Ficha Técnica Título: Jogo sujo Autor: Luís Aguilar e Fernando Mendes Design de capa: Ideias com Peso Revisão: Livros d’Hoje ISBN: 9789722043151 LIVROS D’HOJE Publicações Dom Quixote [Uma chancela do grupo Leya] Rua Cidade de Córdova, n.º 2 2610-038 Alfragide – Portugal Tel. (+351) 21 427 22 00 Fax. (+351) 21 427 22 01 ® Luís Aguilar e Fernando Mendes, 2009 ® Livros d’Hoje, 2009 Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor www.livrosdhoje.leya.com www.leya.pt
Dedico este livro a todos os profissionais de futebol que têm de passar por situações graves para conseguirem viver desta actividade. Sei o que sentem, aquilo que sofrem e espero que consigam vencer numa indústria megalómana que relega para segundo plano o lado humano.
PRÓLOGO Doping, prostituição, favorecimentos financeiros e acidentes de arbitragem, mas não só. As páginas que se seguem podem chocar os leitores mais sensíveis. Sobretudo aqueles que têm uma ideia muito romanceada sobre o futebol português. Mas mesmo esses não devem negar a leitura destas linhas em que revelo muitos dos detalhes por mim vividos, numa actividade que consegue ser apaixonante e doentia em simultâneo. Este livro é a história de um antigo atleta de alta competição que passou pelos principais clubes portugueses durante épocas distintas do futebol nacional. Tive o talento e o privilégio de poder trabalhar com verdadeiros craques e grandes treinadores. Conquistei títulos, participei em jogos de elevado nível e destaquei-me por aquilo que fui capaz de fazer dentro e fora de campo. Hoje em dia, muitos se lembram de mim pela minha qualidade, mas também pelo meu feitio especial e por uma série de posições públicas que raramente agradaram a gregos e troianos. Sempre tive uma postura diferente da maioria dos jogadores e tenho plena consciência de que nunca fui um indivíduo politicamente correcto. Nem nunca o procurei ser, embora não tenha nenhuma obsessão especial por atitudes incendiárias. Simplesmente, quem me conhece sabe que faço da frontalidade um ponto de honra e que nunca fui, nem nunca serei, a pessoa certa para ocupar cargos de elevada diplomacia. Recuso, no entanto, o rótulo de revoltado sem causa que tantas vezes me quiseram atribuir. Enquanto jogador fui, quanto muito, um rebelde movido pela vontade de ganhar. Hoje, longe da pressão competitiva, tenho uma vida pacífica, recheada de boas lembranças e algumas más memórias. Mas, apesar de tudo o que vivi, continuo a sentir o futebol com grande amor e intensidade. Basta ver que comecei a jogar pelos seniores do Sporting em 1983 e acabei a carreira no Olímpico do Montijo em 2009, pouco tempo antes de sair este livro. Aos 42 anos ainda tive força para ajudar este simpático clube a manter-se na I.ª Divisão Distrital da AF Setúbal. Depois de alcançado mais um objectivo, fiquei com a certeza de que não voltarei a jogar futebol a não ser por brincadeira. A nível oficial, o físico já deu tudo o que tinha a dar depois de muitas épocas de esforço e dedicação, em que representei clubes como Sporting, Benfica, FC Porto, Boavista, Belenenses, Estrela da Amadora e Vitória de Setúbal. Também tive oportunidade de
vestir a camisola da Selecção Nacional por diversas ocasiões. Após tantos anos, considerei oportuno assinalar a minha despedida definitiva dos relvados contando a história da minha carreira, sem deixar de fora os pormenores mais ocultos — mesmo aqueles que são incómodos para mim. Os episódios aqui relatados foram vividos na primeira pessoa. Existe um grande clima de suspeição à volta do futebol português e demasiada gente a falar do que não sabe, nunca viu, nem experimentou. Recuso afogar-me nesse mar de especulações em que a modalidade caiu e, por isso, faço afirmações apenas sobre aquilo que vivi e presenciei. Todas as outras apreciações sobre assuntos não relacionados comigo são relativas a histórias que sempre se falaram no futebol, especialmente nos vários períodos em que joguei. Quero também salvaguardar que este livro não é nenhum exercício gratuito de desculpabilização. Estou consciente de que, ao longo da minha carreira, participei em situações pouco dignificantes para a minha pessoa e para a verdade desportiva. Mas assumo o que fiz e aceito as minhas culpas no cartório. Na história que vão ler não quero ser visto como uma vítima indefesa. Pactuei com situações ilegais, fiz parte delas e jamais me irei colocar à margem dos meus erros e defeitos. Quando disse «sim», poderia ter dito «não», embora soubesse que a eventual recusa iria trazer-me problemas para viver do futebol. De qualquer forma, poderia ter batido com a porta se não houvesse outra solução, mas preferi não o fazer, tornando-me numa peça de um sistema com contornos perversos e perigosos. Desde 1983 até 2002, fui profissional de diversos clubes e conheci as várias faces de um desporto que se tornou numa indústria poderosa onde vale quase tudo para ganhar. Através deste exercício de honestidade, espero contribuir para informar melhor os que vivem desinformados. Pode ser que depois destas páginas, os amantes do jogo passem a ter uma visão mais completa do sistema que envolve o futebolista profissional. A crítica fácil e barata utilizada regularmente é, na maior parte das vezes, injusta e desconhecedora da realidade. É fantástico fazer aquilo de que se gosta e ser pago para isso, mas nem sempre é fácil viver nesta actividade. Tenho a certeza que daqui por algumas páginas até mesmo os mais cépticos irão concordar comigo. Vou deixar-vos, por isso, com tudo aquilo a que têm direito. Doping, prostituição, favorecimentos financeiros e acidentes de arbitragem, mas não só. No meu tempo era assim...
CAPÍTULO UM O CARRO-BOMBA E AS CAMADAS JOVENS DO SPORTING Carrego num botão e apago aquele momento para sempre. Passo à frente e elimino mais uma recordação. O meu sono fica agitado. Continuo durante algum tempo até estar convencido de ter apagado da memória tudo o que quero esquecer. Aos poucos a luz invade o meu quarto, obrigando-me a despertar. Sento-me na cama, e o peso das memórias força-me a apoiar a cabeça entre as mãos. Esfrego os olhos. Estou mesmo acordado. Percebo então que não, que não fui capaz de entrar no estado de amnésia positiva que tanto desejava. Continuo no mesmo lugar, mas não consigo impedir que a minha mente me transporte para aquela tarde cinzenta, onde o medo e a tristeza tomaram conta do ambiente. Onde está o stop? Aconteceu num dia de Verão, um daqueles em que o Sol ameaça derreter a pele. Tinha saído do treino do Sporting e preparava-me para regressar a casa. Nesse tempo vivia com os meus pais, no Montijo. Lembro-me de estar feliz nesse dia. Não sei explicar porquê. Talvez fosse por causa do calor, ou das cores alegres com que as pessoas se vestiam, ou mesmo da simples vontade de encontrar a minha família. Longe de imaginar o que estava para acontecer. Mal entrei em casa, dei de caras com a minha mãe sentada no sofá da sala chorando compulsivamente. Aquelas lágrimas pareceram facas a apunhalarem-me a alma. «O Sousa Cintra ligou cá para casa e disse-me que punha uma bomba no teu carro se fosses para o Benfica.» Ali estava o motivo. Estávamos em I989. O Sporting sofria graves problemas financeiros e, graças a isso, estive oito meses sem receber. Foram marcadas eleições antecipadas que opunham o então presidente Jorge Gonçalves a Sousa Cintra. Devido à falta de dinheiro assinei contrato com o Benfica, mas guardei o documento até ao dia da votação. Tinha prometido ao Jorge Gonçalves que continuaria no Sporting se ele ganhasse as eleições. Essa promessa assentou numa paixão muito forte: sempre fui sportinguista e, por causa desse amor ao clube, quis acreditar na palavra de Jorge Gonçalves sempre que dizia que a crise se iria resolver. Tínhamos uma relação amigável, na medida do que é possível existir de semelhante entre um jogador e um dirigente. Para que se perceba, meses antes ele tinha chegado a oferecer-me um
Renault 21 Turbo ABS, depois do acidente que tive com o meu Renault GT Turbo. Nunca percebi se me ofereceu o carro por gostar de mim ou se o fez apenas com o intuito de tirar proveito disso mais tarde. A minha longa experiência no futebol leva-me a afirmar que a maior parte dos dirigentes dá com uma mão para tirar com as duas — como irão perceber mais à frente. Nada disso, porém, acabou por interessar. Depois da dita conversa em que fizemos juras mútuas de continuidade, chegou finalmente o dia das eleições e os sócios do Sporting resolveram escolher outro caminho. Renderam-se às promessas do «barão das águas», Sousa Cintra, e puseram fim à era Jorge Gonçalves. O novo presidente não tardou muito a saber que eu já tinha um acordo com o Benfica. Primeiro tentou dissuadir-me com dinheiro. Não aceitei, pois nunca gostei do seu estilo nem da forma como se pronunciava sobre o Sporting. Falava de forma rude, barata, e sempre me pareceu alguém pronto a tudo para fazer valer a sua vontade. Como declinei aquelas condições, começaram a chover telefonemas em minha casa — feitos por ele, por outros dirigentes e por anónimos. Ameaçavam-me com bombas, diziam que iam fazer da minha vida um inferno, que me matavam, que matavam os meus pais. Enfim... tantos telefonemas, mas nenhum para me dizer que era bom rapaz. Tentei manter-me calmo e ignorar tudo aquilo, mas não sou nenhum autómato. Ainda hoje me vejo naquele dia, petrificado naquela sala. A minha mãe chorava, o meu pai, então ainda vivo, e apesar da calma aparente, revelava agitação nos seus olhos. Lá fora, estacionado na rua, estava o meu carro. Oferta do antigo presidente que o novo presidente quer destruir. A minha carreira no futebol está recheada destas ironias. Experimento a sensação de ter a vida ameaçada. Vejo as pessoas que me amam sentirem medo por elas mas, acima de tudo, por mim. Não é justo para uma mãe ter de ouvir outro homem dizer-lhe que quer matar o seu filho. Só que reagir é agir e aqueles tipos ainda não sabiam que estavam a lidar com um jogador diferente. Reacções cliché e comportamentos monótonos nunca foram o meu forte: fui para o Benfica na mesma e o meu carro nunca chegou a explodir. Mas vamos voltar ao início da história porque a tinta ainda agora começou a correr. Nasci no dia 5 de Novembro de 1966, em Setúbal. Foi o ano da fantástica campanha dos Magriços no Mundial de Inglaterra. Meses depois de Eusébio, Torres, Simões, entre outros, terem espantado o mundo do futebol, a minha mãe dava à luz o seu segundo filho, após o nascimento da minha irmã. Os meus pais
viviam no Montijo — hoje uma das maiores cidades da margem sul do Tejo que na época não passava de uma vila com espírito de aldeia, mas já com grandes tradições futebolísticas. Assim como tantos outros miúdos que gostavam de dar uns toques na rua, também eu sonhava em, um dia, passar o rio para o lado norte e jogar no Sporting, o clube do meu coração. Um desejo que havia de se concretizar. Comecei a jogar à bola no Cancela, uma equipa de torneios de futebol de salão do Montijo, onde também jogava Paulo Futre. Nessa altura Futre já era uma grande promessa. Os responsáveis do Sporting foram observá-lo num desses torneios e levaram-no para Alvalade. Entretanto o pai dele falou com o Aurélio Pereira (o grande «guru» da formação leonina que descobriu jogadores como Luís Figo, Simão Sabrosa ou Cristiano Ronaldo) e arranjou maneira de eu também poder treinar nas escolinhas de Alvalade. Mas como era muito pequenino e magrinho, mandaram-me embora. César Nascimento, treinador das escolinhas nessa época, chegou inclusive a dizer que eu «não tinha muito jeito para a prática do futebol». Foi engraçado, sim senhor. Depois de ouvir aquilo fiz-me ao «rio», mas desta vez a nadar para trás, e comecei a jogar nos iniciados do Desportivo do Montijo. A época correu-me tão bem que no ano seguinte voltei ao Sporting, novamente pelas mãos de Aurélio Pereira. Ter a oportunidade de jogar num clube daqueles fazia de mim uma criança incrivelmente feliz. Era um miúdo do Montijo e jogava no Sporting, um dos maiores emblemas portugueses. Sentia-me o maior da cantareira, mas sem exageros e com muito menos mordomias do que os meninos de agora. Se há coisa que me faz impressão hoje em dia, é olhar para as camadas jovens dos clubes e ver alguns miúdos cheios de manias e balelas. Alguns têm qualidade, mas outros não passam de uns «bananas» que não sabem fazer nada sozinhos. Actualmente, um miúdo que viva a um quilómetro do campo de treinos, precisa que a carrinha do clube o vá buscar a casa. Eu, com 10 ou 12 anos, já ia sozinho para Lisboa todos os dias. Saía a correr da escola do Montijo às 15h15 para apanhar o barco para Lisboa às 15h30. Chegava ao Terreiro do Paço às 16h30 e depois corria de novo feito louco até ao metro do Rossio, onde entrava para sair em Entrecampos. O percurso acabava com uma valente corrida entre a estação de Entrecampos e o Estádio José de Alvalade. Para regressar a casa o filme repetia-se ao contrário com a mesma intensidade, já que tinha de apanhar o último barco, às dez da noite. Fazia tudo à justa e, se me atrasasse ou se houvesse nevoeiro, tinha de ficar a dormir no cais até às cinco da manhã para poder apanhar o primeiro barco de regresso ao Montijo.
Fui assaltado em Entrecampos, antes de chegar ao treino, logo na primeira vez que me aventurei a ir sozinho para Lisboa. Roubaram-me um fio, o relógio e algum dinheiro, mas tudo valia a pena pelo prazer de jogar. Havia aquela sede de bola que me levava a correr desalmadamente pelas ruas até chegar ao treino, equipar-me e jogar. Aquela vontade que me fazia estar mais preocupado com o tempo que demorava o assalto do que propriamente com o assalto em si. Os sacrifícios que fiz para conseguir jogar futebol fortaleceram a minha carreira e deram-me mais força para vencer. Os miúdos de agora têm o percurso muito mais facilitado, mas não aproveitam a oportunidade. Alguns parecem não ter capacidade para apreciar a simples alegria de jogar. Nenhuma altura é tão boa para andar a correr atrás de uma bola de futebol do que quando somos crianças. Pobres dos miúdos que não conseguem sentir isso por causa de todas as futilidades com que (lhes) enchem a cabeça. Passam mais tempo preocupados com o corte de cabelo do que em aprender a jogar futebol e a desfrutar do momento. Alguém lhes devia dizer para se divertirem. Foi o que sempre fiz, apesar das dificuldades. Percorrendo esse trajecto de grande azáfama diária, passei toda a minha formação no Sporting até que fui chamado à equipa principal por mera sorte. Na verdade, a minha carreira — como alguns devem saber — sempre foi um pouco atribulada devido ao meu feitio. Não desejo mal a ninguém, mas sei que fui muito diferente da maior parte dos jogadores de futebol, porque fazia aquilo que me dava na cabeça, fosse bom ou mau. Se é verdade que me prejudiquei bastante por causa dessa forma de estar, também consegui feitos importantes sem nunca precisar de vergar a minha personalidade às exigências dos outros. Essa maneira de viver foi sempre acompanhada por uma certa dose de ironia que marca todo o meu percurso no futebol. Basta ver que comecei a treinar nos seniores do Sporting, porque me chateei com o treinador dos juniores. A história começou num jogo que os juniores foram fazer a Setúbal e, no qual, eu fui o capitão de equipa. O nosso treinador era então Tomé, que ainda hoje está ligado ao Sporting e de quem eu gosto particularmente. Mas nesse dia tivemos uma discussão no túnel sobre uma situação de jogo. Fiquei tão irritado que acabei por despir a camisola, atirei-a para o chão e gritei bem alto: «Não jogo mais nesta porcaria de clube.» Foi uma atitude parva de um puto de 16 anos que, por causa desse gesto, ficou proibido de frequentar as instalações do clube. Uma proibição também ela muito irónica, tendo em conta que nessa altura eu já vivia no centro de estágio do Sporting, o qual estava localizado dentro do Estádio de Alvalade. E se aquela era a minha casa, tinha, obrigatoriamente, de estar dentro
das instalações. Embora ninguém me tenha posto na rua, instauraram-me um processo disciplinar e estive castigado durante duas semanas. Quando chegavam os dias de jogo, ficava sozinho a olhar para as paredes enquanto os meus colegas seguiam no autocarro. Custou-me imenso, mas, visto a esta distância, bendita a hora em que aquele castigo aconteceu. Estávamos na ponta final da época 1983/84. Nessa altura os seniores eram orientados pelo galês John Toshack. Durante um treino conjunto, Romeu, que jogava a lateral-esquerdo, lesionou-se. Como faltava um elemento para aquela posição, e os juniores tinham ido jogar fora, alguém se lembrou de mim e foram chamar-me ao quarto. Nesse mesmo dia fui treinar com os seniores e, uma semana depois, estava a assinar contrato profissional com o Sporting. Assim, de repente, num dia deitei-me como júnior castigado, no outro acordei como jogador do plantel principal.
CAPÍTULO DOIS SONHO REALIZADO E EPISÓDIOS ESTRANHOS Na primeira vez que entrei no balneário dos seniores do Sporting fiquei deslumbrado. Delirava só pelo facto de poder equipar-me ao lado de heróis da minha adolescência — como Vítor Damas, Manuel Fernandes, Jordão, António Oliveira (que mais tarde viria a ser meu treinador no FC Porto), Oceano ou Jaime Pacheco. Dei tudo o que tinha dentro de mim no primeiro treino, para não voltar aos juniores e prolongar aquele momento ao máximo. Depois fiz a mesma coisa no segundo treino, no terceiro, no quarto... e quando dei por mim estava a assinar um contrato de três anos como jogador profissional — ao contos mensais para o ano de estreia, 30 e 40 para os dois anos seguintes, respectivamente. O meu primeiro ordenado a sério foi um cheque de ao contos que tive de ir levantar à tesouraria do clube, ainda durante o mandato do presidente João Rocha. Já como atleta profissional, e com uma conta bancária mais composta, tenho então oportunidade de me estrear pela equipa principal do Sporting. Foi na última jornada do campeonato, numa deslocação ao campo do Vitória de Setúbal. Curiosamente, ia fazer o meu baptismo de fogo na terra onde tinha nascido 17 anos antes. Nesse jogo fomos orientados pelo Pedro Gomes, anterior adjunto do Toshack que entretanto já tinha abandonado o cargo por maus resultados. Hoje em dia, muitas pessoas conhecem Pedro Gomes como comentador de futebol, mas para mim será sempre lembrado como o meu primeiro treinador na estreia oficial pelos seniores. Passou-se o jogo, em que ganhámos 1-0, e dei conta do recado. A partir daí a minha carreira seguiu o rumo normal e começaram a suceder-se os episódios de sucesso e insucesso, de decisões acertadas e erradas. Fosse para o bem ou para o mal, estava definitivamente metido no tabuleiro do futebol e passaria a ser mais uma das suas peças. Após o final da época, Manuel José entrou para o cargo de treinador e voltei a beneficiar de uma lesão do Romeu para agarrar um lugar na equipa titular. Nas duas épocas que se seguiram nunca mais perdi esse estatuto. Um treinador precisa sempre de uma grande dose de coragem para apostar num jovem. Devo
inteiramente esse voto de confiança a Manuel José, um dos melhores técnicos com quem tive o privilégio de trabalhar, uma pessoa de grande competência profissional que merecia mais estima do que aquela que recebeu no futebol português. Foi a trabalhar com Manuel José que vivi um dos momentos mais marcantes da minha carreira de futebolista. Fiz parte do onze titular que venceu o Benfica por 71, na época 1986/87. Jamais esquecerei esse jogo, a emoção dos adeptos, a forma monstruosa como jogámos. O Benfica que tinha uma equipa fantástica, gigante em Portugal e na Europa, nessa tarde foi completamente esmagado. Ao intervalo estávamos apenas a ganhar por uma bola a zero, um resultado normalíssimo entre duas grandes equipas. Nada fazia prever o que aconteceu no segundo tempo. Manuel Fernandes parecia ter o diabo no corpo. Marcou quatro golos em pouco mais de 35 minutos e penso que ainda hoje guarda a bola dessa tarde mágica. Construímos a goleada debaixo de uma chuva intensa. Parecia que até Deus estava a chorar por ver tanta beleza no mesmo campo. E estou plenamente convicto que se Deus um dia resolvesse descer à Terra, para vir a Portugal ver um jogo de futebol, esse jogo só poderia ser um Sporting-Benfica. Representei muitas equipas e participei em vários duelos regionais com grandes tradições, mas nada se compara ao sentimento que existe num clássico entre leões e águias. É o derby de todos os derbies. Faz lembrar as histórias de banda desenhada em que o herói não pode viver sem o vilão. Caso um deles deixe de existir, a vida do outro perde o sentido. Benfica e Sporting vivem neste enredo desde que cruzaram os seus caminhos na mesma cidade e começaram a perseguir objectivos em comum. Adoram odiar-se, mas seriam incapazes de viver separados. Vencer um jogo destes por 7-1 é mais marcante do que conquistar alguns títulos. E, na verdade, essa foi mesmo a minha maior vitória no Sporting, tendo em conta que nunca fui campeão nacional nos seniores. Ganhei apenas uma Supertaça, também frente ao Benfica, com um treinador inglês que parecia estar estacionado entre o nada e o adeus. Chegou depois de Manuel José e não deixou um pingo de saudade assim que se foi embora. Chamava-se Keith Burkinshaw. Uma vez olhou para mim e disse-me na cara: « És um bocado coxo. Acho-te muito fraquinho a jogar à bola.» Foi com ele que senti pela primeira vez a amargura de estar sentado no banco de suplentes. Arranjou problemas com metade do plantel e tomou decisões prejudiciais para a equipa. Começou por relegar o Damas para a bancada, entregando a baliza ora a Vidal, ora a Rui Correia, dois ex-colegas que admiro muito, mas que nunca tiveram um terço do talento do grande Damas. Como se isto não bastasse, dispensou Manuel Fernandes e Jordão, dois dos maiores jogadores de
sempre do futebol português. Claro que tanta asneira havia de lhe sair cara. A equipa jogava mal, não ganhava e o senhor Burkinshaw acabou por ser demitido um ano depois de ter entrado. Foi substituído por António Morais, uma pessoa fantástica, que me devolveu a titularidade e corrigiu muitos erros deixados pelo seu antecessor. A entrada de Burkinshaw no Sporting é reveladora da mentalidade tipicamente mesquinha dos portugueses. Depois de termos ganho ao Benfica por 7-1, estivemos seis jogos sem vencer. O presidente Amado de Freitas — que presidiu a direcção durante um curtíssimo período, entre a saída de João Rocha e a entrada de Jorge Gonçalves — demitiu Manuel José para contratar este treinador britânico. Em Portugal, e sobretudo no meio do futebol, temos sempre a mania de tratar mal o que é nosso e abrir os braços para tudo o que vem de fora, mesmo quando não fazem um bom trabalho. Não tenho nada contra a contratação de jogadores e treinadores estrangeiros, mas seria bom que os adeptos lhes dessem a mesma margem de tolerância que dão aos portugueses. Durante muitos anos, Manuel José foi vítima desse tratamento depreciativo e merecia ter sido mais acarinhado pelos vários clubes por onde passou neste país. É mais competente do que muitos turistas que vêm para Portugal passear arrogância e incompetência. Antes de ter sido trocado pelo inglês, Manuel José estava a fazer um bom trabalho. Só que naquele tempo era muito difícil conquistar títulos no Sporting. Nas camadas jovens os troféus eram uma constante. Mas depois chegávamos à equipa principal e esbarrávamos ali. Parecia uma maldição. Mesmo com as grandes equipas que tínhamos, falhávamos os objectivos. No entanto, esse insucesso nunca impediu o público de ir ao estádio dar o seu apoio. Essa era, de resto, uma marca exclusiva do Sporting. No período em que o clube esteve 18 anos sem ser campeão, Alvalade enchia sempre, as bancadas vestiam-se de esperança e nunca passavam para dentro do campo a sensação de descrença nos jogadores. Por isso acho muito estranho quando hoje oiço falar na pouca militância dos adeptos do Sporting. No meu tempo essa conversa nunca existiu e ganhávamos menos vezes do que as equipas actuais. De lá para cá, ocorreram muitas mudanças no futebol e no Sporting, mas a fidelidade dos adeptos leoninos continua a ser a mesma. Uma das coisas que efectivamente se esfumou com o avançar dos tempos foi o respeito dos jogadores mais novos pelos colegas mais velhos. Nos meus anos de Sporting, a experiência e a idade eram um posto que os caloiros estavam expressamente proibidos de desrespeitar. Um dia destes ouvi Eusébio dizer que ainda hoje trata Mário Coluna, seu antigo colega no Benfica, por senhor Coluna.
Embora eu tenha jogado muitos anos mais tarde, lembro-me que quando chegava ao balneário do Sporting tinha de ir cumprimentar os meus colegas um a um. Recordo-me de uma digressão de final de época, em que fomos aos Estados Unidos da América, ainda com João Rocha como presidente, era eu um chavalinho muito contente por ir de fatinho, todo «pipi». Quando saí do autocarro, à porta do aeroporto de Lisboa, agarrei na minha grande mala e preparei-me para entrar. Nesse momento, o já falecido Vítor Damas, que levava uma pequena mala de mão, virou-se para mim e disse: «õ meu menino, onde é que tu pensas que vais assim tão leve? Tens aqui a minha malinha para carregar.» Eu obedeci com um orgulho enorme por poder carregar a mala do senhor Vítor Damas, um dos maiores guarda-redes portugueses de todos os tempos. Houve outro momento que também elucida bem o respeitinho que existia naquela época. Uma vez fomos jogar a Espanha, contra o Athletic Bilbao, para as competições europeias. Durante a partida, um jogador deles fez um cruzamento e a bola até ia para fora, mas eu não me apercebi e cortei para um canto desnecessário. Na marcação desse pontapé de canto, o Bilbao marcou golo por intermédio de Julio Salinas. Assim que a bola entrou na nossa baliza, Damas deu-me uma chapada com tanta força que andei uma semana com os dedos dele marcados na minha cara. Mas nem respondi. Não disse nada. Sabia que tinha errado e tive de levar e calar. Esses valores de consideração pelos mais velhos desapareceram com o tempo. Hoje, se for preciso, vemos um rapaz que ainda usa fraldas desrespeitar aqueles que já têm um grande nome no futebol. E faz isso mesmo quando erra, mesmo quando devia deixar o orgulho de lado e ouvir os que sabem mais e lhe podem ensinar qualquer coisa de útil para o seu o futuro. Durante todos os anos em que joguei, assisti a essa mudança de comportamento no balneário. Fico com muita pena sempre que vejo jovens jogadores talentosos terem comportamentos de pura burrice por causa da mania do orgulho. Mas se é verdade que no futebol há muitas coisas que mudam com o avançar dos anos, também há outras que ficam sempre na mesma. Sobretudo as que se relacionam com decisões polémicas das equipas de arbitragem. A 7 de Setembro de 1988, recebemos o Ajax na primeira-mão da eliminatória inaugural da Taça UEFA. Ganhámos 4-2. Quem não se lembrar desse jogo ainda pode cometer o erro de pensar que jogámos muito bem. Não foi preciso. Nessa altura, o Ajax já não tinha a força de temporadas anteriores, mas continuava a ser uma equipa composta por grandes jogadores, como Petersson (que marcou dois golos nesse jogo), Wouters, Aron Winter, Danny Blind e um então
ilustre desconhecido chamado Dennis Bergkamp. Ninguém se atrevia a pôr em causa o poderio daquela equipa. E todos nós (jogadores, treinadores e dirigentes) sabíamos que iria ser muito difícil. Antes do apito inicial, um elemento da direcção desceu ao nosso balneário e lançou uma frase curiosa: «Atirem-se para o chão dentro da área, porque o árbitro vai marcar penálti.» Não sei se ele disse aquilo apenas por dizer ou se era mesmo verdade. Mas durante o jogo, o árbitro Roland Bridge, do País de Gales, marcou duas grandes penalidades muito duvidosas a nosso favor e acabámos por levar uma vantagem preciosa para a Holanda. Não vi ninguém do Sporting incentivar o árbitro e custa-me acreditar que um juiz internacional pudesse entrar nesse tipo de situações. Mas a verdade é que acabámos por ser muito beneficiados naquele jogo através de decisões erradas. As duas grandes penalidades foram marcadas por supostas cargas do guarda-redes deles sobre os nossos jogadores. Recentemente vi esse jogo na RTP Memória. O guardaredes do Ajax era Stuart Menzo. Depois de um dos penáltis assinalados, o homem ficou possesso e atirou as luvas ao chão. Pobre coitado. Tinha razões para tanta ira. Se fosse comigo também me custava. No jogo da segunda-mão fomos a Amesterdão vencer por 2-1 (vitória justíssima) e passámos confortavelmente à fase seguinte. Esta foi das primeiras vezes que tirei vantagens desportivas tão evidentes de péssimas decisões da equipa de arbitragem. Mais tarde, em clubes menos poderosos, também senti o reverso da medalha. Mas lá chegaremos... O mais curioso é que ainda hoje esse jogo é recordado como um dos momentos mais marcantes na história europeia do Sporting. Foi importante, claro, mas houve outro, duas épocas antes, que poderia ter sido maravilhoso para a minha carreira. Na época 1986/87 defrontámos o Barcelona na segunda eliminatória da Taça UEFA. Depois de termos perdido em Camp Nou, por 1-0, apostámos tudo numa reviravolta em Alvalade. Curiosamente, o jogo da decisão aconteceu no dia dos meus anos. Frente a um Barcelona monstruoso (como sempre) fizemos uma actuação fantástica e ganhámos 2-1, mas acabámos eliminados por termos sofrido esse golo em casa. Após o apito final, Julio Alberto, um histórico lateral-esquerdo do Barcelona e da selecção espanhola, veio ter comigo e disse-me: «Para o ano és tu que vais estar aqui no meu lugar.» Estava a ouvir aquilo pela primeira vez e reagi com um misto de alegria e estupefacção. A data dessa eliminatória, o nosso presidente ainda era João Rocha, mas ao contrário do que Julio Alberto havia afirmado, o convite do Barcelona só foi feito mais tarde. Guardaram-me na memória por causa desse jogo durante duas épocas. Em 1988, já durante o mandato
de Jorge Gonçalves, os dirigentes do Barcelona vieram então manifestar interesse na minha contratação. É bom notar que nesse tempo os clubes contactavam-se directamente, quase sempre sem recurso a empresários (essa moda só veio mais tarde). As negociações, no entanto, foram por água abaixo, porque o Sporting pediu 900 mil contos pelo meu passe. Naquele tempo, só o simples facto de se falar em 900 mil contos era absurdo. Maradona custou pouco mais quando saiu do Boca Juniors, da Argentina, para o Barcelona. Maradona! Por isso, o valor pedido pela direcção do Sporting causou-me grande estranheza. No futebol português sempre circularam muitas histórias de dirigentes que acabavam por ficar com parcelas financeiras desses negócios. Diz-se, com muita frequência, que existem «luvas» associadas a certas transferências para facilitar o processo. No passado como no presente, há quem argumente que esse comportamento parece ser uma espécie de protocolo. Pela minha experiência pessoal, tenho a opinião de que muitos dirigentes de futebol têm uma queda natural para comportamentos menos correctos. São sempre muito dóceis com os jogadores quando esperam ganhar alguma coisa com eles, mas assim que percebem que isso não é possível, ou que já tiraram tudo o que conseguiam, fazem o que podem para se descartarem desse atleta. Neste caso concreto, não posso provar as intenções dos dirigentes do Sporting, mas aquele valor foi um disparate e levou a que as portas do Barcelona se fechassem. Fiquei arrasado. Tinha 22 anos e estava a receber uma proposta de um dos melhores clubes do mundo. Durante algum tempo fiquei a magicar naquilo. Como seria jogar em Barcelona, naquele estádio maravilhoso? Já antes disso tinha recebido propostas do Marselha, de França, e do Groningen, da Holanda. Todas se esfumaram, porque o Sporting pedira sempre muito dinheiro, e em nenhum desses casos fiquei amargurado. Mas o Barcelona era outra música. Uma música que infelizmente nunca mais voltou a ser tocada na minha carreira. Só consegui ultrapassar aquilo porque, apesar de tudo, iria continuar a jogar no meu Sporting. Mas não foi por muito mais tempo. O clube vivia um momento de grande fractura económica, agravado pela longa crise desportiva. Antes do início da minha última época de leão ao peito, assinei a renovação de contrato para passar a ganhar 800 contos por mês, algo que nunca aconteceu. Em vez de um grande salário, fiquei sem receber nada durante oito meses. A falta de liquidez para os ordenados começou assim que Jorge Gonçalves assumiu a presidência. Entrou a 24 de Junho de 1988 e viu a sua direcção ser demitida no dia 8 de Maio de 1989 por falta de quórum. Foram convocadas eleições
antecipadas para devolver estabilidade directiva ao clube e Jorge Gonçalves saiu derrotado pelo candidato Sousa Cintra (que assumiu a presidência a 24 de Junho de 1989). Antes de todas estas mudanças, estive os tais oito meses sem salário, facto que me permitia rescindir o meu contrato com justa causa e ingressar noutro clube, sem que o Sporting recebesse qualquer indemnização. Face às dificuldades financeiras que senti nesse período, fui obrigado a salvaguardar-me. Antes da decisão nas eleições assinei contrato com o Benfica, clube que me prometia algo que eu estive muito tempo sem ver em Alvalade: um salário. Mais propriamente, um vencimento de 1500 contos mensais. Se hoje é muito dinheiro, em 1989 era uma fortuna. A oportunidade apareceu sem que eu precisasse de ir bater à porta de ninguém. Foi o Benfica que veio à minha procura. E é precisamente aqui que voltamos à história que começa este livro. Depois de assinar pelo Benfica, fiquei com o contrato na mão. Não quis oficializar nada sem saber qual seria o desfecho das eleições no Sporting. Sousa Cintra ganhou e a sua atitude contribuiu decisivamente para que eu cumprisse o meu contrato com o Benfica e abandonasse Alvalade de uma vez por todas. Digo, sem qualquer problema, que só assinei pelo Benfica por causa do dinheiro. E mesmo depois de assinar, não era preciso muito para me convencerem a voltar atrás. Como bom sportinguista que me considero, não gosto do Benfica, nem nunca gostei. Aquilo era um trabalho bem pago, num grande clube. Foram os únicos que se aproximaram de mim com um bom contrato. E eu era um profissional de futebol. Esperei ainda muito tempo para ver qual seria o rumo que o Sporting iria seguir. Quando percebi que caminho era esse, senti que não havia lá lugar para mim. Sousa Cintra revelou muito do seu carácter na única conversa que teve comigo. Depois das eleições fui ao escritório dele, na Amadora, onde estavam também outros dirigentes e Manuel José, que entretanto voltara ao cargo de treinador do Sporting. Sousa Cintra já tinha conhecimento do meu pré-acordo com o Benfica e tentou persuadir-me com números: «Não sei quanto é que eles te querem pagar, mas eu dou-te mais», disse em tom gabarolas. Detestei a sua forma de estar e ainda antes de o conhecer já tinha ficado com uma ideia negativa. Durante a campanha eleitoral, disse mal dos anteriores dirigentes (incluindo João Rocha, que foi um presidente exemplar), dos jogadores, dos treinadores, da relva, do roupeiro. Estava tudo mal. Chegou a intitular-se o «salvador do Sporting». Mais valia ter poupado os ouvidos de todos nós a tamanhas barbaridades. Um clube histórico como o Sporting não merecia ser tratado daquela
maneira. Mas, apesar de tudo o que se passou com Sousa Cintra, tenho pena de ter abandonado o Sporting daquela maneira. A instituição é muito maior do que algumas das pessoas que por lá passaram. Hoje, como sportinguista, considero que o ciclo de Cintra foi uma das páginas mais negras na história do clube. Quando esse período de calvário da família leonina começou a ser escrito, a minha história seguiu para outras paragens, depois de ódios e ameaças que também deixaram a minha família a viver em grande martírio.
CAPÍTULO TRÊS BENFICA: PRESSÃO DE AR E PROSTITUTAS NO HOTEL Estávamos no Verão de 1989. Naquele tempo era muito raro ver jogadores trocarem de clube entre dois eternos rivais como Sporting e Benfica. Mal a notícia veio a público, teve o efeito de uma bomba. Depois das ameaças de que fui alvo, temi também uma eventual reacção maléfica de um adepto mais desequilibrado. O futebol é quase sempre racionalizado pela irracionalidade. Sabendo disso mesmo, tentei manter segredo sobre a minha ligação contratual com o Benfica durante o maior tempo possível. O processo de transferência iniciou-se na ponta final da época 1988/89. Soube do interesse do Benfica na minha contratação através de dois intermediários, no mínimo, inesperados. Acho piada quando hoje em dia oiço falar em promiscuidade entre jornalistas e dirigentes desportivos. Se existe? Naquela altura já existia. Fui confrontado com a hipótese de rumar ao Benfica por duas figuras do jornalismo nacional, e em especial da imprensa desportiva: Leonor Pinhão, assumida benfiquista do jornal A Bola, e João Bonzinho, que também pertence ao mesmo jornal e que nunca fez questão de negar as suas cores clubistas. Foi-me dito que ambos tinham ligações próximas com a direcção do Benfica. «Para estarem aqui, essa ligação deve ser quase umbilical», pensei na altura. O presidente dos encarnados era então João Santos, secundado pelo vicepresidente Jorge de Brito (que haveria de assumir a liderança directiva anos mais tarde). Assinei contrato pelo Benfica, no Bairro Alto, na casa de Leonor Pinhão e do seu marido, o realizador João Botelho. Para além dos dois, estavam lá João Bonzinho, Jorge de Brito, como representante do Benfica, e o meu jovem advogado, Cunha Leal, então um ilustre desconhecido. Ainda hoje digo a brincar que fui eu quem lançou Cunha Leal. Deu-se a mostrar como meu advogado e com o passar dos anos teve cargos directivos no Benfica e na Liga Portuguesa de Futebol Profissional. Mas fora de brincadeiras, posso dizer, com total sinceridade, que tenho consideração por todas as pessoas que estavam naquela sala, em especial por Leonor Pinhão, uma amiga muito querida. Pareceu-me, no entanto, haver uma enorme contradição neste episódio entre a função de um jornalista e a sua
proximidade com um clube. Quando saí da casa deles, já com o contrato assinado, ainda fiquei a pensar um bocado naquilo, com vontade de rir. Era melhor que o tivesse feito, já que os dias seguintes não me deram muitos motivos de alegria. Depois de todas as conturbações que resultaram da mudança de clube, receei algum desenvolvimento mais drástico e escondi-me na casa de férias de Jorge de Brito, na Meia Praia, em Lagos. Fiquei lá durante quinze dias, até ter de me apresentar no Benfica. Foram tempos difíceis, de medo constante. Só queria que a pré-época começasse para rumar ao meu novo clube e deixar tudo aquilo para trás. Quando esse dia chegou, fiquei radiante. Finalmente poderia voltar a jogar futebol sem estar preocupado com intrigas, ameaças e receios. O Benfica tinha uma equipa de sonho, composta por alguns dos maiores craques que já passaram pelo futebol português — Veloso, Ricardo, Aldaír, Valdo, Jonas Thern, Chalana ou Vítor Paneira. Essa foi também a primeira época do treinador Sven Goran Eriksson. Quando ele foi contratado já o Benfica tinha assinado comigo um mês antes. Essa diferença de tempo acabou por ser ingrata para ele e, em especial, para mim. Numa das primeiras entrevistas que Eriksson deu depois de chegar a Portugal, perguntaram-lhe o que achava de mim. «Fernando Mendes? Não é mau jogador», respondeu ele com ar de quem não fazia a mínima ideia do que lhe estavam a perguntar. Eu era um novo jogador da direcção que o novo treinador não conhecia, nem tinha aprovado. Esse terá sido um dos fortes motivos para Eriksson me utilizar poucas vezes. Mas houve outros. Antes de assinar pelo Benfica, era um dos símbolos da formação do Sporting. No meio daquela mudança de clubes, senti que fui uma espécie de bala disparada na eterna guerra de ódios entre águias e leões. Parecia que o Benfica só me tinha ido buscar a Alvalade para poder magoar o Sporting. Dava ideia de que a intenção de achincalhar o rival era superior ao interesse desportivo na minha contratação. Nem sei se alguma vez pensaram em mim para jogar futebol. O Eusébio, pelo menos, não conseguiu disfarçar. Quando cheguei ao Benfica, ele nem sabia o meu nome: «Olha o grande Fernandes Mendes. Até que enfim que temos um extremo-esquerdo em condições.» Isto apesar de eu também nunca ter jogado a extremo-esquerdo em toda a minha vida. Ainda hoje me rio cada vez que penso nisso, apesar de ter muita estima por Eusébio. Também me prejudicou o facto de ter assumido uma postura bastante sincera na primeira entrevista que dei como jogador do Benfica. Disse que era sportinguista e que iria continuar a sê-lo. Essas declarações não caíram bem junto dos dirigentes e
de alguns jogadores, mas se fosse hoje voltaria a dizer exactamente a mesma coisa. Não há maior hipocrisia do que ver jogadores e treinadores esconderem as suas preferências ou mentirem acerca dos clubes de que gostam. Uma coisa é a paixão, outra, muito diferente, é a profissão. Fui criado no Sporting, era do Sporting, mas estava ali como profissional do Benfica. E estava prestes a defender aquela camisola com unhas e dentes. Simplesmente não menti quando me perguntaram qual era o meu clube. Afinal o que queriam eles ouvir? «Ontem era do Sporting, mas hoje já sou do Benfica ... » A frontalidade que apresentei em toda a minha carreira foi-me devolvida sobre a forma de facturas elevadíssimas. No dia em que disse ser sportinguista até morrer, assinei a minha certidão de óbito no Benfica. Quando penso nessa fase da minha carreira, faz-me muito sentido o velho cliché de que o dinheiro não traz felicidade. Repito que só assinei com o Benfica por motivos financeiros e nem por um segundo me arrependo de o ter feito. Fosse qual fosse o motivo, queria honrar o meu novo clube e dar por merecido o salário que me pagavam. Mas comecei a perder esse sentimento logo no primeiro dia. A apresentação da equipa para a nova época decorreu no Estádio da Luz e foi seguida de um minijogo para que os reforços (como eu) pudessem mostrar-se aos sócios. Eriksson organizou um grupo de jogadores, mas deixou-me de fora, juntamente com o já falecido guarda-redes Manuel Bento e o médio Ademir. Entre as novas caras, fui o único que não teve ordem de participar no jogo. Depois de tudo o que eu tinha passado, das ameaças, do medo, de estar escondido na casa de Jorge de Brito, cheguei ali convicto de que finalmente poderia voltar a jogar, mas em vez disso fiquei sentado atrás da baliza enquanto os outros treinavam. Ao dar por mim naquela situação logo no dia de estreia, percebi imediatamente que não iria ter dias de glória no Benfica. E não tive. Nas primeiras duas temporadas, antes de ser emprestado ao Boavista, foram poucas as vezes que joguei. Devo ter participado em dez jogos, no máximo, embora nos treinos fosse pau para toda a obra. Se Eriksson precisava de um defesa-direito, era eu, se precisava de um médio, era eu, se precisava de um avançado, era eu. Só nos jogos é que nunca era eu. Chegou uma altura em que já sabia que, por mais que me aplicasse nos treinos, nunca iria ser utilizado nos jogos. Houve jornadas em que todos os meus colegas que eram opção para jogar no lado esquerdo da defesa estavam lesionados ou castigados e, mesmo assim, eu não era escolhido. Entrava outro qualquer para aquele lugar. Desde que não fosse Fernando Mendes, qualquer um servia. Até cheguei a pensar que se um dia Eriksson tivesse de escolher entre
mim e um guarda-redes, iria pôr Bento ou Silvino na esquerda da defesa. A decisão mais hilariante de todas aconteceu no final da primeira época. Casei com a minha ex-mulher em 1991. Eriksson gostava tanto de mim que nem me deixou ir um dia de lua-de-mel e obrigou-me a treinar logo na manhã seguinte ao casamento. Tudo isto porque, passado um ou dois dias, tínhamos de ir para um importantíssimo torneio de futsal, em Paris, no qual a equipa disputou seis jogos e eu fui utilizado durante... dois minutos. Depois de ser rejeitado tantas vezes, comecei a desleixar-me. Estava ali sossegado, era jogador do Benfica, ganhava bastante bem... deixei-me estar. Foi a fase em que desprezei completamente aquele clube. A minha falta de motivação era tal que já dava para alguns episódios rocambolescos. Como alguns devem saber, nos campos de futebol os tratadores da relva costumam espalhar adubo para que a erva possa crescer mais rapidamente. Esse adubo atrai sempre pássaros. Por isso, todas as manhãs chegava ao Estádio da Luz muito antes da hora do treino para poder ir aos pássaros. Levava uma espingarda de pressão de ar, sentava-me no banco de suplentes e começava aos tiros. Até tinha uns arames agarrados à cintura para prender os pássaros mortos. Era engraçado. Os meus colegas iam para os treinos com as suas pochetes, eu ia de pressão de ar. Era o único que fazia isto. Cheguei a ter uns belos petiscos com os meus amigos do Montijo à conta dos pássaros que apanhava no estádio. Nessa altura a caçadeira também servia para irritar Eriksson. Durante algum tempo o nosso balneário chegou a estar situado mesmo em frente à porta do gabinete do treinador. Eu estava num cacifo ao fundo do balneário e Neno, guardaredes, estava noutro na parte da frente que tapava a visão para a minha zona. Aproveitava a minha posição mais recatada para dar tiros contra uma placa que estava pendurada nessa porta e que dizia «treinador principal». Por causa dos meus tiros, a placa era substituída todos os meses. Eriksson estava dentro do seu gabinete e de repente ouvia um estrondo. Vinha de lá lançado, armado em polícia, mas quando espreitava já não via nada, porque eu estava de lado e escondia a pressão de ar com a porta do cacifo. Estas eram algumas das parvoíces que eu fazia no Benfica para passar o tempo e disfarçar a azia que tinha por não jogar. Sempre fui um jogador competitivo, com interesse em participar activamente na vida das minhas equipas. Mas nessas primeiras duas épocas de Benfica nunca tive o privilégio de sentir que fazia parte daquele projecto, de sentir que poderia ser importante para o meu grupo. Ganhei um campeonato nacional, na época 1990/91, sem jogar.
Pela primeira e única vez na minha vida, soube o que era fazer parte do grupo dos excluídos, dos renegados. Quando isso acontece, parece que aquele título não é nosso, ficamos com a ideia de que somos uns forasteiros a festejar aquela conquista. Foram tempos muito difíceis, mas, ainda assim, deu para viver algumas situações engraçadas. Como se sabe, em Portugal os três grandes têm uma força enorme, visível nos adeptos, nas arbitragens e, também, no estatuto social e financeiro dos seus jogadores. Essa maior capacidade faz com que certos atletas tenham facilidade em conseguir certas situações que o dinheiro compra e que estão sempre associadas ao futebol. Depois desses dois anos no Benfica, fui emprestado ao Boavista. A temporada que passei no Bessa correu-me bastante bem e serviu para poder voltar à Luz. Nesse regresso fui orientado por Tomislav Ivic e esse foi o período em que comecei a jogar com maior regularidade. Era quase sempre titular, sentia-me confiante e até marquei vários golos. Mas devido a alguns maus resultados da equipa, a direcção encarnada decidiu demitir Ivic a meio da época, contratando Toni para técnico principal e Jesualdo Ferreira como seu treinador adjunto. Com a nova equipa técnica voltei ao banco de suplentes. Toni e Jesualdo entraram com ideias novas e quiseram implantar uma filosofia diferente, mas não conseguiram mudar um hábito que já estava instituído entre alguns jogadores do plantel. Especialmente entre Iuran, Kulkov e Mostovoi, os três grandes jogadores russos do Benfica que, para além do enorme talento para jogar futebol, também partilhavam um gosto especial por prostitutas. Quando jogávamos em casa, costumávamos estagiar no Hotel Alfa, em Lisboa. Numa dessas estadas, e já com Toni ao leme da equipa, os três russos tinham o esquema muito bem montado. Durante a noite, iria parar à porta do hotel uma carrinha carregada de prostitutas com o objectivo de tornar o estágio mais divertido. Toni e Jesualdo estavam a par da trama e fizeram tudo para impedir a sessão de sexo. Foram para a porta do hotel, fazer de vigilantes, na tentativa de verem alguma movimentação estranha. Mas os russos eram mais espertos: conseguiram que a carrinha parasse nas traseiras. Resultado: as prostitutas entraram e ficaram várias horas nos quartos dos jogadores. Nessa noite houve festa da grossa no Alfa, como já tinha existido noutras ocasiões, mas eu não fiz parte da celebração. A relação com prostitutas é das poucas coisas que não me podem apontar. Fiz muita merda enquanto joguei futebol, mas nunca participei nesses bacanais. Nunca achei muita piada a ter de pagar para ter
sexo e nessa altura era casado e não quis estar envolvido em confusões, embora não tenha nada contra os que gostam de se divertir com mulheres contratadas. É uma opção e eu optei por nunca o fazer. Houve outras coisas, no entanto, em que não tive hipótese de escolha. Lembram-se que o prólogo deste livro falou de prostitutas (como aparece aqui), favorecimentos financeiros e doping. Já chegaremos às partes mais graves. Sobretudo as que se relacionam com doping e que marcaram com muita intensidade certos períodos da minha carreira. Para já, vamos continuar por ordem cronológica. Nessa época ganhámos a Taça de Portugal, ao vencermos o Boavista na final, por expressivos 5-2. Essa foi também a temporada em que voltei a jogar ao lado de Paulo Futre muitos anos depois de termos sido companheiros na equipa de miúdos do Cancela, no Montijo. Futre chegou ao Benfica como um herói, mas alguns colegas não gostaram desse estatuto. No primeiro estágio em que ele participou, nenhum jogador se quis sentar ao seu lado durante o almoço. E quando Futre procurava uma mesa, as respostas eram todas iguais: «Está ocupada. Aqui também. Aquela também está ocupada. Não te podes sentar nesta.» O homem estava a ser completamente escorraçado pelos novos companheiros de equipa. Parecia aquele ambiente de hostilidade que vemos nos filmes quando um novo recluso chega à prisão. Quando presenciei aquilo, fui sentar-me com Futre para ele não ficar sozinho. Foi um episódio triste num plantel que tinha grandes jogadores, alguns deles a despontar para carreiras monumentais. Além de Futre, fui igualmente colega de Rui Costa, Paulo Sousa e João Pinto (que já conhecia do Boavista). Eram todos jovens que prometiam muito. Mas depois dessa época não voltei a ter oportunidade de continuar a jogar ao lado deles. Quando Toni foi para treinador, já tinha tudo fisgado para tentar contratar Abel Xavier ao Estrela da Amadora. Mais tarde vim a saber que iria ser utilizado como moeda de troca nesse negócio, juntamente com José Carlos, Mário Jorge e Paulinho. O Benfica mandou quatro jogadores para a Amadora, mais algum dinheiro, em troca do passe de Abel Xavier. Deve ter sido o negócio da vida do Estrela. Acabei por ir para lá, juntamente com os meus colegas, mas ainda tinha mais um ano de contrato com o Benfica e, por causa disso, recebia metade do salário na Amadora e a outra metade na secretaria do Estádio da Luz. O ritual repetia-se todos os meses até que chegou o final da temporada e a minha ligação ao Benfica acabou em definitivo. Saí do Estrela e regressei ao Boavista, mas desta vez para assinar
contrato. Depois seguiu-se o Belenenses, três épocas no Porto e mais duas no Vitória de Setúbal. Todo esse período da minha carreira me soube muito melhor do que os anos que passei no Benfica. Comecei a jogar mais vezes, recuperei a confiança e voltei a encontrar o rumo dos títulos no Porto, onde passei os momentos mais gloriosos da minha vida desportiva. Um jogador psicologicamente mais fraco, podia ter acabado para os grandes momentos depois de ter falhado, num clube gigante como o Benfica. Felizmente tive força para esquecer o passado e trabalhar em busca de um futuro risonho. Mas como qualquer profissional que se preze, gostaria de ter tido mais sorte no Benfica porque, apesar de o vermelho não ser a minha cor, estaria a ser completamente estúpido se tentasse negar a grandeza daquele clube. Jogar no Estádio da Luz esgotado é uma sensação magnífica. Só mesmo uma máquina ou um monstro é que consegue passar por ali e não sentir um pingo de emoção. Não me vejo em nenhuma dessas categorias. Sou uma pessoa do Sporting, que passou tempos difíceis na Luz. Mas apesar de não gostar do Benfica, tenho muito orgulho por ter representado aquele clube. Independentemente da minha experiência, posso dizer que fui futebolista do maior clube português. E isso ninguém me pode tirar.
CAPÍTULO QUATRO BOAVISTA: TAÇA DE PORTUGAL EM ÉPOCA BRILHANTE Eriksson no Benfica era igual a Fernando Mendes no banco ou na bancada. E quando um jogador fica sem competir começa a perder confiança. Depois de dois anos em que pouco ou nada joguei, senti que para levantar a minha carreira teria de ir para outro lado. Felizmente Eriksson e a direcção do Benfica pensaram o mesmo. Como era um dos jogadores mais bem pagos do plantel, os dirigentes consideraram que a única forma de não prolongar o prejuízo financeiro seria emprestarem-me a outro clube que, durante determinado período, pudesse pagar parte do meu salário. Não foi difícil encontrar interessados porque, regra geral, aquele que não serve para os grandes, faz as delícias dos mais pequenos. E o destino que aí vinha até não era tão pequeno quanto isso. Na pré-época 1991/92, Manuel José era treinador do Boavista. Ao saber que eu estava na lista de possíveis empréstimos do Benfica, apressou-se a saber a minha situação. Os clubes entenderam-se facilmente e o negócio consumou-se: durante uma época iria estar ao serviço dos axadrezados. Fiquei fascinado com a oportunidade que estava diante de mim. Para além de ter possibilidade de voltar a trabalhar com um treinador marcante (recordo que foi Manuel José que me lançou em definitivo nos seniores do Sporting), iria para um clube que, nesse tempo, era o quarto grande do futebol nacional. Na época anterior, o Boavista tinha ficado em quarto lugar e chegara às meias-finais da Taça de Portugal. Outro dos factores que me motivou foi o facto de o clube se ter apurado para a Taça UEFA. A qualidade futebolística e os bons resultados do Boavista assentavam, acima de tudo, numa estrutura directiva muito bem organizada, liderada pelo major Valentim Loureiro. Enquanto presidente, Valentim Loureiro tinha total domínio sobre o clube e foi um dos grandes responsáveis pelas vitórias que iríamos alcançar ao longo desse ano. E nessa época fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para conseguirmos bons resultados. A força do plantel também ajudou muito. Cheguei ao Bessa juntamente com João Pinto (que regressava a casa depois de uma má experiência no Atlético Madrid B,
em Espanha), Samuel (que tinha vindo comigo do Benfica), Nogueira (ex-Penafiel) e Ricky (um nigeriano goleador que encantou o futebol português durante várias épocas). Para além da qualidade dos reforços, já lá estavam jogadores de grande nível, como Carlos Manuel (que foi meu companheiro no Sporting), Marlon Brandão, Casaca, Nelo, entre outros. Um conjunto com qualidade, comandado por um treinador experiente, e uma direcção sólida, acabariam por ser fortes condimentos para que nesse ano fizéssemos história. O momento que recordo com mais emoção teve lugar nas competições europeias. Na primeira fase da Taça UEFA jogámos frente ao Inter, de Itália (numa eliminatória que entrou para a história do Boavista e do futebol português). Eles eram uma das melhores equipas do mundo, nós éramos uns rapazes que ninguém conhecia de lado nenhum. Quando soubemos do sorteio, pensámos imediatamente: «Já fomos.» Iríamos ter pela frente uma equipa onde alinhavam Jurgen Klinsman e Lothar Matthãus, que tinham sido campeões do mundo pela Alemanha em 1990, apenas um ano antes. Além deles, havia o defesa Bergomi, o médio Dino Baggio (irmão do grande Roberto Baggio), Nicola Berto e Delvecchio, que ainda era um miúdo nesse tempo. Juntos formavam uma equipa temível. No jogo da primeira-mão ganhámos 2-1 em casa e levámos essa magra vantagem para Itália. Lembro-me perfeitamente que fomos menosprezados pelo Inter. Eles entraram aburguesados, convencidos de que iriam ganhar o jogo sem grandes chatices. Percebemos logo que não nos conheciam, nem sabiam quais eram as nossas armas. Essa era uma atitude normal dos gigantes da Europa sempre que jogavam contra equipas menos mediáticas. Julgavam poder ganhar apenas com o estatuto. Matthãus, por exemplo, ganhava mais do que o nosso plantel inteiro. Pertencia a uma realidade desportiva e financeira com a qual podíamos apenas sonhar. Mas nesse dia sonhámos acordados e tivemos a recompensa do nosso trabalho. Já sabíamos, porém, que iria ser muito complicado aguentar a vantagem no jogo da segunda-mão em Itália. Bastaria que o Inter marcasse um golo e estávamos fora. Mas viajámos com optimismo. E esse espírito positivo foi fundamental para aguentarmos o resultado num jogo em que tivemos de sofrer dolorosamente. Foi o maior massacre que levei na minha vida. Nesse dia eles já não entraram com aquela altivez toda. Estavam prontos para corrigir a derrota do primeiro jogo com uma goleada. E tentaram tudo. Mas lutámos até à exaustão e depois de lá chegarmos fomos buscar ainda mais forças para aguentar aquela
violência ofensiva. No final, 0-0. Inter fora das competições europeias. Só mesmo um Boavista unido e pronto para morrer em campo, seria capaz de sobreviver ao magnífico ambiente que se fazia sentir no mágico estádio Guiseppe Meazza. E foi isso que conseguimos sacar da cartola. Uma equipa que se movimentou num veículo movido por humildade e sacrifício. Esse jogo tornou-se num dos maiores momentos de glória da história europeia do Boavista. Antes dessa eliminatória, a imprensa italiana nem sabia o nome da equipa «que vinha de Portugal». Depois disso, nunca mais se esqueceram do nosso nome, nem do nosso equipamento axadrezado. «O Inter foi eliminado pelo Boavista, a equipa das camisolas esquisitas.» Essa frase tornou-se rapidamente parte do imaginário do futebol português. Na ronda seguinte voltámos a Itália para defrontar o Torino, mas não fomos capazes de repetir a proeza. Sofremos dois golos no primeiro jogo, em Turim, e de regresso a casa empatámos sem golos. Foi uma eliminação prematura, depois de termos chocado a Europa do futebol ao derrotarmos o todo-poderoso Inter. Estávamos na lua com esse feito, mas a equipa do Torino (bem mais fraca do que a do Inter) obrigou-nos a descer à terra. Com a força interior, no entanto, ultrapassámos a desilusão e continuámos a escrever história nas competições internas. Por causa da grande época que realizei, consegui mostrar valor para poder voltar ao Benfica por mais um ano. Na minha passagem pelo Boavista (e mais tarde pelo Porto) pude conhecer por dentro a diferença de trabalho que existia entre os clubes do Norte e os emblemas do Sul. Mais exigência, mais sacrifício e menos brincadeira. Imperava sempre uma filosofia de extrema disciplina rumo à vitória. Aquilo assentou-me que nem uma luva. Sempre fui um atleta muito competitivo e educado para vencer. O período que passei no Benfica sem jogar foi dos mais dolorosos da minha carreira. Não queria que isso se voltasse a repetir. Desde o primeiro dia no Bessa, dei o sangue e os ossos para conseguir estar entre os melhores do plantel. E consegui. A nível profissional foi um ano excelente. Fui sempre titular, fiz grandes exibições e ajudei a equipa a conquistar uma das cinco Taças de Portugal que tem no seu historial. Fizemos uma campanha fantástica a caminho do Jamor. Nas meias-finais eliminámos o Benfica por 2-1 em pleno Estádio da Luz. Confesso que essa vitória me deu um prazer especial. Uma espécie de sentimento de vingança. Tinha acabado de derrotar a equipa de Eriksson, o mesmo homem que me pôs de parte nas duas épocas anteriores. Essa foi também a única altura em que joguei frente ao clube que
detinha o meu passe. Nesse tempo, os clubes podiam exigir que o seu jogador não os defrontasse. Mas o Benfica prescindiu estranhamente desse direito e deixou que eu e Samuel (também emprestado pelo Benfica), alinhássemos com a camisola do Boavista e ajudássemos a nossa equipa a dificultar o voo da águia. Devem ter ficado arrependidos, com certeza. Nesse ano perderam todos os três jogos que fizeram contra o Boavista e eu participei em todos eles, sempre em bom plano. Depois da meia-final ganha na Luz, seguiu-se o Porto, com uma equipa muito forte, onde alinhavam jogadores históricos: Vítor Baía, Geraldão, Jaime Magalhães, Madjer, André, Kostadinov e Domingos. Alguns destes atletas tinham ganho a Taça dos Clubes Campeões Europeus, em 1987 (actual Liga dos Campeões), com o treinador Artur Jorge. Agora a equipa era orientada pelo brasileiro Carlos Alberto Silva, mas a força continuava intacta: o Porto acabara de se sagrar campeão nacional e queria terminar a época em beleza com mais um troféu. Além disso, foi a única equipa dos três grandes que nos tinha vencido essa época (0-2 na primeira volta do campeonato e 0-0 na segunda volta). Contra o Benfica ganhámos 2-1 nos dois jogos do campeonato, e, frente ao Sporting vencemos 2-0 em casa e empatámos a zero em Alvalade. Acabámos, inclusivamente, o campeonato em terceiro lugar, à frente dos leões. Se a isto juntarmos a vitória frente ao Inter, na Taça UEFA, é seguro dizer-se que essa foi uma das melhores épocas de sempre na história do Boavista. Como já disse anteriormente, o meu regresso ao Benfica começou bem e acabou mal. Vinha bastante motivado Ainda assim, apesar da excelente campanha que tínhamos feito, não éramos a equipa favorita na final da Taça. Mas já estávamos habituados a esse estatuto. E reagíamos sempre bem. No final do jogo vencemos 2-1 e tive o privilégio de levantar a minha primeira Taça de Portugal. Nessa mesma noite fizemos uma festa de arromba quando regressámos ao Porto com o troféu no nosso autocarro. Contra todas as expectativas, os cachecóis azuis e brancos que costumam invadir a Avenida dos Aliados foram trocados pelas bandeiras axadrezadas. Os reflexos dessas conquistas foram bastante agradáveis para alguns jogadores do plantel e menos bons para elementos de outros clubes. Depois de uma época sem qualquer título, Eriksson abandonou o Benfica. A direcção contratou Tomislav Ivic para treinador e entendeu que eu e Samuel devíamos regressar, após a brilhante temporada que tínhamos acabado de fazer. João Pinto também despertou o interesse do Benfica e seguiu connosco para a Luz, onde ficaria durante muitos anos e se
tornaria num dos símbolos do clube... até ser despedido por João Vale e Azevedo. Outro dos felizardos foi Pedro Barny que rumou ao Sporting. A direcção do Boavista também deve ter ficado bastante agradada por causa do dinheiro que recebeu do Benfica e Sporting, devido às transferências de João Pinto e Barny, respectivamente. Duas épocas depois deste brilharete, voltei a vestir a camisola axadrezada. Mas agora está na altura de voltarmos um bocadinho atrás, antes de continuarmos com a minha história no Boavista. do Boavista e agarrei a titularidade logo de início. Mantive o meu lugar durante o período de Ivic, que saiu a meio da época. Com a chegada de Toni voltei a ser segunda opção (fazendo lembrar os tempos de Eriksson) e acabei por sair no final da época. Seguiu-se o Estrela da Amadora, clube onde vivi uma boa época que contribuiu para mais um ressuscitar futebolístico, dos vários que tive ao longo da minha carreira. A temporada de bom futebol que estava a fazer ao serviço do Estrela motivou o interesse de vários clubes, entre os quais o Boavista. Depois de ponderar, gostei da proposta apresentada e decidi que queria voltar a um clube onde tinha sido feliz desportivamente. Mas a mudança não foi assim tão simples. Primeiro por motivos contratuais (dos quais falarei mais à frente), depois por questões familiares. Inicialmente a minha mulher não gostou muito da ideia de ter de voltar a morar no Porto, sempre viveu no Montijo e não queria estar novamente distante dos seus pais. Mas a vida de futebolista é assim mesmo. Desenrola-se onde lhe dão melhores condições de trabalho. E a família acaba, muitas vezes, por sofrer as consequências de uma profissão difícil, que nos obriga a estar demasiado tempo fora de casa. Depois de uma longa conversa, consegui convencê-la de que aquela era uma boa oportunidade profissional para mim e que precisava de ter a família ao meu lado. Acabámos por regressar ao Porto, cidade onde tinha nascido Sofia (minha filha mais velha) dois anos antes. Regresso ao Boavista depois de uma época no Estrela da Amadora em que fui treinado por João Alves. A ida para o Bessa, contudo, não foi um processo simples. Como frisei anteriormente, na minha primeira época de Estrela ainda estava ligado ao Benfica por mais um ano. No fim desse ano seria um jogador livre e poderia assinar por quem quisesse. Mas a meio dessa época, e perante a iminência de ficar sem contrato de trabalho, acabei por assinar uma ligação ao Estrela, por dois anos, que iria entrar em vigor assim que o contrato com o Benfica terminasse. Foi uma má opção, confesso. Mas podia ter corrido pior.
Pouco depois de assumir esse vínculo, surge o interesse do Boavista. Já lá tinha jogado, as coisas correram bem, e desta vez queriam contratar-me. O problema é que o Boavista queria que eu fosse para lá assim que essa época acabasse, mas não estava interessado em pagar nada ao Estrela. Tinha de se arranjar uma maneira de eu ser um jogador livre no final da temporada. Foi aí que entrou em cena a experiência do major Valentim Loureiro. Ele já conhecia muito bem João Alves (dos tempos em que este tinha treinado o Boavista), e sabia que ele não tinha muita paciência para aturar jogadores indisciplinados. Por isso, o major disse-me para eu arranjar confusão com João Alves até ele se cansar e me mandar embora. Se fosse despedido do Estrela, o Boavista poderia ir buscar-me a custo zero. Esta é uma estratégia constantemente utilizada no meio futebolístico. Faz parte das batalhas negociais entre clubes. Há sempre alguém que tenta ser mais esperto do que alguém e o jogador acaba por seguir o rumo daquilo que lhe parece ser melhor para a sua carreira. Naquele tempo, o Estrela era um pequeno clube que lutava para não descer (tal como hoje), e o Boavista era o quarto grande do futebol português que jogava para ir à Europa (ao contrário de hoje). Depois de ouvir calmamente as explicações de Valentim Loureiro, resolvi seguir os seus conselhos e fazer o que fosse preciso para poder sair do Estrela rumo a um clube maior, no qual tinha ganho uma Taça de Portugal, e onde iria receber mais dinheiro. Comecei a fazer a vida negra a João Alves. Dei várias entrevistas a dizer que não tinha paciência para trabalhar com treinadores malucos e que ele não percebia nada de futebol. Estas entrevistas aconteciam em pleno curso da época 1993/94. Mas, ao contrário do que Valentim Loureiro tinha pensado, o João Alves não se deixou embalar por aquela cantiga, ou não fosse ele também uma raposa velha com muitos anos de futebol. Depois de cada farpa que eu mandava na imprensa, ele vinha ter comigo e dizia: «Meu menino, escusas de estar com essas merdas porque eu sei muito bem quem é que te está a pôr coisas na cabeça. Sei perfeitamente que não és tu.» Perante a tranquilidade e sabedoria de João Alves, foi complicado sair. Mas no final da época as coisas lá se resolveram e os dois clubes acabaram por ceder: penso que o Estrela não recebeu nenhuma fortuna, mas acho que o Boavista teve de pagar qualquer coisa para me levar. Antes disso já tinha começado a preparar o meu futuro na expectativa de uma resolução positiva. Assinei contrato com o Boavista válido por dois anos, período no qual iria passar a ganhar 1200 contos por mês. Chegámos a acordo para este
salário ainda no decorrer da época em que eu estava no Estrela e não sabia se conseguiria sair. Um dia arranquei de Lisboa, acompanhado pelo meu então sogro, para ir almoçar a casa de Valentim Loureiro e falarmos de números. Apesar de nunca ter tido empresários na minha carreira, o meu sogro, que sempre foi um homem de negócios bem-sucedido, acompanhava-me em algumas negociações. Durante o almoço, Valentim Loureiro foi directo ao assunto: «õ Fernando, diz-me lá quanto é que queres ganhar?» E eu respondi: «1200 contos.» Ele agarrou num guardanapo, escreveu esse valor, amachucou o guardanapo todo e guardou-o no bolso. Pensei para mim: «Então ele trata aquele papel assim? Estou fodido. Aquilo vai parar ao lixo.» Enganei-me, pois claro. De todas as pessoas que conheci no futebol, o major Valentim Loureiro era o que tinha melhor memória. Meses depois cheguei ao Boavista já com a situação do Estrela completamente resolvida, agarrei no contrato e estava lá o mesmo valor que tinha sido combinado no almoço. Mas eu quis brincar com a situação: «õ major, isto está enganado. Não foi o que nós combinámos.» Assim que digo isto, ele saca do bolso o tal guardanapo amarrotado: «Estás a brincar comigo, não?», disse ele em tom irónico e bem-disposto. «Incrível», pensei eu. O homem tinha guardado aquele papel mal parido. Foi dos poucos momentos de boa disposição que tive nesse meu regresso ao Boavista. Apresentei-me no Estádio do Bessa, na pré-época 1995/96, para iniciar os trabalhos de preparação rumo à nova temporada. Dois anos depois de ter saído daquela casa, para regressar ao Benfica, percebi imediatamente que pouca coisa tinha mudado. O treinador continuava a ser Manuel José. Ambicioso, manteve a equipa sempre nos lugares cimeiros e esperava repetir a façanha ou melhorá-la. O plantel tinha algumas caras diferentes, mas conservava um nível de qualidade muito elevado. Da minha primeira passagem ainda restavam alguns históricos, como Pedro Barny (que entretanto já tinha regressado do Sporting), Bobó (sempre mais recordado pelo sugestivo nome do que pelo talento futebolístico, embora fosse bom jogador), o guarda-redes Alfredo e o defesa Nogueira. O restante elenco era composto por outros atletas de grande capacidade. Timofte (médio marcante no futebol português e na selecção romena), Sanchez (internacional pela selecção da Bolívia e dono de um remate monstruoso), Artur (goleador que mais tarde iria ser meu companheiro no FC Porto) e um jovem muito promissor, mas ainda pouco conhecido. Assisti nessa época aos primeiros tempos de futebol profissional de Nuno Gomes, hoje avançado do Benfica e da Selecção Nacional e um nome
incontornável do futebol português. Feitas as contas, entre jovens talentos e jogadores experientes, havia bastante qualidade. Tínhamos um plantel de luxo, comandado pelo mesmo treinador, num clube liderado por um presidente de pulso firme. Realmente, pouca coisa tinha mudado. Essa época, contudo, ficou marcada por uma campanha desportiva muito aquém das expectativas. Na segunda ronda da Taça UEFA defrontámos o Nápoles, de Itália. Sonhávamos em repetir a proeza alcançada dois anos antes, quando eliminámos o Inter. Era um sonho justificado, porque os napolitanos não tinham uma grande equipa e nós ainda mantínhamos a mesma força que nos ajudou a brilhar no passado. No jogo da primeira-mão, realizado em nossa casa, até fizemos uma boa exibição, mas não tivemos sorte com o resultado. Empatámos 1-1, desfecho que nos colocava em desvantagem para o segundo jogo que se iria disputar quinze dias depois em Itália. Para seguirmos em frente, teríamos de ganhar fora ou empatar por mais de um golo. «Não há-de ser nada», pensámos nós em estilo de automotivação. No segundo jogo, estávamos a perder por 2-1 a dez minutos do fim. Se marcássemos um golo seguíamos em frente. Tivemos oportunidades, sonhámos com o êxito e, no final, colhemos o fracasso e fomos afastados da Taça UEFA. O campeonato e a Taça de Portugal eram agora as nossas únicas preocupações. Tal como referi antes, tínhamos grandes jogadores, mas para surpresa e escândalo, fizemos uma época interna tão ruim que até chegámos a estar perto de descer de divisão. Finalizámos o campeonato em nono lugar, apenas oito pontos acima da linha de despromoção. Na Taça de Portugal também não foi melhor. Acabámos afastados logo na quinta eliminatória (a segunda para os clubes da 1.ª Divisão), depois do Sporting nos ter goleado por 0-5 em Alvalade. Com estes números violentos dissemos adeus a uma competição que tínhamos conquistado duas épocas antes. E, se a nível colectivo foi mau, a nível pessoal foi péssimo. Fiz uma das piores épocas da minha carreira. Não sei explicar porquê. Aliás, nestas coisas nunca ninguém sabe. Treinei da mesma forma, mas estava a jogar mal. Aos poucos, como as coisas não me saíam bem, fui perdendo a confiança. Houve alturas em que só queria que aquela época acabasse para começar a pintar um quadro novo na temporada seguinte. Queria partir do zero e voltar às grandes exibições naquele clube. Como tinha mais um ano de contrato com o Boavista, e apesar da má época,
sempre pensei que Manuel José voltaria a apostar em mim. «Era um treinador que conhecia bem as minhas qualidades e seria o primeiro a perceber que aquela temporada fora apenas um acidente de percurso», pensei para mim. Mais uma vez enganei-me redondamente. Assim que saiu a lista de dispensados para a época seguinte, o meu nome vinha em primeiro lugar. Fiquei desolado. Lembro-me de chegar a casa nesse dia e comentar a situação com a minha mulher: «Já viste isto? Tinha aqui mais um ano de contrato para fazer, estava descansado e, afinal, não querem continuar comigo.» No futebol é mesmo assim. Hoje és um herói, amanhã és uma merda. E vice-versa. O problema é que, nessa altura, eu já tinha 28 anos e não era propriamente um jovem para ir à procura de um novo clube que me desse as boas condições financeiras que tinha no Boavista. Foi então que entrou em cena a tal ironia da minha carreira. Certo dia estou em minha casa no Porto, ainda a digerir o facto de ter visto o meu nome na lista de dispensas, quando toca o telefone. Do outro lado da linha estava o Pietra, que nessa altura era treinador adjunto no Belenenses. « `Tou, Fernando? É o Pietra, pá. Estás bom? Olha, tenho aqui uma pessoa ao meu lado que quer falar contigo.» E o Pietra era adjunto de quem? Nem mais. O telefone sai das mãos dele directamente para as mãos de João Alves, que entretanto já tinha abandonado o Estrela e assumido o comando técnico da equipa de Belém. — Olá Fernando. Estás bom? — Sim, sim. Está tudo bem — respondi eu com espanto antes de ouvir o convite mais inesperado da minha carreira. — Queres vir jogar para o Belenenses? — pergunta João Alves. — Para o Belenenses? Então, mas ainda há um ano fartei-me de dizer mal de si e agora está a convidar-me? — Não há problema. Vens para aqui, porque eu gosto de jogadores como tu, assim meio rebeldes — respondeu-me. Foi após este telefonema completamente imprevisto que voltei a ver uma luz ao fundo do túnel para reerguer a minha vida de futebolista. Aceitei ir para o Belenenses e posso dizer que foi a melhor decisão que tomei desde que tinha saído do Benfica. A ida para Belém permitiu-me voltar às grandes exibições e abriu-me as portas do FC Porto.
CAPÍTULO CINCO BELENENSES: GRANDE TEMPORADA COM JOÃO ALVES A passagem do Boavista para o Belenenses marca uma mudança entre dois dos treinadores que mais contribuíram para o meu sucesso enquanto futebolista. Fiquei desesperado quando Manuel José me dispensou do Bessa, mas até nisso ele foi meu amigo. Em Belém, sob o comando de João Alves, redescobri a essência do meu jogo e consegui provocar o interesse do Porto. Escreveu-se direito por linhas tortas. Nessa época entraram comigo muitos jogadores novos. O clube tinha operado uma profunda revolução no plantel para melhorar os resultados alcançados na época anterior, em que escapou da descida por pouco. Face à elevada quantidade de reforços, o Belenenses começava como candidato à manutenção. Passadas poucas jornadas do início da competição, porém, ficou claro que tínhamos equipa para ambições mais elevadas e, quando demos por nós, estávamos a lutar por um lugar de acesso às competições europeias. Gostava de ver o Belenenses fazer isso todos os anos e tenho muita pena de assistir à perda de estatuto que se tem vindo a assolar do clube. Já foi o quarto grande, tem história, adeptos e um estádio lindíssimo. Tal como muitos outros jogadores que por ali passaram antes e depois de mim, sempre me emocionei cada vez que jogava no Restelo. É certo que nunca estava cheio. Acho que só ali estive com lotação esgotada uma vez, num dia em que fui lá ver um concerto dos AC/DC. Com rock lotou. Com futebol nunca. Mas mesmo perante bancadas semidespidas, sentia-se o peso da camisola e o respeito por representar um clube daqueles. Essa temporada também marca o meu regresso a Lisboa e à companhia de amigos e família. Jogar ao lado de casa é sempre importante. Não nos sentimos tão isolados na nossa profissão, como aconteceu antes, nos tempos de Boavista, e depois, na passagem pelo Porto. Completei 29 anos numa temporada que está entre as melhores que o Belenenses realizou nos últimos trinta anos. Também sabia, de antemão, que aquela seria a minha última oportunidade para sair dali e rumar a um clube maior. E, felizmente, correu tudo de feição. Tínhamos um plantel fantástico: Ivkovic (que anos antes defendera as redes do
Sporting), Pedro Barny (meu antigo colega no Boavista), Paulo Madeira e Rui Esteves (que tinham vindo do Benfica), Pacheco (ex-Benfica e ex-Sporting), Taira, Giovanella, Tulipa, Chiquinho Conde e César Brito (também alinhou no Benfica durante vários anos). Para tomar conta deste plantel de grande qualidade, estava um treinador que me marcou muito. Quando saí do Estrela da Amadora, tudo fiz para irritar João Alves, mas mesmo assim ele foi buscar-me à lista de dispensados do Boavista e deu-me a oportunidade de fazer parte desta belíssima equipa. Adorei os métodos de trabalho dele. É alguém que merece poder ser treinador das boas equipas do futebol português. Para além do aspecto técnico, tínhamos uma relação muito afectiva. Em algumas fases da minha carreira, João Alves chegou a ser uma figura bastante paternal para mim. E, além disso, percebe muito de futebol. Os seus ensinamentos ajudaram-me a fazer uma época de grande nível e contribuíram bastante para o sucesso que tivemos dentro de campo: finalizámos o campeonato em 6.º lugar e falhámos o apuramento para a Taça UEFA por pouco. Aquilo que ele tinha sido como jogador também foi muito importante para incutir respeito no plantel. Nenhum de nós tinha metade do talento que ele mostrara ao serviço de vários clubes. Como treinador é exemplar, mas como jogador foi genial. E isso pesava muito no balneário sempre que ele se dirigia a nós com diversos conselhos. Mas nem tudo foram rosas. Apesar do elevado rendimento desportivo, o clube vivia problemas financeiros e andámos três meses sem receber. Certa vez estávamos no Restelo num sábado de manhã para começarmos a treinar. Entretanto, João Alves disse-nos que a direcção nos iria pagar um mês de salários em atraso nesse mesmo dia. «Vão para o banco que eles já lá estão», dissenos o treinador. Assim que ouvimos aquilo, saímos todos disparados do estádio. Quase todos equipados, já de chuteiras e calções, entrámos disparados pelo banco. Nunca tinha visto nada assim. Um deles até estava de caneleiras. Ficámos ali à espera do nosso dinheiro, mas nada. Mais uma vez fora uma falsa promessa. Esse constante adiamento em relação aos salários pode provocar fortes danos na produção das equipas. Mas no caso do Belenenses, nunca deixámos que isso nos afectasse. Tínhamos um grupo de malta porreira que soube manter a calma e esperar pela resolução. E mantivemos essa serenidade até final da temporada. Depois disso começaram a surgir as naturais exigências por parte dos jogadores. A equipa tinha digressão marcada para os EUA, mas o plantel disse que não iria em viagem até ter a situação resolvida. Praticamente ao mesmo tempo, já eu sabia que na época seguinte iria representar o Porto. Não faço ideia de qual terá sido o valor
que o Porto pagou ao Belenenses pela minha transferência, mas sei que esse dinheiro foi utilizado para pagar os salários em atraso. Como também me deviam três meses, fiquei à espera de ver tudo regularizado. Mas mal entrou o dinheiro do Porto, a direcção do Belenenses só pagou aos outros que lá ficaram. Eu fiquei sem ver um tostão. Teve de ser o Porto a regularizar tudo comigo e a pagar o que o clube anterior me tinha ficado a dever. Mas sinceramente isso nem me afectou muito. Mesmo na relação com o então presidente José Matias. Era um bom homem que tentava manter os seus compromissos, mas já nessa altura o Belenenses tinha muitas dificuldades financeiras, a exemplo da actualidade. Saí do clube a bem, feliz por aquilo que tinha conseguido fazer e muito motivado por poder ir para o Porto. Depois das três épocas de sonho que passei nas Antas, ainda voltei ao Belenenses mais uma temporada. Foi na fase descendente da minha carreira e não senti tanta alegria como na primeira passagem. Mas das várias propostas que tive nessa altura, decidi ingressar novamente em Belém, porque mantinha aquela instituição guardada num lugar especial do meu coração. Por tudo aquilo que é, foi e pode voltar a ser, o Belenenses merece muito mais do que tem tido. Precisa de dirigentes honestos, trabalhadores e que respeitem a história da instituição que representam. Eu senti essa tradição e a responsabilidade de ter de honrar um dos clubes com mais história no futebol português. Foi bom. Ainda hoje torço por eles. Sofro por eles.
CAPÍTULO SEIS FC PORTO: CONVITE INESPERADO Antecipação negocial. Quando um clube consegue pôr este argumento em prática, começa a construir as bases para o sucesso. A minha ida para o FC Porto é um exemplo perfeito dessa capacidade de adiantamento. O clube soube aproveitar a oportunidade e fechou contrato comigo num episódio supersónico. A história começa em mais um processo de transferência que esteve longe de ser pacífico. Na verdade, foi quase acidental. Depois da grande época que realizei no Belenenses, despertei o interesse de vários clubes espanhóis. Encarei a hipótese de rumar a Espanha com especial agrado. Tinha 29 anos nessa altura e sabia que era a última oportunidade para conseguir um bom contrato. Além disso, estava sem receber salário em Belém há três meses. O clube passava por algumas dificuldades financeiras e precisava de encaixar dinheiro com a venda do meu passe, e de outros colegas, para poder pagar o salário aos atletas que lá ficavam e que não tinham propostas para sair. O Salamanca foi o primeiro clube a abordar o Belenenses com uma proposta muito tentadora... para o Belenenses. Pagavam o valor da minha transferência em dinheiro, mas ofereciam-me o mesmo ordenado que auferia em Belém. «Para isso não vale a pena chatear-me e ir para a segunda divisão espanhola», disse aos dirigentes. A juntar à fraca proposta financeira havia a evidente despromoção desportiva por ir parar ao segundo escalão. «Salamanca morto e enterrado. Hão-de vir outros», pensei eu. Quando disse «não» ao Salamanca, o próprio João Alves alertou-me para eu ter cuidado e não recusar muitas propostas, podendo correr o risco de estar a desperdiçar oportunidades únicas. «Andas armado em Maradona ou quê? Vê lá se não te lixas com tantas exigências e manias», disse-me ele, meio a brincar, meio a sério. Entretanto, aparece outro emblema espanhol com uma proposta bem mais interessante. O Rayo Vallecano fazia parte da competitiva primeira divisão de Espanha e oferecia-me um contrato com números tentadores — 2700 contos mensais. Reuni-me com os responsáveis do clube num restaurante situado na praça de
toiros de Vila Franca de Xira. Nessa negociação fiz-me novamente acompanhar pelo meu advogado Cunha Leal, que eu lançara anos antes na esfera futebolística (aquando da minha ida para o Benfica, lembram-se?). Já estávamos sentados à mesa quando entrou um dos dirigentes do Rayo Vallecano. A aparência dele suscitou uma reacção imediata do Cunha Leal: «Fernando, olha bem onde te vais meter. O homem parece o Al Capone.» Realmente, ele tinha razão. Assim que vi aquele gordo de barbas, com ar de perigoso, pensei logo: «Estou tramado!» Foram reacções instintivas que acabaram por não influenciar o decorrer dos acontecimentos. No final do almoço, chegámos a acordo. Iria ganhar um salário de luxo para o meu novo clube, rumo a uma liga mais competitiva. Claro que já estava numa fase da minha carreira em que até preferia não ter de ir para Espanha, mas, em Portugal, aqueles valores só se pagavam nos três grandes e, desses, ainda não tinha recebido nenhuma proposta. Com 29 anos, aquilo foi muito simples: «Antes rico em Espanha do que pobre em Portugal. E além disso, Espanha é já aqui ao lado.» Seria sempre uma solução mais sensata do que permanecer em Belém com ordenados em atraso, e desaproveitar os meus últimos anos de carreira profissional, sem a devida compensação financeira. Este almoço aconteceu a duas jornadas do final da época. Na última jornada do campeonato fomos jogar ao Estádio das Antas contra o Porto, que tinha acabado de ser campeão nacional (mais uma vez) e iria fazer a grande festa contra nós. Antes do jogo assinei contrato com o Rayo Vallecano, no hotel Casablanca, em Gaia, mas, curiosamente, voltei a ficar com o contrato na mão (tal como já tinha acontecido quando assinei com o Benfica), porque era domingo e só podíamos reconhecer as assinaturas no notário na segunda-feira seguinte. Acabei por dar o contrato aos directores do Belenenses até resolver o que faltava. Passou-se o jogo com o Porto, em que perdemos 0-1, e regressei a Lisboa no autocarro com a restante equipa. Nessa noite deitei-me bastante tranquilo, com a clara convicção de que iria jogar em Espanha na época seguinte. Faltava apenas limar um detalhe que não estava relacionado comigo: o Rayo Vallecano queria pagar ao Belenenses em letras, situação que suscitou algumas dúvidas processuais nos dirigentes dos dois clubes. Por isso, concordaram em pedir informações a Pinto da Costa que, nessa altura, para além de líder dos dragões, também era presidente da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, mais conhecida por Liga de Clubes. Belenenses e Rayo Vallecano marcaram encontro com Pinto da Costa, no Estádio das Antas, para o dia seguinte. Acordei na manhã de segunda-feira já a saber que tinha de apanhar um avião para
o Porto. Mas não seria para ir ter com Pinto da Costa. As dúvidas no processo de pagamento eram um detalhe a ser resolvido pelos dirigentes dos dois clubes. Nessa noite tinha de estar no Casino de Espinho para ser distinguido numa gala de futebol. O jornal O Público iria dar-me o prémio de melhor lateral-esquerdo do Campeonato Nacional 1995/96. Fiz a viagem de avião na companhia do Porfírio (atleta que representou Sporting e Benfica, entre outros, e que também iria receber um prémio pela excelente época realizada na União de Leiria). Assim que aterrámos e saímos do aeroporto, fui imediatamente surpreendido pela inesperada presença de um director do Porto. Disse que estava ali para me levar, porque João Alves precisava de falar comigo urgentemente. Ainda resisti: «Então mas eu tenho aqui o Porfírio à minha espera para irmos receber o prémio a Espinho.» Mas lá me convenceu: «Isto é rápido. O Porfírio vai já para Espinho e tu vais lá ter daqui a pouco.» Entro no carro e percebo que estamos a caminho do Estádio das Antas. Quando chegámos ao recinto, fomos direitos a uma sala próxima de um campo de treinos. Um minuto depois de estar nessa sala chegam José António Matias (presidente do Belenenses nessa época), João Alves, Pinto da Costa e Reinaldo Teles (vicepresidente do Porto). Numa sala ao lado, estavam os dirigentes do Rayo, à espera de Pinto da Costa, para serem informados sobre a melhor forma de realizar o tal pagamento com letras por causa da minha transferência. Porém, eles não nos conseguiam ver, nem sequer sonhavam que nós estávamos ali reunidos. Essa foi a primeira vez que falei com Pinto da Costa. — Então, Fernando. Vais jogar para onde? — perguntou ele já farto de saber para onde eu iria. — Vou para o Rayo Vallecano — respondi eu, muito orgulhoso. — Vais para o raio do quê? — disse ele naquele seu tom de inconfundível sarcasmo. — Rayo Vallecano — respondi eu novamente. — Rayo Vallecano? Para ires jogar para aí, vais jogar para o Chaves. É quase a mesma coisa. — Para o Chaves, presidente? Claro que não. Então já viu bem o dinheiro que eu vou ganhar? — Não te preocupes com isso — diz-me ele. Assim que oiço para não me preocupar, confundi as coisas. Olhei para trás e perguntei ao Matias se já estava tudo resolvido com o Rayo. «Ai sim? Então já me posso ir embora? Tenho de seguir para Espinho por causa da gala.» Assim que digo
isto, Pinto da Costa contra-ataca. — Então diz-me uma coisa, Fernando. Dou-te o mesmo dinheiro que ias ganhar para Espanha e ficas aqui no Porto. O que te parece? — Este tipo deve estar a gozar comigo e eu não tenho tempo para isto — pensei eu. — Aceitas? — voltou a perguntar. Comecei a cair em mim e a perceber que ele estava a falar a sério. A resposta saiu que nem uma lança. — Se aceito? Claro que aceito. Onde é que assino? (Pinto da Costa foi das poucas pessoas com quem lidei no futebol às quais parece impossível conseguirmos dizer que não. Mesmo que ele me tivesse oferecido metade do dinheiro que eu iria ganhar para o Rayo, seria incapaz de recusar. Ele tem um fascínio qualquer e parece que nos hipnotiza. Torna-se difícil não lhe fazer a vontade.) Passado um minuto de ter respondido afirmativo, vieram os documentos para assinar. As folhas já traziam o meu nome, a minha morada, o nome dos meus pais, tudo. Toda a informação. Só faltava mesmo a minha assinatura e ele já sabia que a iria ter ainda antes de falar comigo e de poder estudar a minha reacção. Assinei contrato e, de repente, lembrei-me dos espanhóis. — Então e agora? O que é que eu digo àquelas pessoas que estão ali ao lado? — Não te preocupes. Agora não dizes nada. O contrato que fizeste com eles está aqui. Vou rasgar a parte da tua assinatura e guardo nesta gaveta — disse Pinto da Costa com uma espantosa tranquilidade — os espanhóis levam o contrato de volta, mas sem a tua assinatura. Eu trato disso. Não te preocupes. — Sim, mas agora vou para Espinho. Digo o quê à comunicação social? — Então, agora vais para Espinho comigo — Pinto da Costa iria assistir à mesma gala, porque o Porto também seria premiado pela conquista do campeonato nacional. — Então e os espanhóis ficam ali? — voltei a perguntar, com alguma preocupação pelos dirigentes do Rayo. — Os espanhóis? — ironiza Pinto da Costa. — Não te preocupes que a empregada de limpeza daqui a pouco vai lá dizer-lhes que já não está aqui ninguém. Agora despacha-te. Não estavas com tanta pressa para ir para Espinho. Então? Vamos embora. Depois daquilo, os dirigentes do Rayo andaram pelo Porto à minha procura, incluindo o gordo das barbas, o tal com ar de Al Capone. «Estou desgraçado. Ainda vou levar um enxerto de porrada dos espanhóis. Se os
gajos me apanham, matam-me», pensei eu. Felizmente, não aconteceu nada. Mas deve ter sido chato para eles. Enfim, o futebol é mesmo assim. Se tivesse assinado contrato com o Rayo na sexta-feira anterior, por exemplo, tinha ido logo ao notário e provavelmente nunca viria a ser jogador do Porto. Mas felizmente ainda não tinha uma ligação legal com os espanhóis. Perante isso, jamais iria dizer que não ao campeão nacional, clube habitualmente presente na Liga dos Campeões (onde eu nunca tinha estado), e uma das grandes forças futebolísticas da Europa. Foi a melhor escolha da minha vida desportiva. Chego ao Casino de Espinho acompanhado por Pinto da Costa. Assim que entramos, vem de lá um batalhão de jornalistas direito a ele: «Apresento-vos o novo reforço do Porto para a próxima época, Fernando Mendes.» Diz ele assim de repente. Os jornalistas viraram-se para mim, bombardearam-me com perguntas, mas eu não disse nada de jeito, tal era a vergonha e o espanto com que ainda estava. Aquilo foi tão rápido e tão bem feito que a mensagem passou para todos em poucos minutos. Quando fui ao palco para receber o prémio, Júlio Magalhães, jornalista anfitrião da cerimónia, apresentou-me como jogador do FC Porto. É assim que começa a minha história no clube que mais me marcou desportivamente. Recordem-se que iniciei este capítulo a falar nas vantagens da antecipação negocial. Essa sempre foi uma força do Porto. Onde os outros marcam passo, os dragões exibem eficácia. Fiquei deliciado. Maravilhado com o que estava a acontecer. Imaginei o Rayo, mas a tempestade da vida real levou-me até ao Porto. Assim que acabou a gala, liguei ao meu pai, todo contente. Queria dar-lhe as novidades e tivemos uma conversa animada em que ele aproveitou para brincar comigo. — `Tou, pai? Olha, nem sabes da melhor. Já não vou para Espanha. Vou jogar para o Porto. — Para o Boavista outra vez? Epá, não faças isso. — Não, pai. Não é para o Boavista do Porto. É para o FC Porto. — Para o Porto-Porto? Epá, não vás, por favor — disse ele como sportinguista ferrenho que sempre foi — não posso com esses gajos. Não vou suportar ver-te com a camisola deles. Ainda nos rimos à grande com aquela conversa. No fundo, o meu pai queria o melhor para mim e sabia que aquela era uma excelente oportunidade. Sei que o enchi de orgulho e... surpresa. Afinal de contas, horas antes nem eu sonhava com aquela possibilidade. Mas aquele telefonema de gozo antecipava a mais triste realidade da minha vida.
Apresentei-me a 16 de Julho no Porto. Fiz os exames médicos, participei num treino e, de seguida, fui para casa. Quando cheguei, liguei ao meu pai para lhe contar como tinha sido. «Então esses azuis? São porreiros?», perguntou-me. «Aquilo é um espectáculo», respondi feliz. Depois desligámos. Uma hora mais tarde o meu pai morreu. Nunca me viu jogar com a camisola do Porto. Desci de uma nuvem de felicidade para um pântano de tristeza. A vida revela sempre a sua força através das formas mais cruéis. Num momento dá-nos um sorriso, para de seguida nos devorar toda a alegria do corpo e deixar apenas sofrimento, apenas a dor da perda. É a lei da vida. Dura, monstruosa, infalível. Somos todos mortais e, mais cedo ou mais tarde, somos obrigados a chorar pela partida dos nossos. Tinha chegado a hora de deixar o meu melhor amigo de sempre embarcar na sua última viagem. Um dia destes voltarei a encontrar-me com ele.
CAPÍTULO SETE FC PORTO: A DESCOBERTA DE UM CLUBE FANTÁSTICO A morte do meu pai arrasou-me. Assim que tive conhecimento da notícia, esqueci o futebol. O funeral teve lugar no Montijo e, quando acabou, regressei ao Porto lavado em lágrimas. Entretanto, os dirigentes já tinham conhecimento da minha perda. Foram absolutamente incansáveis na tentativa de me ajudarem a ultrapassar aquele momento. Senti imediatamente que aquele clube era uma verdadeira família. Quando um estava mal, todos ajudavam. Mesmo quando se tratava de alguém acabado de chegar. Trataram-me como se tivesse nascido naquela casa. Poucos dias depois do funeral, fomos estagiar para a Escócia. Durante esses dias de estágio, nunca me deixaram sozinho. Faziam os possíveis para que eu reagisse de cabeça levantada e conseguisse abstrair-me. E, aos poucos, foram conseguindo. Nunca parei de sofrer, mas senti-me cada vez mais à-vontade junto daquelas pessoas. Quando cheguei da Escócia, porém, também vi o outro lado da força: a disciplina rigorosa, o profissionalismo severo. Fui convidado para ir ao lançamento do disco de Neno (meu ex-colega no Benfica, que para além do jeito para guarda-redes, sempre gostou de cantar). O evento decorreu na Póvoa do Lanhoso. Nem sabia onde aquilo ficava, mas ao fim de alguns quilómetros lá consegui dar com o caminho. Fiz-me acompanhar por Edmilson, meu companheiro de equipa, e por Carlos Manuel (que nessa altura já tinha deixado de jogar futebol e estava a treinar o Salgueiros). O Porto foi informado que, nessa noite, eu e Edmilson nos tínhamos deitado tardíssimo. Por acaso era mentira. Saí muita vez à noite durante a minha carreira, mas nesse dia até tínhamos ido para casa cedo por causa do treino na manhã seguinte. Dei essa explicação ao treinador António Oliveira, mas ele foi intransigente. Nem sequer quis ouvir os pedidos dos colegas mais antigos, como João Pinto e Aloísio. Como castigo, eu e Edmilson ficámos quinze dias a treinar sozinhos e a direcção chegou a ponderar a nossa dispensa. Mas na altura das inscrições para a Liga dos Campeões, o treinador resolveu dar-nos mais uma oportunidade. Esse episódio foi suficiente para perceber a força do regulamento daquele emblema. As regras eram muito mais duras do que em todos os clubes por onde
passara. Não tinha comparação. Quem trabalhasse podia contar com eles para tudo. Mas se nos desviávamos um milímetro das normas, éramos imediatamente excluídos. Embora na altura me tenha sentido injustiçado com aquele castigo, a esta distância consigo perceber que essas acções são fundamentais para manter um grande sentido de profissionalismo no seio do grupo de trabalho. Esse código interno é um dos motivos de sucesso do Porto. Mas existem outros. O clube funciona como uma empresa em que cada homem tem um lugar definido e não se pode preocupar com o trabalho dos outros. Pinto da Costa chefia e coordena toda esta máquina através da sua superior inteligência e sensibilidade para criar oportunidades favoráveis. Afinal de contas, foi através dessa metodologia que tive oportunidade de ir para lá. Como viria a saber mais tarde. Ainda na época 1995/96, em que eu estava no Belenenses, soube-se que Emerson, um médio brasileiro do Porto, iria sair para o Middlesbrough, de Inglaterra. Paulinho Santos, que jogava a lateral-esquerdo, teria de ir ocupar o meio-campo para preencher a lacuna deixada pela saída do brasileiro, ficando a equipa órfã de alguém para o lado esquerdo da defesa. É nesse momento que os responsáveis do clube pensam em mim. Quando querem um jogador, contratam-no e só depois informam a comunicação social. Dificilmente vemos os dirigentes do Porto alimentarem novelas na imprensa sobre potenciais reforços. Da mesma forma que não têm paciência para tolerar casos daquilo que consideram indisciplina. Ainda antes do meu castigo ser levantado, já tinha percebido esse funcionamento. Restava-me dar o meu melhor para poder jogar, ganhar títulos e honrar a memória do meu pai. Foi precisamente o que fiz, auxiliado por uma equipa de sonho. No Porto, a filosofia de vitória resiste a todas as transformações. Os treinadores mudam, os jogadores entram e saem, mas o espírito vencedor permanece intocável. Nas minhas três épocas de dragão ao peito, venci três campeonatos e escrevi o meu nome ao lado da geração que contribuiu para a conquista do « pentacampeonato» (significa vencer cinco campeonatos de seguida, para os mais leigos neste vocabulário futebolístico). Recordo que em toda a história dos campeonatos nacionais, apenas o Porto conseguiu tal proeza. Esta saga vitoriosa tinha começado duas épocas antes da minha chegada, sobre o legado do treinador inglês Bobby Robson, e iria continuar durante as três temporadas seguintes em que tive o privilégio de vestir a camisola azul e branca. Cheguei ao Estádio das Antas na companhia de vários jogadores que se iriam tornar figuras incontornáveis do Porto e do futebol português. Entre os quais Sérgio Conceição, o esloveno Zahovic e Mário Jardel. Também segui com Artur,
que já tinha jogado comigo no Boavista. Fomos encontrar jogadores de tremenda qualidade. O capitão João Pinto (não confundir com o João Vieira Pinto que jogou comigo no Boavista e no Benfica), Jorge Costa, Aloísio, Silvino (este sim, foi meu colega no Benfica), Paulinho Santos, Drulovic, Rui Barros e Domingos. Nomes grandes que formavam uma grande equipa. No campeonato nacional fomos perfeitamente demolidores. Acabámos com uma vantagem de 13 pontos para o segundo, que foi o Sporting, e pela primeira vez senti o gosto especial daquele troféu. No Benfica fui campeão nacional com Eriksson, sem jogar. Mas ali era titular. Contribui decisivamente para aquele êxito, com todo o suor e esforço que deixei em cada campo por onde passámos. Na Taça de Portugal também fomos longe, mas, depois de termos vencido o Benfica por duas vezes para o campeonato, acabámos derrotados na Luz por 0-2 nas meias-finais. Essa é também a época em que tenho oportunidade de me estrear na Liga dos Campeões. E que estreia! Antes da minha ida para o Porto, nunca tinha tido o privilégio de poder participar na melhor competição de clubes do mundo. Entrar em campo, ouvir aquela música e poder defrontar equipas galácticas... é uma sensação mágica. Mais mágico ainda foi o facto de fazermos história logo no primeiro jogo da fase de grupos. Fomos defrontar o AC Milan, a San Siro — casa histórica onde brilhavam nomes como Baresi, Maldini, Costacurta, Desailly, Albertini, Boban, Savicevic, Davids, Roberto Baggio e George Weah. Tinham uma equipa «jeitosa», treinada pelo mítico Arrigo Sachi. Perante um conjunto tão poderoso, a imprensa portuguesa já antecipava um massacre. Normal. Faz parte daquele hábito português de desvalorizar o que é seu. Mais estranho foi ver que António Oliveira fez actuar, de início, vários reforços que ainda não tinham jogado oficialmente pelo Porto, entre os quais estava eu. Face às poucas rotinas de alguns de nós, o jogo começou mal e precipitava-se para acabar numa derrota (que seria natural). A vinte minutos do fim, estávamos a perder por 2-1. António Oliveira decidiu então lançar um avançado brasileiro que ainda não se tinha estreado. Em poucos minutos, Jardel marcou dois golos e virou o resultado a nosso favor. Chocámos Milão. E melhor ainda: chocámos Portugal. Enquanto estive no Porto sentia claramente que, além dos nossos adeptos, mais ninguém nos tratava como portugueses. Quando a equipa ganhava lá fora, parecia que éramos espanhóis. «Foi? O Porto ganhou? E o que é que isso tem a ver com Portugal?» Era uma coisa inexplicável. Mas esse tratamento sempre foi uma das melhores armas que o Porto encontrou para se unir e vencer as adversidades. Havia
uma coesão gigantesca para o bem e para o mal. Nessa vitória em Milão, Jorge Costa pisou a mão de Weah, durante um lance dividido, e partiu-lhe um dedo. Aquele episódio havia de ter fortes repercussões mais tarde. No jogo da segunda ronda da fase de grupos, o Milan foi às Antas a necessitar de uma vitória, mas o jogo terminou 1-1 e eles ficaram numa posição muito fragilizada. No final do encontro, George Weah ainda tinha a memória fresca e a mão engessada por causa do incidente com Jorge Costa. Já nos balneários, resolveu retribuir a gentileza de uma forma violentíssima. Deu uma forte cabeçada no rosto do Jorge Costa e deixou-o lavado em sangue. A partir desse momento, deu-se uma verdadeira batalha campal nos balneários das Antas. Antes disso, já tinha participado em algumas confusões nos outros clubes onde joguei, mas nunca tinha feito parte de nada deste género. A união e raiva eram tão fortes que até os perseguimos com paus. Aquilo durou tempo suficiente para ver os jogadores do Milan em pânico, aos gritos, a fugirem de nós. Não é nenhum motivo de orgulho, mas foi uma sensação poderosa ver toda a equipa junta a querer defender o seu colega. «Ninguém nos faz mal e fica sem resposta», era esse o lema do Porto. O mais irónico de tudo isto é ver que, no futebol, a nódoa cai, quase sempre, no melhor pano. Nessa altura, Weah era considerado um dos melhores jogadores do mundo e tinha recebido o prémio de jogador com mais fair play da época anterior. Merecido, diga-se. Weah foi durante muitos anos um exemplo de cortesia dentro e fora do relvado. Mas naquele dia passou-se. E acabou por não ganhar nada com isso, porque no final da fase de grupos o Milan nem sequer fez pontos suficientes para seguir em frente. Ao contrário deles, a nossa história na Champions continuou, mas teve um fim pesado. Depois de vencermos o nosso grupo, defrontámos o Manchester United, em Old Trafford, para os oitavos-de-final e levámos 4-0. Era outro futebol. Mas em nada invalidou a grande temporada que alcançámos. Sobretudo a nível interno. Éramos muito melhores do que Benfica e Sporting e continuámos a mostrar isso nos anos seguintes. Na minha segunda época voltámos a ser campeões e ganhámos a Taça de Portugal. Mas aqui houve um episódio muito triste, directamente relacionado comigo. Nesse ano fomos completamente massacrados pela comunicação social e pelos dirigentes do Benfica. Diziam que éramos beneficiados pelos árbitros, que os nossos jogadores passavam impunes a todo o tipo de agressões, que comandávamos o sistema do futebol nacional... O único sistema que havia era o
facto de sermos melhores do que os outros. Mas aquela pressão toda havia de surtir os seus efeitos. Para o campeonato fomos jogar ao campo do Estrela da Amadora e perdemos 21, depois de sermos severamente prejudicados pela equipa de arbitragem. Quando o jogo acabou, explodiu uma valente zaragata entre os jogadores das duas equipas e as forças de segurança. No meio da confusão, o Jorge Costa deu uma chapada a um polícia e o chapéu saltou-lhe da cabeça. Assisti a tudo aquilo de longe, porque, geralmente, essas confusões tocavam-me sempre a mim e daquela vez quis manter distância para não ser acusado de nada. Vinha mais atrás e encostei-me ao túnel a presenciar aquele espectáculo, juntamente com Nuno Luz (jornalista da SIC), o massagista do Estrela e mais dois ou três polícias. Entretanto aquilo serenou e descemos todos ao balneário. Daí fomos para o hotel Alfa pernoitar (porque sempre que vínhamos a Lisboa fazer jogos à noite, dormíamos no Alfa e só seguíamos para cima no dia seguinte). Foi aí que ouvi a notícia na rádio: «O bombeiro Joaquim Grilo fez queixa-crime contra Fernando Mendes por uma alegada dentada na cara de que foi vítima por parte do jogador do FC Porto.» Pensei imediatamente: «Este tipo está a querer intrujar-me.» Nunca me cheguei perto de ninguém em toda aquela confusão e nem sabia quem era o homem. Quanto mais ter-lhe dado uma dentada. Qual Hannibal Lecter do futebol?! Mesmo que tivesse agredido alguém, seria de outra forma. As dentadas estão muito longe do meu leque de agressões favoritas. Para isso, tinha-lhe dado um murro ou um pontapé. Uma dentada na cara era um gesto tão rebuscado para o futebol que dava logo para ver que era mentira. Mas com a mentira, aquele sujeito tramou-me. Como resultado daquela ficção, fui chamado a tribunal em Lisboa. A sala de audiências estava repleta de bombeiros, todos a olharem-me de lado. E eu nem sabia quem era o outro da alegada agressão (para além da mordidela, também me acusava de lhe ter dado uma pisadela e de o ter chamado filho de todas as coisas más que existem no universo). Como consequência daquela novela, fui condenado a noventa dias de cadeia substituídos por zo contos diários. Resultado: tive de pagar 900 contos de indemnização ao bombeiro. Já depois de tudo isto vim a saber que, após o jogo, esse indivíduo foi jantar a um restaurante chamado Campino que se situava na Feira Popular. Segundo uma testemunha, o tipo foi para lá gabar-se junto do dono do restaurante. Até tirou o penso da cara para mostrar que não tinha nada: «Olha para isto. Vou ganhar aqui muita guita à conta de um otário que joga no Porto.» Estava lá uma senhora que presenciou a situação toda e ficou revoltada com aquela atitude. Na tentativa de
ajudar, contactou o Porto e ofereceu-se para ser minha testemunha. Aceitei imediatamente. Levei três testemunhas a tribunal: esta amável senhora, Nuno Luz e um dos polícias. Ele levava dois colegas e o chefe do departamento dos bombeiros. Presentearam tudo e todos com relatos altamente contraditórios. Um dos bombeiros dizia que eu tinha dado a dentada com o jogo a decorrer, num momento em que o tal bombeiro entrou em campo com uma maca para levantar um jogador lesionado. O outro bombeiro lá teve a esperteza de se manter fiel ao argumento do filme, dizendo que a alegada agressão foi no final do jogo. O chefe do departamento dos bombeiros disse que não viu nada, porque estava a falar ao telemóvel no momento do meu pretenso ataque. Ninguém dizia coisa com coisa, mas não havia nada a fazer: o tal bombeiro até apresentou radiografias de arranhões e cortes que supostamente eu lhe teria feito. A juntar à pena de tribunal, a Liga de Clubes suspendeu-me por três meses, período durante o qual fiquei, inclusivamente, impedido de jogar a final da Taça de Portugal (ganhámos 3-1 frente ao Braga). O mais gritante de tudo isto foi ver o Porto completamente quieto enquanto eu era crucificado. Senti que não quiseram recorrer para poderem fazer de mim um exemplo. Ou seja, naquele período, como frisei anteriormente, o Porto estava a ser acusado pela opinião pública de grandes favorecimentos. Ao permitirem que eu fosse castigado, podiam mostrar que afinal as suspeições eram infundamentadas, porque o clube também não estava acima da lei. Uma manobra meramente política. Se foi inteligente? Caso eu fosse dirigente, provavelmente teria feito o mesmo. A equipa liderava, jogava bem e podia dar-se ao luxo de ter um jogador titular suspenso. Não iria abalar a máquina vencedora. Mas entristeceu-me profundamente a falta de defesa. Aquela atitude ia contra os valores de união que sempre vigoraram no clube. Quando terminou o castigo imposto pela Liga, já estávamos na pré-época 1998/1999. António Oliveira abandonou o comando técnico para dar lugar a Fernando Santos. Nesse ano tive oportunidade de jogar ao lado de grandes craques do futebol português, como Deco e Ricardo Carvalho (dois jovens que começavam a aparecer). O Porto também contratou Esquerdinha, um lateral-esquerdo que vinha do Brasil e dizia nas entrevistas que estava habituado a marcar vinte golos por época. Quando ouvi aquilo ainda me assustei: «Vinte golos por época? Cuidado com o homem.» Mas comecei a titular, mais uma vez, e mantive o meu lugar no
onze quase até final da época. Depois Fernando Santos começou a apostar no Esquerdinha. Era um prenúncio dos meus últimos dias no Porto. Voltámos a ser campeões nesse ano e alcançámos o tão ambicionado «penta». Como o meu contrato chegava ao fim, estava esperançado em renovar por mais um ano. Pensei mesmo em poder acabar a carreira no Porto. No entanto, a direcção decidiu não prolongar o vínculo. Fiquei triste porque sabia ter condições para lá ficar mais tempo. Ainda para mais, perdi o lugar para Esquerdinha e para Rubens Júnior (que chegou na época em que saí), dois jogadores absolutamente vulgaríssimos. Não me considero nenhuma estrela, mas era muito melhor do que eles. Por tudo isso, tive pena de não continuar. As três épocas que passei no Porto foram as mais felizes da minha vida desportiva. Ganhei três campeonatos, uma taça e duas supertaças. Era um clube à minha imagem: competitivo, ambicioso, vitorioso. Os sucessivos ataques de que éramos alvo só nos davam mais força. Apesar de toda a suspeição, de todas as perseguições, nunca ninguém conseguiu tirar-nos da cabeça uma forte convicção: éramos melhores. A nossa superioridade devia-se, quase por completo, à qualidade do trabalho desenvolvido. Tínhamos grandes equipas, fruto da inteligente política de contratações da direcção, e treinadores competentes e ambiciosos. Até o próprio trabalho físico era diferente, mais exigente, mais constante. Muito mais árduo do que aquele que conheci em clubes anteriores. Ao fim de pouco tempo, interiorizei esses níveis de exigência e entreguei-me por completo àquela camisola, como se fosse a minha camisola desde criança. Lembro-me da mística que sentíamos durante algumas palestras antes de jogos no Estádio da Luz. As tantas o treinador dizia: «Estes gajos do Sul querem-nos matar, estão todos contra nós. Temos de ir lá para dentro dar cabo deles.» A lavagem era tão grande que até eu, que nasci em Setúbal, dava por mim a dizer a mesma coisa: «Pois é. Estes filhos da puta do Sul vão pagá-las.» Quando entrávamos em campo só nos apetecia bater-lhes e derrotá-los. A raiva existente num jogo entre Porto e Benfica não tem comparação com a que se vive num jogo entre Benfica e Sporting. Há um ódio de morte antes, durante e depois daquele jogo. Era fantástico poder estar nesses duelos, tanto de um lado como do outro, embora tenha sentido mais no Porto por poder ser titular. Apesar de ser sportinguista, digo, sem qualquer problema, que o Porto ocupa um lugar especial no meu coração. E sei que esse amor é retribuído. Na época seguinte à minha saída, regressei àquele estádio (novamente com a camisola do Belenenses).
A poucos minutos do fim, saí do banco de suplentes para substituir um colega. Jorge Costa, então capitão do Porto, foi receber-me à linha enquanto todo o estádio estava de pé a aplaudir-me. São momentos como este que marcam a vida de um futebolista. Mais tarde, regressei ao Porto ao serviço do Vitória de Setúbal. No final do jogo, quando já estávamos de saída, Pinto da Costa mandou parar o nosso autocarro para me oferecer uma caixa de garrafas de vinho do Porto. Já bebi o vinho há muito tempo, mas continuo a guardar a amizade e o carinho que nutro por muitas pessoas daquele clube.
CAPÍTULO OITO V. SETÚBAL: ACABAR ONDE TUDO COMEÇOU 5 de Novembro de 1966. Local: Setúbal. Nome: Fernando Mendes. Esta podia ser a ficha do meu nascimento. Mais tarde, o futebol inscreveu o meu nome noutra ficha, na mesma cidade. Terá sido destino ou mais uma das ironias que sempre acompanharam o meu percurso no futebol? Não sei e nem é o tipo de pergunta para a qual perca tempo a tentar encontrar resposta. Simplesmente aconteceu: o caminho natural da vida levou-me a acabar a carreira de futebolista profissional na terra onde tinha nascido trinta e quatro anos antes. Inicialmente mostrei alguma resistência em aceitar o convite do Vitória de Setúbal, mas, olhando a esta distância, não me arrependo por um minuto. Tive oportunidade de assinar o meu nome na história de um dos clubes mais bonitos de Portugal. Depois de sair do Porto regressei ao Belenenses para jogar mais uma época. Tinha prometido a mim mesmo que no final da temporada abandonaria o futebol profissional. Eram já muitos anos de desgaste, em que não tive tempo para usufruir de uma vida familiar saudável. Estava na hora de dar atenção às minhas filhas, de poder brincar com elas sem estar aflito por causa dos treinos, dos estágios ou dos jogos. «No fim desta época, futebol só mesmo na televisão», disse para mim mesmo. O facto de o Porto não ter renovado comigo também me deixou abatido e já sem muita vontade de continuar no futebol. Essa época de Belenenses não foi boa nem má. Aconteceu, meramente. Acabámos o campeonato em 12.° lugar depois de ainda termos sofrido durante algumas jornadas perante a hipótese de descida. Com o esforço de todos, lá conseguimos fazer o que nos competia e deixar o clube na I Liga. Tudo correu na normalidade (banalidade, se preferirem). Essa também foi a temporada em que o Sporting voltou a ser campeão nacional depois de um jejum de dezoito anos. Enquanto sportinguista ferrenho, vibrei intensamente com essa conquista e com o fim da maldição. Parecia tudo perfeito para me despedir. Confesso, ainda assim, que se tivesse finalizado a carreira nesse ano iria sentir-me vazio. Sempre me considerei um profissional exemplar, pronto
para me sacrificar pelo bem da equipa, mas nessa época não estava a sentir a mesma alegria de outros tempos. Parecia ter perdido definitivamente aquela chama que caracterizou o meu jogo e a minha forma de estar no futebol. Quando a época terminou, arrumei a trouxa e disse adeus ao futebol. Não demorou muito, contudo, para que a despedida se tornasse num simples até já, sem muitos dias de interrupção pelo meio. O meu sogro era amigo do então presidente do Vitória de Setúbal, Jorge Góis. O Vitória tinha descido à Liga de Honra nessa época, mas preparava-se para atacar a subida e voltar a estar entre os grandes do futebol português. Para cumprir o objectivo, queriam contratar alguns jogadores experientes. Numa conversa que os dois tiveram, o meu nome veio à baila: «Convence lá o Fernando a jogar por nós. Ele dava-nos um grande jeito.» O meu sogro transmitiu-me a vontade do presidente na tentativa de me convencer. Eis a minha resposta: «Não, não, não e não. Pronto... só mais uma época.» Da condição de jogador retirado, a equipar-me no balneário do Bonfim, foi um instante. No fundo, a história do meu primeiro adeus é igual à de tantos outros futebolistas. Por mais que nos tentemos convencer de uma vida depois do jogo, é muito difícil largar uma actividade que amamos profundamente. Mesmo perante o fim, muitos encontram uma réstia de força para voltar a fazer tudo outra vez. O corpo pode estar velho e massacrado, a mente pode estar desgastada, mas se vemos uma bola bater na relva achamos sempre ter ritmo para mais uma dança. E esta foi uma bela dança, num clube honesto em todos os seus sectores, incluindo o departamento médico. Aqui vou aproveitar para abrir um tema que irá ser explorado nos próximos capítulos: o doping. De todos os clubes por onde passei, o Vitória de Setúbal foi o único que nos deu uma ficha com as composições dos vários produtos que tomávamos. Desconheço como funciona hoje em dia, mas no meu tempo era raro encontrar alguma equipa que facultasse essa informação aos seus jogadores. Mas apesar das provas que nos forneceram, algumas das minhas experiências anteriores deixaram-me (literalmente) vacinado contra a confiança em departamentos médicos. E houve um episódio que me causou grande pânico. Depois de um jogo que fomos fazer ao terreno do Varzim, foram chamados dois jogadores do Vitória ao controlo antidoping: eu e o avançado Rui Miguel. Urinámos para o copo normalmente e quando acabámos viemos embora para Setúbal. Passada uma semana soube o resultado. Estava a jantar com um amigo meu num restaurante do Montijo quando vejo a bomba no telejornal: «Mais um caso de
doping no futebol português. Jogador do Vitória de Setúbal apanhado nas malhas do doping.» Desabafei de imediato com o meu amigo: «Queres ver que fui eu? `Tou fodido. Só me faltava mesmo ser apanhado com doping antes de acabar a carreira.» Ainda sem a notícia bem digerida, liguei imediatamente para Cotovio, que era então o massagista do clube. Não atendeu à primeira, nem à segunda, nem à terceira. Continuei a insistir, mas nada. Quando já estava em pleno processo de desespero, Cotovio liga-me de volta e consigo finalmente ficar a par do que se estava a passar: «Então? Não me diga que fui eu que acusei? Só me faltava mesmo isto», perguntei eu já em estilo afirmativo e desanimado. «Não foste tu, foi o outro.» Assim que ouvi aquilo, saiu-me um peso de cima. Embora estivesse convencido de que não tinha tomado nenhuma substância ilícita poderia ter sempre acusado alguma coisa que estivesse num nível superior ao permitido. Foi precisamente o que aconteceu com o meu colega. Depois disso, vim a saber o que se tinha passado através da comunicação social e do departamento médico. Rui Miguel tinha acusado cafeína em excesso. Os responsáveis clínicos do clube disseram que tudo se deveu a um suplemento alimentar rico nessa substância, mas cuja composição o omitia. Acredito. Em muitos clubes, os atletas tomavam medicamentos de cafeína para aumentar o nível dessa substância até próximo do limite permitido por lei. Em Setúbal, no entanto, a única coisa que tomávamos com frequência eram umas vitaminas com sabor a laranja. Um produto completamente limpo. Embora não seja um especialista, a explicação dos médicos no caso do Rui Miguel deixou-me convencido e, verdade seja dita, não criou grandes suspeitas em torno do clube. Desconheço como ficou a situação do jogador, mas penso que foi suspenso durante pouco tempo. No entanto, é preciso notar que neste caso estamos a falar de um assunto muito diferente. A cafeína é uma substância legal até certo nível. Muitas das coisas que tomei antes de chegar a Setúbal eram doping, sem tirar nem pôr. Não havia níveis dentro da norma ou fora da norma, nem reacções entre medicamentos. Se alguma vez fôssemos a controlo depois daquelas injecções iríamos acusar substâncias proibidas. Absolutamente proibidas. Fora isso, também tomei os tais medicamentos de cafeína em alguns clubes por onde passei, mas o Vitória não foi um deles. Já chegaremos a esses momentos. O certo é que antes de saber que não tinha sido eu, fiquei com a clara convicção de que a ironia voltaria a irromper pela minha carreira. Em várias ocasiões tinha tomado doping a sério e nunca acusei. E agora, na altura em que estava a lidar com
um departamento médico transparente, pensava que tinha acusado alguma coisa. Tudo isto aconteceu depois de já estar a competir, numa época bonita para mim e para o clube. Vamos voltar ao início dessa temporada. Aos 34 anos, fui então jogar na Liga de Honra, pela primeira vez na minha vida. Tirando a ausência dos três grandes não existiam muitas diferenças entre este escalão e o primeiro: jogadores profissionais, equipas organizadas, treinadores ambiciosos, objectivos bem definidos. Apesar de estar numa divisão secundária, representava uma equipa unicamente direccionada para a subida. Na grande história do Vitória não cabiam (nem cabem) presenças nas categorias secundárias. Antes de vestir aquela camisola, conhecia bem o clube por causa de todas as vezes que lá tinha ido jogar. Mas só fui capaz de sentir a grandeza daquele emblema depois de estar entre eles. Entre as gentes humildes e trabalhadoras do Sado que vivem o futebol daquela terra com suor e lágrimas. Serão poucas as equipas que têm uma relação tão afectiva e tão próxima das pessoas da sua terra como a que existe entre o Vitória e a cidade de Setúbal. Assim que entrei ali, percebi que fazia parte de uma história e que tinha por missão honrá-la com tudo o que ainda me restava dar. Mas começou mal, muito mal. Iniciámos a época com Rui Águas como treinador e, durante o seu período, a mensagem não estava a passar para o plantel. Empates, derrotas e desilusões começaram a marcar o nosso afastamento da linha da frente. Sem muito tempo para recuperar, e com uma margem de erro cada vez mais reduzida, a direcção decidiu trocar Rui Águas por Jorge Jesus. Em boa hora, diga-se. Nada tenho contra Rui Águas, mas fiquei com muito a favor de Jesus depois de ter trabalhado com ele. Foi dos treinadores que mais me marcou. Nunca pensei vir a aprender regras fundamentais de posicionamento táctico já com aquela idade. Hoje dou por mim a pensar que se tivesse o privilégio de apanhar Jorge Jesus nos primeiros anos da minha carreira, teria sido mil vezes melhor jogador do que fui. Há homens que, simplesmente, nasceram para ser treinadores. Jesus é um desses casos. Consome futebol 24 horas por dia. O jogo está sempre com ele: nas horas de trabalho, nas horas livres e, muito provavelmente, nos sonhos enquanto está a dormir. Essa obsessão constante faz dele um grande treinador, mas um chato de primeira linha. Nunca nos largava, sempre a corrigir, sempre a melhorar, sempre a pressionar. Era uma melga, malvado mesmo, mas no bom sentido. Havia vezes em que não tinha paciência nenhuma para o ouvir. Mas fazia parte. Com ele a treinarme, posso dizer que aprendi mais em época e meia sobre aspectos tácticos do jogo
do que já tinha aprendido em toda a minha carreira. Sabia que já não tinha a mesma força e velocidade de anos anteriores, mas senti que, com os seus ensinamentos, poderia atenuar as limitações da idade através da inteligência no posicionamento e na leitura do jogo. As suas qualidades contribuíram positivamente para toda a equipa e para a grande recuperação que fizemos. O comboio que começou por descarrilar com Rui Águas, encontrou o seu rumo através da sabedoria do maquinista Jesus. De nervosos e errantes, passámos aos primeiros lugares da tabela. Foi também com Jesus que comecei a construir os factos e os números de uma época da qual me orgulho imenso. Apesar de ter chegado nesse mesmo ano, confiaram-me a braçadeira de capitão. Com essa bonita responsabilidade pendurada no braço, marquei 16 golos a jogar a defesa-esquerdo. Parecia o Liedson da margem Sul. Nunca na minha vida tinha pensado em marcar tantos golos. Nessa época, como em outras da minha vida, estava encarregue de marcar os lances de bola parada. Boa parte dos dezasseis golos veio daí. Acertei muitos livres directos e penáltis, mas também marquei alguns de bola corrida. De todos esses golos, o mais importante foi o último, marcado no último minuto do último jogo da última jornada. Já dá para terem uma ideia de quão derradeiro foi? Jogámos no nosso estádio frente à Naval e, a poucos minutos do fim, estávamos empatados (1-1) e precisávamos de vencer. Face à importância do jogo, a direcção decidiu abrir as portas sem cobrar bilhetes. O estádio estava cheio numa tarde de calor infernal. De repente, dá-se um lance dentro da área deles e o árbitro marca grande penalidade a nosso favor. As bancadas ficaram em silêncio. Quando pus a bola na marca, olhei para trás e reparei que os meus colegas, com os nervos, estavam todos a olhar para a outra baliza. Nem queriam ver. «Se ele falha, estamos arrumados», pensaram eles. «Se eu falhar, sou morto aqui dentro», pensei eu. Pela frente tinha Yannick, um guarda-redes francês de boa qualidade que passou várias épocas em Portugal. Foi espectacular poder assistir a tudo que se passava à minha volta antes de partir para a bola. Sempre gostei desses momentos de grande tensão. Costumo ouvir com muita frequência que «a pressão que existe no futebol faz mal a fulano, prejudica beltrano e enerva sicrano». Aqui fica a minha resposta: «Balelas, parvoíces, burrices.» Típica frase de conversinha de elevador vinda de quem não sabe o que diz. Não há nada melhor do que jogar sob pressão. A pressão faz parte do futebol e sem ela o jogo não tinha piada. Se me deixasse afectar pela pressão, nunca tinha saído do Cancela (a equipa de torneios de futebol de salão onde joguei em criança antes de ir para o Sporting). Um jogador que se deixe influenciar
negativamente pela pressão deve mudar de carreira o quanto antes. O árbitro apitou, rematei, vi a bola a bater na trave, a vir ao chão e, por fim, a ir lá para dentro. «Que alívio.» Poucos segundos depois deste remate às tabelas, o jogo acabou. Resultado: Vitória regressa à primeira divisão, Setúbal em festa, sardinhas e carapaus para todos. Nestes momentos cruciais nunca podemos pensar muito. É preciso marcar, marca-se! O depois vem depois. Dá-se a consequência natural de acertar ou falhar. E, neste caso, o depois foi maravilhoso. Ganhámos, festejámos a subida e resolvi prolongar por mais um ano a carreira que pensei terminar uma época antes. Após um campeonato de grande sofrimento, decidi que merecia ter o privilégio de me despedir na I.ª Divisão. E assim foi. Novamente entre os melhores, joguei as últimas partidas enquanto profissional. Estamos na época 2001/02. «Aconteça o que acontecer, no fim do campeonato penduro as botas.» Prometi a mim mesmo e à minha família que não havia mais regressos nem falsas desistências. Desta vez seria de vez. Jorge Jesus continuava a ser o nosso treinador num plantel renovado para melhor, mas sem mudanças radicais. Mantinha-se o estilo de jogo e o espírito combativo para tentarmos alcançar a manutenção. Mas a luta iria ser feita de grande sofrimento e jogos injustos. No futebol português há uma regra dentro de campo. «Se és grande, ajudam-te a ficares maior. Se és pequeno, esmagam-te até que deixes de existir.» Na última jornada o Sporting já era campeão, mas Porto e Boavista continuavam a lutar por um lugar de acesso directo à Liga dos Campeões. Fomos jogar ao Bessa e estávamos a fazer uma bela exibição. Eles colocaram-se em vantagem num golo que Petit marcou com a ajuda da mão, mas depois o Hugo Henrique empatou para o nosso lado. E pronto. Não foi preciso fazer mais nada para que a arbitragem continuasse a favorecer o Boavista, que tinha de ganhar o jogo para ficar à frente do Porto. Num lance qualquer ridículo, contestei a decisão e o árbitro virou-se para mim e disse-me: «Vocês sabem quando é que ganham o jogo aqui? Nunca!» Imaginem o que é estar a jogar e ouvir isto da boca de um árbitro. Pensamos imediatamente que não há nada a fazer. Nem com Maradona, Pelé e Cruijffna nossa equipa. «Nunca!», disse ele. Acabámos por perder 1-4, mas, felizmente, já tínhamos garantido a manutenção antes desse jogo. Se não, íamos novamente direitinhos para a Liga de Honra e o Boavista conseguiria ir à Champions, mesmo que não merecesse vencer o jogo. Por acaso, este árbitro (que entretanto já se retirou) até era de Setúbal e tinha sido ele que marcara aquela grande penalidade decisiva a
nosso favor na época anterior, frente à Naval. Bem marcada, diga-se. Mas neste dia foi terrível para a nossa equipa. Jamais seria obrigado a escutar tal coisa com a camisola de Sporting, Benfica ou Porto. Enquanto representei os três grandes, cheguei a ouvir os lamentos dos adversários por estarem a ser prejudicados: «Vocês não precisam disto. Acabam por ganhar na mesma.» Mais tarde estive nessa pele. Quando nos toca a nós, é uma merda. Tanto no Setúbal como no Estrela da Amadora, cada vez que defrontávamos um grande parecia que o campo estava inclinado. Bastava respirar ao ouvido de um jogador deles para o árbitro marcar falta. Não foi nada fácil. Mas com muita luta e persistência, dessa vez conseguimos ir jogar ao Bessa já com as nossas contas arrumadas. No final desse jogo fiz o mesmo de sempre. Troquei a camisola com um colega da outra equipa, cumprimentei os meus companheiros, os meus adversários e o trio de arbitragem. Depois desci ao balneário e tomei banho. Foi a minha última dança como profissional de futebol.
CAPÍTULO NOVE A MINHA HISTÓRIA COM O DOPING — PARTE 1 Em determinado período da minha carreira cheguei a um clube que tinha uma grande equipa, um belíssimo treinador e um presidente carismático. Para além destas qualidades, existiram outros ingredientes que facilitaram o nosso percurso vitorioso. Devo dizer que antes de ir para este clube nunca tinha tido qualquer experiência com doping (pelo menos consciente) nas equipas onde jogara anteriormente. Os jogadores tomam muitos produtos e na maior parte dos casos desconhecem a composição daquilo que estão a ingerir. Mas como fui várias vezes a controlos antidoping e nunca acusei nada, parti do princípio que nos outros sítios nunca me tinham dado nada ilegal. Neste novo clube, porém, a história era outra. Os incentivos para correr eram sempre apresentados pelo massagista. Passado pouco tempo de estar no clube, ele aproximou-se de mim, e de outros novos jogadores, com um desafio diferente: propôs-me a utilização de substâncias ilícitas para aumentar o «desempenho atlético». Disse-me claramente que aquilo que iria dar-me era doping, embora nunca tivesse falado de eventuais efeitos secundários. No início estranhei aquele método, até porque nunca tinha visto nada semelhante. Mas com o passar do tempo assumi os riscos e tomei doping de todas as vezes que me foi dado. E quem recusasse tomar alguma coisa, provavelmente ficaria sem jogar. Nunca vi um único colega insurgirse perante essa situação. Quando somos confrontados com esta triste realidade, tudo se resume a uma máxima: «Ou tomas ou não jogas.» Embora nunca nos tenham feito essa ameaça directa, sabíamos de antemão que a nossa concordância era a única condição para podermos estar integrados naquele sistema. Se um jogador não quisesse tomar, perderia o lugar na equipa para outro que aceitasse. Sem jogar via o meu valor futebolístico reduzir drasticamente, algo que é ainda mais grave numa carreira de curta duração como a de um futebolista. Feita esta reflexão demoramos muito pouco tempo a aceitar. Todos acabam por pensar que se é para correr mais e para ajudar a ganhar, então vale a pena. Na ânsia de competir, a razão é facilmente ludibriada pelo desejo de vitória. O resto é prática: um estende o braço e é picado, o
outro abre a boca e é medicado. Passados uns minutos vão lá para dentro cheios de força e raiva. Depois havia também o forte exercício de persuasão feito pelo massagista: «Com isto vais correr mais do que os outros, vais ser mais rápido, vais ganhar e ser o melhor jogador.» Este tipo de discurso fazia-se quase sempre acompanhar de uma seringa potente ou de um medicamento que nos fazia ir à lua. Os atletas acabavam por se deixar levar na cantiga — embora soubessem qual a música que estavam a dançar — e tomavam o que lhes fosse dado. Infelizmente o doping é uma consequência natural da árdua competição. Nos actuais quadros do desporto profissional, os clubes investem muito em atletas e tentam reduzir ao máximo a margem de insucesso. Se a pressa é inimiga da perfeição, a demora é inimiga do investimento financeiro. É fundamental fazer mais rápido e melhor do que os nossos adversários, atingir grandes performances a curto-prazo, ganhar, voltar a ganhar e ganhar outra vez. Este conjunto de leis severas da competição faz com que elementos de muitos clubes resolvam encurtar caminho através das vias da ilegalidade. Uns centram atenções nos árbitros, outros utilizam substâncias ilegais. No meu tempo, o doping era tomado de duas formas: através de injecção ou por recurso a comprimido. Podia ser antes do jogo, no intervalo, ou com a partida a decorrer, no caso daqueles que saíam do banco para substituir alguém. A injecção tinha efeito imediato, enquanto que os comprimidos precisavam de ser tomados cerca de uma hora antes do jogo. Certa vez estava no balneário, antes de uma partida que realizámos em casa, e ia sentar-me numa mesinha que estava tapada com uma toalha. Veio logo de lá o massagista: «Epá, não te sentes aí em cima.» Ficou preocupado porque debaixo da toalha estavam umas seringas para dar aos «cavalos» antes deles entrarem em campo. Existiam diferentes métodos e cada jogador tomava uma dose personalizada, mediante o seu peso, condição física do momento ou última vez que tinha ingerido a substância. Havia necessidade de gerir os ciclos de cada atleta para atenuar o risco de ataque cardíaco provocado pelo excesso de droga. Porém, nos jogos importantes era sempre certo: partidas contra adversários directos, eliminatórias da Taça de Portugal ou jogos das competições europeias. Quando se sabia que não iria haver controlo antidoping, nunca falhava. Uma injecção demorava cinco minutos a fazer efeito. Com aquilo no corpo, corria mais rápido, saltava mais alto e parecia que nunca me cansava. Mas como
qualquer droga que se usa para aperfeiçoamento de determinada função, alguns jogadores chegavam a uma altura em que já não conseguiam jogar sem estar dopados. Sabiam que iam render menos e não queriam abandonar aquela sensação de ser um futebolista invencível. Havia jogos em que entrávamos no balneário e perguntávamos: «Onde está o “milho”?» Pouco depois, aparecia o massagista com uma bandeja recheada de seringas para dar a cada um dos jogadores. Parecíamos galinhas de volta do prato, à espera da nossa vez: obcecados com a poção mágica que nos ajudava a correr mais do que os nossos adversários. A influência do doping no desempenho atlético era de tal forma poderosa que dei por mim a conseguir performances quase inacreditáveis. Lembro-me de um jogo das competições europeias contra uma equipa que tinha três campeões do mundo no seu plantel. Um deles era um poderoso avançado no jogo aéreo. Como sabem, sempre joguei a defesa-esquerdo e, embora não tivesse de marcar este jogador directamente, apanhei-o várias vezes no meu terreno de acção. Ele era um armário, com um tremendo poder de impulsão. Mas nesse dia eu saltei que nem um louco e ganhei-lhe quase todas as bolas de cabeça. Parecia que tinha molas nos pés. A esta hora esse antigo atleta ainda se deve estar a perguntar como é que foi possível perder tantas bolas para um meia-leca naquele longínquo jogo das competições europeias. Meu caro, se estiveres a ler este livro, tenho todo o prazer em explicar-te qual era o meu segredo: uma pequena vacina, do tamanho de uma meia unha, chamada Pervitin. Espetavam-nos aquilo no braço, mesmo no músculo, e dava para correr e saltar durante quatro jogos de seguida. Agora já ficas a saber que não havia nenhum problema contigo. Era eu é que estava alterado. Mas ainda assim fico contente por ter ganho porque, para mim, esse momento foi histórico. O jogo aéreo sempre foi uma das minhas grandes lacunas. Se fosse preciso nem ganhava bolas de cabeça a Rui Barros (um dos jogadores mais baixos de sempre do futebol português). Mas com a ajuda de estimulantes transformei em anão aquele gigante artilheiro do futebol europeu. Pouco tempo depois desse jogo, voltei a tomar doping noutra partida das competições europeias, embora dessa vez já não tenha sido capaz de fintar as minhas fraquezas no futebol aéreo. A verdade é que o doping é como uma moeda. Numa das faces tem esse lado da força, de aguentar mais, de ajudar a ganhar. Provocava uma raiva enorme que, acompanhada pelas típicas palestras do futebol, só nos dava vontade de entrarmos em campo e corrermos loucamente. Sabe bem quando ganhamos os grandes jogos. Mas depois há outro lado: o dos
efeitos secundários. No final de um jogo em que tínhamos usado doping, chegávamos ao balneário e pedíamos a «anti-raiva»: uma cápsula que nos era dada para baixar a dose que tínhamos tomado anteriormente. Éramos tratados tal e qual como máquinas. Imaginem um tipo que tem o arcondicionado ligado na sala numa tarde de Verão. Se tem calor põe a temperatura a dois graus. Se depois fica com frio, aumenta para os quarenta graus. Nós éramos esse ar-condicionado. Máquinas de guerra a quem davam uma bomba para correr muito e outra para amansar. O problema é que essa anti-raiva nem sempre era suficiente para fazer passar o efeito. Baixava ligeiramente, nada mais. Se um jogo fosse às quatro da tarde, por exemplo, e se nos dopássemos às 15h45, muitas vezes, mesmo com a anti-raiva, ainda dava para correr até à meia-noite. Ou então dava para o inverso — depressão, falta de paciência, isolamento. Quando chegava a casa, depois de um jogo, não tinha a mínima pachorra para ouvir ninguém. Deixava a minha família a falar para o boneco. Só queria fechar-me no quarto. Ligava a televisão, mas não via nada. Ficava cerrado a olhar para as paredes, cheio de ódio dentro de mim. Muitas vezes pensava em sair de casa só para andar à pancada. Desejava que alguém se metesse comigo para poder partir-lhe a cara toda. Isto atormentava-me a mente durante horas. Longas horas em que estava em casa sem abrir a boca, sem abrir a porta do quarto. Lembro-me da minha filha mais velha ainda ser criança e olhar para mim com aqueles olhos lindos, com aquela carinha angelical: «Pai, queres brincar comigo?» Do outro lado vinha sempre a reacção da negação. A minha voz corroía-me a alma: «Agora não. Agora não consigo.» E ali ficava eu, fechado num muro de silêncio, a ver a minha vida familiar degradar-se enquanto o doping me saía do corpo. Depois dos jogos, a minha ex-mulher chegava a ver os meus braços negros por causa das injecções que me davam. Era péssimo ter de carregar esse fardo físico e emocional para dentro de casa. A maior mágoa que tenho hoje em dia, é olhar para trás e perceber que o relacionamento que tive com a minha filha mais velha durante muitos anos foi praticamente nulo. Embora não possa culpar o doping por tudo, sei que muita dessa distância se ficou a dever aos diferentes períodos da minha carreira em que chegava a casa ainda atormentado por todas as porcarias que me espetavam no corpo. O mais triste de tudo isto é a naturalidade com que um futebolista aprende a viver nesta situação miserável. Se estiver num balneário de doping durante uma década, anda uma década a ingerir merda. Por isso é que de vez em quando, há um que não
aguenta, cai para o lado e morre em campo. E apesar de os atletas assumirem o risco, nenhum deles tem verdadeira noção do que está a tomar. Quando o massagista nos dizia que a substância era ilegal, não nos avisava de eventuais perigos. Nem sequer se dava ao trabalho de comentar muito os efeitos secundários: «Nada de especial», respondia. Tudo funcionava como uma espécie de roda da sorte: dava-se a bomba aos animais para eles correrem. A partida não acontecia nada, mas se acontecesse... Os jogadores eram peões neste enorme esquema financeiro chamado doping desportivo. Segundo constava, as dosagens eram feitas em laboratórios no Norte do país. Dizia-se também que, em alguns casos, estes laboratórios até tinham fachadas legais, mas dedicavam uma parte das instalações e dos seus recursos humanos à investigação de novas dosagens que pudessem passar incólumes nos controlos antidoping. A teoria que circulava era a de que as pessoas desses laboratórios trabalhavam directamente com alguém do corpo clínico dos clubes. Fossem quais fossem as ramificações do negócio, os estimulantes poderiam passar por várias mãos, mas acabavam sempre nos balneários para serem testados de várias formas. O sistema de doping num dos clubes onde joguei era de tal forma elaborado que estendia as redes da sua perversidade para além do plantel sénior. Em certos treinos, víamos um ou dois juniores que apareciam para treinar connosco. Esses juniores não estavam ali porque eram muito bons ou porque tinham de ganhar experiência. Estavam ali para servirem de cobaias a novas dosagens. Um elemento do corpo clínico dava cápsulas ou injecções com composições ilegais a miúdos dos juniores. Essas experiências não podem ser feitas com futebolistas seniores que jogam todos os domingos e que são os principais activos do clube. Se alguma coisa corre mal, sai mais caro. Além disso, no futebol profissional há controlos antidoping. Nos juniores, os controlos acontecem uma vez na vida. Logo, são o alvo ideal para testarem novas composições. No final do treino, os juniores urinavam para um copo e essa urina iria servir para fazer os testes antidoping internos. Quando saíam os resultados, alguém ligava para o laboratório dos subúrbios a dar as novidades: «Olha, isto acusou tanto, por isso temos de baixar a dose.» Ou então: «Não está a acusar nada, por isso podemos aumentar um bocadinho.» Quando a dosagem era acertada, iniciava-se o processo de produção em massa destinado ao plantel sénior. Os juniores, por sua vez, nem faziam a mínima ideia do que lhes estava a ser dado. Diziam-lhes que eram vitaminas e que a urina era para controlo interno e análises.
Esses juniores eram utilizados como meio para atingir um único fim: melhorar os desempenhos atléticos do plantel principal. Durante os anos em que andei no mundo da bola, percebi da forma mais cruel que, para ganhar, vale quase tudo. A saúde humana é secundária. O aparelho do futebol faz-se mover por um conjunto de articulações em que a única preocupação é o resultado imediato, sem interessar quais os meios utilizados para se atingir o tão desejado fim vitorioso. Neste sistema demente, o jogador é carne para canhão. «Está cansado? Então, droga-o. Falta pouco tempo para acabar e estamos a perder? Então, droga-o. Precisamos de marcar um golo urgentemente? Então, droga-o. E se morrer? Que se foda.» O depois não interessa. O agora sobrepõe-se a qualquer consequência, por mais terrível que possa ser. Noutro jogo que fiz para as competições europeias, recordo-me de um desses episódios que ilustram perfeitamente toda a demência de querer ganhar. Estávamos a perder a poucos minutos do fim e era necessário colocar um homem fresco no ataque para tentar virar o resultado. O treinador, motivado em inverter os acontecimentos, mandou esse avançado aquecer. Como a loucura da vitória se sobrepunha a tudo, o massagista deu uma injecção a esse jogador antes dele entrar em campo. Mas como o jogo estava perto do fim, não houve tempo suficiente para que a substância actuasse no relvado. Acabou por fazer efeito já depois do apito final. Quando descemos ao balneário, esse jogador parecia um toiro enraivecido. Dava cabeçadas nas paredes e não se magoava. Não conseguia parar. Até fazia buracos nas portas do balneário com a cabeça. Este é o brilhante efeito de determinados estimulantes. Incutem uma raiva enorme que pode ser uma grande ajuda quando andamos a correr e a despender um elevado esforço físico durante o jogo. Porém, é terrível quando não há tempo para gastar aquela energia toda. É quase como dar uma injecção de adrenalina a uma pessoa para ela ir dormir. Não é possível. Quando isso acontece com algum jogador, nem o medicamento anti-raiva o pode ajudar. O atleta fica num estado de tremendo desespero e depressão. Quer que aquilo lhe saia do corpo, mas não consegue. Por mais que se mexa, o efeito não passa. Por isso é que esse pobre rapaz andava de um lado para o outro a fazer da cabeça uma arma de arremesso contra as paredes. Já estava chateado por ter perdido, tal com todos nós. Mas enquanto os outros, que tomaram estimulantes no início do jogo, começavam a ficar cabisbaixos, embora ainda emocionalmente turbulentos, ele estava no pique da raiva. No auge da moca, como se diz em dialecto de rua. E de nada serviu. Os produtos, sejam legais ou ilegais, nem sempre surtem efeitos milagrosos. Mas no calor da competição, essa
reflexão nem chega a existir. Os clubes que usam estimulantes apenas se preocupam em escapar aos controlos antidoping. Se o resultado for positivo o jogador é sempre o principal prejudicado, mas os departamentos médicos também ficam com a sua imagem amachucada. Tendo em conta esse eventual dano, os riscos são evitados através de várias artimanhas. Sempre ouvi dizer que, em alguns clubes, davam urina de terceiros a atletas dopados para que estes não acusassem nenhuma substância ilícita nos jogos em que havia controlo antidoping. Também achava estranho ver massagistas guardarem algálias dentro das suas malinhas. Embora não seja um especialista na matéria, acho que uma algália não é um instrumento muito natural para uma equipa de futebol profissional. A não ser que tenha outro fim... No meu caso, porém, nunca me deram urina de outras pessoas. Existiam outros estratagemas que, decorridos na sua época, eram infalíveis. Um desses truques era o das bolinhas frescas, muito em voga na primeira metade da minha carreira. Imaginemos que depois de certo jogo, a pessoa responsável pelo controlo antidoping escolhia dois jogadores de determinada equipa para irem ao «copo», como dizíamos. Antigamente, quem escolhia esses jogadores era o próprio médico do clube, algo que tornava a escapatória muito mais fácil. Antes do jogo havia uma bolinha com o número de cada atleta (isto ainda no tempo em que os atletas eram numerados de 1 a 11, para a equipa titular, e de 12 a 16 para os suplentes). No caso daqueles que tinham tomado doping, a bolinha correspondente ao seu número era colocada no congelador até ao final do jogo. Depois do apito final, as bolinhas eram retiradas do congelador e colocadas ao lado das outras dentro de um saco. Quando o médico ia escolher o atleta que tinha de ir ao controlo, já sabia que não podia tirar nenhuma das bolinhas geladas. Atirava-as para o lado, tirava outra que não estivesse gelada e depois ia dá-la ao clínico responsável pelo controlo. Era uma espécie de fuga ao doping por sensibilidade ao gelo. Hoje em dia, é difícil implantar este método, porque quem escolhe os atletas é o médico do Controlo Nacional de Antidopagem, mais conhecido por CNAD. Felizmente a pressão deste organismo tem vindo a aumentar nos últimos anos. E, perante o receio de um descuido, muitos clubes fazem controlos antidoping internos com alguma regularidade. Se bem que com fins diferentes. Aqueles que estão limpos querem apenas ter a certeza de que os seus jogadores não se andam a desviar das regras. Por sua vez, os departamentos médicos que utilizam estimulantes proibidos, controlam os jogadores para perceberem se o fármaco injectado noutro jogo já saiu do organismo.
Quem pratica acções ilegais aprende sempre a fintar as autoridades com maior ou menor dificuldade. Os esquemas ardilosos até podem mudar com a passagem dos anos, mas nunca deixam de existir. E, embora tenha abandonado o futebol profissional há já algum tempo, não ficaria surpreendido se viessem a público situações semelhantes. Sendo que, por vezes, nem é necessário que toda a gente dentro da estrutura do clube tenha conhecimento do que se passa. Nessa equipa onde tive a primeira experiência consciente com doping, os fármacos ilegais chegavam sempre até nós por intermédio do massagista. Não sei se era ele que comprava directamente ou se tinha um intermediário que lhe trazia. E acredito que essa compra até poderia ser realizada com dinheiro do clube, mas não quer dizer que a direcção soubesse para que fim se destinava. Existe um orçamento para compra de vitaminas, medicamentos e outros produtos legais que têm de fazer parte da realidade de uma equipa de futebol profissional. Por isso, um elemento do corpo clínico podia perfeitamente afirmar que determinada verba tinha sido utilizada para adquirir esses produtos. Os dirigentes não estavam connosco no balneário nem viam as seringas e as cápsulas. O médico também nunca estava presente sempre que os jogadores se dopavam e desconheço se tinha conhecimento dessa realidade. Estendo o mesmo benefício da dúvida à equipa técnica. São os donos do balneário, mas poderiam pensar que estávamos a tomar substâncias legais. Tal como os jogadores, os treinadores também não são médicos e estão mais preocupados com futebol do que com outra coisa qualquer. A todos eles, não os acuso nem ilibo. Ou não sabiam ou não queriam saber. No fundo, o doping acaba por aparecer numa espiral de pressões devido ao fervor competitivo. O presidente pressiona o treinador para ganhar, o treinador pressiona o departamento médico para que os melhores jogadores possam estar sempre aptos e em boa forma física e, por sua vez, o departamento médico tenta fazer a vontade ao treinador. Alguns não violam as regras. Outros recorrem a substâncias ilícitas. Seja como for, no final de contas a existência de doping acaba, quase sempre, por beneficiar todos no plano profissional. A direcção vê a equipa ganhar e cumpre os seus objectivos. O treinador depende de resultados e, se a sua equipa vence, mantém o emprego e melhora o currículo. Os jogadores rendem mais, jogam melhor e, em muitos casos, acabam por tirar proveitos desportivos e financeiros dessas vitórias. Nessa época da minha primeira vez, o doping trouxe benefícios profissionais a quase todos os envolvidos. Claro que a boa forma que exibimos nesse ano não se ficou a dever apenas à utilização de estimulantes. Não existe nenhum fármaco que
ensine a jogar futebol. Tínhamos grandes jogadores e um bom treinador. Se a isso juntarmos a utilização de «incentivos» físicos, a vitória torna-se mais fácil. Não me arrependo de nada, nem sequer posso dizer que se fosse hoje iria ser diferente. Não pode ser diferente. Cada clube tem a sua forma de trabalhar. E se um jogador não se adapta a essa filosofia, fica sem jogar. Sempre fui um atleta muito competitivo e educado para vencer. Os poucos períodos da minha carreira em que estive sem jogar foram extremamente dolorosos. Não queria repetir essa sensação e aceitei tudo aquilo (literalmente) de braços abertos. Foi como entrar numa sala e ter de escolher entre duas portas. Atrás da primeira porta está a aceitação e consequente oportunidade para trabalhar em igualdade com os colegas. Atrás da segunda porta está a falta de oportunidades para jogar, diminuição do estatuto profissional, consequente passagem para a lista de dispensas e, no final, o desemprego. Acima de tudo, aquela era a nossa profissão e queríamos estar em condições de a desempenhar bem. Se tomar doping era a única solução para jogar futebol naquela equipa, então que fosse. A nível profissional foi um ano excelente. Fui quase sempre titular, fiz grandes exibições e ajudei o clube a alcançar os seus objectivos.
CAPÍTULO DEZ A MINHA HISTÓRIA COM O DOPING — PARTE 2 30 de Maio de 1997. O programa Donos da Bola, da SIC, exibe uma reportagem que irá abalar o futebol português. Com recurso a uma câmara oculta, um jornalista faz-se passar por um dirigente que está interessado em comprar alguns estupefacientes para que os seus jogadores possam correr mais. Na história inventada faltam duas jornadas para o fim do campeonato e a equipa desse dirigente precisa de ganhar esses dois jogos para garantir a manutenção. Depois de alguma investigação, o jornalista consegue o contacto de um médico que tem fama de facilitar este tipo de situações aos clubes interessados. Numa quarta-feira de manhã, esse mesmo médico recebe o pretenso dirigente na sua clínica privada, em Matosinhos, e é filmado, em flagrante, a vender-lhe uma caixa de comprimidos de Centramina (sulfato de anfetamina) por 40 contos. Durante a conversa, o médico, sem saber que está a ser filmado, dá uma verdadeira lição sobre produtos dopantes. Questionado pelo jornalista, começa por falar de Pervitin, uma meta-anfetamina disponível em comprimidos ou ampolas que conheço bastante bem: usei Pervitin várias vezes na minha carreira. Era fortíssimo. «Quando o Pervitin se vendia nas farmácias, cheguei a comprar uma caixa por 500 escudos. Agora, no mercado negro, pedem 140 contos por uma caixa [ ... ]. As injecções têm 15 miligramas de produto activo e os comprimidos apenas a miligramas. A injecção tem também a vantagem de fazer efeito imediato, enquanto que o comprimido precisa de ser tomado uma hora antes», explica o médico. Para além dos ensinamentos técnicos, o clínico em causa, recorda a sua experiência num clube onde tinha trabalhado nos dois anos anteriores e revela possuir contactos que lhe permitiam saber quando eram realizados os controlos antidoping. «Como sabia sempre dos controlos, aquilo era na boa. Andei a época toda a saber.» Mais tarde, o médico chega mesmo a oferecer o seu contacto caso o dirigente não tenha forma de saber. No entanto, o jornalista prefere não aceitar. «Também tenho o controlo do controlo», responde. Mais experiente nestas matérias, o médico salienta a importância de serem poucas as pessoas com acesso ao balneário no momento do doping. «Normalmente as
coisas passam pelo massagista. O jogador sabe sempre o que está a tomar porque, regra geral, já tomou noutra fase da sua carreira [ ... ] e a melhor forma para aceitar é ter uma boa relação com o massagista. Os jogadores devem estar sozinhos com o massagista no balneário. Não devem andar lá dirigentes nem treinadores.» Diz ainda: «Nas equipas onde andei nunca via ninguém tomar. Há quem queira e quem não queira. Muitas vezes, quando um jogador sabe que o outro não toma, até prefere pedir ao massagista para tomar às escondidas.» A pergunta de quantos jogadores deveriam tomar, o médico não tem dúvidas: «Numa situação destas [urgência de resultados] convinha que grande parte tomasse.». Embora diga que não se pode forçar quem não queira tomar e que também é contra o facto de enganar os jogadores (dizendo-lhes que estão a ingerir um produto legal), explica como se faz, caso o tal dirigente pretenda mentir aos seus atletas: «Pode meter [o produto dopante] dentro de uma cápsula e dizer que é cafeína. A cafeína admite-se na boa.» O médico fala também «da cafeína que se vende em Espanha, o Durvitan», mas diz que este produto não serve para esta situação porque tem «um efeito retardado de oito horas». A Centramina é o fármaco indicado para responder às necessidades desportivas do Covilhã: «Os comprimidos tomam-se uma hora e um quarto antes do jogo. Pode dar-lhes com café ou com água. [ ... ] Como são dois jogos, e é só para estes dois jogos, quem tomar deve tomar dois de uma só vez.» Este aumento da quantidade é um lema do doping desportivo que tive o infortúnio de experimentar várias vezes — quanto maior o desafio, maior deve ser a dose. Depois de apresentada a cafeína e a Centramina, o médico fala de outros produtos que tinha utilizado enquanto clínico desportivo. «Agora já não utilizo muito [a cafeína]. Quando há controlo, uso uma coisa que os ciclistas me arranjaram. [ ... ] Ê o Ozotine, um imunomodulador. Melhora a parte respiratória. São umas ampolas com mistura de vários produtos. Mete-se um bocadinho de cafeína também injectada, faz-se uma seringa com 1o ou 15 centímetros cúbicos e depois cada um toma 1,5 centímetros cúbicos.» Na minha carreira também tomei algumas vezes um produto que me disseram servir para melhorar a respiração. Ainda na reportagem da SIC, já depois de ter feito estas explicações, e de ter vendido a caixa com ao comprimidos de Centramina, o médico mostrou algum receio pela inexperiência do pretenso director do Covilhã e voltou a dar mais alguns conselhos: «Ê muito importante fazer sentir aos atletas que está tudo controlado [que não há perigo de serem apanhados no controlo antidoping].»
Depois lembrou a importância que o doping teve na carreira do clube onde tinha trabalhado anteriormente: «Entrei no ano em que eles estavam para descer. Caí lá de pára-quedas no final de Março. [ ... ] Estivemos para descer e não descemos por causa destas coisas. Tem de ser. Não há outro remédio. A base disto e dos árbitros, porque isto não chega para meter golos. Os árbitros também são muito importantes.» Depois da reportagem, o programa da SIC mostra reacções de várias personalidades. Um cardiologista e especialista em medicina desportiva falou dos riscos provocados pelas anfetaminas: «Pode induzir a arritmias graves e provocar a morte dos atletas, sobretudo se estes ingerirem doses elevadas. Anfetaminas são fármacos perigosos.» Esta opinião foi também defendida por outro clínico com experiência em medicina desportiva: «O atleta ultrapassa os seus limites e pode pôr em risco a sua saúde. A hipertensão arterial [causada pelas anfetaminas] pode provocar colapso.» A reportagem teve um grande efeito mediático nessa época e serviu para espantar e surpreender o público que tinha uma ideia mais inocente sobre os meandros do futebol português. Houve reacções de choque, surpresa e escândalo. Alguns adeptos, jornalistas, treinadores e jogadores mostraram-se incrédulos perante a existência de uma realidade tão severa. No meu caso, contudo, não foi surpresa nenhuma. Ainda antes desta reportagem ir para o ar, já eu tivera experiências conscientes com doping e os dados que eram levantados nesta peça jornalística estavam bem longe de ser uma realidade desconhecida para mim. Nesta altura, a minha idade da inocência e da ignorância já tinha passado. Num clube onde joguei vivi muitas situações semelhantes às que são relatadas na famosa reportagem da SIC. Quando lá cheguei, estranhei o facto de termos um médico que morava longe da nossa cidade e que só podia aparecer nas nossas instalações a partir de quinta-feira. Mas demorei pouco tempo a perceber que essa distância geográfica não trazia qualquer desvantagem à equipa. Antes pelo contrário. Lembro-me que houve muito cuidado na abordagem inicial feita aos jogadores. Primeiro disseram-nos que nos iriam dar produtos cem por cento naturais para melhorar a nossa capacidade física. Não sei que produtos eram esses, mas a verdade é que resultavam plenamente. Jogo após jogo, sentia-me mais forte e com poder físico para fazer frente a qualquer adversário. Acredito que, algumas vezes, nos tivessem dado produtos legais (ou produtos que
não acusavam no controlo), mas não era sempre. Longe disso. Antes de chegar ali, já tinha tomado doping e conhecia perfeitamente os métodos utilizados e os efeitos primários e secundários. Nesse clube levei várias injecções de Pervitin (como já tinha levado anteriormente noutra equipa) e de mais algumas substâncias dopantes. Até mesmo esses supostos produtos naturais eram administrados sobre a forma de vacina, sempre antes dos jogos. E davam-me mais força. Tal como aconteceu numa experiência anterior, o médico nunca estava no balneário sempre que tomávamos alguma coisa. Continuava a ser o massagista quem nos dava todos os fármacos, fossem comprimidos ou injecções. Fossem legais ou ilegais. Fossem pacíficos ou perigosos. Neste clube, todavia, existia um maior cuidado na administração de substâncias ilícitas e no receio de eventuais controlos antidoping positivos. Essa postura mais cautelosa resultava de uma maior capacidade de acesso a informação confidencial, como vim a saber durante a época. Tal como se falou nessa reportagem da SIC, neste clube, o nosso médico também se gabava insistentemente de ter um contacto de alguém que o informava com antecedência de quais os jogos em que iria haver controlo antidoping. Aqui entra a tal necessidade de «fazer sentir aos atletas que está tudo controlado». Assim, se um jogo fosse ao domingo, o nosso médico sabia na sexta ou no sábado quais as partidas que iriam estar sobre a tutela do controlo antidoping. Mal tinha acesso à informação, avisava todo o plantel e o dia de jogo acabava por ser directamente influenciado por essa dica. Se não houvesse controlo, havia estimulantes. Quando havia controlo... piava mais fino. O contacto dele deveria mesmo ser muito eficaz porque, das poucas vezes em que fui controlado essa época, nunca acusei nada. Nem eu, nem os meus colegas. Se bem que uma vez vivi um episódio estranho. Os controlos antidoping eram sempre realizados numa salinha que tinha uma casa de banho anexada. Para não estarmos a urinar ao lado do médico, íamos a essa casa de banho. Após um jogo fui chamado ao controlo. Era uma médica que estava na sala. Enquanto eu tentava urinar para dentro do frasquinho, ela veio pôr-se mesmo ao meu lado, a observar-me com a cara espetada ali em cima. Aquilo incomodou-me de tal forma que nem estava a conseguir urinar. «Peço imensa desculpa, mas assim não consigo», tive de lhe dizer. Ela afastou-se um bocadinho, mas continuou ali em pleno processo de observação não participante (é preciso frisar isto por causa dos leitores mais perversos). O certo é que estive quase uma hora para conseguir urinar. Talvez aquela senhora estivesse tão próxima de mim
por poderem existir algumas suspeitas em relação à nossa equipa médica. Nos tempos em que joguei dizia-se com frequência que muitos jogadores levavam urina de outras pessoas para o controlo de forma a não serem apanhados. Estavam ali um bocado, urinavam e, no fim, trocavam os frascos, entregando o frasco com a urina limpa ao clínico responsável pelo antidoping. Falava-se que esta situação era habitual em alguns clubes, embora nunca tenha estado envolvido numa troca de urina. No entanto, a proximidade daquela médica impedia-me de tentar semelhante proeza se essa fosse a minha intenção. Ali, naquele sítio, não lhe escapava nada. Se eu quiser ser convencido, também posso sempre afirmar que, em vez de possíveis suspeições ou desconfianças, a médica queria apenas ficar a ver o meu «instrumento». Mas não me parece. Apesar deste episódio, os controlos a este clube eram escassos e decorriam com normalidade. Os jogadores tinham, habitualmente, caminho livre para tomar as várias substâncias propostas pelo departamento médico. E aqui aproveito para dizer novamente que não me arrependo de ter feito parte de certas experiências. Os produtos que ingeri — fossem naturais, seminaturais ou totalmente químicos — davam-me mais força e ajudaram-me a fazer uma das melhores épocas da minha carreira. Tomei tudo de forma consciente e sabia que estava a correr um risco calculado no plano desportivo (o risco de saúde não era calculado, mas, felizmente, até hoje ainda não tive nenhum problema). Sabíamos sempre quando havia controlo e, por isso, não tomávamos nesses dias. Também tínhamos noção de que a força dada por aquelas substâncias poderia ajudar-nos a fazer contratos financeiramente mais aliciantes. Nessa época já não era muito jovem e sabia que aquela seria uma grande oportunidade para poder vir a melhorar a minha situação desportiva. E foi mesmo. As soluções mágicas oferecidas pelo nosso departamento clínico catapultaram-me para uma grande temporada. Neste clube também não posso afirmar se existia conhecimento por parte de dirigentes e equipa técnica. Nunca estavam no balneário aquando do ritual de administração. Tal como se afirma na reportagem da SIC, quando o doping é dado, massagista e jogadores devem ser os únicos que estão no balneário. Pelo menos comigo sempre foi assim. Devido a esse isolamento, torna-se muito difícil para um jogador afirmar se há mais alguém que tenha conhecimento. Enquanto está ali, sozinho com o massagista, esse atleta nunca tem hipótese de provar se o doping entrou no clube por intermédio de um dirigente, de um treinador ou se é da exclusiva responsabilidade de um elemento do departamento médico. Durante todos os anos
em que joguei futebol, nunca tive um treinador que me obrigasse a tomar alguma coisa. Com os treinadores fala-se de futebol. Não há conversas sobre fármacos. E para além do doping, nessa época tinha um grande treinador e colegas com muita qualidade. Mas seria muito injusto se não estendesse os elogios ao médico e massagista que nos ajudavam diariamente a chegarmos mais alto e mais longe do que os nossos adversários. Com recurso a diferentes gamas de produtos, fizeram de nós uma equipa resistente e impermeável ao cansaço. Na reportagem da SIC falou-se de vários fármacos, das formas de os administrar e de eventuais contactos que ajudavam a perpetuar a ilegalidade. Posso apenas dizer que conheço por dentro todas essas realidades. Já conhecia na altura. Em alguns clubes onde joguei tomei Pervitin, Centramina, Ozotine, cafeína, entre muitas outras coisas das quais nunca soube o nome, mas senti os efeitos. Também tive um médico que nos dizia quando iam existir controlos. Também estava invariavelmente sozinho com os colegas e o massagista de serviço sempre que tínhamos de tomar alguma coisa. E também sempre concordei em tomar doping quando as exigências desportivas aumentavam e precisavam de ser cumpridas. Parece que nesse dia em que a SIC mostrou a reportagem, Portugal ficou a saber que havia doping no seu futebol. Quem me dera ter tido conhecimento dessa mesma realidade pela televisão. Aquilo que sei não descobri pela televisão, não li em jornais, nem me contaram numa conversa de café. Vivi esses episódios em balneários e em terrenos de jogo. Experimentei esse lado oculto do futebol em pleno exercício da minha profissão. Sim, caros leitores, há doping no futebol português. Há muitos anos. Em vários clubes. Chega lá de diferentes formas, é testado de várias maneiras e é consumido apenas pelos atletas. Dá força, dá ressaca, dá alegria, dá angústia. É bom e é uma merda. Deu-me jeito algumas vezes, fez-me sentir mal noutras. Mas era melhor se não houvesse. Como também era bom se não existissem árbitros comprados, dirigentes corruptos, jogadores violentos ou adeptos doentes. Mas tudo isto existe. Apenas evoluem os métodos, de modo a que estas coisas possam continuar dentro do jogo sem que as pessoas responsáveis sejam apanhadas. Durante os vários anos em que andei no futebol com conhecimento de doping, nunca vi ninguém ser devidamente punido por agir à margem da lei. Nada se prova, ninguém é preso, a impunidade é total. Não há homem justo ou bem intencionado que resista às redes do poder megalómano e criminoso que se vai instalando no futebol português através das mais variadas ramificações. O doping é apenas um desses tentáculos do mal que poluem a verdadeira essência do jogo. Um tentáculo que tem um alvo: o profissional de futebol. É este o atleta capaz de fazer uma
grande exibição que não teria conseguido alcançar sem o brutal efeito de um estimulante. E também é este o atleta que um dia pode cair para o lado com um ataque cardíaco que não teria de sofrer se não fosse a terrível consequência do mesmo estimulante. Em última análise, é este o jogo que os senhores pagam para ver. Nem tudo é verdade, mas nem tudo é mentira. E o doping é verdade. Uma triste verdade.
CAPÍTULO ONZE PORTUGAL: A CAMISOLA MAIS BONITA Em determinada temporada da minha carreira estou a realizar uma grande época ao serviço do meu clube e, por causa desses bons desempenhos, sou convocado para um encontro particular da Selecção Nacional. Nesse ano a equipa portuguesa estava apurada para uma fase final. Sei que aquela convocatória é a última oportunidade que tenho para me mostrar em grande nível e tentar fazer parte dos eleitos que irão viajar para essa competição no Verão. Faço uma primeira parte fantástica, mas ao intervalo começo a sentir-me cansado e tenho medo de não aguentar o mesmo ritmo na segunda metade. Decido, por isso, pedir ajuda a um profissional conhecedor de estimulantes. O jogo realiza-se num estádio português e conta com a presença de muitas pessoas que conheço ligadas a vários clubes. Estão lá um médico e um massagista de um clube onde jogo. Embora não pertençam ao corpo clínico da Selecção, têm facilidade em mexerem-se dentro das instalações daquele estádio. No intervalo peço a esse médico para me dar uma das suas injecções de doping. Saio do balneário da Selecção, sem que ninguém se aperceba, e entro numa salinha ao lado. É aí que esse médico e o seu massagista me dão a injecção pedida por mim. Volto a frisar que ninguém da Selecção se apercebeu. O efeito é praticamente imediato e renova-me os músculos (como era um jogo particular, sabia que não havia controlo e, por isso, resolvi arriscar). Se noutros momentos da minha carreira o doping me apareceu pela frente de forma quase incontornável, desta vez fui eu quem o procurou. Não tenho orgulho nesta atitude, mas estou aqui para contar a verdade. Na segunda parte, consigo continuar a exibir-me em grande estilo e sou um dos responsáveis máximos pela nossa vitória. No dia seguinte, a generalidade da imprensa desportiva considera-me um dos melhores em campo. O seleccionador também fica convencido e resolve incluir-me na lista de pré-convocados para a fase final da prova que se irá realizar no Verão — normalmente, antes das fases finais, os seleccionadores escolhem um primeiro grupo de vinte e oito jogadores, do qual sairão os vinte e dois eleitos finais. No final da época, tive então oportunidade de participar nos testes físicos dos
pré-convocados, que se realizaram num campo dos arredores de Lisboa. No entanto, quando chegou a minha vez de fazer os testes de velocidade, nem me conseguia mexer. Até Vítor Baía, que era guarda-redes da Selecção, conseguiu ser mais rápido do que eu. Face à forma lastimável em que me apresentei, fiquei fora dos convocados. E qual o motivo para eu estar tão mal fisicamente? Doping, claro. A única substância que consegue ser boa e má, ao mesmo tempo. Um jogador que consome estimulantes durante uma época inteira irá ter um momento de forte quebra física. Jogo após jogo, o corpo é obrigado a um esforço para o qual não está preparado naturalmente. O doping surge como forma de adiar e enganar esse cansaço. Tem um efeito imediato, mas, mais cedo ou mais tarde, o atleta irá ressentir-se da violência muscular. Os departamentos médicos dos clubes tentam que essa fadiga aconteça após o final da época, ou na ponta final da época, contudo, alguns deles, não conseguem adiar durante tanto tempo. Várias vezes observamos equipas que estão com muita força na primeira volta de um campeonato, mas que depois ficam de rastos durante a segunda metade da temporada. No meu caso, consegui manter os níveis de força até muito perto do fim. Mas quando a temporada acabou, o organismo não dava para mais. Tinha de repousar. Apresentei-me no estágio de pré-convocados completamente esgotado. O cansaço acumulado de uma época inteira, disfarçado por vários tipos de substâncias, contribuiu muito para a minha débil condição física. Por outro lado, a força dada por esses estimulantes também me permitiu fazer parte daquela lista de pré-convocados. Pena que o corpo não desse para mais. Perdi ali a oportunidade de representar Portugal na fase final de uma competição e nunca mais voltei a estar tão perto de atingir esse feito. Esta foi a minha única história de doping na Selecção. Uma história que não nasce dentro da Selecção, mas que apenas aparece por minha vontade e pela disponibilidade do médico e do massagista de um clube onde joguei. O departamento clínico português nem sonhava com tal situação. Este episódio foi realizado completamente à margem da Selecção. Nos vários anos em que representei Portugal, nunca ninguém me propôs a utilização de doping. As selecções estão sujeitas a um grande controlo feito pelos organismos internacionais, e julgo que nem sequer arriscam a possibilidade de entrar nesses estratagemas. Creio que se, por vezes, um jogador é apanhado com doping ao serviço do seu país, isso acontece porque o atleta em causa agiu sozinho. Pedi a ajuda do tal médico nesse jogo apenas pelo amor que sentia quando representava o meu país. Queria fechar com chave de ouro uma época que me
correu lindamente no plano desportivo. Por Portugal valia a pena mais um esforço. Mais uma injecção. Representei vários clubes, participei em muitos jogos e ganhei alguns títulos. Mas o momento mais alto da minha carreira foi poder vestir a camisola de Portugal. Tive o privilégio de ser internacional em todas as categorias e cheguei a ser capitão de equipa nas camadas jovens. Enquanto sénior fui chamado à Selecção Nacional por catorze ocasiões, entre jogos oficiais e partidas amigáveis. Gostava de ter ido mais vezes, porque era sempre um grande orgulho. Ainda assim, posso dizer que lá estive. A minha primeira ida à Selecção aconteceu após o Mundial de 1986, realizado no México. Como alguns se devem lembrar, essa competição entrou para a história do futebol português pelos piores motivos. Durante os dias da prova houve vários escândalos que envolveram a equipa. Os jogadores chegaram mesmo a ameaçar fazer greve por estarem descontentes com o valor monetário dos prémios de jogo. Segundo eles, também tiveram de participar em anúncios publicitários, mas o dinheiro oriundo dessas empresas promovidas ficava inteiramente para a Federação Portuguesa de Futebol (FPF). Eu ainda não era desse tempo, mas lembro-me perfeitamente que foi um caso bicudo, imortalizado no vocabulário e na memória do futebol português como o «caso Saltillo», cidade mexicana onde a equipa estava a estagiar. Perante tanta agitação, a campanha portuguesa foi, naturalmente, desastrosa. Depois de uma primeira vitória sobre Inglaterra, seguiram-se duas derrotas (frente a Polónia e Marrocos) que redundaram na eliminação precoce do conjunto das quinas. As divergências, contudo, não acabaram com o fim do Mundial. Ao regressarem a Portugal, os jogadores decidiram fazer greve à Selecção durante tempo indeterminado, até que a FPF pagasse o dinheiro ambicionado. De todos esses jogadores, o defesa-esquerdo do Benfica, Álvaro Magalhães, resolveu furar a greve e regressar à Selecção logo após o Mundial. Essa decisão motivou várias críticas por parte dos outros jogadores, que chegaram mesmo a mostrar o seu descontentamento com Álvaro em algumas entrevistas. É neste período de grande turbulência que entro na Selecção. Devido à greve dos jogadores do Mundial, fui convocado para uma equipa completamente renovada que iria iniciar a fase de apuramento para o Euro 88. O meu primeiro jogo teve lugar no Estádio Nacional, frente à Suécia. Empatámos 1-1. Tive oportunidade de ser titular e senti uma alegria monstruosa quando ouvi o
hino naquele bonito palco. Nessa altura, o Jamor ainda recebia os jogos da principal equipa portuguesa. Havia muita vontade no grupo de trabalho, qualidade individual e talento colectivo para atingir os objectivos, mas a FPF era terrivelmente desorganizada e muito diferente da actualidade. Depois de alguns jogos, e de várias desilusões, ficámos fora do Euro 88 — algo absolutamente normal nesse tempo. Para esse insucesso, também contribuiu o mau ambiente que se acercava da Selecção, devido à greve dos seus jogadores mais influentes. Recordo que todo o problema anterior à minha chegada foi causado por dinheiro. Mas as conversas materiais, que já tinham lugar em 1986, continuaram presentes ao longo dos anos. Nas várias fases em que estive na Selecção, a FPF pagava pouco e os jogadores tentavam sempre reivindicar um aumento dos prémios. Durante os estágios, o plantel reunia-se no quarto de um dos jogadores, ou na sala de estar do hotel, para discutir sobre a verba que se iria pedir. Depois de todos chegarem a um consenso, o capitão ia ter com os dirigentes da FPF e apresentava o valor. Normalmente pagavam-nos menos do que pedíamos, mas isso não impedia que fossemos lá negociar verbas superiores quando julgávamos ser essa a atitude mais justa. E creio que ainda hoje deve ser assim. Essa prática tornou-se normal no interior da Selecção. Fazia parte do programa dos estágios, independentemente dos jogadores presentes. Tanto acontecia entre grupos de trabalho que se conheciam bem, como no seio de outros que tinham um relacionamento mais distante. O ambiente que vivi nos primeiros anos de Selecção (após Saltillo) era, na verdade, de alguma frieza. Nas refeições, por exemplo, os jogadores do Porto iam para uma mesa, os do Benfica sentavam-se noutra, e os do Sporting, que eram poucos, ficavam também no canto deles, juntamente com os que vinham da Académica ou do Boavista. No fundo, existiam vários grupos dentro do mesmo grupo. Também é preciso ter em conta que nesse período havia menos jogos de selecção. Os atletas encontravam-se três ou quatro vezes por ano e não tinham tempo de criar grandes laços. Mais tarde, a meio da década de 90, pude observar as melhorias nesse relacionamento, porque começaram a haver mais jogos (que resultavam em mais tempo de confraternização), os jogadores também eram diferentes e alguns deles já se conheciam desde as selecções jovens (como Figo, Rui Costa, João Pinto ou Fernando Couto). Mas, fosse qual fosse o período, sempre reinou um certo sentimento de burguesia. Dizia-se que os jogadores iam à Selecção para descansar e ganhar algum dinheiro. Havia um treino por dia, pouco exigente, depois
passávamos o resto do tempo em estágio, deitados, a jogar às cartas ou a dormir. De vez em quando lá fazíamos um passeio a pé junto ao hotel, andávamos ali às voltas um bocado, e de seguida subíamos novamente aos quartos para descansar mais um bocadinho. Era descanso a mais. As vezes chegava a ser aborrecido. Eu, pessoalmente, nunca gostei desse estilo de estágios muito relaxados: têm o efeito de amolecer a equipa. Por isso é que certos jogadores tentavam encontrar soluções divertidas para combater o tédio. E, nestas coisas, o melhor divertimento de todos costuma ter uma cara bonita, longas pernas e formas curvilíneas. Obviamente que era proibido ter mulheres dentro dos quartos, mas era uma daquelas regras que os jogadores conseguiam sempre contornar, fosse qual fosse a época ou o treinador. Durante as minhas catorze internacionalizações fui treinado por Rui Seabra e Juca (logo no início após Saltillo), Carlos Queiroz (de seguida), António Oliveira e Artur Jorge. Por mais vigilantes que fossem, dava sempre para tornear a fiscalização e arranjar divertimento. Estava previamente estabelecida uma hora de recolher obrigatório. Podia ser às 22 ou às 23 horas. Pouco depois, os elementos da equipa técnica faziam uma ronda para ver se estava tudo bem. Os jogadores fingiam já estar a dormir ou a preparemse para se deitar, mas quando a vigilância acabava conseguiam chamar mulheres para os quartos. Não eram necessariamente prostitutas. Lembro-me do mediático «caso Paula» durante um estágio da Selecção, em que alegadamente vários jogadores estavam com prostitutas dentro dos quartos. Mas nessa altura eu não estava lá. Nas vezes que fui, repito, podiam não ser necessariamente prostitutas e nem precisavam de ser. Como se sabe, os jogadores de futebol, em especial os da Selecção, sempre tiveram muitas mulheres atrás deles, interessadas em estar com eles sexualmente. Essa vantagem faz parte de uma profissão que nos torna famosos e que nos obriga a estar em forma fisicamente. E, durante os estágios, era fácil subir com uma mulher desconhecida para o quarto e ter uma boa noite de sexo. Podia ser uma empregada do hotel, uma hóspede ou uma amiga a quem se ligava para aparecer. Com algum cuidado, o jogador nunca era apanhado. Pelo menos, das vezes que fui à Selecção, nunca apanharam ninguém. Como disse anteriormente, passava lá um elemento da equipa técnica para fazer a ronda após o recolher obrigatório, mas depois essa pessoa ia-se deitar. A partir daí ficava ao critério de cada jogador o que fazer a seguir. Uns preferiam descansar, outros optavam por uma boa «queca» antes de dormir. Simples. Claro que alguns treinadores inspiravam mais cuidados do que outros. Carlos Queiroz foi o seleccionador menos vigilante que apanhei. António Oliveira foi o
mais controlador. Também aconteceu durante o seu período, claro, mas menos vezes. Agora já sei que se vão começar a rir com o que vou dizer, mas tenho de arriscar. Eu nunca estive directamente envolvido nesses filmes de mulheres dentro dos estágios. Nem nos clubes, nem nas selecções. Admito tudo aquilo que fiz, mas não posso admitir o que não fiz. Já nos tempos de Benfica tive várias oportunidades para estar com mulheres nos estágios (aí eram mesmo prostitutas), mas nunca fez muito o meu estilo. Sou um tipo mais discreto nessas coisas. Como qualquer homem heterossexual, gosto muito de mulheres e não dispenso uma boa «queca», mas nos estágios não estava para aí virado. Acreditem ou não, eu era daqueles que ficava a jogar às cartas ou a dormir, enquanto os outros, nos quartos ao lado, se divertiam com as suas companheiras. Quando saísse dali, logo iria ter tempo para relações sexuais sem precisar de estar preocupado com vigilâncias. Foder às escondidas nunca foi coisa que me excitasse particularmente. No caso de Portugal, estou apenas a falar de uma situação que existia e à qual assisti em determinadas ocasiões. Mas apesar de já estar fora da Selecção há muitos anos, acredito que ainda hoje aconteça. Basta ver que durante os últimos Europeus e Mundiais, alguns jogadores abandonavam o estágio, apanhavam um avião particular e iam assinar um contrato a qualquer lado. Acham que iam sozinhos dentro do avião? O mesmo se pode dizer das folgas. Aqueles que são casados vão ter com as mulheres, os que não são casados vão ter com as suas amigas ou namoradas. Em muitos casos, o sexo é fundamental para descomprimir antes de um jogo importante. Relaxa, tira stress, elimina ansiedade e lava a alma. Fora isso, os estágios na Selecção eram absolutamente normais. Bebíamos umas cervejinhas nos quartos, tiradas do minibar, falávamos e víamos televisão. Nada de especial, tudo corria com muita tranquilidade. Esse espírito de calma só esteve ausente nos meus primeiros tempos de Selecção, quando ainda se respiravam os efeitos de choque do caso Saltillo. Voltando a falar de futebol, ficámos afastados do Euro 88 e haveríamos de permanecer arredados de fases finais durante vários anos. A etapa que decorreu entre 1986 e 1994 foi das mais fracassadas para Portugal. Mas enquanto os seniores pós-México 86 falhavam, começava a despontar uma geração de jovens da qual iriam sair jogadores históricos do futebol português. Pelas mãos do treinador Carlos Queiroz, Portugal foi bicampeão do Mundo de sub20, primeiro em Riade (1989), e depois em Lisboa (1991). Na sequência destes dois sucessos, o professor Queiroz ascendeu naturalmente à equipa principal e apostou
em muitos dos jovens com quem tinha trabalhado anteriormente. É nesta fase que começam a aparecer nomes como João Pinto, Rui Costa, Fernando Couto ou o enorme Luís Figo. A juntar a estes jovens, Queiroz também passou a convocar jogadores com mais alguma experiência — nos quais eu estava incluído. Por estranho que possa parecer, o período em que fui mais vezes chamado à Selecção Nacional coincidiu com a época em que nunca era titular no Benfica (por causa de Eriksson). Mesmo sem jogar, Queiroz acreditou no meu potencial e deume oportunidade de vestir aquela camisola várias vezes. Hoje em dia, o professor divide opiniões entre os que admiram o seu trabalho e aqueles que consideram que não reúne condições para ser seleccionador nacional nesta sua segunda passagem pela equipa. Pela parte que me toca, posso dizer que gostei muito de trabalhar com ele. É honesto, competente e merece sorte. Tive o raro privilégio de poder conhecer os seus métodos de treino e a sua facilidade de relacionamento com os jogadores. Mas, naquela altura, ganhar em Portugal era quase uma miragem por causa da estrutura pouco profissionalizada e deficiente capacidade financeira da FPF. Não havia espaço nem condições para operar grandes melhorias. Foi uma pena para o país e especialmente para mim, porque nunca tive oportunidade de representar Portugal numa fase final de um Europeu ou de um Mundial. Com as constantes mudanças de clubes na minha carreira, e as fortes atribulações da FPF ao longo da década de 90, sempre tive uma relação ocasional e efémera com a equipa. De muito tempo em muito tempo, lá havia alguém que se lembrava de Fernando Mendes. O meu período de gala no futebol português, como sabem, ocorreu nos anos em que representei o FC Porto. Era titular, jogava bem, marcava golos e ganhava títulos. Curiosamente, ou não, durante essas três épocas fui chamado à Selecção apenas uma vez. Foi na preparação para um jogo frente à Ucrânia a contar para o apuramento do Mundial de 1998, que se iria disputar em França, e onde, mais uma vez, Portugal não iria estar. O seleccionador era Artur Jorge, alguém que nunca me impressionou. Esse jogo frente à equipa ucraniana realizou-se no antigo Estádio das Antas e vencemos por uma bola a zero. Mas eu não joguei e nem sequer quis ficar no estádio para ver. Treinei a titular durante toda a semana, dei boas indicações, recebi o apoio da equipa técnica e, face ao bom desempenho, esperava vir a entrar na equipa inicial. Quando chegou o dia do jogo, porém, Artur Jorge preferiu deixar-me fora dos convocados e colocou Dimas a titular. Nem para o banco me chamou. Aquela decisão deixou-me passado e tive de reagir. Fiz questão de dizer o que pensava ao
próprio Artur Jorge e ao seu então adjunto, Rui Águas: «Não vale a pena convocarem-me porque eu não volto mais aqui.» Enquanto Artur Jorge fosse seleccionador não queria regressar à Selecção. Informei também António Oliveira (que nesse tempo era meu treinador no Porto) da minha decisão. A partir desse momento quis concentrar-me unicamente no clube. Na sequência do jogo frente à Ucrânia dei uma entrevista a um jornal desportivo e disse que a Selecção era como um Ferrari conduzido por um piloto manhoso, numa clara alusão à falta de competência que, na minha modesta opinião, Artur Jorge revelava para treinar aquela equipa. Obviamente que as minhas palavras não caíram bem junto dos responsáveis da FPF. Nesse momento, tive perfeita noção de que estava a escrever a última linha da minha história na Selecção Nacional. Pouco tempo depois, Artur Jorge abandonou o cargo, mas, nessa fase, já eu estava nos momentos finais da minha carreira. Antes disso, vivera as tais catorze internacionalizações em momentos distintos do futebol português. Nessas passagens sei que contribui para o sonho de criança de alguns colegas: jogadores como Luís Figo, Rui Costa, Paulo Sousa e Fernando Couto tiveram oportunidade de jogar a meu lado. Estou a brincar, claro. Tenho muita honra em ter trabalhado com esses grandes nomes — em especial Luís Figo que, no meu entender, é o maior embaixador de sempre do futebol português. Foram belíssimos momentos, mas, numa comparação directa com a actualidade, agora quase tudo é melhor do que nos vários períodos em que joguei pela Selecção. No entanto, costumo dizer na brincadeira que fui traído pelos tempos. Hoje há uma grande crise de laterais-esquerdos portugueses, algo que tem obrigado os últimos seleccionadores a fazerem adaptações de atletas para aquela posição. No meu tempo não era assim. Éramos vários e bons. Por isso, costumo dizer que se a minha carreira fosse a meio nesta altura, talvez já tivesse ultrapassado em larga escala essas tais catorze internacionalizações. Enfim... cada homem tem o seu tempo. Muitas ou poucas vezes, em jogos oficiais ou amigáveis, com este ou aquele seleccionador, senti um grande orgulho em vestir a camisola de Portugal e correr até à exaustão pelo meu país. Porque posso dizer, sem qualquer traço de xenofobia, que joguei pelo meu país. Custa-me um pouco ver jogadores naturalizados na Selecção, independentemente da qualidade que estes possam ter. Joguei com Deco no Porto e sei que é um enorme talento. Olho para Pepe e reconheço-lhe grandes qualidades. E também vejo muitos outros jogadores brasileiros com valor e que, certamente, poderiam ajudar Portugal a ser uma equipa mais forte. Mas, tal como um dia disse Luís Figo, «os hinos aprendem-se, mas não se sentem».
Hoje existem dois estrangeiros na Selecção e rumores sobre muitos outros que estão interessados e podem vir a ser chamados. Pergunto: onde é que isto vai parar? Será que daqui por uns tempos vemos um jogo de Portugal sem jogadores portugueses? Portugal é uma nação de futebol, o país de Figo, de Rui Costa, de Cristiano Ronaldo e de tantos outros talentos que continuam a aparecer. Esses jogadores devem ter oportunidade de representar o seu país, de correr pelas suas cores, de sentirem (como eu senti) a concretização de um sonho. Porque Portugal é a camisola mais bonita de todas, mas apenas para os portugueses. Bem sei que esta internacionalização de algumas selecções é consequência da globalização actual, mas é preciso agir antes que seja tarde de mais, se não o futebol corre riscos de perder a ligação com as suas raízes. E aqui também é preciso fazer uma distinção importante: é muito diferente utilizar um jogador naturalizado que vive no país desde criança, do que outro que chegou há três ou quatro anos e que vai representar a nossa Selecção apenas para colmatar uma necessidade desportiva de curto-prazo. Por razões linguísticas, os brasileiros estão muito próximos dos portugueses e, como referi, anteriormente, aqueles que estão na Selecção são bons, mas a qualidade é uma falsa questão. Por essa ordem de ideias qualquer dia olhamos para Portugal e podemos ver uma equipa composta por jogadores nascidos noutros países da Europa, na China, em África ou na Oceânia. O mais interessante neste jogo é saber que é praticado em todo o mundo e que cada povo tem um estilo diferente de jogar, mediante a sua cultura, fisionomia ou geografia. É fundamental que isso não se perca, que esse sentimento não seja corrompido. Quando vejo um jogo entre Itália e Portugal, espero ver um jogo entre italianos e portugueses. Só. Por isso lhe chamam «selecções nacionais». Eu representei a minha. E adorei.
CAPÍTULO DOZE FUTEBOL E FAMÍLIA Para um futebolista é fácil gerir a carreira. Mas é muito difícil desempenhar a profissão com competência e ter ainda capacidade para alimentar uma vida familiar saudável. Até à data só fui casado uma vez. Hoje sou divorciado ou, como gosto de dizer, «sou um solteiro usado, mas com garantia». Casei-me quando ainda estava no Benfica e divorciei-me já depois de deixar o Vitória de Setúbal. «Acontece aos melhores», como diria um amigo meu. E a verdade é que o tempo cura tudo, incluindo as separações. Mas fora de brincadeiras, reconheço que, após abandonar o futebol profissional, foi muito difícil passar a ter uma vida de casa, pacata, na harmonia do lar. Nos últimos anos em que jogava, pensava com frequência na chegada desse dia, no momento em que finalmente iria ter tempo para participar mais activamente na educação das minhas filhas, mas depois... o futebol vai-se, desaparece. Os anos de balneário, de jogos consecutivos, de constante competição são arrancados do nosso dia-a-dia. Tudo deixa de existir. De repente. Deixam de fazer parte de uma vida que nunca tinha conhecido outro desenrolar que não estivesse implicitamente ligado ao futebol. Quando tudo acaba, instala-se um vazio na alma. Começamos, quase instantaneamente, a sentir falta de acordar e ir para o treino. Achamos estranho o fim-de-semana em que não estamos a estagiar antes de rumarmos ao estádio para tentar mais uma vitória. Torna-se bastante difícil recuperar o conceito familiar após tantos anos em que a família ficou para trás por causa do futebol. Para mim, não foi nada fácil. O meu divórcio e a relação distante que hoje tenho com as minhas filhas (em especial com a mais velha) são o reflexo da vida que fiz enquanto competi. Ainda hoje estou a pagar por isso e vou pagar para sempre. A distância física sempre foi pequena porque, ao contrário de outros jogadores, tive a minha família perto de mim, tanto nos clubes de Lisboa como nos do Porto. Mas embora estivesse próximo, não estava lá. Passava a maior parte do tempo a treinar, a jogar, a estagiar. E nos poucos períodos em que estava em casa, tinha de aproveitar para repousar: o futebol profissional obriga a um grande dispêndio de energia e é fundamental que o jogador goze os momentos mortos para dormir ou descansar. Fundamental e inevitável, porque o corpo pede paz. E depois havia os
aspectos do lado negro. Como frisei noutros capítulos, em alguns clubes fui dopado com frequência. O estado de ressaca, neura e cansaço pós-doping, também me impediu de ser capaz de investir com mais qualidade numa vida familiar saudável. Ter pouco tempo, sem qualidade, condena qualquer hipótese de aproximação. Mesmo depois de abandonar a carreira, apesar das saudades que senti imediatamente, tentei recuperar uma relação de proximidade com as minhas filhas, mas já era tarde. Hoje, pago a factura de ter perseguido e vivido um sonho profissional, que me deu com uma mão e tirou com a outra. Reconheço agora que, por mais cansaço que se tenha, um pai deve ter sempre tempo e forças para os seus filhos e, nesse aspecto, facilitei bastante. A Sofia, hoje com 17 anos, foi a mais massacrada pela exigente profissão do pai. Viveu de perto um dos períodos da minha carreira em que fui mais bombardeado com doping. Fim-de-semana sim, fim-de-semana não, chegava a casa com tremendas ressacas de mau humor e nem sequer tinha paciência para brincar com ela. Com o passar dos anos, a Sofia foi crescendo e habituou-se mais à presença da mãe. O pai, quase sempre ausente por causa dos compromissos profissionais, foi passando para segundo, terceiro, quarto plano. Nunca pensei que, anos mais tarde, pudesse existir uma distância tão grande entre nós. Seja como for, tenho um grande sentimento de pai por ela. Vai ser sempre a minha princesa aconteça o que acontecer. Apesar de uma ligação emocional afastada, vejo com curiosidade que ela é bastante parecida comigo. Tem uma personalidade forte, é orgulhosa e despreocupada com a vida. Raramente leva desaforos para casa. Quando tem um problema ou lhe fazem uma crítica, põe para trás das costas com facilidade e segue a vida dela. Está a estudar Belas Artes e sonha ser artista. Tenho a certeza de que será uma grande artista, à sua maneira. A Inês, agora com Ia anos, não foi tão marcada pela minha ausência. Nasceu na primeira época em que representei o FC Porto. E, embora nos primeiros anos de vida dela, eu não estivesse muito presente, ainda fui a tempo de recuperar sentimentos. Na sua maneira de ser, é diferente da irmã mais velha e muito parecida com a mãe. Mais meiguinha, mais preocupada, muito responsável. Fica sempre bastante sentida quando a chamam à atenção de alguma coisa. É uma menina muito sensível, dócil e querida. Adora animais e talvez possa vir a ser veterinária, embora ainda tenha muito tempo para escolher.
Ambas nasceram quando eu jogava nas equipas do Porto, em fases distintas da minha carreira, mas sempre inibidoras de uma vida familiar activa. O período em que joguei no FC Porto, aliás, foi mesmo o mais complicado. Tínhamos campeonato, Taça de Portugal, competições europeias, treinos constantes, jogos à quarta e ao domingo. Durante essas três épocas, mais do que em qualquer fase da minha vida, passava o tempo a estagiar e a jogar. A minha ex-mulher chegava a levar as minhas filhas ao hotel para que eu as pudesse ver. E também é por causa disso que, muitas vezes, as pessoas tentam conquistar no presente aquilo que não tiveram no passado: hoje vivo perto das minhas filhas e quero que seja sempre assim. Chega de tempo perdido. Agora quero fazer aquilo que todos os pais desejam: acompanhar as primeiras paixões e desamores, rir-me com elas quando estão contentes, dar-lhes o meu ombro sempre que precisam de chorar e, um dia destes, levá-las ao altar quando descobrirem o amor da vida delas. Quero lá estar, como nem sempre estive. Quero ser o pai que elas merecem, como nem sempre consegui ser. Hoje faço tudo para reverter uma grande verdade da minha vida: aquilo que não dei como pai, tive a sorte de receber enquanto filho. A relação com os meus pais sempre foi muito tranquila. Tenho um feitio muito independente desde que me lembro e eles nunca me tentaram travar esse espírito. Comecei a ir sozinho para Lisboa ainda em criança, algo que me ajudou a manter uma certa distância afectiva. Claro que sempre adorei os meus pais, mas aprendi a não precisar de viver agarrado a eles para ter uma base emocional estável. E ainda bem que consegui reagir dessa maneira, porque o futebol também me obrigou a passar muito tempo longe deles, tanto em criança como em adulto. Também desfrutei da sorte por ter uns pais que sabiam dar-me espaço e que contribuíam com muita paz de espírito e amor sempre que estavam comigo. Sou de origens humildes. Venho de uma família simples (com costumes tradicionais), de gente trabalhadora e de bom coração. Por isso, também sei que os meus pais sofreram muito com o futebol e com todas as merdas que o envolvem. Como se lembram, toda esta história começa com os momentos de turbulência vividos por mim e pela minha família aquando da minha saída de Alvalade para a Luz. Tal como eu, a minha mãe e o meu pai também foram ameaçados nesse período. Esse terá sido, sem dúvida, o momento mais complicado para eles. Sofreram muito e recearam que me pudesse acontecer alguma coisa. Mas houve outros episódios indesejáveis. Sem nunca ter sido uma superestrela, fui uma figura relativamente mediática, por
causa dos clubes onde joguei. No efeito directo sobre os meus pais, essa fama tinha um lado bom e outro péssimo. Sentia-me muito contente por saber que eles iam ao café e ouviam as pessoas dizer bem do filho. «O Fernando joga muito bem. O Fernando fez um bom jogo. O Fernando marcou um grande golo.» Obviamente que esses elogios os enchiam de orgulho. Sou pai e também fico babado sempre que alguém de fora elogia as qualidades das minhas filhas. Mas depois havia a face negra da moeda. O meu pai teve de ouvir muita gente dizer-lhe mal de mim. Sobretudo adeptos do Benfica que não ficaram contentes com algumas posições públicas que tive sobre o clube: enquanto lá joguei nunca escondi descontentamento por não jogar e depois de sair disse várias vezes que não queria regressar. O Benfica, já se sabe, tem muitos adeptos e move grandes paixões. Havia gente que simplesmente não admitia que um jogador pudesse ter sentimentos de descontentamento em relação às pessoas que estavam no clube. Até vos faço uma espécie de quiz show. Perguntem a um benfiquista o que ele acha de Fernando Mendes: «Esse gajo? Um palhaço, um ordinário, um tipo detestável.» Parece que os estou a ouvir. Dizem isto porque é a opinião deles. Não posso censurar. Sempre tive muita raça a jogar. Tinha muita raiva, muita sede de competição e muita vontade de ganhar. Algumas pessoas não gostavam do meu estilo. E quem tinha alguma coisa contra mim, não sentia qualquer problema em ir ter com o meu pai e dizer mal. Os meus pais tiveram de aturar muito desaforo de gente que, pura e simplesmente, não sabia separar o desporto do ser humano (comportamento, infelizmente, típico no futebol português). Excluindo esses momentos desagradáveis e ofensivos, os meus pais tinham relativa facilidade em lidar com a minha profissão. Iam ver os jogos muitas vezes e nunca se assustavam. As vezes, vejo entrevistas a mães de jogadores em que elas dizem sentir muito medo quando vêem os filhos caírem ao chão agarrados a uma perna. Ao contrário dessas pessoas, os meus pais nunca se apavoravam perante a possibilidade de eu ficar lesionado. Primeiro porque raramente caía (era mais especialista em fazer tombar os outros), e nas poucas vezes em que me atirava para o relvado, estava quase sempre a fazer fita. E eles, melhor do que ninguém, sabiam perfeitamente distinguir o que podia ser sério do que era fingimento. Essa facilidade que os meus pais tinham em viver com a profissão de futebolista, também foi provocada por longos anos de ensinamento que começaram ainda na minha infância. Enquanto muitos jogadores iniciam a sua formação em clubes mais pequenos, eu tive a felicidade de ser criança e ter entrado para o Sporting. Foi um enorme orgulho poder estar a aprender num clube com uma filosofia ganhadora,
que me ajudou a crescer. Contudo, ao mesmo tempo que assimilava essa formação desportiva, não tive uma infância igual à dos outros miúdos. Um rapaz com 11 ou 12 anos que joga no Sporting não tem vida para brincadeiras. Casa-escola, escolatreino, treino-casa, no outro dia a mesma coisa. Hoje, por exemplo, não tenho um único amigo dos meus tempos de escola. Enquanto fui profissional, também não fiz muitos amigos, fora do futebol. Algumas pessoas afastavam-se de mim porque deviam pensar que eu tinha a mania dos vedetismos. Outras aproximavam-se apenas por interesse. Tenho mais amigos desde que deixei de ser jogador de alta competição. Pelo menos, amigos verdadeiros. Porque, no futebol, conhecemos muita gente enquanto estamos em alta, mas (salvo raras excepções) a maioria dessas pessoas não vale nada. São falsas, invejosas e perigosas. Além disso, no futebol também somos obrigados a crescer muito depressa. Apesar de vivermos com treinadores, jogadores e muitos adeptos, estamos completamente sozinhos. Temos de nos safar sem ajudas. Por isso, quanto mais depressa largarmos os tiques de miúdo, melhor. Virtude da actividade futebolística, fui obrigado a crescer de forma instantânea, mas irei fazer tudo para que as minhas filhas possam ter uma evolução mais consistente e pacífica. Devem ser crianças quando podem ser crianças e devem ser adultas quando tiverem de ser adultas. No fundo, devem crescer gradualmente. Sem choques e golpes profundos como os do pai. O futebol deu-me muito, mas também me deixou feridas, desilusões e manchas que marcaram bastante a minha personalidade actual. Foi, no entanto, a vida que escolhi, e agarrei-a com todas as suas vantagens e desvantagens. Carrego esse tempo na memória e guardo a família no peito: a minha querida mãe que ainda hoje está cá, o meu falecido pai que ocupa a cadeira de rei neste coração e que tem, ao lado dele, as minhas duas princesas. Os amores da minha vida. Hoje estou feliz por ver as mulheres em que elas se estão a tornar. A Sofia e à Inês posso apenas dizer uma coisa: tudo o que perdi no vosso crescimento, não voltarei a perder. Estarei aqui para vocês até ao dia em que a lei da vida me condene à eternidade. Nesse dia, partirei feliz por saber que deixei cá ficar duas filhas lindas.
CAPÍTULO TREZE JOGO DEPOIS DO JOGO Depois de abandonar o Vitória de Setúbal encerrei a minha carreira de futebolista profissional, mas não pendurei as botas definitivamente. Logo no ano seguinte, fiz parte da equipa técnica do Desportivo do Montijo, clube que, nessa altura, estava na 3.ª Divisão. Fui adjunto do treinador António Pereira, mas pouco tempo depois ele recebeu um convite, abandonou a equipa e ascendi a treinador principal. A experiência foi engraçada, mas curta. Nessa altura, tinha mais vontade em poder voltar a jogar do que em ser treinador. Ao fim de poucos jogos abandonei o cargo, fiquei uns tempos de fora, e regressei no final da época, como jogador, para ajudar o Montijo a garantir a manutenção. Esse foi o meu segundo regresso à competição depois de ter dito nunca mais voltar a jogar futebol (o primeiro tinha sido após a minha segunda passagem pelo Belenenses, antes de ir para Setúbal). Quando a época acabou no Montijo, ainda fui dar uma perninha ao São Marcos, um clube no Alentejo. Andei ali mais para matar o bichinho do futebol do que por outra coisa qualquer. Cansado, farto e gasto, nem sequer estive lá uma época. Quando disse «basta», voltei para o Montijo. Dediquei-me aos negócios e passei a fazer do futebol um passatempo de televisão. O Desportivo do Montijo, primeiro clube onde joguei antes de ir para as camadas jovens do Sporting, fechou as portas pouco tempo depois devido a dificuldades financeiras. Das cinzas do antigo emblema, nasceu o Olímpico do Montijo. Quase a mesma coisa, mas com pessoas melhores. O ambiente e a história de antigamente continuam presentes neste clube recém-nascido. Sou amigo de algumas pessoas que lá estão, admiro o esforço feito na tentativa de devolverem à cidade uma equipa competitiva e, por tudo isso, decidi ajudar. Mais uma vez regressei. Com 42 anos fui, até há bem pouco tempo, jogador do Olímpico do Montijo, da I.ª Divisão Distrital da AF Setúbal. E mesmo velhinho e cansado, ajudei a equipa a manter-se neste escalão. Nunca recebi um tostão deste clube, claro. Andei ali apenas para ajudar e para dar ao corpo e à mente mais uns jogos de satisfação. Mesmo nas distritais, deu para me divertir. Para gozar uns bons momentos na companhia de colegas, adversários e de uma bola que me acelera sempre o coração. Na cabeça nunca nos consideramos ex-futebolistas ou antigos
praticantes. É o corpo que nos diz isso. O corpo cicatrizado por tantos anos de competição, por tantas batalhas desportivas. Um corpo que, no meu caso, foi estimulado com muita porcaria durante várias temporadas. Mas as substâncias ilícitas estão longe de ser a única forma de alterar a verdade desportiva. Influenciar os árbitros continua a ser o caminho mais infalível. O exemplo que se segue teve lugar num poderoso clube onde joguei. Aconteceu várias vezes no intervalo de jogos disputados na nossa casa em que íamos para o intervalo a empatar ou a perder. Quando os árbitros entravam nos túneis de acesso ao balneário, chegavam a levar murros e pontapés dos nossos dirigentes. Na primeira vez que presenciei tal situação, achei aquele método muito mais eficaz do que pagar aos árbitros. Os dirigentes desse clube que representei não se preocupavam em gastar dinheiro. Murros e pontapés para cima deles. Ficava mais barato. Na segunda parte, os árbitros entravam de mansinho para dentro do campo e o jogo mudava imediatamente de figura. Começavam a surgir os lances que nos beneficiavam e que tornavam mais fáceis os jogos que estavam difíceis. É a lei do mais forte que sempre imperou no futebol português. Cheguei a ter jogos ao serviço de clubes grandes, em que eu e os meus colegas nos dávamos ao luxo de mandar um árbitro para a «puta que o pariu» sem que nada nos acontecesse. Em clubes mais pequenos, como o Estrela da Amadora ou o Vitória de Setúbal, passava-se precisamente o contrário: assim que nos preparávamos para abrir a boca já estávamos a ver o cartão amarelo. O futebol português está limitado ao poder de Benfica, Sporting e Porto. Por mais que as equipas pequenas tentem quebrar este domínio, vão sempre existir forças que as puxam para baixo e que impedem que as suas glórias transponham a barreira do efémero. Com a camisola dos três grandes, e mesmo com a do Boavista, disputei muitos jogos nos quais senti que estava a ser beneficiado. Até poderia ser apenas por simpatia ou pelo poder destes clubes, mas a verdade é que os grandes são protegidos por aquilo que representam. As notas dadas aos árbitros assumem capital importância nestes jogos. Um juiz que tenha uma má prestação contra um grande, terá de lidar com uma enorme pressão e, muitas vezes, é difícil para o Concelho de Arbitragem manter este árbitro perante a força contrária de um clube que tem poder e mediatismo para fazer valer a sua vontade. Quando um árbitro comete um erro grosseiro contra um clube importante, a punição costuma ser bem maior do que quando esse erro é cometido num jogo entre conjuntos que lutam
para não descer de divisão. Tal como os jogadores dessas equipas pequenas, também os árbitros sabem que os jogos entre os primeiros classificados são a melhor janela de oportunidade para mostrar serviço e subir na carreira. Ou para descer, se correr muito mal. Essas prestações revestem-se de grande importância num país onde se fala mais de arbitragens do que dos próprios jogadores. Por vezes, o barulho da opinião pública dá a ideia de que o atleta é uma espécie de elemento secundário ao jogo. Alguns atletas, na verdade, são pouco fundamentais. Mas existem outros que merecem respeito pela qualidade com que desempenham este jogo. Sempre dividi os praticantes de futebol em três categorias: os chutadores de bola, os jogadores de bola e os profissionais de futebol. Eu fui um profissional de futebol. Os pertencentes a este terceiro grupo são os melhores, os que tiram mais proveito do jogo (a nível financeiro e mediático), mas também aqueles que sofrem mais com os cancros que envolvem a modalidade. Em praticamente todos os clubes que representei, falava-se que alguns jogadores tinham de dar parte do seu salário a treinadores, dirigentes ou empresários para poderem estar inseridos nas equipas e terem oportunidade de jogar. Sempre se disse que esses treinadores exigiam uma percentagem do salário de um jogador que tinham ido buscar para a equipa. Com as direcções também se dizia que o processo era semelhante. Um jogador assinava contrato e ia passar a ganhar um salário elevado que era pago, naturalmente, com verbas do clube. Mas só ganhava esse salário se aceitasse pagar uma parte, por fora, a um ou mais dirigentes. No meu caso concreto, nunca precisei de pagar um tostão para poder jogar futebol. Embora alguns empresários tenham feito essa conversa para me facilitarem o processo de entrada em alguns clubes. Mas não se safaram. Fui o único futebolista português que jogou nos cinco clubes campeões nacionais. Sporting, Benfica, Boavista, Belenenses e Porto. Apesar de apenas ter ganho campeonatos em dois deles (Benfica e Porto), tenho esta curiosidade na carreira. E orgulho-me imenso de ter defendido tantos emblemas históricos sem nunca precisar de empresários. No tempo em que joguei, agentes desportivos como José Veiga e Jorge Mendes já andavam no mercado, mas nunca necessitei da ajuda de nenhum deles. Verdade seja dita, também os empresários raramente pediram para me representar. Deviam pensar: «Este gajo é tão ordinário que nem vale a pena.» Para eles não valia. Sem os aturar, sem lhes dar comissões, joguei sempre em equipas de topo. Já os treinadores e dirigentes nunca me vieram pedir dinheiro. E se falassem nisso, mandava-os logo dar uma curva. Tive talento para não precisar de ganhar a
titularidade com um maço de notas. Jogava porque tinha qualidade. Nunca quis pactuar com muitos daqueles que vivem apenas para explorar o futebol. Especialmente os dirigentes. Para além de sempre se ter dito que extorquiam directamente dinheiro de alguns atletas (fossem portugueses ou estrangeiros), também não se livram da fama de arrecadar dinheiro indevidamente em transferências internacionais. Não sei se é verdade ou mentira, mas há um facto indesmentível nestas suspeições: de há dez anos a esta parte, chegam brasileiros ao nosso futebol, todos os dias. Muitos deles não têm qualidade. Vêm de clubes de vão de escada, não possuem a mínima formação desportiva e aparecem em equipas do primeiro escalão do futebol nacional sem saberem como nem porquê. Os dirigentes que os contratam parecem não estar muito preocupados com a qualidade, para eles, o talento é secundário. Parece que só contratam muitos estrangeiros para poderem ficar com uma percentagem dos negócios. O jogador português que vem dos juniores e que começa a jogar pela equipa sénior não movimenta o mercado em quantia suficiente para que um dirigente possa tirar essa percentagem. Por isso, sou a favor da implementação de uma Casa de Transferências (a exemplo do que existe noutros países) de forma a acabar com estas suspeições. Há dirigentes que passam mandatos inteiros a lesar os clubes e no fim deixam as instituições na miséria. Assisto com muita tristeza ao declínio financeiro de alguns clubes históricos em que joguei, como o Vitória de Setúbal, o Belenenses, o Estrela da Amadora e, em especial, o Boavista. Os clubes ficam na lama, mas os dirigentes responsáveis pela crise vão à sua vida e nunca lhes acontece nada. Nada. Quem é que arca com as consequências desta bandalheira? Os jogadores, que ficam sem receber durante meses a fio, e os sócios, que andam uma vida inteira a pagar quotas e que assistem ao flagelo dos clubes do seu coração. Volto a repetir o que disse antes: muitos dos dirigentes que conheci foram uma completa desilusão. Andam nisto apenas pelo mediatismo dado pelo futebol e pelas oportunidades de negócio que surgem, mas depois de estarem servidos pessoalmente, desaparecem e deixam tudo, quase sempre, pior do que encontraram. E se não erram por interesse financeiro, erram por profunda incompetência. Veja-se o caso do Boavista. Enquanto teve Valentim Loureiro como líder das operações foi um grande clube, quando o presidente decidiu sair, deixou o filho com uma responsabilidade para a qual este não estava preparado. Durante o mandato de João Loureiro, o Boavista até conseguiu conquistar o único campeonato nacional da sua
história, mas apenas por causa do grande trabalho que tinha sido feito pelo major. Depois da saída de Valentim Loureiro, as pessoas que ficaram na direcção foram, em meu entender, as grandes responsáveis pela actual crise que afecta o clube. O Boavista foi dos poucos clubes em que joguei onde se recebia sempre a tempo e horas. Era ponto de honra do major cumprir os seus compromissos. É verdade que não ganhávamos muito dinheiro, mas não havia salários em atraso. E os resultados eram bons. Se as coisas estão bem, porque é que hão-de inventar e dar passos maiores do que as pernas? O Boavista conseguia quase sempre ir às competições europeias. Depois de ser campeão foi mais uma ou duas vezes e acabou. O título ditou o início do fim. Outro dos problemas do futebol português é a imprensa desportiva. A maior parte dos actuais comentadores da televisão portuguesa divide-se em dois grupos: jornalistas que nunca jogaram futebol e antigos jogadores ou treinadores completamente parciais. Comecemos pelos primeiros. Acho incríveis as barbaridades que saem da boca de alguns deles. Olhamos para a televisão e vemos pessoas, sem o mínimo conhecimento futebolístico, lançarem teorias sobre tácticas, opções técnicas e situações de jogo. Esses lugares podiam ser ocupados por antigos treinadores e jogadores que têm noção do que é viver no futebol, do que é estar dentro de um campo. Mas, também não podem ser como muitos que andam na comunicação social, completamente condicionados pelas suas paixões ou ambições profissionais. Quando não temos jornalistas incompetentes, aparecem homens do futebol que estão mais preocupados em defender o interesse dos seus clubes do que em fazer uma análise imparcial. Uma boa parte desses homens do futebol esteve ligada ao Benfica e ao Sporting. Quando estas equipas perdem ou não jogam bem, esses comentadores têm uma dificuldade enorme em criticar. Parece que querem apenas dizer bem porque estão à espera de um «tacho». E aqueles que não estão à espera de nada, provavelmente já têm. Alguns comentadores aparecem na televisão não por mérito próprio, mas sim, porque os clubes grandes os colocam lá para verem os seus interesses defendidos. Essa ausência de espírito crítico imparcial é nefasta para o futebol português. A imprensa desportiva portuguesa vive refém dos incompetentes e dos competentes tendenciosos. Para além destes analistas, há o problema dos jogadores que estão no activo e que conseguem falar sem dizer absolutamente nada. Tenho muito orgulho nas entrevistas que dei ao longo da minha carreira. Sempre mantive uma postura bastante frontal com a imprensa, e dos maiores elogios que me podem fazer hoje em dia, é ouvir jornalistas dizerem-me que gostam muito de
falar comigo, porque não tenho aquele discurso formatado e enfadonho que é comum à maior parte dos jogadores. Felizmente nunca fui daqueles tipos do «trabalhar jogo a jogo, o mister é que sabe, é preciso levantar a cabeça, o próximo jogo é o mais importante». Até me irrito quando vejo colegas ou ex-colegas dizerem diariamente a mesma lenga-lenga enjoativa. No entanto, muitas pessoas confundiam a minha frontalidade com vontade de arranjar confusão. Nunca me considerei um incendiário. Mas se não gostava de uma situação ou de uma pessoa, porque haveria de dizer o contrário? Nunca precisei de engraxar ninguém. Claro que muitas vezes falei de mais e cometi erros. Mas falava sempre com base em factos consumados. Veja-se o caso do Benfica, por exemplo. As pessoas que estavam no clube trataram-me mal. Porque é que havia de sair de lá e dar moral a esses indivíduos que me tinham feito a vida negra? Quando saí, disse que não tinha gostado de trabalhar com eles. Disse o que tinha a dizer, mas nunca falei mal dos adeptos do Benfica e jamais o irei fazer. O Benfica é o maior clube português e tive muito orgulho em vestir aquela camisola. Mas o clube, a sua história e os adeptos não têm culpa de quem os representa. O problema é que muitas pessoas têm uma enorme dificuldade em separar os assuntos. No período em que estava no FC Porto, por exemplo, às vezes vinha a Lisboa e alguns adeptos do Benfica chegavam a cuspir-me para cima, mandavam-me moedas e ofendiam-me, fosse eu sozinho ou com a minha família. Não é fácil viver com isso. No futebol reina o lunatismo. As pessoas não sabem distinguir o jogador do ser humano. Durante um jogo queremos ganhar e temos, por vezes, comportamentos que alguns podem considerar reprováveis. Mas depois do jogo tudo passa. Tudo normaliza. Só aqueles que jogam ou jogaram futebol sabem que dentro de campo não podemos ser anjinhos. Praticamos um desporto de elevado contacto físico, em que podemos magoar e sair magoados. Tive a felicidade de nunca me ter lesionado com gravidade. Claro que alguns adversários me tentaram arrumar, assim como eu também tentei retribuir a gentileza. Mas, ao contrário do que algumas pessoas dizem, nunca fui um jogador violento. Só que nessas coisas gosto de ser muito terra-a-terra, se vou a uma bola com o intuito de dar porrada num gajo, ou bem que o aleijo ou então não vale a pena. Nunca é para partir, claro (às vezes pode acontecer), mas é, pelo menos, para o amassar um bocadinho. A minha filosofia sempre foi tirar proveito de várias situações para ajudar a equipa. Mesmo que, para isso, houvesse necessidade de recorrer a algum jogo sujo. Sujo, não imundo. Exemplo: se um jogador está a dar cabo da nossa equipa com a sua qualidade, tem de levar uma cacetada para ver se fica mais calminho. Essa malícia ganha-se ao
longo da carreira. Não aprendemos apenas a jogar futebol, aprendemos tudo o resto: as diversas artimanhas e truques que possamos colocar ao serviço da nossa equipa. Com o passar do tempo, vamos ficando peritos em lidar com colegas, adversários, dirigentes e árbitros. Na relação directa com os senhores do apito, por exemplo, também tive sempre fama de indisciplinado e rebelde. Sobre isso posso apenas dizer que não gosto de generalizar. Muitas vezes fui bem expulso, mas outras ficaram a dever-se à inflexibilidade comunicativa de quem estava do outro lado. Durante um jogo, tive árbitros que me chamavam «filho da puta» e que me mandavam para o «caralho». Se eles falavam assim, porque é que eu não podia reagir no mesmo tom? Eu e Vítor Pereira, por exemplo, tínhamos uma relação fantástica nesse sentido. Mas já nos conhecíamos há muitos anos e, de vez em quando, até passávamos férias juntos no Algarve. Em muitos jogos ele dizia: «Levanta-te filho da puta. Estás para aí com merdas a fingir.» E eu respondia na mesma moeda. Os impropérios são a linguagem natural do futebol. Em certos casos eram até uma forma carinhosa de relacionamento. Mas claro que só alguns árbitros têm capacidade para perceber que aquela palavra não é para ofender, mas sim para comunicar. Quando não percebem, expulsam o jogador. Mesmo que antes o tenham ofendido. São estas diferenças de relacionamento que nos fazem distinguir entre as pessoas mais marcantes pela positiva e pela negativa. No campo da arbitragem, Vítor Pereira marcou-me bastante, pela positiva. Foi dos poucos. Já ao nível dos treinadores, foram várias as figuras determinantes na minha evolução. Mas nestas coisas gosto sempre de começar pelas más notícias e, por isso, vou ser breve na análise sobre Eriksson. No relacionamento directo comigo, sempre foi falso. Não gostei dele. Chega. Manuel José lançou-me no Sporting e trabalhou novamente comigo no Boavista. Inesquecível por ser o primeiro e pela qualidade que tinha. Muito convicto das suas ideias. Já António Oliveira foi o melhor no discurso. Motivava muito os jogadores com as suas palavras. Também tinha a ajuda do clube (o Porto) que transportava essa mística e facilmente a estendia aos jogadores. Jorge Jesus é tacticamente perfeito. Poucos treinadores percebem tanto de futebol como ele. João Alves aturou muita parvoíce minha, principalmente no Estrela da Amadora. Foi um período difícil da minha carreira, porque estava bastante revoltado por ter ido parar a um clube tão modesto quando comparado com o Sporting e o Benfica, ainda para mais cheguei à Amadora por intermédio de uma troca com Abel Xavier. Não está em causa o Abel Xavier (um bom jogador que tem feito uma carreira muito
interessante), mas na altura eu não me tinha em tão baixa conta para servir de moeda de troca com ele. Fora esse período complicado, sempre estive muito bem com João Alves. Tem capacidade para compreender o que vai na cabeça de cada atleta, adora jogadores meio lunáticos e conseguia dobrá-los para fazer grandes equipas. É o estilo de treinador que faz falta ao futebol. Hoje em dia, embora lentamente, estão a voltar esses tubarões que ainda têm muito para dar à modalidade. Já se está a acabar a moda dos professores da treta que saltaram para a ribalta por causa do efeito Mourinho. Alguns são bons, mas não ponham homens acabadinhos de sair da universidade à frente de clubes de primeira linha. Se acabaram os estudos académicos, têm de começar os estudos do futebol em clubes mais pequenos, como adjuntos, até que tenham capacidade suficiente para treinar uma equipa. O próprio Mourinho, foi adjunto muitos anos, antes de começar a conquistar títulos pela Europa fora. A mesma exigência estendo aos jogadores de futebol que abandonam a carreira e no ano seguinte vão treinar uma equipa do primeiro escalão. Normalmente são despedidos ao fim de pouco tempo, porque ainda não têm experiência para o cargo. Ninguém nasce da geração espontânea. Um bom treinador é como um vinho, é preciso esperar pelo momento certo antes de abrir a garrafa. Veja-se o meu caso: na única vez que fui treinador, no Montijo, ainda não tinha preparação nem vontade para assumir semelhante cargo. Agora já começo a olhar com bons olhos para esse futuro. Andei muitos anos neste desporto, trabalhei com grandes nomes e acho que posso vir a ser um treinador competente. Só o tempo dirá se tenho razão. Num futuro próximo, porém, irei pegar numa equipa de divisões secundárias e começar a evoluir na profissão. Não quero que me passem um cavalo de corrida para as mãos antes de aprender a montar. Como jogador cresci gradualmente. Como treinador seguirei o mesmo caminho. Mas uma coisa é certa: o Fernando Mendes irá continuar no futebol. Este desporto é a minha arte, a minha casa e o espaço onde me sinto bem, mesmo que, por vezes, me tenha sentido mal. Gostem ou não, tenho uma história no futebol português e quero continuar a escrevê-la. Também nunca irei esconder-me de responsabilidades sociais. Este livro, cheio de verdades e experiências na primeira pessoa, é um dever cumprido. Um dever para com todos os profissionais e adeptos de futebol. Pode ser que depois do meu relato, as pessoas percebam porque é que em determinados momentos certos jogadores rendem mais ou menos do que se estava à espera. Pode ser que passem a ver o jogador de futebol de uma forma mais humana. Sabe muito bem podermos
ganhar dinheiro a fazer o que gostamos, mas é preciso ter muita fibra e uma mente forte. Os obstáculos são numerosos, constantes e difíceis de ultrapassar. Com maior ou menor capacidade, consegui resistir e, depois de tudo, ainda cá estou. Pronto para abraçar novos desafios. Não me considero, ainda assim, exemplo para ninguém. Fiz muita coisa que não devia ter feito. Andei muitos anos no futebol, levei muita porrada, aturei muita nojice e consegui sempre manter-me de pé. Joguei onde quis, quando quis, conquistei títulos colectivos e individuais, marquei golos, estive nos grandes jogos e fiz parte de equipas de sonho. Sou dos jogadores portugueses com mais títulos no futebol nacional. Fui para baixo e vim para cima. Ninguém conseguiu matar-me para este desporto. A minha grande força foi conseguir esconder a revolta que ia dentro de mim. Aqueles que me queriam mal, respondia com um sorriso, dava-lhes um olá bem-disposto e seguia com a minha vida. Sei que essa postura os deixava ainda mais lixados: «Então andamos aqui a tentar rebentar com este gajo e ele está contente?» Sou humano, sentia tudo, mas escondia. Olhar para a frente é a única maneira de sobreviver nesta actividade. Aquele que ficar agarrado a uma questão do passado ou a um sentimento de vingança que ficou por fazer, não dura muito tempo. Temos de pensar em nós, no que é melhor para os nossos interesses e salvaguardarmos a nossa posição. Devemos tirar o máximo partido de tudo o que o futebol nos dá (porque também nos tira muita coisa). O resto é futuro. É amanhã. E se trabalharmos bem, conseguimos aparecer onde queremos, mesmo que alguns pensem que estamos acabados. Cheguei ao Porto com 29 anos. «O que é que este gajo vai para lá fazer?», pensaram muitos. Depois de assinarem o meu fim antecipado, conquistei campeonatos, Taças de Portugal, Supertaças e joguei na Champions. Marquei golos de longe quando diziam que já não tinha força para chutar. Corri mais rápido do que os outros quando me acusavam de já não ter pernas. Joguei, ganhei, perdi. Vivi.
NOTA FINAL Este livro é uma segunda versão da obra inicialmente escrita. A primeira versão apontava nomes, locais e datas dos momentos mais sórdidos que aqui são relatados. Infelizmente, o clima de medo e de censura instalado no futebol português tornou impossível juridicamente que essas mesmas pessoas fossem expostas, deixando esse primeiro livro condenado a viver numa gaveta. As páginas que acabaram de ler, e das quais me orgulho, são frontais, verdadeiras, mas tiveram de ser generalizadas por causa de um sistema perverso em que todos têm medo e vergonha de dar a cara e apontar o dedo aos responsáveis por situações ilegais e violadoras da ética desportiva. Espero, no entanto, que depois destas páginas algumas pessoas que viveram situações semelhantes possam vir a público contar a sua história. Aqueles que o fizerem estarão a prestar um serviço inestimável ao futebol português. Pode ser que, nessa altura, a gaveta do primeiro livro se abra. E acreditem: há muito mais para contar.
Índice Ficha Técnica Dedico este livro a todos os profissionais de futebol que têm de passar por situações graves para conseguirem viver desta actividade. Sei o que sentem, aquilo que sofrem e espero que consigam vencer numa indústria megalómana que relega para segundo plano o lado humano. PRÓLOGO CAPÍTULO UM O CARRO-BOMBA E AS CAMADAS JOVENS DO SPORTING CAPÍTULO DOIS SONHO REALIZADO E EPISÓDIOS ESTRANHOS CAPÍTULO TRÊS BENFICA: PRESSÃO DE AR E PROSTITUTAS NO HOTEL CAPÍTULO QUATRO BOAVISTA: TAÇA DE PORTUGAL EM ÉPOCA BRILHANTE CAPÍTULO CINCO BELENENSES: GRANDE TEMPORADA COM JOÃO ALVES CAPÍTULO SEIS FC PORTO: CONVITE INESPERADO CAPÍTULO SETE FC PORTO: A DESCOBERTA DE UM CLUBE FANTÁSTICO CAPÍTULO OITO V. SETÚBAL: ACABAR ONDE TUDO COMEÇOU CAPÍTULO NOVE A MINHA HISTÓRIA COM O DOPING — PARTE 1 CAPÍTULO DEZ A MINHA HISTÓRIA COM O DOPING — PARTE 2 CAPÍTULO ONZE PORTUGAL: A CAMISOLA MAIS BONITA CAPÍTULO DOZE FUTEBOL E FAMÍLIA CAPÍTULO TREZE JOGO DEPOIS DO JOGO NOTA FINAL