Alvará de Funcionamento da CAIXA Cultural RJ: n° 041667, de 31/03/2009, sem vencimento.
Este catálogo tem distribuição gratuita e não pode ser comercializado.
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www.caixacultural.gov.br ofaroestevermelho.com.br facebook.com.br/ofaroestevermelho
A CAIXA é uma empresa pública brasileira que prima pelo respeito à diversidade, e mantém comitês internos atuantes para promover entre os seus empregados campanhas, programas e ações voltados para disseminar ideias, conhecimentos e atitudes de respeito e tolerância à diversidade de gênero, raça, orientação sexual e todas as demais diferenças que caracterizam a sociedade. A CAIXA também é uma das principais patrocinadoras da cultura brasileira, e destina, anualmente, mais de R$ 80 milhões de seu orçamento para patrocínio a projetos nas suas unidades da CAIXA Cultural, além de outros espaços, com ênfase para exposições, peças de teatro, espetáculos de dança, shows, festivais de teatro e dança e artesanato brasileiro. Os projetos patrocinados são selecionados via edital público, uma opção da CAIXA para tornar mais democrática e acessível a participação de produtores e artistas de todo o país. A mostra O FAROESTE VERMELHO pretende apresentar ao público uma cinematografia rara, desconhecida, mas de imensa riqueza cultural. São filmes produzidos em diferentes países dentro da Cortina de Ferro, filmes populares que ousaram flertar com os códigos e estéticas de gênero para transmitirem sua força. A mostra O FAROESTE VERMELHO é uma iniciativa pioneira e dá oportunidade para que, pela primeira vez, o público brasileiro tenha acesso a este conjunto de obras. Ao patrocinar mais esta mostra para o público carioca, a CAIXA reafirma sua política cultural de estimular a discussão e a disseminação de ideias, promover a pluralidade de pensamento, mantendo viva sua vocação de democratizar o acesso à produção artística contemporânea. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL
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D U A S O U T R ÊS PA L A V R A S SOBRE O W E S T ERN
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O Indianerfilm da DEFA comO artefato de resistência
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por Pedro Henrique Ferreira e Thiago Brito
FA R O E S T E S por Sergey Lavrentiev
por Hernani Heffner
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por Evan Torner
I ND I ANERF I LME : E S P E T Á C U L O, R E A L I S M O, A B S T R A Ç Ã O por Luís Alberto Rocha Melo
CSIKÓS, PUSZTA, GOULASH: OS IMAGINÁRIOS DA FRONTEIRA HÚNGARA EM O VENTO ASSOBIA SOB OS PÉS E A FUGA DE BRADY por Sonja Simonyi
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por Vsevolod Ivanov
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AS NOVAS AVENTURAS DOS VINGADORES INVISÍVEIS (1968)
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INVENTANDO O aMANHa por Pedro Henrique Ferreira e Thiago Brito Há uma memória universal do que é um western: cowboys vagando pelos desertos do Velho Oeste, enfrentando um fora da lei ou tribos indígenas, em batalhas entre o progresso e o passado num território anteriormente hostil. Da névoa de nossas lembranças, surgem as diligências, os cavalos, os fortes, as Winchesters, os canyons, o deserto e os rios; e também ícones como Wyatt Earp, Doc Holliday e Jesse James. Um gênero que nasce histórico, que faz remissão ao processo de constituição da nação norte-americana. É a elaboração de um passado, o processo crepuscular de um velho mundo em atrito com um novo mundo democrático. Quando nos deparamos com este punhado de faroestes vermelhos, percebemos que estamos diante de uma iconografia tão absolutamente diferente que vemos esfacelar-se aquela antiga morada onde guardávamos intactas as ideias que fazíamos do gênero. Resta-nos apenas a indagação: são estes, afinal, westerns? Obras que tratam de soldados bolcheviques enfrentando a restauração do exército branco, no delimitado período da Guerra Civil Russa, entre os anos de 1917 e 1920, nas cordilheiras da Ásia Central ou no interior desértico da Cortina de Ferro. Heróis revolucionários com baionetas. Vilões imperialistas ou monarquistas. Tiroteios em ambientes áridos, desérticos. Por que não se trataria de filmes de guerra? Ou de aventura, como foram chamados por muito tempo? De certo, o espectador mais desavisado irá encaixá-los em uma dessas duas categorias. Western é que estes filmes não são!
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Mas existem dados históricos incontornáveis, uma genealogia que derrota o que a mera percepção da aparência das coisas intenciona rotular. O faroeste vermelho, assim como o faroeste clássico, é uma construção, um processo social. Como nos recorda o historiador Sergey Lavrentiev em seu seminal “O faroeste vermelho”, o gênero foi pensado como um projeto governamental, a partir da influência dos raros westerns norte-americanos cuja exibição pública era permitida na União, nas projeções secretas mantidas pelo cinéfilo Stalin e por outros líderes. O faroeste fez parte de um empreendimento propagandístico para ressaltar certa ideologia e enfrentar outra.Tem um início, um meio e um fim. Nessa desconhecida história, principalmente aqui no Ocidente, não há o que simples aparências – imagens, símbolos, cenários e temas – possam negar sobre a fonte da qual esse singular gênero soviético bebeu. Outra pergunta se impõe: como os soviéticos entenderam o faroeste? Assistiram a Sete homens e um destino (John Sturges,1962), um dos maiores sucessos cinematográficos nos territórios socialistas daquele momento, exibido em salas de cinema, mas também em estádios de futebol e casas de show. O que depreenderam e extraíram dele para ilustrar sua própria história, já que eles não podiam mais usar os célebres mitos yankees, os cenários, as situações e os objetos, tampouco a forma estética tradicional da narrativa clássica hollywoodiana (essa já havia sido abolida havia décadas, desde o pensamento artístico construtivista)? Por exemplo, o que sobrou a Ali Khamraev quando ele realizou o impressionante A sétima bala (1972), cujo próprio título faz menção ao legado do western? Não há resposta pronta. Em última instância, o que há é a ação. Quando o soldado vermelho do longa-metragem de Ali Khamraev retorna para o forte de seu batalhão e descobre que praticamente todos os seus soldados o traíram e juntaram-se ao regimento do exército branco, ele não questiona a si mesmo, seus ideais, nem suas estratégias ou a lógica maior daquilo que punha sua própria revolução em movimento. Os homens à sua volta o abandonam por não se sentirem parte daquilo. Mas ele persiste. Persiste não porque deseja seduzir o povo de forma cerebral, fazendo-o aderir às suas crenças, mas porque está disposto a defendê-las até o final, ainda que isso envolva matar ou morrer. É pura ação porque ele não se questiona: prepara a sua sétima bala para colocá-la na testa do adversário do exército branco, que o enganou e se tornou mestre de todos os soldados. Uma cena
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evidencia o fato: o bolchevique vocifera ordens a seu ex-batalhão, mas elas são ignoradas. No afã de seu próprio idealismo, ele não tem pudor em atirar no soldado que, pouco tempo antes, o seguia. O que no faroeste vermelho faz um mundo sobrepor-se ao outro é a ação, esse misto de força e tragédia que restabelece o homem como grande ator de seu destino. Nesse sentido, o faroeste vermelho não é tão somente o gênero soviético por excelência, talvez seja também o último canto do cisne do stalinismo. Mas há ainda mais do que isso. O herói do faroeste é o que é porque, de algum modo, transborda paixão, porque, a partir dos escombros de seu velho mundo, reúne a força para um último ato heroico. O John Wayne de O homem que matou o facínora (John Ford, 1962) ia contra as regras da sua própria forma de viver.Atirava em Liberty Valance pelas costas simplesmente porque amava, porque era necessário. Para a maioria dos heróis do faroeste, não há complicações maiores, não há visões mais amplas do contexto e daquilo que está em jogo. Há uma paixão, uma pistola, um obstáculo e um enorme senso de urgência. São personalidades do Velho Oeste, intelectualmente rudimentares e sentimentalmente complexas. Os bolcheviques desses filmes são muito convencidos da ideologia pela qual batalham, são apaixonados por ela. Como afirma Khamraev na entrevista publicada neste catálogo, o que está em jogo é uma paixão genuína, quase obcecada, e uma crença infindável na invenção desse mundo do amanhã. Não à toa, houve o retorno a 1917: esse era o momento no qual a paixão se justificava plenamente, sem meias palavras, sem um desenrolar histórico que a pudesse contradizer. A História é para o protótipo do faroeste vermelho o que ela era para o Roberto Rossellini tardio. Um momento ideal, no qual a utopia não é uma quimera, mas uma realidade possível, pela qual vale a pena batalhar, matar e morrer (não à toa, estes filmes são, em sua maioria, mais realistas do que românticos, mais trágicos, mesmo na vitória, do que idealizados). Do mesmo modo que o faroeste norte-americano retornava no tempo para encontrar o momento em que sua democracia era incipiente, os faroestes vermelhos vão ao encontro do momento inaugural da construção de seu presente. Homens e mulheres apaixonados por um novo mundo a surgir, enfrentando, com máxima urgência, o que precisa ser enfrentado. O faroeste vermelho é isso e nada mais.
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O GUARDA-COSTAS (1979)
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F A R O E S T E S V E R M E L H O S por Sergey Lavrentiev
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Existe mesmo um western russo? Como não houve faroestes produzidos no país antes da revolução bolchevique, tampouco depois do colapso da União Soviética, em 1991, não podemos, na realidade, falar em um gênero de westerns russos. No entanto, um conjunto de filmes produzidos na URSS no período entre a década de 1920 e a de 1980 pode ser considerado como pertencente ao gênero faroeste vermelho. Na União Soviética, a palavra russo não era utilizada, embora não fosse proibida. Referir-se à cultura russa era falar de uma cultura anterior à revolução, enquanto falar em soviético era referir-se a estonianos, tadjiques, georgianos e moldavos – não somente a russos. Então, fazia sentido reunir os westerns “russos” sob o rótulo de faroestes vermelhos. Na União Soviética, o faroeste norte-americano era acusado de ser um gênero reacionário, que elogiava os colonizadores brancos que haviam invadido territórios e assassinado índios inocentes. Esses filmes foram distribuídos por lá apenas durante os anos 1920, embora alguns ainda tenham passado nas telas soviéticas após a Segunda Guerra Mundial, quando parte do arquivo germânico foi conduzido de Berlim a Moscou, em 1945. Entre a década de 1950 e a de 1980 – nos últimos 40 anos do comunismo – somente cinco títulos foram distribuídos! No entanto, a paixão que o gênero suscitava no público era enorme. Por exemplo, o lançamento de Sete homens e um destino (John Sturges), em 1962, foi uma febre nacional. O longa-metragem foi exibido não somente em salas de cinema, mas também em estádios esportivos.
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Os chefes de Estado decidiram, então, permitir que se produzissem faroestes vermelhos – westerns ideologicamente corretos, com o conteúdo mais adequado. Houve dezenas desses produzidos na União Soviética; mas, como a palavra que define o gênero carregava, por si só, conotações muito negativas, ninguém os chamava de faroestes oficialmente. Eles eram chamados de “aventuras heroicas”. Alguns desses filmes fizeram enorme sucesso de público – como Os diabinhos vermelhos (Ivan Perestiani, 1923) e seus remakes e sequels; Os Vingadores Invisíveis (Edmond Keosayan, 1967); e As novas aventuras dos Vingadores Invisíveis (Edmond Keosayan, 1968). Às vezes, os filmes tinham ambições artísticas elevadas, como Os treze (Mikhail Romm, 1936) e Ninguém queria morrer (Vitautas Zalakiavichus, 1966). Os faroestes vermelhos soviéticos têm a sua própria história, com um começo brilhante, no início dos anos 20, e um final trágico, no fim dos anos 80. Essa história pode ser lida como um espelho da história da URSS ao longo do século XX. E de sua censura.
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A década de 1920 foi provavelmente a mais interessante da história do cinema soviético, incluindo aí o brilhante início dos faroestes vermelhos. Em 1924, o pioneiro Lev Kuleshov fez a primeira obra soviética conhecida mundo afora, As aventuras extraordinárias de Mr.West na terra dos bolcheviques. A trama de um empresário norte-americano pego e assaltado por um grupo de ladrões em Moscou é um clássico do cinema soviético. Todos os atores eram alunos de Kuleshov, futuras lendas e cérebros da arte – entre eles, Boris Barnet, que fez o papel do cowboy Jeddie, guarda-costas do Sr. West que vai a Moscou salvar o seu patrão. Os momentos em que Barnet participa de jogos de cowboy marcaram o início dos faroestes vermelhos, embora As aventuras extraordinárias de Mr. West... não chegue a ser um faroeste em si mesmo. Havia breves episódios que nos recordavam o gênero. Não obstante, é fácil perceber como os faroestes norte-americanos serviram de inspiração a Kuleshov nesse primeiro clássico do cinema soviético. Por que Mr. West? Em 1924, não existiam relações diplomáticas entre os EUA e a URSS. Havia relações diplomáticas entre a União Soviética e a Alemanha. Então por que não “Herr Schmidt”? A resposta é simples: porque o companheiro Kuleshov adorava o cinema norte-americano. Ensinando no Instituto de Cinema, ele costumava dizer a seus alunos que aprendessem com
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Hollywood como realizar filmes. Nada de atores – apenas atletas. Nada de drama – apenas ação. Nada de cenários montados – filmagens ao ar livre. O western é justamente um gênero de atletas, ação e cenas ao ar livre. Curiosamente, os episódios de Jeddie em As aventuras extraordinárias de Mr.West na terra dos bolcheviques são os mais interessantes. O figurino do personagem está completamente deslocado enquanto ele flana pelas ruas da Moscou bolchevique do princípio dos anos 1920. Sendo um pioneiro da teoria da montagem no cinema soviético, Kuleshov utilizou o uniforme clássico de cowboy e o físico atlético de Boris Barnet como elementos de contraste em relação à paisagem urbana. Esse era um exemplo perfeito do que o diretor soviético entendia que era a montagem – o ato de retirar alguém do Velho Oeste e colocá-lo na cidade moderna. Em 1924, um diretor da Geórgia, Ivan Perestiani, realizou Os diabinhos vermelhos, uma adaptação da novela escrita por um ex-combatente da Guerra Civil Russa (1917-1923), conflito entre o exército vermelho, aliado a outras forças revolucionárias, e o exército branco, reunido contra o poderio bolchevique. O livro e o filme narravam a história do ponto de vista do exército vermelho. Por isso, ambos se tornaram populares entre os jovens leitores e cinéfilos. O longa-metragem era como que uma cópia direta dos faroestes norte-americanos que estavam sendo distribuídos naquele momento no bloco comunista. Esteticamente, não era um filme muito interessante, mas, do ponto de vista comercial, Os diabinhos vermelhos tornou-se um dos primeiros hits do cinema soviético. Perestiani dirigiu sequels, mas nenhuma delas foi tão bem quanto o primeiro filme, que inclusive chegou a ser relançado três vezes até o final da década de 1950. Os diabinhos vermelhos é uma trama típica de western sobre um irmão e uma irmã que veem seu pai sendo assassinado por bandidos e, logo, decidem vingá-lo. Eles encontram novos amigos, e suas aventuras têm início. Os diabinhos vermelhos tornou-se a pedra fundamental da história do faroeste vermelho. E não só por conta do sucesso de público. O filme demarcou principalmente o tema, o objeto e o lugar da ação da maioria dos red westerns posteriores: a Guerra Civil entre 1918 e 1921. Enquanto nos filmes norte-americanos pessoas migravam para lugares inexplorados, batalhando e constituindo a nova nação, aqui as pessoas destroem a velha ordem, lutando e inventando a nova nação soviética.
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Nos anos 20, centenas de faroestes norte-americanos foram distribuídos por empresas soviéticas.As pessoas tinham permissão para assistir a esses westerns. Naquela época, Os diabinhos vermelhos era um caso único, mas, mesmo assim, deu o pontapé inicial do gênero, apesar de não ter chegado a estabelecer as suas características principais. À medida que Stalin se tornava o “grande líder” da União Soviética, a abertura do sistema de distribuição chegava ao fim. A atividade foi estatizada e passou por medidas protecionistas, como tudo na URSS, incluindo o próprio povo. Filmes estrangeiros sumiram de cena. Mas, para os realizadores, principalmente nos quartéis, havia projeções secretas dos novos filmes realizados no Ocidente capitalista. O único western do sangrento período de Stalin é Os treze, do jovem Mikhail Romm. O filme narra a história de treze soldados da guarda vermelha que lutam no deserto, durante a Guerra Civil Russa, contra o exército branco antibolchevique, que pretende invadir a União Soviética pelas fronteiras do Sul. Esteticamente, é uma interessantíssima química entre o grande cinema silencioso dos anos 20 e os primeiros experimentos sonoros. Ele exibe incríveis trabalhos de montagem, com uma mise-en-scène mais realista, cheia de truques acústicos. Sabendo que o filme foi realizado em 1936, é possível perceber os ecos de A patrulha perdida (John Ford, 1934), e é praticamente certo que a ideia de fazer uma versão soviética do longa-metragem de Ford tenha nascido após uma exibição privada do filme norte-americano para os líderes do partido. Stalin era um entusiasta do cinema. Ele organizava exibições quase diariamente no Kremlin. Assistia a todas as produções soviéticas realizadas na década e a muitos filmes estrangeiros também. Era um grande admirador dos westerns. Mais tarde, nos anos 60, o diretor Mikhail Romm, tendo se tornado uma figura-chave do establishment liberal soviético, explicou em seu livro de memórias que a ideia de realizar Os treze lhe foi sugerida pelo Ministro da Guerra do governo de Stalin, Clement Voroshilov, que havia assistido ao filme A patrulha perdida em uma das projeções fechadas. Podemos supor que Voroshilov era um mensageiro de Stalin, que queria assistir a um western soviético. Mas como seria esse faroeste? Com Os treze, Mikhail Romm fez as alterações mais básicas – serviu-se da estrutura clássica do gênero e mudou sua roupagem. Cowboys agora vestiam o uniforme
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do exército vermelho, e os índios, outrora os vilões, quase não eram vistos até o final. Stalin adorou o longa-metragem e ordenou que Romm fosse o diretor da versão oficial da revolução bolchevique, Lenin em outubro, que teve estreia no Teatro Bolshoi, no vigésimo aniversário da revolução, no dia 8 de novembro de 1937. Os treze estreou no início de 1937 e teve distribuição soviética até a queda do sistema, em 1989.
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O primeiro filme realizado durante a Segunda Guerra Mundial foi Secretário do partido, de Ivan Pyriev. Não foi apenas o primeiro western em que um bravo soldado kolkhoz lutava contra os nazistas, foi também um filme quase antistalinista. O partido e o próprio Stalin eram mencionados brevemente. Mas as pessoas não lutavam por eles, lutavam por sua própria pátria. Era como um faroeste norte-americano, com pouquíssimas diferenças. É por isso que, após uma estreia de sucesso em 1942, as autoridades queriam que a plateia esquecesse o filme. Ele foi criticado por seu roteiro, por suas atuações e por não glorificar o partido e sua grande participação na Guerra. Em 1963, Pyriev fez uma nova versão do filme, cortando os episódios curtos que retratavam Stalin. O remake de Secretário do partido se tornou ainda mais americanizado – nada soviético, muito distante das diretrizes do governo. Secretário do partido também foi o primeiro filme em que a espiritualidade russa e a igreja ortodoxa foram retratadas de forma positiva. Com esse western, o cinema soviético dizia aos frequentadores de cinema que o comunismo e a igreja poderiam estar conectados. O roteiro de Secretário do partido é de Josef Prut, que também roteirizou Os treze, no qual o personagem do soldado russo era a figura mais contrarrevolucionária. Nesse filme, quando o coronel germânico captura o herói, ele promete matar seus amigos e crucificar o secretário do partido! Em síntese, Secretário do partido é um filme sobre pessoas lutando por seu território com a ajuda de Deus. Se isso não é a definição de um western, o que é?
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A década teve início com o faroeste Povo corajoso (1950), realizado por Konstantin Yudin, ordenado pessoalmente por Stalin. O “grande líder” envelheceu, e tornou-se mais difícil para ele assistir a todos os filmes soviéticos. Ele ordenou que se produzissem menos filmes, mas que fossem obras que lhe interessassem mais pessoalmente. Depois da guerra, a NS Reichsfilmarchiv foi levada de Berlim a Moscou. Assim, Stalin teve a oportunidade de assistir a alguns de seus faroestes prediletos, que eram parte da coleção alemã. Depois de uma projeção, é dito ter indagado: “Por que não fazemos filmes sobre as nossas guerras e vitórias?! Veja como os americanos conseguem mostrar a sua própria história. Por que nós não fazemos isso?” Não era uma pergunta exatamente. Era uma ordem. O roteiro de Povo corajoso tinha de ser escrito pelos grandes dramatistas Mikhail Volpin e Nikolai Erdman – artistas judeu-alemães. Um deles foi preso em um campo de concentração e o outro foi para o exílio no início dos anos 50. No entanto, eles conseguiram escrever um filme popular. Povo corajoso foi o predileto de milhões de espectadores durante décadas, e provavelmente o único longa-metragem enérgico durante essa época negra da história soviética, quando a realização cinematográfica era diretamente supervisionada pela censura de Stalin. Povo corajoso conta a história, passada em algum lugar do Sul, de um jovem jóquei e seu amor, seus amigos e parentes. O filme trata da resistência durante a ocupação e da ação de um espião germânico. Povo corajoso foi o primeiro western soviético a cores. O segundo foi feito em 1957, para as comemorações da Revolução de Outubro. Stalin morreu e o congresso o acusou de crimes hediondos. Não contra a humanidade, mas contra o verdadeiro comunismo. O filme Milhas de fogo foi o primeiro western exibido na era pós-stalinista, uma fantasia romântica dos anos revolucionários. Para provar sua tese, o diretor Samson Samsonov executou um ritmo dito “romântico e revolucionário” – na realidade, era o ritmo de montagem do western clássico, graças a seu andamento elegíaco, pontuado por explosões de violência. Com sua gama de cor dourado-bronze, o fotógrafo Feodor Dobronravov simbolizou o fim de um mundo e o nascimento de outro. É possível perceber traços de Nos tempos da diligência (1939) nesse dinâmico trabalho de câmera que acompanha os guerreiros em numerosas batalhas.
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Depois do grande sucesso de Sete homens e um destino (1960, John Sturges) na União Soviética, os líderes do governo decidiram dar “sua resposta aos imperialistas norte-americanos”. A vontade de Stalin se tornou lei para os realizadores soviéticos, mesmo depois de sua morte. Os filmes deveriam unir a forma do western com o conteúdo comunista. Nos anos 60 – a segunda principal década da história do cinema soviético –, essas diretrizes governamentais não eram tão duras assim. Era um momento relativamente liberal para a produção artística. Três grandes faroestes vermelhos foram realizados naquele período. Vingadores Invisíveis (1966) e As novas aventuras dos Vingadores Invisíveis (1968), de Edmond Keosayan, eram remakes de Diabinhos vermelhos. O sucesso foi enorme, como o esperado, e todos ficaram satisfeitos. O governo, por ter recebido um filme que apagaria Sete homens e um destino da memória do público jovem; e o público – tanto os mais novos como os mais velhos –, por ter recebido um western. Um western socialista, mas um western. Nos jornais e nas revistas, críticos e espectadores atacaram o diretor por ele ter sido um excelente pupilo dos americanos. Mas a crítica era suave. Mais de cem milhões de pessoas assistiram a esses dois filmes naquele turbulento período do regime. Depois da invasão na Tchecoslováquia, em 1968, havia a necessidade de um filme como esse – um sucesso comercial e ideologicamente de esquerda. No segundo longa-metragem, o diretor admitiu se esquivar a certos preceitos ideológicos – ele evitou retratar o exército branco como um bando de idiotas. O protagonista negro era substituído por dois personagens – um jovem aristocrata inteligente e um cigano exótico. Mas o governo preferiu deixar passar esses aspectos. O importante, naquele momento, era o sucesso. E, no geral, os vermelhos eram do bem e os inimigos ainda eram do exército branco. Depois desses sucessos, Edmond Keosayan ainda realizou outra sequel: A coroa do império russo ou os Vingadores Invisíveis novamente (1971), que obteve um público ainda maior, embora não fosse um western, mas um thriller que se passava em Paris, onde os heróis roubavam a coroa dos monarquistas. Ele estava inteiramente em conformidade com a ideologia soviética. Nenhum traço de revisionismo. Ninguém queria morrer (1966), do diretor lituano Vitautas Zalakiavichus, foi a primeira tentativa de lidar com o underground báltico antissoviético.
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Naturalmente, era um filme da União e seguia seus preceitos, mas alguns dos aspectos da atuação, da direção e do trabalho de câmera lembram o gênero do western e invocam suavemente uma atitude antissoviética. É a história de quatro filhos que procuram vingança do assassinato do pai por operários antissoviéticos. Foi o primeiro faroeste soviético com uma tônica inteiramente masculina. Depois da produção, os atores principais – da Lituânia, Letônia e Estônia – se tornaram populares na União Soviética inteira. No final dos anos 60, dos 70 e no começo dos 80, atores como Donatas Banioni, Uozas Boudraitis, Regimantas Adomaitis, Bruno O’ya, Algimantas Masiulis e Via Artmane incorporavam personagens do Oeste em filmes soviéticos – aristocratas amigáveis, inimigos da URSS, patifes elegantes ou aventureiros nobres. Ninguém queria morrer foi eleito o melhor filme de 1966 pelos leitores da Soviet screen, a revista de cinema que mais circulava no mundo naquele período, com uma impressão de dois milhões de exemplares. Assistindo ao filme, os soviéticos entenderam que os atores e as atrizes do Báltico eram diferentes das estrelas das outras partes da União Soviética. Não eram apenas personagens, pareciam ser pessoas de verdade, com traços muito singulares. Oficialmente, o filme foi realizado para celebrar o vigésimo aniversário do comunismo na Lituânia, mas suas conotações eram, no fundo, outras.Apenas vinte anos haviam se passado desde os eventos históricos retratados no longametragem. Nos primeiros cinco anos, os comunistas tentaram assassinar os operários. Quando Stalin morreu, não havia ainda tido tempo suficiente para inventar o tal “novo homem” nos países bálticos. O povo ainda não tinha sido convertido em cidadãos do Estado socialista. E foi justamente esse filme que contribuiu para que os soviéticos compreendessem esse fenômeno. O sol branco do deserto, dirigido por Vladimir Motyl, foi outro brilhante sucesso na história do cinema soviético. A trama do soldado vermelho a salvar mulheres de um harém tornou-se popular. Realizado no ano em que a União Soviética foi invadida pela Tchecoslováquia, o filme trazia o sentimento de que a calmaria dos anos 60 havia terminado. Dadas as circunstâncias, romantizações não eram mais possíveis. O sol branco do deserto foi um dos mais tristes westerns da história do cinema soviético.
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A década se centrou principalmente em faroestes na Ásia Central. Muitos filmes foram realizados nas repúblicas soviéticas localizadas entre a Rússia e a Índia. Todos eles eram tramas sobre guerras civis, a começar por A sétima bala (1972), de Ali Khamraev. Ironia do destino: depois das violentas críticas a Sete homens e um destino (o longa-metragem foi retirado de circulação antes mesmo de sua licença de exportação expirar) e da decisão de produzir faroestes socialistas, o roteiro de praticamente todos os westerns da Ásia Central nos anos 70 tem início com uma situação retirada de Sete homens e um destino – o protagonista escolhendo um grupo para enfrentar os vilões.Tanto os filmes bons quanto os ruins do Uzbequistão, Cazaquistão e Quirguistão começam com esse plot. Em A sétima bala, Ali Khamraev levou a brincadeira até as últimas consequências: imitou um dos planos mais criticados do filme de John Sturges – a faca no pescoço do bandido. Por fim, ainda utilizou a palavra “sétima” no título. A sétima bala é a melhor produção dos anos 70 entre várias da Ásia Central. Não era apenas outro remake soviético do longa-metragem de Sturges. O filme sofreu a influência dos westerns spaghetti, totalmente desconhecidos do público do país naquele momento, mas não dos cineastas, que tiveram a chance de assisti-los em exibições privadas. Foram eles que inspiraram Khamraev a realizar filmes duros e violentos sobre homens brutos que conduziam a revolução no deserto. No entanto, apesar das estrelas vermelhas nas capas dos heróis, o filme segue exatamente a cartilha. Os heróis sequer falam no governo ou em comunismo. Andrei Konchalovsky foi um dos roteiristas. Dois anos depois, seu irmão mais novo, Nikita Mikhalkov, realizou a sua estreia em longas-metragens com o assombroso Em casa com estranhos. Um estranho em casa. Nessa versão dinâmica e bastante contemporânea da Guerra Civil, Nikita Mikhalkov faz menção a Sérgio Leone diversas vezes e atua como um bandido desvirtuado, semelhante aos heróis de Leone, vestido com chapéu largo e sobretudo. Os demais faroestes vermelhos dessa década tornaram-se mais comerciais e menos artísticos. Em geral, os realizadores não estavam tão satisfeitos com o cânone. Nada de novo estava sendo desenvolvido – os soldados vermelhos eram os mocinhos; os brancos, os inimigos. Diretores soviéticos
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não procuravam mostrar outros aspectos da Guerra Civil. Provavelmente, nem os conheciam. Eles focaram-se em dar continuidade ao gênero, criando novos truques formais e viradas de narrativa, mas, mesmo nisso, obtiveram pouco sucesso.
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No início da década, saiu o célebre artigo “Cavalgada nas telas” no principal jornal diário da União, o Pravda. O texto era contra os faroestes vermelhos e acusava-os de ter um approach raso da grande Revolução Russa e da Guerra Civil. O gênero não desapareceu nesse momento, mas a quantidade de produções diminuiu, e, logo antes da Perestroika, nenhum western foi feito sob a bandeira vermelha da URSS. Durante a Perestroika, apenas dois faroestes foram feitos na União Soviética. O primeiro deles foi o único “autêntico”, que se passava mesmo no Velho Oeste. Em O homem do Boulevard des Capucine (1987), Alla Surikova narrou a trama sobre a chegada do cinema ao Velho Oeste. O público amou o filme, mas os críticos, não. É repleto de músicas e estrelas, mas parece mais um programa de televisão com piadas e elementos de pastelão.As muitas citações a Lemonade Joe (1964), a grande paródia tcheca do faroeste, são esquisitas. Quando a paródia é feita em cima da paródia, é porque o gênero se encontra em uma crise severa. O frio verão de 53 (1987), de Alexandr Proshkin, poderia dar início a uma nova era do western soviético, revelando verdades históricas. É uma trama sobre dois prisioneiros políticos que salvam uma pequena vila dos bandidos libertos após a morte de Stalin. Outra homenagem a Sete homens e um destino, o longa-metragem de Proshkin foi um dos últimos sucessos de público na distribuição estatal soviética e demonstrou que o western podia ser a forma ideal de representação dos “verdadeiros heróis”. Poderia ter sido, com efeito, um faroeste russo, e não um faroeste vermelho. Infelizmente, foi o último. Uma nova era surgiu. Um jovem público cinematográfico apareceu. Decidiu-se por deixar de lado os faroestes e concentrar-se somente em filmes de autor. Faroestes foram negligenciados. Filmes de autor, cultuados. Foi a morte do célebre gênero soviético. Tradução: Pedro Henrique Ferreira
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DUAS OU TReS PAlAVRAS SObRE O WESTERN por
Hernani Heffner
O que é um western? Um gênero, uma narrativa fundacional, uma mitologia, uma iconografia ou tudo isso junto? A resposta não é tão simples, embora o conjunto de filmes que giram em torno da história dos Estados Unidos da América, partindo do Go West, young man até o advento da Primeira Guerra Mundial, apresente uma incorporação crescente e compreensiva da formação territorial, econômica e cultural do país. Grosso modo, o western como um fenômeno cinematográfico (já que ele também ocorreu na literatura, na música e nos quadrinhos) pode ser dividido em uma fase mistificadora – que começaria mais clara e fortemente com o Grande roubo do trem (The great train robbery, 1903), de Edwin S. Porter, e alcançaria o ápice com clássicos como Onde começa o inferno (Rio Bravo, 1959), de Howard Hawks – e em uma fase crítica – preocupada justamente em demonstrar a distância entre a história e o relato ficcional que a incorpora, expressa em obras que vão de O homem que matou o facínora (The man who shot Liberty Valance, 1962), de John Ford, a Os imperdoáveis (Unforgiven, 1992), de Clint Eastwood, com seus personagens metanarradores (o jornalista e o escritor, respectivamente), que se veem confrontados com uma realidade completamente distinta da fábula. Esse segundo momento abarca a apropriação do gênero por outras cinematografias, principalmente europeias, quase sempre com o olhar afiado para as contradições da América e suas representações hollywoodianas. A denúncia contra o capitalismo e sua expansão violenta e imperialista torna-se o tema central dos spaghetti westerns, nordesterns, easterns/osterns, Gibanica westerns, goulash westerns, red westerns e de outras formulações que abarcam o Chile e a Austrália, o Canadá e a Sibéria, passando pelos cinco continentes.
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A formulação “mistificadora” não se atém a um confronto entre a história e sua representação, incorrendo em pressupostos como fidelidade ou aderência ao tecido dos acontecimentos. Trata-se de uma proposição construída pelo próprio gênero em sua fase revisionista. Ela é, portanto, uma crítica ao discurso artístico inventado e solidificado no chamado período “clássico”, quando se consolidou uma galeria de temas, personagens, situações, locais e signos, como a pradaria, o cowboy, o rancho, a caravana, a cavalaria, o pistoleiro, o duelo, o saloon, a Winchester, os peles-vermelhas, a diligência, o Monument Valley, John Wayne e John Ford, entre muitos outros. Mesmo um western fortemente revisionista como Era uma vez no Oeste (C’era una volta il West, 1968), de Sergio Leone, não procura uma representação “correta” do período histórico enfocado, mas sim uma condensação de signos que são deslocados de sua recepção característica e, a essa altura, “natural”. Tornar o “mexicano” no herói e o astro de Hollywood no vilão é uma operação de ressignificação possível dentro de um sistema forjado entre artistas/indústria, público e crítica ao longo de meio século. É possível aproximar a representação de sua fonte histórica, mas é muito mais produtivo ver a proposição de uma narrativa sobre a “conquista do Oeste” como um discurso endereçado ao momento contemporâneo da produção com enfoque no questionamento da ideia de democracia e do seu papel, isto é, como uma intrincada teia de onde emanam contraditoriamente as forças ideológicas constitutivas dos Estados Unidos da América como nação, mais presentes no período clássico, e sua desconstrução frente à própria imagem de uma “terra de liberdade e justiça” propagada por esses filmes. A rigor, o western cinematográfico nasceu com uma feição muito diferente da que assumiu ao se tornar um dos gêneros mais populares da indústria hollywoodiana, com seus cowboys bem-vestidos, armas reluzentes e tiro preciso, particularmente endereçado ao segmento infantojuvenil, a partir da década de 1920. Antes de ser a alegria das matinês mundo afora, ele era produzido em Nova Iorque e Nova Jersey – sem pradarias e assemelhados, com índios de nobres intenções –, principalmente por companhias francesas sediadas nos Estados Unidos que dominavam o mercado local, o que explica o fato de 15% dos filmes produzidos no país em 1910 serem classificados retrospectiva e genericamente como westerns. Na época, eles eram incluídos, nos catálogos das distribuidoras, em seções como “military films”,
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“Indian and western subjects” e “wild west dramas”, entre outras. O que se destaca nessa produção de feição europeizante é a caracterização da personagem índia como “nobre”, “heroica” e disposta ao sacrifício em favor do “homem branco”, a ponto de constituir uma espécie de subgênero de grande popularidade na época. Surgem também relacionamentos inter-raciais e personagens femininas protagonistas e independentes, traços que indicam uma agenda progressista que não permaneceria com a transformação do segmento por volta da Primeira Guerra Mundial, mas que guardam pontos de contato com a sua retomada europeia nos anos 1960, aspecto que talvez mereça um estudo mais aprofundado. A invenção do western como gênero que narra a formação da nação estadunidense parece atender não só a demandas de mercado – o que teria levado à necessidade de renovação de sua primeira configuração, com a famosa história da busca por novas locações e por “autenticidade”, e à descoberta da localidade de Hollywood, em 1909, por Siegmund Lubin – como também a uma demanda ideológica, no momento em que o Estado estimula a nacionalização da indústria cinematográfica e a coloca como ponta de lança de uma política imperialista que levaria o país a consolidar sua posição como a sociedade mais rica do mundo. Os westerns franceses feitos nos Estados Unidos tentam seguir essa nova orientação. Junto com os similares de David Wark Griffith, eles representam uma espécie de transição para o novo momento. Dos primeiros – produzidos, dirigidos ou supervisionados por Alice Guy-Blaché –, destaca-se a construção do “cidadão americano” em títulos reveladores, como A man’s a man (1912) e The making of an American citizen (1913). Já em Algie the miner (1912), de Edward Warren, com supervisão de Guy-Blaché, torna-se claro que essa formulação envolve a ida do jovem rapaz para o Oeste, em seu rito de passagem para a idade adulta e, mais do que isso, para uma nova identidade, forjada na adversidade, na determinação e na conquista. Por outro lado, Griffith explora com pertinência e consciência os novos espaços e os novos símbolos dessa transformação, fazendo do trem uma metáfora não só do progresso e da modernidade, mas, sobretudo, da força da nação, desdobrada em imagens de eficiência, potência falocêntrica e (por que não dizer?) masculinidade, uma masculinidade que tem como missão resguardar a mocinha (nação), como é visto em The girl and her trust (1912). O western como território do homem que se impõe
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e impõe a lei (pela força das armas) começa a ganhar contornos definidos. A construção desse novo sujeito é, ao mesmo tempo, uma formulação histórica e uma formulação ideológica, ambas contestáveis, sobretudo porque se erigem a partir do apagamento do Outro, considerado agora um “selvagem”, um “bárbaro”, um “espoliador” ou simplesmente um “estrangeiro”. Basta pensar na reordenação dramática do “índio”, tornado vilão e exterminado sem dó nem piedade em milhares de filmes, algo não muito distante do genocídio real das nações e culturas indígenas locais. Nas entranhas do westerner ecoam os postulados da doutrina do Destino Manifesto, consubstanciados na famosa frase atribuída a Horace Greeley, em que estão subentendidos movimentos que se traduzem como aventura, expansionismo e conquista. Não por acaso a revivescência da Doutrina Monroe por Theodore Roosevelt e sua política do “Big Stick” coincide com a guinada do gênero em sua busca por uma nova configuração. Moldado por Thomas Ince, James Cruze e mesmo por John Ford, a partir de filmes como Sota, cavalo e rei (Cameo Kirby, 1923) e O cavalo de ferro (The iron horse, 1924), o western, em seus primórdios clássicos, explora estruturas dramáticas, como a vingança, e temas como a superioridade racial, fazendo da aventura catártica e da segregação racial as bases para um espetáculo de superioridade militar e supostamente ética, sem menção às espoliações e aos crimes inerentes às investidas território adentro. O gênero atinge o auge de sua popularidade nos anos 1930, com o chamado B-western, universo que revelaria definitivamente a figura de John Wayne, epítome acabada do homem do Oeste em suas várias encarnações cinematográficas. Amplificando a narrativa expansionista, com filmes como Aliança de aço (Union Pacific, 1939), de Cecil B. DeMille, e a construção do cowboy de butique (limpo, bem-vestido, galante, polido, de armas brilhantes e com destreza absoluta no cavalgar e atirar), com ícones como Tom Mix, Roy Rogers, Gene Autry, Tex Ritter, Audie Murphy e muitos outros, a filmografia do western se consolida, chegando a ocupar 20% a 30% do mercado cinematográfico estadunidense, com significativo desdobramento junto à televisão a partir dos anos 1950, com séries como The lone ranger, Bat Masterson, Bonanza e Chaparral, entre centenas de outras.Também é consolidada a face conservadora inicial do gênero em termos políticos e estéticos, marcada pela estereotipia das personagens, tramas e composições. Embora o con-
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junto tenha sido suficientemente forte para configurar os parâmetros do western – a ponto de seus cultores mais ardentes defenderem, por exemplo, a misoginia e o racismo do gênero –, os títulos mais exaltados e lembrados retrospectivamente são justamente aqueles que se posicionaram de forma mais crítica com relação às contradições do conjunto e, sobretudo, aqueles que adicionaram uma maior complexidade psicológica, filosófica e cultural aos heróis e à paisagem de fundo, chamados, em certa altura, de westerns noir, metafísicos, mitológicos, entre outras formulações. O ponto de inflexão para o auge da era clássica foi No tempo das diligências (Stagecoach, 1939), de John Ford, que desloca a atenção da ação, trabalhada aqui de forma suspensiva, mais como uma iminência do que como um desfecho. Tanto que, nesse filme, não vemos o duelo final de Ringo, que levaria ao estudo psicológico e ao comentário social. O Oeste é que funciona como ambiente revelador do verdadeiro caráter dos envolvidos e desmistificador das oposições típicas do gênero, particularmente a que opunha o Leste civilizado ao Oeste selvagem, retrabalhado por Ford também em dimensão classista. Daí à admissão de personagens perturbados ou francamente autoritários e fascistas – como os “heróis” da saga estadunidense em filmes como Consciências mortas (Ox-bow incident, 1943), de William Wellman, Rio Vermelho (Red river, 1948), de Howard Hawks, e Rastros de ódio (The searchers 1956), também de Ford – foi um passo. Psicanálise, Guerra Fria, Existencialismo, Macartismo, Estética Noir e um ainda não nomeado Multiculturalismo trazem o gênero para a atualidade, tornando-o oblíquo e alegórico em títulos marcantes, como O retorno de Frank James (The return of Frank James, 1940), de Fritz Lang, Paixão dos fortes (My darling Clementine, 1946), de John Ford, Sua única saída (Pursued, 1947), de Raoul Walsh, Flechas de fogo (Broken arrow, 1950), de Delmer Daves, Matar ou morrer (High noon, 1952), de Fred Zinnemann, Johnny Guitar (Johnny Guitar, 1954), de Nicholas Ray, Sete homens sem destino (Seven men from now, 1956), de Budd Boetticher, Reinado do terror (Terror in a Texas town, 1958), de Joseph H. Lewis, e Sete homens e um destino (The magnificent seven, 1960), de John Sturges. Sempre comentando a seara caseira, John Ford dá uma dimensão do alcance e da complexidade do western ao transformar uma produção de rotina sobre cavalaria, como era Sangue de heróis (1948), em um libelo antirracista e antibélico, chamando atenção para o fascismo e o esnobismo dos oficiais em contraposição
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à mal-dissimulada presença e camaradagem irlandesa em meio ao exército estadunidense. Ford teve que negociar diretamente com o chefe da censura, ironicamente um descendente de irlandeses, a incorporação dos nomes característicos e dos costumes dos seus ancestrais. A depuração advinda de todas essas contribuições se transforma em uma formulação arquetípica do gênero, sinal de sua maturidade absoluta e também do seu esgotamento, com comentários e ressonâncias de ordem mais metafísica do que histórica. Como síntese absoluta, etérea e simbólica do “far-west”, território além da civilização, surge, em 1953, Os brutos também amam (Shane), de George Stevens, no qual o pistoleiro solitário, desgarrado, desenraizado, que se sabe entre dois mundos e que escolhe lutar por aquele que não o absorverá e com o qual não se identifica, encarna os valores máximos do sagrado, do justo e do bom, de forma pura e angelical, aos olhos de uma criança que o idolatra. A batalha final está acima e muito além da luta entre barões de gado violentos e pequenos agricultores pacíficos. Em sua precisa geometria de montagem, Stevens e o montador William Hornbeck fixam os signos-chaves e a matéria-prima icônica do gênero, isolando cada elemento simbólico e sua ressonância cultural e artística. Da mesma forma, outras obras-primas da década de 1950 constituem de forma definitiva o cânon proteico da galeria de lugares, tipos, objetos e situações do gênero, bastando lembrar alguns títulos a mais, como O matador (The gunfighter, 1950), de Henry King, Sem lei e sem alma (Gunfight at the O.K. Corral, 1957), de Sturges, e o já mencionado Onde começa o inferno. A história do western cinematográfico tem muitos outros capítulos e não se esgota nessa brevíssima enumeração, podendo incorporar os épicos conservadores dos anos 60, como Álamo (The Alamo, 1960), de John Wayne, e A Conquista do Oeste (How the West was won, 1962), de Ford, Henry Hathaway e George Marshall, e a consciência do fim da era clássica, com a obra de Sam Peckinpah – violenta, crítica e, ao mesmo tempo, nostálgica de valores que a contemporânea Guerra do Vietnã tornou anacrônicos. O imperialismo como doutrina tinha virado pilhagem como prática. Com a revisão da história contada pelo western, surgem as necessárias adequações e reposicionamentos, com, por exemplo, o índio recuperando progressivamente seu lugar de vítima e afastando-se do de algoz, em títulos que vão de O pequeno grande homem (Little big man, 1970), de Arthur Penn, ao recente O cavaleiro solitário (The lone
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ranger, 2013), de Gore Verbinski. A apropriação europeia dos faroestes, que se afirma critica e desconstrutivamente com Por um punhado de dólares (Per un pugno di dollari, 1964), de Leone, adiciona uma dose cavalar de cinismo, violência e “breguice” ao gênero, assim como várias outras operações estéticas que acabam por redefinir o eurowestern (ocidental) como um discurso muito mais ambíguo, estilizado e autorreferencial do que sua fonte hollywoodiana. Ele acaba se espraiando para o mundo inteiro nos anos 1970. Basta indicar obras como o mexicano O Topo (El Topo, 1970), de Alejandro Jodorowsky, o francês Não toque na mulher branca (Touche pas à la femme blanche, 1974), de Marco Ferreri, e, do outro lado do mundo, o indiano Cinzas (Sholay, 1975), de Ramesh Sippy, exemplo maior dos chamados curry westerns. A grande exceção dessa tendência geral se dá ainda nos anos 1960, com os Indianerfilme, produzidos na Alemanha Oriental, e os Sauerkraut (chucrute) westerns, produzidos na parte ocidental. Muitos desses filmes acabaram sendo rodados nas planícies da antiga Iugoslávia (mais especificamente na atual Croácia), o que gerou, inclusive, uma apropriação local, os Gibanica westerns, e toda a nova onda de red westerns ou westerns produzidos nos antigos países comunistas da Europa e da Ásia. Se, na antiga União Soviética, o líder Josef Stalin, um apaixonado pelos westerns hollywoodianos, tinha estimulado a produção local de contrafações, ainda nos primórdios, destacando-se filmes como Os diabinhos vermelhos (Krasnye diavolyata, 1923), de Ivan Perestiani, Os treze (Trinadtsat, 1937), de Mikhail Romm, e Povo corajoso (Smelye lyudi, 1950), de Konstantin Yudin; com a chegada de outro apaixonado pelo cinema ao poder, o novo líder Nikita Kruschev, que havia permitido a distribuição de Sete homens e um destino na Rússia, onde teve imenso sucesso de público, buscase novamente a criação de uma contrafação local e estimula-se a mesma ação nos demais países socialistas. O modelo para a nova onda de westerns comunistas foi justamente o ocidental O tesouro dos renegados (Der schatz im Silbersee, 1962), de Harald Reinl, que trazia a dupla Winnetou e Old Shatterhand, criada pelo escritor alemão Karl May ainda no século XIX. O filme acabou sendo distribuído com igual sucesso na União Soviética e convinha mais à inversão clássica requerida pelo contexto da Guerra Fria. Era muito mais adequado torcer pelo índio como herói do que pelo branco escravizador e espoliador, o que acabou prevalecendo no lado da Alemanha Oriental.
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De maneira geral, o red western ocorre entre 1964 e 1968 na União Soviética, trocando-se o contexto estadunidense da conquista do Oeste e da Guerra Civil pelo contexto da revolução bolchevique e da subsequente Guerra Civil local. A partir de 1966, ele passa a ocorrer nos demais países socialistas, com destaque para a Iugoslávia, a Romênia e a Alemanha Oriental. Depois de uma primeira fase, com os índios e os soldados do exército vermelho predominando como protagonistas em filmes de sucesso, como Ninguém quer morrer (Niekas nenorejo mirti, 1966), de Vytautas Zalakevicius, e Os Vingadores Invisíveis (Neulovimye mstiteli,1967), de Edmond Keosayan, o gênero torna-se mais difuso, devido à repressão pós-Primavera de Praga e à rejeição da cultura ocidental em geral. É nesse momento que certos temas “genéricos” do western, como a fronteira, a cidade fantasma, o cavaleiro solitário e a pradaria (neste caso, as estepes siberianas ou as planícies balcânicas), retornam em chave alegórica, por vezes enigmática, para dar conta das contradições do mundo socialista em dissolução ou do neocapitalismo selvagem que toma conta desses países a partir de 1989-91. Relembre-se, por exemplo, uma saga como Siberíada (Sibiriada, 1979), de Andrei Mikhalkov-Konchalovsky. A força do western como gênero – ou, mais especificamente, como estrutura e moldura dramáticas que mobilizam o homem contra obstáculos e conjunturas adversas – revela-se aqui em sua plena potência e atualidade. Adentrar um território estranho é estar disponível para o contato com o Outro tanto quanto para uma jornada existencial de reorganização da identidade pessoal.Talvez por isso que um dos melhores westerns dos últimos tempos tenha sido criado por um dinamarquês, filmado na África do Sul e situado, como não poderia deixar de ser, no “Oeste selvagem” estadunidense do século XIX. Trata-se de A salvação (The salvation, 2014), de Kristian Levring, que, diferentemente de boas refilmagens como Os indomáveis (3:10 to Yuma, 2007), de James Mangold, insufla vida nova no sempre claudicante neo-western das últimas décadas.
SIBERÍADA (1979)
A SÉTIMA BALA (1972)
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entrevista ALI
KHAMRAEV1
O FAROESTE VERMELHO: Em seu texto, Sergey Lavrentiev menciona que, em A sétima bala, você presta homenagem a um plano específico de Sete homens e um destino, de John Sturges, além de mostrar que foi influenciado por Sérgio Leone e o western spaghetti. Com isso em mente, gostaríamos primeiramente de perguntar como é que você se envolveu no projeto de A sétima bala e, ainda, qual era a sua relação com o gênero do faroeste. Como os faroestes americanos não eram bem-vistos pela ideologia soviética, você se viu obrigado a mudar, conter ou transformar a estética do seu filme?
uma grande ajuda para o orçamento do país, juntamente com a venda de pão e vodca. Estudei o gênero do faroeste no instituto de cinema, onde fugia de palestras marxista-leninistas para sessões do amado Nos tempos da diligência, de John Ford. Quando, em 1972, consegui persuadir o chefe do estúdio Uzbekfilm a me deixar filmar o histórico e revolucionário roteiro de Basmachi (escrito por Friedrich Gorenstein e Andrei Mikhalkov-Konchalovsky), meu principal trunfo foi a proposta de mudança do nome para A sétima bala, em consonância com o título do filme Sete homens e um destino, que gozava de enorme popularidade na época. As crianças da União Soviética brinALI KHAMRAEV: O filme Sete ho- cavam de “cowboys e bandidos”, os mens e um destino, de John Sturges, jovens copiavam a maneira de andar foi visto por mais de 100 milhões de do herói Yul Brynner e a indústria espectadores em um ano na URSS. não se cansava de imprimir milhares A propaganda oficial omitia esse re- e milhares de novos exemplares do corde, mas os milhões de rublos ad- filme. Friedrich Gorenstein me convindos de westerns americanos eram tava que Andrei Konchalovsky havia 1 Entrevista realizada por e-mail. Perguntas de Thiago Brito e Pedro Henrique Ferreira. Traduzido do russo por Thiago Brito.
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lhe mostrado dezenas de faroestes americanos no arquivo de filmes. Sendo um escritor e roteirista talentoso, Friedrich me ajudou a enriquecer o projeto de A sétima bala com personagens fortes e diálogos brilhantes. Eu consegui convencer o grande ator Suymenkul Chokmorov a atuar como o comandante do exército do destacamento. Nós íamos do hotel ao set de filmagem a cavalo. Eu atirava para o alto com uma (pistola) Mauser, em vez de gritar “Ação!”. Para economizar, os inimigos da revolução, em cenas mais numerosas, eram interpretados por motoristas de táxi de uma pequena cidade. Uma hora depois, esses mesmos motoristas trocavam de roupa para atuar como soldados do exército vermelho. Trabalhamos rápido e de forma divertida; filmamos em seis semanas. Não prestamos atenção à ideologia comunista, nós queríamos apenas contar uma história sobre a batalha entre o bem e o mal. OFV: Ao mesmo tempo, nós gostaríamos de entender o que o gênero do faroeste significava para seu país na época2.A recepção do filme foi a mesma no Uzbequistão e na União Soviética? O gênero ainda ressoa no cinema contemporâneo do Uzbequistão? 2 Ali Khamraev nasceu no Uzbequistão.
ALI KHAMRAEV: No âmbito do combate à ideologia do Ocidente na União Soviética, os faroestes eram classificados como “filmes de aventura”. De qualquer forma, não importa a embalagem do chocolate, ele continua sempre sendo chocolate. Mesmo hoje o faroeste continua sendo o gênero predileto da juventude da Rússia e das ex-repúblicas soviéticas. Já o cinema do Uzbequistão, hoje, não tem diretores trabalhando com o gênero. Eles estão ocupados desenvolvendo o enredo do “homem de família pobre que se apaixona por uma mulher de família rica”. As pessoas que gostam de assistir aos faroestes fazem isso por meio de DVDs e da internet. OFV: O guarda-costas (1979) é também influenciado pelos faroestes americanos, especialmente os do estilo “caçador de recompensas”. Como você é creditado como o único roteirista do filme, nós gostaríamos de saber como você teve essa ideia. ALI KHAMRAEV: Em 1978, por conta do filme Triptych, eu entrei em conflito com os ideólogos do governo do Uzbequistão. Eu precisava de dinheiro pra viver; além do mais, eu
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não estou acostumado a ficar sem trabalho. Remexi meus rascunhos e anotações de direção, tive uma ideia de roteiro e decidi ir ao Tadjiquistão, onde, em 1961, iniciei minha carreira. Ali, eles me tratavam bem, sabiam que meu pai, o grande ator e roteirista Ergash Khamraev, era um genuíno tadjique. Na época, minha esposa, que é atriz, estava filmando em Sebastopol. Então, junto com as nossas duas crianças, nós nos instalamos num hotel barato, em cima de um banheiro público. Nesse hotel, durante duas semanas, escrevi o roteiro de O guarda-costas. Não estava conseguindo encontrar os atores para os papéis principais, mas o meu amigo Andrei Tarkovsky, durante um encontro nosso na Mosfilm, acenou para os dois protagonistas de Stalker – Anatoly Solonitsyn e Alexander Kaidanovsky – e disse-lhes: “Querem ver o céu estrelado da Ásia e visitar Samarkand? Querem um papel interessante e querem ganhar dinheiro? Então vão filmar com o Ali!”. OFV: Você já realizou filmes de quase todos os gêneros e estilos. Existia alguma diferença na realização de um faroeste?
ALI KHAMRAEV: Quando eu era jovem, precisei trabalhar com diversos gêneros. Não me deixavam filmar roteiros complexos, me ofereciam comédias, musicais, faroestes e documentários. Eu aceitava esses projetos de bom grado, sabendo que eu seria bem pago e, ao mesmo tempo, que eu teria uma experiência profissional necessária. Assim, fui ganhando legitimidade para fazer o que eu realmente queria: o cinema autoral. OFV: Os seus faroestes, em comparação com os faroestes americanos, ou mesmo italianos, têm um tratamento mais “realista” das cenas de tiroteio. O ritmo e a dramaturgia dessas cenas de ação são bastante únicos. Você poderia comentar sobre isso? ALI KHAMRAEV: O faroeste americano é a espetacular batalha entre o bem e o mal – histórias inventadas e românticas. Os meus “easterns” são baseados em fatos reais da Guerra Civil soviética. Eu tentei preencher o quadro com paisagens reais, com pessoas simples do povo em suas roupas cotidianas. Meus heróis atiravam e matavam não com o objetivo de ganhar di-
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nheiro. Meus heróis acreditavam em felicidade coletiva, em um mundo sem ricos e pobres: eles lutavam e morriam por uma grande ideia, sabendo que seus filhos viveriam felizes. Meus heróis acreditavam em um socialismo com um rosto humano; de forma alguma eles pensavam ou acreditavam que os seus netos e bisnetos veriam um capitalismo de rosto animal. Mas assim é a vida…
Ali Khamraev nasceu no dia 19 de maio de 1937, na família de Ergash Khamraev, roteirista e ator, e de Anastasiya Tarasich, secretária da unidade de direção de arte do Uzbekfilm Estúdio. Em 1956, após a conclusão do ensino secundário, Ali Khamraev ingressou na faculdade do Instituto Estadual All-União de Cinematografia (na oficina artística do professor Grigoriy Roshal’ e do professor-assistente Yuriy Genika). Em 1961, recebeu seu diploma, depois de ter exibido o longa-metragem Breves histórias sobre as crianças, que... (dividido com M. Makhmudov). De 1962 a 2008, filmou, como diretor e produtor, 20 longas-metragens de ficção e cerca de 40 documentários, na maioria dos quais atuou também como roteirista principal ou colaborador. Entre seus filmes de maior popularidade e retorno financeiro, estão os faroestes A sétima bala e O guarda-costas, os filmes históricos The red sand (em colaboração com A. Akbakhodzhayev) e Extraordinary comissar, além das comédias musicais A fiancée from Vuadile e Where are you, my Zulfiya?. Ali Khamraev foi laureado com o “Trabalhador das Artes”, prêmio estadual da República do Uzbequistão.
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O GUARDA-COSTAS (1979)
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A TRILHA DO FALCÃO (1968)
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O INDIaNERFILM DA DEFA COMO ARTEFATO DE RESISTeNCIA 1 1
p o r E v a n To r n e r Os acadêmicos geralmente relacionam-se com a história do cinema como se estivessem diante de um Wunderkammer – uma câmara de curiosidades que produz tanto fascínio quanto insight. Nela encontramos, por exemplo, o longa-metragem conhecido como “Guerra das estrelas turco”, as produções baratas de exploitation, o filme realizado secretamente na Disney World, os filmes silenciosos russos de espionagem/sci-fi/slapstick, etc. Como as prosaicas histórias infantis da Índia2, os Indianerfilme da DEFA – populares faroestes, produzidos pela comunista Alemanha Oriental (RDA) entre meados da década de 60 e meados da década de 80, que presumiam que havia uma natural aliança entre a resistência aborígene americana contra os cowboys capitalistas – maravilham historiadores de cinema por sua estranheza, a despeito do potencial blockbuster que tinham nas bilheterias do Bloco Soviético e da multidão de fãs, ou mesmo por conta disso. Inúmeras publicações realizaram um resumo do fenômeno, adequando-o à ótica de estudiosos da era pós-comunista. Concluiu-se que esses lucrativos faroestes, protagonizados pelo ator sérvio Gojko Mitić, certamente faziam parte da tradição revisionista dos westerns, mas que, ao fim e ao cabo, eram mais indicativos da maneira fantasiosa como a Alemanha Oriental se via nos personagens aborígenes do que necessariamente sobre a experiência aborígene. Eles eram, em suma, filmes 1 “The DEFA Indianerfilme as artifact of resistance”. Publicado originalmente em Frames Cinema Journal. Traduzido por Thiago Brito. 2 O autor refere-se aos livros de Lynne Reid Banks publicados a partir de 1980, como The Indian in the cupboard.
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mais preocupados com planos glamorosos e intricados stunts de musculosos corpos da Europa Oriental em ação do que com uma expressão de genuína solidariedade aos personagens em cena. Pelo menos isso as publicações deixam bem claro. Mas o que não deixam claro é o que de fato está em jogo quando escrevemos sobre essa produção de 14 filmes. Por exemplo, Fredric Jameson percebe os planos dos faroestes da Europa Oriental como uma “convulsiva tentativa de derrubar estereótipos nacionais generalizantes, ambiguamente reinventando-os no processo”. Por outro lado, Sebastian Heiduschke descreve como os famosos faroestes têm sido empregados como iscas internáuticas por sites de fãs da DEFA, que cruamente comparam os filmes a produções americanas e italianas, ao mesmo tempo que reproduzem a teoria que diz que os Indianerfilme eram “preocupados com a vida, a cultura e a história da América aborígene” (Heiduschke, 2006, p. 159). Estudamos os Indianerfilme da DEFA por conta de sua reinvenção do nacional a partir do discurso do gênero? Ou os estudamos por conta da potência com que saltam aos olhos, graças à sua combinação única de ação, kitsch, drag étnico e ideologia comunista ingênua? Para cada razão que nos damos para estudar o fenômeno, parece que outra razão perversa também se estabelece. O presente artigo não pretende dissecar os Indianerfilme em seus mínimos detalhes, mas encontrar o lugar dessa produção dentro do Cinema da RDA, articulando isso com a maneira como esses filmes foram recebidos na esfera pública. Um resumo do gênero será apresentado, mas o objetivo central é uma análise do discurso do produtor e do público que percebe os Indianerfilme como artefatos culturais que resistem aos clichês a eles fixados. Afirmo que os temas de discussão mais genéricos sobre esses filmes – por exemplo, sua posição como mero entretenimento dentro do Bloco Comunista; sua subversão ideológica dos faroestes dos EUA e da Alemanha Ocidental; seu problemático discurso racial; seu gesto de solidariedade pós-colonialista – modificaram-se muito pouco desde sua concepção, ainda na década de 60. O contínuo entusiasmo alemão pela cultura aborígene, denominado por Hartmut Lutz (2002) de “Indianthusiasm”, nos mostra a permanência do discurso. A incrível e profícua popularidade da imagem do principal protagonista desses filmes, Gojko Mitić, é outro indicativo. Como já escrevi anteriormente, a impecável imagem física e social de Mitić lhe dá uma credibilidade que nem
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mesmo os partidos comunistas dominantes possuíam. Mas a verdadeira força dos Indianerfilme não reside somente no estrelismo de Mitić, reside principalmente na capacidade do gênero de criar, como Michael Saler um dia colocou, um “secundário mundo imersivo”, repleto de aventuras aborígenes, dentro de uma RDA socialista e pós-industrial. Tratava-se de um mundo fantasioso, capaz de cativar a atenção do público e de transpor barreiras nacionais ao se pautar por valores universais dentro do Bloco soviético. A aparente autenticidade dos gestos transnacionais e trans-históricos desses filmes ocorre por eles serem: 1) abertamente superficiais (superando a falta de transparência do socialismo do século XX); e 2) tanto da Alemanha quanto da Europa Oriental (superando as diferenças nacionais). Uma mudança dos estudos culturais germânicos – que prioriza o pop em detrimento da “alta cultura”, a interseção em detrimento das análises ideológicas – permitiu que, dentro de nossas salas de aula, metonimicamente, esses filmes fossem expostos como a cultura visual da RDA, com consequências interessantes para os estudos da história do cinema alemão em geral. Por fim, em seu recente artigo “Have dialetic, will travel”, Dennis Broe argumenta que esses filmes, assim como o Novo Cinema Alemão dos anos 60 e 70, constituem elementos de resistência contra-hegemônica da classe trabalhadora, seja em oposição a um Estado opressivo, seja em oposição às forças de um mercado neoliberal. Esses filmes são, com certeza, artefatos de resistência, no sentido de terem vidas e agendas ocultas, como uma nova ontologia baseada no objeto. Eles são fantasias em celuloide – ambíguas, mercantilizadas e comerciais –, projetadas tanto como ilustração da história audiovisual de um país morto quanto como uma forma de rebelião contra uma ameaça perniciosa (seja ela o capitalismo ou a ocupação soviética), por meio de duradouros e ativos corpos e talentos de falsos aborígenes representados no telão. Deixe-me destacar que um sítio é um lugar onde algo ocorre, enquanto que um artefato é algo que um dia foi produzido para atingir determinado objetivo, mas que, com o tempo, restou simplesmente como testemunho das condições de sua própria produção.
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I ndianerfilm
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processo
As instituições que produziram esses artefatos desejavam que eles atingissem objetivos e efeitos educacionais bastante determinados. Desde sua ori-
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gem, em uma Berlim ocupada pelos soviéticos, em 1946, até sua realocação para Potsdam-Babelsberg, no início de 1950, os estúdios da DEFA da Alemanha Oriental tinham a missão de “re-educar os alemães – especialmente os jovens –, para que eles compreendessem o que era uma democracia e um humanismo genuínos, e, ao realizar isso, promover um sentimento de respeitos por outros povos e outras nações”, como declarou o coronel soviético Tulpanov na cerimônia de inauguração. Nas primeiras duas décadas de produção da DEFA, os aspectos morais e sociopolíticos foram genuinamente priorizados em detrimento da lógica do retorno financeiro a curto prazo, uma inclinação institucional que ajudou a influenciar gerações de estudiosos a buscar mensagens de cunho moral, ideológico e/ou subversivo nas narrativas e regimes de representação dos filmes da DEFA. No entanto, a realidade é que a DEFA fazia parte da economia cinematográfica mundial, e a lógica do mercado não desaparece completamente, mesmo que se trate de uma rubrica estatal anticapitalista a serviço do socialismo. Que condições materiais influenciavam as produções de gênero da DEFA? Cada longa-metragem dos estúdios custava um milhão de ostmarks e, de acordo com Ralf Schenk, tinha a obrigação de se apresentar de maneira “clara, sem ambiguidades e compreensível para todos”. Os Indianerfilme preenchiam muito bem essas categorias. Os salários da equipe cinematográfica dependiam do sucesso dos resultados da bilheteria, embora em grau menor do que nos regimes capitalistas. Com isso, produções ideologicamente mais seguras, que conseguiam atingir o Devisenrentabilität – a capacidade de angariar o mais que necessário dinheiro estrangeiro –, recebiam orçamentos maiores e sofriam menos intervenções do estúdio. Esse tipo de produção era restrito a alguns gêneros: os Marchenfilme (filmes de fantasia), os filmes de aventura em 70mm e os Indianerfilme. O orçamento médio de um Indianerfilm da DEFA, por exemplo, era de pouco menos do que 2.5 milhões de ostmarks. A queda do poder de compra do ostmark na década de 80 resultou também na queda de produção do gênero. Como Stefan Zahlmann nos lembra, fatores estruturais – como a disponibilidade de materiais, o cachê dos artistas, novas tendências de produção a longo prazo e negociações transnacionais – eram de absoluta importância no momento de dar o sinal verde para uma produção da DEFA (Zahlmann, 2010, p. 14). Um ponto de vista absoluto com relação aos aspectos políticos e/ou “subversivos” des-
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sa produção ignora a maneira como os meios de comunicação impedem que um controle substancialmente político ocorra. Trocando em miúdos: um filme da DEFA tinha que ser interessante ou divertido o suficiente para atrair um público cativo, mas, se o filme atraísse atenção demais – como, por exemplo, o filme de Heiner Carow, A lenda de Paul e Paula (Die Legende Von Paul und Paula, 1973) –, qualquer conteúdo mais subversivo da narrativa receberia desaprovação oficial. Os diretores e produtores que desejavam manter suas posições sabiam como realizar filmes com o nível certo de “interesse”, de modo a garantir a sua própria sobrevivência. Um filme precisava ser inocuamente subsumido por trás de categorias de gênero claras e bem-estabelecidas, de modo a sobreviver aos laboriosos processos de roteirização. Com isso, o argumento de Dennis Broe de que os Indianerfilme eram, em alguma medida, “subversivos” superestima a maneira como os diretores da DEFA concebiam esses filmes a partir do potencial “subversivo” de seu material: os imaginários políticos alternativos ou as subjetividades indianistas. Os blockbusters cooptavam o popular em nome do potencial de venda, mesmo quando eventualmente se dirigiam a movimentos de resistência. Os Indianerfilme eram certamente blockbusters socialistas com intenção de atingir um público para além da RDA e, ao mesmo tempo, manter o interesse doméstico em produções de incentivo governamental. Como artefatos, esses filmes conseguiam relacionar o interesse do governo e de sua plateia, estabelecendo um acordo geral de como opressão e resistência deviam ser representadas, ao mesmo tempo que conseguiam aprovar um playground socialista onde se poderia, com facilidade, mesclar narrativas históricas marxista-leninistas com elementos de ação e fantasia guiados por um protagonista. Por uma sorte do destino, da noite para o dia os Indianerfilme se transformaram no gênero de maior sucesso comercial disponível nos estúdios DEFA. De 1966 até 1985, a DEFA produziu 14 desses filmes na Europa Oriental, a maioria tendo o ator sérvio Gojko Mitić como protagonista. Eles apresentam musculosos índios americanos sofrendo opressão e ativamente resistindo ao expansionismo norte-americano. Os filmes tinham a intenção de projetar a solidariedade da Alemanha Oriental às lutas pós-colonialistas e ao (então) chamado Terceiro Mundo (especialmente o Vietnã), e eram bem-recebidos em países orientais, como Polônia, Bulgária e Romênia.
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Tim Bergfelder argumenta que, em vez de apresentar soluções fáceis e um mero espetáculo, os Indianerfilme se preocupavam mais com “autenticidade etnográfica e representação de realidades sociais”. Esse gênero de ficção altamente convencional e controlado era aclamado por conceber histórias protéticas que, como Gerd Gemünden coloca, “revelavam bem mais acerca das agendas políticas de seus criadores do que acerca dos objetos que pretendiam representar”. Os artefatos do gênero podem ser divididos em seis subciclos de material, dependendo da maneira como abordam história e ficção. O primeiro subciclo, o mais popular e lucrativo de todos, consistia em adaptações literárias: Os filhos da Grande Ursa (Die Söhne der großen Bärin, 1966), baseada no livro homônimo de Liselotte Welskopf-Henrich, e Chingachgook, a grande serpente (Chingachgook, die große Schalnge, 1967), baseada no livro The Deerslayer, or the first warpath (1841), de James Fenimore Cooper. Após a adaptação desses livros famosos, a DEFA começou a produzir suas próprias histórias indianistas, o que desembocou em seu segundo ciclo, o dos chamados Entwicklungstrilogie (“A trilogia do desenvolvimento”). Esses filmes produzidos no fim da década de 60 – A trilha do falcão (Spur des Falken, 1968), Lobos brancos (Weiße Wölfe, 1969) e Erro fatal (Tödlicher Irrtum, 1969/70) – eram construídos em torno de elementos cinemáticos, como perseguições em trens e lutas pelo petróleo. Esse subciclo estabeleceu o gênero regularmente nos Sommerfilmtage da Alemanha Oriental, cinemas a céu aberto com uma programação de família. O terceiro subciclo consistia de adaptações das biografias reais de líderes aborígenes americanos, denotando um afastamento do gênero kitsch em direção ao materialismo histórico. Osceola (1971) retrata o chefe seminole que ajudou a libertar escravos na Flórida, enquanto que Tecumseh (1972) lança olhar sobre a traição do chefe shawnee na Guerra Francesa de 1812. No fim desse subciclo, ficou claro para o grupo Roter Kreis, unidade da DEFA responsável pelos Indianerfilme, que os pequenos prazeres representados pelas paisagens da Europa Oriental e pelas meticulosas sequências de ações dos filmes não ofereciam oportunidade para retratar seriamente as biografias dos líderes aborígenes. Portanto, vemos um retorno à estética spaghetti no quarto subciclo: Apaches (Apachen, 1973) e Ulzana (1974). O quinto subciclo marca aquilo que gosto de chamar de período barroco do gênero, quando, sem sucesso, o estúdio tentou renovar-se a partir de filmes
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que apresentavam truques indianistas: o veículo para o estrelato de Dean Reed, Irmãos de sangue (Blutsbrüder, 1975); o melodrama caça-níquel cultural Severino (1977); e o incompetente thriller O observador (Der scout, 1983), um filme sobre um guia da Nez Perce que desmonta um grupo racista da União. O sexto subciclo poderia ser reunido em torno de dois filmes que não foram produzidos pelo grupo Roter Kreis – Blauvogel (1979), de Uli Weiss, e Atkins (1985), de Helge Trimpert –, já que ambos lidam com algum aspecto secundário do universo indianista, mas sem a presença de Mitić.
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como
consumível
A emergência dos Indianerfilme aparece como resultado do que Annette Deeken chamou de “o problema Karl May” – o simples fato de que o público alemão não cansa de consumir as populares histórias do bem contra o mal da literatura indianista do autor Karl May, não importando as mudanças de tempo ou política. Nossos artefatos se assemelham mais aos conteúdos de Karl May, a que se opunham, do que qualquer outro tipo de antiwestern. Os filmes da Alemanha Ocidental adaptados de Karl May, como O tesouro dos renegados (Der schatz im silbersee, 1962) e a trilogia Winnetou (1963-65), filmada na Iugoslávia e na Itália por Horst Wendlandt, foram imensos sucessos de bilheteria em toda a Europa. Esses filmes tiveram ótimas carreiras, mesmo sendo vistos por críticos como meros pastiches dos “superiores” faroestes americanos de John Ford e Delmer Daves. O público da Alemanha Oriental, que por anos vinha consumindo os livros de Karl May no mercado negro e assistindo aos faroestes da Alemanha Ocidental pela televisão, viajava até Praga no início da década de 60, para assistir ao mais recente faroeste da saga Winnetou, depois para assistir aos brutais westerns spaghetti e, por fim, ao escrachado faroeste tcheco Lemonade Joe (Limonádovy joe aneb konská opera, 1964). O gênero interessava ao público do Bloco Oriental na medida em que proporcionava um playground americano para explorar temas ligados às lutas das minorias. E a palavra gênero, aqui, com certeza se coaduna com a definição não hierárquica estabelecida por Jörd Schweinitz: “um sistema intertextual, estruturalmente aberto, de estereótipos”. A sensação que os habitantes da RDA tinham de que “eles viviam como que em uma reserva” delimitada pelo muro de Berlim, como bem colocou Holger Briel (2012), assim como os famosos e tradicionais “clubes indianistas”, também ajudou a sedimentar o
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interesse na empreitada. Em suma, esses faroestes, em alguma medida, salvaram a indústria cinematográfica da Alemanha Ocidental. Em 1965, o embargo cultural do 11o Plenum da Alemanha Oriental resultou no confisco desses filmes e na demissão do criador da DEFA, Kurt Maetzig, de sua posição de chefe do Roter Kreis. Enquanto isso, Hans Mahlich e seu dramaturgo-chefe, Günter Karl, estavam trabalhando em uma adaptação alemã/tcheca/iugoslava da obra “anti-May” de Welskopf-Henrich – Os filhos da Grande Ursa – para a televisão. Quando Maetzig foi substituído por Mahlich como chefe da Roter Kreis, a minissérie de televisão foi transformada em um longa-metragem de considerável orçamento, protagonizado por um estudante de Educação Física relativamente desconhecido (Mitić) que se transformava em uma estrela. O resto faz parte da História do Cinema. Os cineastas da Alemanha Oriental que criaram Os filhos da Grande Ursa e seu público pan-europeu viram-se preocupados com alguns grandes tópicos que, até hoje, a recepção acadêmica dos filmes só conseguiu reproduzir. Um tópico foi a maneira como o gênero abraçou uma linguagem humanista de “entretenimento” (Unterhaltung), uma concessão para os veículos culturais do Oeste, feita talvez em compensação simbólica pela seriedade dos assassinatos e da exploração dos aborígenes americanos. Isso permitiu que a Alemanha Oriental vendesse os filmes como shows de ação etnográficos: um tipo de gênero ideologicamente aprovado pelo regime socialista, quando outros – como o horror, a pornografia, o kung fu – eram proibidos. Por exemplo, o diretor Gottfried Kolditz envaidecia-se dos seus esforços para aperfeiçoar as sequências de ação e de cavalgada em A trilha do falcão, acreditando que era uma forma de superar as dificuldades que futuras produções socialistas da mesma estirpe poderiam encontrar. Outro tópico foi o afastamento ideológico dos filmes em relação aos faroestes racistas norte-americanos – com sua representação anônima e vilanesca dos indígenas – e a preferência por índios representados como heróis e socialistas modelares. O pitch inicial de Mahlich e Karl para Os filhos da Grande Ursa deixa isso bem claro: “nós vimos a oportunidade de criar um Indianerfilm que se diferenciaria dos faroestes clássicos, que viam os indígenas como uma massa anônima e hostil. Aqui, em vez dos brancos opressores, os heróis para o público são os índios, que servem como modelo por sua coragem, sua luta e por seu amor pelas pessoas”. Partilhando da
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mesma ideia, as qualidades da estrela dos Indianerfilme, Mitić, apontadas por Gemüden – seu atletismo, sua beleza, sua sabedoria, sua afabilidade e seu antialcoolismo – eram também computadas pela produção, embora esse bom comportamento nos bastidores (que ajudava na autenticidade e venda dos filmes) tenha sido recompensado financeiramente apenas a partir do terceiro filme que ele realizou com a DEFA. Outra crítica ao filme comum na época se referia à sua visão romântica do “bom selvagem”, uma crítica também feita posteriormente por estudiosos como Gemüden, Katrin Sieg, Vera Dika, entre outros. Enquanto muitos de seus colegas destilavam poesias para ressaltar a qualidade “realista” de Os filhos da Grande Ursa, o crítico Manfred Haacke, da RDA, comenta que os “olhares penetrantes de Mitić, assim como suas poses estoicas, não convenciam muito bem como forma de heroísmo real, muito menos como prerrogativa para determinar um trabalho artístico realista”. O dramaturgo Karl defendia publicamente seus filmes contra as críticas que os tachavam de racistas, argumentando que as narrativas Indianer não “sobreviveriam sem as qualidades românticas das paisagens e das vidas dos aborígenes americanos”. Em outras palavras, a desconfortável posição desses filmes, que se situavam entre a laudatória ambição de serem trabalhos solidários à resistência aborígene contra o imperialismo e a não tão laudatória apropriação racial (por exemplo, europeus orientais vestidos de drag étnico), necessária para realizá-los, já havia sido resolvida internamente antes da exibição deles no cinema. Os alemães adoravam os pequenos exotismos, com um toque de realismo para embalar tudo. Além disso, as dimensões pós-colonialistas dos filmes – como a figurativa luta de aborígenes americanos feitos de papel a favor dos diretos indígenas americanos, dos direitos civis norte-americanos ou da batalha contra o imperialismo dos EUA no Vietnã – eram armas para justificar a continuidade da produção governamental sob o escudo do discurso da solidariedade. Citando Karl, a partir de um primeiro tratamento do roteiro de Osceola (1971), ambientado em uma área próxima das plantations da Flórida, no ano de 1830: “A discriminação sofrida por pessoas de cor não é um problema exclusivo do passado norte-americano, é também do seu presente... As manifestações por direitos igualitários para pessoas de cor se fundem com as manifestações contra a guerra suja travada no Vietnã”. Os diretores e
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o público da RDA tinham, portanto, três grandes formas de interpretar os Indianerfilme: como uma amostra do cinema mundial violento, cinético, que se popularizava no final da década de 60; como uma resposta socialista, desafiante e virulenta, ao racismo e ao imperialismo do passado e do presente americano, assim como às recentes atrocidades do Holocausto; e, por fim, como uma “paródia branca”, irônica, do faroeste, embora advinda de uma nostálgica alusão às fantasias proporcionadas pelo gênero. Com isso, os consumidores europeus conseguiam engajar-se em um diálogo popular acerca dos superpoderes da Guerra Fria, ao mesmo tempo que se afundavam em fantasias pueris de conflitos maniqueístas, com direito a cavalos velozes e explosões.
O I ndianerfilm como resíduo de um processo Madeleine Casad argumentou recentemente que os Indianerfilme da DEFA possuem valor enquanto objetos que resistem ao presente, tanto como “pós-Wende camp” quanto como importantes expoentes da identidade da Alemanha Oriental. Agora que os Indianerfilme provam ter sobrevida com o VHS e o DVD – com vendas muito mais significativas que a maior parte da coleção Icestorm –, muitas críticas da década passada não pouparam esforços para tentar definir o legado dessa produção. Como era de se esperar dentro de uma economia global baseada no imperativo da moda, isso resultou em um punhado de trabalhos deleitados com o frescor dos filmes. Em “When westerns were un-American”3, J. Hoberman, ao fazer um resumo dos Indianerfilme, enfatiza as sugestões antifascistas, assim como o racismo não intencional das produções: Tribos indígenas, geralmente comandadas pelo musculoso Gojko Mitić, lutam contra variadas combinações de colonos avarentos, oficiais militares maldosos, advogados corruptos e gananciosos imperialistas. Povoados por avarentos caçadores de terra e posse, assim como por figuras de autoridade que estalam o chicote enquanto gritam em alemão para aqueles considerados racialmente inferiores (geralmente interpretados por eslavos), esses filmes possuem um subtexto não intencional.
3 “Cowboys socialistas”. Tradução livre.
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Em um artigo de 2012 da New Yorker, “Socialist cowboys”3, Anna Altman enfatiza as semelhanças entre os ideais do socialismo e a obsessão pelo Indianer, olhando-os como um processo amplo de compreensão do genocídio alemão e de construção de uma comunidade em torno de afiliações tribais. Ela escreve: “aqui, vemos atores da Alemanha Oriental posando de cowboys, atuando em cenas de genocídio e arrebatamento étnico, expulsando comunidades indígenas aos gritos de ‘Nós iremos exterminá-los todos!’”. O popular documentário DDR/DDR (2008), de Amie Siegel, insiste em utilizar sequências dos Indianderfilme – em especial uma sequência de canoagem passada de trás para frente, extraída de Chingachgook – para ilustrar uma metáfora socialista sobre rios que fluem em direção à nascente. Os movimentos dinâmicos do corpo de Mitić, na apropriação de Siegel, exibe uma vitalidade dentro da fantasia socialista de uma temporalidade reversa: a busca por alternativas em relação à dominação da Alemanha Oriental pela Alemanha Ocidental, do cinismo do capitalismo por um socialismo reformulado ou, na visão de Siegel, por um kitsch hipster. Enquanto isso, Alexander Osang escreve uma estranha pesquisa para encontrar Mitić e seu doppelgänger do Ocidente, Pierre Brice (que atuou como Winnetou na Alemanha Ocidental), o que resultou na produção de um Indianerfilm em 2009: A última caminhada (Der letzte Ritt). Àquela altura, o Indianerfilm O sapato de Manitu (Der schuh des Manitu, 2001) havia ultrapassado todos os recordes de bilheteria, podendo financiar a aventura de Osang. No entanto, a reflexão de Osang sobre um filme que não poderia ser produzido acaba caindo nas armadilhas do próprio gênero. Ele chama Mitić de “Chingachgook”, comentando – como fizera Reinhard Wengierek em 1982 – que o torso bem definido do ator era um meio de lutar contra os cowboys usurpadores. O télos dessas análises aparenta ser um desejo pós-Guerra Fria de determinar os Indianerfilme. Algo elusivo sobre o socialismo parece estar incrustado dentro do gênero, assim como algo racista e perverso (embora não mais do que em outras culturas cinematográficas). Embora os Indianerfilme nos convidem a uma leitura irônica, é quase impossível não cair no lugar comum do que já foi dito sobre eles. Afinal, a maior parte das pessoas sabe tão pouco sobre os Indianerfilme que pavonear sobre as inovações do gênero é algo fácil, que rapidamente prende a atenção dos cinéfilos. Assim como Jim
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Collins descreve os filmes da década de 90 como constelações que rapidamente caem entre a categoria da “ironia eclética” e a da “nova sinceridade”, o coquetel de ironia e sinceridade elaborado pelos Indianerfilme dos anos 60 e 70 obriga o crítico a tomar uma posição: ver Mitić como um indígena abertamente fake, com o rosto pintado, enquanto realiza stunts autênticas, representando a luta de uma minoria contra um inimigo do século XIX que aparenta estar igualmente presente nas décadas em que os filmes foram criados. Por outro lado, enquanto essas décadas se afastam no tempo e na história, involuntariamente nos aproximamos desses filmes como de um tipo de Guerra nas estrelas (1977) socialista: um universo tosco e desconexo que, no entanto, acertou todas as notas nostálgicas e emotivas do público da Europa Central e Oriental, acostumado tanto à ironia (com relação à sua presente circunstância) quanto à sinceridade (com relação aos crimes alemães e soviéticos do passado). Mitić é autêntico, seus filmes dialogam com a verdadeira história aborígene americana e incluem detalhes que se alimentam de arcos simplórios de vingança e narrativas reedificadas. Assim como Guerra nas estrelas, os Indianerfilme forjam um universo secundário imersivo, no qual a admiração pode ser, ao mesmo tempo, irônica e sincera. Todos podem acessar esse universo de maneiras distintas e ainda contribuir para o desenvolvimento de seu conteúdo. Mahlich e Karl criaram um universo narrativo prático que podia caminhar ao lado da “marca” socialista, sem romper com os universos narrativos cuidadosamente orquestrados pelo partido da SED4. Um mundo onde os alemães orientais podiam inventar seus próprios massacres de indígenas norte-americanos (como em Irmãos de sangue), para construir um universo alternativo de opressão e resistência, como artefatos que proclamam aulas objetivas sobre a resistência indígena americana que uma criança de 6 anos e um homem de 40 anos podem contemplar igualmente. Dika (2007) diz que o Indianerfilm estava “utilizando a capa” de um gênero norte-americano quando acabou, e tanto Broe (2012) quanto Dika afirmam que, debaixo da capa desses filmes de gênero, encontra-se um perdido desejo por unificação e por um socialismo alternativo. Esse “desejo” pode ainda estar vivo, mas não sem a contrapresença de uma boa e velha hegemonia. Partindo-se de velhas 4 Sigla do Partido Comunista Alemão.
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discussões acerca do objeto, este artigo mantém a ideia de que os Indianerfilme foram largamente subsidiados por um Estado que desejava utilizá-los para reconstruir sua plateia de cinema, assim como angariar capital estrangeiro. Mitić foi a verdadeira e única estrela da RDA – ele tinha um passaporte Iugoslavo, poderia ter ido embora, mas não foi –, o que forçou o Estado a adotar um discurso irônico com relação a esses filmes. Os filmes eram intencionalmente produzidos como artefatos de resistência, como brinquedos que não apenas satisfaziam a população, mas que também operavam como um playground Indianer que acalentava a esperança de superar as dificuldades coletivas como uma “tribo” socialista. Ver esses filmes tanto como um mundo secundário imersivo – para “brincar de índio”, por assim dizer – quanto como uma confluência transnacional de ideias e pessoas nos ajuda a começar a desvendar esse movimento duplo de aulas objetivas de História e entretenimento de massa. Eles representam o encontro de uma estética socialista com meditações sóbrias sobre a História e selvagens fantasias alemães nas paisagens de uma Europa Oriental americanizada. Tradução: Thiago Brito
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OS FILHOS DA GRANDE URSA (1966)
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I N D I A N E R F I L M E: ESPETaCULO, REALISMO, AbSTRAcaO por Luís Alberto Rocha Melo O lugar que uma época ocupa no processo histórico pode ser determinado de modo muito mais pertinente a partir da análise de suas discretas manifestações de superfície do que dos juízos da época sobre si mesma. (Siegfried Kracauer, “O ornamento da massa”, 1927) Embora o western tenha entrado para a história como o “cinema americano por excelência”, é inegável que se trata de um gênero transnacional. Como exemplo mais evidente, basta citar os famosos spaguetti westerns, hoje tão cultuados quanto os clássicos hollywoodianos. Mesmo aqui no Brasil tivemos uma considerável produção de bangue-bangues caboclos, desde o período silencioso (Sofrer para gozar, E. C. Kerrigan, 1923), passando pelo ciclo de Santa Rita do Passa Quatro (Da terra nasce o ódio, Antoninho Hossri, 1954), até o da Boca do Lixo (Rogo a Deus e mando bala, Osvaldo de Oliveira, 1972), em uma tradição que segue dando frutos, ainda que esparsos, no cinema independente atual (Faroeste, Abelardo de Carvalho, 2014).
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Apesar disso, é possível que para o espectador de hoje cause certa estranheza associar faroeste a cinema alemão. O senso comum nos diz que ambos seriam instâncias praticamente incompatíveis. Nem sempre foi assim. Na década de 1960, os faroestes alemães frequentaram com regularidade nossas salas de exibição. No Rio de Janeiro, por exemplo, os circuitos Bruni, Condor e Art-Palácio (que em suas programações mesclavam filmes europeus “de arte” com produções de franco apelo popular) devem ter obtido boas receitas com títulos como Tesouro dos renegados (Der schatz im Silbersee, Harald Reinl, 1966), O mão de ferro (Old Surehand, Alfred Vohrer, 1967), Um homem chamado Gringo (Sie nannten ihn Gringo, Roy Rowland, 1968) e O vingador de Arkansas (Die Goldsucher von Arkansas, Paul Martin, 1968). Sem falar da trilogia Winnetou, dirigida por Harald Reinl e baseada na obra de Karl May: A lei dos Apaches (1964), A saga continua (1965) e A trilha dos desalmados (1966), certamente as mais bem-sucedidas de todas essas produções. Naquela época vivíamos sob a ditadura militar, em um regime de repressão e censura que se tornou ainda mais violento a partir de 1968. Os faroestes germânicos que então assistíamos eram provenientes da Alemanha Ocidental. Talvez não imaginássemos que, do outro lado do muro de Berlim, na comunista República Democrática Alemã, fossem produzidos faroestes vermelhos, nos quais o índio era o herói e os vilões eram os brancos colonizadores (europeus e/ou norte-americanos). Os contextos históricos traçados na série de 14 filmes realizados entre os anos 1960-80 pelo Gruppen Roter Kreis (Grupo Círculo Vermelho), uma das unidades de produção da estatal DEFA (Deutsche Film-Aktiengesellschaft), situavam a guerra entre brancos e índios em termos claramente anticapitalistas, apontando para a solidariedade entre os oprimidos e a capacidade de resistência dos povos originários. Se mais acima sugerimos uma possível estranheza que o cinéfilo contemporâneo poderia sentir diante da relação entre o gênero faroeste e o cinema alemão, agora tratamos de uma ignorância comum a várias gerações: até o presente momento, os faroestes comunistas da Alemanha Oriental (os Indianerfilme) permaneceram para nós como objetos praticamente desconhecidos. Isso não significa dizer que, se tivessem sido exibidos aqui nos anos 196070, seriam classificados como filmes perigosos ou subversivos. Ao contrário, provavelmente seriam consumidos como qualquer outro produto da indústria cultural capitalista, correndo mesmo o risco de serem considerados até
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mais escapistas e ingênuos do que muitos filmes europeus, hollywoodianos, japoneses ou brasileiros. Afinal, os Indianerfilme da DEFA, a exemplo dos faroestes produzidos pela Alemanha Ocidental, também almejavam sucesso popular e circulação fora dos limites internos – o que de fato aconteceu, sobretudo em países do Leste Europeu alinhados à União Soviética, como Polônia, Hungria, Iugoslávia e Tchecoslováquia. Os faroestes do Gruppen Roter Kreis, quase todos estrelados pelo ator, roteirista e ex-dublê de origem sérvia Gojko Mitić, faziam uma espécie de síntese de espetáculo peplum com realismo socialista, de Chapaev com Tarzan, sem deixar de responder aos faroestes da Alemanha Ocidental nem de dialogar com a tradição da literatura popular alemã e estadunidense, incorporando, ainda, as renovações do gênero western verificadas a partir de 1950 – o metawestern, como prefere André Bazin – e as marcas do estilo italiano. Os Indianerfilme carregam, assim, as contradições típicas de um projeto altamente controlado pelo Estado e ao mesmo tempo comprometido com o mercado: as fórmulas narrativas mais convencionais convivem indisciplinadamente com soluções e achados de surpreendente inventividade. Verifica-se, assim, nos Indianerfilme, a permanência de um esquema geral que sustenta a trama épica: a ação perversa do capital, aliada à violência do invasor branco, desagrega as comunidades indígenas, que, no entanto, resistem como podem. No interior desse grande esquema, as variações estilísticas e combinações dramáticas mudam de título para título, bem como as referências temporais e geográficas e os embates entre grupos e etnias. A opção ideológica pela causa indígena não era, em si, uma novidade. Ela já estava presente em filmes hollywoodianos, como Flechas de fogo (Broken arrow, Delmer Daves, 1950), O caminho do diabo (Devil’s doorway, Anthony Mann, 1950) e Apache (Apache, Robert Aldrich, 1954), ou mesmo em um clássico anterior, como Sangue de heróis (Fort Apache, John Ford, 1948). A própria saga Winnetou, já mencionada, servia como bem-sucedido precedente para os filmes da DEFA. Mas o que torna os Indianerfilme particularmente interessantes é a forma como, aliando a pretensão de uma verdade histórica a um altíssimo grau de artificialidade na encenação e no tratamento formal, eles atingem a abstração necessária para viabilizar uma dupla leitura – tanto como filmes de aventuras populares quanto como um discurso afinado com a agenda do Partido Socialista Unificado Alemão. De forma paradoxal,
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conseguem renovar os limites de um ultrapassado e caquético realismo socialista pela via da subversão kitsch e da metalinguagem inerente à paródia, ao mesmo tempo que reforçam os parâmetros do western clássico trocando os sinais de heroísmo e vilania. A própria presença de um astro como Gojko Mitić, que nos filmes sempre interpreta o líder indígena, inscreve o espetáculo no terreno dos grandes contrastes. Seu corpo atlético em relação aos demais índios que o cercam (quase todos frágeis, demasiadamente humanos) realça o jogo de figura e fundo que interessa ao “herói positivo”, sob medida para o deleite das audiências e para a eficiência da propaganda ideológica. O que importa aqui certamente não é a verossimilhança, mas o jogo de exibição/submissão de corpos que cumprem funções de representação histórica. Nesse jogo, apenas um herói se destaca: o chefe índio. Na pirâmide dramática, ele está sempre acima dos demais, embora em filmes como A trilha do falcão (Spur des Falken, Gottfried Kolditz, 1968) ou Osceola (Osceola, Konrad Petzold, 1971) apareça como um entre vários outros personagens importantes, como a enfatizar a qualidade máxima do verdadeiro líder, isto é, o sentimento de solidariedade. Mantendo-se a um só tempo acima e ao lado dos demais, os protagonistas vividos por Mitić também não deixam de obedecer à fórmula do herói mediano preconizada pelo realismo crítico: chamado a desempenhar um papel decisivo em algum momento histórico específico, esse personagem que até então vivia como os demais as contradições fundamentais de seu tempo é alçado à posição de tipo. Curiosamente, ao situar as histórias em um país e em um passado remotos (os Estados Unidos do século XIX), os Indianerfilme esvaziam o caráter teleológico do esquema realista, ao mesmo tempo que se engajam no presente. A opção pela história dos vencidos (os índios) impede que o possível “final feliz” típico dos westerns se concretize. O clichê do cowboy que se afasta rumo ao horizonte das pradarias banhado pelo pôr do sol, imagem típica do cinema clássico hollywoodiano, é aqui substituído pela amarga incerteza do futuro. Afinal, embora na trama os índios vençam, trata-se de uma vitória circunstancial, que se dá no curso de uma história da qual já sabemos de antemão o final: os índios foram – como continuam sendo – exterminados pelos brancos e pelo avanço do capitalismo. Daí a dupla conclusão a que se chega: a história dos vencidos deve ser relida e atualizada, e nesse processo reafirmada como memória coletiva (ainda que
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fantasiosa ou espetacular) e como fonte de reflexão sobre a história atual – reflexão que, vale sublinhar, de forma alguma exclui o entretenimento, o humor e a diversão. Assim, se em Apache (Apachen, Gottfried Kolditz, 1973) o Holocausto, a guerrilha no Terceiro Mundo e o Vietnã indiretamente são abordados, em Osceola o tema da escravidão no sul dos EUA aproxima as lutas de índios e negros.Vale lembrar que esse último filme é uma coprodução entre a DEFA e o ICAIC (Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos), para o qual a escravidão e a proximidade geográfica com a Flórida – região em que diegeticamente se passa a história de Osceola – eram assuntos de enorme interesse. O caráter possivelmente alegórico desses faroestes, porém, não se sobrepõe jamais à economia do espetáculo popular e às exigências mínimas de plausibilidade na reconstituição de época, provavelmente porque um eventual afastamento da receita básica de um realismo domesticado (verossímil, isto é, conveniente) também não interessaria à censura imposta às unidades de produção ligadas à DEFA. De resto, as próprias referências estilísticas apropriadas e retrabalhadas pelos Indianerfilme acabam servindo a propósitos não exatamente óbvios. Por exemplo, apesar da exploração do físico de Gojko Mitić, responsável inclusive pelo sucesso desses filmes entre o público feminino, é de se notar a quase total ausência do erotismo exacerbado associado à violência, um dos traços típicos dos spaguetti westerns, mesmo em filmes como Apache (1973) e Ulzana (Ulzana, Gottfried Kolditz, 1974), bastante influenciados pelo estilo italiano. O pudor em apimentar as cenas entre homens e mulheres não se deve apenas à intenção de abranger um público mais amplo (incluindo crianças e adolescentes), mas também às premissas de um realismo “sadio”, que associa erotismo a decadência moral. Esse é um dos aspectos que sem dúvida realçam o conservadorismo intrínseco aos Indianerfilme. Erotizar a história dos vencidos seria quebrar uma das principais regras da representação maniqueísta sobre a qual está estruturado o código dramático dos faroestes vermelhos da DEFA, para os quais é a civilização que comporta o vício e a perversão, em contraposição ao mundo virtuoso e puro dos indígenas. Isso explica também o fato de que, nesses filmes, à diferença do que ocorre na maior parte dos faroestes hollywoodianos clássicos, é possível encontrar personagens femininas más e cruéis – como a filha loura do fazendeiro es-
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cravocrata, em Osceola –, para as quais não existe “salvação” possível, nem mesmo uma possível rendenção por meio do casamento ou do sacrifício. A luta de classes conforma os destinos. O compromisso com a eficiência nos efeitos de realismo deve ter garantido aos Indianerfilme dos anos 1970 maior credibilidade junto ao público, apesar de acarretar também alguma perda na inventividade da narrativa. Talvez por isso um filme como Chingachgook, a grande serpente (Chingachgook, die große Schlange, Richard Groschopp, 1967) apareça no conjunto dessas produções como um corpo estranho, ainda mais se comparado à encenação sóbria do filme anterior, que inaugura a série, Os filhos da Grande Ursa (Die Söhne der großen Bärin, Josef Mach, 1966) e dos títulos seguintes. O fato de Os filhos da Grande Ursa ser baseado na novela de Liselotte Welskopf-Henrich, uma das mais reconhecidas escritoras da República Democrática Alemã, talvez justifique a reverência de seus adaptadores. Chingachgook, por outro lado, é baseado na obra do autor norte-americano James Fenimore Cooper, o que, a princípio, poderia nos fazer supor que o tom deliberadamente paródico e fantasioso do filme seria decorrência dessa escolha. O fato é que Chingachgook é um dos filmes mais surpreendentes e ambíguos no conjunto da produção dos Indianerfilme. As cores vibrantes e a encenação coreografada nos lembram bem mais um espetáculo musical do que um faroeste. A rigorosa marcação dos atores às vezes cria relações espaciais antonionescas, mas logo em seguida tudo se transforma em história em quadrinhos. Aliás, é preciso ressaltar a excepcionalidade do trabalho fotográfico de Otto Hanisch, que a Chingachgook imprime um estilo bem diverso dos demais filmes da série. Além do uso constante de cores primárias – o vermelho e o azul, por exemplo –, que mimetizam e estilizam nos cenários interiores e nas locações externas os ambientes e adereços indígenas, há uma preocupação constante em trabalhar os contornos táteis das figuras, em destacá-las do fundo sem fazer uso das teleobjetivas, em filmar a natureza de maneira a criar massas compactas de cores e linhas geométricas que beiram o abstracionismo. Talvez esse resultado se deva à própria formação de seu realizador. Em Chingachgook, o velho Richard Groschopp (que iniciou sua carreira no cinema silencioso, como cineasta amador, e se dedicou durante anos ao cinejornalismo) não deixa de retrabalhar em novas bases uma certa modalidade de
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cinema abstrato, que remete à sua experiência como cinegrafista da cineasta Leni Riefenstahl em Olympia (Olympia, 1938). A ligação de Leni com o nazismo a separa da trajetória de Groschopp, mas não deixa de ser irônico que em Chingachgook o atletismo dos corpos em movimentos sincronizados e a predominância das linhas geométricas reapareçam como fundamento da encenação, embora dessa vez a serviço de um mundo de forças naturais que busca o livre curso de suas energias incontidas. Essa ironia não deve ter passado despercebida pelo Gruppen Roter Kreis: em seu estilo deslavadamente autoparódico, Chingachgook restou como “ovelha negra”, apartada dos demais irmãos, filhos comportados da “Grande Ursa”.
Luís Alberto Rocha Melo é realizador independente, pesquisador e professor do Curso de Cinema e Audiovisual e do Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens da UFJF. Dirigiu os longas-metragens Um homem e seu pecado (ficção, HD, 2016), Nenhuma fórmula para a contemporânea visão do mundo (ficção, HD, 2012) e Legião estrangeira (doc., HD, 2011); o curta-metragem em 35 mm Que cavação é essa? (ficção, 2008) e o média-metragem O Galante Rei da Boca (doc., DV, 2004). Seu primeiro trabalho como diretor foi Alex Viany – Um documentário em vídeo (1990), seguido pelos experimentais O desejo de Deus (1992), A projeção no cinema (1993), Fernando Py (1994), Fragmentos – Uma narrativa intranquila (1997) e O trapezista (1999). Foi redator das revistas de cinema Contracampo e Filme Cultura.
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O VENTO ASSObIa SOb OS PÉS (1976)
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CSIKOS, PUSZTA, GOULASH: OS IMAGINaRIOS DA FRONTEIRA HuNGARA EM O VENTO ASSObIa SOb OS PeS E A FUGA DE bRADY 1
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por Sonja Simonyi Este artigo explora o conceito de fronteira, central no gênero do faroeste, e sua função em dois filmes húngaros produzidos no período socialista. Aderindo às convenções do western por meio da apropriação de suas metáforas visuais e narrativas, essas produções exploram uma realidade cultural e histórica diferente. Fundamental para as reflexões sobre o contexto sociocultural específico da Hungria é a representação, em ambos os filmes, do Hortobágy, uma extensão de planícies no nordeste do país. Codificado com complexidade tanto nacional como transnacionalmente, esse território tem função-chave em ambos os longas-metragens, atuando tanto como redondezas que instantaneamente evocam o Velho Oeste quanto como uma realidade cheia de significado histórico e cultural que expressa a identidade nacional húngara. Enquanto o filme de 1976, O vento assobia sob os pés (Talpuk alatt fütyül a szél), dirigido por Gyorgy Szomjas, anunciava uma apropriação explícita do gênero, revisitando a região rural de Habsburgo no início do século XIX, a coprodução húngaro-americana A fuga de Brady, de 1 No original: Csikós, puszta, goulash: Hungarian frontier imaginaries in “The wind blows under your feet” and “Brady’s escape”. Publicado na edição 4, de dezembro de 2013, no Frames Cinema Journal. Tradução de Pedro Henrique Ferreira e Thiago Brito. De modo a adequá-lo ao objetivo central de nosso catálogo, os organizadores decidiram por traduzir e publicar um excerto do trabalho total de Sonja Simonyi (N. do O.). 2 Planícies húngaras, caracterizadas como estepes (N.do T.).
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1984, focava em um momento histórico mais recente, colocando a aventura dentro do contexto da Segunda Guerra Mundial. Apesar dos períodos divergentes retratados em ambos os trabalhos, os dois fazem um uso consciente da iconografia do faroeste e do seu imaginário, reposicionados em uma realidade cultural singular, e mostram uma ambiciosa dedicação ao reconstituir os ambientes húngaros como universos cinematográficos críveis. A exploração de uma identidade por meio dos marcos visuais do país é fundamental para esse processo em ambos os filmes. Porém, enquanto eles empregam praticamente os mesmos símbolos associados à cultura nacional, esses motivos exercem funções diferentes em cada caso. Szomjas utiliza-os de forma autorreflexiva, irônica e crítica. Já em A fuga de Brady, esses ícones tornam-se parte de uma sanção passiva de formas visuais exóticas, que ganham a dimensão de um background imagético para as aventuras dos soldados norte-americanos em um país estrangeiro. Para entender a razão do simbolismo nesses filmes, especialmente das conotações dadas ao característico terreno húngaro em ambos, é fundamental estabelecer algumas referências históricas ⎼ das quais surgem a identidade da Hungria e principalmente a topografia da puszta ⎼ e os modos pelos quais essas questões se relacionam com um processo mais amplo de criação de mitos e de expressão da identidade nacional.
A H ungria nas fronteiras europeias A importância da fronteira como uma construção histórica e cultural vem sendo irrevogavelmente associada a expressões da identidade nacional norte-americana, em particular por meio do trabalho do historiador Frederick Jackson Turner. Em sua obra “Teses sobre a fronteira” (1893), Turner estabeleceu uma conexão singular entre o Oeste americano, visto por ele como uma região fronteiriça peculiar, e os valores políticos e culturais da sociedade norte-americana. Esse conceito de fronteira, que Turner desenvolveu a partir da cultura europeia, influenciou fortemente representações do Oeste em vários meios culturais populares, sobretudo no cinema. Mas, embora seja inegável a centralidade da experiência regional na expressão da cultura norte-americana, a fronteira como uma construção histórica e cultural também vem sendo central para vários frameworks geográficos diferentes, dos quais a Hungria se mostra um notável exemplo.
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Um sentimento de ambiguidade, de estar “entre lugares”, característica que compartilha com a maioria dos países do Leste Europeu, é algo essencial para a identidade cultural do país. Tais ideias estão enraizadas historicamente na posição da região, uma zona geográfica fluida entre a Europa e a Ásia. E sua atual condição de território com longos conflitos políticos, militares e étnicos, com uma identidade regional complexa e flutuante, evoca a imagem de uma área fronteiriça. Essa noção tem sido central tanto para as conceptualizações feitas no estrangeiro quanto para as identidades nacionais que se formaram em certas nações do continente a partir do século XIX. Localizados entre o Leste e o Oeste, uma imagem reforçada pela teoria, frequentemente contestada, de que as origens do povo húngaro são asiáticas, “os estereótipos do povo magiar e a imagem que ele faz de si mesmo oscilam entre dois polos”. Essas visões construídas historicamente, uma negativa e a outra idealizada, perpassam tanto a historiografia quanto a literatura. Ainda, há contextos culturais mais amplos, que identificam os húngaros, de um lado, como “bárbaros asiáticos, nômades, cavaleiros vorazes e errantes, malcolocados na civilização europeia” e, do outro, especialmente durante a era do romantismo, como “uma imagem exótica de uma Hungria amante da liberdade, o que envolve os ingredientes pitorescos dos huszárok (hussardos), cigányok (ciganos), puszta (estepes húngaras) e csárda (casas na puszta)”, como László Marácz resume suscintamente.
As G randes P lanícies H ú ngaras: o espa ç o da fronteira nacional As Grandes Planícies Húngaras foram mapeadas como uma realidade mítica importante para essas ideias mencionadas anteriormente. Sendo uma vasta extensão de território que engloba planícies e pantanais, elas foram apontadas como o lugar onde os ancestrais nômades dos magiares se fixaram, por volta do século IX. Sítio de conflitos militares que duraram até o fim do século XVII, principalmente entre a Monarquia de Habsburgo e o exército turcomano, a área permaneceu como uma região de povoados afastados entre si. Somente na segunda metade do século XIX é que se desenvolveram, em meio a revoltas populares, atividades econômicas e agrícolas mais concretas.
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A estrutura étnica, social e economicamente complexa da região, somada a um notável cenário de espaços abertos infinitos, foi um elemento central na descrição de viajantes que passaram pela região. A possibilidade de elaboração do imaginário desse território húngaro é importante para a construção de mitos internos e externos. Na maioria das vezes, os internos são estabelecidos por meio de paralelos com as imagens icônicas do Velho Oeste norte-americano. O layout de modestas casas espaçadas entre si, que pontuam um extenso território desértico, a economia baseada em atividades pastorais, como criações de gado e corridas de cavalo, e a frequente presença de pessoas fora da lei até o século XIX também contribuíram para a identificação da área como uma região fronteiriça remota, solidificando sua imagem verossímil de um Velho Oeste oriental. A descrição da Hungria de 1869 feita pelo acadêmico britânico Arthur John Patterson nos fornece uma ilustração verídica dessas formulações sobre a puszta. Em seu texto, ele dá ênfase tanto às oportunidades econômicas da nação e ao desaparecimento de seu “solo virgem” quanto aos ecos visuais que o lugar apresenta dos “recém-plantados assentamentos nas bordas do oriente selvagem” da América. O ensaio em duas partes de A. N. J. den Hollander, “A Grande Planície Húngara: a área fronteiriça da Europa”, de 1960, nos apresenta um estudo mais recente e fundamental, que define as planícies como uma região fronteiriça, embutindo nela as representações icônicas da região a partir de uma pesquisa histórica e socioeconômica. Ele argumenta que o subdesenvolvimento e o afastamento da região continuaram a ser suas principais características ao longo da era da modernização. Que as metáforas comuns associadas à fronteira se mantiveram nas representações da puszta, apesar das grandes transformações que a região sofreu, graças às numerosas mudanças socioculturais e políticas ocorridas durante o século XX, é algo que pode ser testemunhado pela circulação desse imaginário em publicações de caráter turístico, que ainda hoje perpetuam a identidade do “Velho Oeste” como a essência da cultura húngara. Em paralelo a esses desenvolvimentos, a puszta se tornou, do século XIX em diante, um forte símbolo de identidade nacional ⎼ uma representação que, durante o período socialista, continuou a afetar a autoimagem que o povo húngaro fazia de si mesmo, como os filmes aqui discutidos ilustram.Vale ressaltar que o processo de celebração da identidade nacional durante esse
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período no Leste Europeu estava ligado a descrições românticas dos terrenos e povoados. A puszta efetivamente evocava ideias de liberdade e amplitude por conta de suas paisagens infinitas e cativantes. Desse modo, a região de Alföld, o berço da nação húngara, teve papel central no desenvolvimento da consciência nacional ao longo do século XIX, como é expresso pela literatura, pela poesia e pelas artes plásticas do período. Voltando-se para o complexo caráter da região, essas representações buscavam administrar a dupla identidade da nação com aparência ocidental, enquanto exploravam e idealizavam a imagem distante, de raízes não europeias, do povo húngaro. Durante o século XX, as imagens da puszta circularam de forma ampla, tanto domesticamente quanto em contextos estrangeiros, por meio da expansão do campo visual da cultura de massa, incluindo revistas ilustradas, diários filmados e noticiários, que se ligaram fortemente ao desenvolvimento turístico. A região foi redescoberta por esses meios, bem como seus peões e camponeses, celebrados por etnógrafos, fotógrafos e cineastas no período entreguerras. Hortobágy (1936) é um exemplo notável ⎼ um filme lírico, dirigido pelo austríaco Georg Hollering, que usou atores não profissionais (os peões, ou csikós da região, interpretavam a si mesmos) para contar a trama da expansão da agricultura ⎼ sua interferência nos modos de vida equestres daquela cultura e as tensões dela resultantes. A narrativa fragmentária do filme, que revela temas também explorados nas histórias dos westerns, serve apenas como pano de fundo para as cenas visualmente estonteantes dos nobres habitantes da puszta. O processo de coletivização soviética em grande escala, implementado em diversas áreas rurais de boa parte do Leste Europeu imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, trouxe grandes consequências para a estrutura social e para o território da região. Boa parte das Grandes Planícies Húngaras foi transformada, por meio da redistribuição do solo, para acomodar uma indústria de agricultura de grande porte, o que resultou em reassentamentos obrigatórios da população local. Os anos 60 são normalmente associados à abertura da maioria dos sistemas ditatoriais do Leste Europeu, processo que se refletiu no crescimento de sentimentos antissoviéticos de diversos níveis entre as elites políticas desses países. Genericamente falando, a exaltação forçada do internacionalismo comunista do início do período do pós-guerra coexistia, àquela altura, com um interesse renovado pelos
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inócuos símbolos da nação, bem como por seus motivos folclóricos populares, que serviam de base para formar a coerência nacional, utilizada como ferramenta para legitimar a ideologia socialista dentro de um dado Estado. Como sugerido anteriormente, o desenvolvimento e a circulação do imaginário da puszta no século XX estão intimamente ligados ao campo turístico. O turismo, sob o regime socialista, também servia para solidificar a coesão nacional por meio de marcos geográficos cultural e historicamente significativos. Durante os anos 1970, o Hortobágy passou por transformações consideráveis, tornando-se um parque nacional em 1972, com o turismo já estabelecido como a principal indústria daquela área. A atividade dos peões tornou-se sustentada por esse campo de expressão, à medida que as habilidades dos csikós eram transformadas em performances para as lentes locais e estrangeiras. Sua forte identidade de seres da planície era cada vez mais reduzida a uma atração turística trivial. A centralidade da puszta foi também sustentada pelo cinema e pela televisão do período. Por exemplo, a cultura dos homens fora da lei, típica do século XIX, foi explorada na série de televisão de Miklós Szinetár, Rózsa Sándor (1971), que narrava as aventuras de um famoso bandido envolvido com o levante de 1848 contra a Monarquia de Habsburgo. Filmado no Hortobágy, o programa utilizava-se de motivos folclóricos populistas: os camponeses representando a classe dos trabalhadores, sob uma visão idealizada da paisagem que desnudava uma Hungria romântica, idílica, na qual os feitos heroicos de Rózsa eram executados. Uma investigação anterior, rigorosamente formal, que desestabilizava esse imaginário da puszta no momento histórico do século XIX, havia sido apresentada no seminal Os sem esperança (Szegénylegények, 1966), de Miklós Jancsó. Passando-se após a revolução de 1948, o longa-metragem é centrado em um grupo de camponeses que são presos e questionados pelas autoridades por terem ligação com a figura revolucionária de Rózsa. Filmada na puszta com um estilo rigoroso, que alterna planos distantes com close-ups e apresenta padrões de pessoas e cavalos filmados com uma precisão geométrica, a paisagem abstrata dessa produção subverte a mitologia iconográfica e investiga as complexas relações de poder no processo histórico da região. É importante notar que os filmes de Jancsó ecoam os atributos formais do western de um modo geral, e os de John Ford em particular. Essa é uma influência que invade a linguagem
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desse longa-metragem de maneira implícita, particularmente por meio do uso da região como ícone nacional ⎼ o Hortobágy substituindo as vistas do Monument Valley, tão poderosas nos principais filmes de Ford. É também importante notar que a linguagem visual de Jancsó impactou profundamente a forma como o cenário da puszta foi retratado no cinema húngaro a partir da década de 1960. A análise a seguir refere-se às questões mencionadas anteriormente. Ela relaciona as expressões visuais da identidade histórica da Hungria com algumas das ricas referências intertextuais que os filmes evocam na avaliação divergente que fazem do simbolismo da região do Hortobágy. Dessa forma, essas aventuras cinematográficas correspondem à cultura profundamente enraizada histórica e culturalmente da puszta e, por extensão, a toda a cultura húngara, abordando de diversas formas as especificidades dessa imagem manufaturada.
O
vento
assobia
sob
seus
pés
O vento assobia sob seus pés, primeiro longa-metragem de Szomjas, é ambientado na década de 1930 e narra os esforços de camponeses para implementar um sistema de drenagem dos pântanos da área do sudeste do Alföld, conhecida como Nagykunság. O plotline do filme descreve uma reconhecida trupe de fronteira, representante de antigos e tradicionais costumes, transposta para os platôs da puszta. O filme relaciona-se, portanto, com um período histórico crucial do desenvolvimento dessa área: entre o início e meados da década de 1800, antes de sua transformação em uma importante região agrícola, um tempo em que homens fora da lei ainda perambulavam a cavalo pelas estepes. Embora alguns faroestes das décadas de 60 e 70 abordassem conflitos similares acerca da lenta industrialização da Hungria para retratar injustiças sociais, o que envolvia uma resistência ativa por parte dos camponeses (com frequente auxílio de um fora da lei), Szomjas afastava-se de uma crítica tão aberta ao desenvolvimento social capitalista. No contexto cultural da Hungria socialista, é exatamente a ausência da representação de um herói fora da lei com toques de Robin Hood ⎼ que Eric Hobsbawn chamou de “bandido social” ⎼ que pode ser vista como uma notável reformulação do ambiente de fronteira dentro do país. Assim, a superficial fábula anticapitalista acerca da modernização agrícola é
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preterida, dando-se preferência a uma representação estilizada das planícies fronteiriças húngaras e da potência simbólica imagética associada a ela. As planícies funcionam perfeitamente bem dentro de um sistema representativo de fronteira, de maneira que Szomjas pode cuidadosamente desconstruir o universo puszta e seus habitantes, assim como a visão idílica húngara que eles representam. Em uma entrevista, o diretor descreve o filme como uma tentativa de subverter a maneira como o imaginário népiesch ⎼ um termo que funde o adjetivo húngaro népies (povo) com o sintagma alemão völkisch ⎼ representou esse cenário. O intuito era apontar criticamente a representação diluída e superficial de temas folclóricos, ou mesmo o embelezamento e exagero de temas da cultura popular, e a maneira como essas imagens passaram a representar falsa e superficialmente a essência da nação. Com essa finalidade, a puszta representa um protagonista do filme, e o conflito entre Gyurka Farkas Csapó, o envelhecido fora da lei que retorna à região depois de um período em que esteve preso, e seu adversário de longa data, o xerife que tem por missão prendê-lo, conecta-se profundamente com o universo de fronteira das planícies. O forte laço que os dois possuem com a região marca uma ligação essencial entre eles, já que ambos se opõem tenazmente ao inevitável desaparecimento da vida de fronteira decorrente da chegada da modernização. Ao indignar-se com um fora da lei jovem que zomba de sua idade avançada, o xerife diz: “nós dois estamos envelhecendo, e a puszta também”. Por meio do diálogo, ele reforça a conexão biológica entre a terra e sua própria espécie, prenunciando o declínio do herói, que também será causado pela transformação da terra. A narrativa chega ao fim quando o fora da lei é traído. Não pelo xerife e suas velhas tradições da puszta, mas sim pelas mãos de seu próprio povo, de sua amante e do jovem bandido amoral que ele havia apadrinhado. A queda do herói ladrão, que conclui a narrativa, traz novamente uma série de motivos distintos e genéricos, que vão de um duelo estilizado à morte do herói na forca, tendo a planície invernal como pano de fundo. A mudança da paisagem de outono para a de inverno representa, simbolicamente, a relação entre o espaço e nosso fora da lei – embora ela seja mostrada de maneira não romantizada. Por exemplo, uma cena de perseguição a cavalo entre o xerife e o fora da lei é entrecortada por imagens de uma manada de gado acinzentado ⎼ uma espécie icônica da Hungria ⎼, com um boiadeiro estacado entre os animais.
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Um plano cuidadosamente encenado que, por meio de um intertexto, faz alusão à icônica representação da puszta na pintura, na fotografia e no cinema. Mas esse plano, aparentemente pitoresco, é subvertido no minuto em que o close dos pés do homem revela que, descalço, ele está em cima de um amontoado fresco de esterco de vaca, de maneira que a imagem da terra húngara que tudo dá se apresenta como simples excremento. Ao explorar a puszta, Szomjas criativamente atualiza uma série de símbolos iconográficos, integrando-os aos padrões visuais e narrativos de um faroeste. Para além das surpreendentes imagens das planícies, belamente capturadas a partir de encenados planos em grande-angular e travellings que enfatizam a amplitude do espaço, a csárda transforma-se em um ambiente importante dentro da narrativa. Esse espaço, uma espécie de estalagem há muito associada à região puszta e ao seu imaginário popular, é uma das poucas estruturas sólidas com permanente presença humana na região. No filme, ele representa os saloons das vilas fronteiriças americanas, com direito a placa de “procura-se, vivo ou morto” – utilizada casualmente como uma espécie de tiro ao alvo pelos fora da lei da região. Esse cenário transformase em um espaço para elementos genéricos importantes, como longas brigas de bares que imitam as extravagantes acrobacias cômicas dos westerns italianos estrelados por Bud Spencer e Terence Hill ⎼ cujos filmes foram imensamente populares por toda a Europa Oriental e, para muitos, substituíram o faroeste clássico como referência arquetípica da construção de aventuras ficcionais de fronteira. Assim como sugeriu Philip French em sua discussão sobre o faroeste, “a posição do forasteiro em relação ao espaço é de importância crucial, e são poucos os filmes que não começam com a imagem de um homem, ou um grupo de homens, cavalgando pela paisagem”. O plano em que o fora da lei aparece pela primeira vez mapeia essa imagem icônica do solitário cavaleiro na puszta. A figura aparece a distância, envelopada por uma paisagem desolada, longínqua, enquanto, atrás, o sol sobe no horizonte. Essa imagem mostra a brincadeira consciente que o diretor faz com o léxico visual do faroeste, o que é reafirmado por um plano subsequente em que o fora da lei para próximo a uma forca na qual um corvo está pousado (aqui, o inofensivo corvo, muito comum na zona rural da Hungria, substitui de forma criativa a imagem do abutre como representante da morte que espreita o deserto
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fronteiriço da América). O longo plano do cavaleiro solitário, que dura um bom tempo, transforma-se no pano de fundo onde o título e a sequência de créditos aparecem, enquanto uma música folclórica, embalada por violinos e uma cítara que acompanham uma voz masculina, explicitamente marca a característica estrangeira da imagem, distanciando-a do universo do faroeste norte-americano. Djoko Rosic, um ator iugoslavo que iniciou sua prolífica carreira no faroeste Hajdúk (1975), interpreta o impassível fora da lei do filme. As notáveis características de Rosic, assim como suas habilidades com o cavalo, fizeram dele um ator interessante para representar os nômades de fronteira em todas as manifestações húngaras do faroeste, canalizando eficientemente o status ambíguo desses personagens. Sua associação com o gênero permaneceu central para o estabelecimento de sua carreira no cinema da região. Isso pode ser atestado por sua atuação em outras aventuras cinematográficas de fronteira, incluindo algumas produções da Alemanha Oriental e o filme búlgaro Sadiyata (1986), dirigido por Plamen Maslarov. Sua curta, embora memorável, presença no filme de Béla Tarr, As harmonias de Werckmeister (Werckmeister harmóniák, 2000), no qual ele é creditado apenas como o “homem com botas de faroeste”, confirma a continuidade de Rosic como um ícone cultural da produção de westerns húngaros. As características roupas de lã dos campesinos e boiadeiros que ocuparam historicamente a Europa Oriental fornecem a referência visual para a construção da “natureza faroeste” (bárbara). Simultaneamente, aos olhos dos estrangeiros, esses tipos de vestimenta caracterizam esses nativos como pessoas exóticas, seres inferiores, com um estilo de vida primitivo. Szomjas enfatiza a imagem dessas figuras, assim como suas identidades selvagens e alienígenas, ao mesmo tempo que as insere de forma divertida em uma conhecida paisagem cinematográfica de fronteira. Profundamente importante, a representação de um grupo de habitantes primitivos, provenientes de uma ancestral tradição pastoral, também suscita relação com os húngaros nômades, não europeus, não ocidentalizados. A apresentação do povo da puszta como duvidosamente orientais representa de maneira criativa a diversidade mítica dos húngaros, que poderiam ser enquadrados em um “faroeste” de fronteira.
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A cena em que o fora da lei encontra e depois mata um bandido que o denunciou anos antes nos serve como um grande exemplo. O homem aparece sentado, sozinho, sobre uma terra lamacenta, com um fiapo de fogo tremeluzente em sua frente, sua cabeça destacada entre as roupas de lã que cobrem seu corpo, os olhos ocultados por um chapéu surrado. Um close desse ser das planícies agachado, todo felpudo, revela não apenas a boca de sua arma, ocultada sob a lã, mas também seus pés sujos, aparecendo de forma cômica. Szomjas desassocia o húngaro “nativo” da puszta de sua condição habitual ao descontruir a imagem icônica associada à paisagem e a seus habitantes. Essa emblemática ilustração visual funde-se, dentro dessa perspectiva, com a genérica invocação do Outro (indígena) dos faroestes, realocando ambas as imagens na esfera do estranho e do familiar. Durante o filme, aparecem diversos animais característicos daquela região, como o porco Mangalitsa, o carneiro de pelos longos e os já citados bois acinzentados. A presença deles delimita a singularidade geográfica do território e firma a narrativa como inegavelmente húngara. Mais à frente, o filme apresenta o que poderia ser considerado o maior estereótipo da culinária húngara, o famoso prato de páprica com carne: goulash (gulyas). Novamente transpondo a recorrente trupe do faroeste, aquela que se alimenta em torno de uma fogueira, para as Grandes Planícies Húngaras, em uma cena há um grupo de homens aquecendo um goulash em uma caldeira. Em um plano estático, encenado como um tableau, enquanto homens são vistos fazendo uma pausa para fumar um cachimbo, um kuvasz, espécie canina específica da Hungria, calmamente aproxima-se deles, em um movimento estrutural que conota a natureza itinerante desses personagens. Reconhecido pela cultura popular como um tradicional e antigo artigo culinário húngaro e, desde a década de 60, servido para os turistas da mesma maneira, ou seja, sobre uma caldeira, como está na cena do filme, o goulash se transformou em um item imprescindível da cultura local. No filme, a sua presença serve para uma caracterização rápida do gosto húngaro, uma ornamentação gastronômica da cultura folclórica de fronteira. Confirmando a importância do prato na essência da cultura húngara, um crítico comentou, enquanto analisava o segundo faroeste de Szomjas, que seus colegas estrangeiros mais ácidos certamente caracterizariam os novos faroestes húngaros como faroestes “goulash” ou “páprica”. “Faroeste goulash” realmente se transformou
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no chavão utilizado para determinar os dois filmes do gênero produzidos por Szomjas na década de 70. O termo se alinha a outros estereótipos culinários, como os utilizados para caracterizar o faroeste spaghetti e outras explorações do gênero do resto da Europa. Szomjas, ao se preparar para rodar seu faroeste húngaro, não pôde “desvirginar” áreas da região Nagykunság para representar de forma convincente as terras intocadas que seriam transformadas pelo progresso do século XIX. Ele foi forçado a levar sua equipe de filmagem para a beira do Parque Nacional Hortobágy, área que, curiosamente, até hoje representa a sensação de uma Hungria remota para seus visitantes, pelo menos no contexto de um ambiente de fronteira artificialmente preservado. Em uma notável repetição do processo histórico, o diretor realmente encontrou um trabalho de canalização fluvial sendo feito na área, algo que ele usou no filme. O primeiro longa-metragem de Szomjas combate categorias genéricas e noções simplificadas de nacionalidade, assim como explorações superficiais da cultura e da história folclórica. Ao empregar ironia e excesso visual, ao explorar icônicas imagens da paisagem da Hungria, ele funde os ícones do faroeste e os simbolismos húngaros de maneira criativa. Como foi mencionado anteriormente, os conflitos ideológicos ocorridos nas fronteiras servem, predominantemente, como recursos dramáticos que se desdobram nas longínquas paisagens da puszta. Mas a narrativa aparenta afastar-se de uma tomada política explícita. O real objetivo desse filme ainda é a reconsideração crítica e cômica dos diferentes mitos húngaros, tudo contido em um universo ficcional de embates de um faroeste de fronteira. Tradução: Pedro Henrique Ferreira e Thiago Brito
O VENTO ASSObIa SOb OS PÉS (1976)
EM CASA COM ESTRANHOS. UM ESTRANHO EM CASA (1974)
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A CRIANca
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por Vsevolod Ivanov Nota dos curadores: O escritor Vsevolod Ivanov foi reconhecidamente uma das principais figuras do gênero literário do ostern, que, por sua vez, exerceu alguma influência no gênero cinematográfico em questão. A título de ilustração histórica, aqui deixamos trechos de um de seus mais célebres contos publicados, pois acreditamos que, embora ele não apresente a mesma intenção propagandística dos filmes e não possua uma visão tão idealizada do processo da Guerra Civil, seus cenários da Ásia Central, seu clima de confronto, exotismo e selvageria, seus personagens tão “broncos” quanto os cowboys e suas formas e construções linguísticas remetem diretamente à encenação dos faroestes vermelhos.
I Mongólia ⎼ um animal selvagem e sem alegria. Cada pedra: um animal. Cada lago: um animal. Todas as borboletas estão à espreita com seus ferrões. Os mongóis ⎼ seres inescrutáveis: vestem, dizem as más línguas, carcaças de animais, parecem chineses e vivem longe dos russos, no deserto de Nor-Koy. Os boatos dizem que seu retiro está ainda mais afastado, para além da China e da Índia, em terras azuis desconhecidas.
1 Originalmente publicado em Broom: an international magazine of the arts, v. 4, n. 3, Feb. 1923. Tradução de Thiago Brito.
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Uma pequena tribo kirghiz, que veio do rio Irtysh quando fugiu da frente de batalha russa, estava agora perambulando pela Mongólia, a certa distância de um grupo de russos, também foragidos. Personagens frágeis e sem valor, como se sabe, os kirghiz avançavam sem pressa. Eles traziam seu gado, suas crianças e até mesmo seus doentes. Os fugitivos russos, campesinos fortes e saudáveis, caminhavam sem piedade. Deixavam no chão os mais fracos e doentes. Alguns haviam morrido; outros haviam sido mortos. Suas famílias, propriedades e rebanho haviam sido capturados pelo exército branco. Os campesinos estavam tão loucos quanto os lobos na primavera. Quedavam em suas barracas, morrendo de fome, sonhando com suas estepes, pensando no rio Irtysh. Eram cinquenta, com Sergey Selivanov como presidente. Eles se autodenominavam o Destacamento Guerrilheiro do Exército Vermelho do Camarada Selivanov. Eles estavam isolados. Quando o exército branco afugentava-os para além da montanha, os enormes rochedos escuros os assustavam. Agora que tinham atingido as estepes, estavam entediados. Estas estepes eram parecidas com as estepes do rio Irtysh: areia, grama dura, um céu metálico duro. Tudo era estrangeiro, estranho, insultante e selvagem. O mais difícil era a ausência de mulheres. Durante a noite, ele narravam contos obscenos, típicos de soldados, e, quando a tortura era insuportável, selavam os cavalos e iam caçar as mulheres kirghiz. As mulheres kirghiz, ao perceberem a presença dos russos, caíam no chão de forma submissa. Era repugnante a forma como eles as levavam, deitadas, imóveis, com os olhos semicerrados. Era como comungar com a besta. Os homens tinham medo dos russos e corriam em direção às estepes. Sempre que viam um russo, eles brandiam seus rifles e arcos de maneira ameaçadora, gritavam, mas nunca atiravam. Talvez eles não soubessem atirar.
II O tesoureiro do destacamento, Afanasy Petrovich Trubatchov, era frágil como uma criança e tinha um rosto infantil, pequeno, rosado, imberbe. Suas pernas eram longas e duras, como as de um camelo. Quando cavalgava, imediatamente se punha austero. Seu rosto se fechava e ele ficava sentado com
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sua cabeça grisalha, mal-humorado, terrível. No Whitsuntide2, três homens ⎼ Selivanov, Afanasy Petrovich e Drevesinin ⎼ foram enviados à estepe para encontrar terras para servir de pasto. Um vento passava. Uma onda de calor saía da terra rumo ao céu vacilante. Os corpos dos homens e dos animais eram duros e pesados como uma pedra. Selivanov disse roucamente: “Que tipo de pastagem podemos esperar dali?” Todos sabiam que ele se referia ao rio Irtysh. Suas esparsas faces barbudas eram silenciosas; seus cabelos pareciam grama queimada pelo sol; seus olhos eram injetados de sangue, como feridos por ganchos. Apenas Afanasy Petrovich disse, com pesar: “Será que também lá encontraremos a seca?” Ele disse isso com uma voz lacrimosa, mas sem lágrimas nos olhos. Uma lágrima afligia os olhos secos de seu cavalo. E, então, um atrás do outro, os guerrilheiros caminharam entre pastagens selvagens em direção à estepe. A areia brilhava de calor; o vento saturado de areia se agarrava aos ombros e faces; o suor queimava o corpo, mas não conseguia brotar na pele ressecada. À tarde, enquanto passavam por uma cavidade, Selivanov apontou para o sul e disse:“Alguém está vindo.” Era verdade. No horizonte, uma poeira rosa se elevava sobre a areia: “Deve ser um kirghiz.” Eles começaram a deliberar. Drevesinin disse que os kirghiz sempre mantinham certa distância e nunca se aproximavam da ravina de Selivanov. Afanasy insistia que só podia ser eles. Apenas os kirghiz levantavam uma poeira tão densa. E, quando a poeira se aproximou mais, eles concluíram: “São desconhecidos.” Os cavalos deduziram pelas vozes de seus mestres que estranhos se aproximavam. Eles abaixaram seus ouvidos e relincharam antes mesmo de qualquer ordem ser dada. Na ravina, os corpos cinza e amarelos dos cavalos, com suas pernas de varetas, pareciam desamparados e ridículos. Eles fecharam seus grandes olhos, como se estivessem envergonhados, respirando pesadamente. Selivanov e o tesoureiro, Afanasy Petrovich, estavam agachados dentro da ravina. O tesoureiro estava choramingando, soluçando.
2 O Whitsuntide é a semana após o Whitsunday, o último domingo da festa cristã de Pentecostes.
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Para suavizar seu medo, Selivanov sempre o mantinha ao seu lado; ele parecia gostar disso e extrair uma satisfação maliciosa desse choramingo infantil. A poeira caminhava em sua direção. Era possível ouvir as rodas tremendo alternadamente; era possível ver as crinas longas e negras ondulando como uma nuvem de poeira entre os arreios dos cavalos. Selivanov, com firmeza, disse: “russos.” Então, da ravina, ele chamou Drevesinin. Duas pessoas estavam sentadas em um carro novo, feito de vime. Era possível perceber as faixas vermelhas em suas boinas, mas seus rostos estavam cobertos pela poeira. O vermelho parecia nadar entre poeiras amarelas. A boca de uma arma emergiu da poeira, uma mão com chicote aparecia, ora sim, ora não. Drevesinin, pensativo, disse: “Oficiais… A negócio, provavelmente… Uma expedição…” Uma centelha maldosa em seus olhos. “Vamos mostrar a eles o que é uma expedição de verdade.” O carro aproximava-se célere, os cavalos vinham na frente. A poeira, como o rabo de uma raposa, varria seus rastros. Afanasy Petrovitch pediu, com pena:“Não, camaradas, o melhor é levá-los como prisioneiros.” “E você não tem pena do próprio pescoço?” Selivanov se irritou ⎼ engatilhou sua arma silenciosamente e se virou: “Parem de reclamação.”
O que particularmente os irritava era que os oficiais vinham sem escolta, como se estivessem em grande número, trazendo ameaça aos campesinos. Um dos oficiais aprumou-se, contornou a estepe, mas não conseguiu enxergar com a poeira, o vento, a tarde avermelhada que descia sobre a grama queimada e sobre duas pedras que mais pareciam corpos de cavalos próximos à ravina. O carro e suas rodas, as pessoas e seus pensamentos estavam imersos na poeira vermelha. Um tiro ressoou. Em uníssono, as boinas, entrechocando-se, caíram dentro do carro. Os arroios soltaram como se puxados por uma mão invisível. Os cavalos remexeram-se e tentaram fugir. Repentinamente, suas crinas foram manchadas por uma espuma branca; seus poderosos músculos tremeram; eles abaixaram a cabeça e pararam. Afanasy Petrovitch disse: “Morreram.”
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Os campesinos foram averiguar. Estavam mortos. Ombro com ombro, estavam sentados com as cabeças reclinadas para trás, feito capuzes. Um deles era uma mulher. Cabelos desgrenhados, metade recobertos de poeira amarela e negra; a roupa de soldado inchada com os seios de mulher. “Coisa estranha”, disse Drevesinin, “mas a culpa é dela. Não deveria ter usado uma boina masculina. Quem quer matar uma mulher? Nós precisamos delas.” Afanasy Petrovitch cuspiu. “Você fede, mongol…Você não…” “Calma”, cortou Selivanov. “Não somos ladrões. Temos que realizar um inventário das propriedades do povo. Dê-me um pedaço de papel.” Em uma cesta de vime, escondida embaixo de um assento, eles acharam, entre as “propriedades do povo”, um bebê loiro, de olhos azuis. Suas pequenas mãos estavam apertando uma colcha marrom. Pequeno, em fase de amamentação, chiando. Afanasy Petrovitch disse, com emoção: “Olha só, tagarelando em seu próprio dialeto.” Novamente um sentimento geral de tristeza pela mulher afetou os homens. Eles não retiraram as roupas dela. O homem foi enterrado pelado na areia.
III Afanasy Petrovitch voltou ao carro. Ninando o bebê no colo, cantou: “Rouxinol, passarinho, canarinho ⎼ cantam tristemente…”
Ele se lembrou de sua vila, Lebiajy, de sua terra, seu gado, sua família, seus filhos, e começou a chorar timidamente. O bebê chorou também. A bela e reluzente areia se estendia no horizonte, e também chorava timidamente. Os guerrilheiros, com os rostos e almas abatidos, cavalgavam com seus pequenos e fortes cavalos mongóis. Um caminho ressequido e amargo, pequeno e invisível, se estendia feito areia. Areia e ervas daninhas, pequenas e amargas. Caminhos de cabras. Areias amargas. Mongólia ⎼ um animal selvagem e sem alegria. Eles examinaram os bens do oficial. Livros, uma carteira de tabaco, instrumentos de metal luminoso. Um desses instrumentos era uma caixa de latão com divisões posicionada sobre um tripé. Os guerrilheiros a examinaram e a pesaram em suas mãos. Eles cheiravam a gordura de carneiro. Envoltos na solidão, eles comeram demais e sujaram suas roupas.
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Eles tinham bochechas proeminentes, finos lábios macios, cabelos escuros, longos, e peles negras ⎼ verdadeiros Dons de aldeia. Todos tinham pernas arqueadas e a voz gutural das estepes. Afanasy Petrovitch levantou o tripé da caixa de latão e disse: “Telescópio.” Então, fechou seus olhos. “Bom telescópio. Custa muitos milhões. Eles viram a lua com ele, camaradas, e lá acharam depósitos de ouro. Puro feito farinha. Não precisa nem lavar, é só colocar dentro de sacolas.”
Um jovem, nascido na cidade, riu alto. “Que lorota é essa que ele está contando? Peçam que ele pare!” Afanasy Petrovitch se irritou. “Lorota, seu traste? Você me aguarde…” Eles dividiram o tabaco e deram o instrumento luminoso para Afanasy Petrovitch. Como tesoureiro, ele poderia trocá-lo por alguma coisa com os kirghiz. Ele colocou o instrumento diante do bebê e disse: “Divirta-se, pequenino.” Mas a criança continuava chiando. Ele tentou uma coisa, depois outra. Ele começou a suar ⎼ nada fazia a criança parar de chorar. Os cozinheiros trouxeram o jantar. Havia um odor pesado de óleo, mingau, shtchee3. Eles puxaram, de dentro de suas botas, longas colheres de madeira Semipalatinisk4. A grama sob seus pés era rala. A ravina, longa e escura. Um sentinela que estava de prontidão gritou do alto: “Ei, aqui, eu quero parar… Eu estou com fome… Mandem alguém subir.” Eles acabaram de comer e se lembraram ⎼ a criança também precisava comer. Ela não parava de chorar. Afanasy Petrovitch mastigou um pouco de pão, depositou o miolo úmido na boca da criança e estalou seus lábios: “PP… Pp… Aqui, barbeirinho… Coma um pouco.” Mas a criança não comeu, fechou a boca e afastou a cabeça. Seu nariz estava escorrendo. Os campesinos se reuniram em volta dela. Eles olhavam para a criança, uns sobre os ombros dos outros. Estavam calados. Estava quente. Os lábios e as bochechas deles brilhavam de gordura de carneiro; suas camisetas estavam
3 Um tipo de sopa aguada e barata. Alimentação comum de prisioneiros na Sibéria. 4 Região atualmente denominada Semei, localizada no nordeste do Cazaquistão (N. do T.).
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abertas; seus pés estavam descalços e amarelados como a terra da Mongólia. Um deles disse: “Talvez ele coma um pouco de shtchee?” O shtchee tinha esfriado. Afanasy Petrovitch colocou o dedo na sopa e depois o aproximou da boca do bebê. A gordura do shtchee caiu dos lábios da criança na camiseta rosa e na colcha marrom. O bebê se recusava a comer. “Até um filhote seria mais inteligente, lamberia meus dedos.” “Bem, um filhote é um bruto e isso é um ser humano.” “É verdade.” Não havia leite de vaca no acampamento. Então, eles pensaram em dar para a criança leite de égua ⎼ havia éguas no acampamento. Mas o kumiss5 era muito tóxico, a criança poderia adoecer. Eles se separaram em grupos entre as carroças; eles estavam preocupados. Afanasy Petrovitch andava de um lado para o outro com um casaco esfarrapado nas costas, com os seus olhos esfarrapados. Ele lamentava com uma voz esguia, agitada, infantil, como se a criança fosse ele mesmo. “Bem, o que vamos fazer? Nós devíamos…” Com os ombros largos e poderosos, eles quedavam desamparados. “Isto é negócio para as mulheres.” “Sim, é claro.” “Talvez uma mulher fosse capaz de fazê-lo comer um carneiro inteiro?” “Talvez.” Selivanov chamou uma assembleia e disse: “Não podemos deixar um bebê cristão morrer como um bárbaro. Imaginemos que seu pai fosse mongol. Isso não seria culpa da criança.” Os campesinos concordaram. “A criança não tem nada a ver com isso.” Drevesinin explodiu, rindo. “A criança vai crescer muito bem… Viajar para a lua… Mina de ouro…” Ninguém riu. Afanasy Petrovitch levantou os punhos e gritou: “Você é um desgraçado.” Ele bateu com os pés no chão, levantou as mãos e subitamente urrou: “Uma vaca… Precisamos arranjar-lhe uma vaca agora.” 5 Leite de égua fermentado.
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Todos responderam em coro: “Ele morrerá se não arranjarmos uma vaca.” “Uma vaca é do que ele precisa.” “Ele vai morrer se não arranjarmos uma vaca.” Afanasy Petrovitch disse, resoluto: “Eu vou atrás de uma vaca.” Drevesinin interveio impertinentemente: “Vá para o Irtysh, para o Lebiajy…” “Eu não preciso ir para o Irtysh, seu maluco. Eu vou para o Kirghiz.” “Troque o telescópio.” Afanasy Petrovitch atacou-o. Ao vê-los se xingando, Selivanov, o presidente da assembleia, disse: “Está bom.” Então, decidiu-se, por meio do voto, que Drevesinin, Afanasy Petrovitch e outros três iriam até o acampamento dos kirghiz para conseguir uma vaca. Se possível, mais duas ou cinco ⎼ o abastecimento de carnes do cozinheiro estava baixo. Acoplaram espingardas nas selas dos cavalos, botaram chapéus kirghiz de pele de raposa, para parecerem kirghiz a distância, e saíram. “Adeus.” Eles amarraram o bebê na colcha e guardaram-no em uma carroça. Um jovem rapaz ficou de guarda. Para se divertir e divertir o bebê, o rapaz dava tiros com seu revólver Nogan na mata.
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UM HOMEM DO BOULEVARD DES CAPUCINES (1987)
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O SOL BRANCO DO DESERTO (1969)
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filmografia AS AVENTURAS EXTRAORDINÁRIAS DE MR. WEST NO PAÍS DOS BOLCHEVIQUES (neobychainye priklyucheniya mistera vesta v strane bolshevikov) O norte-americano Mr. West e seu fiel guarda-costas Jeddie viajam para a terra dos horríveis e cruéis bolcheviques. Passando por vários contratempos, Mr. West descobre que os soviéticos são, na realidade, muito admiráveis. 1924 – 94 minutos – União Soviética Preto e branco / Silencioso / 1.33:1
Direção: Lev Kuleshov Roteiro: Nikolai Aseyev,Vsevolod Pudovkin Elenco: Porfiri Podobed, Boris Barnet, Aleksandra Khokhlova, Vsevolod Pudovkin,Vera Lopatina Produtora: Goskino Faixa etária: 14 anos
OS TREZE (TRINADTSAT) Inspirado em A patrulha perdida, de John Ford. Um grupo de soldados escoltando alguns civis pelo deserto asiático é emboscado e cercado por uma conhecida horda de bandidos. Os soldados decidem segurar os bandidos até que cheguem os reforços. 1937 – 90 minutos – União Soviética Preto e branco / Mono / 1.37:1
Direção: Mikhail Romm Roteiro: Iosif Prut, Mikhail Romm Elenco: Ivan Novoseltsev,Yelena Kuzmina, Aleksandr Chistyakov, Andrey Fayt Produtora: Mosfilm Faixa etária: 14 anos
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CANÇÃO DA PRADARIA (ARIE PRERIE) Uma história cômica sobre uma señorita que viaja pelo Velho Oeste em uma diligência. Ela é salva das garras de um bandido por um cowboy que entoa canções. 1949 – 19 minutos – Tchecoslováquia Animação / Colorido / Mono / 1.37:1
Direção: Jirí Trnka Roteiro: Jirí Trnka Produtora: Ceskoslovenský Státní Film Faixa etária: 14 anos CAMINHO DE FOGO (OGNENNYE VYORSTY) Influenciado pelo clássico No tempo das diligências, de John Ford. O agente Zavragin, da inteligência soviética, está apressado para chegar a uma cidade no sul da Rússia cercada por tropas de Anton Denikin. Sem ter acesso pelos trilhos do trem, ele decide usar um carro da artilharia e reunir um grupo heterogêneo que também está a caminho da cidade. 1958 – 85 minutos – União Soviética Colorido / Mono / 1.33:1
Direção: Samson Samsonov Roteiro: Nikolai Figurovsky Elenco: Igor Savkin, Margarita Volodina,Vladimir Kenigson, Mikhail Troyanovsky, Anthony Khodursky Produtora: Mosfilm Faixa etária: 14 anos LEMONADE JOE (LIMONÁDOVÝ JOE ANEB KONSKÁ OPERA) Nesta paródia musical dos westerns, o pistoleiro João Limonada limpa a cidade de Stetson City depois de derrotar o vilão Pistola Velha. A insistente defesa que o cowboy faz da bebida Kolaloka leva os habitantes da cidade a abandonarem o alcoolismo. 1964 – 84 minutos – Tchecoslováquia Preto e branco / Mono / 2.35:1
Direção: Oldrich Lipsky Roteiro: Oldrich Lipsky, Jirí Brdecka Elenco: Karel Fiala, Rudolf Deyl, Milos Kopecky, Kveta Fialová Produtora: Filmové Studio Barrandov Faixa etária: 14 anos
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OS FILHOS DA GRANDE URSA (DIE SÖHNE DER GROSSEN BÄRIN) Embora os americanos nativos tenham garantias contratuais para ocupar o território adjacente às Montanhas Negras, os brancos querem expulsá-los de lá. Enquanto isso, ouro foi descoberto na região. Raposa Vermelha, um colono inescrupuloso, exige que Mattotaupa, chefe do clã dos Ursos Dakota, revele a localização das minas. 1966 – 92 minutos – Alemanha Colorido / Mono / 2.35:1
Direção: Josef Mach Roteiro: Liselotte WelskopfHenrich Elenco: Gojko Mitić, Jirí Vrstála, Rolf Romer Produtora: DEFA Faixa etária: 14 anos OS VINGADORES INVISÍVEIS (NEULOVIMYE MSTITELI) Um grupo de adolescentes intitulado “Vingadores Invisíveis” luta ao lado do exército vermelho durante a Guerra Civil na Rússia.
1967 – 78 minutos – União Soviética Colorido / Mono / 2.35:1
Direção: Edmond Keosayan Roteiro: Pavel Blyakhin, Edmond Keosayan, Sergei Yermolinsky Elenco: Viktor Kosykh, Mikhail Metyolkin,Vasiliy Vasilev,Valentina Kurdyukova Produtora: Mosfilm Faixa etária: 14 anos AS NOVAS AVENTURAS DOS VINGADORES INVISÍVEIS (NOVYE PRIKLYUCHENIYA NEULOVIMYKH) Continuação da saga dos “Vingadores Invisíveis”. Agora, os jovens vão à cidade em busca de um mapa guardado no cofre da polícia. 1968 – 82 minutos – União Soviética Colorido / Mono / 2.35:1
Direção: Edmond Keosayan Roteiro: Edmond Donatas Banioni, Artur Makarov Elenco: Viktor Kosykh, Mikhail Metyolkin,Vasiliy Vasilev,Valentina Kurdyukova Produtora: Mosfilm Faixa etária: 14 anos
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A TRILHA DO FALCÃO (SPUR DES FALKEN)
Spartak Mishulin, Kakhi Kavsadze Produtora: Mosfilm
Na segunda metade do século XIX, ouro é descoberto nas Montanhas Negras, área reservada aos indígenas da tribo Dakota. Não obstante, garimpeiros, empresários e aventureiros migram para a região, causando conflitos.
Faixa etária: 14 anos
1968 – 121 minutos – Alemanha Colorido / Mono / 2.35:1
Direção: Gottfried Kolditz Roteiro: Karl Gunter Elenco: Gojko Mitić, Hannjo Hasse, Barbara Brylska Produtora: DEFA Faixa etária: 14 anos O SOL BRANCO DO DESERTO (BELOYE SOLNTSE PUSTYNI) No final da Guerra Civil Russa, o soldado do exército vermelho Fyodor Sukhov é incumbido de tomar conta do harém de um líder dos guerrilheiros do Mar Cáspio. 1969 – 84 minutos – União Soviética Colorido / Mono / 1.37:1
Direção: Vladimir Motyl Roteiro: Valentin Ezhov, Rustam Ibragimbekov, Mark Zakharov Elenco: Anatoliy Kuznetsov,
AS PAPOULAS VERMELHAS DO ISSYK-KUL (ALYE MAKI ISSYK-KULYA) Quirguistão, 1920. Um guarda pró-soviético encontra, nas montanhas, uma trilha utilizada por traficantes para transportar ópio para além das fronteiras soviéticas. Enquanto isso, um homem misterioso chamado “Boca de Ouro” se oferece para acompanhar uma patrulha liderada pelo comandante russo Kondraty para encontrar os traficantes e seu acampamento. 1971 – 93 minutos – Quirguistão Colorido / Mono / 1.85:1
Direção: Bolotbek Shamshiev Roteiro: Ashim Dzhakypbekov, Vasili Sokol,Yuri Sokol Elenco: Suymenkul Chokmorov, Sovetbek Dzhumadylov, Boris Khimichev Produtora: Gosfilmofond Faixa etária: 14 anos
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A SÉTIMA BALA (SEDMAYA PULYA) Embora a força soviética tenha retomado o controle na Ásia Central, os Basmachis continuam a invadir o território. Neste cenário, o general Maxumov deve encontrar os homens de sua tropa desertora e explicar por que o rebelde Khairulla, que agora os comanda, está mentindo para eles. Em sua jornada, Maxumov guarda em sua pistola uma última bala, destinada a seu arquirrival.
soviético que se propõe a ser um hino à amizade. Um soldado do exército vermelho suspeito de ter roubado ouro se vê obrigado a se infiltrar num bando de criminosos para provar sua inocência. 1974 – 97 minutos – União Soviética Colorido / Mono / 1.37:1
Direção: Nikita Mikhalkov Roteiro: Nikita Mikhalkov, Eduard Volodarskiy Elenco: Yuri Bogatyryov, Nikita Mikhalkov, Sergey Shakurov Produtora: Mosfilm
1972 – 84 minutos – Uzbequistão Colorido / Mono / 2.35:1
Faixa etária: 14 anos
Direção: Ali Khamraev Roteiro: Andrei Konchalovsky, Fridrikh Gorenshtein Elenco: Suymenkul Chokmorov, Dilorom Kambarova, Bolot Bejshenaliyev Produtora: Uzbekfilm
O VENTO ASSOBIA SOB OS PÉS (TALPUK ALATT FÜTYÜL A SZÉL)
Faixa etária: 14 anos EM CASA COM ESTRANHOS. UM ESTRANHO EM CASA. (SVOY SREDI CHUZHIKH, CHUZHOY SREDI SVOIKH) Ambientado na guerra civil que sucedeu à Revolução de Outubro de 1917, o filme é um western
Exemplar do western goulash, encenado nas Grandes Planícies da Hungria, o filme acompanha o caminho de um fora da lei que escapou recentemente da cadeia. Sua busca por vingança conflui com o interesse de um grupo de camponeses sem-terra que se opõe à construção de um canal no território onde trabalha. 1976 – 90 minutos – Hungria Colorido / Mono / 1.37:1
Direção: György Szomjas
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Roteiro: György Szomjas, Péter Zimre Elenco: Djoko Rosic, István Bujtor,Vladan Holec Produtora: MAFILM Hunnia Stúdió Faixa etária: 16 anos O GUARDA-COSTAS (TELOKHRANITEL) Quando um dos cérebros por trás dos rebeldes Basmachis é capturado por um esquadrão do exército vermelho, a missão de escoltá-lo pelas trilhas montanhosas até a província de Bucara é concedida a Mirzo e sua trupe. 1979 – 90 minutos – Uzbequistão Colorido / Mono / 1.37:1
Direção: Ali Khamraev Roteiro: Ali Khamraev Elenco: Aleksandr Kaydanovskiy, Anatoliy Solonitsyn, Shavka Abdusalamov Produtora: Tajikfilm Faixa etária: 16 anos SIBERÍADA (SIBIRIADA) Neste épico soviético, uma pequena cidade na Sibéria é o espelho da história da Rússia do começo do
século até os anos 80.Três gerações tentam encontrar o paraíso terrestre e entregá-lo ao povo. 1979 – 275 minutos – União Soviética Colorido / Mono / 2.25:1
Direção: Andrey Konchalovskiy Roteiro: Andrey Konchalovskiy, Valentin Ezhov Elenco: Nikita Mikhalkov,Vitali Solomin, Sergey Shakurov Produtora: Mosfilm Faixa etária: 14 anos UM HOMEM DO BOULEVARD DES CAPUCINES (CHELOVEK S BULVARA KAPUTSINOV) O Sr. Johnny First chega a uma cidade do Velho Oeste e traz para os habitantes uma novidade que mudará suas vidas: o cinematógrafo. 1987 – 98 minutos – União Soviética Colorido / Mono / 1.66:1
Direção: Alla Surikova Roteiro: Eduard Akopov Elenco: Andrey Mironov, Aleksandra Yakovleva-Aasmyae, Mikhail Boyarskiy Produtora: Mosfilm Faixa etária: 14 anos
CANÇÃO DA PRADARIA (1949)
Curadoria Pedro Henrique Ferreira Thiago Brito Produção executiva Pedro Henrique Ferreira Produção Diogo Cavour Paula Goulart Assistente de produção Gabriela Ciuffo Identidade visual Danilo Amaral Revisão das cópias Caroline Nascimento Revisão do catálogo Feiga Fiszon Assessoria de imprensa Alex Teixeira Larissa Amorim Textos Evan Torner Hernani Heffner Luís Alberto Rocha Melo Sergey Lavrentiev Sonja Simonyi Vsevolod Ivanov
Registro fotográfico e videográfico Eduardo Cantarino Tradução das legendas Aline Baiana Graziela Schneider Marília Muniz Leal Pedro Dannemann Rodrigo Castelo Branco Thiago Bernardo Amaral Ursula Dannemann Impressão do folder Grafitto Impressão do catálogo J. Sholna Bureau Studio Alfa Transporte das cópias Linda e Adriano – WindLog Airtime Serviços e Transportes Serviço de legendagem eletrônica 4Estações Clipping Clipping Service Apoio: Três Corações
Agradecimentos Serguey Lavrentiev, Ali Khamraev, Ludmilla Cvikova, Melissa van der Schoor, Elena Orel (Mosfilm), Mirko Wiermann (Cinemateca Alemã), Dorka Szörényi (MaNDA Archive), Nikola Krutilová (Cinemateca de Praga), Carmen Accaputo (Cinemateca de Bolonha), Andrea Meneghelli (Cinemateca de Bolonha), Gulbara Tolomushova (Kyrgyz Cinema), Hernani Heffner (Museu de Arte Moderna), Alex Khamraev, Sonja Simonyi, Evan Torner, Marina Fonte Pessanha, Eduardo Cantarino, Tiago Rios, Serguei Monin e Sasha Lazarev.