DE URBANISMOS LIBERTÁRIOS —projeto, processo, linguagem
No úl mo um ano e meio, me envolvi, junto com outras pessoas, na discussão do PIU Terminal Campo Limpo, em São Paulo - um projeto para um terminal de ônibus e para o bairro envolta dele.
— A práxis é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimido. Por isto, inserção crítica e ação são a mesma coisa. PAULO FREIRE
É possível um urbanismo libertário, que se oponha às diferentes formas de dominação na cidade e proponha uma cultura de projeto baseada na autogestão, na autonomia, na diversidade e na construção cole va?
Quais são os lugares possíveis do arquiteto urbanista nesses processos? E como nossos saberes do urbanismo podem contribuir horizontalmente para eles? Quais caminhos podemos seguir, como arquitetos e no presente, se esse é o nosso horizonte?
Escrevo esse trabalho para começar a falar dessas questões. Quero falar delas a par r de uma experiência concreta e pessoal. Falar de um percurso que percorri e das coisas que li e aprendi ao longo dele para começar a discu r questões mais amplas.
Estávamos interessados em entender do que se tratava o projeto e quais poderiam ser seus impactos. Mas principalmente interessados em produzir cole vamente outras visões, diferentes das visões oficiais da Prefeitura. E interessados em imaginar outras possibilidades de pensar a polí ca urbana e o urbanismo nas periferias que não as possbilidades dos PIUs e das Parcerias PúblicoPrivadas.
Mas por que o PIU Campo Limpo? Três mo vos. Um pessoal: moro próximo do Campo Limpo e sou um usuário freqüente do terminal. O outro, porque o PIU é o instrumento da moda do planejamento urbano hoje em São Paulo, e o PIU do Terminal Campo Limpo está sendo proposto no momento deste trabalho. Ou seja, a par r dele podemos falar sobre o urbanismo hoje. E o terceiro, porque o PIU Terminal Campo Limpo é um projeto urbano numa região que se costumou chamar de periferia de São Paulo. E ao longo do trabalho, ficará claro como falar de urbanismo nas periferias é importante para o meu raciocínio.
Enquanto conto a história do PIU Terminal Campo Limpo irei destacando as questões sobre o urbanismo que surgiram no caminho. O obje vo do trabalho é listar essas questões e começar a discu las. Formular muitas perguntas e esboçar algumas respostas, sobre as quais con nuarei pensando depois do trabalho. O TFG além de um fim, o fim do curso de graduação, é um começo, começo de uma trajetória de trabalho e de pesquisa.
Para ajudar a formular e pensar sobre essas questões, para além do Campo Limpo, usarei os aprendizados das leituras que fiz esse ano sobre outras experiências de planejamento e projeto urbano, e os aprendizados das leituras de alguns autores que também estão falando das mesmas coisas - sobre colonialidade, sobre insurgências e mobilizações polí cas libertárias e populares na cidade, sobre os instrumentos, as linguagens, os processos e as esté cas de projeto urbano…
Tentei escrever o trabalho como se contasse uma história, com parágrafos cur nhos. Depois, fui inserindo adendos nessa história. E das histórias e dos adendos vieram reflexões.
O trabalho está dividido em duas partes. Na primeira parte, contarei do meu primeiro contato com as ideias do projeto PIU Terminal Campo Limpo que veio da Prefeitura. Apresentarei a leitura crí ca que fizemos do projeto, construindo uma visão diferente a seu respeito , e a nossa par cipação nas consultas públicas que foram abertas. A ideia dessa parte é apresentar o que eu entendo como urbanismo hegemônico ou urbanismo dominante atualmente e quais são as tensões que o cons tuem.
Depois, nos detalhes do projeto do PIU, mostrar como a racionalidade desse urbanismo, ou seja, sua forma de pensar a cidade e de pensar o projeto, é uma racionalidade técnico-burocrá ca, colonialista e capitalista, no sen do de que é voltada para a promoção das condições de reprodução do Capital na cidade, em suas diferentes fases. Explicar como essa racionalidade têm apagado e deslegi mado outras possibilidades de projetar e ocupar a cidade, e assim, con nua fundamentando uma produção excludente das nossas cidades, pela qual nosso trabalho como arquitetos tem sido um dos responsáveis. Nossa par cipação co diana nas condições de opressão - e em uma condição ambígua de oprimido e opressor - naturaliza o distanciamento, a segregação, a colonialidade, a dominação.
O QUE É COLONIALIDADE? É a racionalidade estruturante das formas modernas de dominação. A ideia da colonialidade parte do conceito social de raça para definir diferenças entre pessoas e entre povos - diferenças que criam hierarquias. Tudo que foge às formas dominantes eurocêntricas e ocidentais de pensar e agir no mundo é considerado diferente. E tudo que é diferente é sistema camente qualificado como inferior, ignorante, residual, local ou improdu vo. Se é inferior, portanto é algo ser esquecido, desprezado, apagado, subs tuído, modernizado. Assim, se constroem e se reconstroem formas de dominação econômica, social e cultural. Falar de colonialidade para entender as questões do nosso tempo faz sen do porque segundo os estudos póscoloniais, apesar do domínio territorial das metrópoles sobre as colônias ter supostamente terminado há algumas décadas ou séculos, a racionalidade colonial permanece, já que é estruturante das relações sociais modernas. Colonialidade então é a essência dos disposi vos de imposição de formas únicas de exis r, de linguagens únicas, sistemas econômicos, processos de trabalho únicos, etc. - como se só eles fossem possíveis (Sousa Santos, Quijano, 2005; Grosfoguel e Bernardino-Costa, 2016).
A segunda parte da história é uma parte proposi va e também crí ca. Essa parte relata as nossas tenta vas de construir formas de apresentar a leitura crí ca que fizemos do PIU para pessoas que não são arquitetas, no território do Campo Limpo. Relata também nossas tenta vas de construir mobilizações cole vas que ajudassem a enriquecer e repensar essa leitura inicial, e de imaginar e exercitar outras formas de fazer polí ca urbana diferentes do urbanismo hegemônico. Formas libertárias. Nessa parte, apresentarei quatro conceitos de planejamento urbano contra-hegemônico, os urbanismos libertários, e usarei suas proposições para formular as questões. Além dos conceitos, usarei também os aprendizados de três experiências recentes de referência de planejamento feito nos territórios a par r de mobilizações populares, ou autoplanejamento, com a presença de arquitetos. A concretude dessas experiências de referência mais a experiência pessoal, mais as reflexões conceituais, mais as crí cas apontadas na primeira parte dão o caldo para formular os caminhos e os desafios para os urbanismos libertários. Meu trabalho reflete um posicionamento polí co e uma visão de mundo. Porém, carrega um esforço de não ser muito simplista. Ainda que esteja dividido em duas partes em oposição, estas duas seções tentam entender as contradições, as disputas, as dificuldades concretas. Minha intenção crí ca é radical, ou seja, tenta falar das raízes das questões, mas também é uma crí ca com a intenção de convidar a autocrí ca dos arquitetos urbanistas. Trazer questões que, no meu ponto de vista, são fundamentais e não podem ser naturalizadas. Um convite para repensar o tempo todo sobre como pensamos a cidade. A pensar sobre como fazemos o nosso trabalho. A apresentação dos urbanismos libertários é uma proposição, mas não é construída com uma narra va fes va. Tanto a experiência singela que par cipei, quanto as experiências de referência, quanto os enunciados dos conceitos teóricos, estão lotadas de contradições, de muitas dificuldades, desafios muito claros e muitas perguntas a serem feitas e poucas respostas, e questões em aberto. A proposição que vem da crí ca e a crí ca da própria proposição é o que move o pensamento. Este jornalzinho, ao mesmo tempo funciona como um relato de uma história, como uma aproximação de um tema e como uma provocação, um manifesto. Um manifesto que sugere, pra quem lê e pra mim mesmo, que, apesar de difíceis, os urbanismos libertários são possíveis.
COMO ORGANIZEI O TRABALHO Esta é a capa, ou um invólucro.
Os textos nos cadernos estão escritos de três formas diferentes, que organizam as
Dentro dela têm dois cadernos, aqui do lado, cada um é uma parte do trabalho.
CADERNO A : A RACIONALIDADE HEGEMÔNICA DO PLANEJAMENTO URBANO E DO PROJETO URBANO
CADERNO B : OS URBANISMOS LIBERTÁRIOS COMO POSSIBILIDADES CONTRA— HEGEMÔNICAS
ideias.
AS HISTÓRIAS PRETAS Os parágrafos escritos em preto falam sobre a nossa experiência no Campo Limpo, seja a leitura crí ca do PIU, seja nossa contribuição no processo de proposição do projeto, sejam as a vidades de contranarra vas na praça.
os parágrafos de história formam uma sequência linear. quer dizer, podem ser lidos sozinhos, pulando as outras partes. eles AMARRAm AS IDEIAS, são o fio da meada.
OS COMPLEMENTOS COLORIDOS Os parágrafos escritos com cor e fundo branco são adendos ou complementos da história, como que notas de rodapé, mas que de tão importantes, compõem o texto principal do trabalho. A par r dos pontos da história adicionam uma ideia nova, paralela.
AS QUESTÕES GRIFADAS
alguns adendos vêm diretamente dos parágrafos da história. outros não, são mais soltos. ELES SÃO Ou CONCEITOS TEÓRICOS OU APRESENTAÇões DAS experiênciaS QUE USO COME REFERÊNCIA.
Os parágrafos escritos em branco grifado com fundo colorido são as questões mais amplas, as reflexões do trabalho, que surgem tanto da história no Campo Limpo quanto dos adendos, ou das duas coisas ao mesmo tempo. As provocações. DE URBANISMOS LIBERTÁRIOS
essas questões podem ser lidas soltas, fora de ordem. UMA das IDEIAS DO TRABALHO foi COMEÇAR A MONTAR UMA LISTA DE REFLEXÕES IMPORTANTES E BEM AMPLAS PARA OS URBANISMOS (LIBERTÁRIOS). MAS É SÓ UM COMEÇO. MUITO TEMOS PARA DESENVOLVER AS QUESTÕES QUE ESTÃO AQUI, E MUITAS OUTRAS TEMOS PRA PENSAR.
— planos, projetos e guias
RE— FE— RÊN— CIAS
ARTICULAÇÃO PLANO POPULAR DAS VARGENS. Plano Popular das Vargens. Rio de Janeiro, 2017.
ASSOCIAÇÃO DE MORADORES E PESCADORES DA VILA AUTÓDROMO. Plano Popular da Vila Autódromo: plano de desenvolvimento urbano, econômico, social e cultural. Rio de Janeiro, 2012.
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— linguagem e método
— autogestão, anarquismo, socialismo libertário
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UM ESBOÇO (MUITO PRELIMINAR) DAS VISÕES SOBRE O URBANISMO
Imaginei esse esboço de como vejo as tensões do urbanismo porque se vou falar de hegemonias e contra-hegemônias, esse esforço de visão global, muito resumido, pareceu ser necessário. Mas é um esboço: tenho muito pouco tempo de estudo e vivência para propor como certa alguma coisa tão complexa. É para ajudar a entender as tendências que cito ao longo do trabalho. Entendo que o planejamento urbano e o urbanismo não podem ser entendidos como objeto está co, mas como processo histórico em constante mutação e passível de muitas interpretações. É um campo de disputa polí ca e esté ca, portanto sua forma hegemônica não é uma forma pura. Reflete tensões entre formas diferentes de enxergar, imaginar e pra car a polí ca e o desenho urbano e ocorre em lugares variados em tempos variados. Assim, admite exceções e variações mas segue uma tendência, uma predominância de valores e prá cas. Portanto, o urbanismo hegemônico é uma forma dominante, mas mutável e em disputa. No meu ponto de vista, as três forças principais que estão em tensão, conformando uma prá ca urbanís ca hegemônica são (01) As visões modernistas, mais an gas, que trazem as bases do que é o planejamento na produção da cidade capitalista do século XX e as heranças para o urbanismo hoje. (02) As visões liberaisempresarialistas e (03) as visões reformistaspar cipa vas, que surgem ambas como reações crí cas, a par r da década de 1980, às visões modernas, e pretendem transformações nas prá cas, processos e resultados do urbanismo, muitas vezes opostas mas muitas vezes confluentes ou contraditórias.
Vamos imaginar o urbanismo como linhas e agulhas, que bordam a cidade e se entrelaçam. O urbanismo hegemônico poderia ser um novelo. Nesse novelo, três conjuntos de linha e agulha de cores diferentes estão enrolados e disputam espaço para bordar. São as três forças principais que tensionam essa prá ca: a modernista, a liberal e a reformista. Essas três linhas estão bordando a cidade ao mesmo tempo. Mas dá pra enrolar as linhas de outros jeitos, que não são novelos - os carretéis, ou teares, ou outras formas que pouco ou nem conhecemos. Esses são os urbanismos das bordas. Con nuam sendo linhas e agulhas que bordam a cidade, mas não têm diferenças só de cor: são estruturados de outros jeitos, muito diferentes, e resultam bordados diferentes. São os processos de produção e projeto da cidade às margens das outras visões, que ou não dispõem dos meios do urbanismo hegemônico, e/ou ques onam radicalmente os pressupostos dele. A cidade autoconstruída, que cons tui o urbanismo subalterno. Ou processos autoges onários assessorados por urbanistas (que também compõe a condição de subalternidade) e as formulações teóricas do planejamento insurgente, do planejamento subversivo, do planejamento conflitual e do planejamento abolicionista - os urbanismos libertários.
MODERNISTAS — ESTATISTAS
LIBERAIS — EMPRESARIA —LISTAS
REFORMISTAS — PARTICIPA —TIVAS
SUBALTERNAS AUTO— CONSTRÚIDAS
LIBERTÁ— RIOS — INSURGENTES
DE— CI— SÃO
Tecnocracia+ par cipação representa va
Tecnocracia de mercado + par cipação ins tucionalizada esvaziada
Par cipação ins tucionalizada, conselhos + par cipação direta
Saber, técnica organização e desorganização populares
Par cipação direta + saber popular + técnica sensível
ES TA— DO
Estado como agente direto na produção da cidade
Estado como agente mediador, regulador ou ausente
Estado reformado como instrumento de garan a do interesse público
Clientelismo + desconfiança de um Estado ausente e violento
Leitura crí ca radical do Estado, mas lugar de disputa
INS— TRU— MENTOS
Empresas públicas, contratação direta
PPPs, concessões, priva zações
Empresas públicas, instrumentos redistribu vos parcerias com movimentos sociais
Economias subalternas, precariedade, inven vidade
Autogestão, projetos populares ou alterna vos nos territórios
Grandes planos e projetos urbanos
Regulação macro + projetos na escala local
Plano Diretor e projetos locais
Cidade espontânea + lutas por melhorias
Projetos locais + lutas por estruturas
ES— CA— LAS
Processo de projeto do geral para o local
Enfraquecimento do global e fortalecimento do local (discursivos)
Prá cas locais municiam um planejamento mais geral
Processo ultralocal, na escala do possível
Global e local ao mesmo tempo
RE— GULA— ÇÃO
Regulação rígida
Desregulação regulamentada
Regulação forte + pontuais flexibilizações
ES— TÉ— TICA
Cidade pouco densa segregada por funções
Cidade densa de condomínios
Cidade densa e mista
Cidade densa e mista
Cidade densa e mista
RACIO— NALI— DADES
Lógica instrumental — controle
Lógica instrumental de mercado
REPRE— SEN— TAÇÃO
Representação tecnico-abstrata
Representação didá ca
Lógica comunica va
Representação didá ca
Lógica cosmopolita mul cultural
Representação popular
Representação subversiva
NESTE CADERNO, A PARTIR DE UMA LEITURA CRÍTICA DO PIU TERMINAL CAMPO LIMPO, TENTAREI CARACTERIZAR O QUE EU ENTENDO COMO O URBANISMO HEGEMÔNICO, QUAL É A SUA RACIONALIDADE, OU SEJA, SUA FORMA DE PENSAR, PLANEJAR E PROJETAR A CIDADE, E COMO ESSA RACIONALIDADE APARECE EM CADA ASPECTO DO PROJETO URBANO - NAS FORMAS DE IMPLEMENTAÇÃO, REPRESENTAÇÃO E NO PROGRAMA DE INTERVENÇÕES. CONVIDO O LEITOR, PRINCIPALMENTE ARQUITETO URBANISTA, A REFLETIR E QUESTIONAR MAIS ALGUMAS FORMAS COMO TRABALHAMOS QUE, POR VEZES, SÃO NATURALIZADAS.
O QUE SÃO OS PIUS PARA OS TERMINAIS DE ÔNIBUS? Dentre os vários PIUs que estão em vigência ou sendo propostos estão os PIUs para os terminais de ônibus. A gestão Fernando Haddad (PT, 2013-16) criou os PIUs e também formulou a intenção de se conceder alguns dos terminais de ônibus à inicia va privada. A gestão João Doria e Bruno Covas (PSDB, 2017-atual), está implementando esta proposta, com o acréscimo de uma novidade: além de envolver os terminais e seus terrenos, as concessões passam a envolver também o seu entorno. São Paulo têm 27 terminais. Três deles foram escolhidos para a implementação dos PIUs como "projetos-piloto", elaborados pela própria prefeitura: Princesa Isabel, Capelinha e Campo Limpo.
O QUE É O PIU TERMINAL CAMPO LIMPO? O PIU Terminal Campo Limpo é um projeto urbano apresentado pela Prefeitura de São Paulo, em 2017. Ele propõe a concessão da gestão do Terminal Campo Limpo à um empreendedor privado. Conceder o terminal significa atribuir a um privado a responsabilidade de administrá-lo, e ao mesmo tempo, a possibilidade de explorá-lo comercialmente. O PIU propõe que este empreendedor possa explorar comercialmente as áreas do atual edifício do terminal e, se desejar, construir novas edificações em cima dele ou nas partes vazias do terreno. E ainda, inclui uma área de 600 metros de raio, ao redor do terminal, nas quais o empreendedor privado também poderá construir novos empreendimentos - condomínios, prédios de escritórios, shoppings, etc. Em contrapar da a esses benefícios, o empreendedor é obrigado a fazer a gestão do terminal, sua manutenção e possíveis reformas ou melhorias. E na área do entorno, o empreendedor contribuirá financeiramente para a execução de obras públicas, listadas no projeto. O PIU Campo Limpo é um projeto que atualmente está em fase de elaboração, um exemplo das formas hegemônicas de se pensar e fazer o urbanismo hoje em São Paulo.
O QUE É UM PIU? PIU quer dizer Projeto de Intervenção Urbana. Um PIU é projeto urbano, que contém um recorte da cidade - um bairro, um eixo, algumas quadras ou um terreno - e propostas para sua transformação. Um PIU pode ser um projeto de qualquer tamanho e de qualquer natureza. Pode ser proposto pelo Estado, por agentes do mercado ou por organizações da sociedade civil. A caracterís ca principal do PIU, então, é ser genérico e flexível. O PIU não é um instrumento urbanís co, portanto, para ser implantado precisa lançar mão de algum instrumento de fato, listado no Plano Diretor Estratégico de São Paulo (2014). Na maioria dos casos, são escolhidos instrumentos que seguem os modelos de Parceria Público Privada (PPP), como Operação Urbana (cada vez menos), Área de Intervenção Urbana (cada vez mais), Área de Estruturação Local ou Concessão Urbanís ca, porque são estes os que estão regulamentados no plano.
A
02
POR QUE SIM PARA AS PPPs? Os gestores públicos que propõe as PPPs argumentam que a inicia va privada é mais capacitada para gerir alguns espaços e serviços públicos, e que modelos de concessão ou parceria permitem implementar transformações e desonerar o orçamento, na medida que os custos com o projeto ou o bem público - no nosso caso, o terminal - passarão a ser responsabilidade do empreendedor privado. Em tese, a parceria seria boa para ambos. Para o Estado (e para o interesse público) porque melhoraria serviços e diminuiria gastos. E para o privado, porque poderia explorar comercialmente as áreas ou equipamentos que assume, no caso, o terminal, seu terreno e o entorno. As PPPs urbanas têm se tornado o modelo dominante de implementação de projetos urbanos e de infraestrutura em São Paulo desde o final dos anos 1990. Seu surgimento é mo vado por uma crí ca às formas esta stas de implementação de polí cas públicas, em quase todo o espectro ideológico. E por um contexto de crise do financiamento público, endividamento do Estado, e enfrentamento deste quadro com polí cas de austeridade, ajuste fiscal, redução aparente do inves mento público e busca por novas formas de financiamento e gestão da transformação urbana a par r de parcerias com agentes do mercado.
Tentarei mostrar nessa seção que mesmo tendo novidades concretas, o PIU Terminal Campo Limpo reforça uma lógica an ga da polí ca urbana: técnico-burocrá ca, colonialista e capitalista. Isso quer dizer que a linguagem do projeto é de difícil compreensão; que o projeto foi elaborado distante do território, dos moradores e de suas necessidades reais; que os canais de par cipação são poucos e inefe vos; que as decisões de projeto, que afetam muitas, são tomadas por poucas pessoas; que os instrumentos de planejamento dialogam só com os processos de produção do espaço via mercado imobiliário; e que por tudo isso, o projeto público atende principalmente a interesses privados, reformulando e reforçando a produção autoritária de uma cidade excludente, ainda que reves da de um discurso de interesse público.
ÁREA DO PROJETO PIU TERMINAL CAMPO LIMPO Vila Sônia
do an do rm ire a A ue Ru e Fig s Er
IGREJA JESUS CRISTO
FACULDADE ANHANGUERA
TA B OÃO DA S E R R A
CATEDRAL DO CAMPO LIMPO
ESTRADA DO CAMPO LIMPO
ESCOLA MAURÍCIO SIMÃO HABIB’S
TERMINAL CAMPO LIMPO
HOSPITAL JARDIM PIRAJUSSARA
CITA
ESTRADA KIZAEMON TAKEUTI
Rua Frei Gerônimo da Graça
Parque Pinheiros
ARRASTÃO E A UBS
AVENIDA CARLOS CALDEIRA
Rua Be
Ru a de Fran Ho cis lan co da
rnar do T avar es
Capão Redondo
ito ed en so aB o Ru ener G
PRAÇA DO CAMPO LIMPO
Ru de a Ro M qu in go e
o a oã ieir aJ oV u R rd a rn Be
MARIA VIRGÍNIA
MARIA VIRGÍNIA
S ÃO PAU L O
ESTRADA DO CAMPO LIMPO
Jardim São Luiz
0
100
250
500 m
03
A
07
08 12
03 06 09 05
01 04
TERMINAL CAMPO LIMPO
11 02 10
0
PIUs IMPLEMENTADOS E PROPOSTOS EM SÃO PAULO
01 BAIRROS DO TAMANDUATEÍ PIU PARA BAIRROS/ REGIÕES
02 ARCO JURUBATUBA
PIU PARA GLEBAS/ QUADRAS
05 NAÇÕES UNIDAS
5
10
ÁREA DE INTERVENÇÃO URBANA
03 ARCO PINHEIROS 04 VILA OLÍMPIA 06 VILA LEOPOLDINA 07 NESP 08 ANHEMBI
OPERAÇÃO URBANA DEFINIÇÃO DE USO E OCUPAÇÃO
09 PACAEMBU PIU PARA EQUIPAMENTO PIU PARA TERMINAL
A
04
20 km
10 TERM. CAPELINHA 11 TERM. CAMPO LIMPO
ÁREA DE ESTRUTURAÇÃO LOCAL
12 TERM. PRINCESA ISABEL X MIP OUTROS TERMINAIS
CONCESSÃO URBANÍSTICA
PARCERIA PÚBLICO— PRIVADA
Em minhas pesquisas de iniciação científica, no LabCidade da FAUUSP, estudamos projetos urbanos desenvolvidos com instrumentos de PPP, principalmente as operações urbanas. Talvez a principal reflexão que construímos sobre as PPPs urbanas é que elas não têm enfrentado os desafios estruturantes da polí ca urbana nem promovido a produção de cidades menos desiguais. Ao contrário, representam um processo de reformulação e complexificação das lógicas excludentes preexistentes.
— Os PIUs podem ser qualquer coisa, mas só têm sido PPPs — Os projetos nesse modelo estão sendo incapazes de atender interesses das populações mais vulneráveis: o direito à moradia adequada, à espaços públicos, à permanência nos bairros onde moram, e principalmente, à par cipação efe va nas decisões (Pedro Lima, 2016). Argumentamos que essa incapacidade é estruturante das PPPs, em suas muitas variações. Se o mecanismo de funcionamento de uma parceria público-privada permanece, as "inovações" dos instrumentos não conseguirão inverter essa lógica excludente.
Publicamos estas reflexões em um livro chamado Cidade Estado Capital, que detalha porque refutamos a mercan lização da cidade e a difusão das PPPs como modelo desejável para a transformação urbana (Raquel Rolnik e outros, 2018).
FORMA É CONTEÚDO CONTEÚDO É FORMA Não somente os resultados materiais desse urbanismo incomodam. Suas linguagens e processos nos parecem igualmente importantes, e à sua maneira, também excludentes. As a vidades e espaços de par cipação desses projetos - audiências, conselhos gestores, apresentações, plataformas virtuais - ainda que com contradições e evoluções, sempre pareceram muito mais simulacros de democracia, porque não são lugares de decisão e diálogo. São, no geral, experiências desperdiçadas. Cansa vas, repe vas, deses mulantes. No mesmo sen do, a esté ca e as formas de representação e comunicação destes projetos muito pouco parecem comprome das em contribuir processos abertos, sensíveis e dialógicos. Geralmente as proposições de projeto formais, vindas do Estado e das empresas, carregam consigo um modelo de cidade que ignora as necessidades, potências, riquezas e saberes da cidade popular.
POR QUE UM PIU NO CAMPO LIMPO? A escolha do Terminal e do bairro do Campo Limpo para a implementação de um PIU muito tem a ver com uma condição de "periferia mais próxima", "periferia consolidada" e centralidade regional que é. Empreendimentos imobiliários, que são o motor e um dos obje vos da transformação pretendida e a exploração comercial do terminal, passam a ser possivelmente viáveis, em uma região onde o mercado já atua, com acessibilidade e infraestrutura implantadas considerável, e grande fluxo de pessoas. O Terminal Campo Limpo é um dos mais movimentados da cidade, com quase 60 mil passageiros embarcados por dia.
ONDE ESTÁ O CAMPO LIMPO NA CIDADE? O Campo Limpo é um bairro na Zona Sudoeste da cidade de São Paulo, numa região que se expandiu e estruturou sob a forma de loteamentos populares autoconstruídos desde os anos 1950, cons tuindo-se portanto com um das área da chamada "periferia" sul da cidade. Sua formação se relaciona com a explosão populacional de São Paulo, na metade do século XX. Contudo, desde já os anos 1970, não é mais uma borda extrema da cidade e essa condição é essencial para entender seu lugar hoje na cidade, que estamos chamando "periferia mais próxima".
Uma das muitas audiência públicas da Operação Urbana Bairros do Tamanduateí que estive presente. @ CÂMARA DE SÃO PAULO, 2016.
POR QUE NÃO PARA AS PPPs?
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O QUE O CAMPO LIMPO TEM DE ÚNICO? O Campo Limpo, principalmente nas margens da Estrada do Campo Limpo, já apresenta na sua formação par cularidades como a morfologia das construções e do parcelamento do solo mais generosas que outros territórios periféricos. As telhas são de barro, as paredes rebocadas e pintadas, as casas maiores e nem sempre geminadas, os lotes maiores. Há uma concentração comercial muito significa va. A par r dos anos 1990, são construídos empreendimentos imobiliários residenciais na região, muito em função da proximidade de setores onde antes já atuava, como a Vila Andrade, a Vila Sônia e o Morumbi (Ana Morais, 2018). O Campo Limpo, então, tem como par cularidade uma composição de classes sociais e tecidos urbanos rela vamente mais diversa. Chegam os novos empreendimentos e os bairros autoconstruídos vão se consolidando, ou seja, a renda da população cresce e consequentemente as caracterís cas constru vas se tornam menos precárias. Mas há também muitos bairros mais pobres e favelas muito precárias, principalmente nas margens de córregos. Isso é um pouco diferente dos bairros mais ao sul, como o Capão Redondo e o Jardim Ângela, cuja ocupação é mais homogênea: mais densa, em lotes menores e por famílias mais pobres.
PRAÇA DO CAMPO LIMPO
no Campo Limpo não tem o 3D do Google Maps. Nem no Grajaú, nem em Perus.
Há muito tempo o Campo Limpo é uma centralidade comercial popular na região, porque era e é um lugar muito acessível, em função das linhas de ônibus que passam por ali, vindo dos bairros mais ao Sul e indo para os bairros centrais. A construção do Terminal Campo Limpo em 2009 não foi responsável por isso, mas reforçou ainda mais essa condição. As linhas foram seccionadas, e que quem vem dos bairros da região e vai pro centro, começou a ter que fazer uma baldeação. Chegaram novas lojas e restaurantes de grandes redes e novas barracas de comércio ambulante. Foi inaugurada uma unidade grande da Faculdade Anhanguera. O Campo Limpo, portanto, já era um subcentro, um lugar de grande acessibilidade e uma periferia mais próxima e heterogênea, e a chegada do terminal é jus fica esses mo vos e os reforça. A Praça do Campo Limpo é um lugar de muita importância. Junto com os CEUs Campo Limpo e Canto do Amanhecer, e o SESC Campo Limpo, é um dos poucos grandes espaços livres de uso público da região, com quadras, pista de skate, muitas árvores e bancos e muito acessível. E não só isso, é um lugar de memória e iden dade da população do Campo Limpo, seja por ter caracterís cas únicas, seja pela quan dade de equipamentos que rodeiam a praça: as escolas e creches, a Catedral Sagrada Família, a Biblioteca Helena Silveira, a Casa de Cultura Olga Benário, o Espaço Cultural CITA, o Arrastão e o próprio Terminal Campo Limpo; seja pela quan dade de organizações e eventos culturais cole vos que ocupam esse espaço: os saraus, o Mais Rap, a Feira Literária da Zona Sul, os shows, os ska stas, o Circuito CITA. A Zona Sul de São Paulo é um lugar muito pulsante de organizações cole vas de cultura popular, muito diversas.
creche
skate
Cita
casa de cultura olga benario TERMINAL campo limpo
estrada kizaemon takeuti
biblioteca helena silveira
EMEF LEONARDO VILLAS BOAS ubs E ARRASTÃO
saraus e espetáculos
avenid a carlos lacerda
estrada do campo limpo estrada do campo limpo
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TABOÃO DA SERRA
CAMPO LIMPO
JARDIM SÃO LUÍS CAPÃO REDONDO
JARDIM ÂNGELA
EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS RESIDENCIAIS DE 1985 A 2013 @ Embraesp
LOTES E CASAS MAIORES, TELHAS DE BARRO, RUAS MAIS LARGAS
RECORTE NO CAMPO LIMPO, PERTO DO TERMINAL @ Google Earth
FAVELAS @ GeoSampa - PMSP
TELHAS DE AMIANTO, LOTES MENORES
RECORTE NO CAPÃO REDONDO @ Google Earth
CASAS MENORES, RUAS MAIS ESTREITAS E MAIS DISFORMES
existem essas particularidades de forma urbana, mas também há particularidades nas periferias que só podem ser vistas de baixo e com a vivência: tanto no espaço como na cultura e na política.
RECORTE NO JARDIM ÂNGELA @ Google Earth
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AINDA FAZ SENTIDO FALAR PERIFERIA? Entendo que o modelo centro-periferia já não é, sozinho, suficiente para entender a metrópole. As diferenças geográficas dos espaços intra-urbanos das cidades e regiões metropolitanas, as mudanças mais recentes no regime de acumulação nas cidades, a reestruturação territorial do mercado imobiliário-financeiro e as décadas de algum inves mento público resultado de muitas lutas sociais, tornaram muito mais tênues as fronteiras entre o que é o centro e o que é a periferia.
Masterplan —ou projeto geral— do PIU Terminal Campo Limpo @ SMUL - PMSP
Ao mesmo tempo, a grande quan dade de lugares que se costumou chamar de "a periferia" (no singular) são lugares mais complexos, heterogêneos, lugares únicos. Não existe apenas uma periferia, mas várias. E são os sujeitos periféricos que têm afirmado essa pluralidade, de forma cada vez mais potente. Enquanto ainda não temos um termo melhor para explicar o padrão de segregação do nosso tempo, a urbanista indiana Ananya Roy (2017), dentre outros autores preocupados com a diversidade das cidades do Sul Global, nos sugere um conceito de periferias com ressalvas, que hoje é mais ú l se entendido para além da localização territorial. Um conceito que considere também as agências polí cas periféricas, em sua mul plicidade e contradição. As periferias contudo, con nuam sendo um espaço do entre, nunca inseridos completamente nas lógicas que caracterizam um centro. Têm histórias e memórias próprias, que es veram sempre à s margens da análise e da historiografia urbana.
UM CARDÁPIO DE FERRAMENTAS GENÉRICAS DE PROJETO DE ESPAÇOS LIVRES PARA ESPAÇOS PREEXISTENTES GENÉRICOS
CADÊ PROPOSTAS PRA PRAÇA? QUAIS SÃO AS PROPOSTAS DE PROJETO DO PIU? A maioria das propostas de obras no entorno são obras de pequeno porte, para melhoria da acessibilidade, principalmente ao próprio terminal, chamadas "Plano de Circulação": são alinhamentos viários, melhorias de calçadas, implantação de travessias, iluminação e mobiliário. As propostas mais interessantes me parecem ser as de maior porte: dois parques lineares nas margens dos Córregos Pirajussara e da rua Ivar Beckman; e a "Rota Cicloviária", a proposta mais clara, com diferenciação entre ciclovias e ciclorrotas e o desenho em mapa dos percursos. O conceito principal que orienta a proposta de desenho urbano do PIU Terminal Campo Limpo é de pequenas intervenções que melhoram os percursos de pedestres e ciclistas entre os equipamentos públicos que já existem, um esboço de rede. Assim, as escolas, creches, postos de saúde e o terminal, que já estão presentes, serão ligados por novas calçadas e ciclovias arborizadas, bem calçadas, iluminadas e com travessias seguras.
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AS PROPOSTAS MAIORES PARA OS PARQUES LINEARES
CADÊ O CORREDOR DE ÔNIBUS DA ESTRADA DO CAMPO LIMPO? AS INTERVENÇÕES PONTUAIS NAS VIAS PÚBLICAS LISTADAS COM CÓDIGOS E APONTADAS NO MAPA
CADÊ PROPOSTAS PRO TERMINAL?
O PARTIDO DO MASTERPLAN É QUALIFICAR ESTAS LIGAÇÕES
CADÊ PROPOSTAS QUE NÃO SEJAM DE ESPAÇOS LIVRES?
AQUI ESTÁ A FAVELA MARIA VIRGÍNIA. PRA ONDE VÃO OS MORADORES DA FAIXA ONDE PASSARÁ O NOVO PARQUE? CADÊ PROPOSTAS PROS EQUIPAMENTOS PÚBLICOS?
NA REVISÃO DO MASTERPLAN, O PERÍMETRO DO PIU CRESCEU INCORPORANDO MARIA VIRGÍNIA
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ONDE ESTÃO OS PROBLEMAS DO PIU TCL?
01 O PROGRAMA DE AÇÕES DO PIU SE ESQUIVA DAS QUESTÕES ESTRUTURANTES DAS FAVELAS. O desenho detalhado do raio teórico de 600 metros de abrangência do PIU desvia de algumas favelas, deixando as de fora. A maior delas, Maria Virgínia, foi incluída na revisão do masterplan, mas outras permaneceram de fora. Ainda que incluídas, os únicas obras listadas para esses bairros são de acessibilidade e os parques lineares, que estão previstos para áreas hoje ocupadas por favelas sem nem prever as formas de realocação e/ou atendimento habitacional dos moradores. Questões da polí ca habitacional, como urbanização, regularização, melhorias, saneamento, remoção com produção de novas unidades não são mencionadas. Da mesma forma, as ZEIS de vazios, que são terrenos reservados no zoneamento da cidade para a produção de habitação social, estão iden ficadas mas não são mobilizadas pelo projeto para possíveis ações habitacionais.
DOS EQUIPAMENTOS PÚBLICOS.As terras e edifícios públicos do entorno do terminal são listados nos mapeamentos que foram usados para elaborar o projeto. Segundo a prefeitura, esses imóveis permanecerão de uso público, mas não há proposta de como serão u lizados. O PIU não aponta um desenho, mesmo que um rascunho, de uma polí ca de incremento ou melhoria dos equipamentos públicos, como escolas, creches e postos de saúde da região, para além das conexões entre eles. Nem das praças, nem dos espaços culturais.
DO PRÓPRIO TERMINAL! O PIU não detalha quais serão as obras e reformas feitas no terminal nem es pula quais são os limites do aproveitamento comercial do terminal, no seu terreno e do seu entorno. Apesar de representar no masterplan futuras paradas de ônibus centrais, não constam nas ações propostas a implantação de um trecho do corredor de ônibus da na Estrada do Campo Limpo, que ligaria o Terminal ao corredor de ônibus das Avenidas Francisco Morato, Rebouças e Consolação, que hoje está incompleto, porque não chega até o Terminal Campo Limpo.
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02 NA FORMA COMO O PIU FAZ A LEITURA DO TERRITÓRIO Acompanha a proposta inicial dos PIUs dos Terminais um caderno de referências que contém dados de um diagnós co socioterritorial para os três terminais e seus entornos. São informações "consideradas suficientes para, numa primeira aproximação, dar a conhecer o contexto urbano e social onde cada terminal de ônibus opera": dados técnicos e operacionais do funcionamento e plantas esquemá cas do terminal, dados estatís cos da população do distrito onde está o terminal, mapas de zoneamento, uso do solo, referências e equipamentos, áreas verdes, imóveis públicos, alinhamentos viários previstos e temperatura do distrito, extraídos dos Cadernos das Subprefeituras, produzidos para a elaboração dos Planos Regionais, elaborados em 2016. O texto que introduz os mapas esboça alguns pontos importantes como a transformação recente da região, a chegada de empreendimentos imobiliários, o comércio abundante e as necessidades habitacionais. Mas termina em conclusões genéricas, que nada mais são que as diretrizes extraídas dos perímetros de ação dos Planos Regionais, e que não se traduzem em propostas claras para o território. A segunda leva de informações sobre o PIU trouxe um mapa chamado "Análise Urbanís ca", que é nada mais que um mapa do zoneamento vigente na região, e a iden ficação de "imóveis passíveis de transformação", as áreas mais propícias a serem u lizadas nos futuros empreendimentos associados ao PIU. São todos terrenos vazios, ou pouco construídos, como garagens e campinhos. A leitura do PIU não inclui informações qualita vas mais subje vas, mesmo que simples, para produzir uma leitura do território. A experiência dos usuários e operadores do terminal, os percursos de pedestres e dos usuários do transporte público, as formas de ocupação temporária dos espaços públicos, as demandas de equipamentos e serviços públicos, as histórias contadas e recontadas, as histórias perdidas, os valores simbólicos, os eventos culturais, os grupos sociais, os conflitos. Isso não costuma fazer parte das cartografias dos urbanistas.
É significa vo disso que nem a Praça do Campo Limpo tem importância nas representações do diagnós co do PIU, ainda que seja um espaço de grande afeto e ocupação pela comunidade, como veremos mais à frente. Do mesmo jeito o Espaço CITA, que está na Praça, em terreno público cedido, mas que sequer aparece nos mapas de equipamentos e referência. Entender o território pela diversidade de ações e olhares de quem o ocupa e o construiu ao longo do tempo não é a questão central da leitura apresentada. A “análise urbanís ca” parece, na verdade, interessada em apresentar as oportunidades de exploração imobiliária do território para os possíveis concessionários.
URBANISTA É MÉDICO PRA FAZER DIAGNÓSTICO? A ideia de se chamar uma leitura do território de "diagnós co" revela o quão técnica ela é. A leitura do PIU reproduz uma prá ca comum entre os urbanistas, de produzir mapas e reunir informações estatís cas, mapas, tabelas e leituras históricas hegemônicas, que sim, muito dizem sobre os lugares e têm sua importância, mas acabam sendo usadas como as únicas fontes de informação sobre os territórios, que não são enxergados como lugares, ocupados por gente. As áreas de projeto são delimitadas e entendidas à distância. Deslocadas dos sujeitos que os compõem e de suas histórias. Deslocadas da materialidade da paisagem, da sua esté ca, suas muitas poé cas, perspec vas, narra vas. Assim, muitas realidades são perdidas e apagadas, porque se enxerga os lugares com uma lente que só, é insuficiente. O urbanista de diagnós co torna-se um profissional técnico, disposto a dar sozinho ou dentro de um corpo de outros técnicos, respostas técnicas a questões vistas como patologias, que são na realidade processos mais complexos e heterogêneos, que exigem também os saberes técnicos para serem entendidos e enfrentados, mas não só eles. O diagnós co é um procedimento colonialista porque avalia a realidade urbana que desconhece a par r de critérios de um modelo ideal de cidade que foi formulado em outro lugar que não é o lugar do projeto. Assim, é óbvio que a maioria das caracteríscas da cidade real não se adequará a esses parâmetros ideais. O que poderia ser enxergado como contradição, passa a ser patologia, problema. A periferia como objeto desse olhar será sempre vista como lugar só de falta, ausência, a ser todo refeito. Se tudo é falta, as potencialidades e presenças, são encobertas. E as faltas reais não são compreendidas.
DE QUE SERVEM ESSAS LEITURAS TECNICAS SE NÃO SE TRADUZEM EM PROPOSTAS?
E onde chegaremos como urbanistas de diagnós cos? Se estamos interessados em uma transformação urbana com interesses privados me parece que teremos sucesso, porque o descolamento da realidade e o apagamento da diversidade dos lugares passa a ser uma estratégia em seu favor. Mas se estamos interessado em uma transformação de interesse público, o urbanismo de diagnós co talvez falhará na maior parte das vezes porque impõe uma ideia ao invés de construí-la em conjunto ou colocá-la para ser discu da com outros pontos de vista.
A PRIMEIRA APRESENTAÇÃO. O Caderno de Referências primeiro explica, através de um quadro, os ônus e bônus de cada dimensão do projeto - terminal, terreno e entorno. Apresentar essas informações como diagrama e croquis volumétricos permite entender as transformações nessas três dimensões bem mais rápido que lendo o texto da proposta. Mas como é um quadro muito pouco detalhado, não deixa claro quais são os agentes envolvidos e quais exatamente são as responsabilidades e as oportunidades para cada um deles, nem as garan as dessas responsabilidades. E isso é essencial para fazer uma leitura crí ca da ideia. Falaremos mais desse quadro adiante.
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Depois, o Caderno de Referências se divide em três partes, uma para cada terminal. Cada um deles tem o diagnós co urbanís co, que é apresentado por meio de um texto de uma página sobre a região, e gráficos e mapas, semelhantes aos Cadernos das Subprefeituras, usados nos Planos Regionais, produzidos com dados técnicos já existentes e disponíveis no site GeoSampa, da secretaria. Foi um trabalho de compilação de dados e nenhuma informação nova parece ter sido produzida. A presença de muitos dos parágrafos, mapas e gráficos parece também não fazer muito sen do se comparada às propostas apresentadas. São "diagnós cos" que não encaminham ideias, parecem estar ali para fazer volume ou para construir uma leitura de questões do território que depois não são enfrentadas pelo projeto.
NA FORMA COMO O PIU APRESENTA SUAS PROPOSTAS Todas as apresentações oficiais do PIU Terminal Campo Limpo foram por meio virtual, através do site Gestão Urbana, da Secretaria de Urbanismo e Licenciamento. Há primeiro uma página que jus fica brevemente os três PIUs para os terminais de ônibus, e junto dela foi aberta a primeira consulta pública. Essa consulta trazia um texto dividido em quatro partes (igual para os três PIUs), definindo o objeto do projeto - o terminal, seu terreno e seu entorno -, as mo vações, o quadro norma vo - os planos, as leis e os decretos que o influenciam - e a descrição dos itens que compõem um diagnós co da área e um programa de interesse público para o projeto. Esse diagnós co e o programa estão em um arquivo anexo, chamado Caderno de Referências.
No final, vem o programa de interesse público, apresentado em dois mapas. Um mais aproximado do terminal, com ícones, que situam de forma aproximada a localização das ações propostas. São ações genéricas, que se repetem em mais um ponto - wi-fi, iluminação, travessia, etc. O outro mapa, mais abrangente, que inclui todo o perímetro do projeto, situa ações mais específicas. Cada ação é um número disposto no mapa, e há uma legenda, com parágrafos, que explicam a ação. A forma de apresentação das propostas nesse estágio era suficiente para entender o caráter do projeto, de pequenas intervenções de mobilidade e acessibilidade. E suficiente também para entender que nenhuma das propostas estava desenvolvida ainda a ponto de ter uma localização precisa nem uma materialidade de desenho. Era possível então fazer considerações crí cas sobre o caráter do projeto, mas não sobre as intervenções em si. Visualizá-las por meio de uma descrição textual e um ícone num mapa é difícil, quanto mais emi r algum juízo de valor.
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aqui estão apenas algumas das etapas do diagrama. o conjunto tem vinte telas.
cadê no projeto?
A SEGUNDA APRESENTAÇÃO. Trouxe propostas mais desenvolvidas. Há uma nova página de textos, com novas informações e argumentos do projeto, o que permite uma leitura crí ca mais clara. A linguagem do texto é semelhante à forma de escrita de leis e planos, citando ar gos, parágrafos de ar gos, e organizada em diretrizes, obje vos, etc. Seu caráter é muito parecido com a formulação anterior do projeto. A diferença parece estar mesmo no detalhamento da proposta e das suas jus fica vas. Um novo diagrama, em etapas, explica passo a passo a concepção do projeto e do diagnós co do projeto de forma simples e clara. Contudo, reforça uma representação genérica da cidade, não somente na linguagem do desenho, mas também porque é o mesmo diagrama para os três PIUs de terminais, sinalizando que a estratégia de projeto é a mesma para lugares diferentes. O diagrama também enfa za questões que não são enfrentadas com a mesma ênfase pelo projeto, como habitação e equipamentos.
Acompanham cinco novos mapas, também mais detalhados que os dois anteriores apresentados. O principal deles é um masterplan, que contém ações do mesmo caráter das anteriores, mas as situa mais precisamente no território e esboça sua forma: a largura das calçadas, a posição das travessias, a arborização. Muitas das propostas então começam a ter materialidade e contexto. É usado como recurso a ideia do toolbox, ou caixa de ferramentas. Para cada proposta representada em planta no mapa é atribuída uma estratégia que compõe o toolbox, uma espécie de cardápio de propostas genéricas de projeto. Cada estratégia do toolbox está ilustrada ao redor do mapa com desenhos simples em perspec va isométricas de sua aplicação em um contexto genérico.
Um segundo mapa é a "Análise Urbanís ca", um mapa de zoneamento da região, que muito pouco diz a um leitor que não está acostumado com a infinidade de zonas (e suas siglas) da cidade. Traz de informação nova a marcação de "Imóveis Passíveis de Transformação", que são terrenos vazios ou pouco ocupados, mas isso não está claro no mapa. Só sabemos que são terrenos assim porque procuramos essas áreas em uma fotografia aérea. Os outros três mapas são muito parecidos: um "Plano de Circulação", "Eixos" e a "Rota Cicloviária". Poderiam estar compilados em apenas um mapa porque ou as informações se repetem ou muito pouca diferença fazem para o leitor interessado nas propostas - um mapa de eixos abstratos parece ser feito por arquitetos para ser lido por arquitetos.
ESSAS SÃO ALGUMAS DAS PROPOSTAS DO TOOLBOX: BACANINHAS, MAS GENÉRICAS PARA LUGARES GENÉRICOS
IMÓVEIS PARA INCORPORAÇÃO É SÓ ISSO UMA ANÁLISE URBANÍSTICA?
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URBANÊS TAMBÉM É VIOLÊNCIA Os projetos ou planos urbanos não têm fugido de um padrão geral de linguagem que chamamos de urbanês: desenho e texto de arquitetos para arquitetos. Mesmo que não estejam em formato de leis, os textos ou desenhos feitos pelos arquitetos urbanistas parecem ser de grande dificuldade de compreensão para as pessoas que não são arquitetas. Mapas abstratos e ilegíveis, perspec vas sem referências, siglas de zonas, estruturas de textos com ar gos, caputs e parágrafos, conceitos descolados da materialidade dos lugares, leituras técnicas distantes. Tudo isso parece muito distante e desinteressante. Falar uma linguagem que somente as pessoas do campo disciplinar entendem, voluntária ou involuntariamente, produz e reproduz uma relação de poder, simbolicamente violenta, que legi ma a ideia de que apenas os "especialistas" são capacitados para discu r questões que afetam a todos, no nosso caso, a produção da cidade! Assim, o diagnós co técnico se sobrepõe às leituras co dianas e afe vas dos lugares, e as propostas de escritório prevalecem sobre as ideias e sonhos locais. O sociólogo francês Pierre Bordieu (1989) discute como disposi vos simbólicos também se configuram como formas de violência, e como eles sustentam um poder simbólico. São as racionalidades hegemônicas. A linguagem e a cultura arquitetônica e urbanís ca é um disposi vo importante para sustentar também concretamente as transformações urbanas excludentes e autoritárias. São coisas inseparáveis. Nós urbanistas ao reproduzirmos essa linguagem sem nem ao menos refle r sobre ela, contribuímos para o distanciamento do nosso conhecimento da maioria da sociedade e/ou para o grande impacto destru vo que o nosso conhecimento têm no apagamento de outras formas de enxergar, produzir e ocupar a cidade (Tiago Regueira, 2018). Desde as reflexões trazidas pelos pontos de vista reformistas-par cipa vos sobre esse caráter instrumental do planejamento, muito têm se discu do e feito no sen do de tornar as representações do urbanismo mais acessíveis e interessantes a outros grupos da sociedade, de forma que se apropriem e também par cipem do processo. Temos visto formas de desenhar e escrever que tentam fugir tanto da erudição do arquitetoar sta e principalmente da rigidez do arquiteto-técnico. Contudo, as tenta vas comunica vas, como provoca o urbanista Rainer Randolph (2007), não transformam por si só a lógica instrumental e burocrá ca do planejamento, porque não repensam radicalmente as formas de pensar e agir dos planejadores e urbanistas, os processos. Não bastam car lhas, ilustrações e infográficos se os disposi vos de linguagem comunica vos nem sempre estão acompanhados dos valores da construção cole va. Ainda que com esses recursos os urbanistas consigam expressar mais claramente suas ideias, as ideias não superaram a intenção de se sobrepor aos outros conhecimentos e pontos de vista. O esforço da linguagem urbanís ca que se pretende libertária, então talvez devesse se concentrar em comunicar não para só convencer, se impor ou se legi mar, mas para construir junto, para discu r, transformar e se transformar. Para expressar o conhecimento do urbanista como um dos muitos conhecimentos num processo de projeto cole vo ou para auxiliar que outras ideias também se expressem. Uma linguagem aberta.
CARDÁPIO DE PROJETO : URBANISMO SEM CONTEXTO A ideia de um toolbox ou cardápio de soluções projetuais que podem ser u lizadas em diferentes contextos, e a ideia de instrumentos urbanís cos atrelados a uma estratégia de transformação urbana aplicável em lugares muitos dis ntos, muito tem a ver com as formas como o urbanismo hegemônico opera de forma autoritária. Essa esté ca do urbanismo termina por contribuir tanto para um apagamento das especificidades, diversidade, conflitos, memórias e geografias locais, quanto para, na forma da representação, produzir desenhos que não comunicam - e esses dois pontos estão in mamente ligados.
— A cidade não é plana, não é ortogonal, não é branca. Nem é um tabuleiro vazio onde são incorporados empreendimentos — Considerar essas questões não é só um contextualismo por capricho formal ou por oposição aos instrumentos da polí ca urbana mainstream. O desenho genérico sem referência e o processo de transformação descolado das dinâmicas co dianas dos lugares demonstram o desconhecimento dos arquitetos da cidade real e o quanto não estão comprometdos com o que há de bom no que existe. E mesmo que o discurso e as prá cas do urbanismo hegemônico, tensionados pelos pontos de vista liberais têm reforçado uma fragmentação e diminuição dos perímetros dos projetos urbanos, isso não tem significado que o desenho de projeto e os instrumentos urbanís cos estão estão comprome dos em enxergar a diversidade dos contextos. Ao contrário, nesse ponto, sele vamente, o urbanismo hegemônico guarda a herança modernista da tábula rasa e do projeto modernizante, civilizador. A fragmentação e a redução de escala, como mostraremos, têm sido, na maior parte dos casos, mais funcional para a concepção de projetos que fogem da dimensão estrutural das desigualdades das nossas cidades.
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Perspectiva apresentada nos materiais de divulgação do projeto da Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí. @ SMDU - PREFEITURA DE SÃO PAULO
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pius, operações urbanas, concessões, e também plano diretor e zoneamento
NO INSTRUMENTO ADOTADO PELO PIU, NA ESTRATÉGIA DE TRANSFORMAÇÃO E DE FINANCIAMENTO
COMO TÊM FUNCIONADO OS PROCESSOS DE ELABORAÇÃO DE PROJETOS URBANOS EM SÃO PAULO?
O instrumento adotado pelo PIU é uma parceria público-privada, através da concessão do terminal e do seu terreno a uma empresa privada ou consórcio de empresas privadas, a concessionária. Esse mecanismo é a proposta mais clara e bem estruturada apresentada na proposta do PIU, seu ponto principal, chamada de Área de Estruturação Local - AEL.
CAPITALISTA
Com esse mecanismo, o PIU aposta na capacidade empreendedora e gestora da concessionária, que promoverá, ao mesmo tempo reformas e novos empreendimentos no terminal, no seu terreno e no seu entorno, como estratégia principal de transformação do território. Os benefícios para a população que virão com a implementação da concessão e dos seus empreendimentos associados, são, além da (em tese) melhor gestão do terminal, o adensamento constru vo em torno das estruturas de transporte público e as "oportunidades econômicas" vinculadas à esses empreendimentos, como o comércio, os serviços e os empregos. Este raciocínio tem a ver com o que se chama no urbanismo de DOT, desenvolvimento orientado pelo transporte. A ideia básica do DOT é que o desenvolvimento urbano, no caso, o desenvolvimento imobiliário e o adensamento constru vo, populacional e de a vidades comerciais, têm que estar nas regiões próximas de onde se constroem as infraestruturas de transporte: as linhas de metrô e trem, os corredores de ônibus, os terminais e as estações.
DE ONDE VEM O DOT? A ideia do DOT muito tem a ver com algumas das premissas da matriz reformistapar cipa va do urbanismo, que afirma a necessidade de cidades mais densas - ou seja, mais gente morando perto - com usos mistos - comércio, habitação e equipamentos sociais juntos nos mesmos bairros, nas mesmas ruas, nos mesmos prédios. Essa seria uma forma de construir cidades mais vivas, seguras e de aproveitar de maneira mais eficiente e justa as infraestruturas construídas com dinheiro público.
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A par r de um conceito único de transformação da cidade via mercado imobiliário é construido um ordenamento jurídico geral da polí ca urbana.
SÓ DA PRA SER ASSIM?
São feitas discussões entre os agentes que protagonizam essa forma de construção da cidade, (re)formulando instrumentos e polí cas conforme seus interesses e incluindo residualmente demandas de outros grupos.
quanto mais estruturante a decisao, menos participaçao.
É definida uma agenda de projetos urbanos, contemplando algumas regiões específicas da cidade.
COLONIALISTA VAMOS PROPOR PIUS POPULARES?
Há espaço para a proposição de projetos pela sociedade civil, mas seu prosseguimento depende da prefeitura.
Os perímetros dos projetos são definidos sempre a par r de critérios polí cos.
Um diagnós co é elaborado, distante do território. E mesmo assim, só uma parte dele municia propostas concretas.
É isso não é um problema. o problema é A DESIGUALDADE DE VOZES NA POLÍTICA URBANA.
TÉCNICO —
O SABER POPULAR NÃO É NEM COGITADO. E BOA PARTE DO SABER ACADEMICO É IGNORADO.
VAMOS PENSAR EM OUTRAS ESTRATÉGIAS?
Um instrumento de parceria público-privada é escolhido e uma modelagem é feita de forma a tornar viável o negócio para os parceiros.
Um programa de propostas é listado, com pontos posi vos, mas no geral, absolutamente insuficiente frente as necessidades concretas e as questões estruturantes dos lugares.
O projeto (quase pronto) é apresentado em canais e/ou códigos que não comunicam com a população diretamente afetada.
E APRESENTADO COM DEFINIÇÕES FECHADAS. E INDEFINIÇOES QUE ASSUSTAM.
BUROCRÁTICO Uma consulta pública pró-forma (chamada de processo par cipa vo) é iniciada, sem impactar nas decisões de projeto já tomadas.
GERALMENTE SÓ AQUI A MAIORIA DAS PESSOAS DESCOBRE QUE EXISTE UM PROJETO. E FICAM ASSUSTADAS COM ELE.
Aos diferentes grupos da sociedade civil, resta ou negar todo o projeto, ou aceitar contribuir com questões pontuais, legi mando-o.
ou aguardar passivamente a aprovação DO PROJETO, para participar no seu grupo gestor.
Então são implementados tal qual vieram dos gabinetes nos seus conceitos principais, no máximo com alguns penduricalhos vindos dos gritos da sociedade. Ou são arquivados e esquecidos.
tudo ou nada.
O ESVAZIAMENTO DA REFORMA URBANA São ideias que fazem parte de uma ideia de reforma urbana, que tentaria corrigir os desequilíbrios das nossas cidades, que tem lugares muito concentrados de infraestrutura, com poucas pessoas vivendo perto delas (geralmente as mais ricas), e outros lugares onde moram muitas pessoas com pouca infraestrutura construídas (geralmente as mais pobres), e essas pessoas percorrendo grandes caminhos todos os dias para se deslocar de um lugar para o outro. Entretanto, as contradições e sobreposições das noções reformista e liberal do urbanismo, bem como o pragma smo da aplicação dessas ideias nas nossas cidades, as têm esvaziado da necessidade fundamental de estarem acompanhadas de outras polí cas para que os obje vos da ideia original pudessem ser perseguidos. A preocupação com o preço e valorização do solo urbano, com o projeto dos edifícios e sua relação com a rua, com o tamanho e a quan dade de apartamentos, com uma polí ca habitacional de interesse social, tudo isso seria necessário, em conjunto. As apropriações prá cas do DOT, porém, entendem a ideia de desenvolvimento urbano unicamente como desenvolvimento imobiliário, ou no mínimo, como o mercado imobiliário como o principal motor do desenvolvimento, condição sem a qual não há interesse público. Por isso, não tem nada de novo em essência. Repetem a lógica excludente histórica de produção da cidade. Infraestrutura pública rodeada por empreendimentos de mercado, aos quais muito poucos têm acesso. Não representam nenhum incrementos de diversidade, porque con nuam expulsando os mais pobres e os usos e ocupações preexistentes, e não democra zam as infraestruturas. Não representam um ganho significa vo de densidade, porque não há necessariamente uma relação entre construir mais e morar mais gente. E muito menos criam bairros mais vivos e seguros, porque os projetos em sua maioria não estão preocupados com as relações urbanas para além dos lotes. Restam portanto, como jus fica va de interesse público para esse modelo, as "oportunidades econômicas" que são geradas, o que se traduz como empregos na construção civil e nos empreendimentos comerciais que surgirão. Esse tem sido o chavão do desenvolvimento urbano entendido como desenvolvimento imobiliário.
OPORTUNIDADES ECONÔMICAS FUNCIONAM? É ISSO QUE AS PERIFERIAS QUEREM OU PRECISAM? As “oportunidades econômicas” frutos do desenvolvimento imobiliário são o enfoque urbanís co de uma visão de mundo liberal. Esta pode ser uma forma de enxergar a estruturação urbana interessada em mudanças, mas pode ser também uma ideia retórica, pouco comprome da com uma transformação. Uma fragilidade ou desafio para elas é que não es pulam nem metas nem previsões mais detalhadas dessas oportunidades. As oportunidades são empregos? De que forma elas se relacionam com as a vidades comerciais e de serviços que já existem? As an gas a vidades vão perder espaço, serão expulsas? Quantos empregos serão perdidos e quantos serão criados? Qual po de empregos será gerado e para quem?
Uma contradição é que as experiências reais desses pressupostos em projetos urbanos, mesmo em áreas centrais, estão mostrando que eles só reforçam uma lógica excludente de produção da cidade. Os lugares de residência e de comércio de populações mais pobres estão sendo expulsados diretamente pelo Estado ou indiretamente pelas lógicas de mercado. Essas experiências também mostram que as tenta vas de correção das lógicas de mercado via regulação do Estado, encurtem numa contradição mais profunda. Para que os projetos com esses pressupostos de oportunidades via desenvolvimento imobiliário mais bem se concre zem, o melhor que é haja a menor regulação possível obrigando interesses sociais. Foi o caso das operações urbanas, que estudei em minha iniciação científica. Temos assim um ciclo vicioso: projetos desregulados que se desenvolvem bem economicamente vão sendo paula namente regulados pelo Estado para corrigir suas distorções sociais; passam então a não funcionar, e voltam assim a se desregular. O PIU Terminal Campo Limpo - e a infinidade de PIUs que estão sendo propostos hoje em São Paulo - são projetos pós-operações urbanas consorciadas. Estão no estágio de uma nova desregulamentação.
— O projeto colonialista não enfrenta necessidades com propostas para superá-las, mas com propostas que as mantém sempre latentes — Outra questão é se é realmente esse modelo de desenvolvimento urbano que as periferias - ou as muitas vozes das periferias - querem ou precisam. Certamente haverão concordâncias e discordâncias, muitos pontos de vista. Mas até então não sabemos, porque não foi feito o debate no território. A decisão do desenvolvimento imobiliário e da expansão de fronteiras do mercado como estratégia de transformação veio de fora, já foi tomada. Essa pode ser uma forma possível, até porque a urgência das necessidades e dos desejos das nossas cidades talvez exija estratégias pragmá cas de geração de empregos, inclusive na construção civil e em edifícios de serviços e comércio. Mas será que elas funcionam e duram? Respeitam e mul plicam as potências das agências polí cas e econômicas que já existem nas periferias? Nos parece que insis r sempre nessa ideia como a única revela um olhar colonizador das periferias, reafirmando a ideia de que são lugares de falta e condicionando o sujeito e o território periférico a um lugar de passividade - o operário, o beneficiado, o empregado, o usuário.
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05 NA FORMA DE EXPLORAÇÃO COMERCIAL DO ENTORNO. Demoramos mais de um ano para entender qual realmente será a forma de exploração comercial da concessionária no entorno do terminal, e precisamos perguntar na consulta pública e ligar os pontos entre as respostas que a prefeitura nos deu. Descobrir isso é um ponto essencial para entender a proposta, porque é esse ponto que difere as propostas dos PIUs dos Terminais da proposta anterior de concessão simples dos terminais. A exploração comercial no entorno não acontecerá em terrenos ou espaços públicos. A prefeitura garan u que essas áreas permanecerão de uso público, em uma resposta a nossa pergunta na consulta pública. Acontecerá portanto em terrenos privados, que serão adquiridos pela concessionária por meio de consórcio imobiliário ou desapropriação urbanís ca. Essa úl ma forma é a mais preocupante. Mesmo sendo realizada com recursos da concessionária, a compra via desapropriação é uma forma de u lizar um poder exclusivo do Estado em benefício de um agente privado. Na teoria, as desapropriações deveriam ser realizadas somente para finalidades de interesse público, como para construir escolas, hospitais, novas avenidas, corredores ou de linhas de metrô. Necessitam de um decreto de interesse público ou social para ocorrer. No caso do PIU, porém, esse mecanismo faria parte do contrato da concessão e estaria amparado pela legislação da desesta zação recentemente aprovada em São Paulo. Foi montada uma ordem jurídica que permite que a desapropriação em benefício do privado seja considerada de "interesse público" porque ela é necessária como contrapar da à concessionária que estaria prestando serviço de "interesse público" ao gerir o terminal e custear parte das obras do PIU. Como as desapropriações são ofertas de compra que não podem ser negadas, todos as pequenas propriedades do entorno estarão vulneráveis à possibilidade de serem adquiridas pelo Estado a qualquer momento, e para serem exploradas por empreendimentos privados. Para a concessionária, a possibilidade de usar a desapropriação é muito importante porque grande parte dos custos financeiros e de tempo na implantação de um empreendimento imobiliário está na aquisição dos terrenos, no processo de negociação individual com cada um dos proprietários e na unificação das matrículas. Sem dois desses empecilho, implantar os empreendimentos fica mais rápido, mais viável e mais rentável. Ou seja, o Estado ra o poder de negociação das propriedades pelos atuais donos e entrega para o empreendedor-concessionário.
DO TERRENO E DO TERMINAL. A exploração comercial no terminal e em seu terreno também preocupam, principalmente porque o PIU não estabeleceu as regras dessa exploração e nem mesmo as formas permi das. É regra da concessão que a empresa responsável não poderá cobrar pela entrada de passageiros no terminal nem onerar de outras formas o sistema público de transporte da cidade. Então, imaginamos que as formas de exploração comercial deverão ser rela vamente intensas para que a concessionária consiga gerir o terminal, inves r em melhorias e ainda obter lucros no negócio sem cobrar tarifas novas.
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Mas como será essa exploração? Ela não foi descrita nos materiais que temos sobre o PIU até hoje. Temos como referência formas de exploração que já ocorrem em outros terminais e estações de metrô da cidade. No terminal em si, podem ser instalados painéis e outros espaços de publicidade, e podem ser alugados quiosques e lojinhas para comerciantes. Já no terreno do terminal e sobre o prédio atual que existe podem ser erguidos novos empreendimentos, principalmente shoppings centers, aproveitando o grande fluxo de pessoas que passam pelo terminal todos os dias. Algumas experiências mostraram que existe um risco dos espaços comerciais e publicitários irem aos poucos engolindo toda a área do terminal, não restando espaço para as a vidades básicas dele. Isso aconteceu no Terminal Metrô Santa Cruz, que virou Shopping Metrô Santa Cruz. O terminal tem uma plataforma, é, escuro e desconfortável, obriga o usuário passar dentro do shopping para fazer a transferência do ônibus para o metrô, e não comporta todas as linhas que passam por lá. Mas há experiências que mostram que é possível conviver um espaço comercial e um terminal de ônibus. Não são usos incompatíveis. Inclusive talvez fosse um erro do concessionário sufocar o terminal, porque, não havendo uma estação de metrô, é só a sua existência que garante um fluxo de usuários para um empreendimento comercial e a valorização dos empreendimentos residenciais no entorno. É o fluxo um dos aspectos que ajuda a garan r a viabilidade do negócio e o a vo mais importante que está sendo oferecido pelo Estado, dos mais importantes. Tendemos então a dizer que o ideal seria a existência de regras de exploração e projeto para os empreendimentos. Mas seria possível a liquidez e rentabilidade do projeto com muitas regras? E regras brandas fazem tanta diferença assim? Já que não é interessante para a concessionária acabar com o terminal... O ponto, na verdade, é que a ausência total de regras deixa o interesse público sem garan as formais. As decisões sobre uma questão de interesse público fica aberta à vontade do concessionário. Esse me parece o problema central da concessão dos espaços públicos: a perda de perspec va de, algum dia, termos um controle democrá co, dos bens comuns.
DO TERMINAL + DO TERRENO DO TERMINAL + DO ENTORNO. Mas é a combinação a novidade, o pulo do gato. Nessa combinação está a forma de atra vidade das concessionárias. Um projeto urbano conduzido pelo mercado em uma região como o Campo Limpo que parece, de início, uma ideia estranha, com a combinação das possibilidades de inves mento e sua localização, nos parece agora uma possibilidade muito viável. Estão sendo oferecidas as melhores oportunidades comerciais do Campo Limpo, um subcentro popular que hoje é uma periferia próxima, como mostramos. O grande fluxo de pessoas torna a possibilidade de empreendimentos no terminal muito atra va, porque há um público rela vamente garan do em função da necessidade de toda a região em passar por ali em quase todas as suas viagens pela cidade. E essa localização, de maior acessibilidade e portanto maior valor do Campo Limpo, é importante para novos empreendimentos, que tornam-se mais viáveis com os incen vos de parâmetros constru vos aos empreendimentos no entorno do terminal e a possibilidade da desapropriação urbanís ca de terrenos.
06 NO FATO QUE O PARCEIRO PRIVADO NÃO ARCA COM TODO O PROJETO URBANO. O PIU e os projetos de Parcerias PúblicoPrivadas urbanas trazem como novidade e carro-chefe as formas de financiamento privado de projetos urbanos públicos, seja através de mecanismos indiretos, como nas operações urbanas, seja através de formas diretas, como no caso das concessões. O PIU Terminal Campo Limpo é uma concessão, porém tem uma par cularidade. O parceiro privado não arcará com todos os custos de todas as obras previstas no projeto urbano.
As obras com as quais ele se comprometerá serão listadas no contrato de concessão, conforme a modelagem econômica, de forma que o projeto seja viável para a empresa. E quais serão? Isso só seria conhecido na implementação do projeto. Como apoiá-lo sem essas informações? O excedente das obras será custeado com recursos públicos, vindo de fundos do Estado ou de outros mecanismos privados indiretos, como a venda de potencial constru vo, como ocorre nas operações urbanas. Portanto, a concessão não garante a execução do projeto como um todo. O recurso do Estado ainda será necessário. Não era uma proposta de desesta zação?
=
01 + 02 + A INJUSTA DISTRIBUIÇÃO DOS ÔNUS E BÔNUS DA TRANSFORMAÇÃO URBANA.Os projetos urbanos em PPP geralmente são defendidos porque junto com as vantagens oferecidas ao parceiro privado, viriam contrapar das diretas e benefícios indiretos para o Estado e para a sociedade. A par r da forma de avaliação que as próprias propostas de PPP propõem, poderíamos dizer que um projeto desse po é bom se a distribuição dos ônus e dos bônus para todos os agentes afetados é justa. Ou seja, todos se beneficiam de algum modo e todos arcam com algum custo, de uma forma equilibrada.
Mas é exatamente aí está uma das crí cas, se não a principal, que temos feito a esse po de urbanismo. Ao contrário do que é apresentado por quem propõe as PPPs, se analisamos mais profundamente os modelos e aplicação dos modelos desses projetos, eles sempre beneficiam muito mais os agentes privados e alguns interesses específicos da sociedade, que não é homogênea, e prejudicam outros muitos setores dela, geralmente, aqueles que sempre foram excluídos das transformações urbanas.
03 +
e qual o interesse público aqui?
EM QUAIS TERRENOS? TEM GENTE MORANDO AÍ!
O PROJETO URBANO É SÓ PLANTAR UMAS ÁRVORES? pra quem? como?
04 + 05 + 06 = Outra questão importante é que as polí cas públicas orientadas por agentes privados têm um limite muito claro de alcance na cidade. Só são viáveis em regiões onde há algum po de oportunidade de mercado atraente, o que representa uma minoria dos bairros das cidades brasileiras, e justamente os historicamente mais privilegiados pelos inves mentos estatais e privados.
@ SMUL - PMSP
aqui tem exploração comercial também
A prefeitura, no material de divulgação do PIU Terminal Campo Limpo esboçou um quadro ilustra vo dos ônus e bônus dos PIUs dos terminais. Mas assim como as demais peças e textos, deixa muito pouco clara e detalhada a forma real de funcionamento do projeto. Propomos aqui um novo quadro, com critérios qualita vos, que tenta mostrar o quanto a distribuição dos ônus e bônus no projeto é injusta. Não somente pela quan dade de ônus ou bônus para esse ou aquele agente, mas também pela segurança ou insegurança de garan as dos benefícios e obrigações, e por muitos dos benefícios também serem ques onáveis, como discu mos acima.
Distribuição de ônus e bônus no PIU, segundo a Prefeitura
estão todos os ônus e bônus aqui?
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A
REVISANDO OS ÔNUS, BÔNUS E AGENTES DO PIU TERMINAL CAMPO LIMPO
MER— CA— DO
Conseguimos entender melhor os interesses envolvidos no projeto e as formas como ele atende esses interesses, se — primeiro isolarmos os bônus e ônus por agentes — e depois qualificarmos esses ônus e bônus pela sua possibilidade, risco ou segurança de se concretizarem, e também pelo quanto atendem aos interesses do agente.
PARA
CONCEDER
É BOM POR QUE?
É RUIM POR QUE?
A EMPRESA CONCESSIONÁRIA DO TERMINAL
O TER— MI— NAL
Exploração Comercial — Lojinhas e publicidade
Gestão do Terminal — manutenção incerto e melhorias sem definições no prédio ainda
O TER— RE— NO
Exploração GARANTIDO Imobiliária — PELO CONTRATO, Novos prédios PELA LOCALIZAÇÃO, no terreno ou em PELO FLUXO DE cima do terminal PESSOAS
O EN— TOR— NO
Exploração GARANTIDO Imobiliária — PELA DESAPROPRIAÇÃO Novos prédios URBANÍSTICA, em imóveis PELA LOCALIZAÇÃO. desapropriados (ou em consórcio) na região
Custeio do Projeto — Parte do programa
O TER— MI— NAL
Redução de GARANTIDO Despesas — MAS QUESTIONÁVEL Por não administrar mais o terminal
Cede a capacidade CERTO e de locação QUESTIONÁVEL do terminal
01
02 03
ES— TA— DO
A PREFEITURA DE SÃO PAULO
01
GARANTIDO PELO CONTRATO, PELO FLUXO DE PESSOAS
0 TER— RE— NO
arriscados riscos de NEGÓCIOS mas viáveis pelas oportunidades combinadas seguro PELO CONTRATO, pela modelagem financeira
Inves mento de tempo e recurso na elaboração e coordenação do projeto
Cede a posse do terreno
02
CERTO e QUESTIONÁVEL O EN— TOR— NO
Implantação de GARANTIDO projeto com PELO CONTRATO, menos recurso — PELA MODELAGEM Parte do MAS QUESTIONÁVEL programa
O TER— MI— NAL
Melhoria da Gestão e da Infra
03 PÚ— BLI— CO
OS MORADORES E USUÁRIOS DO TERMINAL
01
Cede o poder de desapropriação
02 O EN— TOR— NO
03
CERTO
Benefícios do Projeto — programa de obras
INCERTO E INSUFICIENTE PARA AS NECESSIDADES
Oportunidades MUITO INCERTO E Econômicas — QUESTIONÁVEL Empregos e empreendimentos
A
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CERTO E MUITO QUESTIONÁVEL
INSEGURO E QUESTIONÁVEL NÃO HÁ PARÂMETROS
O TER— RE— NO
Ameaças de
PROVÁVEL desapropriação POR CAUSA DO pelo privado INSTRUMENTO Valorização da terra e gentrificação
PROVÁVEL PELO MODELO DE TRANSFORMACAO
CERTO
INCERTO DEPENDE DA ATIVIDADE IMOBILIÁRIA
Mobilização do Estado e do orçamento público para interesses privados
Perda da possibilidade de gestão popular do território e do terminal
CERTO POR CAUSA DA GESTÃO EMPRESARIAL
O ESPANADOR NO RABO DO ELEFANTE Não enxergo as intervenções de pequena escala como as propostas do PIU como um problema em si. Pequenas intervenções podem ter muita potência para promover grandes transformações ou para fazer diferença reais, mesmo que singelas, na vida das pessoas. O que incomoda é construir um programa inteiro de um projeto urbano com intervenções pequenas enquanto, por outro lado, haverá uma oportunidade de concessão que mobilizará recursos e esforços consideráveis para viabilizar um negócio privado. E nas nossas cidades e nas periferias das nossas cidades onde as tensões e as urgências são tão latentes e as questões tão estruturantes, isso parece ainda mais absurdo. A lógica do projeto não está em viabilizar um programa de interesse público através de uma parceria com um agente privado, e sim de viabilizar um programa de interesse privado com alguns projetos no espaço público para jus ficá-lo.
Há algum tempo atrás, me conta a Raquel, ela e outros estudantes montaram na FAU uma exposição de objetos inúteis. Um deles era um elefante com um espanador no rabo. @ Barbara Iamauchi
Isso tem a ver com a fragmentação, uma das tendências atuais do planejamento hegemônico, tensionada principalmente pelo ponto de vista liberal, que entende que as questões urbanas podem ser resolvidas com mais eficiência e agilidade se divididas em projetos de menor escala. O fato é que essa tendência de projetos menores não está privilegiando o diálogo com os agentes locais tampouco enfrentando as questões com mais qualidade de desenho, o que seriam pontos muito posi vos. Ao contrário, a fragmentação tem servido para enfraquecer ainda mais o programa de interesse público nos projetos urbanos. Serve tanto para excluir dos perímetros e dos programas dos projetos as necessidades e os conflitos mais complexos - geralmente as questões habitacionais quanto para descolar os projetos de polí cas públicas mais estruturan-tes, que enxergam as questões urbanas na cidade como um todo - aqui novamente as questões de habitação, mas também as de transporte. A ideia do Estado mínimo vem assim se concre zando nos projetos urbanos também, não só em São Paulo, mas em outras cidades brasileiras (Raquel Rolnik e outros, 2018). A par cipação tem se reduzido à par cipação mínima (Carlos Vainer, 2000; Evelina Dagnino, 2004; Flavio Villaça, 2005), as contrapar das de interesse público (principalmente na forma de propostas de projeto) que já eram residuais, são cada vez mais intervenções mínimas e genéricas e os critérios de controle social, regulação e avaliação dos projetos inexistentes. Em contraponto, a arquitetura financeira e ins tucional das concessões e parcerias público-privadas, no sen do estrito, está se tornando cada vez mais complexa.
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A
CLICANDO NO BALÃO, ERA POSSÍVEL FAZER UM COMENTÁRIO REFERENTE ÀQUELA SEÇÃO DO TEXTO
ESSE É O TIPO DO COMENTÁRIO: CONCORDO COM O TEXTO DA PREFEITURA, DISCORDO, OU CONCORDO COM RESSALVAS
ESSA ERA A PLATAFORMA DE CONSULTA VIRTUAL DOS PIUS DOS TERMINAIS
não dá pra comentar um comentário OS COMENTÁRIOS FEITOS APARECEM AQUI
HÁ UM MESMO TEXTO PARA O TRÊS TERMINAIS, DIVIDIDO EM SEÇÕES.
COMO O PIU FOI ELABORADO? Segundo a Secretaria de Urbanismo e Licenciamento, as propostas do projeto vieram das diretrizes dos Planos Regionais, elaborados em 2016. O processo dos Planos promoveu algumas audiências e oficinas em todas as subprefeituras da cidade. Entretanto, trata-se de um plano, que diz respeito a outra escala. Todas as suas proposições são muito genéricas, no nível de diretrizes. A elaboração do PIU, que é um projeto, mais detalhado e para uma área muito menor, portanto, não deveria se valer do processo par cipa vo dos Planos Regionais e considerá-lo suficiente. Contribuímos com comentários na segunda consulta pública, ques onando a ausência de informação e par cipação popular no processo do PIU - já que só haviam canais de comunicação virtuais, e nenhuma divulgação no terminal ou no bairro, sequer então algum evento par cipa vo. Os comentários foram catalogados e respondidos, depois de algumas semanas.
A resposta argumentava brevemente que as concessões e o PIU foram propostos pelo legisla vo e fazem parte do Programa Municipal de Desesta zação, e foi dito que já há par cipação: o PIU contém uma proposta de cons tuição de um conselho gestor para ampliar as discussões - porém, só é cons tuído quando o projeto já foi implementado! Só haveria portanto um espaço concreto de discussão se o projeto fosse aprovado. Não há um canal ins tucional para ques onar sua existência além da consulta virtual. Na segunda consulta foram 10 contribuições, de 4 pessoas diferentes apenas. E na primeira, apenas 1 comentário! Houve resposta da prefeitura só na segunda consulta, e as respostas são sempre jus fica vas, e quase sempre genéricas. Ou seja, as contribuições não resultam em discussões, sequer então em alterações reais do processo, que segue o seu ritmo. O rito "par cipa vo" nesses moldes, então, parece apenas servir como cumprimento de um requisito burocrá co, uma vez que as decisões todas são tomadas em escritórios e gabinetes, e nem como ferramenta de informação e divulgação do projeto parece funcionar, dada a pequena quan dade de contribuições.
não dá pra comentar se não for a partir dE UMA proposta DA PREFEITURA
QUAIS FORAM OS LUGARES DE DISCUSSÃO E DECISÃO? Ao mesmo tempo que não era discu do no território, os PIUs para os terminais estavam sendo discu dos pelos agentes públicos (inclusive a secretária municipal de urbanismo) em eventos promovidos por grandes universidades privadas e pelo órgão do setores da construção civil e do desenvolvimento imobiliário, que ocorriam no centro da cidade, nos espaços desses grupos. Lá um urbanismo par cipa vo está acontecendo. Não conseguimos par cipar dos eventos. A convenção do Secovi, o sindicato patronal da construção, cobrava ingressos de R$ 880 por dia de evento para os interessados.
um dos eventos em que foram discutidos os pius dos terminais. esse a entrada era gratuita.
empresa interessada nas concessões
e aqui está a resposta da prefeitura.
aqui ficam as contribuições.
A
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esse é um recorte de uma das devolutivas da consulta pública. é um arquivo em pdf.
ENCERRADA A CONVERSA?
secretários do estado acadêmico
URBANISMO SURDO — PARA ALGUMAS VOZES Não só as reflexões mas as simples descrições do PIU que trazemos neste trabalho são resultado de um estudo, de mais de um ano, só dele. Fora o acúmulo das pesquisas anteriores. Como as pessoas que não são urbanistas, conseguirão entender a proposta do PIU para então contribuir a vamente, para além das sugestões de obras e intervenções? Temos construído processos de projeto e modelos de par cipação para que as pessoas não par cipem, ou par cipem somente de decisões que não são estruturantes.
O MITO DA PARTICIPAÇÃO 5.0 Recentemente estamos falando muito em formas virtuais de par cipação nas decisões de polí cas públicas, como se a agilidade e pra cidade dessas tecnologias fosse suficiente para atrair a par cipação de muitas pessoas e também para alterar significa vamente as decisões dessas polí cas. Os PIUs estão incorporando essa como a principal, senão a única, forma de par cipação na fase de elaboração do projeto. As audiências públicas nas operações urbanas, que já eram espaços de par cipação precários e sem grandes influências nas decisões estruturantes, estão sendo subs tuídas pela consulta virtual, uma forma ainda mais distante e efêmera. A consulta virtual reduz a par cipação a pequenos comentários e a pareceres do po "concordo", "discordo", ou "concordo em parte" e a devolu vas em formas de tabelas com respostas de dúvidas ou comentários com o tom de "vamos analisar isso aí". A cien sta polí ca Evelina Dagnino (2004) se refere a esses fenômenos como uma redução da noção do que é democracia, cidadania e par cipação. Não que esse vínculo fraco de interação da maioria da sociedade com o Estado já não fosse a norma das audiências públicas presenciais. Mas ao jogarmos elas fora, trocando pela consulta virtual, perdemos a chance de transformar esses espaços em lugares mais a vos e que de fato interfiram nos projetos, como oficinas, escritórios-antena, assembleias, conselhos delibera vos - experiências que já foram experimentadas, mas muito pouco. Parece que caminhamos para trás, porque não conseguimos mais nem explicitar os conflitos e interesses envolvidos na formulação dos projetos, como era possível nas audiências. E não que os meios virtuais tenham que ser desprezados, mas seu distanciamento dificulta uma ideia de processo de projeto mais cole vo. A par cipação virtual como mecanismo único parece desprezar ou desis r do debate público no espaço público, nos territórios de projeto. Trabalhamos com transformação do território. Não deveríamos estar nos territórios, dialogando com eles?
SERÁ POSSÍVEL UMA PARTICIPAÇÃO VERDADEIRA SEM REPENSAR RADICALMENTE OS PROCESSOS DE PROJETO? Será possível uma par cipação plena se não revirmos o urbanismo de diagnós co, as intervenções genéricas, o Estado-capital e a lógica da rentabilidade, a imposição esté ca, a linguagem que pouco comunica, o desenho fechado, a par cipação à distância? Será possível se não repensarmos todos os pontos que citamos aqui (e muitos outros) que revelam o caráter técnico-burocrá co, colonialista e capitalista do urbanismo? Bastaria apenas a inserção de canais, regulamentações ou conceitos em qualquer modelo, ou neste modelo atual, de projeto para que as diferentes vozes da sociedade possam contribuir a vamente? Não me parece apenas uma questão das formas de gestão do planejamento, mas sim da revisão das formas de pensar do planejamento e dos interesses envolvidos na produção formal da cidade. Muito mais uma questão de racionalidade do que de regras, puras e simples. A história do urbanismo nos mostra que as formas de par cipação a va só se estabelecem quando o processo de projeto surge de baixo pra cima, com um comprome mento em enfrentar, co dianamente e cole vamente, questões estruturantes da sua lógica, como são os planos e projetos autogeridos coordenados por movimentos sociais e assessorias técnicas. Temos visto também que canais de par cipação, os mais diversos, implementados por meio de leis e sem o ques onamento radical das formas de operar do urbanismo, têm provocado resultados inefe vos ou, nos melhores casos, rea vos, de resistência, como o úl mo recurso que se tem para barrar um projeto. Não se desenvolveram como espaços constru vos.
AINDA QUE O URBANISMO HEGEMÔNICO NÃO É UMA FORMA FIXA, MAS MUTÁVEL, UM ESPAÇO DAS TENSÕES E DAS RELAÇÕES DE PODER NO ESTADO E NA SOCIEDADE, O QUE TENTO MOSTRAR É QUE AS FORMAS DE OPERAR DO PLANEJAMENTO HEGEMÔNICO TÊM LIMITES CLAROS NO ENFRENTAMENTO DE QUESTÕES ESTRUTURAIS NA PRODUÇÃO DAS CIDADES. PRINCIPALMENTE HOJE, QUANDO PREDOMINA O PENSAMENTO LIBERAL. O URBANISMO FORMAL NÃO CONSEGUE, ESTRUTURALMENTE, ACOLHER A DIVERSIDADE DAS REALIDADES, DAS VOZES E DAS PAISAGENS DA CIDADE SUBALTERNA, MUITO MENOS CONSTRUIR COLETIVAMENTE PROJETOS QUE VENHAM DE BAIXO. COM A SUA LÓGICA, NÃO SE PRODUZEM CONTRA-HEGEMONIAS. POR ISSO ENTENDO QUE ESSE URBANISMO HEGEMÔNICO NÃO PODE SER UM URBANISMO LIBERTÁRIO, TRANSFORMADOR. E ME RECUSO A ACEITAR QUE ELE É A ÚNICA FORMA POSSÍVEL. PRECISAMOS REPENSAR RADICALMENTE OS MOTIVOS DO URBANISMO E DOS ARQUITETOS URBANISTAS DE EXISTIR, OS LUGARES DELES DE ESTAR E AS SUAS FORMAS DE ENXERGAR A CIDADE E DE PROJETAR.
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A
NAS PESQUISAS E NOS TRABALHOS DE ESTÚDIO COM AMIGOS NA FAU, AO LONGO DA GRADUAÇÃO, FUI BUSCANDO OUTRAS FORMAS DE PROJETAR, INQUIETO COM ESSE URBANISMO HEGEMÔNICO QUE VAI MOLDANDO AS NOSSAS PRÁTICAS E SENDO NATURALIZADO NA MAIOR PARTE DO TEMPO. MAS EXISTEM MUITAS PESSOAS E COMUNIDADES PELAS CIDADES PREOCUPADAS COM ALTERNATIVAS, SEJAM AS ALTERNATIVAS QUAIS FOREM, SEJAM AS PESSOAS ARQUITETAS OU NÃO. DESCOBRI QUE TALVEZ A FORMA MAIS POTENTE DE FAZER OUTRAS ARQUITETURAS RADICAIS, SEJA COM SENSIBILIDADE, IMAGINAÇÃO E POESIA. E QUE ESSA É UMA TAREFA MUITO DÍFICIL DE AUTOCRÍTICA E QUESTIONAMENTO, O TEMPO TODO. E DESOBEDIENTE. MUITOS DOS PRESSUPOSTOS ESTRUTURANTES DO NOSSO FAZER (OU DO IMAGINÁRIO DOMINANTE SOBRE O NOSSO FAZER) COMO ARQUITETOS URBANISTAS VÃO SENDO QUESTIONADOS: A CENTRALIDADE DO ARQUITETO, A AUTORIDADE DO DESENHO, A LINEARIDADE DO PROCESSO, A ESTATICIDADE DO ESPAÇO, A FRAGMENTAÇÃO DOS SABERES, A TECNICIDADE DA POSTURA, A ERUDIÇÃO DA FALA, AS CERTEZAS.
AS PRIMEIRAS IDEIAS DE DEBATES SOBRE O PIU Para além da contribuição nas consultas virtuais do PIU Terminal Campo Limpo, queria estar no território debatendo o projeto com as pessoas - os moradores, os trabalhadores, os usuários do terminal e da região. Meu ponto de entrada foi a Rede Encontros com a Praça do Campo Limpo. Quem me chamou foi a Ana Morais, que mora desde sempre no Jardim Macedônia, na região do Campo Limpo, e usa o terminal todo dia. Os Encontros com a Praça começaram a ocorrer em junho de 2017, na Casa de Cultura do Campo Limpo, tocados pela própria gestão da Casa e pelo Espaço CITA, que fica ao lado. A ideia dos encontros era que fossem mensais e abertos aos moradores, comerciantes e cole vos conectados de alguma maneira com a praça. Nos encontros, geralmente com umas vinte, trinta pessoas, o pessoal levava questões prá cas da praça, principalmente de zeladoria, e pensava juntos possibilidades para enfrentá-las. Levavam também ideias de a vidades na praça para serem conhecidas e fortalecidas. No fundo, a intenção era "es mular uma cultura de cuidado contínuo com a praça". O primeiro encontro que fui foi o de agosto. Já era a terceira edição. Minha intenção e da Ana, era além de conhecer e fortalecer o espaço, contribuir com o que já sabíamos sobre o PIU Terminal Campo Limpo. A Ana já nha ido no encontro anterior e falou um pouquinho do PIU. Me contou, surpresa, que ninguém ali sabia da existência do projeto. E a maioria das pessoas que estavam presentes são pessoas muito conectadas e engajadas com as questões da região. Ou seja, ali descobrimos que nem mesmo algumas das pessoas mais atuantes poli camente no Campo Limpo conheciam o projeto, imagine então terem par cipado de alguma consulta.
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A DISTÂNCIA APARENTE DO URBANISMO Um dos sintomas de que existe uma racionalidade hegemônica no urbanismo, distante dos territórios, é o desconhecimento das pessoas da agenda de projetos urbanos que as afetam diretamente. As pessoas geralmente só sabem que existem projetos urbanos propostos pelo Estado, e se mobilizam em discu -los, quando há algum direito fundamental sendo ameaçado. A casa que vai ser demolida ou desapropriada, a escola ou a creche que vai ser fechada, a praça que vai ser destruída. É essa a relação que o urbanismo ins tucional estabeleceu com a maioria da cidade. Nossos instrumentos regulatórios têm servido para desqualificar, desautorizar, tornar ilegal, informal, marginal tudo que é autoproduzido, e nossos projetos ou nem chegam nas bordas, ou não comunicam com a realidade concreta da maioria da cidade, ou servem para expulsar (Raquel Rolnik, 2017). Como mostramos na parte anterior do trabalho, o urbanismo mainstream fala uma língua única: de uma cidade branca, planificada, colonialista, em que a única possibilidade de reprodução considerada desejável é via mercado imobiliário. O diálogo do urbanismo e dos urbanistas com a sociedade ou inexiste, ou tem sido um diálogo rea vo-nega vo, que de certa forma, é um produto dessa inexistência. A incapacidade desse diálogo, como comentamos na seção anterior, não é apenas a falta da comunicação, mas a linguagem com ruído, os meios que não a ngem, ou o conteúdo fechado, a fala sem a escuta. Sua inexistência é também um disposi vo de apagamento: das vozes que nem existem porque não há conversa e das vozes que teimam em exis r, porque a construção da cidade não é feita só por urbanistas, mas geralmente não são enxergadas nos processos formais quando eles estão presentes. Esse distanciamento tem sido a expressão da autoridade.
POR ISSO, A MUDANÇA PRINCIPAL É DA RACIONALIDADE A essência da ideia dos urbanismos libertários, é então uma mudança de racionalidade e um reposicionamento dos lugares de projetar e planejar. Discu r sobre os territórios nos territórios e com os territórios. O urbanismo libertário é necessariamente um urbanismo feito de baixo, imerso na cidade. Falar dessas possibilidades de trabalhar é uma provocação para repensarmos não só as finalidades do urbanismo, mas os meios e razões dele -os comos e os porquês do nosso trabalho.
O QUE É A IDEIA DO PLANEJAMENTO INSURGENTE? Autores como Oren Yi achel (2006) e Faranak Mira ab (2009) enunciam uma ideia de planejamento insurgente ou planejamento radical. Os principais pontos dessas ideias têm a ver com uma reorientação dos compromissos do planejamento, o protagonismo das comunidades em processos de construção cole va de baixo pra cima, e um forte enraizamento na teoria pós-colonial ou decolonial.
— São os princípios fundamentais do planejamento insurgente : — a transgressão — Faranak Miraftab (2009)
Na forma como trabalha com o tempo, o espaço e as escalas.
— a contra-hegemonia Ao desestabilizar relações de dominação normalizadas na produção da cidade.
— a imaginação — Nos projetos e experiências de outras cidades possíveis.
AS PESSOAS ESTÃO INTERESSADAS E ESTÃO CONSTRUINDO A CIDADE A provocação para a radicalização da par cipação não é um delírio descolado da realidade. A maioria das pessoas está distante dos projetos urbanos formais, mas todas elas par cipam da construção da cidade. Mesmo que muitas vezes negada de cima, as pessoas, sozinhas ou juntas, constroem sua cidadania desde baixo. Sejam aqueles que se mobilizam mais diretamente com questões urbanas, cuidando das praças e dos parques, dando cursos em escolas, organizando feirinhas e festas, espetáculos, se juntando em associações de moradores, cole vos, movimentos sociais, par cipando de conselhos, montando redes temporárias, como os Encontros com a Praça. Sejam aqueles que constróem seus lugares de subsistência, suas casas, suas lojinhas, cuidando dos seus prédios. A cidade subalterna é maioria da cidade. É o subalterno que constrói nossas cidades! Ainda que possamos enxergar que nossa cultura de autoridade seja forte, e que as ins tuições reproduzem essa cultura, uma cidadania democrá ca a va é existente e latente, principalmente nos lugares em que as carências de direitos, desde os mais básicos, são muito urgentes, e as mãos do Estado e do mercado formal chegam em outros ritmos. Muita gente quer pôr a mão na massa, opinar, decidir junto. E já faz isso. Seja por necessidade de sobreviver, porque se a maioria das pessoas fosse esperar pelas oportunidades trazidas pelo governo ou pelo mercado, que sempre vêm de fora e não têm rosto, já estariam mortas. Seja para afirmar sua existência, reivindicar sua cidadania cobrar o que é seu.
@ Plano Popular das Vargens, Rio
O QUE É O URBANISMO SUBALTERNO? O urbanismo subalterno é a cidade real, ou a grande maioria das nossas cidades, apesar de culturalmente serem entendidos como as margens. Numa escala intraurbana, são os bairros autoconstruídos pobres e de classe média, as favelas, as ocupações de terra e de prédios, as regiões periurbanas, as periferias. Numa escala global, são as cidades do Sul - da América La na, da Ásia e da África. O conceito do urbanismo subalterno não só diz respeito às formas urbanas como também às agências polí cas que constroem essas formas. São processos de produção da cidade que ocupam uma condição de borda da legalidade, da ação direta do Estado e do mercado formal, e dos estudos urbanos. Não estão completamente fora, mas nunca es veram completamente dentro das lógicas hegemônicas. O termo subalterno vem da noção de subalternidade da teoria pós-colonial, que é uma noção muito deba da. A princípio era definida como a condição daqueles grupos dominados, subordinados. Tudo que não era elite. Os estudos pós-coloniais, ou melhor, decoloniais, têm caminhado porém no sen do de entender a subalternidade para além de uma condição, mas também como uma forma de agência polí ca, e uma polí ca da mudança, como argumenta Ananya Roy (2017). Um urbanismo subalterno, é portanto, ao mesmo tempo, o urbanismo que resulta das condições de dominação e o urbanismo que sobrevive a elas e aponta para possibilidades de superálas desde baixo.
@ Plano Popular da Vila Autódromo, Rio
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Naquele momento, as pautas principais que estavam sendo discu das nos encontros eram as muitas questões de zeladoria da praça e a proposta de uma pequena reforma que seria doada por um empresário de outra região da cidade, amigo do prefeito. No final da reunião, falamos por uns 15 minutos sobre o que sabíamos a respeito do PIU, com um posicionamento que na época já era crí co, mas sem grandes informações ou análises mais aprofundadas, porque as informações divulgadas pela prefeitura eram as da primeira consulta pública do projeto. Todos que estavam presentes se interessaram muito, estavam muito curiosos. A junção da novidade que levamos do PIU com as inúmeras necessidades de manutenção da praça, os sonhos de mudanças que cada um tem para ela, mais a possibilidade da reforma custeada por doação do empresário, fez surgir no encontro uma ideia de pensar um projeto cole vo para praça, quase que como um plano alterna vo ao PIU, que mostrasse o que a comunidade realmente queria para a praça e para o bairro. Muitas pessoas sugeriram a vidades, mapeamentos, ques onários, conversas com os empresários da região para ajudarem, oficinas de ideias. Foi um final de reunião muito longo e animador. E não fomos nem eu nem a Ana que propusemos. Nessa parte, nós que ficamos surpresos.
Em outubro de 2017, sugerimos um novo encontro, com o tema do PIU. Nossa ideia era fazer uma apresentação e um debate mais longo. Ter um encontro inteiro para o projeto. Preparamos um material gráfico, estruturamos uma fala, convidamos a Paula Santoro, nossa professora e amiga da FAU, que sempre esteve junto na leitura do PIU. A ideia era fazer o encontro do lado de fora, na praça. Divulgamos o evento do Facebook para além da rede de contatos da praça, a ngindo muita gente da arquitetura e do urbanismo.
No dia do encontro, porém, fez muito frio e choveu. Mudamos de úl ma hora a conversa para o Espaço CITA, numa sala fechada. Poucas pessoas que compareciam aos Encontros com a Praça de 2017 vieram. Mas nesse dia vieram muitos estudantes de arquitetura da Faculdade Anhanguera, que fica ao lado da praça e do Terminal. Dois professores levaram suas aulas para o debate, a Barbara e o Rodrigo. E os estudantes foram, muito interessados. Alguns comentaram e fizeram perguntas. Vários deles já conheciam o projeto, porque na faculdade estavam discu ndo o PIU. São pessoas que moram no Campo Limpo, ou na Zona Sul, e estudam ali.
DIVERSIDADE TAMBÉM ENTRE OS ARQUITETOS Tão importante quanto a presença no território, e uma das condições para que isso aconteça, é que a classe de arquitetos seja mais heterogênea. Construir projetos juntos com pessoas não-arquitetas e nãoarquitetas das periferias, mas também construir projetos com arquitetos diferentes se relacionando. Quanto mais arquitetos urbanistas de gêneros, sexualidades, etnias e origens diferentes vermos melhor. O ambiente profissional ou acadêmico abre nossas cabeças para muitas coisas novas, mas em outros sen dos, molda muito nossas ideias, cria generalizações naturalizadas distantes da complexidade e diversidade das coisas concretas. E a diversidade interna no nosso campo é uma das condições para que a arquitetura e o urbanismo deixem sua bolha de pensamento de costume.
@ Mariana Terra
Foi proposto um encaminhamento de um encontro seguinte já para fazer uma oficina de ideias. Nossa fala foi apenas para sugerir a necessidade de que o processo fosse mais organizado, que um processo par cipa vo exigiria um método. Sugerimos que o encontro seguinte não fosse já a oficina de projeto, mas um encontro preparatório para organizarmos a oficina.
Mas que o encontro seguinte não aconteceu. Acho que o principal mo vo foi porque não conseguimos todos manter a empolgação (ou trabalhar com a empolgação) do encontro de setembro para con nuar o processo. Nós, os arquitetos, queríamos tanto organizar o processo baseado nas nossas experiências e nos nossos fe ches de processo par cipa vo, que acabamos, de certa forma, com nossas falas jogando um banho de água fria na empolgação dos não-arquitetos. Perdemos o ming, ou queríamos um tempo diferente, que não fazia muito sen do. Outro ponto foi sobre a proposta de doação. Fomos conversar com o Prefeito Regional, e descobrimos que era uma proposta muito enrolada, e que dependia de outros fatores em outros lugares, como geralmente dependem as polí cas públicas baseadas em filantropia. Descobrimos também que não seria uma grande reforma, mas apenas uma intervenção "paisagís ca", daquelas que enxergam paisagismo como um po de jardinagem cosmé ca. E por fim, a doação acabou nem acontecendo.
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O URBANÊS COMO UM PROBLEMA RECORRENTE Somos urbanistas e gostamos de falar da cidade, dos projetos, planos, histórias, de detalhes - das ruas, dos prédios, dos ônibus, do metrô, do zoneamento… O ponto é que muitas vezes isso nos leva, em discussões públicas a cair em termos e formas de falar que muito pouco comunicam com quem não é urbanista. Já falamos sobre a violência da comunicação técnica e como ela acaba funcionando, mesmo sem querer, para sustentar a autoridade do campo do urbanismo e o poder de quem pertence a ele. E se estamos pensando numa perspec va de urbanismos libertários, as discussões públicas, nos territórios, são a norma, os lugares reais de decisão. Ou seja, a linguagem da decisão precisa ser uma linguagem que comunique com todos. Essa é a discussão proposta pelo planejamento comunica vo. Construir espaços públicos, nos processos de planejamento, em que os diferentes interesses e conflitos dos agentes envolvidos possam se expressar, dialogar, se entender e contribuir nos projetos. Esse precisa ser um esforço constante e é um dos mais difíceis.
O QUE É O PLANEJAMENTO COMUNICATIVO? A ideia do planejamento colabora vo ou comunica vo foi formulada pela britânica Patsy Healey, nos anos 1980 e 1990. Elas são "um apelo para a importância de entender a complexidade e a diversidade, [...] reconhecer o modo como o poder se consolida em forças motrizes que moldam especificidades" (Healey, 2003). Se embasam nas teorias da Ação Comunica va de Jürgen Habermas e da Estruturação de Anthony Giddens. Healey provoca sobre a importância de considerarmos mais os processos e suas qualidades, de analisarmos as relações de poder envolvidas neles, e de construir diálogos mul culturais e fortemente enraizados nos contextos no planejamento urbano. As ideias do planejamento colabora vo, de sua primeira publicação (Healey, 1997) e após uma série experiências da própria Patsy Healey no Reino Unido, veram uma capilaridade significa va no debate e na formulação de polí cas urbanas ao redor do mundo, principalmente na Europa. Podemos considerar que houve, ao menos no campo do discurso, uma virada comunicacional no planejamento, como contraposição à rigidez e tecnocracia da matriz moderna.
Para o nosso foco no Sul global, e principalmente no Brasil, os debates em torno da virada comunica va do planejamento assumem outras dimensões, que têm mais a ver com os nossos contextos. A heterogeneidade das condições sociais, polí cas e materiais das nossas sociedades; a escala e urgência das carências urbanas; e a forma específica das relações Estado-capital e sociedade civil aqui parecem ser grandes desafios ao republicanismo e ao neoins tucionalismo da proposta de Patsy Healey, pensada para a Europa (Rainer Randolph, 2007). No Brasil e em São Paulo, nos mesmos anos 1980 e 1990, também foi construída uma proposta de "virada comunicacional" no planejamento com pressupostos semelhantes ao planejamento colabora vo de Healey, mas não com referência direta ao que se produzia na Europa. É a matriz par cipa vareformista que falamos na capa do trabalho.
OS LIMITES DA INSTITUCIONALIDADE DO ESTADO Na escala do planejamento, as lutas em torno da reforma urbana e do planejamento par cipa vo em uma atuação ins tucional, foram importantes na construção de alguns aspectos da Cons tuição de 1988 e principalmente, na elaboração do Estatuto da Cidade, em 2001. Das contribuições mais significa vas estão a difusão dos planos diretores par cipa vos, como o que seria o principal instrumento de planejamento de cada cidade, a criação de conselhos setoriais par cipa vos, a elaboração de car lhas e guias ilustrados, e abertura de espaços de discussão, como as audiências públicas, definindo um rito par cipa vo formal mínimo para a polí ca urbana. Imaginava-se que assim, seria possível mediar um pacto socioterritorial entre os segmentos da sociedade em conflito, colocando em uma esfera pública as suas posições (Brasil, Ministério das Cidades, 2004). Em paralelo, nasceram novas formas de atuação dos arquitetos urbanistas junto com movimentos organizados, em lutas sociais fora do Estado e também dentro de polí cas públicas-piloto, apoiadas pelos órgãos públicos, principalmente no campo da habitação social. Destaca-se o surgimento das organizações de assessoria técnica, muito preocupadas com processos horizontais e emancipatórios de desenho e produção do espaço, e com as suas linguagens, e as suas esté cas (USINA CTAH, 2008).
A riqueza das reflexões, prá cas e mo vações desses processos são extremamente importantes para este trabalho e para pensarmos as formas de urbanismo libertário no presente. Entretanto seus limites e contradições também precisam ser considerados. As polí cas públicas e os espaços de trabalho para as assessorias têm sido paula namente destruídos. Em outro sen do, o urbanista Flávio Villaça, em 2004, já atentava para a forma como a difusão dos planos diretores nos municípios brasileiros, pós-Estatuto da Cidade (2001), não conseguiu superar a lógica instrumental, abstrata e simbólica do planejamento ins tucional nem promover a democra zação das decisões na polí ca urbana. Parece que con nuamos neste pé. As tenta vas mais radicais dentro de polí cas públicas perderam a pouca força que nham. E ainda que hajam tenta vas comunica vas, ainda que essas tenta vas provocam fissuras nas estruturas e mereçam análise, e mesmo que a ideia do diálogo com a população tenha se tornado um chavão entre os arquitetos, não houve uma transformação real nas relações de poder envolvidas nos processos formais de construção da cidade, e portanto, nem nos seus resultados concretos. Não houve uma mudança nos processos de tomada de decisão, porque a criação dos espaços de par cipação não significou que as decisões passaram a vir deles. Isto é, ainda que disputado o tempo todo, o Estado não deixou de ser, estruturalmente, um lugar de sustentação do status-quo. E isso será possível? Evelina Dagnino (2004), Raquel Rolnik (2012) e o urbanista estadunidense Neil Brenner (2016) chamam atenção para a forma como recentemente propostas aparentemente democrá cas e par cipa vas disputam espaço e por vezes confluem com projetos neoliberais na elaboração de polí cas públicas. O enfrentamento das grandes questões sobre as capacidades de transformação do Estado está ocorrendo através de prá cas muito contraditórias, com diferenças algumas vezes facilmente iden ficáveis, mas em muitas outras, muito difíceis de classificar entre prá cas que "encorajam a inclusão e a cria vidade, e promovem a melhoria das condições de vida das populações envolvidas" e prá cas que "sustentam relações de poder an gas e estabelecidas" (Healey, 2003). Isso torna a avaliação e o projeto dos processos, das estratégias e dos resultados territoriais um procedimento muito complexo, mul dimensional.
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FAZ SENTIDO INSISTIR EM ESTRATÉGIAS COMUNICATIVAS EM PROCESSOS NÃO-COMUNICATIVOS? Existe uma dificuldade muito concreta de organizar discussões urbanís cas democrá cas, qualificadas e profundas com uma linguagem comunica va, que não caiam em uma dida zação excessiva, como já apontava a própria Patsy Healey (2003). Acredito que a resposta prá ca a esse desafio, não é só uma, e virá necessariamente da experimentação, dos erros e dos acertos das experiências. Tanto porque só se vermos experiências que poderemos avaliar os seus impactos, tanto porque são as experiências que vão construindo no presente uma cultura mais democrá ca, e demonstrando se isso é possível. Mas algumas sugestões de conceitos podem orientar essas experimentações. Pouco adiantam as peças gráficas ou espaços de discussão comunica vos se eles não cons tuem lugares ou ferramentas de decisão, ou se estão simplesmente inseridos em modelos de gestão urbana que não foram ques onados e repensados como um todo, para serem verdadeiramente democrá cos. É isso que temos feito nos úl mos tempos, em função das tensões entre as ideias par cipa vas, modernistas e liberais do urbanismo. Estamos criando regras e cobrando pela criação de mais regras que obrigam a informação, a discussão. Mas mesmo que estejamos realmente interessa-dos em fazer esta discussão, os processos de projeto e as racionalidades que orientam esses processos con nuam pouco alteradas. Isso tem acontecido nos projetos conduzi-dos pelo Estado, mas a manutenção de uma racionalidade autoritária também pode recorrer em projetos que se pretendem insurgentes, e assim vão perdendo seu sen do.
— Estamos falando aqui em repensar as linguagens de expressão, mas sobretudo as linguagens do pensamento urbanístico. Linguagens que explodam posições e lugares — Uma linguagem que se pretende comunica va, por si só não superará a desigualdade da tomada de decisão, entre técnicos e não-técnicos, elite e não-elite. O esforço comunica vo precisa portanto ser parte de um esforço de mudança de racionalidade, como um todo.
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O QUE OS URBANISMOS LIBERTÁRIOS TÊM DE NOVO?
01 Afirmam a necessidade de uma virada epistemológica decolonial.
02 Repensam as relações estado-sociedade e as limitações das ins tuições. Repensam a própria natureza do estado e propõem o protagonismo dos movimentos sociais, dos sujeitos e dos territórios na concepção e implementação dos projetos urbanos.
03 Negam o desenho e a polí ca construídos nos falsos consensos e afirmam a construção dos projetos no diálogo mul cultural e nos conflito dos contextos.
04 Expandem as leituras e as lutas urbanas para além da ideia de classe, entendendo as pautas de gênero e raça na cidade como centrais e de forma relacional.
O QUE É O PLANEJAMENTO SUBVERSIVO? O planejamento subversivo, formulado pelo professor Rainer Randolph (2008), traz para o campo do urbanismo as proposições de emancipação social do sociólogo português Boaventura Sousa Santos (2002). Essas proposições são uma "reorientação conceitual e, até, epistemológica do planejamento para torná-lo apto a propiciar uma ‘verdadeira par cipação’ e ‘par cipação verdadeira’ aos cidadãos envolvidos nos processos" (Rainer Randolph, 2008). A essência da ideia é que a superação radical da racionalidade instrumental do planejamento está no mul culturalismo (proposto por Patsy Healey), na razão comunica va (proposta por Jurgen Habermas) mas mais além: no ques onamento da ideia abstrata do espaço (proposta por Henri Lefebvre) e da ideia linear do tempo (proposto por Boaventura Sousa Santos). O papel do planejamento talvez possa ir além da mediação (Healey), incluindo a valorização da rica experiência social existente em nosso tempo (Sousa Santos) e o fortalecimento do consumo do espaço e da sua vivência em relação à concepção capitalista dominante (Lefebvre). Em resumo, a proposta de planejamento subversivo é uma proposta até o momento muito teórico-abstrata, mas muito potente ao provocar para a necessidade de repensarmos questões profundas da nossa a vidade, e para pensarmos transformações de forma e de conteúdo como inseparáveis. As questões para construirmos uma verdadeira par cipação são estruturais.
O PROJETO COMO PROCESSO FORMATIVO
ESCALAS: FALAR DO LOCAL FALANDO DO TODO E VICE-VERSA
Outra questão é a necessidade de pensar os processos de projeto como processos forma vos, e forma vos abertos, dialógicos. Nenhuma linguagem é neutra. quer dizer, qualquer peça ou espaço criado, já contém em si, de algum jeito, uma ideia ou visão de mundo. Mas essa linguagem pode provocar o pensamento crí co, mais do que convencer o leitor ou o ouvinte de propostas já concebidas. Assim, o urbanista entendese quase como um educador, que provoca, municia a discussão e dá respostas técnicas quando necessárias, mas faz parte de um processo que não é protagonista e cuja forma e conteúdo são abertos, sujeitos a mudanças, recep vos à contradição. Muitos dos esforços e das tecnologias comunica vas vão somente na direção da informação. Lugares de fala em que ninguém se ouve. Precisamos também que esses esforços se direcionem para uma formação crí ca sobre o urbano e para instrumentos de fala e escuta, num sen do de formação de todos os envolvidos, arquitetos ou nãoarquitetos. Nós arquitetos urbanistas somos importantes e nosso conhecimento é importante! O arquiteto, com sua formação e seu olhar específico sobre a cidade tensiona processos, provoca, responde, projeta espacialidades. A questão é repensarmos nosso protagonismo no processo de projeto, e entender que também temos muito a aprender com e nos territórios onde trabalhamos.
Outra possibilidade é a linguagem sempre par r de questões concretas ou de escala mais local para discu r a par r delas questões mais abstratas, de escala mais global, e então voltar para as questões mais próximas. Esse movimento de vai-e-volta, do local-pro-global-pro-local, pode ser uma possibilidade para provocar discussões transescalares e estruturais, que mostram que todas as escalas interferem na vida, que essas escalas dialogam entre si e que a maioria das questões são complexas. Através de um movimento que não afasta o interesse, porque inicia a conversa a par r de relações que existem e são conhecidas. É importante entender que o interlocutor é um sujeito que tem saberes, demandas, sonhos, e iniciar a discussão a par r deles. A linguagem, neste movimento, constrói as relações no caminho, ouvindo e falando.
OS DESAFIOS NOS SIGNIFICANTES E NOS SIGNIFICADOS E aqui voltamos ao ponto central: não se trata apenas de repensar como os urbanistas estão falando mas também sobre o que estamos falando - tanto linguagem das falas, dos desenhos e dos textos dos arquitetos, quanto o que representamos neles - e também as nossas formas de pensar. Muitas das nossas lógicas não está dialogando com a realidade concreta da maioria da cidade. Alterar o significante, por si só, não altera a imposição do significado.
um infográfico didático para tentar explicar um sistema nãda didático
Não basta que os gestores públicos expliquem o que é coeficiente, ou cota ambiental, ou plano diretor, se não repensarmos esses instrumentos, e se eles fazem sen do para as lógicas de produção da maioria da nossa cidade. Ou se o sen do que estão fazendo é só destru vo: desautorizam, deslegi mam, removem.
CONSTRUIR OUTROS PROJETOS NAS FISSURAS Reinventar nossos processos de projeto não significa necessariamente reinventar todos os instrumentos e linguagens, começar do zero. Os instrumentos urbanís cos que dispomos hoje são contraditórios e resultados de tensões, portanto têm fissuras. Trabalhar nessas fissuras significa que podemos apropriar do que funciona hoje como ferramentasde produção de uma cidade excludente, para fazer urbanismos libertários. Podemos propor que instrumentos progressistas, mas que têm sido enfraquecidos ou esquecidos, sejam os protagonistas da polí ca urbana. Ou podemos nos apropriar de um instrumento urbanís co e atribuir a ele outro significado, com outros obje vos, com outra racionalidade. Os PIUs, por exemplo. A caracterís ca principal deles é ser flexível e essa flexibilidade tem sido usado para estruturar diferentes pos de PPPs. Mas um PIU poderia ser uma proposta popular, ou um contraprojeto. Ele pode ser qualquer coisa, pode ser proposto por organizações da sociedade! Engenharia reversa: se apropriar das ferramentas com outras racionalidades.
O QUE ???
Recortes ilustrados do último Plano Diretor de São Paulo (2014) e as tentativas do urbanismo formal de traduzir o urbanês @ Plano Diretor Ilustrado (2014) - SMDU - PMSP
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PORQUE O BAIRRO INCOMODA?
CENTRO DE SÃO PAULO EM 2017
estãção julio prestes
sala são paulo estãcao da luz
praça princesa isabel
terreno da ppp (antiga rodoviária)
QUEM PARTICIPOU?
avenida rio branco QUAIS SÃO AS AMEAÇAS?
CAMPOS ELÍSEOS VIVO
FÓRUM — ABERTO — MUNDARÉU — DA LUZ : São Paulo 2017-18
Uma volta ao Centro pelas classes médias-altas é pauta do Estado-capital há pelo menos 20 anos. Na Luz, inves u na construção de espaços culturais e em projetos urbanos, que incen vem a a vidade imobiliária. A ameaça mais recente é a PPP Habitacional, que construiu moradia que não enxerga os grupos que hoje moram lá, demole prédios habitados, e se soma às ações policiais cada vez mais violentas e frequentes contra os moradores do bairro e as pessoas em situação de rua.
O QUE É O FÓRUM ABERTO MUNDARÉU DA LUZ? É uma ar culação de resistência proposi va às ações violentas e autoritárias no bairro dos Campos Elísios, região da Luz, em São Paulo - boa parte do que é popularmente conhecida como Cracolândia. O fórum surgiu em 2017, num momento em que se acirraram as disputas históricas naquele lugar, principalmente por conta do fim de programas-piloto de redução de danos, pelo aumento da violência policial e pela implementação de projetos da Prefeitura e do Governo do Estado, que ameaçam seriamente a permanência das pessoas que hoje moram no bairro. O território da Luz é extremamente complexo, e muitos de seus moradores estão imersos em formas de vulnerabilidade sociais muito diversas. As a vidades do fórum resultaram em uma série de leituras do território, eventos e oficinas, e culminou na elaboração do projeto Campos Elísios Vivo, um plano popular alterna vo às propostas da PPP da Habitação, da PPP do Hospital Pérola Byington, as remoções forçadas e demolições e as operações policiais constantes.
Os Encontros com a Praça não aconteceram mais. Na verdade aconteceu só mais um, e fomos apenas eu, Ana, a Barbara, uma estudante da Anhanguera e um rapaz que trabalha no Espaço CITA. Com tão pouca gente fica difícil…. O ano virou, e a rede, que vinha se fortalecendo, perdeu a força.
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A região conhecida como Cracolândia é um lugar muito complexo. Vários são os conflitos internos no bairro, e externamente, é visto como um lugar morto, vazio. Campos Elíseos incomoda porque, ao contrário, é um lugar vivo e potente, mas pobre, no Centro da cidade, e que afirma que suas graves questões de vulnerabilidade sociais sobrepostas não serão superadas com demolição, expulsão e violência.
Mais de vinte cole vos e associações com atuação no território nas mais diversas áreas - ar stas, saúde mental, assistência social, direitos humanos, escritórios e laboratórios de arquitetura e urbanismo - e moradores e comerciantes, até então desorganizados.
O QUE FIZERAM? O fórum foi um agregador de saberes populares muito diversos dos grupos e moradores do bairros. Debates, pesquisas, experiências e oficinas resultaram no contra-projeto Campos Elíseos Vivo, que apresentou propostas concretas de projeto e polí cas públicas alterna vas às ideias do Estado.
OS PLANOS ALTERNATIVOS COMO PRODUTOS CONCRETOS Processos de mobilização popular em torno de ameaças de projetos urbanos propostos pelo Estado geralmente mobilizam a possibilidade de se elaborar um plano ou um projeto alterna vo. Esse é o caso das três experiências de referencia de autoplanejaento que falamos nesse trabalho. E é umas das possibilidades de instrumentos urbanís cos serem ressignificados, contribuindo nas lutas polí cas. Um plano alterna vo é uma ressignificação porque ele não é um simples objeto técnico que contrapõe outro objeto técnico oficial. Os planos alterna vos foram concebidos nessas experiências como muito mais que isso. São um instrumento polí co, uma etapa num processo de mobilização, que não é a única nem o centro das atenções. Os planos funcionam como denúncia de uma ameaça ou de uma situação de injus ça e como expressão de desejos cole vos de uma comunidade. Por serem objetos gráficos, concretos e sinté cos, contribuem para construir atores polí cos cole vos: as comunidades. Em muitos casos, a abertura de um diálogo com Estado só é possível graças à elaboração e divulgação de um plano popular. Eles funcionam como gritos de existência e de resistência. São expressão das mobilizações e dos conflitos. Essa é a ideia do planejamento conflitual.
O QUE FOI O PLANO POPULAR DA VILA AUTÓDROMO?
O QUE É O PLANEJAMENTO CONFLITUAL?
O Plano Popular da Vila Autódromo foi construído na comunidade durante a preparação do Rio de Janeiro para os Jogos Olímpicos de 2016. A história da Vila Autódromo, que ocupava uma área vizinha ao an go Autódromo de Jacarepaguá, é uma história de luta por permanência e ameaças de remoção pelo Estado. A mais iminente dessas ameaças ocorreu nas vésperas das Olimpíadas, quando foi decidido que o autódromo e a Vila seriam removidos para dar lugar ao futuro Parque Olímpico.
OS PLANOS TAMBÉM SÃO O PROCESSO EM SI
O planejamento conflitual afirma o papel do conflito urbano como fundamental na construção de outros pos de projetos e polí cas públicas. Esta discussão é muito per nente em um período de ascensão de ideias pós-democrá cas, e para defender uma reorientação do papel da arquitetura e do urbanismo e da técnica, não como neutra mas como instrumento polí co. Não como mediadora mas provoca va. É uma proposta do NEPLAC, Núcleo Experimental de Planejamento Conflitual do IPPUR-UFRJ, (Carlos Vainer e outros, 2013).
A elaboração do plano foi uma ação de autoplanejamento para afirmar o desejo e a viabilidade de permanência dos moradores da vila e expressar as necessidades reais, co dianas e invisibilizadas daquele lugar em contraponto aos grandes inves mentos em obras para os jogos. A mobilização e sua expressão através do plano trabalhou na chave de explicitar as contradições e os conflitos do processo de transformação da cidade antes das Olimpíadas. A narra va fes va e conciliadora sobre os Jogos Olímpicos, do Estado, do comitê olímpico e das empresas patrocinadoras, foi confrontada por uma contranarra va dos problemas reais da cidade e das formas como os prepara vos para o evento atenuavam essas questões.
Em face ao conflito, o mainstream aponta para processos participativos e negociais, que têm por fulcro e fim precípuo evitar, contornar, mediar ou resolver conflitos, vistos como disfuncionais, custosos, ameaçadores. O planejamento conflitual, ao contrário, aponta e aposta no potencial criativo do conflito, do qual emergem sujeitos coletivos que resgatam a cidade enquanto arena política.
NEPLAC-IPPUR-UFRJ
PLANO — POPULAR — DA VILA : AUTÓDROMO — Rio de Janeiro 2011-12
ZONA OESTE DO RIO EM 2008
RIOCENTRO/ ROCK IN RIO
O processo de elaborar um plano coordena e registra as ideias dispersas, promove discussões internas nas comunidades, cria arenas internas onde as pessoas se enxergam, somam suas forças e enfrentam seus conflitos. E provocam ou, principalmente, reforçam mobilizações permanentes dos territórios, que mesmo após elaborarem planos e projetos alterna vos, precisam se reproduzir, se manter, se reinventar, enfrentar novas questões, elaborar novos projetos. Uma cultura de cidadania autoges onária. A riqueza dos processos de mobilização e da prá ca de projeto cole vos está tanto nas vozes que se levantam quanto nas marcas que deixam. O processo também constroi um lugar de imaginação, de exercício concreto de uma cidadania, por baixo, que é constantemente negada, de cima. Projetar é um ato de imaginação, e a imaginação é um ato de liberdade.
QUAIS ERAM AS AMEAÇAS?
PORQUE A VILA INCOMODAVA?
O ciclo de megaeventos desde sempre foi uma ameaça a existência da Vila Autódromo. Desde o Pan 2007, a vila acumula uma história de organização e resistência contra remoções. A Olimpíada de 2016 foi a mais grave ameaça. A vila seria uma das muitas das Zonas Norte e Oeste remo-vidas pela prefeitura por conta das obras, e justamente para a construção do Parque Olímpico, no terreno do an go Autódromo.
A Vila era uma favela que ocupava há mais de 25 uma faixa de terra entre o Autódromo e a Lagoa de Jacarepaguá. Um bairro popular, mas muito calmo e organizado, que exis a no caminho do megaprojeto olímpico e pós-olímpico.
CONDOMÍNIOS
AEROPORTO DE JACAREPAGUÁ vila autódromo
Uma questão importante na mudança radical de racionalidade é entender o urbanismo como uma a vidade de processos, de experiências, muito mais que uma a vidade de produtos ou de resultados. Planejar e projetar como processos permanentes. Os planos alterna vos então funcionam externamente às comunidades como gritos, mas ao mesmo tempo internamente a elas, como forma de registrar e orientar a mobilização, e trazer mais pessoas para junto dela.
autódromo de jacarepaguá (PARQUE OLÍMPICO)
QUEM PARTICIPOU? A Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo, junto com os urbanistas e pesquisadores do NEPLAC da UFRJ e do NEPHU da UFF. Ao longo do processo incorporou outras en dades e colaboradores.
O QUE FIZERAM? As frequentes manifestações em defesa da urbanização e da permanência, em função das frequentes ameaças, foram canalizadas num processo cole vo de leitura e projeto, registrado na forma do Plano Popular da Vila Autódromo.
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O QUE FOI O PLANO POPULAR DAS VARGENS? O Plano Popular das Vargens foi elaborado a par r de uma ar culação entre moradores, trabalhadores - e suas associações - da região das Vargens, Zona Oeste do Rio de Janeiro, e universitários - estudantes, pesquisadores, professores - chamada Ar culação Plano Popular das Vargens (2016). A ar culação nha interesse em construir e expressar alterna vas de planejamento deste território em contraponto às propostas apresentadas pela prefeitura - operação urbana (OUC) e projeto de estruturação urbana (PEU). A região das Vargens é um lugar de disputa porque é hoje e desde muito tempo uma área periurbana, onde convivem usos urbanos e rurais de baixa densidade de construção e de pessoas. Predominam a vidades de pesca e agricultura familiar e áreas de preservação, inclusive produ vas. Essa forma de ocupação, contudo, é incompatível com os interesses do Estadocapital em reestruturá-la como um eixo de expansão imobiliária, vizinho da Barra da Tijuca e ao Recreio dos Bandeirantes, através dos projetos da OUC e do PEU.
O URBANISMOS LIBERTÁRIOS TÊM OUTRO NORTE
Os principais vestígios da riqueza do processo de autoplanejamento estão em seus pressupostos. E na grande diferença que há entre esses pressupostos e os princípios que norteiam os planos e projetos oficiais - sejam os obje vos escritos, sejam as ideias subentendidas. Parece que nesses pressupostos estão con dos os rascunhos de uma forma de construção da cidade a par r de seus valores de uso e do protagonismo do saber popular. O Plano Popular da Vila Autódromo reforça a potência da cria vidade e a competência dos moradores como planejadores, afirma a necessidade de universalização dos serviços urbanos a todos os moradores indis ntamente e o respeito a memória e a iden dade do território, portanto a permanência de toda a comunidade no lugar em que está.
QUAIS SÃO AS AMEAÇAS?
PLANO — POPULAR DAS — VARGENS : Rio de Janeiro 2016-17
PORQUE O BAIRRO INCOMODA?
VARGEM GRANDE
VARGEM PEQUENA
RECREIO DOS BANDEIRANTES
E SE CONSTRUÍSSEMOS UM REPERTÓRIO DE IDEIAS DE PROJETO E DE POLÍTICAS SUBVERSIVOS?
trabalhar nas fissuras. ressignificar.
A proposição de PIUs populares e PPPs com movimentos sociais.
Comércio social local — economias urbanas solidárias.
é importante seja para termos termos em mente muitas mais ideias. o quanto ainda temos que caminhar nesse seja para que elas repertório. se tornem mais concretas e menos conceituais. todas essas ideias aqui vieram dos três planos (e dizem respeito aos seus contextos) casas só são deixadas na entrega da casa nova.
O PEUC e a Função Social como centrais na polí ca urbana.
Equipamentos públicos abertos para associação comunitária.
pensar em outras paisagens
A Ar culação Plano Popular das Vargens é o encontro de associações de moradores e produtores das Vargens e urbanistas da UFRJ. A ar culação montou um curso de planejadores populares no território, que caminhou para um processo par cipa vo de elaboração do plano alterna vo.
repertório é diferente de toolbox!
escolas, casas de cultura, centros comunitários. pensar todos equipamentos públicos e espaços públicos como comunitários. abertos, sem muros.
Consolidação de um cinturão rural agroecológico metropolitano.
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A maior parte das Vargens é ocupada por famílias de classe média baixa e pobres, com usos e morfologias de baixa densidade, áreas de preservação e favelas. A manutenção e qualificação dessa cidade é incompatível com a expansão imobiliária de alto padrão. QUEM PARTICIPOU E COMO?
JACAREPAGUÁ
aprender com o existente. potencializar.
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O deslocamento imobiliário à oeste pressiona as Vargens como novo lugar de inves r. O conjunto de interesses dos empresários da construção, da infraestrutura e dos poucos proprietários de terra, mo vou a elaboração de projetos urbanos pela prefeitura: PEU e OUC das Vargens, que ameaçam os modos de vida da região e suas funções ambientais.
Restaurar edifícios históricos para habitação.
trabalhar com o preexistente e não construir do zero.
projetos inter setoriais. sair do óbvio.
contribuir nas demandas cotidianas e nas microescalas. Polí cas de redução de danos com casa-primeiro.
esses são os lugares de projetar do urbanismo popular.
Assessoria técnica e escritórios-piloto de arquitetura nos bairros.
Mínimo de remoções possível e produção chave-a-chave.
Apoio aos projetos de melhorias habitacionais.
inventar coisas novas para superar o modelo único da casa própria financiada em prédios-tipo e apartamentos de 50m2. tem locação social, cooperativa, sobrados, predinhos...
Polí ca habitacional com pologias e polí cas variadas e mistas.
ESPAÇOS INVENTADOS E ESPAÇOS CONVIDADOS
O Fórum Aberto Mundareú da Luz e a Ar culação Plano Popular das Vargens são exemplos de formas de mobilização muito plurais num território e principalmente da forma como essa mobilização funciona para ar cular lutas e pautas até então dispersas. A ar culação em torno de um plano ou de um fórum é portanto um processo de reconhecimento mútuo e fortalecimento conjunto. A ideia de se cons tuir um Fórum, assim como uma Ar culação, tem a ver com o que a Faranak Mira ab (2009) chama de inventar espaços de par cipação onde não há. Os processos de intervenção urbanís ca conduzidos pelo Estado e suas decisões, tem ocorrido a parte da par cipação dos sujeitos e cole vos que vivem lá. Assim, criar um fórum é inventar um lugar onde os moradores expressem seu protagonismo. Um fórum também é um lugar de mobilização e organização da par cipação popular nos espaços convidados, ou de se inserir em espaços existentes mas não-convidados. Assim, tão importante quanto o plano Campos Elísios Vivo e o Plano Popular das Vargens, são os espaços inventados do Fórum e da Ar culação.
— Se não há convite para participar, então inventamos nossos lugares de participação — O FETICHE DOS PLANOS ALTERNATIVOS Se o plano alterna vo não é o único instrumento das mobilizações e só uma parte das lutas, mesmo que importante, não é sempre que irá ou tem de ocorrer. E se é polí co, cole vo, não faz sen do forçar que aconteça. Muito em função da beleza das experiências emblemá cas de autoplanejamento, como o Autódromo, Campos Elísios e as Vargens, nós arquitetos envolvidos nesses processos talvez fe chizamos um pouco a ideia do plano popular.
Contudo, os planos têm seus tempos e seus mo vos para acontecer. Têm de ser demanda cole va, no momento em que obje vamente fizer sen do. Talvez caiba a nós, arquitetos e outros profissionais urbanistas envolvidos, saber reconhecer esses momentos e orientar o processo. A sabedoria está na sensibilidade de não forçar um plano por um lado, e por outro, contribuir para que os ânimos em elaborá-lo não sejam desperdiçados. A sensibilidade para que uma rigidez ou um cuidado metodológico excessivo - que também têm a ver com o fe che das experiências de referência - não desmo vem o ímpeto da ação e da imaginação. A organização e o conhecimento profissional são sensíveis e servem à vontade e a necessidade cole va. Mas construir essa sensibilidade exige maturidade. Qual arquiteto militante não quer par cipar da elaboração de um plano cole vo, par cipa vo? É tentador. No caso do Campos Elísios Vivo, o LabCidade da FAUUSP, que é um dos grupos envolvidos no Fórum, havia decidido anteriormente que não par ciparia de planos alterna vos. Porém, ao se juntar na mobilização entendeu que a elaboração de um plano alterna vo naquele momento seria uma estratégia fundamental. Foi um dos grupos que puxou a ideia do plano. Quer dizer, não faz sen do planejar se será feito ou não um plano alterna vo no futuro. Eles são produtos-processos do presente.
Apesar do enfraquecimento da rede da praça, estávamos animados com as contranarra vas sobre o PIU. Imaginamos a possibilidade de montar um projeto de extensão, que pudesse resgatar a ideia de a vidades de formação cole va, leituras, mapeamentos e propostas alterna vas ao PIU. Encontramos um edital de fomento da USP e começamos a esboçar uma proposta de projeto que se relacionasse com esse trabalho aqui e também com o TFG da Ana. Convidamos amigas da FAU e os professores da Anhanguera, a Barbara e o Rodrigo, para ajudar, e para tentarmos também ar cular a ideia com os trabalhos de cada um. Nesse processo de escrever o projeto de extensão fomos percebendo que muitas decisões já precisariam ser tomadas. Como seria o método de trabalho, qual era o obje vo da extensão, que resultados esperávamos, quais seriam os produtos, os parceiros envolvidos e as tarefas que cada um cumpriria. E estávamos em quatro estudantes, e às vezes alguns professores da faculdade, em uma mesa, tentando sozinhos tomar decisões para um projeto que se pretendia cole vo, pé no chão, e só faria sen do se fosse assim.
Nossa preocupação em par cipar do edital de extensão era muito menos a formalização do projeto e muito mais tentar garan r algum recurso para custear o processo: o material pras oficinas, peças para divulgação, e os registros das a vidades, vídeos, livretos, car lhas. Fazer extensão com dinheiro do próprio bolso, e todos com dinheiro curto, é defini vamente um problema e uma forma muito séria de precarização do trabalho. Mas uma realidade.
COMO SE FINANCIA URBANISMOS INSURGENTES? Um grande desafio para os processos de planejamento e projeto contra-hegemônicos é o seu custeio. Como são projetos de resistência e elaborados nos territórios populares, o volume de recursos possíveis de serem arrecadados certamente será muito pequeno. E apesar de serem projetos de custo muito baixo, e muito econômicos, ainda sim há a necessidade de material, de tempo de dedicação e de pagamento pelo trabalho, principalmente pros profissionais. As soluções encontradas até então são formas de agenciamento econômico picamente subalternas, marginais. Cada agente envolvido contribui com o pouco que tem de onde pode rar. As universidades contribuem com os recursos de financiamentos de projetos e as bolsas conquistadas por estudantes e professores, que por vezes vêm do Estado e por vezes de organizações privadas de fomento à pesquisa e extensão. Os escritórios e assessorias técnicas trabalham através de modelos de organizações sem fins lucra vos - apenas remunerados pelo seu trabalho - e nos úl mos tempos, o pouco de apoio financeiro e ins tucional que esses grupos conseguiram com muita luta tem sido ainda mais reduzido, forçandoos em muito casos a buscar modelos de negócio empresariais, que de certa forma distorcem seus fundamentos. E assim como associações de moradores, cole vos culturais, buscam (e disputam entre si) os poucos editais públicos de fomento. Os processos contra-hegemônicos trabalham como formas muito inven vas e colabora vas, mas precarizadas, de financiamento. São sempre recursos poucos, migalhas garimpados do Estado ou de en dades filantrópicas. Passam longe do volume e do fluxo de recursos direcionados às polí cas públicas formais. Fato é que a parte principal dos recursos envolvidos é humana. O tempo, o trabalho e a saúde despendida por todos nesses processos é um recurso militante, muitas vezes voluntário.
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A LUTA POR AUTOGESTÃO NÃO ABRE MÃO DO FUNDO PÚBLICO As lutas sociais urbanas no Brasil, como relata a assessoria técnica USINA CTAH (2008), têm um caráter aparentemente paradoxal porque ao mesmo tempo que cobram por polí cas públicas, reivindicam seu direito à autonomia e a autogestão na elaboração e construção dos seus projetos urbanos e habitacionais, refutando o Estado como agente implementador. Esse paradoxo historicamente se reflete em uma condição conflituosa de "semi-autonomia", em função do clientelismo das polí cas públicas brasileiras, e de uma tendência de burocra zação e ins tucionalização dos movimentos sociais, esta úl ma, sobretudo durante governos de centro-esquerda ou de orientação histórica popular. A ins tucionalização nesses momentos se jus fica muito no fato de que as linguagem e as formas de operar do poder público, mesmo quando direciona recursos para projetos autogeridos, não dialoga com formas de organização da sociedade que não sejam empresas. Toda a organização do Estado é para dialogar com o Capital. Assim, muitos movimentos e organizações, na dependência dos recursos, se submetem à lógica e passam a se organizar como empresas, incorporadoras. Por outro lado, nos momentos de corte desses parcos recursos, ou um movimento sectário de negação completa da disputa do fundo público nas lutas autoges onárias tende também a convergir com um imaginário liberal dos territórios populares, a par r dos quais entende-se que os pobres devem "ajudar a si mesmos". Ananya Roy (2017) e Raquel Rolnik (2016) nos alertam para a linha tênue entre uma visão libertária do subalterno enquanto presença e potência, e uma visão liberal que enxerga as periferias como uma nova fronteira de expansão dos circuitos do Capital imobiliáriofinanceiro.
— Como disputar o fundo público sem institucionalizar-se e subvertendo o Estado capitalista? — Assessorias e movimentos organizados como empresas, fundos internacionais de financiamento de urbanização, a poupança própria individual e o endividamento, acompanhados do esvaziamento das possibilidades de ques onamento da distribuição dos recursos socialmente produzidos, dos meios de produção da cidade e das lógicas de funcionamento do mercado, e do enfraquecimento dos processos cole vos de construção de uma cidadania insurgente e de uma democracia radical. Uma leitura crí ca do Estado, a luta por sujeitos autônomos e uma arquitetura popular não necessariamente têm a ver com isso, com o abandono da luta de classes.
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Parece que o caminho aparentemente paradoxal é o mais coerente para o planejamento subversivo. Lutar pela organização cole va autônoma e ao mesmo tempo disputar a riqueza socialmente produzida, através do fundo público, sem esquecer, porém da importância de disputar também a racionalidade dominante que só enxerga Estado e empresas, afirmando a existência de outras formas de organização cole va privadas possíveis - os cole vos, os movimentos, as assessorias, as associações, os grupos de extensão universitária, as coopera vas, as redes.
— A radicalidade da fala e da experiência libertária na cidade não são cooptáveis por políticas neoliberais ou estatistas — Mas certamente, em nosso caso no Campo Limpo, o processo de mobilização e construção da ideia era muito mais importante que o recurso e o financiamento. Nossa úl ma tenta va foi escrever o projeto o mais aberto possível, e também não funcionou. Não parecíamos muito confortáveis em tomar decisões e levar propostas já estruturadas. As ideias nem vinham. Era um ponto essencial que surgissem de uma mobilização mais cole va e diversa, no Campo Limpo. Mas a ar culação dos Encontros com a Praça havia se perdido. De toda forma, entendemos que era melhor esquecer o edital e seus prazos, tentar reconstruir alguma ar culação no território, e buscaríamos outras formas de financiar o projeto, caso ele acontecesse mesmo. Propusemos então um novo encontro na Praça para falar sobre o PIU, em maio de 2018. A ideia seria novamente apresentar o que é o projeto da prefeitura de concessão do terminal e do entorno, discu r sobre suas possibilidades e convidar as pessoas que es vessem presentes para uma mobilização crí ca. E então reconstruir devagar e de um jeito mais orgânico a ar culação em torno de uma contranarra va, quaisquer que fossem os processos, os produtos ou os obje vos. Enxergando alguns problemas do encontro anterior tentamos divulgar mais, para a ngir outras pessoas que não só os arquitetos, e nem montamos uma apresentação, uma fala técnica. Pensamos em manter o formato de conversa aberta. Esse encontro, porém, foi ainda mais vazio que o anterior. Só uma pessoa, além de nós que estávamos propondo, apareceu. Um representante da região no conselho da Prefeitura Regional, morador an go da região. E mais tarde, apareceu também para conversar um produtor cultural do Espaço CITA, que estava nos ajudando na organização. Acabamos discu ndo entre nós mesmos sobre o que estávamos fazendo, como estávamos fazendo, o que queríamos com aquilo e se ainda havia a possibilidade e fazia sen do insis r em construir uma mobilização. A presença dos dois com seus pontos de vista foi muito importante. Esse foi um dia muito difícil e estressante. Saímos do CITA muito confusos e cansados, e ficamos um tempinho afastados desse envolvimento com o PIU Terminal Campo Limpo.
AS PESSOAS ESTÃO INTERESSADAS MESMO EM POLÍTICA URBANA? A sequência de erros e tenta vas que fracassam, a princípio nos levam a achar que ninguém se interessa. Que ninguém quer discu r, que a questão não é importante. Um olhar depois da decepção, porém, nos ajuda a pensar muitas coisas sobre mobilização e par cipação. Desafios concretos para além da roman zação que naturalmente construímos na nossa cabeça sobre um processo par cipa vo. Não desse jeito! Um problema central está na dinâmica. Chamar pessoas para uma mobilização não faz muito sen do. Não é nem um capricho de um processo horizontal. Simplesmente não funciona. Ninguém constrói sozinho mobilização. Não podemos esquecer que alguns parágrafos atrás falávamos que as pessoas estão sim interessadas numa cidadania a va e estão exercendo ela a sua forma, e se organizando cole vamente quando convém. Mas são mobilizações orgânicas, que surgem no seu tempo e partem quase sempre de necessidades reais - necessidade de morar, de permanecer, de uma praça, de uma escola que exista, de um posto de saúde que atenda, necessidade de trabalhar, de se expressar, fazer arte.
— Respeitar o tempo da mobilização que vem de baixo não é só mais um método. E a condição pra que as insurgências ocorram — Apesar de estarmos sinceramente dispostos a dialogar, em construir junto uma mobilização, nossa tenta va de provocar, através de um debate urbanís co não supera a lógica desmo vante e abstrata de uma audiência pública, por exemplo. Estávamos, arquitetos, propondo a pauta, o horário, a dinâmica, e falando de uma ameaça não-clara, sequer certa. E com quem estávamos falando? Com pessoas genéricas. Acreditamos que o diálogo que propomos é importante. Mas não é assim que iria rolar.
— Mesmo que propostas por arquitetos dispostos a um trabalho coletivo, nas atividades tipo «debate urbanístico» ninguém vai se interessar mesmo, a não ser que esteja muito ameaçado — O AUTOPLANEJAMENTO E SUAS CONTRADIÇÕES Os planos alterna vos, construídos em processos de autoplanejamento, como o Plano Popular da Vila Autódromo e o Plano Popular das Vargens, no Rio de Janeiro, têm diferenças de um plano apresentado na forma de lei - a estrutura de ar gos, a tecnocracia dos termos, as frases ambíguas e os períodos inver dos, as referências cruzadas pouco claras (e diferenças de conteúdo, é claro!). Mas graficamente não têm grande diferença da forma das car lhas ou sumários dos planos oficiais recentes, que estamos acostumados. Não são claramente iden ficáveis como produtos de processos opostos. Isso é um problema? A esté ca e a estrutura da apresentação dos urbanismos libertários necessariamente precisa ser ainda mais diferente? Estratégias de comunicação radical poderiam contribuir para a expressão desses processos?
O PLANO POPULAR DAS VARGENS É UM DOCUMENTO DE 44 PÁGINAS. A MAIOR PARTE DELE É DE BLOCOS DE TEXTO CORRIDO. NÃO FORAM PRODUZIDAS IMAGENS COM UMA LINGUAGEM PRÓPRIA DO PLANO. E UMA PARTES É ESCRITA COMO UM ARTIGO CIENTÍFICO. AO LERMOS O PLANO E POR CONHECERMOS A SUA HISTÓRIA, PERCEBEMOS QUE É UM PLANO INSURGENTE, PROVOCATIVO. MAS SUA FORMA DESESTIMULA ESSA LEITURA E NOS FAZ QUESTIONAR A SUA RADICALIDADE E O QUANTO TAMBÉM PODEM EXPRESSAR CONTRADIÇÕES DO PROCESSO.
Esse po de contradição não acontece só com linguagem, mas também com o método de trabalho, como aconteceu conosco no Campo Limpo. Na real, essa é uma condição de qualquer a vidade que se pretende libertária. A horizontalidade e a transgressão é um processo de tenta va e erro. Um trabalho permanente. E nele, fugir, negar ou jus ficar as contradições não ajuda a caminhar. E sim, compreendê-las e aprender com elas, nos autocri car.
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A PARTICIPAÇÃO SOCIAL É UM SOBRETRABALHO Todo mundo tem compromissos, milhões de problemas na cabeça, e sobretudo os territórios periféricos têm condições co dianas de vida muito duras. Dormimos poucos, passamos horas no transporte, trabalhamos muito, voltamos pra casa cansados, temos coisas de casa para resolver, filhos pra criar, contas pra pagar, violências das mais diversas, crises, stress, ansiedade. Par cipar de mobilizações, cujos resultados concretos são sempre incertos, é um exercício de doação e militância muito louvável. Não só os profissionais são mal remunerados nesses processos e suas relações de trabalho precarizadas, mas os não-profissionais são pura e simplesmente militantes, voluntários. A imposição de pautas e de formatos de mobilização técnicos, ins tucionalizados, além de não funcionar contribui nesse sobretrabalho. Pra quem não é urbanista, urbanismo puro é chato demais! Pra quem sempre se viu muito pouco representado pelo Estado, a vidades polí cas ins tucionalizadas são chatas, insuportáveis! A consciência de que é um sobretrabalho porém não faz a par cipação popular dispensável. Não têm outro caminho de transformação se não ela. Somente faz compreensíveis as dificuldades do e perceptíveis os desafios do caminho.
COMO A VILA AUTÓDROMO ORGANIZOU O PROCESSO PARTICIPATIVO?
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Oficina de "Diagnós co".
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Levantamentos de campo, de bases cartográficas e análise de documentos. TRÊS SEMANAS PEQUENOS GRUPOS MAIS TÉCNICOS PESQUISA
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EXISTE UMA CERTA LINEARIDADE: LEITURA PRIMEIRO, PROPOSTA DEPOIS.
Oficina de Propostas.
QUEM SABE SE ESSE PROCESSO FOR UM POUCO MENOS UM DIA SEPARADO, TENHAMOS GRUPOS TEMÁTICOS PROCESSOS E RESULTADOS TODOS JUNTOS CHUVA DE IDEIAS/PROJETOMENOS RESPONSIVOS DE PROJETO E POLÍTICAS CONCRETAS, E PORTANTO Sistema zação das propostas AINDA MAIS EXPERIMENTAIS e Plano Versão Preliminar. E IMAGINATIVOS.
DESROMANTIZAR A IDEIA DA PARTICIPAÇÃO
Processos de projeto par cipa vos geralmente envolvem poucas pessoas. E, mais importante, as pessoas par cipam de formas dis ntas. Uns em vão em certos pos de a vidades, outros em outras. Uns falam mais, outros ouvem mais. Uns gostam de temas diferentes de outros. Ninguém consegue ou precisa par cipar de tudo. E não é todo mundo que se dispõe ou consegue se dispor a par cipar de uma mobilização urbanís ca. Libertar a imaginação desse fe che nos ajuda enxergar os processos que envolvam poucas pessoas como vitórias pela sua qualidade e não necessariamente pela quan dade de pessoas envolvidas.
o caminho envolveu várias fases, com formas e níveis de participação diferentes
UM DIA GRUPOS TEMÁTICOS TODOS JUNTOS CHUVA DE IDEIAS/OPINIÕES
04 Muito do fe che de processos par cipa vos também está na ideia de uma par cipação generalizada, como feita de grandes momentos e por muitas pessoas. Talvez esse até seja um horizonte de uma sociedade plenamente democrá ca e autoges onária (ou não). Mas hoje não é, nem nunca foi. As mobilizações populares têm potência e organização cole va, mas essa organização não a nge a todas as pessoas afetadas pelos projetos a que se opõem ou pelos projetos que propõem, principalmente porque ela é um sobretrabalho.
O PLANO FOI ENTENDIDO COMO UM PROCESSO DIALÓGICO, PORTANTO O CAMINHO FOI CONSTRUÍDO A MEDIDA EM QUE SE CAMINHAVA E PENSAVA.
E COM MENOS RECEIO DE PROPOR, ARRISCAR. SEMPRE TEREMOS COISAS NOVAS A APRENDER SOBRE UM LUGAR, inclusive onde moramos. nao sei se PRECISAMOS DE UM LONGO PERÍODO DE LEITURA PRIMEIRO PARA DEPOIS PROJETAR. UMA TARDE SE AS PROPOSTAS TODOS JUNTOS NÃO SÃO DEFINITIVAS, VOTAÇÃO/DISCUSSÃO NEM AUTORAIS, NEM FECHADAS, TUDO BEM IR PROPONDO DESDE O COMEÇO, AO MESMO TEMPO QUE SE LÊ O TERRITÓRIO. E O PROJETO SEIS MESES VAI SE TRANSFORMANDO, MORADORES + TÉCNICOS AMADURECENDO. ALGUMAS SEMANAS TÉCNICOS/ASSESSORES REGISTRO, SÍNTESE
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Assembleia para aprovação da Versão Preliminar.
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Conselho Popular do Plano.
APROFUNDAMENTO DE PROPOSTAS AÇÕES/EXPERIÊNCIAS NO BAIRRO
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Assembleia para aprovação do Plano Popular da Vila Autódromo. UMA TARDE TODOS JUNTOS VOTAÇÃO E DISCUSSÃO
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As lutas con nuam! DOIS ANOS MANIFESTAÇÃO AÇÕES INTERNAS TODOS JUNTOS OU GRUPOS
QUAL NOSSO PAPEL DE ARQUITETOS ENTÃO? Somos dispensáveis? Não! Respeitar os tempos e os fluxos dos lugares não quer dizer que somos dispensáveis. Não ser protagonista não quer dizer se re rar. Precisamos estar presentes, como arquitetos, em algum cole vo, alguma organização, alguma rede, associação de bairro, movimento social, igreja para quando formos necessários e para provocar, despertar fagulhas. E qual a diferença de estarmos presentes como arquitetos militantes, para além de militantes? A diferença está na nossa formação, nos conhecimentos que trazemos e na nossa forma de enxergar a cidade, porque é ela nosso objeto de estudo. Nossa especificidade profissional contribui para ajudarmos a expressar como espaço as questões sociais e culturais que surgem nas mobilizações cole vas. E também para ajudar a ler no espaço essas questões.
No Fórum Aberto Mundaréu da Luz, a presença dos urbanistas foi essencial porque foram eles que propuseram uma leitura urbanís ca do conflito no território que até então só estava sendo enxergado do ponto de vista das drogas, da saúde mental e da população em situação de rua. A leitura foi importante para que os urbanistas se mostrassem importantes para a luta - eles, mas principalmente as questões que levantavam. E assim, apresentando uma leitura urbanís ca inicial que já dialogava muito com as outras questões do território, contribuíram na construção do fórum e na elaboração do plano alterna vo.
AS SEGUNDAS TENTATIVAS DE ATIVIDADES Do tempo afastado, ficou claro para todos que não estávamos indo no melhor caminho. Não iria funcionar. Das coisas mais importantes que discu mos no dia da úl ma reunião, em maio, uma delas foi o quanto a estratégia de propor uma mobilização para pessoas difusas e esperar que elas venham não funcionaria. Nem tudo que tentamos era ruim, mas com essa abordagem talvez fosse impossível pautar qualquer discussão urbanís ca no território. Tínhamos deixado combinado de con nuar a mobilização de outro jeito: indo atrás de pessoas que mobilizam ou de grupos que já estão mobilizados, ou de mobilizações já em curso para somar. Não esperando que elas venham. Elas não virão, e com razão. Ana me convidou um dia então para uma conversa com o pessoal do cole vo Katu. O Katu é um cole vo de educadores da periferia, que atua na Zona Sul de São Paulo. Isso já era final de junho de 2018. O Katu, que trabalhou durante um tempo com a vidades de formação em escolas públicas, usando os temas geradores do Paulo Freire, estava interessado em tentar outras coisas. Promover debates em praças sobre temas importantes para as periferias hoje. Nossa conversa foi muito boa, contamos da experiência com os debates do PIU e sobre o próprio PIU. E principalmente sobre o que aprendemos no caminho. E ouvimos o que eles nha pra contar sobre o cole vo e sobre o que aprenderam nas escolas. Saímos de lá então com a ideia inicial de realmente montar esses debates, entendendo que as questões urbanas apareceriam neles, mas a par r das narra vas e das demandas, e não par r do projeto (ou da suposta ameaça do projeto) que vem de longe.
Combinamos novas conversas para nos organizarmos e dar uma forma mais concreta para a ideia. Convidamos de novo os estudantes da Anhanguera, os parceiros do CITA e também pessoas do MPL, o Movimento Passe Livre, que está se ar culando nesse momento principalmente em torno da nova licitação de ônibus da cidade. Esses úl mos, entraram mais a vamente na construção da ideia. Imaginamos uma série de quatro encontros na Praça do Campo Limpo. Um por mês, no meio da praça, sempre sábado a tarde. O primeiro encontro teria tema livre e os três seguintes, talvez, temas mais fechados, mas ainda indefinidos. A abordagem dos encontros seria os cortes de direitos na periferia - os direitos que estão sendo perdidos, os que nunca exis ram, os que desejamos que exis ssem. A abordagem assim, seria muito mais ampla que nos encontros anteriores, a ar culação começou mais orgânica e diversa, e portanto, mais forte, e os obje vos muito mais forma vos que concretos. O urbanismo era uma das questões mas não a única, e entendíamos que o PIU Terminal Campo Limpo seria abordado como parte das discussões, mas não seria o centro delas. Além disso, o ritmo seria mais lento, não condicionado pelo tempo do projeto, que não é mais o centro das atenções. Um encontro por mês, tempo para organizar, tempo para pensar, tempo para divulgar. Seguiríamos a regra de um encontro por mês por uma vontade de marcar posição na praça com os eventos, estar presentes com alguma frequência.
Alguns dos materiais produzidos pelo MPL sobre a licitação de ônibus de São Paulo @ Movimento Passe Livre
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A verdade é que muito poucos são e serão arquitetos autorais. É uma ilusão. Mesmo que não seja um arquiteto militante, a vida nos coloca em trabalhos que muito pouco tem a ver com o glamour imaginário do stararchitect. Tem infinitos jeitos de ser arquiteto. Mas que são funções muito dignas e importantes, e que estão conversando com questões muito mais concretas da sociedade, ainda que distantes dos territórios populares, e sobrevivendo num sistema com a mesma racionalidade dominante que cria os arquitetos autorais.
Uma questão que já aparecia nos momentos anteriores mas que se reforçou a par r do momento em que resolvemos não con nuar tentando uma discussão direta sobre o PIU foi se realmente eu estava ali fazendo urbanismo, ou no mínimo, polí ca urbana. Na maioria das vezes, os arquitetos que se envolvem muito claramente com lutas sociais nos territórios ou que falam muito sobre polí ca, são visto como nãoarquitetos, ou arquitetos que não sabem desenhar, ou uma turma inferior. Isso sempre me incomodou muito, porque a racionalidade que nos leva a desqualificar a produção da cidade fora dos limites do nosso campo também se replica dentro dele. Quer dizer, apesar existe uma visão dominante muito fechada sobre o que é um arquiteto, e tem muito a ver com a ideia do arquiteto autoral e/ou o arquiteto no escritório, e/ou o arquiteto sempre projetando - que por sua vez, tem muito a ver com a violência simbólica e a manutenção de um poder de classe. Esse parece ser o único caminho possível ou o único caminho desejável: o sucesso.
Minha resposta é sim, estamos fazendo urbanismo e esse é uma das poucas certezas que eu tenho.
NEM SÓ DE URBANISTAS SE FAZEM AS DISCUSSÕES URBANAS Estamos fazendo urbanismo em a vidades como a do Campo Limpo se entendermos que boa parte dos problemas da nossa racionalidade e do nosso distanciamento estão justamente em elevar as nossas linguagens e os nossos conhecimentos a um protagonismo isolado. Se entendermos que nosso conhecimento é um conhecimento relacional. E que falar da cidade, que é o nosso objeto, é falar de muitos outros conhecimentos juntos com o urbanismo. A interdisciplinaridade é um conceito fundamental dos urbanismos libertários. Querendo ou não, projeto urbano se faz com os territórios, e com advogados, cien stas sociais, gestores públicos, assistentes sociais, sociólogos, geógrafos, antropólogos, mestres de obras, pedreiros, comerciantes, engenheiros, ar stas…
Fato é que de tanto ser repe da, essa ideia de alguma forma faz parte da consciência dos arquitetos, mesmo que não concordemos com ela. É inevitável não se ques onar se não estamos distanciando muito do que é ser arquitetos quando saímos dessa linha. Da mesma forma, as grandes dificuldades de se trabalhar com outras possibilidades, sobretudo as contrahegemônicas ou as poli camente mais radicais também nos fazem ques onar se esse é um caminho que vale a pena. É um caminho muito difícil, contraditório, sua beleza não está no glamour da criação genial ou em ganhar muito dinheiro. Mas na paixão e nos valores envolvidos.
O QUE É O PLANEJAMENTO ABOLICIONISTA? É uma ideia de urbanistas da UCLA, Estados Unidos, coordenados por Ananya Roy. Foi divulgado através de uma car lha, com questões importantes a serem pensadas pelos arquitetos e planejadores (Ins tute of Inequali and Democracy, 2016). Como nossas ações e prá cas podem contribuir para não reforçar e se opor às diferentes formas de opressão, nos processos e nos resultados territoriais? As principais contribuições do planejamento abolicionista, em meu ponto de vista, são a defesa de um urbanismo poli zado e a abordagem interseccional, com a defesa da centralidade das questões de gênero e raça na produção do espaço. Há muitos trabalhos recentes construindo pontes entre estas questões e a produção do espaço, para além de uma análise de classe (Santoro, 2008; dentre outros). A linguagem, o formato de car lha e a estruturação em perguntas e tópicos parecem formas muito potentes de estabelecer um diálogo com os arquitetos, uma referência.
A POTÊNCIA CONTRA-HEGEMÔNICA ESTÁ NO INTERSECCIONAL Trabalhar e pensar de uma forma interdisciplinar tem sido chamada interseccionalidade ou consubstancialidade. Diferente de outras análises sociais progressistas só que mais puras, as leituras consubstanciais vão enxergar as opressões de classe, raça e gênero em igualdade de condições, todas importantes e interrelacionadas (Hirata, 2014).
saúde
habitação espaço público
arte assistência social
economia
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O Campos Elísios Vivo traz um desenho concreto (que avança o nível das diretrizes) de políticas interseccionais.
ESTAMOS FAZENDO URBANISMO?
UM URBANISMO DAS AUSÊNCIAS E DAS EMERGÊNCIAS A potência dessas inteligibilidades na práxis tem dois mo vos. Um, Porque exige construir pontes entre temas aparentemente isolados, entendendo-os como componentes de um sistema de dominação com muitas formas e camadas. E dois, porque constrói inteligibilidade entre lutas sociais aparentemente diferentes, e assim as reforça, desenha redes. O Boaventura Sousa Santos (2002) esboçou essa possibilidade de nova racionalidade da emancipação social decolonial com o nome de sociologia das ausências e das emergências. Afirmar a existência do que é e foi tornado ausente, e a par r do reconhecimento mútuo entre as ausências, emergem formas alterna vas de se viver e se fazer as coisas.
TRADUÇÃO? SIM MAS NO SENTIDO FORTE DA PALAVRA Um urbanismo libertário assim, assume o papel de uma prá ca de tradução que é o trabalho de reconhecimento das reciprocidades da constelação de saberes e imaginários revelados pela sociologia das ausências e das emergências (Sousa Santos, 2001). E o arquiteto é um dos possíveis "tradutores". Ou seja, iden ficar preocupações comuns e como diferentes comunidades e sujeitos enxergam essas preocupações. E assim, construir estratégias de rede.
Só através da inteligibilidade recíproca, e consequentemente da possibilidade de agregação entre saberes não-hegemônicos, é possível construir a contrahegemonia. SOUSA SANTOS (2001)
Algumas páginas do guia do Planejamento Abolicionista
Isso exigirá processos e projetos absolutamente interdisciplinares e mul culturais, construídos nas zonas de contato entre os conhecimentos diferentes: entre comunidades diferentes, entre grupos diferentes dentro dessas comunidades, entre as comunidades e os profissionais, e entre os grupos diferentes de profissionais. Aqui, vislumbramos como trabalhar subvertendo o colonial.
E POR QUE TRADUZIR? Primeiro, porque as questões e carências da modernidade permanecem latentes e estão cada vez mais urgentes hoje. A polí ca e o conhecimento hegemônico, contudo, não foram capazes de enfrentar essas questões de fato, oferecendo “soluções” que não mantém as necessidades sempre existentes. A polí ca habitacional incompleta, a produção habitacional que remove, a urbanização sem regularização, a regularização que não assegura a posse, o loteamento sem infraestrutura, o espanador no rabo do elefante. Precisamos de outros caminhos. Traduzir é importante porque é uma forma concreta de atuação a par r do reconhecimento de que todas as culturas são incompletas, e de que é impossível uma teoria geral e única para enfrentar as questões de todos os territórios e de todos os temas.
— Um urbanismo humano é tão etnográfico quanto técnico : tão ouvinte quanto falante — E traduzir é fundamental porque os grandes movimentos sociais tradicionais não são mais as únicas formas de mobilização possíveis. Coexistem com eles outras formas de associação, com diferentes pautas, jeitos de ser organizar e agir, que trabalham em ritmos diferentes, escalas diferentes e principalmente, são muito mais pulverizadas (Ana Morais, 2018; Raquel Rolnik e outros, 2018). Essa grande diversidade de mobilizações representa também uma grande diversidade de pontos de vista sobre o mundo e de conhecimentos em produção. Traduzir é um procedimento de reconhecimento e entendimento mútuo entre esses agentes.
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DESAFIOS PARA A TRADUÇÃO A maioria deles relacionada às condições de simetria nas zonas de contato. A construção de pontos de par da pro diálogo entre culturas muito diferentes. O que deve e o que não deve ser colocado em contato. As ausências irreveláveis. Os silêncios. A necessidade de que os tradutores tenham profundo conhecimento da cultura que representam, e ao mesmo tempo uma posição crí ca em relação a ela (o que é especialmente importante aos tradutores urbanistas, ou em posições que historicamente serviram à dominação). E a linguagem, a sua escolha, seu domínio desigual. A dificuldade de expressar alguns desejos e inquietações por determinados pos de códigos.
Conhecer essas muitas histórias possíveis, e que elas pudessem se enxergar, se entender talvez como parte um todo, um movimento geral. E então, a par r delas pensar, junto com quem es vesse presente, nos temas e nos formatos para os próximos encontros.
A TRANSGRESSÃO MAIS DIFÍCIL TALVEZ SEJA A DO TEMPO A maior preocupação do Boaventura Sousa Santos é com o tempo. Enfrentaremos as formas de dominação na cidade somente se discu rmos profundamente as concepções espaço. E se as transgredirmos, como propõem o planejamento insurgente e subversivo. A colonialidade concebe uma e expande infinitamente o futuro, ignorando
Para o primeiro encontro pensamos num formato de microfone aberto e tema livre. Uma caixa de som no meio da praça, para que quem es vesse passando ou veio para o evento pudesse compar lhar seu ponto de vista, trazer alguma questão, uma história. A ideia era juntar histórias das pessoas de como estavam sendo impactadas ou sempre foram pelos cortes ou ausência de direitos.
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Tenho algumas restrições com a ideia de pautar as lutas sociais apenas pela chave da negação. Isso foi discu do no grupo do Campo Limpo e entendido pela maioria que deveria seguir o caminho que seguiu - dos cortes de direitos - mas me deixou com uma pulga atrás da orelha. Acredito sinceramente que precisamos de mobilizações proposi vas. Elas não abafam ou enfraquecem as crí cas e as resistências, mas se somam a elas.
do tempo envolvidas na produção social do
percepção do tempo que contrai o presente A PRIMEIRA ATIVIDADE NA PRAÇA
POR QUE A DISCUSSÃO CONTRA-HEGEMÔNICA É QUASE SEMPRE REATIVA?
assim a riqueza das experiências e saberes do nosso tempo, e esvaziando o futuro de valor, se ele é infinito. A dificuldade porém está na complexidade da tarefa. Como discu r formas de percepção do tempo se de todas as racionalidades essa é talvez a mais naturalizada? Resgatando os passados apagados: Faranak Mira ab (2009) vai mencionar a importância de trabalhar na construção de uma consciência historicizada dos sujeitos pós-coloniais. E transformando o mundo no presente, através da praxis.
PROJETAR É ESSENCIAL! A prefiguração é fundamental para a comunicação das lutas, para agregar gente nova e manter as pessoas sonhando. A negação de tudo cansa, e deixa vácuos para a proposição que, muitas vezes, são preenchidos de formas opostas. Propôr é fundamental para a construção de autonomias a par r da imaginação de mundos possíveis e a experimentação desses mundos no presente. Pra dizer o que queremos, não só que não queremos. E é por isso que os arquitetos são importantes. Trabalhamos com projeto!
Inves mos bastante atenção e tempo na divulgação, para além do Facebook. Ocupar o território já antes do evento. Deu um bom trabalho: fizemos panfletagem e colagem de lambes na praça, no largo e no terminal do Campo Limpo. Tentamos trabalhar com peças com uma linguagem muito simples e direta, principalmente nos títulos grandes, com muito destaque. E detalhar um pouco mais ideia nos textos menores. Não conseguimos fugir muito disso. Colamos muitos lambes e distribuímos muitos panfletos. Várias vezes os panfletos serviram para iniciar uma conversa com as pessoas para quem entregávamos, o que transformava a abordagem em um diálogo, melhor que só entregar um papelzinho. Mas não é facil. Começar um assunto com um desconhecido é constrangedor - pra quem panfleta e pra quem está passando e só quer seguir o seu caminho.
Mapão A0 que produzimos e que recebeu as etiquetas dos lugares de afeto de quem passava pela praça: esboço de outras cartografias
No dia do encontro levamos um mapão da região, impresso em folha A0. A ideia era que as pessoas marcassem com e quetas coloridas seus lugares de afeto e interesse no mapa: onde moram, onde estudam, onde trabalham, onde se divertem, onde pegam o ônibus... Como se enxergassem a elas mesmas e os outros na cidade, como partes dela. O mapa também serviria para registrarmos as falas em post-its, e colarmos eles em cima dos lugares de onde vinham ou sobre onde falavam. Não era exatamente uma metodologia estruturada de cartografia afe va, mas o início de um trabalho com essa intenção. Montamos a caixa de som e o microfone bem no meio da praça, que estava cheia. Muito poucas pessoas vieram só para o evento, e outras poucas que estavam passando se juntaram. A maioria preferiu só par cipar do mapa e ficar em volta, ouvindo as falas. Muito poucas falaram. A maior parte do tempo quem esteve animando a dinâmica do microfone éramos nós mesmos. Mesmo não conseguindo o obje vo mais ambicioso de mobilizar muitas histórias diferentes, avaliamos esse dia como posi vo. Marcamos uma posição na praça, promovemos um acontecimento pequeno, mas que chamou a atenção. Fizemos barulho. Entendemos que o obje vo era difícil e seria construído aos poucos mesmo. E veio o pessoal anarquista, da ação an fascista, que se juntou na organização das próximas a vidades e foi muito importante. Naquele dia mesmo, fomos para o CITA pensar nas próximas. De experimentar o formato no primeiro encontro, ramos alguns pontos para repensarmos. O modelo de microfone aberto poderia melhorar por dois mo vos. Não era tão acolhedor pra quem passava. E não conduzia a a vidade por uma estrutura, o que era ruim porque as falas ficavam muito perdidas.
O CONTATO COM (OUTROS) ANARQUISTAS O contato com o pessoal da Ação An fascista e do Necrotério Punk foi muito valioso! Contribuiram muito com suas histórias na organização das a vidades e nas reflexões cole vas. São Paulo tem uma rede pequena mas diversa, de cole vos e grupos com alguma ligação com a história e as ideias anarquistas, das mais diversas formas. E essas redes têm presença na juventude e nas periferias.
— Urbanismos libertários são urbanismos do presente. — Urbanismos que não fazem planos, mas são os planos eles mesmos — 19
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HORIZONTALIDADE EXIGE ESTRUTURA
GERAL OU ESPECÍFICO? CONCRETO OU ABSTRATO?
Montar lugares de diálogo horizontal não é uma tarefa simples. A horizontalidade - ou seja, espaços onde não há hierarquia, que todos se sintam confortáveis a par cipar e que toda par cipação seja importante - é uma construção gradual de confiança. E exige estrutura, organização. A cien sta polí ca estadounidense Jo Freeman, em 1970, vai nos atentar, a par r da sua experiência concreta em movimentos feministas, para uma confusão frequente entre horizontalidade e ausência de estrutura. Os lugares de fala desestruturados quase sempre não são horizontais, e tendem a reforçar relações de poder preexistentes. Isto é, dizer que um lugar é aberto e horizontal não o torna automa camente horizontal - porque ele está imerso num mundo ver cal, estruturado em relações de poder desiguais. Ou seja, um processo de mobilização urbano, principalmente quando envolve profissionais, como os arquitetos, de par da já é um espaço desigual - por conta do saber técnico - e necessita de estratégias que contribuam na experimentação de uma horizontalidade vir-a-ser.
A vidades com temas muito fechados tendem a perder a capacidade de ar cular lutas, de trazer pessoas diferentes, de construir análises relacionais. Já a vidades com tema muito aberto tendem a recorrer na ausência de estrutura: as falas são muito dispersas porque todo tema é possível e as relações entre elas ficam muito mais difíceis de construir. Ao final de um encontro com temas muito abertos geralmente sen mos falta de uma linha que os amarre e nos sen mos perdidos quanto ao raciocínio que foi construído - até porque nem foi possível construir um raciocínio ou esboçar uma linha para formulá-lo. O desafio então está em primeiro, entender que cada momento e cada estratégia de trabalho exige um po de encontro diferente. As vezes será melhor encontros bem abertos, as vezes bem específicos, para aprofundar questões, as vezes encontros que estejam no meio - era essa a nossa necessidade. A vidades que sejam suficientemente fechadas, para estruturar ar culações e necessariamente abertas, para não impedir as ar culações.
E assim, a potência de uma cultura de projeto radicalmente par cipa va talvez esteja na capacidade de construir projetos e processos abertos - nos métodos, nas formas de apresentação e no conteúdo. Faz sen do discu r e conhecer experiências de referência, esboçar conceitos, mas não um roteiro de procedimentos de planejamento radical. É por isso que nos referimos às periferias e aos urbanismos libertários sempre no plural.
Decidimos então que os próximos encontros teriam temas e seriam educação pública (setembro), transporte público (outubro) e espaço público (novembro). Pensamos que os formato poderia ser mais próximo de uma roda de conversa e o microfone não fosse necessário na roda, seria usado apenas no início para anunciar a a vidade e convidar as pessoas na praça. A roda teria alguns convidados que fariam provocações e estariam presentes para garan r que algumas questões es vessem no debate, mas não teriam um lugar de mesa - nem seria esse o formato da roda), nem uma fala ou exposição muito longa reservada. Seriam convidadosfagulhas da conversa e não palestrantes.
não existe tarefa maior e tarefa menor. COMO ORGANIZAR A HORIZONTALIDADE? (NOS PROJETOS)
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horizontalidade não é bagunça! projetos não se A Jo Freeman acredita que fazem sozinhos.
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Atribuir tarefas para pessoas específicas. isso tem a ver Preferencialmente se elas manifestam com trabalhar interesse pela tarefa. com amor e
motivação.
Compar lhar conhecimentos e meios de trabalho com todos. Habilidades e experimental. também são recursos. Alocar as tarefas com critérios racionais. Nínguem precisa fazer encontrar seu lugar aquilo que não consegue.
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Rotacionar as tarefas entre as pessoas, mas guardando um tempo entre as o projeto como processo formativo mudanças.
a estruturação democrática é um jogo de tentativa e Quem é responsável erro, mas lista alguns por uma tarefa, deve princípios que podem ajudar sa sfações a todos todos sabem na tarefa. São princípios os outros por ela. como as coisas funcionam que não falam de arquitetura e o que está acontecendo. mas que podem ajudar muito Compar lhar com Distribuir em processos de projeto todos o máximo de autoridades (com arquitetos e com informação possível, autoridades diferentes entre não-arquitetos, é claro). não que não haja sem esconder ideias e autorias. máximo de pessoas cobrança, mas há nao precisamos e fatos de ninguém. muitos cobradores. que for possível.
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de um grande arquiteto-autor.
Os outros pontos eram a necessidade de pensarmos com mais calma a vidades paralelas como o mapeamento. Elas pareciam muito promissoras. E fechar um pouco mais o tema, porque o tema muito aberto também estava contribuindo para uma discussão muito dispersa. O microfone aberto parecia um pouco um canal de lamentações. O debate oral como única possibilidade, ou possibilidade principal de comunicação também tornava a ideia de se juntar na a vidade desinteressante para alguém que estava na praça se distraindo num Sábado.
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NÃO FAZ SENTIDO UMA CARTILHA DE URBANISMO LIBERTÁRIO Cada experiência é única em seus tempos, suas estratégias, seus interesses e suas linguagens. Pode ou não resultar um plano ou projeto. E se verem um plano ou projeto, ele será único. Apesar do raciocínio da organização autogerida ser replicável e das experiências de linguagem e método servirem de referência, a riqueza de cada mobilização é sua especificidade. Por isso, encontrar o limite entre falar de prá cas concretas e ditar regras demais é difícil.
num processo de projeto não tem nada a ver com hierarquia.
informaçao é poder! se sentir a vontade e parte do coletivo.
E também que a roda de conversa seria acompanhada de uma oficina, e a primeira seria uma oficina de zines. Como vimos que o mapão era uma ideia promissora, que atraia, a oficina poderia ser um bom caminho para tornar a a vidade não só um lugar de fala oral, e também pra juntos, fazermos os registros delas, a par r de possibilidades variadas de expressão e representação das ideias. A oficina traria também um novo parceiro para ideia, que nos ajudaria com a linguagem.
COMUNICAÇÃO RADICAL! O microfone aberto era uma possibilidade boa, porque saia da rigidez de uma sala e da rigidez de a vidades com pessoas que falam e pessoas que escutam. Mas, além não ser tão acolhedor, também não era tão interessante. De certa forma, man nha alguns problemas do debate. "É chato!" disse uma pessoa na praça. Precisamos de linguagens que superem o pragma smo de um debate ou discurso. Linguagens mais imagina vas, mais expressivas. Linguagens que explodam os lugares, as posições. Dá para pensarmos um urbanismo de ocupação, de reflexão e de projeto com experiências, oficinas, canteiros, cursos, acontecimentos. Tirar nossos corpos e nossas cabeças dos escritórios, das pranchetas e dos palanques.
— Como falar e experimentar a imaginação e as utopias num mundo de necessidades tão urgentes? —
No ato de lançamento do Campos Elíseos Vivo, artistas lavaram as ruas com extintores, as mesmas ruas que a Prefeitura lava com jatos para expulsar as pessoas.
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SÃO PAULO TEM COR A mudança da racionalidade se faz e se reflete nas formas que representamos a cidade. Seja nos mapas, nas plantas, nos cortes e nas perspec vas, nossos desenhos precisam dialogar com olhares menos técnicos e colonialistas. Precisamos representar a cidade a par r de um olhar pro presente e uma imaginação de futuro decolonial. Isso significa começar a desenhar as periferias como a cidade. Isso significa um desenho sensível. São Paulo também é Campo Limpo, Capão, Taboão, São Mateus, Brasilândia, Campos Elíseos. É favela, casinhas, ocupação, zona rural. São Paulo tem cor, tem pixo, tem desgaste, tem ladeira, tem gente! São Paulo é vista do chão, pelo pedestre, pelo ciclista, da janela do trem ou do busão.
VARGENS Regiões Periurbanas
jovens arquitetos urbanistas: estamos preparados para trabalhar com essas paisagens?
OUTROS JEITOS DE DESENHAR Significa também que um novo desenho não é só um novo traço, mas uma outra mão que traça e uma outra cabeça que pensa o traço. Um traço no papel de projeto tem muito impacto. Tem que ser feito com cuidado. É um desenho aberto, cole vo, vivo. É ferramenta de projetar e não só de apresentar. O mapa é pra ser rabiscado, a perspec va é pra ser feita e desfeita e refeita. O desenho não é monopólio do arquiteto-ar sta, é um instrumento na tarefa difícil de compar lhar saber.
VILA AUTÓDROMO Favelas
— O planejamento conflitual não é só sobre os conflitos dos territórios com o mundo. E também sobre os conflitos dos territórios com eles mesmos — A BELEZA DAS CIDADES DO SUL
CAMPOS ELÍSEOS Bairros populares e históricos nos Centros
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Um outro desenho entende o subalterno não como vazio a ser subs tuído ou ausência a ser preenchida, mas como potência. Desenho que enxerga e propõe, não desenho que julga e impõe. Que enxerga a beleza das cidades do Sul, que repensa seus padrões esté cos, sua noção de beleza. Mas que enxerga o conflito e a contradição. A sensibilidade é para enxergar a beleza e enxergar também a necessidade real. A racionalidade colonial que vê na favela tudo como falta (quando vê), não enxerga as faltas de verdade. Ou se vê, só vê em parte. O desenho de arquitetura decolonial não é um desenho da roman zação-idealização da favela, nem o desenho da modernização-subs tuição dela. É o desenho do conflito, da contradição, porque enxerga. Cartografia afe va e cartografia de denúncia.
O DESENHO QUE PLANEJA E O PLANO QUE DESENHA Outras formas de trabalhar e de nos expressarmos na polí ca urbana refle rão também na forma como definimos planejamento urbano e projeto urbano. Os planos, em escalas mais distantes, precisam incorporar a concretude dos problemas mais próximos. Precisam superar uma lógica proposi va de diretrizes e conceitos distantes. Precisam apontar a materialização desses conceitos, no desenho das polí cas públicas e dos espaços. E os projetos urbanos precisam incorporar uma dimensão crí ca polí ca, uma compreeão da cidade e da polí ca urbana como um todo.
O Plano Popular da Vila Autódromo não parece ter dado tanta relevância pra uma linguagem gráfica que registrasse a riqueza do processo.
Campos Elísios Vivo dá muita atenção para o desenho de arquitetura, na escala das quadras e dos edifícios. Experimenta propostas concretas, espaciais.
QUEM SABE UMA APROXIMAÇÃO AINDA MAIS PRÓXIMA e contextualista DEIXASSE ESSES DESENHOS AINDA MAIS possiveis.
O DESENHO DE ARQUITETURA QUE CONVERSA COM O DESENHO DA POLÍTICA PÚBLICA INTERSECCIONAL. ISSO AJUDA A AFIRMAR QUE O PROJETO É POSSÍVEL!
A LEITURA DA PAISAGEM E DAS FORMAS DE MORAR CONSTRÓI O PROJETO SENSÍVEL.
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Ato de lançamento do Campos Elíseos Vivo.
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SEGUNDO ENCONTRO Nesse encontro, que aconteceu em setembro de 2018, também inves mos bastante tempo em pensar o formato, os convidados, e em divulgar, nas semanas anteriores. Colamos mais lambes e fizemos mais panfletos, que distribuímos durante a Felizs, a Feira Literária da Zona Sul, um evento muito grande que acontece todo ano na Praça do Campo Limpo, apoiada pela prefeitura, mas tocada por pessoas de lá. Pensamos na roda de conversa sobre educação pública, tentando falar pelo menos, da reforma do Ensino Médio, das mobilizações dos secundaristas, da Escola Sem Par do e dos cursinhos populares, e pensamos em convidados nesse sen do. A oficina seria de zines, com a ajuda do Roger, um ar sta do Campo Limpo, que anda pela cidade e pelas escolas compar lhando essa linguagem. Esse encontro foi muito legal, como dinâmica. Aprendemos muito, a discussão teve um ritmo bem estruturado, ideias e pontos de vista novos surgiram, e o registro delas pelos zines funcionou muito bem. Conversamos por alguns minutos, sempre em roda, e depois passamos a montar cada um uma página pro zine, a par r do que tínhamos conversado e con nuávamos conversando. Mas não apareceu nenhuma pessoa nova além de nós, o Roger, e a Larissa, do cursinho popular Carolina Maria de Jesus, que foram convidados. Duas crianças estavam também e ajudaram no zine, cada uma fez uma página, desenhando. A praça estava vazia porque era o dia do grande ato an fascista #EleNão no Largo da Batata, e ameaçava chover. Alguns convidados não foram. Não estávamos também no meio do praça, estavámos mais num can nho. Esse encontro foi o oposto do anterior: bem estruturado, com uma boa linguagem, com uma discussão muito rica, mas que não ocupou tanto o espaço, não chamou atenção.
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QUANTIDADE E QUALIDADE Nossas a vidades foram muito boas, e aprendemos muitas coisas juntos. Valeu a pena o tempo que gastamos e que gastaremos nessa ação. Mas as dificuldades de mobilização permanecem, apesar de estarmos num grupo maior e mais diverso. Estamos fazendo as a vidades quase que de nós para nós mesmos. Não conseguimos aumentar o nosso grupo, nem atrair outros grupos, nem pessoas que não fazem parte de grupos. Mas con nuamos. As mobilizações nunca estão prontas, e no nosso caso temos muito a melhorar. Con nuamos muito mais pautando do que agregando, e por isso falhando em alguns aspectos.
Depois desse encontro, aconteceu o primeiro turno das eleições e depois toda a campanha e a votação do segundo turno. As mobilizações como a nossa acabaram perdendo um pouco de força, em função de mobilizações mais abrangentes e urgentes, como a luta e o diálogo an fascista nas eleições, que muito dialoga com o que estávamos fazendo.
Na oficina de zines cada um montou uma página.
Sentamos um dia pra conversar, e entendemos que precisamos insis r em experimentar formatos e formas de ar culação. Talvez colar em outros eventos e outros cole vos que já estão fazendo coisas. Pautar menos e se apropriar mais de lugares já mobilizados. Ir atrás. E pensar em um ritmo ainda mais flexível, sem uma agenda e formatos predefinidos. O grande desafio con nua sendo a mobilização, e isso tem a ver com a linguagem, o conteúdo, as forma de ar culação, os lugares que ocupamos, as abordagens.
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Vila Autodrómo vs. Parque Olímpico. @ Google Earth
vila autódromo
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2008
AS REMOÇOES COMEÇAM AS OBRAS COMEÇAM
2014
A VILA AUTÓDROMO NÃO EXISTE MAIS, SÓ AS RUÍNAS
OS JOGOS ACONTECEM
2016
ESTIMATIVA DO PLANO HABITACIONAL POPULAR DA VILA AUTÓDROMO: rS 13 MILHÕES
CUSTO DO parque olímpico: rs 2 BILHÕES (O OFICIAL)
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E PRA QUE SERVE TUDO ISSO? Nem sempre, ou em todos os casos, as experiências de autoplanejamento culminam em grandes transformações de curto prazo. Ainda que não resultem em cenários ideais, em reversões completas ou em finais felizes óbvios, essas mobilizações servem como estratégia sempre bem sucedida de resistência e de formação popular. Têm construído atores polí cos cole vos e individuais, promovido relações de solidariedade nas comunidades, formado e re-formado moradores e urbanistas, e apontado para a possibilidade concreta de outras formas de pensar e construir a cidade, outras formas de cidadania, outras formas de enxergar e superar conflitos. As transformações de curto prazo são perceptíveis, mas abafadas pela violência da ins tucionalidade, do tempo e do co diano, pelas derrotas de curto prazo. E as transformações de longo prazo? Acontecerão?
se não sabemos se um mundo melhor é possível, o que nos legitima ou motiva a agir como se soubéssemos? BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
TANTA COISA ACONTECENDO NA POLÍTICA E A GENTE DISCUTINDO PROJETO URBANO? SIM! Talvez o que mais estamos aprendendo ao longo das transformações polí cas mais recentes no nosso país seja que o trabalho crí co mas concreto, nas ruas e com as pessoas, seja a forma fundamental de se fazer polí ca e lutar por democracia. Nossa forma de ação polí ca, como arquitetos urbanistas, é enxergando e atuando na cidade. A disputa é todo dia, a formação é todo dia e o processo de construção de uma agenda radicalmente democrá ca também é todo dia, através do nosso trabalho.
não existe poder popular que se sustente apenas em marchas, ocupações, convenções, programas, teorias. ele precisa se realizar no cotidiano, na resposta a necessidades básicas. USINA CTAH
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#politica urbana #projetos urbanos #planejamento insurgente #planejamento subversivo #linguagem #processos participativos #autogestao #pensamento libertario #decolonialidade