesmo olhar cansado. Isto era um fato, apesar de meu pai nunca mais ter colocado empecilhos, sempre que recebíamos a notícia de que Audrick estava voltando, o seu semblante se carregava por um instante, provavelmente isso o fazia lembrar de como tudo começou e como ele já havia sido, mas logo a expressão ruim passava e ele parecia bem alegre com a notícia. Um som polifônico tirou nossa atenção, e meu pai saiu para atender ao celular. Ficamos um tempo ouvindo Luana nos contar sobre o seu dia e quando a entrada para a sala de cinema foi liberada, me levantei para chamar meu pai que já se despedia na ligação. – Entendi. Não esquecerei do contrato. Boa noite. – Ele desligou o celular e esboçou um sorriso.

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– Tudo bem? – perguntei. – Sim, querida. Só estou cansado. – Ele me deu um abraço forte. – Você sabe como eu amo vocês, não sabe? – Sei sim, pai. – E retribui o abraço com força, pois demonstrar meu carinho por ele era algo do qual eu nunca sentiria vergonha. Depois do filme a única reclamação foi de Luana, ela nos fez prometer que a levaríamos muito em breve para assistir algo mais divertido e sem legendas. No carro voltei a falar sobre não estar em casa no dia em que Audrick viesse, achando que meu pai me apoiaria, mas quando ele, que estava no banco do passageiro, ia dizer algo, minha mãe encerrou o assunto outra vez. – Chega, Júlia. Já basta. Nada de cursos, palestras ou qualquer outra coisa – e bufou trocando a marcha. – Vamos falar disso em casa. Do carro até meu quarto saí batendo o pé e enquanto ela me seguia eu já preparava para rebater o que quer que minha mãe falasse. Assim que entramos, ela fechou a porta e cruzou os braços. – Júlia, Audrick alguma vez fez algum mal a você? – minha mãe inquiriu. Não, ele não havia feito, e ela sabia disso. – Filha, ele nos tirou da lama! Olhe bem para nós. – Ela soltou os braços e segurou minhas mãos olhando no fundo dos meus olhos. O que eu diria para ela? Meu coração disparou e ela continuou. – Veja em quem nos tornamos, pense que ele salvou seu irmão e sua irmã. Nossa vida é outra por causa dele, você já esqueceu? E agora ele volta para nos ver e é assim que você retribui? Inventando cursos, envolvendo a Gabriela, tentando ignorá-lo? Bufei. – Mas nós estamos bem, não estamos? Então, ele já cumpriu o que disse que faria – falei isso soltando de suas mãos e dando as costas, ficando de frente para a janela. Lá fora a lua cheia brilhava. – Querida, por favor... você acha que é assim? Somos como uma instituição? – Ela não se aproximou de mim, mas eu podia vê-la pelo reflexo do vidro da janela mexendo as mãos. – Você acha que NÓS TODOS não passamos de um projeto? Eu mirava a lua, mas só conseguia pensar no aperto em meu peito. Quem era Audrick, ou o que era Audrick? Nem a pergunta era fácil de formalizar. Podíamos mesmo confiar nele? Nosso cuidador era um monstro ou eu que cismava apenas com um lado da história? – Vocês eram tão ligados, se davam tão bem. Não acredita mesmo que ele goste de nós? Dias de Chuva |

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Não estou louca, eu pensava. Sei muito bem o que vi naquela sala. Se fechasse os olhos poderia até mesmo sentir o cheiro do sangue, dos livros velhos, do seu vômito... Eu não queria vê-lo. Não aguentaria. Passei as mãos pelo cabelo de um jeito nervoso. Precisaria apelar para ela. – É muito engraçado, mãe, justo você dizer isso. Você que tanto o detestou, que tinha tanto receio de tê-lo em casa. – Eu errei com ele no começo, admito. – Ela foi para a minha frente tampando a visão da janela. – Nós não o conhecíamos e não sabíamos de suas intenções. – Mas talvez... a gente ainda não saiba, mãe – disse isso olhando para o chão. Não havia como encará-la. – O que você quer dizer, filha? – Minha mãe, assustada, colocou as mãos sobre meus ombros, mas as tirei e desviei o olhar. Meu peito ardia de angústia e eu só queria gritar por me sentir sufocada por tantos anos e poder falar de uma vez tudo o que eu pensava e tinha visto. – Quero dizer que talvez ele não seja uma – respirei fundo antes de continuar – uma boa... pessoa. – Júlia, como assim? – Ela parecia transtornada e voltando a segurar em meu ombro me fez virar pra ela. Eu permaneci de cabeça baixa. Não tinha coragem de olhá-la. O que eu iria dizer? Minha mãe também respirou fundo pegou-me pela mão e me fez sentar com ela na beirada da cama. – Filha, olhe pra mim, por favor. – Fiz o que ela me pediu, sustentando um gesto que parecia pesar toneladas. – Ele tentou algo com você, alguma vez? – Nem ela parecia acreditar no que me perguntava. – Ele tentou algo? – Ambas sabíamos o que ela queria dizer. Se ele havia tentado ou conseguido abusar sexualmente de mim? Era isso? Porém sua dúvida me corroia ainda mais. – Me diga, Júlia! – NÃO! – gritei levantando de um salto e explodindo a confusão que me causava. – É claro que não, mãe! – Voltei a olhar mais uma vez para a janela. Lá fora uma fina garoa caia. E tentando me confortar abracei-me. – Se ele tivesse feito algo assim você saberia no mesmo dia – falei baixo, mas soube que ela ouvira. – Ele... Ele apenas... – Senti uma lágrima furtiva escorrer. Pensar em Audrick doía como se meu coração fosse esmagado. A garganta fechava-se seca e na boca e na mente faltavam palavras. – Ah, mãe. Você não entenderia... Ela me abraçou pelas costas e ficamos admirando a garoa. – Tente explicar, Ju! – ela sussurrou.

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– Nós não podemos confiar nele. – Minha voz deve ter saído tão fria e vazia como eu me sentia naquele momento. – Júlia... – Ela me soltou e começou a falar andando pelo quarto tão perdida e confusa quanto eu. – Você está me deixando preocupada, se sabe de alguma coisa, se ele fez algo que nós não sabemos... – Apontou o dedo para mim em sentença – Você tem que me dizer. Virei para ela e gritei já em pranto. – Não dá pra explicar, mãe! Sentei outra vez na beirada da cama e deixei as lágrimas saírem, tendo o rosto escondido nas mãos e os cotovelos apoiados nos joelhos. Ela sentou ao meu lado na cama, e me abraçou. – Tente querida, por favor. – Ah... mãe – Eu me afastei dela e tentava entre soluços explicar o que eu sentia. – Ele é estranho... diferente... você... você já reparou como nada nele faz sentido? O cabelo, a cor dos olhos, aquelas tatuagens esquisitas... Eu fico nervosa perto dele, com medo... Eu... eu só sinto tudo isso dentro de mim. – Parei um instante e sentia o ar entrar em meu peito com esforço e tremulando. Mordi a boca refletindo um pouco no que diria. – É como se meu coração pudesse pular pra fora só de pensar que ele vai estar aqui e precisarei ficar ao lado dele. Isso me dá arrepios. Ela voltou a segurar minhas mãos: – Ju... – ela sorriu – você se apaixonou por ele? – Não! Não é isso... – Soltei minhas mãos das suas e as passei no cabelo, da raiz as pontas, repetindo o gesto nas mechas de maneira nervosa. – É claro que é isso – minha mãe ria e parecia menos preocupada –, uma mãe conhece sua filha. – Ela acariciou meu rosto com as costas das mãos. – Você tem medo, pois o conhece desde criança e agora que já é uma moça acabou confundindo as coisas, sentindo-se atraída por ele. Ele é bem mais velho que você e isso dá medo... Na verdade, todo amor dá medo, principalmente o primeiro. – É impossível, mãe... – respondi fazendo pouco caso. – Talvez seja impossível a relação de vocês devido à diferença de idade, mas o que você sente é normal e vai passar. – Ela enxugou minhas lágrimas com os polegares. – Agora você vai tomar um banho, relaxar e dormir. Ela me deu um beijo na testa e saiu me deixando mais confusa do que antes. Para tentar relaxar peguei uma toalha e fui para o banho. Enchi a banheira e coloquei o pequeno abajur de luz azul sobre o mármore do lavabo, apaguei a luz do Dias de Chuva |

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teto e entrei na água. O banheiro era dividido apenas com meu irmão, e por saber que ele demoraria a chegar, não me preocupei em trancar a porta. Passei um bom tempo pensando no que eu sentia por Audrick. Eram tantos sentimentos e sensações: medo, gratidão, raiva, saudades, tantos que quanto mais eu tentava entender, mais eu me machucava. Amor? Se minha mãe não tivesse dito essa palavra eu nunca haveria de pensar sobre. Mas, e sentir? Eu sentia amor? Havia o amado de certa maneira, quando ele era apenas nosso guardião, porém, me sentir atraída por ele parecia absurdo. Enfiei a cabeça na água soltando o ar, depois ergui apenas o rosto à superfície para respirar. Olhava a luz azul do abajur e o brilho que ela refletia nos móveis, no espelho sobre a pia e na água da banheira. O brilho místico era ao mesmo tempo peculiar e íntimo, como uma lembrança que se sente, mas sobre a qual não é possível raciocinar. Estar ali era o meu momento de esclarecimento. Sempre que me sentia mal, confusa ou muito triste, eu procurava o contato com a água, da forma que fosse, enquanto a luz azul me acalmava. Pensei em Audrick com um pouco mais de detalhes: a pele, o jeito de falar que às vezes deixava escapar um sotaque forte e áspero. Os olhos cinza como o céu em dia de chuva. Seu abraço e seu cheiro. E quando me lembrei de como ele era quente senti-me excitada. Assustada e envergonhada daquela sensação, afundei na água outra vez. Só queria me lembrar das flores azuis e vermelhas brilhantes, da noite de fogos, dos giros em seu colo, da música que ganhava o ar quando nossos dedos se tocaram e sua magia passou para mim. Eu estava enlouquecendo! Só conseguia pensar nele como um homem, na pele estranha dele, no rosto fino, no olhar profundo que me arrepiava. Nada daquilo deveria ser normal. Seriam sonhos tudo o que eu tinha visto na noite de ano novo quando eu era tão pequena? Mas eu olhei para trás. Eu vi a flor no vaso se desfazendo na varanda dela... Ela, Miriam, que preparou o terreno para ele. ///

– Ju! JU! Acorda! Cuspi muita água e respirei. Abri os olhos e vi o rosto desesperado do meu irmão a me chacoalhar. Eu estava encharcada em seus braços, no chão do banheiro. – Por Deus! – Ele chorava. – Achei que você estava se afogando. Desde que horas você está aí? Sabia que essa mania de apagar a luz no banho ia acabar te matando. Mãe! – ele gritou. – MÃE!

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– O que aconteceu? – Eu estava confusa, olhava em volta e a luz acessa quase cegava meus olhos. – Que horas são? Eu achei que você ia demorar – falei. – São três da manhã, que horas você veio pra cá? – Sua voz era agitada e desesperada. – Não lembro, era umas onze horas, eu acho... – Minha cabeça doía e tudo girava ao meu redor. – O que aconteceu? – Era Luana, que acordou com o grito de Leo e nos encontrou no chão do banheiro. – A Ju dormiu na banheira, vai lá em cima chamar a mãe, eles devem estar com a porra daquela porta trancada – esbravejou meu irmão. Luana saiu correndo sem perguntar mais nada. – Calma, Leo. Calma – falei, tentando me erguer, um pouco tonta ainda. – Eu tô bem. – Consegui me sentar e ele estendeu uma toalha pra mim. – Você tá bem?! Você tá louca, isso sim. Não sei como não morreu. – Ele era um misto de preocupação e raiva. – Para, eu tô legal. Só adormeci, não me afoguei não. Segurando a toalha à minha frente, tentei levantar, mas me senti tonta e Leo precisou me segurar outra vez. De pé, enrolei a toalha e percebi que ele olhava para a minha barriga. – Ou! Para! – falei brava reparando que ele me olhava. – Não preciso lembrar que você me viu pelada, caramba! Ele continuou me fuzilando com os olhos. – O que é isso na sua barriga? – ele disse apontando para mim. – Isso o quê? – Estava ainda meio zonza e não compreendi de imediato o que ele me perguntava. – O que é isso na sua barriga? – ele gritou. Sem entender ainda muito bem, dei as costas para ele e abri a toalha. Ali havia surgido um desenho que ia de minha pélvis até o umbigo. – Isso é uma tatuagem? – Sua voz soava com raiva e incredulidade. – Não... não sei. – Eu ficava cada vez mais nervosa e confusa. Minha respiração ofegava. – Não seja idiota! Você fez uma tatuagem, Júlia?! Meu coração quase saia pela boca. O que eu diria? O que era aquele desenho? – Filha! – Meus pais apareciam na porta, mas minha mãe que falava. – O que houve? – Ela me abraçou preocupada e Leo respondeu. Dias de Chuva |

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– Ela dormiu na banheira... Quase se afoga. – Sua voz tremia tamanha era a raiva, e pra minha surpresa, ele não disse nada sobre o desenho. – Agora, se me dão licença, boa noite. Coloquem um pouco de juízo na cabeça dessa menina. Leo saiu do banheiro quase esbarrando em meu pai e na Luana. – Você está bem, Ju? – era minha irmã que falava agora, com os olhinhos assustados. – Eu tô, Lu – disse, sem ter muita certeza. – Pedro, leve a Luana de volta pra cama. Eu cuido da Júlia – falou minha mãe, alcançando outra toalha para o meu cabelo. – Tem certeza, Rafa? – Meu pai olhava para mim e para minha mãe com a respiração tensa. – Tenho sim, amor – disse minha mãe enrolando meu cabelo na toalha. – Eu estou bem, pai – falei. Ele fez que sim com a cabeça e saiu com Luana. Fui para meu quarto com minha mãe, e tive o cuidado de despir-me da toalha e vestir a camisola de costas para ela. Deitei sabendo que ela não sairia dali até que eu adormecesse. – O que aconteceu, filha? – ela perguntou acariciando meu cabelo. – Isso tem alguma ligação com o que conversamos? – Talvez, mãe – fui metade sincera. – Eu estava tão cansada e fiquei pensando em tudo que você me disse. Acabei adormecendo. – Entendi... – Ela olhou para mim com um amor tão grande, que me senti reconfortada. Minha mãe era, sem dúvida, a melhor coisa que eu tinha na vida. – Querida, enquanto se sentir assim, nada de longos banhos de banheira, ok? E se continuar se sentindo cansada vamos procurar um médico. Espero que você só tenha cochilado... e não desmaiado. – Fica tranquila, mãe. Eu só adormeci mesmo. – Eu a amo tanto, filha – ela disse beijando minha testa. – Eu também a amo demais. Foi com o conforto vindo dela, que adormeci. Acordei leve, vendo a luz do sol de um bonito sábado entrando pelas frestas da janela, tranquila, não havia sonhado com nada, como se tivesse ganhando uma noite de descanso para a alma. Espreguicei demoradamente e ao virar de lado para levantar senti pontadas na barriga. No mesmo instante o ocorrido da noite passada voltou à memória. Pulei da cama e tirei a blusa do pijama de frente para

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o espelho, era de fato uma tatuagem, uma que nunca tinha feito, ou me lembrava de ter feito, uma flor de pétalas pontudas como as do jardim de Miriam. Engoli em seco e o nome dela ecoou na minha cabeça. Sentei na cama. A disposição com que acordara parecia fugir. Ergui a cabeça e me olhei. Precisava de respostas antes de ver Audrick, e agora sabia onde procurar. Um dia de sol quente despontava do lado de fora, abri a janela e mirei o céu azul. Meu coração se encheu de força, buscando vencer o medo. Saí do quarto e desci direto para a cozinha, seguindo o cheiro do café da manhã. – Bom dia. Está melhor, filha? – perguntou minha mãe ao me ver. Sentei à mesa enquanto ela se servia do café fresco e cheiroso. Eu fiz o mesmo. – Estou bem sim – disse e dei um gole no café antes de continuar. – Devia estar muito cansada ontem, desculpe por perturbar vocês. – Meus os olhos ainda na xícara, com um punhado de vergonha pelo que fiz, mesmo que inconsciente. – Tudo bem, Ju. Mas se anda caindo no sono assim tão fácil, deve evitar ficar tanto tempo na banheira – ela repetia a sentença dita na madrugada. – Não sei como você aguenta a água esfriar sem ficar doente. Só espero que não esteja anêmica e tenha desmaiado. – Eu também não sei como aguento ficar não... – dei uma risada leve, pois eu também já havia estranhado meu apreço por água – devo ter sido peixe na vida passada – pisquei para ela. Ela me olhou pelo canto dos olhos, como se não soubesse se deveria rir ou me repreender. Bebi mais um gole do café, olhando em volta da cozinha, buscando algum som no restante da casa que denunciasse meus irmãos ou meu pai. – Cadê todo mundo? – inquiri. – Seu pai tirou o dia pra sair com a Luana. E seu irmão ainda está dormindo. Fiquei contente com a resposta. Estávamos praticamente sozinhas, já que o sono de meu irmão era semelhante ao hibernar de um urso. – Mãe... – achei melhor agir do modo mais natural possível – queria pedir uma coisa. Eu tenho sonhado com a Miriam – menti. – Podíamos visitá-la? Ela pareceu surpresa com minha fala. Então emendei, impedindo-a de pensar muito no assunto e me perguntar como eram os sonhos. – Sabe o que é... sei que falou com ela por telefone depois da nossa mudança, e tudo mais, mas eu nunca mais tive contato com ela. E lembrar do Audrick Dias de Chuva |

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voltando pra cá, me fez pensar mais nela também... Sinto como se estivéssemos em débito. – Como assim, filha? – ela disse, se acostumando com a ideia, passando manteiga em dois pães, um pra mim e um para ela, costume da minha infância que ela não perdera. – Você falou das coisas boas que Audrick fez e isso tudo me fez pensar nela. Eu acho que ela foi tão importante quanto ele. Sei lá... aí deu saudade. – Você tem razão – respondeu minha mãe ao me entregar o pão. Acho que devo ter sorrido com esse gesto. – Acabamos nos envolvendo com nossas vidas e ficamos distantes. Ok, então. Quando quer visita... Não esperei que terminasse. – Hoje! – falei com impulso e tentei concertar. – Se possível, ainda hoje. – Mas eu combinei de encontrar sua irmã e seu pai mais tarde, achei que viria comigo. – A gente passa lá na Miriam rapidinho, mãe. Ou a senhora me deixa lá um pouco, e depois me pega. Seria tão importante pra mim. – Nossa, Ju. Não sei, teríamos de ligar pra ela – falou um tanto ressabiada. – Então ligue, mãe. Por favor – implorei. – Se é tão importante pra você... – percebi que ela concordava um pouco a contragosto, pois já começava a balançar a mão no ar. Eu impedi que o “tic” continuasse, ao pegar sua mão em pleno balanço e segurar firme, cruzando nosso olhar. – É muito importante, mãe! ///

Por sorte, ou destino, Miriam estava em casa e ficou muito feliz com a ideia de nos ver. No caminho minha mãe me avisou de que, fosse como fosse, eu deveria estar ciente de que ela nunca ficou realmente boa depois de ter adoecido, pouco antes de nos mudarmos pela primeira vez e que sua voz ao telefone era de uma mulher fraca e que eu não deveria esperar a mesma mulher forte que ela já fora há poucos anos. Estacionamos o carro em frente à casa ainda com as mesmas cores, porém, de tinta envelhecida e descascada. As plantas haviam ganhado toda a varanda, mas já não eram tão verdes e vivas. Tocamos a campainha e não tardou que ela aparecesse. Estava irreconhecível.

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O corpo de seios fartos, pernas roliças e braços gordinhos e fortes deram lugar a uma mulher magra, de passos vagarosos apoiados em uma bengala. Ela tinha ainda o sorriso perfeito e reluzente, mas os olhos estavam cansados. Havia passado meia década e ela parecia ter envelhecido mais de dez anos. A mulher de seus quarenta e poucos, aparentava ter mais de cinquenta. Olhei melhor, não era a bengala e nem a magreza que a deixara com a aparência tão frágil, e sim as rugas que ganharam o entorno de seus olhos. Ela abriu o portão com cuidado e sem me conter fui direto ao seu encontro abraçando-a, não só pelo que Miriam representava para nós e pela saudade que descobri sentir dela, mas porque achei que ela precisava do carinho mais do que eu. Ficamos um tempo ainda assim, antes dela cumprimentar minha mãe e nos convidar a entrar. Assim que colocamos os pés dentro de sua casa as lembranças me invadiram. De acordo com elas sua casa era enorme, o que acredito ser normal do ponto de vista de uma criança que tinha como referência apenas um barraco como moradia. Mas naquele momento a casa dela parecia um sobrado pequeno, comparado à casa enorme em que passamos a viver. No entanto, era uma casa limpa, aconchegante e com ar familiar exatamente como eu imaginava. Fomos para a cozinha onde havia chá na mesa e o cheiro de algo assando no forno. – Não devia ter se importado, Miriam – disse minha mãe sobre a recepção. – Mas o que é isso? – Apesar da voz fraca, a jovialidade e o sorriso ainda a pertenciam. – Faz tempo demais que não vejo vocês. Precisava fazer disso um momento especial – ela falou me admirando. – E você, Júlia, que moça linda se tornou. Nós nem mesmo nos falamos. – Saiba que veio dela a ideia de vê-la, e ainda hoje – falou minha mãe achando graça da situação e também para “limpar minha barra” com a sua amiga. Mas diferente do que seria esperado, a anfitriã não disse nada, apenas moveu os olhos de forma nervosa para os lados, como se procurasse algo, e depois piscou. – Algum problema? – perguntei. – Digo, por estarmos aqui hoje. – Não, não, claro que não. Ouvi um barulho e achei que era meu filho chegando. – Seu filho? – eu e minha mãe perguntamos ao mesmo tempo. – Você tem filhos, Miriam? Nunca me disse – minha mãe ficou chocada. – Ah, Rafaela! É uma história tão longa – disse ao sentar, pedindo para que fizéssemos o mesmo. – Ele tem 16 anos agora. Morava com minha mãe até um ano atrás. Nasceu lá em Salvador mesmo... Você sabe que fui casada, não é? Mas quando não deu certo e eu resolvi voltar pra São Paulo, ele preferiu ficar com a avó. Dias de Chuva |

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– Eu nem acredito! – Minha mãe estava ficando brava. – Por que nunca me contou? Éramos amigas, não? – Deixamos de ser, voltamos a ser. Isso importa agora? – a anfitriã falava olhando firme para minha mãe. Vocês não vieram aqui para conhecer o Dimitri. – Miriam sorriu e piscou antes de nos servir o chá. – Dimitri? Que nome diferente... – falei, tentando amenizar a situação e por achar mesmo o nome um tanto fora do comum. – O diferente sempre me chamou atenção – disse Miriam achando graça, provavelmente, da cara que fiz. Minha mãe, no entanto, não ajudou. Havia ficado indignada com a história. Dei um gole no chá sem tirar os olhos dela e resolvi intervir. Uma briga entre as duas não ajudaria em meu intento. – Nossa, que chá maravilhoso! – exclamei e elas me olharam surpresas. Entenderam minha intenção em mudar de assunto, mas pelas faces diferentes, só a dona da casa gostou da minha atitude. – Eu nunca tomei nada com esse sabor. O que é? – Receita de família. É feito com morango, canela, e outras coisas que não posso revelar – disse, fingindo mistério. – Uau! É incrível – continuei, admirada. – E no forno, o que tem? – Júlia! Que falta de educação! – disse minha mãe, transferindo sua pequena ira para mim. – Ah, Rafaela. Ela está certa. O cheiro é bom e está quase pronto. – Tem cheiro doce – falei, mexendo meu chá. – É uma torta de limão e frutas vermelhas. – Puxa, não sabia que você cozinhava bem assim – disse. Depois dessa fala reparei com atenção a cozinha. Ela era dividida em dois ambientes por um balcão bem grande. Do nosso lado, o que seria a sala de jantar, tinha uma grande mesa de madeira com uma bonita toalha de renda, debaixo da janela um armário que deveria servir de dispensa sobre o qual potes de vidros, fruteiras e um jogo de chá muito antigo, da cor cobre, parecia ficar apenas de enfeite junto a um vaso provavelmente de barro, mas de um acabamento detalhado e geométrico, que tinha em si flores amarelas e brancas de diferentes tipos. Do outro lado do balcão havia bem mais espaço, com um aglomerado de todo tipo de utensílio para cozinhar e panelas de cerâmica, barro ou de ferro junto a uma infinidade de temperos em potinhos ou saquinhos espalhados por todo lugar. Os armários eram escuros e de madeira e não havia um único lugar de sua cozinha

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em que não houvesse um ingrediente pendurado, uma prateleira com algum pote, ou um pano bordado. – Eu também não sabia desse seu dom culinário... parece que você tem muitos segredos... – falava minha mãe insistindo em uma possível discussão. – Quem não os tem? – Miriam retrucou ainda com sorriso. – Ah, mas se tudo que você faz tem esse cheiro bom, até eu guardaria as receitas a sete chaves – intervi. – Então aproveite e vá até o forno retirar a torta – Miriam falou, apontando para o fogão. – Eu gosto dela quentinha mesmo. Fiz como ela pediu e aproveitei para olhar a cozinha mais de perto, onde havia um verdadeiro caos de utensílios e nomes de temperos que nunca nem tinha ouvido falar. Ao abrir a porta do fogão o cheiro delicioso tomou toda a cozinha. Levei a torta até a mesa e servi nós três. Posso dizer que a guloseima era tão gostosa que adoçou até a postura de minha mãe, fazendo a conversa seguir amena sobre lembranças e mudanças dos últimos anos. Passado pouco tempo ouvimos o barulho do portão se abrindo e depois da porta da sala. Do outro cômodo, uma voz jovem e um pouco grave nos chegava. – Mãe, voltei. – Venha até aqui, Dimitri, as visitas que falei chegaram. O filho de Miriam aparecia e nos cumprimentava com um sorriso. – Olá. – Filho, essa é minha amiga Rafaela e a Júlia, sua filha. – É um prazer conhecê-lo – disse minha mãe e eu falei um “oi” tímido mesmo. Em verdade, fiquei paralisada. Dimitri era o rapaz mais lindo que eu já havia visto minha vida toda! – e eu tenho noção de como dizer isso é clichê. Nem magro nem gordo, tinha o físico de uma pessoa que costuma fazer exercícios, mas não de um viciado em musculação, e tive a certeza quando reparei que na sua mochila havia a estampa de uma academia de artes marciais. Ele usava uma bermuda vermelha, tênis All Star e uma regata branca que contrastava com sua pele negra. O cabelo preto era trançado e ia para baixo do ombro. Tinha os lábios nem carnudos e nem finos. Os olhos pareciam grandes e brilhantes avelãs. E eu não consegui tirar os olhos dele por mais do que alguns segundos. – Você quer comer com a gente, filho? – A voz de Miriam parecia me tirar de um transe. Dias de Chuva |

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– Poxa, mãe, acho que não. Preciso de um banho e quero descansar um pouco. – Tudo bem – Miriam respondeu. – Vá repor suas energias. Dimitri pediu licença e se foi. Passada a sensação estranha, voltei a pensar sobre o motivo de eu estar ali e não conseguia descobrir como conseguiria um pouco de privacidade, e coragem, para perguntar sobre Audrick. Para minha salvação o celular de minha mãe tocou, ela atendeu e logo reconheci que era meu pai. Eles trocaram algumas palavras e desligou. – É nossa hora, querida. Vamos? – ela falou enquanto guardava o aparelho na bolsa. – Ainda é cedo – eu tentava esconder meu desespero. Não poderia ir embora sem, ao menos, tocar no assunto com Miriam. – Eu pensei em ficar e você viria me pegar depois. Vocês vão ver filme de criança, que eu sei... – quase implorei na minha fala. – Mas ficará tarde pra eu voltar, Ju. E a Miriam precisa descansar também. – O que é isso, Rafaela? – interveio a dona da casa. – Faz anos que não nos vemos. Mas se precisa mesmo ir, deixe a Júlia ficar e eu peço para o Dimitri levá-la até o metrô. Depois de muitos “por favor, mãe!” bem dengosos e da insistência de Miriam, nós a convencemos a me deixar ficar “até anoitecer e não mais que isso”. Miriam, no entanto, estava cansada e fomos para o seu quarto, no andar de cima, para que ela pudesse descansar as pernas enquanto conversávamos. Logo que ela se recostou na cama, sentada com um travesseiro nas costas, ocupei a poltrona de frente para ela. Respirei fundo e abri o jogo. – Miriam – disse firme –, eu vim por um motivo: Audrick. Ela suspirou. – Sabia que esse dia chegaria – disse ela me surpreendendo. – Como assim, sabia? – perguntei, afoita. – Você não é boba, está crescendo e não iria ignorar certas... coisas durante tanto tempo – ela pareceu usar esse termo por não achar outro que servisse melhor. – Então, eu não sou louca? – Será que ela sabia de tantas características estranhas quanto eu? – Talvez você seja a única sã, Júlia. – Ela me encarou. – Eu só não sei o motivo, mas é melhor você começar a falar primeiro.

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Cocei a cabeça com a mão direita e depois esfreguei ambas. Eu poderia dizer tudo mesmo? – Está certo... – resolvi seguir em frente, era tudo ou nada. – Eu vi muitas coisas nele, dona Miriam. – Eu começava a tremer. – Coisas que quando eu era criança, achava encantador, mas depois... eu diria assustador. Tentei me afastar desses pensamentos desde então, e acho que estava indo bem. Só que, depois de tanto tempo, ele vai voltar... e eu simplesmente não me sinto segura – sem querer, acabei enfatizando essa última palavra. – Quando ele volta? – ela perguntou séria e atenta. – Em duas semanas mais ou menos. – Eu achei que Audrick não voltaria... – Miriam disse isso mais para si do que para mim, mirando uma lembrança. – Ele sempre se fez presente – continuei. – Às vezes mais, às vezes menos. – O importante é que não temos muito tempo pra você entender. Não sei como dizer tudo. – Ela estava pensativa e não me olhava diretamente. – Mas eu preciso saber, dona Miriam. Estou desesperada. – Não ainda... – De repente ela voltou a me olhar, como se algo viesse num lapso a fazer sentido. – Você veio aqui por algum motivo especial, não foi? – Foi... – suspirei. – Foi sim. Mas como você sabe? – estranhei. – Algo que aconteceu há pouco, e que a fez lembrar de mim? – Seus olhos me penetravam. – Sim – envergonhei-me –, mas como você sabe? – São muitas coisas para explicar, mas eu sabia que só se algo muito forte acontecesse você me procuraria. Sei que toda a desconfiança natural da sua personalidade e minha relação com ele no passado, não a deixam confiar em mim. E ainda assim, você veio, talvez por que o medo dele e o desespero tenham sido maiores que suas inseguranças comigo. Também acho que por isso, mesmo com um pouco de saudade de mim, você preferiu me colocar no fundo de suas memórias. Mas o que você precisa saber é que desde aquela noite, naquela virada de ano, eu não o vi mais. Desde que adoeci... – Eu não entendo. Mas e a ONG? Ele não tem ajudado? – Sim e não. A empresa dele me manda recursos, mas é só. – Ela ficou muda alguns segundos, parecendo refletir sobre o que faria. – Você não precisa entender agora. Tenha calma. Eu é que preciso saber o que aconteceu para você me procurar. – Ela tinha uma serenidade e segurança na voz que me condicionavam a dizer o que ela queria. – Fale, Júlia – ela insistiu. Dias de Chuva |

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Eu levantei a camiseta de manga cortada com estampa do The Smiths que cobria a minha barriga, e mostrei a tatuagem. – Essa flor, eu só vi outras como essa no seu jardim... – Meu jardim? – Ela arregalou os olhos. – Sim, nós, ele... bom, fizemos várias dessas com um tipo de... magia... na varanda, na noite de ano novo. Não eram flores reais, mas eu as vi – eu me enrolava cada vez mais enquanto falava. – Tudo bem, tudo bem... – ela tentava me acalmar. Eu sentei e voltei a cobrir a barriga com a blusa. – Você sonhou com ele, não foi? Sonhou de outro modo? Fiquei quieta. – Você não é mais tão criança. – Ela estava séria e não desviava os olhos de mim. – Você o desejou? – Eu acho que sim… Mas não tenho certeza. Minha mãe ficou me dizendo coisas... que eu me sentia atraída por ele e que isso, mesmo que não desse certo, seria normal. – Você já gostou de algum rapaz? – Ah, um pouco – eu me revirava na poltrona, incomodada –, mas só de achar bonito. Nada de mais... eu nunca liguei muito pra isso sabe... deve ser porque não me acho uma garota atraente. – Mas você é sim. Vai descobrir isso com o tempo. – Ela deu uma risada. – Obrigada. Não que eu me ache feia, só não ligo muito para essas coisas – falei reparando no meu tênis gasto e na calça jeans velha. – Mas não fico me fazendo de vítima. Sei lá. – Dei de ombros. – Só nunca pensei nisso. – Me diga, Júlia. Ele já se insinuou para você? – Não, isso não. Nunca. – Que bom, então deve ser mais fácil. Espero... – Ela voltou a ficar pensativa. – Tire essas caraminholas da sua cabeça. Quando ele aparecer finja que não aconteceu nada. – Mas como assim? – Quase pulei da poltrona. – Você não vai me contar nada? Eu... eu preciso. Miriam respirou fundo. – Tudo bem, querida. Encoste a porta, eu vou contar apenas uma história. Mas vai demorar para que você compreenda tudo. Muitas vezes precisamos aprender algo que nem fazemos ideia de que exista, antes de aprender o que realmente se deseja. – Ela me olhou com desprezo. – Terá de ser esperta e melhor do que foi até agora.

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Parte 2 AMORES NA CHUVA


Capít ulo 7

Promessas

Antes de entender Audrick, antes de entender quem eu sou, ou antes mesmo de entender quem você é, Júlia, é preciso que saiba que neste mundo, cheio de caos e conhecimentos rasos de coração, cheio de tecnologias que geram mais problemas do que soluções, onde a inspiração sofre para nascer, nesse mundo de fumaça e aparências, existem criaturas muito mais espertas, muito mais antigas e que fizeram você e tantos outros acreditar que elas só existiram na nossa imaginação, mas claro, por um motivo. No passado, mais longe do que eu, você e qualquer outro se lembre, todas essas criaturas coexistiam. Porém, com o egoísmo humano nós destruímos, matamos, violentamos e exterminamos muitos, até que viraram história. Mas desse tempo remoto sobraram ensinamentos em todos os cantos da terra, adormecidos, aguardando alguém que pudesse ouvi-los. E muitos ouviram partes dessa canção espalhada no ar, nas árvores, nas águas. Porém ninguém nunca pôde ouvir todas as partes dessa canção que era cantada em todas as línguas do mundo, tanto nas trevas dos que viviam o mal, quanto na luz dos que viviam para o bem e com os olhos atentos para os sinais da natureza. Mas houve uma mulher que entendeu. Ela sabia o que diziam as entidades das águas, ela sabia o que diziam as salamandras, e ela ouvia e via os mortos que ficavam ainda presos neste plano, mesmo depois de desencarnar. Ela é considerada a bruxa entre as bruxas. A primeira bruxa. E de tanto usar seus poderes em prol dos outros ela foi adornada com riquezas, joias, comidas e tudo que ela pudesse imaginar, em cada canto do mundo por onde fosse. Se só existia a pobreza, eles pagavam com amor. Se só havia o que plantar, ela era agraciada na colheita. E assim, com tanto poder, a bruxa virou condessa. Com o acúmulo de tantos bens, mesmo sem intenção, muitos se aproximaram dela para tirar proveito. Homens queriam namorá-la e desfrutar de seus tesouros, mas ela era livre,

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amava sem discriminação e também sabia quando as paixões eram movidas por interesse, recusando assim todos os pretendentes. Até que um dia um feiticeiro muito poderoso teve seu orgulho ferido pela recusa dela ao seu galanteio, passando a seguir seus passos na madrugada. Este feiticeiro, então, descobriu porque a condessa não desposara e nem se deitava com nenhum homem: ela amava uma mulher. Naquela noite, ele enfurecido, espiou o amor tão terno das duas fazendo com que o orgulho ferido alimentasse sua ira. Pela manhã, quando ela saia para buscar ervas e fazer suas magias, a sua amante ficara em casa curando a carne. O feiticeiro entrou sorrateiro na morada e, tomado de ódio, rasgou o ventre e cortou a língua da jovem, deixando-a agonizar por horas na solidão. Veja, nesse tempo não existiam leis e não era errado amar pessoas do mesmo sexo, mas a condessa gostava de preservar sua intimidade para que sua amada não fosse procurada para favores, quando ela mesma não pudesse atender. Quando a condessa encontrou sua amante morta sobre o sangue ainda quente, desesperou-se e fez tudo que não devia. Pediu a todos os espíritos do vale em que morava para ajudarem a encontrar o assassino e destruí-lo. Eis que, entre esses espíritos, havia um muito cruel que pela humanidade só tinha raiva e ódio, e guiou-a nos passos da necromancia. Ela teve, então, a vingança desejada. Esquartejou o feiticeiro e empalou sua cabeça no meio do vale. Mas assim tudo mudou. Seus seguidores acharam sua atitude tão pérfida quanto a ação do feiticeiro. Não entenderam que aquela mulher, antes tão bondosa, fora tomada, como qualquer outro humano, por sentimentos vis e além de ignorá-la e não recorrer mais a ela para suas necessidades, eles espalharam ao vento a o poder da ira que a já não boa bruxa era capaz de ter. A condessa definhou na solidão e durante séculos se escondeu, peregrinando pelas partes do mundo onde ninguém a conhecia. E sim, eu disse séculos, pois quando ela juntou o conhecimento proibido dos necromantes a seus poderes, se amaldiçoou com a vida eterna. Foi em um tempo de escuridão e trevas que a vida da condessa voltou a mudar. Todos morriam facilmente e ainda muito jovens. Mulheres no parto, homens em guerra, pilhagens. Enforcava-se o outro por qualquer motivo e a sujeira trazia todo tipo de doenças. E ali, naquela época de dor, a condessa viu a maior quantidade de espíritos presos a seus familiares, às suas casas, ou aos seus próprios corpos podres.

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Ela percebeu que poderia se redimir se interviesse, e mais que isso, precisava fazer algo para sentir-se em paz. Então, nas horas mais escuras das madrugadas, se esgueirava pelas ruelas das cidades, e ajudava as almas a seguirem seu caminho. Os camponeses falavam dela às escondidas. Os fugitivos nas matas começavam a chamá-la e contar histórias sobre a mulher, filha da escuridão, que ajudava as almas mortas a encontrar seu caminho e a paz. Falavam da mulher cuja pele tinha sido banhada pela negra noite, e os olhos que se tornavam brancas estrelas ao contatar aquelas almas. Ela era a Condessa das Almas. Mas os homens não estavam mais preparados para a magia. Eles temiam tudo que não entendiam. Preferiam a ciência dos alquimistas, que com números e registros frios, convenciam no seu discurso enfadonho e difícil, as possibilidades de criação. Porém, os alquimistas, médicos e homens da ciência acreditavam mais em si do que nas energias do universo (que mal imaginavam existir). Ao mesmo tempo a religião massacrava seus estudos, como se gigantes esmagassem gigantes. Muito, é verdade, foi feito por esses homens, mas sempre depois de testes, erros e sofrimentos. Foi à luz de uma lua cheia que a Condessa das Almas escreveu num pergaminho o aviso de que eles poderiam aprender muito mais se escutassem a natureza, e seus feitos iriam progredir. O pergaminho foi deixado à porta do aposento de um alquimista, dentro de um castelo frio e úmido onde o sol não ousava entrar. A notícia correu para os homens de poder, e depois correu até a Igreja. Todos acharam o aviso uma heresia, e sem hesitar espalharam aos ventos que pegariam a bruxa que invadiu o castelo e afrontou a sua fé, e a queimariam. A condessa soube só então o que muitos camponeses e andarilhos já sabiam: Os que têm poder não gostam de ser questionados, não gostam de ser ensinados e nem de ouvir conselhos. Assim ela fugiu. Voltou a rodar o mundo, mas sempre nas sombras. No entanto, ela não deixou de cultivar sua magia e passou a registrá-las em escrita. Sabia que os homens e mulheres se afastariam cada vez mais da canção do universo que regia tudo. Eles esqueceriam todas as línguas ancestrais: das fadas, das salamandras, das sereias e de todas as criaturas da floresta. E como sua missão, ela escolhia alguns homens e mulheres, ensinando assim seus primeiros discípulos. Visando sua proteção e dos seus alunos eles nunca se conheciam. Os ensinamentos eram sempre individuais e secretos e ela os fazia prometer que nunca revelariam a magia a ninguém, pois qualquer um que se aproximasse poderia ser apenas um enviado da “fé” em busca de bruxas e bruxos, para queimar.

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Quando deixava algum povoado, um discípulo poderia até desconfiar que um outro fora também seu aluno, e aquele que era o primeiro a perguntar, sempre ouvia um “não” enfático como resposta, tanto por respeito à sua promessa como por medo de ser descoberto, e todos permaneciam em segredo. Assim os feitiços e encantamentos nunca deixaram de existir, sobrevivendo à margem das religiões, das civilizações e do progresso. Sabe-se apenas que a Condessa das Almas passou viajar por mar, escondida ou como convidada, e continuou com seus ensinamentos. Do mesmo modo, ela também passou a deixar seus registros espalhados pelo mundo. Ela sabia que muitos leriam e nada compreenderiam, abandonado nos cantos as escritas que, em certo momento, seriam encontradas, e até que alguém com a capacidade de ouvir a natureza, descobriria seus ensinamentos e entenderia tudo. ///

– Não sei o que dizer. – Aquilo para mim era pura fantasia. Não me trazia resposta alguma. Eu estava jogada na poltrona, compenetrada na história, é verdade, mas quando ela terminou senti-me morrer na praia. Suspirei. – Eu esperava que você me desse respostas – falei, enfim. – Vou fazer melhor, vou dar uma ajuda. Desça até a cozinha, abra a porta do balcão à esquerda, e procure um frasco escrito Oblitus, ele tem folhas verdes dentro, e outro escrito Memento, este tem uma tonalidade marrom. E me traga aqui. Só quando saí do quarto, percebi que havia escurecido, a casa toda repousava na penumbra quieta da noite. Entre procurar os interruptores e ir ao meu intento, optei por passar no corredor escuro seguindo a luz pálida que vinha dos postes e da lua. Desci as escadas, atravessei a sala e acendi a luz apenas na cozinha. Procurei os recipientes e percebi que eles eram infindos, e com todo tipo de nome. Quando enfim achei, cada um tinha a largura de um copo, porém, baixos como uma xícara. Com um em cada mão subi as escadas e ao fim dos degraus, dois passos depois, esbarrei em alguém que me segurou pelo ombro rapidamente. – Oi – ele falou no escuro. – Oi. – A luz se acendeu. Dimitri sorria. – Ah, então é aí que fica o interruptor? – falei meio sem graça, olhando para o braço dele esticado até a parede. – Sua mãe está me esperando. – Ia continuar seguindo para o quarto de Miriam, quando ele me interrompeu. – Achei que tinha ido embora. – Pois então... eu fiquei... – Ia dar um passo quando me lembrei do que Miriam havia dito para minha mãe. Mordi a boca. Nem o conhecia e já pediria um Dias de Chuva |

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favor – Ah! É que sua mãe queria saber se você pode ir comigo até o metrô, como já ficou tarde pra eu ir sozinha... – Tudo bem, quando quiser ir, avise. – Ele passou por mim e foi na direção de onde eu vinha. – Estarei lá na sala. – Valeu! – Me despedi com um aceno de cabeça tímido e voltei ao quarto de Miriam. – Meu filho a viu? – ela perguntou ríspida. – Sim – respondi sem entender qual a gravidade do ocorrido. – O Dimitri não pode saber de nada. Absolutamente nada do que conversamos, ou nos acharia loucas – ela falou enfática. Engoli o que ela falou. Se para mim, que convivia com as estranhezas de Audrick desde pequena, já era estranho lembrar de todos os acontecimentos, para qualquer pessoa que ouvisse nossa conversa, soaria como loucura. – Seus potes. – Eu os entreguei para ela. – Preste atenção – ela disse ao segurá-los. – Você sabe que Audrick pode ler seus pensamentos, não sabe? – Então é verdade mesmo? Ele pode? – Estava surpresa e aliviada em ouvir aquilo. – Sim, ele pode. E nós precisamos dar um jeito dele não saber que você me procurou. Portanto, como eu não posso evitar que ele leia seus pensamentos e de sua família, vou fazer com que vocês esqueçam tudo que viveram em um período de 23 horas. – Esquecer? – disse de sobressalto. – Sim, esquecer. Mas apenas por uns dias, até que ele vá embora e eu tenha tempo para explicar tudo. – E eu sairei assim, sem nenhuma resposta? – questionei indignada. – E essa tatuagem? – Tudo bem, Júlia. O que eu posso falar agora é que esse desenho não é uma tatuagem. Seu pensamento nele, o desejo por ele que está diretamente ligado ao ventre, e a lembrança das flores que você me contou, criaram essa flor. Um dia... ela vai sumir... Não se preocupe... – Ela parecia muito cansada agora, e sua voz soava fraca. – Quanto a Audrick, ele não vai te fazer mal, acho que do modo dele ele a quer bem. Já você, não está louca, Júlia. Tudo que você viu... tudo, nem precisa me dizer o que foi exatamente, é real. Audrick pode parecer e fazer coisas nada humanas. Você entende?

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Senti minhas pernas bambas. Achei que desmaiaria. Mas a voz de Miriam, muito séria, me despertava. – Não duvide de nada disso. – Fiz que sim com a cabeça e Miriam voltava sua atenção aos potes, abrindo-os continuou. – Você vai levar cinco dessas folhas e dará um jeito de que cada um dá sua família coma uma. Pode diluir em alguma bebida se quiser. Precisa confiar em mim, entendeu? Mas antes, vai guardar essa outra folha marrom, uma apenas, num lugar escondido. Mas eu preciso saber onde será. – Eu... não sei, preciso ver. – A excitação me deixava confusa, como se ela me desse instruções muito mais difíceis do que de fato eram. – Você precisa me dizer agora em que lugar guardará. Ou não dará nada certo. – Tudo bem... – pensei por um instante – Tenho uma caixa, ela fica dentro do guarda-roupas. Ninguém mexe lá. – Nem você a abre com frequência? – Não. Lá ficam só umas tranqueiras e alguns documentos antigos, minha mãe faz cada um guardar copias dos seus em casa. – Perfeito – ela concluiu. – Depois que ele for embora, você vai abrir a caixa e comer essa folha marrom. – E o que ela faz? – As verdes irão fazer com que se esqueçam do dia de hoje e assim Audrick não saberá que esteve aqui. E a marrom fará você, só você, se lembrar. – Mas se eu me esquecer de hoje, como me lembrarei de procurar na caixa? – perguntei confusa. Aquilo tudo que ela me pedia era absurdo demais, mas com o coração acelerado e a adrenalina eu não pensava direito. Só de Miriam ter me dito que sim, era real, me trazia o alívio momentâneo necessário. – Deixe isso comigo, tudo bem? Certifique-se de que todos na sua casa comam a folha antes de você. E fique tranquila. – Está certo – falei tendo certeza que “tranquilidade” seria a última coisa que eu sentiria. – Agora estou muito cansada. – Sua voz começava a falhar. – Você precisa ir. E nos falamos depois. – Ela me encarou. – É uma promessa. Atordoada, mas finalmente com um pouco de esperança, me despedi de Miriam com um abraço e encostei a porta do seu quarto assim que saí, como ela me pediu. Da sala vinha o som da televisão ligada. Só então me dei conta de como minhas pernas estavam bambas e o coração disparado. Encostei na parede para Dias de Chuva |

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evitar cair com a tontura que sentia. Era demais para mim. Segurava as folhas na mão e quis olhá-las outra vez. Seria possível? Eu esqueceria todo esse dia? Esqueceria o pequeno alívio que senti quando Miriam me disse que sim, era real? Audrick tinha mesmo algo de não humano. Mas como era possível? Eu sabia. Sabia que tudo era real. Tentei me acalmar repetindo: “Calma, Júlia. Calma. Você já sabia que coisas estranhas aconteciam com Audrick. Sempre soube. No fundo sempre soube. Aceite. Aceite que será melhor”. Respirei algumas vezes forçando a inspiração vagarosa e soltando o ar demoradamente. Minhas mãos suavam frio. E aquelas folhas? Que poder Miriam tinha que poderia apagar minha memória? Era uma droga, só poderia ser. E se tivesse algum efeito colateral? Pelo nervoso mordi tanto o lábio inferior que só parei quando senti o gosto de sangue. “Merda”, pensei. Resolvi passar no banheiro e olhar o lábio antes de descer. Tranquei a porta, soltei as folhas sobre a pedra do lavabo e examinei meus lábios. “Nada de mais” constatei. Lavei a boca com água e aproveitei para refrescar o rosto, era um dia quente e eu havia suado também pelas revelações. Me enxuguei tomando cuidado para não sujar a toalha. Peguei um pedaço de papel higiênico e segurei um pouco no lábio para estancar o sangue, enquanto me olhava no espelho. Pouquíssimas revelações e minha visão já havia aumentado tanto. O que mais Miriam me diria? Audrick não era humano, não totalmente... Precisava aceitar a resposta que eu sempre buscava. Antes de jogar o papel com sangue no lixo, enrolei-o com outra folha. Ajeitei o cabelo “Vamos lá, Júlia”. Me encarei. “Onde está seu espírito aventureiro? Não há pra onde fugir.” Olhei para as folhas em cima da pia e as enrolei também em outra folha de papel-higiênico e as guardei no bolso. “Só espero que Miriam não nos envenene.” Era isso, estava decidido. Ajeitei o cabelo mais uma vez, e a roupa. Era hora de ir para casa. “Eu mesma terei de falar com o filho dela”, lembrei que Miriam de tão cansada já deveria estar dormindo. Esse pensamento me deu um frio na barriga. Respirei fundo e saí do banheiro. Passando pelo corredor o som e a iluminação vindos da TV indicavam que Dimitri ainda deveria estar na sala. Tentava esvaziar minha mente. Eram tantas sensações que ficava cada vez mais insegura. Desci as escadas segurando pelo corrimão. O filho de Miriam estava deitado sem cerimônias, uma perna ao chão e a outra sobre o braço do sofá. Os olhos concentrados no filme que deveria ser alugado, pois era numa língua estranha e com legendas. Seus braços estavam sob a cabeça. Ele não usava camisa, provavelmente pelo calor. Fiquei arrepiada. Segurei a respiração por um segundo e me toquei que havia feito de tudo para descer as escadas sem chamar atenção por pura timidez, mas assim, ele poderia achar que eu estava espiado. Achei melhor falar algo.

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– Oi, já podemos ir – falei, voltando a descer as escadas, mas com bem menos segurança na voz do que achei que sairia. – Isso é – emendei –, se você quiser. Ele levantou-se rápido e de um salto já estava de pé, vestindo a camisa que havia sido jogada sobre o outro sofá. – Tudo bem – eu havia terminado de descer a escada e ele passou por mim subindo-a. – Só vou buscar minha carteira. “Guenta” aí! Que perfume!, pensei. Meu coração quis descompassar e para evitar qualquer pensamento sentei no sofá para ver ao filme que ele havia deixado rolando. Não é em inglês, eu pensava, e nem alemão!, reparei mais um pouco nos sons. Também não parece francês. É claro que, com aquela idade eu não era fluente em nenhuma das línguas, mas tinha certa noção de como eram suas principais palavras e sonoridade. Sorri e meu coração deu um aperto diferente, quando pensei que Dimitri gostava tanto ou mais que eu de filmes esquisitos. – Vamos? – Ele descia as escadas, agora usando novamente o par tênis. – A menos que o filme esteja agradando – continuou ele. – Eu acho melhor ir embora mesmo – falei, me levantando do sofá, olhando pra ele e depois para o filme. – O filme parece legal, mas já está tarde. – Voltei-me para ele e acho que encolhi os ombros e coloquei as mãos no bolso com a vergonha. – Ok, moça – ele enfatizou o “moça” de uma forma que eu não entendi muito bem. Cruzou a sala e abriu a porta, fazendo um gesto para que eu passasse à sua frente. – Então você é a Júlia, né? – Isso – falei enquanto íamos para o portão, um pouco confusa por não saber se ele esquecera meu nome ou só queria puxar assunto. Ele soltou um “Hum...” em resposta, e parecia que um limbo entre nós se formava. Fazia uma noite muito quente, e eu estava cansada, assim preferi deixar que o “vazio” entre nós continuasse, para não ter de me esforçar em ser gentil. Andamos um pouco, talvez dois quarteirões, quando ele resolveu falar novamente. – E aí, é só você e sua mãe? – ele perguntou sem olhar para mim. – Não, somos em cinco. Nós duas, meu pai e dois irmãos... E você? – perguntei, um pouco contente por ele voltar a me dirigir a palavra, mas com a estranha sensação de insegurança que, ao mesmo tempo, me dava uma vontade enorme de ficar calada. – Hoje sou só eu e minha mãe. Em Salvador tem meus avós, mas como ela não anda muito boa faz um tempo, resolvi ficar perto – ele falava olhando para frente ou para o chão. Só eu o encarava. – Ela deve ter ficado feliz. Dias de Chuva |

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– No começo ficou bastante preocupada de me ter por perto, sei lá o motivo. Apesar da distância sempre fomos ligados. Ela nunca me abandonou. – Ele fez silêncio quando, no cruzamento, uma moto buzinou estridente para um carro que fazia uma curva fechada. Ele riu com desdém, balançando a cabeça negativamente. – Eu que não queria vir pra essa cidade de doido... – Não dava para negar o asco com que ele falava de São Paulo. – Boa definição – concordei, desistindo de olhá-lo e um pouco incomodada por ele ser negativo quanto ao lugar que eu morava. – Mas e aí, o que deu em você pra querer ver a minha velha? – ele continuava sem me olhar. – Saudade... peso na consciência talvez – dei de ombros. – É bom admitir – ele falou ríspido. Engoli em seco a sinceridade. Achei que deveria me explicar. – Ela nos ajudou muito com... – distraída, já ia entregar toda a história quando lembrei do que Miriam me disse sobre guardar segredo – com meu pai. Ele ficou muito tempo internado, tivemos muito problemas com ele, com o modo que ele vivia. Mas depois deu tudo certo. – O final daquela frase saiu muito mais animado do que eu programara. – Ainda bem que se resolveram... Ele segurou na minha mão sem perceber, para me fazer atravessar a rua antes que o farol fechado voltasse a abrir para os carros. E com a mesma naturalidade me soltou e continuou andando. Eu fiquei um tempo gelada, e me atrasei alguns passos, mas ele continuou andando sem dar importância e eu o segui. – Sabe – ele dizia, distraído –, eu podia dizer que gostaria que meus pais tivessem se entendido. Mas não rolou. Ele foi me visitar algumas vezes, mas não era uma pessoa que eu gostaria de ter tido como exemplo. Claro que antes eu achava ruim não tê-lo por perto, e até hoje tenho uma curiosidade enorme de saber sobre ele. Afinal, ele escolheu meu nome. – Ele olhou pra mim na conversa pela primeira vez e deu uma piscada. – Mas não posso reclamar da educação que tive dos meus avós. – Eu não conheci os meus avós. – E de repente nossa conversa fluiu. – Nem sei direito seus nomes. Nunca quis aprender... Acho que foi o contrário, quando eles abandonaram minha mãe, abandonaram a mim e meus irmãos também. Já meus avós paternos, parece que um era índio, ou coisa assim – dei de ombros.

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Continuamos conversando sobre algumas coisas frívolas, sobre como a cidade era lotada de gente, e como fazia muito calor e muito frio em um curto período. Ele gostava da garoa, pois refrescava, eu gostava, porque o dia ficava cinza. – Bem, chegamos – ele disse, parando e apontando para o outro lado da rua. – Só atravessar e você estará no metrô. – É, eu sei, estou vendo daqui – falei tentando soar engraçada, mas depois fiquei com a sensação de ter parecido estúpida. – Obrigada – emendei. – Por nada. De qualquer forma minha mãe não recebe muitas visitas. E parece que você a animou. – Ele ergueu um ombro, num sinal de conformidade. – Tente aparecer mais vezes, ela ficará contente. – Pode deixar – respondi e, aproveitando o farol que fechava, saí andando. – Ei, Júlia! – ele gritou me fazendo olhá-lo outra vez. – “The Smiths” é muito legal – ele terminou de falar da referência da minha camiseta fazendo um “joia” com a mão fechada e o polegar pra cima. Devo ter ficado uns segundos meio boba, até dar as costas e voltar a andar. Antes de entrar no metrô, voltei o olhar para o lado da rua em que estava e Dimitri ainda me observava. Ele acenou um tchau e eu retribui. Senti um formigamento na barriga, e o sorriso dele veio comigo, mas só até me sentar no banco do metrô, pois aí, as folhas, a história de Miriam, as verdades sobre Audrick voltaram a habitar minha mente. ///

– Nossa, que cheiro bom, filha – meu pai se deslumbrava com o aroma do chá. – É receita da Miriam. Eu havia feito um chá normal, mas tive o cuidado de colocar as folhas amassadas em cada xícara, exceto na minha, pois tinha um plano: pelas contas que fiz, se eles bebessem do chá, esqueceriam meu desmaio no banheiro e Leonardo esqueceria da tatuagem também. Mas eu ficaria acordada até a madrugada, mais especificamente, até as quatro da manhã, para ter certeza de não perder a memória de quando aquela flor surgiu em meu ventre, e evitar assim, uma manhã cheia de confusão, ao me olhar no espelho. – Amanhã eu conto tudo, mas beba o chá, por favor. Eu fiz para vocês – depois de dizer isso, olhei para ele tentando ser o mais sincera e arrependida possível, o que era quase impossível, já que eu não me sentia nada culpada. – Amo você, mano – E ele de sorriso amarelo, bebeu todo o chá. No meu quarto, guardei na caixinha, a folha marrom, como Miriam pediu. Dias de Chuva |

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Para ter certeza de que nada daria errado, ou se desse, ela seria encontrada, redigi uma carta que esconderia junto àquela folha marrom:

Hoje (seguia-se a data), a pedido de Miriam Monteiro de Fátima, coloquei no chá que servi a meus pais e meus irmãos, folhas verdes de uma planta desconhecida com o intuito de apagar suas memórias do dia de hoje para que esquecêssemos do encontro com ela. Outra folha, de cor marrom, a pedido dela, guardei na minha caixa de lembranças e documentos no fundo do guardaroupa. Antes de deitar-me, irei ingerir uma folha como a que coloquei no chá de meus pais, para que eu também esqueça do dia de hoje. Segundo Miriam, no tempo certo eu me lembrarei da folha que guardei, e ao comê-la me recordarei de tudo. Júlia Andrade de Oliveira.

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Guardei tudo como planejado e sentei na cama, inutilmente tentei ler, mas os pensamentos e temores não me permitiram. O despertador tocou às 03h55 da manhã, me tirando de um leve torpor. Chegara minha vez de provar da folha que repousava em outra xícara de chá, agora frio. ///

O fato é que tendo esquecido Miriam, suas promessas, a história da condessa e tudo o mais, minhas angústias amanheceram em profusão. Era quase a mesma de antes, estando apenas decidida a obter respostas de Audrick. Naquela manhã todos nós saímos atrasados, com a estranha sensação de ter dormido um domingo inteiro. Na escola, minha amiga Gabriela tentava entender como eu havia dormido o domingo todo e quase perdido a hora na segunda de manhã. – Menina! – ela dizia rindo –, você se drogou, só pode. – Ela ria tanto que eu sentia vergonha. O sinal tinha acabado de bater e nós entramos na sala para a aula de literatura, minha preferida. – Aff. Você é muito cretina às vezes – respondi enquanto nos sentávamos. – Falando nisso, precisamos conversar... – Sobre? – ela falou, abrindo a mochila e pegando seu caderno. – Audrick – disse, respirando fundo. Gabriela sabia só parte da história, aquela em que nossa vida mudou pela ajuda de um empresário muito rico. – Olha a foto que ele me mandou... – peguei-a do meio do livro Frankenstein que eu lia. – Ele está pra voltar – disse, entregando a foto. – Meu Deus Grego, Júlia! – Gabriela adorava fazer referências cultas nas suas frases mais corriqueiras. Ela admirou a foto dele no degrau de sua casa. – Esse cara continua o maior gato. Em outro momento eu riria daquela espontaneidade toda, porém, fiquei mais séria do que imaginava. – Bom dia, pessoas! – A professora entrou na sala e escrevia a data e o tema da aula na lousa. – Por Zeus! – Gabriela agora me olhava desconfiada e falando baixo. – Essa sua cara... você... você acha que está gostando dele? – Eu não respondi. A encarei, séria. – Você tá fudida, Júlia! /// Dias de Chuva |

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Receber Audrick era uma noite especial. A mesa farta ostentava bebidas caras, usávamos roupas novas e a casa ficava impecavelmente limpa e cheirosa. Eu estava bastante nervosa e era difícil não pensar na tatuagem na minha barriga, vinda do nada. Porém, as frequentes conversas com Gabriela naquela semana me deixavam mais calma. Ela dizia “Respira garota, e pensa em tudo de bom que ele fez por vocês. Quanto ao que está sentindo...” – ela piscou seu olho de oriental, puxando um riso com malícia – Heaven can waAAAait. Heaven can wait til another day3. Quando minha amiga, inspirada na sua banda de Heavy Metal favorita me aconselhou, ela não fazia ideia de como falar em céu, ou não ir para o céu, era perigoso e ao mesmo tempo clarividente na minha situação. De toda forma, ela me convenceu a deixar as coisas acontecerem. Faltavam poucas horas para sua chegada, quando fui interrompida com batidas na porta do quarto. – Acho que precisamos conversar, Ju – Leo me chamava em seu quarto, enquanto eu saia do meu para o corredor. Nossos quartos, assim como o de Luana e o banheiro que dividíamos, ficavam no segundo piso da casa. No terceiro, ficava o quarto de meus pais, com a suíte deles, um escritório e meu ateliê de pinturas. No térreo havia a sala de visitas, a sala de jantar, a cozinha, a lavanderia, e um grande quintal que rodeava a casa. – Oi. – Assim que entrei no quarto de meu irmão, ele, que estava de pé apoiado no guarda-roupa de braços cruzados, fez um movimento para que eu me sentasse, mas recusei. – Você tem ficado muito nervosa desde que soube da visita do Audrick – ele soltou de uma vez. – Ah, então é isso – bufei. Fiquei aliviada, mas também de saco cheio. Eu já havia começado a disfarçar o que sentia quando falávamos de Audrick: a insegurança, o misto de raiva e até ansiedade. Mesmo assim todo mundo em casa me via diferente. Sentei-me na poltrona já sem vontade de levar aquilo adiante, e coloquei os pés sobre o apoio. Ele sentou-se na cama e pensei até onde iria o joguinho: seria possível que ele estivesse esquecido do desenho na minha barriga? Durante todos aqueles dias eu esperei que ele viesse até mim, questionar a tatuagem, afinal, eu mesma não me lembrava de ter lhe dado, ou tomado, nenhum chá mágico do esquecimento. Então, o que eu acreditava, é que ele simplesmente escolheu deixar para lá... e eu faria o mesmo. 3

O céu pode esperar/ O céu pode esperar até outro dia. Trecho de Heaven can wait, da banda Iron Maiden, 1986.

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– E eu queria saber o motivo... – continuou ele. – Ah, Leonardo. Não tem motivo. Sei lá… – revirei os olhos, inspirando pesadamente para demonstrar meu incomodo e comecei a mexer no cabelo puxando a franja para frente, a fim de não olha-lo. – Faz tanto tempo que ele sumiu. Talvez não pra você, mas toda essa festa pra recebê-lo me deixa... com preguiça – falei com desdém. – A gente para a nossa vida por ele. – Estamos vivos por ele. Por causa dele – Leo era enfático e sério. Sempre a mesma desculpa, o bom, o salvador, Audrick, pensei. – Lavagem cerebral... – acabei soltando, mas mesmo baixo, ele ouviu. – Caramba, Ju. Você realmente está naquela fase chata de adolescente – disse ele se levantando para pentear o cabelo. – Devo estar. – Dei de ombros. – Posso ir agora? – perguntei, levando a franja para trás. – Vai logo, pirralha – respondeu achando graça. Mostrei a língua para ele, e ele me devolveu a ofensa fazendo o gesto de quem atira na própria cabeça. Ignorei-o e saí. Mal eu descera a escada, minha mãe checou meu vestido e só me deixou em paz depois de conferir que eu estava como ela planejara: elegante e nada parecida comigo de verdade. Quando Audrick chegou, foi meu pai que abriu a porta e o recebeu com um abraço, e só depois de soltá-lo percebi o quanto ele estava diferente. Pela primeira vez havia traços de idade em seu rosto. – Ah! – exclamou minha mãe, indo ao seu encontro. – Pelo visto o tempo fez bem a alguém. – Eles se abraçaram. – Você não tinha essa barba na foto – disse Leo ao cumprimentá-lo. – Aquelas fotos não eram as mais recentes – Audrick respondeu abraçando meu irmão. De fato, Audrick havia mudado. O cabelo antes comprido até a cintura havia sido cortado pouco abaixo dos ombros. Os olhos pareciam mais ternos e levemente envelhecidos por pequenas marcas de expressão. Em volta do sorriso a barba rala e loira, típica de homens que a cultivam e a deixam crescer, aparando-a com cuidado. Ele parecia mais centrado e maduro. Vestia uma calça jeans preta, camisa branca com as mangas dobradas até a metade do antebraço e nos pés um par de All Star muito limpo. Eu estava surpresa e estática, mas foi só ele me abraçar que seu calor me acalmou. Senti sua respiração em mim e seu cheiro me envolveu. Talvez eu devesse a ele um voto de confiança se, é claro, ele me desse explicações. Dias de Chuva |

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Minha família e Audrick conversaram muito ainda na sala de visitas e depois o jantar foi animado, levando o bate-papo até a sobremesa. Minha família contou as novidades e ele falou sobre sua marca de vinhos e sua casa na Alemanha. E eu só conseguia pensar na maldita marca que surgiu em meu ventre. Com o coração disparado e as mãos frias, me lembrava da última noite em que o vi cheio de sangue, das flores no jardim de Miriam, e de suas tatuagens que mudavam de cor. Tudo de uma vez, deixando-me tonta. Pedi licença a todos e subi para o banheiro. Precisava ficar um pouco sozinha e lavar o rosto para me acalmar. Era provável que Audrick tivesse ouvido tudo o que eu pensei e com essa ideia ficava ainda mais nervosa. Eu me sentara na privada fechada, e com o rosto afundado nas mãos tentava conter as lágrimas de raiva, medo e insegurança. A confusão de ideias era o que me tornava mais frágil. Ouvi batidas na porta. – Júlia... – Audrick chamava-me com sua voz mais terna e preocupada. – Vamos conversar, por favor. Minha espinha gelou e achei que meu coração havia parado de bater. Fiquei de pé e estiquei o vestido. Abri a porta. Era a hora, e eu não fazia ideia do que esperar. – Oi – respondi com a porta entreaberta, olhando pela fresta. – Vamos ao seu ateliê? – Certo – disse, abrindo a porta e tomando a frente dele. O cômodo da casa era o meu preferido. Havia telas, pincéis, um cavalete, uma mesa de desenho e uma cadeira confortável para desenhistas. Uma das paredes era coberta por uma estante repleta de livros. Tinha ali um aparelho de som e um pequeno sofá. Uma mesa arredondada com quatro cadeiras brancas, mas cada uma de um estilo diferente de propósito: a primeira de madeira entalhada e cheia de detalhes esculpidos, com almofadas costuradas em tom salmão, outra cadeira de vime, uma de madeira pura, porém quadrada e de design limpo com uma almofada de estampas florais azuis, amarradas por uma cordinha a cada lado do assento, e a última, muito grande, também de madeira, onde eu conseguia sentar e cruzar as pernas, feito índio. Sentei na cadeira de estampas florais, e Audrick puxou a de vime para perto da minha, onde se acomodou. – Você nunca envelheceu antes... – comecei a falar buscando força para encará-lo. – Mas não é isso que a incomoda, não é? – Ele curvou para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos, segurando uma mão na outra.

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– Não é o que mais me incomoda... eu, você já sabe, eu não consigo esquecer o que vi aquela noite – falei segurando as lágrimas. O aperto no peito crescia. Como era difícil encará-lo. – Ju – Audrick pareceu sério, porém amável –, nada do que eu poderia falar agora, faria você entender. – Mas eu preciso de alguma resposta. – Tensa, havia cruzado os braços à frente do corpo. – Eu tenho medo de você desde aquela noite. – Só medo? – Ele parecia contente com minha insegurança. – Do que está falando? – Eu o encarava de cenho franzido. – Da noite em que você sonhou comigo. Da sua tatuagem. – Ele colocou a mão nos meus braços cruzados. – Então foi você? – Abri os braços, fazendo ele se afastar e segurei no apoio da cadeira. – Não. Foi você! – Ele voltou a colocar sua mão sobre a minha. – Como assim? Como eu faria isso? – Tirei minha mão da dele. Estava aturdida. – Júlia, eu não sou humano. – Ele segurou meu rosto de forma suave. – Talvez não totalmente. Não queria que você tivesse me visto daquele modo... mas aconteceu. Você é mais curiosa do que eu pensei. – Ele chegou seu rosto muito perto do meu. – E gosto disso, por isso escolhi você. – Como assim não é humano? – Eu chorava e tinha os olhos arregalados de pavor. – Existem tantos mistérios nesse mundo, e você tem o coração e a alma necessários para entender isso. – Ele encostou minha testa na dele. – Você é tão especial, minha pequena Júlia. E eu sei... – Ele suspirou e sua respiração encontrou meus lábios. – Eu SEI que se você fechar os olhos vai me entender com toda essa grandeza que há dentro de você! Como se a fala dele fosse um pedido deixei minhas pálpebras se fecharem. Nossa respiração se harmonizou e primeiro eu senti medo. As lágrimas escorreram e eu as deixei sair. Me concentrei na respiração dele e o medo foi se apaziguando, no lugar, em meu peito, nasceu um conforto terno, parecido com o que eu sentia enquanto criança. Abri os olhos e permanecemos ainda com a testa colada. Falei baixo, quase um sussurro. – Audrick, você me escolheu pra quê? – Para cuidar, Ju... – ele falava no mesmo tom que eu, um sussurro macio como veludo. – Não se lembra do que eu disse? No parque quando mal nos conhecíamos? Dias de Chuva |

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– Eu me lembro. – As lágrimas haviam parado de cair, mas salgavam minha boca ao escorregar pelas bochechas. – E você cuidou de todos nós, não apenas de mim. – Mas você é minha preferida, pequena Júlia. – Ele segurou meu rosto com as duas mãos e me afastou, olhando todo meu rosto. – Eu gosto de todos vocês, mas você é especial pra mim. Foi por você e pra você que fiz tudo isso. Eu olhei no fundo dos seus olhos e a lembrança da noite soturna voltava a me castigar. – Mas, Audrick, eu preciso saber sobre o que eu vi! Ele levantou-se, parecendo ficar nervoso. – Eu não posso falar sobre aquela noite, Júlia. E não vou discutir isso com você. Só me surpreende que, infelizmente, isso tenha mais valor pra você do que todo o resto. Eu fiz tanto por você, e não me arrependo. Sua família são os únicos que tenho nesta terra, e é por você que eu retorno ao Brasil. Por vocês. Mas você não me aceita. Você que sempre me surpreendeu com sua inteligência agora se tranca nesta ignorância. Naquele primeiro dia em que a vi, naquela noite fria, com os olhos cheios de lágrimas, eu vi sua força, a sua capacidade de não aceitar o que é mais fácil e mais provável para ir além. Mas agora você parece cismar com essa insegurança só para que eu... – ele se aproximou de mim, me pegou pelas mãos e me fez ficar de pé, com o rosto outra vez muito próximo ao dele quase encostando seus lábios nos meus. – Só pra que eu me afaste cada vez mais. Eu não me comovi. – Eu quero respostas, Audrick. – Me mantive séria mesmo com a aproximação, mesmo sem saber de onde vinha aquela força. – Respostas. – Tudo bem! – Ele se afastou de mim e voltou a sentar. – Você se lembra da noite, em que juntos fizemos as flores? – Claro que lembro – respondi com certo desdém. Não era óbvio que eu me lembraria? – Você recebeu algo meu. Algo muito importante: uma parcela do meu poder. Você pode criar coisas maravilhosas, se tentar, se quiser de verdade. E quando sonhou comigo – ele me olhou sério –, você desenhou essa flor no seu ventre. Só você. – Eu estava perplexa e Audrick continuava com certa decepção na voz. – Você poderia ter desenvolvido esse poder de um modo muito melhor, mas em vez de aceitar sua força, aceitar quem eu sou, e escutar suas vozes internas, você só quis se afastar de mim, por isso não percebeu do que pode ser capaz. Você esteve tão preocupada em esquecer o bem que fiz, que se perdeu e deixou de crer em quem você é.

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Estava envergonhada. Audrick talvez tivesse razão. Eu havia deixado de lado todas as coisas boas, tentei esquecer e ignorei o que eu sempre soube que era real, apenas por não poder entender. Audrick era real. Seu amor por nós era real. Pensei por um instante na flor, no sonho. Olhei para ele tentando desvendar o mistério de uma pintura. Eu o via diferente agora. A atração por ele nascia. Temi o impossível de evitar. – Audrick, você sabe de tudo que eu sonhei? – perguntei, já totalmente desarmada. – Não sei se é tudo, mas só o que você pensou desde que cheguei. Ele, percebendo minha fragilidade, me pegou pela mão outra vez, ficando ambos de pé. Ele me abraçou e me fez um cafuné, encostando minha cabeça em seu peito. – Vai ficar tudo bem, pequena. Seu cheiro entrou pelas minhas narinas e meu peito voltou a encher-se com o seu calor. Não me contive e o abracei. Estava tão cansada de odiá-lo. Queria paz e ter aquela segurança de estar ao lado dele. – Mas isso ainda é... – suspirei. Era a ponta aguda de incompletude que cismava em ferir-me – ainda é tão pouco sobre você. – Tudo bem – ele falava, terno. – Você precisa mesmo saber disso tudo agora? – Ele acariciava meu cabelo em seu peito. – Ter-me a seu lado, não é suficiente? – Você tem ido e vindo. Está sempre presente nessa casa. Essa casa existe por você – eu falava baixo como se o mínimo esforço pudesse me fazer voltar a chorar. – Eu aprendi tanto com você, minha família toda aprendeu. Nós viajamos, temos o que comer. Todos são pessoas mais felizes, e às vezes, eu quase me esqueço do que já vivemos um dia, passando fome e frio. Porém, mesmo gostando tanto de você e sendo tão grata, não faço ideia de quem é. – Talvez, Ju, você não consiga entender aqui – ele colocou o dedo indicador na minha testa e depois voltou a me abraçar forte –, mas talvez, dentro, naquilo que realmente sente, você me conheça melhor do que qualquer um que eu já conheci em todos os meus anos de existência. – Não sei... eu fico com essa sensação de que você está brincando conosco, nos ajuda, nos encanta e volta a ir embora – fiz silêncio por um momento. – Meu pai disse que você logo voltará para a Alemanha... – Então você gostaria de estar sempre comigo? – De propósito, ele ignorava meu questionamento. Tinha alegria em sua voz. Dias de Chuva |

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Aquela pergunta me pegou de súbito, tirando-me o chão. Era isso? Agora eu o queria perto. Eu não tinha como mentir para ele. – Talvez fosse mais fácil se eu pudesse entendê-lo melhor. – Nesse momento eu já não estava mais enfurecida ou indignada. Deveria aceitar Audrick. Meu coração dizia isso. Abracei-o forte sem acreditar nas palavras que vieram direto do meu coração. – Talvez fosse mais fácil assim, esperar. – Tudo bem, Júlia – Ele se afastou de mim e segurou meus ombros, encarando-me com o olhar. – Eu juro que você terá suas respostas. Mas não trocamos mais meia palavra, aos gritos meu pai nos chamava. Leonardo sofria outra crise muito forte de asma e precisávamos levá-lo ao hospital. O tempo de paz e tranquilidade longe de dificuldades financeiras e de corridas a médicos nos amoleceu, e mesmo que a madrugada em observação fosse apenas para prevenir algo pior, nos mantivemos em revezamentos ao lado de Leo. O sol já nascia e meus olhos estavam tomados pelas olheiras, as pernas mal sustentavam o corpo, e a cadeira rígida e fria da sala de espera do hospital tornava a situação mais incômoda. Minha mãe estava com Leo no quarto e a pequena Luana já havia perdido sua batalha para o sono e descansava a cabeça no meu colo. Meu pai, que havia saído com Audrick para tomar um café, voltava sozinho e sentou-se no meu lugar, colocando a caçula no seu colo para que eu pudesse me levantar e andar um pouco. Estava preocupada com Leo, mas sabia que ele sairia dessa. Seu quadro não era grave. Mesmo assim, inquieta eu olhava por uma grande janela de vidro da sala de espera, tentando esvaziar a mente, quando Audrick surpreendeu-me colocando seu braço em volta do meu e me levou para o jardim do hospital. Estava amanhecendo, e o céu começava a ganhar pinceladas alaranjadas e amarelas do tempo. Audrick parou de frente para mim. – Júlia – ele passou as mãos pelo cabelo –, eu preciso ir, mas prometo que voltarei rápido desta vez, e você terá suas respostas finalmente. – Vai embora depois de apenas uma única noite conosco? Não... não é justo Audrick. – Me senti desolada e confusa. – Aconteceram coisas, Ju. – Que coisas aconteceram de ontem para hoje que o farão ir embora assim? – Não posso dizer agora. Mas existe um motivo para eu não estar sempre presente – aquela afirmação me deixou intrigada. – Eu parti há muito tempo para que você vivesse plenamente com sua família, mas também para que você entenda que eu não sou parte dela.

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Dessa vez não quis conter nenhuma lágrima. Eu estava cansada demais, de tudo aquilo. – Eu o odeio, Audrick – falei baixo, com palavras amargas que doíam mais em mim do que nele. – Desculpe, Júlia. Eu vou me esforçar para mudar isso. – Ele abraçou-me e me beijou a testa. – Auf Wiedersehen, meine Liebe4. – Não minta para mim, Audrick – pedi ainda em voz baixa. – Você não voltará tão cedo. – Até, Júlia. – Ele me soltou, virou-se de costas e partiu. – Abscide5, Audrick. E aos poucos o sol que refletia em seu rosto ficou gravado nos meus olhos até que só o brilho se manteve comigo, não havia ninguém mais ali que eu pudesse abraçar ou que ouvisse minha teimosia e cobrança. Sentei-me no banco de concreto perto de um arbusto e chorei quieta, mas desesperada, sem saber o motivo. No mesmo dia meu irmão voltou para casa. Estávamos bem outra vez e todos pareciam contentes, apenas eu permanecera incomodada com a partida de Audrick, que tirou de mim o medo, deixando a solidão, uma saudade enorme e muitas dúvidas. Mas não podia deixar de olhar em volta e perceber que ele estava certo. Fosse ele o que fosse, estava do nosso lado. E não éramos nada sem ele.

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Até logo, minha querida. (Em alemão)

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Adeus para sempre.

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Capít ulo 8

O Ovo do Dragão

Asas se abriam dispersando a fumaça e nuvens de uma terra em chamas. Se houvesse sol ou lua, tudo seria apagado no vazio. Um negro vazio de um sombrio céu. Olhei em desespero cada ruína em chamas. Cabanas e casas sumiam em cinzas, a água translúcida vibrava rubra no correr de um rio único. Temi. O fogo se apossava de tudo ao meu redor, e ao mirar o céu, o que via era uma grande cobra e suas asas. A mão assustada foi ao peito e senti o colar ao pescoço que pesava e aquecia meu seio. Com as mãos segurando a joia eu fugi. Correndo sem saber bem para onde, eu a vi surgir. Sua pele era negra e seus olhos, brancos feito cristais de gelo. A feição era fechada e calma. Sobre a cabeça, um capuz escuro, de cor que não soube identificar, deixava escapar cachos de um cabelo negro e longo. Era tão bela que, por um instante, tudo que havia à minha volta morreu em sepulcral silêncio. Sua boca balbuciou algo que também não ouvi. E outra vez e outra. Li sua fala, num singelo e forte “vem”. No mesmo instante todos os sons voltaram a explodir em meus ouvidos. Corri sem pensar em nada a não ser fugir. Ao encontrá-la de fato, recostada sob escombros, fugimos, andamos tanto, deixando todo o resto para trás, saindo do vilarejo, cruzando a mata, mergulhando em uma escura floresta até uma cabana. – Você tem o ovo? – perguntou-me fechando a porta logo após termos entrado. – Não sei. – Estava assustada e não fazia ideia do que ela falava. – Eu vi que o segurava. A mulher negra tirou o capuz deixando seu rosto e cabelo aparecer por completo. Ela tinha lábios grossos, um colo ossudo e maxilares fortes. Ela aproximou-se de mim e puxou o cordão de meu pescoço que revelou em sua ponta a joia vermelha, a pedra vermelha de fogo.

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– Este é o Ovo do Dragão. – Ela me encarou. – Você o roubou? – Não, eu nunca roubaria nada. – Então, quem te deu? – Na sua voz havia urgência. – Foi ele. – Não conseguia dizer o nome. Com dúvida seus olhos pairaram supremos sobre mim. – Aquele que tem os pelos avermelhados e os olhos cheios de nuvens? Não tive tempo de responder. Ouvimos um forte trovão e num instante a chuva caía. A mulher soltou meu colar e fomos até a janela de madeira. Ela a abriu e deixou que algumas gotas respingassem perto de nós. O céu agora era um mar de nuvens bravas, feito ondas dançantes ao som de furacão. O cheiro de terra molhada invadiu minhas narinas, dando alívio e tranquilidade. – A chuva que abranda destrói, menina. Se ele te deu esse ovo, há um motivo. – E qual é? – Só pode ser tempestade, menina. Só tempestade. Diferente do que dizem acontecer a pessoas que sonham coisas estranhas, eu acordei calma. Fazia dois dias que Audrick viera e partira como um rápido vendaval. Meu coração estava mais tranquilo, pois eu resolvera aceitar tudo que havia visto e vivido, mesmo que minha mente borbulhasse, repleta de dúvidas. Não sabia por onde começar a procurar, mas ao me lembrar do sonho com clareza, ainda deitada na cama, senti uma necessidade imensa de ver a pedra que Audrick me dera. Revirei as gavetas na procura do colar e então me lembrei que o havia escondido numa pequena caixa, dentro do guarda-roupas com cópias de documentos pessoais. Abri e um cheiro forte de planta ganhou o ar. Ignorei o odor, pois logo o colar estava em minha mão. Não era uma joia, nem nada bonito, mas através daquele colar eu, ou Audrick, havia trazido meu pai de volta. Essa memória me fez sentir a pessoa mais ingrata do mundo. Como havia esquecido daquilo? Que, de certa forma, foi Audrick, com sua força, magia, ou o nome que fosse, que deu uma nova chance a meu pai. Fora ele, por aquele colar... Sem pestanejar coloquei-o no pescoço. Durante um tempo pareceu mais pesado. Movi a cabeça de um lado para outro, tentando me desfazer do mal-estar quando novamente senti o cheiro forte de uma planta que não sabia identificar. Remexi entre as outras bagunças guardadas ali e encontrei a folha marrom e papel dobrado. Abri e reconheci minha letra, num bilhete que falava coisas sobre chá, Miriam, e folhas de esquecimento. Nada ali me parecia real, nem mesmo me Dias de Chuva |

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lembrava de ter escrito aquelas palavras, mas pensei: Que alternativa eu tenho? Ali era minha letra inegavelmente, então arrisquei, e mastiguei a folha, rezando para não ser envenenada. A planta desceu direto ao meu estômago, e uma forte dor me acometeu. Meus músculos se enfraqueceram e mesmo ajoelhada no chão, tombei de dor. Por um instante achei que desmaiaria, e não sei se isso aconteceu. Apenas me lembrei de tudo. Da visita na casa de Miriam, de nossa conversa, de Dimitri. As dores na barriga e o tremor nas pernas continuaram, enquanto eu respirava fundo tentando me acalmar para o mal-estar diminuir, ficando a dormência nos músculos e dor de cabeça. Me sentei e encostei na cama, jogando a cabeça para trás, apoiada no colchão, olhando o teto. Audrick havia ido embora, era a hora de Miriam me dar algumas respostas. Arrumei-me logo. Coloquei a mochila nas costas e sai sem o café. Mas não fui para a escola. ///

Era uma casa de portões cor de rosa, não de um rosa forte e vibrante, mas sim tranquilo como iogurte. O piso da garagem era amarelo e os azulejos tinham a mesma cor, só alguns tons mais claros com flores de arabescos desenhadas num tom ocre. As janelas e a porta de madeira eram pintadas de marrom chocolate, defendendo uma aparência rústica. Toquei a campainha e, diferente do que desejava, esperei uma eternidade até ser atendida. Eu não me importava se ela ainda dormia, ou com sua saúde debilitada. Meu estômago se embrulhava pela espera. Eu enfim poderia entender algo e acreditava que ela me devia isso. A porta se abriu e a Miriam que veio até mim não estava nada sonolenta. – Bom dia, Júlia – disse ela, animada. – Você voltou bem rápido. – Bom dia – disse entrando e a cumprimentando com um beijo no rosto. – Audrick teve um problema, ficou apenas uma noite conosco. Ela não respondeu, apenas entramos e, sentada a seu pedido, esperei no sofá enquanto ela buscava uma xícara de café para cada uma de nós. Servidas, ela começou: – Diga-me. Como foi com ele? – Eu não sei. – Realmente eu não conseguia entender o que sentia. Queria perguntar tantas coisas, mas estava sem foco, as ideias e palavras se perdiam. Foi ela quem continuou.

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– Vi que está usando a pedra que ele deu – disse, bebendo de sua xícara, sem olhar diretamente para mim. – Como sabe que ele me deu esta pedra? – ergui a sobrancelha curiosa. – Nós éramos muito próximos naquela época. Costumávamos conversar bastante sobre você e sua família. Mas isso tem tempo... – E o que aconteceu para que vocês se afastassem? – Miriam se esquivava a cada pergunta, nunca era direta, mas eu preferia seguir seu raciocínio a tentar interrompê-la e não conseguir nada. – Toda relação tem um tempo para durar, mesmo aquilo que parece que dura para sempre, só é mais longo do que as demais passagens vividas. – Isso não me diz muito... – Tem razão. Uma coisa de cada vez – ela consentiu. – Vamos voltar ao que interessa. Por que está com o colar? – Ela olhou-me diretamente, como se estivesse brava. Fiz uma careta. Essa não era a parte que mais me interessava. Queria colocá-la contra a parede e saber de tudo de uma vez. Mas agora eu ouvia mais minha voz interior, e ela me dizia que eu deveria pisar em ovos com Miriam, ou ela me deixaria na mão... assim como Audrick. – Eu sonhei com o colar. E só achei a folha que me deu, pois fui procurá-lo. – Isso não responde o motivo de você o estar usando – disse ela, colocando a xícara já vazia sobre a mesinha à frente. – Ele me lembra de Audrick... – falei sem conseguir olhar para ela, e imitei seu gesto de colocar a xícara na mesa. – Então ficou tudo bem entre vocês... – disse ela, levantando-se e pegando sua xícara. – Não precisa de mim – encerrou indo em direção à cozinha. – Sim, eu preciso. – Levantei-me também depois de pegar a xícara e a segui. – Eu só reconheço o que ele fez por mim e pela minha família, mas vou esperar até quando para ter alguma resposta? Eu simplesmente não posso ficar à margem dele. Na cozinha, ela colocava sua xícara dentro da pia. – E ele disse o motivo de ter ido embora tão rápido? – Não, não disse – falei. – Fiquei sabendo que um amigo dele esteve por aqui. Audrick deve ter ido embora com ele. – Quem é esse? Dias de Chuva |

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– Você já o viu, Júlia. Deveria se lembrar. – Ela me encarou pegando a xícara de minha mão e colocando-a também dentro da pia. – Não faço ideia de quem seria... – falei coçando a cabeça. – Pense. Homem grande, de olhos muito claros. Sotaque forte e áspero. Você o viu na noite em que conheceu Audrick. – O… O tio dele? – Quase caí para trás. Era o homem que afundou meu pai. Ou “a última gota” na desgraça que ele vivia. – Sim – disse ela, lavando as xícaras. – Mas... o que ele viria fazer aqui? Eu simplesmente o havia esquecido. – Muitas coisas, Júlia. Mas acho que Audrick foi embora com ele. Meu coração doeu. O tio de Audrick, como eu poderia esquecer? Miriam virou-se para mim enxugando as mãos em um pano de prato, e depois o jogou sobre a pia. Colocou as mãos na cintura e me encarou. – Então devemos começar por esse colar, não é? – Eu acho que sim. – Tentei ignorar as suas falas passadas. Precisava confiar nela, e se ela achava melhor falar primeiro da pedra, tudo bem. – Audrick, quando me deu isso, disse que eu poderia desejar qualquer coisa, e se me concentrasse traria o que eu precisasse. Passei a achar que era essa pedra levaria meus sonhos até Audrick e assim ele os realizaria. Mas só a usei uma vez. Miriam me interrompeu bruscamente. – Você precisa saber, antes de tudo, que o Ovo do Dragão é mais do que um realizador de desejos, e também não é um transmissor de pensamentos. É um canalizador de energias, um lugar para se guardar a fé e as crenças. Ela se dirigia para o quintal dos fundos, através da porta da cozinha. Ali a primeira parte do chão era de um piso frio, e o restante de grama. Muitas plantas e flores se espalhavam por vasos de diferentes tamanhos. Na parte de piso frio, uma mesinha redonda de vime era circundada por quatro cadeiras. O sol nos agraciava sem tornar o calor incomodo. Nos sentamos. – Fé? Como uma cruz? – Eu me encurvara para frente. Estava ficando interessante. – Não, não assim. Fé e crença são apenas a sua capacidade de acreditar em algo, em algum potencial, em um ideal, em você. Audrick não fez nada... O que Miriam me dizia, apesar de inesperado, parecia muito mais possível do que aceitar o Ovo do Dragão como um transmissor de pensamentos. – Então – conclui incerta –, fui eu quem trouxe meu pai de volta naquela noite?

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– Foi para isso que você o usou? Para desejar o retorno de seu pai? – Foi sim. Ele tinha acabado de saber de Audrick como nosso cuidador, ficou furioso, brigou com minha mãe e partiu. Então desejei intensamente que ele retornasse. Queria que Audrick o trouxesse e que meu pai o aceitasse. – Então você quem fez isso. E não ele. É provável que Audrick tenha colocado sua própria crença e fé também no Ovo do Dragão para auxiliá-la. Mas quem realmente fez algo, foi você, Júlia... – ela fez uma pausa – Também é provável que ele a tenha testado. – Testado para quê? – perguntei, assustada. – Não sei qual foi ou é o propósito dele, mas ele sempre acreditou no seu potencial, na sua força. Disse que havia visto isso em seus olhos, lido em sua mente. E o modo mais fácil de comprovar essa força seria entregando o Ovo do Dragão, pois esse catalisador só poderia ser utilizado com alguém que tivesse certeza do poder e da fé que carrega em si, mas não apenas isso, alguém que tivesse uma vontade tão forte que despertasse esse dragão adormecido para realizar seu intento. – E quanto aos bons pensamentos? Todos dizem que só bons pensamentos nos fazem encontrar o que desejamos. – Balela. Na vida, qualquer vontade forte de verdade pode criar. A força em si pode gerar tanto o belo, quanto o grotesco. Infelizmente, Júlia, existe o bem e o mal, mas os humanos têm esses ideais misturados, muitas vezes que se crê estar fazendo só o bem, essa bondade sufoca as experiências do outro, e anula sua evolução, fazendo na verdade o mal – ela fazia uma pausa, como se quisesse averiguar se eu entendia. Concordei com a cabeça e ela prosseguiu. – Já, em outros casos, é possível que ao fazer o mal para alguém, a pessoa que o sofre evolui, aprende, melhora, e o mal fica apenas com quem o criou. Mas nas pequenas e diárias escolhas, o que é belo e puro pode estar repleto de ódio, assim como o amor mais forte pode ser cruel. – Eu entendo. Mas, se ele viu essa força em mim, porque ele me testaria? O que ele planejou? – Isso ele nunca me contou, Júlia. Eu sei de muitas coisas, mas não leio pensamentos, como ele. – Ah, Miriam – deixei a cabeça cair, desanimada, sobre os braços apoiados na mesa –, não acredito que você não saiba. – Esse deve ser um segredo muito bem guardado por ele – ela respondeu, sem se abater pelo meu drama exagerado. Eu ergui a cabeça e a olhei. Ainda tinha muitas perguntas. Dias de Chuva |

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– E como sabe tanto sobre esse ovo? – perguntei, arqueando a sobrancelha. – Eu o fiz. – Como é?! – perguntei, assustada. – Como isso é possível? – Ah, essa história está ficando tão longa. Vamos à cozinha, comer uns pães que assei. Você já deve estar sentindo o cheiro. Eu queria gritar com ela, mas além da educação comedida, recebida de minha mãe, caso eu fosse chata e implicante, ela apenas poderia se negar a falar do resto deixando-me perdida e “BOOM”, a Júlia cairia outra vez na estaca zero. A cozinha àquela hora era iluminada por um sol terno e sutil. Colocamos na mesa os pães caseiros, junto a uma jarra de suco e outra de leite. Ela fez-me pegar na geladeira alguns potes de geleias e mais uma vez eu me surpreendi com a quantidade de potes de vidros com ingredientes esquisitos que eles guardavam. Servimo-nos, e achei que estava em algum paraíso de degustação ao provar daquelas compotas caseiras junto aos pães. – Miriam – não conseguia chamá-la de “Dona” ou de “Senhora” sem me esforçar para isso –, por que raios você cozinha tão bem? Ela deu uma risadinha frouxa balançando os ombros. – Ah, Julinha. Toda boa cozinheira é meio bruxa. E toda bruxa, é eximia cozinheira.

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Capít ulo 9

Paladares

– Eu era uma menina ainda quando percebi que não me parecia com as outras. Eu via mais. Sempre dizia para os meus pais olharem para o sol, ou para o mar, e verem lá na praia aqueles pontos cintilantes que pareciam criar caminhos no ar, mas claro que ninguém via nada. “Além de enxergar o que ninguém enxergava, eu ouvia uma voz de mulher tão bela quanto um canto, me dizendo para fazer tarefas estranhas. A voz falava coisas como ‘pegue aquela flor, e aquela semente, amasse as duas, e coma tudo enrolado em uma pétala de rosa’, e daí a dor que eu sentia na barriga, passava. ‘Pegue aquela erva, menina’, dizia a voz, ‘e cozinhe no vinho por 3 horas’, e eu roubava o vinho do meu pai e o fazia como dizia a voz, ‘e dê para sua mãe beber, e ela não perderá seu irmãozinho outra vez’, e assim evitamos um aborto. E essa voz continuava comigo. “Ela me tirava de casa no meio da noite para conversar com a lua, pra tomar banho de mar. Eu ouvia e sentia tudo tão vivo que era difícil descrever. Então a voz me mandava fazer mais receitas e levar para mais gente, e sempre dizia ‘salva uma vida, salva uma alma, pequena Miriam’, e eu assim fazia outra e outra vez, ajudando cada vez mais pessoas com os ensinamentos que escutava. “Nem sabia ler ou escrever de tão pequena que era, mas coragem nunca me faltou. Certa noite ela mandou que eu fosse até a praia, pois lá encontraria um embrulho trazido pelas ondas do mar. A praia à noite é escuridão pura, mar e céu se confundem. Eu ouvia o barulho das ondas, mas não via nada. Até que as luzes apareceram me guiando para o mar. A água estava muito gelada, mas mesmo assim continuei. As ondas já estavam na minha cintura quando eu vi um pacote parecendo um caixote de madeira. Dias de Chuva |

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“Quando o alcancei uma onde enorme surgiu de um vento repentino, como se fosse coisa ruim e nos engoliu. “Agora, essa parte da história, me contaram. Pois bem... Minha mãe, naquela noite, também ouviu uma voz que dizia para ela acordar e ir para o mar, onde eu corria perigo. “Desesperada, minha mãe levantou da cama de um salto e foi até meu quarto, como não me encontrou gritou por meu pai e contou a ele o sonho onde ouvia a voz. Meu pai era pescador e no mesmo instante chamou o vizinho que trabalhava com ele para seguir de barco mar à dentro onde me acharam agarrada ao caixote boiando na água. Quando ele me colocou dentro do barco gritei e gritei para que trouxessem o caixote. O amigo de meu pai fez o que eu implorava, e logo depois desmaiei. “Quando acordei, tive que contar da voz que me acompanhava, mesmo sem entender bem o que ela era. Eles haviam aberto o caixote e achado um livro velho enrolado em muitos panos de couro, e como num milagre, intacto. “Como minha mãe também tinha ouvido a voz, achou que era coisa de Iemanjá, que me queria para ela e havia usado aquele pacote, uma provável oferenda, como isca para me pegar. Pois para engravidar de mim, a menina que tanto queriam, minha mãe havia pedido à Rainha do Mar que concedesse seu desejo de ter uma filha mulher, e caso acontecesse, ela para sempre seria grata. “Meus pais pensaram no que fazer por dias, até que resolveram me levar ao encontro de Jó, um o pai de santo muito velho conhecido entre os pescadores como sábio, porém bastante hostil e severo. “Júlia, preste atenção, pois se eu não tivesse vivido, não acreditaria. O pai de santo disse algo que mudou tudo. O velho Jó era um homem que ouvia a verdade escondida na natureza e nunca havia falhado em nenhuma previsão. Todos que seguiam seu conselho alcançavam o melhor, e os que o ignoravam se arrependiam rápido. Naquela tarde quente, depois de acender seu grande charuto e dar algumas tragadas e baforadas bem na minha cara, Jó falou que Iemanjá gostava muito de mim, mas que eu não era dela. Ele disse muito sério que eu era de outra, eu era filha de alma de uma bruxa velha, mais antiga que a terra Brasil. Ele disse que a voz que minha mãe ouviu sim, vinha de Iemanjá que acreditou que eu estava em perigo, mas a que eu ouvia era a voz presente na natureza, decifrada por mim, para saber como agir. “Imagine qual não foi o susto de minha mãe. Não sei se ela acreditou no que Jó disse, assim de uma vez, mas suas palavras ficaram cravadas na minha mente, como uma ferroada, inflamando meu coração. Ele disse que a bruxa velha ia me ajudar

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quando eu precisasse, mas só se eu me dedicasse a ir onde necessitavam de mim, e ajudar a quem pudesse e precisasse... Daí meu caminho de bruxa foi traçado.” – Mas, e depois? – Eu estava quase debruçada sobre a mesa, tamanha a atenção na história. – Você era só uma criança... – Eu era uma criança com uma missão. Existem muitas por aí – Miriam disse, tranquila. – Desde então eu fui atrás da minha própria voz, aprendendo e cumprindo com o meu dever. Eu já não duvidava de mais nada. Ficamos um tempo em silêncio, enquanto eu absorvia a história. Tanta fantasia que seria difícil acreditar, mas explicava o conhecimento que ela tinha naquelas folhas que apagaram e devolveram minha memória. Então seria isso? Bruxos? Não parecia ser algo tão ruim... – Mas, então, como você veio parar aqui? – Estava cada vez mais curiosa. – E... Audrick, também é um bruxo? – Eu não sei bem o que Audrick é, são tantos nomes... ou talvez eu não entenda exatamente. Mas vamos a uma pergunta por vez. – Ela sorriu, parecendo feliz por ser ouvida. – Eu amava o lugar em que vivia, mas sempre sentia que era pouco. Nós não éramos pobres, nem ricos, tínhamos uma vida tranquila, mas eu precisava de mais. E nunca achei que meu dom devesse me impedir de trilhar os caminhos de uma pessoa normal, com ambições e necessidades como qualquer outra. Então abandonei tudo e vim para cá. Estudei muito, trabalhei muito, e ajudei muita gente, foi nessa época, em que cursava o ginásio, que conheci sua mãe. Consegui entrar na faculdade de serviço social quase como um milagre, e cada vez mais ia a lugares onde poderiam precisar de mim. Foi então que surgiu a ideia da ONG. Nesse tempo conheci o pai de Dimitri, que prometeu me ajudar e se mostrava interessado no meu trabalho e nas pessoas que eu ajudava. Mas tudo não passou de crueldade da parte dele. Eu fiquei grávida e sozinha. Meus olhos se arregalaram com aquela informação. Ela continuou. – Precisava me recompor e achei melhor voltar para a casa dos meus pais. O pai de Dimitri até foi atrás de mim algumas vezes na Bahia, e resolveu me ajudar com dinheiro, porém contra minha vontade, pois nem batizá-lo com seu sobrenome ele quis. Criei meu filho ao lado de meus pais até seus quatro anos, mas sentia que eu precisava voltar para cá e retomar o projeto que tinha aqui. Trouxe Dimitri comigo, mas ele não se adaptou e retornou para a casa de meus pais, e uma vez por mês eu ia para lá ficar com ele. “Sozinha, foi mais fácil voltar a estudar e aprender. No livro que achei no mar havia tantos ensinamentos que em todos aqueles anos eu não tinha compreendido, porém busquei sempre mais e mais fontes. Quando se começa, os caminhos se Dias de Chuva |

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abrem. Mas eu já fui uma bruxa muito melhor. Como você sabe, Júlia, eu adoeci. E hoje não tenho forças para sair por aí, e ir atrás de mais conhecimento.” – E você não pode se curar? – Infelizmente fiz coisas erradas, por vários motivos, e esse dom não tenho mais... só posso ajudar os outros. – Que coisas erradas você fez? – Era difícil imaginar Miriam prejudicando alguém. – Essas eu não posso contar, Júlia. Quantos segredos. Estava cansada deles. Mas respirei fundo e achei melhor levar a conversa para o que me interessava. – Mas... e... e Audrick? Como o conheceu? Fomos surpreendidas pelo som da porta da sala se abrindo e uma voz já conhecida. – Mãe, cheguei. – Era Dimitri. – Uns professores faltaram e saímos mais cedo. – Júlia! – Miriam arregalou os olhos e falou em sussurro. – Dimitri não sabe de nada disso. – Ela ficara tensa. – E nem pode saber! Fiz que sim com a cabeça. Ela já havia me dito aquilo. Por que tanto medo? E logo ele já estava na sala de jantar. – Oi... Nossa! – Ele fez uma expressão de surpresa. – Oi, Júlia. Faz um tempo já... – ele falou isso passando a mão no pescoço, parecendo bastante incomodado em me ver. – Nem tanto tempo assim – respondi com aquele arrepio na barriga que senti ao conhecê-lo. – Tudo bom? – Tudo – ele respondeu secamente. – Acho que eu vou indo, Miriam – falei. – Mas, para! – disse Dimitri, achando graça e foi a primeira vez que percebi que ele tinha sotaque. – Fica pro almoço. Olhei pra Miriam, sem saber o que fazer. – Eu acho uma ótima ideia – ela respondeu, parecendo animada. – Na verdade vocês dois podem cozinhar enquanto eu descanso um pouco. – Por mim, tudo bem – respondeu Dimitri. – Vou pôr a mochila lá em cima, e volto nestante. Eu fiquei um pouco frustrada com a ideia, pois eu queria mesmo era continuar a conversa com ela. Sobre Audrick eu sabia ainda muito pouco e precisaria

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esperar ainda mais. Acabei concordando quando vi que ela estava cansada e não era apenas uma desculpa. Tive até mesmo que ajudá-la a subir e deitar-se. Eu já ia sair do quarto quando ela pediu para eu esperar e fechar a porta. – Júlia, eu preciso de um favor. Achei estranho, mas concordei. – Dimitri já fez muitos amigos aqui, mas ele não me conta muito da vida dele. Preciso que você seja meus olhos, e preciso que cuide dele. – Cuidar? – Aquilo era estranho. Senti um arrepio com o termo. – Você quer que eu o espione? – Não... isso não. Só preciso ter certeza de que ele está bem aqui. Vocês têm poucos anos de diferença e sei que ele simpatiza com você. – Naquele momento achei que ela estava louca. Dimitri simpatizar comigo parecia piada. – Só precisará me dizer se perceber algo errado. Eu tenho muitos truques, sei de muita coisa da vida, mas estou presa a essa casa pelas dores e cansaço. – Ela me olhou firme. – Estou te ajudando, por favor, faça isso por mim. Miriam parecia ter medo de algo muito grave. Seus olhos estavam tristes e cheios de preocupação. Talvez ela temesse que ele usasse drogas ou andasse em más companhias. Tive pena dela naquela situação. Uma mulher tão forte e com tantos conhecimentos, sendo obrigada a se trancar em casa por uma doença era muito triste. Acabei concordando, era o mínimo que eu poderia fazer. – E lembre-se: ele não sabe de nada sobre mim. Respirei fundo. Por algum motivo, eu não gostava daquilo. Desci as escadas com o coração descompassado. Eu já havia ficado nervosa na presença dele da primeira vez que conversamos, se é que podíamos chamar aquilo que foi dito até o metrô, de conversa. Agora cozinhar com ele e conversar ao mesmo tempo, era a junção de uma tarefa que eu não sabia fazer com outra que nem sabia por onde começar. Quando cheguei à cozinha ele estava tirando legumes da geladeira. Eu me preparava para dizer algo como “E aí? Você me diz o que tenho que fazer, pois não sei cozinhar nada”, mas ele assim que percebeu minha presença foi logo soltando o verbo, tão ríspido que já me arrependi de ter topado ficar de olho nele. – Me diz uma coisa, qual tua relação com a minha mãe? – Ele nem mesmo olhou para mim ao fazer a pergunta. Fiquei totalmente desconfortável e sem reação não respondi nada. Ele segurando os legumes, fechou a porta da geladeira com um empurrão leve do pé, e continuou falando. Dias de Chuva |

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– Vou facilitar prucê – ele emendou –, sei que tua mãe e ela foram amigas no passado, e que ela ajudou vocês, assim como uma penca de gente. – Sim, foi isso sim. – Mas aí vocês somem, se dão bem na vida, o que é muito bom – ele dizia isso enquanto lavava os legumes, sempre evitando me olhar –, e do nada tu resolve voltar pra vida dela. – Eu sei que é estranho, mas me sinto em dívida com ela. – Refiz a mentira que eu já havia dito, pois mesmo que em algum lugar dentro de mim esse fosse o sentimento, eu estava lá muito mais para cobrar explicações do que para agradecer a ajuda. – Por que tu se sentirias? – ele falava rápido e quase não parecia ouvir o que eu falava, pois logo que eu terminava, já rebatia. – Foi o tal estrangeiro que ajudou vocês. – Mas ela ajudou de outro jeito... sendo amiga da minha mãe, era uma pessoa em quem confiar... eu não tenho tias, ou avô, ou avó. Talvez eu ache que ela seja um pouco minha família – de repente eu começava a dizer coisas que sentia e nem fazia ideia. Naquele instante, ele virou-se na minha direção, tendo desligado a torneira e apoiado na pia, me olhou tão fundo que achei que seria virada ao avesso, mas continuei. – Eu tenho uma boa vida hoje, de uma forma que há poucos anos nunca imaginaria, mas não falo de uma casa grande, ou da escola, nem mesmo da certeza de ter o que comer... eu falo do meu pai, feito um pai mesmo, sóbrio e apaixonado pela sua família. Eu falo da minha mãe feliz e dos meus irmãos com saúde, mas ao mesmo tempo eu não quero me esquecer do lugar de onde eu vim e... Não terminei a frase. A constatação era nova até para mim. Dimitri insistiu: – E...? – E... – respirei fundo antes de continuar – eu acho que estar com a sua mãe, me faz lembrar e manter os pés no chão de onde eu vim. – Vocês souberam quando ela adoeceu? – Ele cruzou os braços e me encarou. Parecia que nada do que eu disse ele havia escutado. – Não. Ela nunca nos contou. Mesmo quando minha mãe e ela se falavam ao telefone, ela nunca disse nada. Dimitri ficou quieto, só o seu rosto pareceu mais leve. Ele voltou-se para a pia e pegou a vasilha onde havia colocado os legumes. Levou-os até o balcão e me entregou uma faca.

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– Após aquele domingo que estiveram aqui – ele falava sem me olhar –, ela ficou muito ruim. Passou dias de cama. Então entendi a gravidade do que ele dizia. Provavelmente acreditava que parte da culpa era nossa, de algum modo. Preferi não questionar e respeitar sua dor. – Eu sinto muito, muito mesmo, Dimitri. Ele me olhou com o canto dos olhos. – Espero que nunca mais aconteça nada assim. Mas se acontecer – falei –, eu juro que estarei por perto – prometi. Ele deu um meio sorriso e ligou o rádio sem voltar ao assunto. Uma canção ou outra acabávamos cantando o refrão juntos, demos algumas risadas tímidas de minhas atrapalhadas na cozinha e ele teve que me ensinar desde como se deve cortar os legumes até a quantidade de óleo que ia no arroz. Aos poucos o filho de Miriam deixava de ser ríspido e se tornava tranquilo e amigável. – Eu não sei para que a maioria desses temperos serve… – Dimitri dizia olhando para tantos potes e frascos na cozinha. – Por isso uso sempre os mesmos. – Ainda bem – falei –, assim sei que vou sair viva dessa refeição. Rimos. Mas só eu sábia a verdade por trás da brincadeira. Dimitri ajudou sua mãe a descer para o almoço. Ela elogiou a comida, mas também deu vários apontamentos sobre como teria feito. No final, enquanto recolhíamos os pratos, Dimitri perguntou se eu já iria embora, pois ele tinha compromisso e poderia ir comigo até o metrô. Concordei com a sugestão e enquanto ele se aprontava fiquei na cozinha com Miriam. – Você vai me contar sobre Audrick? – indaguei, assim que ficamos sozinhas. Minha mente fervilhava. – Hoje não, querida. – Apesar de já esperar pela resposta, fiquei um tanto decepcionada. – Hoje vou oferecer apenas duas coisas – ela continuou a falar, fazendo pouco caso de minha desaprovação –, esse chá verde que estou preparando e outra coisa muito mais valiosa. Eu não sabia se estava disposta a esperar ainda mais, porém, os segredos que Miriam desvendaria e suas histórias, apesar de um tanto fantasiosas, me inquietavam a ponto de dizer sim para o tudo que ela propusesse. – O que seria? – perguntei ao aceitar o quanto tudo aquilo me fascinava. Ouvimos o barulho do chuveiro sendo aberto. – Quero que seja minha aprendiz. – Como é? – perguntei surpresa. Dias de Chuva |

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– Ah, Julinha – ela olhou-me com doçura –, eu devo tanto a você e direi tudo o que deseja saber – Miriam falava como uma mãe ou uma professora carinhosa –, mas certos conhecimentos vão trazer não só escolhas difíceis, como situações inusitadas e perigosas. O cheiro de ervas ganhou a cozinha no instante em que ela jogou a água quente sobre as folhas. Meus olhos se fecharam no mesmo segundo. O aroma invadiu meu espírito como se não fosse um simples chá. Eu vi através de uma névoa um resquício de uma lembrança. Talvez folhas entre a luz e a sombra de um sol poente, e um canto no vento que me chegava como um sussurro. – Você é uma garota especial e eu preciso fazer minha parte por você, como fizeram por mim. Eu já tinha os olhos abertos, mas ainda tentava desvendar o que me parecia ser uma lembrança. – Eu acharia ótimo, Miriam – disse tranquila, sentindo-me grata. Ela serviu duas xícaras de chá e me propôs um brinde. Assim que bebi meu rosto se contorceu, tamanho era o gosto ruim. O sabor em nada era agradável, assim como o cheiro. Vendo minha cara de nojo e espanto, ela me disse o nome de três ervas que compunham o chá e continuou: – Esse chá não é apenas para ser apreciado pelo sabor ou cheiro. Ele vai limpar as impurezas do seu corpo e da sua cabecinha confusa. Parte do que eu vou ensinar é como outra aula qualquer, com fatos e coisas para entender e decorar, até que se torne intuitivo na sua vida. Você precisará estudar muito, se esforçar e se dedicar até tornar a magia algo natural, vindo diretamente do seu âmago. – Isso não parece tão empolgante – brinquei. – E não é. Essa é uma escolha sem volta, Júlia – ela pareceu brava com minha tentativa de piada. – Você entendeu? Quis perguntar mil coisas, mas sem saber por onde começar me calei e preferi continuar tomando o chá. Estava no último e difícil gole quando Dimitri desceu, vestindo calças e camiseta pretas, e um perfume um tanto adocicado que ganhou o ar. Ele só poderia ter um encontro. Saindo de sua casa, fomos pelo mesmo caminho de duas semanas antes, porém não conversamos. Eu me sentia cansada das novas informações e tentava absorver o que Miriam me disse. Bruxa? É um pouco demais pra mim. Eu pensava cheia de receios, quando de repente o efeito do chá pesou no meu estômago e mais uma vez uma dor pontiaguda ganhou meu abdômen. Inferno! Será que todas as vezes que aquela bruxa me fizer engolir algo eu vou sentir isso?, praguejei em pensamento.

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A dor foi tão forte que parei de andar. Eu nem sabia ao certo onde estava, e se Dimitri estivesse falando algo comigo eu não ouvia. O sol era forte e parecia mais quente que o normal. Sentia-me meio tonta e a visão turvou como se fosse parcialmente encoberta por uma nevoa branca. Levei uma mão à barriga e a outra apoiei no muro próximo de uma casa qualquer. – Júlia, o que foi? – Dimitri perguntou assustado, segurando-me. – Não é nada. Só uma pontada... – menti, pois a dor piorava. – Deve ser cólica. – E forcei um sorriso enquanto ele me ajudava a ficar ereta de novo. – Tem certeza? Tu tá meio pálida... – T... t... tenho sim – gaguejei. – Já, já passa. – Quer que eu vá com você até sua casa? – Ele me olhava preocupado. – Não! – quase gritei, apavorada ao lembrar que, para minha mãe, eu estava na escola. – Não precisa. – Mas você realmente não está bem – ele insistia de cenho franzido. Minha visão turvara outra vez. Ele continuou: – Não quer mesmo que eu te leve em casa? – E vou dizer pra minha mãe que cabulei aula pra ver a sua mãe? – soltei a frase já sem racionalizar o que minha boca dizia. – Mas como? – Dimitri arregalou os olhos. – Droga – no mesmo instante me arrependi do que disse. – Olha, esqueça... Estou bem. Viu já passou. Disse isso fazendo o máximo de esforço para parecer bem, ignorando a dor e voltando a andar. – Sei... – ele me olhou pelo canto dos olhos, desconfiado – mas num fico lá muito convencido. O restante do caminho foi de silêncio. Eu não pensava em mais nada a não ser na maldita dor. Queria chegar logo em casa e evitar cair no meio da rua. A todo momento reparei que Dimitri me olhava com o canto dos olhos, provavelmente para ter certeza de que eu não estava a ponto de passar mal e cair ali ao seu lado. Na estação Dimitri atravessou a rua comigo, mas não embarcou, pois precisava esperar alguém. Eu ignorei e passei logo a catraca. Só queria cair na cama até a dor passar. Em casa dei uma desculpa qualquer por estar sem fome e fui direto dormir. Eu era puro cansaço e minha mente não queria ter de enfrentar nenhuma realidade, ainda mais uma fantástica. Apaguei. /// Dias de Chuva |

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– Ju, acorda, filha – era minha mãe chamando da porta do quarto. – Vem comer alguma coisa. Se você continuar dormindo vou achar que não é apenas um resfriado. – Tá, tá... Já vou – resmunguei e virei de lado, meio irritada vendo a luz do dia entrando pelas frestas da janela. Afinal, por que ela já tá me chamando para o jantar?. Sentei na cama, sonolenta, estranhando estar de pijama. Na cadeira, perto da escrivaninha, vi meu uniforme dobrado. Me trocou enquanto eu dormia outra vez... Tem hora que ela se empenha demais em ser uma boa mãe, pensei. Saí do quarto e ao descer as escadas estranhei não ver Luana na sala. Já seria hora dela chegar da escola, não? Percebi que o dia estava claro demais quando entrei na sala de jantar e o sol raiava lá fora. – Não jantou ontem, não tomou café, não foi pra escola. Esse resfriado te pegou mesmo, filha. – Como assim, mãe? Tá doida? – Filha, você está dormindo desde ontem, quando chegou da escola. Tô preocupada... Sentei à mesa e reparei ao redor. Era hora do almoço e não do jantar. – É... mas já me sinto melhor – tentei disfarçar ainda confusa. – Tem certeza de que não aconteceu nada na escola ontem? – Ela parecia preocupada. – Algo que tenha chateado você? – Tipo o quê? – perguntei, me servindo do arroz e do purê. – Algum garoto? – ela perguntou com receio. – Ah, mãe, para. Você tá pirando já. – Tudo que eu não precisava era da minha mãe imaginando coisas. – De forma alguma. Só me preocupo... – Aí tem... – falei, já mastigando. Eu estava desconfiada. – Ok, Júlia. Serei sincera com você – ela falou puxando a cadeira e sentando-se à minha frente. – Eu não quero que fique pensando no Audrick. – QUÊ? – Quase cuspi a comida, e no susto, acabei por engasgar. – Sim, querida. É isso mesmo. – Ah, mãe... para. – Júlia, o que quer que eu pense? Primeiro aquela piração toda de não querer falar com ele e aquelas crises. Aí vocês subiram para conversar e ficou tudo mais que bem. E agora... agora esse colar. Esqueceu que eu que mandei fazer dessa pedra esquisita um pingente? Foi ele quem te deu.

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Só então me lembrei que não havia tirado o Ovo do Dragão do pescoço. Tive que pensar rápido. – Resolvi fazer as pazes com o passado – disse de forma teatral e tentando quebrar a situação ruim. – Ele nos ajudou, faz parte das nossas vidas, e ajudou a manter e erguer essa família. Vamos brindar a ele. – Ergui o copo de suco ainda exagerado. – Audrick! Audrick! Audrick! Depois eu ri, e minha mãe, não sei se por graça ou nervosismo, fez o mesmo. – Está certo. Quanta maturidade, filha. – Ela parecia pensativa. – Mas eu preferia me preocupar com um namorico da sua idade do que imaginar que você está apaixonada por ele e gostando dessa ideia. Coração de mãe sabe das coisas… Fiquei quieta. Continue comendo sem dizer nada a ela. – E ai, tem alguém? – Ela parecia uma amiga adolescente falando. – Algum jovem que você tem olhado diferente? – É... talvez, mãe... talvez. – Por algum motivo eu lembrei de Dimitri, encostado à pia, me encarando. – Quando quiser podemos falar dele. – Ela piscou e deu uma risadinha. – Tá certo, Dona Rafaela. Tá certo. – Retribui a piscada só para ela se sentir contente e voltei a comer. – Ah – disse ela ao servir-se se lembrando de algo naquele mesmo instante –, você não advinha quem me ligou nos chamando pra uma visita. – Eu não faço ideia – disse sem dar importância. – A Miriam! – O quê?! – Outra vez, engasguei. – Sim, faz anos que não a vemos, mas você se lembra dela não é? – Minha mãe estava empolgadíssima. – É claro que lembro... – O que aquela bruxa estaria aprontando? Pensei. – Ela quer uma visita. O que acha de ir lá no sábado? É claro!, pensei, Ela se lembra da visita anterior. – O filho dela está morando com ela agora – minha mãe continuava com as “novidades”. – Hum... que coisa... – Tentava disfarçar. – Quem diria que ela tem um filho... – Senti-me constrangida. – Por você tudo bem? Em irmos lá? Ou tem compromisso? – Tudo bem sim. – Ah, a bruxa tem cartas na manga. Que bom saber, eu pensava. – Eu adoraria – sorri. Dias de Chuva |

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De tarde minha mãe saiu para buscar a Luana na fonoaudióloga, enquanto eu via filmes na TV da sala, me sentindo prazerosamente inútil. Havia muita coisa a ser explicada, mas parecia que o último chá da Miriam cumprira o que prometera. Eu me sentia tranquila, calma e de forma curiosa mais paciente e disposta a aceitar os segredos do universo. ///

– Que estranho, Ju... – Que foi, mãe? Era uma manhã um pouco fria, mas imaginávamos que o sol típico e ardido do meio dia viria nos encontrar logo mais. Essa era nossa última conversa até parar em frente ao portão rosa. – Não parece que passou todo esse tempo sem que viéssemos aqui. Tudo é tão familiar. Durante esse devaneio, Miriam apareceu na porta, com um enorme sorriso, e liberando o cheiro gostoso de comida do lado de dentro. – É... essas coisas acontecem... – comentei O dia ao lado de Miriam foi tranquilo e não demorei a entender e descobrir o que ela queria. Não poderíamos dar às claras nossas intenções, eu precisaria me reaproximar sem brotar desconfianças em minha mãe. Primeiro elas falaram por horas sobre as mais variadas histórias que viveram e eu nem desconfiaria. No meio da conversa, Miriam dizia sentir-se só, mesmo com seu filho tendo vindo de Salvador para morar com ela, e somada a minha súbita vontade de aprender a cozinhar, minha mãe sugeriu que eu viesse mais vezes visitar sua amiga. Dimitri não apareceu. Aparentemente teve um compromisso, mas eu acreditei que fosse uma das cartas na manga da anfitriã, evitando mal-entendidos, já que seu filho sim, se lembrava da visita anterior. No final do entardecer fomos para casa, enquanto eu via alguma luz sobre minhas dúvidas. ///

Do lado de fora a buzina de um carro chamou nossa atenção. – Nossa carona chegou! – disse Miriam, sorrindo ao pegar a bolsa que já estava no sofá.

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– Carona? – inquiri. – Judite, uma amiga minha da ONG vai nos levar a um passeio. – E aonde vamos, Miriam? – perguntei. – Achei que começaria a me ensinar um pouco de seus truques ainda hoje. – E vou começar a ensiná-la. Mas precisamos visitar um lugar antes. – Eu achei que você não podia sair de casa... – Ser difícil, não significa que me é impossível – ela falava ríspida. – Agora chega de conversa. Sua primeira lição começa no silêncio. Abra seus olhos, seus ouvidos e cada detalhe deverá parecer diferente. Vejo que ainda está usando o Ovo do Dragão. – E isso é um problema? – eu perguntei já dando o braço como apoio em direção ao portão, onde, do lado de fora, um fusca velho e azul nos aguardava para o nosso passeio sabe-se lá até onde. – Não. Não é... – ela fez uma cara de desconfiada enquanto trancava o portão, e baixava o tom de voz – talvez ele a influencie... – Por canalizar a energia? – E por fazer você ver muito mais do que eu acho que deveria ver. – Se quiser eu posso tirar do pescoço... – disse, buscando ser a melhor aluna possível. – Nem sempre o que planejamos é o que precisamos. – Sua voz ainda era urgente. – Mas... – queria intervir, porém nem saberia sobre o quê. – Agora é silêncio. Veja com os olhos da alma. Ela sentenciou e eu, condescendente, me calei. Do banco de trás do automóvel eu observava cada detalhe do caminho: o brilho no olhar do gato ressabiado no muro decrépito, o espreguiçar cativante de um velho e gordo cachorro do lado de dentro de um portão. Tudo que era vida estava pulsando, e eu atenta, só podia ter como referência meu olhar de desenhista observando cada linha, reta, luz, sinal, falha e sombra como se tudo aquilo eu fosse pintar. Mas não era assim que eu deveria olhar. No fundo eu sabia que estava reparando de forma errada no que eu via. Dentro da minha mente eu falava o tempo todo comigo, desconcentrando-me e falhando, já que meu intento era ouvir os sons do universo. “Veja com os olhos da alma”, Miriam havia dito. “Falar sempre é mais fácil”, eu pensava... Respirei e inspirei até me sentir relaxada. Senti o Ovo do Dragão pesar Dias de Chuva |

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no meu pescoço. Respirei ainda outras vezes, apenas olhando os detalhes e pequenas belezas ao meu redor. Aos poucos o caminho começava a ser íntimo, próximo, um lugar de reconhecimento, e quanto mais familiar era, menos eu entendia. Eu deveria lembrar, mas não lembrava. Eu deveria saber, mas me escapava cada detalhe como minúsculos pássaros levando, cada um, um pedaço mínimo de uma história tão velha quanto poderia ser, deixando apenas o ressoar de uma vogal, de um grunhir, de um piar. Tudo ali falava comigo como se fosse noutro idioma. Um que eu deveria conhecer, mas não lembrava, formando apenas lembranças que começavam a doer. E enfim percebi onde estava. Descemos do automóvel e Judite disse algo sobre voltar em algumas horas, como combinado. Meus olhos se encheram de lágrimas. Era um terreno inclinado e alto, sem portão, com uma confusão de plantas e matos tornando difícil distinguir o belo do relaxo. Escavada na terra uma escada torta e inconstante, de degraus estreitos e baixos, chegava até a porta velha pintada da mesma tinta laranja que não enferruja, mas que deixara de fazer efeito. À esquerda da porta, uma janela de madeira fechada por tábuas brutas, pregos enferrujados e sacos pretos, já a da direita, um vitrô sujo e enferrujado. – Por que você me trouxe aqui? As lágrimas saíram sem nenhum receio ou vergonha. – Você precisava ver, lembrar-se. Desfazer a barreira erguida entre quem você foi e quem você é, para ser plena onde for daqui em diante. Você esqueceu, querida, e por mais que no seu discurso venha a negar, havia sim esquecido. E outras e outras vezes e maneiras e lugares e pessoas virão para que você esqueça. Eu estou fazendo o que eu posso fazer, hoje, para fazer de você alguém inteira e em paz, amanhã. Fiquei um tempo engolindo e entendendo suas palavras, enquanto minha boca sentia o gosto das lágrimas salgadas. Quando me achei pronta para falar sem gaguejar, passei as mãos nos cabelos, alisando-os para trás. – E quem mora aqui hoje? – perguntei. – Ela parece tão mais pobre e abandonada. – Ela foi abandonada – Miriam enfatizou o verbo de um modo que me fizesse sentir incomodada. – E então ficou pobre de pessoas. – Era só uma das primeiras lições. – Toda casa precisa de pessoas. Todo corpo precisa de alma, todo coração precisa de esperança, se não vira morada do mal, do vazio, e não há

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nada pior que o abismo que se forma à frente de um lugar infértil de luz. – Engoli as palavras junto com as lágrimas. – Venha. Subimos os degraus e conforme nos aproximamos da casa ouvi o som de uma televisão ligada. – Você disse que ninguém morava mais aí – comentei, parando de andar. – Eu disse que não havia vida, e não que ninguém se abrigava embaixo desse teto. Sabia que essa casa, ao menos no papel, ainda pertence a sua mãe? Não achei que precisava responder àquela pergunta. Era um filme dublado qualquer que deveria estar passando na televisão do lado de dentro, desses que reprisam incessantemente nas tardes, servindo mais para se cochilar do que para prestar atenção. Atentei meus ouvidos, mas não escutei som de movimentos do lado de dentro. Não sabia o que fazer. Olhei para minha nova professora, esperando que ela me desse as coordenadas. – O que quer fazer? – ela perguntou. – Eu não sei… – respondi. – Você quem me trouxe até aq… – Sim – ela me interrompeu –, eu a trouxe até aqui. E o que você quer fazer? – insistiu ela. Olhei mais um instante para os seus olhos e não soube se ela me desafiava ou se realmente queria que eu decidisse. Voltei-me à porta, talvez esperando que ela abrisse sozinha. Não, não seria o melhor. Talvez eu devesse bater… Tornei a olhar para Miriam. – Quero rever minha casa… Quero saber quem mora aqui. – Então entre. Respirei fundo e bati à porta. Nada, nenhum sinal de que viriam abri-la. Ao que levantei a mão para repetir o gesto. Ela segurou-me. – Tente a maçaneta… – Mas se toda a janela está trancada desse modo, você acha mesmo que… – É um erro comum das pessoas tornar verdade o que não se conhece, só por referências externas. Expanda sua visão. A partir de hoje você não pode mais se dar ao luxo de agir como alguém comum. Está certo, pensei. Levei a mão à maçaneta e num simples e quase sem esforço gesto, ela se abriu. Não era nada agradável. A sala tinha um forte cheiro azedo e a pouca luz vinha do sol do lado de fora, às minhas costas, e da televisão. Ali ainda estava a cama comprada por Dias de Chuva |

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Audrick, onde o novo morador entregara-se em sono muito profundo, visto a baba que escorria. Ao lado da cama, sobre uma cadeira, um prato com restos de um pó branco e, espalhadas pelo aposento, inúmeras latinhas de cerveja vazias. E apesar de nada ali ser convidativo, eu entrei. Queria ir até meu antigo quarto, e quem sabe, descobrir que meus desenhos no teto ainda estavam lá. Passei pelo homem com o maior cuidado para constatar que no cômodo onde foi meu quarto e de meus irmãos o cheiro era pior. O beliche não estava mais ali, nem a cômoda, muito menos o papel no teto. No lugar das minhas lembranças estavam roupas largadas pelo chão e muita sujeira. Olhei para a porta que dava para o pequeno quintal no fundo. Fui até ela que, por ironia, estava trancada. Fui tomada por um forte desassossego: o que eu fazia ali? Não era mais o meu lugar. Miriam devia estar maluca. Voltei para a sala e não sabia se sentia dor ou raiva, tristeza ou indiferença, ao ver o rapaz ali, estirado na cama que fora dos meus pais. Por outro lado, era alguém que precisava de um teto... alguém que de algum modo ocupava a casa que abandonamos. A palavra enfim me cortou. Nós havíamos abandonado a casa, mas por qual motivo? O passado só tinha coisas tão ruins assim para que saíssemos de lá com tanto desespero? Tínhamos medo de que o mundo nos trouxesse de volta àquela vida? Segurei as lágrimas que queriam voltar a cair e fui para a cozinha, onde a situação não era nada melhor. Ali estavam os mesmos móveis, onde tantas vezes comemos quase nada, e onde a fartura começou a nascer. A primeira vez que enchemos o armário com as providências dadas por Audrick, foi maravilhoso, mas tão maravilhoso quanto fora o dia que minha mãe trouxe para casa uma lata de leite condensado com o dinheiro do seu trabalho. Aquela foi a melhor sobremesa do mundo. Eu pude sentir o gosto e minha boca encheu-se de água. Mais pela saudade, mais pela memória, do que pela fome. Miriam apareceu. – Pegue aí algumas colheres. – Como se não bastasse invadir, agora vou roubar? – perguntei. – Não seja tola. Abra logo. Ouvi um murmúrio vindo da sala. – Ele está acordando... vamos embora! – disse aflita. – É a dona Miriam que está aí? – a pergunta veio do cômodo ao lado, mas pelo modo turvo que foi dito, eu poderia achar que vinha de um abismo. – Sou eu sim – respondeu ela. – Como assim? – indignei-me. – Você o conhece? E por que não me disse?

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– Pois você terá de tomar decisões que vão muito além do que você conhece, ou acha que sabe. Agora pegue logo o talher, Júlia. – Quem tá aí com a senhora? – É minha sobrinha – Ela pegou as duas colheres que eu havia tirado da gaveta e foi para a sala. Eu a segui. – Ela veio passar uns dias comigo. Não se importa que eu a tenha trazido, não é? Quando entrei na sala o rapaz já estava sentado, tinha a cabeça pendente entre as mãos e os cotovelos apoiados no joelho. – Não gosto que me vejam assim. – Ora, que isso, Rui, você está sempre assim! Então ninguém nunca mais vai vê-lo. – Essa seria uma boa ideia… – Sua voz soava turva e descompassada como de um bêbado. – Chega de conversa, eu trouxe seu almoço. Deveria ficar mais agradecido. Ele voltou sua face em nossa direção e pude ver com clareza seu rosto. Não era um homem feio, claro que estava acabado, extremamente magro, os ossos saltavam à face, os olhos eram buracos fundos em olheiras cinza. O cabelo muito bagunçado estava sujo, mas havia algo ali, algo quase extinto e perdido. – Você deveria desistir de mim. – Talvez eu desista... uma hora – disse ela sentando-se. Rui pegou o pote de plástico e com um dos talheres começou a refeição. Ele deu algumas colheradas e voltou o olhar para mim. – E essa menina aí, vai ficar parada me encarando com essa cara de nojo? Tremi. Se eu tinha demonstrado algum nojo, não havia sido intencional, porém, não duvidava que isso pudesse ter acontecido. – Claro que não vai, e ela não está com nojo. Na verdade, deve estar com fome. Sente-se aqui Júlia. – Apontou para a cama ao seu lado. – Eu trouxe sua marmita também. Ela tirou da bolsa outro potinho de plástico, aparentemente igual ao que entregou para Rui. Só de pensar em comer naquele ambiente sujo e fedido meu estômago revirou. – Não, não, Miriam. Obrigada… – Você vai sentar aqui, e vai comer. Sei que não almoçou. E sei como adora minha comida – ela falou entre lábios num sorriso esperto e maldoso, colocando-me em algum tipo de prova. Dias de Chuva |

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– Eu prefiro deixar pra comer depois – falei de forma apressada. – Tô falando que essa sua sobrinha tá com nojo. Mas não é da sua comida não, Dona Miriam, deve ser da minha casa – Rui falou, levando uma colherada à boca, entre a fala repleta de asco. Fiquei indignada. Casa dele? Mas era um absurdo. A casa era minha. Minha! Apenas por pirraça sentei-me e comi. Foi uma tarefa muito difícil, pois o cheiro enjoativo do lugar não combinava em nada com a refeição. Tentei engolir a todo custo evitando a ânsia. Mas conforme eu comia lembrei que há alguns anos, do modo que a fome nos fatigava, eu nem repararia no cheiro e no ambiente ruim se tivesse comida à minha frente. As lembranças me açoitavam e eu quis voltar a chorar. A vida havia sido tão sofrida e quando melhoramos, fizemos questão de enterrar todas as lembranças. Talvez, se as dores não tivessem sido tão grandes antes, não seríamos tão gratos ao que nos tornamos. Desejei nunca mais esquecer quem eu era e de onde eu vinha. ///

– Vamos embora? Por incrível que pareça a pergunta veio de Miriam e não de mim. Após terminar a comida, ainda com sacrifício, eu estava imersa em demasia nos meus pensamentos quase me desligando da presença de Rui e dela. Eu havia conseguido manter longe as lágrimas e o coração quase calmo. Eu queria ir embora? Não sabia ainda. – Vamos? – ela repetiu. – Acho que… – pensei por um instante, olhando em volta como se quisesse lembrar de algo – acho que ainda falta um lugar. Eu gostaria de ver lá fora. Será que eu posso? – perguntei, olhando para Miriam. – Não é a mim que deve perguntar, Júlia. Não sou eu quem mora aqui. Sabia o que Miriam queria dizer. Ela deveria ter sentido minha hostilidade com ele. A casa era nossa, mas apenas no papel. Minha família deixou aquele lugar e não se tem direito sobre algo que se abandona. – Rui, será que eu posso? – pedi com um pouco de receio. Ele deu de ombros. – Tanto faz. – Com a expressão de quem não se importa, enfiou a mão no bolso da calça e como não achou nada, olhou sobre a cadeira e depois embaixo dela. Pegou a chave que, aparentemente, havia caído. – Pode ir lá – ele disse me entregando a chave. – Tem só umas coisas velhas.

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Destranquei a porta para o quintal do fundo, onde havia passado tantas horas agradáveis, e agora, já crescida percebia que meu lugar favorito não tinha muito mais que dois metros quadrados, um chão de cimento e muros ásperos que exibiam os tijolos. Não existia nenhuma planta viva, apenas musgo, teias de aranha e folhas vindas de alguma árvore qualquer, trazidas pelo vento. Também encontrei bitucas de cigarro, papéis e embalagens velhas. Não havia nada ali, mas mesmo assim senti um calor forte no peito enquanto o Ovo do Dragão parecia queimar. As lágrimas vieram de uma única vez e eu chorei de soluçar. Sentei-me no chão, pois as pernas ficaram bambas e eu não pude me sustentar. Encostei na parede e enfrentei o lugar que abandonamos. Ali perdi a noção do tempo. Anoiteceu e eu vi a lua e as estrelas do mesmo ponto de vista de onde eu olhava numa época tão difícil de sonhar. Despertei apenas com o som de uma buzina, e a voz da amiga de Miriam nos chamando para ir.

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Capít ulo 10

Dimitri

A água encheu a banheira e eu me concentrava nas ervas que misturava a ela. Era meu primeiro ritual totalmente só, e mais do que isso, a hora de eu encarar os fatos e minhas capacidades. Já fazia seis meses que eu estudava com Miriam os feitiços e segredos do oculto, e devo dizer que a parte empolgante em ser uma possível feiticeira acabou nos primeiros dias de aula. Com Míriam era tudo muito sério, disciplinado, e eu não podia me permitir empolgação, que ela cortou logo no início. Sim, há um semestre eu era uma ótima aluna da teoria e péssima na prática. Toda tentativa de fazer algum feitiço, por menor que fosse, era um fracasso. Simplesmente nada acontecia. Nenhum avanço. “Você precisa acreditar, Júlia”, ela dizia. E eu falhava, falhava, e não conseguia me sentir culpada, em nenhum momento. E Miriam começou a ler isso em meus olhos. Eu adorava sua companhia, estar com ela era mágico, por si só. E tinha ainda, como brinde, a aproximação de Dimitri, que se tornava um amigo por quem eu escondia grande admiração. Mas fazer magia era ainda muito distante. Eu tinha vivido, tinha experimentado o poder dos seus ensinamentos e mesmo assim não acreditava. Até que, com razão, ela perdeu a paciência. “Chega, Júlia. Chega. É impossível. Se você não acreditar, se você realmente não quiser, eu não poderei fazer nada por você. Já basta. Volte para sua casa, esqueça tudo, e espere o retorno de Audrick. Frágil, obcecada e cega.” Foi aí que deixei a casa dela. Mas o nome de Audrick ressoava tanto quanto seus gritos. Como eu havia esquecido tudo? Eu vi tantas e tantas vezes o irreal acontecer, e ainda me mantinha descrente. E era por isso que eu estava ali, com Miriam, para descobrir quem era Audrick, o que esperar dele. Eu fui lá exigir respostas e no meio do caminho, virei sua aprendiz. E não havia volta.

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Fiquei jogada no sofá o resto da tarde e o começo da noite, passando os canais de televisão, olhando de soslaio para minha mochila, onde estava o caderno de anotações dos feitiços, bem camuflado com o título: “Matéria de Química Avançada”, um codinome para “Poderes da natureza”, ou algo assim. Meus pais passariam a noite fora, Luana dormiria na casa de uma amiguinha e Leo, no quarto, era provável que estaria jogado na cama estudando enquanto esperava a namorada ligar e foi por isso que ao toque do telefone nem pensei em levantar de minha posição “letárgica e reflexivamente vazia”, para atender. – Juuu, telefone! – gritou ele do andar de cima. – Atende logo... é um tal de Dimitri. Dimitri? Meu coração disparou: mas o que ele queria comigo? Às vezes a gente conversava bastante, outras ainda, ele me acompanhava até o metrô... Mas... ligar? Será que era algo com sua mãe? – Atende logo, Júlia. E desliga logo também que tô esperando uma ligação – Leo gritou me apressando. Tirei o telefone da sala do gancho e segurei a respiração antes de dizer algo. – Alô. – Oi, Ju, tá legal? – Dimitri foi soltando as palavras, nervoso. – Olha, eu serei sincero. Ouvi parte da sua discussão com a minha mãe. Mas que merda!, pensei. Tudo que eu não precisava era dele me cobrando explicações. – Poxa, Dimitri... – fiquei sem saber o que dizer. – É... desculpe? – a fala saiu mais como uma pergunta do que um pedido. – Mas, para! – ele falou um tanto nervoso. – Não precisa se desculpar. Eu só a ouvi gritando com você. Tô preocupado. Ela tá no quarto e não quer me dizer o que aconteceu. – Dimitri – respirei fundo. Que desculpa eu inventaria agora? –, eu também não posso... – Eu estava de pé, com as pernas bambas, enquanto segurava o telefone. – Não dá pra contar assim – soltei. – Faz assim, quer dar um rolê? – Ele parecia ter pressa. – A gente se encontra na catraca do metrô e toma um sorvete, ou um café, e você me conta o que tá acontecendo. – Ouvi sua respiração pesada, como se estivesse triste. – Na moral, Ju? – Sua voz saiu calma pela primeira vez naquela ligação. – Não sei, Dimitri... – falei, indecisa. Por mais que eu gostasse da ideia de vê-lo, falar sobre como a mãe dele me expulsou de sua casa não seria nada agradável. – Tá meio tarde – dei uma desculpa qualquer. Dias de Chuva |

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– Mas, para, Júlia! Tu volta cedo. – Ficamos em silêncio por um instante. – Eu te encontro aí. Bóra? – Ok – respondi, enfim. “Agora é inventar uma boa mentira para ele”, constatei. Combinamos o horário, avisei meu irmão e subi para me arrumar. Quando me despi para o banho olhei a marca no ventre. A mesma flor. Eu estava cansada dela. Eu nunca havia feito uma tatuagem, não pintava o cabelo, nem usava maquiagem ou brincos, pois detestava ver meu corpo como uma tela. Na verdade, eu nunca fui uma garota que buscou chamar atenção. Me vestia de uma forma simples, falava pouco, tinha poucas amizades na escola, eu gostava muito da minha solidão, e não ser notada, para mim, era uma benção. A flor no meu ventre podia representar qualquer coisa, mas era a marca do dia em que me peguei desejando Audrick e eu não queria mais lembrar daquilo. Não queria lembrar dele daquele jeito. Então uma luz de esperança reluziu na minha mente. Corri envolta na toalha até a sala, e folheei meu caderno de química em busca de um feitiço ali anotado: “Para remover vestígios de magias”. Dei uma lida rápida nos ingredientes. Naquela altura dos estudos, eu já tinha meus vidros de ervas escondidos no guarda-roupa e em uma grande gaveta embaixo da cama (esses envolvidos por paninhos, para não fazer barulho caso alguém a arrastasse para limpar). Fiquei satisfeita ao constatar que tudo seria necessário, eu tinha à mão. Logo eu terminava de preparar meu banho. Era hora da magia. Entrei na banheira respirando profundamente o aroma predominante de sândalo e num instante vi minhas veias aparecerem brilhantes e azuis por baixo da minha pele. Soltei o ar. Era o momento mais difícil que seria iniciado: o canto. Para a maioria dos feitiços não há palavras prontas a se decorar, era preciso ouvi-las, do ar, da natureza, de minha alma e inclusive dos meus mais profundos desejos. “Tire-o...”, era mais difícil do que havia imaginado. “Tire-a daqui... desta pele que não lhe pertence, que não é sua. Limpe a marca, a mágoa, a dor. Remova. Tire-a daqui...” As palavras então, começaram a fluir: Sagrada, profana, humana Limpe, apague, guarde Louvada, anátema, perdoável Afugente este presente

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Sem precedente Afague, deságue, guarde Para acalmar minha alma Para garantir minha calma E devolva-me Deusa, bruxa, feiticeira Limpe, apague, guarde. Afundei-me na água e enquanto tive ar repetia as palavras na mente e massageava o local onde a flor fora marcada. Pétalas azuis e reluzentes pareciam se soltar de minha pele e bailar dentro da banheira, sumindo assim que encontravam as folhas das diversas ervas. E quando não havia mais marca alguma eu ainda tinha ar. Na verdade, eu mal precisava respirar naquele transe. Feliz, agradeci pela marca ter me deixado. “Obrigada, deusa, rainha, mãe. Obrigada, feiticeira, entidade, amiga. Obrigada, guerreira, condessa.” Tirei o rosto de dentro d’água e deixei que as palavras fossem embora. Respirei aliviada e antes de sair esvaziei a banheira e retirei as ervas, “pois nunca os vestígios de um encantamento devem ir para o lixo. É uma ofensa”, dizia ela. Essa lição eu aprendi bem e acreditei que Miriam ficaria orgulhosa. Guardei tudo em um saquinho de pano e deixei sobre a pia para secar. ///

A noite estava agradável, apesar da garoa. Eu não me importava nem um pouco com a umidade e dava risada ao me lembrar das colegas da escola que fugiam de um pingo de água para proteger a escova feita no cabelo. No fundo, porém, eu admirava o cuidado delas com a beleza. Sentia-me um pouco inferior, pois o único que já havia me elogiado, pela “beleza” era Audrick... Cheguei ainda adiantada à estação, mas pouco depois Dimitri apareceu do lado de dentro da catraca, e me fez um gesto para ir até ele. Tirei o bilhete de metrô do bolso da calça e coloquei no vinco da máquina, liberando minha entrada. Ao me aproximar ele disse. – Mudei de ideia. Nem café, nem sorvete. Fiz um “joia” com o polegar, ainda meio tímida, ao que ele respondeu o cumprimento com um abraço, depois descemos as escadas rolantes e não tocamos em nenhum assunto referente à sua mãe, até entrarmos no trem do metrô. Dias de Chuva |

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– Ju, não precisa me dizer mais nada – ele começou a falar bem rápido. – Enquanto eu me arrumava a minha velha adivinhou que eu vinha te ver. Só pode. Acredita que ela me chamou pra conversar e esclarecer o que houve? – E o que ela te contou? – Arregalei os olhos. Não havia lugar para sentarmos, então, de pé, no metrô razoavelmente cheio, ficávamos bem próximos, segurando na barra superior de alumínio. – Ai, ai. – Ele deu uma risada gostosa, fechando os olhos. Depois me encarou fingindo estar zangado comigo, espremendo os olhos. – Ela disse que tu és meio desastrada. Que acabou misturando alguns potes dela sem querer, e como ela anda muito cansada, acabou sendo grossa. – Ele riu mais um pouco. – Ela deve de tá doida. – Então, ele parou de rir e olhou na direção do vidro do metrô, como se mirasse algo além do vidro, no concreto sujo do túnel, para não se envolver no que dizia. Dimitri não me olhava para fugir do que falava. Eu já o havia pegado daquele modo. – Minha mãe às vezes parece querer ser tua mãe também. – Ele voltou a me olhar, forçando um sorriso pequeno. – Ela disse pra eu trazer desculpas da parte dela, e que tudo é melhor quando você presta atenção e confia mais em si, Jujuba. Jujuba era como ele me chamava quando estava de bom humor. Uma forma de brincar comigo. Nas primeiras vezes ralhei com ele, pois me chamar assim dava a impressão de que eu era uma criancinha, mas depois de um tempo acostumei. Comecei a achar graça e carinhoso, mas não sabia até onde esse gesto era engrandecido por uma fantasia minha. Meu coração disparava por Dimitri. Mas daquela vez, ser chamada assim não me causou nada. Estava quieta. Miriam, esperta, adivinhou que Dimitri me procuraria. Aliviada, não precisaria esclarecer mais nada a ele, por outro lado... – Então, dona Júlia – ele voltava a puxar assunto. – Quer me dizer algo? – É... – Fechei a cara. Não estava nada confortável. – Na verdade quero sim – fui falando. – Se ela explicou tudo, por que não cancelou comigo, então? Ele ficou sério. – Porque eu queria te ver. Meu coração deu uma leve descompassada. Abri a boca para falar algo, mas eu não tinha o que falar. A diferença de idade parecia um abismo entre nós, mesmo que fossem apenas dois anos. Eu sabia que ele gostava de minha amizade, mas seria só isso? – Vamos para a outra linha – ele disse, pegando minha mão quando a gravação anunciou a estação em que faríamos baldeação. Trocamos de trem

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e entramos no outro ainda de mãos dadas. Continuamos em silêncio até ser anunciada a estação que desceríamos. – Chegamos. Ele me guiou para fora da estação e depois para o lado em que seguiríamos. – Daqui vamos a pé, tudo bem? – ele perguntou. – Eu gosto de andar – respondi, ainda sem graça. A verdade é que caminhar de mãos dadas com Dimitri parecia tão divino que eu não perderia por nada. – Para onde vamos? – Já um pouco mais “pé no chão” achei que deveria puxar assunto. – Tem uma pizzaria legal aqui perto. Meio cara, mas vale a pena. – Dois adolescentes numa pizzaria cara. Já era minhas economias – brinquei para tentar espantar o nervoso. Minhas mãos suavam frio e eu já imaginava a hora dele questionar isso. – Oxe, e tu não é bem de vida não? – Ele piscou para mim. Olhei com uma careta, torcendo os lábios. Ele sabia o modo que eu pensava. Meu pai até podia ganhar bem e ter dinheiro, mas o dinheiro dele não era meu. – Mas, para, Jujuba! – Ele me puxou para mais perto e falou no meu ouvido. – Sei que tu é pobretona que nem eu. Fiquei um pouco arrepiada com a aproximação, mas já acostumada a estar sem graça perto dele, tinha inúmeros truques para me fingir relaxada e mostrei a língua como sinal de desdém. – Tu fica tranquila. – Voltamos a andar normalmente, mas ainda de mãos dadas. – Na verdade não vai gastar tuas economias não. Eu lembrei no meio do caminho, enquanto ia te encontrar, que hoje é rodízio nesse restaurante. Ninguém vai precisar vender a mãe. Rimos. – Ah! Agora eu aprovo. Fomos conversando sobre diversos assuntos no caminho, como várias outras vezes, mas para mim era uma noite especial. Nunca havíamos andado de mãos dadas, só nós dois, para um lugar que queríamos ir juntos. Na pizzaria preferimos um lugar meio reservado, próximo à parede, mesmo Dimitri garantindo que quanto mais perto da cozinha, mais rápido seríamos servidos. Não falamos sobre nada muito sério por metade do jantar. Às vezes ele que soltava a falar disparado, enquanto eu me perdia bem boba naqueles olhos tão negros, ora escondidos por uma trança fina e solta do seu rastafári, ora livres depois dele colocar a mesma mecha para trás da orelha. Tudo corria tranquilo até que Dias de Chuva |

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começamos a falar de família. Contei a ele, sem pensar duas vezes, detalhes da difícil vida que tive e de como vivíamos até chegar a ajuda do cuidador, Audrick. Esclareci que meus pais tinham de fato conseguido alcançar uma ótima situação financeira, mas reforcei que eu não me considerava rica. E quando ele me falou de onde havia vindo, de toda aquela simplicidade e leveza de quem mora ao lado da natureza, do mar e da tranquilidade, o invejei. – Eu só queria mesmo ter mais contato com o meu pai. Não que faça falta... – Ele ficava chateado nas poucas vezes que falava do pai. – Ele nunca deixou que nada faltasse, mas nunca foi presente. Nem sei se ele é uma boa pessoa. Dizem que eu não herdei nada dele. Mas alguma coisa devo ter puxado, não é? – Seu pai é de fora, né? – É sim – Ele ponderou. – Ju, tu guarda um segredo? – Guardo sim – respondi sem pensar. – Isso é sério, Júlia. Muito sério. – Ele soltou o talher sobre a mesa e sua mão voltou a segurar a minha. – Minha mãe não pode saber, de jeito nenhum. – Não tô gostando disso… – falei. Minhas mãos suavam. No peito o Ovo do Dragão pesou. Senti que eu estava entrando em uma enrascada. – Mas você promete? Confio tanto em você... Dimitri foi sincero. Ele precisava de mim, e tudo que pudesse me deixar mais próxima dele era um bálsamo para o meu coração. – Prometo – reforcei! – Meu pai entrou em contato comigo. Mas minha mãe não pode saber, não por enquanto. Ela vai querer se meter... Vixi, num vai prestar. Ela tem essa maldita doença, não quero que ela fique desconfortável, ou se sinta culpada. Mas eu preciso olhá-lo nos olhos, e saber se ele se importa comigo ou não. – Sua voz era triste e ele parecia angustiado. – Sabe quando você não entende uma pessoa, e nem consegue dormir com esse pensamento? Não saber dele, e porque ele nunca nos deixou faltar nada, mas mesmo assim, me visitou tão poucas vezes quando criança, e só voltou agora... Eu preciso saber quem ele é. De verdade. Daí poderei esquecê-lo ou apenas aceitar esse jeito torto com que ele se refere a mim. Engoli em seco o desabafo de Dimitri. Eu sabia exatamente como ele se sentia. – Tudo bem. – Coloquei minha outra mão sobre a dele na mesa, tentando dar um pouco de conforto. – Seu segredo está bem seguro comigo. – Obrigado, Ju. ///

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Existem certas coisas na vida que mudam de um dia para o outro, que se constatam de madrugada, e pela manhã todas as cores da paleta do artista são trocadas. Não julgo que essas mudanças sejam as melhores ou as mais frágeis. Porém, as transformações são muito mais produtos de uma construção detalhada e diária, com seus altos e baixos, com suas dificuldades e acertos e com todo tipo de inspiração na qual se acredita, do que em constatações da noite para o dia. E nós só as sentimos feito mudanças bruscas, pois quando nos damos conta, vemos o grande nicho que se formou do início ao fim daquela caminhada. Depois da noite de pizza com Dimitri, ficamos mais próximos, nos falávamos todos os dias, e até de assuntos que eu não queria, como das garotas que ele ficava a fim, e com quem acabava se envolvendo. E eu guardava aquela atração por ele bem em segredo, mesmo que ela só aumentasse. Só mesmo minha irmã, minha mãe e Gabriela sabiam da minha paixão (não aguentei guardar segredo), mas elas respeitavam meu silêncio em relação a ele, mesmo não concordando. As coisas com Miriam voltaram a fluir de um modo inimaginável. Eu fazia todo tipo de pequenos feitiços e também já cozinhava muito bem. “Uma coisa leva à outra”, ela dizia. E eu boa aluna CDF, a seguia. Porém, curiosamente, sempre quando Dimitri me contava de outra menina que estava a fim, eu desenhava no meu caderno de rascunho as faces de Audrick, fingindo acreditar que assim eu me justificaria em estar sempre mais e mais perto de Miriam e seus ensinamentos. E mais cartas chegavam de meu cuidador, tendo sempre uma separada e especial para mim. Ele questionava sobre minha aplicação nos estudos das artes, dos idiomas e também na escola. E em resposta, eu contava tudo. Tudo que não incluísse Miriam ou Dimitri. O tempo voou, e dois anos pareceram existir no tempo tão mais rápido quanto eu consigo pensar nestas memórias.

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Capít ulo 11

Pagã

– Então, essa será a história de como eu conheci Audrick... finalmente. – Miriam tinha o semblante denso. Parecia carregar um fardo que precisava me entregar antes de continuarmos. – Acho que sim, Miriam – disse um pouco inquieta. Com o tempo eu percebi que o que ela poderia me oferecer ia muito além do que Audrick era ou de explicações sobre ele. Isso me interessava e muito, mas maior do que isso era o que aprendia sobre mim, sobre tudo que eu podia ser, por isso meu coração manteve-se calmo e confiante, à espera, mas também em trabalho. – Talvez eu devesse contar outra coisa – um trovão se fez ouvir –, mas talvez não. – Acho que não temos mais pra onde ir... não é? Nós duas sentimos, ou melhor, sonhamos, numa mesma noite que haveria um momento em que ela me diria finalmente o que eu fui procurar quando resolvi encontrá-la, e na mesma noite, ela me levaria mais longe, para o lugar onde eu teria a grande experiência e saberia dizer se eu era ou não uma feiticeira que poderia ouvir e viver conforme, para e pelos ensinamentos da natureza. – Eu acho que não... – Ela estava bastante tensa, por algum outro motivo que ia além da necessidade de me ensinar, ela adiou ao máximo aquela história. – Você avisou sua mãe que dormiria aqui esta noite? – Sim – respondi. – Está certo, Júlia. Essa não será a história mais longa, mas sobre a noite, dela já não posso dizer o mesmo. – Ela encheu os pulmões algumas vezes antes de continuar. – Você sente?

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– Não sei... O que eu deveria sentir. – Se permita, Júlia! – ela ordenou de forma branda. Respirei fundo e fechei os olhos. Havia um cheiro diferente no ar. Ele estava úmido. Eu ouvia um vento soprar como se fosse imaginário e via em minha mente luzes cortando um céu cheio de nuvens. – Vem chuva forte esta noite. Minha mestra concordou comigo com um aceno. Ficamos um tempo em silêncio. Ela estava muito quieta e reclusa ultimamente, parecendo mais cansada que o normal. – E o Dimitri? – perguntei tirando-nos do transe. – Ele não vem para casa essa noite. – Senti um aperto no peito quando eu percebi que Dimitri podia estar com alguma garota, além de seus amigos. – Não seremos interrompidas – ela concluiu com uma expressão de dor e levou a mão até o peito. – Tudo bem? – perguntei. – Tudo sim… Você tem algo a me dizer sobre meu filho? – Não. Ele não tem nenhum vício. Parece realmente bem – constatei. – E nada mais? Não há nada para me contar? – Nada. Menti. Dimitri me contara que o pai havia sumido outra vez. Eles não chegaram a se encontrar de fato naquela época. A reaproximação não passou de uma carta, e dois ou três telefonemas. Assim preferia não chatear Miriam com algo aparentemente superficial, mesmo que no fundo eu soubesse que me enganava com aquele raciocínio. Ela respirou fundo. E se recostou no travesseiro. – Essa história, de todas as que contei, é a mais recente. E justamente não é a mais fácil de contar. Ela começou aqui em São Paulo, quando Dimitri completou três anos. Eu não tinha como nos sustentar, era uma época difícil e eu ainda tentava reerguer o projeto da ONG. Foi aí que Audrick apareceu, e com essa bondade já costumeira, essa vontade de fazer o bem para aplacar culpas passadas, quis me auxiliar financeiramente. Naquele momento eu aceitei, mas apenas para o projeto, nada para mim. Eu estava desesperada... E ele não era um completo desconhecido… tínhamos… pessoas em comum. Foi nessa época que o pai de meu filho quis levá-lo de mim. – Como é? Achei que o pai de Dimitri nunca quis ficar com ele. Dias de Chuva |

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– Ele quis. Apenas daquela vez. Mas a condição era horrível. Ele tinha muito dinheiro, e achava melhor criar meu filho longe, com todo o luxo possível e uma educação muito superior. Além de não suportar a ideia, algo me dizia que ele não queria o bem que eu queria para Dimitri. Eu não confiava nele. Sabia que não podia confiar. Ele ameaçou-me levar à justiça e ganhar pela lei. Diria que eu não tinha condições de criá-lo. Ele era tão rico, tão mais forte do que eu. “Foi então que Audrick interferiu diretamente em minha vida. Com tanto dinheiro, poder e influência quanto o pai de Dimitri, ele o convenceu a desistir do intento. Por esse motivo, também achei melhor que Dimitri fosse viver com meus pais. Eu sentia que tudo que aquele homem queria era me fazer sofrer. Esse também foi o conselho de Audrick, deixar meu filho com meus pais, num ambiente muito mais tranquilo e seguro. Quando acreditei que finalmente teria paz, Audrick começou a me fazer perguntas…” – Que tipo de perguntas? – Eu estava na poltrona, olhando para Miriam. Com os pés sobre o acento, segurava os joelhos onde apoiava a cabeça. – Sobre meus afazeres... de bruxa. Primeiro, ele descobriu o que eu era durante uma discussão. Eu imaginava ser impossível que ele soubesse, mas também desconfiava do modo como ele estava sempre presente em uma necessidade. Então percebi, claro como a água, que ele só poderia ler meus pensamentos. Ao enfrentá-lo, tive a confirmação. Ele me disse que a todo momento lia o que eu pensava, sem nem precisar se esforçar para isso. Eu fiquei horrorizada. Nunca soube que alguém tivesse esse poder de fato. Quis expulsá-lo da ONG e da minha vida, pois ele já sabia demais à cerca dos meus feitiços. Mas Audrick virou o jogo, como você sabe que ele faz bem. Disse que, se não fosse por ele, eu nunca teria erguido a ONG, e principalmente, não teria evitado que o pai de Dimitri o levasse. – Mas isso é horrível! Como ele pôde? – Eu também não entendi na hora. Brigamos feio, pois eu o considerava um bom amigo. Na época eu era uma mulher jovem, e confiava nele. – Você e ele… tiveram algo? – A ideia de vê-los como um casal nunca passou antes pela minha cabeça, mas naquele momento achei não ser impossível. – Não, nunca – Miriam respondeu séria. – Ele era um rapaz apessoado. Mas sua aparência era infantil para mim. A verdade é que ainda amava o pai de Dimitri. Eu nunca tive outro amor, nunca acreditei que pudesse ter, e meu coração se mantém fechado até hoje. Audrick era apenas um amigo, ao menos, assim eu esperava. – Eu sinto muito – fui sincera.

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– Não, Júlia. Não sinta. Foi minha escolha. – Ela se ajeitou outra vez no travesseiro depois de tossir um pouco. – Semanas se passaram sem que ele aparecesse, e quando voltou me pediu desculpas por todo o ocorrido. Disse que precisaria ir para o seu país, mas que as duas famílias que ele ajudava financeiramente continuariam a receber seu auxílio enquanto fosse necessário. Audrick ficou fora por dois anos, e quando eu menos esperava, retornou. Visitou a ONG e as famílias, e permaneceu em São Paulo. Eu busquei desenvolver feitiços para que ele não lesse meus pensamentos quando aparecesse, e tudo ia bem. Ele percebeu minha magia, mas não se importou. “Tudo estava calmo até ele achar que eu, com meus feitiços, poderia enfim ajudá-lo. Ele trouxe para esta casa a pedra que você até hoje carrega no pescoço, pedindo-me para forjar o ovo de dragão. E o restante da história você conhece. Ele se tornou um cuidador da sua família, porém, de modo especial, muito mais presente do que havia sido com qualquer outra.” – E ele disse o motivo de ser assim apenas conosco? – Conversamos sobre isso, é verdade. Ele disse que do mesmo modo que eu nasci com um dom, você também havia nascido. Mas era outro. Algo único e difícil de se ter. – E o que era? – A fé e a crença. Eu já disse isso – Miriam falou, me pedindo o copo de água que repousava no criado-mudo. – É verdade, mas ainda me parece coisa de religião... – falei dando o copo. Esperei que ela bebesse e voltei para a poltrona. – Mas não é. Essas duas palavras foram utilizadas de tantos modos errados que sua essência perdeu-se. Na época eu nem acreditei no que ele disse. Você era muito nova para se ter certeza e ele não a conhecia. Havia visto você apenas duas vezes, a primeira na casa de jogos, a outra quando foi levar os mantimentos na sua casa. E segundo ele disse, foi até lá apenas para ter certeza que tinha visto esse poder em você. Mesmo assim, eu não entendia esse empenho dele, e ainda insisti no assunto. – E o que ele respondeu? Por que essa ligação comigo? Essa insistência e proximidade? – Ele me disse que ensinaria a você tudo o que ele sabe, mas apenas quando você estivesse pronta. – E mais nada? – Arregalei os olhos. – Infelizmente não. – Você não insistiu? Não quis saber mais? Dias de Chuva |

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– Eu quis. Perguntei. – Miriam tossiu mais um pouco. – E ele ora se esquivava, ora era grosso, dizendo que esse era um segredo só dele. – Miriam, eu não entendo. Por que demorou tanto para me contar? – Estava chateada. – Não é nada tão diferente assim do que eu imaginava... – Escute, Júlia. Se eu tivesse dito, você não acreditaria. E mais do que isso, você não aprenderia o que quer que fosse. Eu duvido das intenções de Audrick. Eu vejo, por mais que ele seja bom, que o interesse dele em você não é o de um mero professor. Ele a ensina, ele a molda… e você nem se dá conta. Não questionei. Era difícil digerir aquela informação. – E eu o coloquei na sua vida. Fui obrigada. – Pela primeira vez, Miriam derramou algumas lágrimas, as enxugando logo em seguida com as costas das mãos. – E eu precisava fazer minha parte… ainda é tempo. Não quero que você fique como… como eu estou hoje. Vivendo à sombra de alguém. Mas se queria a história toda, é essa. Foi assim que o conheci, foi assim que ele entrou em sua vida. E não há mais nada que você não tenha visto nele com seus próprios olhos. Ouvimos um trovão e a chuva finalmente rompeu os céus. – Então – continuei –, Audrick é algum tipo de bruxo? – Não. Se fosse isso ele não precisaria de minha ajuda na época. Os poderes dele estão todos dentro dele. Ele não modifica algo palpável ao seu redor, e nem tem conhecimento de magias ou ervas. Afundei-me na cadeira. Ainda havia tantas perguntas. – E a transformação. Quando eu o vi, aquela vez no escritório, ele era tudo, menos humano – falei séria. Eu já não temia mais a lembrança daquela noite. – Ele contou-me uma vez sobre isso. Existe um poder muito forte dentre dele, como uma fera. Um não controla o outro. Eles convivem, e às vezes, do mesmo modo que ele pode ser muito bom, e totalmente humano, às vezes, a fera pode querer sair. – Aquilo que eu vi, todo aquele sangue... será que era sangue de uma pessoa? – Provavelmente – Miriam assentiu. – Será que ele ataca humanos, como um vampiro, ou como um lobisomem? – falei sem acreditar no que saia de minha boca. – Eu não vou dizer que esses seres não existem, Júlia. Existe muito mais do que podemos imaginar, ou do que as lendas dizem. Mas eu não acho que ele seja nada disso. – Então? – Nós chamamos aqueles que são como ele, de domum.

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– E o que isso quer dizer? E como assim, ele não é o único? – Eu quase pulei da poltrona com o susto. – Significa o que ele é. Um ser humano que tem em si, outro ser. E claro que ele não é o único. Meu coração disparou. As mãos suaram e a visão ficou turva. Seja lá o que fosse que existia dentro dele, era horrível, e pensar que havia mais como ele, seria suficiente para me tirar o sono por meses. – E o que mais eles fazem? – perguntei em seguida. – Eu achei que tinha me contado tudo… Como ia me esconder isso? – Eu não disse que tinha acabado. Você queria a história de como eu o conheci. Agora, é o que eu descobri. Resmunguei um pouco na poltrona e dei uma escapada com o olhar para o lado de fora. A chuva era torrencial. – Tudo bem, continue. Ela voltou a ajeitar o travesseiro nas costas. – Leem mentes, confundem pessoas, são muito fortes, não envelhecem, ou quase nunca envelhecem, nunca ficam pobres, tem facilidade em fazer com que as pessoas sigam suas ordens, falam bem, têm um grande poder de convencimento. Eles podem espalhar essa sua força e poder em pequenas doses para outros já nascidos com predisposição a isso. Por outro lado, muitos dos poucos que sei existir, preferem fazer coisas ruins, e gostam disso, devido à provável influência dessa outra criatura que está dentro deles. – Isso é terrível. Então, é como se outro, totalmente mau, estivesse dentro dele? E ele não pode fazer nada? – Eu passava a mão pelo cabelo, incrédula. – Não sei se ele não pode fazer nada. Não sei por que ele se tornou um domum e tenho certeza que ele nunca me contaria. Por isso você precisa ficar atenta e recolher-se com seu interior, e só assim saberá o que ele realmente quer. – Você acha que devo ficar preocupada? – Eu não sei. Por outro lado, é bom que ele não saiba que estou ensinando a você. Ao menos, por enquanto. – Então eu sempre terei de comer aquela planta quando ele vier, e esquecer pra que ele não saiba? – Não, Júlia. Encontraremos outro meio. – E acha mesmo que devo fingir para alguém tão forte? Não seria melhor dizer toda a verdade? Dias de Chuva |

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– Seria mais perigoso ainda do que uma pequena mentira. Talvez ele mesmo queira contar quem ele é. O fato é que precisamos que você saiba o máximo possível antes do seu retorno. Mas por enquanto, temos que guardar segredo, por nós duas. Eram muitas informações novas. Passei as mãos suadas no braço da poltrona. – Então por que você se arrisca e me disse tudo isso? – perguntei, temerosa. – Você veio até mim, você me procurou, e algum motivo para isso existe. O universo cria essas ligações, e nós precisamos ouvir a música e fazer nossa melhor dança. – Nos olhamos por algum tempo. – Está pronta? – Já é hora? – perguntei sem ter certeza. – Sim, querida. A sala de jantar, agora sem a mesa central que colocamos na cozinha, era iluminada por uma série de castiçais, de diferentes formas, talvez épocas, colocados sobre o piso frio, dispondo velas que criavam mil sombras nas paredes e teto. Eu já conhecia o poder de algumas ervas, e muitos dos feitiços que aprendera, assim como elementos e símbolos da magia, poderiam criar rápidos encantamentos que me livrariam de um mal ou outro. – Júlia – disse ela colocando um grande livre sobre o chão –, você sabe que por mais que aprenda e estude, nunca será uma bruxa, não sabe? – Sim, eu sei. Entendia aquilo plenamente. A voz do conhecimento era a voz de Miriam, apenas dela. Não vinha de mim, não era dada a mim como dádiva da natureza, não era natural. – Mas aprender um pouco de feitiçaria... – ela continuava dizendo enquanto colocava um vasilhame de barro em frente ao livro, aberto em uma página onde eu lia em letras grandes e ornamentadas “Ecos Natura” –... abre as portas para que se torne uma feiticeira. Acenei com a cabeça, dizendo a ela que estava atenta ao que falava. – Neste recipiente está a água filtrada em filtro de barro e areia, junto ao que restou de um vidro de seu perfume, que usou durante sete noites. Você sabe o que fazer. Tudo o que você verá depois, e para onde você for, serão memórias suas, afloradas ou não, quando quiser, e guardadas no seu peito, em sete chaves, protegendo sua alma. Terá o discernimento de qualquer encantamento, e poderá descobrir de onde vem sua fé e crença. Talvez não hoje, talvez não ainda jovem. Mas estará livre e forte para ler no universo os versos do poder e realizar as magias que precisar.

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Eu usava um vestido azul, muito simples, pois havíamos descoberto que essa cor liberava minha energia e também acalmava meu coração, o que justificava meu apreço pela luz azul em longos banhos. – Júlia, a diferença entre uma bruxa e uma feiticeira é que a bruxa sempre terá seu poder. Sempre saberá como e por onde agir. A bruxa é a encarnação da magia em um corpo humano. Já uma feiticeira aprende, pega emprestado das forças naturais, os ensinamentos. Mas se ela cair no abismo do esquecimento, perde a pouca magia que aprendeu, pois a ela nada pertence. Tudo isso era muito claro para mim. Eu nunca seria uma bruxa. Não era esse o meu “poder”. Miriam ajoelhou-se no chão e após fechar os olhos iniciou um canto em uma língua que eu não conhecia, mas que serviria como um mantra para equalizar nossas vibrações e me guiar no encantamento. Os trovões e a chuva do lado de fora reverberavam dentro do meu peito. Ajoelhei em frente ao livro e ao vasilhame. Fechei meus olhos e deixei que a voz dela entrasse por meus ouvidos e ganhassem minha mente. Comecei. – Quero que guarde minhas memórias neste néctar de Lilith. Guarde minha alma, e preserve meu interior, assim eu poderei me achar, mantendo aberta a porta para quem eu sou e posso ser. Para tanto, faço deste objeto, a personificação de sete chaves. Serão sete, as chaves para as sete portas, guardando os sete invólucros do cerne. “Eu dou este colar, o Ovo do Dragão, banhado por três noites pelo sereno, deitados no meu banho com flores de lótus, dado por aquele que plantou meu caminho, e feito por ela que ilumina minha passagem, para que guarde meu coração, minha alma, minhas sinas, minhas vontades, meus sonhos e quem eu sou, diante de qualquer um que queira me transformar. ” Com o colar dentro do néctar furei a ponta de meu dedo com uma pequena agulha presa a uma fita no livro, e toquei a superfície da água. Um forte cheiro de flores ganhou o ambiente. Sentei-me sobre a mesa, diante do vasilhame. De pernas cruzadas e as mãos esticadas em posição para meditar, li o encantamento, que a cada frase, me levava para outro lugar. Fechei meus olhos, e já não era naquela casa que eu estava. Me vi sobre uma grande colina de rochas pretas, sem qualquer planta, que se estendia para os lados como uma grande muralha a se perder de vista em ambas as direções. Tudo à minha frente era um céu escuro repleto de nuvens carregadas. Abaixo de mim o som de ondas batendo em pedras e na colina onde eu julgava estar. Um vento soprou em minha direção, trazendo as nuvens. Não havia pensamento ou palavra em minha mente. Era só instinto e depois de uma pequena corrida para frente, pulei pelo precipício. Não houve queda ou voo, apenas flutuei, Dias de Chuva |

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atravessando as nuvens naquele céu sem fim. Aos poucos elas ficaram para trás, deixando que eu enxergasse o que vinha a seguir. Abaixo de mim o mar revolto espalhava sua espuma nas ondas altas que quebravam umas nas outras. De súbito tentáculos saíram da água para o ar, dançando como um lamento torto e desconexo. Olhei melhor para as ondas e no seu balanço enxerguei caveiras tortas e outros rostos contorcidos de dor. No vai e vem daqueles braços gigantes, corpos e esqueletos ganharam a superfície, de onde gritos de puro sofrimento me chegaram aos ouvidos. Os gigantescos tentáculos passaram a tombar sobre aqueles corpos, criando mais ondas e mais dor numa profusão caótica e desumana. Em meio àquela sinfonia dantesca ouvi, ao longe, um canto. Música que aos poucos me guiava sempre à frente, agarrando meu coração e deixando o mar de dor e agonia para trás. Muito à frente avistei uma ilha e enquanto eu me aproximava, tudo ao meu redor desaparecia. Dos céus pousei numa areia fina, molhada pelo mar escuro e denso. À minha frente, altas árvores de troncos fortes e além delas, o canto. Nós contamos tantas estrelas em tantos anos e descobrimos os deuses. Nós dançamos em rodas e em rodas em volta das fogueiras cantamos nossas paixões, nossas vitórias e nossas alegrias. Conforme essas palavras se repetiam, pequeninas luzes chegavam numa espécie de balé, para iluminar a escuridão da floresta. Elas rodaram em minha volta e retornaram para as árvores. Esquivando-me entre os troncos e seguindo as minúsculas pontas brilhantes de magia, cheguei a uma clareira. Eram sete mulheres, todas lindas e diferentes entre si. Uma branca como o gelo, e tão loira quanto é possível imaginar. A segunda tinha os cabelos castanhos e compridos, e olhos redondos e fortes como duas avelãs. Outra era morena, e os cabelos pretos e longos. A quarta sorria com lábios grossos, olhos puxados e negros, a pele branca, e cabelos pretos e pesados. A quinta tinha cabelos escuros, com a pele brilhante de quem fora bronzeada. A sexta tinha a pele repleta de sardas, e os cabelos eram laranja como o fogo. A última era negra, de cabelos enrolados, cacheados e volumosos, de lábios grossos e olhar profundo. Esta última, eu já havia visto. Ela veio até mim, e me colocou no centro de sua roda, enquanto todas cantavam para aquela linda floresta após o limbo, uma para as outras e todas também para mim.

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E durante infinitas eras nossos ecos ressoariam, para além das florestas, pelos mares, em cada pequeno canto do vasto mundo. E a cada horizonte vencido, nossas rezas pagãs e nossas canções de paz tornariam cada pequeno vilarejo mais harmônico. Os deuses finalmente felizes descansariam e sobre nós apenas seus dons nos seriam trazidos como presentes através das chuvas e das estrelas cadentes. Mas depois da tempestade e da ira, só o que nos restou, foram ouvidos surdos para nosso canto, e corações apáticos para nossos ensinamentos. Não poderia haver mais paz sem que houvesse alguém capaz de ouvir nosso canto e entender que nós falamos de algo dentro de cada um. Algo que pode aquecer cada desesperado e cultivar a justiça em nome dos deuses. Depois de tantas batalhas que esmagam o som de nossas canções, quase não há mais força em nossas veias e nem brilho nos olhos. Não sabes para onde ir, ou para que continuar nesse truculento caminho construído. Para quê? Mas se fecharem os olhos de todos e o único som a repercutir fosse o ritmo cadenciado da batida dos corações, nós poderíamos novamente acender a fogueira e dizer outra vez sobre as eras de contar estrelas nunca registrada. Tens construído estradas que não levam a lugar algum que realmente possa se desejar estar. Quando estar em roda perdeu o sentido, não há mais sentido para navegar pelas longínquas águas da alegria. São como pequenos pássaros voando solitários, são peixes brilhantes ganhando águas escuras que não podem ser partilhadas. São como uma sinfonia nunca composta ou uma poesia nunca escrita. Mas nós ainda estamos cantando, ainda esperamos que alguém se desnude das avarezas e dos julgamentos, e dentro de seu peito deixe-nos acender a fogueira. Para cantarmos em roda e em rodas possamos nos tornar como um único corpo. E finalmente os deuses nos tragam a dádiva do amor, da justiça e a paz. Através de cada gota de chuva, estrela cadente e raio de sol. Dias de Chuva |

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Quando terminaram a canção, elas se deitaram na grama. Não sei dizer de onde vieram, mas vários cálices e garrafas antigas de repente estavam em suas mãos. Eu as olhava admirada, imaginando que toda a força do mundo caberia naquelas mãos. A moça negra olhou-me por um instante e veio até mim. Serviu-me de sua bebida. – O que a trazes aqui tão cedo? – Sua voz era canto e harmonia. – Vim descobrir sobre minha fé e crença – falei diretamente do coração. – Mas você já não sabe? – Ela parecia divertir-se com a pergunta. – Não sei. – Então você não devia estar aqui, pois só atravessa o limbo, o grande nada, aqueles que têm firmes a fé em si mesmos, nas suas capacidades, na sua força, e só aqueles que creem na energia, na vida, acima de qualquer doutrina e religião. Você precisa ter em si, muito forte, sua fé e crença, para chegar aqui. – Então, se aqui ela está – era outra mulher que falava, a de pele morena e cabelos preto azulados como de uma índia –, é porque nasceu assim, não acha? – Ela sentou ao lado da primeira. – O que você sentiu, menina, quando viu cadáveres em sofrimento? – era a índia que me perguntava. – Eu... eu não senti nada. Senti apenas que era parte do caminho. – Aí está sua resposta – disse a índia, e nos deixou sozinha. – A sua força, criança – a moça negra de olhos iluminados como estrelas, voltou a falar –, me mostra que você fará o que é preciso fazer, mas no momento certo. Você precisa deixar as árvores crescerem, antes de se abrigar sob elas. Escute todos os conselhos, preste atenção a tudo, chore quando for a hora, mas deixe para o futuro o que a ele pertence. ///

A índia, ajudada por outras duas mulheres, a ruiva e a que era muito branca, trouxeram o vasilhame no qual fiz o encantamento e entornaram na altura da minha nuca, caindo sobre meu colo o Ovo do Dragão que no líquido repousava. Eu me senti livre e tranquila. As demais cantavam uma música sem letra, só em murmúrios e assobios, e aos poucos eu ouvia outra vez o som da chuva. A água derrubada sobre mim ficava mais fresca e toda a escuridão era rompida por uma luz confortante.

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Tudo era branco e eu distinguia apenas uma silhueta feminina que veio segurar minhas mãos e me fez andar. Aos poucos, novas formas se concretizavam ao meu redor, que eu reconhecia como sendo a cozinha de Miriam, a sala e a escada para o andar superior. Então senti gotas caindo sobre mim, de forma mais amena, e quando abri os olhos, estava sentada na varanda, entre as plantas. Já era manhã e a chuva me banhava tanto quanto o sol que despontava entre as últimas nuvens. Eu sentia um grande sorriso em mim. Podia ficar tranquila. Não havia nada fora do lugar. Levantei apenas quando a chuva pareceu dissipar. Do lado de dentro da casa, uma toalha dobrada sobre um aparador me aguardava. Miriam, sim, parecia ter tudo sob controle. Senti o cheiro forte de café fresco e, ainda um pouco molhada, desci até a cozinha para encontrá-la. Estava tão contente e leve, que queria dar um grande abraço de agradecimento em minha mestra. Mas quando cheguei, era Dimitri quem fazia o café e se servia em uma xícara. – Júlia? Você aqui? Está ensopada! – Ele arregalou os olhos. – Mas... Não pensei. Andei até ele mirando em seus olhos. Com as duas mãos segurei sua nuca, e nas pontas dos pés roubei um longo beijo, só de lábios grudados, que fizeram meu coração disparar. Arrepiei-me. Era meu primeiro beijo, mas o que realmente importava é que desde o primeiro dia que o vi soube que algo nasceu em mim e que o amaria do meu modo. Vi Dimitri tornar-se um grande amigo, alguém em quem eu confiava e que me atraia apenas pelo olhar. E aquele instante era o meu momento, fruto da minha vontade e da liberdade. Podia ficar ali muito mais tempo, e quando afastei meus lábios o suficiente para respirar, ele deixou a xícara sobre a pia, me abraçou e devolveu-me um beijo longo e molhado, cheio de desejo. Quando nos afastamos vi que ele sorria e também parecia surpreso. Eu não disse nada, peguei para mim sua xícara de café, sorri e acenei, dando as costas para não estragar a lembrança com explicações. Subi para o banheiro a fim de tomar um banho, guardando comigo a sensação quente de conquista, tranquilidade e desejo realizado. Não me importava o que ele pensaria. Eu o beijara, ele me beijou, e isso me bastava. Meu coração acalmou-se ainda mais no banho. Estava serena e tranquila. Sabia que havia muito no caminho a percorrer. Ainda tinha medo, claro, mas saber que não havia modo algum de ter todo o controle me tirava do estado de alerta. As respostas logo viriam, mas no momento certo, e eu podia esperar. /// Dias de Chuva |

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Após meu rito de passagem, minha relação com todas as pessoas mudou. Com Dimitri havia uma troca ainda maior de cumplicidades, olhares, risos sem motivo, porém continuamos apenas amigos. Eu guardei nos lábios o seu gosto e nada que viesse acontecer estragaria aquela sensação. Eu também abri mão de uma série de cursos de pintura, e passei a produzir minhas telas. Arranjei um emprego de meio período depois da escola, em uma galeria de arte e artesanato, onde tive contato com todo tipo de artista e pela primeira vez colhi diretamente os frutos do meu trabalho. Depois de alguns meses, até consegui convencer o gerente da loja a colocar quadros meus a venda, e era bom ouvir das pessoas ali, como melhorar. Meus pais sentiram minha mudança e me incentivavam. Nós nunca tivemos empregadas, só uma vez ou outra minha mãe chamava uma faxineira, então passei a ajudar mais em casa nos finais de semana. Busquei ficar mais perto de meus irmãos, mas como a ligação com Leonardo sempre fora mais forte e presente, cuidei de conhecer melhor Luana, e surpreendi-me com o quanto ela era forte, esperta e sensata, mesmo para seus poucos onze anos de idade. Eu passava menos tempo com Miriam. Achava que ela já tinha me ensinado muito, e agora era um tempo de agradecer e não de pedir ou exigir respostas como já havia feito. Eu tinha dezessete anos completos e mesmo que ela gostasse de me ensinar, e eu gostasse muito de aprender, era hora de eu estudar por mim, seguir meus caminhos, e quem sabe, um dia, voltaríamos àquela configuração de aluna e professora. Assim, trocamos as poções e feitiços, por tortas e chás e não precisávamos esperar que Dimitri saísse de casa para que pudéssemos conversar livremente, e nosso contato, menos frequente de fato, ainda se manteria. Quando sobrava um tempo eu saia com Gabriela, nem que fosse para passar as horas estudando no sebo do pai dela e ouvindo seus discos de heavy metal cheio de gritos e distorções. Meses se passaram, cultivando essa nova versão da Júlia. Certo dia de uma primavera reluzente, cheguei à casa de Miriam cheia de sacolas com os ingredientes que ela me pedira para comprar. Quem me atendeu foi Dimitri, dizendo que sua mãe havia sido convidada, de última hora, para almoçar com uma antiga amiga da ONG. Parecia que ambas estavam com saudades e Miriam achou que eu não me importaria de ter cancelado, assim de última hora. – Minha mãe ligou na sua casa, Ju – dizia Dimitri ao fim da explicação. Naquele tempo, ter celulares não era algo comum para uma adolescente –, mas ninguém atendeu.

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– Poxa! Que chato – falei enquanto Dimitri me ajudava com as sacolas, entramos e fomos para a cozinha. – Eu saí cedo, para ter tempo de ir à feira, se eu soubesse teria dormido até mais tarde. – Dei uma risada para garantir que eu estava brincando. Colocamos as sacolas sobre a mesa da copa. – Sinto muito – falou Dimitri, meio confuso. – Tudo bem – respondi. Eu olhei bem para Dimitri e vi que ele estava arrumado para sair, usando seu par de All Star, suas calças, rasgadas de propósito e as tranças do rastafári presas. Era hora de ir embora também. – Bom – continuei a fala –, vou pra casa e aproveito pra descansar. Tinha separado o domingo de folga da galeria só pra ficar com a sua mãe. Agora vai ser difícil sabe... tenho muito trabalho lá, estão me ensinando algumas outras coisas, e quero começar uma oficina pra ensinar jovens pintores... Está tudo uma loucura – eu falava enquanto colocava as frutas e legumes na geladeira, pois a casa de Miriam me era tão familiar que eu agia ali como se fosse mesmo meu lar. – Mas acho que tudo isso vai valer a pena. Sabe quando você faz algo que te realiza? – Sei sim. – Ele estava parado me olhando, quase sem reação. – Pois então, me passa essas cenouras, por favor, Dimi... – Apontei para a sacola no balcão. – Obrigada. Mas eu sinto falta de ficar de bobeira com as pessoas que gosto. Sinto falta de dar risada às vezes. Pronto – falei, fechando a geladeira. – O que estragaria já não estraga mais. Você já está de saída? Podemos ir até o metrô? – Ju, eu mudei de ideia. Só me deixa fazer uma ligação para os meninos. – Mudou de ideia? – Coloquei as mãos na cintura olhando curiosa para ele. – É sim. Você tirou o dia pra relaxar e comprou todas essas coisas. Acho que não sou tão legal como minha velha, mas posso servir de companhia. – Não, não se importe – falei, balançando as mãos. Mania vinda da minha mãe. – Me importo sim. Eu vou lá ligar para os meninos, e vai separando esses ingredientes pra gente cozinhar. – Ele piscou. – Mas nada muito espalhafatoso, Jujuba, igual você faz com a minha mãe. Só uma coisa simples, depois a gente joga videogame, vê um filme... sei lá. – Hum... – pensei por um instante. Seria bom mesmo relaxar. – Tudo bem. O almoço foi bem simples como combinado. Depois partimos para o videogame: levei uma surra no Mortal Kombat, e já desesperada com a situação, Dias de Chuva |

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implorava para mudarmos de jogo, e na corrida de karts, eu venci apenas pela sorte de principiante. Então abandonamos os games e resolvemos partir para um jogo de tabuleiro, esses eu dominava muito bem, por serem os preferidos da minha família. Depois de fazer a dança da vitória, que consistia em dar vários pulos apontando cada hora o dedo indicador de uma mão e de outra para meu adversário já exausto no chão, resolvemos parar com os jogos. – Eu faço a pipoca – falei animada –, você coloca o filme. Fazer pipoca consistia em certo cuidado, visto que na casa de Miriam micro-ondas nunca entraria. Sabia que Dimitri adorava pipoca e suco, então resolvi preparar um, só por me sentir grata pelo dia. Eu nem pensava muito, agia por impulso e por ter vontade. Quando desliguei o liquidificador e servia o suco nos copos, o telefone tocou na sala. Dimitri atendeu e fiquei de ouvido na conversa. – Oi, dona Miriam – Dimitri usava um “dona” em tom de brincadeira várias vezes com a mãe. – Tá tudo bem sim. Não. Não ficou chateada não. Tudo bem então. Aproveita. Tá. Beijos. Ele não veio me dizer nada sobre a ligação. Dei de ombros e fiz a calda de manteiga para acompanhar o “requintado” aperitivo. Quando voltei para a sala, segurando os sucos, senti a perna meio bamba. Um ventinho suave de primavera anunciava um cheiro gostoso de chuva enquanto ele fechava a janela. No chão, entre a estante e o sofá, ele havia colocado uns dois cobertores e alguns travesseiros. Perto de nós havia mais uma coberta dobrada. Vendo minha cara de espanto, ele sorriu. – Você pode sentir frio. Já tá virando o tempo. Fiquei estática. – Senta. Nossa, você fez aquele suco de morango, cenoura e laranja? – Com leite condensado – respondi sem graça. – Eu adoro esse. Vou lá pegar a pipoca. – Ele passou por mim direto para a cozinha e senti seu perfume. O mesmo de sempre. Fiquei ainda parada um tempo, imaginando o que estava acontecendo. Com a distância havia desacostumado com aquele arrepio no estômago, o suor frio nas mãos e as pernas bambas que sempre me ganhavam quando estava ao seu lado. Dimitri tinha uma queda por filmes diferentes. De diretores estranhos, de atores desconhecidos, tudo que envolvesse cultura afro, ou que fosse europeu, mas “europeu dos mais esquisitos”, como eu costumava dizer. Lembro-me de

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ter ido com ele em locadoras do outro lado da cidade encontrar VHS’s que não se achavam em lugar algum. Eu já gostava de filmes cult, como dizíamos, mas acabei aprendendo a gostar dos bizarros de tanto que ele insistia que eu os visse. Mas aquele filme, aquele especificamente eu não entendia. Nada entrava na minha mente. Os diálogos, as reações dos personagens, a trama, nada fazia sentido. Peguei-me olhando para ele e lembrei-me do dia que fomos à pizzaria, e como nunca mais nos demos as mãos. Então me lembrei do beijo que eu roubara, e sobre o qual nunca havíamos conversado. Será que para ele não tinha sido nada? Ele reparou que eu o fitava. Talvez como eu já tivesse feito milhares de vezes. Será que ele nunca percebera? Ou fingia não ver, para ter minha amizade? Não importava. Eu continuei o olhando sem desviar. – Ju... tudo bem? – ele perguntou, estranhando. – Está sim. Respondi mas continuei olhando para ele. Como eu adorava aqueles olhos, aquelas sobrancelhas grossas. Os lábios firmes de um sorriso sereno. – Eu exagerei no filme, né? Doido demais? – Tudo bem – respondi de uma forma qualquer, e sustentei o olhar. A noite já caía do lado de fora, e a luz pouca e frágil da rua entrava pela janela parcialmente encoberta pela cortina. – Ju. – Ele me encarou também. Por que era tão difícil desvendar o que ele escondia no olhar? – Não... Não fica me olhando assim – ele falou meio sem graça, passando a mão na nuca. – Me diz por quê? Ele não respondeu. Eu não disse mais nada. Ao mesmo tempo, nos beijamos. Era um desejo intenso que me movia para os lábios e braços dele. Eu havia esperado tanto e guardado tanto aquele amor, aquele carinho e afeto e desejo, que só queria tornar real por todo o tempo que eu tivesse e com a maior intensidade possível. Sem pensar, eu estava em seu colo, envolvendo-o com meus braços e pernas. Suas mãos escorregavam e subiam pelas minhas costas, segurando-me firme por baixo da minha blusa. Eu o queria, o queria tanto. Beijei seu pescoço, e agarrava sua nuca de encontro a mim. Ao mesmo tempo em que eu fervia de desejo, me sentia segura naquela paixão. Ofegantes, trocamos olhares por alguns segundos. E voltei a beijá-lo com todo o meu desejo. Ele retirou minha camiseta do The Cure e eu tirei a sua do Led Zeppelin. Ele beijou meus seios e eu achei Dias de Chuva |

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que derreteria de tanto queimar. Olhei para o lustre no teto, e lembro-me de pensar que era tudo tão surreal, e também sublime, que apenas Dimitri fazia sentido existir. Não havia mais nada além daquela sala, eu e ele. O desejo era cada vez mais forte. Eu sabia o que queria e queria tanto, pois tinha medo de nunca ter aquele momento outra vez. Que se danassem os pudores de uma boa moça. Já que seria com alguém, seria com ele. Descia minhas mãos para o cinto de sua calça, e comecei a soltá-lo. Ele então me segurou. – Você... – murmurava ele quase sem conseguir falar –... tem certeza? Eu o beijei e respondi no seu ouvido. – Eu tenho! Ele, delicadamente, e ainda me beijando, me tirou do seu colo, pegou minha mão e subimos para o seu quarto. Dimitri fechou a porta logo atrás de mim, e me encostou contra a parede enquanto me beijava. – Tira... – falei para ele, me referindo a sua calça, pois a fivela do cinto me machucava. – Ah... Ju... você, quer isso mesmo. Eu sei que você é... virgem. – Você não entende, não é? – eu disse enquanto o beijava e de olhos cerrados achando que poderia começar a chorar a qualquer momento. – Eu quero você, desde sempre. Eu não consigo para de te olhar, de te querer. De te desejar! – Eu começava já a sentir as primeiras lágrimas descendo. – Não existe modo melhor de isso acontecer, do que ser com você. – Shiiuuu – ele fez, primeiro com uma expressão de surpresa, e depois sorrindo – Eu sempre te quis, Ju. – E era ele quem começava a me beijar. – Eu só não sabia como... como dizer isso. Ele então tirou suas calças e me levou para sua cama, e tirou a colcha. Dimitri acendeu a luminária que usava para ler, ao lado da cama, e apagou a luz do teto. Outra iluminação vinha ainda da lua, pela janela só com o vidro fechado. Ele tirou meu jeans, e riu gracioso com a minha calcinha de gatinhos que ele tirou com cuidado. Aquele que eu tanto desejava deitou sobre mim, e beijou cada parte do meu corpo. Demorou-se principalmente em meus seios, depois de tirar meu sutiã. Eu estava totalmente entregue. Ele me fez suspirar e tremer. E me fez desejá-lo cada vez mais. Segurei suas tranças, para que ele me olhasse no rosto e pedi para que ele viesse até mim. Ele terminou de se despir e voltou a me beijar. Não sem antes abrir a gaveta e pegar uma camisinha.

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Nos possuímos. Nos entregamos. Doeu. E quase pedi para que ele parasse. Mas sua gentileza me fez não desistir. Tive certeza, se era certo ou errado, não me importaria em ser julgada. Eu era pagã. ///

– Eu nunca imaginei que isso pudesse acontecer mesmo – ele disse, acariciando meu rosto enquanto estávamos deitados e abraçados debaixo de uma coberta leve. – Nunca acreditei mesmo. Não havia mais volta e eu sabia disso. Precisava dizer o que eu sentia. – Dimitri – falei séria –, você precisa saber de uma coisa. – Respirei fundo e ainda deitada olhei em seus olhos. – Eu não me sinto apenas atraída por você... eu... eu gosto de você. Acho que... – pensei por um instante mordendo o lábio. – acho que gosto de você desde sempre. – Sentei na cama e dei as costas para ele, passando as mãos pelo cabelo. Era hora de dizer tudo. – Você não faz ideia do quanto eu realmente gosto de você. Doía demais ouvir você falando sobre as meninas que estava a fim e te imaginar com elas. Ele se sentou e me abraçou pelas costas. – Só que para ficar perto de você eu escutava e era sua confidente. Tudo para ter você por perto. – Suspirei. – Ah, eu não sei como você nunca reparou... – Então eu preciso te contar uma coisa também, Júlia. Dimitri colocou a mão em meu rosto e o virou para ele. Seus olhos me encaravam enquanto eu erguia o lençol para cobrir meus seios nus. Ele acariciou meus cabelos e depois segurou minha mão entre as suas. – O dia que a levei pra comer pizza, eu pensei em tentar algo. Mas você era, e ainda é, uma garota tão legal, tão linda. Eu me sentia atraído por você desde o dia que a vi aqui em casa pela primeira vez. – Ele passou a mão na nuca. Estava nervoso. – Mas o maior problema, de verdade, era essa sua relação com a minha mãe. Eu acabava me sentindo, mesmo sem querer, meio responsável por você, como um irmão. Daí não dava... parecia que tentar algo contigo era trair minha mãe, era ficar com minha irmã mesmo. E se eu te magoasse como ia ser? Meu coração parecia querer sair pela boca. – Eu nunca pensei que você se sentia assim em relação a mim – falei. – E não era fácil conviver com você aqui, assim tão linda, desfilando e rindo pela casa. Então sempre dava um jeito de escapar pra não ficar aqui te olhando e me remoendo. Mas outras vezes eu desmarcava tudo que tinha porque precisava te ver. Não sabia se desejava que o tempo não passasse pra você ficar mais tempo Dias de Chuva |

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sobre o mesmo teto que eu, ou se queria que desse sua hora logo, pra eu te levar até o metrô. – Mas... – eu queria contestar e dizer que ele deveria ter me dito. – Péra, me deixa continuar. – Ele parecia sério e não me deixou dizer nada. – Aí, naquela madrugada, quando você me beijou na cozinha, eu não tive reação. Minha vontade, naquele dia, foi te pegar nos braços e fazer tudo que fizemos agora. Demos uma risada tímida. Ele continuou. – Mas eu não podia fazer isso, por tudo que já falei. Ainda assim, mesmo achando que era errado, eu não conseguia me afastar de você. Depois, conforme você foi deixando de aparecer, criou um rombo no meu peito, que eu achava que nunca ia poder sanar. Quantas vezes me peguei pensando que daria tudo pra ter você aqui em casa, como antes, só pra eu ficar te olhando quando você não percebia enquanto a gente cozinhava. E hoje... hoje foi a minha chance de finalmente ter você aqui, um pouco pra mim. – Ai, Dimitri. Se eu soubesse disso... – Eu sei, Ju. – Ele me abraçou forte. – Mas hoje é meu maior presente. Quando você ficou me olhando daquele jeito, e me seduzindo... – Eu dei uma risadinha e ele me beijou os lábios gentilmente. – Nada mais importava. Só você. Nós nos beijamos e ficamos abraçados por ainda mais um tempo. Depois nos trocamos e fomos até a estação de metrô, de onde eu iria para casa. – Ju – ele falou –, eu quero te ver amanhã. Posso passar na galeria onde você trabalha depois que você sair? – É claro que pode – falei com um sorriso de orelha a orelha. – Ju. – Sim. – Ele segurava meu rosto com as duas mãos. – Eu não quero mais ficar longe de você. – Ele acariciava meu cabelo. – Eu também não. Nos abraçamos muito forte. Demos mais um beijo longo. Quando cheguei em casa minha família estava toda na sala. Fui para a cozinha para comer algo e minha mãe me seguiu. Eu não conseguia esconder o sorriso. – Oi, filha. Passou bem o dia com a Miriam? – Não percebi na hora seu sarcasmo.

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– Passei sim. Foi bem divertido. – Sei... – ela falou sentando-se à mesa. – Curioso... eu peguei uma mensagem no telefone em que ela se desculpava por não ter conseguido te avisar antes, mas que o almoço precisava ser desmarcado. – Droga! – disse entre os dentes. Às vezes eu era uma péssima mentirosa. – Você vai me dizer a verdade, ou eu te coloco de castigo? Era a hora. Eu precisava contar, pelo menos uma parte. Agora eu sabia do sentimento de Dimitri e que ele queria estar comigo. – Mãe... Ai! Não fica brava – falei mordendo o lábio. – Já estou ficando, Júlia. – Sabe o que é... Não conta pra ninguém ainda não. Eu acho que, que eu e o Dimitri vamos namorar. Minha mãe ficou surpresa. Maravilhada. – Conta isso direito, menina. – Ai, mãe... é meio confuso. Eu saí cedo pra passar na feira, e quando eu cheguei na casa da Miriam, ela já tinha saído. Como o Dimitri tinha alugado aqueles filmes que eu te falei, que a gente gosta, acabei ficando um pouco por lá... e aí, bom... aí nós ficamos. De feliz minha mãe passou a assustada. – Você não está dizendo que vocês...? – Não, mãe. Nada disso. Só uns beijinhos mesmo – menti. – Ele quer me ver amanhã, disse que vai me buscar depois do trabalho. Ele disse que também sempre gostou de mim, mãe. Nossa, eu estou tão feliz. Eu queria explodir de alegria, mas infelizmente não podia sair gritando e pulando pela casa. Tinha uma mãe liberal, em contra partido, um pai muito coruja e preocupado. – Ah, minha filha! – Ela deu a volta na mesa e me abraçou – Eu fico feliz sim, se você for ajuizada. Ele é um ótimo rapaz. E vocês se dão tão bem. Faço votos de que dê tudo certo. – Só não conta pra ninguém ainda. – Senti um aperto no peito. – Se algo der errado... bom, ficar recontando essa história será muito difícil. – Tudo bem, filha. Eu sei como você gosta dele. É nosso segredo. Porém, o segredo não foi tão nosso assim. Pouco depois da meia noite, Luana bateu à porta do meu quarto. Disse que sabia de tudo, que tinha ouvido minha conversa com nossa mãe. Na hora eu fiquei brava, até ela me cortar e dizer. Dias de Chuva |

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– Eu fiquei tão feliiiiiz por você. – Luana, naquela idade entre a infância e a juventude, tinha mania de prolongar as vogais nas palavras que queria enfatizar. – Me conta como é beijar um menino que a gente gosta? – Então eu a fiz entrar, e contei só os detalhes mais leves, que a fez rolar de rir e ficar vermelha. Na escola só confidenciei a Gabriela o ocorrido. – Mano! – a japonesinha soltou. – Você perdeu a virgindade antes de mim? Na hora eu dei risada. Ela era assim. Imprevisível. Depois da escola e do expediente na galeria, enquanto fechava a loja, vi de relance Dimitri do lado de fora, me esperando com os fones de ouvido, suas tranças compridas até o meio das costas, e sua camiseta do Sister Of Mercy (ele sabia que era a minha favorita). – Nossa, que gato é aquele ali fora, Júlia? – perguntou minha colega que trabalhava na loja, dando um empurrão leve no meu ombro. – Sai pra lá, safada – respondi. – Ele tem dona. – Você jura? Pisquei, fechei a gaveta onde colocara a papelada das vendas, joguei a chave para ela, peguei minha mochila e saí. Ao me ver, Dimitri me deu um beijo tão forte e gostoso que tive certeza que minha colega havia visto. De lá, fomos direto jantar e saímos para tomar sorvete. Era uma noite iluminada e refrescante e decidimos andar toda a Avenida Paulista até a estação Brigadeiro do metrô antes de ir para casa, só pela desculpa da companhia. – Ju, quando eu disse que não queria te largar mais, eu falei sério. Eu segurava sua mão. – Acredito em você. Eu também não quero te perder. – Quando cheguei ontem, depois de te deixar na estação, minha mãe já estava em casa e ficou desconfiada. – A bagunça na sala! – exclamei. – Pois é. Eu falei que você passou o dia comigo vendo filmes. Eu queria contar pra ela que eu te amo, sempre te amei. Que vamos ficar juntos e isso é um fato. Mas ela estava tão cansada que achei melhor adiar. Eu parei de andar. E ele me olhou surpreso. Duas lágrimas escorreram pelo meu rosto. – Que foi, Ju? – Você me ama? Jura? – perguntei sem acreditar no que eu ouvira.

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– É claro que sim. Eu achei que você tinha entendido. – Não... não tinha. – Essa era uma das coisas que mais admirava em Dimitri. Para ele a vida era simples, real, sem desculpas, sem mal-entendidos. Sem medo de falar abertamente. – Eu também amo você. Nós trocamos o primeiro beijo do “eu te amo”. Depois voltamos a andar. – O que eu quero dizer – ele continuou –, é que vou contar pra ela. Mas não sei se você quer estar junto. Pensei por um instante. E lembrei da conversa gostosa que tive com a minha mãe, o que me fez crer que aquele seria um momento de Dimitri e Miriam, de mãe e filho, e eu não deveria estar junto. – Dimi, eu acho que você deve falar com ela primeiro. Eu posso ser como uma filha para ela. Mas eu não sou filha dela. Eu vou estar pronta se precisar de ajuda. – Tem razão. Parece besteira, né? Minha mãe te adora, então sei que ela não vai se impor, e mesmo se fizesse isso, eu não ligo. Já somos grandinhos pra precisar da aprovação de alguém. – Falou o menino rebelde – rimos. Naquela noite minha mãe e minha irmã me esperavam com uma janta de garotas. Meu tipo favorito de esfirras, com direito a bolo de brigadeiro de sobremesa. Durante o jantar acabei dizendo a elas que eu e Dimitri havíamos oficializado o namoro, mas que só esperaríamos uma melhora de Miriam, que estava muito doente, para contar para todo mundo. Minha mãe pensava diferente, achava que como sua amiga gostava muito de mim, essa notícia deveria alegrá-la e quem sabe, não ajudasse na recuperação. Fui dormir, com essa ideia em mente. Leve e feliz de uma maneira incrível. No dia seguinte, Dimitri foi me ver na saída do trabalho outra vez. Seu emprego era no centro da cidade, e ele ia de metrô me encontrar. Jantamos em um lugar diferente, mas não nos demoramos muito, tanto por minha mãe pedir para que eu não demorasse, como por Miriam, que estava realmente mal e com febre. Fiquei muito triste e preocupada. E claro que Dimitri ainda não havia contado nada sobre nós. Na quarta-feira pela manhã eu pensava em dizer ao Dimitri o que conversara com minha mãe, e a ideia de contar para Miriam sobre nosso namoro o quanto antes, porém, no horário do almoço ele ligou para a galeria, avisando que levaria sua mãe ao hospital para fazer vários exames. Dias de Chuva |

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Ao final do dia ela ficou internada, pois tinha aquele tipo de mal que médico algum consegue descobrir o que é. No dia seguinte ela voltou para casa e fui visitá-la a seu pedido. Quando cheguei, a feição de Dimitri era de puro cansaço e preocupação. Demos um beijo e entrei. – Ela está acordada, te esperando... E Ju, eu não contei nada ainda... – Tudo bem, Dimi. Eu entendo – falei, sem ter certeza se eu entendia mesmo o motivo dele estar escondendo algo tão simples e bonito. Por toda a casa senti um cheiro estranho, como de alguma planta de aroma forte e incômodo. Estranhei, pois, para além da cozinha e do jardim dos fundos, não era costume que sua casa cheirasse a qualquer erva. Já havia anoitecido e Dimitri foi fazer o jantar enquanto eu subi para o quarto de sua mãe. Miriam, além da dor no peito, estava triste, deitada de lado com o rosto para a parede. Fiquei alguns segundos, de pé na porta, imaginando se eu deveria entrar ou não já que senti o coração disparar assim que a vi, feito um mau presságio. – Ah, Júlia… – ela disse virando-se na cama. – Ontem eu recebi uma visita. Uma péssima visita... por que você mentiu pra mim? – Eu menti? – perguntei baixo, com medo de falar qualquer coisa, e ainda sem entender sua fala. – Mentiu, querida. Quando eu perguntei se meu filho estava bem, você mentiu para mim. Não me contou que o pai de Dimitri havia reaparecido. – Mas... Miriam, isso faz tanto tempo. – A sua fala me desconcertava. O que eu fiz era tão grave? – Dimitri me disse que ele havia sumido outra vez. Não sabia como algumas cartas e poucos telefonemas poderiam ser tão ruins. – Eu estava confusa e não entendia o motivo de ser algo tão grave. – Ele só queria conhecer melhor o pai. – Mas agora é tarde. – Sua voz era fraca e ela parecia ignorar o que eu dizia. – Você deveria ter me contado. Eu estaria um pouco mais preparada. – Ela respirava com tanta dificuldade que até meu peito doía. – Venha cá – ela me chamou para junto de si. Receosa, sentei ao seu lado. Ela colocou sua mão fraca sobre a minha e tentou sorrir. – Eu não te culpo. Só me diga. Há mais alguma coisa que você me esconde? – Eu... eu amo o Dimitri, Miriam. – Eu sabia que não deveria contar, mas não aguentava. Como algo tão lindo que nos deixava tão felizes seria ruim? Ela desviou o olhar para a parede.

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– Eu deveria ter previsto isso, não é? Pode ir agora querida. Eu entendo tudo. Levantei e sai de seu quarto um pouco decepcionada. Eu queria muito que Miriam ficasse feliz por minha relação com seu filho. Naquela situação, com sua expressão tão séria, cheguei a crer que ela me achava indigna dele. Depois de descer as escadas, dei um forte abraço em meu amor e fiquei na sala, sentada, esperando que ele levasse a janta para sua mãe. Depois de quase meia hora, Dimi desceu se desculpando pela demora. Soltou o prato já vazio com a colher na mesinha ao lado do sofá, e me abraçou. – Ela está muito estranha, Ju. – Eu o soltei e demos as mãos. – Mesmo doente, está estranha. Ela me disse que você contou o que sente por mim. – Desculpe, Dimi. Não foi por mal. – Você fez bem. Eu disse que te amo. E a reação dela foi tão esquisita. Ela disse que você seria a melhor pessoa que eu poderia escolher pra ficar comigo. Mas que sente muito e não acredita que possamos ficar juntos. Se não estivesse tão doente, acho que eu gritaria com ela. – Dimitri baixou o olhar. Estava indignado e confuso. – Justo agora que eu achei que ela ficaria boa. Faz anos que eu não a vejo assim. – Olha, Dimi, eu não sei por que sua mãe está tão preocupada com a nossa relação – falei. – Mas eu estou do seu lado e vou estar com você nessa fase difícil. Então, quando ela ficar boa, vai perceber que esse medo de ficarmos juntos terá sido uma grande bobagem. Ele me olhou forçando um sorriso. – Você tem razão, Ju. Obrigado. Nós ficamos um pouco juntos, mas não havia clima algum. O ambiente tenso em nada se assemelhava com a sala acolhedora e convidativa de há menos de uma semana quando nos entregamos pela primeira vez. Dimitri convidou-me para jantar, mas eu precisava ir embora. Tinha prova no colégio no dia seguinte. No portão, onde nos despedimos, perguntei sobre seu pai. – Ela me disse que ele veio visitar vocês. – É verdade. – Ele parecia distante e preocupado. – Eu acabei nem comentando com você. Ele veio quando eu estava no trabalho. Foi a amiga da minha mãe que o recebeu. Acho que isso a fez ficar nervosa também... – Dimitri esboçou um sorriso amarelo. – Ele nem esperou pra me ver... Acho que fiquei decepcionado com isso também. – Ele me abraçou. – Mas é tanta coisa na minha cabeça sabe... Só tem você de bom na minha vida. – Não fala assim, Dimi. Dias de Chuva |

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– É verdade. Você sabe que eu preciso entrar na faculdade de qualquer jeito paruano6... – Mas você é inteligente, vai passar na que você quiser. – Eu sei... bom, eu acho que passo. Mas se tiver que estudar o dia todo, como vou ajudar aqui em casa? A previdência da minha mãe não vai dar pra nada... – Olha, uma coisa de cada vez certo? – falei, acariciando seu rosto. – É amanhã que sua mãe tem retorno no hospital? – É sim. – Então amanhã virá uma solução. Com os exames prontos, dessa vez, vão saber o que ela tem. Tudo começará a melhorar. Nos abraçamos e ficamos nos beijando por um tempo. Eram beijos apaixonados, porém tristes. Havia tanta tensão em Dimitri, que ele me abraçava forte como se a qualquer momento eu fosse escapar de seus braços. Já eu pensava que faria o que precisasse para vê-lo feliz. Fui embora pensativa, com o coração apertado e o gosto do beijo dele que eu tanto amava. Mas havia algo mais ali, me incomodando. Senti um calafrio na espinha. Não era tão tarde e não costumava sentir medo. Já havia deixado a casa da Miriam em horários muito piores. As ruas quase não tinham movimento e só um grupo ou outro de jovens passava por mim. O tempo virava e provavelmente choveria nos próximos dias. O Ovo do Dragão parecia pesar e queimar. Meu pescoço endureceu e senti o coração disparar. O vento soprou mais forte, fazendo minha saia comprida balançar com força, e os cabelos atrapalharem a visão. Foi quando, através das grades de cimento do extenso muro de uma escola, percebi um grande vulto correndo. Quando olhei com cuidado não havia nada. Nada que eu pudesse ver. Desde que ficara sabendo dos domuns, de bruxas e da minha própria existência como possível feiticeira, acreditava que qualquer criatura pudesse existir. Resolvi apressar o passo, quando, além dos muros da escola, atrás de algumas árvores que circundavam a quadra, vi outra vez o vulto. Se fosse humano era mais alto que qualquer pessoa que eu conhecesse. Era muito grande e apressava o passo como eu. Resolvi correr. Uma sensação ruim dizia que só estaria segura no metrô, mas acho que era o pensamento paulistano falando mais alto, pois se alguma criatura, algum dia, quisesse um encontro comigo, seria inevitável. Só me senti aliviada quando cheguei à rua das lojas bem perto da estação. Sentia que, seja lá o que ou quem fosse, não queria ser visto por um punhado de gente. Resolvi não pensar no que era. Tinha assuntos demais para me preocupar. 6

O mesmo que “para o ano que vêm” no sotaque soteropolitano.

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No dia seguinte, Dimitri levou Miriam ao hospital. Pouco depois das dez horas, ele me ligou de um orelhão para dizer que Miriam ficaria internada pelo menos aquela noite, pois os exames se mostraram inconclusivos e assim que tivesse notícias me ligaria. As horas seguintes foram péssimas. Passei o dia sem produzir quase nada e me revirei na cama a maior parte da noite. Chegando a madrugada li e reli meus cadernos de feitiços buscando algo que pudesse ajudar Miriam, mas desisti. Se existisse um feitiço para sua cura, ela já teria feito há muito tempo. Peguei no sono pouco depois de amanhecer, junto com a queda de temperatura vinda da madrugada. Era sábado e o dia foi um arrastar completo. Todos ficamos em casa, aproveitando a baixa de temperatura, garoas e chuvas esporádicas. Era por volta das dezesseis horas, e a chuva caia muito forte, quando ouvi meu nome aos gritos no portão, e logo depois a campainha. Reconheci a voz de Dimitri e saí correndo na chuva. Meu pai tentou me impedir, e ir em meu lugar, mas fui mais rápida. Coloquei a chave no portão com as mãos trêmulas, e quando abri, Dimitri se agarrou no meu pescoço chorando. Minha mãe foi nos buscar com um guarda-chuva, e meu irmão logo depois trancou o portão. A primeira leva de perguntas foi se algo havia acontecido com Miriam. – Não, nada mudou na verdade. Ela deve ficar mais alguns dias internada. O caso dela está sendo acompanhado de um psiquiatra. Acham que pode ser algum tipo de histeria que a faz piorar. Mas eu não acredito nisso. – Dimitri estava em total desalento. – Eu nem sei em que acreditar... – Mas isso parece absurdo! – disse minha mãe. – Nunca conheci pessoa mais sã do que a Miriam. – Mãe, por favor – repreendi. Um show da parte dela não ajudaria em nada. – Olha, rapaz – disse meu pai –, você precisa se acalmar. Vamos apoiar você e sua mãe no que precisar. Mas você não pode sair assim, na chuva, desesperado. – Desculpe, senhor... eu não pretendia incomodar. Eu apenas, precisava muito ver alguém. – Ele segurou minha mão. – E preciso... preciso falar com você, Ju. Meu pai, que sabia de nossa amizade e nada mais, estranhou a relação, mas minha mãe foi rápida e tomou a frente da situação. – Venha, Pedro. Meninos, deixem os dois conversarem... Se preferir, Ju, subam para o ateliê, ou seu quarto. Estaremos na cozinha. Dias de Chuva |

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Fomos para o meu quarto. Encostei a porta antes de falar. – Você está me assustando, Dimi. Ele me abraçou e voltou a chorar, mesmo tentando segurar as lágrimas. – Eu tenho que ir embora, Ju. Não tenho escolha. – Fiquei muda. Ele chorava. – Os médicos acham mesmo que minha mãe está com problemas mentais, e acham que eu não posso cuidar sozinho dela. Ela terá de largar todas as preocupações, terá de largar o pouco que faz na ONG, e provavelmente eles vão perder os incentivos. – Eu... eu não entendo. – E aí, eu não quis te contar – ele enxugava as lágrimas –, mas fui aceito na Federal de Salvador. Eu já havia desistido de ir pra lá. Aí apareceu meu pai. Ele diz que vai me ajudar, que vai bancar a gente, mas só se eu for estudar, e se voltar com minha mãe pra casa dos meus avós, lá meu tio e minha família podem me ajudar a olhá-la... Ele disse isso ao psiquiatra. O médico falou que se existe uma maneira da minha mãe se curar, é indo embora pra ela descansar. Eu não acredito que isso está acontecendo, Ju. Perdi o chão e as palavras. – Ju, eu nunca vi minha mãe assim. Tão fraca... tão frágil. E ela diz coisas estranhas. Tudo parece culminar pra um problema emocional, psicológico, sei lá como dizem... Ela está sendo medicada agora. Eu ia pra casa tomar banho e pegar umas roupas pra ela, mas como sua casa estava no meio do caminho... acabei vindo pra cá. Fiquei em choque. Eu queria gritar, berrar dizendo que ele não deveria ir embora. Não naquele momento, depois de eu tê-lo esperado tanto. Aquilo não poderia estar acontecendo. Mas eu sabia que não era tão simples. A mãe dele, umas das pessoas mais importantes da minha vida, inclusive, estava gravemente doente, e se algo pudesse fazer com que ela melhorasse, deveríamos tentar. Eu não podia ser egoísta e pensar apenas em mim. Seu pai também havia retornado, e quem sabe fosse o modo dele ter a reaproximação que tanto esperou, além é claro, da possibilidade de estudar onde sempre sonhou. Estávamos sentados na beirada da cama. Ele esfregava as mãos, e tinha os olhos fixos no chão. Eu nunca me senti tão pequena e incapaz. Achei que deveria segurar minhas lágrimas também, mas não pude. Tentei apenas não me desesperar. Nos abraçamos e deixamos que o tempo corresse. Não sei quanto tempo passou de fato, quando minha mãe entrou no quarto depois de dar batidas leves na porta. – Meninos, venham comer alguma coisa.

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Dimitri se levantou. – Desculpe, dona Rafaela, eu preciso ir pra casa e pegar algumas roupas pra minha mãe. Já estou atrasado. – Sem desculpas, Dimitri. Vocês vão comer e depois eu levo você até sua casa e voltamos ao hospital. – Não precisa, dona Rafaela – ele falava enxugando as lágrimas. – Precisa sim. Você parece não ter comido nada. Eu já adiantei o jantar. – Olhei pela janela, a chuva voltara a ser garoa, e o sol se punha. – A Miriam é uma das poucas amigas que tenho nessa vida. Não será nenhum incomodo para mim. A julgar pela cara de meu pai e meu irmão quando chegamos à cozinha de mãos dadas, imaginei que minha mãe houvesse contado sobre Dimitri e eu. Sentamos à mesa e o silêncio reinava. Dimitri não mexera na comida. Eu que estava ao seu lado coloquei minha mão sobre a dele e pedi que ele comesse. Ele tentou um pequeno sorriso, e comeu poucas garfadas. – Filho – disse meu pai a Dimitri, pois chamava assim qualquer jovem por quem tinha algum apreço, ou se precisava de muita atenção –, sua mãe vai ficar boa. Mas se você não se cuidar, não vai poder cuidar dela. – O senhor tem razão – Dimitri falava ainda de cabeça baixa. – Então você precisa tentar se animar. – Pai – interrompi –, eles terão de voltar pra Salvador. Os copos que estavam sendo levados aos lábios, assim como os talheres, no mesmo instante voltaram à mesa. Depois, até acreditei ouvir a notícia sendo engolida em seco. O restante da refeição foi feita em silêncio. Durante a madrugada e sem conseguir dormir, levantei-me para buscar um copo de água, e na penumbra, encontrei minha mãe sentada à mesa, tendo a sua frente também um copo, porém, já vazio. Nós trocamos um olhar cumplice e sentei-me ao seu lado. Ela chorou e meu egoísmo ficou latente. – Míriam ficará bem, mãe – disse enquanto a abraçava. – Acho – falou ela abraçando-me também, – que eu deveria ter passado mais tempo com ela. Depois um tempo, nos soltamos e nos demos as mãos sobre a mesa, permanecendo em silêncio, talvez orando em pensamento, talvez apenas sofrendo, mas sem dúvida, desejando que Míriam melhorasse. /// Dias de Chuva |

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Duas semanas se passaram mais velozes que o bater das asas de um beija-flor. Foram compradas as passagens de avião, malas foram feitas e a alta hospitalar concedida. Tudo resolvido com presteza por Dimitri e seu pai. Móveis e os demais pertences ficariam na casa aos cuidados da amiga de Miriam. Eu tentei acompanhar Dimitri em tudo que era possível depois do trabalho, e de noite, em casa, chorava escondida. Uma dor maior do que qualquer outra que eu havia sentido: inconformidade, raiva, desespero. No auge da revolta, chegava a cogitar ir embora com ele, e se não fosse a certeza do “não” que receberia de meus pais, teria levado a ideia a diante. Eu precisava dele, tão forte quanto precisava de água e ar, mas em todos aqueles dias, pela manhã, eu escondia o choro e a dor, pois outra pessoa, que eu também amava, precisava dele muito mais do que eu. Na noite antes da ida de Dimitri e Miriam para Salvador resolvi que dormiria na casa deles. Meus pais não questionavam isso antes do meu curto namoro, mas naquele momento foi motivo suficiente para uma tempestade. Eu não me importava. Entendi as preocupações deles, e eles temiam, de uma forma comum como todos os pais, pela minha virgindade. Mal sabiam. O único que me entendia plenamente era Leonardo que, já sabendo de tudo, foi em minha defesa. Ele disse que eu era muito próxima a Miriam, e eles deveriam entender isso. E se, caso fosse ele a ter de se despedir da namorada, meus pais nem questionariam e o deixariam ir. “Isso é machismo!”, ele dizia, e apesar da pequena comoção, se mantiveram irredutíveis. Eu os deixei falar. Peguei minha mochila e saí. Fiquei bastante tempo com Miriam, que era uma confusão de sentimentos. Estava feliz por voltar para Salvador, mesmo não querendo deixar São Paulo, pois aquela fora de fato sua morada durante muitos anos. Em seu olhar percebia certo temor que ela disfarçava com pouco sucesso. Inquiri se algo grave a preocupava, mas ela preferiu não entrar em detalhes, passando a falar que nunca tinha ficado chateada comigo devido à minha relação com Dimitri, que me amava muito e, em outras circunstâncias, nosso namoro seria o maior presente que o universo poderia dar a ela. Por volta das oito da noite ela já estava bem cansada e a deixei sozinha, depois de a abraçar com força. Eu perderia duas pessoas que amava de uma única vez e ainda não sabia como lidaria com isso. No quarto, Dimitri terminava de fechar uma mala. Entrei encostando a porta atrás de mim, e quando ele me olhou com o canto dos olhos, percebi que estava bravo comigo. Busquei abraçá-lo, mas ele tirou meus braços do seu entorno. – Júlia – ele disse sério –, tem uma coisa me incomodando.

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– Além de toda essa mudança? – tentei brincar, pois sabia que assim que ele partisse eu entraria no fundo no poço, mas aquela não seria a hora, eu precisava ser forte. – Você não me disse nada sobre minha partida... – Como assim? – Eu não entendia o que o tinha chateado. – Que você nem mesmo me pediu pra ficar – ele disse, sentando-se na cama. Meu coração doeu. Como ele poderia achar que, depois de tanto tempo, eu estava bem com a sua partida? – Dimi. – Respirei fundo e fiquei de joelhos sobre a cama. Segurando seu rosto obriguei-o a olhar direto nos meus olhos. – Você ficaria se eu te pedisse? – Ele não respondeu. – Ficaria? – insisti, e ele continuo calado. – Percebe? A escolha não é sua. Ao menos não é tão fácil. Tudo o que eu realmente queria é que você ficasse aqui, comigo. Mas todas as oportunidades do seu futuro, o reencontro com seu pai, a saúde de sua mãe, dependem da sua ida para Salvador. Como eu pediria que você ficasse? Como eu seria tão egoísta assim. Se você dúvida disso, não duvide mais. Eu te amo, e você sabe há quanto tempo. Se eu pudesse gritaria, berraria para que você ficasse aqui. Pra gente viver essa história. A nossa história! Mas eu não posso ser essa péssima pessoa e dificultar as coisas pra você ainda mais. Ele me abraçou e senti algumas lágrimas banharem seu rosto. – Obrigado por esse amor todo, Ju. Naquela noite fizemos amor com o mesmo tanto de desejo que em nossa primeira e até então, única vez. Depois adormecemos num abraço apertado só para ter a sensação de que, se ficássemos ali, o dia da partida nunca chegaria. Mas chegou. E ele se foi. Eles se foram, deixando comigo apenas o cheiro de um, e os ensinamentos da outra, para fazer parecer um pouco menor o enorme buraco que ficava em minha vida.

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Capít ulo 12

Um adendo de tranquilidade

A bronca dos meus pais não tardou a passar. Mas a dor em mim era tremenda. Apaixonada e sem conseguir esquecer, chorava todas as noites com saudade. Nos falávamos todos os fins de semana por telefone e Miriam parecia melhorar. Mas como é a ciência do tempo e da distância, os horários de nossas ligações começavam a não mais se alinhar. O contato ia se perdendo, mas a saudade ainda martelava. Passados três meses eu ainda estava desamparada e sem ânimo algum, então meus pais resolveram fazer algo que me tirasse daquela letargia. Construíram no fundo de nosso quintal um pequeno quarto todo de madeira para ser meu ateliê. Era parecido com um chalé, e fora ocupado com um sofá confortável, tintas, telas e livros. Uma ideia antiga que tive assim que nos mudamos, mas que, tendo em vista o quarto que sobrara dentro da casa já construída, fora deixada de lado. Não achei, naquele primeiro momento, que aquilo pudesse me alegrar. E também achava meio cretina a ideia de me confortar com algo material, porém, quando ele ficou pronto, algo muito maior nasceu em mim. O pequeno quarto tinha uma ótima incidência do sol, servindo de luz natural. E pela primeira vez minha mãe posou para mim, depois minha irmã, e até meu irmão e sua namorada. Eu me apeguei a minha família do modo que nunca imaginei. O que também acontecera nesse período é que Audrick começou a me mandar cartas seguidas, talvez, a cada quinze dias, perguntando-me, insistente, como eu estava. Eu não dizia nada sobre Dimitri, é claro, nem sobre Miriam. Justamente nesse tempo da minha vida, eu não queria saber mais de feitiços, doía demais fazê-los ou estudar, ou ouvir meu dom do modo que fosse. Eu queria ficar em paz, sem pensar nas loucuras e nos problemas. Por outro lado, eu tinha boa parte das minhas respostas sobre o misterioso cuidador, e depois de ter visitado as sete guardiãs, eu já não temia quase nada, ao menos, não temia mais Audrick.

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Suas cartas, assim, acabaram por me confortar. Eu tinha alguém. Conforme o sumiço de Dimitri, eu também mudei coisas na minha vida. Entrei na faculdade no ano seguinte, já com dezoito anos, pois precisava manter minha mente ocupada para esquecê-lo. Fiz novas amizades e meu jeito esquisito e sem graça do colégio, na faculdade de arte era considerado culto. Esforcei-me ainda mais nos estudos de línguas e assumi o lado CDF de vez. Menos nos shows de heavy metal para os quais Gabriela me arrastava. Tive alguns namoricos, todos curtos, não passavam de um mês, pois nenhum me despertava o interesse para me manter envolvida. Três anos se passaram e na ânsia de esquecer meu primeiro amor eu me apegava às cartas quinzenais de Audrick, onde ele mandava fotos e pedia algumas minhas, que eu feliz, enviava.

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Capít ulo 13

Laços de volúpia e casta

O tempo é vago, incrivelmente disperso e dono de sua razão. Os ponteiros do relógio se dilatam, os dias se apressam e o passar dos anos não parece demorar o quanto realmente deveria. Ele perpetua apenas o que deseja, enterra o que acha conveniente e ressuscita a fênix que escolhe a seu bel-prazer. Deveria ser só mais uma carta que chegava perguntando de nossa saúde e contando as novidades. Abri sem me prevenir e fiquei um bom tempo olhando o papel repleto da caligrafia desenhada de Audrick, sem saber o que pensar sobre aquela frase: “Estarei de volta muito em breve.” A data de retorno estava marcada logo em seguida. Minha família se alegrou bastante com a notícia, mas confesso que custei um pouco para me acostumar com a ideia. Tanta coisa havia acontecido... Audrick não tinha o direito de ir e vir de nossas vidas mesmo que ele fosse uma espécie de monstro, porém ele também não tinha nenhuma obrigação de ficar. Mas algo me incomodava agora, eu não era a mesma Júlia. Primeiro eu havia mudado por ele, e depois para entendê-lo. Mas acabei deixando tudo de lado para respirar aliviada durante um tempo e talvez enfim eu tivesse minhas respostas. A verdade que eu já não poderia mais esconder era que nunca eu consegui viver sem a sua presença, fosse pelas cartas, fosse pelo Ovo do Dragão, ou sua foto mais recente, que eu passara a deixar na primeira gaveta do criado mudo. Audrick, como homem, era diferente de todos que eu conheci, e naquela idade não podia mais negar o quanto ele me fascinava. Os traços da idade já haviam ganhado as faces de meus pais. Luana, com 14 anos, tornou-se uma garota linda de olhos iluminados cheios de vida. Leo era um homem de cabelos na altura do queixo, barba malfeita e corpo esguio. Eu, com 21 anos, prestes a me formar na faculdade, não era mais uma menina, e sabia que receber Audrick não seria como antes.

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A família se reuniu mais uma vez, a casa estava perfumada e limpa como nunca. O cheiro de carne assada ainda não era notado. Todos nos vestimos para a ocasião e eu, mesmo achando a cena bastante patética, faria meu papel, usando meu vestido azul e brincos no formato de gotas, um artefato que nunca havia usado, mas muito necessário no momento. Leonardo foi recebê-lo no portão e pude ouvir seus cumprimentos. – E não é que você se tornou realmente um homem, seu pirralho! – A voz embalada na risada fácil de Audrick se mostrava contente. – Eu não acredito! – disse meu irmão com a mesma alegria. – Agora já posso te dar uma bela surra se eu quiser. E nossa! Você também mudou. E na ironia típica a amigos homens, com tapinhas e leves socos, a felicidade começava a se aproximar. Minhas mãos suavam frio e os joelhos tremiam enquanto eu aguardava sentada a entrada deles. Meu pai foi o próximo a abraçá-lo, em seguida minha mãe e depois Luana, a quem ele dedicou além do abraço, um cafuné. Eu havia me levantado, mas esperei que ele terminasse os cumprimentos para me aproximar. Nossos olhares se sustentaram por um instante. Ele realmente havia mudado. Seu cabelo estava no meio das costas, exceto pela franja que parava no queixo. Sua barba estava por fazer, e nos olhos, umas poucas rugas de expressão surgiram. “Domuns podem envelhecer, se quiserem”, pensei tranquila, graças aos brincos enfeitiçados para bloquear a leitura de mente. Feitiço que duraria o suficiente para me manter em paz durante o jantar. Ele fechou o sorriso quando percebeu o bloqueio, mas nada que durasse mais do que um segundo, e se aproximou. Trocamos um forte abraço e o cheiro que eu quase havia esquecido me inebriou, criando uma química incrível de receios, cuidado, medo e desejo. Eu me esquecera de que Audrick era um homem incrível. A noite toda eu tentei não pensar nele daquele jeito, não me perder namorando seus gestos, seu cabelo caindo despreocupado ou seu riso contagiante. Depois do jantar resolvi mostrar meu novo ateliê, ou “o pequeno casebre” como o chamávamos, o que era apenas um modo de ficarmos sozinhos. As primeiras palavras foram vagas. “Muito bonito”, ele dizia, “tiveram bom gosto” e ele dava de ombros. Fiquei quieta, só concordando com um aceno de cabeça, até termos certeza de quem ninguém na casa viria atrás de nós. Ele me encarou sério, recostou-se em uma bancada, e de braços cruzados enfrentou-me: – Você não gosta de brincos... Dias de Chuva |

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Eu achei que o enfrentaria do mesmo modo. Fecharia a expressão e aos poucos tiraria dele respostas, antes de dizer o que eu fiz e vivi. Mas não pude. – Audrick – respirei fundo e me aproximei dele –, há tantas coisas que você nem deve saber. Mas acho que só existe uma maneira disso ser feito. – Olhei para ele e tentei sorrir. Coloquei minhas mãos sobre seus braços cruzados, como um sinal de paz e confiança entre nós. – Você pode ler minha mente, não pode? Ele pareceu incomodado. – Você sabe que sim – ele disse isso erguendo uma das sobrancelhas. – E se eu... – ponderei um instante, mas não mudei de ideia – se eu tirar esses brincos e pensar em tudo que vivi esse tempo todo, você poderia entender de uma única vez? Todas as lembranças estão aqui muito frescas... Ele pareceu ainda mais desconfiado. Mas não disse nada. Eu continuei. – Nessas últimas horas pude pensar bem. Não quero segredos com você... mesmo sendo perigoso. – E então deixei minha doçura de lado e concluí séria. – Só espero que você finalmente deixe de esconder suas verdades de mim e me tire do escuro. É uma troca justa. Eu havia pensado muito sobre aquilo. Não queria viver de mentiras, seria impossível. Sempre fora sincera com ele, mesmo nos momentos mais difíceis em que minha confiança foi abalada e assim continuaria. Eu não entraria em jogos de “quem pode mais”. – Tudo bem, Júlia – ele falou sério. – É sim uma troca justa. – Ele esboçou um pequeno sorriso, não sabia naquele momento, se de contentamento, alegria ou sarcasmo. Levei minhas mãos aos brincos. Fechei os olhos, e tentei lembrar-me de tudo. Eu me tornaria um livro aberto e devia ser essa a única forma possível de continuar aquela relação. E se a fera que habitava dentro dele tomasse lugar e me matasse ali mesmo, ao menos, eu haveria tentado do modo mais correto que poderia imaginar. Sem máscaras, sem mentiras, sem apreensão. Tirei as joias das orelhas e de olhos fechados soltei o ar que prendera sem me dar conta. Uma forte luz parecia surgir sob minhas pálpebras. Senti náuseas e uma dor insuportável na testa e ao lado dos olhos, minhas pernas enfraqueceram e senti minha nuca pesar. Cada rosto, cada sensação dos últimos anos passava por mim: Audrick na biblioteca cuspindo sangue, Miriam e suas poções, Dimitri, a solidão, e as cartas de meu cuidador misterioso. Memórias que não só lembrei, mas senti outra vez.

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Levei as mãos à cabeça ainda de olhos fechados, e já sem aguentar a dor, cai de joelhos, sendo amparada por Audrick. Aos poucos a dor diminuía e, aliviada, eu chorei. Estive tão cansada e finalmente não tinha mais segredos. Ainda de olhos fechados senti o calor dele, que deitou minha cabeça em seu peito e afagou meus cabelos enquanto sua voz mais terna chegava aos meus ouvidos. – Vai ficar tudo bem, minha Júlia. Eu entendo tudo. – Ele ajeitou-me mais perto de si. – Você sempre me deixando orgulhoso. Vai ficar tudo bem. E eu, agarrada a ele, chorei tanto que adormeci, tendo como leito em parte o assoalho de madeira e em parte aquele colo quente. Despertei espreguiçando, dando conta, aos poucos, de onde estava. Audrick afagava meu cabelo e bochecha. Sorrimos um para o outro e resolvemos que era hora de entrar. Luana havia adormecido no colo de minha mãe, ainda no sofá e Leo e meu pai preparavam alguns aperitivos para acompanhar o vinho que Audrick trouxera (o único tipo de bebida alcoólica que meu pai consumia). – Já estávamos indo chamá-los – disse Leo. Olhei no relógio de parede e constatei que não havia passado mais do que uma hora. Meus pais, Leo e eu ficamos um bom tempo ainda conversando com Audrick. Era madrugada quando nos despedimos e eu o levei até o portão. Demos um forte e demorado abraço. Agora ele sabia de tudo, não estava zangado com qualquer coisa que eu descobri e me sentia leve. – Júlia – ele falou depois de me abraçar –, durma tranquila, amanhã vamos passear um pouco. Temos muito que conversar. Prometo que contarei tudo. – Ele juntou minha testa com a dele. – Tudo mesmo! Eu concordei com um aceno de cabeça e um sorriso. No entardecer do outro dia, um belo sábado de fim de janeiro, ele chegou para me buscar. Fomos em seu carro até um dos principais parques da cidade de São Paulo, onde é comum casais irem namorar assim que a noite cai. Estacionamos na vaga mais afastada que encontramos. Andamos um pouco, em silêncio, olhando as árvores e o pôr do sol. – Júlia – ele começou a dizer sem que parássemos de caminhar –, não acho que Miriam deveria ter feito o que fez. Mas fico contente por tê-la acolhido. Por outro lado, conhecendo sua teimosia, sei que não iria mesmo esperar meu retorno para esclarecer tanta coisa. – Ainda bem que você entende, Audrick. Mas eu aprendi muito mais com ela do que imaginei. Dias de Chuva |

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Passamos por um banco parcialmente encoberto por algumas árvores. A iluminação artificial era pouca e permitia uma boa visão da lua cheia e das estrelas. – E de tudo que eu vi que você aprendeu e conheceu, será mais fácil revelar algumas coisas sobre mim e sobre os domuns. Minhas mãos suaram frio e tive de esfregá-las na calça jeans para me livrar da sensação ruim. Eu olhava para Audrick, ansiosa. Ele passou as mãos na franja e a colocou para trás da orelha. Sorriu de canto. – Eu tenho um pouco mais de quinhentos anos, Júlia. A sua fala não poderia ter começado de um modo mais estranho. Eu abri a boca e pensei em exclamar minha surpresa. Porém, prometera a mim que nada mais me soaria impossível, não depois de tudo que eu já havia visto. Engoli a informação bastante indigesta. – Ok! – disse suando frio ainda mais. – Continue. Ele sorriu para mim mais um pouco. Então desviou seu olhar para o céu, e voltou a falar. – Eu vi mais dor, sofrimento e podridão do que você pode imaginar, e me revoltei. Descobri uma raiva em mim que não conhecia. – Ele tornou a me olhar, agora sério. – Então eu conheci Vânia Rachmanninoff, aquele que trato como tio. – Arregalei os olhos. Não gostava de me lembrar daquele homem e Audrick percebeu isso no mesmo instante. – Ele já era um domum e me escolheu para ser seu aprendiz. – Audrick parou de falar por um instante e voltou a olhar o céu, perdendo-se nas suas memórias. – Eu fui um homem horrível, cruel, sádico. – Não posso acreditar! – falei assustada, sem conseguir conter as revelações. – Sim. – Ele me encarou. – Não tenho vergonha em contar, Júlia. Fiz todo tipo de atrocidades, tornei-me um domum como Vânia, e durante muito tempo eu fui uma criatura muito mais do que um homem. – Ele respirou e soltou o ar demoradamente. – Porém, com os muitos anos que vivi, as coisas começaram a mudar outra vez... Ele fez uma pausa e eu o incentivei a continuar. – Mudou como? – Audrick me olhava, inseguro como eu nunca tinha visto. – Você pode me dizer qualquer coisa – falei colocando minha mão sobre a coxa dele. Ele sorriu para mim e acariciou meu rosto por um instante, antes de segurar minha mão. – Nada mais fazia sentido. A vida eterna, a crueldade com que agíamos, a riqueza, e eu passei a me sentir sozinho... insuportavelmente sozinho.

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– Mas você continuava ao lado de Vânia... – falei um pouco chateada lembrando-me do dia em que nos conhecemos. – Continuei sim, como seu pupilo. Isso parecia o correto a se fazer. Mas passava tempos afastado, e depois retornava. A mudança não foi um corte, e nem poderia ser. Os domuns têm ligações eternas, Júlia. Quer queiram ou não. E Vânia era apenas isso, um tipo de mestre que eu ora seguia, e ora não, concordando cada vez menos com o modo que ele agia. Mas não é isso o que mais importa agora, e sim o que eu passei a sentir. – E aquela fera? – eu o interrompi, pois entendia a importância de seus sentimentos, mas ele não estava respondendo minhas questões. Eram divagações apenas, sem ir a lugar algum – Aquela em que você se transformou, Audrick? Eu preciso saber... Ele chacoalhou a cabeça, afirmando, entendendo minha angústia. – Todos os domuns deixam de ser completamente humanos. Existe uma fera dentro de nós que é a fonte de nosso poder, e às vezes essa fera escapa. – Como assim... que tipo de fera? E-e-e então você sai matando gente por aí? – Eram tantas perguntas, que eu sentia dificuldade em me manter calma. – Essa fera é como um espectro, um fantasma. Ela não tem corpo físico, mas tem muito poder e vive dentro de nós, e precisamos alimentá-la de vez em quando, assim como em algumas religiões, as pessoas fazem oferendas a divindades e santos. Se essa fera não se sentir agraciada, ela pode moldar nosso corpo, e fica difícil manter o controle. Outras vezes, quando fazemos essa oferenda, elas ficam fortes por algumas horas, e acabam se revelando no nosso corpo. Foi isso que você viu naquele dia. – Com que frequência isso acontece? – Aquele dia foi uma grande falha que quase nunca acontece – ele enfatizou as duas palavras, como um aviso e segurou minhas mãos cruzadas sobre meu colo. – Mas o que realmente importa, foi a noite em que te conheci. Quando você ainda era uma criança. O olhar terno e o toque de Audrick eram quentes e reconfortantes. Estava assustada com as revelações, mas contente por ele tentar me esclarecer tudo. – Miriam disse que você viu algo em mim... – falei, mordendo o lábio, entre a apreensão e um calor que nascia em meu peito. – Eu vi e ainda vejo. Eu tenho um dom, Júlia. Uma capacidade que não tem nenhuma ligação com o domum que me tornei. Eu sempre consegui perceber nas pessoas aquilo de mais primitivo, mais natural, como a aura de cada Dias de Chuva |

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uma delas. A sua é repleta de força, Júlia. E quando olhei nos seus olhos e li sua mente, você me acertou em cheio. – O semblante de Audrick se iluminou, como uma criança que realiza um sonho. – Eu sabia que você seria uma pessoa muito especial. Só precisava de oportunidades. Então resolvi intervir por sua família para alcançar você. E quanto mais eu a conhecia, mais eu via que estava certo. Cuidar de você era o que aplacava minha solidão. E aquele grande vazio ia sendo preenchido. As palavras de Audrick traziam uma simplicidade que me encantava, mas era difícil acreditar. Um ser tão poderoso, com necessidades tão simples e humanas? – Então por que você ficou tanto tempo longe? – Essa era outra grande dúvida. – Por que ir e vir de nossas vidas? Da minha vida? Eu olhava nos seus olhos. Cinzas, ofuscantes, profundos como um lago onde eu queria mergulhar para entender. – A vida é como uma flor, Júlia. Você precisa regá-la, mas não pode sufocá-la. – Ele passou as costas de suas mãos no meu rosto, e depois o dedo indicador em meus lábios. – Você precisava e merecia estar com sua família. Também queria que entendesse que eu não era parte dela. Lembra? Eu disse isso no hospital. Eu não queria que você me visse como um segundo pai, ou um irmão. Seu olhar enfrentou o meu por alguns segundos arrasadores, deixando-me inquieta e acuada. Então se afastou um pouco e levou os braços para trás da cabeça, apoiando-a e, folgado, recostou-se no banco. Além disso, eu preciso cuidar de minha fábrica de vinhos na Alemanha e suas filiais. Nós, domuns, sempre damos um jeito manter nossa riqueza, mas esse dinheiro não brota no solo, ou nas contas bancárias. – Ele riu, parecia achar irônico ter de trabalhar. – Eu sou mesmo um vinicultor... bom, ao menos eu era. Hoje eu apenas preciso gerir os negócios. Parece mais irreal ainda, não é? – Bastante. – Rimos. – Às vezes eu ainda me arrisco a andar pela plantação de uvas, e fazer as coisas manualmente. Então tenho algumas safras especiais. Imaginei-o carregando uvas num carrinho de madeira, e depois as pisando para extrair o suco. Sabia que isso era uma grande licença poética de minha imaginação, mas a ideia me pareceu encantadora. – E agora? Você diz tudo isso. Fala do passado. E quais são seus planos? – perguntei já relaxada, achando graça da cena que tinha se formado em minha mente. – Ficar aqui com você. Audrick respondeu sem pestanejar e me tomou num beijo.

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Mantive ainda os olhos abertos, surpresa e insegura sem entender o que acontecia, quando suas mãos foram ganhando minhas costas e eu o senti totalmente entregue. Meu coração disparou, fechei meus olhos e não pensei em nada mais. Num segundo estávamos abraçados, nos perdendo um nos lábios do outro. Seu corpo tão perto do meu trazia-me seu calor de uma única vez. Meu coração acelerou e eu pude ouvir o dele. Nossas línguas enroscaram-se uma na outra e outro e outro beijo seguiam-se. Eu deixava de existir e me tornava chama do fogo que ele era. Eu o amava? Era loucamente apaixonada por ele? O que eu sentia era algo que não tinha nome. E afoguei qualquer pensamento nos beijos. Achei que meu ventre explodiria de desejo enquanto no peito uma estrela de felicidade aumentava de tamanho. – Então... – eu disse entre seus lábios salivantes – era isso que você pretendia? – E outro beijo me era roubado. – Você me fez... me fez para preencher esse buraco enorme no seu coração? – Ele passava sua língua em meus lábios, fazendo-me tremer. – Você, Audrick, esperou todos... – e eu o beijava outra vez não aguentando o desejo – esperou todos esses anos, para estar comigo? – Eu esperei... – e sua fala era cortada por sua respiração ofegante e quente que vinha de encontro a mim – alguns anos, Júlia. Mas esperaria séculos. Audrick voltou a me beijar com desejo e me apertou ainda mais contra ele. Eu tremia dos pés à cabeça e o desejava como se minha vida dependesse disso. Como se tudo que eu havia vivido não fosse nada além de uma preparação para aquele momento. – Eu sabia que você me surpreenderia – ele passou a beijar meu pescoço, deixando-me excitada –, tornando-se forte, cada dia mais inteligente e tão linda. O calor crescia entre minhas pernas e ganhava todo o meu corpo. Eu derretia ao som da sua voz que me vinha num sussurro. – Mas nem sei como você pôde ir além de minhas expectativas. Você não sabe ainda do poder que tem, Júlia. – Ele lambeu meu pescoço e subiu sua língua para minha orelha. – Me tem em suas mãos sem precisar de nenhum esforço. – E ele voltou a descer seus beijos demorados pelo meu pescoço. – Você, Júlia, quer ser minha? – Ele levou sua mão para minha cintura, apertando-me forte. – Como eu tanto desejei? Ele ainda beijava meu pescoço enquanto eu olhava a lua. Se pudesse me entregaria a ele naquele instante. – Obrigada por me esperar, Audrick. – Suspirei arrepiada de desejo. Fechei os olhos só para sentir o calor dele. E imaginei que aquela estrela de felicidade dentro Dias de Chuva |

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de mim explodiria em toda nossa volta como fogos de artifício. Eu entendia todos os seus motivos, eu entendia tudo que eu senti naqueles anos todos e aceitava. Abri meus olhos e nos admiramos com largos sorrisos mútuos. – Eu aceito com amor seu coração solitário. O Ovo do Dragão iluminou-se. Olhei-o admirada. A pedra brilhava e dançava no ar, sutil. Audrick riu e segurou o pingente com uma de suas mãos. – Você precisará aprender a controlá-lo. – Seu riso era gostoso e sincero como de um garoto. – Ou ele fará isso sempre que você estiver extremamente perto de alcançar o que muito deseja, ou parte importante do seu destino. – Ele encostou sua testa na minha. Era nosso ritual de entrega. – Eu espero ser as duas coisas para você. Trocamos beijos e carinhos mais comportados, repletos de doçura e atenção. Horas se passaram, até que decidimos voltar para casa. Durante o caminho de volta eu olhei o sereno fazendo mágica nas lâmpadas e faróis. Era uma noite linda, e me parecia a mais bela de todas. Eu deixei minha mão sobre sua perna durante todo o percurso, e vários momentos nos pegamos sorrindo. Quando chegamos em frente à minha casa o beijei outra vez. Ele me puxou para si e fiquei em seu colo. Eu o queria de mais, porém, não tinha pressa de nada. Estávamos próximos um do outro, abraçados, trocando beijos e carícias quando me veio à mente um único problema. – Audrick... – Olhei-o meio preocupada, sem saber como dizer aquilo. – O que foi, Júlia. O que não está direito? – Ele passou a mão em meu rosto e eu a segurei. – Não sei como minha família vai reagir a isso... – Nós não precisamos apressar as coisas, ok? Hoje virei para o café da tarde como prometi aos seus irmãos. Vou ficar bem presente nas próximas semanas, e entendo que não vamos poder agir assim. – Ele me apertou contra si, demonstrando o que queria dizer. – Ao menos, por enquanto. Seus pais vão perceber nossa proximidade, estranharão, depois ficarão curiosos, e só então vamos contar. Assim não será nenhum choque nossa relação. Sorri maliciosamente para ele e pisquei. – Audrick, o estrategista. – Não, Júlia! – Ele aproximou seus lábios dos meus. – Audrick, o SEU estrategista. ///

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Acordei tarde, ainda com o gosto dos lábios de Audrick. Espreguicei me sentindo tola e contente. Como nunca imaginei que tudo que ele sempre quis foi me preparar para ser sua? Não importava, pois naquele momento eu parecia ter alcançado os céus. Audrick chegou para o café e eu me segurei para não me demorar demais ao abraçá-lo. A namorada de Leo chegou em seguida, pois meu irmão queria muito que ela conhecesse nosso antigo cuidador e grande amigo. Por volta das nove da noite, fomos levá-los até a casa dela onde Leonardo às vezes dormia. Assim que eles trancaram o portão, eu e Audrick nos beijamos, seguros devido o vidro fumê. – Acho que podemos nos demorar um pouco, não acha? – Ele riu enquanto ainda me beijava. – Eu adoraria – respondi. Ele ligou o carro, e eu me recostei confortavelmente no banco, deixando que ele me levasse para qualquer lugar. Eu conhecia Audrick há tantos anos que, agora que não tínhamos mais nenhum segredo, confiaria minha vida a ele. Audrick me levou a uma sorveteria, onde aproveitamos para conversar sobre coisas bobas e detalhes divertidos de nossa vida. – Eu estou imaginando você embaixo das parreiras, ainda menino, colhendo uvas – falei enquanto levava uma colher de sorvete à boca. – Era um trabalho duro para uma criança. – Ele apontou para mim, fingindo recriminar o que eu dizia. – Eu tinha calos nas mãos, e vivia cheirando a suor e vinho. – Fez uma expressão de reprovação. – Não era nada agradável. Aproveitei que estávamos sentados um do lado do outro, e cochichei em seu ouvido. – Eu adoraria ter você suado e cheirando a vinho, ao meu lado. Ele não me respondeu. Apenas retribuiu com um sorriso repleto de malícia e um beijo longo. A semana toda foi de encontros doces, iluminando meu cotidiano. Audrick me encontrava em minha hora de almoço para ficarmos juntos. Eu ainda trabalhava na galeria, mas agora fazendo a seleção de novos expositores, e andava muito brava com alguns segredos desse meio artístico. – Você acredita – eu dizia enquanto bebia meu suco e ele mastigava o camarão – que eles só aceitam artistas que tenham dinheiro, e eu digo muito dinheiro, para bancar um coquetel caríssimo para a abertura da exposição? É por isso que existem tantos artistas por aí que não conseguem mostrar o seu trabalho. – Eu Dias de Chuva |

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cortava o peixe com raiva. – E não é pouco dinheiro não. Estou falando de algo como cinquenta mil reais. Audrick, você entende o que é isso? É separatismo! Audrick tinha um riso enquanto bebia seu vinho branco, e sem entender o motivo daquela expressão, fiquei chateada. – Pois é, cinquenta mil reais não deve ser nada pra você, não é? – falei com desdém. – Não, Júlia. Não é isso. – Ele segurou minha mão sobre a mesa. – Você nasceu para a arte, mas não para esse mundo de máscaras. Acho que está no ambiente errado. – Eu entendo, Audrick. – E fiquei aliviada pelo que ele me disse. – Se eu pudesse, viveria dos meus quadros e das aulas de desenho. Mas preciso trabalhar, não? – Talvez você devesse ter sua própria galeria, e selecionar os artistas pelo que realmente importa: o talento e a criatividade. Perdi o chão com a ideia de Audrick. – Seria incrível – disse, ainda surpresa, mas aos poucos voltei à razão. – E seria muito, muito caro. – Verdade, Júlia – Audrick bebeu mais um gole do vinho branco e lambeu o canto direito dos lábios. – Mas sonhos só se realizam se, antes de tudo, nos permitirmos sonhá-los. Ele piscou para mim e eu sorri. Audrick sempre me fazia ser melhor. Todas as noites daquela semana também o via. Tínhamos a visita dele e, como planejado, minha família ia notando que nós estávamos nos relacionando bem demais, que ora eu o olhava encantada, ora ele me admirava, e que concordávamos em tudo. Eu me arrumava e me perfumava antes dele chegar, e parecia muito feliz, falava sobre ele quase todo o tempo e ficava saltitante depois de nos despedirmos no portão. Eu comecei a pintá-lo, como no passado, mas agora com a desculpa de ficamos um pouco sozinhos no casebre. Os retratos não eram mais feitos de lápis nos papéis velhos, e sim com tinta a óleo, iluminação planejada e sorrisos e olhares cúmplices. No sábado ele levou todos nós para almoçar em sua mansão, que só eu e Leo conhecíamos. Ele cozinhou para nós e abriu seu vinho mais antigo, confessando em meu ouvido que fora ele que o fizera, há décadas atrás. Minha mãe e a namorada de Leo ficaram maravilhadas com o luxo. Meu pai com as modernidades da propriedade e Luana com o jardim enorme. Eu via

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minha família reunida tendo Audrick ao centro, e sorria. Lembro-me de estar segurando a vasilha com um prato exótico, recém-tirado do forno, e levava para o jardim onde a mesa fora posta, quando me peguei imaginando viver ali, com Audrick, e quem sabe, uma ou duas crianças correndo pelo quintal. Despertei do devaneio sem afastar a ideia e continuei andando. Lá fora, entre a luz do sol e a sombra das árvores, ele me esperava sorrindo. Depois do almoço resolvemos explorar o quintal, pois ele era grande o suficiente para isso. Meu pai e Audrick foram para o lado norte da propriedade, onde tinha uma pequena adega. Eu e minha mãe fomos para o lado contrário, onde uma série de flores do campo eram cultivadas. – Filha, nós precisamos conversar. – Ela me encarou e fez uma pausa para escolher as palavras, porém, ser delicada não era uma característica dela. – Percebi como você e Audrick têm se tratado de um modo muito diferente. – Eu continuei quieta e deixei que ela falasse, afinal, nem sabia o que deveria dizer. – Vocês estão tendo um caso? – Nos olhamos em silêncio. – Júlia, não me esconda nada, por favor. Ele segurou minhas mãos e ficamos uma de frente para a outra. – Você guarda segredo, mãe? – soltei a fala, apreensiva. – Ai, meu Deus, Júlia! – Ela tremeu com o nervosismo, mas não soltou minhas mãos. – Eu o amo! Não acreditei no que disse, e ainda menos no gigantesco sorriso que surgiu em meu rosto. Ela soltou o ar, mexeu os lábios para um lado e para o outro. Achei que ela fosse chorar. – E ele, Júlia? Ele é muito mais velho do que você... – ela percebeu que eu ia contestar isso, mas não permitiu – ok, eu sei, não é isso que importa. Ele, ele viu você crescer. – Viu de longe, mãe. Na verdade, ele esteve fora a maior parte do tempo. – Soltei suas mãos e envolvi meu braço no dela, para que voltássemos a caminhar. – Sua presença foi muito maior pelas cartas do que fisicamente. – Eu entendo filha, mas ele gosta de você? Ele a ama, do mesmo modo? Eu não tinha me feito aquela pergunta ainda. – Difícil dizer – respondi. – Só faz uma semana que ele voltou. – Nossa – ela estava surpresa –, ele esteve tão presente esses dias, que me pareceu muito mais. Mas Júlia, eu não vou mentir. Você está muito feliz, eu Dias de Chuva |

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vejo, mais do que sempre esteve e só não quero que daqui a pouco ele vá embora e você caia naquele desespero de quando... você sabe, de quando Dimitri se mudou. – Ouvir o nome de Dimitri me fez sentir estranha. Por um segundo tudo o que eu estava fazendo ali parecia torto e fora do lugar. Mas afastei da mente. Dimitri me colocou rápido no passado dele, e eu o tinha esquecido. Minha mãe continuou. – Essa possível relação entre vocês me assusta. Eu preciso ter certeza de que ele... – ela suspirou outra vez – que ele nunca tentou nada com você antes. Abracei-a muito forte. – Nunca, mãe. Eu juro. Obrigada por se preocupar e me entender. Era de tarde quando fui para o andar de cima, a fim de usar o banheiro. A porta do quarto de Audrick estava aberta e não resisti a espiar. Eu havia imaginado um ambiente com móveis antigos de madeira escura, colchas e travesseiros repletos de arabescos e todo tipo de objetos velhos, ao estilo da biblioteca que, naquele dia, estava trancada. Porém, fiquei encantada com o que vi. Ele era todo de tons claros, como branco, areia, bege e champanhe. Tinha uma grande porta de vidro que estava aberta e uma brisa suave balançava as cortinas brancas. Os móveis tinham suaves tons de areia, e tudo ali me dizia que Audrick sempre me surpreenderia. Encostei a porta e fui ao banheiro, onde também aproveitei para pentear o cabelo e refazer o rabo de cavalo. Saindo distraída passei em frente ao quarto dele outra vez, quando sua mão surgiu do nada, me puxando para o aposento. Audrick encostou a porta e me beijou. – Meine Liebe – ele falou entre beijos. Sua mão direita subiu pela minha coxa, por baixo do meu vestido e me apertou. Eu segurei sua nuca e o beijei com mais desejo. Sua outra mão segurou meu seio esquerdo com força. – Você está me seduzindo, com esse vestido solto, passeando pela minha casa. – Audrick subiu mais a mão direita, chegando por baixo do vestido até minha cintura. – Pena que temos visita... E eu preciso levar você de volta para casa. – Ele afastou-se de mim e passou a franja para trás da orelha. Então, o puxei de volta, jogando-nos na cama – Você não deveria me provocar assim – falei em seu ouvido –, se não quiser que eu apronte com você. Provoquei-o com o balançar do meu quadril, enquanto ele acariciava minhas coxas. Então ele sentou e me beijou. – Precisamos ir – ele disse sorrindo. – Preciso de você, Audrick. – Dei um beijo demorado, puxando seus lábios para mim, sentindo-o cada vez mais excitado. Então levantei arrumando o vestido

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que não passava do meio da coxa em comprimento. – Mas você tem razão. Precisamos ir – disse, saindo de seu quarto e piscando para ele. – Te espero lá embaixo. Ao anoitecer, voltei para casa no carro dos meus pais e Audrick levou meu irmão e a namorada até o metrô. Depois, segundo ele, voltaria para casa, pois precisava checar alguns dados enviados pela empresa e responder e-mails importantes. Eu havia estado o dia todo com Audrick e adormeci com a sensação de estar ao seu lado. ///

Domingo era dia de dormir até tarde. Mas não naquele em que minha mãe me tirou cedo da cama. – Senhorita, Júlia – ela falava acendendo a luz. – Não tenho culpa se você foi dormir tarde ontem, acorda e vem tomar café. Você prometeu ir até o sebo do pai da Gabriela pegar o livro que encomendei. – Junto com a voz dela vinha o som da chuva do lado de fora. – E o dia combinado é hoje. Amanhã tem trabalho, tem sei lá mais o quê, e daí que você me deixará na mão. – Para, mãe – falei, virando de lado e cobrindo o rosto com a coberta. – Me deixa dormir. Tá chovendo. – Uma ova que eu paro – ela respondeu puxando minha coberta. – Desde quando chuva te impede de sair? Conhecia minha mãe e ela venceria aquela batalha. – Posso pelo menos tomar um banho antes de descer? – perguntei ainda acordando. – Pode – disse ela saindo do quarto –, mas vai logo que hoje eles fecham ao meio dia. Tomei o banho e devo ter cantarolado em baixo do chuveiro. Depois, enquanto penteava os cabelos me olhei tentando enxergar em mim a mulher, e não a garota, que Audrick dizia ver. “Mas isso importa?”, refleti. Se eu era uma garota ainda ou não, ele estava comigo, e isso bastava. Vestida com um jeans e um casaco de moletom, saí tranquila logo após o café. Havia combinado de encontrar com Audrick apenas à noite, e assim tinha ainda o resto da manhã e a tarde toda livre com o dia no meu clima favorito: cinza, como os olhos dele. Cheguei ao sebo do Anhangabaú às dez da manhã. Gabriela e seu pai eram os únicos que tomavam conta de lá aos domingos, pois achavam pouco viável que um funcionário fosse trabalhar para ficar apenas quatro horas. Dias de Chuva |

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– Bom dia, Ju. – Gabriela me deu um abraço apertado e me entregou o pacote que estava separado ao lado do computador onde ela fazia o balanço da semana. – E aí, vai me contar o que aconteceu pra ter desmarcado comigo ontem? Dei uma risada. – Se você soubesse o que aconteceu toda essa semana... não acreditaria. – Sei não – Gabriela me olhava fingindo-se desconfiada –, por essa tua animação deve ter sido algo muito bom. Fiquei um tempo com um sorriso exagerado enquanto a olhava. – Essa expressão é de Júlia apaixonada – soltou ela. – Tem um cara no meio, é? – Tem sim – falei. – Não me diga! – Ela arregalou os olhos que, naquela hora da manhã, já estavam delineados com o lápis preto, combinando com as pulseiras de arrebites e a camiseta do Black Sabbath. – Ok. Não digo – falei brincando. – Ai, ai, Júlia. – Ela ficava ansiosa. – O que você está escondendo? – Uma palavra... – brinquei. – Qual? – Ela quase pulou pelo balcão. – Audrick! – Como é? – Achei que ela fosse cair para trás de susto. Seu rosto de surpresa foi para a reprovação e dúvida. – Audrick! – repeti. – Mas, Júlia... Caramba! – Ela soltou o ar e olhou apressada de um lado para o outro, antes de relaxar os ombros e me encarar. – Quando éramos adolescentes eu até entendia, mas agora… Ele deve estar super velho. São tipo, uns vinte anos de diferença? – Ah, você não sabe nada. – Dei risada me lembrando das carícias apimentadas e do carinho dos dias anteriores. – Ele está melhor que nunca. – Pisquei para ela. Não sabia se Gabriela falaria algo, ou ficaria de boca aberta sem fazer questão de esconder seu susto e até certa reprovação, quando seu pai chegou. – Menina Júlia. – O senhor Tsutomo era um velhinho magrelo e sorridente de quem minha amiga puxara os traços orientais. – Faz quanto tempo que você chegou? Ele descia as escadas vindo do segundo andar do sebo, onde ficavam os livros clássicos e um canto especial com tapete, três poltronas e uma mesa antiga,

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lugar que os clientes mais próximos iam para folhear uma obra ou outra, ou ouvir os discos que não estavam à venda. Era uma sala espaçosa que lembrava uma biblioteca dentro de uma antiga casa. – Bom dia, senhor Tsutomo. Nem sei, fiquei aqui conversando com a Gabriela... perdi a hora. – Já pegou o livro de sua mãe? Com essa chuva achei que você nem viesse. – Ele disse me cumprimentando. – Eu tô um pouco molhada, mas nada demais. E já peguei o livro sim – respondi balançando o embrulho no ar com a mão direita. – Que bom, assim dá tempo de você subir e dar uma olhada nos clássicos que peguei. Tem um livro ilustrado, especial com as obras de Michelangelo, que você vai adorar. Chegou hoje cedo, numa encomenda com outros de arquitetura. Aproveitei que minha amiga precisou atender um cliente e subi as escadas. Provavelmente pela chuva, o sebo estava quase vazio, com apenas três clientes do lado de baixo, e no andar de cima não havia ninguém. Sobre a mesa velha e descascada de madeira encontrei os livros que ele me disse. Logo reconheci sua sugestão e sentei-me na poltrona para folheá-lo. Minha ideia era ficar ali até que eles fechassem, e depois levar minha amiga para um café, onde eu poderia contar a ela os detalhes da última semana. Havia perdido um pouco a noção do tempo quando ouvi uma das portas de aço que fecha o estabelecimento, descer. Levantei-me e coloquei o livro de volta onde estava. – Acho que a Júlia dormiu lá em cima, pai. – Era a voz de Gabriela. – Vou lá chamá-la. Ia abrir a boca para dizer que estava descendo quando alguém a tampou. No início me assustei mais reconheci a mão de Audrick. Ele se encostou em mim. – Não fale nada agora. – Ele me puxou para trás de uma das estantes. Estava surpresa, assustada e feliz. Eu me virei para ele que piscou para mim e fez um gesto para que eu permanecesse em silêncio. – Júlia, nós já vamos fech... – Era a voz de Gabriela subindo as escadas. – Pai! – ela gritou. – Você viu a Júlia saindo? Ela não está aqui não. Ah, espera, tem um bilhete. Olhei admirada para Audrick. Ele pensava em cada detalhe. – Ela já foi pai... – Ouvi-a descendo as escadas. – Ela nos viu fazendo o fechamento do dia e não quis interromper. – Essa sua amiga é meio esquisita – disse Tsutomo. – Mas é uma boa moça. Dias de Chuva |

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Eles apagaram todas as luzes, trancaram a porta de vidro por dentro e depois ouvi o som da outra porta de rolamento descendo. – Você está doido – disse para Audrick. – Estamos presos aqui. Uma luz vermelha nos iluminou. Era uma chama sobre o dedo indicador de Audrick. Nós voltamos para o centro daquela pequena biblioteca. Ele abriu uma das gavetas de onde retirou uma vela e um pequenino castiçal. Posicionou a vela e a acendeu com a chama de sua mão. – Como você sabia que isso estava aí? – perguntei, rindo. – Algumas vezes você me contou sobre como gostava deste lugar, e quando me escreveu preocupada com sua amiga e o pai dela, por eles estarem a ponto de fechar, eu... bem, eu intervi. Tornei-me sócio dele, e foi então que ele passou a receber os livros exclusivos e raros, que aumentaram as vendas. Fiquei contente e ao mesmo tempo desconfiada. Até onde Audrick poderia ir, envolvendo-se em minha vida? Ele notou minha apreensão e disse. – Fiz mal, Júlia? – Não! – respondi. – Claro que não. – Refleti por um instante. – Mas por que Gabriela nunca me contou? – Ela não sabe – Audrick falou segurando minhas mãos. – Vi o senhor Tsutomo poucas vezes, e nos falamos principalmente por telefone e eu uso sempre meu sobrenome quando estou em contato com eles. – Então, por que você não me disse? – Ergui uma das sobrancelhas. – Você já esteve tão brava e furiosa comigo, que eu achei melhor contar isso pessoalmente. – Ele me colocou de costas para ele, onde se podia ver uma janela muito antiga, de vidros quadriculados que começavam a embaçar, mas ainda nos permitia ver uma São Paulo cinza e chuvosa do lado de fora. – E eu precisava preservar esse lugar. Sei o quanto você deve ter olhado por essa janela, perdida entre seus estudos, seus livros e sonhos. Talvez, o único outro lugar que você goste mais, seja seu ateliê. Audrick me abraçava forte, enquanto olhávamos a chuva. – Mas por que quis ficar aqui? – perguntei. Ele não disse nada. Um de seus braços continuou enrolado em minha cintura e com sua outra mão abriu o zíper de meu moletom. Ele o tirou de mim e jogou para o lado. Virei-me para ele. Audrick, usando os calcanhares tirou facilmente seus tênis, sem precisar desamarrá-los, depois de despiu do pesado casaco e a camisa, sempre com os olhos em mim. Esticou as mãos, e ao mesmo tempo

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em que andei em sua direção, repeti o gesto dele com os pés e tirei meus tênis. Mirei suas muitas cicatrizes e as tatuagens de seus braços, que me convidavam a tocá-lo, aproximei afastando a mecha solta de seu cabelo que estava preso em um rabo de cavalo. Audrick me fez dar um rodopio e só então me abraçou. – Não parei de pensar em você – ele disse, me fazendo valsar ao som de uma música que existia apenas em sua mente. – Não achou que me veria tão depressa, não é? – É uma linda surpresa – falei em outro rodopio, agora sendo amparada com força em seu peito. – É só para você ter certeza... – ele encostou sua testa na minha, daquele modo único – do quanto eu estarei sempre por perto, de agora em diante. Audrick me beijou com doçura. Coloquei minhas mãos sobre seu peito, sentindo seu calor e cicatrizes profundas. Só com a força de suas mãos em minha cintura ele me ergueu, e no mesmo instante enrolei minhas pernas em volta do seu corpo e deixei-me tombar para trás. Nós rodamos e tudo à minha volta, livros, estantes, móveis velhos, nos aconchegava. Eu me sentia plenamente segura ao seu lado. Rimos como duas crianças para então parar. Ergui-me abraçando seu pescoço encostando sua face em meus seios. Sabia o quanto ele era forte e que podíamos ficar horas assim. Eu beijei sua testa enquanto acariciava seus cabelos. De repente ele voltou a andar. Tendo-me ainda em seus braços me fez sentar na mesa onde estava o pequeno castiçal. Soltou-me e abriu o zíper de minha calça. Eu tombei para trás deixando que ele me despisse. Sua mão subiu por minha barriga e depois sobre meu peito, ele deitou sobre mim beijando meu pescoço e segurando minha nuca. A outra mão passou por baixo de minhas costas e me fez sentar outra vez. Senti ficar arrepiada, tendo tão perto de mim seu peito nu, e sua respiração tão próxima ao meu ouvido. Puxei-o mais para perto, a fim de senti-lo entre minhas pernas, porém ele afastou-se e tirou ao resto de suas roupas revelando que suas pernas também eram cheias de cicatrizes e tatuagens, sendo apenas seu peito e quadril livres dos desenhos negros. Eu dei um pequenino pulo da mesa e ele no mesmo instante voltou a me pegar pela cintura. Agarrada ao seu pescoço, cruzando novamente minhas pernas em seu corpo, o beijei, e os beijos foram ficando mais ardentes. Eu soltei os braços do seu redor por um instante e tirei minha blusa jogando-a ao chão e em seguida o sutiã. Lá fora a chuva ficava mais forte e podíamos ouvir os trovões. O Ovo do Dragão brilhou tão forte que precisei tirar e o coloquei sobre a mesa. Dias de Chuva |

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Audrick sentou-se na poltrona e eu sobre suas pernas. Ele passou suas mãos em meu ventre. – O que houve com a tatuagem? – ele perguntou, mas não parecia zangado. Curvei-me sobre ele e falei em seu ouvido levando sua mão até meu sexo. – Está dentro de mim. Ele mordeu meus lábios com força e me apertou contra ele. Olhei nos seus olhos e vi que ficavam amarelos, mas não me importei. Nos deitamos no tapete, eu sobre ele. Senti seu sexo se ligando ao meu. Éramos um. Então achei que podia ouvir a valsa que ele nos fez bailar. Uma sinfonia sedutora que dancei com os quadris. Audrick fervia, segurando minhas pernas com força. Ele ergueu-se e me abraçou. Beijou-me cheio de desejo, com pressa e fúria. O prazer que senti era imenso, ardendo dentro de mim. Abri os olhos e tudo que via era Audrick que passava as mãos pela minha coluna e beijava meus seios. Já entre minhas pernas o desejo ganhava força e eu mentalmente pedia por mais, suada, quente e cheia de volúpia. – Júlia... – Senti o tom de preocupação em sua voz e impedi que ele continuasse falando. – Eu confio em você, Audrick – falei acreditando que ele tinha medo de me machucar. – Isso entre nós, Júlia, é para sempre – ele disse no meu ouvido. – É pra sempre! – confirmei inclinando-me sobre ele. Sem esforço algum, Audrick levantou me segurando e colocou minhas costas na janela fria. Não me importei que alguém do lado de fora nos visse. Era amor, e São Paulo, mesmo entre seu excesso de concreto, pulsa paixões. Gritei, suspirei e voltei a gritar. Senti-me desfalecer. Com o corpo suado e em frenesi, Audrick me amparou e colocou no chão, deitando ao meu lado, passou as mãos sobre meu rosto demoradamente, olhei-o e soube que ele não estava nada cansado. Suas mãos desceram por meios seios e ele voltou a beijar-me com suavidade. Eu nunca estivera tão feliz e plena até aquele momento e de olhos fechados eu disse ao seu ouvido. – Audrick – outro leve beijo –, eu o amo. – E eu amo você, minha Júlia. Sorri, ainda de olhos fechados, ouvindo a chuva e ele deitando ao meu lado, colocou minha cabeça sobre seu peito e me abraçou, acariciando meus cabelos. – E para nosso amor, temos toda a eternidade, Júlia.

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Audrick tinha a chave da porta de vidro e da porta de correr. Quando saímos, era pouco mais de três da tarde, e a chuva havia dado trégua. Andamos abraçados até seu carro a algumas quadras dali sem precisar dizer nada. No meio do caminho para minha casa a chuva nos pegou, deixando quase impossível enxergar a rua ou os outros carros, então fomos guiados pelas luzes dos semáforos e dos faróis dos automóveis. Ele me deixou em frente ao portão, com a promessa de que viria para o jantar. Em casa fiquei um tempo sozinha, já que todos haviam saído para resolver diferentes questões e eu pude refletir um pouco. Algo me dizia que tudo seria diferente daquele dia em diante. Deitada na cama com esses pensamentos, sentia o sono vir e enquanto ajeitava o travesseiro macio, meus olhos deitaram-se sobre a foto de Audrick, nos degraus da soleira de uma porta em Leipzig, sua foto mais bonita, que eu ali coloquei desde seu retorno, e entendi: não importava o que acontecesse, eu estaria com ele, em qualquer lugar e sob qualquer circunstância. ///

– Eu sei que parece estranho, mas posso jurar a vocês que nunca, em nenhum momento, minha vontade foi me aproveitar da situação e um dia namorar a Júlia. – Audrick havia ensaiado o discurso para meus pais e meus irmãos, pois ambos concordávamos que eles não deveriam saber sobre sua situação não humana ou sobre como ele viu em mim alguém especial e ficou disposto a me esperar por tantos anos. – Confesso sim, que no último ano, nos comunicamos ainda mais. Minha admiração por ela cresceu. – Ele desviou seu olhar dos meus pais e voltou-se para mim. – De um modo que nunca eu imaginaria. Eu entendo toda a desconfiança de vocês e quero fazer de tudo para continuar um membro desta família. A verdade é que, ser de fato, um membro dessa família, seria um tesouro para mim. Estávamos todos na sala, sentados para ouvi-lo. Audrick queria contar aos meus pais sobre suas intenções, e não achava justo que essa responsabilidade ficasse em meu encargo. Mas a verdade é que já havia se passado mais de quarenta dias de seu retorno, e se meus pais não tinham certeza que andávamos nos encontrando, eles desconfiavam, e enquanto isso, minha mãe que já sabia de tudo e me via tão feliz, aos poucos fora fazendo a cabeça de meu pai a fim de aceitar nosso namoro. – Então é por isso que sem a aprovação de vocês essa relação nunca continuaria. Mas eu não posso negar: eu realmente a amo, de um modo que nunca imaginei, e farei tudo que estiver ao meu alcance para fazer dela a pessoa mais feliz do mundo. Dias de Chuva |

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Eu estava ao lado dele, e ao ouvir suas últimas palavras ficava quase impossível conter o choro, e deixei por escapar uma lágrima que enxuguei rápido com as costas da mão. – Quer dizer, então – era meu pai quem falava –, que depende de nós, exclusivamente, vocês continuarem juntos? Audrick balançou a cabeça afirmando. Meu pai se levantou com o cenho franzido nos segundos mais longos da minha vida. Eu já estava disposta a contradizer e intervir, pois para mim de nada importava se eles apoiariam ou não. Ainda assim, fiquei apenas escutando tudo, como Audrick me sugeriu, mesmo que eu não concordasse com tudo tão formal, já que me achava dona do meu nariz para decidir namorá-lo ou não. E o silêncio e a tensão foram quebrados. Meu pai estendeu a mão que Audrick logo aceitou no cumprimento. – Seja bem-vindo, de fato, à família – disse meu pai sorrindo, e se abraçaram. Brindamos e tivemos uma noite de festa. Tudo estava do modo que deveria ser. Continuamos a nos ver todos os dias, várias vezes ele me encontrava na saída do trabalho e me levava para casa. Em meu ateliê, onde ficávamos a maior parte do tempo, ele tentava me convencer a largar o emprego e aceitar o seu dinheiro e abrir minha própria galeria, e eu negava a ajuda, pois acreditava ainda não estar preparada para gerir um negócio e queria que meu dinheiro viesse de meu esforço. – E além do mais – eu dizia –, o que vou fazer se não isso? Ficar esperando você chegar, olhado o teto alto de sua mansão? – Eu brincava, pois já havíamos falado sobre eu me mudar para sua casa. – Eu nunca ia querer isso – ele falou puxando-me para cima de si, nos fazendo sentar de uma vez no sofá, eu em seu colo. – Mas você teria todo o tempo para suas pinturas, para sua leitura. – Eu deitei em seu peito enquanto ele acariciava meu cabelo. – Eu também quero te mostrar o mundo e – ele me apertou com força – quero te mostrar o meu mundo. Naquela noite não concordei e nem neguei o que Audrick me propunha, afinal, se eu me via como dele para sempre, porque eu me preocuparia com coisas tão corriqueiras como administrar os “artistas” apadrinhados da galeria, filhos ou cônjuges de políticos e burgueses? Eu acreditava que Audrick me entendia completamente, que tudo o que eu poderia fazer, dizer ou querer, possuía liberdade e lugar perfeito ao seu lado enquanto tudo nele inspirava amor, desejo e curiosidade. Muitas foram às vezes que

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o desenhei, tantas outras em que podíamos discutir sobre livros, artistas e história. Eu estava fluente tanto no idioma alemão como no inglês e francês, e podíamos conversar também nessas línguas, mesmo que tantas outras vezes nada precisasse ser dito. Ao seu lado minha sede de conhecimento só aumentava, pois Audrick sabia de tantas coisas e era tão lúcido e coeso a respeito de tudo que acontecia que eu tentava aprender com ele e alcançá-lo em sabedoria e tranquilidade. Sempre havia algo novo sobre seu passado que ele me revelava num simples café, ou depois de fazermos amor. E eu, enfeitiçada, vivia naquela excitação de conhecê-lo e ele me mimava com livros, telas e tintas, enquanto por meses Audrick me dizia planejar uma grande surpresa. Viajamos de carro por dias, passando noites em hotéis de beira de estrada e mesmo ele, tão sofisticado, nunca reclamava de um ou outro quarto que deixasse a desejar. Nunca havíamos passado tantos momentos seguidos juntos, e eu descobri como Audrick podia ser divertido. Certa vez, numa noite muito quente, tivemos que pernoitar num alojamento rústico e sem nenhum conforto. Ele, percebendo que eu me revirava na cama, me puxou para junto de si, mas estava cansada e não conseguia pensar em carícias ou namoro. – Ju! – ele falou-me ao ouvido – Vem comigo? – Pra onde? – disse muito preguiçosa. – Do outro lado da estrada – ele falou de uma vez e me puxou para fora da cama. Em segundos ele havia destrancado a porta e saíamos para o quintal do alojamento e depois para a avenida. – Pode vir, não tem carro passando. Audrick estava vestido só com um samba-canção e eu usava um short e uma camiseta regata. Ele correu comigo atravessando a estrada e depois para o meio de uma mata. O céu estava repleto de estrelas, mas a lua nova não era tão aparente. Corremos e apenas no início eu quis contestar aquela loucura, mas logo a sensação de liberdade e força me tomou, e eu só queria continuar a correr. Soltamos as mãos e ele foi à frente, com mais destreza que eu, porém, gentilmente não corria o máximo que podia, para que eu não ficasse só. Chegamos a uma parte do terreno onde havia mata fechada e um declive. Ele me estendeu as mãos e nós descemos, agora com cuidado, mata adentro. – Você está ouvindo? – ele cochichava. – Estou ouvindo muitas coisas – brinquei. – Principalmente o som de dois loucos atravessando um pedaço de mata atlântica. – Não, mocinha. O rio. Você está ouvindo o rio? – Ele apontou para frente. – Ali passa um riacho, ele é pequeno e fica camuflado. Mas, há muitos anos, antes de Dias de Chuva |

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existir aqui estradas de concreto ou rodovias, era onde descíamos para tomar água, a caminho… bom – ele sorriu enquanto andávamos –, a caminho do nosso destino. Continuamos a descida e finalmente pude ouvir o som da água correndo. Andamos mais um pouco até chegar a uma clareira em que a mata se abria sobre nossas cabeças. A água corria límpida, o rio tendo a largura de não mais que um metro e meio. Na outra margem a copa das árvores mantinha a abertura, que eu poderia jurar, não era natural. Olhei para Audrick, grata por estar ali, enquanto ele se aproximou de mim e me beijou. De súbito, ele me pegou em seu colo e se jogou comigo dentro d’água. No primeiro instante achei que fosse me afogar, e com o susto, dei algumas batidas em seu peito. – Seu, seu… – Eu estava com tanta raiva que não conseguia nem pensar em como ofendê-lo. Mas então ele me beijou outra vez, acabando com minha resistência. – Achei que estava com calor. Ele disse se afastando um pouco, iniciando uma guerra de jogar água que se tornou um jogo de pega-pega dentro do rio. Depois de muitas risadas e escorregões, ele me pegou nos braços e me colocou na margem contrária de onde viemos, e me fez cócegas, fazendo-me gargalhar e só quando pedi por clemência ele parou e deitamos na grama. Estava recuperando o fôlego enquanto ele mexia em meu cabelo. – Você devia ficar mais tempo em contato com a natureza, Júlia – ele disse. – Ela te faz muito bem. Sorri meu maior sorriso e puxando-me pelo braço, voltamos ao rio. Como a água já estava quase gelada, visto que a madrugada se aproximava, ele me envolveu com seus braços quentes. – Você se lembra de quando ainda era uma menina e eu te dei um pouco do meu poder? – Fiz que sim com a cabeça. – Eu quero te mostrar um pouco mais. Audrick encostou seus lábios nos meus e soprou sua respiração quente indo direto para meus pulmões. Em seguida, segurando minha mão, nós mergulhamos. De modo que não sei explicar, o ar que inspirei dele durou muito tempo em meus pulmões, meus olhos arderam por alguns segundos até conseguiram se adaptar plenamente à água e ao escuro. Assustada, vi primeiro algumas cobras nadando entre as plantas que se enroscavam nas extremidades do riacho. Mas logo ouvi sua voz dentro de minha mente. “Calma, Júlia. Elas não chegarão perto enquanto eu estiver aqui.” Só então eu o

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olhei. Seus olhos estavam amarelos, e sua pele me pareceu mais pálida que o normal. Seus pelos ficaram alaranjados e então me lembrei de que Audrick não era humano. As serpentes passaram, nadando contra a correnteza leve, e um cardume de peixes coloridos se enroscou em nossa volta. Era o maior espetáculo que eu já vira, e de um modo estranho, me senti em casa. Saímos da água quando voltei a sentir frio e o ar em meus pulmões enfim acabava. Audrick me ajudou a subir para a margem e acreditei ter visto nele um olhar de satisfação. Em seguida andamos pela margem do riacho até o local onde Audrick se lembrava de ter uma ponte de madeira, muito velha. Chegando na pousada, junto com o nascer do sol que deixava o céu azul e límpido, vários casais se preparavam para deixar o local, colocando malas nos carros ou apenas conversando, e claro, nos olharam espantados, provavelmente por não vestirmos quase nada e nossos cabelos estarem bagunçados e molhados (ou talvez, pelas inúmeras cicatrizes e tatuagens dele). Tomamos um banho e colocamos os pertences de volta no carro. Audrick dirigia animado ao som de uma banda de rock irlandesa, e eu, exausta e radiante, dormi toda a viagem. ///

– Hora de acordar. A voz de Audrick chegou em meus ouvidos, tirando-me do pesado sono. Abri os olhos e vi seu rosto. Sorri e bocejei, de um jeito esquisito, tudo ao mesmo tempo. Era um fim de tarde e o sol escondia-se aos poucos atrás de uma colina que tinha o mar a seus pés e sobre si, um casarão antigo de estrutura imponente. Uma casa tão forte e grandiosa quanto Audrick, pensei. A praia, assim como tudo ao alcance da minha visão, era desabitada, porém, estávamos nos primeiros dias do outono e, finalmente, o frio surgira tornando o clima convidativo a abraços e caricias, muito mais do que ao mergulho ou explorações. O azul do céu, aos poucos, dava lugar ao rosa escuro e ao roxo, e então ao azul escuro, feitos pinceladas dignas de Willian Turner. Estacionamos em frente à grande porta de madeira. Eu olhava admirada para as paredes de pedras e para as janelas, enquanto inúmeras fechaduras iam sendo destrancadas por ele. A porta rangeu ao ser aberta e eu me senti muito pequena diante a grandiosidade do lugar. Por dentro as paredes não tinham acabamento assim como as de fora, mostrando as pedras de sua estrutura. Mas certo luxo vinha dos castiçais dispostos por todo lugar, além das tapeçarias. Audrick fechou a porta atrás de mim, trazendo com o barulho das madeiras batendo, a escuridão completa. Dias de Chuva |

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Por magia, um a um os castiçais foram acessos, iluminando aos poucos o local, revelando ainda maior beleza das tapeçarias, que só agora via que caiam do teto e prendiam-se às paredes como folhas em arabescos feitos de diferentes metais. Eu ficaria horas para descrever os detalhes: cada quadro em cada cômodo que vi, os adornos dos móveis antigos, a prataria na cozinha. Sentia-me como se tivesse voltado no tempo, em uma época que eu não vivi, mas que combinava demais com Audrick. Estar naquele casarão era como conhecer a faceta mais antiga dele, partes de suas memórias e saberes. Eu estava de frente para uma grande janela, admirando a lua cercada de inúmeras estrelas. Ao longe, na escuridão do horizonte, eu tentava distinguir alguma silhueta de ondas que se camuflavam no oceano tão negro como a noite. Não ouvi seus passos furtivos o trazendo para perto de mim, só senti seu abraço e seu rosto colado no meu. Lá, como havia me explicado, era um lugar onde ele poderia ser de seu modo mais natural, e percebi isso pelas roupas. Uma calça de aparência antiga, botas de couro e um casaco pesado e aberto revelava seu peito sem camisa. Seus lábios cheios de desejo encontraram os meus por alguns instantes, e depois ele segurou minhas mãos e encostou sua testa na minha. Ainda pude ouvir o som do mar entre sua fala. – Júlia, o que vou falar é, sem dúvida, a decisão mais séria que já tomei, e quero que seja a sua também. – Sua respiração cruzou-se com a minha antes dele dizer. – Vamos nos casar agora? Meu coração disparou. Eu queria dizer sim, mesmo que ali, naquele fim de mundo, não fosse o lugar onde esperava casar-me, porém isso já não importava. – Eu aceito! – disse sorrindo. De seu casaco ele retirou uma pequena bolsa de pano e de dentro dela dois anéis de ouro, muito envelhecidos. – Encontrei estes anéis, ainda jovem, antes de ser um domum, Júlia. Estão comigo desde então, escondidos, acredito que a sua espera. – Ele pegou minha mão e colocou a aliança em meu dedo. – Júlia, peço que aceite essa joia, que mais do que um símbolo de nossa união, passa a ser um amuleto, onde terá sempre em suas mãos, minha felicidade, meu cerne e minha alma. – Ele agora me dava a outra aliança em minha mão e continuava a falar. – Já esta joia, que tem nas mãos, é o laço que ligara seu coração ao meu onde eu peço que seja minha. Você, Júlia Andrade de Oliveira, que hoje fará parte, junto a mim, talvez, do último sobrevivente de uma linhagem muito antiga, e passará a ter como nome, se quiser, o meu. Eu, Audrick von Rottrauben entrego em suas mãos a escolha.

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Emocionada, peguei a joia que ele me oferecia e coloquei em seu dedo. – Eu, hoje, passo a ser sua esposa. E aceito fazer da sua história, a minha, sendo de agora em diante Júlia Andrade von Rottrauben. Nos beijamos, e acreditei, no beijo, sentir pela primeira vez, uma lágrima furtiva de Audrick encontrar com as minhas, em felicidade, e no casarão, durante dias, vivemos nossa lua de mel. ///

Logo depois de nossa viagem eu mudei para sua mansão. Domuns ou qualquer outra definição já não significava mais nada. Éramos dois apaixonados, cada um com sua singularidade e parecia que seria para sempre assim. Foram meses lindos, cheios de risos, cheios de arte e cultura. Audrick prometera me levar para conhecer o mundo, mas ali, naquela casa, tínhamos tudo que queríamos por muito tempo. Como crianças, brincávamos de pega-pega no enorme jardim repleto de plantas. Líamos muito e saíamos para namorar ao ar livre. Tomávamos banho de chuva sempre que possível. Audrick havia começado a meditar, ou ao menos eu achava isso, enquanto eu aproveitava esse tempo para ler e pintar. Outras vezes, já cansados, nos sentávamos na cama – eu entre suas pernas, abraçando e acariciando seu peito nu – para ouvir suas histórias de tantos séculos de vida. Eu perguntava como fora com outras mulheres e se havia tido alguma grande paixão. Ele ria e me dizia que nada de lá importava, a não ser o que havia feito com que chegasse até mim.

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Capít ulo 14

Dissolução

Gabriela dizia que a casa era linda, principalmente os jardins onde poderia passar horas muito agradáveis, porém, não havia sorriso em seu rosto e quando nos sentamos para o café ela estranhou não termos empregados, já que a casa era enorme e Audrick muito rico. – Semanalmente temos algumas pessoas aqui que vêm para limpar a casa e cuidar do jardim. Mas no dia a dia, preferimos conservar do modo que está. Não é tão difícil manter as coisas em ordem – respondi. – Júlia – ela colocou a xícara sobre a mesa e me encarou –, não sei como vou te dizer isso. – Minha amiga ainda conservava muitos traços da adolescência, a camiseta de banda, o jeans escuro e os tênis, me remetendo sempre para nossa época do colégio. – Na verdade, são duas coisas. Eu sabia que Gabriela, assim como minha família, estava bem chateada com o modo como me casei. Não havia tido papéis em cartório e nem cerimônias, mas o pior é que havia sido longe de todos que eu amava e me queriam bem. Adiantei o assunto. – Poxa, Gabi – eu falava da forma mais doce possível –, não foi de caso pensado. Eu não fugi pra casar nem nada disso. – Tem razão, Ju! – Ela balançava a cabeça afirmando, e tinha verdade no olhar. – Você pode não ter feito de caso pensado, mas quanto a Audrick, eu não sei. Ele parece o tipo de pessoa que tem tudo planejado sempre, medindo cada detalhe, racionalizando, e é por isso que estou preocupada. É claro que eu imaginava que você se casaria numa superfesta, eu seria sua madrinha, nós tomaríamos um porre e pagaríamos mico juntas. Rimos com a versão que Gabriela tinha em mente. – Mas desde que assumiu essa relação você se isolou do mundo. Nunca conseguimos nos ver e... – ela encarou-me mais uma vez – eu juro pra você que não

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é ciúmes de minha parte. Eu quero mesmo que você seja feliz, mas um relacionamento que só funciona longe de tudo e todos é mesmo um bom relacionamento? – O que você quer dizer com isso? – perguntei ressabiada. – Que você está fazendo tudo errado Júlia. Caramba! – Ela agitava-se. – Eu realmente estou preocupada. Você está deslumbrada por esse cara. Quando éramos adolescentes eu achei tudo muito esquisito, mas tinha esse “quê” de aventura. Mas hoje, meu Deus, hoje não é possível que você não perceba como isso é doentio. As palavras de minha amiga me atingiram da pior forma possível. Ela não tinha o direito de falar desse modo. Tinha? – Não acredito no que estou ouvindo – as palavras saiam entrecortadas e nervosas. – Eu estou tão feliz, Gabriela, tão feliz, e você em vez de ficar alegre por mim, diz que – eu começava a suar –, que isso é doentio? Minha felicidade é doentia? – Alterei a voz. – Por favor, Júlia – e Gabriela se alterava em seguida –, eu sou uma das pessoas que mais deseja a sua felicidade, mas algo realmente bom para você. Eu acho, acho mesmo que este Audrick, que nunca nem fez questão de me conhecer, é... – ela não terminou a frase. – Diga, Gabriela. – Eu me levantei. Estava ficando furiosa e não toleraria qualquer coisa que dissesse contra ele. – Você mesma disse que não se conhecem. Então – encarei-a outra vez –, diga o que ele é. – Só acho que ele não é tão bom como você imagina. – Nos encaramos por um tempo. – Pense bem, Júlia. Pense em tudo que está a sua volta, não é estranho demais? Confuso demais? Ele te levou para uma viagem até a puta que pariu pra se casarem escondidos por quê? Pra sua família não intervir? – Minha família o ama. – Ama mesmo, Júlia? Ou apenas é grata a ele e concorda com tudo isso, pois sabem que você é extremamente teimosa e mimada, e fará só o que quer, independente do que te digam? – Você está me ofendendo, Gabriela. – Abra os olhos, Júlia. Ninguém nunca te colocou freio. Sua mãe sempre incentivou suas escolhas e seus caprichos como forma de compensá-la pelo sofrimento enquanto criança, mas e aí? – ela falava e não me dava espaço para refutar. – Você estudou tanto, se empenhou tanto e pra quê? Ser a obra de arte para qual ele olha e admira, repetindo pra si mesmo “Bom trabalho”. – Ela fazia uma voz jocosa e grave. – “Eu fiz um bom trabalho.” Dias de Chuva |

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– Chega, Gabriela. Chega! – não acreditava no modo ousado e mal-educado que ela falava. – Não vou mais ouvir isso. É muita falta de respeito falar assim dele, em sua casa. – Ah, então é a casa dele? E não de vocês? Não é a sua casa onde eu sempre pude me sentir acolhida e falar abertamente? Eu não dizia mais nada, apenas a encarava. – Acontece, Júlia, que eu pareço ser a única pessoa de bom senso nessa história toda. Você largou sua carreira, você largou sua família – e Gabriela voltava a abaixar a voz –, você está trancada nessa mansão, achando que o mundo se extingue aqui. Não voltei a respondê-la. Gabriela era minha amiga há anos e, apenas por isso, eu toleraria e esqueceria aquelas ofensas. Ficamos em silêncio, talvez esperando que o mal-estar passasse, pois nenhuma das duas voltaria atrás no que disse. Até que ela pegou sua bolsa que estava pendurada na cadeira e de dentro dela retirou um papel dobrado e me entregou. – Júlia – ela se levantava –, é uma pena que nosso encontro tenha sido assim, mas eu estou indo para o Japão. Vou morar com meus tios um tempo, eles têm uma proposta de emprego pra mim e eu preciso viver coisas novas. Aí está o telefone de lá e o endereço. Gabriela me tirou o chão por um tempo. Olhei para o papel de caderno onde a letra dela se desenhava, conhecida a meus olhos. Era difícil imaginá-la tão longe. Enquanto estava absorta em pensamentos, ela se levantou e me abraçou, eu não aguentei ficar com raiva dela e a abracei também. Nós choramos, tanto pela despedida, quanto por ser daquele modo, tendo um grande abismo de desentendimento entre nós.

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Parte 3 O PRECIPÍCIO


Capít ulo 15

Anuncia-se a tempestade

O telefone tocou. – Oi, mãe. Pode falar. – Ouvi durante um tempo a fala cheia de choro dela, enquanto meu coração acelerava e meus olhos ameaçavam ficar marejados. – Como isso é possível? – Mais algumas explicações e muito choro do outro lado da linha. – Tudo bem, fique calma. Estamos indo. Era uma noite fria, dessas em que se usam roupas pesadas para espantar o frio, e a maioria das pessoas faz de tudo para ficar dentro de suas casas deixando as ruas quase vazias. Dentro do carro íamos para o hospital em que minha irmã acabara de ser internada. “Surto psicótico!” Por mais que eu repetisse as palavras em minha cabeça, não conseguia aceitar. Luana acabara de completar dezesseis anos e o diagnóstico parecia uma grande farsa teatral, uma brincadeira de mau gosto. – Fazia já alguns dias que ela andava estranha, Júlia – minha mãe começava seu relato tendo o olhar distante e a fala baixa como se tivesse medo das palavras. – Ela estava cabisbaixa, não comia direito, e nem tinha vontade de sair. Eu e seu pai acreditamos que ela deveria estar apaixonada, e por isso o comportamento estranho... Minha mãe ficou quieta por um instante. Agora olhando para mim, sentada ao seu lado na cadeira da sala de espera, enquanto Audrick, de pé ao nosso lado, a ouvia atentamente. – Pode falar, mãe – eu a incentivei. – Mas eu sentia, filha, que não era isso. Eu perguntei várias vezes o que estava acontecendo e ela desconversava. Sei que ela está numa idade difícil, mas Luana nunca agiu dessa forma. Então, certa noite escutei barulhos de passos no quarto dela.

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Minha mãe fez uma pausa e segurou minha mão, em busca de conforto. Lágrimas ameaçaram voltar a cair de seus olhos. Ela respirou fundo e amargou a fala na boca, antes de continuar. – Luana estava de pé em frente à janela e seu quarto todo revirado, com roupas e cobertores jogados no chão. Eu andei até sua irmã perguntando o que tinha acontecido, e se alguém dentro de casa a havia magoado ou feito algo que a desagradasse. Mas ela continuou quieta. Minha mãe baixou a cabeça e as lágrimas que já não podia conter caíram sobre sua calça. – Ela se virou pra mim e me abraçou com força dizendo que nos amava mais que qualquer coisa. Ela me pediu pra ficar calma, pois não havíamos feito nada. Ficamos muito tempo abraçadas, até que eu a convenci a se deitar, ficando no quarto até que ela adormecesse. Mas eu estava tão preocupada que passei o resto da noite ao lado do aparador, entre o quarto dela e o meu, sentada no chão, tentando entender o que a deixava assim. “Acabei cochilando encostada na parede, e acordei com o barulho de algo quebrando no quarto. Corri pra lá e quando abri a porta vi Luana fora de si. Ela tinha jogado vários objetos contra a parede: livros, porta-retratos, frascos de creme e perfume, discos... quando me viu gritou para que eu saísse de lá e atirou uma boneca de porcelana em mim, e por pouco não acertou.” Dos pés à cabeça minha mãe tremia. Eu sentei mais próxima dela e coloquei meu braço em seus ombros. Agora ela chorava copiosamente. – Sua irmã continuou gritando até que seu pai e seu irmão apareceram no quarto. Como são mais fortes, tentaram contê-la segurando-a pelos braços. Mas não sei que força a dominou. Ela se debateu e chutou para todos os lados, machucando seu irmão, que teve de soltá-la. Com a mão livre ela apertou o pescoço de Pedro, que engasgou e também a soltou. “Eu me aproximei dela, pedindo pra que se acalmasse, mas ela voou pra cima de mim, segurou meu cabelo e cuspiu no meu rosto”, a narrativa de minha mãe já era nervosa, de volume alto, como se a qualquer momento fosse gritar por ajuda. “Eu a soltei e sua irmã jogou-se no chão, se debatendo e gritando. Querida, eu não sei como isso foi acontecer. Seu irmão e seu pai tinham medo de segurá-la, pois qualquer força que empregassem podia machucá-la. Eu corri até o telefone em meu quarto e voltava com ele em mãos. Estava prestes a ligar para a emergência quando ela simplesmente parou de se mover e gritar. Tremendo como se sentisse muito frio ela começou a chorar. Quando agachei perto dela, vi que seus olhos estavam paralisados. Ela parecia estar com muito Dias de Chuva |

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medo de alguma coisa. Talvez por instinto, eu a tenha abraçado. Queria apenas proteger minha menina.” Minha mãe me olhou, conseguindo conter o choro. – Sua irmã ardia em febre. Então pedi a seu irmão que me trouxesse uma bacia com água fria e uma toalha. Ela se agarrava em mim como se buscasse se proteger e chorou de um modo tão dolorido... O ar encheu os pulmões da minha mãe. Ela tentava conter a tremedeira, e as lágrimas pareciam dar um descanso. – Eu e seu pai a colocamos na cama, e aos poucos com a água gelada acredito que consegui livrá-la da febre. Então ela voltou a dormir. Além da preocupação certa indignação me invadiu. Não entendia porque ninguém de minha família havia me ligado e me avisado o que estava acontecendo. E a inquiri sobre isso. – Querida – ela disse –, desde seu casamento você se tornou tão distante de nós. Sei que não deixou de nos amar, mas fomos aprendendo a viver a vida longe de você. Nesses dias que passaram ficamos aturdidos e voltamos toda a nossa atenção para sua irmã. Aquelas palavras tão sinceras, mesmo sendo ditas com doçura, formaram uma sentença de desaprovação. Eu não respondi. Olhei para Audrick, que parecia não ter ouvido o que eu ouvi. Apesar de nos olhar, e seu semblante estar triste e preocupado, ele parecia distante e perdido. – Mas de verdade, Júlia. Não sei se sua presença mudaria alguma coisa. Tudo aconteceu tão rápido. Na noite seguinte consegui dormir só de madrugada. Quando acordei ouvi o chuveiro ligado. Olhei no relógio e acreditei que seu pai e seu irmão já haviam saído para trabalhar. Quase fiquei feliz, imaginando que sua irmã havia acordado um pouco melhor, e por isso resolveu tomar um banho. No entanto, fui até o banheiro para me certificar que estava tudo bem. Suas mãos buscaram a minha que estava em seu braço. – Abri a porta e vi Luana sentada debaixo do chuveiro, esfregando com força a esponja na pele já cheia de marcas vermelhas. Ela estava tão compenetrada que nem me notou. Não tive reação, Júlia. Fiquei olhando para ela, imaginando o que poderia ter acontecido para trazer aquele mal sobre nós. “Então vi seu pai entrando no chuveiro e tirando a Luana de lá. Eu fiquei no chão, sem saber como agir, enquanto ele a levava para o quarto. Depois de um tempo Pedro veio me tirar dali. Ele não havia ido trabalhar, apenas saiu pra comprar o café da manhã, pois estava muito preocupado em nos deixar sozinhos…”,

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o relato de minha mãe era interrompido enquanto ela buscava o ar que parecia fazer falta. “Luana dormiu aquele dia todo. Desde então, ela tem piorado, mas eu tinha medo de trazê-la ao hospital. Achei que se eu realmente cuidasse dela, poderia fazê-la melhorar. “Mas eu estava enganada. As atitudes de sua irmã oscilavam entre crises de fúria e momentos de introspecção. Várias vezes a peguei dizendo ou fazendo coisas estranhas.” – Que coisas estranhas? – perguntei. – Certa vez ela pegou uma caneta, dessas grossas, do seu antigo material de desenho, entrou no seu quarto e riscou palavras indecifráveis em todas as paredes. Quando cheguei ao quarto, tudo já tinha sido riscado, e sua irmã gargalhava deitada sobre a cama. Ao me ver, de um pulo só ela se levantou e pegou nos meus braços, dançando comigo pelo quarto uma música que não existia. “Júlia, você não imagina como foi difícil vê-la desse modo. Ela ficou quase meia hora assim e quando voltou a si, olhou para as paredes e me perguntou se ela mesma havia feito aquilo. Quando eu confirmei ela passou por mim, quase me derrubando. Eu fui atrás dela, mas como estava muito nervosa, não a impedi. Ela encheu um balde com água e sapão em pó, pegou um pano e voltou para o seu quarto e começou a esfregar as paredes. Tentei impedir, dizendo que não tinha importância, que depois pintaríamos a parede. Ela me mandou sair, calar a boca e quando eu tentei argumentar, dizendo que você não se importaria com aquilo, ela gritou...” Minha mãe parou de falar. Primeiro me olhou assustada e depois abaixou a cabeça desviando do meu olhar. Seus dedos começaram a enrolar-se na barra da blusa, o que queria dizer que ela estava muito nervosa. – Fala, mãe. O que foi que ela disse? – Eu me desesperava para saber o que acontecia. – Ela disse: “É claro que a Júlia não vai se importar. A culpa é toda dela”. De repente todos os sons sumiram. Não havia mais passos no corredor, nem nossa respiração, nem qualquer voz. Senti minhas mãos suando frio e minha cabeça doer. Uma pontada na nuca seguida por uma no peito. Dores que misturavam tensão e medo. Minhas pernas fraquejaram de tal modo que, se estivesse de pé, teria caído. Aos poucos, o som das batidas de meu coração voltou, e a voz da minha mãe me chamando de volta. O Ovo do Dragão pesava em meu peito. – E depois, o que ela disse? – fiz essa pergunta sem voltar a olhá-la. Precisava saber o que viria a seguir, pois algo dentro de mim dizia que eu deveria ser Dias de Chuva |

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mesmo a culpada, responsável por algo que não sabia bem o que era, mas que poderia ser qualquer coisa, mesmo que impossível e improvável. – Mãe, me diz, o que ela disse depois? – Nada. Não disse nada. Luana me expulsou do quarto e se trancou em seguida. Chamei seu pai, mas não conseguimos fazê-la abrir. Então Leonardo subiu, e eles arrombaram a porta. Chorando ela se jogou em meus braços e pediu perdão por tudo. Disse que a amava, Júlia, e que não quis ofendê-la. Que estava apenas com medo. Eu dei de comer, ajudei-a a tomar um banho e deitei-a em meu quarto, para que eu pudesse vigiá-la. Assim fomos contornando a situação, até hoje. “Não era nem quatro da tarde quando ela disse estar cansada e fomos nos deitar um pouco. Seu pai, também cansado foi para o quarto de Leo, que havia saído. Deveria ser umas oito da noite quando acordei e ela já não estava ao meu lado. Chamei por Pedro e começamos a revirar a casa em busca dela. Então eu senti o cheiro de fumaça. Vinha do seu ateliê, filha...” Fez-se um longo silêncio entre nós duas e Audrick olhou-me com o canto dos olhos, provavelmente dividíamos a mesma dúvida: o surto de minha irmã via em mim seu motivo? – Ela pegou alguns de seus desenhos... sinto muito filha, sinto muito. – Minha mãe engolia as palavras e seus olhos se enchiam de água. – E botou fogo. Eu a tirei do quarto, enquanto ela se debatia e gritava. Seu pai jogou cobertas sobre as chamas que ainda eram pequenas. Sua irmã continuou gritando, e gritando. Então não tivemos escolha, chamamos a ambulância e... – Minha mãe se atirou em meus braços. Eu a envolvi e deixei que seu choro voltasse a correr. – Ah, Júlia! Como isso foi acontecer? Como? Nós cuidamos tão bem dela, e de repente tudo isso. Sei que aqui ela foi medicada e talvez eu devesse ter feito isso desde o começo, mas é tão difícil aceitar o que está acontecendo com a minha pequena. Não sei ao certo quanto tempo ficamos abraçadas. Precisei ser forte de um modo que não tinha sido para dar apoio a quem mais precisava. Só então vi meu pai e meu irmão que saiam do quarto onde Luana dormia a base de sedativos. Eles levaram minha mãe para comer e eu finalmente pude ficar um tempo sozinha minha irmã. Entrei no leito e no mesmo momento reconheci o sofrimento naquele sono induzido. Sentei na cadeira ao seu lado e me perguntei se havia ali, e qual seria minha parcela de culpa. Chorei por raiva e por me sentir incapaz de fazer algo por ela.

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A porta abriu vagarosamente deixando Audrick entrar. Ele parou ao meu lado e me abraçou. – Ela vai ficar bem – ele disse em meu ouvido. – Como você pode ter tanta certeza? – perguntei ainda chorando. – Ela vai. Farei tudo que puder. Audrick soltou-me e se aproximou de Luana. Segurou em sua mão e reclinou sobre ela, dizendo algo no ouvido que eu não escutei, fazendo seu corpo relaxar em um longo suspiro. Minha irmã parecia, então, tranquila. Ele veio em minha direção e me abraçou com força, guiando-me para fora do quarto. – Deixe-a descansar, Ju. Agora é com ela.

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Capít ulo 16

Desprendida, a folha vai ao céu

Havia se passado três dias desde que Luana deixou o hospital e estávamos reunidos na casa de minha mãe. Luana começaria um tratamento com psicanalistas e alguns remédios. Ela já não apresentara mais nenhuma crise, porém preferimos tratá-la da melhor maneira possível fazendo de tudo para confortá-la e evitar assim algo pior. Aquela tarde passava tranquila. Até conseguimos dar algumas risadas feitas de alegria verdadeira e espontânea, parecidas com raios de sol que escapam entre as nuvens mais densas. Faltava pouco para o jantar quando Leo se sentiu indisposto, dizendo que o peito parecia apertado e o corpo a fraquejar. Obviamente a tensão dos últimos acontecimentos fez com que ele se desgastasse muito. Deixamos que subisse para o quarto na companhia de sua noiva que logo depois veio se despedir. Minha mãe e eu levamos Luana para seu quarto, agora já arrumado, quase sem vestígios das crises. Pouco depois inquiri minha mãe sobre a situação de meu quarto. Tinha curiosidade em ver o que ela havia escrito nas paredes, porém meu pai às havia pintado no dia que soube que Luana teria alta. Eu e Audrick nos despedimos do restante da família e fomos para casa. Durante o caminho e até o momento em que deitei na cama só desejei que o tempo de surpresas ruins passasse. No dia seguinte acordei muito tarde, e para minha surpresa, mesmo já sendo depois do meio dia, Audrick ainda dormia um sono pesado. Seu peito erguia e abaixava numa respiração difícil em que ele parecia cansado. Com carinho, passei a mão na sua mecha de cabelo para afastar de seus olhos, e notei seu cenho franzido como de quem tem um pesadelo. Desejei ser como ele naquele momento e ler o que pensava.

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Ao levantar notei uma roupa pesada jogada sobre uma cadeira. A jaqueta de couro estava molhada, assim como as calças jeans, e um cheiro forte vinha delas. Passei a mão por dentro do tecido e notei que estavam repletas de suor. Só duas vezes havia encontrado as roupas de Audrick daquela maneira, e em ambas ele havia estado muito nervoso, e dizia que era a fera querendo vencê-lo. Então ele saia de casa e voltando exausto e transtornado. É claro que eu me perguntava se ele teria matado alguém naquelas noites. Mas Audrick me garantia que só fazia o mal a quem merecia o mal, e eu, erroneamente ou não, aceitava a resposta. Em casa ele voltava a acalmar-se e dormia enquanto suas tatuagens oscilavam um brilho vermelho por horas. Fiquei um pouco chateada ao imaginar que ele havia me deixado só durante a noite, em uma época como aquela e para ter certeza retirei o lençol e confirmei ao ver suas tatuagens avermelhadas. Voltei a cobri-lo. Parte de ser sua esposa era não julgar as situações estranhas e seus muitos segredos. Dei um beijo em sua testa e deixei que ele descansasse. Sai do quarto e, da sala, telefonei para a casa de minha mãe. Soube que Luana estava bem, mas Leo ainda se sentia cansado e faltara no emprego. Não vi nisso um problema e prometi visitá-los à noite. Tentei levar um dia normal e afastar os pensamentos ruins. Audrick levantou pouco antes do sol se por. Fizemos uma leve refeição e preferi não perguntar sobre a noite anterior. Quando chegamos na casa de meus pais fiquei contente em ver Luana abrir o portão para nos receber. Ela nos deu um forte abraço e disse estar feliz com nossa visita. Já na mesa do jantar, Leonardo é que não estava nada bem, abatido, a tensão trouxe de volta a bronquite. Já terminávamos o jantar quando a tosse de meu irmão ficou mais forte. Não precisamos pensar mais de uma vez e rapidamente o colocamos no carro de Audrick e fomos ao pronto-socorro. Com esforço convencemos minha mãe a ficar em casa com Luana, garantindo que tudo ficaria bem e que o ambiente da emergência não era bom para a saúde mental de minha irmã. Passei a noite no hospital com Leo, pois os médicos acharam melhor mantê-lo em observação. Eu só me perguntava como aguentaríamos mais essa dificuldade. Voltei para casa logo pela manhã apenas para pegar umas roupas, ia ficar na casa de meus pais com Luana enquanto minha mãe visitava Leo no hospital. Por volta das seis horas da tarde estávamos deitadas no sofá vendo televisão, quando minha irmã em um único movimento se jogou sobre mim e agarrou meu pescoço tentando me estrangular. Segurei em suas mãos para impedi-la, porém ela possuía uma força tremenda e o ar começou a me faltar. Transbordando ódio ela olhava em meus olhos. Dias de Chuva |

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– Leonardo vai morrer e a culpa é sua. Vadia! Eu tentei murmurar algo para que ela me soltasse, mas minha voz não saia. – Talvez, se eu acabar com você agora, nada disso aconteça. – Sua voz saia tremida e muito baixa. – Vadia. Vadia. Vadiazinha. Vai nos matar. Eu já sentia minhas forças se esvaindo quando a porta foi aberta por Audrick que vinha me buscar. No mesmo instante Luana largou-me e esgueirou-se como um animal para o outro lado da sala. – Maldito! MALDITO! – ela gritou. Audrick aproximou-se dela. – Se acalme Lu, sou eu, o mesmo de sempre. Você sabe quem eu sou. – Aos poucos ele conseguia se aproximar. – Eu sei que você não esqueceu... Os olhos dela de súbito se arregalaram como se tivesse visto um fantasma. Então um grito seco, um suspiro invertido, uma palavra muda que em vez de sair foi engolida, ressoando muito baixo. – Acabou! Foi só esta palavra, um som abafado, quase imperceptível. Ela desabou nos braços de Audrick a chorar. Eu sentei no sofá, massageando o pescoço. O telefone tocou, mas acho que não disse nada ao atendê-lo. Do outro lado da linha a voz de meu pai soou rápida, fraca e sem convicção. – Seu irmão piorou, venham para cá. Certa vez, quando ainda éramos adolescentes, perguntei ao meu irmão o que ele sentia quando tinha uma crise de bronquite ou de asma – já que ele sofria dos dois. Ele disse que ter uma doença respiratória era como se uma dor física se misturasse a uma dor psicológica, nem seu corpo e nem sua mente respondiam às vontades. “É como ser sufocado. Tiram o que há de mais vital, de uma única vez. É a mão da morte agindo de fora para dentro e de dentro para fora.” A rapidez dos acontecimentos não nos permitiu nenhum tipo de preparação, mesmo sabendo que nada seria possível realizar para amenizar a dor. A noite foi de pesar. Fazia muito frio, mas nada estava tão gelado quanto nossos corações. Durante a madrugada ele nos deixou, como uma folha soprada pelo vento, desprendendo-se da árvore de nossa convivência, para um lugar qualquer, onde não se poderia mais vê-lo ou senti-lo. O enterro foi na tarde seguinte, o cemitério rodeado por árvores vistosas cheias daquele verde plácido contrastava em cor, mas não em atmosfera, com o cinza do céu no horizonte. Somente naquele dia vi quantas pessoas amavam meu irmão. Amigos da faculdade, amigos do colégio, sua noiva acompanhada

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da família, as pessoas que trabalhavam com ele e tantas outras que nem poderia imaginar de onde eram. Todos cobertos com a dor do inconformismo e da tristeza. Lágrimas, olhares melancólicos, roupas escuras, abraços entre os vivos para tentar diminuir a dor da perda. Aquele que não estava mais lá com seu sorriso, com os cabelos a balançar no vento e a energia tão quente e avassaladora que nos impulsionava a ver o lado belo de cada momento. Não existia mais nada e todos choravam diante o vazio. Flores reunidas em uma ode ao amigo fiel, ao garoto cheio de sonhos, sopradas pelo vento do réquiem da dor. “Acabou”, e o murmúrio de minha irmã falava direto para meu peito. “Acabou”, era muito simples, muito direto, quieto como uma canção tão grave que se tornava impossível de ouvir, e sobre ela as notas da melodia do desespero de minha mãe que chorava inconformada diante a ceifa de seu primogênito.

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Capít ulo 17

Torna o vinho, para que supere a realidade turva

Após o enterro de meu irmão toda a aura na qual fomos envolvidos tornou-se densa e pesada. O mais simples movimento tinha o peso de passos na areia molhada, afundando a cada centímetro percorrido. Não existia ânimo algum. Para nada. Mas os acontecimentos em nada nos apaziguaram. Na noite que se seguiu ao velório, Luana teve outra recaída. Dessa vez a esquizofrenia a levou para uma introspecção avassaladora. Ela falava sozinha e parecia não perceber nossa presença. Nunca respondia ao nosso chamado e se buscássemos olhá-la de frente ela parecia não nos ver. Minha mãe desdobrou-se em cuidados com idas até as sessões de terapia, a aplicação dos remédios e, principalmente, vigiá-la. Mas a maior vítima da morte de Leonardo e da doença de Luana foi meu pai. Várias vezes me deparei com meu ele parado na porta olhando aquilo que se tornara nossa família, sempre com incredulidade e espanto. Suas palavras também foram sumindo, de frases curtas que nos dirigia a expressões vazias de concordância ou desaprovação. Meneava a cabeça, dava de ombros, suspirava. Perdeu o apetite e evitava a companhia de qualquer um. Parecia espelhar o comportamento apático de Luana. Não tardou para que o pegássemos bebendo. Tentamos o diálogo, mas ele estava desacreditado. Minha mãe o julgou por não se manter firme ao seu lado, e depois de uma desastrosa briga ele saiu de casa. Audrick passava a maior parte do tempo procurando por meu pai enquanto as três mulheres ligadas pelo sangue faziam companhia uma a outra, sem forças para nada além de olhar por Luana, que, histérica, murmurava coisas que não conseguíamos entender e batia com força nas paredes desferindo sequências de murros ou jogando-se pelos cômodos. Tentávamos segurá-la e sempre que a prendíamos em nossos braços ela nos mordia fazendo de tudo para se soltar. Ela nos repreendia dizendo que a machucávamos, e ao se ver livre investia violentamente contra si.

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Quatro dias após o sumiço de meu pai, Luana teve uma crise que durou mais de uma hora. Eu pensei em chamar a emergência quando ela correu por nós em disparada, subindo as escadas e depois em direção ao escritório. Eu fui atrás dela deixando minha mãe no encalço. Com movimentos rápidos minha irmã afastou a escrivaninha que ficava embaixo da janela e colocou no lugar uma cadeira de frente para o vidro. Sentou-se. Parou as mãos fechadas sobre o colo e manteve-se firme observado os contornos da rua, agora acinzentados e turvados pelas laminas transparentes dos grossos pingos da chuva. Quando minha mãe chegou não a deixei ir até Luana, por acreditar que minha irmã deveria ficar quieta, pois mesmo que sua mente não descansasse, seu corpo relaxaria. – Mãe, me deixa sozinha com a Júlia. – Fiquei em dúvida se minha irmã pedia ou ordenava isso, e reiterei o pedido apenas para não causar maior transtorno a Luana. – Tudo bem, mãe. Pode ir – falei. – Eu chamo a senhora se precisar. Vai ficar tudo bem. A contragosto, minha mãe nos deixou sozinhas. Assim que seus passos sumiram escada a baixo, minha irmã chamou meu nome. – Júlia – ela disse ainda estática, com o olhar para o lado de fora. – Pode falar, Lu – disse sem me aproximar. Eu estava sentada no chão, apreensiva, no entanto queria que um diálogo acontecesse, para saber o mínimo que se passava em sua mente. – Você não tem ideia do que eu vi? – Sua voz era baixa, porém nítida. – Eu vi muito sofrimento, apenas por egoísmo. Vi mentiras, vi criaturas horríveis, vi nossas mortes e tudo que eu enxerguei tem me perseguido. Alguém me contou uma história, Júlia, uma história de tempos distantes quando homens e mulheres que almejavam muito poder vendiam a sua alma em troca de favores. Neste tempo remoto, pactos foram feitos que perduram até hoje e em todo lugar desgraças vem acompanhando os que fizeram o acordo e a todos que convivem com eles. Meu coração disparou. O que ela queria dizer? Seria algo sobre os domuns? Eu quis perguntar, mas não saberia como. Enquanto tentava entender, sua fala mudou o caminho do seu raciocínio. – Irmã, eu te amo muito... – ela falava sentida. – Isso nunca vai mudar, não importa o que eu diga. Você entendeu? Ela continuava sem olhar para mim e eu não respondi. Senti uma dor enorme. A morte de Leo ainda era presente. Tudo aquilo que eu mais amava parecia ruir. – Você entendeu? – ela repetiu com ênfase. – Entendi – falei ainda confusa. – Eu também amo você. Dias de Chuva |

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Ela suspirou e o ar que inspirou em seguida demorou longos segundos para sair. – Pronto – ela falou, deixando a cabeça pender para o lado como se quisesse olhar algo que estava torto. – Cai mais uma peça do tabuleiro. Reis e rainhas logo mais serão coroados. – Depois dessa fala, ela levantou-se e virou-se para mim, com a cabeça balançando de um lado para o outro como um pendulo ao contrário, e muito vagaroso. – Eu quero me deitar. Vem comigo? Levantei-me e abracei-a. No seu quarto a coloquei na cama e a cobri. Notei os hematomas que já se arroxeavam e fiquei aliviada por não ver nenhum corte. Deixei seu quarto, mas mantive a porta semiaberta. Espiei no quarto de minha mãe que enfim havia se entregado ao sono. Desci até a sala onde encontrei, surpresa, Audrick me esperando. Mal o vi e ele me abraçou com força. – Ju – ele dizia no meu ouvido, sem soltar-me –, seu pai tentou suicídio mais uma vez. Ele está muito ferido e fraco. Levei-o para o hospital. O ar faltou-me. O chão abriu sob meus pés, e tudo ficou outra vez quieto. – Onde você o encontrou? – perguntei finalmente, sentando no sofá por sentir-me um pouco tonta. – Em frente à antiga casa de vocês. Ele estava sem consciência quando cheguei. Eu deveria ter pensado nisso antes. Chamei a emergência e fiquei no hospital a maior parte do dia, só voltei para cá depois dele ter sido colocado no quarto. Desculpe não ter ligado para você, mas imaginei que estivesse tendo problemas com Luana e não queria dar essa notícia por telefone. Amanhã vamos ao hospital ver seu pai e cuidar dele, ele deve dormir por toda a noite hoje. Concordei, não tão facilmente. Chorei muito, mas quieta, para não ser notada por minha mãe e irmã que descansavam. Eu só queria esquecer, descansar. Audrick me abraçou forte e deitei a cabeça em seu colo, desejando que todo o resto fosse uma mentira. Depois de me acalmar um pouco, fomos à cozinha tentar jantar. Eu revirava a comida com outra coisa em mente: durante muitas daquelas noites Audrick sumia e retornava do mesmo modo, exausto, tenso, preocupado. Larguei meu prato sobre a mesa e abria a torneira da pia a fim de lavar a louça. – Audrick, eu preciso perguntar algo que tem me incomodado muito. – Eu não queria parecer rude e estava cansada demais para brigar. Tentei ser o mais amável possível, mas precisava saber o motivo do sumiço frequente. – Sei que você também está tenso com tudo isso, mas, por que some com tanta frequência? – Júlia... – Ele fechou a torneira da pia e com um pano em suas mãos enxugou as minhas, fazendo-me virar para ele. – Imagine eu, que sou tão forte, me vendo de mãos atadas sem poder fazer nada por sua família. – Sustentei seu olhar.

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Aquilo não era o suficiente. – Estou muito triste com o que vem acontecendo e não posso fazer nada. NADA! – Ele deu-me as costas e socou a mesa tão forte que achei que a quebraria. – Por isso eu saio, todas as noites, para a raiva não ficar mais forte do que eu. Se isso acontecer, eu posso perder o controle me tornando a fera que um dia você viu. – Mas eu vou entender se você... – ia dizendo, mas ele me interrompeu. – Não, não vai. – Ele mantinha-se de costas para mim. – Naquela noite você não viu nada. Quando eu... quando eu me transformo é muito diferente daquilo. É muito mais feio. Nós, domuns, somos como a própria besta. Eu também quero entender o que está acontecendo. Você sabe de todo mal aí fora, e se existe um motivo, um culpado para o que está acontecendo – ele apertou a mão como se quisesse esmagar algo entre os dedos –, eu preciso saber. Larguei o pano de prato sobre a mesa e o abracei pelas costas. – Está tudo bem, Audrick. Tudo bem – disse virando-o para mim. – Você está comigo, é o que importa. Terminamos de lavar a louça e constatei que minha mãe e irmã dormiam profundamente. A meu pedido, Audrick e eu deixamos a casa por alguns instantes. Queria respirar o ar úmido deixado pela chuva que se fora. Enquanto caminhávamos começou a cair uma garoa, e não ligava de ser agraciada com algumas gotas geladas. Eu não sabia o motivo de tudo aquilo acontecer conosco. Lembrava-me de momentos de fome e dor, mas não tanta dor quanto agora. Ainda tinha na memória os momentos em que a vida se tornara um presente divino: eu me dedicava à pintura, tinha a família sempre junta e cheia de motivos para rir, e agora, tudo ruía. Eu não sabia, até ali, que toda fantasia tem seu tempo para findar, seja com a última nota da melodia, seja a última rima, seja a frase final antes do ponto. A última página, o último gole de vinho. Nunca é para sempre. Então vem a despedida: essa fantasia sobe nas asas do unicórnio mágico e parte deixando em seu rastro estrelas multifacetadas e cintilantes subindo no ar como balões infláveis, mas impossíveis de tocar feito névoa de poeira encantada. E sobre o asfalto ficam nossos pés. Realidade cismada e tangível de grandes buracos internos. Subiu ao céu, como uma fênix em chamas alaranjadas, um clarão imenso, tremendo o ar em um som estrondoso e horrível, arrebentando nossos ouvidos e abalando a estrutura de nossos corpos e, sobre nós, no horizonte próximo, torres de um castelo de fogo ergueram-se coroadas de fumaça e fuligem. Um balé estrelado por labaredas que dançavam esguias no céu, em arabescos titânicos de calor e destruição. Dias de Chuva |

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Capít ulo 18

Breve

Minha casa ruía. Audrick correu em disparada à minha frente, chegara muito antes de mim à cena pérfida que se apresentava. Quando estava próxima, vi Audrick pulando o portão. Destranquei-o com pavor. A fumaça e o fogo vinham dos fundos da casa. É no casebre, pensei. Corri pelo quintal da frente e Audrick já o atravessava ao meu encontro, o arco macabro de fumaça e fogo às suas costas, e nos seus braços minha mãe ferida e desacordada, com a pele descascada e chamuscada, repleta de queimaduras. – Por sorte, ela está viva – ele fez uma pausa um tanto ofegante. – Não achei a Lu. Neste instante outras cores tomaram a noite. As luzes da ambulância invadiram minha visão periférica junto com os sons estridentes. Um turbilhão de luzes vermelhas e brancas girava, pintando meu desespero. Eu olhava minha mãe sem poder tocá-la com medo de que sofresse ainda mais, devido à pele que ardia com queimaduras. Eu falava apenas para que ela não me deixasse, para que fosse forte. Uma guerreira que me inspirou a lutar sempre, não importando o grau de opressão a que se é submetido, não poderia partir assim. A maca subia pelas mãos dos bombeiros para dentro da ambulância, quando Luana surgiu dançando sua própria coreografia da morte. Nua, seu corpo cambaleava e no rosto um riso leviano. Parou de andar quando me viu. – Fui eu que a matei – minha irmã gritava. – Eu que joguei o querosene em todo o casebre, ouviu, Júlia? Eu atirei o fósforo quando ela não viu. – E sua fala foi cortada por uma mistura de riso e choro. – O que achou dessa, Júlia?

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Audrick correu em sua direção, seguido de dois paramédicos. Ela se debateu, e a força dos três foi preciso para contê-la. Dentro da ambulância onde estava minha mãe, um socorrista me inquiriu: – Nós precisamos ir, moça. Você vem? – Fez um gesto para que eu entrasse. Afirmei e subi para ficar ao lado de minha mãe. A porta da ambulância foi fechada e partimos para o hospital, enquanto os gritos de minha irmã ficavam cada vez mais longe e o silêncio devido ao desmaio de minha mãe, desesperador. No caminho até o hospital, sem palavras de adeus, sem esperança, ela se foi deixando no meu rosto e coração lágrimas que nunca secariam. Me abandonou, como talvez, eu tenha feito primeiro.

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Capít ulo 19

Dentre a verdade, há desesperança

A morte de minha mãe fora escondida por alguns dias de meu pai e minha irmã, internados no mesmo hospital graças ao dinheiro e influência de Audrick. Eu tornei-me uma sonâmbula de olhos abertos, ouvindo posicionamentos médicos, acenando e concordando com as teorias malucas e superficiais a respeito do estado de minha irmã ou da morte de minha mãe. Não acreditava mais em nada. Ia para minha casa apenas para tomar banho, algo que não fazia mais todos os dias. Lembrava-me de comer apenas por insistência de meu marido, mas que em nada se esforçava para me animar. Ele mesmo havia mergulhado no abismo da incredulidade. Eu estava no quarto do hospital com minha irmã. A televisão preenchia o silêncio de maneira pouco eficiente. Ela e eu não havíamos mais conversado desde o encontro no escritório de meu pai, ficando as duas mudas e nem sei bem o motivo. Devagar a porta abriu e Audrick parou apoiado no batente por um instante. Luana, que tinha a face virada para o lado contrário, olhou para ele e desatou em lágrimas. Ele, por sua vez, abraçou-a, também em prantos. Eu sabia que eles tinham muita afinidade. – Ah, Audrick... por que fez isto? Por que deixou que isso acontecesse? – Minha irmã falava sofrida, com a voz embargada no choro. Eles se separam do abraço. – Você sabia que tudo isso aconteceria. Poderia ter evitado. Toda essa desgraça é tanto culpa sua quanto de minha irmã. Eu os amo tanto e por isso os odeio de um modo que nunca poderia imaginar. Foram vocês e essa paixão cega que trouxe nossa desgraça. Não vamos durar muito mais. – Eu mal podia crer no que ela dizia. – Ah, Audrick. Você sabia que algo assim aconteceria, não sabia? Trouxe-nos até o céu, para partilhar de nossa ida ao inferno. E o que podemos fazer? Não podemos fazer nada, não é mesmo?

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– Lu, não diga isso ele... – tentei interromper minha irmã, mas ela suprimiu minha intenção com um grito. – Ele tem toda a culpa! Foi egoísta, não aguentava a própria solidão e moldou tudo isso que somos para ter seu coração preenchido de uma companhia à altura. Foi isso que ele fez com você, Júlia. Até nós éramos apenas parte do plano. Parte do jogo onde foi sempre ele quem deu as cartas e você, minha irmã, era apenas o fantoche que ele com mãos habilidosas fazia agir desta ou daquela maneira. E tudo por quê? Para acabar com suas próprias dores, com suas perdas e sua fraqueza – Luana gritava tanto que imaginei que logo uma enfermeira apareceria para ver o que acontecia. – E tudo por um capricho dele! E então ela calou-se por um momento e achei que Audrick se defenderia, que dissesse que não matou nossa família, porém ele nada disse. – Você, minha irmã, também é culpada, mais que nosso pai. Sim, ambos sabiam de muita coisa – sua voz agora era fria e baixa –, mas nenhum dos dois revelou nada. Mas só você, Júlia, poderia ter impedido que isso acontecesse logo quando soube que era apenas uma aluna para ele. Só que a sua vaidade falou mais alto, afinal, ser a escolhida de um homem como Audrick a fazia aceitar tudo. Cuidou muito mais de desenvolver seus talentos e aptidões para estar ao nível dele do que cuidar e proteger sua família. É realmente muito bonita, talentosa e erudita, Ju, mas e agora? Vai aguentar esse peso? Por um instante a luz do quarto piscou. Luana arregalou os olhos e o ar entrou fundo em seu pulmão e então voltou a chorar. – Vocês se amaram demais! – Ela soluçava. – E ignoraram todas as consequências. Nem todo o amor do mundo vale tanta desgraça e infelicidade. São egoístas. E apenas isso. – Ela relaxou afundando-se no travesseiro. – Está quase no fim agora... falta pouco..., por favor, por mim, cuide da Júlia. Eu a amo demais e não vou descansar em paz sabendo que ela corre perigo. – Não diga isso! – Audrick voltou-se para abraçá-la. – Você não, Lu. Você não! Ela deu um risinho no meio do choro. – Não seja bobo. Você sabe. Ele veio me visitar faz tanto tempo... – Não, Lu! – E acariciava os seus cabelos. – Eu faço qualquer coisa por você... – O tempo de fazer algo por mim, Audrick, já acabou. Luana adormeceu ao mesmo tempo em que a porta se abriu deixando entrar a enfermeira que apresentava no rosto espanto, pena e indignação. Dias de Chuva |

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– Vocês são parentes do senhor Pedro, internado no sétimo andar? – Sim – respondi levantando-me –, aconteceu algo com meu pai? – Venha comigo, senhora, por favor. Eu ainda tentava entender o que ambos conversavam. Do que minha irmã falava? O que ela sabia e eu não? Porém, todas essas dúvidas ficaram esquecidas quando outra desgraça nos assolou. Em uma sala reservada, eu segurava a mão de Audrick, sem acreditar no que ouvia. – Não poderíamos imaginar – dizia a enfermeira –, ele acertou com um golpe o espelho do banheiro e com um pedaço do vidro cortou a garganta. Não pudemos fazer nada… Todos os sons e toda a luz sumiram. Um buraco tragou-me para dentro da terra. Sentei na cadeira mais próxima e ali deixei de existir por horas. Foi assim que enterrei também meu pai. Em um dia como outro qualquer, com poucos presentes: dois amigos de seu trabalho, eu e Audrick. Um dia vazio demais para um homem que teria muita coisa para contar e de quem eu não soube como conhecer nem metade dos sentimentos e histórias.

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Capít ulo 20

Última flor

– MALDITO! – Luana gritava e se debatia na cama onde fora amarrada para que não se ferisse ou avançasse contra algum enfermeiro. – VEM VOCÊ ARDER NO INFERNO, CACHORRO! NÃO RIA DE MIM. PARE DE BRINCAR COMIGO. MALDITO! Todos não acreditavam na força da pequena Luana quando entrava naquele estado. Transferi-la para um hospital psiquiátrico assim que ela deu a primeira crise de histeria seria o mais indicado, porém eu relutava com medo de não poder ficar ao seu lado se assim o fizesse. Minha irmã gritava e se debatia contra a cama e depois caía em um sono profundo enquanto seu corpo se contorcia em espasmos seguidos. Audrick não parecia nada do que fora um dia. Ele apenas chorava. Tornara-se um fantasma perambulando pelos cantos, não tinha forças para comer, se banhar ou falar comigo. Quando não estava ao lado de Luana, ou na sala de espera, sumia, e voltava sempre mais e mais cansado. Era madrugada e eu aproveitava a calmaria de minha irmã para dormir um pouco no pequeno sofá de dois lugares em seu leito. Deitei-me no colo de Audrick que ficara comigo e notei que há uma semana ele não trocava de roupas. Estava pálido e seus olhos tinham uma expressão cerrada de raiva. Ignorei tudo, pois o cansaço era maior. Mas logo um grito rouco e grave foi emitido por Luana. Seu peito se levantou e abaixou como se tivesse respirado com muita força. Seus olhos se abriram, porém, sem cor alguma: eram duas bolas brancas sem íris. – Não acha que vai morrer assim fácil não é pequena? – A voz que saía dela era gutural e masculina. Levantamo-nos no mesmo momento. – Ainda falta muito para você morrer, pequena Luana. Eu e Audrick estávamos paralisados diante a cena. Dias de Chuva |

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– Não! – gritou ela com a voz de menina que ainda tinha enquanto voltava a se contorcer. – Não me toque seu maldito demônio. Não! Audrick deixou o quarto e em seguida um enfermeiro entrou, segurando a injeção com sedativo que já se tornara rotina para Luana. Depois de tê-la sedado, ele me encarou. – Não é mais possível mantê-la aqui, senhora Júlia. Luana precisa de outro hospital. Ele mal terminara de falar e os lençóis da cama foram tomados de vermelho escuro. Manchas que ganhavam o branco onde antes só repousava o logo do hospital. – Ela está sangrando – falei tremendo. O enfermeiro ergueu a coberta e saiu em busca de ajuda enquanto eu assistia ao sangue ralo de minha irmã deixar seu corpo através dos poros de todo o corpo. Não houve tratamento, nem mesmo um novo diagnóstico que justificasse o seu estado, e nas horas que se seguiram, Luana faleceu. Mecanicamente dei a sequência que seria necessária para liberar seu corpo para o enterro. Liguei para Audrick e ele não me atendeu. Fui para casa na esperança de encontrá-lo e tudo estava como havíamos deixado, sem nenhum sinal dele. Liguei para a filial da empresa, mesmo duvidando que ele, justo alguém como ele, tivesse ido trabalhar naquela situação, mas lá ele também não estava. Não o encontrei por todo o dia e início da noite. Cumpri o velório de minha irmã, sozinha, recebendo um ou outro colega de sua escola, ou amiga de minha mãe. Depois do enterro, eu me via sem chão, sem saber se doía mais ter perdido minha irmã, ou Audrick ter me abandonado. Entrei no carro, e não consegui dar a partida para ir para casa. Chorei, gritei e implorei para que ele aparecesse, para não me deixar ainda mais sozinha, as lágrimas molharam todo o meu rosto. Batia a cabeça várias vezes contra o assento do motorista e outras tantas vezes soquei o volante, pois se eu pudesse, destruiria o mundo todo com minha raiva. Atrás de mim soou a buzina de um automóvel, logo depois o motorista se aproximava do meu carro. Pelo retrovisor acreditei que conhecia aquela silhueta de algum lugar...

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Parte 4 A RECOMPENSA


Capít ulo 21

A decisão

– Já está na hora de acordar, criança. – A voz dissimulada entrava direto no meu cérebro. Sentia-me tonta e o corpo doía. Aos poucos me esforcei para abrir os olhos como se minhas pálpebras pesassem toneladas, enquanto luzes douradas começavam a flutuar na escuridão que me encontrava. A garganta estava seca e conforme recuperava a consciência as dores no corpo aumentavam. Eu estava presa pelos tornozelos e pulsos, sem conseguir me mover e só então passei a distinguir o porte autoritário à minha frente. – Muito bem. Viu, meu sobrinho, eu disse que ela logo acordaria? Os olhos cerrados e cruéis feito um gavião, o cabelo loiro para trás, a face zombeteira e a frieza: Vânia Rachmanninoff. Ele afastava-se de mim devagar e eu começava a ver onde estava com mais clareza. Era uma sala grande, de paredes muito altas de pedra e com poucas janelas. À minha frente o piso subia um degrau, criando outro patamar onde o tio de Audrick sentava-se em uma espécie de trono, estofado por um tecido negro cheio de pó e o encosto ornamentado em madeira muito bem trabalhada. Ao seu lado repousava uma garrafa e uma taça com um estranho líquido verde, ambas sobre uma pequena mesa circular. A iluminação vinha de castiçais, dando ao ambiente uma atmosfera bruxuleante e instável. Eu estava suspensa pelas mãos e pés, amarrada em forma de cruz. Olhei para meu lado direito e reconheci Audrick, preso do mesmo modo que eu, porém, com correntes muito grossas em vez de cordas. – Fugir? FUGIR, com você, Júlia. É isso que Audrick pretendia – dizia Vânia zombeteiro, bebendo de sua taça. – Achou mesmo que fugiria de mim? – E de repente dominado pela fúria jogou a taça contra o chão, perto dos pés de Audrick. – O que achou, canalha? Que me daria as costas para viver sua linda história de

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amor com essa morta de fome? Que faria com que todo meu esforço e dedicação fossem esquecidos? Ou melhor, achou ainda que se tornaria mortal outra vez? Que deixando de beber do elixir um dia poderia morrer? Não, seu idiota! Não morreria, definharia em uma velhice eterna. – Sei que outros já morreram. – A voz de Audrick soava fraca e baixa. – Não cretino! Não morreram. Foram mortos, o que é muito diferente. E não é fácil matar um demônio. – Demônio? – murmurei incrédula. – Ah, isso mesmo, Júlia. – Vânia ria e se virou para mim de uma vez. – Um demônio. O seu anjo, o seu amor perfeito, seu salvador fez um pacto com a Besta em nome de dinheiro e poder. – É mentira! – gritou Audrick – E você sabe. – Não, não é! Você quer me convencer de que é um tipo de reencarnação de Fausto? Que fez o que fez pelo conhecimento? Não! Você aceitou ser meu discípulo, pois queria poder, queria viver sua boemia pela eternidade, deitar-se com mulheres, sem se preocupar de onde viria sua riqueza. E para tanto, o que queria era poder. Só poder e um modo de disseminar sua raiva. – Audrick...! – Minha voz saiu chorosa e baixa. – Do que ele está falando? Você esteve aqui desde a morte de Luana? – Uma coisa de cada vez, menina. Uma coisa de cada vez – Vânia disse para mim com sarcasmo e virou-se para Audrick. – Mas você é um fraco e eu já deveria saber, seu merda! Mesmo assim, mesmo depois que você achou que nada disso bastava, eu o ajudei a conseguir o que queria. Um amor, não uma garota qualquer, mas uma que estive a sua altura, não é? Para isso teve paciência e persistência, admito e o admiro por isso. – Agora sua voz soava fria e certeira. – Escolheu uma criança para que pudesse moldá-la ao seu modo. E o que eu fiz? Só o ajudei. E agora é chegada a hora e você desiste e resolve me apunhalar. Você fez tudo isso, é meu aprendiz e me deve respeito, me deve obediência, esse é o pacto. Antes do Diabo comprar sua alma, eu que respondo por ela, e por tudo que faz. – Audrick! – eu implorava. – O que você está escondendo de mim? – gritava entre lágrimas. – Júlia, eu não vou deixar nada acontecer com você. – Ah, não vai? – perguntou Vânia, andando de um lado para outro alternando o olhar entre mim e Audrick. – Escute, Júlia, querida. Vou contar uma história. Era uma vez um jovem rebelde que vendeu sua alma em troca de poder, conhecimento e dinheiro fácil. E eu o tornei meu discípulo. Claro que o preço foi Dias de Chuva |

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muito sofrimento e a morte de seus pais. E de tempos em tempos, uma oferenda para a Besta. Ele aproveitou bastante essas facilidades e rodamos todo o mundo – seu discurso era frio e rápido. – Quando se cansou de ter a cada noite uma mulher diferente em sua cama, resolveu que deveria apaixonar-se e ficar com uma única para sempre. Eu fui contra no começo, afinal, para que um demônio precisa de amor? Mas vi que não era isso. Tudo se tratava de um capricho de um garoto que sempre teve o que quis da maneira mais fácil possível. Não que destruir outras vidas seja fácil, mas pode ser incrivelmente prazeroso. “Eis que este jovem demônio procurou mulheres de todos os tipos e nacionalidades, mas nenhuma, dizia ele, o completava ou estava à sua altura. Foi então que a ideia brilhante surgiu. Para alguém que tem toda a vida, esperar uns vinte anos para ter o que se deseja não seria problema. Era só encontrar a menina com o espírito certo, sagaz e inteligente em uma situação propícia e fazer dela, a sua aprendiz desde muito cedo. Assim, ela seria exatamente o que ele desejava. Viu só como não era amor e sim capricho? Quando você ama alguém não há necessidade de moldá-la à sua maneira. Você a ama e pronto. Você é esperta e deve concordar comigo, não é? E assim ele a escolheu. A jovem criança de lindos olhos e espírito guerreiro que, assustada e indefesa, viraria seu brinquedo.” – Eu não... não acredito nisso. – Minha cabeça pendia. Eu olhava para o chão, vendo as lágrimas tocarem-no em pequenas explosões. – Não seja estúpida! Você não é burra. Acha que ele ajudou sua família por pura bondade? Porque era um samaritano? Ora, Audrick é um demônio, e como tal vive apenas pela sua vaidade e para saciar seus caprichos. A única pessoa que tentou defender você e sua família de meu “sobrinho” foi seu querido papai alcoólatra. Sim, ele mesmo. A quem você nunca conseguiu amar de verdade. Ele queria expulsar Audrick de todas as maneiras de sua família e da sua vida, pois sabia muito bem que eu era a própria personificação do Diabo, assim como esse jovem e belo rapaz. Seu pai! O fraco, o alcoólatra. E não pense que foi pelo emprego e pelo carro que ele aceitou as visitas de meu pupilo. Foi porque eu o obriguei. O submeti às mais terríveis torturas sob o juramento de que se viesse a atrapalhar os planos de meu protegido, eu que torturaria a sua família, e principalmente você, minha princesa, até que todos prefeririam morrer a ter de continuar sob meus cuidados. – Vânia ficou quieto por um instante, mas logo emendou. – Ah... mas verdade seja dita, Audrick nunca soube dessa parte do seu papai. Eu, tomada pela raiva, já não ouvia mais nada que Vânia dizia. – Audrick, você nos salvou sabendo que depois acabaríamos assim? – gritei desesperada.

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– Tantos anos, Júlia. Tanta coisa aconteceu. – Sua voz vinha apressada. – Mas eu mudei. Não iria mais transformá-la. Iríamos viver tranquilamente do jeito que estávamos se não fosse por Vânia. Eu ficaria com você durante toda a sua vida. – E eu me veria envelhecer ao lado de você sempre jovem e forte? – Eu olhei pra ele, estava suado, tenso. Eu gritava entre o choro. – Até onde acha que isso daria certo, Audrick? Acha mesmo que seu amor bastaria? – A verdade vinha à tona, tudo que eu nunca quis ver. – Como eu fui tola. No fundo eu esperava o quê? Ficar sempre jovem ao seu lado? – Quanto mais eu gritava mais dor e raiva eu sentia. – Ou talvez, você logo me abandonasse? – Não, Júlia! Não. Eu amo você de verdade. Não queria que sofresse. Eu desisti de deixá-la como eu, justamente para que nem você e nem sua família, que eu também aprendi a amar, sofressem. – Audrick tentava se controlar. Sua voz caiu do grito para uma súplica. – Eu daria um jeito de torná-la jovem, ou envelheceria ao seu lado. Eu faria de tudo para evitar sua dor. – Mas não evitou, Audrick! – gritei. – Você matou toda a minha família e ainda chorou ao meu lado... – Ah, não, não, não – interrompeu Vânia balançando o dedo da mão direita de forma negativa, com o tom na voz de quem repreende uma criança. – Não foi ele quem realmente matou a sua família. Esse mérito é meu. – O que diz? – questionei sem saber se olhava para Vânia à minha frente, ou Audrick de cabeça baixa ao meu lado. – Audrick é um fraco – Vânia dizia com desdém. – Fui eu quem trouxe de volta a doença de seu irmão e que deu as visões à sua irmã, Luana. – Sua voz era de puro sadismo. – Foi uma forma de castigá-los e mostrar a você, Júlia, que é melhor fazer o que eu mando e agir de acordo com o plano inicial. – Seu monstro! – gritei. – Sem elogios, minha querida. Não preciso deles. – Ele andou até a pequena mesa e se serviu de um pouco do líquido fosforescente. – No entanto, escute-me. Eu sou bem pior que isso. Sabia que era eu que a seguia na adolescência? Percebeu-me certa noite, saindo da casa de Miriam, não é? – Sua voz tornava-se mais sórdida. – Sua mãe não resistiu graças a mim, seu pai retomou o vício por álcool também graças a mim, e claro, também fui eu que fiz sua irmã morrer ensopada em seu próprio sangue. – MALDITO. EU MATO VOCÊ! – gritei com todo meu ódio. – Não mata não – ele respondeu como se dissesse a uma criança que não pode comer um doce. Dias de Chuva |

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– Seu filho de uma puta! – O corpo de Audrick parecia sofrer uma espécie de mutação. Garras tomaram o lugar das unhas e tudo ao seu redor ganhava um brilho diferente. Os olhos cravados em ódio cerravam com fúria à frente de seu opressor. Sua boca transmutara-se em uma bocarra como de uma cobra, ganhando um tamanho muito maior do que o normal. – Como pode fazer isso com Luana? Eu acabo com você. – Ora, ora – Vânia parecia ignorar a raiva do sobrinho –, por que você não termina o seu show de uma vez? Tem medo de que ela o abandone? – Não tenho! – Audrick respondeu entre os dentes e o olhar semicerrado. A camisa de Audrick rasgou-se e de suas costas grandes asas surgiram, asas como as da fênix, criadas de fogo e brasa, em uma explosão de calor. Da sua coluna uma serpente nasceu rasgando sua carne. Larga e de grandes olhos amarelos, com dentes afiados. Ao redor dos olhos de Audrick, uma grande sombra surgiu, e o brilho flamejante que envolvia sua íris tomou todo o seu globo ocular. Mas ao mesmo tempo em que tanto poder era emitido por ele, sua face transfigurava em uma magreza fraca. Toda minha raiva, meu ódio e minha tristeza deram lugar ao pavor. Eu não achei que existisse uma transformação desse tipo. Aquele que eu amava parecia ter se transfigurado na própria besta. Em nenhum dos sonhos ou pesadelos que tive, imaginaria aquilo. – Você me paga, Vânia – berrou Audrick. – Ah, cale a boca – gritou Vânia em seguida –, você já é fraco e depois de ficar sem o elixir não pode nem se manter assim por muito tempo. Já basta. Eu estou ficando cansado de sua teimosia. Ou você a faz passar para o nosso lado de uma vez, ou eu mato sua esposa. – Seu cretino, miserável – gritava Audrick, sua voz soava gutural –, se tocar em um só fio de cabelo da Júlia mando você de volta ao inferno. – Eu não só toco como faço com ela o que eu quiser. – Ele se aproximou de mim, e com a mão em meu pescoço começou a me sufocar. – Está vendo, Audrick? Está vendo? – Vânia me trazia de volta do transe. Meu corpo estava dormente, mas os pensamentos começavam a parecer mais claros, porém, nem por isso, sensatos. Não havia retorno para mim. Não podia trazer meus pais de volta e nem meus irmãos. A Júlia cheia de desejos e sonhos comuns e humanos também não cabia mais ali.

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Com a cabeça erguida para trás e o pescoço dolorido nas mãos de Vânia olhei para o lado. Audrick, transfigurado em fera, ofegava. Ele era tudo o que eu tinha. Apesar de seu porte ser de força e ferocidade, ali, nos seus olhos, eu via a tristeza, o desespero. Todos mudaram nos últimos anos e dentro de mim eu sabia que ele realmente queria o meu melhor. – Ou vocês fazem o que estou mandando ou eu a mato! – gritava Vânia para Audrick. – Essa jovem sabe demais e enquanto estiver viva será um tormento em sua vida e na minha. A escolha é sua, Audrick. Você é responsável por ela. Porque esse demônio filha da puta não me mata logo?, pensei. Mas só havia uma explicação por ele se ocupar tanto comigo, e o motivo era Audrick, seu pupilo. – Ela não fará isso! – Audrick gritou. E saiu de minha garganta, a decisão. – Eu farei – disse com a voz falha, devido ao sufocamento. – Não, Júlia – Audrick gritou. – Você não pode... – O que você disse, querida? – Vânia me perguntou, fingindo não entender, ignorando o posicionamento do outro. – Eu disse que farei o que manda. – Você jura? – Seus lábios rasgaram o rosto num sorriso maléfico. Não respondi. Vânia urrou, demoníaco. Seu corpo por inteiro pegou fogo, sua pele avermelhou-se. De suas costas não surgiram duas, mas quatro asas grandes e negras. Em sua testa um olho abriu-se. Ele dobrou de tamanho, largou-me e passou a sufocar Audrick. Mesmo ambos transformados nas horrendas criaturas, Vânia agia sem fazer nenhum esforço. – Então, garoto, é muito simples, ou você termina o serviço, ou a mata. Caso contrário, eu acabo com você. – Sua voz soava como um rojão, grave e muito alta. – Agora é com você, Júlia, ou você ou ele. O que vai ser? – Não faça nada com ele, por favor! – implorei. Só então constatei como me seria doloroso perder o único que me restava. Ele riu. Uma gargalhada grave e monstruosa. – Com pena de um demônio? – E gargalhou ainda mais. – Ele realmente fez com você aquilo que queria... então, o que vai ser Júlia? Você precisa querer. Você jura? – Eu juro! Dias de Chuva |

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Capít ulo 22

O começo

Vânia nos desamarrou. Soltou-me primeiro, rasgando as cordas sem esforço, deixou-me cair num baque doloroso. Estava fraca, e meus joelhos foram os primeiros a sentir o impacto e enquanto tentava recuperar o ar vi, agora já com certo esforço, Vânia indo em direção à grande e única porta do mausoléu, de onde repetiu palavras guturais que não pude entender. Sombras como tentáculos e fumaça preta enrolaram as correntes que prendiam Audrick, soltando-as. Ele caiu em seguida, porém conseguindo sustentar-se com um dobrar dos joelhos, enquanto Vânia desaparecia através da grande porta e seu feitiço se dissipava, deixando um cheiro forte de queimado. – Júlia, Júlia... – ele dizia enquanto lágrimas furtivas tentavam escapar, mas que, com o calor que emanava de si, feito mágica evaporavam. – Você está bem? – Ele me abraçou e me colocava no seu peito. Meneei afirmativamente a cabeça, mas ainda não tinha forças para falar. – Eu não quis que nada disso tivesse acontecido – ele dizia com a voz trêmula. – Confesso que no começo tudo não passou de um capricho, mas conforme você cresceu e eu me aproximei de sua família, tudo mudou. Desisti da ideia de entregá-la ao ritual e às mesmas mazelas que eu vivo. Mas não pude me afastar de você. Eu não teria forças para continuar sem você. Audrick, ainda em sua forma demoníaca, me abraçou mais forte. Seu calor enfim me aquecia. Uma luz alva ganhou seus olhos, aumentou e iluminou tanto nosso redor que fechei os meus. Senti-o voltando ao tamanho normal e pude voltar a olhá-lo. – Eu... – gaguejava um pouco ao tentar falar, ainda pela dor e pelo frio. – Eu te amo, Audrick. – De algum modo, dentro de mim, eu não conseguia culpá-lo. – Eu... eu farei o que prometi.

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– Mas você não precisa fazer isso. – Sentia suas lágrimas quentes no meu pescoço e ombro. Ele me abraçava com força. – Não precisa se tornar como eu. – Audrick... não... não é mais tão fácil. – No abraço o seu corpo estava curvado sobre mim. Eu olhava em seus olhos tão cinzas: a lembrança mais antiga e forte que tinha dele. – Não é uma questão de escolha. – Júlia, as coisas não são simples assim. Você vai sentir muita dor, vai sofrer muito… – Eu... eu aguento... Audrick me olhou tendo no rosto apenas preocupação. Ele pegou-me no colo e com certo esforço levantou-se. – Vamos subir... – ele disse, confortando-me em seus braços. – Você precisa descansar. Foi só quando saímos do calabouço que reconheci onde estávamos. A arquitetura era mesmo familiar. Fora lá, a casa da montanha, onde nos casamos, longe de todos e sozinhos, assim como agora. Ele subiu por tantas escadas largas e outras giratórias, passando por tantas portas que acreditei que nunca chegaria ao piso principal que nos levaria até as escadas de nosso quarto. – Não se assuste. Conheço cada um desses cantos. – Com um pouco de força segurei em seu pescoço e escondi minha cabeça em seu ombro, no meio de seu cabelo que estava solto. Senti seu cheiro, e aos poucos, começava a me desarmar. Audrick me levou até o nosso quarto no casarão. Tinha uma cama muito grande, uma penteadeira antiga, mais do que eu poderia imaginar. No mesmo ambiente uma tina enorme de madeira, onde tomamos banho na semana em que passamos lá, em nossa lua de mel. Tapeçarias desciam pelas paredes e a janela era de madeira. Ele me colocou na cama, ajeitou-me e cobriu-me com carinho. Depois me beijou na testa e nos lábios levemente. Senti sua mão em meu cabelo, enquanto me olhava com tristeza, porém com amor. – Me beija... de novo – sussurrei. Trocamos um longo beijo, mas veio carregado de dor. Eu só queria que todo o resto além de nós dois fosse mentira. Audrick deitou-se ao meu lado, e me abraçou, logo depois adormeci. Acordei sem saber ao certo se era dia ou noite ou quantas horas haviam se passado. Estava bastante tonta, muito suada e cansada. Audrick não estava ali, e aos poucos, as memórias das falas e ações de Vânia, voltavam à minha mente, mas antes que os piores pensamentos me invadissem senti um perfume de ervas Dias de Chuva |

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saindo da tina. Levantei da cama, ainda com esforço, e notei o vapor vindo da água aquecida para um provável banho recém-preparado: Audrick sabia como o contato com a água sempre me deixava melhor. Entrei com cuidado, ainda sentindo dores nos joelhos, mas assim que mergulhei os pés, senti arder os tornozelos que revelavam cortes feitos pelas cordas. Olhei meus pulsos e constatei que o mesmo tinha acontecido. Superei essa dor, que agora me parecia pequena, e afundei-me na água. Ergui a cabeça na superfície e pensava se eu realmente havia feito a escolha certa. Estava tentando me convencer disso, esperando que a água quente tirasse a dor dos meus joelhos, quando Audrick retornou. Ele usava uma calça antiga, mas estava sem camisa e sem sapatos. Deu a volta na tina e me abraçou por trás. Beijou meu pescoço algumas vezes e eu busquei seus lábios e o beijei. – Júlia... – ele dizia enquanto me beijava – eu não quero que você faça isso, podemos dar um jeito. – Podemos? – eu falei tentando sorrir. – Ele é muito forte. Nunca nos deixará em paz, Audrick. – Eu vou te proteger – Audrick falava tendo nossas testas encostadas e as respirações no mesmo ritmo. – Nada vai acontecer a você. – Meu amor, não tem como você garantir nisso… Tem? E pior – falei forçando-o a me olhar –, e se Vânia tirar você de mim? Hein? – Mordi os lábios um pouco e suspirei. – Você entende, não é? – Fiquei de joelho, ainda dentro da tina. Coloquei as mãos em seus ombros. – Audrick, eu sou hoje o que você criou e você é tudo que eu tenho. Eu o busquei num abraço. Não superaria perdê-lo também. – Júlia, há tanto que você terá de saber. Não consigo nem pensar nos sofrimentos pelos quais você passará se levarmos isso adiante. – Então – falei em seu ouvido –, faça tudo que você puder para que eu aguente. Ele engoliu em seco e levantou-se para pegar a toalha sobre o aparador. Eu levantei-me e ele enrolou-a em mim. – Preciso mostrar uma coisa. A propriedade era imensa, e no passado havia me perguntado se tinha desvendado cada sala e ambiente, e pelo visto, alguns cômodos permaneciam ainda secretos, assim como aquele. A imensa biblioteca. Eu mal podia crer. A grande maioria dos livros estava cheios de pó e seria necessário limpar suas lombadas

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com a palma da mão para conseguir ler algo. Dava para notar como eram antigos, e também, muito maiores que os títulos de livrarias contemporâneas. – Estes livros não são como os que temos em casa, não é? – perguntei girando sobre os calcanhares, e a cabeça inclinada para cima, tentando mensurar todo tipo de informação ou história que poderia ter ali, nos livros, e por trás deles. – Não, Júlia. Esses foram ditados por demônios reais e não escritos por mentes humanas, ou por seres como eu e Vânia. Eu olhava admirada a quantidade de livros, ainda mais com aquela informação. Eram oito paredes tão altas que deveriam se aproximar de vinte metros. Um octógono repleto de livros, dando espaço apenas para frascos de vidro de diferentes tamanhos, todos com o líquido verde florescente. No teto um grande castiçal. Uma das paredes, da metade para baixo, não tinha livros. Eram duas grandes portas, com cerca três metros de altura, feitas de tiras de madeira cruzadas como uma rede. No centro, dois grandes sofás de madeira com almofadas de couro ficavam em “L” sobre uma tapeçaria ilustrada por símbolos estranhos. De frente aos dois móveis repousava uma pequena mesa, também de madeira, com uma altura de não mais que meio metro. – Eu, eu não entendo... – Olhava admirada para a quantidade de exemplares. – O que você quer dizer com escritos por demônios de verdade? – Eles foram escritos do mesmo modo que médiuns psicografam livros ditados por espíritos. Homens e mulheres que fizeram todo tipo de acordo cedem seu corpo para que essas criaturas possam deixar seus registros sobre a Terra. Todos esses livros foram escritos à mão, assim como suas cópias. – Cópias? – Arregalei os olhos. – É provável que, para cada um desses livros, existam outros quatro. Cada um guardado em um continente diferente. Só não há copias, que eu saiba, na Antártida. – Mas qual a razão disso? – perguntei passando a mão por alguns exemplares. – Eles são tão importantes? – Importantíssimos. Todo tipo de conhecimento que as trevas podem trazer e já trouxeram desde que este mundo existe, está aqui. A palavra “trevas” ainda me causava arrepio. – Mas, por que ter um exemplar em cada continente? – perguntei, admirando uma capa de um dos títulos, tão velha, e ainda revestida de couro.

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– Com a chegada da Revolução Industrial, o mundo mudou ainda mais. Já não havia espaço na Europa para criaturas como nós, então vimos a possibilidade de expansão: queríamos ganhar o mundo todo. Por isso, as copias foram feitas. Eu e Vânia fomos os responsáveis por encontrar um lugar nas Américas, e escolhemos aqui. – Mas por que o Brasil? – Com o fim da escravidão, seu país começou a incentivar a vinda de europeus para trabalhar. Nós viemos para cá misturados aos que vinham em busca de uma nova oportunidade. Pouco depois de chegarmos começamos a desbravar a terra. A grande costa marítima foi o diferencial, pois acreditamos que aqueles que escolhêssemos ou os que precisassem, chegariam facilmente por mar. Com um lugar tão grande, poderíamos nos erguer sem levantar suspeitas. Isso foi por volta de 1852, se não me engano. – Ele se sentou. – O clima diferente também nos agradou. Outros lugares frios da América trariam sensações e experiências semelhantes às que já conhecíamos, o que não chamava nossa atenção. Clandestinamente em navios a vapor comprados com a fortuna de Vânia e a minha, trouxemos tudo que precisaríamos para construir essa fortaleza com a ajuda de alguns escravos. Não escravos negros, como os vindos da África, mas com pessoas que deviam sua vida a Vânia... ou a mim... – A você? – perguntei virando-me para ele. – Você tinha escravos? Audrick suspirou e desviou o olhar de mim por um instante. – Eu disse que fui alguém ruim… Engoli mais a informação e sentei-me ao seu lado. – Mas como tudo isso surgiu? – Aproximei-me mais, buscando que ele voltasse a me olhar. – Vocês... domuns, sempre existiram? – Sempre existiram bruxas e feiticeiros buscando poderes e alguns faziam todo o tipo de pacto para alcançar o que queriam. Então, certa vez, um alquimista empenhado em descobrir um elixir para a imortalidade, conjurou um encanto com a ajuda de uma necromante para que a vida eterna fosse possível a partir de uma poção. Este necromante aceitou o pedido do homem da ciência, e uma criatura das trevas veio à terra. O demônio recém emergido disse que daria as instruções para se fazer a poção desejada e os passos para ter não só a vida eterna como a juventude, forças sobrenaturais, todo o dinheiro, poderes inesgotáveis, e também muito conhecimento, mas faria isso, apenas se em troca desses favores, de tempos em tempos os que aceitassem o acordo e bebessem da poção, realizassem uma oferenda ao inferno como agradecimento.

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“Porém, a necromante sabendo do que se tratava a fala da criatura, mandou o demônio de volta ao breu. O homem que estava com ela ficou furioso e inquiriu o motivo daquilo. A feiticeira avisou que o demônio desejava criar um pacto para a eternidade, que perpetuaria em desgraças para todo o mundo em troca de seus favores. Ela disse que aquele que aceitasse sofreria em demasia para alcançar o combinado até que seu ser fosse tão corrompido ao mal que nem se importaria de matar ou destruir qualquer vida. “O alquimista, furioso, avançou sobre feiticeira e num feitiço simples o jogou contra a parede, deixando como último aviso que nem toda a eternidade pagaria uma vida de obrigações para com o inferno. A necromante vestiu seu manto negro e se foi, levando seus livros e poções.” – E o que se sabe dela? – Eu me aproximava de Audrick, como se assim me aproximasse da história. – Dela nada se sabe, porém, o alquimista tinha uma inteligência superior além de qualquer imaginação. Lembrava com perfeição dos ingredientes da poção, das palavras encantadas, e dos desenhos que deveria fazer e de como os leria no corpo de um defunto. Assim, o alquimista conjurou o encantamento e selou o pacto. Ele sofreu muitas dores e depois bebeu do elixir feito a partir das indicações da criatura. E como parte do acordo passou a oferecer almas ou corpos ao inferno. Assim nasceu o primeiro domum. – Isto é horrível, Audrick. Você, seu tio e... e eu também. Em breve, todos seguidores deste demônio? – Não exatamente isso – ele disse a contragosto. – Não somos como os seguidores de Deus, no cristianismo, levando a palavra de um senhor e nem correndo atrás de novos fiéis. – Mas vocês propagam o mal – disse quase indignada com a aparente inocência de Audrick. – Isso é muito mais sério. – Pensando por esse lado, você tem razão, Júlia. – Audrick parecia resignado. – Outra coisa que você precisa entender – ele desviava do assunto –, é que Rachmanninoff não é realmente meu tio. Ele me criou, ele me tornou um domum, mas não há ligações de sangue entre nós. Somos da mesma casta, pois através dele fiz o ritual e sou quem sou hoje. Seremos sempre ligados por uma relação maior do que parentescos. – Ele me olhou sério. – Assim como nós dois… para sempre. Eu me joguei no sofá, esperando o que quer que fosse, para me trazer uma luz. Eu estava fazendo a coisa certa? Voltava a me perguntar. A última coisa como me imaginei algum dia era fazendo mal a alguém. Olhei para o Ovo do Dias de Chuva |

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Dragão no meu peito, mas ele não brilhava, e nem estava pesado como nos dias de decisões ou crises. Ele estava apenas lá, como uma bijuteria estranha. Tornei a visão para os livros e me senti pequena, incapaz. Eu estava sozinha e não havia mais ninguém que eu amasse, a se prejudicar com minhas escolhas, a não ser eu mesma. No entanto, algo ainda muito sério me incomodava. Olhei para Audrick. Ele levantou e abriu as portas de madeira trançada. Ali, dispostos em prateleiras, havia objetos para escrita como penas e tintas, e também muitas taças. Alguns castiçais amontoados, velas, pequenas adagas e um monte de itens estranhos como crânios de animais, pequenos baús e várias outros que não pude identificar. “Audrick...”, suspirei. Por que o mundo havia nos trazido em uma situação tão complicada? Eu o amava e essa era a minha única certeza. – Mas e estes sacrifícios que você disse – voltei a falar enquanto ele se servia do elixir. – O que quer dizer almas ou corpos? – Entregar corpos é quando você mata alguém. – Ele deu um gole e voltou a sentar-se, dessa vez ao meu lado. – Almas? Bom… isso é quando você leva humanos à ruína através de vícios, doenças, desespero, torturas e os faz se perderem. – Como Vânia fazia? – perguntei de olhos arregalados. – Como Vânia fez com meu pai? – Isso. Eu, mesmo em choque, tentei manter-me firme, precisava saber o máximo possível. Segurei o choro ao me lembrar de meu pai. Como eu sentia falta dele. – E como você faz? Almas ou corpos? – Olhei para Audrick temendo o que ele diria, mesmo que qualquer resposta fosse difícil de aceitar. – Corpos – ele disse quase sem querer dizer. A palavra custou a sair. – Como pode? – Levantei-me pela raiva. – Quantas famílias você destruiu, Audrick? – Não posso apagar meus atos passados por mais que me arrependa. – Ele largou a taça que segurava e veio até mim, mas eu não deixei que ele me tocasse. – Porém, se existe algo em minha defesa, é que mesmo um pouco antes de conhecê-la eu destruía só quem merecia. Uma espécie de justiceiro, ou talvez eu prefira me ver assim, matando estupradores, assassinos, traficantes, corruptos... Senti um pouco do peso dos ombros desaparecer. Poderia ser pior, não? – E como tinha certeza de que as pessoas que você matava eram párias? – questionei um pouco mais tranquila, mas ainda insegura. – Esqueceu que lemos mentes?

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Fui pega: Audrick sempre estará anos luz à minha frente. Dei as costas e voltei ao sofá. Ao sentar-me passei as mãos no cabelo por um instante e depois as esfreguei. Eram tantas e tantas histórias juntas. – Esta é outra dúvida. – Cruzei os braços. Sentia-me desconfortável. – Vocês podem ler qualquer pensamento? – Não. – Ele me olhava sério. – Só de humanos que estejam presentes. Não se pode ler de outro domum, inclusive. Sem acreditar no que ia dizer, descruzei os braços e apoiei as mãos nos meus joelhos. – Audrick, me faz um favor? – pedi. – Não leia mais a minha... Ficamos longos segundos em silêncio, eu tendo certeza do que pedi, ele provavelmente engolindo a minha vontade como o fim de algo que, antes, foi tão prazeroso e natural em nossa relação. Por um momento tentei juntar todas as informações. Ideias fervilhavam na minha cabeça. Sentia dor, raiva, tristeza. Quanto mais e mais Audrick me contava, por mais que doesse, por mais que eu acreditasse ser um absurdo, mais eu queria saber. – E como eu farei? – continuei nossa conversa sobre algo que realmente me atormentaria. – Não sei se terei coragem. Se eu me negar a fazer esse pagamento? – Na teoria, se não fizer a oferenda, a criatura com quem você selou o pacto e está dentro de você, toma sua vontade sem tirar a consciência. Você provavelmente veria uma carnificina desenfreada ser feita por suas mãos, sem conseguir impedir. – Quanto mais eu ouço mais parece pior – murmurei. Audrick ajoelhou-se à minha frente, segurando minhas mãos. – Júlia, então não faça... – Eu já decidi, Audrick!

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Capít ulo 23

As sombras dançam

Audrick precisava ficar sozinho para preparar o ritual, que segundo ele, só daria certo se eu não participasse daquele momento. Saí do casarão e me deparei com o céu repleto de nuvens densas e negras. Dei a volta na construção e cheguei à praia, a areia sob meus pés era branca, e à minha frente o mar oscilante e bravo ia e vinha conforme o vento. Sentei sobre uma pedra, entre as inúmeras de diferentes tamanhos, de pequenas à gigantescas que ganhavam quase toda a extensão da praia. Levei os pés à água fria e observei o céu anoitecer, fazendo com que os poucos raios de sol que atravessavam as nuvens deixassem de existir por completo e peguei-me imaginando que mudanças ocorreriam em meu corpo durante e após o ritual. Eu me tornaria uma criatura tão monstruosa como as reais formas de Audrick e Vânia? Só de pensar naquele homem me despertava ira. Sabia da minha culpa e de Audrick, entendia agora mais que nunca as palavras de minha irmã quando culpou nosso amor pelo sofrimento e morte de todos eles. Mas Vânia era o maior responsável. Voltei a visão seguidas vezes para o casarão, até ver o pano branco pendurado por Audrick na janela de nosso quarto. Era a hora. Subi direto para o quarto onde encontrei sobre a cama as vestimentas do ritual, uma calça de algodão cru e uma blusa do mesmo tecido, visto que “deveria estar o mais leve e confortável que pudesse”, dizia Audrick. “Como se conforto fosse algo possível nesse momento”, eu pensava. Pouco depois ele chegou. – Está pronta? – Não estou. – Tentei brincar, mas ele manteve seu semblante sério e imutável. Descemos de mãos dadas as muitas escadas enquanto ele me explicava que a masmorra onde fomos presos por Vânia, era apenas uma das seis que ali ha-

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viam. Quando chegamos na que ele havia preparado para o ritual, o Ovo do Dragão pesou em meu pescoço. Não havia nada ali, além de paredes feitas de pedras e aros de ferro no chão. Ele me pediu para deitar entre os aros e amarrou-me a eles com correntes. Queria fazer perguntas, mas não sabia bem quais seriam, preferindo o silêncio. Audrick deixou-me e trancou a porta pelo lado de fora. Eu estava só. Vieram as primeiras horas e nada aconteceu. Nenhum som, nem dor, nem qualquer situação que me remetesse ao que eu já conhecia sobre feitiços. Fiquei inquieta, curiosa, quis chamar por Audrick, mas não o fiz, e as horas continuaram a passar. Adormeci e despertei, não soube quanto tempo havia se passado. Eu tinha um pouco de fome e começava a sentir muito frio. As correntes me permitiam mudar um pouco a posição, mas apenas deitada, pois as dos braços não eram grandes os suficientes para que eu ficasse em pé. Pensei por um instante como faria se precisasse ir ao banheiro, e desejei que isso não acontecesse. Tempos depois, voltei a dormir. Então voltei a acordar e com muita fome e com frio, mas nada acontecia. Vi, de um pequeno buraco na parede, um rastro de luz do sol, logo se passara um dia e nem sinal de Audrick. O frio já ficava quase insuportável, e a fome deixava-me tonta, no entanto, não houve vontade de usar o banheiro. O dia virou noite e eu continuei sozinha. Chorei e quando o sol voltou a aparecer pelo buraco na parede, não pude conter a angústia e chamei algumas vezes por Audrick, que em nenhum momento me respondeu. Eu precisava confiar que era parte do plano. Mas quando, outra vez, o raio de sol se foi, eu acreditei que havia sido colocada ali, para que Audrick e Vânia pudessem apenas se livrar de mim. Durantes dias que perdi a conta eu chorei, dormi ou desmaiei, senti frio e muita sede, senti fome e dores em todo o corpo. Então eu gritei mais e mais, até desistir e comecei a acreditar que seria melhor morrer de uma vez. Eu já passava mais tempo sem consciência do que desperta quando ouvi o ranger da porta velha e vi sua silhueta vindo em minha direção. Acreditei que só aquele estágio fosse dor suficiente para o rito, mas me enganei. Audrick sentou-se ao meu lado e colocou a mesma bebida verde em meus lábios. Como tinha muita sede, aceitei de uma vez, porém o líquido queimou minha garganta e estômago feito a mais forte bebida. Senti enjoo e uma dor crônica, que se estendeu do abdômen para o restante do corpo enquanto me contorcia com violência, batendo quadril, costas e a cabeça contra o chão e machucando os pulsos e tornozelos presos pelas correntes. Dias de Chuva |

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Audrick aproximou-se, e segurou minha cabeça, para que eu não me ferisse. Quando a dor e os espasmos pareciam diminuir, ele trouxe aos meus lábios mais do elixir. Fiz que não com a cabeça, porém não tinha forças para evitar. Ele sussurrou em meu ouvido que aquilo era necessário e me fez beber. O sumo desceu pela garganta e chegou ao estômago provocando o mesmo ardor, porém em vez de dores, parecia adormecer meu corpo. Meus sentidos voltaram a falhar e o corpo ficava pesado. Ele colocou minha cabeça em seu colo e passou a me embalar enquanto sussurrava ao meu ouvido. – Muitos homens, durante muitos séculos, buscaram a eternidade, e tantos outros antes destes a ambrosia almejavam. Pois aqui ela está, a combinação perfeita do alimento dos deuses com a mais pura alquimia ensinada por Mefisto e registrada por Fausto. Mas, é preciso dizer, minha cara, que só existe um Deus, e todos os demais ou são anjos, ou demônios. Os anjos são os escolhidos por Ele, sob leis e capacidades que apenas Ele sabe. E nós somos os demônios, que escolhemos ser tão grandiosos e poderosos quanto os anjos, mas apenas por nossos interesses mundanos e egoístas. Minha doce criança, este elixir vai contaminá-la. Você vai sentir como se morresse, vai enfrentar todos os seus piores pesadelos, e depois de tudo isso, você acordará e sentirá mais dor do que jamais sentiu. Eu já peço perdão pelos martírios que sofrerá e agradeço pelo tamanho do seu amor para fazer aceitar estar ao meu lado, dentro da escuridão dos pecados de tantas eras. Audrick deitou-me mais uma vez no chão frio. – Eu farei tudo para que você sofra o menos possível. É uma promessa. Assim ele abandou a alcova sombria, trancando a porta logo atrás de si. Gárgulas, a primeira tortura, de forma fantasmagórica saíram das paredes de pedras cambaleando sobre as patas traseiras e dianteiras. Nas mãos de concreto seguravam agulhas, facas e tesouras. Eu era o objeto de sua diversão. Com sequência de pequenos cortes elas me molestaram. Desenhos que eu não pude reconhecer foram riscados em minha pele com suas pontas e depois as facas e as agulhas fizeram sua parte. Do meu corpo escapava o sangue e da garganta gritos de dor, enquanto me perguntava por que não desmaiava e de súbito eles desapareceram, retornando às paredes com as quais se mesclaram. Meus olhos ficaram pesados e sentia a morte vindo me acudir com seu manto, primeiro como um beijo gelado sobre a pele e depois o aconchego do fim, morno e quieto. Foi quando despertei. Senti meu tórax se levantar buscando o ar que faltava como se tivesse me afogado. Espasmos percorreram meu corpo como uma fiação de rede elétrica distribuindo cargas para cada músculo e célula. Uma nova vida, artificial e profana. O segredo dos maiores alquimistas, guardado e repassado cuidadosamente por séculos agora ganhava meu corpo.

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Parte 5 AMANARA


Capít ulo 24

Angaretama

Ouvi o ranger da porta e uma luz forte a atravessava enquanto eu abria os olhos devagar, pois a consciência me trazia de volta a dor. Audrick?, pensei forçando a visão, mas a silhueta através da luz era uma pessoa muito maior, de andar vagaroso e, cabelos ralos. Desesperada, tentei me mover, mas não havia forças. – Saia daqui, maldito! – O que era para ser um grito, saiu de minha garganta como um rouco fraco. – Não vai ser tão fácil, menina. Não mesmo. – A voz de Vânia cheia de sarcasmo chegava ao meu ouvido. Sem hesitar ele arrancou a corrente que prendia a algema de meu pulso esquerdo à argola fixa no chão, e amarrou-a a meu outro pulso, quebrando também essa corrente. – O que você vai fazer? – perguntei assustada tentando enxergar às suas costas, na direção da porta. – Onde está Audrick? – Ele me ignorou. – ONDE ESTÁ AUDRICK? – finalmente consegui gritar. – Em algum lugar onde não possa me impedir – ele disse sério. Meu carrasco me colocou de pé e pela corrente começou a me puxar para fora da masmorra. Pelo corredor e pela escada que seguíamos eu tropeçava, sentindo as dores por todo o corpo, estava fraca, com tontura e apavorada. – Audrick! – gritei. – AUDRICK. – Ele não irá ouvi-la, tola. E mesmo se ouvisse, não conseguiria vir ao seu encontro. Me acha estúpido? Eu iria raptá-la sem pensar em um modo dele não se intrometer? Rachmanninoff continuava a falar enquanto me guiava cada vez mais para cima do casarão.

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– Eu sabia que isso poderia dar errado, mesmo assim, o apoiei. Apoiei essa ideia maluca de fazer de você, uma criança qualquer, deste fim de mundo tropical, sua aprendiz e sua noiva. Quanta pretensão ele teve. Se ainda escolhesse alguém por sua beleza, erudição, sensualidade, crueldade, que fosse. Mas por ter visto seu poder de crença? Eu até me entusiasmei com o plano com o tempo. Talvez, criá-la, a sua maneira, torná-la a escultura perfeita de seus ideais fosse uma experiência interessante. Mas deixá-la assim, na sua vidinha medíocre, aproveitando a vida em família. ENVOLVENDO-SE COM SUA FAMÍLIA – Vânia gritava repleto de raiva. – Que tolice. Eu sou a família de Audrick. Apenas eu. E agora ele quer se redimir. Quer diminuir seu sofrimento da passagem. Que criatura será você com toda essa humanidade, com toda essa benevolência. Será mais um erro? Mais um erro como tem se saído Audrick? Eu não permitirei. Como ele ousa jogar séculos e séculos da tradição das trevas no abismo? Ele puxou a corrente com força e agarrou minha nuca deixando sua face muito próxima a minha: – Querem viver esse amorzinho cretino? Sigam as regras. Vânia estava enfurecido. Ele me arremessou contra a parede e a dor ao bater a cabeça fez me perder a visão junto a um zumbido que ganhou meus ouvidos por alguns segundos. E ele continuava a me puxar escadas e mais escadas à cima. – Você precisa sofrer. Sofrer como nunca imaginou. Suas mazelas são feridas superficiais. Com aquela fala não pude mais ficar quieta. Como ele ousava dizer isso de tudo o que eu passei? – VER MINHA FAMÍLIA SER MORTA POR VOCÊ NÃO FOI SUFICIENTE? – gritei quando a visão e a audição acabavam de voltar, puxando a corrente em minha direção, o que o fez me olhar. – NÃO! – ele respondia e voltava a me puxar. – Não é suficiente pelo que você será e nem pelo que terá de fazer depois do ritual. Você não tem ideia, garota, não é? Eu vi a peste negra. Eu vi mais massacres do que você pode imaginar. E foi lá que Audrick se criou. Nós vivemos guerras reais. E você acha que sofreu? Por ter crescido em uma favela? Por ter passado fome? Ah, você acha que passou fome? Devia conhecer os refugiados escravos, ancestrais da sua terra. Devia conhecer algumas tribos africanas ainda escravas de empreendedores de diamantes. Acha que viu a morte? – Ele se virou para mim, o rosto transfigurado de ódio, com os olhos azuis arregalados e a boca ostentado dentes afiados. – Eu estive nos campos de concentração na Polônia. E você ainda acha que viu a dor dos seus? Ouviu falar da Bomba de Hiroshima, garota? Dias de Chuva |

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As palavras de Vânia doíam já mais que meus pés descalços e os tropeços. Machucavam mais que a algema e a corrente em meus pulsos. Eu entendia todo aquele sofrimento, mas como comparar? A dor da perda da minha família era a maior que eu havia conhecido, e nada poderia tornar pior minha realidade. Era uma ferida que nunca seria curada. – Você não pode medir o sofrimento de cada ser humano – murmurei. – Sua idiota! Ele me deu um tapa que me fez rolar alguns degraus da escada. Então, com puxão da corrente me fez parar de cair, mas o choque da força contraria deslocou meu ombro direito, além de vários arranhões e hematomas que acabavam de se formar. A dor era aguda. – Não me provoque. Eu sei o que digo. Você não será mais humana quando isso acabar. – Ele puxou a corrente me fazendo levantar e segui-lo. – E não me importune com mais perguntas, vadiazinha. Abaixei a cabeça, não por medo de suas ameaças, mas apenas por saber ser inútil lutar. Percebi que ele nos levava para a área aberta do casarão, só não mais alta que a torre central. Quando chegamos ao pavimento havia um helicóptero em pouso. À frente dele um homem muito magro e esguio, de olhos sem íris nem pupilas, apenas escleras de um vermelho sangue. Ele vestia um manto velho e sujo, que deixava de fora os braços cadavéricos cruzados à frente do corpo. – Para onde você vai me levar? – inquiri. – Eu não vou te levar a lugar algum. A não ser de encontro com seu destino. Vamos ver se a escolhida de Audrick vai sobreviver e merecer o término do ritual, com todas as suas dádivas e maldições. Meu algoz me jogou no chão, diante o homem esquelético à minha frente. Encarei a nova face de pele morena num rosto tão enrugado que sua caveira se tornava aparente. Seus lábios eram duas linhas finas que contornavam o corte de sua face revelando dentes amarelados e cerrados como presas de jacaré, saindo para fora da boca desproporcionalmente. Eu estava fraca e mal podia me mover. Já próximo de mim, o homem esqueleto ergueu-me pelo braço, medindo-me de cima a baixo. – Não é perfeita. Mas tem seus encantos. Eu preferiria mudar nosso acordo, demônio – disse ele para Vânia depois de passar a longa língua pelos dentes. – Não haverá mudanças, criatura. Nosso acordo está selado a sangue.

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– Mas e se ela... – ele titubeou por um instante e encarou meus olhos, depois se voltou para o tio de Audrick – resolver o mistério? A moça branca esconde uma alma tempestuosa aí dentro. Vânia gargalhou. Num riso louco que ecoou para além do céu. – Mais um que acredita na força de espiritual dessa fedelha. – Quem vem das suas terras, costuma esquecer as ligações que só apoemas7 veem. – Não me importa o que tem aí – disse Vânia apontando na minha direção. – Para mim essa garota é um capricho, uma teimosia, uma perda de tempo. Duvido que ela dure. Mas não vim fazer apostas, cangueiro8 – falou, desdenhoso nessa última palavra. – Nossos planos são maiores, por isso ofereci tal acordo. – Você diz muito para uma criatura dividida. Mas que seja... – Ele voltou-se para mim. – Essa maia9 vai encontrar seu destino – e voltou-se para Vânia –, já que é isso que quer, mati10. O homem magro me soltou no chão e se afastou alguns passos, assim como Vânia. Eu olhava para eles sem saber o que esperar. Ventava muito e minha pele era cortada pela corrente de ar vinda do mar. A lua estava enorme no céu, e não faltava luz para que eu visse suas mãos se abrindo e fechando, com as palmas para baixo como se soltasse com força, e apanhasse algo no ar com cuidado. Uma série de calafrios me percorreram e eu, que já estava ajoelhada, enrolei-me em meu corpo tentando suportar a dor forte que nascia em meu abdômen. Um ardor ganhou minha garganta enquanto meus olhos derramaram lágrimas involuntárias. Os ossos pareceram quebrar e minha sombra moveu-se pelo concreto onde pisávamos. O vento soprou mais forte e aquela sombra, que tinha meu formato, desprendeu-se do chão e seguiu até as mãos do homem de manto. Feito um círculo negro e inconstante, a sombra pairou sobre sua mão esquerda, agora para cima. Com a outra mão ele afastou o manto, mostrando que estava nu. Seu corpo era repleto de pinturas em formas geométricas. Então, abriu uma bolsa de pano que estava sustentada por uma alça transversal vinda de seu ombro e ali ele depositou minha sombra. Eu fiquei cada vez mais zonza. A visão turva me impedia de compreender o que acontecia. O homem de manto entrou no helicóptero enquanto Vânia soltava 7

(Tupi) Aquele que vê longe.

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(Tupi) de cabeça velha, caveira.

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Moça branca.

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(Maraguá) Aquele que tem contrato com o maligno.

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minhas mãos e me levava quase arrastada para dentro da aeronave, mas se manteve do lado de fora. Não era possível reconhecer o homem que pilotava. A lua foi encoberta por nuvens escuras. Eu já não conseguia ver e nem entender o que passava. O tempo parecia ser dilatado. O homem esquelético que eu já não acreditava ser humano, olhava-me sério nos olhos, mas às vezes mirava o resto de meu corpo. Então o helicóptero titubeou no ar. Assim me dei conta de que não ouvia o barulho das hélices que deveria ser ensurdecedor, mas ouvia muito bem a respiração forte do homem ao meu lado. Havia algo estranho. O tempo parecia não findar, e por tentar forçar a visão, buscando enxergar, a cabeça começou a doer. Era difícil ficar acordada. Meus olhos queriam se fechar para diminuir a pressão sofrida na cabeça e a tontura, mas eu não podia fraquejar. Deveria aproveitar a dor no restante do corpo como um alerta para me manter acordada, ou, ao menos, entre o torpor e a sanidade. – Chegou sua hora, maia. A criatura abriu a porta do helicóptero e um vento forte voltou a me machucar devido à velocidade e a criatura, me agarrando pelo pulso, jogou-me do helicóptero. O desespero não teve tempo de se apossar de mim por muito tempo. A queda não passou em câmera lenta, não me ocorreu nenhum déjà vu, nem mesmo, epifanias. Só a dor. Cai em água corrente, batendo em cheio barriga, pernas e seios, só pude proteger meu rosto com os braços. A água era fria e eu achei que poderia congelar. Mas não dava para pensar em nada. Era só instinto. Uma questão de sobrevivência. Não importava nada, apenas tentar respirar. A água era gelada demais, e não sabia onde achar forças para me erguer. No começo eu só parecia afundar, não via nada além de uma infinita escuridão. Quanto mais eu lutava, mas me desesperava. Então luzes, nadando uma atrás da outra como um cardume de peixes, bailaram, rodopiaram e passaram por mim. Me vi dentro daquele show de cores azuis e verdes florescentes e depois elas se foram. Ainda balançava as pernas tentando ser impulsionada para cima quando o Ovo do Dragão acendeu em meu peito e como se iluminasse um motivo em mim para seguir, consegui forças para nadar. Inspirei o ar de uma vez assim que consegui manter a cabeça fora da água. Forçando a visão achei ter visto a margem. A adrenalina era minha única saída. Nadei com as forças que me restavam e cheguei à beirada sem imaginar como ainda estava viva. Em terra, respirei inúmeras vezes acreditando estar salva. Os raios do nascer do sol começaram a aparecer. Deitei um tempo de bruços. Sentia

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muita dor, mais do que imaginei poder suportar. Como eu não desmaiei?, pensava. Talvez fosse melhor a morte, e uma certeza cismava em meu peito: Vânia nunca me deixaria em paz. Apesar do clima úmido da manhã, o frio não era insuportável, e o sol que despontava num espetáculo laranja revelava um enorme rio à minha frente, e infindáveis árvores ao redor. Mas que merda de lugar é esse?, pensei. Fiquei ainda um tempo com o sol sobre mim. Aquecendo meus diversos machucados até ter forças para levantar e me examinar minimamente. Devido à queda na água todo o meu corpo na frente estava repleto de manchas vermelhas dos vasos sanguíneos rompidos. Como eu sobrevivi? Como?, me questionava, e só pude acreditar que foi em parte, ao começo do ritual. Talvez já houvesse algum poder em mim. Percebi que meu braço deslocado ainda doía muito, assim como as escoriações e feridas na pele devido ao tombo na escada e depois, naquele imenso rio. Eu não fazia ideia de onde estava. Não havia nenhum barco por ali. Só o cantar de diversas aves e sons da floresta às minhas costas. Escolhi uma direção e optei por começar a andar beirando a margem e subindo o rio, quem sabe pudesse encontrar alguém. Qualquer um que me dissesse onde estava. ///

Segui andando por horas, parando poucas vezes para me sentar, pois o sol que eu vi nascer já ia a pino. Era inútil continuar, eu poderia ficar ali por dias sem encontrar nenhum ribeirinho. Se eu quisesse sobreviver, precisaria mudar de estratégia. Encarei a floresta. Sabia, devido os ensinamentos de Miriam, que qualquer mata, sendo natural, poderia oferecer a cura para todos os males. Mas fazia anos que eu não evocava aquele poder. Sabia que logo sentiria fome, e a sede eu já saciara no próprio rio. Eu precisava mesmo era dar um jeito de curar minhas feridas mais agudas, e depois, com calma, voltar para casa. Desanimada, olhei para baixo. Voltar para casa seria impossível. Ao menos que eu voasse. E como estaria Audrick? O mais próximo que eu poderia chamar de família. Meu peito doeu, mas dessa vez de saudade. Eu estava cansada de tantas desgraças. Uma lágrima pingou aos meus pés. Sem sombra. Notei. A criatura havia a roubado. Respirei fundo. Eu precisava ser forte. Naquele momento da minha vida não poderia me dar ao luxo de duvidar de nada, muito menos de mim. Dias de Chuva |

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Entrei na mata. Prestei atenção ao canto dos pássaros, e nos pequenos animais aos meus pés. Tentei ignorar a possível presença de animais peçonhentos e perigosos. Concentrei-me: “Deusa, rainha, mãe. Condessa, guerreira, sábia. Leva-me ao teu colo, onde eu possa encontrar A cura para o que aflige este corpo.” De olhos fechados repeti os versos soprados pelo balançar das folhas. E mesmo assim, conforme andava, percebia que a luz vinda do sol não chegava plenamente em mim, sendo desviada pela copa das árvores. – Deusa, rainha, mãe. Eu dei alguns passos na direção de um forte aroma que me chamava, diferente de todos os outros, dilatando minhas narinas e ganhando meus pulmões. – Condessa, guerreira, sábia. Abri meus olhos e feito uma nova paleta de cores, o verde de cada tipo de folha tornava-se de um tom diferente que eu podia identificar e separar. – Leva-me ao teu colo, onde eu possa encontrar... Notei que, um pouco a minha frente, de onde vinha o cheiro adocicado que me chamara atenção, um facho maior de luz do sol atravessava, iluminando o verde, com um colorido e convidativo amarelo. Segui nesta direção. – A cura para o que aflige este corpo. Quando encontrei o que procurava, pude até sorrir. Uma árvore repleta de guaranás. – Tupã, que este filho teu, erguido em planta por terem ceifado a tua vida, e invejado seus olhos negros e profundos, encontre neste corpo triste, morada de melhor espírito e agradecimento. Eu me ajoelhei diante da árvore, e a admirei. Vânia talvez não tivesse planejado tão bem assim ao me colar em um lugar tão favorável a uma feiticeira como aquela imensa floresta. Por um instante, fez-se luz em minha mente: aquele fruto, aquele enorme rio e a mata tão longínqua e diferente de tudo que eu já vira, poderia significar apenas uma coisa: que eu estava na Amazônia. Digeri a ideia não facilmente, até aceitar que para os poderes de Vânia e do outro ser que eu nada conhecia, provavelmente nada era impossível.

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Deixei os pensamentos para depois, e voltei a concentrar-me em meu ritual de cura. O primeiro guaraná, eu comi. Outros três eu colhi e segurei com cuidado. Ainda faltava algo. Repeti o cântico algumas vezes, e fui levada a uma árvore de onde pendiam grandes e grossos tipos de frutos, como cipós, no formato de enormes vagens. Não sabia o nome da planta, mas o cheiro vindo dela era muito bom. Retirei uma daquelas vagens, e as abri. Grandes sementes eram cobertas por uma camada fofa e branca de cheiro também adocicado. Sua textura parecia de uma lichia, mas em tamanho era muito maior. Peguei uma folha grande que estava no chão e fiz uma cumbuca. Nela amassei as três sementes de guaraná e juntei a camada viscosa de duas daquelas sementes. A pasta, eu passei nas minhas feridas, e torci para que tanto doce não atraísse nenhuma abelha ou inseto. O alívio iniciou-se muito rápido, tanto das dores como das feridas. Recostei na sombra daquela frondosa árvore. E finalmente relaxei. Talvez as coisas melhorassem. ///

Acabei cochilando por um momento ao som dos pássaros e da água correndo longe. Estava muito cansada. Mas só percebi meu descuido quando ouvi o piar de um pássaro. Sobressaltada, abri os olhos. Acreditei ter visto um vulto cruzar as árvores não muito longe, junto a um barulho estranho de tecido molhado. Levantei de um salto, já quase recuperada e corri na direção daquele que achei ter visto e ouvido. Corri mais alguns metros, e ouvi um assobio esquisito. Mais duas vezes repetiu o som. Estaquei os pés no chão e uma corrente de vento gelado passou por mim. Mas não pensei em desistir. Precisava achar alguém. Fosse quem fosse. Fechei os olhos para me concentrar no som. Aquele barulho de pano molhado. Não era de bicho, tinha certeza. E mais três vezes ouvi o assobio. “Kiá. Kiá. Kiá.” E depois um som novo. “Piuuuu.” Então o bater de asas. Abri os olhos a tempo de me abaixar e esquivar de um gigante pássaro preto que eu não reconheci a espécie. Era maior que eu e logo sumiu sobre as copas das árvores, indo na direção que eu desejava ir: até o som do pano molhado. Corri. Outra vez vi o vulto movendo-se. Ora em passo furtivo, ora em corrida, e quando eu o perdia, devagar a sombra aparecia e parecia me esperar. Não queria pensar e continuei a correr. Logo voltaram os assobios. “Kiá. Kiá. Kiá. Piuuuu.” Dias de Chuva |

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Mas eu ignorava o som e continuava a correr. “Kiá. Kiá. Kiá. Piuuuu.” Minha destreza começava a aumentar. Eu quase me sentia em casa naquela corrida. E o vulto vestido de negro ia à minha frente. “Kiá. Kiá. Kiá. Piuuuu.” Maldito pássaro. E mais uma vez o vento frio na direção contrária queria cortar minha pele. Continuei a correr. “Kiá. Kiá. Kiá. Piuuuu.” E mais uma vez, o grande pássaro negro cortou os céus, fazendo um voo lento, encobrindo o sol e me trazendo a escuridão por alguns segundos. Mas então ele se foi, e o silêncio que torna estranha a mata, se fez. Eu estava muito perto do rio onde um homem bem-apessoado, vestido calças pretas e um tipo de manto da mesma cor, que cobria até pouco abaixo dos joelhos, me esperava sorridente e altivo. Ele tinha a pele morena e olhos levemente puxados. Não tive tempo de perguntar nada. – Eu me chamo Guayaka11, moça branca. E não quero teu mal. Mas pra mim, que sou meio peixe-boi, meio home, prefiro falar aqui, perto d’água. Tu tava entre um ygapó12 e uma encruzilhada. Tudo bem que a mãe da terra Ka’aporárãga13 te deixou passar e usar dos frutos dela para se curar, mas ela não ia impedir a maldição de Ypuré14. – Ele tirou o chapéu, e os cabelos muito negros caíram sobre a sua face, como se fosse um sinal de respeito, ou de que eu pudesse confiar nele. – O mati que te mandou aqui, tem armadilha sendo feita a cada passo que dá. Açaí15 e minha senhora, Arunguayara16, querem te ajudar, mas não sabemos pra quê. De toda forma, um Zorak está te espreitando tem um tempo. E talvez, a própria Ka’aporárãga queira ter contigo. O que seria raro e perigoso. Tu tá causando mais reboliço do que aquele mati e o trapaceiro Bikoróti17 poderia prever. 11

(Maraguá) Espécie de boto de terno preto, porém, se transforma em peixe-boi em vez de boto.

12

É um tipo de vegetação característico da Floresta Amazônica. Situa-se em terrenos baixos, próximos a rios e que são frequentemente inundados. 13

O mesmo que Caipora na mitologia Maraguá.

14 (Maraguá) Segundo a mitologia Maraguá, é uma mulher demônio da encruzilhada. Muito bonita, tem rabo e nariz comprido. Castiga quem mata filhotes de animais. 15

(Tupi) Versão pouco difundida da lenda. Seria de traços indígenas filha de Iara e Pirarucu.

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(Maraguá) Senhora dos peixes-boi.

17

(Maraguá) Entidade anda atrás de moças para as violentar e quando não consegue, rouba suas sombras.

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– Desculpe, Guayaka. Se é este o seu nome. Eu não o entendo. – Tentei realmente prestar atenção em cada palavra, mas o momento e a quantidade de nomes desconhecidos, dificultavam o entendimento. – Branco ouve muito com a cabeça, e não presta atenção em nada. Vim dizer que terá de caçar. A tribo mais próxima está há três dias daqui. Na direção contrária do rio. Terá de andar. Mate só bicho pequeno, e prefira frutas no caminho. E se na caçada encontrar encruzilhada, foge das folhas secas, pois Ypuré está querendo mais que nunca te jogar maldição. Fica o mais próximo possível do rio. Quando chegar à tribo, saberá. Isso entendeu, moça branca? – Acho que sim. – Apesar de tantos nomes estranhos, ele me indicara um caminho “subir o rio”, já era alguma coisa. – Kãwera18 também pode querer ter contigo. Ele é perigoso. – Engoli em seco. Como se até o momento tudo que ele falou não parecesse perigoso. – Só se alembre de subir o rio. Açaí e Arunguayara estarão perto. – A voz dele, apesar de doce e melodiosa, me passava urgência e tensão. – Mas também é perigoso para elas sair de dentro da água, por isso vim. – Ele estava tenso, e até parecia ter medo. Se algo pudesse deixar apreensivo alguém daquela terra, e mesmo assim ele vir ao meu socorro, deveria ficar grata. – Não sabemos quantos olhos aquele mati plantou na nossa floresta. Tome cuidado e vá... Adeus. E de um salto para trás Guayaka pulou no rio, vertendo e espirrando muita água para aquele seu corpo esguio. Corri para ver se conseguia ainda acompanhar com a visão o seu nado, mas só o que vi foi sua grande sombra nas águas verdes. Poucos segundos depois dele ter emergido um grande e lindo peixe-boi subia o rio. Algo em Guayaka me inspirou confiança, assim seguiria o seu conselho e o caminho sugerido. Percebi que logo escureceria e não me arriscaria a caçar durante a noite. Também não havia nada ali que eu pudesse comer, mas uma noite sem me alimentar não era o que daria um fim a minha vida. Não perto de tudo que eu já havia passado. De toda forma, pela experiência que tinha de olhar as noites imaginei que o céu ficaria sem névoas, e se desse a sorte de ser uma lua cheia, seu reflexo no rio poderia iluminar a mata, mesmo que parcamente, caso eu não conseguisse fazer fogo. Quando o azul do céu tornava-se púrpura, no espetáculo em que o sol se coloca a dormir, achei por bem providenciar fogo. A ideia parecia absurda no começo. Tudo próximo ao rio era úmido e nem com feitiço faria alguma chama pegar nos gravetos. O ideal seria achar uma clareira, acender o fogo e repousar. Mas nada disso parecia possível. Manter-me perto da água me deixava mais 18

Significa "esqueleto velho". Segundo a cultura Maraguá é uma forma menos humana dos Zorak, servos de Anhangá.

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segura, e de nenhuma forma eu pensava em dormir. Resolvi colher alguns gravetos, pedindo permissão a Deusa dali, que segundo o rápido e confuso relato de Guayaka, devia ser a Ka’aporárãga. Cortei um pedaço da manga de minha blusa, pois sabia que precisava de algo seco. Amarrei na ponta dos galhos. Seria bem mais fácil com alguma substância oleosa. Tive de repetir o feitiço três vezes até um fogo laranja, um tanto fraco, acender no trapo de roupa. Continuei subindo o rio, parando algumas vezes para descansar as pernas. Eu ainda não entendia por que Vânia me mandara àquele lugar. “Não sabemos quantos olhos aquele mati plantou na nossa floresta”, disse Guayaka. Mati só poderia ser Vânia. Mas todo o resto ainda era confuso. Enfim eu parava para pensar e me lembrei do homem que roubara minha sombra. Então com a mão direita ergui a tocha criando luz à minha mão esquerda, e quando olhei para o chão não havia nada. Ele havia a levado de fato. Ainda pensativa mirei o céu. Como eu previra, Jaci reinava cheia. E ainda pensei, em que parte da minha infância eu aprendera que, ali, a lua tinha outro nome? Foi perdida em divagações, com o peito apertado de dor, que um vulto pareceu surgir na outra margem do rio. Pisquei algumas vezes, para ver na escuridão um corpo feminino, de postura austera e firme, parada. Ela segurava algo. Forcei a visão, mas ela sumiu. Como fantasma, num segundo, se foi. Diante da escuridão tamanha não me arriscaria a atravessar o rio a nado. Apesar de Guayaka ter dito que eu teria ajuda perto d’água e eu confiar nele, poderia haver ali, qualquer tipo de cobra, ou algum entre tantos as espécies de peixes carnívoros comuns nessa região do Brasil. Não sabia em que parte do rio Amazonas eu estava, e ainda era difícil acreditar que poderia ter permanecido desacordada durante tanto tempo, que tenha possibilitado aquele percurso todo. Resolvi continuar andando contra a correnteza. Meu plano era não parar nunca, até a aldeia que Guayaka falou. Se eu precisasse, entraria na floresta para realizar algum feitiço a fim de me manter acordada, mas só durante o dia. Senti as pernas fracas e tinha a impressão de ter andado muito, porém não havia vestígios dos primeiros raios de sol, assim não tinha como saber, de fato, o tempo que se passara. Minha barriga roncava e todo meu corpo queria repouso, mas mantive-me firme, caminhando. Foi então que mais uma vez ouvi o som curioso, de pano molhado. Sabia que era ele. Corri até onde ouvi o som, metros subindo o rio e ali o encontrei, encostado a uma árvore onde pendurara seu chapéu e no chão repousavam grandes folhas de bananeira, duas dessa fruta e um peixe.

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– Não é debukiry19, mas vai repor tuas forças – falou ele ao me ver. – Minha senhora, Arunguayara, disse que deveria estar passando fome. Fiquei tão emocionada pela ajuda que quando dei por conta eu o tinha abraçado, apenas com um braço, pois o outro segurava ainda a tocha. Percebendo minha ousadia o soltei. Ele ria. – Em outro momento, se a moça branca estivesse aqui por vontade própria, eu entenderia esse abraço como um convite – ele disse sustentando um olhar cheio de lascívia. Devo ter arregalado os olhos com a insinuação. Até ali ele me parecia inocente demais para aquele pensamento. – Mas não fiques preocuopada. Não sou mau... – Ele sentou e começou a limpar o peixe só com as mãos, e eu me ajoelhei e o observei – diferente do mati que fez o acordo com Bikoróti. Em si, o próprio Bikoróti é mau e perigoso. Eu não. Até carrego medo no peito só de saber quem eu estou atrapalhando. Mas se até Anhangá20 tem raiva desse mati, e se, minha senhora, Arunguayara, diz que me protegerá, cá estou. – Guayaka. – Respirei fundo. – Eu ainda não entendo metade do que diz e quem são essas pessoas. E não me diga que não estou ouvindo do modo certo. – Senti uma lágrima caindo pelo rosto. – Em pouco tempo perdi toda a minha família de uma forma horrível, cada um sofreu de um modo que nem consigo dizer, e a única pessoa que me restou, é um amor que parece estar tão longe agora e impossível de retornar. Estou aqui sem pistas de como voltar pra casa, e nem sei exatamente como vim parar aqui. Me ajude, Guayaka. O mínimo que você disser com clareza, será tanto pra mim. Meu companheiro, naquela noite de lua cheia, ficou pensativo. Lia nos seus olhos o medo e o dilema. Quando do nada, cortando o ar sobre nós passou voando o grande pássaro negro, refletindo o brilho da lua em suas asas sem penas. E se foi, na direção que eu deveria caminhar. – Mas que pássaro é esse?! – exclamei indignada, era diferente de tudo que eu imaginaria. – Não é pássaro, é um Zorak. São meio morcegos, meio home. Muito fortes e de peito largo igual índio guerreiro. Eles são servos de Anhangá. 19

Festa

20

(Maraguá) Presente em várias culturas indígenas é o Senhor do Mal, ou guardião da terra dos mortos. Seu reino fica embaixo das águas. Transforma-se em vento frio e assobia.

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– Quando fui atrás dele pela primeira vez, ele, ou um deles, fez o caminho na sua direção também – falei. – Então, Anhangá quer te levar para o mesmo lugar que minha senhora – ele disse mais para si do que para mim e depois olhou o rio por um instante. – Não temos muito tempo... vou te contar, moça branca. Ele ergueu sua mão esquerda, que estava no lado do rio, e abriu e fechou a mão três vezes com movimentos circulares no pulso, e uma corrente de água ergueu-se do rio, e veio dançar sobre nossas cabeças. A água desenhou-se na escultura de um grande e velho índio, de cabelos longos, grandes brincos pendurados e na mão um cajado adornado pelo brilho da lua. – Este é Monãg21. O grande criador e protetor do Angaretama22: um mundo feito a partir da terra que índio e karaywa23 dividiam. Os teus chamam de Brasil. Mas chegou um tempo em que os dois povos não poderiam sobreviver nesse mesmo mundo, então, Monãg criou este onde estamos. Ele é paralelo ao teu, assim dizem ser, mas fica num tempo onde poucos brancos entravam na floresta e onde todas as criaturas podem existir. “Há apenas dois modos de entrar no Angaretama, que é pelos portais guardados por Monãg, ou pelo Reino de Anhangá.” Conforme Guayaka falava, a água sobre nós rebuscava-se e retorcia-se, desenhando os portais de Angaretama, grandes e frondosas árvores que tinham em suas raízes verdadeiras cachoeiras, e essa água que corria, feito uma cortina se abria revelando as estrelas do céu. – O Portal de Angaretama, guardado por Monãg, é feito de árvores ancestrais que flutuam no céu. Ele pode permitir a passagem de entrada apenas se estiver morto para a vida na terra, ou se, no passado, tiver sido um de nós. A outra forma de atravessar, da tua terra para esta, é se, num dia de ventania e tempestade, matis poderosos te arrastarem para cá. E foi assim que veio, não foi? – Foi, eu acredito que sim... – eu falava sem ter certeza se podia acreditar ter passado para um mundo paralelo. – Ventava muito, e eu estava fraca quando fui jogada. Só me lembro de cair na água. – E como sombra não tem – ele falou depois de olhar para o chão atrás de mim –, foi Bikoróti que te colocou aqui. – Guayaka fez mais alguns gestos, e as águas se transformaram no homem de manto que havia me jogado do Helicóptero. – Bikoróti é mau, cruel e peçonhento. Desde que surgiu apenas ficava de vigia 21

(Maraguá) Criador do universo e do mundo.

22

(Maraguá) Mundo dos espíritos e entidades superiores.

23

(Maraguá) Estrangeiro.

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atrás de moças belas para abusar de seus corpos. Quando não consegue, Bikoróti rouba suas sombras, assim, elas enfraquecem e podem morrer. – Eu... eu vou morrer? – perguntei assustada. Depois de tudo que passei só faltava morrer por ter perdido a sombra. – Não, não por conta de Bikoróti. Acho que te querem viva. Coisa desse mati da tua terra. As águas desenharam sobre nós grandes construções de pedras rochosas que eram envolvidas por peixes de diferentes tamanhos, e sentado em seu meio, um índio com tranças compridas muito além de seus pés. Ele tinha inúmeras cicatrizes, e no peito ostentava um colar de dentes afiados e grandes. – Este é Anhangá, que reina e governa a terra dos mortos, onde outra passagem há. Mirei a nova cena sobre nós, e por um instante, queria tocá-la de tão mágica que me pareceu. Mas me contive pensando sobre o que meu amigo dizia sobre Vânia me querer viva. – Mas por que acha que Vânia… O mati me quer viva? E por que sua senhora me ajuda? – Não há ninguém mais perfeito que minha senhora. – Ele fez um gesto com as mãos como se quisesse dispersar fumaça, e a água sobre nossas cabeças voltou ao rio. – Criatura mais bela, mais boa não há. Ela é a senhora dos peixes-boi, e por isso, também senhora de Guayaka. – Ele voltava a limpar o peixe. – Moça branca despencou no reino dela, e logo que caiu, ela soube que precisaria de ajuda para ir embora, que gente ruim quer o mal da moça branca. Foi então que Açaí apareceu, ela é tão linda quanto minha senhora, mas nem sempre é boa, é meio feiticeira do canto, então às vezes se deixa levar por seu poder. “Ambas são tão belas que cegariam karaywa. Eu as amo e venero, por isso corro o risco e venho te ajudar, moça branca. E por isso não a conquisto”, ele me olhou nos olhos, tão fundo como se quisesse me enfeitiçar, e estendeu uma folha de bananeira com o peixe cru e limpo e as bananas amassadas, enquanto entoava um cântico de palavras desconhecidas para mim, das quais não me lembro mais. Senti-me sonolenta por um momento. Não conseguia parar de olhar para os lábios que pronunciavam aquele canto. Então me pareceram tão macios, cheios de volúpia convidativa. Meu coração acelerou e meu corpo ficou quente. Ele repetia o canto e eu me senti linda, como se houvesse aflorado em mim uma sexualidade que queria ser exercida com ele. Quis beijá-lo. Era o canto que me fazia desejar o estranho e dar prazer... – Mas eu não vim enfeitiçar a moça branca. Dias de Chuva |

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Sua fala me trouxe à razão. Eu despertei do transe ainda com dificuldade para esquecer a sedução que ele me causara. Como é possível tanto poder?, pensei. Guayaka colocava a folha de bananeira à minha frente, e depois pegou a tocha de minhas mãos para que eu pudesse usar ambas as mãos para comer. – O que é você? – Estava ainda aturdida e um pouco incomodada com o desejo que ardeu tão rápido em mim, e agora começava a deixar meu corpo, não sem alguns arrepios. – Teu povo teve mais contato com os Guaranis, eles chamam aquele que é como eu, de boto – ele disse sério. – Agora coma. Guayaka me olhou comer em silêncio. Aguardando, paciente. Eu estava com muita fome e devorei a comida que me pareceu apetitosa, exótica e familiar ao mesmo tempo. Terminando minha refeição, resolvi fazer mais uma pergunta. – Guayaka, sua senhora sabe como devo ir embora? E o que pretendem comigo? Seu semblante endureceu. – A mata tá agitada. Visagens ruins virão aqui, te molestar, precisa ser forte, moça branca. Apesar de te quererem viva, não vão se importar se não aguentar e morrer. Açaí acha que nada que façamos vai impedir o que tá sendo planejado. Por isso precisa chegar à Táwapayêra, a aldeia mística, e lá encontrará às águas de Waruã24, que te levarão ao reino de Anhangá, por onde voltará a tua terra. – Mas você disse que Anhangá é perigoso. – Não há outro modo. Nenhuma criatura que não é deste mundo consegue atravessar daqui para tua terra, pelo Portal de Angaretama. Consenti, pois não havia escolha. – Agora preciso ir, moça branca. – Guayaka sorriu tentando me passar confiança. – E continue a subir o rio. Ele se levantou e eu copiei o gesto em seguida. – Espere. – Estava aflita. Não queria que ele me deixasse só, mesmo que eu não tivesse escolha e fosse fazer o que ele dissera, tinha ainda muitas perguntas para fazer. – Me diga, e Arunguayara e Açaí, eu... eu vou vê-las? Ao menos para agradecer. – Não precisa agradecer em pessoa, se for grata ao final. – Ele pensou por um instante. – Mas, talvez, elas apareçam no momento oportuno. 24

(Maraguá) Águas encantadas que servem de aposento para Anhangá. Um tipo de lago que nunca fica dois dias no mesmo lugar.

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Ele ainda segurava minha tocha, e estendeu-a a mim. Eu aproveitei o momento e dei um forte abraço. – Obrigada por se arriscar por mim. Ele afagou meu cabelo e senti sua roupa molhada encostar à minha quase seca. Depois que nos soltamos, ele me deu um beijo na testa. Quando ergui a cabeça vi que às suas costas, na outra margem do rio, novamente aparecia a índia austera. Reconheci em suas mãos um arco. Pelo meio de seus seios passava uma corda que segurava à suas costas uma aljava. Seu sexo era coberto por um pequeno adereço de madeira e fios firmes, parecido com uma calcinha no formato de um “T”. Seu corpo todo tinha pinturas geométricas de tinta vermelha, e nos calcanhares, duas fitas grossas que lembravam pele de animal. Eu via seus olhos me enfrentando. – Quem... quem é ela, Guayaka? – perguntei baixo, como se fizesse alguma diferença ela me ouvir. A índia, me encarando dava calafrios. Meu amigo virou-se rápido e se manteve entre nós duas. Eu a observava por trás de seu ombro. – Realmente tá vendo ela? – Mas é claro que sim – disse rápido, como se ele me perguntasse o óbvio. – Isso é... impossível. – Sua voz vinha repleta de dúvida. – Nenhum homem branco vê o espírito de Amanara25. – Ela parece bem real pra mim. – Ela foi uma Icamiaba na tua terra. Mas não uma qualquer. – Icamiaba? O que isso quer dizer? – Teu povo as chamaram de Amazonas. Mas Amanara era uma especial entre as suas – ele falava com orgulho e respeito. – Ágil, forte, predestinada. Agraciada com o poder místico da chuva, ela lavava a terra do sangue contaminado dos seus inimigos. – E então ele soou triste. – Ela morreu e Monãg trouxe seu espírito para Angaretama. Algo naquela índia me fascinava. Despertando em mim uma força nunca antes sentida. – E como ela morreu? – Eu não conseguia parar de olhar para ela. – Por que ela não interage com vocês? – falava no ouvido de Guayaka. – Ela acreditou no lado errado da guerra. Amanara, a forte guerreira, foi traída. Seu espírito nunca descansou, pois como guerreira, deveria ter sido vencida 25

(Tupi) Dia com chuva.

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em batalha, mas foi envenenada dentro do lugar que tinha como lar, e enfraquecida, cortaram sua garganta. – Soturno, eu o ouvia contando a história, e podia ver em minha mente, de um modo muito nítido, o que imaginei ter acontecido. – Seus inimigos beberam do seu sangue quente em taças de ouro. Agora ela não pode falar, e seu espírito vagueia feito apenas um reflexo do passado, pois a essência de sua alma perdeu-se para sempre. Ela é como um ponto de luz que pisca em nossos olhos, mas que em si, já se apagou. Eu estava perplexa. A índia ergueu o braço e o levou às costas, tirando uma flecha que armou no arco. Guayaka segurou minha mão, mantendo-me no lugar, como se dissesse que é seguro. A Icamiaba atirou a flecha em nossa direção, que feito um dilatar no tempo, lentamente nos atingiu, criando a poucos centímetros uma cúpula de ar gelado. Eu vi outro lugar, onde a índia beijava apaixonada um homem branco, de cabelos curtos e loiros, vestindo roupas garbosas e uma espada presa à cintura. Então um relâmpago estourou no céu, e choveu. Caiu uma chuva vermelha de sangue sobre o casal e em toda a clareira em volta deles. Quando a visão se foi, meu peito arfava como se tivesse sido sufocada. Fui ao chão de joelhos. Tudo era tão real. Sentia o sangue chover em mim. Guayaka me olhava incrédulo e curioso. Ele pôs a mão no meu ombro. – Está bem, moça branca? – Sim, estou sim. – Olhei mais uma vez para ela, que dessa vez, deu as costas e entrou na floresta. – Eu preciso ir agora, moça branca. – O ser místico pegou seu chapéu que estava preso ao galho de uma árvore. – Seja forte e acredite. Dessa vez, ele não fez nenhuma pirueta, apenas abaixou a cabeça e entrou no rio, andando, como quem desce uma escada. Quando finalmente desapareceu, Zorak tampou mais uma vez a luz da lua e quando se afastava na direção que eu deveria seguir, o olhei bem. O grande morcego me mostrava a direção. Voltei a seguir meu caminho, subindo o rio, mas achei melhor não correr e poupar energia. Não posso mensurar o tempo exato passado quando o sol despontou através das árvores tornando amarelo e laranja o céu já perdido no marrom e no azul da madrugada. As copas verdejantes entorpecidas no escuro profundo, logo se amarelaram e um verde vivo tomou conta como coroa de esmeraldas. O calor veio junto e reconfortante. Ouvi um farfalhar de folhas e galhos proveniente dos animais que despertavam e de outros que iam dormir. As ondas naturais da correnteza do rio refletiram a luz do amanhecer e eu, perdida nesse espetáculo, tentando acostumar meus olhos à visão que reluzia viva à minha frente, não vi o que me acometeu.

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Gritei. Uma dor aguda vinda da perna correu pelo meu corpo feito energia elétrica e eu fui ao chão levando a mão à perna que logo se encheu de sangue. Uma risada histérica entrou em minha mente. Ergui a cabeça, e entre mim e o sol, uma mulher velha e pequena, vestida com um traje longo, de mangas compridas e rasgadas, de pedaços de pele de algum animal marrom que não identifiquei, e à cintura levava presa uma bolsa de pano cujo cordão fazia de cinto. Ela segurava uma navalha, coberta por meu sangue. – Iahhhhaaahhhh, kiá, kiá. Kiááááá – fez a mulher, enquanto rodava sua espécie de faca de prata no ar. – Moça branca tem carne macia, kiá, kiá, kiá. Pele tão fraca. E muitos anos de vida vindo pra mim... Iaahhhahhhh kiá, kiá, kiá – fez ela outra vez balançando a faca enquanto de minha perna sangrando um tipo de fumaça vermelha saia e se enrolava na lâmina. A velha fazia caretas de quem achava tudo engraçado. Ela era mais branca que uma nuvem no céu e sua face tão enrugada que era difícil dizer se ela estava realmente viva. Sua pele grudava na sua caveira, dando para ver com perfeição os buracos dos olhos e dos lados da face. Na orelha ela tinha grades pedaços de madeira atravessados como brincos. A velha colocou a língua enorme para fora e lambeu a faca, engolindo a fumaça vermelha. – Moça branca tem muitos anos de vida pela frente, não vai achar ruim que eu roube alguns! – Iahhhhahhhh.... – Ela ria. E quando ela foi repetir o gesto, ergui-me feito fera para pular em seu pescoço minúsculo, mas a velha era esguia, e em um passo foi para trás deixando o braço estendido da mão que segurava a faca, fazendo um corte em cada um dos meus braços. Eu gritei de dor e caí mais uma vez. – Iahhhhahhh, kiá, kiá, kiá. – Ela repetiu o gesto, e o espectro vermelho que saia junto ao meu sangue em borbotões foi de mim para sua navalha, e de sua navalha para sua língua. – Bem que Bikoróti avisou que a moça tem energia, mas a carne é tão fraca quanto de peixe fora da água. – De súbito ela mudou, e cerrou seus olhos na minha direção. – Aquele maldito Guayaka! – disse ela se agachando perto de mim, e puxando minha cabeça para trás pelos cabelos, com a força de um homem. – Não vai nos impedir não, maia. Sou visagem26 poderosa, mas quem a aguarda, é ainda mais que eu. – Me larga, maldita. – bradei e cuspi na sua cara. – Kunhãtãi27 – disse ela, limpando meu gesto de sua cara com a manga longa do seu traje esquisito. – Nada vai mudar seu futuro escrito – enquanto ela falava, 26

(Maraguá) Aparição, assombração, demônio.

27

Menina.

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a fumaça vermelha continuava dançando até sua faca e se enrolando nela. – Você devia mesmo é poupar sua energia... tão preciosa, vai precisar. – Ela escorregou a mão pelo meu cabelo, eu estava fraca, sentia-me perto de desfalecer. Tentei gritar e não tinha mais voz. – Ela me puxou para trás com a força que não parecia caber no corpo franzino, e começou a arrastar-me para dentro da mata. – Vou contar uma história, kunhãtãi, a minha e de outros que você conhecerá. Não por achar que você merece saber, kiá, kiá, kiá, mas só para deixá-la acordada enquanto faço o rastro com seu sangue, para que Kãwera nos encontre mais rápido, como combinado. Aquele velho e feio visagem come gente, mas ele prefere gente fresca. Eu ouvia o relato da velha, sem prestar atenção. Como se não bastasse a dor nos cortes e a minha energia que pareceu sumir, a dor de ser puxada pelo cabelo era ainda pior. – Meu nome – continuava a velha –, é Anamane28, kiáááááá, e eu não faço muito mais do que estou fazendo agora. Preciso cortar, ralhar, rasgar, perfurar, pra sua vida, vida me dar... Você entende não é, maia? – O jeito com que ela falava era zombeteiro, sentindo prazer em cada palavra. – Assim é Anamane, mas você imagina como é ruim? Não vou morrer, se não fizer, só definhar mais e mais, os deuses me fizeram assim. Mas então, Monãg nos prendeu aqui, abaixo de seus portões. O grande Angaretama pode ser um paraíso para alguns, mas imagina, séculos num lugar que não muda? No seu mundo, nossa terra tem sofrido, tem mudado, mas aqui é igual. Monãg libera só quem é índio, que se cansa de viver, se quer lutar lá, vai embora subindo pelos portais num tufão, mas nós, visagens que entraram uma vez no Angaretama, não podemos sair. Anhangá cela aquelas passagens quase tão bem quanto o Monãg. Por isso, quando o mati veio dizer para Ypuré que tinha acordo para fazer com a gente, nossos corações encheram-se de vontade. “Ah! Quem é Ypuré? Ypuré é velha amiga minha, demônio de encruzilhada, entra nos seus sonhos depois de jogar folhas secas. Ela dá riquezas para quem faz oferenda a ela, mas também deixa louco quem quiser. Ypuré é bonita, tenho inveja dela. Eu aqui toda velha caindo, kiá, kiá, Kia”, ela ria”, e Ypuré tão bela com seu rabo de jaguatirica. Mas cada um nasce de um jeito. “E por isso aceitamos acordo com o mati karaywa. Imagina a eternidade aqui, para Anamane? Sempre vendo as mesmas árvores, indo atrás dos mesmos índios, que graça tem? Bom mesmo agora, deve ser ir para o seu mundo atentar brancos. 28

(Maraguá) Segundo a mitologia Maraguá é uma velha senhora branca que caminha pela floresta com uma navalha nas mãos e a cada golpe rouba alguns anos da vítima.

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“E imagine para Ypuré. Tão bonita aqui escondida não pode se exibir pra ninguém novo. E aqui, pessoa nenhuma quer saber de riquezas, estão bem do modo que estão, índio não liga pra nada disso. Angaretama é enorme, mas não muda, e nesses séculos todos, já rodamos cada palmo. Ypuré precisa ir é fazer acordo com branco, negros, e até com filhos de índios, pois esses sim, lá no seu mundo, têm cobiça. Tá entendendo agora? Kiá, kiá, kiá, e você é nossa trilha, maia. “Acho que já falei de tudo, não é? Ah, não, falta ainda o melhor. Kiá, Kiá, Kiá”, ela riu ainda mais alto. “Kãwera vem pra festa também: comer você, mastigar você, fazer você sofrer. Mais o quê?” Ela parou num instante, mas logo voltou a andar. “Eu esqueci ainda uma coisa. O maldito Guayaka avisou da minha amiga Ypuré, te manteve longe das encruzilhadas e das folhas secas quando mandou você andar à margem do rio... ah, metido ele no que não se deve... vai pagar uma hora, ah se vai. Daí seu espírito ficou atento à presença de Ypuré, por isso vim eu mesma. Eu sou velha, ninguém se lembra de mim. Sou tão pequena que antes de me perceberem, já vim, furei, roubei parte da sua vida, e me vou. Não mato, só adianto a morte. Mas você, você não, tem mais vida guardada no seu futuro que bagre nesse rio, daí posso ainda lhe furar mil vezes, e ainda vai ter anos pra viver....” Ela falava e falava e falava. Tinha certeza que mais do que informar, ela queria me meter medo, me irritar, me fazer agonizar, muito mais do que me manter acordada. – Ah, sei que tá doendo, mas olha aí, o cheiro do seu sangue vai trazer uma onça quem sabe, pra lhe devorar também! Ela ria e ria enquanto entrávamos na mata cada vez mais. Minhas costas ralavam em folhas e galhos e a cabeça doía batendo em pedras que ela não tentava desviar. – Mas eu ia falar do Kãwera... Ah, o que se pode dizer, ele é tão velho quanto Monãg e Anhangá, e ele come gente, mas prefere gente viva e fresca. Mas aqui, no Angaretama, ele vive de dieta. Kiá, kiá, kiá. Tem pouco índio, e tudo protegido por Monãg e Ka’aporárãga. Você viu um Zorak de Anhangá no céu te mostrando o caminho, não é? Ele faz assim: “Kiá, kiá, kiá, piuuuuu”, mas viu que o assobio dele é mais grave que minha risada não ouviu? Mas que importa é que Kãwera parece com os Zorak, mas é único, é maior e mais feio. Eu não aguentava mais ouvi-la, meu corpo queria desfalecer, mas tentava manter minha consciência plena, o que devido às dores agudas e à energia drenada, era cada vez mais difícil. Dias de Chuva |

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– É sim... é aqui. Havíamos chegado a uma clareira, e fiquei aliviada por ela ter parado de me arrastar. Anamane se colocou à minha frente e esticou sua cara magra em cima do meu rosto. – Atrás de você está Mirá’gwéra29, sua nova casa. Pelo chão, arrastando-se, vindos de trás, de onde eu não tinha forças para olhar, vários cipós enrolaram meus braços e me puxaram para cima e para trás com força, fazendo-me bater as costas no tronco de uma árvore muito alta e grossa, e o impacto tamanho, mesmo com a falta de forças dentro de mim, me fez gritar. Tantos outros cipós e galhos vieram tapar-me a boca e prender-me àquela grande árvore, cuja enorme copa cobria-me com sua sombra. – Eu prefiro você calada – ouvi a sentença de uma voz feminina cheia de sensualidade. – Pois agora quem fala, sou eu, kunhãtãi. Ela veio detrás da árvore que me prendeu. Era bem alta, e estava quase nua. Cobria apenas seu sexo com o pedaço de uma pele de onça. Nos pés descalços tinha várias pulseiras de sementes, assim como colares de vários tamanhos, que se prendiam desde muito perto ao pescoço, até outros que cruzavam os seios fartos. Sua pele tinha um moreno especial, quase vermelho. Os olhos enormes e verdes me encararam. – Você tem se protegido de mim, graças ao gracioso peixe-boi. Até deixou de caçar para evitar-me. Escute-me bem. Eu não sou de todo má. Sou só um tanto... quando se faz necessário. – Ela mirou-me de cima abaixo. – E agora se faz! Enquanto ela falava, notei que seus dentes reluziam como se fossem de ouro, e por trás do longo cabelo vermelho que caia além das coxas, duas orelhas pontudas de jaguatirica se escondiam. – Anamane... – Ela fez um gesto com a mão estendida para a velha, que abriu sua bolsa de pano, de onde tirou um punhado de folhas secas. Ypuré pegou-as com ambas as mãos como uma concha, soprando-as na minha direção, fazendo-as se multiplicar, tornando-se tantas a circundar-me com um vento inexistente, cobrindo toda minha visão. – É o mati que falará contigo, maia – repetia Ypuré. – O mati. Depois das palavras delas, o cheiro da mata, de plantas e frescor com o qual eu me acostumara fácil, foi trocado pelo cheiro forte de bolor e sangue. E eu estava mais uma vez na mansão sobre a colina. À minha frente Vânia sorria de contentamento. 29

(Maraguá) Árvore velha

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No mesmo instante, era como se minhas forças tivessem voltado, eu pulei em sua direção tamanho meu ódio, mas fui repelida na direção contrária, como se o próprio ar me impedisse. – Não, menina, não – disse Vânia a zombar, tampando minha visão de quase todo o resto do ambiente. – Você não está aqui, de fato. Ainda está presa, e se bem imagino, já deve saber onde. Eu apenas utilizei do poder de Ypuré, para entrar em sua mente e dar as regras do jogo. – Seu monstro! – gritei. – Eu quero voltar para casa. Onde está Audrick, seu maldito? Onde ele está? – Ele está aqui. – Vânia saiu de minha linha de visão deixando-me ver o restante do cômodo. Foi então que o vi, mas acreditei que talvez fosse melhor não saber. Balbuciei por um instante tentando entender. Audrick estava sentado no chão, amarrado por uma série de correntes e fios à outra pessoa, ambos com as costas grudadas. Eu mal poderia prever, meus olhos encheram-se de lágrimas. Não havia ali as mesmas tranças compridas, nem o sorriso faceiro, mas ainda era ele: Dimitri. Vânia gargalhava. – Gostou da surpresa, menina? Preso ao seu amor devastador está seu amor mais puro. – Seu riso reverberava nas paredes e dentro de minha cabeça. – Oh, não. Não faça essa cara de surpresa, porque todos nós sabemos que esse fedelho, seu único amigo ainda vivo, é seu mais puro amor. – Sorria em sarcasmo. – Até Audrick sabe disso. Agora veja bem, preste atenção nos detalhes. Audrick pode transformar-se e em segundos alçar voo, caçar você e salvá-la, afinal ele sabendo que estava fraco voltou a tomar do elixir. Não duvido que ele ache fácil Bikoróti, para fazê-lo abrir os portais e ir aí te salvar. E sabe por que ele não fez isso? Pois seu coração – chegou perto de ambos que pareciam cansados e de cabeça baixa –, está ligado... – ele mostrou uma corrente mais fina, que saia do peito de Audrick –... diretamente ao coração de Dimitri. Se um deles tentar escapar, vai matar o outro. – Achei que meu coração havia parado de bater. – Não seria perfeito, menina? A morte de um amor, pelas mãos do outro? Acontece, minha cara, que nenhum quer vê-la sofrer mais, e por isso, ficam aqui. Nem meu sobrinho, nem meu filho, ousam se soltar. O chão pareceu sumir, mesmo eu estando ali em espírito apenas. Toda minha visão ficou turva e eu chorei. Então fazia sentido. Era por isso que ao me apaixonar por Dimitri, seu pai resolveu aparecer e oferecer ajuda, se mudasse de estado. Minha paixão por Dimitri afastava-me cada vez mais dos planos de Audrick e de Vânia. O pai de Dimitri era estrangeiro, o amor descontrolado de Dias de Chuva |

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Miriam. Por isso ela nunca falava o nome dele, por isso sempre foi contra meu namoro com seu filho, pois seu filho era também filho de Rachmanninoff. – Tem razão. Tem razão, menina. Eu tentei me aproximar de meu filho várias vezes – Vânia falava com calma. – Pensei até mesmo em fazer dele meu discípulo, mas Dimitri não nasceu com nada mal dentro dele. Diferente de você, não é? Que quer me queimar na fogueira. – Ele gargalhou com a ideia. Achava-se invencível. – Mas este meu filho não tem nada de meu. NADA! – ele gritou. – E só fiz o que fiz por ele e pela mãe, para deixar o caminho livre para quem, mesmo me decepcionando, de fato é de minha casta: Audrick. Eu mirava os olhos de Dimitri, desconsolado. – Desculpe, Júlia – ele murmurou. – Desculpe, pai. – Dimitri, virou seu rosto para mim, mesmo marcado pelo sofrimento, tinha ainda os olhos de avelãs por quem me apaixonei. Eu queria gritar que não o esquecera, queria abraçá-lo e dizer o tanto que senti saudades. Mas eu não podia, eu não estava lá. Só então olhei outra vez para Audrick. No seu rosto, além de cansaço, havia a tristeza. Ele lia em mim o forte sentimento e carinho por Dimitri, mas também deveria saber o quanto eu era apaixonada por ele, e por ele estava naquela situação. Encarei Vânia. – Diga, cachorro. Qual o acordo? O que quer que eu faça para que você os liberte? – Agora estamos progredindo – ele disse cruzando e estalando os dedos. – Preste atenção, você precisará provar se é ou não digna de ser transformada, minha linhagem não será passada para qualquer um, e muito menos para quem não merece. Fiz um acordo com as criaturas da sua terra, são eles que irão incumbir o seu sofrimento que deveria ser por conta de Audrick. – Ele olhou para Audrick com desdém. – A primeira parte do acordo: Sobreviva, a segunda, saia de Angaretama, o portal dará na praia nos pés desta colina. Venha até a torre, e eu libertarei ambos, com vida. – Só isso? – Havia algo que ele escondia, e eu sentia. – Ah, vamos ver se será fácil. Eu olhei mais uma vez para Audrick e Dimitri. Vânia continuava: – Ou, escolha um dos dois, para soltar-se, matar o outro na libertação e ir aí, buscá-la. Você virá escoltada e sem mais nenhuma dor e ferimento. – Seu monstro. Como pode me pedir que eu escolha alguém para morrer? Como pode colocar em risco a vida de Audrick e de seu filho? – Ah, sua vadiazinha. Aquele que eu criei, para seguir meus passos, quer abandonar tudo por você! Audrick sim é meu sangue. Agora, Dimitri, só o deixei

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vivo pela mãe dele. A bruxa Miriam viria a me ser útil ainda. Nos fez muitos favores, mas quase que esse moleque colocou tudo a perder. – Ele foi para perto de Dimitri e acariciou o seu rosto. – Mas, por que, por que não há nenhuma maldade nesse coração, nenhuma inclinação de força para ser um de nós, e nem mesmo para ter as artimanhas de feitiçaria da mãe? Nada. Para nada ele serve. Vânia foi até uma das paredes e puxou a arte de tapeçaria nela pendurada, revelando um grande espelho negro. – Aqui, nós veremos tudo de camarote. Cada gota de sangue sua, cada lágrima caída e grito... por isso pense bem antes de pedir por ajuda e por Audrick, ou ele pode ser tentado a explodir o coração de Dimitri, e ir atrás de você. – Não, Audrick. Não faça isso! – gritei, e no mesmo instante eu voltava à mata. O cipó que tampava minha visão havia sido retirado. Vi Ypuré rígida, séria e cruel, repleta de superioridade. No seu ombro um pássaro negro de topete amarelo, bico fino e preto reluzente, me encarava. – Cumprimente o Rouxinol do Rio Negro, é ele que levará para o mati suas dores, aflições e pavor. E a dor aguda mais uma vez furou meu abdômen. Olhei para baixo, Anamane me feria, eu quis gritar, mas me contive. Se Audrick e Dimitri me vissem desesperada, provavelmente eles cometeriam o pior: tirar a vida de outra pessoa que eu amava. Anamane repetiu sua dança com a navalha, seu canto misto em risada, e minha energia era drenada, não imaginava que pudesse ficar ainda mais frágil do que estava. Mas por algum motivo, quanto mais sangue e energia eu perdia, mais, de algum lugar dentro de mim, eu me mantinha sã e ela finalmente pareceu saciada. Um forte vento desceu do céu, pressionando folhas, grama e galhos para baixo numa lufada quente e úmida. Voltei minha visão para o sol parcialmente encoberto, eram asas de pele preta, sem penas, como o tal Zorak. Mas era muito maior. Ele desceu devagar, como um vampiro, cheio de majestade e aura densa. Era enorme, deveria passar dos quatro metros, seu corpo de pele cinzenta e gastada mostrava suas veias e articulações saltadas no peito, nos braços e na face, que mais parecia ser feito de casca de árvore. Suas pernas eram peludas, e de pelos tão escuros, que aos raios do sol, avermelhavam-se. No lugar dos olhos tinha cavidades profundas, buracos apenas. Sua boca, rasgada na cara, revelavam dentes pontudos e torcidos como de um jacaré. Da cabeça saía longos e sujos cabelos cinza, que se confundiam com os pelos das orelhas pontudas. Soube que, de boca aberta, exalando o cheiro pútrido de carne podre, aquele seria meu maior algoz, Kãwera. Dias de Chuva |

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A criatura parou à minha frente, e cheirou cada pedaço meu, como se tentasse descobrir se valia a pena a refeição. Ele se demorou um pouco no meu abdômen perfurado. Depois de pensar, com a unha de seu dedo indicador, levantou minha blusa de algodão, que agora era apenas sangue e sujeira, e lambeu a ferida na minha barriga. Sua língua era áspera e ralou a pele em volta da ferida. Segurei para não gritar. Kãwera ergueu-se, mantendo-se reto outra vez, então agachou-se sobre os joelhos flexionados como um macaco, olhou para Ypuré e grunhiu alguma coisa, depois voltou a me encarar. – Ele acha que você pode até ser saborosa. Tem mais carne macia nas pernas, mas o resto vai deixar a desejar. Por isso, ele está escolhendo por onde vai começar a comê-la. – Não! – gritei. Mirei nos olhos do Rouxinol e gritei ainda mais. – Vânia, como acha que eu vou sobreviver a um canibal? Ypuré desconcentrou-se com minha atitude, e espantada, ao encarar-me, devolveu-me a visão, mas agora parcial, de onde meu opressor estava. – Você não quer se tornar um domum como nós? Já não tem bebido do elixir? Dê um jeito, fedelha. – Vânia ria. – Ou quer que um dos dois vá salvá-la? Foi então que eu percebi: Vânia não queria que eu passasse em nenhum teste, ele queria era provar para Audrick que eu não era digna, e nem nunca seria. A visão, da mesma forma que viera se foi, e eu só via Kãwera apertando minha panturrilha. – Audrick, Dimitri – gritei na direção do pássaro –, não importa o que aconteça comigo, NÃO TENTEM ESCAP... E a dor foi tão forte que em vez de gritar, emudeci. Com as unhas do dedo indicador e polegar, Kãwera arrancou um pedaço de pele e carne no lugar onde apertava. Senti meu coração descompassar. Suava frio. Ele ergueu o pedaço arrancado de minha carne à cima da boca, que engoliu apreciando devagar, enquanto se lambuzava com meu sangue. Eu tinha que fazer alguma coisa, eu precisava, ou estaria morta em segundos. Fechei meus olhos. Por que eu ainda estava consciente? Deveria haver um propósito, eu precisava pensar em algo, ou sofreria o impensável até morrer. Eu precisava pensar como uma bruxa. Sabia que não havia modo de lutar, apenas o que eu aprendera poderia ser útil. Senti Kãwera apalpando meu braço. Ele faria aquilo outra vez, eu apenas precisava impedi-lo. Mas como? Audrick me amava demais, eu tinha certeza disso, e só conseguia pensar nele, ele não aguentaria me ver sofrer e viria ao meu auxílio e Dimitri morreria. Precisava ser rápida.

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– NÃO FAÇA NADA AUDRI... – gritei, e novamente minha carne era rompida pelas mãos de Kãwera. Não quis abrir os olhos. Eu tinha que pensar em algo, mas a dor não deixava. Meu coração clamava por Miriam. Eu deveria ter aprendido algo mais poderoso, algo que pudesse me tirar daquela situação. Eu espremia os olhos, sem conseguir nem tentar evitar as lágrimas. Em minha mente vieram as falas de Guayaka, depois a imagem da guerreira Icamiaba, e parecia que sua altivez em espírito me fortalecia, mas para quê? “Você precisa estar preparada”, ela dizia. Eu deveria ser mais esperta, devia ter lido nas entrelinhas que o pai de Dimitri era Vânia. Guayaka falou que brancos deviam ouvir mais com o coração. O que eu não havia entendido. Kãwera era um demônio, e como tal, fizera um acordo como as visagens e Rachmanninoff. Um acordo. Mas não era Kãwera que estava no comando. Senti o monstro apalpando minha outra coxa. Bikoróti, o ladrão de minha sombra. não estava ali no Angaretama. Vânia quis dizer isso quando mencionou que Audrick facilmente o encontraria, ele deveria estar muito perto esperando seu pagamento. Anamane parecia temer Ypuré que foi a primeira citada por Guayaka, era com ela que eu deveria me preocupar ainda mais. Abri os olhos, e no mesmo segundo que Kãwera cravou os dentes em minha coxa sentenciei: – Minha carne por outra – gritei. A dor foi terrível, pude sentir os dentes finos próximos ao meu fêmur. – Não faço acordos com quem faz parte de tratos anteriores – falou Ypuré, desconfiada enquanto Kãwera afrouxava a mordida. – Eu... Nã-nã-não quero fazer acordo com v-vo-você, Ypuré – gaguejei. – Só com Kãwera – soltei por fim. – Então – ela estendeu a mão na direção de Kãwera –, fale direto pela língua dele. Kãwera ergueu-se, mantendo sua carranca de frente ao meu rosto, encostando sua cabeça à minha. Tive que respirar sofregamente para não vomitar, seu cheiro era podre e a ânsia subia por minha garganta. – Pensa aí no que quer dizer pra ele, maia – era Anamane que voltava a falar com sua zombaria. – Kãwera se comunica aqui – ela apontava para sua cabeça dando toquinhos com o dedo indicador –, de dentro, não confia na língua dos homens. Ouvi um cantar dentro de minha cabeça, uma nova voz e palavras formaram-se em minha mente que eu não soube de onde vinham. Dias de Chuva |

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Você me conhece, Kãwera. Arranque outro pedaço de minha carne e você, assombração, terá pesadelos. A voz que falava em mim, era mais grave e madura. Mas se me deixar sair, volto e pago em dobro. Kãwera afastou-se devagar, fulminando-me com seu olhar. Parecia irritado. O que eu havia dito para ele? Se conseguisse sair dali alguma hora, como voltaria para cumprir a promessa? Mas já estava feito. Enquanto eu começava a recuperar o fôlego, ele me encarava. Devia estar pensando na proposta. Uma loucura, mas eu precisava que ele aceitasse, era o único modo de sair dali viva. Em uma das pernas eu sangrava com o pedaço de carne que faltava na panturrilha, na outra, a mordida na coxa e acima do tornozelo, o corte da navalha de Anamane. Na barriga o sangue lambido pelo demônio parecia finalmente estancar, mas a carne arranhada doía só de sentir a blusa grudada, minhas calças eram só fiapos e trapos, assim como eu me sentia. E sem nenhum grunhido, ele bateu suas fortes asas e se foi. Eu gritei dessa vez de alívio. Queria rir por ter conseguido! Ele havia topado! Enquanto eu estava no meu êxtase, novamente Ypuré me levou até Vânia que estava embevecido e surpreso, gritava sua ira cuspindo fogo pelos olhos. – Não é possível. O que você fez, sua puta? O que você fez? – Ela resolveu! – Era a voz de Audrick que sentenciava aliviado e contente, de certa forma. – Não devia ter duvidado, Vânia... Rachmanninoff parecia ignorá-lo. – ME DIGA O QUE VOCÊ DISSE A ELE! – Vânia gritava, seu rosto vermelho de fúria tinha as veias saltadas. E eu percebi. – Não pode ler minha mente, não é, Vânia Rachmanninoff? – disse todo o seu nome com escárnio e provocação que não pude conter. – Nós não estamos no mesmo espaço e tempo! Você me vê e eu o vejo pela magia, mas aí, tão longe de mim, não pode de forma alguma ler meus pensamentos. – Acha que é mais esperta do que eu, vadia? – ele se recompunha. – Pode ter convencido Kãwera, mas ainda precisa sobreviver à minha dama amazônica preferida, Ypuré. E eu voltava para a floresta. – Precisa mesmo – sentenciou a mulher demônio, de olhos cerrados feito jaguatirica. Ypuré abaixou-se próximo à raiz da grande árvore na qual eu estava amarrada e cavou a terra ali, de onde retirou um pequeno embrulho feito de folhas

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grossas amarradas com algum tipo de barbante. Ela pegou um galho solto no chão e se levantou. – Há mal maior para causar do que a doença trazida por seu povo? Vocês, que tomaram nossa terra e nos obrigaram a viver aqui, neste tempo perdido... – Ela segurava o embrulho. – O segredo do meu acordo com seu mati, maia, é que não importa o que aconteça com você de agora em diante. Eu não preciso de você viva, para ir embora dessa terra. Com o galho ela furou o embrulho de folhas, que era menor que a palma de sua mão, e o pedaço de madeira saiu carregado de um líquido viscoso e amarelado, de um cheiro muito forte. Ypuré enfiou o galho no ferimento de minha barriga feito pela faca de Anamane e girou dentro de mim. Eu gritei de dor e o Rouxinol, antes no ombro de Ypuré, voltou para o galho de uma árvore. – Que o tempo acelere sua dor – ela disse com os olhos cerrados. Só então notei que durante aquele tempo, Anamane recolhia e empilhava galhos no centro da clareira. Eu não tive nem tempo para pensar o que seria aquilo. Meu corpo passou a queimar em febre no mesmo instante, trazendo-me a tontura e ânsia de vômito. Tentei me acalmar e respirar fundo para manter a consciência, mas era inútil. Na pilha de galhos à minha frente Ypuré com um simples feitiço ateou fogo. – Agora nenhum animal faminto virá atrás de você para se alimentar e acabar com sua dor antes da hora. E sem dizer mais nada ambas sumiram na mata, sem rastro que não fosse a risada de Anamane. A febre era tanta que me roubava a razão. Até vir a dor no ventre, não era no ferimento, era mais fundo, parecia que meus órgãos internos iam explodir. Sentia o ardor vindo de dentro, acompanhado de uma série de calafrios. A dor então tomou minha cabeça, como se fosse advinda de uma forte pancada nas laterais e na testa. Meus olhos fechavam-se e se abriam no ir e vir da razão. Se já não bastavam os sofrimentos, meu corpo parecia cada vez mais fraco, como a sensação de cair em um abismo. Parecia infinita. Eu precisava saber o que eu tinha e dar um jeito de escapar. Gritei na direção do Rouxinol várias vezes o nome de Vânia, mas sem Ypuré para me trazer a visão, eu permanecia no escuro. A bruxa do mato tinha razão, minha vida não valeria nada para Vânia. Meus olhos se fecharam. – Maia... Acorde – era apenas uma voz distante que falava comigo. Tentei abrir os olhos, mas ainda me sentia fraca e com febre, minha boca estava seca, e o local dos ferimentos, dormente. Senti uma nova dor, nas pernas, em cada Dias de Chuva |

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pedaço de osso e músculo a sensação era a mesma da cabeça: compressão. – Eu vou soltar você. E os cipós de minhas pernas eram afrouxados. – Fique firme, eu não posso desamarrar os cipós e amparar maia ao mesmo tempo. Meu braço que não havia sido ferido foi solto. Eu tentava prestar atenção na voz e despertar mais era quase impossível. Percebi que alguém me amparava, mas sem forças nas pernas, eu não conseguia ajudar. Meu outro braço foi solto, e com certo cuidado fui colocada no chão. – Acorde, moça branca. Mãos macias e úmidas tocaram meu rosto. Quando enfim consegui abrir os olhos, reconheci Guayaka. Mas não pude me sentir aliviada. A dor e a febre não me permitiam nenhuma boa sensação. O céu já se vestira da noite, deixando a mata cheia de sombras dançantes vindas da iluminação da fogueira que tremulava. – Ypuré foi até a beira do rio e disse que eu podia vir te soltar. Ela disse que não importava o que eu fizesse, moça branca não vai me ouvir... pelo visto ela tá certa. Ninguém imaginou que ela faria isso, pensamos mil coisas, mas nunca isso. – O quê... o que ela fez comigo? – falei tão baixo que não acreditei que ele poderia me ouvir. – Isso é doença de branco. Muitos do nosso povo morreram quando os karaywa chegaram. E mais uma vez a dor no ventre. Senti um líquido quente escorrer pelas minhas pernas. Levei a mão entre as coxas: estava encharcada. – É sangue? – perguntei ao meu amigo – É sim. Essa doença de branco deixa índios e karaywa cheio de bolhas fedidas na pele. Eu lembro quando surgiu. Precisa levantar e ir embora. Eu não posso levar moça branca assim, não conseguirá nem ir até os portais de Anhangá. Suas águas mudam de lugar. Ou levanta agora, ou não teremos mais chances. – Guayaka, vá em... embora... eu não confio nada em Vânia... se elas permitiram que você viesse, de... deve ser algum truque dele. – Não posso, moça branca – ele falava aflito. – Minha senhora... – Sua senhora não quer que você morra – falei, ríspida. – Eu agradeço sua ajuda, mas eu não sou ninguém, nem no meu mundo, nem aqui. – Comecei a chorar. – Minha família se foi... Grande parte é culpa minha e eu ainda estou...

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– Shiiiii. Fique quieta. Escutei um barulho. Escuta? – Eu não ouvia nada. – Vou ver o que é. Desisti. Não havia mais vontade de nada. Vânia estava certo quando disse que eu não sabia o que era dor. Dor física! E parecia que só pioraria. O sangue entre minhas pernas não parava de escorrer. Deveria ser alguma hemorragia séria e além da fraqueza e sensação de ter toneladas sobre mim, esmagando cada osso, a dor de cabeça, a dormência nas pernas e o ardor dos ferimentos só pioravam. Eu me perguntava como ainda mantinha a razão sem desmaiar. Foi então que me dei conta de que a mata estava silenciosa demais. O que antes deveria ser provavelmente pela presença de Ypuré, agora não fazia mais sentido. Fechei os olhos com força algumas vezes, pela dor, e quando os abri, vi a alguns metros de distância, altiva e séria, o espírito de Amanara. Mas ela não olhava mais para frente, como antes, ela parecia olhar diretamente para mim. Eu não entendia, como poderia se ela era só a lembrança de uma vida, se ela não existia mais, por que me olhava? Eu estaria louca? Mas por qualquer motivo que fosse, ela me encarava, me desconcentrando, causando-me um incomodo tão grande quanto as dores. Eu buscava entender seu olhar e ela não mexia nem mesmo um músculo. Forcei a razão. Ela não olhava em meus olhos. Olhava para algo na altura do meu peito, e com a cabeça e a nuca quase explodindo de dor, tornei o queixo na direção do peito para ver o que era. O Ovo do Dragão. Era para ele que Amanara olhava? Ela deu alguns passos rápidos, agachou-se e levou a mão até ele. No instante, assustei-me, e mesmo que quisesse não teria forças de impedi-la. Mas o que ela fez foi tirar do chão uma pedra azul que se fez tal qual névoa transparente, pendurada em um cordão de luz. Ela enrolou o cordão em volta da mão, e tão rápido ao ponto de eu não poder ver, só sentir, ela levantou-se e correu para longe. Sumiu. E então eu entendi de algum modo que não sabia explicar, eu precisava me erguer. O Angaretama era um lugar fascinante, e mesmo com o sofrimento da chegada e o medo, cada detalhe, planta, animal ou estrela havia contribuído para algo que dormira muito tempo dentro de mim. Eu havia ficado tempo demais concentrando minha energia, minhas vontades, no caminho errado. Eu amei demais, e esqueci-me de cultivar quem eu era e meus reais desejos. Sabia que era mais forte que aquilo, e havia algo realmente válido na minha estadia lá, em Angaretama. Fechei os olhos, buscando forças, e num instante ouvi o ribombar no céu e um clarão tão imenso que mesmo de olhos fechados, o percebi. Senti os primeiros pingos de água sobre o rosto, refrescando-me a febre. Abri os olhos, e o céu Dias de Chuva |

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mais mágico estava presente, mais lindo do que eu poderia imaginar. As nuvens dançavam como no quadro mais famoso de Van Gogh, e entre suas curvas, ainda era possível ver as estrelas e a lua, num equilíbrio cuidadoso entre as nuvens e o negro da noite. Levei a mão até o Ovo do Dragão. Usei como adorno muito mais do que como o forte amuleto que ele era. Meu amuleto. Segurei-o. Eu precisava acreditar, precisava querer. A dor só seria impossível de suportar até o momento em que eu conseguisse vencê-la. Cerrei os dentes para não desperdiçar minha força em um grito e devagar consegui sentar. Vi o quanto eu sangrava, e meus braços tremiam. Como seguir? Minhas pernas mal se mexiam, e só então gritei, porém de raiva. Eu não seria derrotada. Lutaria. – Maia! – Era Guayaka que voltava correndo. – Eu ouvi teu grito... tá sentada? – disse ele surpreso com a minha reação. – Isso. Não pode desistir, moça branca. – Ele ajoelhou-se na minha frente, e com as mãos macias colocou para trás meu cabelo que caia e grudava no rosto pelo suor. – Teus olhos... teus olhos... mudaram. Desejei questionar o que ele dizia, mas não tinha forças, e só um suspiro saiu de minha boca. – Eles estão escuros, quase pretos. Não estão mais marrons como as folhas secas – ele fez uma expressão de dúvida –, mas precisa ir. O chamado que eu ouvi era de um dos Zorak de Anhangá. Deve ser o mesmo que te guiou até mim. Ele tá lá – e apontou em uma direção –, no começo de uma trilha que vai te levar direto para o Waruã. Lá vai encontrar Wasiry, o velho de cabelos brancos, ele vai ajudar a mergulhar nas águas de Waruã e voltar para tua terra. Agora eu entendo. – Ele era gentil enquanto falava. – Ka’aporárãga é que pediu para que um dos servos de Anhangá ajudasse a ir embora. Ela não te quer aqui. Zorak me disse. Maia é problema aqui. Mas ela não pode e não quer que morra. Por isso ele te guiará por uma trilha, não precisará fazer o caminho ao lado do rio. Tudo bem, maia? Tudo bem? Consegue? Precisa conseguir. – Guayaka estava muito nervoso, e não parava de falar. – Bikoróti atravessou Waruã. Precisa impedir que ele fique em tua terra. – Guayaka – eu tentava falar –, eu... eu não entendo o que você diz... – murmurei. – Bikoróti fez um pacto com o mati que te mandou para cá. Eles querem trazer outras visagens de sua terra para cá e mandar criaturas daqui para lá. Isso acabaria com Angaretama, e só quando você chegar lá poderá fazer alguma coisa. Olhei nos olhos daquele ser mágico e um calor encheu meu peito. Guayaka precisava de mim, eu não conseguia assimilar, naquele momento, tudo o que ele

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dizia, mas precisava seguir. Audrick me esperava e até a vida de meu único amigo, Dimitri estava em risco. – Me ajude a... levantar, Guayaka – pedi com a voz fraca, quase não podendo ser ouvida. Ele tentou, mas foi inútil. Minhas pernas não respondiam. Foi aí que eu entendi, mais uma vez, o quanto eu me abandonara. Mas onde estou com a cabeça? Sou uma feiticeira!, pensei. – Eu preciso... – minha voz mal saía – preciso pensar, Guayaka. Você disse que isso que estou sentindo é doença de branco? Que doença? – Não sei como a chamam... – O que acontecia aos índios, quando pegavam essa doença? – Eles ficavam mais quentes que fogo em brasa. A cabeça doía, e o corpo era só calafrios. Tinham dores no corpo e sagravam, não só pelas partes, mas na boca e no nariz – Guayaka falava confuso, puxando na memória as informações. – E eu não quero que fique assim, maia. É muito feio de se ver. – Tudo bem Guayaka, e depois? O que acontecia depois? – Com o tempo a pele começava a coçar, e nela explodiam bolhas, tantas bolhas, que cheiravam pior que a morte. – Bolhas? – Segurei o Ovo do Dragão e fechei os olhos buscando uma resposta. Se eu soubesse o que era, poderia conjurar um feitiço para me curar. – Vamos, maia. Tem que ir. Precisava me concentrar. Pensei, busquei na memória aprendizados que eu julgava ter esquecido. Quando me veio a resposta: Era varíola. Só poderia ser. Então Ypuré estava com problemas. Eu não era de Angaretama, e na minha terra, eu havia sido vacinada. Antes ela tivesse usado comigo só magia, pois a doença não podia me vencer. Com a mão direita eu segurei o Ovo do Dragão e o indicador da mão esquerda coloquei sobre os lábios de Guayaka para impedir que ele falasse e interrompesse minha reza. Fechei os olhos e entoei. “Deusa, rainha, mãe. Condessa, guerreira, sábia. Tira de mim está maldição Pois daqui não sou e donde venho, não me mata Deusa, rainha, mãe. Condessa, guerreira, sábia. Dias de Chuva |

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Permita reaver minha força Pois aqui estou, mas donde venho, tu me consagras Deusa, rainha, mãe. Condessa, guerreira, sábia. Permita-me superar esta dor Pois donde venho me protege, feitiço doutra alçada Deusa, rainha, mãe. Condessa, guerreira, sábia. Agradeço tuas crias que me protegem Aqui teu paraíso, mas longe é minha morada” Quando abri os olhos, deparei-me com o rosto de Guayaka espantado olhando para meu colar que brilhava como fogo. Uma luz sutil e tênue nasceu em meus pés, e subiu aos poucos pelas minhas pernas. Soltei o colar, levei as mãos às minhas coxas que estavam cobertas pelos farrapos da calça de algodão e sangue. Então pude sentir meu toque, o que até pouco era impossível. – Maia é feiticeira? – perguntou Guayaka, num misto de medo, dúvida e deslumbre. – Eu sou. Quando disse isso meu coração acelerou. Meu corpo se ergueu no ar como se fosse puxado para cima. Não fui além da copa das árvores, mas estava muito distante do chão. A luz que subia por minhas pernas ganhou todo meu corpo. Meus músculos se esticaram em um único espasmo. Um redemoinho surgiu do chão onde eu estivera, e subiu com tanta força que meus ferimentos arderam ainda mais. O vento finalmente cessou e eu cai, provocando outra dor, porém, mesmo ainda com os ferimentos poderia seguir. A febre e a náusea tinham sumido, e a fraqueza nas pernas diminuía. Guayaka, que ficara o tempo todo tentando proteger o rosto da ventania, veio até mim. – Tá bem, moça branca? – Estou... acho que sim. Ele me ajudava a levantar. – Maia, não é uma simples moça branca – ele dizia mais para si. – Mas eu não vou pensar sobre isso. Vamos. Agora precisa ir. Zoraks não são pacientes.

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Apesar de ter me livrado dos males da doença que Ypuré tentara me contaminar, os ferimentos ainda estavam lá. Minhas pernas, meio bambas, eram difíceis de manter, e tive que ir apoiada por Guayaka, cruzando caminhos difíceis entre as árvores até chegar ao começo da trilha. Durante o percurso que fizemos juntos, Guayaka não dizia uma única palavra, mas reparei que seu olhar deixará de ser de cuidado, afeto e curiosidade, para um semblante assustado, meio desconfiado e ainda surpreso. – Chegamos. Era uma trilha estreita, onde a mata parecia ter sido aberta à força, provavelmente por mãos humanas. E lá estava ele. Um dos Zoraks, a criatura que eu imaginei ser um gigante pássaro negro. Ele tinha asas muito grandes, que repousavam ao lado do corpo, feitas de pele cinza, quase preta, sem penas. As pernas dobravam-se como as patas traseiras de um lobo, mas os dedos eram mais como garras de um morcego. Seu corpo era todo coberto por um pelo preto tão escuro que se avermelhava no reflexo da lua. Seu tórax tinha o dobro da largura das pernas, e seu rosto era nada mais do que uma carranca. Os dentes de baixo sobressaiam-se aos lábios de cima, o nariz era apenas duas cavidades na cara. Os olhos puxados e grandes eram duas bolas de fogo vermelhas, e as orelhas pontudas, moviam-se mais rápido do que se podia notar. Os pelos da lateral do rosto, por trás das orelhas e acima da cabeça, eram tão grandes que se assemelhavam a uma cabeleira farta, como a juba de um leão. Em altura, deveria ter quase três metros. – Há um problema – me disse Guayaka –, eu não posso continuar ao teu lado. Estou muito tempo longe do rio, logo não terei mais forças. A trilha é certeira. Zorak vai olhar por ti enquanto voa, mas terá que seguir sozinha. – Fiz que sim com a cabeça. – Qual teu nome, moça branca? – Estranhei, porque agora ele queria aquela informação. – É Júlia. – Então, Júlia. – Ele tirou meu braço de cima de seu ombro, deixando-me de pé só por minha conta. – Que tenha mais sorte dessa vez, do que dá última. Foi um prazer te ver outra vez. Antes que eu pudesse argumentar, Guayaka seguiu seu caminho, sumindo através das árvores na direção de onde viemos. Engoli em seco. “Mais sorte dessa vez?”, mas não deu tempo de pensar. Zorak bateu as asas uma única vez para baixo, levantando folhas e terra, e com um impulso das pernas já estava no céu, voando tão rápido que logo eu o perderia de vista, entre a chuva fraca que ainda caia. Murmurei um “merda” e comecei a correr. Dias de Chuva |

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Doía. Os ferimentos pareciam agulhas, e algumas vezes eu caí de joelhos no chão. Não havia tempo para me curar, para descansar. Não havia tempo para nada além de correr. Quando a dor falava mais alto, sugando minha força, eu parava para tomar ar, e Zorak parecia bravo comigo. Voava em círculos acima de mim, batendo as asas tão forte que o vento vindo de seus movimentos, tornava o incômodo ainda maior. Eu precisava vencer a dor, nem que fosse fazendo dela parte de mim. Era só um sinal de estar viva, de precisar de mudança. Deveria me acostumar a ela, como os olhos se acostumam com a luz forte ou com a escuridão. Eu me curaria em casa. Recuperaria as forças depois. Ouvi o piar do pássaro negro que deveria estar levando meu sofrimento direto para Vânia, Audrick e Dimitri. Olhei confiante para ele e enviei uma mensagem “Estou indo para casa.” Voltei a correr contra o vento. Seguindo a trilha guiada pelo voo de Zorak. E naquela corrida, ligando mente e corpo, respirando a umidade, entendi o que era aquela dor por todo o corpo. Havia um motivo para ela. Era minha melhor amiga ali. Cada espasmo, cada ferimento, dava-me a certeza de que onde estava e o que eu vivia era real. Estava viva, pulsando e podia ir além. Ela era a ponte que me guiava para o melhor. A trilha na floresta iluminada só pela lua rebentou num emaranhado de árvores tão grandes, que eu mal podia enxergar suas copas. Zorak perdeu-se no céu em frente e a chuva cessava. Ouvi o som de água correndo além daqueles troncos, e sabia que deveria continuar. Esgueirei-me entre os troncos, seguindo o som e depois de perpassar por talvez, dez quilômetros cansativos, fui acometida por raios de luz azulados. Quando finalmente cheguei, não acreditei no que vi. Era uma clareira, muito maior do que a clareira em que Ypuré e Anamane me prenderam. Era tão grande que mal enxergava as árvores do outro lado. Mas não era em tamanho que seu deslumbre se esgotava. Era um lago de águas flutuantes, talvez a dois metros de distância do chão. Sua superfície era turbulenta, cheia de ondas nervosas, altas, e que iam a todas as direções. De suas margens, a água escorria feito uma fonte, e quando estavam prestes a encostar-se ao chão, erguiam-se no ar em gotas contra a gravidade, algumas se perdiam muito alto, outras, voltavam para o lago, e mais ondas eram formadas. A turbulência refletia a luz da lua tremulando nos troncos das árvores e nas folhas. E havia música. Vinda de dentro do lago como uma canção triste, de uma língua impossível de se ouvir. – Júlia. A voz que chamou meu nome acordou-me do transe. De onde vinha?

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– Eu me apresento, pois não temos tempo para demora. Sou Wasiry, mas muitos me conhecem como primeiro pajé. Este é o lago que procura: Waruã. Debaixo das águas uma parte da terra abriu-se e criava uma rampa nas suas entranhas, de onde saia aquele homem. Ele era um índio, e como tal estava nu, cobrindo suas partes íntimas apenas com um pedaço de pele. Seu corpo estava pintado com uma série de desenhos geométricos, mas por uma tinta que no mesmo instante percebi ser tão mágica, como tudo ao redor. Ela era prateada, mais brilhante que a lua, mais brilhante que o reflexo das águas de Waruã, o lago encantado, portal da terra dos mortos de Anhangá. Minha única forma de ir para casa. Quando Wasiry finalmente terminou de subir, deslumbrei-me com sua altura e força. Seu corpo era forte como o de um guerreiro. Seu sorriso era sereno. Seus longos cabelos caiam além dos joelhos e eram brancos como algodão, porém lisos como uma seda. Seu rosto exibia rugas de homem que deixou de ser jovem, mas sem encontrar na velhice a fragilidade. Na mão direita ele segurava um cajado, cuja ponta superior ostentava um enfeite de penas também brancas e prateadas, que contrastavam com várias folhas e galhos retorcidos em sua volta, secos de cores que iam do marrom ao amarelo velho e vermelho. – Júlia – falou meu nome como se quisesse entendê-lo –, este é seu nome agora... – ele disse como se fosse algo fora do comum... – Preste atenção, criança. – Ele colocou a mão em meu ombro esquerdo. – Há sangue de índio correndo na sua veia. Eu não posso dizer muito mais sobre isso. Mas seu destino a trouxe aqui, ao Angaretama. – Wasiry ergueu as mãos e o cajado aos céus ao dizer o nome do lugar, e inúmeros pássaros saíram de entre as árvores, voando ao céu. Houve movimento por todo lado. Pequenos sons de animais, como se tivessem acordado em susto, balançando galhos e folhas, e tudo se silenciou outra vez. Ele abaixou os braços, e voltou a repousar sua forte mão em meu ombro, me olhando com doçura. – Mas você não foi trazida aqui apenas para sofrer como aqueles do seu mundo imaginam. Por isso você foi ajudada. Mas não pode mais depender da razão e do coração dos outros para vencer suas batalhas. Talvez isto ainda não faça sentido, menina, mas terá de fazer, se você se permitir entender. O pajé olhava para mim como um verdadeiro mestre, e eu me sentia encorajada por sua fala. – Nós a ajudamos a superar o mal, que em verdade não queria apenas fazê-la passar por tanto sofrimento. Não se iluda, menina branca, com sangue de índio. Aquele mati queria sua morte. Fizemos tudo que pudemos, mais ainda terá Dias de Chuva |

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que enfrentar essas águas turbulentas – ele apontava para Waruã –, e sobreviver. Então terá um débito conosco. – Ele cerrou a expressão. – Bikoróti está no seu mundo, e do mesmo modo que abriu o portal para trazê-la, pode mandar outros. Faça algo por nós. Vai saber quando for a hora. Fiz que sim com a cabeça. O índio me inspirava fascínio e devoção. Não sentia necessidade de argumentar. – Tenho um presente para você. – Ele afastou-se e esticou seu cajado para o meu peito, onde repousava o Ovo do Dragão. Uma luz brilhou forte, mas muito rápido, e meu coração ficou mais leve. – Agora, tem como voltar ao Angaretama. – Muito obrigada – falei sincera, cheia de força e nova esperança inspirada magicamente por sua presença. – Use com sabedoria. Agora você precisa ir. Antes que o lago se vá. Veja. – Ele apontou para as gotas que subiam aos céus. – Desde os instantes de sua chegada, as gotas cada vez mais estão subindo, sem voltar ao seu cerne. É tempo de mudar de lugar. – Mas e sobre esse meu passado? Por que Guayaka disse... – Guayaka disse além do que devia, porém não teve culpa... Tudo ao seu tempo, Júlia. E quem sabe, um dia, nos reencontramos. – Mas, por favor, apenas me diga por que eu me sinto tão mais forte agora do que eu já fui um dia. Meu coração parou todas as vezes em que vi o espírito da guerreira Icamiaba. É como se... se... – Se ela fosse você? – Seus olhos pareceram brilhar ainda mais. Tentei perguntar... pedir que ele continuasse, que confirmasse... ou não. Mas minha voz não saia. Será?, pensei. Senti a respiração falhar. Ele esticou o cajado até a margem alta do lago e uma corrente maior de águas desceu, não mais direto para o chão, e sim como uma pequena trilha íngreme, só de água corrente. Eu olhava para ele ainda atônita. Seria possível? O Ovo do Dragão brilhou sua luz mais intensa e ergueu-se vencendo a gravidade na direção que eu deveria seguir. Subi pela água, não muito confiante, tendo o pensamento naquela quase revelação. – Vá para casa, Júlia. – A voz de Wasiry soava forte. – Faça o que você precisa fazer primeiro. Seu passado não deve atrapalhá-la. Sua missão é no agora. Eu assenti e voltei a olhar para o lago. Fui tomada pelo deslumbre, medo e incerteza diante das águas de ondas tão altas e selvagens, quando uma delas me engoliu.

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Fique sem ar, não havia caminho, só uma água escura, soturna, de pequenas luzes que não identifiquei se eram peixes ou qualquer outra coisa. O lago não tinha fundo, nem mesmo beiradas, nem margens. Seria meu fim? Eu tentava nadar, mas não sabia para onde, ainda estava sem forças, cansada, e o lago parecia muito mais um mar revolto. Senti meus pés sendo agarrados, e de súbito era arrastada para baixo. O pouco ar que tinha saiu de pelos meus lábios. Gritei, mas não houve som algum. Eu me debati com força, mas o que me prendia era escorregadio e voltava a me agarrar. Vieram mais luzes. Forcei a visão e a vi. Era linda. Uma mulher cintilante, de cabelos e olhos azulados surgiu nadando em minha direção. Logo atrás dela, mais uma. Nem pude acreditar. A segunda, de cabelos negros, nadava ainda mais rápido, e tinha no lugar das pernas uma grande cauda. Ela soltou os tentáculos que prendiam meus pés e me puxaram, e ambas nadaram comigo tão rápido, que a correnteza era cortante. Achei que desmaiaria, mas a beleza cintilante de uma e a magia da outra me mantinham desperta. A luz começou a vencer a barreira translúcida das águas. Me senti mais leve. O sol despontava alaranjado sobre nossa cabeça. Enfim ar. Elas me ergueram para fora da água e percebi estar perto de casa. Estava no mar que banhava os pés da colina. O sol nascia. Eu pude vê-las e simplesmente soube. A dama cintilante, de olhos tão azuis quanto o céu, era Arunguayara. Tão forte e bela que acreditei que, caso não fosse o momento, eu ficaria dias a admirá-la, em pleno êxtase. A outra, de traços indígenas, lábios grossos e cabelos negros deveria ser Açaí. Por um instante, achei que elas choravam. Mas não havia palavras para esclarecer. Açaí me levou até a praia, enquanto Arunguayara acenava com a mão, despedindo-se. Já na praia, só pensava em descansar. Havia terminado. Açaí nadou de volta e ambas se foram com um sorriso triste. Eu joguei-me na areia. Parecia acordar de um pesadelo. Mas a dor e os ferimentos estavam ali para saber que fora tudo real, incluindo os seres que conheci. Agora, eu tinha uma chance. Precisava ir para o casarão, e libertar Audrick e Dimitri de alguma forma, mas me sentia tão fraca que meus olhos se fecharam. O sol ardia sob minhas pálpebras. Mãos seguravam meus pulsos. Acordei gritando. Encontrei os olhos de Bikoróti enfrentando-me. Ele estava sobre mim. – Eu ainda tenho sua sombra, maia – disse ele. – E só há um modo de tê-la de volta. – Saía daqui, seu porco imundo! Maldito! – disse tentando tirá-lo de cima de mim. Dias de Chuva |

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– Vou conseguir o que eu quiser de você. Achou mesmo que eu deixaria uma moça bonita como você ir embora fácil assim? – Saia daqui! – gritei. Eu me debatia, mas ele era muito mais forte. Na areia vários tentáculos de sombra me seguravam. Eu gritava, desesperada. Aquilo não era possível. Bikoróti deixou que apenas seus tentáculos me segurassem, e rasgou o resto de minha roupa. Eu precisava me desvencilhar, mas nada eu conseguia fazer. Faltavam-me forças para tirá-lo dali. Ele tirou suas vestes e deitou sobre meu quadril. Com as mãos, afastou minhas coxas. Eu me debati ainda mais. Não deixaria que aquilo acontecesse. Ele, enraivecido, puxou meu cabelo e aproximou seu rosto do meu. – É melhor para a moça se cooperar. – Sua fala era sussurrada e arrastada. – Nunca! – Eu cuspi em sua face. – Ora, ora, ora – ele disse, passando a língua entre os dentes afiados. – Então, um desafio... Ele me jogou para o lado, me deslocando alguns metros. Virou-me de costas. Eu me mantive imóvel, numa única tentativa. Assim que ele voltou sobre mim, movi rápido meu braço, sem que ele pudesse imaginar meu movimento, e acotovelei suas costelas. Ele gritou de dor e seus tentáculos me largaram. Levantei de imediato. Corri em sua direção, mas Bikoróti agarrou minha garganta. Não pensei duas vezes e enfiei meus dedos dentro de seus olhos. Ele caiu de joelhos. Fui em sua direção. Agarrei sua cabeça e bati contra meu joelho. Bikoróti não esperava a fúria que me tomou. A praia era rochosa e não tive dúvidas ao arrastá-lo pelas pernas, correndo até as rochas. Voltei a agarrar sua cabeça e a bati várias vezes contra uma pedra, fazendo sangrar um líquido viscoso e negro. Eu me enchi com o sangue. Como ele ousava, depois de tudo que eu passei, ainda querer me violentar? Eu não me importava com nada mais. Sentia-me mais forte, mais firme, apenas fúria e energia destrutiva. Ele murmurava algo impossível de entender. Sabia que era outro feitiço. Mas não daria tempo para que o realizasse. – Sem mais feitiços para você, Bikoróti! Eu o virei para cima, sentei com força sobre suas costelas e desferi tantos socos na sua boca que sua face afundou. Mas eu não percebia que tinha vencido. E continuava a socá-lo cada vez mais. – Júlia! Júlia! – Olhei na direção do chamado. Era Audrick com suas asas de demônios voando em minha direção.

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Ignorei-o. Levantei-me e ergui uma pedra com as duas mãos, descendo, com toda a força que nem sabia que possuía, sobre a cabeça de Bikoróti. Uma explosão de trevas me jogou para trás. Uma névoa espessa como petróleo envolveu metros e metros de onde eu o matei. Era o fim. Aos poucos a treva caiu na areia e foi levada pelas ondas, feito lama. Eu me ergui. E depois de escorrer a escuridão sob meus pés, minha sombra revelou-se. Estava acabado. Ergui a cabeça e olhei para Audrick. O que ele fazia ali? Era um alívio vê-lo, mas tinha algo errado. Ele chegou rápido e me abraçou. – Você está bem, meu amor? Está bem? – Ele tinha urgência na voz, e também alívio. Mas ele não podia estar solto. Não poderia estar ali sem que algo muito ruim tivesse acontecido. Desesperei-me com a possibilidade que ali surgia. Soltei-me do abraço. – Como… como você se soltou sem... – não consegui terminar a frase. – Onde está Dimitri? Onde está?

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Capít ulo 25

Para as cinzas

No final daquele dia, quando o sol se punha alaranjando o céu com as pinceladas de um exímio artista, as nuvens eram mescladas de violeta e um suave magenta para homenagear o descanso daquele que chegava ao fim. Sobre a areia as toras de madeira empilhadas como uma grande cama ardiam em chamas amarelas e vermelhas, crepitando para os céus suas pequenas estrelas de fogo. Almas dançantes num choro baixo, cheio de angústia e insatisfação. O cheiro de queimado se confundia com o de flores no único tipo de enterro que eu imaginava ser digno dele. Que as chamas libertassem aquele espírito tão maior que eu jamais seria, para uma vida nova, num lugar mais pleno para a morada de alguém tão belo e puro. Sensível e doce. Que teve como sina ser filho de um demônio, e entrar no coração e no caminho de alguém cujo destino traçado, tanto quanto o escolhido, só trazia dor para si e os seus. Eu não havia visto seu último suspiro, mas estaria ali, até que toda sua alma fosse liberta da dor e daquele corpo que já não teria mais utilidade. Eu sentiria falta de Dimitri, para sempre. Audrick sentou-se ao meu lado enquanto eu acompanhava a cremação. Na dor eu só podia me lembrar de como ele morreu. ///

Quando eu gritei na praia, perguntando por Dimitri, Audrick não me respondeu. Eu dei as costas e corri na direção do casarão. Precisava ver o que havia acontecido. Audrick, que ainda conservava as asas de demônio, correu na minha direção, me agarrou e levantou voo comigo, direto para a torre. Entramos por uma

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janela aberta e descemos correndo as escadas que me levariam até onde eles estiveram presos. Dimitri estava no chão... Não. Dimitri não, apenas a sua carcaça. Suas costas tinham tido a pele arrancada e estava caída ao chão como um tecido. Dava para ver suas costelas e suas vértebras expostas. Seus olhos sofreram hemorragias e já estavam vítreos provavelmente pela dor. Em sua garganta também faltava pele, e um lençol de sangue era seu leito. Eu corri àquele corpo, mesmo sabendo não haver mais vida ali. Ajoelhei-me ao seu lado, e no desespero tentei abraçá-lo, sujando-me em seu sangue. – O que aconteceu? O que aconteceu? Onde está aquele filho da puta do seu tio? Onde ele está? – gritava. – Eu disse que eu voltaria, porque você forçou a sua fuga? Você sabia que ele morreria se tentasse escapar. VOCÊ SABIA! – Não, Júlia. – Audrick ajoelhou-se ao meu lado e ergueu meu tronco que estava sobre Dimitri. – Eu confiei em você. Eu sabia que você conseguiria. Nunca faria nada para matar seu amigo. – Então o que aconteceu? – Eu estava brava e soluçava tamanho era o choro. – Ele se soltou – Audrick dizia tentando me acalmar. – Eu disse para ele esperar, pois você era mais forte do que poderíamos imaginar. Mas ele não me ouviu. O Tempo todo ele discutia com Vânia que o ignorava, nem pareciam pai e filho. Dimitri gritava, dizia que eu deveria me soltar e ir a sua ajuda, pois você não aguentaria. – Eu quero ver, Audrick! Preciso ver. Ele consentiu. Pegou minhas mãos, e colocou meus dedos em suas têmporas. Primeiro, ele fechou os olhos. Eu fechei os meus em seguida. ///

No grande espelho, eu aparecia, da visão do pássaro, sendo tragada pelas águas de Waruã, mas algo aconteceu também ao pássaro, que mergulhou comigo junto ao lago. E mesmo com a imagem turvada pelas águas, era possível ver que eu me afogava. Dimitri falava desesperado, de costas para Audrick. “Você precisa ir salvá-la. Precisa ir. Eu não posso ver a Júlia morrer.” E Audrick respondia: “A Júlia vai sobreviver. Eu sei que ela vai. E precisamos estar aqui quando ela chegar.” No espelho era possível ver-me sendo socorrida por Arunguayara e Açaí. Dimitri pareceu respirar aliviado. “Você tem sorte”, Dimitri falava cabisbaixo e um pouco satírico: “Meu pai te considera mais do que eu, que sou filho dele. E ainda por cima, você fica com a garota.” Audrick não respondeu, parecia enfeitiçado pelo salvamento que no espelho lhe era revelado. Dias de Chuva |

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Quando elas colocaram minha cabeça para fora, Vânia enfim se pronunciou. “Ela conseguiu”, disse ele sem nenhum empenho ou vontade, parecendo decepcionado. “Termine o ritual, Audrick. A vadiazinha está pronta.” Audrick, cuja raiva o ganhou por um instante, fez menção de se soltar e ir de encontro à Vânia, mas um mínimo puxão, e a dor os acometia. Principalmente em Dimitri, que chegou mesmo a gritar. Vânia fingiu que nada acontecia, e deixou o aposento. “Assim que ela chegar um feitiço os libertará.” Dimitri e Audrick, ambos agarrados um às costas do outro pelos filetes de suas próprias peles, relaxaram. Não eram meras correntes que os seguravam. – Eu disse que ela conseguiria – falou Audrick. Mas Dimitri, que ainda olhava no espelho, não comemorou. – Quem é aquele? – Dimitri falou inquieto. – Que está na praia com ela? É o mesmo que a mandou para aquele mundo, não é? – Dimitri começava a se desesperar. Audrick virou o rosto outra vez para o espelho. Bikoróti tentava abusar de mim. – Você precisa salvá-la! – Dimitri gritava. – Ela está fraca, machucada. Eu não conseguirei ir até lá. Tem que ser você! – Não faça isso, Dimitri – falava Audrick tenso, imaginando o pior. – Ela vai conseguir! – Como você tem tanta certeza? Eu não aguento mais vê-la sofrendo. – Dimitri estava enlouquecendo. – Você precisa ir. Precisa sair agora. – DIMITRI, NÃO! – Audrick gritou, ecoando sua voz por todo o aposento. Mas já era tarde. Dimitri era mais fraco, ambos sabiam daquilo, não importando o que Vânia dissera. Ele morreria, independente de quem tentasse escapar. Ambos sabiam disso também, pois Rachmanninoff nunca faria uma armadilha capaz de matar seu pupilo, já seu filho, não tinha a menor importância. Dimitri forçou-se além das correntes e agora era apenas uma carcaça. A pele que o prendia ao ser rasgada liberou não só tamanha dor que seria impossível para a maioria dos seres humanos suportar, como revelou que pequenos fios prendiam a coluna espinhal de um à coluna do outro, tão firmes que quando foram esticados ao máximo, na separação forçada por Dimitri, arrebentaram seus nervos. Audrick, que tinha em si muita força e poder, manteve-se vivo. Audrick ficou conturbado com o que apareceu. Olhou de volta no espelho e sua fúria foi ainda maior. Enquanto eu tentava defender-me de Bikoróti, Vânia do lado de fora do casarão observava a cena, o que fez Audrick perder a razão e deixar o aposento.

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Eu tirei minhas mãos da têmpora de Audrick. Já sabia demais. – Desculpe-me, Júlia – Audrick falava de cabeça baixa. – Eu não tive como... – Tudo bem, Audrick. – Eu apoiei a cabeça de Dimitri sobre meu colo e a acariciei. – Nós vamos fazer um funeral para ele. Tudo bem para você? – falei olhando aquela face transfigurada em uma carranca, tamanha dor deveria ter sentido. – Tudo bem, Júlia – ele falava, passando as mãos no meu cabelo molhado e sujo. – Mas você precisa cuidar desses ferimentos também. Deve estar doendo... – Eu acho que nunca senti tanta dor. Mas agora não, Audrick. Agora não... Meu marido fez que sim com a cabeça e saiu da masmorra. Depois de muito chorar, de muito sofrer, eu também deixei aquele corpo. Ouvi barulhos do lado de fora e fui olhar através de uma janela. Audrick cortava toras de madeira para a cremação. Eu enrolei algumas faixas nos meus ferimentos, e desci para colher as folhas e flores que serviriam para guiar o caminho de Dimitri para sua nova morada. E então permaneci ali, sentada durante toda tarde e noite, até queimar a dor para então jogar suas cinzas ao mar.

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Parte 6

DE VOLTA PARA CASA


Capít ulo 26

A procura

– O que está fazendo? – Audrick abriu a porta da grande biblioteca e me procurava, com razão. Fazia horas que eu estava ali. – Procurando um livro – respondi de forma seca de cima da escada usada para alcançar os livros mais altos. Eu folheava um exemplar ou outro e não queria ser interrompida. – Isto eu já sei, Ju. Mas será que não podemos ir embora? Você já vasculhou grande parte da biblioteca e eu nem sei o que está procurando. – Vocês trouxeram versões de todos os livros escritos por demônios para cá, assim como do primeiro alquimista, não foi? – Já disse que sim. – Audrick respirou fundo. – Júlia, precisamos conversar. Você nem me deixou curar seus ferimentos. – Ele estava impaciente e um pouco chateado. – Se não fizermos nada, essas marcas não voltarão ao normal nunca. – Esse é meu normal agora – falei ainda sem olhá-lo. – Você não gosta? – Tem razão – ele fazia de tudo para se manter calmo, reconhecia isso em sua voz trêmula –, as minhas cicatrizes também são partes de mim. – Resolvido – falei sem me dar conta do quanto era grossa. – Agora pode me falar dos livros? – Júlia, você acha mais importante ir atrás de algum livro ditado por demônios do que descobrir sobre tudo que disseram em Angaretama? – ele tentava me convencer a dar atenção. – Não quer saber o motivo de seus olhos mudarem do castanho claro para o preto? E por que os que a ajudaram, disseram já conhecer você? – Eu não sei se eles já me conheciam. – Parei por uns instantes relembrando a fala de Guayaka e de Wasiry. – Pelo que entendi, eu fui essa tal guerreira, acho que... – pensei um pouco sobre o que eu diria e se realmente acreditava naquilo

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– em outra vida. – Respirei fundo, já sem paciência com Audrick. – Mas você precisa entender que o que eu preciso fazer agora é muito mais urgente. – Parei um instante de mexer nas folhas empoeiradas. – Eu sempre fico confusa quando me lembro do espírito de Amanara, e a sensação de liberdade que senti quando corria entre as árvores. – Virei-me para Audrick, estava angustiada e queria que ele me entendesse. – Eu sei que tenho uma missão maior nesse momento, e sinto que a ajuda deve estar em algum livro... – Você poderia, ao menos, me dizer o que procura. – Ele passou as mãos pelo cabelo e sentou-se em um dos sofás do centro. – Se eu soubesse já teria dito – falei ríspida. Audrick me irritava com suas perguntas. Respirei fundo e olhei em volta. Eram tantas obras, e se eu soubesse exatamente que tipo de ensinamento precisaria, diria no mesmo instante para ele e obteria ajuda. Mas eu não sabia ainda. Procurava às cegas, guiada apenas pela intuição. – Eu sinto que está em algum livro o que eu preciso – falei mordendo os lábios. – Eu só sinto. – Chega, Júlia! – Audrick gritou comigo e assustei-me com sua reação. – Nós vamos embora. Tudo isso já acabou. Porém, ele não me intimidaria. Enfrentei-o. – Não, Audrick – falei tendo mais incerteza na voz do que eu gostaria. Com uma destreza que eu desconhecia ter, desci da escada muito rápido, pulando a maioria dos degraus cheguei ao chão abaixada, feito um bicho do mato, e logo me levantei. Audrick me olhou estranho, mas sem dar importância, continuei. – Você não entende, Audrick? – Eu andava em sua direção. – Não está nem começando. – E para que tudo isso? – Ele levantou-se e veio para perto de mim – Você saberá no momento certo. Mas agora, preciso que confie em mim. – Sabia que Audrick não concordaria com o meu plano, por isso demoraria a contar o máximo que eu pudesse. – Tudo bem, meu amor – ele respondeu me beijando os lábios e depois a testa. – Confio em você, e se precisar, estarei lá fora. Não sei quantas horas havia passado ali, e eu começava a me perguntar se poderia estar enganada. Meu raciocínio estava correto, mas algo deveria estar fora do lugar. Lembro-me de estar sentada sobre o último degrau da grande escada de madeira, olhando a infinidade de livros, quando entendi o que fazia de errado. – Audrick! – comecei a chamá-lo com pressa e empolgação. Ele deveria estar no pequeno jardim, que com esforço sobrevivia num círculo entre o chão de Dias de Chuva |

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pedra, com não mais que dez metros de diâmetro. Corri pelo casarão e o encontrei onde já era esperado, aparando algumas folhas. – Audrick, precisamos ir para nossa casa. O livro que eu quero não deve estar aqui. – Mas, Júlia, lá não há nenhum livro ditado por demônios, muito menos pelo primeiro alquimista. – Exato, meu querido – dizia eu em êxtase, dando pulos de satisfação. – O livro que eu quero não deve ter sido escrito por um demônio ou alquimista, e sim, por um bruxo ou necromante. Precisamos partir agora mesmo. Eufórica, eu o puxei pelo braço para subirmos ao quarto e prepararmos as malas a fim de, após quase seis meses, deixar o casarão. – Não, Júlia. – Audrick não se moveu. Em contraste com minha empolgação, estava fixo a me encarar. – Não vamos a lugar nenhum até você me dizer o que pretende. – Mas você não estava louco para deixarmos este lugar? – Estava há muito tempo, mas agora estou preocupado. – Ele olhou para mim sério. – Ou conta o que pretende, ou ficaremos aqui. – Certo, Audrick. – Encarei-o. Eu confiei cegamente em Audrick desde que decidimos ficar juntos, mas parecia não haver reciprocidade ali. Não aguentei mais conter a verdade. – Vou matar Vânia Rachmanninoff! Seus olhos se arregalaram. Seu rosto empalideceu. Estava transtornado. – Você está louca? Isto é impossível. Nem eu mesmo poderia fazer isso. – Mas sei que há um jeito. Pense comigo – sabia que para Audrick aquilo era uma loucura e, talvez, impensável, já que pela hierarquia dos domuns, meu marido devia devoção a Vânia. Mas agora que eu tinha a atenção dele, deveria ir com calma, para persuadi-lo de maneira tranquila –, Vânia disse que se ficar sem o elixir durante muito tempo você enfraquece e envelhece, mas não morre. Eu pude ver isso acontecendo contigo, quando você deixou de usá-lo por um período. Inclusive sei que antes de nos revisitar na casa de meus pais, para parecer um pouco mais velho, você havia deixado de bebê-lo. De fato, você não morreu, ficou aparentemente mais velho, alguns poucos anos, mas assim que voltou a tomar, estagnou o envelhecimento. Sendo assim, o elixir só serve para mantê-lo jovem e saudável. Todo o resto vem de outra fonte de poder. – Sim, o pacto. Qual o segredo nisso? – Pense, Audrick, pense. Você mesmo disse que se não alimentarmos o demônio em nós, ele nos dominará. EM NÓS! – enfatizei. – Isto é claro como a água. Como você explica que assim que passei pelo ritual pude compreender a língua escrita nestes livros? Sabemos que não é nenhum dialeto humano e sim,

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línguas das criaturas das trevas. E como você entende o monstro que nos tornamos quando a fúria é libertada? Como explica a mutação? – Você realmente acredita nisso? – Audrick começava a me entender, mesmo com receio. – É quase certeza, Audrick – falei séria. – Há um demônio real dentro de cada um de nós. Estamos possuídos. – Não posso crer – ele disse balançando a cabeça de maneira negativa. – Você não quer é aceitar, pois no fundo todos vocês sempre souberam. De onde acha que vem a força, as garras, ou até mesmo as asas? Vocês são... – corrigi-me –, nós somos conhecidos como domuns, o que significa casa, ou morada. Viu como faz sentido? Isso é porque, no ritual, nos entregamos para ser morada dessas criaturas sobre a terra, é o modo deles se manterem em nosso mundo. Houve um constrangedor silêncio. – Você está certa... – ele disse com pesar na voz. – E-eu... Eu estou? – Desarmei-me com a fala dele. Sabia que eu tinha razão, mas algo muito estranho, diferente, ganhou o semblante e o olhar de Audrick. Mirei em seus olhos, agora muito frios, até concluir. ­– Você sempre soube, não é? Estava apenas... apenas fingindo não saber. ///

Depois que o corpo de Dimitri foi cremado, recolhi suas cinzas e por alguns instantes pensei em guardá-las, mas sabia que não era a melhor escolha, pois ele precisava de toda liberdade e eu também, assim joguei-as no mar. Foi quando decidi que não era mais tempo de chorar. Nenhum alívio viria. Era tempo de ações, e os trovões e nuvens negras que se aproximavam, diziam isso. Eu sentia-me como uma extensão da natureza, lendo no tempo os caminhos a seguir. A luz do sol ainda deveria ter algumas poucas horas antes de perder-se no horizonte, mas as nuvens eram tão densas, que trouxeram a escuridão antes da noite. Caminhei de volta para o casarão, debaixo de uma forte chuva, arrastando os passos tamanha era a fraqueza que sentia. Assim que fechei a grande porta atrás de mim, Audrick apareceu com uma toalha. – Eu quase fui atrás de você. – Ele enrolou-me com cuidado. – Desculpe a demora. Mas eu precisava me despedir – falei de cabeça baixa. – Eu sinto muito. Fiz todo o possível por ele... – Eu sabia que dizia a verdade. – Eu sei. A culpa não é sua. – Afastei a toalha para me despir da roupa molhada. – Eu não tenho nenhuma magoa de você. Dias de Chuva |

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– Mas não quero que se culpe também. – Ele voltava a colocar o tecido macio em minha volta. – Eu tenho sim, minha parcela de culpa, Audrick. Sei que não há remediação para ela. Mas o verdadeiro culpado é Vânia. Audrick ficou um tempo mudo. Ele abraçou-me e andávamos para um aposento mais quente quando senti uma forte tontura e ele precisou me amparar. – Você está com febre, Júlia – ele disse com a mão em minha testa. – Eu não me sinto nada bem – confirmei. Foi dizer essa frase que meu corpo se contorceu em um grande espasmo e vomitei, mas como não comia nada há muito tempo, o que expeli era uma gosma escura e azeda. Quando me recompus, estava de joelhos no chão. Minhas mãos tinham as veias saltadas e as unhas ficaram roxas. – Nós não podemos mais esperar, Júlia. – Ele me tinha em seu colo. – Es... esperar o q... quê? – A visão estava turva e eu não tinha forças para pensar. – O seu ritual foi interrompido. Precisamos terminá-lo, ou seu corpo, ou você... – Ele estava nervoso e sua voz saia trêmula. – Diga, Audrick. – Ou seu corpo apodrecerá. Achei que meu coração seria expelido junto ao susto e ao novo ataque de ânsia. – Tudo bem – murmurei entre o vômito –, faça o que for preciso. Audrick pegou-me no colo, desceu comigo as escadas direto para a masmorra. Colocou-me no chão, no mesmo lugar onde o ritual foi iniciado. – Fique calma. Preciso buscar algumas coisas. Durante os segundos que fiquei só, meu corpo sofreu uma série de calafrios, e comecei a tossir. Os ferimentos ainda mal cicatrizados começaram a arder e coçar, e meus olhos ficaram tão pesados que não conseguia deixá-los abertos. Assim que retornou, Audrick me fez beber do elixir. Depois, deitou-me na posição de um feto, sentou-se à minha frente e ajoelhado iniciou uma reza. Eu não conseguia compreender uma única palavra do que ele dizia. Entre nós, havia uma vasilha de barro com algum líquido. Ele levava as mãos ao recipiente e hora ou outra, respingava o líquido sobre mim. Então todas as paredes ficaram vermelhas. Da vasilha chamas azuis criaram vida em todas as direções, como as mil chamas de um sol, e ganharam feito serpentes vivas todo o chão, curvando-se, passando uma sobre a outra. Eram como enguias de luzes.

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A canção entoada por Audrick aumentou de volume e pareceu ser a voz de uma multidão. Então a sua boca parou de mover-se, mas o cântico, vindo aparentemente de todos os cantos, continuava. Ele aproximou-se e colocou os lábios em minha orelha. – Você passou por dores, por mais sofrimentos que sua imaginação poderia criar. Você pagou, e tem o direito de receber. Aceita? – Sim... – Estava tão fraca, que a fala foi mais um sopro. Do lado de fora, apenas trovões. Todas as cobras de fogo ergueram suas línguas e num único bote, acometeram-me. Entraram em minha carne. As paredes ficaram mais uma vez na sua cor original. A única luz vinha da tigela de onde Audrick retirou um pano branco, e com ele sendo embebido na água reluzente, lavou cada parte de meu corpo, meus cabelos, olhos e mãos, com cuidado e carinho. Ao terminar, levou-me para nosso quarto e me colocou para dormir e deitou ao meu lado, me envolvendo em um braço. – Agora descanse. Eu estarei aqui. Durante três noites e três dias eu dormi, tinha pesadelos horríveis com meus familiares, com Audrick, com pessoas do meu passado e com gente que nunca tinha visto. Acordava assustada e enjoada. Audrick, sempre ao meu lado, me amparava e me dava de beber do elixir. Então eu voltava a dormir, e o ciclo se repetia. Até que finalmente, numa manhã, despertei sem ter passado por uma noite de pesadelos. Sentia meu corpo diferente e quase nenhuma dor. Vi que as ataduras ainda estavam na perna, no braço e na barriga onde eu havia sido ferida. Audrick dormia, muito cansado, ao meu lado. Só depois de levantar e me encarar no espelho, percebi-me diferente. Meus olhos já eram negros, mas agora pareciam mais frios. Como explicar? Virei o corpo e olhei para meu esposo mais uma vez. Ele era fogo: os pelos ficavam levemente vermelhos no sol, assim como os cabelos, e os olhos penetrantes. Olhei-me outra vez, não ganhara nenhuma semelhança. Minha pele parecia um pouco mais lisa que o comum. Olhei minhas unhas, maiores e mais firmes. Encarei-me mais de perto. Tinha algo diferente, principalmente dentro de mim, muito mais no campo do sentir e do saber do que eu pudesse ver ali. ///

– Mas como usaria isso contra Vânia? – Audrick me trazia de volta à realidade. – Como a necromante da história que me contou – falei voltando a mim –, ou como um bom padre faria: vou exorcizá-lo. Dias de Chuva |

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Capít ulo 27

A terceira face do mestre

– Ele é muito poderoso – dizia Audrick tentando me convencer do contrário. – Mas eu sou mais esperta – eu falava em contrapartida. – Depois de expulsar o demônio do seu corpo, ele ficará fraco. O elixir só nos deixa jovens. Mas expulsando o demônio, ele se tornará mortal e será fácil matá-lo. Audrick ficou quieto e passou a andar de um lado para o outro, fazendo meias voltas no jardim. Então parou com o olhar perdido no horizonte, mirando para um lugar qualquer dentro dele mesmo. Eu fiquei esperando que ele dissesse algo, que concordasse comigo dando-me todo seu apoio, sabedoria e força. – Não está certo – ele disse. – O que está dizendo? – Eu não acreditava no que ouvia. – A vingança – ele virou-se para mim –, não é o certo. – Está zombando de mim? – eu gritava. – Mal te reconheço. Tem pena dele? Daquele maldito que matou minha família? Que matou o próprio filho? Logo você que diz ter se tornado um vingador, um justiceiro, quer me impedir de matar aquele cretino, que me mandou para ser comida viva por Kãwera? – Ju – ele estava muito calmo –, quantos me viu matar desde que estamos aqui? – Nenhum – respondi rápido –, mas o que tem isso? – É isto. Eu mudei. – Mudou? Mudou como? – A sua calma me deixava ainda mais brava. – Não sente desejo em causar o mal, em destruir alguém e encomendar sua sujeira ao diabo? – Não sei como é possível. Mas não sinto. E tenho estudado meios de aguentar isso sem sermos tomados pela besta.

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– Mas isto é ridículo. Fez justiça com as mãos durante tanto tempo e agora me julga por querer me vingar? – Entenda, Júlia – ele tentava se aproximar de mim e eu me esquivava –, eu estava enganado. Ver você e sua família sofrer tanto me fez mudar. – Ele me olhava no fundo dos olhos e segurava minhas mãos em um pedido. – Comecei a mudar assim que estivemos juntos pela primeira vez. Lembra que até aprendi a meditar? Tudo isso é para a nova vida que quero ter com você. Vamos apenas viver em paz? – Não, Audrick! – gritei ainda mais alto, soltando minhas mãos da dele – Não! Eu me vingarei com ou sem a sua ajuda. E de uma maneira horrível, zombando de mim ele gargalhou. – Imagine, e o que fará sem mim? Você é minha cria, entendeu? Minha! Eu vou ensiná-la e fará tudo ao meu modo. Sem mim e ainda tão jovem nem conseguiria voltar para casa. Nem ao menos sabe onde está. Não há ninguém para socorrê-la. Meu coração apertou-se e senti a boca secar. – Tem razão. – Um vazio se abatia em meu peito. Fiz de tudo para ficar equilibrada diante de suas palavras mais cruéis. Eu fora vencida... ou quase. – Sou sua aprendiz silenciosa e devo minha vida. Salvou-me quando nos adotou no frio e na fome. Se salvou dando seu amor. Mas é pelo seu amor que eu te peço. Ajude-me. – Meu tom havia abaixado, eu pedia quase a implorar. – Sei que se eu estudar posso fazer isso. Imagine quantas vidas nós salvaremos das mãos dele? Quantas almas? E depois de tudo isso, vamos descobrir um modo de controlar essa fúria e nós dois poderemos, assim como você tem feito, nos livrar da necessidade de fazer o mal. Naquela tarde que se seguiu, Audrick prometeu pensar no meu pedido, e durante todo o tempo não tocamos no assunto. Assim que a noite baixou sobre o casarão da montanha, vinda pelo mar agitado e soberano, ele me chamou até o quarto mais alto, onde raramente íamos. Tudo lá era só penumbra, tendo o cômodo se iluminado apenas pelo luar. Lá em cima, ele me chamou para junto de si, próximo à janela, e me abraçou. Era um quarto apertado, octogonal, acima de todos os outros, com janelas sem vidros nas oito paredes de pedra. Ele acariciou meu rosto e, de forma doce, me beijou nos lábios. Pôs meu rosto no seu peito e ficamos assim abraçados. – Daqui, podemos ver a lua, pois o sol empresta a luz e as marés se agitam querendo alcançá-la. Somos um tanto lua, Júlia. Somos lua, pois não temos luz, agitamos o mar à nossa volta, causamos confusões, marolas, mas não podemos Dias de Chuva |

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alcançá-lo. Refletimos nas águas, reinando entre as trevas das noites, maior e mais próxima da terra do que as estrelas, mas não somos mágicos como elas. Não somos fogo, somos névoa, pedra e neblina, que dependem da luz para surgir, turvamos as visões, confundimos os sentidos, embelezamos paisagens que escondem perigos. Mas, principalmente, fazemos com que o mar se mova, porém é só ele que tem vida, e ele é muito, muito maior que eu, que você, ou Vânia. – Ele suspirou e senti sua sopro quente. – Vamos fazer do seu modo, amor. Mas nada mais será igual... – Audrick apertou-me mais forte. – E não se iluda. O mar não vai mudar, apenas eu e você.

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Parte 7 TÃO FRIO


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Outro ser

– Por que devo fazer isso? – perguntei. – Inicialmente, você já viu como eu sou e como Vânia é, mas não se viu ainda. Nunca precisou revelar seu demônio, mas talvez precise. – Este não é o plano... – Mas deve estar preparada, caso necessite de outros recursos. – Você fala como se não fosse estar lá... comigo. – O que importa, é você estar o mais forte possível. Vânia é poderoso, mas não é muito criativo em batalha. É seguro demais, temos uma vantagem... você tem uma vantagem, ele há séculos não se sente ameaçado e nem precisa se defender. Mas eu vi você na selva, e vi o que fez com Bikoróti. Há uma guerreira aí dentro. – Não pretendo lutar com ele – refutei. – Nós não pretendíamos tanta coisa... e veja onde estamos. Respirei resignada. Estava tudo pronto para a nossa partida, voltaríamos para casa ou iriamos a qualquer lugar onde fosse necessário, para que eu aprendesse o que desejava: o exorcismo, a magia real, as palavras da primeira bruxa a conjurar e também expulsar o demônio. Queria voltar no tempo, visitar aquela feiticeira, nem que em sonhos, e saber dela seus truques. – Concentre-se – dizia Audrick, com o semblante sério e inabalável. – Ele está dentro de você. É só abrir a porta. Fechei os olhos, deveria ser apenas instinto. Ele estava em mim, gritava faminto, com raiva, eu nunca o havia alimentado, desde a transformação as meditações que Audrick desenvolvera ajudavam-me a mantê-lo quieto, sem que eu precisasse cumprir minha parte no acordo, mandando à Besta alguma alma ou

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corpo. Mas eu podia ouvi-lo, na sua língua ancestral, a mesma que não compreendia no ritual, mas sabia com perfeição agora. A cobrança, e se ele saísse e me dominasse de uma única vez, eu estaria perdida. Eu havia feito um pacto com outra criatura, era meu acordo. Ao oferecer uma refeição ao Diabo, serviria um banquete para outro semelhante. Mas antes, precisava ouvi-lo. Senti o frio que me visitara durante a transformação, um frio que surgira do coração, de batimentos cardíacos lentos, espaçados. O mesmo gelo ganhando os ossos, esfriando os músculos. O que eu me tornava? Sentia apenas frio nascendo de dentro de mim e conforme sentia-me assim, ocorreu-me que Audrick não pertencia mais ao meu coração. Preferi não dar atenção a essas elucubrações, e voltei para mim o pensamento. – Você deve ouvi-lo – surgia então a voz de Audrick, para me guiar. – Nesse primeiro instante, deve conversar com esse seu outro eu. Devem ser um. Meu corpo caiu sobre meus joelhos, e sustentei meu tronco com os braços e mãos firmes no chão. As mesmas paredes que circundavam o cativeiro onde eu e ele havíamos sido feitos prisioneiros por Vânia, onde ele e Dimitri foram presos, assistiam então meu outro eu nascendo, um outro ser, mais forte, mais cruel, faminto. Sei que Audrick continuou a dizer-me o que fazer, mas não me lembro de nenhuma outra palavra. E outra vez a dor nos ossos, nos olhos, a pele que parecia virar de dentro para fora. Minha cabeça doeu tanto que meu cérebro parecia gelar e trincar. Todos os meus pensamentos se fragmentaram. Devo ter gritado, como se minha alma saísse naquele grito. Abri os olhos respirando com dificuldade. Fiquei um tempo ainda compensando o novo modo de respirar. Mais ar era preciso. O peito subia e descia enchendo e esvaziando os pulmões. O coração bombeava energia e adrenalina através do sangue para todo meu novo corpo. Mais forte, me coloquei de pé para encarar minha nova face no espelho ali disposto. Meu enfrentamento. Era frio. Meu corpo todo, uma tela azulada, pálida, cabelos brancos e mais longos que o normal. Olhei para minhas mãos, assustei-me com a magreza, e ao tentar mover os dedos, películas translúcidas se mostravam. Unhas grandes e negras, mais parecidas com garras. Respirei fundo e senti que o ar saia gelado. Encarei-me outra vez, também havia ganhado asas, pálidas, sem vida, como asas de morcego, cinza, muito claras, só pele e ossos. De minhas costas e nuca, tentáculos oscilavam na luz, meio transparentes feito gelo, esfumaçando entre as voltas. Aproximei-me do espelho, e minhas mãos tocaram meu rosto, agora com escamas nos cantos do maxilar abaixo das orelhas, também nas têmporas, Dias de Chuva |

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próximos aos fios de cabelo e à cima das sobrancelhas. Meus olhos pareciam muito maiores em todo o seu contorno, e minha pupila abria e fechava-se pelas laterais, sem nunca se diminuírem na vertical, à medida que vinha a luz. Soube que então, eu havia mudado, meu corpo não era só meu. Chorei por dentro, senti-me morrer, mas do lado de fora, a única lágrima que escapou, congelou-se e, gota de gelo, quebrou. Eu tinha que ir além. Deixei Audrick para trás, subi as escadas da masmorra, corri pela grande casa, até o cômodo octogonal. Era noite outra vez, e a lua aparecia entre nuvens cinzentas e carregadas e o vento prevendo tempestade soprou contra mim sua fúria. Subi no parapeito da janela e ganhei o lado de fora, empoleirada como uma ave, mas agarrada a toda a estrutura por meus tentáculos. Olhei outra vez para a lua, e o demônio dentro de mim parecia cantar. E sem mais, mergulhei com o bater de asas na noite. Voar, como se meu corpo sempre tivesse feito aquilo, mas minha mente e olhos, poros e escamas, deslumbravam-se com a sensação. Logo a chuva veio, tilintando sua sinfonia sobre mim. O mar ficava revolto, e quando me dei conta, voava em tempestade. Perdi-me, não sei quanto tempo fiquei ali, enchendo-me de reconhecimento e esvaziando-me diante o abismo. Talvez não fosse mais Júlia, e outros nomes me eram revelados. Mas nenhum deles, era meu. Queria esquecer, deixar de ser. Em minha mente chicoteava-me meu reflexo no espelho, o de Audrick, o de Vânia, a morte de minha família. E tudo se apagou. No meu ouvido só existia tempestade, e meus olhos nada mais enxergavam. Sonhei com a mulher de cabelos pretos e cacheados, e olhar fascinante, com quem há anos eu sonhara. Era a mesma feiticeira da história que Miriam me contara. A que criara o Ovo do Dragão pela primeira vez, de pele negra e sorriso largo. Ela estava entre inúmeras árvores, num amanhecer onde a chuva caía sem piedade. Seus olhos negros pareciam me devorar, enfeitiçar, ou penetrar minha alma. Ao seu lado, mas alguns passos para trás, vi o espírito de Amanara, não reluzente como conheci, mas feito carne. Acordei, e era apenas eu novamente. Vi Audrick, com suas asas e a grande cobra de suas costas, procurando-me com os olhos amarelos pelo céu tempestuoso... depois vi seu rosto. Na volta para São Paulo eu sentia-me cada vez mais perto de descobrir o que precisava. Sentia falta da minha mestra... Se eu ainda pudesse pedir sua ajuda. Mas além de achar tarde demais para procurar, enfrentá-la diante a morte de seu filho, era muito doloroso. O feitiço que tanto esperava, deveria estar próximo a mim. Eu o chamava de diferentes formas, por diferentes cânticos, e nada acontecia.

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Com o avançar dos dias, e das paradas em hotéis de estrada, via meu fracasso iminente como pessoa. Eu lembrava-me dos amigos abandonados, dos desenhos colocados de lado, e da família que nunca mais teria. Meu tempo fora todo consumido pelos estudos de livros e feitiços, de controlar a besta em mim, e de aprender a lidar com meu novo corpo. Então, envergonhada, suplicava todas as noites por ajuda e por perdão. E sabia que só havia uma pessoa que eu poderia pedir perdão e me redimir: Miriam. Apenas ela. E repentino, feito um susto, entendi, porque a mulher de olhos e cabelos negros aparecera para mim na noite de tempestade em que eu me tornei um demônio. A condessa, aquela que me visitou em sonho ainda na adolescência. A Condessa das Almas. E tudo que eu sabia sobre ela, veio através daquela mulher. Era para a sua casa que eu deveria ir. ///

Fiquei algum tempo observando o portão rosa, já desgastado. A garagem tinha o piso e os azulejos bastante sujos. Eu poderia ir até a ONG fundada por ela, pois alguém lá deveria ter ficado com as chaves e a maiorias dos seus pertences, e pedir ajuda. Por outro lado, nada impediria que um parente ou amigo tivesse retornado para São Paulo e levado suas coisas embora. Difícil dizer. Mas eu sabia que algo dentro da casa chamava por mim. Já era noite, e o único modo rápido seria invadir. A rua era tranquila. Eu poderia pular ou escalar facilmente o portão e passar por uma fresta entre ele e as telhas da garagem graças à minha nova condição física. Esperei para ter certeza de que não havia ninguém por perto me observando. A primeira parte foi fácil: com destreza e tranquilidade, fui para o lado de dentro. Achei melhor ignorar a porta de entrada. Passei pelo corredor lateral, observando bem as janelas. Estava tudo escuro. Depois do corredor, havia outro portão que dava para o quintal dos fundos. Repeti o feito. Foi então que tive certeza, alguém cuidava da casa. O jardim não estava nada perto de ter sido abandonado. As plantas estavam vivas e lindas. Não havia lixo ou mato. De volta ao meu intento, parei um tempo para decidir se arrombaria a porta da cozinha ou daria um jeito de escalar o muro, pular pela varanda e tentar a janela de um dos quartos. Preferi a primeira opção. Segurei na maçaneta com as duas mãos e forcei-a para dentro. Não foi difícil. Só precisei exercer a pressão certa para arrebentar o batente. Concentrei minha força nos braços. As mãos tornaram-se azuladas, minhas unhas grandes e escuras, as tatuagens no pulso, enroladas como enguias cheias de curvas, brilharam. Não era preciso esforço e logo estava feito: um pedaço do batente de ferro Dias de Chuva |

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caiu no chão. Eu entrei rápido, recolhi o metal que caiu e encostei a porta atrás de mim. A cozinha não tinha mais os potes, panelas e paninhos. Apenas os móveis de madeira um tanto empoeirados. Eu sentia que não tinha tempo para me demorar. Atravessei a cozinha, a sala e subi para os quartos. Tive que me segurar para não entrar no quarto de Dimitri. Se eu fizesse aquilo, morreria de saudades. Minhas pernas ficaram bambas, mas continuei. No quarto de minha antiga mestra encontrei a cama sem colchão e o guarda-roupa vazio. Seria possível que eu estivesse enganada? O Ovo do Dragão brilhava em meu peito, era a certeza de que deveria estar ali. – Ela disse que você viria. – A voz masculina e grave veio de minhas costas e quase gritei de susto. – Quem é você? – perguntei ainda com o coração descompassado. – Eu quem deveria fazer essa pergunta. – Ele saia das sombras do corredor. Sua voz era desdenhosa, mas não parecia surpreso. Olhei bem para ele que ali estava. Não me era estranho, aquela boca, aquele olhar. Mas não o reconheci. – Você é a sobrinha dela, né? – Ele coçou a cabeça enquanto me olhava um tanto desconfiado. – A menina que ficou com nojo de comer comigo. – Você...? – falei sem acreditar. – É Rui, o seu nome, não é? Você morava, na minha... naquela casa. Está tão diferente. Rui tinha engordado bastante, tinha os cabelos aparados e suas roupas estavam limpas. Em nada se assemelhava ao homem decrépito, feio e malcheiroso que eu conheci. – Pois é. – Ele deu de ombros. – Algumas pessoas mudam para melhor. – Ele foi saindo e me chamou com a mão. – A dona Miriam avisou que você viria. Mas achei que ia tocar a campainha em vez de invadir. Não disse nada. Estava envergonhada com a minha atitude idiota. Miriam sabia que eu era assim. Me deixava levar pela urgência e esquecia de prestar atenção. Eu ainda me culpava por ter demorado tanto a entender porque eu procurava um livro e onde deveria achá-lo. Se eu tivesse me ouvido, não teria perdido tanto tempo na biblioteca do casarão. – O seu livro está lá na sala. – Ele descia as escadas e eu seguia atrás. – Meu livro? – questionei. Ainda me parecia improvável que estivesse ali. – Sim, não é por isso que você voltou? Quando a Matilde, amiga da dona Miriam soube que eu havia saído da clínica de desintoxicação, ela quis me ajudar.

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Como precisava de alguém pra cuidar dessa casa, ela me disse pra vir pra cá – ele falava como se me devesse alguma explicação. – Lá na outra casa, que nem era minha, tinham muitas lembranças ruins. Aí a sua tia ligou pra mim, disse pra eu me desfazer de tudo, menos desse livro, pois uma hora você iria querer de volta. Mas se eu soubesse que você ia entrar escondida, arrombando a porta... – Desculpe – interrompi a fala dele –, eu achei que não havia ninguém aqui... – Você tocou a campainha? – Ele me encarou. – Não tocou, então pronto. Fiquei quieta. Ele abriu uma gaveta na estante. – Aqui está. – Rui entregou-me um embrulho de pano. – Não entendo, porque sua tia não te ligou e mandou você vir aqui de dia, ou sei lá. Dei risada da situação. Tudo poderia ter sido tão mais simples. Porém, a simplicidade havia deixado de fazer parte da minha vida... infelizmente. – Eu não sei como agradecer. – Peguei o livro do modo mais cuidadoso possível, como se ele fosse de cristal e ao mínimo descuido pudesse se quebrar. Por sorte, assim que o homem surgiu, a luz do meu pingente havia se apagado, porém o Ovo do Dragão continuava a pesar e esquentar meu peito. Tudo o que eu viria a precisar, estava ali. – Pode mandar alguém aqui consertar a porta? Seria uma boa forma de agradecer... – Sua voz soava um tanto vagarosa agora. Fiz que sim com a cabeça. – Eu não sei pra que tanto cuidado com um livro – ele disse, inconformado. A força presente no livro me atraia tanto que deixei de ouvi-lo e sentei-me no sofá para abrir o embrulho. Por baixo do pano reconheci uma capa de couro antigo, sem nenhuma inscrição, com duas tiras grossas também de couro que o fechavam. Abri com cuidado e um papel solto logo na primeira página tinha meu nome escrito. Reconheci a letra de Miriam e o abri.

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Júlia, Muito tem acontecido desde que voltei para Salvador. Eu realmente me sinto melhor de saúde e acho que tenho muitos anos pela frente. Dimitri está cada vez mais bonito, e eu sempre sinto por vocês não terem ficado juntos. Escrevo-lhe, pois em sonho vi a Condessa, aquela que ficou conhecida por sua capacidade de ir além de todas as outras na magia e nas artes de todo o universo. E eu sei que vai precisar desse livro. Eu espero poder revê-la, minha querida. Em um outro mundo ideal, sem Vânia e sem Audrick, você seria minha nora, mas quem sabe, se você tomar as decisões certas a tempo, você e Dimitri ainda venham a ter outra chance. Eu sei que ele nunca se esquecerá de você, mesmo que ele tenha parado de te ligar, pois sempre que se falavam, ele chorava durante toda a noite. Se veio atrás deste livro é porque já sabe a verdade, ou ao menos, a parte dela por mim escondida. Desculpe-me, só queria proteger você e meu Dimitri. Vânia está perto e é muito mais perigoso do que imagina. Ele procurou-me, sei que ele quer saber modos de atingi-la. Mas eu tenho meus truques e controlo meus pensamentos em sua presença para tentar ludibriá-lo... Eu espero poder fazer por você ao menos o suficiente para que vá a um lugar onde se encontre e nunca mais se perca. Miriam.


As palavras de Miriam foram doces e cruéis, e pelo tom da carta, havia sido escrita há muito tempo. Eu fizera tantas escolhas erradas desde o começo. Sempre tentando acertar seguia meu coração nos mais diversos caprichos, e que diferença eu havia feito na vida dos que me amavam? Provavelmente nenhuma, com exceção de Audrick. A frágil Júlia precisava desaparecer. Para que tanta fé e crença se eu as usava levando em conta apenas meus desejos mais frívolos? Recostei a cabeça para trás, no encosto do sofá, e mirei o teto. Havia pouca luz na casa que foi tantas vezes meu lar. Lugar onde eu descobri uma amiga, descobri meu potencial e vivi o primeiro e mais puro amor, para então apagar tudo. Esqueci-me de quem eu era, afundando cada lembrança e aprendizado para viver a superficialidade de uma paixão e sua entrega total. O que eu fiz com minha vida? Lembrei de Amanara. Se eu fui parar no Angaretama, um motivo havia. Se não fosse por essa experiência, talvez eu nunca saberia que eu havia sido aquela guerreira. Mas agora, que eu sabia, o que isso queria dizer? Havia uma nova força em mim desde então. Um poder maior. Sentia isso em cada músculo, como se tivesse recuperado aprendizados de toda guerra que eu deveria ter vivido e lutado. Precisava honrar tudo isso, e fazer valer. Percebi estar sozinha na sala. Já na cozinha, a luz fora acessa. Levantei-me abraçada ao embrulho e segui para a copa. Só então entendi porque Rui não tivera uma atitude mais drástica quando me viu, ele estava bêbado e agora tornava outra lata de cerveja. Na pia haviam várias. – Então você não largou todas as drogas? – falei quase decepcionada. – Uma coisa de cada vez, menina – respondeu-me com a voz turva e o olhar meio fechado, meio aberto, típico do vício. Ele tinha razão, desmerecer sua conquista em nada ajudaria. – Vamos fazer um acordo? – perguntou em tom de brincadeira, para tentar diminuir o ar pesado que eu causara. – Você abre o portão para eu sair, e mando alguém aqui, arrumar a porta. – Certo – ele falou dando um longo gole na cerveja. – Não estou em condições de discutir. No portão dei a ele um aperto firme na mão e disse: – Não desista. – Olhando fundo em seus olhos. Queria vê-lo bem. Devido a hora adiantada achei melhor pegar um taxi para casa. No banco de trás do carro abri mais uma vez o livro. As duas primeiras páginas estavam em branco, e na segunda folha, havia o seguinte registro:

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Este livro será encontrado, abandonado e novamente descoberto até chegar às mãos de alguém que o entenda. Aquele que não for tocado pelas palavras que aqui estão, deverá abandoná-lo. Aquele que fizer uso dele, também saberá o momento de entregá-lo a outras mãos, ou de perdê-lo, para que seu ciclo continue a existir, e novamente, será encontrado, abandonado e novamente descoberto. Era a minha vez, então, de fazer uso dele. No rádio do carro iniciava uma canção, daquelas que o universo coloca de propósito em nosso caminho. As primeiras notas vinham de um órgão, e as próximas de uma guitarra estridente. Eu conhecia a canção. Ela dizia: O que você faria se eu cantasse fora do tom Você se levantaria e viria até mim Me empreste suas orelhas e eu te cantarei uma canção Eu vou tentar não cantar fora de tom A dor da saudade gritou finalmente em meu peito. Eu amava todas as pessoas que perderam a vida pelo capricho colocado no meu caminho. Eu havia tido tudo, e perdido. Ohh, baby eu consigo, (Com uma ajudinha de meus amigos) Tudo que eu preciso são meus amigos As lágrimas caíram e o motorista olhou-me constrangido, sem saber o que fazer. Desviei a visão para o vidro, à fim de que ele entendesse que não era preciso novos contatos visuais. Eu estava cansada. Miriam tinha razão, eu me perdi outra vez por meu querer imediato, a necessidade de viver minhas emoções era tão grande, que esqueci de todas as responsabilidades. Em Angaretama tudo foi diferente, lá eu entendi, que se eu acreditasse de verdade, faria não qualquer coisa, mas o melhor. O que eu faço quando meu amor está longe, (Você se preocupa por estar sozinho?)

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não, não. Como eu me sinto ao Fim do dia (Você está triste por estar só) Eu espero que você não diga isso nunca mais Era hora de agir. Eu sabia que, de certa forma, não estava sozinha, pois onde quer que aqueles que me amavam estivessem, estariam comigo, dando-me força para fazer o que era preciso. Com uma pequena ajuda de meus amigos.30

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Tradução da música de Joe Cocker, “With a little help from my friends”.

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A Condessa das Almas

Trajar o vestido branco, cobrir-me com um velho manto tão verde escuro como a profundeza da floresta mais temida e esquecida, riscar com sangue os elementos que evocariam a força necessária. Diferente do que eu imaginei em um primeiro instante, eu não faria um exorcismo qualquer, não como um feito pela igreja, a magia a qual eu recorreria não teria nada de divina. Deus não faria parte do acordo e nenhum anjo me ajudaria. Eu precisaria era de um verdadeiro feitiço, de uma bruxa de fato, uma bruxa que sussurraria em meus ouvidos o caminho feito de escritas tão ancestrais quanto o próprio acordo. Mas não foi tão simples. O livro encontrado era nada além do que um encadernado de folhas velhas e capa de couro, costurado, bordado e escrito à mão. A angústia fez-me ler os escritos de uma só vez, eram muitas as informações e ritos da bruxa que se intitulava de modo tão pitoresco, como “Condessa das Almas”. Não dei toda a atenção que o livro merecia... talvez devesse ter feito diferente, mas devido à fúria e à pressa ignorei essas sutilezas. Foi então que cometi meu primeiro assassinato. O coração da vítima disparado e meus ouvidos capitando o som. O sangue no pescoço tentando correr mais rápido embaixo de minha mão direita pressionando com força. A cabeça dele golpeada contra a parede do lixão três vezes seguidas, até ouvir o crânio se quebrar. Os olhos de desespero saltados da cara, as mãos inúteis tentando segurar minha mão. Sem voz. O sangue escorrendo pelo nariz e pela boca e, finalmente o ar que já não entrava e nem saía. Lembro-me como se fosse uma das mais recentes coisas que fiz. Havia ficado de tocaia na frente de um bar localizado no bairro de periferia que cresci. Enquanto criança, ouvia histórias de que no bar um homem que

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abusava de crianças costumava ir beber. Lendo pensamentos dos transeuntes durante a noite descobri que os hábitos eram verdade. Reconheci o homem que recentemente, em uma festa, havia molestado a sobrinha. Eu conhecia grande parte daquela região que continuava muito parecida com as lembranças da minha infância. Esperei até que o sujeito, cheio de álcool, resolvesse urinar no terreno baldio atrás do estabelecimento. Estava feito: enquanto seu coração dava as últimas batidas, eu disse ao ouvido. – Leve este corpo, que a alma já não presta. Envio-o para servir às trevas, pois a ela já pertencia o espírito. Ao término daquela frase, os olhos de minha vítima se abriram, sem pupila ou íris, estavam brancos. A boca se abriu expelindo um cheiro forte e seguido de uma fumaça cinza. Atrás de mim, por todos os lados, ouvi barulhos no chão. Ao virar-me inúmeros ratos surgiram por todo o lixão, e correram em nossa direção. Num segundo, eles subiam por meus pés. Larguei o corpo e tentei afasta-los, mas fui usada apenas como ponte para o cadáver. Os roedores passaram por cima de mim, enquanto eu protegia meu rosto com as mãos e braços, e caíram direto no morto que se contorcia, tamanha era a força das mordidas dos animais que, a cada pedaço de carne ingerido, aumentavam de tamanho. Fiquei admirada e perturbada vendo a cena. Audrick não me disse o que aconteceria ao corpo de quem eu matasse. Ele apenas havia dito que eu precisaria fazer aquilo, para garantir que ao me transformar eu tivesse minha vida paga ao demônio até aquele instante. De repente o ar atrás de mim pareceu um pouco mais quente. Virei-me e emudeci. Tendo quase a minha altura, de pelo vermelho escuro, a criatura tinha a boca aberta, exibindo seus dentes e a saliva escorrendo. Os olhos eram pequenos e as orelhas levemente arredondadas, o corpo arqueado mirava o cadáver, e também a mim. A criatura tinha o formato de uma hiena, um carniceiro entre os animais, mas ali, naquela situação, estava mais para um aproveitador temido pelos demais. Tudo aconteceu muito rápido. Num segundo eu a vi, e no outro, ela avançou sobre mim. Tentei esquivar, mas sua pata pegou no meu ombro esquerdo fazendo-o sangrar. Os ratos correram da cena, sumindo no mato, entre o lixo e buracos no muro. A grande hiena abocanhou o restante do cadáver, mastigando ossos e os fiapos dos órgãos internos que restavam. Confusa pela dor no ombro, demorei um tempo até perceber que não havia som algum ali. Não ouvia o som das conversas no bar, nem do rádio ligado no estabelecimento, muito menos de carros na rua. Só a mastigação do animal. Forcei Dias de Chuva |

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a visão à minha volta, e notei que num raio de aproximadamente quinze metros, tudo era escuridão: alguma energia separava o lugar de todo o resto. Então é por isso que domuns realizam seus pagamentos sem serem notados?, concluí. A grande hiena vermelha terminava com os restos do corpo e sua saliva acida respingava na parede e no chão, onde havia sangue, e transformava tudo em fumaça. Logo, não havia mais sinal nenhum do homem que matei. Apenas eu e a hiena, nos encarando. A força terrificante que vinha dela me paralisou. Nem mesmo Vânia tinha aquele ar denso. A criatura correu em minha direção, e sem saber como agir, apenas me abaixei. Outra vez suas garras me usaram como apoio, rasgando minha jaqueta e pele, para pular no ar e correr, sumindo numa sombra qualquer. Voltaram então os sons das ruas, o falatório no bar, o rádio que tocava forró. Mesmo sangrando e com dor, corri para o automóvel. A dor que sentia era grande, mas sentia também prazer ao lembrar o que vi: os restos de um verme sendo devorado. A madrugava avançava e estava ainda muito longe de casa, quando meu estômago começou a doer e achei melhor estacionar num acostamento e sair para tomar um pouco de ar. Assim que dei a volta no carro, vomitei um punhado de sangue espesso e escuro, enquanto um formigamento nascia em meu ombro ferido e nas costas. Quando consegui me erguer, já não estava tonta ou confusa. Voltei para o carro, abri a jaqueta e olhei pelo espelho o machucado no ombro, que parava de sangrar e começava a cicatrizar. Senti uma sede tremenda do elixir. Abri o porta-luvas onde havia um pequeno frasco e o tornei por inteiro em poucos goles. Segundos depois, eu podia voltar a dirigir. Em casa só tive forças para um banho e cair na cama. Audrick deitou-se um pouco depois, quando o torpor do sono começava a me levar. Ele me abraçou, encontrando minhas costas no seu peito e acariciou meu cabelo, antes de sussurrar. ­– Temos um problema, meu amor. – Sua voz era levemente preocupada, e muito baixa. – Ele nos espreita... Vânia está de olho em tudo que fazemos. Virei-me de frente para ele, e um acariciou o rosto do outro. – Ele está sempre à espreita, não é? – Pensei por um instante. – Você acha que eu deveria desistir? – Audrick não respondeu, então voltei a falar, porém sussurrando ainda mais, como se seu tio estivesse até mesmo, dentro de nosso quarto. – Eu realmente acredito que nós nunca teremos paz enquanto ele viver. Ele me odeia, querido. Ele realmente me abomina. Deixei escapar uma lágrima, talvez por medo, talvez pela dor que vinha ainda mais forte à luz de todas as minhas decisões erradas. Audrick me beijou

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levemente, e depois encostei minha testa na dele, assim dividimos os pensamentos, as dores e os medos, até que cansada, adormeci. ///

Eu evoquei a criatura Eu planto neste ser a oferenda Para que sussurres em seus ouvidos Tal qual sorte e ventura Mais forças que as previstas em lenda Havíamos dirigido até o ponto mais alto da cidade de São Paulo, um refúgio de mata atlântica, o Pico do Jaraguá. A lua estava cheia e propícia ao nosso intento. Nos vestimos para o ritual, eu de vestido claro como a lua e Audrick, de negro como a noite, sobre nossos corpos respingamos óleo de anis. Que a alma a caminho do eterno Neste retornar desperte-a, Condessa Pois a ti ofereço e peço Quem é esta, e o que precisa: Poder usar seus escritos Diante da tua ancestral beleza. Em seis árvores fizemos seis diferentes runas e sobre cada uma, uma palavra diferente foi dita, junto a uma gota de nosso sangue. No centro da clareira escondida, escrevemos nossos nomes e o da Condessa, pois Audrick insistia em dividir o fardo e o poder comigo, para o caso de precisar de ajuda durante o exorcismo. Eu evoquei a criatura E que venha aquela que é mais forte E que venha alguém que veja além Feito parte da reza, as forças da natureza, o verdadeiro chamado e aprendizado da Condessa das Almas, seria minha maior força. E a floresta calou-se. O brilho da lua foi emprestado às gotas de óleo respingadas em nós, e nos fez brilhar feito as estrelas.

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Que a alma a caminho do eterno Neste retornar seja tua ponte E faça entrar neste ser, alguém Cuja sabedoria seja permitida Visto que é guardada por ti, Condessa Então eles vieram. Fantasmas surgiram entre as árvores, entoando o mesmo canto que nós. Almas, espíritos antigos que guardavam a floresta, as verdades, translúcidos como a nevoa prateada que parece surgir em volta da lua. Eles sabiam de cor o encantamento que eu decorara do livro da Condessa. Eu evoco à tua escolha Um alguém desta terra que seja mais forte Um alguém deste mundo que veja além Os espíritos entraram pelas runas nas seis árvores. O chão sob nossos pés tremeu. Audrick abraçou-me no centro da clareira. O canto ainda era entoado em nossa volta, como um murmúrio do vento. Folhas voaram em círculos e os pontos que cintilaram como estrelas em nossas vestes apagou-se. A lua foi encoberta por nuvens que surgiram no céu num instante. Eu evoco à tua escolha Um alguém desta terra que seja mais forte Um alguém deste mundo que veja além Nos soltamos e acendemos a fogueira de gravetos que tinham em seu centro peças de nossas roupas banhadas no mesmo óleo de anis. O fogo que surgiu era branco, mais parecido com fantasmas dançantes. Tudo precisava ser grandioso e mágico. Um espetáculo, entretendo e agraciando todas as criaturas envolvidas. Na terra, pedras pontiagudas pareciam surgir e mudar de forma. Devagar erguiam-se, moviam-se, trincavam e se ligavam. Primeiro apareceram dedos feitos apenas de ossos, depois ergueram-se as mãos, os braços, e parte por parte, saia da terra um esqueleto. A música enfim se calou, ele encarou-nos com os buracos de seu crânio e ajoelhou-se.

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– Quem eu devo ser em corpo e essência? – saiu a sentença pela boca mágica do crânio. – Estou para servi-los. Audrick e eu trocamos olhares cumplices. Ele segurou minha mão, o que imaginei ser um incentivo, e olhei outra vez para o esqueleto. – Seja aquele que meu inimigo mais procura. A caveira assentiu e, em pequenos punhados, a terra se desprendeu do chão e ergue-se até os ossos da criatura, moldando o restante de corpo. Folhas desprenderam-se das árvores e transmutaram-se envolta da nova criatura, criando uma vestimenta. O fogo branco ganhou o formato de uma serpente, desprendeu-se dos gravetos e incendiou o ser. Seus olhos ganharam vida, e à minha frente se fez Bikoróti.

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Oferenda

Aquele que tomou para si a forma de Bikoróti saiu pela mata batendo alto e cadenciadamente, em trocos de árvores, criando uma estranha música. Audrick ficou escondido entre as árvores caso eu precisasse de alguma ajuda, mas pela forte ligação com Vânia, quem encomendaria a criatura de volta ao inferno, seria eu. De joelhos, entoei repetidas frases decoradas do livro, onde eu pedia permissão e auxílio para o que faria. O chão era coberto pelo mana que se desprendia das seis árvores que abrigavam os espíritos chamados no início do ritual deixando-o quase eletrificado. Segundo o livro eu deveria ouvir em minha mente as indicações do que deveria fazer vindas da natureza e do vento, porém, enquanto eu fechava os olhos para repetir o encantamento, sentia me desprender do corpo e olhando-me, ajoelhada, com as mãos para cima, uma Júlia diferente, mais forte, cabelos que pareciam ter escurecido, e a pele já não tão branca, muito mais parecida a de uma índia. Ouvi o som de passos. Ergui-me em nervosismo e êxtase. Era a hora. De um pulo, escondi-me atrás das árvores confiando que a energia ali confundisse Vânia. – Aquiete-se – sussurrei. E o mana ali presente escondeu-se sob a terra. Vânia surgiu, rindo como um louco, segurando pelo pescoço aquele que se passava por Bikoróti. Sua gargalhada reverberava na floresta. – Júlia, a fedelha intrometida. Achou mesmo que esse showzinho me enganaria? Que esse ritual bobo, e esse ser feito à imagem de Bikoróti me enganariam? Meu coração disparou. Vânia estava ali, o tempo todo, a nos espreitar. Assistindo a cada passo, apenas para rir depois de nossa tentativa.

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– A ideia era boa, pirralha – dizia meu inimigo. – Bikoróti me garantiu que Ypuré e aquele maldito canibal Kãwera, não a deixariam viva. E não só está viva, como agora é parte da minha linhagem. Ah! Que maldição essa! – Sua voz era de sarcasmo absoluto, e mesmo que ainda estivesse escondida, ele sabia que eu estava ali, ouvindo tudo, tremendo de nervosismo e tentando acalmar a respiração. A criatura que ele prendia não se debatia e nem parecia se incomodar em ser segurado como um boneco inanimado enquanto Vânia continuava a cuspir suas palavras. – Gastei tantos anos de minha eternidade apostando em Audrick, para vir você, vadia, destruir meus planos. Nós governaríamos esse continente. Nós! E tudo foi por água à baixo. Ao menos, não preciso trazer os matis de Angaretama para cá, afinal, não cumpriram com o acordo. Então aquele que se parecia com Bikoróti ergueu a cabeça em minha direção e encerrou: – Fiz minha parte, senhora. As folhas desprenderam-se e não existia mais manto. A terra esfarelou-se do seu corpo de uma única vez, e o esqueleto virou pó. – Acorde – falei despertando o mana. Só então meu inimigo pareceu preocupar-se. Seus olhos claros arregalaram-se na surpresa. A magia o prendeu ao solo, fazendo seus joelhos flexionarem por um instante. – Mas...? Ele não terminou sua fala. Eu saí detrás das árvores e da sombra. – Olá, titio. Vânia recobrou sua sobriedade e encarou-me. – Acha que vai me deter com esse truque infantil? ­Eu assisti cada parte de seu ritual, pirralha. Eu vi e sei que não há poder nele. Eu posso sentir. – Não, não, não, titio. – Sorri. – Não com esse espetáculo. O verdadeiro poder da Condessa, não está aqui – falei tendo as mãos para trás, para que ele não visse o movimento que fazia com os dedos, puxando a energia como linhas para as minhas mãos. A natureza soprava em meu ouvido o que precisava fazer. – Você não estava à espreita em nossa casa? Não viu como fiquei de cama nos últimos sete dias? Sete. Esse número diz alguma coisa? Sete dias em que mentalmente eu repetia e evocava o verdadeiro poder da Condessa. O espetáculo, Vânia Rachmanninoff, foi só para te entreter. Dias de Chuva |

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Abri os braços jogando-os para frente, levando mais fios de magia em sua direção, feito cordas se prenderam em seus braços por um lado, e do outro ligaram-se às seis árvores enfeitiçadas. Vânia esbravejou e balançou com força para tentar escapar. No mesmo instante uma pontada forte fez-se em minha têmpora. Voltei à reza e tive medo que a força psíquica que precisava para segurá-lo não fosse o suficiente vinda apenas de mim. Eu podia ver minhas veias saltando sob a pele de meus braços e mãos estendidas e sentia o suor que escorria de meu rosto. Fechei meus olhos sabendo que não poderia desistir, agora, era a vida dele ou a minha. – Sua puta! – gritou ele. – Como ousa me enfeitiçar? Me prender? Eu não dei atenção para sua ofensa. Preferi concentrar-me nas palavras que me vinham à mente. Para que as trevas nesse corpo não fiquem. Para que as trevas a ti não governem Expulso a fera que há em ti E que a natureza drague teu mal mais profundo. Um grito de dor ganhou os céus. Meu inimigo foi ao chão. De joelhos tinha a respiração ofegante, seus olhos brilhavam vermelhos e sua boca abria-se em uma carranca deixando sua voz gutural ganhar a mata em um segundo grito. Ele cuspiu um punhado de sangue escuro no solo encantado e voltou seus olhos para mim. – Mas o que pensa que está fazendo, vadia? Eu continuei ignorando-o. Para que as trevas a ti não governem Como a cera se derrete ante o fogo Como o fogo se extingue ante a chuva E que a natureza drague teu mal mais profundo. Rachmanninoff bufava e urrava, transtornado por estar em desvantagem. Seu corpo começou a tremer e o ar a nossa volta tornava-se mais quente. Eu previ suas ações. Sua veste rasgou enquanto os dois pares de asas negras surgiam e aumentavam de tamanho. Sua face contorceu-se na face do demônio. – Vai morrer, maldita! – ele gritou enquanto as correntes de mana que o prendiam às arvores eram arrebentadas, assim como a energia feita no solo deixava de ser suficiente, permitindo que Vânia avançasse alguns passos na minha direção.

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No mesmo instante me ajoelhei e encostei as mãos no chão, um impulso, um instinto, fez-me mudar as palavras do ritual. Deusa, rainha, mãe Condessa, guerreira, sábia. Dê a esta tua filha Mínima parcela de teu poder. Rachmanninoff agora transformado em fera, vinha em minha direção, expelindo fogo pelas narinas e deixando o cheiro de fumaça em nossa volta. Eu de mãos e joelhos ao chão, murmurava as novas palavras que me vinham do coração. Naquele instante eu temi. Temi estar sozinha, temi ter sido tola em acreditar que venceria Vânia e seria derrotada. Deusa, rainha, mãe. Condessa, guerreira, sábia. Imploro que dê a esta tua filha Uma mínima parcela de teu poder. Um baque. Abri meus olhos enquanto ergui a cabeça. Vi Audrick, também feito um demônio, pressionar Vânia contra uma grande árvore, para no segundo seguinte, ser arremessado para o outro lado. Mas rapidamente, Audrick voltava a investir, dando impulso contra a árvore atrás de si voou diretamente para seu tio, tendo na mão uma espada com a qual o golpeou em diagonal. Senti-me reanimar com a atitude de meu marido, mesmo que não me lembrasse dele ter trazido tal arma branca. Confiei que ele atrasasse Vânia, enquanto eu fazia o que era preciso. Deusa, rainha, mãe Condessa, guerreira, sábia. Vânia esquivou-se uma, duas, três vezes, enquanto a espada de Audrick ricocheteava e tilintava ao chão. Deusa, rainha, mãe Condessa, guerreira, sábia Dias de Chuva |

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E outra vez Audrick investia contra seu tio, mas então a mão firme de Rachmanninoff, coberta de escamas vermelhas, parou a espada no ar. Imploro que faça em mim Parte de seu poder e vontade. Todo o chão tremeu. Os céus escureceram num segundo, junto ao som de um trovão. A lua escondeu-se nas nuvens cinzas. Os galhos das árvores estalaram como se tivessem vida enquanto uma ventania passou por nós. Vários rostos translúcidos saíram das seis árvores e o canto da mata voltou. Novas correntes de mana surgiram agarrando meu inimigo e jogando-o contra o chão, ao mesmo tempo em que um tufão empurrou Audrick para longe. O Ovo do Dragão aqueceu meu peito e brilhou, dizendo que meu instinto estava certo. Eu precisava expor o demônio de Vânia ao máximo, para exorcizá-lo de fato. – Eu tenho muito mais truques, Vânia! – disse enquanto erguia-me. Minha pele tornava-se branco azulada enquanto os espasmos me percorriam, expandindo ossos, enrijecendo músculos, rasgando a pele das costas de onde minhas asas cinzas de pele e ossos nasciam. A coluna vertebral estralou cada vértebra do quadril ao pescoço, e quando a mutação ganhou minha nuca, o frio percorreu meu corpo. Vetores como espectros saíram da parte posterior de minha cabeça. – Já ouviu falar que o inferno é gelado, Vânia? – gritei. No mesmo instante corri em sua direção e com a força de meus novos músculos pulei em um giro deferindo um chute na sua face, fazendo-o cair. Ele, com um de seus tentáculos de sombra, segurou-me pela perna jogando-me contra uma árvore. Tudo então era instinto, sem que eu soubesse o que ali era raciocínio próprio ou atitudes da criatura em mim. Não era preciso pensar sobre o que fazer, agindo apenas como se a vida toda eu soubesse como lutar. Quando senti o impacto de minhas costas, com um dos braços de energia da nuca, segurei seu tentáculo congelando-o por completo. Assim que ele me soltou peguei impulso com um bater de asas e lancei-me em sua direção acertando seu rosto com uma cotovelada fazendo seu pescoço ir para trás em um giro lateral. O feitiço que havia feito com as runas e escrituras no chão, junto a energia vinda das árvores enfeitiçadas, limitava as investidas de Vânia a um perímetro de

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não mais que um metro e meio, o que deveria mantê-lo mais na defensiva, por exceção de seus tentáculos. Mas ele se recuperou rápido e logo outro de seus vetores me agarrava pela perna e outro enrolou-se em meu tórax e pescoço no intuito de, com a força de trações opostas, abrir-me ao meio. Porém, sentir dor, já me era algo familiar. Vindo entre as árvores, Audrick voltava investindo contra seu tio, que no instinto de se proteger, cobriu-se com uma de suas asas. Audrick desceu sobre ela a espada, rasgando a quase por completo. A dor fez meu inimigo soltar-me, porém, ao cair de encontro ao chão, senti-me fraca, como se Vânia tivesse drenado metade de minha energia. Ele gargalhou em seguida. – E este, é meu truque, fedelha. – Ele parecia mais forte, seus olhos recuperavam o brilho ardiloso de outrora. Todos os seus tentáculos voltaram para Audrick, erguendo-o no ar, vi suas características demoníacas desaparecerem, dando lugar ao seu corpo humano. Ele tremeu por alguns instantes e fechou os olhos. – É uma pena que vocês me obriguem a fazer isso. – E então, Audrick foi ao chão, desacordado tento a pele pálida, agora entregue a um tom cinza quase cadavérico. Meu coração disparou. Não acreditei em nenhum momento que Vânia fosse capaz de algo assim. – Você o matou? – gritei. – Você o matou? – Não, fedelha. Ele eu não matei. Mas as coisas serão diferentes com você. Vi, num segundo, seus tentáculos voltarem-se contra mim, e feito magia, pararem no ar. A expressão de Vânia congelou e todo o tempo pareceu estagnar e um cheiro conhecido surgiu. Um odor do lugar que me fizera sentir em casa, com as plantas molhadas, o cheiro de flores e o ar limpo e encantado de Angaretama. Fechei os olhos acreditando que seria meu fim, e talvez eu tivesse um lugar naquela terra, onde uma antiga versão de mim diziam ter existido. Mas eis que como visagem translúcida ela surgiu: Amanara altiva, e um segundo depois, éramos uma. Meus músculos tornaram-se mais fortes, minha visão ampliou-se. Senti-me muito maior. Suas lembranças, que eram minhas, pareciam se revelar num emaranhado de sangue, guerras e mortes. Seriedade, destreza, fúria e precisão eram as palavras que poderiam descrever quem ela foi. Quem eu havia sido. E a fé e crença fizeram sentido como nunca: eram a mesma coisa, confiança tão verdadeira e forte que se assemelhava a fidelidade e entrega a um ser superior, ou a uma causa e razão superiores. Ações sem espaço para dúvidas, sem vazão para hesitar nem mesmo para temer. Amanara era essa coragem de fazer tudo, sem pestanejar, por algo que se crê com a alma. Dias de Chuva |

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Quando abri os olhos, a destreza que antes eu achava grandiosa, ficou para trás diante minha nova capacidade. Como um bicho do mato, esquivei-me de todo os seus tentáculos, aproximando-me de Vânia, indo direto para seu rosto. Num segundo tinha sua cabeça entre minhas mãos, e gelei-a, tal qual a força do demônio. Senti sob minhas mãos o crânio de Vânia estalar. Seus olhos arregalaram-se e seu corpo tremeu. O Ovo do Dragão em meu peito reluzia e balançou no ar frenético. Então minha atenção foi para o peito de Vânia que erguia e baixava exalando calor. Com os pés em seu peito empurrei-o ao chão enquanto girei num salto na direção contrária. O peito de meu inimigo parecia queimar. Eu não poderia esperar sua reação, e sim aproveitar que ainda estava tonto. Fechei meus olhos por um instante e a imagem de Amanara voltou à minha mente. Da minha garganta de demônio, surgiu o grito dela, que agora era também meu. Não havia distinção. Ergui meus braços na posição de um arqueiro. E o mana desenhou-se no ar como o arco e a flecha. – Curare, curare. Mu~déng gwai mati31. E dezenas de flechas de mana foram disparadas feito uma chuva vinda de trás de mim, cravadas em cada parte do corpo de Rachmanninoff, paralisando sua face, suas pernas e seus braços. As asas eram as únicas a debaterem-se loucamente no ar, enquanto a magia delas sumia. Finalmente parei. Vânia esforçava-se por levantar, mas era inútil. Mal conseguia manter-se sobre os joelhos. Seus olhos repletos de ódio enxergavam um novo “eu”. – Quem é esta? – No seu grito havia raiva e indignação. – Quem é essa arqueira em você, vadia? – Lembra-se da Amazônia, Vânia? – respondi, ouvindo minha voz mais grave e firme do que jamais fora. – O meu maior sofrimento? A dor da carne sangrando, queimando, sendo arrancada por Kãwera, onde fui enfeitiçada por Ypuré? Você, Vânia, levou-me para o centro do meu aprendizado, para minhas raízes. Para meu passado. – Não! – ele gritou cheio de ódio, mas sua voz não teve a força que desejava. Sua garganta quase paralisada pela energia das flechas de mana. Eu andei em sua direção e, com a mão em sua têmpora, entrei em suas lembranças. Vânia estava abraçando Dimitri, como um pai deveria fazer, mas seu olhar ainda era pérfido. Ele foi até Salvador para raptá-lo. Mas antes disso, Vânia tomava um chá feito por Miriam que emanava uma força maior do que eu já havia visto 31

Curare, Curare (nome de um veneno paralisando utilizado em flechas). Prenda este demônio.

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nela. Ela fazia um encantamento que eu conhecia muito bem, que dificultava e turvava a leitura de mentes. O chá, a fala dela, sobre os demônios da Amazônia. A bruxa e seus truques, o induziu a saber de templo indígena, guardado por portais. Ela adivinhou que ele tramava algo, e o levou a crer que não haveria maiores provações a um ser humano do que viver ali, em Angaretama. – Miriam, não é? – gritei. – A bruxa perspicaz sempre à frente de seus atos, o convenceu, por um simples feitiço no chá, a levar-me de encontro aos meus antepassados. Seu rosto contorceu-se em fúria e com o restante de sua força cuspiu fogo e gás feito um dragão, criando sob o chão da clareira fumaça semelhante ao gelo seco. Bati minhas asas e ergui meus pés do chão. Com as mãos em reza, proferi o exorcismo. – Ergo, draco maledicte et omnis legio diabolica, adjuramus te per Deum. – E retomando o exorcismo desferi inúmeros chutes na sua face, tão rápido que eu mesma tinha dificuldade em acreditar. Era Amanara que lutava. Eu subi no seu rosto, quebrando seu nariz com um giro apoiada sobre meu calcanhar, espirrando sangue para todos os lados. E numa última atitude de desespero, ele segurou-me com todos os seus tentáculos, erguendo-me enquanto também se levantava. Vi Audrick despertando, e próximo a seu corpo, a espada. Um dos vetores de minha nuca trouxe a espada até mim e ao pegá-la, cortei todos os tentáculos de meu inimigo e o vi perder a magia diante a dor, mas não voltei ao chão. Meus braços de energia saídos da nuca puseram-se a segurar Vânia, que ajoelhara no chão. Assim, mantive as mãos livres para reiniciar o encantamento. Ao me concentrar, todo meu corpo, com exceção dos vetores saídos da nuca e as asas, voltou ao seu estado humano. Fechei meus olhos e repeti o exorcismo. Novamente a força, feito corrente elétrica, percorreu meu corpo. Repeti o mantra. O suor escorria. Era a hora. – Ergo, draco maledicte et omnis legio diabolica, adjuramus te per Deum. Expulso-te! – Um de meus vetores buscou atrás das árvores a adaga que usara em parte da preparação do ritual, e trouxe à minha mão. – Ergo, draco maledicte et omnis legio diabolica, adjuramus te per Deum. Expulso-te! – Atirei a adaga no estômago de Vânia, acertando seu chacra do plexo solar, responsável pelo ego e vontades. Tudo ao nosso redor pareceu tremer. Nuvens desceram do céu em espiral, e criaram às costas de Vânia um portal de onde urros e gritos de agonia podiam ser ouvidos. Dias de Chuva |

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Uma força espectral em forma de monstro com garras e dois pares de asas desprendeu-se do corpo de Vânia levando consigo a adaga que eu cravara em meu inimigo. A criatura, enquanto era sugada tentava, em vão permanecer ligado a Vânia, batendo suas asas em minha direção. – Vai, criatura. Expulso-te. Tal corpo não há mais de servir de abrigo ou manter-se cúmplice de suas vaidades. Eu que te domino. Eu que te conheço. Pela força das escrituras, do mana, eu o envio ao inferno. Vai-te. Pela força dos ancestrais da magia. Pelo ritual pagão vieste, pelo ritual pagão retornarás a teu senhor, a Besta. O grito do demônio foi extremamente alto, pensei que arrebentaria nossos ouvidos. Até que o portal foi fechado, cuspindo a adaga, que tilintou no chão ao tempo que as runas brilharam e apagaram-se. Eu, exausta, cai. Olhei surpresa para Vânia. Acreditava que, ao exorcizá-lo, ele apenas se tornaria mortal, porém, ele estava fraco, e sua aparência, que antes era de um homem com cerca de cinquenta anos, agora fora recoberto de rugas, com dedos atrofiados, e cabelos brancos. – Vânia – disse Audrick que começa a erguer-se – já era muito velho – sua voz e respiração ainda falhava – quando fez o pacto, acredito que o elixir não tenha o mesmo efeito sem a possessão. – Então é isto? Um exorcismo? – Vânia ria, num misto de raiva e nervosismo. – Como pensou nisso, Júlia? – Eu também pensei em outra coisa – falei, segurando Ovo do Dragão. – Você vai encontrar seu fim, Vânia! – gritei. Mas de súbito, Audrick segurou-me. – Não faça isso! – ele disse me segurando entre seus braços. – O que... O QUÊ está dizendo? – gritei enquanto ele me soltava. – Tínhamos um acordo. A minha vingança! Eu estava surpresa e indignada. Faltava muito pouco, e Audrick ia mais uma vez contra mim. – Nós não faríamos vingança, e sim justiça. – Ele segurou meus ombros. – Olhe para ele, Júlia. Não deve ter mais que míseros cinco anos de vida mortal. Acabou. – Qui effusus est32! Só ouvi a voz rouca de Vânia e depois, uma forte dor abaixo da costela. 32

Verter, latim.

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Caí. Num baque surdo, já perdendo os sentidos. Quando abaixei a cabeça, vi que tinha sido atingida por minha adaga que agora brilhava em vermelho vivo, drenando minhas forças, enquanto meu sangue escorria, manchando o vestido branco e o grande manto. – Pode ter expulsado o demônio de dentro de mim, mas não me destruiu. – Audrick segurou Vânia pelo pescoço, prensando-o contra o tronco de uma árvore. – O que fez com ela? O que fez com ela? – ele gritava – Responda! – Eu não paro de lutar, sobrinho. – Sua voz era rouca e baixa, mas ainda conseguia ouvi-lo, mesmo que aos poucos, sons e imagens começassem a turvar. – Esse é meu troco. – Responda! O que fez com ela? – Só estou drenando seu poder vital. Se você tirar a adaga, a energia vai escorrer, escorrer, escorrer. Se não tirar, drenar e drenar. Ela pode não morrer, mas vai sofrer muito. – Maldito! – Audrick o apertava ainda mais. – Agora você tem muitos motivos para me matar. Então faça – sentenciou, Vânia. Mas não foi isso que aconteceu. Audrick largou-o e abaixou a cabeça por um instante, para então voltar a encará-lo. – Não vou fazer isso – o que ele disse me enraiveceu. – Eu não mato mais. – Você não morrerá, Vânia! – dizendo isso me ergui, ainda com a adaga sob a costela, vertendo sangue. – Não por minhas mãos. Segurei o Ovo do Dragão. Concentrei-me na visão do Angaretama. Pensei em suas águas mágicas. Wasiry me dera um poder maior do que eu poderia querer. Desejei com toda minha força, de todo coração e alma, que Vânia sofresse. Eu havia feito um trato, e o pagaria. Enquanto me concentrava, todo o ar em nossa volta mudou, ganhando forma, curvas, como ondas, agitando-se feito água. – Vânia Rachmanninoff – minha voz saia como se fossem várias –, você provocou uma força que desconhecia em mim. O Ovo do Dragão ergueu-se e brilhava cada vez mais. Eu fui envolvida por seu poder e flutuava. O ar, que talvez já não mais ar fosse, passou a girar em nossa volta, feito o meio de um tufão. Árvores balançavam junto a suas folhas. A adaga saiu do ferimento e foi tragada por aquele movimento à nossa volta, levando um rastro de meu sangue. – Você, Vânia Rachmanninoff – eu dizia –, terá seu lugar na eternidade tanto desejada. Dias de Chuva |

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Tudo sobre nossa cabeça simplesmente desapareceu, dando lugar a nuvens de chuva cheias de raios. Tudo ali oscilava na luz e sombra de relâmpagos. Os trovões surgidos eram enlouquecedores. De dentro da profusão de nuvens uma boca enorme surgiu, bufando ar quente através de grandes narinas e um focinho repleto de escamas. Então apareceram seus olhos. O dragão! O mesmo que num sonho de menina havia trazido meu pai de volta para casa. Eu o trouxera para a realidade, pois era a ponte que levaria Vânia para seu destino. A grandiosa serpente desceu pelo movimento circular que havia à nossa volta. Abriu sua bocarra engolindo Vânia. Tudo explodiu num fogo azul, cegando-me por instantes. Ao ter a visão de volta, já com os pés no chão, vi o dragão subir aos céus entre as nuvens tempestuosas. – Mostre-me Angaretama. Sussurrei a sentença na direção do Ovo do Dragão que abriu um feche de luz à minha frente. Era a mesma árvore na qual fora presa por Ypuré e Anamane. Ali, o grande dragão abriu sua boca e deixou cair o corpo velho de Rachmanninoff. Ele pôde ver o que acontecia e os cipós e galhos da grande árvore, Mirá’gwéra, o prenderam. Ele gritou e gritou, enquanto enfim lágrimas caiam de seus olhos. Majestosamente, Kãwera pousou ao seu lado e o examinou, depois murmurou na sua língua de visagem palavras que não conhecia, mas entendi. “Aceito o presente, Amanara.” A visão de Angaretama se apagava, as árvores ao meu lado surgiam e o dragão vindo do céu, voltou para dentro de meu colar. Quando a visão de Angaretama estava quase no fim, a voz de Wasiry surgiu junto à sua imagem: – Por sua escolha – ele dizia com sobriedade –, ele viverá. Kãwera devorará cada parte dele, e outra e outra vez, os espíritos de Angaretama o trarão de volta à vida, até que seu espírito se desgaste no tempo e deixe de existir. – Fechei os olhos e tive na mente a visão nítida deste mestre. – Ainda voltaremos a nos ver, guerreira. Abri os olhos, e não havia nada além da mata, agora era banhada pela tempestade. Caí ao chão, sentindo a dor provinda do ferimento da adaga. Audrick correu na minha direção. – Eu... ti... tive... que fazer... isso – murmurei. Havia gastado o resto de minhas energias. – Eu entendo – ele sussurrou-me ao ouvido, acariciando meus cabelos. – Eu não podia...

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Calei-o, colocando minha mão sobre seus lábios. Não queria justificativas. Estava fraca e precisava de silêncio. – Eu sei... que você... não mata mais – falei. – É... uma linda escolha. – Tentei sorrir, mas não sei se pude. Naquele momento, eu o entendia e aceitava sua escolha. – Mas eu não sou boa... como você. – Eu olhava os olhos cinza. Havia uma nova vida ali. Muito mais doce e pura. Como eu não tinha visto antes. – Eu tinha... que fazer o que fiz. O barulho da tempestade e dos trovões era cada vez mais elevado e fazia com que Audrick precisasse falar muito alto, mesmo tão próximo a mim. – Tudo bem, tudo bem. – Audrick tentava me acalmar. – Agora preste atenção, respire fundo e se concentre no que eu disser. – Eu... eu vou morrer, Audrick? – perguntava sem saber se queria a resposta, enquanto o barulho da chuva aumentava. – Não, você não vai morrer! – ele precisava falar muito alto para que eu o ouvisse no meio da tempestade. – Vai dar tudo certo. Fiz que sim com a cabeça, e senti nos lábios minhas lágrimas salgadas. – Agora respire fundo. Apenas respire fundo! – ele gritava. Senti o beijo quente e macio de Audrick em minha testa, e depois, um toque muito leve de seus lábios nos meus. Eu fechei os olhos, já não podendo manter-me desperta enquanto ouvia o som da chuva e sua força sobre nós.

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Parte 8 O VOO


Capít ulo 31

Para sempre

Acordei e a primeira coisa que notei foram as dores, músculos doloridos, a ferida quente sob a costela e a forte dor de cabeça. Fechei outra vez os olhos, tentando organizar as ideias. Havíamos vencido Vânia, e depois? Lembrava vagamente de Audrick ter recorrido à sua espada, com a qual feriu a mão, levando seu sangue até a ferida em mim. Depois, eu em seu colo, ouvindo repetir palavras novas, dando-me força e então tudo ficou branco. Na cama, apalpei o lugar em que deveria estar a ferida da adaga, agora apenas uma profunda cicatriz. Olhei o teto, sem saber o que eu deveria ainda a Audrick, depois daquela cura. Ali, também começava a pensar o que significava ser a reencarnação de Amanara e o mais importante, como seria nossa vida depois de conseguir minha vingança contra Vânia. Mas nada disso aliviava o peso da morte de minha família. Eu também entendia que era o mínimo que eu precisaria fazer para ter paz. Agora, eu precisava descobrir quem eu me tornara enquanto domum e saber mais sobre minha vida regressa. Eu deveria voltar ao Angaretama e procurar Wasiry, mesmo correndo o risco de ouvir e ver a perdição à qual eu mandei meu maior inimigo? Havia muito com o que me preocupar antes. Segundo o contrato feito para me tornar quem eu era, eu continuaria matando? Como pagaria minha dívida de agora em diante? Poderia aprender muito com Audrick e ser melhor. Meu coração ficou apertado ao lembrar de suas últimas decisões. Depois de tentar me ajudar com sua energia, lembrava-me vagamente dele ter nos levado até nosso carro para retornamos para casa. Audrick... aquele que demorei anos para conhecer, havia mudado. Poderíamos enfim viver em paz? Incomodada, virei-me na cama e vi, sob o criado-mudo, um invólucro de vidro transparente, maior na parte de baixo, e estreito ao aproximar-se da ponta.

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Dentro, o elixir verde. Sentei-me, peguei o frasco junto a um bilhete repousado sob ele: “Bom dia! Com amor...” Soltei o bilhete sobre o móvel, bebi do elixir e só então meus sentidos ficaram plenos. A dor diminuiu no mesmo instante, mas não sumiu por completo. Então, do nosso quintal, ouvi um som conhecido. Pensei nele por um segundo tentando lembrar o que seria. Quando entendi, saí da cama, abri a porta do quarto e desci as escadas o mais rápido que pude. Aquele som nunca seria esquecido. O ar sendo sugado violentamente, enquanto uma possível eletricidade faiscava e os gritos inumamos de dor e sofrimento aumentavam. No jardim, saí para o canto das flores e nada mais restou dentro de mim... Audrick, ajoelhado no chão, tinha as roupas rasgadas e os cabelos esvoaçando, sugados pela energia do portal às suas costas. No chão, um novo círculo de runas. Pensei em correr até Audrick, mas detive-me. Apenas ele poderia ter feito o círculo, apenas ele poderia ter aberto o portal. Foi tudo muito rápido, em segundos, meu raciocínio mal era aceito, quando o demônio de asas flamejante, cuja grande cobra era presa na nuca, deixava seu corpo e era sugado direto para o portal e em instantes, tudo desapareceu. Minhas lágrimas desaguaram de uma vez enquanto eu acreditava que ele definharia para a velhice e para a morte. Segurei a respiração só esperando que acontecesse algo parecido com o que aconteceu a Vânia, mas, por fora, Audrick ainda era o mesmo. Ainda ajoelhado, de cabeça baixa tendo os cabelos caídos sobre a face, Audrick arfava, não sei se por dor ou alívio. Corri até ele, e quando ia abaixar-me para abraçá-lo, seu corpo ergueu-se sozinho, até que seus pés descalços deixaram o chão. Ele flutuava enquanto seu corpo inteiro iluminou-se. Audrick mantinha os olhos fechados e não sei se percebera a minha presença. As tatuagens saíram de seu corpo como se descolassem e fragmentaram-se em cacos translúcidos e cintilantes, até que aquela poeira etérea se espalhou entre os arbustos e flores. Audrick desceu os centímetros que o separava do chão e a gravidade voltara a fazer efeito. Ele virou-se para mim, com o semblante tranquilo, sorriu iluminando seu olhar e abraçou-me cheio de amor e ternura. Eu não pude retribuí-lo, estava aturdida, confusa, indignada, triste. Sentia-me traída. – O que você fez? – murmurei em seu ouvido, – C... Como pode? – Eu tremia junto à minha voz. Ele soltou-me do abraço e segurou minhas mãos. – Júlia, eu... eu tive que fazer. O ritual que descobrimos, pode nos livrar da besta, podemos ter uma vida normal... – Ele afagava meu rosto, como se me revelasse a mais bela surpresa. – Podemos recomeçar. Dias de Chuva |

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– NÃO! – gritei afastando-me dele. – Você não sabe se quero ter uma vida normal. – Minha respiração ofegava. – Depois de tudo que passamos, depois de tudo que EU passei. – Júlia, me escute, meu amor. – Ele tentava me abraçar outra vez. – Foi em um sonho, e você sabe que domuns nunca sonham... que eu descobri que deveria fazer isso. Eu não sou mais aquele demônio, e você também não precisa ser. Ele segurou meu rosto e me deu uma série de beijos na face, apressados, ansiosos, cheios de medo. Ele tentava me convencer do seu amor. E depois, respirando fundo, encostou sua testa à minha. – Neste sonho, eu vi, eu ouvi, que muitas pessoas precisam de mim, preciso voltar à minha terra, recomeçar por lá. Júlia, fiz muito mal e preciso resolver esses erros, mesmo que com seus descentes. – Ele ficava mais calmo e equilibrado. – Nós vamos recomeçar lá e moraremos em minha casa na Alemanha, você vai se encantar. Vou te ensinar tudo que aprendi, e você vai se libertar desse carma. Juntos, vamos estudar, nos melhorar, quem sabe possamos ter filhos? Não mentirei para você, acho que nunca mais poderemos ser humanos, mas não seremos mais esse monstro. Eu ouvia impassível sua declaração. – Você, Júlia, que com todo seu amor, sua força e carinho me trouxe de volta para a luz. Desde o primeiro dia em que vi seus olhos tristonhos, eu pude ter a esperança de um novo caminho. – Ele acariciava meu rosto. – Seu amor, Júlia, que é o responsável por essa mudança. Tudo que eu vivi ao seu lado, e todo o sofrimento diante do que aconteceu à sua família, mudaram-me. Eu não sou mais o mesmo... E só posso querer recompensá-la. Eu tenho tanto que aprender, tenho tanto ainda para te ensinar. Nós vamos para a minha terra e farei você muito feliz. Sorri. – Muitos homens, durante muitos séculos buscaram a eternidade, e tantos outros antes destes a ambrosia almejavam. Mas, é preciso dizer que só existe um Deus, e todos os demais ou são anjos, ou demônios. Os anjos são os escolhidos por Ele – repeti parte do que ele me disse, quando me transformou –, assim como você! – O que você quer dizer? – Você não percebe, Audrick? Seu sonho, suas escolhas. – Eu olhei nos seus olhos, que já não eram os mesmos, e acariciei seu rosto. – Veja só, apesar de ter sido exorcizado, ainda é o mesmo... por fora... nenhuma ruga a mais. Eu vi, Audrick, a aura de luz que o envolveu. Agora você é uma pessoa que precisa pregar a paz – afastei-me dele –, mas eu não sou. Você é um protetor que carrega suas crias dentro de si. Talvez seja verdade, o grande capricho que você tinha despertou a pessoa boa que, talvez, você sempre estivesse predestinado a ser. E

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eu sou sua cria. Você me adotou, me criou, me educou ao seu modo. – Respirei fundo, buscando coragem para o que diria. – Mas já chega. Minha voz saiu mais séria do que pretendi. Audrick alterou seu semblante, enquanto entendia perfeitamente o que eu queria dizer. Uma lágrima escorreu por seu rosto e assim que ela chegou aos seus lábios, ele me abraçou com força. – Não me diga isso! Você é tudo que eu mais amo, é quem eu sempre procurei. – ele falava acariciando minha nuca. – Audrick – e comecei a falar as verdades que nunca aceitei –, eu sou sua aluna, sua criatura, sua obra de arte. Mas eu não quero mais, não posso mais. – Então eu chorava. – Eu esperei por você toda a minha vida, eu melhorei, eu estudei, eu sou tudo aquilo que você fez e precisou. Mas eu cansei. Eu preciso descobrir quem eu sou, o que eu posso ser longe de você, sem sua influência, sem ter que lidar com a necessidade de alcançar e superar suas expectativas. Você foi minha salvação, mas também minha queda, minha desgraça... eu o agradeço, e também o perdoo – estava afastando-me do abraço dele, e tentei engolir o choro –, mas para mim já basta. Não vou segui-lo em sua peregrinação, não vou deixar o meu país, não por você. Eu não sei mais quem eu sou. – Soltei-me totalmente do seu abraço e enxuguei minhas lágrimas. – E não sei mais se existe amor em mim para você. Ele parecia não querer acreditar. Houve um grande silêncio entre nós, parecendo selar a separação. – E se eu... se eu ficar com você? Abracei-o forte, era o nosso fim, e por mais que doesse, sabia que era o certo a fazer. – Não é o lugar, Audrick, são as escolhas. Eu não posso mais ser apenas a sua aprendiz. Hoje você é luz, Audrick, siga seu destino. Eu sou chuva, e vou descobrir meu próprio caminho. ///

– Você iria gostar da Europa. – Audrick, sentado no banco do passageiro do nosso carro, olhava-me com meio sorriso. – Talvez eu vá lá algum dia – respondi também sorrindo. Íamos em direção ao aeroporto, e nenhum dos assuntos durante a viagem parecia durar. – Talvez eu volte para o Brasil – ele completou. – Eu não sei bem onde vou parar... tenho tanta coisa para buscar... para descobrir – eu falava sem querer olhá-lo, pois a escolha de não o seguir ainda me deixava triste. Dias de Chuva |

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– Tem razão. – Ele também tinha um tom vago na voz. – Condessa das Almas, quem você foi em sua outra vida... bastante coisa mesmo. – Ele ficou quieto por algum instante. – Pretende ir para o Angaretama? Você poderia ter me contato que o pajé presentou com um modo de entrar lá quando quisesse... – Ele parecia ressentido com aquilo. – Copiei alguém – falei ainda olhando pelo vidro, enquanto dirigia – que gosta de guardar segredos. Depois de nossa conversa, havíamos combinado algumas coisas, tentaríamos não nos referir à criatura que habitava em mim, como demônio, o que fora mais um pedido dele, na verdade. Manteríamos contato através de cartas, mas só quando fosse muito necessário. A mansão e o carro ficariam em meu nome, e eu decidi por vender a casa e ficar apenas com o automóvel. Os livros, eu levaria para a casa na colina, assim como a maioria dos móveis e tudo que me fosse necessário para fazer o elixir ou estudar. Mas não dei certeza a ele se ficaria morando lá. Também pretendia ir à última casa onde morei com minha família e reformá-la, imaginando que a dor que eu ia sentir vivendo ali, seria insuportável, porém necessária. Não iriamos nos separar brigados, ele entendia bem minha escolha, apesar de garantir ainda sentir amor por mim, e que jamais me esqueceria. Disse que se concentraria na sua mudança. Eu já não garantia nada. – E o que mais pretende fazer? – ele me perguntou, colocando a mão esquerda sobre minha coxa, tentando um último afeto. – Eu não sei, Audrick. Olhei para ele sem saber se reprovava aquela aproximação. Doía demais vê-lo partir. Eu o amava ainda, de um certo modo. Havia me acostumado com a franja caída, o rabo de cavalo e os olhos cinza. Havia me familiarizado aos seus lábios e braços que eram meu porto seguro. Ia sentir uma falta imensa. Sabia que choraria durante muitas noites. – Recomeçar – falei por fim –, talvez eu arranje um emprego. Pensei em voltar a pintar, ou dar aulas de idiomas... já que não preciso me preocupar com dinheiro, posso ser uma artista boêmia. – Demos risada juntos. – Você pretende... – ele ficou pesaroso por um momento – matar? – Isso eu não sei – disse, sincera. – Eu não quero fazer isso, mas se não tiver outro modo, é provável que eu vire uma justiceira como você era quando me conheceu. – Ficamos em silêncio. Eu engoli outra verdade e o olhei. – Vai ser difícil não seguir nenhum de seus passos. Já no aeroporto estacionei o carro.

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– Eu vou sentir sua falta... Júlia – ele falou sério, penetrando seus olhos em mim, como no dia em que nos vimos pela primeira vez. – De uma forma que talvez você nunca consiga imaginar. – Eu também vou sentir a sua – falei, porém baixo. Sabia que à menor reação dele, se eu não fosse firme, largaria a minha decisão e iria embora ao seu lado, colocando meu futuro em suas mãos mais uma vez. Ele abriu a mochila e me entregou seu livro de aprendizado, onde registrou muito do que descobriu para controlar a Besta. Então pegou uma caneta no porta-luvas e escreveu na última página do caderno um nome, um endereço e um telefone. – Quem é este? – Um amigo – ele respondeu. – Se acontecer qualquer coisa com você, se tiver sonhos estranhos, se sentir coisas que possam ir além da sua compreensão, ou se sentir perdida, e... – ele fez uma pausa – não quiser me procurar, peça ajuda a ele. É um errante, assim como você é agora. Sem mestre, descobrindo sozinho como lidar com essa condição... assim como você nasceu dotada de fé e crença, ele é um visionário. Ele sabe de coisas que vão acontecer e que caminho seguir. A ajuda dele pode ser útil. – Mas por que nunca me disse nada sobre ele? – Inicialmente, eu não queria que você soubesse que existia essa opção, de viver sem aquele que a tornou um domum, principalmente porque quem faz essa escolha tem uma vida muito difícil. – Ele segurou minha mão e deu um beijo. Acariciou-a por um tempo, perdido no que pensava. – E depois tanta coisa aconteceu. Você foi mudando tanto... – Você também mudou – o interrompi. – Tem razão. – Ele respirou fundo. – Eu vou mesmo sentir sua falta, Júlia. Peguei o caderno de suas mãos: – E eu vou sentir a sua. Trocamos um leve beijo, ele abriu a porta do carro e se foi. Audrick levou parte de mim com ele. Meu coração ficou gelado, criando um buraco no peito. Minhas pernas tremeram e meus olhos encheram-se de lágrimas. Tinha que ser assim. O Ovo do Dragão reluzia, bem pouco, mas ainda indicava que eu fazia o certo... ou o que eu mais desejava. Eu o amava ainda, e queria ter tido força para dizer antes dele ter saído do carro, mas isso poderia fazê-lo se declarar outra vez para mim, tornando tudo mais difícil. Minhas mãos suaram frio. Mordi os lábios sentindo uma solidão enorme. O vidro do carro estava embaçado e não sei se Audrick virou-se. Fui despertada pelo som de uma buzina atrás de mim, de alguém que deveria querer a vaga para liberar um passageiro. Dias de Chuva |

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EpĂ­logo



– Resolvi tudo com presteza. A venda da casa, o transporte dos móveis e livros, a doação do dinheiro que consegui com a venda da mansão para a ONG de Miriam, a reforma da casa dos meus pais... – Olho para meu ouvinte atento, a quem só confiei falar depois de ter visto tatuagens como as minhas em seus pulsos. – Eu sei que pela maldição sempre terei proventos, mas resolvi dar aulas particulares para me sustentar. Voltei a pintar, e retomando os contatos da faculdade, tenho exposto algumas obras em galerias. Isso tudo tem quatro anos. – O homem de cabelos e barba negra está sentado à minha frente no café e só agora me pergunto o motivo de ter lhe contado toda a história em vez de apenas ir direto ao ponto. – Aqui está ele. – Abro a bolsa e coloco sobre a mesa o livro que contém os registros de Audrick. – Você precisou ser muito forte para largá-lo. – O homem que fala comigo tem um ar calmo. Seus olhos são castanhos e sua voz suave e grave. Ele prefere não pegar o livro ainda. – Mas continue, você voltou para Angaretama? – Algo nele me passa confiança, talvez seu ar despojado por debaixo da barba, ou o jeito que balança o copo fazendo o gelo dentro da bebida dar voltas. – Este é um dos problemas – falo sincera. – Eu não consigo mais abrir o portal. Tentei de todos os modos que imaginei. Sinto que a ligação foi cortada. Um brilho esverdeado passa em seus olhos, como se um reflexo de uma luz em sua frente ali refletisse. – E Miriam? – ele pergunta, bebendo outro gole do uísque. – Ela foi seu grande trunfo. Sem ela, Audrick daria outro jeito de se aproximar enquanto você era criança, porém, você nunca teria descoberto seu potencial. – Essa é a parte mais difícil. – Bebo outro gole de café. É a quinta xícara do expresso nessa madrugada. – Consegui o telefone atual dela na ONG. Quando liguei ela parecia triste. Disse-me que já sabia da morte de Dimitri e me pediu para visitá-la. Porém, enfrentar seu olhar, sua dor, sabendo que a culpa foi minha... não sei se aguento. – Suspiro. – Mas pretendo fazer isso em breve. – Faça isso – ele fala como se fosse óbvio demais e eu uma tola que não percebi. Então, ele finalmente pega o livro, olha rapidamente a capa e volta a soltá-lo. – Você precisa dela. – A verdade é que eu não faço ideia do motivo de ter lhe dito tudo isso... – volto a falar, dando de ombros. Quero que ele se coloque em seu lugar e pare de me dar conselhos. Ele sorri com metade do lábio, levantando uma das sobrancelhas. Dias de Chuva |

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– Você me contou, pois eu sou a única pessoa ao seu alcance, que vai acreditar em tudo isso. Me poupo de buscar palavras para rebater a fala dele. Eu não travo mais batalhas que não sejam essenciais. Enquanto penso nisso e degusto o café, mais uma vez o reflexo esverdeado passa por seus olhos. Ele coloca o copo sobre a mesa. Suas pupilas fecham-se como as de um gato e por pouco não desaparecem, e depois se expandem por quase toda sua íris, permanecendo quieto, estagnado por um tempo. Então pisca algumas vezes e volta a falar. – Júlia, você provavelmente não tem nem feito a oferenda. ­– Sua fala agora é mais densa, e atenciosa. Parece preocupado. – Sua pele está se azulando pois tem perdido o controle da transformação. – Ele fica sério e me encara com o cenho franzido. – É uma domum fraca. – Minhas pernas ficam bambas por baixo da mesa e as mãos suam. – Tem certeza que não vai procurar por Audrick? Largou seu mestre cedo demais... Ao ouvir a menção ao nome de Audrick, relembro o real motivo daquele encontro. – Agradeço a sua preocupação e realmente espero que você não seja apenas um artificio dele para saber de mim, mas eu... Ele me interrompe. ­– Você pode ter certeza de que isso é impossível. Faz décadas que não tenho notícias de Audrick... – ele faz uma pausa respirando fundo – até agora. Meço as palavras antes de voltar a falar, entendendo que o desconhecido, está na verdade me fazendo um favor. – Eu só preciso ficar longe de Audrick. Deixar o passado onde é o lugar dele. Por isso lhe trouxe seus registros. Não posso jogar fora, mas algo me diz que também não devo continuar a mantê-lo dentro de um armário. Por isso desejo que fique com você. – É uma intuição? – ele me pergunta, já aparentemente desarmado de lições. – É uma certeza! O homem de barba se ajeita na cadeira e tateia o casaco à procura da carteira que só encontra em seguida, no bolso da calça. É a deixa para irmos embora? Finalmente ele parece incomodado. – Tudo bem Júlia, eu ficarei com o livro e o guardarei muito bem – ele diz isso piscando, talvez queira deixar a situação mais tranquila. – Mais uma vez, obrigada. Ele levanta-se, guardando o livro dentro de uma mala de alça lateral.

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– Só mais uma coisa. – Ele suspira. – Você é uma linda mulher, Júlia. Mais importante que isso, é uma pessoa incrível. Entendo o que Audrick viu em você. – Ele sorri enquanto eu me levanto e coloco meu casaco. – Eu sou o visionário, mas ele é perspicaz. Um dia, talvez, tenhamos um terço da inteligência que ele tem. Porém, se serve de ajuda, posso ver que há muito mais em você do que aquilo que Audrick plantou. De pé, me sinto mais leve. As mãos já não suam, e a respiração está calma. Chego à conclusão final. – Nunca havia contado a ninguém tudo que vivi e fiz. É um peso que sai de mim. Ele acena a cabeça muito de leve em sinal positivo. Nós pagamos a conta e saímos do estabelecimento. A madrugada chega ao fim, e quase ninguém está no café-bar. Do lado de fora, debaixo do toldo que nos protege da garoa, estendo a mão para ele. – Foi um prazer conhecê-lo – digo tentando ser o mais gentil possível. No horizonte marrom-alaranjado a neblina se dissipa. – O prazer é meu em conhecer aquela que derrotou Rachmanninoff... – ele faz uma pausa e me encara com um olhar felino – e a única mulher que Audrick amou. Fico sem graça pela sua fala e o modo como me olha, e também orgulhosa, mas apenas pela primeira sentença. Solto sua mão e percebo que deixei de perguntar algo. – Me desculpe, mas de onde você o conhecia? Ele olha para o outro lado da rua e depois para mim. – Audrick também fez de mim um domum, assim como a você... – ele fala como quem diz querer açúcar no seu chá. Volta a piscar. – Até mais, Júlia. – Ele tira a touca do bolso do casaco e a coloca, olhando-me mais uma vez, com as pupilas fechadas como de um gato. – Se precisar de mim antes disso, tem meu telefone. – Está certo. Obrigada. Eu fecho o casaco e coloco a touca. Sinto o vento respingar a garoa em mim. Olho para o homem de barba, partindo. Tomo a direção contrária.

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Agradeciment os


Muitos amigos ajudaram a construir essa história, e mais que isso, esse sonho, acompanhando minha empolgação e ideias de perto ou de longe, como minhas irmãs Janis e Ilca. No entanto, já me desculpo por não ter como citar todos, ou outro livro, só com seus nomes, seria escrito – graças ao universo, tenho muitos amigos e de um valor impossível de estimar –, mas saibam que sem vocês, eu nada seria. Espero, do mesmo modo, que me perdoem então, por citar em agradecimento especial, ela, Juliana Valões Alencar, que me fez acreditar em minhas histórias quando nem no papel elas tinham morada, então, isso tudo é culpa sua, Ju, obrigada por despertar a contadora de histórias e criadora de mundos que vive em mim. Aos amigos das letras, agradeço ao Alfer Medeiros, que com sua leitura extremamente crítica, fez-me rever seriamente essa história pela primeira vez. Também à Susy Ramone pelo incentivo e conversas animadas que renasceram minhas esperanças inúmeras vezes, e a leitora beta que surgiu dando luz a esse caos, Letícia Godoy. Vocês deram folego e alicerces para o Dias de Chuva. Aos meus editores, o que dizer? Se hoje eu acredito em minha capacidade, é pelo incentivo do Marcelo Amado que sempre apostou suas fichas no meu trabalho, fazendo com que eu me esforçasse sempre e cada vez mais, e que com toda a dedicação e broncas, fez dessa história o máximo que eu, ainda engatinhando nesse mundo das letras, pude alcançar. À Celly Borges, por toda a sua delicadeza e sensibilidade diante dessa trama, dando-me segurança e todo apoio para, finalmente, ela vir a público. Sem vocês, não existiria essa autora aqui. Agradeço a minha família, (que é bem grande) por perguntarem sobre e incentivarem todas as minhas artes, lembrando-me de minha missão enquanto artista, nos momentos mais inesperados, como nos aniversários e festas de ano. A minha mãe, Marlene, e meu pai, Carlos, obrigada por me ensinarem a perseguir meus sonhos, sempre com os pés no chão, para fazer sempre, tudo, do melhor modo que eu pudesse, e por acreditar e iluminar meus caminhos. Ao meu marido, por entender as horas em frente ao computador, a empolgação de quem não sabe falar de outro assunto, e por assumir a caminhada dos meus sonhos ao meu lado. E agradeço a você, leitor, que tem esse livro nas mãos, e veio até aqui. Obrigada por vivenciar essa parte, talvez a mais bela, do meu mundo.

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