Um incessante ‘não sei’: oficina de leitura e criação poética - Antologia
Organização: Maria Luiza Chacon e Pedro Lucas Bezerra Diagramação e arte: Lilly Gomes Vários Autores Natal, 2021
@mluizachacon @pepipepi__
Este projeto conta com recursos da Lei Aldir Blanc Rio Grande do Norte.
Fundação José Augusto, Governo do Estado do Rio Grande do Norte, Secretaria especial da cultura, Ministério do turismo e Governo federal.
Apresentação ............................................................................................................................ 7 Andreza Cruz ............................................................................................................................... 9 Ayrton Alves ................................................................................................................................ 15 Brena Monice ............................................................................................................................. 21 Daniel Gusmão ....................................................................................................................... 27 Lucas Arieh ................................................................................................................................ 37 Maíra Dal’Maz .......................................................................................................................... 43 Olga Hawes ............................................................................................................................... 53 Sofia Bauchwitz ...................................................................................................................... 61 Thiago Medeiros .................................................................................................................... 67 Victor H. ........................................................................................................................................ 79
“Seja lá o que for a inspiração, ela nasce de um contínuo ‘não sei’.” Wislawa Szymborska
Essa publicação é composta dos resultados de um laboratório criativo desenvolvido entre janeiro e fevereiro de 2021 em Natal. Nas noites de segunda e quarta-feira durante um mês, discutimos textos, lemos poemas, experimentamos técnicas de escrita que estendem o sentido de um texto poético. Esse exercício se deu durante a oficina “Um incessante não sei – Oficina de Leitura e Criação Poética”, projeto viabilizado por meio da Lei Aldir Blanc, com os apoios e recursos das instituições Fundação José Augusto, Governo do Estado do Rio Grande do Norte, Secretaria Especial da Cultura, Ministério do Turismo e Governo Federal.
A oficina foi facilitada e elaborada pelos escritores Pedro Lucas Bezerra e Maria Luiza Chacon, que buscaram propor leituras desautomatizadas do texto poético, trazendo reflexões de autores como Wislawa Szymborska, Octavio Paz, Décio Pignatari, e poemas de autorxs contemporâneos, como Laura Erber, Carol Rodrigues, Maria Lúcia Alvim, entre outros. Os textos compilados nessa publicação se espalham entre a poesia, a prosa e as colagens de textos, mobilizando diversos formatos, características e subjetividades, em processos poéticos que não se esgotam em si, mas que guardando o ofício do experimento se abrem para possibilidades estéticas diversas.
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diário de quarentena
dia 01: querido diário, hoje dormi até acordar espontaneamente. Tenho me sentido muito cansada nos últimos dias, com muito sono. Talvez seja das noites mal dormidas de carnaval, pós carnaval e farras sem sentido. Tomei café e voltei para cama para ver um filme: A viagem de Chihiro. Que filme fantástico! É isso, se for possível resumir esse filme em uma palavra é isso: fantástico. Durante o filme ficava refletindo sobre a enorme criatividade do autor em conceber todas aquelas criaturas bizarras e aqueles cenários com tantos detalhes. Quais teriam sido suas referências? Ou ele tirou tudo aquilo da própria cabeça, da sua imaginação? Fico besta. Sem contar com a sensibilidade do filme, cheio de amor e generosidade. Quis chorar em vários momentos. Quando acabou o filme, como sempre, dei uma pesquisada nas críticas. Gosto de saber o que as pessoas têm a dizer sobre os filmes. Depois disso preparei o almoço, comi e voltei pra cama. Tentei assistir algo novo mas peguei no sono. O cochilo da tarde sempre foi o meu xodó. Relaxamento profundo e sem limites para o sonho. Pura safadeza. Acordei com a motivação de fazer várias coisas, mas continuei na cama, mexendo no celular.
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Tenho estado muito tempo on-line. Isso tem me atrapalhado, me deixado muito dispersa. Ainda não sei como mudar isso. Talvez seja ansiedade. Um misto de final de ciclo profissional com corona vírus. Pensei em mandar mensagem pro boy, marcar um encontro, porém quarentena. Como fazer quarentena no seu período fértil? Ok, vamos sobreviver e em breve estaremos juntos. Criei coragem e pratiquei um pouco de yoga. Ontem me propus a meta de tentar praticar por uma semana inteira. Mesmo que apenas as posturas iniciais e as finais. O importante é não deixar de praticar. Hoje foi o segundo dia, espero conseguir completar a meta, que aí depois eu dobro a meta. Já no começo da noite lavei a louça ouvindo o disco novo do Djonga, pois na escala da lavagem hoje era o meu dia, jantei e agora vou trabalhar um pouco. Para ver ser pelo menos consigo cumprir as coisas que me propus a fazer no dia de hoje. Se não conseguir, amanhã tento de novo.
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a morte não me comove, tão pouco me mantém aterrorizada. torno-me terrível.
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já não consigo mais repousar o que antes era corpo deu lugar a roupas limpas, lavadas e dobradas o que antes era sonho deu lugar livros, cadernos e bloco de notas no verão o sol nasce cedo, se descortina antes das seis a claridade quente invade e eu não consigo mais repousar nem nos braços de Morfeu nem em duzentos fios egípcios nem em penas de ganso é possível repousar
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No corpo do semeador Há um afogado Com o exato peito de Deus
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à semelhança de um raio, espera a água o trigo dos olhos
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toda criança é uma nova religião. foi o que você disse submergido no pântano das próprias pupilas, antes de se tornar um embrião terroso em aparições assintomáticas. descanso suas mãos de milho espraiando as minhas sobre o silêncio da enxada que fabrica o silêncio, removendo de seu olhar qualquer resquício e lodo. em minha bicicleta de acrílico trabalho firme para manter intactas as copas das sombras do nosso sítio, em várias cópias: uma cancela lampadária, uma chocadeira de acerolas, um fusca de balanço, um noturno florido de águas-vivas, a nascente alpargatosa de um rio, uma bengala de pescar. foi ali que vi você rompendo o coração de porcelana das cobras, rompendo-os para os fazer pulsar. foi ali que também vi você rasgando as bulas dos dias vindouros e suas pelejas com o cão miúdo dentro dos pães adormecidos. meus olhos não cansam de rebobinar sua geografia seringueira, o azul encharcado e arábico dos seus olhos, seus pés de canoa, você colhendo a calvície dos pés de algodão, as pontas dos seus dedos se arvorando, seus ombros de água e de lata
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no ofício de equilibrar. hoje, as tardes enferrujadas se balançam sozinhas na sua cadeira, depois que às 4:05 da manhã, num quarto de hospital, você me disse, com a ternura de um sorriso: “agora meu nome é Jim Hawkins, tenho um mapa e uma nova ilha para explorar”. o seu navio foi rápido em lhe apanhar, fiquei no cais de quartzo e penso que você ficou me vendo no convés, no meu regresso em altura e idade, até conseguir ver, do cais, apenas o quartzo e depois nem isso. imagino suas mãos firmes na balaustrada do barco, os seus olhos me acenando, embora não mais me vissem. anoiteci inúmeras noites sobre o quartzo daquele cais, até conseguir voltar no movediço que é toda volta. na rocha que é toda volta. as chaves quase não entravam na fechadura. o corredor orvalhava-se de um escuro. a porta do seu quarto estava aberta. a sua cama estava intacta. seu quarto estava vago — e sempre que um quarto fica vago, mudamos de casa.
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Eram muitas, não pude contar. Andavam em bandos, em vínculos circulatórios de um espiral em meio a minha cabeça. Sufocavam. Apontavam e ali em meio a tantas esqueci do ar. Seguiam em um frenesi, um escopo delineado por uma natureza furiosa. Instinto implacável. Deveria ter corrido e gritado e espantado. Nada fiz. Parei imagético, incolor, como em sonho ébrio dessas noites diluídas em água, sem qualquer movimento. Elas continuavam na minha direção e liam o meu olhar em braille. Já não me restava o que fazer e como um laço fui abraçada pela minha própria criação. Mil agulhas a pontilhar-me, gota a gota e o tempo se desfez e nenhuma dor me aparecia e mesmo com cada ferroada penetrante em toda extensão de mim, não mais incomodava. Sem pranto. sem movimento. sem vida. E ali avistei naqueles olhos de vidro algo incomum. Poderiam pensar: - como pode essa criatura não sentir? Como pode parar? Quem para hoje?
E naquele último sinal de aviso, sem emitir som, elas entenderam: quem não tem nada a perder aterroriza o terrível.
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Me reencontrava e me perdoaria. Cada vez que olhava na esquina e avistava ao longe já me era tarde. Parte de mim já foi e não voltaria mais a ser. Entre a casa do seu bairro e o morro do aracy tinham metros distante. Passos largos escapando de um tanto não decifrado pelos meus olhos Perdi você de vista e aí já não tinha mais para onde olhar Era tantos no meio da rua e ninguém se fazia dizer desse nada do olhar quando eu perdia ao me encontrar Tudo tremia Dos pés a cabeça, do zumbido e dos traços da nossa lembrança de quando éramos velhos demais para acreditar em olhos cruzados, em vidas cruzadas Não se restava, não se colhia e tudo as sobras Gente as sobras, pensamentos as sobras, sentimentos em caixas de papel de vento contando a história da última vez que te vi virar a esquina Poderia ter gritado, dado um sinal, cantar o mais alto que pudesse aquela música do karaokê do bar do Chico, a nossa, os timbres soltos de um alguém perdido nos quatro cantos do carnaval - lugar dos nossos desencontros nada chegou Apenas observei de longe e deixei sucumbir ao pouco daquelas ruas sem som e éramos tanto findamos em um nada presente
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Sou o quase, o se e o eterno talvez daquele texto incompleto que desistimos de escrever por saber tão pouco o que dizer De uma palavra sem fim dita pela metade Uma escolha que a vida abandonou e naquela esquina, numa tarde qualquer, em um dia qualquer, me vi nos seus olhos e de mim ali nada mais sabia E eu caminhei mais rápido, tentei fugir do traço curvo do seu sorriso Encontrei comigo sem saber Me prendi a imagens longas, repetidas, a segundos findos e ali naquele encontro entendi do não saber e do e se que virava a rua cada vez que me aproximava da descoberta de ser quem era outra esquina aparecia e dessa vez corri ao meu encontro, joguei as mãos no chão, prendi o cabelo no coque clássico e corri desesperadamente para aquela esquina e quando finalmente me achei escoei pelos dedos sem coragem de assumir a própria falta presa na presença já ausente desses anos corridos perdidos no tempo, na corrida, nas esquinas, nos farejos de um passado encontrei o nada de cada vez que fui e não esperei por mim.
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A menina ainda me olha à sua maneira escarro sozinho no silêncio nada vem talvez tenha sido a última tolerância A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho pra eles não faz diferença. Sinto por baixo das pupilas A vista volta ao barco e tremo o quanto me permite o pulso preso quando iam não tornavam não soluço o desprazer, mas por amor dois versos mais abaixo, a pena recomeça: ela me olha e eu mereço.
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Russo transliterado
Ela não estava usando perfume Então não deixou cheiro algum no sofá No dia seguinte, a cama é ocupada por apenas um E fica em xeque a questão: Se durante dez horas, o mundo realmente foi menos cruel do que o normal
Ao redor, o lento cancelamento do futuro segue em marcha E as pessoas temem não só o dia de amanhã, mas também o dia de hoje Ainda sim, naquele instante, pareceu que haveria um futuro Não apenas um futuro, mas um futuro idealizado E agora sigo Não tanto em êxtase, mas talvez em estase E aguardo o próximo encontro Com o futuro
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Negação e aceitação
Existe um pássaro chamado casuar A espécie mais letal do mundo Que inspira pavor desde tempos imemoriais Domar o casuar sempre foi um sonho inatingível Mas, vez por outra, os astros se alinham E é possível criar uma condição favorável Um momento específico Em que se joga uma moeda E ela cai Não na face da cara, ou da coroa Mas na beira Na terceira margem No limite de Aristóteles Na síntese No meio, que se encontra entre o princípio e o fim O couro grosso vem com duas consequências: A primeira é o isolamento A segunda é o fim do isolamento
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A emoção mais antiga, de uma amígdala que não se encontra na garganta. Às vezes é cabível usar fogo contra fogo. Ser como Shiva e destruir enquanto constrói. Uma vez que a barragem se rompe, ninguém consegue parar a enchente, e aqueles que roubam o tempo alheio sabem muito bem disso. Manter-se aterrorizado ou tornar-se terrível. Capitular ou, finalmente, cansar de esperar.
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8 de outubro
O sono corrige, e o sono altera a configuração anterior. Eu tinha me apegado a essa ideia, mas infelizmente hoje eu já acordei novamente com a minha perna sendo puxada de maneira não muito sutil. Eu não me lembro como foi que ele conseguiu entrar, mas acho que ele estava com sede e eu não podia negar um copo d’água, nem mesmo a um mórmon. Uma estratégia muito óbvia, porque todo mundo sabe que uma vez que você o convida a entrar, já era.
10 de outubro
Pra mim está claro que não se trata de um mórmon, ou pelo menos não de um mórmon convencional. Era só um disfarce bastante convincente, mesmo. Ele parou de falar, e a forma que tinha sido adotada previamente foi completamente abandonada. Agora ele decidiu tomar a forma de um objeto de geometria fractal, só pra me confundir. Mas decidiu manter um único braço, para poder continuar a puxar a minha perna.
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11 de outubro
Um colega me disse que isso já era esperado e que a gente nunca teve muito controle. Não foi só comigo, a minha tia também caiu nessa. No caso dela não era um mórmon, mas um especialista em investimentos, que apareceu num anúncio do youtube. No lugar de puxar a perna da minha tia, ele age de maneira mais discreta. Toda vez que minha tia, aposentada, decide realizar alguma atividade, ele a distrai e a convence a ficar brincando na bolsa de valores.
12 de outubro
É difícil andar de um cômodo para o outro sem uma das pernas, mas claramente tem muita gente que consegue fazer isso de maneira graciosa. Ele não a arrancou de maneira dolorosa nem nada, foi literalmente a sensação de tirar um dente de leite que já estava pronto para sair.
Ele ainda não decidiu o que vai fazer agora, e eu sinceramente não tenho muita vontade de descobrir.
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17 de outubro
Olha, eu poderia até ficar só reclamando, mas eu descobri que fazer parte de uma peça de carne moída formada por alguns milhares de pessoas até que não é tão ruim, e certamente tem suas vantagens. Claro, eu não entendi muito bem o motivo disso, mas até que eu estou num lugar relativamente confortável. Eles escolheram moer duas vezes, para produzir uma textura úmida e robusta, e eu sinceramente não vejo problema. Tem gente que acha que tinha que ter moído três vezes, mas o meu vizinho que faz churrasco todo fim de semana disse que o ideal é moer só duas, mesmo. Mas a parte boa é que não tem mais perna para ser puxada, e acho que essa noite eu vou dormir bastante.
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A vista volta ao barco e tremo o quanto me permite o pulso preso, e os olhos da mulher de pé e muito perto admitem uma grossa faixa de esclera por baixo das pupilas.
Procuro na água um navio sumido, um afogado. Espero a petrificação e as serpentes dos seus cabelos.
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Oitenta e oito martelos atingem filamentos imateriais Produzindo superposições Inquietação, lamentação e aceitação, eventualmente Casio observa e reproduz todo o espectro da condição humana A força que seu cúmplice imprime sobre ele é a vontade de se fazer ouvido Em um plano onde a existência é frágil, mas a ilusão persiste No encontro com o outro, existe o jardim de Epicuro E apenas um segundo par de orelhas é capaz de validar Aquilo que o solipsista pensa ser o todo
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1º de fevereiro de 2021
Escorre pela janela do meu quarto de home-office, gosmento, uma zoada estranha. Arrastada, quase me faz duvidar que pudesse ser outra coisa que não meu cachorro. Já faz um ano de vida pandêmica e o trabalho em casa já me fez enjoar das coisas do lar. Fico esperando que cada momento da rotina me surpreenda, pois já sei de cor o roteiro do dia. Às 18h, impostergavelmente, ele grunhe e, então, late. Não tinha como fugir: o bodejar impaciente era do meu cachorro. Os lhasas apsos são assim: cães-alarme. Diz a história oficial que esses bichos foram adestrados para funcionar como seguranças sonoros de monastérios budistas. China, Nepal, regiões montanhosas do sul da Ásia, mas cá está o meu, em uma Natal que arde em brasa, como se fosse a última fronteira contra o violento invasor.
Maldita evolução, envergada a fórceps pelos preguiçosos monges. Que custava a eles ficar de plantão durante a noite? Que os deixasse de tocaia para avançar ao sinal da violação do templo, isso era compreensível. Alarmar, convenhamos, é vingança geracional. O peso dos mortos da casa do caralho nos lembrando que, sim, os mortos sugam o sangue dos vivos.
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Tivessem deixado os bichinhos quietos, os latidos não me atazanariam no meio do ciclo pomodoro. Será que os diabos suspeitavam que um desses bichanos fosse importunar quem tem défice de atenção? Desço a escada.
Pensando no gasto calórico de mais tarde, desci, peguei uma banana e três pães de queijo. Comi-os todos. De que adianta se não terá Carnaval. Festa do povo alforriado, libertação do cárcere-presença que vai a cada dia mais espremendo as horas. Se a vida privada é reitora, devo assumir que a minha se encontra na latrina improvisada no meio da mata, onde me resta cobrir a merda com uma bela pá de cal depois de cagar de cócoras. A pá de cal dos que não ousam mais sonhar, dos que perderam sonhos e vivem sobrevivendo até soar o badalo implacável da Revolução.
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Tornar-se terrível
Encara o oceano respeitosamente; respira profunda e gentilmente. Às cinco da manhã, resolve iniciar a odisseia de levar-se mar adentro com sua prancha, procurando se despojar do ódio intolerante aos diferentes. Ouvira dizer que, mens sana in corpore sano, nada abalaria sua mansidão.
Mas o mar, sem combinar, arremessou-lhe violentamente abaixo ao instante da subida na prancha. Não era Cuba, mas se viu envolta pela maldita circunstância de água por todos os lados. E todos os poros. A água, aspirada pelo nariz, já entupia traqueias, pulmão, tudo. Desesperada, emergiu do trauma encomendado por Posseidon em pessoa; rumou a solo firme, lá deixando a calmaria.
Nada adiantava espezinhar contra o ódio, pretender afastá-lo de tal e qual modo, se ante o terror ele o atinge como um soco de Mohamed Ali. Tornar-se terrível era uma tal consequência natural que o mar, pacato que fosse – e não seria, não para consigo –, não seria capaz de entortar.
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excertos do diário do capitão ahab
27 de outubro é preciso experimentar a terra com desconfiança, porque treme, balança, enjoa. está tarde e não há vento, não há escapatória, mas treme, balança e enjoa. estar em terra é terrível, porque o bebê me parece que veio da água. uma beluga brincando com um mordedor parece com este bebê. jonas, uma beluga cantora que perdeu seu chifre com o tempo parece este bebê. náusea. não durmo, mas também não ando, dói esta perna, este bebê. ninguém aparece para uma visita. graças a deus.
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28 de outubro náusea. o bebê-beluga precisa de futuro, seus setenta anos nesta imundície. não me lembro de tê-lo feito. ainda faltam horas para aqueles meses de perseguição e não sei se volto para sustentar este narval quebrado. preciso do chifre para refazer a prótese, porque não adianta esperar. preciso ensaiar uns passos sobre a madeira, pois assim contarão as histórias. preciso de uma luz azul para fluorescer esta cicatriz, assim mantenho o mito. lembrar de parecer soturno. jezabel profetiza que não enjoarei jamais depois da partida. pela primeira vez escuto esta jezabel.
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30 de outubro está tarde, é possível sentir a imundície dos que bebem tanto. a imundície dos forasteiros dormindo em estalagens lotadas. um pagão vende crânios na esquina, lembro do copo com dentes que guarda o que não se presta a utilidades. eu estou imundo, para manter a imagem. sempre essa lama, tamanha imundície, posso imaginar jim carroll encharcado em alguma sarjeta. o maior poeta das américas é um imundo cristão. escondo-me em um ataúde, enquanto orson welles narra a guerra dos mundos. esta terra é cínica e as pessoas, estúpidas. esta terra é imunda. salvo os patos, os cavalos e tony soprano.
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24 de dezembro orson welles agora reza, diz uma oração inflamada para aqueles pobres imundos. estou ainda no ataúde. as pessoas se abastecem de esperanças, ou de mau agouro. este, que sou eu. e orbitam feito urubus, este que sou eu. esperança nos câmbios, ou uma aventura estúpida. quem escolhe seguir precisa saber. haverá a santa ceia assim que estiver longe o suficiente desta terra imunda. não é tão difícil que contem histórias de alguém que não fala. é preciso continuar silencioso, sinistro, cínico, imaculado. que saudade dos patos, dos cavalos, de tony soprano.
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30 de janeiro há dias não enjoo. há vento e não há terra, como deve ser. há um trovão antigo que nunca silenciou e este só se escuta de longe da terra. agudos não são ouvidos. a ópera é grave. construo o mito calado, andando sobre a madeira, olhando para o nada. há frestas por onde espiam os curiosos. digo que não é preciso espermacete para viver, só a espiral de sangue. hoje vejo o dia. eis o momento do pacto eterno, helter-skelter. deus abençõe o leviatã.
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afogamento
garganta se aperola: escarro pulgas, baleias, serpentes. Tremo o queixo diante dos doze bárbaros mirrados e comidos.
Nas brenhas do Maranhão, um afogado não volta ao barco. Aqui padeceu o Evangelho - tapete de enxofre, seria isso Deus?
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Scotch-Brite Enquanto as águas rolavam, Via Ricardo Aleixo gesticulando Com graça calculada Performando o Antiboi: Nada é caprichoso Nada é garantido Nessa terra de verde e amarelo, Do amarelo macio para os de mãos delicadas dos teflons das frigideiras caras E do verde lado - áspero dantesco para os fios fundidos de tétano: Quisera este canto arear as panelas do teu panelaço
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angelus
manter-se aterrorizada pelas vozes tantas e só poder falar em línguas à hora do angelus.
façam silêncio: a frequência do rádio levará minhas terríveis preces para o algoz do bicho inchado de chumbinho.
eis o momento de tornar-me santa: inaugurar um novo tempo para sísifo
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18/01 - não viria
um relato breve do dia em que precisava urgentemente sair para comprar pão, e nesse caminho me vi num desvio:
fui até a sua casa descalço. atravessei poças d’água e corri entre homens magros de bicicleta no asfalto. o sol do meio-dia, todos os pedintes do caminho. pensei que a sua casa não era tão longe quanto imaginei por esses anos, e que conseguiria usar as duas pernas e um braço para pular o portão do seu condomínio direto na janela se tentasse, mas que não tentaria. fiquei por algumas horas olhando a janela até perdê-la de vista e encarar a praça ao lado, até me esconder numa árvore, até ficar ali por dias e horas esperando que você passasse. isso não aconteceu e era óbvio.
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minha fome nas alturas e você não viria. crossfiters gêmeos de shorts bikers correndo no parque e você não viria. eu, pelado, dançando na calçada, assustando senhoras, traumatizando crianças, e você não viria.
madrugada adentro, depois da terceira vez que a polícia tentou me remover dali, vendo a família alheia na janela do seu quarto, todas as crianças que não teríamos. descendo da árvore. uma semana e mais os últimos três anos. comprando pão ali mesmo, voltando para casa, as notícias desse brasil. a cerveja, ainda sem roupas, só o pão e essa certeza. amanhecia e você.
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há essa criança e as retroescavadeiras. helicópteros enxergariam mar vermelho isto é passagem de ida para a lembrança do açoite. homens uniformes chumbo e a memória craquelada do ontem quando esse amanhã um sonho. mochila apertada no peito bicarbonato de sódio as coisas que sobraram disseram metade antiácido metade água os documentos. neste ringue não importa o nome apenas em que comboio de gente em que barricada de carne se localiza. se atira ou absorve bomba.
em escombro de moradia criança não corre, chora, esperneia. mãe mantém-se aterrorizada, combustível para cicatriz e desejo. vista de primeira pessoa no olho do furacão: o incêndio em terra improdutiva é busca por fertilidade. quando do outro lado daqui a chamarem terrível,
abraçará a alcunha, esse revide.
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RECEPTÁCULO todo dia visitá-la o escrutínio particular da espera. a lembrança de leda o caderno de poemas de carlito a camiseta de cirilo morando a semanas na cidade dos caranguejos. sugestões do que fazer até lá: assistir um programa sobre homens-animais atravessando arranha-céus por um take. encarar com medo por dias e dias a mesma parede. colocar uma prateleira sob a cama. sonhar com ela a 500 quilômetros por hora explodindo a cabeça. aprender mais sobre a marcenaria. sofrer pelo que não chega. continuar a visitar todos os sites duvidáveis procurando uma camisa daquele filme dos anos 80. depois, nenhuma encomenda. somente elas as mesmas contas se multiplicando todos os meses em blocos e blocos por cima da mesa.
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A menina ainda me olha. Andando vinte e dois dias na terra das pedras e dos espinhos, matou somente a sede com o orvalho à garganta. Aonde eu fui, e para onde venho, não sei se o corpo vai pro fundo assim que expira, ou se sobe antes de descer. Procuro na água um navio sumido, padeceram lá dois versos mais abaixo. Quando iam não tornavam. Houve aqui serpente, escarro, lavoura: um afogado faz pontas transparentes de cristal. Não soluço o desprazer da minha mão não chegar à carroça de Deus. Se o pulmão filtra a água e retém pra fora o sal, qual a probabilidade do afogado voltar à mesma praia ou de aparecer em outra civilização? Não existe espaço seguro, o parapeito se estende em mais de meio metro. Sobre serpente, escarro, lavoura: isto são glórias. A vista volta ao barco nos dentes da besta. Seria isto desistir? Tremo.
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Dia 1 de 2021
Estávamos em grupo em um quintal. Apareceu o que parecia uma cobra grande que se mexia pesadamente. Em algum momento, com medo, observei que ela caia por cima de uns gatinhos e mostrava sua barriga gorda com quatro patas de leão. Perdi o medo, não há nada de assustador em pernas curtas pro ar. Acordei. Do que me serve sonhar com quimeras se não existem no jogo do bicho? Começo a transcrever o áudio de Lara. Sobre identidade. Lara começa falando que entre os anos 80 e os anos 2000, a população de Laras no Brasil cresceu 16 vezes, indo de 5.000 Laras para 80.000. Eu me chamo Sofia. Não sei quantas Sofias havia nos anos 80. Sei que aos 7 anos meu pai inventou um alterego para mim, o Pablito e a partir dos 7 anos eu aprendi a ser chamada de outro nome que não sofia. Pablito deixa as luzes acesas e a tevê ligada. Pablito sou eu, também. Toca o telefone. Atendo alô. Silêncio e uma voz que eu sei que não é de gente diz, alô, esta ligação é para. Silêncio. Ricardo. Desligo, eu não sou Ricardo. Desligo e digo em voz alta, quase decepcionada, Eu não sou Ricardo. Engraçado, nunca me ligam pra falar com uma mulher. Nenhum nome bonito de mulher. Hudclayson é um nome mais antigo pelo qual as vozes que não são humanas me ligam há um tempo longo demais para ser só engano. Me pergunto se Hudclayson tem que atender umas 2 ligações por mês ao meu nome. Espero que não.
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Dia 2 de 2021 eu acordei mas quase. Melhor seria não ter acordado, pois logo no primeiro respiro, muito antes de decidir o que iria comer no café da amanha ou mesmo antes de assomar o dedão para fora da cama, ele já se anunciava como um bom dia. um peso no peito de quando bebemos água demais rasgando a sede. Nem acordei e ele já estava lá, olhando para mim de frente e por dentro das minhas costas. Simplesmente enfadonho, previsível. Fiquei com a vontade de dizer isso a ele, que era um medíocre em tudo e principalmente nisso, mas apenas olhei com os olhos remelentos um olhar de absoluto TÉDIO. Esse serzinho asqueroso nem sequer se dignou a desviar os olhos. de mim. do meu corpo, da minha vontade de comer um típico café da manhã irlandês que só comi uma vez na vida. Não, não. Ele ficou olhando pra mim até que, quando vestida, disse – seco, mas num
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tom estridente de criança pequena de cinco anos (o que muito me irrita) – hoje é quarta-feira, hoje o dia é teu. Na terça, ou seja, ontem, o dia também fora meu, e acordei, ontem, naquela hora inanimada de um dia que não amanheceu por completo, sabe?, acordei e me vesti e comi qualquer coisa que em nada se parecia a um café da manhã irlandês. Mas eis que sigo viva, para viver agora, mesmo sabendo que minha hora ainda não soou. Nada vai acontecer, embora o dia seja meu. dasnichtnichtet. Hoje o dia é todo meu de novo. E nada farei disso. eu sabia disso quando ele me disse e ele sabia disso quando me disse e juntos ficamos lá, parados, pesados, nesse terror de não-existência que é, mas não ainda. Ele disse o que disse só para poder se enfiar com mais força, com os dois cotovelos, bem no meio da minha medula óssea e enxergar a matéria do que vinham sendo os sonhos que eu esqueço de lembrar. Um cretino. Mas amanhece, o que não é pouco.
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Dia 3 de 2021
Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram lá os semeadores. Mas ainda não soluço o desprazer da minha mão. Houve missionários comidos, porque a outros comeram. Houve missionários afogados, vão pro fundo assim e se aperolam com o tempo, se assistem, afogados, sim, mas por amor de vós afogados; comidos sim, mas por amor de vós comidos. Tremo o quanto me permite o pulso preso. Seria isto desistir? Seria isto tornar atrás? Espero a petrificação.
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A calçada de casa à espreita aguarda nossa chegada. A mão afaga meu cabelo diz – caba quente, estamos em casa -. Assim passo pelo portão e pelas orquídeas da velha e eu noto que precisam de água. Enquanto espero ouvir a brincadeira de sempre - se não correr ‘maguinho’, fica sem janta, corre, vai, se adianta - mas corri e o grito não veio. Os segundos que eram horas, um lugar onde não havia tempo. Ficou só o estouro de bala e um grito seco. Um grito tão alto que era só silêncio. Um cheiro de sangue invadindo meu peito. O velho caído com o peito rubro me jogou a própria arma. Carregava sempre no cós da calça pois tinha a ideia que com ela a morte não o alcançava. O matador me olhava e hesitava já que duelo com criança nunca tinha tido. Manter-se aterrorizado ou tornar-se terrível. Eu tinha duas escolhas, uma vida e nove anos. O resto é breu. Nunca se soube se daquela arma eu apertei o gatilho.
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Arqueada em puro concreto à minha espera Em praia de nome Búzios Sozinha como estou com a mala Da minha fuga A areia sujando meus pés no meio da sala Minha querida Brigitte A mulher de todos os dias nas solidões dos dias de mormaço Vigiando meus passos Me chamando para o mergulho Evitando que o mar da vida me engula
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Gosto de construir versos
363 de 2020
Outro endereço sem número. Procuro pelo nome do prédio depois de passar pela terceira vez pela mesma esquina. Já decorei o nome, está escrito em inglês, soa engraçado, “Grande Vila Parque”. Não tem cara de vila, muito menos de parque. Mas é grande, quando olho pra cima parece que toca o céu. Aperto o interfone, uma, duas, três vezes, uma voz com sotaque aparece: não sei se paulista ou gaúcho, é de gente do Sul. Pergunta se sou visita, sou entregador – respondo. Devo entrar pela primeira porta e depois esperar a liberação para a outra porta se abrir. Parece uma jaula. Morro de medo de prisão. Morro de medo de ser preso. A dona não pode descer, está dando banho no cachorro. Devo subir.
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369 de 2020
As ruas do bairro chique são todas planas. Não se parece com Nazaré. Na verdade, nada se parece. Acho engraçado o borbulhar do asfalto quando paro no sinal e olho para baixo. Está tudo fervendo. Minha cabeça está fervendo, meu juízo vai virar cozido. Mais cinco corridas hoje e consigo comprar o leite. Joana dormiu ontem com fome.
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372 de 2020
Mais uma semana e é aniversário dela. Era tão pequenininha quando nasceu. Parecia um preá, só se via cabeça. Hoje, até as bochechas estão cheinhas, os braços também bem gordinhos. A Vânia não sabia que estava grávida. Desde aquela noite, depois do maracatu, não nos vimos mais. Ela tinha as coisas dela. Eu vivia na cana. Crescemos juntos, brincávamos muito no quintal de Zé das Flores. Passei a trabalhar no engenho logo depois. Sou acostumado com sol, o sol sempre queimou meu juízo, mas nunca se atreveu a tocar minhas pernas. Acho que ele sabe que cabeça só se perde quando não se pode mais andar.
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377 de 2020
É outra câmara de ar de pneu que fura. A terceira do mês. Hoje não vou conseguir trabalhar. A Vânia tem faxina, vai sair cedo, já coloquei o leite pra ferver. Olho pra gola de caboclo em cima da mesa. Nunca a terminei. Desde que viemos pro Recife esqueci do maracatu. Parei de viver. Parei de sentir. Antes minhas mãos doíam, sentia os cortes que volta e meia o facão me dava, a grossura da cana, o gosto de terra na boca. Pegava a rural e voltava pra casa, mas anoitecia sem facão, sem trabalhar. Ontem passei a noite entregando coisa em Casa Amarela. Na volta, passei por uma rua cheia de bares, algumas garrafas quebradas no chão, um descuido no meio do escuro e mais um prejuízo pra conta.
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379 de 2020
Foi logo quando o negócio do vírus começou que viemos pra cá. A Vânia tem uma tia aqui no Alto, a Luisinha, que disse que os filhos passaram a entregar muita coisa pelo celular nos últimos meses. Eu já não tinha mais trabalho em Nazaré. A Usina ficou mal das pernas, e não aprendi o ofício de pedreiro que meu pai teimava em me passar. Não nasci pra construir coisas, não com cimento, gosto de construir verso. O mestre Barachinha me disse que gosta de construir amigos. Ele é mestre, sabe das coisas. Acho que gosto de fabricar versos e amigos. Mas aqui mal canto e não confio em ninguém além da porta.
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382 de 2020
Só mais duas sambadas e eu viraria Mestre. Seria desafiado e se tivesse sucesso na rima ganharia a bengala. Faltava tão pouco. Mas aí veio a doença, sambada não poderia mais acontecer. Guardei a tristeza e vim embora pra gente criar Joana. Consegui o dinheiro do governo por um tempo, depois nada mais. Hoje, ela é meu carnaval, cada sorriso que dá é um caboclo cortando o céu com a lança. Cada choro, é o apito mudando o tom do baque. Até correndo com a boneca, lembra a catita arrastando a poeira ao redor da gente. Foi o verso mais bonito que já trouxe pro mundo.
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386 de 2020
Acordei com um verso tinindo na cabeça. Parecia um fogaréu. A Vânia nem notou quando pulei da cama, está derrubada desde ontem tenho medo de ser a doença. Mandam a gente lavar as mãos, não tem água aqui há 15 dias. Peguei o papel e fui escrevendo, atrás de uma foto de perfume que a tia Luisinha ganhou da Avon:
Todo dia a gente espera Que uma notícia se aproxime E ganha corpo a esperança Que todo mundo se vacine A dar pé nessa desgraça De só esperar por uma vida que ninguém sabe se volta Pra que eu cumpra o sonho De finalmente virar Mestre E carregar minha filha nos braços pra toda sambada que preste
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o peito afogado
os olhos da serpente manhã de parapeito silêncio forte
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matou
a sede com
um raio
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Daqui, esse vermelho derrubado lembra vagamente um cavalo de carrossel morto. De ventre retilíneo, pernas redondas, dentes de raio, observo-o prostrado sobre o capim, mas não sinto desejo de o erguer em descanso, ou escorá-lo pelos chifres no muro caiado. Há uma corda enovelada em seu traseiro, um pano branco sobre o metal de sua cabeça e um chapéu perto de onde se acomodam, de quando em quando, rebentos, ferramentas e os víveres comprados na mercearia.
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Habituei-me ao asfalto terrível daquele rosto.
Foi tarefa árdua, um costume adquirido que me levou a pisar
ruas frágeis, a ir comendo as horas pelas arestas. De início, seu sólido calor baratinava minhas solidões, acuava meus bocejos matinais.
Regressava ao albergue com o coração fracassado, mantinha-
-me aterrorizado como frase proferida por fantasma. Todo encontro com aquelas costas craqueladas, com aquele chão sem espelho, desdourava o sol nos olhos, mumificava o sangue dentro.
O que me fazia levantar da cama já não era o galo forjando a
manhã aos gritos, nem o perfume do café, mas a brasa daquele rosto pronta a ferretear meus passos.
Eu era governado pela tristeza da palavra aurora.
Gradualmente fretei os olhos às janelas abandonadas, toda
noite o coração escrevia uns grasnidos no papel e o sangue, de rubro rio, verteu-se em córrego barrento.
Quando me dei conta, o propósito dos assombros tornou-se
minguante, os óculos já não se embaçavam com a conversa dos pássaros, os ventos perderam sua fundura e o asfalto, seu silêncio duro.
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