TFG | Memórias de uma travessia, Pedro Giunti

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MEM— ÓRIAS DE UMA TRAV— ­­E SSIA



UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO

TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO ORIENTADOR PROF. DR. LUÍS ANTÔNIO JORGE

MEM— ÓRIAS DE UMA TRAV— ­­E SSIA

PROJETO PARA O MEMORIAL DA RETIRÂNCIA EM SÃO PAULO

PEDRO GABRIEL GIUNTI JUNHO DE 2016



Quando eu vim do sertão, seu môço, do meu Bodocó A malota era um saco e o cadeado era um nó Só trazia a coragem e a cara Viajando num pau de arara Eu penei, mas aqui cheguei!


Luiz Gonzaga, Pau de arara


Vejo este não apenas como o trabalho final de uma graduação, mas sim outro passo de um caminhar que há muito começou, e que segue. Ao longo desse caminho, muitos foram aqueles que o abriram e seguiram comigo. Assim, guardo comigo a gratidão a todos que aqui e por mim passaram, com o desejo que continue a tê-los presentes ao longo dessa travessia. Agradeço ao professor Luís Antônio Jorge, pela sábia, generosa e precisa orientação, mostrando que “sem fantasia não se inventa - o inimaginável é possível e permiti-lo é o maior dos atos”. A Marcelo Ferraz e Angelo Bucci por, de imediato, aceitarem participar da banca. Pelas contribuições nem sempre diretas ao trabalho mas cruciais para que eu o realizasse, agradeço aos professores Myrna Nascimento, Fábio Mariz, Alexandre Delijaicov, Anália Amorim, Antonio Carlos Barossi, Oreste Bortolli, Francisco Segnini, Ana Lanna, Mário D’Agostino e Nilce Aravecchia. E aos que em diferentes e breves momentos também foram essenciais à minha formação: Jaqueline Galuzzi, Priscilla Goya, Maria Lúcia Motta, Rafael Urano, Mirtes Luciani e Vera Luz. A toda equipe do 23 Sul Arquitetura, pelo aprendizado diário sem o qual este trabalho nada seria e pela abertura para que eu pudesse finalizá-lo.

Aos companheiros de FAUUSP, em dias de estúdio e noites em claro, sobretudo os caros Bruno Mentone, Andressa Hernandez, Jaime Solares, Aline Bravo, Sheila Quilice, Tatiane Teles, Stephanie Abe, Gabriela Villas Bôas , Evelin Vieira e Vitor Araújo. Aos amigos da Federal, com quem sigo há tantos anos e com o desejo de que muitos ainda compartilhemos, em especial Ricardo Pizcioneri. Aos queridos Mona Lindenbojm, Renato Rodrigues e Marina Magliocca pelas aventuras e bons momentos em terras lusitanas, e aos que fizeram essa oportunidade possível: os tios Mário e Sérgio Giunti, Natálio Ferreira, Elenícia e Arlindo Dantas, e os amigos Maria José Bolívia e Edson Furlanetto. A minha família, em seu esforço contínuo para que eu pudesse me fazer. A minha avó Valderina Teixeira, motivação desse trabalho, em todo seu vigor e ternura. Ao meu pai Umberto Giunti, por despertar o olhar curioso através do qual vejo o mundo. Ao meu irmão Matheus Giunti e a Mariana Bazzoli, por toda companhia e entusiasmo. A minha mãe Vanda Janet, por me permitir o sonho e sonhá-lo em conjunto, apoiando-o sempre incondicionalmente. E a Mariane Gondim, pela compreensão em minhas ausências e pelo amor, que alegra o meu viver.



Para Valderina e Nelson, em memรณria.



Introdução

12

A TERRA Invenção Condição Jornada

15 19 24

O HOMEM Oralidade Relato

33 34

A LITERATURA Paisagem Secura Severidade Travessia

43 45 52 57

O DESTINO São Paulo Sentido Errar Permeabilidade Arquitetura

63 65 72 82 86

Desenlace 139 Bibliografia 140


INTRODUÇÃO

migrar mi.grar [Do latim migrare] 1 v.int Passar de uma região para outra. 2 zool Passar periodicamente de uma região ou clima a outro, para procurar alimentação ou desenvolver-se.1

1. Michaelis. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa.

Característica de todos os povos, em diferentes partes do mundo e fases da história. Nos lembra que o homem retoma um caráter nômade pela necessidade de sua sobrevivência, pois no local em que está essa não é mais possível. Êxodo e diáspora. Refugiados, dekasseguis e retirantes. Em diversos contextos, o mesmo processo. Em todos o migrante é alguém partido, pois uma vida permanece em sua origem enquanto outra se lança a um novo destino. O destino que escolho é São Paulo, onde muitos são os fragmentos, que somam-se para integrar-se. Um mosaico de diferentes retalhos, que nos trazem a pergunta: quem somos nós, paulistas de origem ou vivência? Em resposta, este trabalho busca não desfazer injustiças, apenas tenta encontrar nosso lugar em meio à essa quebra e reconstituição. Assim, acredita-se na possibilidade de encurtar as distâncias culturais, provar a descoberta do outro em nós mesmos, e reconhecer que essa diversidade — historicamente a maior riqueza paulista, e brasileira — é o que nos faz iguais em nossas diferenças. 12


Como abordar o outro e como ele se constitui em tema? A partir de quais referências e escalas de aproximação ele define-se como objeto de estudo?2 Uma interpretação do processo migratório nordestino implica em uma caracterização da especificidade do que é o Nordeste no contexto brasileiro, em sua complexidade e riqueza, para então chegarmos aos seus agentes, os retirantes. Indivíduos que se retiram de uma condição que lhes aprisionam e privam, e que em São Paulo buscam uma vida propriamente dita mas que custosamente a encontram. Como estrutura, o trabalho segue num percurso como o que esses retirantes percorrem, numa travessia que parte do Nordeste e chega à São Paulo. Em referência a Os Sertões, de Euclides da Cunha, realizo uma leitura do Nordeste e do retirante por meio de três aproximações sucessivas: A terra, O homem e, ao invés da luta, A literatura, onde a luta também se manifesta3.

2. Colocação feita pela professora Ana Lanna, fundamental a este trabalho como diretriz metodológica. 3. O faço também guiado pelo ensaio fotográfico de Marcelo Ferraz, intitulado Arquitetura rural na Serra da Mantiqueira.

Em A terra, busco delinear o que o foi, e ainda é, esse processo em sua conjuntura ambiental, política, econômica, social e cultural. Num segundo momento, em O homem, enfoco na experiência subjetiva, individual, na visão daquele que tenha testemunhado e sido agente desse processo, buscando na força de sua expressão a riqueza que universal à condição de retirante. “Admiro os poetas. O que eles dizem com duas palavras a gente tem que exprimir com milhares de tijolos.” Compartilhando do fascínio de Artigas, em A Literatura encontro a força do Nordeste na releitura de obras vitais à literatura brasileira, bem como seu cruzamento com outras artes, como sensibilização e amparo à poética do espaço proposto. “Chegando” ao destino, parto em busca do lugar, em suas evidências obliteradas pelo explosivo desenvolvimento da cidade, numa travessia que já se faz projeto ainda na leitura de São Paulo, para então direcionar esses traços à arquitetura. 13


A TERR A


Bahia, Marcel Gautherot.

IN V ENÇÃO

O Nordeste é fechado.1 Se o brasileiro nasce a partir do índio, do europeu e do negro, é no Nordeste que este encontro tem o máximo de sua expressão cultural. Abelardo da Hora defende que enquanto ao sul influências externas seriam mais facilmente absorvidas e adaptadas ao modo de vida, no Nordeste encontra-se um obstáculo: a força da própria cultura. “A mais autêntica região brasileira”, além de conservar os valores sobre os quais se apoiariam o caráter nacional, tem em si esta particularidade “fechada”, autossuficiente, cuja riqueza e vigor característicos poucas brechas abrem a novos traços. O Nordeste basta-se. Porém, um duplo viés esta região ainda carrega: de um lado a vida de sua cultura rica e de fundamental importância para a chamada brasilidade; de outro, uma severa estrutura econômica e social, que obriga sua população a migrar, fugir, se retirar de uma condição que lhe tira a vida. Assim, é entre essa dualidade que caminham as páginas a seguir, em uma primeira aproximação à problemática do Nordeste, seus agentes e a condição que lhes é imposta: a de retirante.

1. HORA, Abelardo da. In: BARDI, Lina Bo (org.). Tempos de Grossura: o design no impasse. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1994, p.61.

Escrever aqui Nordeste, com maiúscula, é na realidade a conquista de um esforço que há pouco mais de um século iniciou-se. No entanto, acostumamo-nos de tal modo a ela que fácil é nos esquecermos que todo o imaginário que a palavra nos traz nem sempre existiu. O entendimento de sua origem e formação remonta a um questionamento que inicia-se ainda no século XIX: afinal, quem somos nós, brasileiros? A crise de identidade que se estabeleceu após os movimentos de independência encontrou em diferentes momentos, diferentes agentes sobre os quais seriam apoiados os pilares da nacionalidade. Assim, narrar a história da invenção do Nordeste é, guardadas as devidas proporções, narrar a história da invenção do Brasil. 15


Durante os três séculos da presença estrangeira, o curso da vida dos diversos povos que aqui habitavam e foram trazidos mudaram radicalmente. Compelidos a novos costumes, religião e língua, seus traços culturais originais foram borrados, apagados, mesclados. Como nos conta Darcy Ribeiro em sua pesquisa pela “formação e o sentido do Brasil”2 , desafiados a saírem de sua ninguendade de nãoíndios, não-europeus e não-negros, os filhos dessa união buscaram uma identidade grupal reconhecível, e viram-se forçados a inventar sua própria: a brasileira. “Todo passado que nos é ‘outro’ merece ser negado”3, observou posteriormente Haroldo de Campos, resumindo o sentimento ante a herança europeia imposta pelos colonizadores, com a qual se queria romper. Assim, a crise política e os interesses que culminaram na emancipação política, trouxeram também a demanda de uma emancipação cultural. A identidade do brasileiro viu-se frágil, precisando de novas bases para se apoiar. Obteve voz na literatura, e na autoafirmação pela revisão de sua história e agentes encontrou sustento. A construção de um caráter nacional pode ser observada através do Romantismo, cujo sentimento fez surgir pela memória uma espécie de elo para a formação de uma identidade verdadeiramente brasileira. Usaria um misto de realismo e ficção para criar um conjunto de tradições culturais locais, surgindo, então, miticamente ligado ao mais remoto passado brasileiro e tornando-se um símbolo da origem do povo o índio, lendário e heroico, bravo e belo. À exemplo dos romances de Alencar, o índio assume o protagonismo no processo de identificação nacional, além de servir de base para a imagem da nova nação aos olhares externos, agora em igualdade. A tradição “inventada” foi aos ganhando contorno, formando uma espécie de espírito nacional, ainda que ficcional. Entretanto, a imagem e identidade de um povo enquanto processo que se constrói historicamente, encontra-se em constante transformação, perdendo aos poucos este caráter fixo e estável. Entre continuidades e rupturas, a imagem romântica do brasileiro cedeu a outra mais próxima da realidade de um todo, a partir do reconhecimento de sua diversidade e particularidade.

2. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.126–133. 3. CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2004, p.235.

O século XX trouxe um esforço de reconhecimento desse processo histórico em transformação, cuja tomada de consciência torna- se o anseio primeiro do Modernismo, assim como seu projeto: a criação de uma identidade nacional autônoma, livre dos excessos do passado. Com a preocupação em delinear um caráter que refletisse a realidade nacional, uma mudança do olhar foi essencial. Renuncia-se à pureza e essencialidade romântica em prol de um reconhecimento e valorização de uma cultura miscigenada, marcada pelas diversas contribuições étnicas, suas bagagens culturais, e seu heterogêneo desenvolvimento ao longo do espaço e do tempo. 16


De um lado, a consciência da riqueza de seu amálgama cultural. De outro, o agravamento do desequilíbrio regional, geopolítico e econômico. Nos, então, Estados Unidos do Brasil, a união do título perdeu-se para o abismo social entre as diferentes regiões. Com o deslocamento do eixo político e econômico do país para o Sudeste, centralizou-se também as discussões a respeito da identidade nacional, através sobretudo dos ecos da Semana de Arte Moderna de 1922. Em busca do redirecionamento do debate surge no Nordeste e para o Brasil um esforço de valoração de uma cultura periférica e popular. O Nordeste coloca-se legitimando-se tanto como emblema identitário quanto ideológico, cujo vigor afirmou-se como bastião da cultura nacional. E para isso, a importância de Gilberto Freyre foi vital. O trabalho do sociólogo pernambucano tem dois momentos proveitosos a esse estudo: o Manifesto Regionalista, em 1926, e Casagrande e Senzala, em 1933. Dos engenhos escravistas, Freyre extrai um paralelo de modo que sua arquitetura — a segregação hierárquica da casa-grande em relação à senzala — expressaria a organização social e política brasileira, ainda enraizada ao forte patriarcalismo. Contudo, a mais oportuna contribuição e que instiga o trabalho, é a derrubada da ideia de que a miscigenação seria responsável pelo aparente atraso social do Brasil, sendo na realidade, sua diversidade étnica e cultural, sua maior dádiva. Sobre essa nova construção do caráter nacional, Renato Ortiz nos escreve: “Gilberto Freyre transforma a negatividade do mestiço em positividade, o que permite completar definitivamente os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo desenhada”4 .

4. ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e identidade nacional. 5ª edição. São Paulo: Brasiliense,1994, p.41. 5. AMARAL JR., Aécio. Sensualismo e consciência regional: o Nordeste freyriano. Revista Raízes, Campina Grande, v.2 1, n. 2, p.227232, julho/dezembro, 2002. 6. FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista. 7ª edição. Recife: FJN/ Massangana, 1996, p.48.

Ainda que anterior a publicação de Casa-grande e Senzala, o Manifesto Regionalista surge como resposta direta e contraposição a tendência predominante entre os intelectuais paulistas da Semana de Arte Moderna. Nasce fruto do Congresso Regionalista de 1926, porém, sua versão escrita é publicada apenas em 1952, na qual Freyre sustenta ser a nação o produto de uma soma de territórios regionais, sendo uma destas a região nordestina, distinta da do Norte, a maior portadora dos caracteres fundantes da brasilidade5. Freyre destaca que seu regionalismo não tinha conotação separatista mas, sim, conciliatória, acreditando que o Nordeste é a chave para a compreensão do país. Seu modo de ver a nação vem de uma percepção “talvez mais histórica que geográfica e certamente mais social que política”6 . Assim, o Brasil deveria ser administrado a partir de critérios regionais, que ponderassem e valorizassem as peculiaridades culturais do país. Este esforçou transformou o Nordeste em palco de discussão sobre a questão agrária no Brasil, além da dispersão de sua população pelo país, denunciando a emergência do enfrentamento deste problema estrutural. Assim, a noção de regiões particulares e interdependentes foi fundamental para que o Estado intervisse. 17


Nesse contexto, organizações importantes surgiram: em 1952 foi criado o Banco do Nordeste do Brasil; e em 1956 fora instituído o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste que culminaria na fundação em 1959 da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE).

7. RUBINO, Silvana, GRINOVER, Marina (org.). Lina por escrito, textos escolhidos de Lina Bo Bardi. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p.19. 8. FERRAZ, Marcelo Carvalho. Arquitetura Conversável. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011, p.49. 9. BARDI, Lina Bo (org.). Tempos de Grossura: o design no impasse. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1994, p.20.

Como parte desse processo de construção do caráter nacional, um nome também é essencial ser mencionado: Lina Bo Bardi. No Brasil, a arquiteta italiana encontrou abrigo ao fugir das dificuldades do pós-guerra, e na cultura popular, encontrou o motor de sua produção. Enquanto aqui a sensibilidade frente a riqueza de nossa cultura foi fruto de um grande esforço em aprender a olhar para nós mesmos, para a nova realidade da imigrante recém chegada lhe era natural. Movida pelo desejo de fazer arquitetura em um país novo e sem vícios7, ela reconheceu o fértil terreno para suas ideias e ideais modernos. Nem todas as culturas são ricas e herdeiras diretas de grandes acumulações históricas, de modo que a arqueologia sóciocultural de Lina vai a fundo numa civilização, a mais simples e pobre, até chegar em suas raízes populares onde reside a história de um país. Como afirma Marcelo Ferraz, Lina “redescobre o Brasil para os brasileiros”8 ao resgatar a produção artesanal, ou pré-artesanal, como condição favorável ao desenvolvimento de um design original moldado na medida do homem brasileiro, a fim de atender suas reais necessidades e anseios. E com o olhar atento às potencialidades da vida popular cotidiana, sua produção inaugura uma nova postura dentro da arquitetura moderna brasileira. Os nomes aqui citados são apenas alguns dos muitos cuja contribuição foi fundamental na invenção do Nordeste e da chamada brasilidade. Reconhecer a aparente fraqueza como potência foi fato decisivo que abriu caminhos para que pudéssemos nos construir. Caminhos através dos quais percorre-se até hoje, num esforço contínuo de entendimento e legitimação de quem nós, brasileiros, realmente somos. Caminhos esperançosos pois como ainda nos lembra Lina, “um país cuja base está na cultura do povo é um país de enormes possibilidades”9. 18


CONDIÇÃO

“Por mais anos ou gerações que permaneça numa terra, o sertanejo é sempre um agregado transitório, sujeito a ser desalojado a qualquer hora, sem explicações ou direitos. Por isso, sua casa é o rancho em que está apenas arranchado; sua lavoura é uma roça precária, só capaz de assegurar-lhe um mínimo vital para não morrer de fome, e sua atitude é a de reserva e desconfiança, que corresponde a quem vive num mundo alheio, pedindo desculpas por existir. [...] Assim, é que os currais se fizeram criatórios de gado, de bode e de gente: os bois para vender, os bodes para consumir, os homens para emigrar”.10 Secas constantes e uma economia exploradora. Especificamente sobre o sertão, Darcy Ribeiro aponta que o agressivo meio-ambiente se torna ainda mais violento pela estrutura econômica exploratória, sendo, assim, a maior responsável pela fuga dos nordestinos. Nascem, vivem e morrem em terras alheias, cuidando do gado, de casas e de lavouras que já têm outros donos. Até o próprio lugar que vivem com suas famílias, não lhes pertencem. Então, na tentativa de uma “vida” propriamente sua, se retiram.

10. RIBEIRO, Darcy, op. cit., p.345–362.

Uma diversidade e riqueza cultural ímpar, comparável apenas a outras poucas, mas uma estrutura que lhe seca, mais do que o próprio clima. O desequilíbrio regional acaba por gerar vetores de deslocamento dessa patrimônio cultural e humano, de modo que além de abrigar os valores sobre os quais se sustentam a identidade nacional, também é a terra que mais expulsa seus homens. Assim, para o nordestino, migrar assume o significado de retirar-se de um meio no qual a vida não é possível. Passa a ser uma condição de sobrevivência que em diferentes fases teve, e ainda tem, diferentes destinos. 19


Levas de flagelados emergem do sertão esturricado pela seca e pelo sol causticante, enchendo, primeiro, as estradas, depois as vilas e cidades sertanejas com a presença sombria de sua misÊria.



Retirantes, Candido Portinari, 1944, Óleo sobre tela, 190x180cm, Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP). RIBEIRO, Darcy, op. cit., p.348.

Num primeiro momento, como revela Weinstein11 , o látex da Amazônia torna a região o destino de muitos. O chamado Primeiro Ciclo da Borracha se dá a partir de meados do século XIX, com a crescente demanda que a Revolução Industrial trouxe aos países europeus do que, até então, era um produto exclusivo da região amazônica. Posteriormente, em 1943, motivado também pela vontade de ocupar os vazios geográficos do país, Getúlio Vargas cria o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (SEMTA), com a finalidade de alistar, treinar e transportar trabalhadores nordestinos para extração do “ouro branco” da Amazônia, agora, sob a grande demanda dos aliados da Segunda Guerra Mundial. Assim, os cerca de 60 mil “soldados da borracha” partiam rumo às florestas em busca das seringueiras, e após o declínio da atividade, muitos ali firmaram-se, sobretudo em Manaus. Uma década depois, é para o Planalto Central que estes trabalhadores direcionam sua jornada. Com o governo de Juscelino Kubitschek, o Plano de Lúcio Costa, e os traços de Oscar Niemeyer, surge Brasília, construída com as mãos dos quase 70 mil candangos. Termo que nasce depreciativo, referindo-se às origens pobres dos trabalhadores braçais mas, com as obras terminadas, muda-se de conotação tornando-se símbolo de heroísmo, como pioneiros e povo fundante da nova capital. Estima-se que mais de 30 mil desses trabalhadores eram nordestinos.12

11. WEINSTEIN, Bárbara. A Borracha na Amazônia: Expansão e Decadência. São Paulo: Edusp, 1993. 12. IBGE. Censo Experimental de Brasília: população e habitação,1959.

Cartaz do SEMTA, 1943. Brasília, Marcel Gautherot.

De um lado, a agricultura precária, a estagnação econômica, os grandes latifúndios, a concentração de renda, a indústria pouco diversificada e o fenômeno constante das secas. De outro, efervescências econômicas que atraem essa população como mão de obra sob promessas de prosperidade e condições mais favoráveis à sua sobrevivência. Entre ambos, o nordestino, cuja condição de retiro historicamente o obriga a buscar e sobrevivência em outras regiões. Apesar de sua vivacidade cultural, também lhe é inerente uma exploração econômica que lhes roubam a existência. Sob esta perspectiva, surge a rota da travessia e seu percurso como objeto de estudo desse trabalho, em um retiro rumo ao Sudeste, com destino final à cidade de São Paulo. 22



JORNADA

Como revela Paulo Fontes13, dois fatores foram fundamentais no estabelecimento do fluxo migratório em direção à São Paulo: a Lei de Cotas para Imigração da Constituição de 1934 que restringiu a entrada de imigrantes estrangeiros no país; e a criação em 1939 da Inspetoria de Trabalhadores Nacionais, órgão ligado ao Departamento de Imigração e Colonização, através do qual o próprio governo passou a assumir a responsabilidade pela contratação e transferência dos trabalhadores, substituindo companhias especializadas. Assim, com o declínio a partir de 1920 da imigração europeia como mão de obra para as plantações de café do interior paulista, a migração de outros estados, apesar de ser um fenômeno antigo, passou a ser oficialmente estimulada. As garantias trabalhistas inexistentes no Nordeste, na capital paulista significavam o escape às relações de dominação e exploração a que estavam sujeitos. Emprego, salários mais elevados, direitos trabalhistas, melhor infraestrutura hospitalar e educacional compunham o atrativo cenário de São Paulo ao olhos dos retirantes, bem como a noção de uma evolução socioeconômica que reduziria gerações a alguns meses, saindo de uma condição de “atraso rural” rumo ao “progresso” da cidade grande.

13. FONTES, Paulo. Um nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, p.43–50.

Assim, a partir década de 1930, com o intenso desenvolvimento econômico e industrial, São Paulo tornou-se palco de um processo comparável apenas à poucas cidades em âmbito mundial. O fluxo migrante foi redirecionado da área rural para a metrópole, das lavouras para as indústrias, construções e os mais diversos postos de trabalho, passando a compor a massa da classe trabalhadora de São Paulo. 24


É comum uma visão da migração como um movimento desordenado, “irracional”, feito às pressas, entretanto, é importante ressaltar que esta não corresponde à experiência de grande parte dos retirantes. Como constata Paulo Fontes14 , os retirantes não foram apenas reflexo de forças econômicas determinadas externamente, embora nela estivessem imersos. Também foram agentes de si próprios e dessa forma, através de estratégias diversas, contribuíram na moldagem de seu processo migratório. A mudança, decisiva para a vida desses homens e suas famílias, era na maior parte das vezes meticulosamente pensada e preparada tanto no âmbito familiar como no da comunidade a qual pertenciam, tendo, essas redes sociais, uma importância central. Com a distância e dificuldade da jornada, a mudança para São Paulo demandava uma complexa articulação, de modo que um familiar ou amigo abria caminho e fazia as conexões necessárias para abrigar novas pessoas. Muitas vezes isso significava o fracionamento provisório da unidade familiar, com parte tentando se firmar antes de receber outros. Em alguns casos a possibilidade de migração para cidades menores ou para regiões agrícolas antes de uma eventual vinda para São Paulo era quase sempre levada em conta. Tal estágio no processo migratório era considerado como uma alternativa segura ao risco e instabilidade que uma vinda direta poderia significar. “Além das visões extremadas, preconceituosas ou até mesmo pretensamente caridosas de técnico governamentais, jornalistas, estudiosos, governantes ou parlamentares, a figura do retirante miserável e faminto, premido pelas condições econômicas e ecológicas do sertão nordestino, fugindo desesperada e desorganizadamente da seca prevaleceu no imaginário social do período como a mais representativa do migrante, embora, como vimos, ela corresponda a uma parcela razoavelmente minoritária do total de trabalhadores que se deslocaram para as capitais do centro do país”.15

14. Ibid. p.54–61. 15. Ibid. p.75.

Ao refazer a trajetória dos “flagelados da seca” rumo ao sul, surge o Rio São Francisco, crucial para o Nordeste e os nordestinos. Assim como Heródoto afirma que o “Egito é uma dádiva do Nilo”, Luiz Gonzaga nos canta “Dê um jeito meu São Francisco, Foi assim que pedi com fé, De repente choveu bonito, O rio encheu de fazer maré”, revelando a importância do rio no cuidado com seu “povo humilde do sertão”. 25


Eu vi terra fumaçar Vi graveto estalando ao sol Eu vi o rio virar Um deserto de pedra e pó A noite se avermelhou De tão quente o céu e o chão Meu povo se encomendou Esperando o, fim do sertão Dê um jeito meu São Francisco Foi assim que pedi com fé De repente choveu bonito O rio encheu de fazer maré É triste se acompanhar O sertão secar e morrer Compensa a graça de Deus O milagre do renascer Só pode mesmo julgar Que não é exagero meu Pessoa de boa fé Ou então quem por lá viveu Obrigado meu São Francisco Louvo a Deus sua sagração Tenha sempre ao seu cuidado O povo humilde do meu sertão Não precisa prometer Ele ajuda a quem tem fé Fazer bem é seu poder São Francisco em Canindé



Rio São Francisco, Marcel Gautherot. Luiz Gonzaga, São Francisco de Canindé.

Nasce na Serra da Canastra em Minas Gerais, e segue atravessando a Bahia, depois faz a divisa com Pernambuco, em seguida entre Sergipe e Alagoas até chegar no Atlântico. Além de fonte de riqueza, o “Velho Chico” tornou-se símbolo de vida como rota de escoamento da população retirante rumo ao Sul, como ainda demonstra de Paulo Fontes16 . Seu trecho navegável inicia-se nas cidades de Petrolina e Juazeiro, na divisa entre Pernambuco e Bahia, bem como a jornada de muitos dos retirantes, que subiam o Rio em barcos a vapor até Pirapora, em Minas Gerais, cidade terminal da Estrada de Ferro Central do Brasil. Muitas vezes conduzidos vagarosamente pelos trechos secos do rio, o percurso de 1300km chegava a demorar 15 dias. Além de Pirapora, na cidade próxima de Montes Claros, estabeleceram-se escritórios da Inspetoria de Trabalhadores Nacionais ITN, que se responsabilizaram por organizar a chegada, processar a seleção de trabalhadores e o fornecimento de passagens para a capital paulista. Mais tarde, a inauguração do ramal até Monte Azul e depois até Salvador, o “Expresso do Sertão” ou “Trem Baiano”, passou a trazer os retirantes até São Paulo. Chegando na Estação do Brás e sua famosa Hospedaria, hoje convertida no Museu da Imigração, iam para os lugares e vagas de trabalho já “arranjadas”, seguiam para fazendas no interior do estado, ou, ao sabor da própria sorte, buscavam se instalar e estabelecer na cidade. A inauguração da rodovia Rio-Bahia em 1949, a BR-116, diminuiu as dificuldades de deslocamento entre o Nordeste e as regiões ao sul do país. As melhorias do sistema rodoviário no país na década de 1950 contribuíram para o incremento do processo migratório, agora por outras rotas. Em busca da “terra prometida”, os meios da travessia dos retirantes eram muitas vezes tidos como “navios negreiros” por sua precariedade e superlotação. Com pranchas de madeira colocadas transversalmente em suas carrocerias, como num poleiro, os caminhões “paus-de-arara” se transformaram no transporte símbolo dos retirantes nordestinos. Cruzando centenas de quilômetros, com a precariedade dos veículos e sua superlotação, os acidentes eram frequentes, muitas vezes terminando a jornada desses homens antes de seu destino final. Entretanto, a jornada não terminava quando se chegava a São Paulo. Aqui, por um custoso processo de estabelecimento e aceitação muitos ainda passariam.

16. Ibid. p.54–61.

Rotas do Nordeste à São Paulo.

Com o aquecimento da economia cafeeira e o posterior desenvolvimento industrial, São Paulo adquiriu o título de capital econômica do Brasil. Fontes ainda nos lembra que, alheio a ideia do Nordeste como reduto do mais puro “espírito” nacional, o desenvolvimento e a profunda diferenciação econômica acabou por criar um imaginário novo da capital paulistana frente ao restante do país. 28


Rio SĂŁo Francisco

Estrada de Ferro Central do Brasil

BR-116


Entretanto, com um planejamento deficiente e uma articulação falha da nova e complexa dinâmica urbana que emergia graças ao explosivo crescimento desde o início do século XX, um alto preço nos foi colocado. Déficit habitacional, o número crescente de favelas, problemas de mobilidade e transporte, aumento dos índices de criminalidade e miséria. Uma condição social, política e econômica custosa aos recém chegados, muitas vezes não muito diferente daquilo que encontravam no Nordeste. No limite, como explicita o autor17, aos olhos de muitos setores da sociedade paulistana, passouse a considerar os retirantes nordestinos culpados e eventuais “bodes expiatórios” pelos problemas da nova conjuntura urbana da metrópole. Ainda mais reforçado pelas condições em que os retirantes chegavam após dias da severa jornada, o conflito entre campo e cidade cresceu na medida da consideração urbana como uma forma superior de existência sobre os “matutos”, “caipiras” e “jecas”, sendo mais tarde o adjetivo “baiano” acrescentado aos dizeres pejorativos.

17. Ibid. p.68–81.

Vapor, Marcel Gautherot.

Assim, um longo caminho percorreu-se ato entendimento do Nordeste e sua riqueza cultural, cujo vigor tem-se como fundador da brasilidade. Contudo, a região guarda em si uma estrutura que, historicamente construída, pouco favorece sua população, obrigandoos a se retirar. Assim, em outros locais esse patrimônio humano buscou abrigo, e custosamente o encontrou. Posto isto, fundamental é refazer seus passos, buscando a origem e sentido de nós mesmos, paulistas e brasileiros, que nos fizemos a partir da soma de origens diversas, e ao invés de ninguéns, temos é nesta amálgama a força ímpar de nossa cultura. 30



O HOMEM


Bahia, Marcel Gautherot.

OR ALIDADE

“A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens.”1 Jacques Le Goff nos lembra que os gregos antigos fizeram da memória a deusa Mnemosine, mãe de nove musas que inspiravam as chamadas artes liberais, entre elas a história Clio e a eloquência Calíope. Sob esta ótica, vemos que a história e a expressão oral são filhas da memória. Intimamente ligada a contos populares antigos, a história surgiu contada até constituir-se na escrita do depoimento realizado. Contudo, a oralidade e sua fluidez intrínseca não se põe contrária a história escrita, mas sim busca registrar e perpetuar impressões, vivências e lembranças dos indivíduos que se dispõem a compartilhar sua memória individual com a coletividade, permitindo o acesso a um conhecimento vivido mais rico e dinâmico que, de outra forma, não conheceríamos.

1. LE GOFF, Jacques. História e memória. 7ª edição. Campinas: UNICAMP, 2013, p.471. 2. THOMPSON, Paul. A voz do passado. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p.137.

Entende-se memória como a presença do passado no presente, como uma construção a partir de fragmentos representativos deste passado. Estes retalhos guardam em si a parcialidade do que apresentam, mas a universalidade do como apresentam. Tomando como exemplo a tradição oral, a expressão de um é também a de muitos, possibilitando recuperar a evidência de fatos coletivos. Como afirma Paul Thompson, apesar da subjetividade a que esta fonte está sujeita, “a evidência oral pode conseguir algo mais penetrante e mais fundamental para a história [...] transformando os ‘objetos’ de estudo em ‘sujeitos’”.2 Assim, a expressão a oral vem aqui, na segunda aproximação, não apenas ao amparo da história, mas também recupera uma nova dimensão, mais vívida, refazendo a memória do processo migratório nordestino por uma perspectiva direta de seus agentes, os retirantes. 33


REL ATO

Valderina não sabe ao certo sua idade, mas pelas contas acredita ter em torno de 80 anos. É mãe de três filhos, avó de seis netos e bisavó de outros sete. Nasceu no interior da Bahia e, ainda menina, embarcou em uma jornada que levaria anos e diversas paradas até encontrar seu destino final, São Paulo. Busquei aqui preservar a textura de suas palavras, bem como reorganizei alguns trechos da conversa que, pela espontaneidade da oralidade, desviou-se em alguns momentos.

Mas vó, em qual lugar do Nordeste vocês viviam? Então, a gente morava numa cidadezinha da Bahia. Chamava Limoeiro, perto de Remanso3. Mas eu nem lembro de lá. Não tem mais família nem ninguém. Os que ficaram lá ou saíram ou já faleceram todos. Como foi sua infância lá?

3. A cidade não existe mais, pois estava dentro do perímetro de alagamento da Usina de Sobradinho.

Rio São Francisco, Marcel Gautherot.

Minha mocidade? O jeito da gente era pé no chão. A gente corria, pulava janela, pulava porteira, brincava naquele areião, aquela areia branca que afundava os pé, igual de praia, mas era a beira do rio, do Véio Chico. A gente brincava bastante, jogava água, fazia de tudo. Eu sempre fui danada! A gente não tinha dificuldade de nada. Fomo criado em uma infância que tudo o que você queria você tinha. Tudo. Ia lá na loja do papai e pegava. Na loja vendia peixe, mantimento, roupa, sapato. A gente pegava tudo lá. Não precisava comprar nada. O papai era um dos homem mais rico do pedaço. Era como se fosse um coronel, mandava e desmandava na cidade. A família dele já vinha rica sabe, tinha terra, tinha loja, trazia de barco as coisa de Salvador pra vender em Limoeiro. Como infância não faltava nada... 34



Aí quando eu fiquei com doze ano, eu conheci seu avô. Ele morava perto de mim, numa viela que subia assim perto de casa. E lá a gente se viu e se gostou. Você não ouve dizer de amor à primeira vista? Com nós foi. Pra onde eu ia tinha que passar lá antes pra vê ele. A família dele vivia de peixe, era tudo pescador. Era família bem simples sabe, mas muito trabalhadora. Aí começamo a ficar junto. E depois eu engravidei... O tempo foi passando e eu fui engordando. Minhas roupa não servia, mas o papai não sabia. E os boato correndo. Quando chegou no ouvido do meu pai... Pra quê?! Correu atrás de mim com um facão na mão e me colocou pra fora de casa! Me jogou na rua só com as roupa do corpo. Aí meu padrinho me acolheu, fiquei na casa dele, e minha vó passava lá pra cuidar de mim. Meus irmão tentaram ajudar eu numa época, mas papai soube e brigou com todo mundo. Ele não queria saber. “Tem que casar!”. “Ou casa, ou aqui não entra!”. Aí ele arrumou o casamento por um parente dele que trabalhava no cartório. E quando eu casei minha gente, eu casei com doze ano! Pra casar, tinha que aumentar um ano, então menti que tinha treze ano. Seu avô tinha dezoito. Mas o cartório era em outra cidade, chamava Tabuleiro Alto. Aí fomo, eu e seu avô de canoa. Ele remando uma distância que só Deus... 1 dia de remo pra ir e mais outro pra voltar! Fomo remando, e lá não fazia medo não! Eu tinha tudo quando tava com o papai. Mas aí casei seu avô... e sofri! Voltamo e comemo uma peixada na casa da minha sogra, e lá eu fiquei. Morei na casa dela e lá passamo necessidade sabe. Era muita gente. Tinha cinco filho, com ela e o marido ainda. Na casa era só dois quarto. A gente em sete e na véspera de outro bebê ainda. Nós ficava que nem farinha no saco. Aí foi indo, foi indo. A gente morando com meus sogros, até arranjar uma casinha. Aí mudamo pra essa casa, mas chegamo lá e não tinha nada. Tava toda vazia! “Vou pra São Paulo! Vou pra São Paulo!”. Seu avô queria vir pra levantar um dinheiro pra gente né. E foi... E vocês ficaram lá? Quando ele veio, ficamo só eu mais as criança, mas nós não tinha nada, passando só com farinha. Não era nem pão, só farinha e água. Nós tinha que plantar. Daí tinha umas terra, uma roça emprestada mais afastada da cidade. Aí eu levava um dos menino pela mão, outro nos braço, grávida do terceiro e a enxada nas costa, pra andar três hora até chegar na roça que eu plantava. Plantava feijão e mandioca. E no dia seguinte tornava a vir, pra poder ter o que comer e dar pra eles. Era o que dava pra poder sobreviver. No fim eu plantei, plantei, mas vinha a enchente... O que a terra dava, a água levava! Não tinha tempo de colher. Perdi muitas vez a roça toda.

Bahia, Marcel Gautherot.

Mas eu não me arrependo não. Ninguém manda no coração. Eu tinha uma vida, vamos dizer, rica, e depois passamo tempos difícil sabe. Só que quando você gosta da pessoa você não vê nada disso. E foi o que aconteceu comigo. 36



Quantos filhos a senhora teve? Era um filho por ano. No total foram três vivo e sete morto. Eu tive duas menina e oito homem, mas desses dez só sobreviveu três né. Desculpe tá falando isso. Mas eles morreram do quê? A gente mora no interior e até chegar e procurar recurso... Quando chegasse lá no médico já tinha empacotado, já tinha morrido. E morreram assim, novinho. Dois mês, quatro mês, um ano, e aí foi indo. Às vez nem nascia. Teve um que quando tava grávida, fui lavar as roupa no rio, com aquela cabaça cheia de água na cabeça. Mas ela caiu, bateu na minha barriga assim, e o bebê morreu. E ainda fiquei mais de mês com ele morto na barriga, porque nós não tinha as condição de procurar um médico né. Mas era normal. A gente meio que acostuma. Conta como foi quando vocês saíram de lá. Vou falar com meu português porque, você sabe, eu tinha meus filho e não queria deixar, então não consegui estudar. Como eu falei, quem veio primeiro foi seu avô e eu fiquei lá na minha terra mais as criança. Aí quando foi dando o tempo e o dinheiro nós viemo embora. De Limoeiro a gente pegava um barco e ia até Remanso. Lá navegava um barco, não sei se você já ouviu, mas chamava vapor. Era muito cheio, mas a gente colocava as rede pra dormir de noite. Aí ia subindo o Véio Chico até Pirapora. Nós chegamo lá e ficamo quase um mês esperando seu vô vir buscar. A mãe dele tinha uma família conhecida, e ficamo lá hospedado todos. Quando foi pra vir pra São Paulo, os marido iam lá, dava o nome e faziam a ficha. Depois a gente pegava um trem, chamava Maria Fumaça. De Remanso pra Pirapora tomava mais de 10 dia. E de Pirapora pra cá não é longe, mas as condição... Nesse trem, Nossa Senhora do bom Jesus! Nunca mais! Ainda bem que agora acabou né?! No trem era um bancão, com todo mundo sentado. E quando chegava no lugar certo ninguém enxergava se você era preto ou branco, de tanta fumaça! Mas saía todo mundo alimentado, os grande comendo e os pequeno também. Mas era um pão que se você bate na cabeça, já viu. E aquele virado de farinha, que jogava na boca com a mão, porque colher não tinha, e o vento levava metade! Foi muito sofrido sabe... E como foi chegar em São Paulo?

4. A Hospedaria do Brás, atual Museu da Imigração.

Brasil 1981–1983, Sebastião Salgado.

Difícil demais... Aqui eles punha a gente pra dormir numa casarona grande4 . Os homem tinha que tomar banho com os outro homem, e era tudo ali, não podia tomar um de cada vez. E as mulher também. Ficava aquela multidão. E quando abria aquele chuveirão já era pra tudo. Era horrível. Horrível. E eu pensava: são só meus ano. Isso tudo faz parte da gente né. Então, reclamar pra quê? 38



O que vocês fizeram depois? Então, lá em Limoeiro tava correndo a fama que em Epitácio5 tava dando muito dinheiro. Tava dando muito peixe por causa do rio né. Então depois de uns dia nessa casarona pegamo o trem e fomo pra lá. E foi todo mundo, minhas irmã e toda família que chagaram depois. Uns foram pescar, e eu comecei a plantar na roça. Por isso que eu não gosto de mato! Não nasci pra isso não... E seu avô era piloto de barco. Passava pela cidade, subindo e descendo. Dirigia aqueles barcão com tora, com madeira. Aí o tempo foi passando e todo mundo foi procurar um lugar que entrasse mais dinheiro né, e foi aqui. Seu avô queria muito que seu tio viesse, que era pra ele estudar pra ser militar né. Aí ele veio antes de todo mundo e morou um ano aqui. Depois vieram as irmã, e foram trabalhar como doméstica. Mas as patroa não queria que saísse pra rua, muito menos pra estudar. Elas estudavam escondidas! Aí seu tio mandava umas carta falando que tava com saudades... Você não sabe como seu filho tá né, não sabe como tão tratando seu filho, e aquilo mexe né. Então resolvemo: seu avô foi lá, pediu as conta donde ele trabalhava. Nem trouxemo as coisa, deixamo tudo lá, e viemo pra cá. Inda bem que ele teve sorte. Mal chegamo aqui e ele já arranjo emprego. Foi naquela indústria. Como era a vida aqui?

5. Presidente Epitácio é uma cidade na divisa do estado, às margens do Rio Paraná.

Chegada do “trem baiano” à Estação do Brás. Acervo Museu da Imigração.

Primeiro nós ficamo no véio meu irmão, e depois arrumamo uma casa, na rua do mercado. Tinha sala, quarto, cozinha e banheiro. A fia dormia no quarto comigo e seu avô. E os menino mais os dois primo dormia na sala, naquelas caminha de dobrá. E a noite toda fazia um nhéc nhéc danado. Depois quando viemo pra essa casa que eu moro, que nós compramo, eu escutava sempre: “Ah seus favelado, vem de lá pra arrumar seus cortiço aqui!”. Na casa não tinha um tanque bom pra lavar as roupa. Não tinha ferro de passar, tinha que ser ferro a brasa. Não tinha tv. E era um frio, um frio... Nós não tinha coberta, não tinha nada. O que eu tinha eu deixei em Epitácio. “Ah vocês vão pra São Paulo e logo vocês compra tudo”. Que compra nada... é ilusão! Mas com trabalho fomo comprando devagarinho. Trabalhar não é defeito não... Mas pra terminar hoje eu me sinto feliz. Eu tô muito feliz. Não tô mais porque não aprendi a andar só. Queria andar por aí mas tenho medo. Tenho muito medo dessa cidade doida. Mas é a vida. Porque os três fizeram faculdade, e se defendem. E vocês tão aí, conquistando. E isso é o que eu agradeço a Deus. 40



A LITER AT U R A


A joão Guimarães Rosa, Maureeen Bisilliat.

PAISAG EM

“De que modo nossa percepção da paisagem se converte em percepção estética, de que modo se adquire consciência da qualidade figurativa da paisagem?”1

1. GREGOTTI, Vittorio. Território da arquitetura. 3ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 2010, p.65. 2. Ibid., loc. cit. 3. SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da Geografia. São Paulo: Hucitec, 1988, p.21–26.

Com essa questão em mente parte-se à terceira aproximação em busca da paisagem do Nordeste. É oportuna a colocação de Vittorio Gregotti do termo “paisagem antropogeográfica”, que além de revelar a importância entre homem e meio, nos leva ao entendimento da paisagem como objeto mutável e esteticamente operável. Operação esta que se dá através de sua leitura e representação, e que aqui elenca a literatura como força motriz ao estudo. Assim posto, faz-se necessário o entendimento de como é criada, uma vez que a literatura que a aborde como objeto, detém um duplo viés: ao passo que parte de uma realidade, contribui para sua conformação. Sobre isto, Gregotti ainda sinaliza que “o ambiente circundante é o produto dos esforços da imaginação e da memória coletiva que se explicam e realizam por meio das obras que o sujeito constrói quando se defronta com o mundo e portanto também com a sociedade”.2 Milton Santos nos esclarece sua dimensão tátil, de modo que “tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão alcança, é a paisagem. Pode ser definida como o domínio do visível, aquilo que a vista abarca. Não é formada apenas de volumes, mas também de cores, movimentos, odores, sons, etc”3. Nesse sentido, não somente a vemos, mas também a assimilamos a partir dos diversos fatores à ela intrínsecos, de modo que um espaço seja formado por inúmeras paisagens. 43


Entre estes fatores, o humano também lhe é fundamental. A figura do homem está contida na natureza pois, antes de tornar-se o ser social que é, relacionando-se com outros e formando um contexto de sociedade, ele é animal, biológico, parte integrante do natural. Assim, natural e não-natural, se fundem, interagindo entre si, de modo que a natureza não se faz apenas por sua dimensão física, mas também pela interação com o ser humano. Ainda em Santos, o homem muda e transforma seu espaço a todo momento, e a cada modificação influencia a si mesmo a partir do espaço resultante, conformando o que o autor denomina como sistemas de natureza sucessivos, “onde esta é continente e conteúdo do homem, incluindo os objetos, as ações, as crenças, os desejos, a realidade esmagadora e as perspectivas”.4 A paisagem como produto do encontro entre ambiente e homem, recupera também sua importância na conformação de sua cultura e identidade, uma vez que é no ambiente que as relações entre seus pares se dão,t nascendo a noção do coletivo. Se reconhece na paisagem, não apenas sua lógica ambiental, mas também humana e social, tornando-se a projeção cultural de uma sociedade em um espaço determinado. Paisagem esta repleta de lugares que encarnam as experiências e aspirações de uma população, assim como centros de significados e símbolos que expressem ideias e sentimentos traduzidos, por exemplo, na noção de pertencimento a um coletivo determinado, ao qual chama-se identidade. E desta densa e complexa trama de aspectos que conformam a paisagem, é evidente que estes se reorganizem, se substituam, de modo que adquiram maior ou menor valor conforme o olhar de quem os observa. Santos evidencia como a paisagem é uma construção histórica, sujeita às forças condicionantes dos diferentes momentos pelos quais passou, bem como seu registro. “Tanto a paisagem quanto o espaço resultam de movimentos superficiais e de fundo da sociedade, uma realidade de funcionamento unitário, um mosaico de relações, de formas e sentidos. [...] A paisagem não se cria de uma só vez, mas por acréscimos, substituições. Uma paisagem é uma escrita sobre a outra, é um conjunto de objetos que têm idades diferentes, é uma herança de muitos diferentes momentos. Precede a história que será escrita sobre ela ou se modifica para acolher uma nova atualidade. [...] A paisagem é sempre o passado, ainda que recente.”5 4. SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico científico informacional. São Paulo: Hucitec, 1997, p.15.

5. SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da Geografia. São Paulo: Hucitec, 1988, p.21–26.

Isso remete a uma ideia de atualização da paisagem por parte daqueles que a observam e a registram, de modo que o registro também afeta o que é registrado, como um novo caráter que é adquirido somando-se ao momento passado. Esta ótica nos autoriza a pensar que um estudo sobre a paisagem, sem reduzir sua essência e rigor, pode, e deve, buscar insumos em outras fontes que também a tenham como objeto, de modo que observá-los é observar seus objetos. A interdisciplinaridade enriquece o suporte, ampliando o campo de percepção de uma realidade complexa, densa de aspectos 44


tão numerosos quanto diversos. Assim, o aporte na literatura surge aqui da possibilidade de se identificar e construir uma paisagem, esta enquanto representação literária projetada para e na realidade. Entre concreto e imaginário, Antonio Candido nos lembra que é precisamente a ficção que possibilita viver e contemplar tais possibilidades, graças ao modo “irreal” de suas camadas mais profundas e graças à qualidade de referir-se a realidades sem realmente se referir a seres reais, cuja sensibilidade acaba por construir seu caráter universal.6 Ao ler Ilíada, de Homero, como obra histórica, descobre-se que está repleta de ficção, bem como lendo-a como ficção descobre-se sua riqueza histórica. História ou estória. Real ou imaginário. Verdade ou criação. Todos esses temas não limitam as características da literatura. A arte influencia e, ao mesmo tempo, é influenciada pela sociedade, transformando as paisagens e colaborando na formação do espaço poético. Sobre este duplo viés, Flávio Kothe, baseado em Walter Benjamin, reconhece a literatura como uma espécie de “historiografia inconsciente” de uma época, e sintetiza como ela abrese a um horizonte de infinita riqueza e possibilidades. Eis Kothe: “As obras literárias, mesmo não pretendendo ser e não sendo um mero registro histórico, acabam sendo também uma historiografia inoficial. Na mesma medida em que não querem ser documento, seu caráter autônomo lhes permite uma liberdade de registro e transmissão que escapa à historiografia oficial, comprometida com as omissões, cortes e deformações que as relações de produção lhes impõem”.7

6. CANDIDO, Antonio; GOMES, Paulo Emílio Salles; PRADO, Décio de Almeida; ROSENFELD, Anatol. A Personagem de Ficção. 11ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2005, p.46. 7. KOTHE, Flávio. Para ler Benjamin. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p.78. 8. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Nordeste: uma paisagem que dói nos olhos e nas mentes. 2009. Ver bibliografia.

Aberto esse caminho, parte-se à releitura de escritores fundamentais para a compreensão da problmática, cuja literatura além de nos apresentar essa realidade, explodem em sua força poética a partir de pormenores que escapam a outras escritas. A partir do já enunciado Regionalismo, decidiu-se por três obras: Vidas Secas, no qual Graciliano Ramos revela como o sertão exaure-se também em seus personagens; Morte e Vida Severina, no qual João Cabral de Melo Neto apresenta sujeitos que penosamente seguem suas vidas; e Grande Sertão: Veredas, no qual Guimarães Rosa nos guia por riquíssimas paisagens externas e internas. Alia-se à estas leituras, o cruzamento de outros olhares ao Nordeste, retratados em música, filme e fotografia, que potencializam o descobrimento dessa realidade. Assim, almeja-se a reconstrução dessa paisagem do Nordeste através das diferentes linguagens que “conversam” entre si, e em sua força a arquitetura encontra amparo. “Como toda paisagem, a nordestina é uma criação narrativa, uma criação da e na linguagem. É espaço que se conta mais do que se vê, é espaço que se mostra mais do que se crê, é espaço que se sente mais do que se pensa. É um conjunto de signos que se articulam em torno de uma imagem e sua força”.8 45


SECUR A

Publicado em 1938, o romance Vidas Secas pode ser visto como o maior expoente da chamada Segunda Fase Modernista, a Regionalista, graças ao apuro técnico do autor Graciliano Ramos, cuja estrutura e linguagem da obra contribuem para uma percepção mais profunda do que é o sertão e o Nordeste. Associado ao livro, traz-se também o filme homônimo de Nelson Pereira do Santos, de 1963, que, a partir de uma tradução intersemiótica, transmutou o escrito em imagem acentuando ainda mais a atmosfera já fortemente colocada em texto. O livro denuncia as mazelas sociais do sertão, acompanhando uma família errante ao longo do sertão em busca de condições mais dignas para suas vidas. Fabiano que, entre homem e bicho, não consegue se expressar e impor frente ao mundo. Sinhá Vitória, mulata esperta que sabia fazer contas com grãos. Menino mais velho, curioso por significados de palavras não ditas e pela capacidade de dizê-las. Menino mais novo, com o desejo de saber tratar os animais como o pai. Baleia, cadela mais humana das personagens. E o papagaio, que só sabia latir pois era o único som que escutava. De imediato, o título já demonstra como a “secura” do sertão invade a vida desses sujeitos que, desumanizados, expressam-se de forma tão estéril quanto a natureza da região. Como na cena do filme de Nelson Pereira na qual o menino mais velho questiona sobre o inferno e então percebe que está nele, vendo o mundo ao seu redor e dizendo o que observa, quase como a declamação de um poema, com uma linguagem crua, fragmentada e enxuta, mas riquíssima na expressão do “lugar de condenado, lugar ruim”, e em resposta Sinhá Vitória alerta: “o sertão vai pegar fogo”. 46


A miséria causada pela seca soma-se à miséria imposta pela condição social, subalterna àqueles que detém o poder político e econômico, transformando a paisagem em um ambiente inóspito e hostil também socialmente. Das relações de poder, entre aqueles que não podem responder nem fazer contas e os que ditam as regras, é possível compreender a realidade do sertanejo, e também do brasileiro. “Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro. – Governo é governo”.9 Assim, por entre as matas acinzentadas da caatinga, as vidas de Fabiano e sua família seguem fugindo das condições severas do clima, do arbítrio dos donos da terra e do poder, de modo que suas realidades se organizem em função da paisagem e com ela se confundem. Graciliano nos passa esta atmosfera através de sua linguagem econômica, sintética, concisa, cuja custosa comunicação de seus personagens transmite a aridez do ambiente e seus efeitos sobre os que à ele estão sujeitos. As luzes ofuscantes das cenas do filme, além de sugerir a elevada temperatura e enfatizar a implacável paisagem que persegue o sertanejo, define a forma e localiza as coisas no espaço. Pelo ”jogo sábio, correto e magnífico dos volumes sob a luz” de Le Corbusier, evidencia-se a arquitetura do lugar e também o tempo, uma vez que a temporalidade só pode ser percebida nos efeitos que a luz produz na superfície das coisas. À medida que o tempo flui, a variação da luz e da sombra faz-nos perceber a sucessão dos momentos: os diversos períodos do dia e as estações do ano. A fotografia também é notável, cujos planos longos acompanham os passos de Fabiano e de sua família, numa caminhada lenta e cansativa, sugerindo o longo caminho que ainda se tem a percorrer, enfatizando o drama desses personagens, do ambiente e transportando o telespectador para dentro do sertão.

9. RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 126ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2015, p.107.

A trilha sonora aqui é a música do ambiente, os sons da natureza que os rodeiam, compartilhando da mesma “secura” de palavras que faltam à boca das personagens, sublinhando o espaço do sertão: o melancólico, monótono e incômodo ruído do carro de bois que na primeira cena já sinaliza a aflição do ambiente; o “chape chape” das sandálias revelando o solo seco da caatinga e a distância percorrida; o barulho da chuva nos telhados da nova casa encontrada contando a esperança da passagem da estação seca para a chuvosa. 47


-Inferno, espeto quente, inferno, lugar ruim. Inferno, lugar ruim, lugar ruim, condenado. Onde é que tem espeto quente? Inferno, inferno, inferno... -Mau sinal, o sertão vai pegar fogo. Vai pegar fogo, não adianta esperar!



Fala do filme Vidas Secas, Nelson Pereira dos Santos. Brasil 1981–1983, Sebastião Salgado.

Essa época chuvosa, contada no capítulo Inverno, ilustra o único momento de alívio, que alimenta a expectativa de uma vida melhor, mais digna, uma vez que é nessa época em que a esperança sertaneja floresce, seja através de uma nuvem no céu que se transforma em motivo de inquietação. Porém, esse sonho de uma existência menos árida e miserável esboça-se no horizonte só até as chuvas cessarem, quando a seca retorna, implacável. “Fabiano espantou-se: uma sombra passava por cima do monte. Tocou o braço da mulher, apontou o céu, ficaram os dois algum tempo aguentando a claridade do sol. Enxugaram as lágrimas, foram agachar-se perto dos filhos, suspirando, conservaram-se encolhidos, temendo que a nuvem se tivesse desfeito, vencida pelo azul terrível, aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente”.10 Destaca-se também a importância do juazeiro, árvore característica da caatinga e um dos elementos mais marcantes dessa paisagem, pois não perde a folhagem durante a seca e aparece ao longo de todo o romance com uma dupla função: assinala um ponto de referência no espaço e indica uma possibilidade de pausa na jornada graças à sua sombra.

10. RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 126ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2015, p.13.

Cenas do filme Vidas Secas.

Tanto o texto quanto o filme se constroem à semelhança de uma espiral, num percurso cíclico que inicia-se com uma mudança e termina com uma fuga. E do final que se reencontra com o princípio e fecha a ação em um processo contínuo, vem a impossibilidade de se pensar a construção de um futuro o qual será igual ao presente e ao passado, cuja inércia extingue a liberdade sobre a decisão da própria existência. Dessa paisagem miserável e inóspita, vem o ser humano reificado que se move sem noção de tempo e sem perspectiva de vida. Ausência de tempo esta que se traduz no caráter “desmontável” do romance, cuja linearidade pode ser rompida e fragmentada, sem alterar o entendimento do todo, uma vez que esta realidade é contínua. Assim, vem a condição de retirante desses sujeitos, que saem, fogem, se retiram da precariedade à qual estão fadados. Ou, pelo menos, tentam, pois “o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos”. 50



SE V ERIDADE

O auto Morte e Vida Severina, de 1955, engrossa o estudo a partir da força da construção pela paisagem do homem, no qual João Cabral de Melo Neto nos coloca uma obra que apresenta um espaço real, e que por meio da criação imaginária, representa toda uma estrutura e conjuntura social. Esta paisagem que cerca o poema é uma criação literária que não só descreve o Nordeste mas, também, articula em seus versos um processo histórico com imagens que se desenham ao leitor. O rio se verbaliza para mostrar sua real condição, tanto ambiental quanto humana, e seu curso revela diferentes paisagens em suas riquezas e contradições. Através do percurso de Severino ao longo do Rio Capibaribe, um mosaico de paisagens se delineia: do sertão de Pernambuco, pelo agreste e zona da mata, até o litoral. Paisagens, aqui, não apenas naturais, mas também humanas, políticas e sociais. Uma série de conflitos são mostrados a partir das claras dicotomias entre morte e vida, luta e fuga, identidade e identificação, inclusão e exclusão, postura essa que se alinha com a de outros autores ditos regionalistas, que veem o estado degradante do homem não como resultado de seu destino individual, mas sim como consequência da exploração à qual não conseguem escapar. Partindo da Serra da Costela, lugar que metaforiza e personifica a realidade do homem, Severino encarna todos os retirantes, “iguais em tudo na vida”, de modo que viver a “vida severina” é o que os une, e que no árido sertão trabalham duramente para “abrandar estas pedras suando-se muito em cima” e “tentar despertar terra sempre mais extinta”. Sem apoio suficiente do estado, submetidos ao domínio, à violência e à exploração dos coronéis do sertão, sem meios de produzir para sua subsistência, esses severinos veem-se obrigados a sair de suas terras em busca de “vida”, esta de privações e miséria. É com a peregrinação de Severino, que se percebe e desenha a realidade de um povo, que luta por mais um dia, mesmo que seja “severino”. 52


O Capibaribe e Severino: paisagem e homem que se confundem em um só. Tanto homem naturalizado quanto o rio humanizado lutam por suas sobrevivências, enfrentando as adversidades do sertão desde seus nascimentos na Serra da Costela até o litoral. Assim, partem do interior pernambucano em busca de melhores dias: o encontro com o Recife e o mar de “vida”. Elemento central, a água que permeia a história — não apenas em sua presença mas, sobretudo, em sua ausência — dá vida ao olhar de Severino que, como metáfora e imagem, percebe as diferentes paisagens como as condições adversas desses homens. Em torno da água e sua liquidez se passam essas vidas, valendo aqui recuperar Bauman: “A vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante”.11 Essa paisagem como projeção social e cultural nos convida ainda a pensar “por que em paragens tão ricas o rio não corta em poços como ele faz na Caatinga”, pois o rio “vive a fugir dos remansos” já que é desviado pelos latifundiários para a irrigação de suas plantações. A terra que lhes sobra é pouca, de modo que a que cobre suas covas será enfim sua “roça”, podendo só morto trabalhar para si e não mais “a meias, como antes em terra alheia”, como canta Chico Buarque em Funeral de um lavrador. E “o que é que acontecerá contra a espingarda”?12 . Nada, pois esses homens não mais se indignam com as injustiças, situação contra a qual os severinos não tem como lutar. Em uma terra “onde sempre há uma bala voando, desocupada”, a violência é norma que domina a realidade do sertão. Violência esta tanto entre homens ou da natureza, faz a morte adquirir um novo valor. Severino conversa com uma mulher que lhe explica como lá “a morte é tanta” ela vive “de a morte ajudar”. Assim, nascem profissões que se relacionam com a miséria, a doença e a morte como fonte de renda, única alternativa em um lugar onde “só é possível trabalhar nessas profissões que fazem da morte ofício ou bazar”. Como as fotografias de Sebastião Salgado revelam: a aproximação entre a vida e a morte, pois no mesmo lugar em que vende-se frutas, aluga-se sapatos e caixões para velórios, uma vez que era mais barato do que comprá-los aos numerosos mortos; e o impacto da imagem da criança sendo enterrada com os olhos abertos, pois como morreu muito jovem, antes de ser batizada, os olhos eram mantidos assim para que pudesse encontrar o caminho até o céu, caso contrário vagaria pela eternidade.

11. BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p.8. 12. MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida Severina, e outros poemas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p.96.

O coveiro, então, o alerta: “vindo por essas caatingas, vargens, ai está o seu erro: vem é seguindo seu próprio enterro”. Severino percebe, então, que não tem como fugir de sua “vida severina” e que seu destino é forte demais para que possa lutar contra. Depois do “rosário de cidades e vilas” que caminhou “não seria diferente a vida de cada dia, embora tenha tido a esperança de “que ao menos aumentaria na quartilha, a água pouca, dentro da cuia, a farinha, o algodãozinho da camisa”, ou seu “aluguel com a vida”. Assim, decide apressar a morte jogando-se da ponte de um dos cais do Capibaribe. 53


Esta cova em que estás com palmos medida É a conta menor que tiraste em vida É de bom tamanho nem largo nem fundo É a parte que te cabe deste latifúndio Não é cova grande, é cova medida É a terra que querias ver dividida É uma cova grande pra teu pouco defunto Mas estarás mais ancho que estavas no mundo É uma cova grande pra teu defunto parco Porém mais que no mundo te sentirás largo É uma cova grande pra tua carne pouca Mas a terra é dada, não se abre a boca



Funeral de um lavrador, Chico Buarque. Brasil 1981–1983, Sebastião Salgado.

João Cabral nos mostra não apenas as privações de Severino, mas também uma esperança de vida. Enquanto pensava em saltar para a morte, uma criança nasce e “salta para dentro da vida”. Carangueijos, leite de outra mãe, papel de jornal, água da bica, canário-da-terra, bolacha d’água, boneco de barro, pitu, abacaxi, rolete de cana, tamarindos, ostras, jaca, mangabas, cajus, peixe, carne de boi, mangas, goiamuns. Pontua-se aqui a origem e a natureza dos presentes dados ao recém nascido, nos revelando também a condição social, econômica e cultural daqueles homens. Como o subtítulo “Auto de natal pernambucano”, o sentido religioso, próprio de um auto, encontra-se na gênese da vida que se renova a cada dia, a cada nascimento. O ato final da obra é o grito de esperança que movem todos esses homens: se cada severino tem como sina lutar constantemente contra seu destino de pobreza, aceita-se esta “vida severina” pelo simples motivo de ser vida.

13. MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida Severina, e outros poemas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p.113.

“E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida; mesmo quando é uma explosão como a de há pouco, franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida severina”.13 56


TR AV ES SIA

Grande Sertão: Veredas chegou ao estudo, primeiro, por compartilhar do espaço do sertão, e fazê-lo amplo esbarrando nas obras anteriores, e sua desafiante leitura traz uma nova perspectiva ao trabalho. A erudição da obra de Guimarães Rosa, esta publicada em 1956, além de trazer a cultura popular in natura, inverte os modos tradicionais de representar o sertão. Na literatura regionalista anterior, em geral os narradores são tipos ilustrados que ocupam o lugar de fala do sertanejo, falando por ele, sobre ele e contra ele, para constituí-lo como homem primitivo e tipo alienado pela lógica do capital. Já em Grande Sertão, o narrador é um sertanejo que fala diretamente sobre a experiência sertaneja: Riobaldo passa de objeto a sujeito absoluto da matéria narrada. Assim, das páginas de Guimarães Rosa, descortinase um sertão geopolítico e ficcional, concomitantemente regional e transregional, nacional e estrangeiro, divino e profano.

14. Michaelis. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa.

Se no mapa brasileiro a definição da região semi-árida do Nordeste corresponde a uma área que se estende do norte de Minas Gerais ao Piauí, no dicionário14 essa definição dilui-se, sendo a “região agreste”, “terreno coberto de mato, afastado do litoral”, “toda região pouco povoada do interior” e “zona mais seca que a caatinga”, não fornecendo uma localização precisa. Embora o Grande Sertão: Veredas faça diversas alusões a lugares geográficos existentes reais — da região em torno do norte de Minas Gerais, como o Rio São Francisco, cidades como Januária, e da fronteira com Goiás e Bahia — o sertão de Rosa está muito além de um espaço objetivo, pois ele se insere no diálogo em que Riobaldo tenta, ao mesmo tempo, compreender e transmitir o que é o sertão para aquele que o lê. Diz respeito, portanto, a uma experiência do narrador, a uma memória subjetiva. 57


A riqueza de significados que o sertão nos coloca e seu caráter interior, encontra uma explicação possível na medida que enquanto a face litorânea do Brasil abre-se às trocas, intercâmbios e facilidades de mudanças, a face interna fecha-se em si mesmo, refugiando-se na conservação e exploração de suas particularidades, sentimento contrastante que é perceptível em países de grande extensão. O interesse pelo espaço já está revelado no próprio título do livro. Espaço geográfico num primeiro momento o qual é transcendido pela amplitude em busca de sua “atmosfera”, chegando a sugerir um outro espaço, simbólico por seus signos e sentimentos. O sertão se faz grande pela transformação de aspectos e símbolos regionais em sentimentos e percepções de Riobaldo, da dimensão universal à do indivíduo sertanejo. Assim, inúmeras variações de sentido surgem ao longo da obra, atrelando-se mais ao modo de ser e pensar, do que à localização física, abolida com a interiorização desse espaço: “Sertão: é dentro da gente”. Ou, diante da dificuldade de determinar o lugar, vem seu caráter imensurável: “O sertão é do tamanho do mundo”. O espaço assume uma extensão infinita que atinge, no limite, a absoluta ausência de espaço: “O sertão é sem lugar”. E culmina numa ausência de palavras, tornando-se uma pura indicação: “O sertão: o senhor sabe”. Esse mapa, constituído de locais geográficos e de passagens da vida, seria o registro não apenas de um caminho linear, mas do errar e perder-se pelo sertão. Construindo-se em movimento com esse lugar impreciso, as paisagens de lugares reais sobrepõe-se a outros sem registro, seguindo a mesma lógica da narração e do processo de rememoração de Riobaldo: uma lógica fragmentada, desordenada, na qual distintas camadas do tempo e do espaço se sobrepõem. Lembrando Merleau-Ponty15, segundo o qual a construção de uma paisagem envolve uma pluralidade de sentidos, através do corpo como um todo, que, a partir do sensível, chega a atingir o invisível. Nessa ótica, a percepção geográfica desta paisagem não se reduz apenas a menção fragmentária dos espaços sertanejos, nem a uma descrição reduzida às generalizações daqueles que o vivenciam. Guimarães Rosa guia nosso olhar ao longo das trilhas que ele próprio traçou neste sertão, despertando nossos sentidos para a redescoberta desta realidade. A expressão chamativa “Mire e veja”, tão comum durante a fala de Riobalbo, é um convite para através do olhar estabelecermos relações entre a diversas etapas de transformação interiores do ser humano, refletida na identificação homem-natureza.

15. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. 4ª Edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

Desta forma, em todo o romance podemos observar que os níveis de referência sobre o espaço narrado se estendem, fundamentalmente, sobre dois planos: o geográfico e o simbólico. O plano geográfico se apresenta com valores referenciais, informativos, sobre as localizações, sendo a origem da criação das imagens mentais, levando-nos a situar os acontecimentos em determinada região real, 58


concreta. Já o plano simbólico é apresentado como reorganizador desta realidade geográfica, revalorizando o espaço encontrado e vivenciado. Assim, na construção da história, fundem-se o homem, a natureza e a língua, residindo nesta fusão a força lírica da obra. As travessias dos personagens, além de serem concretas, enquanto jornada pelos caminhos inóspitos do sertão de Minas Gerais, transcendem este plano, passando a significar as transformações da vida, dos sentimentos do indivíduo e, por consequência, das suas visões de mundo. A travessia de Riobaldo assemelha-se à trajetória humana. Nela cabem as lutas, os sonhos, a busca e a fuga do outro, a imprevisibilidade, a vulnerabilidade e as frustrações de estar vivo e de morrer. Assim, a existência humana do homem é labiríntica, sendo uma travessia incerta e eterna na qual o destino é desconhecido. Um itinerário errante. O sertão conhecido, percebido, interpretado e representado por Guimarães Rosa através de Riobaldo, nos leva a um outro ponto, à Terceira Margem do Rio16, relembrando seu outro conto. Deste modo, sua paisagem sertaneja nos apresenta perspectivas para outras travessias, por entre paisagens exteriores e interiores, ao nos mostrar um sertão que assume significados e ressignifica-se, evocando para o personagem, ora o sentido de lugar, ora o de espaço exterior e interior. Assim como aos seus personagens, somos levados a questionar o sentido das coisas e muitas vezes pondo em xeque os próprios atos e visão de mundo, assim como todos os seres, imersos numa longa travessia, cujo sentido último jamais é alcançado. Esta travessia existencial é a força motriz que induz o homem à ação e lhe revela a beleza presente nas coisas simples, ao mesmo tempo que o faz perceber o mal e abismo da própria existência. A experiência de travessia deste sertão labiríntico vivida pelo protagonista serve como uma viagem de formação e da busca de si mesmo.

16. ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. 49ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

ROSA, Guimarães, op. cit., p.51–80. Menino perto de forno para queima de carvão de lenha, Maureen Bisilliat.

Ao encontrarmos os sentidos da travessia deste sertão por meio da transformação simbólica, alcançamos a multiplicidade deste espaço vivenciado. Adquire significado não a partir de uma ideia estática, mas sim a partir do percurso e processo de depuração de seus valores. A travessia de Riobaldo do sertão ambiental e interior, é a mesma pela qual este trabalho passa, em busca da essência primária do ato de migrar dos retirantes nordestino. Como amparo ao projeto proposto, surge não apenas a origem, o Nordeste, nem o destino, São Paulo, mas sim a travessia destes homens. As origens são tão distintas quanto ricas, e infrutífera seria a tentativa de, apenas, representar esse mosaico cultural, bem como os percursos e destinos finais diversos. Assim, entende-se a condição de retirantes como o elemento que os une, cujas jornadas por diversas paisagens externas e internas é o que rememora este processo, seguindo-se, aliado a ideia da travessia, rumo ao projeto e a representação pela arquitetura desse processo. 59


Eu atravesso as coisas — e no meio da travessia não vejo! — só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto mais embaixo, bem diverso do que em primeiro se pensou. [...] Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.



O DES TINO


Implantação sobre imagem aérea, Google Earth.

SÃO PAULO

“Em uma cidade historicamente construída por correntes migratórias internas e externas, por uma urbanização e crescimento demográfico explosivos, por um amálgama de costumes conviventes nos mesmos espaços, indagar a presença persistente das representações de identidades ‘estrangeiras’ é uma forma de entendimento de uma relação singular entre espaço urbano e cultura. São Paulo pode ser vista como um mosaico de lembranças de outros lugares que cada imigrante ou cada grupo social trouxe como valor de cidade ou de urbanidade. Memórias de outros lugares e memórias do que já fora destruído nutrem os valores desta cidade que é concreta, mas é, também, representação de outras cidades e culturas. Alguns grupos sociais procuraram, na semprenova cidade, seus lugares de autoreconhecimento, mas, dada a dinâmica urbana, a própria ideia de identificação com o espaço urbano e de permanência – sobretudo para as classes populares, muito vulneráveis ao processo de espoliação urbana – não pôde perdurar”.1

1. JORGE, Luís Antônio. São Paulo: transformações e permanências para uma cultura cosmopolita. 2013. Ver bibliografia.

O trecho do artigo São Paulo: transformações e permanências para uma cultura cosmopolita, do arquiteto e professor Luís Antônio Jorge, traz uma densa trama de traços e valores da cidade no âmbito sobre o qual me debruço: a relação entre espaço e representação cultural. Assim, “chego” em São Paulo tendo-o como guia, que problematiza a cidade entre suas “complexidades e contradições”, tomando emprestado o título venturiano, na busca da conversão dessas incertezas em arquitetura, indefinições que guiaram a travessia dos tantos retirantes, e também a deste estudo. 63


Como mosaico ou como palimpsesto, cuja realidade é constantemente substituída por outra2 , a cidade de São Paulo no curto período de tempo de apenas um século, reconstrui-se três vezes, deixando de ser a pequena vila acima do porto de Santos para se tornar uma das maiores metrópoles do mundo. Em números, a surpresa: em 1872 tinha pouco mais de 30 mil habitantes, já em 1890 essa população dobra chegando a 65 mil, em decorrência da abolição da escravatura e a expansão do café. Em 1900 salta para quase 240 mil e em 1920 para 580 mil habitantes. Já em 1940 o número é de mais de 1,3 milhões. Hoje a cidade conta com quase 12 milhões de habitantes, e sua região metropolitana tem mais de 20 milhões.

2. “A cidade de São Paulo é um palimpsesto – um imenso pergaminho cuja escrita é raspada de tempos em tempos, para receber outra nova.” LIMA DE TOLEDO, Benedito. São Paulo: três cidades em um século. 2ª edição. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p.67. 3. IBGE, Censos Demográficos entre 1872 e 2010. 4. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p.31. 5. LÉVI-STRAUSS, Claude, apud FONTENELE, Sabrina. Relações entre o traçado urbano e os edifícios modernos no Centro de São Paulo – Arquitetura e Cidade (1938/1960). Tese de Doutorado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2010, p.78.

Origem da população residente em São Paulo, entre 1872 e 2010. Baseado nos Censos Demográficos, IBGE. Evolução da Mancha Urbana de São Paulo, entre 1881 e 1995. Banco de Mapas, CESADFAUUSP.

Um olhar mais atento a esse crescimento revela a dimensão humana e a riqueza cultural desses números. Nos 20 anos que separam 1950 de 1970, a capital Paulista triplicou seu tamanho, enquanto no mesmo período, a população de origem nordestina cresceu 10 vezes. Dessa forma, o censo de 1970 já apontava que a grande São Paulo apresentava a maior concentração de população migrante no país. O censo de 1970 também apontava que quase 70% da população migrante economicamente ativa da cidade havia passado por algum tipo de experiência migratória3. Sobre o crescimento explosivo de São Paulo e a dificuldade de apreensão dessa realidade urbana, a colocação de Nicolau Sevcenko é bastante oportuna: “De tal modo o estranhamento se impunha e era difuso, que envolvia a própria identidade da cidade. Afinal, São Paulo não era uma cidade nem de negros, nem de brancos e nem de mestiços; nem de estrangeiros e nem de brasileiros; nem americana, nem europeia, nem nativa; nem era industrial, apesar do volume crescente das fábricas, nem entreposto agrícola, apesar da importância crucial do café; não era tropical, nem subtropical; não era ainda moderna, mas não tinha mais passado. Essa cidade brotou súbita e inexplicavelmente, como um colossal cogumelo depois da chuva, era um enigma para seus próprios habitantes, perplexos tentando entendê-la”.4 Em uma cidade que se desenvolvia com tal rapidez que a cada semana necessitaria de um novo mapa5, como sinalizou Claude Lévi-Strauss ainda em 1935, periferização e degradação tornaram-se termos chave de caracterização desse espaço urbano que se expandia mais rapidamente do que a capacidade de entendê-lo e ordená-lo. Da a adoção do modelo rodoviarista à livre especulação imobiliária, muitas foram as medidas que acabaram por reforçar a fragmentação e desarticulação da cidade, de modo que a violência do crescimento passou também à nova dinâmica urbana, tornando-se o princípio que rege o desenvolvimento de São Paulo. Surge então a chamada “cidade informal”, em áreas distantes, irregulares e de risco, onde serviços básicos e iniciativas do estado custosamente chegam, assim como seus moradores, aqueles que por sua condição social não encontram lugar “legal” na cidade. 64


11.253.503

10.434.252

9.646.185

8.493.226 239.820

1890

1900

1920

2.198.096

1.326.261

64.934

1872

579.033

31.385

3.781.446

5.924.615

TOTAL

NORDESTE SUDESTE SUL / ESTRANGEIROS NORTE / CENTRO OESTE

1940

1950

1960

1970

1980

1991

2000

2010

1881

1905

1914

1930

1952

1962

1972

1983

1995


Frente à essa sensação de desconhecimento e não-aceitação numa cidade “sempre-nova”, cujo amálgama de realidades, costumes e memórias se fazia mais contrastante e rico a cada dia, vale recuperar a ninguendade, apontada por Darcy Ribeiro, para um questionamento do que é São Paulo e quem são seus agentes. Somos tantas misturas, tantas culturas, ninguéns em um lugar que nos foge o controle, de modo que esse esvaziamento da existência nesse espaço urbano violento nos obriga a encontrar em nossos pares um refúgio. Se o Nordeste pode ser visto como a região que guarda os valores fundantes da brasilidade, tem-se São Paulo como um retrato hiper-fiel do nacional, cujo espaço acaba por reunir contrastes críticos e magníficos de outras paisagens. Assim, “se construiu um cosmopolitismo de raiz popular, onde compartilhar vivências era escapar da dor do exílio na cidade grande. O conhecimento da experiência do outro, do estrangeiro, era também uma forma de se reconhecer nas mesmas condições, invariavelmente, adversas”.6 Nesse sentido, atentar-se ao caráter diverso que constitui o homem e a cidade de São Paulo hoje, é olhar para si mesmo, reconhecendo o outro no próprio eu, e em que medida somos uma soma de outrem em nós mesmos. Encontrar a representação dessas identidades “estrangeiras” é um meio que recupera essa relação entre cidade e cultura, tão ativa e intensa se tomarmos como exemplo o Centro de Tradições Nordestinas. Entre a carência de um espaço de encontro dos imigrantes nordestinos em São Paulo e a iniciativa do poder público Federal, é criado em 1991 o CTN, como um ponto de encontro, diversão, meio de divulgação e preservação da cultura nordestina. “O CTN nasceu também para lutar contra um grave problema enfrentado pelos nordestinos, o preconceito. Mão de obra abundante nos canteiros das grandes obras que transformavam São Paulo na maior metrópole da América Latina, constantemente os imigrantes sofriam com o preconceito. Longe da terra natal e da família e com baixa autoestima, o CTN transformou-se no refúgio ideal dos imigrantes e aos poucos passou a mostrar aos paulistas os valores trazidos da terra natal”.7 6. JORGE, Luís Antônio, op. cit. 7. Trecho extraído da apresentação do site do CTN. Disponível em: <http://www.ctn.org. br/>. 8. Ibid.

Centro de Tradições Nordestinas, Salão principal e Vila do Forró, Acervo pessoal.

Encontra-se em uma área de 27 mil metros quadrados, no Bairro do Limão, próximo à Marginal do Rio Tietê, e conta com: um parque de diversões; loja com objetos vindos de artesãos nordestinos; uma área para eventos, onde ocorrem apresentações e shows de forró, baião, e outros ritmos reunindo públicos de mais de 7 mil pessoas; uma igreja, cuja população “muito apegada a sua fé, encontra nela a força de superação frente às intempéries da vida”8; e restaurantes com sabores típicos e temperos fortes, como o baião de dois, carne de sol, e acarajé, até a cocada, tapioca, canjica e rapadura. Assim, o CTN recebe cerca de 100 mil pessoas por mês, e revela como esse patrimônio cultural tem e dá vida à São Paulo. 66



Contudo, questiona-se o CTN enquanto espaço representativo da memória desses nordestinos enquanto retirantes, cuja jornada se alonga mesmo após a chegada ao destino. Recuperar o patrimônio imaterial, intangível, da memória desses retirantes a serviço da cultura cosmopolita de São Paulo, é o ideal o qual busco alcançar através da arquitetura. Assim, em sua materialidade, o final dessa travessia se faz no projeto do Memorial da Retirância, como complemento ao atual CTN, em busca do cultivo dessa memória e sua cultura fundante em São Paulo. Partindo da cultura como um fenômeno social, é possível entender a produção da arquitetura e da cidade como manifestações do homem em seu contexto específico. Assim, trago aqui dois trechos de obras escritas do arquiteto Marcelo Ferraz, e do geógrafo David Harvey, que acredito serem pertinentes a questão da arquitetura como resposta ao anseio de grupos sociais em sua representações na cidade, esta conformada a partir de tão numerosos valores quanto diversos interesses.

9. FERRAZ, Marcelo Carvalho. Arquitetura Conversável. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011, p.79. 10. HARVEY, David. Spaces of Hope. Berkeley & Los Angeles: University of California Press, 2000, p.159, tradução própria.

“Nós, arquitetos, urbanistas, terapeutas do sofrimento humano urbano, trabalhamos na busca do conforto e, por que não dizer, da felicidade das cidades. Lutamos por planos que apontem vocações e caminhos compatíveis com nossa gente e nossa cultura. E devemos acreditar que, na falta de planos nacionais, regionais, urbanos, podemos atuar pontualmente”.9 “Do mesmo modo como produzimos coletivamente as nossas cidades, também produzimos coletivamente a nós mesmo. Projetos que prefigurem a cidade que queremos são, portanto, projetos sobre nossas possibilidades humanas, sobre quem queremos vir a ser ou, talvez de modo mais pertinente, em quem não queremos nos transformar”.10 68


SENTIDO

“Como propor projetos numa cidade que parece já ter perdido o sentido? […] Como elaborar o pensamento arquitetônico quando o abrigo fecundo das imagens poéticas, que antecedem o próprio pensamento, parecem já ter deixado de existir?”11 11. BUCCI, Angelo. São Paulo, razões de arquitetura: Da dissolução dos edifícios e de como atravessar paredes. São Paulo: Romano Guerra, 2010, p. 20–21. 12. KOOLHAAS, Rem. “A cidade genérica” In. Três textos sobre a cidade. Barcelona: Gustavo Gili, 2010. 13. SASSEN, Saskia. The Global City. New Jersey: Princeton University Press, 1991. 14. AUGÉ, Marc. Nãolugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. 15. BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Compartilhando da mesma inquietude, trago aqui o questionamento de Angelo Bucci sobre a dificuldade em se pensar arquitetura a partir da cidade atual e sua complexidade, no caso São Paulo. Como afirma o arquiteto e professor, vivemos em uma época de abundância de recursos e carência de sentidos, de modo que cabe ao arquiteto buscar a essência e coerência das coisas que nos rodeiam, para então encher de significado aquilo que traçamos. Assim, pensar a e na cidade contemporânea prescinde um novo olhar para que possamos assimilar a ordem que se estabeleceu. Em um mundo de cidades genéricas12 , globais13 e não-lugares14 , procura-se bases sólidas para firmar uma postura em meio ao pantanoso terreno da contemporaneidade. Quando “tudo que é sólido desmancha no ar”15, a atividade do arquiteto se vê em crise na medida em que tão difícil quanto encontrar insumos, é pensar espaços que guardem a contradição de serem sólidos em sua materialidade mas líquidos em sua apropriação. Parte da angústia em se atuar hoje não vem da objeto urbano como o problema em si, mas sim na necessária renovação do suporte teórico e sensível através do qual se lê esta cidade. 69


Apoiando-se nas hipóteses formuladas por Bucci, de que quando esta cidade parece não ter mais sentido, é no lugar que reside “um sentido propriamente humano para a atividade da prática de projetos de arquitetura”16 . Esse lugar como “espaço de resistência”, é o ideal que o projeto busca, valendo-se recuperar Christian Norberg Schulz em seu esforço de constituição de uma “teoria do lugar”: “O propósito existencial do construir (arquitetura) é fazer um sítio tornar-se um lugar, isto é, revelar os significados presentes de modo latente no ambiente dado”.17 Atenta-se aos significados que a palavra sentido adquire: sentido como faculdade de sentir, da percepção dos objetos exteriores; sentido como faculdade intelectual, de entendimento, julgamento e razão; e sentido como direção, e orientação de um deslocamento. Assim, a travessia a qual percorro em busca de um sentido em São Paulo, já se faz projeto enquanto processo de interpretação do lugar. Interpretação esta que se dá através das três naturezas da palavra, primeiro pelo campo sensível, em busca dos elementos que se perderam em seu desenvolvimento desgovernado, depois recuperando as razões que a fizeram, para em seguida com uma visão ativa encontrar o gesto que opere e direcione essas evidências à arquitetura, ao Memorial da Retirância. Assim, um mergulho sensível no lugar se dá a princípio guiado pelos passos de Bucci que tem o Centro de São Paulo como objeto, e com um caminhar errante investiga-se e reconstitui-se a nitidez perdida dos traços e da memória da cidade.

16. BUCCI, Angelo, op. cit., p.91. 17. SCHULZ, Christian Norberg. O fenômeno do lugar. In: NESBITT, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica, 19651995. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p.443–461. 18. CARERI, Francesco. Walkscapes: El andar como práctica estética. Barcelona: Gustavo Gili, 2002.

O termo errar nos vale uma breve observação. Errância como arquitetura da paisagem, segundo Francesco Carreri18, de modo que se transforme numa intervenção urbana. Careri desmistifica o nomadismo como anti-arquitetura e o coloca como próprio produtor de arquiteturas espaciais, como forma de arte e prática estética que pode reconstruir evidências perdidas por onde se passa. Constrói seu argumento desde a errância pré-histórica como arquitetura da paisagem que modifica os significados do espaço atravessado, até à deriva urbana, que revela zonas inconscientes e silenciadas do espaço percebidas a partir da construção de situações de experimentação lúdica nos ambientes, ao buscar a compreensão da inserção do caminho propriamente dito feito ao longo história. Analisando as relações entre percurso e arquitetura — tendo essa como construção simbólica do território — Careri divide o próprio caminhar em três partes: a travessia, como a própria ação do caminhar; a linha, criada pelo percurso como objeto; e o relato, a narrativa desse caminhar. A partir disso coloca no tensionamento das bordas entre os espaços vazios e os espaços construídos, do devir e de estar, o caminhar como intervenção estética que descreve e modifica espaços urbanos que precisam ser preenchidos de significados, antes de serem preenchidos de coisas. Apresenta uma tabela que, na 70


Lista de ações, Francesco Careri

primeira coluna, reúne uma lista de verbos, na segunda uma lista de substantivos e na terceira outros verbos mais específicos como por exemplo “sumergirse”, “adentrar-se” e “ir hacia adelante”. Entre a travessia — na qual Careri e Rosa se encontram —, a linha e o relato, inicio o errar, munido do repertório de possibilidades que a lista nos dá, em uma série de ações que se convertem em um instrumento estético para explorar e transformar os espaços de São Paulo.

71


ERR AR

Inicio o caminhar em meio ao Largo de São Bento, na praça escavada de acesso ao metrô, onde a cidade emoldura-se com o desnível em relação à rua. Faz além de um refúgio a esta, a inversão da geografia original, cujo alto do morro entre o rio Anhangabaú e Tamanduateí foi o local escolhido à implantação da modesta capela dedicada a São Bento, e que hoje cedeu espaço ao Mosteiro, marcando o vértice do Triângulo Histórico onde a cidade nasceu. Sigo pelo “lado” do Triângulo, mirando ao fundo seu outro vértice, o Largo São Francisco. Uma rua estreita, sombreada e maciçamente edificada. Mas, de início percebo uma nova condição: o prolongamento da Rua São Bento para dentro do edifício de mesmo nome. Aceito o convite deste espaço, no qual os vários níveis públicos além de abrigar um diversificado comércio, faz a ligação com a Rua Libero Badaró, abaixo. Ao fundo, um mirante criado com a topografia sublinhada pela arquitetura. Porém, miro e não vejo, graças a uma paisagem obstruída por outras arquiteturas não tão generosas.

Percurso sobre Mapa de São Paulo, 1842. N 0

50

100

200

Retomo o percurso pela São Bento, e chego à Praça Antônio Prado, antigo Largo do Rosário. No chão, os quiosques dos engraxates, o pequeno coreto, a elegante banca de jornal, e a Casa Mathilde com seus doces portugueses. No alto, o Edifício Martinelli de 1929, construído ao gosto pela altura de seu idealizador, um imigrante italiano, e cujos 106 metros o fizeram o mais alto arranha-céu da América do Sul. Aspirante ao Empire State Building, notável também é o Edifício Altino Arantes, de 1947, que se eleva a mais de 160 metros e se faz referência no horizonte também pela alta cota em que se implantou. É nessa praça particular onde também nasce a Avenida São João, por onde prossigo. 72



Salvo pelos momentos em que não é coberto pelo Elevado Costa e Silva, o Minhocão, desço o declive inicial do eixo que une visualmente o Banespa ao Pico do Jaraguá. Chegando ao Anhangabaú, me deparo com um vale seco, onde no subterrâneo escoam automóveis, e cujos alagamentos em dias de chuva recuperam à força a memória da existência de suas águas. De um lado o Viaduto do Chá, de 1892, de outro o Santa Ifigênia, de 1913. Duas transposições que uniram dois tempos e bairros, o Centro Velho e o Novo, como representação da própria superação à condição geográfica que dividiu a cidade por mais de um século. Passando pelo Palácio dos Correios, de Ramos de Azevedo, me deparo novamente com uma condição adversa, mas agora já familiar. Ao lado do cândido edifício eclético, e sob o bruto volume concreto recortado por suas janelas, uma passagem. O sol e calor são intensos, e nessa passagem a sombra refugia. Adentro a Praça das Artes, projeto do Brasil Arquitetura, e percebo um conjunto que se edifica a partir de vazios e os cria em meio a um maciço construído. Uma situação limite ocorre: a arquitetura aqui se faz entre a leveza de se elevar sobre um térreo permeável, público, que convida ao passeio quem ali passa, e o peso do volume em concreto que se apoia nos limites dos lotes. Um concreto quente em suas cores terrosas, ocre e vermelho, como em lembrança da cidade de taipa que em um dia São Paulo já foi. Pela Conselheiro Crispiniano retorno à São João, chegando no Largo do Paissandú. Nele, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, nome que mantém a herança dos descendentes de escravos que a construíram em 1906, em memória do reduto negro do século XIX. Voltada ao Largo, a Galeria do Rock, cujas curvas sinuosas dos pisos superiores sinalizam a abertura do térreo, este que se duplica graças às rampas de subida e descida. Percebo o encanto e força desse sistema de galerias, de modo que errar e acertá-las torna-se o propósito do caminhar. Atravesso-a, em meio à profusão das diversas lojas e pessoas. Imediatamente avisto outra, a Galeria R. Monteiro, de Rino Levi, com sua calçada que se alarga e seu pé direito duplo que abriga, sendo difícil precisar o momento de entrada e de saída, pela Galeria Itá. Percurso sobre Mapa de São Paulo, 1881. N 0

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Chego a Barão de Itapetininga, e no eixo da rua que se alonga por cima do Chá, chegando à Praça do Patriarca, avisto a cobertura metálica suspensa pelo pórtico de Paulo Mendes da Rocha, marcando a entrada do Centro Velho. Caminho em direção a ele. Agora o ângulo de visão contempla o Teatro Municipal, seus jardins e palmeiras centenárias. 74



Outro espaço me convida a entrar, embora este não seja o verbo mais adequado uma vez que essa passagem agora é a céu aberto. A Rua e Galeria Nova Barão se faz singular no percurso, pois as duas condições se fundem de modo ímpar em um só espaço. Chegando à 7 de Abril, um lembrete: as obras para o novo calçadão revelam como estes nem sempre estiveram aqui. O que antes pertencia aos automóveis foi conquistado pelas pessoas, pelo passeio a pé. Assim como as galerias pelas quais atravesso, que subvertem o ordenamento público-privado do térreo que domina São Paulo. Fugindo do som estridente da britadeira e das pilhas de blocos de concreto que reduziram a calçada a pouco mais de um metro, viro na Rua Dom José de Barros. Os pilares em “V” saltam aos olhos, e ao lado uma entrada que anuncia outra possível passagem, por onde entro. Passo pela Galeria Califórnia, de Oscar Niemeyer, com seus corredores sinuosos e o mural de Portinari. Saio, e retorno imediatamente a outra galeria ao lado, a Itapetininga. Agora, o percurso estreita-se, horizontal e verticalmente. Escalas e proporções variadas ora ampliam, ora comprimem o espaço. E após duas inflexões no percurso retorno à 7 de abril, ainda em obras. Sigo vendo a Praça da República ao final. Reencontro os automóveis da Avenida Ipiranga que há muito ficaram para trás. Agitação. A babel de sons faz uma cacofonia que aproxima lugares distantes: imigrantes africanos e bolivianos tentam vender seus artesanatos a turistas que respondem em algum idioma que não decifro, enquanto ouço o sotaque do Nordeste de um homem que tenta se fazer ouvir ao amigo do outro lado da grande caixa que carregam atravessando em meio ao trânsito frenético da Avenida Ipiranga. Sigo para a Rua Basílio da Gama, silenciosa. Ao final, outra condição, pois aqui a rua termina e se faz galeria, a Metrópole. No projeto de 1964, de Salvador Candia e Gian Carlo Gasperini, os percursos são muitos, de modo que o edifício se dissolve em cidade. Calçada e galeria se ligam como se sempre tivessem assim feito. Melhor alternativa não seria possível. O jardim interno pontua um verde em meio à paisagem gris, e no átrio o edifício se abre não apenas à cidade, mas a si próprio.

Percurso sobre Mapa de São Paulo, SARA Brasil, 1930. N 0

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Seguindo em frente passo pela Praça Dom José Gaspar e viro à direita rumo à Avenida São Luís. Atravesso-a sob a sombra das grandes árvores, e sigo por ela à direita. Passo pela galeria do Edifício Louvre, do arquiteto João Artacho Jurado, onde entro, mas não há saída. Retorno para fora e seguindo pela barulhenta São Luís, e chego ao Edifício Conde Silvio Penteado, cujo térreo é rua, por onde “entro”. Aqui o caráter de passagem é mais forte que o de permanência. Mas no meio da travessia, a pausa. Um olhar para o alto revela o vazio remanescente dos recuos dos edifícios que faceiam a quadra. Céu e silêncio. Sigo outro breve caminho e saio na lateral do Edifício Copan. 76



Um muro. Após o percurso e diversas travessias pelas galerias e passagens que se abriam ao passeio público, me deparo com uma barreira e a incômoda placa “Rua Particular”, ainda protegida por uma guarita frente a parede de três metro e meio de altura, delimitando e guardando um provável vazio, desconhecido. Adentro o Copan, e entre as curvas das galerias e aclives da topografia do terreno que Niemeyer fez questão de preservar, descubro que o horário de visita ao mirante da cobertura está próximo. Após uma pausa no Café Floresta, subo. O horizonte. Daqui fica claro como a geografia desenha os limites da cidade de São Paulo. Em primeiro plano o Edifício Itália, novamente marcando a presença do imigrante europeu. Ao fundo, do outro lado do Vale, o Banespa. Abaixo, o vazio. O muro avistado da rua, agora visto de cima, guarda um lote ainda desocupado. Estreito e profundo, espremido por entre os altos vizinhos, um edifício garagem, o Louvre e outro de apartamentos. Ele pode conectar tanto a Galeria do Louvre, quanto a “Rua Particular” à Rua da Consolação, mas os muros não o permitem. Acredito ser este o lugar.

Percurso sobre Mapa de São Paulo, Imagem aérea Google Earth, 2016. N 0

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PERME ABILIDADE

“O edifício não interrompe o movimento da cidade, a arquitetura não fecha nem segrega, e sim filtra e intensifica a vida”.19

19. ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna: Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.197. 20. BUCCI, Angelo. São Paulo, razões de arquitetura: Da dissolução dos edifícios e de como atravessar paredes. São Paulo: Romano Guerra, 2010, p.17–24. 21. FONTENELE, Sabrina. Relações entre o traçado urbano e os edifícios modernos no Centro de São Paulo – Arquitetura e Cidade (1938/1960). Tese de Doutorado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2010.

As galerias pelas quais atravesso um espaço via de regra privado nos térreos dos edifícios de São Paulo, acabam por borrar os limites antes impostos. Com um gentil convite ao atalho ou abrigo frente à “violência como norma”20 dos espaços aos quais se opõe, as galerias fazem um diálogo mais franco e humano com a cidade. A particular permeabilidade desses espaços traz uma natureza distinta ao chamado Centro Novo, que além de sublinhar o cosmopolitismo da cidade, converteu-se em um dos lugares do encontro desse amálgama cultural. Em sua tese de doutorado21 , Sabrina Fontenele revela como a mesma São Paulo que abria largas avenidas para circulação dos automóveis e substituía os bondes por ônibus, é a mesma cidade que fez em seu centro um novo tecido urbano no qual privado e público se confundem. Seu trabalho revela como o Plano de Avenidas de Prestes Maia, engenheiro rodoviarista e prefeito de São Paulo entre 1938 e 1945, ao passo que colocava o automóvel como centro de seus projetos de cidade, criou uma nova legislação que dava concessões especiais aos edifícios que se abrissem ao passeio público e comércio, permitindo o surgimento de espaços de convívio e passagem, além uma nova dinâmica urbana. Assim, dentro de uma metrópole que cresceu às pressas, pequenas cidades foram criadas nesses espaços, e, ao contrário das tendências de muros e barreiras atuais, se abrem generosamente em seus térreos criando extensões dos passeios públicos, com lugares de estar e encontro. 82


Segundo Herman Hertzberg, “o princípio da galeria voltou a adquirir relevância local quando o volume do trânsito nas ruas do centro das cidades tornou-se tão pesado que surgiu a necessidade de áreas exclusivas para pedestres, de um ‘sistema’ exclusivo ao longo do padrão existente das ruas”22 . Como tipologia que surgiu ainda no século XIX, Fontenele revela que nos térreos dos edifícios modernos do Centro Novo de São Paulo acessos foram abertos e diversas funções implantadas, possibilitando um refúgio ao ritmo da Pauliceia Desvairada de Mário de Andrade em seu modernismo. Assim, uma solução moderna foi dado à problemática moderna que o automóvel implica: a liberação do térreo pelos pilotis. Com a abertura de acessos e a instalação de diversas funções nos térreos dos edifícios modernos do Centro Novo, em sua maioria, muitos construídos nas décadas de 1950 e 1960, acabaram por explorar a ligação com a calçada, ao incorporar lojas, galerias, mezaninos e marquises, constituindo uma permanente interação dentro-fora. Como extensão das ruas, seus térreos se configuratm como espaços de permanência e passagem das pessoas que trabalham, moram, circulam e se divertem na região. Assim, a fronteira entre o público e o privado mostra-se bastante nebulosa, uma vez que os acessos facilitam-se, os corredores funcionam como eixo de circulação e os pontos comerciais geram locais de permanência. A permeabilidade no pavimento térreo possibilita o aparecimento de novos caminhos por dentro das quadras e contribui para a ligação entre áreas, funcionando, elas mesmas, como novos espaços públicos. A arquitetura se fez moderna em São Paulo dentro de um contexto de grandes transformações urbanas, geradas pelo crescimento territorial, demográfico e econômico. Contrária à ideia de uma cidade dispersa, na qual a expansão das indústrias se davam em lugares afastados assim como as periferias e a “cidade “informal”, no Centro Novo uma nova vitalidade urbana surgia graças à diversidade de funções que abrigavam e o desenho de seus espaços. Pilotis, corredores-ruas, acessos por diferentes níveis, a liberação do térreo e a construção de galerias comerciais acabaram por enfatizar a íntima relação entre os espaços internos e externos das construções modernas, além de suplantar a ordem público-privado que prevalecia, fazendo-se, assim, espaços privados com características de espaços públicos. 22. HERTZBERG, Herman. Lições de arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.76.

Após recuperar a razão e motivos desses espaços, encontro outra base de apoio, e é com esse espírito que caminho em direção ao projeto. 83


23

22

Percurso e galerias do Centro de São Paulo

1. Edifício Eiffel 2. Edifício Copan 3. Edifício Itália 4. Edifício Conde Silvio Penteado

18 20

5. Edifício Louvre

19

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6. Conjunto Zarvos e Ambassador 7. Galeria Metrópole 8. Edifícios Esther e Arthur Nogueira

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9. Galeria Itapetininga

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10. Galeria Califórnia 11. Galeria Louzã

12 13

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12. Galeria das Artes

7

13. Galeria 7 de Abril 14. Galeria Ipê

8

15. Galeria Nova Barão 16. Galerias Itá e R. Monteiro

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17. Galeria Guatapará 18. Grandes Galerias 19. Conjunto Presidente 20. Galeria Olido

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21. Galeria Apolo 22. Praça das Artes 23. Galeria São Bento

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TRAVESSIA, LINHA E RELATO


ARQ UITE T UR A

A travessia é o cerne. Vital para a compreensão de Grande Sertão e que o encerra, a travessia é o que investigo com o Memorial da Retirância. Travessia que busca se fazer projeto através de um percurso, cujos passos traz sentido à arquitetura.

23. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 20ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p.334. 24. JORGE, Luís Antônio. Memória e cultura na cidade contemporânea. In. O arquiteto e a cidade contemporânea (Org.) GUERRA, Abílio. São Paulo: Romano Guerra Editora, 2009, p.96–103.

Corredor de acesso do Museu Judaico. Acervo pessoal. Interior da Cúpula da Santa Maria del Fiore. Acervo pessoal. Tindaya, Eduardo Chillida. Casa Poli, Pezo Von Ellrichshausen.

Percurso que desenha o edifício e pauta sua lógica, à exemplo do que Daniel Libeskind faz no Museu Judaico em Berlim. Percurso público, que se interliga ao das galerias do Centro, trazendo para o plano vertical a ordem urbana que se coloca na horizontal. Percurso que se desenvolve em uma espiral, em semelhança à família vagando pelo sertão em Vidas Secas. Percurso que faz a relação entre o externo e o interno por meio de fragmentos, no qual diferentes paisagens são avistadas, e por seu impacto o moldam, como Severino ao longo do Capibaribe. Percurso que em sua variedade de alturas “aperta e daí afrouxa”23, como a vida que Riobaldo declara. Percurso que traz a instabilidade pela condição limite em que se coloca, como a experiência de adentrar à cúpula do Duomo di Firenze, ou Santa Maria del Fiore, de Filippo Brunelleschi. Percurso que conforma um vazio monumental em sua verticalidade, aberto ao céu em seu topo e por onde é iluminado, como o projeto de escavação do escultor Eduardo Chillida na montanha Tindaya da Ilha Canária de Fuerteventura. Percurso que encontra amparo no que os arquitetos Mauricio Pezo e Sofia Von Ellrichshausen realizam com a Casa Poli, à encosta da Península de Coliumo, no Chile, em que “o tempo está tensionado pela reação entre o interior e o exterior, em um jogo ininterrupto de surpresas e ambiguidades perceptivas entre o dentro e fora (o dentro dentro do dentro e o fora dentro do dentro), de desconforto causado pela insegurança (da possibilidade da queda no abismo), regendo a aventurosa circulação pelo edifício, em um movimento ascendente, realizado em atos descontínuos de andar e parar, de ver e não ver, para, no topo do edifício receber o panorama estupendo da paisagem total”.24 86



Primeiros estudos




Assim, o projeto do Memorial da Retirância, se faz no lote vazio encontrado ao longo do percurso percorrido no Centro. Um terreno de 118 metros em sua maior dimensão, e 21 na menor, e uma área de 2500m2. De um lado a “Rua Particular”, anotada no projeto como nível 0, e que dá acesso às galerias e subsolo do Edifício Copan. Em seu outro extremo a Rua da Consolação, 6 metros acima.

Iniciando o percurso no nível 0, ao lado do Copan, se desce 1 metro para chegar à entrada inferior. Esta é escura e comprimida por um pé direito de 2,30 metros, e então chega-se ao vazio. O espaço da praça central agora é comprimido a uma largura de 10 metros, mas com uma profundidade de 60 e uma altura que varia em função dos planos que acima cruzam esse hiato. Esta praça é cidade. Abre-se a ela tanto em suas conexões quanto em sua condição de fechamento superior, que inexiste. Espaço que acolhe aquilo que lhe acontece: o passeio, o estar, a festa, o sol, a chuva. Assim, o maciço edificado que se verifica por fora, em seu interior abriga uma ausência a ser ocupada pela vida da cidade e pelo cultivo da memória da retirância.

Recuados em relação ao perímetro do terreno, dois planos circundam o lote e se elevam a 100 metros do solo. E dessa condição, diversas possibilidades surgem ao projeto. Do recuo, abre-se uma passagem em rampa para conectar os dois níveis, atravessando a barreira que o muro coloca hoje. Entre os planos, o percurso. O afastamento de 2 metros garante a passagem e abriga conjuntos duplos de escadas rolantes, que vencem a altura do edifício. Este percurso tem sempre uma constante: para cada volume que abriga um programa, uma praça que o antecede. Ao longo do percurso janelas de diversas escalas se abrem ora para fora, ora para “dentro”, confrontando diferentes momentos e paisagens, podendose vislumbrar o horizonte ou o nada, pelas empenas dos edifícios vizinhos.

Nesse nível, rompe-se também com uma segunda barreira. A galeria no térreo do edifício vizinho Louvre, sinaliza uma passagem que ainda não existe. Sua estrutura está pontuada nos corredores de sua galeria, que por sua vez está na mesma cota da praça central proposta. Na face adjacente ao terreno do projeto verifica-se um módulo comercial, livre em sua planta, e da sua remoção é por onde atravessamost. Assim, a permeabilidade no térreo do Centro unifica-se em mais um ponto, e no encontro desses percursos, a subida.

Estruturalmente, os planos se estabilizam pelos pisos e pelas vigas que os ligam, unificando ambos. A esbeltez dos planos é possível já que é a largura total do conjunto que trabalha para amenizar o momento intenso no eixo transversal. Este, ainda é reduzido pelos dois núcleos, ou cores, que trabalham travando todo o corpo do estreito e alto edifício. Nestes núcleos, de 10x11m, locou-se os elevadores, escadas de emergências, áreas de apoio, sanitários, shafts, e reservatórios superiores e inferiores.

O subsolo é acessado tanto por automóveis pelo nível 0, quanto por um elevador de cargas pela Consolação. Conta com: um pequeno estacionamento; áreas técnicas e de apoio; vestiários e cozinha para os funcionários; e a reserva do acervo e área de preparação. Na praça, bilheterias, guarda-volumes, uma pequena loja e a administração.

Assim, os programas que compõe o edifício são: um auditório; oficinas e áreas de estudo; salas expositivas, área de reserva do acervo e preparação das obras; e a feira, com um mercado e um restaurante.

O percurso inicia-se subindo pela vereda delimitada entre os planos. 7 metros acima da praça central, outra entrada, agora pela Rua da Consolação.

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O auditório é abrigado por um volume de 15x25 metros, há 15 metros acima do chão. Seu foyer é a praça que lhe dá acesso, e tem a capacidade para 220 pessoas. Abaixo da plateia, ficam áreas técnicas e de apoio, e um corredor lateral faz a ligação entre esses espaços e o core, onde ficam os camarins e saídas de emergência.

museu há 30 metros abaixo. No maior, os volumes que abrigam os programas e suas praças, atravessando o vazio e apoiandose nos planos laterais. O percurso segue. Após subir a um nível acima daquele que bloqueava o olhar, e que está abaixo apenas dos edifícios Copan e Itália, é possível, finalmente, mirar e ver de fato cidade.

No volume de 15x25 as oficinas que se organizam em dois níveis: abaixo, uma área completamente livre, com mesas de estudos e cadeiras que podem se adequar à diversas atividades; acima, permitido pelo pé direito de 8 metros, um mezanino suspenso por tirantes, com espaços separados por paredes de 2 metros de altura, onde possam acontecer cursos e atividades em conjunto. Em um total de 1100 metros2 as áreas expositivas também se fazem ao longo de um percurso, que pode ser percorrido tanto subindo quanto descendo, iniciando-se tanto na praça do nível 50 metros quanto na do nível 70. Em quatro volumes que se interligam pelos corredores laterais entre os planos, seus espaços variam em escala e proporção, a fim de abrigar as diferentes obras a serem expostas. A culinária, um dos elementos da cultura do Nordeste mais difundido em São Paulo vem quase ao final do percurso. Em um volume de 15x30 há 86 metros do chão, este espaço abriga um mercado de produtos típicos abaixo e um restaurante acima. Adjacente ao mercado, uma área de apoio com espaço recepção dos produtos, lavagem, estocagem e um depósito de resíduos. Bem como acima, onde ficam a cozinha e área de preparação do restaurante. Há 102 metros acima do solo, o mirante. O percurso público que iniciou-se ainda nas galerias do térreo da cidade, traz aqueles que o atravessam até o topo em dois momentos. No primeiro, a expectativa da chegada não encontra o horizonte, apenas céu. O caminho ainda não terminou. Percorrendo-o vê-se os dois grandes vazios. No menor, a praça do 93


NOVA LIGAÇÃO


NÚCLEOS DE ELEVADORES, ESCADAS DE EMERGÊNCIAS, ÁREAS DE APOIO, SANITÁRIOS, SHAFTS, E RESERVATÓRIOS SUPERIORES E INFERIORES


EDIFÍCIO LOUVRE

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ACESSOS, PERCURSO E PRAÇAS

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FEIRA PERCURSO EXPOSITIVO OFICINA AUDITÓRIO ADMINISTRAÇÃO E APOIO ÁREAS TÉCNICAS E RESERVA DO ACERVO

PROGRAMAS


CORTE TRANSVERSAL


CORTE LONGITUDINAL


VISTA DA COBERTURA DO ED. LOUVRE


ACESSO INFERIOR


CONEXÃO COM A GALERIA DO EDIFÍCIO LOUVRE


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PLANTA NÍVEL -5 SUBSOLO 1:500


PRAÇA CENTRAL


PRAÇA CENTRAL


PRAÇA CENTRAL


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PLANTA NÍVEL –1 PRAÇA CENTRAL, ACESSO E CONEXÃO COM O ED. LOUVRE 1:500


VEREDA


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PLANTA NÍVEL +6 ACESSO RUA DA CONSOLAÇÃO 1:500


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PLANTA NÍVEL +15.5 AUDITÓRIO, APOIO E CAMARINS 1:500


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PLANTA NÍVEL +18 PRAÇA E ACESSO AO AUDITÓRIO 1:500


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PLANTA NÍVEL +30 PRAÇA E ACESSO ÀS OFICINAS 1:500


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PLANTA NÍVEL +34 OFICINA E MEZANINO 1:500


VISTA ACIMA


VISTA ATRAVÉS


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PLANTA NÍVEL +50 PRAÇA E ACESSO ÀS ÁREAS EXPOSITIVAS 1:500


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PLANTA NÍVEL +54 ÁREA EXPOSITIVA E MEZANINO 1:500


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PLANTA NÍVEL +62 ÁREA EXPOSITIVA 1:500


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PLANTA NÍVEL +66 ÁREA EXPOSITIVA 1:500


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PLANTA NÍVEL +70 PRAÇAS, CAFÉ E ACESSO ÀS ÁREAS EXPOSITIVAS 1:500


PRAÇA DE ACESSO ÀS ÁREAS EXPOSITIVAS


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PLANTA NÍVEL +86 PRAÇAS E ACESSO À FEIRA 1:500


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PLANTA NÍVEL +90 RESTAURANTE 1:500


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PLANTA NÍVEL +94 SAÍDA À PRAÇA DA COBERTURA 1:500


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PLANTA NÍVEL +100.7 PRAÇA DA COBERTURA 1:500


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PLANTA NÍVEL +102 MIRANTE 1:500


COBERTURA


MIRANTE


CORTE A ACESSO, CONEXÃO COM O ED. LOUVRE E PERCURSO 1:500


CORTE B PRAÇA CENTRAL, PERCURSO, OFICINAS, SALAS EXPOSITIVAS E FEIRA 1:500


CORTE C ENTRE PLANOS E PERCURSO 1:500


CORTE D CORES, PRAÇAS E VOLUMES DOS PROGRAMAS 1:500


ELEVAÇÃO SUL RUA DA CONSOLAÇÃO 1:500


ELEVAÇÃO NORTE ACESSO 1:500


ELEVAÇÃO OESTE CONEXÃO À RUA DA CONSOLAÇÃO 1:500


ELEVAÇÃO LESTE CONEXÃO COM O ED. LOUVRE 1:500


Projectar: há um princípio quase em nebulosa, raramente arbitrário. Perpassa a história toda, local e estranha, e a geografia, história de pessoas e experiências sucessivas, as coisas novas, entrevistas, música, literatura, os êxitos e os fracassos, impressões, cheiros e ruídos, encontros ocasionais. Uma película em velocidade acelerada suspensa aqui e ali, em nítidos quadradinhos. Uma grande viagem em espiral sem princípio nem fim, na qual se entra quase ao acaso. Comboio assaltado em movimento. É preciso parar e ser oportuno na paragem. Agora entre a razão, com os seus limites e a sua eficácia. Talvez retomar a viagem?


VIEIRA, Álvaro Siza. Álvaro Siza: 01 Textos. Porto: Civilização Editora, 2009, p. 317.

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DESENL ACE

Pensar a questão da migração é, sobretudo, pensar uma ausência, pois um vazio permanece após a cisão que divide aquele que migra. Entre uma vida que permanece em sua origem e outra que se lança a uma nova, a experiência, a travessia. Procurar os fragmentos que a compõe tornou-se a intenção desse trabalho. Realizá-lo foi embarcar em uma viagem que encontrou seu caminho ao percorrê-lo. Viagem que seguiu os passos dos tantos retirantes que à São Paulo chegaram, e nesse destino buscou encontrar um sentido em amparo à arquitetura. Projeto que se faz através de um percurso e nesse gesto encontra o caminhar de uma vereda um meio possível de recuperar a memória da retirância. Este caminhar foi incerto e seu destino muito diverso daquele imaginado em seu início. Entretanto, ao longo das conversas com o professor Luís Antônio Jorge fica a lição que carregarei comigo: o aprender a fazer é o verdadeiro aprendizado. 139


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140


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