bairro de lata: Inspiração em tempos de crise?
Prova Final para Licenciatura em Arquitectura FAUP 2008/2009 Pedro Neto
Docente acompanhante: Prof. Álvaro Domingues
Estágio realizado de 1 de Outubro 2008 a 31 de Março de 2009 sobre a orientação do arquitecto Marc Chalamanch i Amat - Archikubik S.C.P., Barcelona
“O pensar não é inato, mas necessita ser produzido a partir do pensamento... O problema não é tanto direccionar ou aplicar metodologicamente um pensamento que existe enquanto princípio e na natureza, mas de o transformar no ser aquilo que não existe ainda (não existe outra obra, tudo o resto é arbitrário, mera decoração). Pensar é criar - não existe outra criação.” Gilles Deleuze (Différence et répétition, 1968)
Com a conquista espacial, os E.U.A. por meio da NASA desenvolveram uma caneta que escrevesse no espaço. Os fundos para o desenvolvimento da mesma foram “astronómicos” uma vez que, logicamente, a tinta necessitava do efeito da gravidade para chegar à ponta e permitisse então escrever. Os russos, usavam o lápis. (Adaptado, via SpacePen.com)
Abstract
Em 2006, segundo o relatório da ONU, mais de metade da população mundial vivia em cidades e um terço dessa habitava em bairros de lata. Desde esse ano para cá a situação não sofreu grandes alterações: as cidades continuam a crescer experimentando diariamente milhares de novos residentes, e esses, na falta de estruturas de acolhimento refugiam-se na informalidade (o único modo de vida viável para quem pouco ou nada tem). O bairro de lata antecipa-se o futuro da maioria dos que recém-chegados à grande cidade procuram melhorar a sua condição, ou, para aqueles que já na cidade, e devido a factores sobretudo económicos, se veêm forçados a tal. Verifica-se porém que a precariedade, pautada por um despojamento material e económico, obriga a desenvolver um certo sentido de sobrevivência, de inevitável adaptação por parte dos vários actores ao meio adverso. Lidar com a dificuldade constante faz aguçar a criatividade e conduz à desenvoltura na luta pela sobrevivência, é por essa razão que se propõe analisar o bairro de lata como instrumento de reflexão sobre a crise. A crise dos que aí vivem e a outra, global. Ainda que para o mundo dito civilizado/ocidental a crise económica - mediática só agora tenha rebentado, para os habitantes dos assentamentos informais (e não só), essa, é parte do quotidiano, uma realidade que lhes é inerente, quase banal. Mas a crise não se resume apenas à condição “urbana” mas também a outros campos relacionados com a mesma. Percebe-se primeiramente que existe uma crise das/nas cidades e dentro dessa todas as outras são uma causa e/ou consequência. Porque foi na polis que se desenvolveram grande parte das disciplinas que regulam a sociedade desde
os primórdios da história, e porque a urbe é o centro de decisão por excelência, o ponto de confluência de informação, de troca, de contacto, o foco irrevogável da evolução... Se a crise global se estende às mais diversas áreas (e se essas nasceram com a urbe), será então essencial iniciar a análise pelo processo de estruturação da(s) cidade(s) nas suas derivações passadas e contemporâneas, e em que os bairros de lata se apresentam como contexto ideal em termos de respostas improvisadas a condições de existência adversas permanentes. É nos momentos de transição e caos que o espírito humano se liberta e mais se afirma produtivo. De referir também que viver em permanente crise (e/ou em bairros de lata) não é nada fácil e que se está longe de pretender uma celebração desse tipo. O seguinte documento visa compreender como os assentamentos informais, apesar da sua extrema condição, podem contribuir com alguma inspiração para o presente contemporâneo, ou no mínimo, apontar perspectivas ou hipóteses aí testadas. Com o exemplo da odisseia espacial e os seus episódios, talvez também agora a saída esteja parcialmente em frente dos nossos olhos, de forma absurdamente simples.
Fig.1 Linha de Comboio que atravessa o bairro de lata de Pikine, Dakar (Senegal) 12º maior bairro de lata do mundo com 1,2 milhões de habitantes
Índice
13.
Prólogo
16.
Introdução Capítulo I O bairro de lata em panorâmica
22.
O Fenómeno Informal
32.
Bairro 6 de Maio - Um caso de estudo português
Capítulo II A prática do bairro de lata como détournement 46.
A Cidade Hoje
74.
Que Habitar (Habitat)
90.
Estética versus sustentabilidade
106.
Reflexão sobre o Bairro 6 de Maio
Capítulo III Do informal ao formal 114.
Bairro da Malagueira, Portugal (Álvaro Siza)
122.
Quinta Monroy, Chile (Elemental/A. Aravena)
130.
Mulhouse, França (Lacaton & Vassal)
138.
Conclusão
145.
Bibliografia/Referências Anexos Documentário Bairro 6 de Maio
PRÓLOGO CRISE(S)
Crise : s. f., Momento crucial ou ponto de viragem no curso de algo; Situação instável de extremo perigo ou dificuldade; Oriunda do Latim (Gr. Krísis), o termo crise tem a mesma equivalência da palavra vento. Indica, assim, um estágio de alternância, no qual uma vez transcorrido diferencia-se do que costumava ser. Não existe possibilidade de retorno aos padrões prévios.
Em Setembro de 2008 os mercados financeiros entraram em ruptura - “crise” foi o termo usado para descrever a situação da economia global. Aparentemente, foi também um alertar o mundo sobre outras crises existentes, algumas com pouco de recente. A queda da ordem económica mundial, e porque “reguladora universal”, acendeu debates ideológicos e avivou tensões crescentes na sociedade, ao mesmo tempo que abriu inevitavelmente espaço para novos horizontes. Crise económica, ambiental, ideológica, política, social... campos que se desdobram em múltiplos de si mesmos: - A crise ambiental - ou a sua degradação, que já então se anunciava mereceu atenção redobrada, desenvolveram-se novas iniciativas ao mesmo tempo que se lançou muita poeira no ar acerca do conceito de sustentabilidade; - A crise social (a qual já previamente existente) que começou a “emergir” no intocável primeiro mundo fez explodir tensões. Tensões raciais, tensões laborais, tensões outras de vária ordem que trouxeram às ruas grupos inesperados
e porque também afectados pelo contexto presente; - A crise das cidades, do planeamento das mesmas, tópico intrinsecamente ligado a problemáticas de índole social; - A crise da arquitectura enquanto estética e modo de estar do seu tempo, enquanto disciplina catalizadora de mudança e de carácter interventivo; - A crise da habitação, não apenas para os que vivem na informalidade dos bairros de lata, dos que dormem nas ruas, e de outros estratos da sociedade que se vêem sem possibilidades de ter uma casa sua; - A crise de valores, de utopias, de ideais e ideias, que possam organizar pensamentos e filosofias, que criem novos paradigmas de acção; - (...) Todavia, a crise é uma tormenta necessária na senda de uma nova harmonia, a fase seguinte a um não mais estável momento, um interlúdio inestimável. (Ou pelo menos assim se espera.) De sublinhar que a turbulência derivada do estado de alternância - estabilidade-crise-estabilidade, é algo completamente inerente à evolução. Os parâmetros dentro dos quais se encaixava uma determinada estabilidade necessitam ser transformados ou reformulados quando se verificam desadequados da nova realidade emergente. Das várias situações críticas que a história da humanidade sempre registou, a mudança enquanto parte desse processo mostrou-se inevitável, e ainda que para melhor ou para pior (facto questionável) a adaptação às novas circunstâncias venceu pela sua urgência, e as respostas dadas nasceram da inevitabilidade de transformação, Lembrando os diversos acontecimentos ao longo da História; desde o último degelo - que tornou possível a aparição da espécie humana (e em que outras espécies animais e vegetais desapareceram); à terrível Segunda Guerra Mundial - que alterou o plano sócio-político mundial e que produziu grandes desenvolvimentos a nível tecnológico e científico (ainda que por/para isso tenha conduzido milhares de seres ao extermínio); (...); é possível entender que certos avanços, (e salvaguarda-se a questão do “a que preço?”), não teriam sido possíveis, ou tão velozes, sem um determinado caos. Quando as várias componentes de uma sociedade começam a chocar, a desmoronar-se, a mudança perfila-se imparável. As questões, depois da fase da constatação efectiva, prendem-se sobretudo com os possíveis rumos a tomar, com a formulação de novas hipóteses, e em que a aprendizagem se concretiza. A criatividade fervilha na instabilidade – profícua, tendo em vista uma reciclagem da sociedade global e o seu modo de estar, pensar e agir. É para isso que serve uma “boa” crise. A “crise” tornou-se num conceito-situação quase que mainstream, um lugarcomum na boca de um mundo com poucas ou nenhumas soluções aparentes - por que afecta a todos enquanto pessoas, por que se estende, quiçá, a demasiadas latitudes geográficas e do conhecimento, e em que a arquitectura e os seus ramos não são excepção.
Fig.2 Bosch Der Garten Der Lüste
Introdução
Foi o nascer das cidades que permitiu e acelerou o desenvolvimento humano. Foi nas cidades que se desenvolveram a grande maioria das disciplinas do conhecimento, e as que aí não nasceram, lá cresceram. A política, a economia, a sociologia, a filosofia, (...), o urbanismo, a arquitectura. Sem a existência da polis, berço da civilização ocidental, todo este crescer exponencial da humanidade teria sido muito mais difícil, absurdamente lento, quiçá impossível. Um processo que levou o “tempo de uma cidade”, desde a primeira estaca da cabana até ao último andar do arranha-céus, e ainda em (de)construção. E no desenvolvimento orgânico da urbe vários foram os passos, com momentos de pujança, contra-tempos, crises e lutas de variada ordem... Agora o mundo e a sua polis catalizadora do desenvolvimento humano encontram-se na precariedade. Num momento da história em que o mundo urbanizado ultrapassa em larga escala o rural, as cidades enquanto concepção estão, e não como caso isolado, em crise. O “mundo” e as cidades juntos numa situação dita “sem precedentes”. Não será essa fruto de um duplo espelho, de uma relação osmótica entre esses dois elementos indissociáveis (cidade-mundo)? Se o mundo está em crise, as cidades estarão; se as cidades estão em crise também o mundo, porque baseado nelas, por consequência estará. Perante um tão frágil presente é essencial procurar o cerne da questão, os vários... Uma crise que abarca tantos tópicos do nosso agora “pequeno mundo”, uma situação que se mostra epidémica e em que as soluções imediatistas não aparentam funcionar.
Fig.3 Piranesi figura da sequência de Carceri
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Crise ecológica (energética, climática, perda de biodiversidade,etc), crise social (individual e colectiva, aumento das desigualdades sociais e no seio das
Dada a complexidade que o tema evoca encontram-se uma variedade de de-
mesmas, etc), crise cultural (inversão de valores, perda de referentes e das iden-
rivações que inevitavelmente se perdem em vastas referências. Como tal, e de
tidades, etc), crise económica e financeira...a lista é interminável de sufixos.
forma a construir um discurso multi-articulado, consultaram-se livros, revistas e documentos directamente relacionados com a arquitectura, bem como blo-
Todavia, nos diferentes “desenvolver” da cidade orgânica há um principio co-
gs, filmes, documentários, jornais. Os livros saltam por vários campos, desde
mum: todas começaram do zero, da lama, num processo de crescimento lento,
a filosofia, às ciências sociais, à poesia e à demais literatura. É também um dis-
de estagnação, de destruição e de progresso, até ao que hoje são.
curso construído sobre experiências e reflexões pessoais nascidas de viagens
E se todas as cidades começaram por ser o “caos” que se organizou progressi-
passadas e da observação do que nos rodeia.
vamente, será que é aí que se deve voltar a procurar respostas? Dar um passo
Daí, e como consequência, a estrutura é fruto do seu processo de desenvolvi-
atrás para poder dar dois em frente?
mento. Da panóplia de referências e dos vários tipos e tópicos de abordagem a organização quase hipertextual mostrou-se o modo mais conveniente num
Produzir a mudança a partir do dégré zéro seria algo moroso, provavelmente
texto com um fio condutor semi-linear.
impossível, e é sob essa perspectiva que se introduz o conceito de détourne-
ment (volta, desvio, inversão) usado por Guy Débord, situacionista dos anos
O trabalho desenvolve-se então em três momentos distintos.
50/60. Usar o que existe sob um olhar crítico e a partir da sua abstracção criar
É num primeiro capítulo que se contextualiza o quê, o quando, o quanto, o
saídas. Para Débord toda a cidade é um object trouvé susceptível de manipu-
porquê - o bairro de lata em panorâmica. Procura-se enquadrar certos fenóme-
lação e transformação. O potencial está aí, quanto aos elementos, esses neces-
nos relacionados com a informalidade ou que conduziram a tal.
sitam ser apropriados de modo diferente e criativo. Ver mais além da primeira
Em seguida aborda-se um caso de estudo português, que os há ainda que pon-
impressão.
tuais, o Bairro 6 de Maio, às portas de uma Lisboa marginal. A sua abordagem prolonga-se/complementa-se com um breve documentário sobre o mesmo e
Sintetizando, as cidades vieram da lama, e os bairros de lata foram uma eta-
fruto da observação de campo.
pa, fizeram parte integrante desse desenvolvimento urbano. Este tipo de assentamentos continua a existir, cada vez em maior número, e as soluções que
Numa segunda parte inicia-se uma reflexão sobre vários pontos considerados
apresentam são as mais eficazes no que diz respeito às necessidades mais ime-
chave e dotados de potencial com vista ao enunciado détournement. Corpo
diatas de quem os ergue. São laboratórios activos em relação à permanente
essencial do presente documento, de escala e problematização variada, são “A
vulnerabilidade que os afecta. Por tal motivo postula-se analisar a crise onde
Cidade Hoje”, “Que Habitar (habitat)” e “Estética versus Sustentabilidade,”
sempre existiu - o bairro de lata, que também ele sempre existiu. Tentando
em que o bairro de lata é usado como referência (sobretudo nos seus pontos
assim compreender os actores e os respectivos processos de criação, tendo em
positivos) na aproximação às questões explicitadas.
vista a formulação de possíveis hipóteses, de novas abordagens transportáveis a outros contextos. Procura-se entender de que modo as várias “estruturas” que
É após essa dissertação que se estabelece uma breve ligação entre algumas
convivem neste tipo de espaços nos podem elucidar, ensinar algo ou apresentar
propostas da solução popular em contraponto à dita arquitectura cultivada e/
soluções de um potencial involuntariamente disfarçado.
ou erudita (ou da mescla entre uma e outra), apresentando para isso projectos
De realçar que o documento que se segue não pretende de modo algum trans-
concretos e já realizados. Os projectos analisados não sublimam os assenta-
mitir a ideia de que o bairro de lata é um modo de vida ou modelo que se deva
mentos informais, mas corroboram pontualmente questões encontradas nos
seguir. A situação extrema de produção dos mesmos não se quer exaltada, daí
mesmos, verificando-se intersecções, abrindo o leque de possíveis abordagens.
que os tópicos que se crêem positivos, e provenientes de diferentes contextos
Ligadas duplamente: seja pela reflexão teórica prévia, seja porque são em par-
e latitudes, são desenvolvidos como conceitos a reflectir pois o potencial crê-se
te, em si, respostas formais a uma informalidade.
existir. Um primeiro momento como exposição - um contextualizar; num segundo, a reflexão - a transposição do observado em hipóteses; num terceiro, a concretização - ainda que pontual e sobre o antes nomeado.
*
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Capítulo I O bairro de lata em panorâmica
Encarado como uma contextualização inicial, apresentando a informalidade na sua amplitude e de modo bastante geral, o seguinte capítulo enceta uma aproximação ao tema. Os métodos e motivos da informalidade, o seu enquadramento global e histórico, alguns números e problemáticas alarmantes. O alcance da abordagem inicial reside em dois pontos considerados essenciais: por um lado abrir a porta à problematização do Capítulo II, por outro, alertar “A habitação não é um problema. Resolveu-se completamente ou deixou-se à
para situações delicadas de extrema importância e que passam frequentemente
sua sorte. No primeiro caso é legal, no segundo ilegal. No primeiro caso são
despercebidas, sobre as quais possíveis resoluções assemelham-se a uma encru-
torres, habitualmente blocos (como muito de 15 metros de fundo); no segundo
zilhada.
(em perfeita complementariedade) uma crosta de casecas improvisadas. Uma
A breve panorâmica realizada culmina com a introdução ao caso de estudo
consome o céu; a outra, a terra. Parece estranho que quem tem menos dinheiro
português - o Bairro 6 de Maio, (com um documentário incluído), sendo que a
consuma o artigo mais caro (a terra), e os que pagam vivam no artigo que é
mesma será completada no final do segundo momento do presente documento
grátis (o ar).” (Koolhaas, 1997)
- aquando da confrontação entre o postulado e o observado no campo.
o Fenómeno informal
Favela, kijiji, bidonville, johpadpatti, geacekondu, barriadas, barrios bajos, kampungs, mudukku, penghu, slum, bairro de lata...
Diferentes palavras, vários idiomas, um mesmo significado. Todos designam um bairro ou uma zona de uma determinada cidade com uma densidade acima dos padrões, com habitação degradada e/ou precária, com falta de infraestruturas adequadas e sem regularização pelo estado. Pertencem por isso ao chamado mundo “informal”, modo de distinguir do universo oficialmente regulado, denominado consequentemente, de “formal”. A diversidade de nomes, de histórias, de processos de formação dos bairros informais é de uma complexidade extrema, uma complexidade relacionada com a latitude e respectiva cultura onde se inserem. Apesar das múltiplas especificidades, ligadas aos diferentes contextos de produção desses mesmos assentamentos, é possível encontrar-lhes denominadores comuns no que toca à sua origem e respectivo crescimento. A vontade de melhorar as condições de vida, elemento primordial no processo global, resulta na procura das oportunidades e na deslocação para onde essas existem, é o primeiro passo de uma saga por vezes interminável, e esse lugar é na grande maioria dos casos a cidade. Nessa senda, comummente irreal, registam-se diariamente movimentos massivos de populações para os aglomerados urbanos, ou preferindo, a “terra prometida”. Ainda que as potencialidades contidas nas cidades sejam notórias, também o Fig.4 JR Women Project (Kibera, Quénia)
são, na mesma medida, as dificuldades de quem à procura de melhorar as suas
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condições de vida corre nessa direcção.
enquadramento histórico
A falta de estruturas de acolhimento aos recém-chegados e a sua falta de con-
Desde a antiga Mesopotâmia, berço dos primeiros aglomerados que anun-
dições económicas favoráveis, levam, na maior parte dos casos, a que se cons-
ciavam a urbanidade, que os fluxos migratórios em direcção a essas mesmas
truam abrigos ou se ocupem espaços, e isto, à margem da lei - um processo de
formas de organização espacial e cultural da sociedade – as cidades - se fizeram
adaptação, de luta pela sobrevivência, tão antigo como a história da humani-
sentir de forma exponencial. A tendência de crescimento não sofreu pratica-
dade.
mente contracções ao longo do tempo, e por tal motivo, percebem-se os valores
Os actores desta realidade são frequentemente intitulados de ocupas e as suas 1
razões e objectivos são variados, facto verificado nas diferentes abordagens: existem os mais tradicionais do mundo desenvolvido que entram e ocupam casas abandonadas pelos seus proprietários; os que constroem cabanas em terras remotas e cultivam-nas ainda que não lhes pertençam, outros organizados politicamente como é o caso do Movimento dos Sem-Terra no Brasil . 2
Contudo, a maioria são famílias que deixam as zonas rurais e mudam-se para a cidade à procura de melhores condições de vida, que constatando a falta de possibilidades económicas para ter uma casa no mercado privado, no âmbito da habitação formal e regulada, constroem-nas eles próprios em áreas que não lhes pertencem. Partindo de estruturas básicas, feitas de lama, de pedaços de madeira, de materiais descartáveis, por vezes escondidas, e que evoluem ao longo do tempo. Para este grupo maioritário “ocupar” é um valor familiar. Ao longo do tempo, estas extensas populações desenvolveram autênticas cidades paralelas, com economias à margem da participação na legalidade estatal. Criaram: “(...) um sistema não oficial de proprietários ‘ocupas’, inquilinos ‘ocupas’, comerciantes ‘ocupas’ e consumidores ‘ocupas’, construtores ‘ocupas’ e trabalhadores ‘ocupas’, corretores ‘ocupas’ e investidores ‘ocupas’, professores ‘ocupas’ e estudantes ‘ocupas’, pedintes ‘ocupas’ e milionários ‘ocupas’. Os ‘ocupas’ são os maiores construtores de habitação do mundo – e estão a criar as cidades do amanhã.” (Neuwirth, 2006: 10)
Por vezes são cidades inteiras, auto-construídas. Cidades dentro da “Cidade”,
1. Ocupa ou intruso, tradução do termo original em inglês squatter. O termo squatter nasceu em New England, na altura da guerra da revolução como forma de descrever as pessoas que construíam as suas casas em terras que não lhes pertenciam. O primeiro uso escrito da palavra foi em 1788, pelo homem que viria a tornar-se o quarto presidente dos Estados Unidos da América – James Madison.
atingidos assim como as actuais previsões.
2. Movimento dos Sem Terra (MST), grupo formado por agricultores sem terra para cultivar, tendo lugar a sua fundação oficial em Janeiro 1984. O esgotamento do modelo agro-industrial que foi implementado no Brasil entre 1930 e 1970 - através do qual muitos camponeses foram incentivados a deixar o campo para ir trabalhar nas fábricas que proliferavam nos meios urbanos - entra em plena crise na década de 70 por não haver emprego que satisfizesse a procura, o que terá sido uma das razões principais da organização do movimento. Outra das razões foi a necessidade de implementar uma reforma agrária no Brasil. Apesar de historicamente ter sempre existido gente que lutou por essa reforma agrária, o Brasil nunca tinha tido um movimento social organizado que a reivindicasse e lutasse por ela. Uma das acções comuns do MST era a redistribuição das terras improdutivas, ocupando-as e cultivando-as.
Quando a Grécia estava no seu esplendor, oito séculos antes do nascimento
As cidades do antigamente eram lugares pútridos, mas as pessoas migravam para as cidades – como o fazem hoje em dia – porque eram centros de manufacturação e comércio, e onde as oportunidades existiam em maior número. O êxodo rural, designação relativamente recente, compreende-se ser um processo iniciado há milénios atrás.
de Cristo, ocupar e construir em terras vazias, públicas e privadas, ou em propriedades dos templos era uma resposta comum à falta de alojamento sentida, situação que levou muitas cidades-estado à ruína. Relatos existem da Roma Antiga, em que as populações chegadas à cidade, e sem onde ficar, ocupavam. Apesar do investimento do império em infra-estruturas e obras públicas não havia propriamente uma política de alojamento para quem dele necessitasse, assim, os novos “habitantes” tomavam posse de ruas, 3. Tuguria - uma espécie de alpendres que se apoiavam nos edifícios adjacentes
ocupavam fontes, erguendo as então denominadas tuguria3. A forma descarada como o faziam desafiava claramente as autoridades a removê-los, mas dado o seu extenso número o governo acabava por desistir da tarefa. As autoridades romanas mudaram de estratégia ao longo do tempo: analisavam se as construções não eram obstrutivas e acabavam por regularizar algumas, cobrando uma renda para tal. O crescimento dos assentamentos informais foi registado não apenas nos centros densamente populados da Roma Antiga, mas progressivamente nas periferias. O desenvolvimento da habitação clandestina foi tal que nem os guardas do império se atreviam a entrar nos labirintos e becos destes
por vezes com mais vida, com mais dinâmica, e com mais gente, ao ponto de se
aglomerados, pois perderem-se podia custar-lhes a própria vida.
questionar qual é a verdadeira, se esta ou a outra - a oficial. A partir da sua humilde origem, contra tudo e todos, produzem algo complexo, frequentemente
Esta situação parece ter paralelo em quase qualquer grande cidade: também
áspero e “desregulado”. Produzem o bairro de lata, produzem a sua nova cida-
Londres, Paris e Nova Iorque, são exemplos destas migrações e consequente
de.
ocupação de terras, casas e outras estruturas, ou na construção das necessárias. Durante a idade média Paris recebia diariamente novos habitantes, e para os albergar existiam barracas sobrelotadas, similares às de hoje. As gentes do povo chegavam à cidade e não encontravam lugares para viver, então criavam enormes comunidades ilegais, alugando de outros ou construindo eles mesmos. Os bairros de lata eram uma paisagem comum na maioria dos bairros parisienses, actualmente zonas centrais e nobres. Desenvolviam-se em vias la-
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birínticas, que distribuíam às barracas de lama, palha, madeira,... Paris possuiu
das sobretudo por artistas, intelectuais, boémios, e já não tanto por famílias de
estas “tipologias urbanas” até ao séc. XVIII, momento em que grandes inter-
sem-abrigo.
venções urbanísticas tomaram lugar. Também Londres conta com uma história similar, se em Paris na zona envol-
Os casos previamente nomeados são históricos, e dizem respeito à dita civili-
vente a Notre-dame existiam bairros de lata, aí construíam nos terrenos adja-
zação ocidental, mas para uma boa parte do mundo, sobretudo o grupo dos
centes à Torre de Londres. Nas florestas que circundavam as cidades também
países em vias de desenvolvimento, pouco mudou desde a época medieval ou
abundavam os residentes clandestinos. É curioso o sucedido aquando do gran-
desde há uns séculos atrás. As cidades de hoje em dia do Terceiro Mundo en-
de incêndio de Londres em 1666, ainda o rei planeava como reconstruir a cida-
contram-se com um pé na idade média e outro no séc. XXI. Simultaneamente,
de e já havia quem erguesse as suas casas em antecipado, ocupando as margens
é importante vincar que muitas das cidades de betão, ferro e vidro que conhe-
das áreas destruídas. Mais tarde, durante o séc. XX, as parcelas dentro e nos
cemos hoje foram outrora compostas de ruas estreitas e fétidas, de barracas, e
arredores da cidade ficavam vazias por pouco tempo, até que novos squatters
sobrepovoadas.
se apropriassem da terra.
A documentação acerca destas populações e das estruturas que os albergavam
No pós II Guerra Mundial e até aos anos 80, devido às dificuldades económi-
é escassa, eram populações quase invisíveis: não pagavam taxas, não iam a tri-
cas então sentidas, histórias existem (sobretudo em Londres e Amesterdão),
bunais e preferiam não se misturar com os assuntos dos governos e das nações.
descrevendo squatters que tomaram casas e edifícios abandonados fazendo
Os motivos pela falta de informação em relação à vida informal estão relacio-
deles as suas casas – neste caso eram jovens e solteiros, radicais e intelectuais,
nados com duas circunstâncias óbvias: em primeiro lugar, pelo facto de muitos
em vez das famílias de antes.
dos residentes informais serem iletrados e daí não haver registos escritos, em segundo, porque as suas estruturas eram feitas de materiais facilmente removí-
Mas os exemplos do velho continente têm paralelo noutras latitudes.
veis e efémeros, não deixando portanto vestígios arqueológicos significativos.
A história de Shangai, na China, não é muito diferente: gentes de outros lugares chegavam nos seus pequenos barcos, punham-nos em terra firme tornandose o seu abrigo nas margens pantanosas da agora “megalópole”. Ao longo dos Contexto global
anos os barcos convertiam-se progressivamente em barracas e daí até quasecasas. Por volta de 1940 um em cada cinco habitantes de Shangai era clandes-
4. O Clube de Roma é um grupo de figuras ilustres que se reúnem para debater um vasto conjunto de assuntos relacionados com a política, a economia internacional e, sobretudo, com o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável. Foi fundado em 1968 por Aurelio Peccei, industrial e académico italiano e Alexander King, cientista escocês. Tornou-se um grupo muito conhecido em 1972 devido à publicação do relatório elaborado por uma equipa do MIT (Massachusetts Institute of Technology), contratada pelo Clube de Roma e chefiada por Meadows, intitulado Limits of growth. O referido Relatório tratava essencialmente de problemas cruciais para o futuro desenvolvimento da humanidade tais como: energia, poluição, saneamento, saúde, ambiente, tecnologia , crescimento populacional entre outros, chegando à conclusão que o Planeta Terra não suportaria mais o crescimento populacional devido à pressão sobre os recursos naturais e energéticos e o aumento da poluição, mesmo considerando o avanço das tecnologias.
tino, ou seja, um milhão do total da população urbana. Contudo, ainda que nas suas terras de origem tivessem melhores condições habitacionais, a nível económico viver na cidade valia a pena. Por volta de 1949, políticas de abolição dos bairros de lata foram levadas a cabo, e a imigração restringida de forma a prevenir a formação de novos assentamentos informais. Hoje em dia, a China e as suas políticas mais permissivas levam a que novamente haja milhões de pessoas a deixar os seus terrenos agrícolas e a imigrar para as cidades, erguendo, mais uma vez, comunidades auto-construídas. À semelhança dos exemplos prévios também nos EUA, o squatting era um modo de vida. As cidades de Chicago, São Francisco ou Nova Iorque são casos disso. A São Francisco do séc. XIX é um caso extremo de organização por parte dos actores da informalidade, na altura a maioria da população urbana, criaram administrações e governos paralelos, reivindicando que o domínio público a todos pertence; ou como em Chicago reivindicando que a terra é uma herança comum de qualquer cidadão e portanto no seu direito de invasores. O caso de Nova Iorque também apresenta semelhanças, durante o séc. XIX era comum ocuparem-se terrenos nas zonas pantanosas actual centro da cidade. Mas a história de ocupação da Big Apple tem o seu pico já durante o séc. XX: as zonas industriais com os seus armazéns em desuso, foram sendo apropria-
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A Terra urbanizou-se ainda mais rápido do que o previsto no relatório de 1972 - Limits of Growth, elaborado pelo Clube de Roma4. Se em 1950 existiam 86 cidades com uma população de mais de um milhão de habitantes, hoje existem 400, e em 2015 prevêem-se 550 (dados UN-HABITAT, 2005). Neste momento as cidades absorvem aproximadamente dois terços da população mundial, e o crescimento voa ao ritmo de um milhão de bebés e migrantes a cada semana. Ainda que as cidades tenham deixado de ser máquinas de trabalho o êxodo rural continua. (dados UN-HABITAT, 2005) A maioria desta totalidade humana vai existir a sul do equador, em países em vias de desenvolvimento, nas suas cidades em explosão. Cidades estas que estão a criar incríveis redes urbanas, corredores, hierarquias, espacialidades, etc, e em que o preço desta nova ordem urbana ainda por compreender será certamente o aumento das desigualdades entre indivíduos, grupos sociais, e até entre as próprias cidades. Apesar da crescente afluência de indivíduos e famílias, o planeamento para as albergar é pouco ou nenhum. A situação mostra-se preocupante em países do Terceiro Mundo, que como resultado do rápido crescimento urbano em contextos de ajustamentos estruturais impostos (pelo FMI - Fundo Monetário Internacional, pelo Banco Mundial, e/ou como consequência da dívida externa),
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desvalorização de moeda, e retracção de investimento por parte dos estados,
Megacidades do Terceiro Mundo
a produção em massa de bairros de lata mostrou-se inevitável. Tendo em con-
(população em milhões)
ta que esses governos não providenciam mais do que 20% da nova habitação
1950
2004
Cidade do México
2.9
22.1
começaram a construir barracas, alugueres informais, subdivisões piratas e até
Seoul-Injon
1.0
21.9
ocuparam passeios. (De referir que embora esta situação se verifique de forma
(Nova Iorque
12.3
21.9)
galopante em países em vias de desenvolvimento, também o mundo ocidental
São Paulo
2.4
19.9
padece de tal fenómeno, embora a uma escala consideravelmente menor.)
Mumbai
2.9
19.1
Delhi
1.4
18.6
O desenvolvimento da informalidade atingiu níveis que assustam pela sua di-
Jakarta
1.5
16.0
mensão. Tanto é que se calcula que existam mais de 200,000 assentamentos in-
Dhaka
0.4
15.9
formais na Terra, variando as suas populações entre algumas centenas até mais
Calcutá
4.4
15.1
de um milhão de pessoas. Estima-se que existam 1,000,000,000 (um bilião) de
Cairo
2.4
15.1
“ocupas” no mundo, o equivalente a uma em cada seis pessoas no planeta (sen-
Manila
1.5
14.3
do que uma em cada três pessoas é urbana). E a densidade está a aumentar - a
Karachi
1.0
13.5
cada hora 8,000 e 130 a cada minuto. Cada dia, perto de 200,000 (duzentas
Lagos
0.3
13.4
mil) pessoas deixam as suas casas em regiões rurais e mudam-se para cidades.
Shangai
5.3
13.2
Quase 1,500,000 (um milhão e meio) de pessoas por semana, 70,000,000 (se-
Buenos Aires
4.6
12.6
tenta milhões) por ano. Em 25 anos, crê-se que o número de “ocupas” tenha
Rio de Janeiro
3.0
11.9
atingido o dobro. Em 2030 espera-se que hajam 2,000,000,000 (dois biliões),
Teerão
1.0
11.5
Istambul
1.1
11.1
Pequim
3.9
10.8
Bangkok
1.4
9.1
Gauteng
1.2
9.0
Kinshasa/Brazzaville
0.2
8.9
Lima
0.6
8.2
Bogotá
0.7
8.0
(dados UN-HABITAT, 2005), e na circunstância de necessidade, as pessoas
ou seja uma em cada quatro pessoas na terra. Uma tendência em ritmo ascen-
Tabela 1. Megacidades do Terceiro Mundo fonte: UN-HABITAT Urban Indicators Database (2004)
Gráfico 1. Crescimento da População Mundial fonte: UN, World Urbanization Prospects: The 2001 Revision (2002)
dente, sendo que desde 1970 o crescimento dos bairros de lata ultrapassou a urbanização per se (Dados: UN-HABITAT, 2005). Com uma evolução desta 5. Chatterjee, Gautam, Consensus versus Confrontation, Habitat Debate 8:2, Junho 2002, p.11.
ordem há quem sugira que “(...) existirão apenas bairros de lata e não cidades.” 5 Casos há em que tal afirmação não se encontra longe da verdade, países onde se encontra pobreza descontrolada: por exemplo a Etiópia e o Chade, com 99,4% da população urbana a viver em bairros auto-construídos, ou Afeganistão e Nepal, respectivamente com 98,5% e 92%. (UN-HABITAT, 2003) “As cidades do futuro, em vez de serem feitas de ferro e de vidro, como fora pre-
Crescimento da População Mundial
visto por gerações anteriores de urbanistas, serão construídas em grande parte de
8
6
tijolo aparente, palha, plástico, blocos de cimento e restos de madeira. Em vez
Urbano países mais desenvolvidos Urbano países menos desenvolvidos Rural
das cidades de luz arrojando-se aos céus, boa parte do mundo urbano do século XXI instala-se na miséria, cercado de poluição, excrementos e deterioração.”
Biliões
(Davis, 2006 : 19)
4
Para aliviar a falta de alojamento a Organização das Nações Unidas reporta que se teriam que construir 35 milhões de casas por ano, ou seja, 96150 por dia, 4000 por hora, 66 por minuto, uma a cada segundo (dados UN-HABITAT,
2
2006). E isto apenas para manter o equilíbrio, não contando com os que vivem nos bairros de lata actualmente. (dados UN-HABITAT, 2005)
0 1950
1960
1970
1980
1990
2000
2010
2020
Os números impressionam e as consequências daí derivadas ainda agora co-
2030
prova final | pedro neto
meçam a fazer-se sentir - o Banco Mundial já alertou que a pobreza urbana
bairro de lata: inspiração em tempos de crise?
28|29
tornar-se-á “o problema do próximo século mais significativo e politicamente explosivo.”
6
Esta pobreza em crescimento, que não se traduz apenas no fenómeno informal, mas também nos frágeis modos que hipoteticamente ajudam a contornar
no Brasil, em que certas mulheres - habitantes das favelas, trabalham como
6. Shi, Anqing, How access to urban potable water and sewerage connections affects child mortality, Finance, Development Research Group, working paper, World Bank, Janeiro 2000, p.14.
empregadas em lares “oficiais”. Em Mumbai (Índia), em que a dimensão dos bairros de lata o permite, existe uma indústria de manufacturação de roupa que vende inclusive para os mercados internacionais, ou, mais caricatamente,
a mesma, começa a repercutir-se-se em força, assumindo diferentes contornos
a indústria alimentar clandestina que fornece pastelaria e afins aos melhores
de acordo com contextos e latitudes.
hóteis da cidade. Verifica-se frequentemente que a dualidade entre formal e informal é meramen-
Na Europa, a pobreza urbana e problemas relacionados, sem dúvida existentes ainda que na vertente informal sejam residuais, constatam-se em crescimento e constituem um barril de pólvora que pode tomar formas imprevisíveis. Os problemas existentes estão relacionados com a pobreza e exclusão social nos seus vários moldes, e a maneira como se tentam resolver os problemas parece nem sempre ser a mais adequada. Todavia os que se relacionam com a habitação, normalmente integrados em iniciativas do chamado Estado-Providência nas 7
suas várias vertentes, não são tanto pela falta da mesma, mas pela forma que a mesma toma.
7. Estado-Providência, ou Estado Social - é um tipo de organização política e económica que coloca o Estado (nação) como agente da promoção (protector e defensor) social e organizador da economia. Nesta orientação, o Estado é o agente regulamentador de toda vida e saúde social, política e economia do país em parceria com sindicatos e empresas privadas, em níveis diferentes, de acordo com a nação em questão. Cabe ao Estado do bemestar social garantir serviços públicos e protecção à população
No que toca aos Países em Vias de Desenvolvimento, “território de excelência”
te nominativa portanto. Do outro lado de quem (des)regula localmente está a ordem internacional. Embora o Banco Mundial, a UN-HABITAT assim como tantas outras ONG’s recebam fundos para analisar as várias situações problemáticas e para pôr em marcha projectos que fomentem o desenvolvimento, constata-se que a corrupção e o laxismo dentro dessas entidades são os maiores obstáculos no 8. UN-HABITAT - The United Nations Human Settlements Programme, agência da Organização das Nações Unidas. Criada em 1978 tem a sua sede em Nairobi, Quénia.
da informalidade a situação mostra-se redobradamente delicada, mas de outro
momento de concretização. O caso da UN-HABITAT8, uma dependência da Organização das Nações Unidas, existente há mais de 25 anos, é disso flagrante. Esta entidade patrocina as melhores práticas, ou seja, apoia programas governamentais com vista a intervenções em zonas problemáticas. Os trabalhadores da HABITAT admitem todavia que “as suas acções não têm muita
perfil: aparenta que ninguém tem interesse em construir algo digno e coerente
9. Kibera é das maiores cidades de lata de África. Situada em Nairobi, Quénia, alberga estimadamente 800 mil pessoas. A UN-HABITAT, há vários anos no terreno, parece não ter realizado melhoramentos efectivos na vida da população de Kibera.
para estas pessoas, pensar sequer em integrá-las, ou disposto a alterar positivamente a situação - nem estados, nem investidores privados, nem ONG’s (Organizações Não Governamentais) ou instituições afins. Os estados do Terceiro Mundo pautam-se pela corrupção, pela desorganiza-
relevância para quem vive na informalidade” e que se “sentem melhor no seu escritório” (Neuwirth, 2006: 245) sem planos de actuação como é o exemplo do que sucede em Kibera9. Ao mesmo tempo, quando se tentam por em prática projectos com vista ao melhoramento das condições existentes, provisão de habitação, integração social e afins, e independentemente da proveniência, o resultado raramente é o
ção, e indirectamente chegam a fomentar a informalidade. Os governantes, ou outros - dentro do sistema, são por vezes os primeiros a contribuir para
10. cf. Portugal, Catarina, Prova Final, 2007, pp.76-94
que essa situação se propicie e se mantenha porque lhes conveniente. Seja por-
esperado. O programa Favela-Bairro10 no Rio de Janeiro é disso exemplo. A tentativa articulada de iniciativa institucional - considerando políticos, soció-
que os mesmos, e normalmente aliados a investidores imobiliários, ganham
logos, assistentes sociais, arquitectos, urbanistas, etc, com o mesmo fim co-
directamente com a invasão pioneira de certos terrenos de baixo valor (lixeiras,
mum de tentar resolver os problemas das populações criaram outros derivados
zonas pantanosas, escarpas de difícil acesso, etc) - típicos da construção infor-
- inesperados. Ao tentar desenvolver física e socialmente certas favelas do Rio
mal. Seja porque através de órgãos de controlo estatal corruptos (entidades
de Janeiro, e com vista à integração na malha urbana e na sociedade respectiva,
responsáveis pelo território e economia - e políticas relacionadas, as forças de
o resultado trouxe mais desigualdades sociais. Os preços do solo aumentaram
segurança, etc) lucros são feitos pelo aluguer ou venda ilegal de terrenos ou
a par da ligação à realidade urbana formal e equipamentos proporcionados,
estruturas informais, pela coação em relação à sua condição inerente, ou pelo
fazendo com que os mais pobres dos mais pobres se tivessem que deslocar para
desvio e venda de armas (feito a quem por sua vez controla o bairro de lata),
outras favelas menos centrais ou desenvolvidas, para o periférico do já de si
por vezes o conluio no tráfico de droga, e por aí fora. Os frutos da manuten-
periférico. Além disso, a densidade da questão da pobreza ultrapassa-se quan-
ção de economias paralelas trazem ingressos e são influenciados pelo mercado
do são os próprios pobres que se exploram mutuamente, a desigual pobreza
formal e respectivas flutuações, necessidades, motivações. Casos há em que
dentro da já de si desigualdade social.
certas favelas, como acontece no Rio de Janeiro, em que os preços das casas atingem valores altíssimos tendo em conta a pressuposta ilegalidade, e tal a par
Com este panorama mostra-se extremamente complexo perceber como actuar
do mercado oficial.
em relação a estas situações e respectivas sociedades.
Esta intersecção entre mundos e respectivas economias paralelas - formal vs informal - encontra-se igualmente patente noutras variantes. Por exemplo
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bairro de lata: inspiração em tempos de crise?
30|31
Bairro 6 de Maio um caso de estudo português
Ainda que a maioria dos bairros de lata existentes no mundo se localizem maioritariamente a sul do equador, também Portugal apresenta situações semelhantes, todavia residuais e de menor dimensão. A actual cidade da Amadora é representativa dessa circunstância. A zona do país com mais bairros degradados e clandestinos, zona onde se insere o presente caso de estudo – o Bairro 6 de Maio, na freguesia da Venda Nova. Um bairro clandestino às portas de Lisboa, de construções improvisadas e com uma população de origem essencialmente africana. O Bairro 6 de Maio tem uma história comum à de tantos bairros urbanos pobres, e enquanto tal mantém uma imensurável distância da cidade que o confina. Visto como uma zona de risco, de ruelas escuras, de edifícios esventrados e onde entrar parece um desafio imprudente.
Um pouco de História Não existem certezas acerca da idade actual do território onde se inscreve a Amadora nem da sua vivência humana, mas existem vestígios concludentes da sua antiguidade e certezas de terem sido habitadas desde os alvores da humanidade, facto provado pelos diversos achados arqueológicos na zona. Uma situação privilegiada ao nível de caça, água, arvoredo aliadas ao microclima ameno terão oferecido condições propícias à fixação de populações. As divisões territoriais na zona da Amadora surgem apenas por volta do séc. XIII na forma de herdades e a fixação, conquanto lenta, é de populações ligadas
Fig.5 Panorâmica sobre o Bairro 6 de Maio
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bairro de lata: inspiração em tempos de crise?
32|33
à agricultura. O séc. XIV marca uma concentração significativa, com a agregação de várias herdades em função da qualidade do solo e da existência de água. Já no séc. XVI, a Estrada Real ou Real Estrada (hoje Estrada de Benfica e Rua Elias Garcia) torna-se o principal eixo de circulação de pessoas e animais, a caminho de Sintra, Belas e Ericeira, situação que se mantém durante algumas centenas de anos, e que propicia o aparecimento de casas de pasto e hospedarias ao longo desse trajecto, assim como de várias povoações, estando entre elas, a Venda Nova. O nascimento em 1759 do concelho de Oeiras é um marco decisivo para a organização da parte administrativa dos lugares, os quais, a partir daí se encontram quase sempre associados à freguesia de Benfica. As maiores transformações surgem no séc. XX e para isso contribui a chegada do comboio e de outros transportes públicos. A prévia designação de Porcalhota (1907) cai tomando o actual nome de Amadora. A indústria cresce e a agricultura deixa de ser a principal economia da então freguesia autónoma (1916), rasgam-se ruas e a Amadora começa a perder o carácter quase idílico que antes a identificava. Com a ascensão a freguesia o crescimento demográfico faz-se notar, crescem as fábricas e a localidade começa a descaracterizar-se. Simultaneamente desenvolvem-se escolas, saneamento básico, cinemas, espaços de lazer entre outros. A elevação a vila (1937) pouco ou nada melhora o estado das coisas - a urbanização não planificada invade searas e derruba os muros. Durante a década de 50 e 60 verifica-se uma construção acelerada, com as pessoas das mais variadas localidades do país a procurar trabalho na construção civil e nas fábricas. É então que se começa a desenvolver a habitação clandestina. Irrompem edifícios, surgem bairros e a Amadora torna-se no maior dormitório de quem trabalha em Lisboa. Simultaneamente, passa a possuir a maior freguesia clandestina a nível europeu como foi o caso da Brandoa. O desenvolvimento urbanístico dos anos 60 e 70 é causa e efeito do aumento demográfico e, por essa razão, começam a proliferar os bairros clandestinos e/ou degradados. A 11 de Setembro de 1979 a Amadora é elevada a concelho autonomizando-se em relação a Oeiras. Foi a primeira cidade a surgir depois da Revolução de Abril, ficando definidos os seus limites territoriais, com uma população, a essa data, de 186mil pessoas, para uma área de 24km2 e uma densidade populacional de 7750 habitantes por km2. O novo concelho fica dividido em 8 freguesias e, já em 1997, é ampliado para 11 (Alfarelos, Alfragide, Brandoa, Buraca, Damaia, Falagueira, Mina, Reboleira, Venda Nova, Venteira e São Brás). É neste período mais recente que a Amadora começa a perder, embora lentamente, um pouco do carácter de cidade dormitório e a projectar-se como uma cidade em evolução. Actualmente, a Amadora é uma cidade de acolhimento de nacionais e estrangeiros que por variadas razões, mas sobretudo em busca de trabalho e melhores condições de vida, ali se ancoram, é uma mescla de origens geográficas e sociais diversas e de enormes contingentes de minorias étnicas. Fig.6 Viela do Bairro 6 de Maio
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bairro de lata: inspiração em tempos de crise?
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Programas de Habitação e “estado de providência” Não se pretendem analisar exaustivamente todos os processos relacionados com a problemática da habitação nem os seus métodos, a sua validade e/ou consequências de ambos, pelo que se expõe sucintamente e a título de enquadramento o percurso de tais medidas. O período antecedente a Abril de 1974 mostra-se importante referir de forma a clarificar os contextos sócio-políticos anteriores, em que radica a produção de medidas de política de habitação social - elementos sumariamente explicativos do polifacetado percurso das políticas de habitação, nomeadamente das principais orientações da intervenção estatal, na construção de habitação económica para os grupos e categorias sociais mais carenciados. Antes de 1974, era patente uma reduzida participação do sector público na promoção de habitação. Em meados da década de 60, as necessidades manifestavam-se mais ao nível qualitativo que quantitativo, sendo evidentes as deficientes condições de habitabilidade, a ausência de infra-estruturas e de equipamentos sociais e a acentuada degradação dos edifícios existentes. No sentido de atenuar algumas carências emergentes, o Estado Novo prometeu a proliferação de programas e regimes destinados à promoção de bairros de renda limitada e de renda económica, principalmente nas cidades de Lisboa e Porto: as “Casas Económicas”, os “bairros camarários” do Porto, as “casas para famílias pobres”, as “casas para pescadores”, entre outros. Na linha adoptada pela acção do estado, a política de habitação visou mais objectivos políticos e ideológicos –procurando a defesa da instituição familiar e a conservação da ordem existente, que a integração efectiva dos seus alvos. A crise habitacional e as carências a este nível acentuaram-se a partir dos anos 60, estreitamente associadas à intensificação dos processos de urbanização e industrialização. Como resposta à falta de habitação desenvolveu-se um mercado de habitação dual: por um lado um mercado legal, predominantemente privado e especulativo, inacessível a cerca de 70% da população, por outro, um sector clandestino (ou “alegal”) que respondia às necessidades económicas das populações. O FFH (Fundo Fomento da Habitação), criado em 1969 e funcionando enquanto instrumento de intervenção na promoção habitacional do Estado Novo, teve até 1974 um papel discreto. Após o 25 de Abril, a participação aumentou por via da promoção local e/ou nacional. Nos dois primeiros anos, o reforço da intervenção pública manifestou-se, quer no fomento directo de habitações, quer na diversificação dos apoios e programas de produção indirecta, nos domínios da política urbanística e de solos. Houve um esforço ao nível da promoção indirecta, através da criação de diversos programas de apoio técnico e financeiro aos promotores privados e cooperativos, tais como os “Contratos de Desenvolvimento”, os “Empréstimos às Câmaras”, as “Cooperativas Fig.7 Puxadas de electricidade ilegais, Bairro 6 de Maio
de Habitação Económica”, o famigerado “SAAL” (Serviço de Apoio Ambu-
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bairro de lata: inspiração em tempos de crise?
36|37
latório Local que consistiu num programa cooperativo combinado com um
nos.
sistema de renda resolúvel, apoiado financeira e tecnicamente pela Adminis-
Outros programas seguiram-se e complementaram-se, mas se o problema da
tração Central). De referir que muitos destes programas nem sempre tiveram
habitação foi modesta/aparentemente resolvido, derivado das políticas e mo-
os resultados esperados, ou sequer largamente concretizados. Sobretudo no
dos de aplicação dos mesmos problemas diferentes surgiram.
que diz respeito ao SAAL, em que a pujante vontade e dinamismo inicial, e
É ainda de salientar a relevante tentativa de articulação dos programas de pro-
devido a várias circunstâncias e condicionantes exteriores ao programa, não se
moção habitacional, nomeadamente do Programa Especial de Erradicação de
mostraram efectivas na prática quando comparadas com a dimensão e alcance
Barracas, com outros programas orientados essencialmente para a inserção so-
pretendidos.
cial, como o Programa Nacional de Luta contra a Pobreza, o Sub-Programa
No final dos anos 70 ocorreu uma mudança gradual no plano das políticas ha-
Integrar, ou mais recentemente o Programa Escolhas.
bitacionais, seguindo-se, entretanto, uma orientação no sentido da progressiva liberalização da política habitacional e urbanística. Este período ficou marcado pelo congestionamento das áreas urbanas, o que se ficou a dever aos aumentos
Os bairros degradados
assinaláveis das taxas de crescimento populacional, em parte devido à imigra-
Como referido anteriormente, após o 25 de Abril de 1974 e com o fim da guerra
ção e ao “retorno”.
colonial, Portugal sofreu um aumento populacional contribuindo para isso o
Nos anos 80 verificou-se uma transferência de funções, a administração nacio-
retorno de nacionais aliado à forte imigração de nativos das ex-colónias de ex-
nal delegou os problemas relacionados com a habitação às câmaras munici-
pressão portuguesa. As baixas condições económicas existentes nos seus paí-
pais, assumindo uma posição reguladora e orientadora do sistema e não tanto
ses de origem, levaram a que essa população imigrante viesse até Portugal, e na
produtora e distribuidora de alojamento.
falta de alojamento se apropriasse gratuitamente de terrenos junto de antigas
Com o fim do FFH surge o INH (Instituto Nacional de Habitação) e o IGA-
estradas militares, erguendo habitações bem diferentes umas das outras. Sem-
PHE (Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Es-
pre com o intuito de aproveitar todos os espaços disponíveis cresceram certos
tado). O INH pauta-se pela intervenção ao nível da concessão de crédito às
bairros clandestinos como aconteceu, entre outros, com os bairros 6 de Maio,
Cooperativas e Autarquias, já o IGAPHE tem a seu cargo a gestão e conserva-
Estrela d’África e Fontainhas. De notar que foi devido ao grande crescimento
ção do património habitacional em termos de gestão corrente e do respectivo
do bairro das Fontainhas, que os terrenos próximos, antes lixeiras, fossem co-
enquadramento normativo.
lonizados dando origem ao bairro 6 de Maio e Estrela d’África.
Com a regulamentação dos sistemas de crédito para aquisição de casa própria, amplia-se a proporção de agregados familiares que, por esta mesma via,
O peso migratório sentido nos anos 80 no concelho da Amadora verifica-se ser
resolveram as suas necessidades de habitação. De salientar contudo que esta
maioritariamente oriundo de Cabo Verde, empregando-se na construção civil
medida não produziu efeitos junto dos agregados familiares socialmente des-
e serviços (terciário inferior). O ritmo acelera-se no final dos anos 80 e durante
favorecidos. O crédito à aquisição de casa própria mostrou-se um instrumento
toda a década de 90, um crescimento rápido, sem qualquer intervenção dos
privilegiado de substituição da promoção em regime de mercado livre e único
poderes políticos, mesmo com ocupação de grandes áreas de terreno conside-
incentivo ao desenvolvimento deste último. Foi também criado o “crédito jo-
rado público.
vem”, medida com vista a que a respectiva faixa etária pudesse aceder ao mercado da habitação.
Em 1988, a população residente em bairros degradados e clandestinos no con-
Apenas em 1983 são definidos os objectivos da dita habitação social, no sentido
celho da Amadora, atingia já os 24776 (11%) e 25665 (13%) habitantes, respec-
de proporcionar às famílias de parcos rendimentos e carenciadas de alojamen-
tivamente, aparecendo o bairro das Fontainhas com 262 fogos e uma popu-
to condições mínimas de habitabilidade e o acesso à habitação.
lação de 2227, e o 6 de Maio com 340 fogos e uma população de 2890 (dados
Em 1993, é estabelecido o PER (Plano Especial de Realojamento), concebido
Câmara Municipal da Amadora). Segundo os Censos de 1993, o número de
como uma solução face às carências habitacionais, com a finalidade de proce-
construções abarracadas somava 268, albergando 1179 pessoas e contando 369
der à erradicação de barracas e ao realojamento das respectivas famílias. Nesta
agregados familiares. Mas estes dados fornecidos, aquando dos estudos para
altura, o PER aplica-se às áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, sendo
estabelecer o PER, são controversos e controvertidos pelas instituições que
uma medida circunscrita do ponto de vista territorial e que visa responder a
prestam apoio nas zonas esquecidas. De referir que o Bairro 6 de Maio não foi
particularidades do crescimento metropolitano. Mais tarde o PER vê-se am-
incluído em nenhum processo realojamento.
pliado a outras áreas que não apenas dentro dos grandes centros metropolita-
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Não se pode dizer que não existam hoje diversos e talvez bem documentados estudos sobre estes bairros degradados ou clandestinos, marcados por um tema social objecto de investigação de um vasto leque de cientistas sociais, o tema da exclusão social, em cruzamento com outros tendo este correlacionado, como o da pobreza e das zonas de imigrantes de minorias étnicas. Contudo, os dados estatísticos, normalmente apurados a partir de inquéritos aplicados em condições difíceis, nem sempre são coincidentes e revelam até flagrantes contradições. Nestes últimos anos, o peso relativo da população residente nestes bairros degradados (à excepção do 6 de Maio) terá sofrido alteração com o realojamento de parte da população em bairros camarários. Os bairros degradados existentes consolidaram progressivamente as suas habitações, substituindo por vezes a madeira por alvenaria, com o intuito de melhorar assim as condições de habitabilidade. A Amadora é identificada como a autarquia-capital dos bairros degradados de Portugal, sendo que actualmente possui à volta de trinta bairros degradados ou clandestinos.
6 de Maio (e bairros adjacentes) A freguesia da Venda Nova que conta com uma população de 11084 pessoas (Censos 2001 – Resultados Preliminares – Lisboa e Vale do Tejo) e concentra os bairros 6 de Maio, Estrela d’África e Fontainhas, bairros estes de tipologia semelhante e com estreitos laços de vizinhança. Criada em 1997, por fragmentação da Falagueira, vem reconhecida no PDM (Plano Director Municipal) da Câmara da Amadora de 1991, como uma das mais desfavorecidas do concelho, pelo seu fraco valor de rendimento, baixo nível de escolaridade e valores muito elevados de fogos sem electricidade, água, instalações sanitárias e banho, sinónimos de condições de habitabilidade precárias. Caracterizam-se por ser dos mais degradados e de condições de habitabilidade menos desenvolvidas. É também a freguesia onde se encontra o maior número de casas cedidas por empréstimo, e que apresenta a maior taxa de desempregados e menor de reformados a nível nacional. Segundo um estudo coordenado por Marques da Costa (Câmara Municipal da Amadora, 2002) é possível apontar genericamente características das populações em questão revelando um protótipo dos bairros degradados confluentes: “A população ali residente corresponde a estratos de população de nacionalidade portuguesa, o que confirma a condição de um bairro degradado e que dá abrigo a famílias pobres, mas é fundamentalmente constituída por imigrantes provenientes de Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé, Fig.8 Casas sobrepostas, Bairro 6 de Maio
também Mauritânia, Zaire, Senegal, alguns recém-chegados dos países de
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bairro de lata: inspiração em tempos de crise?
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Leste e ainda alguns membros de etnia cigana; Entre as comunidades estrangeiras os naturais de Cabo Verde são o maior grupo étnico; É uma população cuja distribuição em faixas etárias é muito heterogénea; Com predominância do sexo masculino, o grau de escolaridade é extremamente baixo, com 48,1% de analfabetos; Em relação ao estado civil, o número de solteiros é o maior (62,2%), mas tendo em conta o facto de que a grande maioria da população é de origem africana, há um número significativo de casados ou vivendo apenas maritalmente; note-se que as uniões maritais são muito precoces a partir dos 15 anos e há imensos casos de maternidade e paternidade desde os 12-14 anos, mas o casamento ou matrimónio são muito adiados; Existe uma percentagem enorme de desempregados ou à procura de emprego, sendo que apenas uma minoria da população tem um emprego permanente, normalmente na área da construção civil ou colectores de papelão (desperdícios), sem qualificação específica e de empregadas domésticas entre as mulheres. A situação de ilegalidade face à autorização de residência joga a desfavor de uma maior e mais fácil procura de emprego. As condições de habitabilidade do 6 de Maio não são obviamente fáceis. As ruelas são estreitas e com esgotos a céu aberto, e as lúgubres casas abarracadas são na sua maioria construídas de materiais insólitos, recolhidos nos desperdícios da grande cidade vizinha. É também comum ver tarefas domésticas, como lavar a loiça ou roupa, fora de portas. Para além da curta dimensão destas casas de alvenaria que servem de tecto a grupos domésticos com média de 7 pessoas, as condições sanitárias quando existentes são deficientes e impróprias. As casas sobrepostas impedem a luz do sol de atingir as ruas adjacentes, por sua vez com iluminação eléctrica deficiente. Os principais problemas sociais destes bairros são: “o desemprego, a (falta de) qualidade da rede escolar, a enorme densidade populacional, a qualidade urbanística, a falta de acessibilidades, a toxicodependência e tráfico de droga, a criminalidade e o policiamento” (Costa, 2002 : 52), sendo que é possível sistematizar em três grandes áreas os mais preocupantes problemas: saúde e higiene, habitação e meio envolvente, educação e emprego. Presentemente não se vislumbram no horizonte projectos de realojamento ou de reintegração para os habitantes do 6 de Maio, nem a nível nacional nem a nível local pela Câmara Municipal da Amadora. Entre outras pequenas instituições, são as Irmãs Dominicanas, no bairro desde 1975, que vêm prestando o apoio possível de forma a evitar uma ainda maior exclusão social. Com a criação do Centro Social 6 de Maio, formado por esse mesmo grupo de cinco mulheres, muitas foram as iniciativas tomadas de forma a fomentar o desenvolvimento e integração destas populações na sociedade. Mais recentemente, e com um certo sucesso a nível da integração e desenvolvi-
Fig.9 Viela do Bairro 6 de Maio
mento conta-se o Projecto Anos Ki Ta Manda.
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Capítulo II A prática do bairro de lata como détournement
O bairro de lata contém em si várias contradições que podem ser em si mesmas problemáticas/inspirações transportadas para fora do âmbito informal. Abrem-se então três portas (em que uma delas encerra duas vertentes) consideradas pertinentes, de escala variável, e que permitem entrar no tema - a teorização da cidade e da respectiva sociedade em crise e de como essa pode ser desviada. O bairro de lata é, de acordo com o contexto e sua possibilidade, medida de comparação e/ou referência. “A Cidade Hoje”, primeira abordagem, pois enquadrada numa perspectiva mais ampla/global que as seguintes, e porque abrangente “à cidade”. Visa levantar questões de fundo relacionadas com essa entidade em permanente mutação, indo ao encontro de certas situações consideradas delicadas. Questionando vários tópicos: seja o espaço da segregação e da desigualdade urbana, seja o do papel do urbanismo enquanto elemento organizador ou não, da utopia e da falta da mesma, de que futuro se pretende ou não, entre outros na sua extensão. Segue-se então “Que habitar/habitat”, um tema mais restrito (quando comparado ao anterior), que procura alertar para os modos de produção de habitação, da falta de liberdade e alienação bem como de outros problemas derivados do mesmo, e de como essa situação se pode alterar ou não, da panóplia crescente de modos de vida e respectivas atitudes/propósitos, da anomia social. Para tal são apresentados exemplos, entre o informal e o formal, que espreitam caminhos hipotéticos na diversidade. Um último tema, antes da confrontação com o caso de estudo, “Estética versus Sustentabilidade”, que é exposto de modo diagonal, entre um – estética, e outro – sustentabilidade. A relação entre ambos é construída com base em conotações estéticas e respectivo enquadramento social, na relação da imagética e materialidade, da reciclagem enquanto expressão artística e de intervenção, e de como todos estes elementos se podem combinar e contribuir para algo melhor e mais coerente. Fruto da observação de campo, (em parte contida no documentário em anexo), e como prolongamento da introdução inicial do caso de estudo - incidente no Bairro 6 de Maio (Amadora), procura-se estabelecer uma ponte entre os aspectos antes apresentados e uma realidade informal (entre tantas).
A Cidade HOJE
“O grande paradoxo do nosso tempo é a crise da cultura da cidade num mundo urbanizado.” (Castells, 1998 : 273)
A história da humanidade é a história da urbanização. História que percorre todas as fases do desenvolvimento do homem, que se estende desde as primeiras comunidades às megalópolis actuais, numa tendência imprevisível que se afirma de permanente crescimento. A tendência da urbanização é facilmente entendível: as áreas urbanas concentram o poder, a riqueza, a comunicação, a ciência, a tecnologia e a cultura em todas as sociedades. Fazem-no também porque a proximidade territorial permite economias de escala e sinergia. Podese afirmar que “(...) a cidade não cria nada, centraliza (...)” (Lefebvre, 1970 : 117), e é essa disposição centralizadora, natural do fenómeno urbano, que cataliza a concentração massiva de pessoas, bens, fluxos... É por tais motivos que se assistiu (e se assiste) à fixação de largas populações nos centros urbanos, onde as oportunidades se condensam em maior número. Contudo, o fenómeno urbano, traduzido na criação de estruturas de suporte às sociedades e respectivas relações, a denominada cidade não é uma entidade concreta e/ou uniforme. Para a sua compreensão mostra-se relevante desmistificar esta abstracção totalizante chamada cidade: aquilo a que se refere como a “Cidade” nunca existiu na história, existiram sim, “cidades”, comprometidas com as suas sociedades e respectivas práticas. Ainda assim, tendo em conta as devidas especificidades, no contexto ocidental é possível dividir essa mesma
Fig.10 Favela do Murumbi São Paulo, Brasil
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abstração – a cidade, em dois arquétipos ideais: o da cidade medieval e o da
sociais, de alimento e do meio ambiente (50,000 hectares de terra cultivável são
cidade industrial.
destruídos diariamente para dar lugar à urbanização – dados UN-HABITAT,
No primeiro, medieval, a cidade tem um conjunto de ruas pequenas e estrei-
2005), etc, são colocados a quem planeia e regula. “As metrópoles são muito di-
tas, agrupadas à volta de uma praça/mercado de localização central, com uma
ferentes e a evolução das suas formas é objecto das mesmas interrogações em
catedral e a câmara municipal – comércio, religião e política, circundada por
praticamente todos os países (...)” (Ascher, 1995 : 23)
uma muralha que dividia a cidade do campo. O segundo, a cidade industrial
A questão do que é a cidade contemporânea assume-se pertinente, não en-
do fim do séc.XIX, semi-industrializada, cidade de boulevards e parques, em
quanto entidade em contínua transformação, mas, pela direcção que a mesma
que a antiga impenetrabilidade e rigidez da massa urbana foi partida e aberta,
parece tomar.
e as fronteiras entre exterior e interior não foram apagadas mas sim desfocadas. A tipologia de rua da cidade medieval segue o padrão do labirinto e a do séc.
*
XIX o da malha/retícula. Enquanto que esta constatação, em relação à forma das cidades, só é possí-
O urbanismo, que a par de outras disciplinas, procura “organizar” as cidades,
vel e verdadeira porque exemplo de um passado conhecido, seja o mais dis-
parece não responder adequadamente às demandas actuais.
tante ou o mais recente, já a cidade do presente, construída a cada momento, por vezes sobre a medieval e/ou industrial, apresenta-se como uma incógnita.
“Como explicar o paradoxo de que o urbanismo, enquanto profissão, desapare-
Sabe-se que existe, mas não se consegue compreender na sua totalidade e na
ceu no momento em que a urbanização em todo o lado – depois de décadas de
multiplicidade de acontecimentos que nela ocorrem, sobretudo no que toca
constante aceleração – está no seu caminho para estabelecer um triunfo definiti-
às suas novas lógicas de produção espacial: não existe um centro mas vários
vo, global da escala urbana?” (Koolhaas, 1998 : 961)
e em constante mutação, a diferença entre centro e periferia é cada vez menos clara, as fronteiras parecem ter sido abolidas e simultaneamente mostram-se
Hoje em dia, o urbanismo - strictu senso, parece não ser mais possível simples-
bem patentes.
mente porque “(...) a noção de cidade na qual era baseado deixou de existir há
Sabe-se também que a cidade, qualquer cidade, é um sistema instável, um siste-
algum tempo atrás.” (Ruby, 2002 : 17)
ma vivo que está num permanente estado de decomposição, que continuamen-
Além do mais, mostra-se urgente aprender com os erros do passado. O espaço
te se reorganiza e se re-arranja, que se expande e se contrai. Os agentes deste
em que arquitectos e urbanistas se movem é virtual, um espaço feito de papel
processo são a população urbana, incluindo arquitectos, urbanistas, políticos
e tinta, de cima para baixo, demasiado elevados da superfície a intervir, e só
e os demais com poder de decisão. Outros agentes incluem desenvolvimentos
depois desta quase completa redução do quotidiano voltam à escala da expe-
tecnológicos, transportes, telecomunicações, mass media, migrações, etc.
riência vivida.
À medida que este processo global de urbanização tomou lugar, as grandes
“(...) O urbanismo parte do postulado que é necessário e possível agir conjun-
cidades explodiram, dando azo a crescimentos de valor duvidoso: subúrbios,
tamente sobre as cidades e sobre a sociedade.” (Ascher, 1995 : 204) Os moldes
aglomerados residenciais e complexos industriais, cidades satélite e cidades
em que essa “acção” se pode manifestar e respectivos contornos apresentam-se
dentro da cidade, áreas metropolitanas e regiões urbanas, megalópoles e cida-
como ponto de discussão. O método de trabalho até aqui seguido deve ser
des “globais”. Tendo em conta a panóplia de elementos que transformam e que
posto em causa, os seus objectivos devem ser questionados, caso contrário, a
são transformados, que sempre existiram só que de amplitude menor - quando
existência de tais funções corre o risco de se tornar quase obsoleta.
comparados com o presente, entende-se que o rumo desta nova “cidade” – em
A imposição de modelos de pensar e fazer (ao nível da cidade, da arquitectura,
abstracto ou no concreto, tem contornos pouco claros.
da legislação, etc), assim como a falta de interacção entre os vários intervenien-
“Hoje, o fenómeno urbano surpreende-nos pela sua escala; a sua complexidade
tes e a falta de margem de manobra para os mesmos, característica de quem
ultrapassa as ferramentas do nosso conhecimento e os instrumentos da sua ac-
planeia e regula, encontra-se desligada da realidade, e portanto crê-se não ser
tividade prática.” (Lefebvre, 1970 : 45) Actualmente, há cidades que crescem a
a postura mais correcta.
um ritmo alucinante, sem ordem (aparente) – acrescentando que 27 das 33 megalopolis (cidades com mais de 8 milhões de habitantes) previstas para 2015, es-
“Uma profissão que persiste com as suas fantasias, a sua ideologia, as suas pre-
tão nos países em vias de desenvolvimento (dados UN-HABITAT, 2007). A
tensões, as suas ilusões de envolvimento e controlo, e por isso é incapaz de con-
população cresce a par da urbanização, e os problemas derivados deste sobre-
ceber novas modéstias, intervenções parciais, direcções estratégicas.”(Koolhaas,
crescimento - como a falta de espaço, de outros derivados das desigualdades
1998 : 960)
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Como referido antes, não é possível falar da “Cidade”, mas de “cidades”, e não
Actualmente, os problemas urbanos mais delicados fundamentam-se nas de-
prestar atenção às respectivas especificidades é um erro comum, que na senda
sigualdades sociais, na ausência de equidade (traduzido como a igualdade de
da resolução de certos conflitos e problemáticas são criados adicionais. Como
oportunidades relacionada com os territórios urbanos) dentro da cidade, na in-
salienta Bourdin, a implementação de formas generalistas de organizar o meio
compreensão da diversidade e respectivas práticas, na falta de um planeamen-
urbano, típica das grandes intervenções urbanísticas, criaram paradoxalmente,
to assertivo e responsável, actual e adequado, na falta de integração dos vários
problemas de fundo. “(...) Fazer da cidade um objecto abstracto e imóvel que se
habitantes quando “(...) a integração social é a razão de ser das sociedades (...)”
resume a números e modelos não é necessariamente uma boa solução.” (2005
(Bourdin, 2005 : 25),
: 13)
Mostra-se importante nesta análise, para um melhor entendimento da questão,
Observe-se um dos últimos modelos de cidade - utópico, o do Movimento
saber onde e quando ocorreram certas acções que agora se crêem responsáveis
Moderno, tentando criar um modus operandis de pensar e fazer cidade após
por aspectos vistos como críticos, e que se relacionam indelevelmente com a
a revolução industrial. Com a sua hipotética objectividade e humanidade, “a
forma da cidade contemporânea.
cidade moderna, ou a cidade do movimento moderno prometeu o fim da decepção, da dissimulação, da vaidade, do subterfúgio e imposição.” (Rowe/Ko-
Observe-se a Paris do século XIX, que pela mão do Barão Haussmann, conhe-
etter, 1978 : 4)
ceu um dos mais ambiciosos e controversos projectos urbanísticos. O plano
Por outro lado conclui-se que essa cidade prometida, uma quimera, tornou-se
foi lançado considerando dois objectivos claros: modernizar e embelezar es-
numa cidade que encolheu para muito pouco do que havia sido prometido: as
trategicamente a cidade; e cessar com as barricadas, insurreições e combates
banalidades da habitação pública, a escala desmesurada, os enormes espaços
populares muito recorrentes na época, expulsando assim os seus moradores
vazios, a exacerbada separação de funções, a prioridade à máquina em detri-
da classe trabalhadora para a periferia. O projecto começou pela demolição de
mento do ser humano... “A cidade moderna como construção psicológica e
ruas e construções antigas da cidade para uma nova organização geométrica
como modelo físico mostrou-se tragicamente ridícula”. (Rowe/Koetter, 1978 :
de casas e comércios idênticos, bem como a abertura de grandes boulevards e parques. Numa coerência entre “(...) as necessidades económicas, as concep-
4) O Movimento Moderno não tornou o mundo melhor e a cidade celebrada por Le Corbusier, pelos CIAM, advertida pela Carta de Atenas (1933), com11
preendeu-se extremamente desadequada. Como um diagrama apenas, uma arquitectura idealista desligada da sua condição primeira - o homem. Compreende-se que a crise que se sente nas cidades presentemente, com a sua estratificação em funções, a sua separação entre elementos urbanos, a escala brutal e segregária, está também intimamente ligada a certos princípios postulados por um certo Modernismo ainda latente. Porém, nem todas as culpas podem continuadamente recair sobre o Movimento Moderno. Urge portanto pôr em hipótese as teorias e práticas, tendo em vista a sua reformulação ou substituição por novo paradigma e/ou metodologia. (O novo, que
ções funcionais, as posições estéticas e os objectivos sócio-políticos.” (Ascher,
11. A Carta de Atenas é o manifesto urbanístico resultante do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), realizado em Atenas em 1933. A Carta, que trata da chamada Cidade Funcional, prega a separação das áreas residenciais, de lazer e de trabalho, propondo, no lugar do caráter e da densidade das cidades tradicionais, uma cidade-jardim, na qual os edifícios se localizam em áreas verdes pouco densas. Tais preceitos influenciaram o desenvolvimento das cidades europeias após a Segunda Guerra Mundial.
por sua vez entrará em decadência e que provavelmente mostrar-se-á tão ina-
1995 : 84) Com esta mesma abordagem nasceram as bases da contundente ausência de equidade urbana. Haussmann “(...) estripou Paris de acordo com o plano, deportou o proletariado para a periferia da cidade, criando simultanea12. O termo habitat, usado por Lefebvre no texto original em francês, crê-se poder ter duas possíveis leituras: o do habitat enquanto referência ao tipo de habitação dita social; e o do habitat enquanto ecossistema biológico.
a decadência do centro.” (Lefebvre, 1970 : 109) No momento em que se pressente o barril de pólvora existente no banlieue parisiense, é essencial entender o motivo que conduziu a tal. O plano afastou da cidade as populações das classes mais baixas, e que, ao longo do tempo, com a contínua chegada de imigrantes das mais variadas latitudes e também eles empurrados para as periferias, provocou, como consequência de tal polí-
13. cf. Lefebvre, Henri, Le Droit à la Ville, Anthropos, Paris, 1968
propriado como o anterior, e assim sucessivamente.) A presente crise, que se
mente o subúrbio e o habitat12, a gentrificação, o esvaziamento de população e
tica, um crescimento brutal da conflitualidade. O “direito à cidade,” 13 a essas populações retirado, é a causa de muitos dos atritos entre comunidades, entre
vive de maneira diferente em qualquer cidade do nosso pequeno planeta, surge
residentes de várias nacionalidades e entre quem vive na urbe e no seu subúr-
como um momento de reflexão e de oportuna mudança, “(...) sem o tratamento
bio. O desenho centrifugador de Paris, sublinha-se urbanisticamente, e a tipo-
das crises que a todos consomem (equivalente à ameaça da revolução), a sua
logia habitacional presente no seu banlieue, são sem dúvida parte da causa dos
potência mítica está longe de estar completa.” (Rowe/Koetter, 1978 : 31)
distúrbios recorrentes. O facto de se colocar o comum utilizador em segundo plano, não atendendo às suas eventuais demandas e necessidades, cria um vazio que tem como frequente consequência a violência.
*
“A burguesia mercante, os intelectuais, e os políticos modelaram a cidade. Os industriais demoliram-na. A classe trabalhadora nunca teve outro espaço senão o da expropriação, da deportação: segregação.” (Lefebvre, 1970 : 129)
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Fig. 11-14 Fotogramas do filme La Haine No útimo fotograma é possível ler “L’avenir c’est nous” (O futuro somos nós) e “La ville c’est nous touts” (A cidade somos todos nós).
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Os pontos que se introduzem em relação à capital francesa, porque das cida-
casa, consequentemente de zona, rompendo qualquer simbiose pré-existente
des europeias em maior clima de tensão com os seus diversos e diversificados
entre indivíduos, comunidade e espaço, que antes concebiam um ecossistema.
habitantes, são possíveis de comprovar noutras grandes cidades (seja Nova
De uma posição central na cidade, muito provavelmente próximo do local de
Iorque, Londres, Berlim ou Lisboa, seja Shangai, Rio de Janeiro, Nairobi ou
trabalho e de outras oportunidades, servido com as devidas infra-estruturas,
Mumbai). À semelhança do que Haussmann realizou na capital francesa, tam-
são então transportados para a periferia onde encontram a única, e eventual,
bém outras cidades e entidades planeadoras desenvolveram as suas grandes
habitação a um preço acessível (em último caso, refugiam-se na informalidade).
intervenções, alterando em parte os modos e/ou os motivos das mesmas.
Geralmente, a nova morada dos que se viram excluídos resume-se aos massivos
A referida segregação espacial vê-se fomentada pelos estados, entre inúmeras
16. Siza sobre o termo habitação social: “A habitação é uma presença constante e é sempre social.” (Siza, 2000 :95)
outras formas, com acções de nobilitação, invocando o progresso e reescrevendo novas fronteiras. Por exemplo, quando cidades acolhem jogos olímpicos,
e segregários complexos residenciais - a chamada habitação social16, com todos os problemas que esses acarretam. Antes de continuar é necessário explicitar que dentro do próprio bairro de lata
conferências ou eventos mundiais, é invocada a oportunidade de transforma-
se verifica esse mesmo processo de gentrificação. Tomando o nome de “asfal-
ção. O novo masterplan sobrepõe-se frequentemente às redes sociais e respecti-
tização”, explicitando metaforicamente mais do que a passagem da estrada de
vos fundamentos, à estrutura urbana e respectivas relações globais. O interesse
terra àquela de alcatrão, essa é o processo de gentrificação dentro das favelas
nacional ou local, comummente usado como motivo pelos estados e/ou inves-
do Rio de Janeiro. Na tentativa de melhorar as condições de vida dos que habi-
tidores privados para legitimar a re-estruturação urbana, põe de lado e quebra
tam na favela, programas desenvolvidos com vista à criação de infra-estruturas,
dramaticamente princípios que permitiam a harmonia entre indivíduos, entre
integração na malha urbana, legalização dos terrenos ocupados, etc, aporta-
comunidades, entre funções, antes provavelmente orgânicas e sedimentadas.
ram consigo uma “nova” forma de centrifugação. Assim, com a valorização de
Uma vez estilhaçadas, as áreas alteradas a “régua e esquadro”, dificilmente vol-
determinada favela ou local da mesma, e à semelhança do mercado imobiliário
tarão a constituir ou a servir “matérias-primas”, prévias a determinada interven-
formal, também o custo de vida nas mesmas se viu inflacionado. Os mais po-
ção, que eram base essencial à convivência com a óbvia diversidade de actores
bres dos pobres, ainda com menor capacidade económica, vêem-se assim no-
e agentes urbanos do lugar.
vamente postos à margem, obrigados a mudar para uma favela menos central e/ou menos servida, periferizando-se novamente portanto. O processo que os
Sejam masterplans ou “meras” acções de nobilitação de zonas degradadas e/
levou à informalidade repete-se dentro dessa mesma.
ou centros históricos, são ambos passíveis de ser encarados como um meio de centrifugação das populações residentes. Talvez de forma não tão drástica como no plano de Paris, todavia subreptícia. As zonas antigas, normalmente degradadas e esquecidas pelo crescimento das cidades, albergavam/albergam as camadas sociais mais baixas. Através de uma estratégia do mercado imobiliário, normalmente aliado a uma política pública de suposta “revitalização” dos centros urbanos, procura-se recuperar o caráter outrora glamouroso da região em questão. Isto, de forma a deslocar a população original, atrair residentes de condições económicas superiores, e recuperar a actividade económica no local. Os centros históricos, alvo comum da reabilitação, mutam então do tradicional ao elitista, atraindo intelectuais, artistas, yuppies, bobos, ou outros grupos da 14
sociedade de disponibilidade financeira. “Os actores da gentrificação pertencem todos, de uma maneira ou de outra, à classe criativa: são capazes e eficazes em matéria de produção simbólica, portanto portadores de sentido ou de novas imagens.” (Bourdin, 2005 : 177) Este fenómeno de nobilitação, no original gentrification torna-se normalmen15
te num problema social. Esse surge no momento em que, devido ao seu novo estatuto de zona “recuperada”, muda o simbolismo, mudam as práticas, muda a identidade, os preços sobem e as populações deixam de poder suportar os custos dos novos alugueres ou taxas municipais. Vêm-se obrigadas a mudar de
14. Yuppie/Bobo - derivação da sigla YUP, expressão inglesa que significa Young Urban Professional. Ou Bobos, do francês Bourgeous Bohéme. São grupos sociais formados por jovens de classe média-alta e movidos pelo prazer, divertimento, moda... 15. Gentrification - termo introduzido pela socióloga inglesa R. Glass numa pesquisa sobre as transformações de Londres e da rápida mudança de estrutura social de certos bairros centrais, traduzido na expulsão de moradores tradicionais - pertencentes a classes sociais menos favorecidas, de espaços urbanos que subitamente sofrem uma intervenção urbana (com ou sem auxílio governamental) e que provoca sua valorização imobiliária. (Tem o paralelo em português com o termo nobilitação ou emburguesamento.)
*
17. Urbicídio - termo cunhado por Berman, Marshall para descrever a destruição do bairro nova-iorquino Bronx, de onde era nativo.
Nesta fase introduz-se o termo urbícidio17 para caracterizar qualquer interven-
in Marshall, Berman, Falling Towers: City Life After Urbicide, in Dennis Crow, Geography and Identity, Washington, 1987, pp. 172-192
do-se algo como a violência contra as cidades, o termo urbicídio foi aplicado
ticamente, mudando de modo drástico a face e estrutura das cidades. Defininem vários lugares e de diferentes modos: Bósnia, Zimbabwe, Palestina, ou a cidade de Nova Orleães, são exemplos desse fenómeno. O termo foi largamente usado para descrever o tipo de conflito verificado na Bósnia aquando da guerra civil de 1992-95, e é introduzido aqui pelos seus contornos. A guerra levada a cabo, ao contrário da tradicional - fora dos centros urbanos e com linhas definidas, aconteceu dentro das cidades, sobretudo em Sarajevo e Mostar, infligindo largos danos nas suas infra-estruturas. O mosaico de etnias e credos presente nos Balcãs, (bósnios, serbos, croatas, rom, turcos, eslavos, etc, divididos religiosamente entre católicos, ortodoxos, mu-
in Glass, R., London Aspects of Change, Masgibbon & Kee, Londres, 1964, pp. 13-42.
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ção urbana (contemplando masterplans, nobilitação,...) que se imponha autis-
çulmanos, etc) que até ao momento tinham conseguido viver em relativa harmonia, fragmentou-se ainda mais durante o período de conflito. Os elementos
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urbanos, que permitiam o encontro e convivência entre os vários grupos, foram estrategicamente bombardeados e/ou minados (bibliotecas, museus, pontes, mercados, monumentos, elementos simbólicos...), situação que se mostrou um obstáculo adicional no momento de reestabelecer relações entre comunidades. Entende-se que foi sobretudo através da destruição das suas bases e infra-estruturas, as quais permitiam a multiplicidade de práticas e reunião das várias facções, que muitas das relações entre as mesmas se perderam. O desaparecimento dos suportes existentes às inter-relações provocaram senão um prolongamento da hostilidade. O exemplo do sucedido na Bósnia-Herzegovina é mencionado para compreender a influência, e a importância, que certos elementos e estruturas urbanos têm nas relações entre os seus múltiplos habitantes, fazendo a ponte entre esse e o tipo de transformações por quem de poder. Estabelece-se também o paralelo da extensa variedade de actores com a da cidade contemporânea porque “cosmopolita”. Os grandes planos de renovação, ao mover as peças em jogo demasiado longe da superfície, podem revelar-se um elemento destabilizador e comprometedor da frágil harmonia da sociedade (quando existente) que habita o contexto urbano. Resumindo, e segundo Ascher, assiste-se a: “(...) duas tendências segregativas distintas: de um lado um movimento de nobilitação (...)” que se impõe “(...) pela exclusão das outras categorias sociais, (...) do outro, a segregação que se desenvolve na outra extremidade social pela concentração das populações de estatuto sócio-profissional mais precário em certos conjuntos residenciais de habitação social.” (1995 : 25)
A guerra dos Balcãs teve como palco as cidades, e ainda que os motivos fossem específicos (ruptura da ex-Jugoslávia, multplicidade de etnias e credos), também se verificam outras formas de guerra dentro da cidade, não necessariamente com artilharia pesada, todavia influenciadas pelas rupturas sócio-espaciais. Mais uma vez a Paris da separação, quando os motins rebentam no banlieue e a polícia não consegue entrar para apaziguar os ânimos; outros exemplos de megalópolis na América do Sul com as suas guerilhas urbanas como modo de reivindicar a falta de condições nas favelas e barriadas; nos Estados Unidos da América, em que a segregação racial, nascida da concentração de afro-americanos e hispânicos em zonas específicas, que gradualmente se tornaram ghettos e onde a autoridade não tem mão, etc... O mau planeamento, ou a ausência da correcta aplicação do mesmo, juntamente com a falta de políticas sociais orientadas para a integração das populações excluídas, conduz inevitavelmente a uma situação caótica e preocupante na cidade hoje. “A não satisfação perante a cidade contemporânea não levou ao desenvolvi-
Fig.15 Antigo Museu Étnico destruído durante a Guerra Civil (1992-95) Mostar, Bósnia-Herzegovina
mento de alternativas credíveis; pelo contrário, inspirou apenas modos mais
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refinados de articular a falta de satisfação.”(Koolhaas, 1998 : 960) Para contornar os conflitos causados por motivos de ordem social tem-se 18. cf. Agbola, Tunde, The architecture of fear : urban design and construction response to urban violence in Lagos, Nigeria, ed. Ibadan, Lagos, 1997, pp. 68-69.
desenvolvido a chamada “arquitectura do medo”18 ou o “urbanismo da segurança” (Bourdin, 2005 : 134-136). Quem tem o poder político e/ou económico, encontrou uma forma não de resolver os problemas e/ou unificar o espaço urbano, mas de se alhear aos mesmos. Desenvolvem-se então enclaves, de escala variável, e que vão desde os condomíno fechados, às gatted communities ou
alphavilles: simples complexos residenciais ou verdadeiras cidades fechadas e autónomas, com 24h de vigilância, muradas e com arame farpado electrificado, um mundo aparte dentro da cidade fervilhante. Em São Paulo, onde se encontram algumas alphavilles (autênticas cidades exclusivas), e que por sinal é das cidades onde se regista o maior fosso entre pobres e ricos, os próprios meios de transporte comprovam já esse distanciamento - não é por acaso que é a cidade do mundo com maior número de helicópteros. Tal isolamento da realidade exterior, existente também nos assentamentos informais mas por razões de outra ordem, assemelha-se a um retorno à cidade medieval, murada e ultra estratificada, numa postura que resulta numa quase imitação da vida.Está-se perante: “(...) uma reorganização fundamental do espaço metropolitano, envolvendo uma drástica diminuição de interesecções entre pobres e ricos, o que transcende a tradicional segregação social e fragmentação urbana.” (Davis, 2006 : 117)
*
Como já enunciado, o planeamento urbano tal e qual como se conhece é uma organização espacial implementada, e por isso a sua aplicação considera-se necessariamente questionável. Lefebvre, no seu tom radical, chega a afirmar que “(...) sem urbanistas seria o caos. É o caos, mas um que resulta de uma ordem imposta.” (1970 : 151) 19. New Urbanism - movimento urbanista surgido na época de 80 nos EUA defendendo bairros “caminháveis”, com um tipo de trabalho, habitação e habitantes específicos. Entre os principais objectivos do New Urbanism estão o combate ao uso do carro e a dispersão urbana.
Teorias recentes, como o intitulado Novo Urbanismo19 nos Estados Unidos, que de inovador crê-se ter pouco, postulam princípios que ainda se encontram nas cidades de pequena/média dimensão ou determinados bairros das de maior dimensão. As distâncias entre trabalho, casa, lazer, são curtas, o que engloba uma preocupação entre meios de transporte e ambiente, e a organização é a de um bairro multifuncional tradicional, causa e consequência da escala humana presente no conjunto. O calcanhar da questão da proximidade relacionada com o Novo Urbanismo prende-se com o facto de a mesma ser imposta. “Se tem que existir um ‘novo urbanismo’ esse não será baseado nas fantasias
Fig.16-18 fotogramas do filme La Zona Câmaras de vigilância de uma gatted community, Cidade do México. Contraste do campo de golf com vista para o bairro de lata.
gémeas da ordem e da omnipotência (...)” (Koolhaas, 1998 : 961) Implica também uma necessária homegeneidade, retirando portanto espaço à expressão
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individual. “Todos os partidários desse tipo de urbanismo querem estimular a
“A valorização estética do caos está a par de uma valorização funcional, a de-
dimensão comunitária da vida urbana, mas essa toma significados diferentes.”
sordem, ou a ordem espontânea, é apresentada como mais performativa que a
(Bourdin, 2005 : 112)
ordem planificadora e urbanística. Tais abordagens usam abundantemente as flu-
Simultaneamente que se orientam para populações de altos ingressos econó-
tuações, a auto-organização, o caos, os fractais, etc (..)” (Ascher, 1995 : 207)
micos, criam um certo isolamento, quase ao modo das alphavilles. No entanto, a questão revela-se delicada quando se analisam os pressupostos “O urbanismo de proximidade é um elemento central na produção da cidade
que levaram a tal desenvolvimento: são erguidos por quem não tem possibi-
de hoje, mas senão se tiver em conta que há um mosaico de micro-espaços de
lidades financeiras para viver no mundo formal, muitas vezes o controlo cai
habitat, de troca, de circulação, de lazer, de vida colectiva, etc, e portanto de
nas mãos de traficantes, seitas religiosas, ou outros de conduta duvidosa, e a
comunidades, será um erro.” (Bourdin, 2005 : 118)
pobreza e a insegurança bem como a falta de infra-estruturas básicas são factos do quotidiano destes aglomerados. Mais uma vez insiste-se na ideia de que a
Esta corrente encerra certos aspectos positivos mas também muitos que o co-
referência a estes não visa a sua legitimação, os mesmos são usados a título de
locam em dúvida.
exemplo no que toca ao seu método de desenvolvimento.
De qualquer forma, o que o Novo Urbanismo propõe - ou tenta impôr, não
A organização labiríntica reflecte a falta de um planeamento prévio, são aglo-
está longe do atingido pelo desenvolvimento orgânico das cidades e bairros
merados feitos no momento, e que de algum modo se podem relacionar for-
do passado. Nesses, a proximidade é sobejamente conhecida, e tal acontece de
malmente com a cidade medieval (centros históricos) ou com as cidades de
forma natural: os habitantes constroem, vêm possibilidades de investimento,
origem árabe (medinas). Na verdade, poucas diferenças existem entre a cidade
possíveis negócios, e a dimensão e disposição espacial dos mesmos, aparen-
medieval europeia e estes assentamentos.
temente caótica, permite estabelecer relações de proximidade entre os vários
“A cidade informal do séc. XXI é positivamente medieval, o que nos ensina que
actores. De salientar que esta proximidade cria outro tipo de controlo, da co-
sempre estiveram por cá, e que ocupar e construir foi o modo como os pobres
munidade, e portanto pode representar também o seu oposto. A organização
construíram as suas casas, uma forma inequívoca de desenvolvimento urbano.”
espacial é fruto não de um, mas dos vários intervenientes em grupo. A necessi-
(Neuwirth, 2006: 178)
dade de conhecer e estruturar o meio é tão importante e tão enraizada no passado, prévia ao urbanismo, que tem uma grande relevância prática e emocional
Os bairros de lata não são um fenómeno isolado do Terceiro Mundo, pouco
no indivíduo, e tal acontece muitas vezes de forma espontânea.
tempo atrás existiam nas cidades do Primeiro Mundo, e continuam a existir de
“O urbanismo acompanha o declínio da cidade espontânea e do centro histó-
forma residual. (A cidade do ferro, do vidro, do cimento, que hoje é tida como
rico. Implica a intervenção do poder, mais que do conhecimento.” (Lefebvre,
um dado adquirido foi outrora composta de bairros de lata, onde os seus habi-
1970 : 160) 21. Bergson, Henri, L’Évolution créatrice, 1907
A questão do caos urbano e da cidade espontânea foi largamente debatida nos
22. Fourier, Charles, Théorie des Quatre Mouvements et des Destinées Générales, Jean-Jaques Pauvert Éditeur, Paris, 1967.
anos 60-70, criticando a arquitectura e o urbanismo pelo seu excessivo funcionalismo e estética simplificadora. Robert Venturi, no seu Aprender de Las Ve-
gas (1972), afirmava a riqueza formal e simbólica – de um aparente caos, dessa cidade americana quando comparada à arquitectura moderna, e tal, vinca-se, de forma espontânea. A desordem e a bricolage encontrada em Las Vegas, é 20
também típica da produção espacial e arquitectónica da informalidade. Contemporaneamente, os bairros de lata assumem-se como a expressão mais próxima da cidade espontânea e da sua diversidade inerente. Os bairros de lata, podendo atingir proporções de verdadeiras “cidades de lata”, são fruto de um processo orgânico, onde há uma certa margem para que os seus intervenientes se manifestem espacial e esteticamente.
20. Bricolage - termo introduzido por Claude Lévi-Strauss. A bricolage opõe-se ao pensamento e práticas científicos do “engenheiro”. Em termos práticos, é, essencialmente, um trabalho realizado a partir de materiais diversificados, sem a préconcepção de um plano e também seguindo procedimentos que em nada se parecem com os processos técnicos. Pode ser usado para descrever o método de desenvolvimento dos aglomerados informais.
tantes viviam em barracas com vielas estreitas e nas margens de rios fétidos.) Ainda que não se compreenda ou se deduza uma ordem organizativa, a racionalidade existe e permite que todos os elementos possam co-habitar - segundo Henri Bergson, a desordem é apenas uma ordem que não se consegue compreender.21 Ou como Fourier lhe chamava, a “ordem subversiva”.22 “O que pode parecer aos olhos exteriores como um lugar de desordem espacial e social é, na realidade, um lugar altamente ordenado segundo regras que, certamente lhes são próprias, mas que lhes permitem viver e manter um equilíbrio apesar de sumárias condições de existência material.” (Rémy/Voyé, 1992 : 106)
Ao longo do tempo, estes bairros ilegais conseguem desenvolver-se ao ponto de possuírem fábricas e respectivas indústrias (comum no ambiente informal da Índia), escolas, serviços, e até balcão de McDonald’s (como é o caso da favela
cf. Lévi-Strauss, La Pensée Sauvage, ed. Plon, Paris, 1962
da Rocinha no Rio de Janeiro). As comunidades, uma vez fora do controlo estatal, têm parte do poder de decisão nas suas mãos (enquanto não interferirem
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Fig.19 Centro histĂłrico do Porto
Fig.21 Assentamento informal em Quito (Equador)
Fig.20 Vista sobre a medina de Fez (Marrocos)
Fig.22 Bairro de lata nos arredores do Cairo (Egipto)
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com os códigos do traficante, do gang, da seita...e com respectiva aprovação
24. As experiêncas de Brown provam essa adaptabilidade quando a um grupo de pessoas de olhos vendados lhes foi pedido para andarem através de um labirinto. Esse pareceu-lhes, de início, um problema irresolúvel, mas repetindo a experiência, algumas partes da estrutura, especialmente o início e o final, tornaram-se mais familiares e assumiram o carácter de localidades. Por fim, quando conseguiram atravessar o labirinto sem errar, todo aquele sistema parecia ter-se tornado uma localidade.
dos mesmos), decidem que arranjos podem ser feitos, que negócios podem ser abertos, que novos habitantes podem residir, que construções podem ocorrer. De referir também, que aparte todos os problemas de fundo relacionados com os códigos de quem regula determinado aglomerado informal, e ressalvando que o seguinte não é verifável em todos que tais, os próprios traficantes contribuem para o desenvolvimento do conjunto, seja com a construção de ginásios, de escolas ou outros equipamentos. Papel que deveria caber ao estado, mas na maioria dos casos ausente. Todavia, quem controla o bairro de lata, tanto pode ser melhor como pior na amplitude do vazio estatal, um ditador como
in Brown, Warner, Spatial Integrations in a Human Maze, University of California Publications in Psychology, vol. V, nº5, 1932, pp. 123-134
um benfeitor. Outra das problemáticas actuais é a excessiva população e a consequente re-
Além disso, a diversidade de formas arquitectónicas e espaciais, porque a liberdade em relação às mesmas é admitida e reflexo dos inúmeros construtores do bairro de lata, assim como as suas funções, satisfazem as necessidades dos seus habitantes (à excepção, claro, das decisões que não dependem dos mesmos, seja pela interferência estatal ou do código de quem controla o bairro). Contudo, o traçado labiríntico ainda que não seja objecto de proposta, não é ao mesmo tempo uma barreira na construção mental do espaço. O cérebro humano é incrivelmente adaptável, com alguma experiência, pode-se aprender a encontrar o caminho através das imediações mais caóticas e anónimas.24
Ao contrário do bairro de lata, a escala da cidade oficial, por vezes desmesurada, dos edifícios de trabalho e habitação, das fronteiras rodoviárias, conduz
dução do espaço urbano disponível, fazendo da alta densidade um imperativo.
ao afastamento progressivo entre indivíduos e comunidades e influencia as
(A densidade também se mostra essencial no presente contexto ambiental en-
respectivas relações sociais e espaciais (dando espaço a outras de diferentes
quanto oposto à dispersão e à necessária utilização do automóvel.)
lógicas ainda por compreender). De notar que a forma como o ser humano
A densidade de bairros de lata como Kibera (Nairobi, Quénia) ou Cité-Solei
naturalmente se desloca, isto é, caminhando, e o tipo de percurso que desse
(Port-au-Prince, Haiti) é maior que aquela presente no centro de Nova Iorque
modo efectua, é sem dúvida mais interessante quando variado. As grandes ave-
ou Tóquio, mas ao contrário das últimas, o crescimento é feito sem planeamen-
nidas, na sua dimensão, percebem-se que não foram pensadas para o homem
to visível e sobretudo na horizontal (dados UN-HABITAT, 2007). Todavia,
mas para a máquina e respectiva velocidade. Crê-se que a dispersão e a grande
nas favelas do Rio de Janeiro as pessoas começaram já a construir em altura,
escala, além da temática ambiental, afastam as pessoas de si mesmas e do pró-
chegando aos quatro/seis pisos ou mais. A densidade é um aspecto essencial
ximo.
da cidade contemporânea, e os dados e distribuição da mesma reflectem a fal-
Não se pretende sugerir que o labirinto, ou preferindo a tradicional malha da
ta de equidade. As populações informais ocupam em média 30% do território
idade média, seja o caminho a seguir ao nível do planeamento, apenas que essa
de uma cidade e encerram 60-70% dos habitantes da mesma. Por exemplo em
disposição espacial tem a sua potencialidade e pertinência porque à escala do
Nairobi, mais de metade da população vive em apenas 18% da área da cidade.
homem. Constata-se também que é importante haver espaço a um certo carác-
Em Dhaka (Bangladesh) 70% da população vive em apenas 20% da área total.
ter heterogéneo e eclético, e que tal depende substancialmente da liberdade de
Ou em Mumbai (Índia), os ricos ocupam 90% da cidade e os pobres apenas
decisão dos habitantes e respectivos modos de vida.
10%, sendo que mais de metade da população vive nesses 10% de área. (dados UN-HABITAT, 2005). Curiosamente contrastante é o facto de que são as
“(...) A metrópole é um objecto social que se constitui e se desenvolve a partir do
zonas mais densas das cidades as mais apetecidas, pense-se por exemplo em
movimento, do desequilíbrio, e não do reforço de uma estabilidade.” (Bourdin,
Manhattan (Nova Iorque), ou na margem sul do Sena (Paris). Mas para tal fa-
2005 : 21)
ria então sentido falar também de “(...) densidade de organização ou densidade
“Será que existe inovação sem desequilíbrio? (...) Não é possível aceitar uma dose
de investimento e não de densidade de ocupação.” (Bourdin, 2005 : 220)
de marginalidade e insegurança, indispensável para que os novos ‘entrantes’ – imigrantes ou inovadores sociais – possam dispôr de um espaço de afirmação que
O bairro de lata contém vários paradoxos, consegue proporcionar e conter tan-
lhes permita construir percursos de reunião e de trazer novas perspectivas de vida
to de positivo como de negativo. Encerra tanto o melhor como o pior do ser
colectiva? (...)” (2005 : 39)
humano, variando da “tolerância extrema à violência próxima.” O seu traçado 23
labiríntico com as suas vielas sinuosas, semelhantes à da cidade medieval, é simultaneamente a causa de vários problemas relacionados com a criminalidade, em parte pela sua impenatrabilidade, mas ao possuír a escala humana, é
23. Maricato, E. Metópole na Periferia do Capitalismo: Ilegalidade, Desigualdade e Violência. 1996. Disponível em www.fau.usp.br/ labhab.
*
também a causa inevitável da proximidade com os demais actores e elementos presentes, “permitindo” um estabelecer relações - com tudo o que isso acarreta.
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“Sempre que a utopia desaparece, a história cessa de ser uma direcção-processo para um máximo fim.”
Mannheim
25
qualquer fundamento aparentemente válido, e da qual se pretende manter uma
25. in Mannheim, Karl, (1935) Mensh und Gesellschaft im Zeitalter des Umbaus (O homem e a sociedade na época de crise)
certa distância na presente reflexão). Escusado será dizer que o ser humano - enquanto tal, não consegue alhear-se
As cidades do passado eram vistas sobre um ponto de vista ideal, eram ofere-
da sua culturalidade, historicidade e sobretudo das suas emoções, e que por-
cidas como objectos de contemplação, mas também como uma espécie de em-
tanto todos estes ensaios se mostraram impraticáveis. No entanto, uma vez
blema de um bem comum, universal. Filarete, Castiglione, More, Machiavelli,
postulados e enquanto utopias, fomentaram uma convergência de práticas,
Saint Simon, Ledoux, não ofereciam um futuro real, mas um hipotético.
tendo a metamorfose da sociedade em algo mais igualitário como objectivo.
Como referência apenas, tanto a utopia como a cidade ideal, a combinação entre ambas, ainda que atrasada, de práticas e moral, produziram alguns re-
Já no início do séc. XX, o Movimento Moderno, num registo urbanístico/
sultados. A sua combinação permitia uma convenção, que ainda que não re-
arquitectónico, com todos os seus pressupostos messiânicos e humanitários,
solvesse problemas de ordem social, foi responsável pela forma das cidades
influenciado pela racionalidade e pelo “mito do bom selvagem”, de igual modo
que são hoje admiradas. O objectivo era tratar situações existentes de forma a
mostrou-se incapaz de atingir o que sugeria. Não só não atingiu como frac-
converter um mundo de acontecimentos aleatórios e medievais numa situação
turou muitas cidades ou zonas das mesmas e, inconscientemente, contribuiu
de maior integração, e de um novo caminho mais justo e sério. As soluções
para o oposto do que havia postulado. A nova forma racionalizada da habita-
não eram perfeitas ou eficazes e nem chegavam a ser postas em prática na sua
ção e a nova ditadura da actividade dos veículos conduziu à desintegração da
totalidade, a sua função essencial residia na mensagem contida: mostravam-se
rua e dos altamente organizados espaços públicos. A obsessão modernista por
como uma crítica, mas também um motor da mudança, apresentavam-se como
objectos arquitectónicos fez com que a cidade evaporasse. Então, na sua forma
um possível rumo para transformar a sociedade positivamente.
evaporada, a cidade da arquitectura moderna tornou-se um conjunto de notáveis diversos que consiste uma nova problemática que a cidade tentou resolver.
“A utopia é a exploração de novas possibilidades e vontades humanas, por via da
Foi no momento da criação de espaços delimitados tendo edifícios como mote
oposição da imaginação à necessidade do que existe, só porque existe, em nome
que levou a uma absorção do espaço, reduzindo-o a um mero factor, conse-
de algo radicalmente melhor que a humanidade tem direito a desejar e por que
quentemente, quebrou o objectivo de uma sociedade universal.
merece a pena lutar.” (Santos, 1994 : 278)
Outros, posteriores, foram os ensaios sobre utopias ou cidades do futuro: os
Archigram que pareciam fazer imagens pitorescas do devir com toda aquela Salte-se para o séc. XVIII, época da fundação da cidade industrial. Com
aleatoridade; os Team X que viriam a introduzir o edifício isolado e o progra-
Newton e a possibilidade de este mostrar através de processos concretos a
ma do edifício com uma sobreposição dos dois, que substituiria a organização
existência de leis que regiam a vida humana – a razão, foi um passo para que
funcional com associação humana, e que para imposição substituiria partici-
as cidades, antes imaginário, pudessem passar a ser reais e construídas. Foi
pação; os Superstudio que propunham a eliminação das estruturas formais do
o momento em que talvez a sociedade e a condição humana poderiam ser re-
poder, defendendo a vida enquanto a única arte ambiental, e o design total
formuladas e sujeitarem-se a leis quase infalíveis como as da física. Tentou-se
como forma de existir; entre tantos outros visionários que criaram as suas ci-
estabelecer a ciência como a fundação da moral, transformar a política em ra-
dades e modos de vida dentro de um lirismo inalcançável, mas sempre num
mos da física, e até o governo arbitrário regido por uma admnistração racional.
registo de hipótese e mudança.
Mas a ideia da sociedade racional durou pouco tempo, dando lugar à ideia da criação de uma ordem social mais justa e em harmonia – e ao longo do séc. XIX
Compreende-se que as utopias nem sempre foram levadas a bom porto, e que
– esta utopia mais literal foi aberta a que adquirisse uma substância espiritual
muitas, quando parcialmente aplicadas se mostraram um fracasso. “Entre as
e dinâmica.
‘teorias’ e as práticas efectivas, sempre houve afastamento, e as novas concep-
Se as obras da sociedade estavam prestes a ser firmemente estabelecidas, era
ções surgiram senão de forma imperfeita substituindo as antigas.” (Ascher,
necessário que o que se alcançou em termos de revolução científica, também al-
1995 : 89)
cançasse a sociedade. Para tal, era necessário isolar o homem enquanto modelo, de forma a compreendê-lo e identificá-lo, retirando as suas contaminações
Toda e qualquer utopia tem o seu papel transformador e é possuidora de um
culturais e sociais que o corrompiam – deveria ser imaginado na sua condição
inegável valor no plano teórico, mas deve ser gerida enquanto abstracção, e
de aborígene, num ponto zero - tempo da fundação do “mito do bom selva-
com o devido cuidado de forma a evitar um paradoxal dogmatismo-utópico.
gem” (condição que por vezes se atribui a quem vive no bairro de lata, sem
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social implica igualmente políticas contínuas de revalorização e integração dos
“(...) A utopia é a metáfora de uma hipercarência formulada ao nível a que não
‘bairros em crise’ ” (Ascher, 1995 : 233)
pode ser satisfeita. O que é importante nela não é o que diz sobre o futuro, mas a arquelogia virtual do presente que a torna possível. Paradoxalmente, o que é importante nela é o que nela não é utópico. (...) Enquanto nova epistemologia,
Se “a cidade é potencialmente o símbolo poderoso de uma sociedade comple-
a utopia recusa o fechamento do horizonte de expectativas e de possibilidades e
xa” (Lynch, 1960 : 13) porque não explorar ao máximo essa mesma condição?
cria alternativas (...)” (Santos, 1994 : 279)
Para tal devem-se encontrar modos - muitos, individuais e colectivos, de fazer cidade que na sua amplitude permitam acidentes emotivos - tal pode implicar
Conclui-se a existência de um aspecto fulcral nesta abordagem: as referências
o gosto tanto pela ordem como pela desordem, o culto do individual e/ou do
têm de ser necessariamente variadas e abertas, e a utopia deve existir necessa-
grupo, a falta de gosto pelo racional ou a sua obsessão... Deve haver espaço
riamente de modo plural, encarada como meras linhas de orientação e abarcan-
à manifestação pessoal de todos os que usam, que vivem a cidade. Nunca es-
do a especificidade dos vários contextos em jogo. Porque a utopia não oferece
quecendo que a excessiva “(...) racionalização e intelectualização vão a par do
opções – tudo é ideal e bom.
desencantamento do mundo.” (Bourdin, 2005 : 33)
“Uma compreensão profunda da realidade é assim essencial ao exercício da utopia, condição para que a radicalidade da imaginação não colida com o seu
Nesta diagonal mostra-se importante esclarecer certos pressupostos de gran-
realismo.” (Santos, 1994 : 278)
de importância. Obviamente que o homem não pode simplesmente voltar às origens e ignorar tudo o que sabe e que alcançou durante a história da humanidade. A sociedade é um contínuo que não se pode interromper, e o que foi alcançado, só possível porque em conjunto, deve-lhe isso mesmo. Um proces-
*
so sem interrupções, com mais ou menos precalços, com transformações de fundo, com os seus períodos de estagnação. “(...) as cidades não nascem acabadas.”
Por um lado é óbvio que o planeamento enquanto processo de racionalização
(Siza, 2000 : 112)
e organização da cidade não pode deixar de existir, pois é essencial que haja integração dos elementos estáticos com os dinâmicos e/ou móveis - articulação
Roma e Pavia não se fizeram num dia.
do construído com os sistemas de mobilidade, etc. Por outro, o desenvolvi-
-ditado popular
mento da cidade deve estar intrusado com a personalidade de cada um e de todos, deixando margem de manobra a manifestações individuais e colectivas. Depois o caso da utopia e do seu relevo, a mesma deve ser encarada enquanto
Quando se foca a cidade contemporânea constata-se que existe uma certa deri-
objecto de contemplação e enquanto instrumento de transformação social, a
va em relação aos seus princípios e valores, ao seu planeamento e organização,
utopia deve existir, mas tal implica que se reformule, que se recrie, e que não
aos seus elementos móveis e fixos, controláveis e incontroláveis, à sua dimen-
se apresente como uma obsessão. O aspecto que se acredita delicado é a falta
são e pluralidade. É por isso pertinente inquirir que futuro se avizinha, que
de um certo questionar, de colocar em hipótese as próprias hipóteses, com a
futuro se pretende, e de que modo será esse atingido.
grande probabilidade de cair facilmente no ad hoc, no dogma. A dicotomia de possibilidades até aqui exercitada, “ deixem a ciência construir
Um dos aspectos da cidade - e da arquitectura, que se crê fundamental alertar
a cidade” ou “deixem as pessoas construir a cidade” (Rowe/Koetter, 1978 : 5),
nesta perspectiva, é o da sua democratização nas várias vertentes. É essencial
crê-se ser redutora, simultaneamente que o meio termo não se sabe se será o
atingir um acordo entre as partes, fruto da dialéctica entre as várias formas de
mais correcto. A questão é densa e o terreno pantanoso.
pensar e de estar, considerando as várias identidades, uma coexistência entre
Pretende-se portanto pôr em causa o paradigma actual - se é que existente, que
os vários tipos de cidade e respectivos cidadãos. Esta democratização deve sig-
regula as cidades e os cidadãos - o mundo, e de que forma o mesmo deve expe-
nificar semelhantes oportunidades e conteúdos sociais e políticos, traduzido
rimentar a mudança. A cidade e a sua epistemologia, pela panorâmica traçada,
na criação de infra-estruturas, de políticas sociais de integração, da distribui-
entendem-se em fase de necessária transição.
ção do poder de decisão, etc, o que implica necessariamente uma mudança de paradigma do sistema mundial. Ao mesmo tempo que: “as dificuldades de vida
“(...) O conflito paradigmático não é apenas traçado a nível intelectual, como tem
das populações desfavorecidas, a solidariedade e a preocupação pela coesão
acontecido, pelo menos até agoram com o conflito epistemológico; é além disso,
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e cada vez mais, um conflito social e político sustentado por grupos e interesses
so e participação. A cidade, nas suas várias vertentes e disposições, deve ser a
organizados, ainda que com poder e organização muito desiguais.” (Santos, 1994
expressão inequívoca de quem a habita e lhe dá sentido de existir – cidadãos;
: 289)
políticos, arquitectos, urbanistas, geógrafos, economistas, antropólogos, sociólogos...
Em relação aos bairros de lata, usados como referência, o desafio maior não é
Ao mesmo tempo, a cidade e a sua história devem ser vistas como um instru-
erradicá-los, mas tentar tratá-los como bairros normais em desenvolvimento.
mento didáctico, e não pode ser de outro modo. “A metrópole cristaliza, ao
Urge decifrar as duas vertente da questão, pois onde um vê um bairro de lata,
mesmo tempo que constitui uma forma geradora, resulta da sociedade ao mes-
outro vê uma zona em desenvolvimento. É fundamental entender a herança
mo tempo que a produz.” (Bourdin, 2005 : 22) Mas só a prática urbana pode
deste tipo de fazer cidade, que sempre existiu, e provavelmente sempre existi-
resolver os seus problemas, já que foi essa que os colocou em primeiro lugar.
rá, pois o seu método explicita um tipo de desenvolvimento urbano. Um dos
Na condição actual da cidade contemporânea, que Ascher pretende elevar a
motivos que se prende com esta questão é também o facto de estas populações,
26. métapole - “(...) uma métapole é um conjunto de espaços onde todos ou parte dos habitantes, das actividades económicas, ou dos territórios estão integrados no funcionamento quotidiano (ordinário) de uma metrópole. Uma métapole constitui geralmente um só foco de emprego, de habitação e de actividades. Os espaços que compõe uma metápole são profundamente heterogéneos e não necessariamente contíguos. Uma métapole compreende pelo menos algumas centenas de milhares de habitantes. (Ascher, 1995 : 35)
economicamente, não poderem viver noutro tipo de bairros ou edifícios, contudo, o “direito à cidade” deve ser universal. Quando tal não acontece nascem problemas graves que se repercutem nos vários âmbitos do urbano como antes nomeado. Salientando também que é essencial ter em linha de conta que as populações segregadas, excluídas, seja no bairro de lata, seja no subúrbio, estão a tornar-se uma maioria “dentro” da cidade. Por exemplo em Mumbai, dos seus 12 milhões de habitantes, quase 7 milhões vivem na informalidade ou em condições precárias (dados UN-HABITAT, 2005), o que coloca a questão de qual é a verdadeira cidade.
métapole,26 o mesmo refere que esse quadro urbano interage com dinâmicas de transformação social, e que a sua formação está ligada à emergência de novos modos de vida - seja através da “complexificação” e/ou da “individuação da sociedade”. (1995 : 119-120) A cidade é uma criação colectiva, é a resposta a como viver em conjunto, como actuar em conjunto sem a obrigação de ser idêntico. A heterogeneidade das cidades e dos seus habitantes - com a variedade de espaços a conceber e com os problemas que há a resolver – exige uma série de recursos necessários a novas concepções urbanas variadas e tal implica uma grande abertura de registos, de pontos de vista, de métodos, do urbanismo, da
Neuwirth refere que “as pessoas pensam que os agentes da mudança são sem-
epistemologia, do direito.
pre os intelectuais – os pobres vão ser os agentes da mudança da cidade” (2006
Não se procura portanto um modelo de cidade, nem um juízo definitivo sobre
: 139) E tal, olhando os números, nota-se que pode ocorrer a bem ou a mal.
a mesma, aliás, é contra isso que se deve lutar, a cidade deve ser encarada como
O bairro de lata encerra um potencial desfocado pelas suas contradições e abre
um organismo vivo, aberto, susceptível de adaptações múltiplas, e a sua cons-
a porta a questões fundamentais, concentra-se mais na necessidade e não tanto
trução deve oscilar entre:
na vontade, possui uma estrutura aberta e em constante mutação - reflexo disso mesmo. A regulação do bairro de lata (levada a cabo por narcotraficantes,
“(...) um apelo à ordem e à desordem, ao simples e ao complexo, pela ligação
seitas religiosas, etc), porque um sistema fora (mas dentro) do sistema, autori-
entre a existência de referências permanentes e o acontecimento aleatório, da
za certas liberdades ausentes no mundo formal, ainda que simultaneamente o
ligação entre o privado e o público, da inovação e da tradição, entre os dois ges-
reverso se possa constatar.
tos – o retrospectivo e o profético.” (Rowe/Koetter, 1978: 8)
Compreende-se que num momento de crise e atendendo às circunstâncias presentes da cidade contemporânea, e na falta de soluções concretas, esse pode
Se o planeamento urbano e o urbanismo devem ser capazes de se adaptarem a
ser um caminho: qualificar as virtudes da ordem com os valores do caos. Como
um contexto em mudança e incerto, a cidade deve também ela ser flexível, reu-
Lynch, no seu Imagem da Cidade, refere que o que se deve procurar
tilizável, transformável, contemplando um plano aberto, de forma a integrar as várias possibilidades de usos no seu permanente devir.
“(...) não é uma ordem definitiva mas aberta, capaz de um desenvolvimento pos-
“Na cidade todos os elementos - habitantes, edifícios e funções - estão em es-
terior contínuo. (1960 : 14) [É essencial] “(...) possibilitar um fim em aberto,
treita proximidade, ‘condenados, por assim dizer à tolerância recíproca.” (In-
adaptável à mudança, permitindo ao indivíduo continuar a investigar e a organi-
nerarity, 2008)
zar a realidade: deveriam existir espaços em branco onde ele poderia prolongar
Em suma, uma cidade construída por todos, de todos.
o plano de si próprio.” (1960 : 17)
*
Mostra-se controverso, e por vezes desastroso, desenhar uma cidade, mas pode-se tentar organizar uma enquanto estrutura viva, e tal implica o concen-
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Recentemente, em Abril do corrente ano, tiveram lugar as jornadas Pensar el
Presente, em Madrid. Contando com 27 oradores de várias nacionalidades, desde cineastas, fotógrafos, escritores, filósofos, sociólogos, entre outros, (arquitectos/urbanistas não estavam presentes no rol de convidados), o cenário principal dos debates foi a cidade e de como esta será transformada pela actual crise económica. A tendência de muitas destas vozes foi a de questionar a existência de uma globalização cultural e pôr em foco o local como força motriz de um câmbio de modelo urbano. Palavras de Estrella de Diego: “Estamos a deixar para trás a cidade dos arquitectos e das instituições pela cidade dos cidadãos.” 27 (De Las Heras, 2009)
27. Estrella de Diego (Madrid, 1958) é professora de Arte Contemporânea na Universidad Complutense de Madrid, foi também professora catedrática na New York University.
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Que Habitar (habitat)
“Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.” Ponto 1. Artigo 25º Declaração Universal dos Direitos do Homem
A crise da habitação, ou da falta de sistemas de acolhimento, é facilmente entendível pelo simples vaguear por uma grande cidade; seja com a constatação da existência de sem-abrigo28 que dormem nas ruas, nas caixas multibanco, nos vãos de escadas, ou pontualmente pelas casas abandonadas que ocupam sobretudo nos centros históricos (cada vez em menor número porque progressivamente mais controlado e regulado); seja pelas suas periferias (des)caracterizadas em que os seus interstícios são por vezes ocupados e onde se erguem construções por vezes clandestinas, ilegais ou “alegais”. Nesta leitura geral é importante distinguir entre dois processos distintos e respectivas respostas: a do mundo dito desenvolvido e a do mundo em vias de desenvolvimento. Os países em vias de desenvolvimento mostram-se mais propícios e dão uma maior margem de manobra ao processo de ocupação/apropriação ilegal, seja Fig.23 Porta na Rua Sá de Noronha, Porto “Disponível para habitar” / “Esta casa espera visitas”
por falta de legislação, seja porque parece ser a única solução possível para
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albergar as populações recém-chegadas à cidade. O vazio legal e a inoperatividade estatal dão azo assim ao desenvolvimento de assentamentos clandestinos que ao longo do tempo se tornam autênticas cidades informais. Ao contrário do que se verifica no Terceiro Mundo, as cidades (decadentes) do mundo desenvolvido não dispõem dessa liberdade, no que se pode considerar uma privação
da imigração, a qual leva diariamente milhares de pessoas às cidades. O motivo
28. Consideram-se dois tipos de sem abrigo: os locais que vivem em espaços urbanos (só em Paris existem 40,000) e as inundações de imigrantes políticos e económicos que vivem quase como uma população invisível no mundo desenvolvido.
de tal deslocamento, como já referido, prende-se com a tentativa de melhoria das condições de vida, o que passa necessariamente por ter uma fonte de rendimentos minimamente estável - um emprego/trabalho portanto. Ora, dito isto, facilmente se compreende que o ritmo de crescimento da falta de alojamento
da autonomia e dignidade humana face aos que não dispõem de um tecto. A
e da consequente informalidade relaciona-se de forma directa com a oferta de
verdade é que os habitantes do mundo ocidental/ocidentalizado não têm nada
trabalho. Tal situação é de certo modo passível de uma previsão: havendo tra-
de que depender aparte do sistema de saúde e ajudas estatais, que em muitos
balho o fluxo migratório acentua-se, mas se as condições não estão criadas, a
dos casos é inexistente ou ineficaz. Este sistema de apoio, ou Estado de Provi-
cadeia migratória retrai-se e desloca-se para onde o foco de mão-de-obra ne-
dência, patente na Europa, encontra-se contudo desligado do contexto sócio-
cessária se concentra - de modo quase auto-regulado. Está-se frequentemente
cultural das populações “em vias de alojamento”, ao mesmo tempo que com as
perante populações de carácter nómada, porém, essa mesma condição parece
diversas crises que se foram sentindo, esse mesmo Estado Social tem vindo a
passar ao lado de quem cria e regula a criação dos denominados sistemas de
retrair a escala de acção, facto que se comprova numa certa transferência de
acolhimento. Em paralelo às populações imigrantes encontra-se outro grupo
responsabilidades: seja pela explosão das ONG’s, seja na crescente actividade
em emergência habitacional - os jovens, em que muitos, porque em início de
das companhias seguradoras. Todavia, e apesar da situação frágil em que as
vida, se consideram dispostos e aptos a habitar fora dos parâmetros conven-
várias economias se encontram, os estados - sobretudo do velho continente,
cionais do que é a tradicional casa - seja o que isso for. De qualquer modo,
ainda vão desenvolvendo pequenas políticas ou dependências responsáveis pelo alojamento como seja o HLM em França, ou mais recentemente o PER 29
em Portugal. Por razões de ordem diversa, desde a falta de fundos à simples inércia, a produção de habitação de iniciativa estatal mostra-se insuficiente e desajustada do panorama actual. Os bairros camarários são a resposta governamental mais frequente à falta de alojamento, orientados principalmente para populações desprovidas de condi-
a oferta existente fica por responder aos seus condicionantes económicos ou 29. HLM - Habitation à Loyer Modéré, ou habitação de rendas moderadas. O HLM, criado em 1950 no seguimento da crise de habitação do pós-guerra, funciona como um tipo de habitação subsidiada pelo estado francês e conta com aproximadamente 4 milhões de casas já disponibilizadas, as populações residentes são sobretudo imigrantes e de origem africana.
disposições sociais.
*
No Primeiro Mundo a margem de manobra no que diz respeito à construção
ções económicas que lhes permitam o acesso ao normal mercado da habitação.
e ocupação clandestina ou ilegal é mínima ou nula - as cidades estão já consoli-
Contudo, nos dias que correm, esta situação crítica não diz respeito somente
dadas e os focos de informalidade são rapidamente bloqueados; já no Terceiro
aos estratos mais baixos da sociedade mas também a uma boa parte da chama-
Mundo, a informalidade – associada à auto-construção, é o modo operativo
da classe média, jovens e/ou estudantes bem como idosos. O desajuste com-
mais comum no que diz respeito à criação de alojamento. A auto-construção,
preende-se ainda na relação entre o que as pessoas precisam e aquilo que lhes
30. John Turner, controverso arquitecto inglês, escreveu vários livros no âmbito da auto-construção e da arquitectura de comunidade, a partir da sua experiência na América do Sul. No âmbito da auto-construção realizou projectos no México, Perú, Estados Unidos da América e Reino Unido.
é oferecido (imposto), sendo que as consequências desta atitude relacionamse com determinados factores esquecidos na abordagem à problemática por quem de direito e dever. Constata-se em primeiro lugar a falta da interacção entre as partes durante o processo, isto é, entre quem concebe e os respectivos futuros utilizadores, num isolamento intelectual que culmina invariavelmente no caos - as soluções são
fenómeno estudado por John Turner30 em vários dos seus escritos e intervenções, apresenta-se como uma opção aparentemente viável e eficaz para populações de escassos recursos. Este sistema de produção de alojamento opõe-se, assumindo-se como uma alternativa, aos projectos de habitação social massivos comuns no mundo ocidental. Por motivos de carácter económico - guiados pelas lógicas de mercado e respectivas entidades e regulamentos - a habitação parece não poder continuar a
pouco viáveis, nada económicas, e não atendem às especificidades e diversi-
ser disponibilizada exclusivamente como um serviço público. Ora, abolindo
dade das populações que aí vão viver. A postura assumida conduz ao descon-
o apoio directo à produção de habitação, torna-se essencial que os Estados
tentamento crescente dos habitantes, o que se reflecte no desleixe e na falta
Sociais criem outros mecanismos para que os indivíduos, enquanto cidadãos,
de cuidado em relação às estruturas para eles criadas, e como tal, os bairros
tenham acesso ao alojamento ou à sua criação, bem como às respectivas infra-
camarários são associados, porque formalmente propícios, a situações de van-
estruturas necessárias ao quotidiano.
dalismo e focos de crime.
A auto-construção serve um propósito específico e adequado ao contexto dos
Outro dos motivos conhecidos prende-se com o tipo de populações e respecti-
países em vias de desenvolvimento, e portanto, considerando-a uma possibi-
vos propósitos/modos de vida. Por vezes são populações ligadas ao fenómeno
lidade a ser introduzida na realidade ocidental, essa transposição/conversão
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fig.24. Telhados vistos do Parque Güell, Barcelona “Okupa y Resiste”
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deve ser posta em prática de forma ajustada à realidade vigente. Esta via apre-
alojamentos mais pobres materialmente falando, são claramente os melhores
senta largas vantagens assim como senãos, que devem ser geridos segundo as
socialmente falando, e alguns, mas não todos, os de habitação standard são os 31. Turner sobre a sua experiência e análise em projectos auto-construtivos e de âmbito social no México.
possibilidades e vontade de quem a escolhe como processo alternativo ao método de alojamento dito oficial.
mais opressivos.” 31 (Turner, 1976 : 55) A razão para tal relaciona-se com o processo em si: em comunidade as decisões são tomadas em conjunto, as relações entre os vários actores estreitam-se em direcção a objectivos comuns e o pro-
Num normal projecto as tarefas são hierarquizadas, entre quem promove,
duto final é algo orgânico que satisfaz a todos os intervenientes. A arquitectura
quem constrói, quem desenha, e quem no final do processo habita. A hierar-
de comunidade, intrinsecamente ligada à auto-construção, confere aos espaços
quia aumenta os custos devido ao número de intermediários e deste modo os
realizados uma identidade e a realização fundamental aos seus habitantes.
preços das casas aumentam a um nível que os seus futuros residentes não podem pagar, e colectivamente, ultrapassa os limites do que um governo pode
“(...) A participação dos locatários ou proprietários nas actividades comunitárias
gastar em provisionar habitação para todos. É largamente comum que as en-
cria uma maior interacção social e favorece a identidade colectiva, e por esse
tidades públicas construam “(...) casas ou apartamentos em standards que a
mesmo facto, o sentimento de pertença e de segurança.” (Bourdin, 2005 : 135)
maioria não pode pagar, e em que o país não pode subsidiar em larga escala.” (Turner, 1976 : 32) Adicionando que os custos relacionados projectam-se no
Um desses exemplos, sem dúvida criativo, e que se assume como um tipo de
tempo com a devida manutenção necessária a estas mega-estruturas.
desenvolvimento orgânico das favelas brasileiras, é a prática de “vender a laje”
Ao contrário dos complexos residenciais, a auto-construção permite aos utili-
(Neuwirth, 2006 : 42). O facto de necessitarem de dinheiro, as famílias que “ad-
zadores atingir algo que de outra maneira não seria possível, permite que cada
quiriram” o terreno e construíram a sua casa térrea, e de forma a pagar o inves-
um, dentro dos limites da segurança, escolha que material e que disposição
timento, vendem a sua laje (ou “direitos à cobertura”). Normalmente vendem a
e imagem prefere para a sua casa, assim como determinar a sua evolução à
conhecidos ou amigos, que por sua vez podem realizar o mesmo processo. As
medida da sua disponibilidade económica. Através de um sistema baseado em
várias decisões - como quantos pisos pode vir a ter ou como quem a vai habitar,
estruturas de redes, em que cada um depende de si mesmo e da entreajuda dos
passam por reuniões/discussões entre as várias partes interessadas, isto é, os
vizinhos/amigos, é possível reduzir os custos iniciais e com isso atingir progres-
proprietários da “laje”, os habitantes dos espaços adjacentes e a comunidade
sivamente um nível habitacional digno. Ressalvar que o work-in-progress que
em geral. Todavia, a situação deixa de ser tão colorida à medida que, laje sobre
a auto-construção propõe, a nível económico, não é notavelmente vantajoso –
laje, os conflitos começam a ter lugar - relacionados com os acessos, porque
por exemplo os materiais, porque comprados individualmente, tornam-se mais
individuais e frutos também esses da sobreposição, ou fruto de problemas rela-
caros, porém a grande vantagem reside no facto de que a evolução está sob
cionados com a construção em si, entre outros.
o controlo dos residentes e enquadrada nas suas necessidades e capacidades. “(...) A principal questão é a possibilidade de expansão e melhoria ao longo do
Compreende-se que a auto-construção, sendo “regulada” (por quem de direi-
tempo o que leva a um faseamento dos custos.” (Davis, 2005 :38)
to – governos e futuros residentes) pode ser uma via de acção alternativa ao
É também importante compreender que a satisfação que um indivíduo obtém
convencional método de provisão de habitação. Idealmente, em vez de saber
pelo facto de ter tomado ele próprio uma decisão ou ter feito algo para si mes-
quantas casas têm de ser construídas num determinado sítio e tempo ou para
mo, por mais imperfeito que possa ser, é amplamente maior do que quando as
um determinado sector social, os arquitectos/urbanistas e administradores de-
escolhas não passaram pelas suas mãos. Para a maioria das pessoas em situa-
veriam apenas saber as quantidades de material, ferramentas e mão-de-obra,
ção de emergência habitacional “(...) o valor da habitação reside no que esta faz
terra e crédito necessários, encarregando-se obviamente de providenciar todas
e não do que é (...)” (Turner, 1976 : 101)
as infra-estruturas necessárias. As formas seriam deixadas para as pessoas e para os intermediários locais. As barreiras legais deveriam ser sobretudo ao ní-
Os fenómenos de alojamento são mais complexos e variados dos que as leis e
vel dos limites e não das linhas de acção. Isto é, definir apenas as várias possibi-
políticas de habitação autorizam, sendo que a questão da habitação é bastan-
lidades de abordagem em vez de impor modelos do “fazer”. Graças à liberdade
te profunda e tem reflexos nas relações sociais, e nas bases das comunidades,
de construir, que o sistema da auto-construção permite, as pessoas poderiam
factor que frequentemente não merece a devida atenção. Nos apartamentos
decidir e construir para si mesmas, a demanda de trabalho local manter-se-ia e
disponibilizados nos grandes conjuntos residenciais as pessoas não se sen-
os benefícios ficariam com aqueles que exerceram a sua própria imaginação e
tem confortáveis, são feios e anónimos, demasiado standardizados, caros de
iniciativa, técnica e responsabilidade.
manter, e sobretudo, não permitem a expansão essencial. Além de que os “(...)
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“Por exemplo, considere-se o número de palavras, sintaxes e linguagens que são possíveis com apenas um par de dúzias de letras. Com um alfabeto mais extenso, a comunicação seria reduzida, não aumentada, pois tornaria a leitura mais difícil e consequentemente reduziria a literacia.” (Turner 1976: 106).
A partir de linhas de acção gerais e usando materiais standard, as casas seriam produto dessa assemblagem: maximizam-se as opções e os materiais são os mesmos, numa variedade infindável e complexa de possíveis conjuntos de usos. O produto desta liberdade construtiva encontrada na escassez, seria uma maior riqueza formal, e com essa, novos horizontes seriam abertos à prática da arquitectura em geral. Como Rem Koolhaas, guru da nova arquitectura mundial, refere em relação aos seus estudos urbanísticos e arquitectónicos sobre o desenvolvimento da capital nigeriana: “Eu não penso que aprender Maya 4.o seja muito diferente de ir a Lagos.” (Koolhaas, 2002 : 163)
*
“A sociedade de consumo, a cultura de massas e a revolução da informação e da comunicação superficializou tanto as condições de existência como os modos de a pensar.” (Santos, 1994 : 246) A complexidade de respostas face à crise da habitação ultrapassa a mera dualidade metodológica entre a auto-construção ou o bairro camarário. Muitos são os indivíduos, sobretudo jovens e famílias de classe média baixa, que não se encontram em estados extremos ao ponto de serem incluídos em planos especiais de alojamento, mas que, de igual maneira, necessitam desse de forma acessível. Da mesma forma que outros em emergência habitacional não estão preparados para a auto-construção e/ou porque se encontram de passagem ou são de avançada idade. Fugindo aos métodos convencionais, entre a possibilidade da auto-construção e a impossibilidade do squatting - a prática de ocupar casas ilegalmente, talvez seja possível encontrar outras vias. O arquitecto/urbanista Nuno Grande, aquando da apresentação da Revista
Dédalo – Centripetação,32 expunha a atitude em relação aos projectos de reabilitação da Baixa do Porto - de casas devolutas em avançado estado de degradação passavam a casas prontas a habitar. Como referido antes, a habitação pronta a habitar implica custos iniciais superiores àquela em que parte ainda se encontra por fazer, e nessa linha, sugeria que as casas em processo de reabilitação fossem deixadas num nível de recuperação suficiente que assegurasse
32. Apresentação do nº5 da Revista Dédalo Centriptação, com Nuno Grande, Nuno Valentim e Gonçalo Furtado, no café das Galerias de Paris, Porto, 25 de Fevereiro de 2009. Disponível em http://www.youtube.com/user/revistadedalo
as mínimas condições de segurança e habitabilidade. Propunha também que
Fig. 25 Middlesex Hospital, Londres Hall de entrada
o resto do trabalho fosse desenvolvido pelos futuros ocupantes à medida das
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suas necessidades e disponibilidade económica, invocando como público alvo estudantes ou jovens em início de vida que estariam dispostos a caracterizar a sua casa ao longo do tempo. O investimento no alojamento “pronto a apropriar”, consideravelmente mais baixo que numa casa “pronta a habitar” e em detrimento dessa, sem rendas de aluguer intermináveis, seria visto como uma opção viável para todos os que solícitos a tal. A atitude postulada por Nuno Grande é de certo modo visível em iniciativas no mercado imobiliário de arrendamento de Barcelona, ou mais curiosamente de Praga ou Londres, que fomentam o combate à falta de habitação viável assim como na sua relação com o edificado antigo/abandonado. Em Barcelona, em bairros como a Grácia, existem casas/apartamentos que são alugados a preços consideravelmente mais baixos que os vigentes no mercado. A razão para tal é que muitas destas precisam de novas pinturas e de pequenos arranjos ou reparações. Em câmbio de uma renda baixa, os novos inquilinos, em tempo útil de contrato, ficam encarregues de reparar e ajustar o que necessário à medida do possível. O caso da capital checa é ainda mais interessante na relação entre a emergência da habitação, do abandono dos centros históricos e respectivos edifícios votados ao abandono. O squatting, conhece em Praga uma vertente oficial, 33. Jakova, Katerina, L’genzia immobiliare degli squatter, in Internazionale nº796, 22 Maio 2009, p.92
em que o Centro Social Milada33 é disso exemplo - uma associação de squat-
ters criada em 1998, e das últimas a possuir infra-estruturas de acordo com a sua filosofia, isto é, ocupadas. Recentemente, além das várias iniciativas que desenvolvem - entre debates, projecção de filmes ou exposições, criaram uma agência imobiliária sem objectivos lucrativos, orientada para jovens e idosos e reconhecida pela lei checa. Esta “agência” possui uma base de dados com as casas desocupadas, contacta os seus proprietários, e quando de comum acordo com os mesmos, essas ficam automaticamente habilitadas à “ocupação”. Contudo, esta ocupação, porque concebida entre as várias partes, processa-se de modo diferente: implica que os futuros ocupantes se responsabilizem pela reabilitação e manutenção do imóvel, em alguns casos a troco de uma renda simbólica (quando existente). Se por um lado os proprietários não necessitam de se preocupar com a eventual ocupação e gradual degradação do imóvel, por outro evitam grandes investimentos de reestruturação assim como custos de manutenção - a cargo dos novos residentes. Quem ocupa ou se apropria da casa está consciente que se trata de uma solução passageira, mas que a curto prazo resolve a sua situação precária. À semelhança do que o grupo Milada desenvolve em Praga também em Londres se encontra paralelo. Várias são as empresas, de âmbito privado, que contratadas por proprietários de imóveis, os quais por vezes insólitos, se encarregam de os alugar para habitação. Um desses casos é o Middlesex Hospital, uma estrutura hospitalar de 7 andares no centro de Londres que foi desacti-
34. veja-se http://uk.cameloteurope.com/
Fig.26 Middlesex Hospital, Londres Unidade de Reumatologia (quarto)
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vada em 2005 aquando da fusão com o UCL (University College of London). A empresa britânica Camelot,34 orientada para o mercado em crise e tendo
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jovens como público alvo, propõe-se a alugar as várias unidades do antigo hos-
importante que a mesma não seja concebida como algo alienante e massifica-
pital a quem se candidate, evitando que essa mesma mega-estrutura inactiva
do, já que os complexos residenciais são lugares brutalizantes, que não deixam
não seja vandalizada ou ilegalmente ocupada. Actualmente o Middlesex Hos-
espaço à invenção ou à projecção de identidade e pouco às inter-relações entre
pital alberga no total 14 pessoas distribuídas pelas várias unidades, são jovens
residentes - “(...) onde as pessoas não vivem juntas e os quais não são nunca
entre os 22 e os 32 anos e de diferentes países. As rendas são brutalmente mais
situados no centro de algo (...).” (Augé, 1992 : 107)
baixas que no mercado imobiliário dito normal e incluem já os gastos, em con-
A falta de participação, por parte dos utilizadores de determinado espaço, con-
trapartida, a empresa responsável necessita apenas de avisar com 20 dias de
duz a uma profunda alienação. Alienação essa experimentada em relação aos
antecedência a saída dos inquilinos.
sítios impessoais de trabalho – fábrica ou escritório, dos locais de supostas rela-
Os exemplos mencionados são orientados para populações cujos estilos de
ções, e sobretudo, ainda mais grave, em relação aos espaços do viver.
vida se adequem aos mesmos, o que nos dias de correm se verifica em número crescente.
“Se um lugar pode ser definido como relacional, histórico e identitário, então um lugar que não pode ser definido como relacional, histórico ou identitário *
será um não-lugar.” (Augé, 1992 : 77) É imperativo questionar que tipo de habitação se está a forjar presentemente e se esta responde construtivamente às demandas da sociedade actual, situada
“O não-lugar é o oposto da utopia: existe, e não contem nenhuma sociedade orgânica.” (Augé, 1992 : 111) Por questões ligadas ao excesso de população e pelos valores proibitivos do solo numa cidade a alta densidade habitacional – correspondente aos conjuntos residenciais massivos, aparenta ser a resposta mais adequada ao contexto urbano actual. A forma destes brutais complexos residenciais não varia consideravelmente, seja no mercado privado seja naquele de âmbito social. A
38. Condição da supermodernidade, onde o espaço antropológico é cada vez mais difícil de encontrar, e por isso entendem-se os espaços com os quais os indivíduos mantém um qualquer tipo de relação, histórico, identitário...
na condição que Augé intitula de supermodernidade.38
O termo supermodernidade foi utilizado primeiramente por Anthony Giddens.
sócio-espacial.) O lugar à identidade essencial ao ser humano parece confinado
in Giddens, Anthony, M o d e r n i t y and self-identity: self and society in the late modern age, Stanford University Press, San Francisco, 1991
compra, o aluguer ou a cedência de alojamento numa cidade termina invariavelmente numa destas formas de residência. A variedade da mesma, porque
Os espaços em que o indivíduo se pode expressar e relacionar-se com o próximo existem em cada vez menor número, ao mesmo tempo que aqueles orientados para que determinado grupo realize as suas práticas desaparecem progressivamente. (Contudo, surgem outros mas pouco claros na sua dimensão a standards, e salienta-se que: “(...) devia ser prestada atenção aos factores de singularidade: singularidade de objectos, de grupos e comunidades, a reconstrução dos lugares; as singularidades
produzida em larga escala, reduz-se normalmente à aparência exterior, isto é,
e todos os tipos que constituem um contraponto paradoxal aos procedimentos
o papel do arquitecto ou da empresa promotora pode-se resumir como o de
de inter-relação, aceleração e deslocalização por vezes reduzida e resumida sem
quem desenha a embalagem, quando o interior, esse é mais uma fotocópia já
cuidado em expressões como “homogeneizzação da cultura” ou cultura global”.
vista em tantos outros projectos. Talvez possa ser verdade que não há muito
(Augé, 1992 : 40)
espaço à invenção no que diz respeito às conhecidas tipologias T1, T2, T3, T4, etc, mas também é verdade que para quem os vai habitar, a margem de mano-
Considera-se portanto frágil, erróneo quiçá, enquanto postura projectual, im-
bra para contornar essa (dogmática) situação é pouca ou nula. A integração
por casas com tipologias standard e estilos de vida de acordo com as mesmas.
destas estruturas na malha urbana é normalmente inexistente, assim como as
A tendência é a de que o habitat careça de si mesmo, ou da casa carecer de
infra-estruturas necessárias ausentes.
lugar.
36. Bauhaus que significa literalmente “casa estatal de construção”
A influência do funcionalismo datado da Bauhaus repercute-se ainda hoje na 35
metodologia da produção de habitação, em que um dos objectivos primeiros da escola alemã, simbolicamente patente no nome, era o da casa reprodutível. Walter Gropius, ex-director da Bauhaus, percursor do funcionalismo e opositor ao individualismo na arte, chegou mesmo a criticar Óscar Niemeyer aquando da 2ª Bienal de São Paulo, em 1953/54, considerando que a sua arquitectura era “bonita” mas não se podia multiplicar.37 Ao mesmo tempo que a casa para todos deve ser uma realidade, também é
37. Gropius para Niemeyer -“A sua casa é bonita, mas não é multiplicável”. Nos seus escritos, Niemeyer comentou mais tarde o ocorrido: “Como pode alguém dizer tanta burrice com ar de seriedade? Como pode ser multiplicável uma casa que se adapta tão bem ao terreno?” in REPORT on Brazil, The Architectural Review, Londres, nº 694, Outubro 1954, pp. 234-250.
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De salientar também que a produção massiva de habitação, é intrinsecamente ineconómica como social e ecologicamente destrutiva, como é sabido “(...) os blocos de escala monstruosa criaram as cidades mais segregárias que o mundo conheceu (...)” (Turner, 1976 : 46)– situação problemática que se assume preo39. Como é exemplo o projecto modernista em St. Louis - EUA, Pruitt-Igoe, que recebeu prémios mas que pouco depois da sua construção, devido à extrema pobreza das populações, crime e segregação relacionados, teve de ser demolido.
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cupante na cidade contemporânea.39 Conjuntos residenciais frutos da enunciada standardização, de uma: “(...) ‘modelação’, quer dizer de uma relativa esterilização de inovação e da criatividade, mas simultaneamente de um pôr em contradição o indivíduo ele
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mesmo: a oferta radical de segurança e de simplificação de escolhas é de longe menos aliciante da que intervém num contexto geral de grande liberdade e de auto-construção de percursos e lugares sociais; essa modelação pode tornar-se coerciva e geradora de angústia se não houver mais do que isso.” (Bourdin, 2005 : 230)
*
Sintetizando: os actores da informalidade, contra todas as dificuldades e probabilidades, conseguem atingir para si mesmos algo que os governos ou outro tipo de instituições relacionados não lhes podem providenciar. Além do mais, a complexidade que as formas de residência condensam bem como os vários usos estão directamente de acordo com as necessidades das populações que aí vivem. O método de produção de alojamento assim como a estrutura social que está subjacente à informalidade permite, porque essencial, estabelecer relações bastante profundas entre a comunidade e que progressivamente conferem aos espaços desenvolvidos qualidades (espaços identitários, relacionais, e quase históricos) que o mundo oficial da provisão de alojamento parece deixar cair nos comummente enunciados não-lugares. Porém, esta situação revela-se controversa, já que é causa e consequência de muitos outros factores obscuros inerentes à sua condição de produção Mais uma vez é de extrema importância frisar que os que vivem nos bairros de lata não o fazem por prazer mas por necessidade, porém, tal não representa uma barreira imediata à realização pessoal dos mesmos. Todavia, há que referir que a auto-construção, demasiado enraízada em contextos de pobreza, se mostra um obstáculo quando projectos de integração são levados a cabo. Por vezes é essa circunstância, manifestada por exemplo na ocupação de espaços públicos, que dificulta os processo de regularização e integração do bairro de lata no resto da cidade. Ainda assim a variedade de abordagens que o fenómeno da habitação informal apresenta, sobretudo no que toca à auto-construção (e o uso de edifícos em desuso no caso dos ‘ocupas’), mostra que as possibilidades de adaptação ao mundo dito formal - em crise, são uma realidade a ponderar, mas sem esquecer o papel fundamental da relação orgânica entre os edifícios e o lugar, a flexibilidade implícita dos espaços para que possam acomodar várias funções, e acima de tudo, ter em mente as constantes alterações nas necessidades dos usuários. “A individuação crescente necessita uma evolução da concepção do alojamento para melhor permitir uma a vida individual e em família.” (Ascher, 1995 : 258) Os exemplos estão aí. Fig.27 - 34 Demolição de Pruitt-Igoe, St. Louis (EUA) fotogramas do filme Koyaniskatsy
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estética versus sustentabilidade
“Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.” Artigo 19.º Declaração Universal dos Direitos do Homem
Tanto estética como sustentabilidade apresentam-se como dois termos raramente interligados, porém, a sua relação existe ainda que de forma não imediata. Ambos estão presentes no dia-a-dia, seja na insistente publicidade - frequentemente demagógica, seja pela constatação individual de certas questões que os abarcam na sua amplitude de derivações e apresentação. A sustentabilidade ambiental é sem dúvida um imperativo para a continuidade do planeta e das inúmeras (cada vez menos) espécies - inclusive a do ser humano. Simultaneamente, a sustentabilidade social é fundamental para que a concretização da primeira - ambiental, seja possível. O facto de haver espaço a uma coesão social - e portanto sustentável, determina as relações e consequente harmonia entre a multplicidade de grupos, comunidades, indivíduos, nas suas formas e modos de expressão, e dos mesmos dentro do próprio planeta e respectivos ecossistemas. Esta sustentabilidade a nível social e ambiental passa Fig.35 Casa na pradaria Zulu Região do Drakensberg, fronteira com o Lesotho, África do Sul
inevitavelmente por uma aceitação e harmonia com o próximo nas suas múltiplas manifestações e nos vários campos que essas podem tomar significado.
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Esta polifonia que pode ocorrer, numa imensa panóplia de suportes e/ou mo-
- num tom que remete a arquitectura e a vida à pura matemática, afastada da
dos, contém em si princípios, que ainda que aparentemente incompreensíveis,
realidade portanto.
encerram uma determinada razão e/ou lógica. Isto é, o espaço à livre expressão
Estas posições baseavam-se frequentemente no valor material e não tanto em
do extenso mosaico sócio-cultural, que implica a tolerância e liberdade para tal,
predicados de outra ordem. O material mais caro ou mais raro estava conota-
é um factor determinante na estabilidade social. A partir do momento em que
do com essa noção de beleza. Expressões surgidas na época do Renascimento
essa realidade ganha forma, ao nível da expressão indivual e colectiva, também
como ouro sobre azul explicitam bem essa relação, o ouro, o metal mais precio-
a possibidade de novos caminhos aumentam. A estética, enquanto forma de
so, e o azul, o pigmento mais raro. O demais, facilmente atingível não era belo
expressão e construção social - e ao nível da arquitectura, quando livre, ma-
e portanto “pouco estético”. A par deste exemplo, as correntes arquitectónicas
terializa-se em metamorfoses inesperadas, e as mesmas podem constituir, ou
ao longo do tempo reflectiram essa filosofia faustosa. Não só reflectiram como
indicar, outros trilhos nesse e noutros campos do saber, contribuindo paralela-
continuam patentes: veja-se, entre outros, o Guggenheim de Bilbao (de Frank
mente para um ecletismo fruto da vastidão de intervenientes do processo.
Gehry - 1998) com as suas placas de titânio, material de elevado custo e mani-
O bairro de lata, com todas as dificuldades e problemas que encerra, repre-
pulação. Aparte da sua forma e materialidade, é um museu que dentro desse
senta um bastião ao nível da criatividade, e dentro de certos limites e condi-
mesmo âmbito nada acrescenta. A beleza, neste caso, resume-se exclusivamen-
cionantes, da liberdade de expressão (sobretudo nas formas do habitar), bem
te a um tipo de ostentação, superficial portanto.
como em parte da sustentabilidade (leia-se coesão, por vezes imposta) social e
Não atendendo à especificidade dessa mesma construção social e cultural da
ambiental.
estética, a arquitectura aliadas às outras formas de expressão desligou-se progressiva, autisticamente da realidade da maioria. A História - ficção do passado, falha ao não explicar esse processo. Falha, crê-se em parte intencionalmente devido ao seu método de produção, e falha também porque o que nos chega
*
são as construções robustas, perenes, alheadas ao inexorável tempo, e reflectem apenas uma dada manifestação do poder vigente - a minoria. (Também exem“Para alguns espíritos mais curiosos e viciados, os prazeres da fealdade precedem
plo disso é o facto de que quem ganhava as batalhas era quem as documentava
de um sentimento ainda mais misterioso que a ânsia do desconhecido e o gosto
e podendo assim manipular a informação). Os momentos de austeridade ou de faustosidade petrificaram-se em construções elaboradas e complexas ou de
pelo horrível. É o sentimento cujo gérmen em certo modo leva consigo cada um de nós, que faz com que os poetas acudam aos anfiteatros anatómicos ou às clínicas, e as mulheres às execuções públicas.” Baudelaire
40
40. Baudelaire, Charles, Máximas consoladoras sobre o amor, in O prazer da fealdade, 1860-1868
Ao longo da história da humanidade a estética - ou o gosto, foi fruto (prévio aos seus pensadores) de determinado contexto em que se desenvolveu. Os cânones evoluíram com as sociedades porque produto destas, e o feio ou o belo sempre estiveram conotados com a sua respectiva construção social - que atrás do julgamento estético, que esconde ou arrasta juízos éticos e morais, levanta ao mesmo tempo certas questões em que o seu fundamento é pouco claro.
42. “Espírito do tempo” - do alemão zeitgeist - é um termo usado para descrever a ambiência e a moral de uma era a nível político, social, intelectual, cultural e ético, e é de uma relevância extrema para compreender o contexto de determinado momento histórico e da respectiva estética e afins. O termo foi cunhado primeiramente por Hegel
simplicidade extrema. O “espírito do tempo”42 foi cunhado na pedra, no papel e
veja-se Hegel, Friedrich, Lectures on the Philosophy of History, 1899
das a materiais ditos menos nobres e normalmente de carácter efémero. Este
O belo era um atributo das classes mais abastadas, já o feio foi constantemente atribuído às classes desfavorecidas. O que os pobres - Feios, Porcos e Maus,
41
produziam, sempre foi desconsiderado. (Não se pretende com isto afirmar que
nos demais suportes disponíveis (documentos, pintura, escultura...), por quem teve a oportunidade de lhes aceder/encomendar. No lado oposto - e com oposto não se pretende conotar com feio, o lado das classes sem “o dom da palavra”, em que se encontram construções, muitas de arquitectura-sem-arquitecto, ou de arquitectos mais anónimos que outros, e que usavam soluções simples e eficazes (tendo em vista o seu objectivo) aliagrupo e respectivas manifestações, deixados para segundo plano, figuram nos livros e na História ainda que frequentemente despercebidos, sendo-lhes comummente atribuídos juízos de valor estéticos, morais e éticos de segunda or-
41. Alusão ao filme de Ettore Scola - Brutti, Sporchi e Cattivi, de 1977
dem e longe de um relato correctamente fundamentado.
todos os pobres são criminosos ou párias, nem tampouco bons ou honestos, *
pois, como no resto da sociedade é possível encontrar todos os tipos de conduta.) Os padrões de beleza seguiram juízos de valor atribuídos pelos grupos dominantes, muitas vezes vazios de significado lógico, explicados “por si sós” – dog-
Fugindo à mera dicotomia entre o feio e o belo, Edmund Burke, pensador,
máticos, ou através de análises geométricas simplistas (simetria, proporção,...)
do séc. XVIII, introduziu o conceito de “sublime” para descrever algo mais. O
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sublime estaria relacionado sobretudo com acontecimentos naturais em detri-
consequências. Em que a riqueza e a pobreza se estabeleceram como desigual-
mento dos artísticos. Burke sobre o sublime:
dades sociais profundas. É de constatar que as oscilações de gosto foram constantes e sempre que
“Tudo o que possa suscitar ideia de dor e de perigo, isto é, tudo o que é em certo modo terrível, ou se refere a objectos terríveis, ou actua de forma análoga ao terror é uma fonte do sublime, isto é, produz a emoção mais forte que a alma é capaz de experimentar.”
43
houve uma inovação ou mudança de estética essa foi largamente contestada.
43. Burke, Edmund, excerto incluído na sua Pesquisa filosófica sobre a origem da ideia do sublime e do belo, in Inquérito sobre o belo e sobre o sublime, 1757
Veja-se por exemplo a Torre Eiffel que se veio a tornar o ícone de Paris e de França mais reproduzido no mundo. A controvérsia gerada aquando da sua construção em 1889, acusando-a de feia e que destoava do resto da cidade, foi contrariada mais tarde com a celebração da arquitectura do ferro e do vidro -
O sublime toma forma na destruição, prospera na obscuridade, evoca ideias de
impondo-se como referência nos anos seguintes à Revolução Industrial (séc.
potência e de um tipo de privação das quais são exemplos o vazio, a solidão e
XVIII-XX).
o silêncio. No sublime predomina o não finito, a dificuldade, o caos, ainda que
Entende-se também que as oscilações de gosto não se prendiam apenas com
este terror possa ser agradável quando nos toca demasiado perto.
a arte ou literatura mas também com o viver e planear as cidades, e tome-se o
Ante a redutora polaridade feio versus belo, e entrando na linha de Burke, por-
Movimento Moderno como exemplo.
que não reflectir os aglomerados informais nesse patamar - do sublime. Ques-
A estética dos alvores do séc. XX, considerada por muitos como atroz foi ce-
tiona-se se não serão estes predicados verificáveis nos bairros de lata? Porque
lebrada por outros na sua pujança. E a tal “estética industrial” permanece bem
não considerar os mesmos como sublimes? Não somente no que toca à sua
viva até hoje, embora sofrendo transformações e/ou aperfeiçoando a sua racio-
imagem mas às suas extremas condições de produção? Que emoções acossam
nalidade e em parte o seu estado bruto e cru.
quando nos chegam imagens destes conjuntos, ou quando contemplados de
Com isto pretende-se esclarecer que o feio ou o belo enquanto gosto são relati-
perto?
vos e umbilicalmente ligados à ditadura do zeitgeist, que partem de uma cons-
Um misto de aversão, de medo e de curiosidade. A realidade destes assenta-
trução social e temporal e que nem tudo o que nos chega, porque previamente
mentos é dura, e é necessário um certo cuidado no que toca a celebrá-las. To-
tratado, é tão linear ou literal.
davia o objectivo é outro, o paralelismo é usado como um questionar e um analisar a semelhança, tentando evitar juízos definitivos tão abundantes na ar-
O processo de transformação da estética e da sociedade nos últimos dois sécu-
quitectura. Não mais feio ou belo, talvez sublime, ou de catalogação aberta.
los foi exponencial e abordado por diversos autores. A Revolução Industrial, duas guerras mundiais, a reconstrução das cidades; a força do Movimento Moderno, do Pós-Moderno (...) e a consequente influência no planeamento urbano e na arquitectura. Estes e outros acontecimentos fizeram estilhaçar to-
*
dos os cânones. As “épocas” passaram a “movimentos” ou “correntes”, e mais recentemente a constelações de “tendências”. Tendências, muitas baseadas no espectáculo e no mero deleite, e por esse motivo assolados agora pela crise - de
Para o comum dos mortais, os bairros de lata continuam a ser indesejados,
paradigmas, de estética, de valores.
temidos e feios. Carl Gustav Jung afirma que “(...) o feio hoje é sinal de grandes transformações amanhã”. Isto significa que o que no futuro será apreciado 44
como grande arte poderá parecer hoje desagradável, e que o gosto vai por detrás da aparição do novo. E o novo não implica sempre uma ruptura total com
44. cf. Jung, Carl Gustav, The Spirit of Man in Art and Literature, ensaio sobre Ulisses de James Joyce, Routledge, London, 1932, p. 133
Curisoso é o facto de apesar do vasto leque de transformações registadas, a construção e estruturação da estética enquanto disciplina, não acompanhou siginificativamente a mudança.
o pré-existente, regista-se muitas vezes como um contínuo, compreendem-se re-apropriações que culminam com uma outra tendência. (De notar que os *
bairros de lata não são um fenómeno recente). Esta ideia, de que o feio precede uma eventual futura corrente estética, é válida em qualquer época, ainda que pareça especialmente adequada para caracterizar as obras realizadas pelos movimentos da chamada vanguarda histórica dos
“Aprender da paisagem existente é um modo de ser revolucionário para um
primeiros anos do séc. XX. Foi por essa altura, tempo da Revolução Industrial,
arquitecto.” (Venturi, 1972 : 3)
que o mundo sofreu maiores transformações ideológicas, sociais, estéticas, É importante insistir no facto de que a estética é produto de um determina-
tecnológicas - o prelúdio da sociedade contemporânea, com as suas causas e
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Fig.36 Igloo, Pólo Norte
Fig.38 Palhotas em África
Fig.37 Casas de granito em Monsanto, Portugal
Fig.39 “Construções” em Mumbai, Índia
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do contexto, e esta enquanto disciplina surge apenas da teorização do mesmo
46. Ensaio originalmente publicado em Francês na revista do Instituto de Investigação Social Zeitschrift für Sozialforschung, em 1936. Benjamim aborda o advento do cinema e da fotografia, enquanto formas de arte reprodutíveis, poderem ser vistos em vários locais, acessíveis a todos, retirando a “aura” elitista.
(embora contemporaneamente, por vezes a teoria surja antes da prática). Imagine-se um igloo no Pólo Norte, construído com gelo, numa paisagem idêntica. Observe-se uma casa de adobe e palha em África, num contexto desértico onde a areia se perde de vista. Sem ir mais longe: procure-se uma igreja no norte de Portugal, construída com xisto, camuflada no relevo de montanhas - xistosas; lembre-se Monsanto, vila da Beira Interior - aldeia e monte são um
grafia no seu ensaio A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica.46 A democratização da arte a que se assistiu criou bastantes confusões no que toca à discussão do feio e do belo, do que tem valor artístico e o que não, ao mesmo tempo que estetizou muita produção cultural que antes, simplesmente não era alvo de qualquer juízo estético; sem dúvida importante pois favoreceu um certo olhar para a sociedade, representando-a e interrogando-a. Ainda que muitas vezes desligada da intervenção social, política ou ética, essa
mesmo indissociável, em que o construído e o natural é uno. Descubra-se um
estética pop usa inúmeras imagens da pobreza, da guerra, da fome, com ins-
bairro de lata numa cidade...
tintos relacionados puramente com o movimento artístico. Procurando sobretudo o impacto da imagem em detrimento do seu conteúdo mais profundo.
Estes exemplos não explicitam nenhuma corrente estética, antes a relação entre
Talvez se possa falar de uma estética trash-chic como provocação e invocando
imagética e materialidade de um determinado lugar/região e o seu construído.
o caos, o sujo, a desorganização, ou a deconstrução como mote (o próprio Le
Uma relação ao nível da cultura entre o local e o tradicional. São comummente
Corbusier quando falava das favelas abordava-as com um olhar meramente es-
a resposta a uma escassez que necessitou ser gerida.
tético). Já outros a usavam aliando as duas possíveis vertentes, por exemplo
A verdade é que a escassez se manifesta uma boa aliada na concepção de novas
Guernica (1937) de Picasso, que combinava arte e manifesto, e que como em
técnicas construtivas, “novas” materialidades e por consequência, hipotetica-
outros trabalhos seus trouxe para a pintura ocidental temas e inspirações africanas antes ignorados.
mente, novas estéticas. 47. veja-se Ventura, Zuenir, A Cidade Partida, Companhia das Letras, Rio de Janeiro, 1995
A arquitectura portuguesa é disso um bom exemplo, seja na arquitectura vernacular, seja na contemporânea. A gestão dessa condicionante fez aperfeiçoar o projectar o espaço, e em vez da arquitectura faustosa, encontrou-se a arqui-
Com Zuenir Ventura e o seu livro A Cidade Partida47 em que aborda o processo de desenvolvimento do Rio de Janeiro e as suas favelas e tensões relacionadas, traz para a estética da literatura a denúncia social e política da exclusão
tectura da poesia, ou a arquitectura dos valores essenciais. A escassez perdeu o
e da opressão. A par deste último exemplo e da enunciada Guernica junta-se
seu sentido no momento da concretização.
outra corrente artística pertinente, a da Arte Povera. Este movimento italiano
Contudo, parece que o progressivo urbanizar do mundo, paradoxalmente,
dos anos sessenta e setenta é de relevância extrema pelo seu método e pelas
ofuscou certas questões relacionadas com o acima mencionado.
questões que coloca. Materiais inúteis e precários, que podem mudar as suas características ao longo do tempo (areia, detritos, pedras, comida...) e que po-
É por isso importante, e seguindo a linha de raciocínio, colocar várias pergun-
dem possuir qualidades estéticas inesperadas. De referir também o valor de
tas: que estética/imagética invoca uma cidade dos nossos dias? Que materiais
uso dos ditos materiais na economia capitalista contemporânea que põem em
pressupõe a selva de betão, fábrica de detritos, palco de fluxos,...? Será que os
interrogação.
bairros de lata não são produto da materialidade que a cidade contém?...
Ainda relacionado com a Pop Art: Andy Warhol fazia apelo à reciclagem esté-
E que portanto se constroem e apresentam de acordo com a paisagem que lhes
tica da sobra (porém apenas para conseguir determinado impacto). Esta reci-
serve de suporte?
clagem com duplo sentido: que descontextualizou a arte, que introduziu novas possibilidades, abrindo um leque antes extremamente confinado; e que de facto utilizava materiais menosprezados, reciclados (a lata de sopa Campbell, de Coca-Cola, fotografias iconográficas com tons alterados...). E a Arte Povera
*
que usava o descartado como arte e manifesto. Em suma, duas possíveis vertentes: a imagem puramente estética como provocação, e a arte como manifesto.
“Sempre gostei de trabalhar com sobras. Sempre acreditei que as coisas desprezadas e que todos sabem que não valem nada podem ser potencialmente divertidas. É um trabalho de reciclagem. (...)” Warhol
45
45. Warhol, Andy, The philosophy of Andy Warhol: from A to B and back again, Harcourt Brace Jovanovich, 1977, p.142
Todavia parece que no que toca à arquitectura esta filosofia da reciclagem, da apropriação de materiais tidos como inúteis, dos modos de emprego dos mesmos, com carácter interventivo ou meramente estético, não vingou legal-
A Pop Art veio dessacralizar a arte, deslocou-a dos salões e retirou-lhe a “aura”
mente. A “arquitectura”, produto dessa apropriação do descartado, e neste
- a que Walter Benjamim aludira previamente a propósito do cinema e da foto-
caso sem considerações estéticas ou teor de manifesto, é visível nos bairros de
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lata - construídos a partir de materiais que a maioria da sociedade considerou
mover o dito sustentável. O cínico “amor pelo verde”, como Alain Roger o co-
desperdício. Este tipo de produção não reflecte apenas a sua condição econó-
loca, é algo complexo e ao qual se deve tomar uma atenção redobrada. Álvaro
mica (frequentemente de pobreza extrema) mas outras de diversa ordem. Na
Domingues ironiza em relação ao conceito de verde e de sustentável:
sua fase primitiva, e porque no processo de ocupação ilegal de um determinado terreno é importante que as casas sejam de aparência efémera; são usados pe-
“(...) para tudo se produzem respostas: os empreendimentos são ‘sustentáveis e
daços soltos de madeira, tapumes descartados, folhas de metal esquecidos... os
enquadrados na paisagem’ mesmo que a citação da natureza se reduza a um rel-
materiais que a cidade produz e contém (consequência primeira do excesso, da
vado monótono (...) Quer isto dizer que é o próprio mal estar a propósito da natu-
overdose consumista), e que, alheadamente, ninguém quer considerar como
reza e dos valores ambientais, que acaba por, transformando-se simplesmente em
sério – como habitação de verdade para gente de verdade. Tal é considerado
defesa do verde, atropelar os seus próprios pressupostos”. (Domingues, 2007)
uma oportunidade e favorece a ocupação gradual, devido à falta de reconhecimento de tais materiais e construções enquanto casas.
Além do mais, hoje em dia é difícil encontrar uma paisagem dita natural, e ain-
As residências dos actores destes bairros/cidades são erguidas em lotes abs-
da que o seja terá a humanização por detrás da sua (re)construção. Parece que
tractos e feitos à “imagem da Cidade” - a outra, a que não lhes pertence.
já todas as paisagens foram colonizadas pelo homem. Querendo uma acção efectiva, há muitas questões inerentes ao termo sustentá-
*
vel que são da máxima importância esclarecer. Assume-se fundamental perceber como funcionam os ecossistemas assim como a produção e deslocalização dos mesmos, é essencial articulá-los com
Nos dias que correm, e porque a crise global é também uma crise ambiental,
o quotidiano de forma adequada e lógica. Assim, a sustentabilidade é e deve
os termos “sustentável”, “verde”, “ecológico” e os demais sinónimos estão na ri-
ser mais do que o rectângulo esverdeado à porta de casa e ao lado do carro, e
balta. Crise ambiental derivada da exploração excessiva de recursos, derivada
pensar-se acima das etiquetas verdes ou rústicas.
da quantidade de lixo produzido, e em que a construção, por sinal, é um dos
A estética do discurso politicamente correcto da sustentabilidade apresenta
sectores mais poluentes.
frequentemente posições e representações puramente naif sem qualquer espes-
Contudo, a perspectiva, que se assume positiva e urgente, camufla o cerne da
sura sociológica ou científica. A articulação entre meio ambiente e construção
questão. A sustentabilidade tornou-se progressivamente um termo cliché e en-
cultural/social do mesmo merece a maior atenção, de forma a que seja analisa-
ganoso - produtos biológicos (os mirtilos que vêm da Austrália, que por mais
da e baseada em factos e premissas ajustadas ao respectivo contexto de inter-
biológicos que sejam produzem uma incrível poluição pelo simples transporte
venção bem como adequado ao tempo presente.
desde os antípodas), casas verdes (em que a maioria são “cogumelos” num lote verde, leia-se com relva e uma ou outra árvore - mais verde que natural), energias verdes (como o biodíesel, que para que seja hipoteticamente amigo do
*
ambiente destrói-se parte da Amazónia para plantar os cereais do qual deriva, e que, consequentemente, deixa parte considerável da população mundial sem alimento). O exemplo mais caricato desta situação são sem dúvida os habitantes dos Emirados Árabes Unidos, que ironicamente vão no seu SUV(Sport
Utility Vehicle) comprar lâmpadas de baixo consumo.
46
46. Pearce, Fred, Il verde pallido degli Emirati Arabi, in Internazionale 782, Itália, 13 Fevereiro 2009, p.31
“Os discursos sobre a insustentabilidade do planeta e do aquecimento global, com não pouca parafernália ideológica de acompanhamento, contribuíram para o desenhar um horizonte sórdido e obscuro.” (Ramoneda, 2008)
Isto para que se compreenda o delicado da questão e as várias vertentes que assume no mercado enquanto publicidade ao consumidor no que toca a pro-
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47. O material construtivo que menos consome energia na sua manipulação é a madeira, com cerca de 640kw/tonelada, ainda que considerado quando extraído de florestas sustentavelmente reguladas. O tijolo é o material a seguir à madeira que implica menos gastos energéticos na sua manipulação, quatro vezes mais que a madeira, a seguir betão (5x), plástico (6x), vidro (16x), ferro (24x), alumínio (126x)
Expõem-se outras situações espalhadas pelo mundo, em que o debate em re-
in Buchanan, Peter, Ten Shades of Green: Architecture and the Natural World (2000-2005), Architectural League of NY, Nova Iorque, 2005, p.47
e um bom condutor - o que tornaria a vida impossível nestas paragens.
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lação a estética e sustentabilidade ambiental, e focando os assentamentos informais, vai mais longe que a mera reciclagem/reutilização de materiais ou uso dos disponíveis no local.47 Apresenta-se como uma questão de climatização e de segurança – temas aliás dentro do âmbito da sustentabilidade. O exemplo de Kibera, em Nairobi, é um bairro de lata construído de lama e outros desperdícios. O sol governa o equador e a lama - opaca e densa, bloqueia a luz e o calor, repelindo o frio pela tarde. O metal por sua vez é um mau isolante “(...) A energia usada nos edifícios modernos é três vezes superior em relação àquela de origem tradicional, sendo que os edifícios tradicionais poupam mui-
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to mais energia que os modernos (...)” (Turner, 1976 : 52)
49. Barr, Alfred, Picasso: Fifty years of his art, Routledge, New York, 1946, pp.270-1
Ou de Istambul, Turquia, em que as casas dos assentamentos informais pare-
‘Porque existe algo que me seria muito útil para o guiador da minha bicicleta...’ e então, uma dupla metamorfose seria alcançada.”
cem abraçar o terreno, tentando ser o mínimo possível dentro da intrusão (res-
Picasso49
peito pelo terreno?). As casas são feitas de restos de outras construções, tijolos misturam-se com betão e pedaços de madeira, e as coberturas niveladas em
As criações levadas a cabo com o que se encontra não poderiam ser pensados
betão-leve ajudam contra as temperaturas altas que se fazem sentir no verão,
como objectos de design ou arquitecturas num sentido estrito, uma vez que
mantendo a temperatura no inverno.
apenas objectos que geram matrizes passíveis de reprodução podem ser con-
Quando em 1999, dois sismos atormentaram a região de Istambul, o números
siderados como tal, por outro lado, no que diz respeito ao aspecto projectual,
de mortos e feridos foi considerável, edifícios ruíram por toda a cidade. No meio da destruição pós-sísmica, foi curioso constatar que de entre as poucas construções que sobreviveram, as dos geacekundu estavam nessa pequena 48
lista. As suas construções, por serem pouco invasivas, com estruturas e fun-
encontra-se presente na realização de todos eles: são planeados, mas de forma 48. Geacekundu - termo turco para denominar as construções clandestinas e que significa “construído durante a noite”.
livre, apenas não seguem qualquer espécie de cânone. Nesse sentido, levantam questões relacionadas com novas práticas materiais, que impulsionam outras práticas estéticas, sociais, culturais - as quais dotadas de grande subjectividade
dações em madeira aliadas a materiais pouco robustos, resistiram à catástrofe
ainda que frequentemente dogmatizadas.
natural. “Práticas sociais alternativas gerarão formas de conhecimento alternativas. Não reconhecer estas formas de conhecimento implica deslegitimar as práticas sociais que as sustentam e, nesse sentido, promover a exclusão social dos que as promo-
*
vam.” (Santos, 1994 : 283)
“Os arquitectos preferiram mudar o meio ambiente em vez de realçar o existen-
A existência de uma certa liberdade no ambiente informal, funda de um lado,
te.” (Venturi, 1972 : 3)
novas formas de convivialidade entre pessoas e entre pessoas e objectos e, de outro, torna possível construções de outra natureza, que se abastecem no uni-
A cidade, com as suas pilhas de desperdícios e sucatas, como se sabe engendra
verso do precário e que se mostra urgente investigar.
inúmeros modos de existência. Na realidade, abastece um largo contingente
De um ponto de vista estritamente sociológico, a estética cai em interrogação
de pessoas que habitam as suas ruas. Tanto um artista quanto um sem-abrigo
pelo modo como legitima o belo ou o feio independentemente do que sejam.
podem articular-se em termos de procedimento: ambos encontram nos objec-
Situação que implica uma reconfiguração epistemológica de si mesma, uma
tos um meio de inventar uma complexa linguagem construtiva, a partir dos
vez que o paradigma na qual assenta, até aqui sem qualquer espessura cientí-
seus modos de uso.
fica válida, entra numa necessária transição, seja fruto dos movimentos sociais
A bricolage levada a cabo pelos actores informais, em termos práticos, é um
e das novas identidades que povoam a cidade seja pela questão da sustentabi-
trabalho realizado a partir de materiais diversificados, sem a pré-concepção de
lidade ambiental e social. Em que a sustentabilidade ambiental passa univoca-
um plano e também seguindo procedimentos que em nada se parecem com os
mente por uma concertação social e cultural.
tradicionais processos técnicos. Na difícil situação em que vivem, encontram meios de fazer funcionar uma
Os bairros de lata encerram características que, ainda que disfarçadas e por
autonomia criativa possível, que rebate as adversidades que supostamente co-
necessidade, podem colocá-los na vanguarda contemporânea da estética e da
locariam em perigo a sua potência de invenção. Dialogam intensamente com
sustentabilidade. Apresentam uma possibilidade que se ajusta ao presente –
os artefactos com que na cidade se cruzam, indagando-os de forma a atribuir
sendo que essa estética eventual, que para quem aí vive não se prende com
funções além das que já têm.
questões de gosto ou imagem, será a mais honesta, viável e crua, de acordo com a crise actual do mundo contemporâneo.
“Lembras-te daquela cabeça de touro que expus recentemente? Do guiador e do
De salientar também que a sua produção, porque registada no presente, é con-
assento da bicicleta criei uma cabeça de touro e que todos a reconhecem como
temporânea à arquitectura do espectáculo.
tal. Assim a metamorfose estava completa; e agora gostava que outra metamorfo-
“É-lhe contemporânea, mas subordinada.” (Santos, 1994 : 285)
se fosse completada na direcção oposta. Supõe que a minha cabeça de touro é
É curioso verificar que estes bairros/cidades seguem, embora involuntaria-
atirada para um monte de lixo. Provavelmente um dia um amigo aparecerá e dirá:
mente e na maioria dos casos contra a sua vontade, uma tendência que deveria
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ser o exemplo. Dos vários pressupostos da sustentabilidade, a reciclagem e o uso do que existe e o respeito pelo lugar (evitando gastos energéticos a nível de transporte, de mão-de-obra, a contextualização da intervenção, adaptação à topografia, etc), figuram nessa lista. Neste ponto os assentamentos informais enquanto materialidade mostramse o exemplo perfeito de uma solução eficaz a um problema crescente no que toca à preservação dos recursos naturais. Além disso é “(...) erróneo pensar que uma casa feita de materiais de custo elevado seja melhor que uma feita de lixo”. (Turner, 1976 : 59) De referir que a arte, nos seus vários moldes (fotografia, pintura, escultura, arquitectura, cinema, literatura...), e sob uma perspectiva estético-sustentável, quando usada na estetização das desigualdades sociais cria um bom clima de relação entre o discurso/representação puramente estéticos e a pertinência sociológica da análise da exclusão, da pobreza, da desigualdade, da degradação ambiental, e como aí se misturam facilmente julgamentos éticos, morais, fracturas sociais, etc. A arte transforma-se assim numa boa arma de arremesso (como a música dita de intervenção para a acção política) e dá força a uma certa “arquitectura de intervenção” nos vários campos em tensão. A ilegalidade, ou alegalidade é um aspecto base nas várias vertentes que essas manifestações podem assumir. A ilegalidade é por si só uma forma de contestação na “ordem subversiva” daí conquistada, voluntária ou não. Simultaneamente que o mencionado possa ser verdade, é essencial prestar atenção redobrada ao facto de que o “(...) problema deste processo de estetização é o conteúdo político e social se poder subtrair, absorver e negar.” (Wigley, 2001 : 79) A estética “sublimada” aliada às especificidades culturais/sociais, aliada à gestão da escassez, aliada à sustentabilidade, à intervenção. Para que se possa atribuir um significado mais profundo ao lugar-comum mais é menos.
“(...) As cidades têm uma função determinante na transformação dos modos de vida,da produção, do consumo e da forma de distribuição do espaço (...) a cidade é a unidade na qual os problemas podem ser devidamente resolvidos de maneira integrada, holística e sustentável (...) a sustentabilidade não é nem um sonho nem uma situação imutável, senão um processo criativo local (...)” Fig.40-41 intervenção artística de JR Morro da Providência, Rio de Janeiro (Brasil)
Carta das cidades europeias para a sustentabilidade “Carta de Aalborg” 1ª Conferência Europeia sobre cidades sustentáveis (Aalborg), 1994
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Reflexão Sobre o Bairro 6 De Maio
(O texto que se segue surge da observação e contacto pessoal com o Bairro 6 de Maio, no período de 28 de Agosto a 11 de Setembro de 2009. Deve ser encarado como um continuação do Capítulo I e complemento à abordagem do presente capítulo, tendo como suporte o documentário em anexo. A figura que narra a história é Nhô Pedro (Pedro Sanches) de 78 anos de idade, em Portugal há 38, a viver no bairro praticamente desde a sua fundação, A introdução no bairro só foi possível com a colaboração da Dr.ª Isabel Cadêncio, coordenadora do projecto de âmbito social Anos Ki Ta Manda, inserido no Programa Escolhas - patrocinado pela União Europeia, Ministério da Educação entre outros.)
O que começou por ser uma mata, foi mais tarde uma lixeira, hoje é um bairro ilegal às portas de Lisboa. É o Bairro 6 de Maio, composto maioritariamente por nativos africanos – das ex-colónias de expressão portuguesa, e respectivos descendentes, que imigraram para Portugal à procura de melhores condições de vida. Pioneiros na ocupação de terrenos sem interesse económico. Ao longo do tempo, esse exíguo pedaço de terreno tornou-se uma colmeia de barracas, hoje habitação para cerca de 3000 pessoas, algumas são já “casas”, outras, e apenas formalmente conotadas, virão a sê-lo – contudo, essa, a “casa”, já o é há muito. Primeiro madeira, depois tijolo. Como Nhô Pedro afirma o processo - “madeira por fora e tijolo por dentro”. O sub-reptício método da transição entre o efémero e o consolidado. Escondendo a evolução das autoridades para que
Fig.42 Cortina. Fotograma do documentário sobre o 6 de Maio
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a instalação passe despercebida. Posteriormente ocorre a expansão e os melhoramentos com pequenos arranjos, construção da casa de banho, cozinha, mais um quarto, quintal, e assim em diante, de acordo com as possibilidades económicas e sob estritas regras da comunidade. O processo é auto-construtivo, um work-in progress que ainda decorre. As casas sustêm-se umas nas outras, para que o solo seja rentabilizado ao máximo. Os materiais variam de acordo com o que existe, o que se encontra, o que se pode comprar. Umas em tijolo aparente, outras ainda em madeira; térreas, de dois pisos, excepcionalmente três. Normalmente o piso térreo apresentase mais “maduro” que o superior, ainda em fase de acabamento. Há escadas que se cruzam, telhados que se sobrepõem, as cores, muitas, variam do verde, ao azul, ao vermelho. Nas paredes as palavras de ordem misturam-se com
graffiti’s. Não há saneamento básico na maior parte das casas, sendo as fossas sépticas próprias a solução comum a esse problema. Desde o momento em que se penetra no bairro, a sensação é a de que se está noutra latitude, além da questão da distribuição espacial, as práticas culturais são visíveis pelo modo como os habitantes se apropriam dos espaços exteriores. Cozinham e vendem, lavam loiça e roupa, brincam, dançam e descansam, também traficam droga. As actividades variam, mas a cultura africana está bem presente em cada canto. O crioulo mistura-se com o português, o que pode ter duas leituras e que se deixam em aberto: por um lado como forma de manter a identidade, por outro, produto da falta de integração. Na maior parte das ruas não há iluminação (sendo que durante o dia o sol não consegue penetrar em muitos dos cantos do bairro), factor que convida às várias práticas ilícitas. A densidade é enorme e a malha labiríntica. Em certas vielas, é impossível a passagem simultânea de duas pessoas. Mas a desordem – aparente, possui afinal uma ordem bem definida. O espaço é hierarquizado, há partes em que as crianças jogam e correm, as mulheres supervisionam. Os homens dedicam-se a outras tarefas, muitos trabalham fora do bairro. No centro do bairro um espaço aberto, quase uma praça, onde as festas e encontros dentro da comunidade têm lugar. O tráfico de droga existe, aliás bem visível e em dois locais distintos de acordo com o tipo de estupefaciente, longe das crianças. Um dos pontos de venda é numa das entradas principais do bairro, o outro, mais escondido, no coração do mesmo. Todavia, os toxicodependentes não são tolerados. Por um aparente código imposto, não estão “autorizados” a consumir dentro do bairro - compram e saem. Fig.43-45 Panorâmica; viela; e Casa. Fotogramas do documentário sobre o 6 de Maio
Praticamente todos os habitantes se conhecem, e as reuniões para discutir a ordem e o rumo do bairro tiveram lugar quando o bairro ainda se encontrava
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em franca evolução. Actualmente as mesmas já não acontecem, verificando-se apenas quando necessário, todavia o “código” existe. A existência de um forte auto-conhecimento, numa comunidade bastante pequena e fechada propicia outro tipo de controlo - da vigilância colectiva, e que suscita contradições em relação à sua positividade prática. Depois da habitação desenvolveram-se os serviços, actualmente contam-se cafés e restaurantes, mini-mercados e discotecas, cabeleireiro e sapateiro, oficina e “lavandaria”. Também um jardim escola e cantina, no Centro Social 6 de Maio, gerido pelas Irmãs Dominicanas. Uma ludoteca ambulante da Associação dos Jardins Escolas João de Deus. Depois, e como extensão dessa mesma associação, um gabinete de apoio integrado no projecto Anos Ki Ta Manda e dentro do bairro. Enquanto que o Centro Social se dedica quase exclusivamente à caridade, os segundos procuram uma integração efectiva; para tal desenvolvem intercâmbios internacionais de jovens, dinamizam actividades desportivas e culturais, procuram legalizar os habitantes do bairro, criam projectos de formação com vista ao emprego, etc. A pobreza é uma realidade que ambas instituições procuram colmatar com as suas actividades e distribuição alimentar. O tipo de desenvolvimento do Bairro 6 de Maio verifica-se orgânico. Tal é entendível pelo lento processo de crescimento e estabilização, em que “vizinho ajuda” (Nhô Pedro) já que a entre-ajuda entre habitantes é um factor essencial quando pouco ou nada se tem. Esta entre-ajuda nem sempre se verifica. Cada um, com a ajuda do próximo, foi capaz de atingir o que hoje se encontra construído e/ou em construção – habitação. A caracterização e os moldes da mesma são fruto inequívoco da necessidade e técnica de quem se viu obrigado a tal, contudo, essa condicionante revela-se ainda hoje um aspecto de satisfação e realização pessoal. As formas e os materiais são vários, produto de um produto inacabado, misturam-se e trazem à luz inesperadas combinações entre si, quiçá novas possibilidades estéticas. Para quem vive no bairro, são sobretudo qualidades de uso. Os laços dentro da comunidade, e com as comunidades dos bairros ilegais adjacentes, são fortes e celebrados frequentemente em festas comuns. Ao mesmo que se mostram frágeis quando algum tipo de conflito tem lugar - por mínimo que seja. A cultura dessas mesmas comunidades encontra no mundo paralelo – clandestino, a viabilização de manifestações culturais, sociais, étnicas... que fora desse âmbito seriam provavelmente impossíveis. Contudo, constata-se a privação de condições mínimas - inerentes à dignidade humana, códigos de regulação subentendidos que aportam qualidades humanas mas também, e de acordo com a situação, conseguem produzir o pior das suas manifestações. Normalmente, quando os habitantes saem do bairro, é para “fazer asneira”. As
Fig.46-48 Casa; uso do espaço público - brincar e cozinhar. Fotogramas do documentário sobre o 6 de Maio
actividades realizadas quando fora do bairro variam normalmente entre a delinquência e o crime.
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Capítulo III Do informal ao formal
No seguimento da apresentação prévia em relação ao modo de fazer cidade e/ ou arquitectura e na solução de certos problemas relacionados com as crises dentro e fora da disciplina introduzem-se alguns projectos - uma forma de passar da teoria à prática, da arquitectura empírica à dita arquitectura cultivada/ erudita, em que o discurso anteriormente postulado encontra um paralelismo concreto ainda que pontual. A abordagem experimentada é bastante geral, pois não se pretende estudar as intervenções a fundo, apenas levantar o véu sobre a postura subjacente às mesmas. São projectos que têm em comum o âmbito social e urbano, reflexões sobre situações de produção bastante específicas: em que os custos e as áreas são necessariamente reduzidos, em que a integração é um imperativo, e sobretudo onde a adaptabilidade e apropriação por parte dos futuros residentes é essencial. Ainda que sejam apresentados projectos, a escolha recai sobretudo pelo modo de estar e pensar abertamente a arquitectura e o mundo por parte dos autores em questão. As seguintes intervenções são fracções do pensamento dos indivíduos que os criaram, que por sua vez ajudam a compreender as linhas com que foram cosidas as várias trajectórias e abordagens, preocupações e objectivos.
Quinta da Malagueira, Évora, Portugal (1977- ) Álvaro Siza
No pós 25 de Abril e devido à então crise de habitação que assolava o país, foi criado o programa SAAL – Serviço Ambulatório de Apoio Local. Criado em Agosto de 1974 pelo então Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo – Arquitecto Nuno Portas, o programa SAAL visava a construção de habitação para indivíduos que viviam em barracas e/ou em alojamentos degradados ou clandestinos. Porém, dois anos e meio mais tarde, já sob o IV Governo, os projectos do programa foram suspensos, bem como parte do Programa de Habitação Social, à excepção da Malagueira, cuja construção, embora interrompida entre 1978-1980, foi praticamente concluída. Em 1974 a capital do Alto-Alentejo transbordava intra-muros na sequência do êxodo rural e da chegada de repatriados das antigas colónias. Em 1975, com o objectivo de proceder ao ordenamento da periferia urbana de Évora, foram expropriados 27 hectares de uma exploração agrícola latifundiária – a Quinta da Malagueira, situados a menos de um quilómetro dos muros da cidade. O novo Plano de Urbanismo elaborado em Lisboa pela Direcção-Geral do Ordenamento Urbano previa para a extensão ocidental de Évora uma divisão deste território em zonas de elevada, média e baixa densidade habitacional, sendo que a elevada densidade prevista para a Malagueira opor-se-ia à média e baixa densidade de alguns bairros clandestinos já existentes. A partir da definição do local e da temática adoptada, Álvaro Siza foi o arquitecto escolhido para o plano do novo bairro de Évora. A experiência reunida Fig.49 Esquiços - Malagueira, Álvaro Siza
por Siza desde 1975 nos projectos SAAL, sobretudo pelos resultados de um
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trabalho de experimentação em projectos participativos, realizados na cidade
árvores e, também por estabelecer uma ligação com o já existente e clandestino
do Porto (São Vítor, entretanto demolido e que nunca foi terminado, e Bouça,
Bairro de Santa Mónica. Como tal, muitos caminhos existentes, desenhados
parado durante largos anos e terminado apenas em 2007 - e com boa parte dos
ao longo do tempo por quem os percorria foram tidos em conta na intervenção
moradores acima do grupo social inicialmente previsto). A Quinta da Mala-
urbana. “(...) Estes traçados, muito claros, ajudavam a explicar comportamen-
gueira é, assim, o terceiro projecto concebido por Álvaro Siza no quadro das
tos e topografia e indicavam a possibilidade de transformação e das relações.”
iniciativas SAAL.
(Siza, 2000 : 101) A vontade da ligação entre o novo e o pré-existente percebe-se
Em conjunto com a Câmara Municipal, associações de moradores e cooperati-
também pela volumetria média das casas, a alternância de espaços públicos e
vas e o FFH (Fundo Fomento Habitação) os fundos foram disponibilizados e
privados, os percursos aparentemente aleatórios mas fundamentados na prá-
a construção prevista de duas casas-tipo deu lugar, por dinâmica imposta pelo
tica do espaço, e que parecem tanto comuns à auto-construção clandestina de
arquitecto, aos alicerces das primeiras cem casas.
Santa Mónica como à construção arquitectónica de Siza. Além dos percursos
Dos cerca de 1200 fogos construídos, 60% eram para as associações e coopera-
prévios, deu-se a introdução também de um novo percurso com vista à regene-
tivas, 35% para alugar (FFH) e cerca de 5% para privados.
ração espacial e integração urbana dos vários bairros adjacentes, “(...) para que os habitantes [pudessem] sair da clandestinidade” (Siza, 2000 : 103)
A concepção da Malagueira foi guiada por três intenções, que representam sob
A morfologia do bairro e a tipologia da habitação denotam-se estritamente li-
muitos aspectos experimentações: a construção de casas costas com costas ao
gados, já que para conseguir nos 27 Ha da Malagueira uma densidade equiva-
longo de galerias de infra-estruturas (aqueduto); a adaptação de uma grelha
lente às habitações colectivas previstas pelo Plano de Urbanismo, reservando
urbana à topografia local; a tipologia evolutiva das casas, ela própria assente
simultaneamente metade do terreno para um vasto parque público, Siza teve
em inovações técnicas.
de reduzir a dimensão das parcelas (8 por 12m) e a largura das ruas, medindo
O projecto da Malagueira avançou claramente com propostas inovadoras para
as mais estreitas entre 4 a 6 metros apenas. Esta situação aproximou neces-
a época, quer no plano urbano (as galerias de infra-estruturas – o “aqueduto”, a
sariamente a vizinhança pela mão da escala humana do conjunto. Contudo,
dimensão tipológica aberta), quer no plano arquitectónico (casas de desenho
devido a circunstâncias, não consideradas na altura, a circulação pedestre e
minimalista, geométrico e neo-racionalista, contemplando uma evolução poste-
automóvel implicou uma progressiva adaptação dado o aumento do uso do
rior). Queria-se por um lado preservar o território, por outro experimentar no-
carro. Também devido a esta proximidade, pequenos conflitos entre vizinhos
vas soluções urbanas e de habitação, mantendo um acordo entre o tradicional e
são registados de quando em quando.
o erudito. Por essa e outras razões, o desenvolvimento da Malagueira suscitou várias convulsões: quer no âmbito político derivado da mudança do panorama nacional ao nível das políticas da habitação, quer naquele da relação com as populações visadas e da sua participação, quer no desenvolvimento e apropriação contínua do bairro quando comparado ao pretendido inicialmente, quer a nível urbano e habitacional porque produto de um sistema em aberto “Um aspecto que me impressiona muito, na arquitectura e na cidade do nosso tempo, é a pressa em terminar tudo. Esta tensão em relação a uma solução definitiva impede a complementaridade entre as várias escalas, entre o tecido urbano e o monumento, entre o espaço aberto e o construído. Hoje, qualquer intervenção, por mais pequena e fragmentária, obstina-se em dar uma imagem final: assim se explica a dificuldade da inter-penetração entre as várias partes da cidade.” (Siza, 2000 : 91)
Um dos obejctivos de Siza na Malagueira foi a da harmonização dinâmica entre o espaço construído e as formas criadas pela natureza, caracterizando-se Fig.50 Esquiços de casa - Malagueira, Álvaro Siza
por ter em conta os caminhos existentes, os acidentes de relevo, as rochas, as
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No decurso do projecto, e através da participação e negociação entre Siza e os
A ampliação das casas, antecipada por Siza, através da concepção da tipologia
futuros residentes, estabeleceram-se as duas principais tipologias evolutivas:
evolutiva relacionam-se sobretudo com os quartos adicionados a posteriori que
o tipo A, com pátio à frente e o tipo B com pátio atrás, variando do T2 ao T5
são ganhos sobre a área do terraço, ou seja, os quartos T3, T4 e T5 conseguem-
sobre uma mesma parcela de 8 por 12m. (Apenas 9 casas da tipologia B foram
se sobre o terraço do T2.
construídas dado que as preferências recaíram pelo pátio à frente.) Posteriormente outras tipologias surgiram, com parcelas de 6 ou 7m por 12m, contando-
Ao longo do tempo, muitos dos pressupostos não se viram concretizados, ou
se actualmente com trinta e três tipos e subtipos. Sem introduzir a variação
apropriados como o previsto. Por exemplo o “aqueduto”, designado por Siza
da altura do muro do pátio à frente, que multiplica por três as possibilidades
numa referência ao aqueduto de Évora do séc. XVI, foi concebido como uma
de diferenciação das casas. Não há menos de uma centena de desenhos e pla-
galeria técnica, a espinha dorsal da construção costas com costas, formando
nos de fachadas diferentes, sem contar com as modificações mais ou menos
também a infra-estrutura necessária para a distribuição de água, electricidade,
autorizadas realizadas pelos habitantes, que vão desde a construção de uma
telefone e televisão (exceptua-se o gás). Porém, o acesso não era fácil e as ga-
escada exterior ao fechamento de uma varanda, e que aumentam ainda mais
lerias mais altas tiveram mesmo que ser fechadas devido ao tráfico de droga e
a diversidade das casas, tal como é percepcionada pelos mesmos como pelos
assaltos frequentes a casas. (A pobreza intencional da estrutura está relaciona-
visitantes.
da com a sua funcionalidade e o seu simbolismo reflecte a prioridade do investimento em relação às casas.) Em relação às relações sociais fomentadas pela delineação do projecto nem tudo é perfeito, mas o balanço é relativamente positivo. Os habitantes da Malagueira confirmam que são as relações criadas pelo trabalho e pelos filhos que fomentam e aprofundam as relações de vizinhança só possível pela dimensão e proximidade do bairro. Acrescenta-se outro vector, o das trocas derivadas da realização de obras e transformações a partir de uma solidariedade entre habitantes. Obviamente não intencional é a divisão social que se assume na configuração espacial do bairro, sendo a parte norte a mais pobre, e a parte sul, a mais rica. Todavia, a mistura social acontece graças à inter-penetração dos programas privados e públicos, não somente à escala da Malagueira, mas à escala dos seus subconjuntos e, às vezes, mesmo das ruas. Exceptua-se o “enclave” onde vive a comunidade de etnia cigana, o qual se encontra em estado degradado, e os espaços públicos contíguos às suas casas foi ocupado e apropriado. As actividades aí realizadas vão desde o lavar de roupa e loiça, cozinhar, realização de jogos, festas e discussões. Esta situação provocou uma autonomização do território cigano dos demais. Apesar de vários anos decorrerem da sua criação, nenhum estudo foi ainda de-
Fig.51 Esquiços de tipologias - Malagueira, Álvaro Siza
dicado aos habitantes da Malagueira nem aos modos de apropriação das suas
A transformação da construção original, no momento das obras ou posterior-
casas, é por isso difícil validar ou não um projecto que não se reduz às intenções
mente, exprime as mais tangíveis manifestações da apropriação do espaço
de Siza, mas é uma co-produção de um conjunto de actores institucionais e
habitacional por parte dos utilizadores. Ainda assim, as modificações e trans-
técnicos, e da vontade e necessidade dos respectivos ocupantes.
formações introduzidas pelos habitantes ao plano inicial são relativamente re-
A sua abordagem não é reprodutível porque específica de um contexto his-
gulares: escadas exteriores com acesso ao terraço; supressão do espaço trian-
tórico, político e social. É um projecto de múltiplas intenções (os aquedutos,
gular de arrumos localizado na sala de estar; e alargamento da sala de jantar.
as ruas estreitas, as tipologias evolutivas, as inovações técnicas) e simultanea-
Mas como Siza salienta, “qualquer obra deve estar disponível a alterações e
mente muito flexível: em harmonia com a topografia do terreno e tecido pré-
transformações (...)” (2000 : 109)
existente, assim como com as contradições entre o colectivo e o individual, as-
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sentando em tipologias passíveis de variações e evoluções. De qualquer modo, a Malagueira trouxe respostas inovadoras à dicotomia entre modernidade e convenção, entre o público e o privado, entre a pureza doutrinal e negociação com o local, entre o finito e o contínuo. “Só quem pretende leituras finitas e imediatas da cidade, e não sabe ler entre as coisas, acredita que a Malagueira esteja incompleta, com algumas zonas indefinidas ou esquecidas.” (Siza, 2000 : 112) “O que conta é esta densa malha que ultrapassa abundantemente os limites da cultura arquitectónica, da especificidade disciplinar.” (2000 : 115)
Bibliografia (ver outra vez, cota M.p.1.30) MOLTENI, Enrico, Álvaro Siza – Barrio de la Malagueira, Évora, Edicions UPC, Vallés, 1997 FRAMPTON, Kenneth, Álvaro Siza – tutte le opere, Electa Spa, Milão, 2005, pp.162-179
Fig.53-54 Vistas sobre habitação e espaço público - Malagueira, Álvaro Siza
Fig.52 Esquiço vista aérea - Malagueira, Álvaro Siza
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Quinta Monroy, Iquique, Chile (2001) Alejandro Aravena/Elemental
Perante as dificuldades económicas de populações com baixos rendimentos em aceder a habitação, o governo chileno criou o programa Chile Barrio visando a canalização de subsídios públicos para a produção de alojamento. Em 2003, esse mesmo programa de âmbito estatal contratou a equipa Elemental para levar a cabo o projecto da Quinta Monroy, o último assentamento informal de Iquique, uma cidade costeira no norte do país. A intenção era oferecer uma solução ao nível da habitação a aproximadamente 100 famílias que tinham ocupado um terreno de 5000 m2 no agora centro da cidade, uma situação irregular que tinha permanecido inalterável durante três décadas. Não se tratava apenas de construir habitação camarária, mas sobretudo de reconverter o assentamento num bairro plenamente integrado na cidade. Nos anos sessenta, os terrenos que agora estavam ocupados eram utilizados para actividades agrícolas e pastoreio. À medida que a cidade foi crescendo, a parcela foi ocupando um espaço cada vez mais central no núcleo urbano, encontrando-se presentemente junto à principal avenida da cidade. O que inicialmente foi visto como uma ocupação provisória converteu-se num assentamento com subdivisões. Em 1995 iniciou-se a disputa judicial para a regularização da Quinta Monroy, quando as populações exigiram que lhes fosse reconhecido o direito da propriedade que lhes correspondia. A zona em questão viu-se afectada pelos interesses em conflito dos vizinhos, dos herdeiros dos direitos da área, do governo municipal e das organizações e comités oficiais relacionados
Fig.55 Casas em evolução - Quinta Monroy, Elemental/Aravena
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com as questões da habitação. No ano 2000 dá-se início à intervenção do programa governamental Chile Barrio, que adquire os terrenos com a intenção de construir casas de protecção oficial em benefício dos ocupantes originais. A prioridade do projecto dos Elemental era conseguir que as famílias permanecessem no mesmo lugar, considerando a importância da rede de oportunidades que se tinha criado na envolvente: transporte, postos de trabalho, melhor educação pública e equipamentos sanitários quando em comparação com outros bairros camarários periféricos. As condições em que as várias famílias viviam eram difíceis: 60% das casas não tinham luz ou ventilação directa, e não havia água potável nem ligação à respectiva rede; a superfície média das casas era de aproximadamente 30 m2 e na sua maioria construídas com material descartado derivado de embalagens do porto. Além da precária situação registavam-se problemas ligados à delinquência e ao tráfico de drogas, em parte facilitado pelo traçado labiríntico do conjunto. Do ponto de vista económico tratava-se de um grupo relativamente heterogéneo. Ainda que mais de metade da população se enquadrasse como pobre ou indigente, 40% dos lares estavam sobre o limite da pobreza – situação geradora de uma diversidade social importante entre vizinhos. Duas de cada cinco famílias tinham uma mulher à cabeça, das quais mais de metade eram chefes de famílias monoparentais. Com essas mesmas condições, a localização na cidade mostrava-se ainda mais relevante de forma a assegurar a possibilidade de trabalhar e ser dona de casa. A distância ao trabalho e a possibilidade de contar com uma escola ou infantário perto podiam fazer a diferença para que essas famílias superassem (ou não) a sua condição de vulnerabilidade. Após árduas negociações entre as várias partes interessadas e depois de trinta anos da ocupação original, a Quinta Monroy foi desmantelada, tábua por tábua, pelas mesmas famílias que a tinham construído. Assim começou uma nova fase na vida dos vizinhos, quando se foram embora levando consigo todos os materiais e estruturas que conseguiram resgatar das suas casas: pedaços de escadas, painéis de madeira, janelas. Materiais esses que se utilizaram para construir um acampamento provisório para depois se reincorporarem nas novas casas. O percurso de trabalho a desenvolver nas novas casas deveria satisfazer várias circunstâncias específicas: uma tipologia arquitectónica que permitisse gerar alta densidade sem amontoamento, contemplando a ampliação e a autoFig.56 Casas no estado original - Quinta Monroy, Elemental/Aravena
construção dentro do mesmo edifício. O trabalho desenvolvido partiu de duas restrições básicas: em primeiro lugar, a superfície inicial de cada casa devia ser de 36 m2 (para que se mantivesse dentro do orçamento por casa); em segundo lugar, reconhecer a condição progressiva (ou inacabada) da casa, de forma a
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que cada família pudesse planear e construir ampliações de acordo com as suas necessidades e possibilidades. Esta última condição adoptou-se procurando garantir a diversidade e a personalização do programa e da estrutura social no desenho. Numa construção convencional o custo reparte-se em 30% para o grosso da obra e 70% para os acabamentos. Em habitação social, a proporção inverte-se necessariamente: 70% para o grosso da obra e 30% para os acabamentos. Com um reduzido orçamento deveria ser comprado o terreno, urbanizar e construir as casas. Com tão baixo valor investido, a condição de progressividade estava inerente, prevendo uma duplicação posterior da área construída por parte dos respectivos habitantes. Uma condição adicional do programa Chile Bairro era a de que todo o processo deveria implicar a participação da população. De entre as várias tipologias conhecidas nenhuma se mostrou eficiente ou resposta eficaz às condições existentes. As casas isoladas representavam uma tipologia muito ineficiente em termos do uso do solo e pouco apropriada aos crescimentos futuros, implicando a construção de novas estruturas tornando o processo caro e tecnicamente mais complicado. A tipologia de casas em banda (ou geminadas) a duas alturas não permitia colocar todas as famílias no terreno, e a ampliação da estrutura poderia comprometer a ventilação e iluminação das casas adjacentes assim como a privacidade dos seus habitantes. A última alternativa era construir em altura, eficiente em termos de ocupação do solo, mas conflituosa entre vizinhos e complexa em futuras ampliações tendo em conta os recursos disponíveis. Uma vez que as tradicionais tipologias não respondiam às condicionantes necessárias, foi necessário recorrer à inovação. Em síntese, a proposta consistiu num lote de 9x9m para as casas, dispondo de um volume inicial de 6x6m em planta e 2,5m de altura, o qual incluía um quarto de banho, uma cozinha e uma sala/sala de jantar de baixo de uma laje de betão armada. Sobre esta laje distribuíram-se divisões em duplex de 6x6x5m dos quais se entregavam apenas metade, ou seja, uma torre de 3x6x5m com um espaço de dupla altura tipo loft que albergava o mesmo programa que a casa. Ambas propriedades contavam com um acesso directo ao espaço colectivo e o seu horizonte de crescimento foi desenhado para ter até 72 m2 com as respectivas condições de segurança e de habitabilidade. O duplex concebeu-se como um C de materiais sólidos configurados por “poros” de 3 m de largura nos quais se espera a ampliação. A solidez do C procurava providenciar o adequado isolamento acústico e contra incêndios entre
Fig.57 Apropriação da fachada - Quinta Monroy, Elemental/Aravena
as propriedades, assim como ritmar a conformação da frente urbana. O lado aberto do C fez-se de um painel de madeira facilmente removível, para assegu-
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rar que as ampliações sigam a direcção projectada. Tanto as casas como os duplex desenharam-se para que o primeiro crescimento ocorresse dentro dos volumes inicialmente entregues, debaixo da laje no caso da casa e dentro do vazio de dupla altura no caso do apartamento. Num segundo momento, a expansão da casa devia ocorrer sobre os lados do pátio, deixando sempre um vazio central para ventilar, iluminar e permitir circulação. No caso do duplex, a ampliação produzir-se-ia no vazio entre cada torre.
A questão da auto-construção programada e regulada levantada no presente projecto, possível pela configuração espacial desenhada, confirma-a como uma alternativa aos habituais projectos prontos a habitar, vendo as suas potencialidades maximizadas na colaboração entre quem projecta e quem usufrui. A personalização e expansão assim como o processo de desenvolvimento das mesmas cabe unicamente aos respectivos utilizadores, dentro obviamente das linhas de acção previstas. A participação da comunidade no desenvolver do projecto foi fundamental para que tais demandas e necessidades fossem contempladas. Todavia esta experiência, que se mostrou eficaz, só foi possível dado o número relativamente reduzido de intervenientes. É preciso ter em conta que “com um número superior a 20 ou 30 famílias é difícil manter os acordos sociais”, com muita gente no mesmo sítio “é muito difícil manter o espaço colectivo”, que se transforma em “espaço de ninguém”. Em relação às preocupações estéticas - que existem, Aravena nota que a opção dos arquitectos deve ser “(...) trabalhar sobre uma estética neutra, seca, dura, para poder dar alguma regularidade a intervenções individuais que certamente serão muito mais expressivas.” (Aravena, 2009)
Fig.58-60 Projecto original concluído. Interior original. Interior apropriado. Quinta Monroy, Elemental/Aravena
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Mulhouse, França (2005) Lacaton & Vassal
Este projecto composto por 14 habitações unifamiliares faz parte de uma operação que visava a construção de 61 apartamentos, criados por cinco equipas de arquitectos (Jean Nouvel, Poitevin & Raynaud, Lewis+Block, Lacaton & Vassal, Shigeru Ban & De Gastines) num extenso espaço de uma zona residencial em Mulhouse, França. Uma intervenção a cargo de um promotor privado mas de iniciativa estatal. A intervenção por parte da dupla Lacaton & Vassal passou pela criação de uma estrutura básica aliada a uma espécie de envelope - barato e eficiente (uma cápsula de policarbonato), dentro do princípio do loft. Esta opção permitiu logo à partida áreas máximas de utilização com qualidades espaciais contrastantes e de relações complementares. No piso térreo, uma estrutura porticada (pilar/viga) em betão suporta uma plataforma, sobre as quais estruturas tipo estufa hortícola são fixadas – a estrutura em aço galvanizado e as paredes em policarbonato transparente devidamente isoladas. Esta parte superior constitui um “jardim de inverno”, largamente ventilado através da fachada e da cobertura. Um plano horizontal de tela cobre a área de forma a sombrear a estufa. O volume inicial foi dividido em 14 parcelas dispostas transversalmente e em forma de duplex, disposição que permite desfrutar das várias qualidades oferecidas pela diversidade espacial. Numa area total de 2262 m2 (incluindo garagens e “jardins de inverno”) construíram-se dois T5, seis T4, quatro T3 e dois T2, com uma área média de 175 m2, 175 m2 , 128 m2, e 102 m2 respectivamente. O custo total foi de 1,05 M€ netos, aproximadamente 75 000 € netos por casa.
Fig.61 Vista sobre o projecto - Mulhouse, Lacaton&Vassal
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Pelo mesmo preço, com a devida qualidade e consideravelmente maiores que as típicas casas standard.
A escolha da presente obra para análise recai no propósito primeiro da intervenção – habitação de âmbito camarário/social para aluguer. Todavia, torna-se difícil abordar este projecto sem prestar atenção ao percurso desta dupla de arquitectos franceses. Mais importante do que expor ou descrever a sua intervenção, é tentar perceber os motivos de determinadas opções, tendo em vista a compreensão da trajectória e filosofia projectual. Habitualmente os seus projectos não têm muito para descrever, são obras simples que desenvolvem uma abordagem estruturalmente informal e demonstram uma abertura libertadora à natural apropriação dos espaços pelos futuros utilizadores. A arquitectura de Lacaton & Vassal pauta-se por esse carácter aberto, deixando espaço ao habitante (o utilizador) para que se aproprie do espaço e o ocupe de forma ideal ao longo do tempo. Porém, não só da evidente liberdade por parte dos utilizadores vivem as suas obras. Ainda que esse seja um elemento essencial na perspectiva de que nada está acabado, outros elementos surgem. A economia de meios parece ser um dos pontos chaves da sua abordagem, bem como a tecnologia, a paisagem, o ambiente, e até a sub-reptícia intervenção política. O princípio da estufa, com dispositivos tecnológicos apropriados, permite o controlo climático ajudando a que soluções bioclimáticas possam ser desenvolvidas – os níveis de temperatura e humidade são auto-regulados pela tecnologia integrada nos projectos. À semelhança do bairro de lata, os materiais são escolhidos/encontrados e utilizados tendo em conta aquilo que permitem fazer. Isto é, a questão do que o material é ou a sua conotação estética não é relevante, o que é relevante é saber se as características dos mesmos são adequadas aos princípios e objectivos de utilização. A economia é a base dos seus projectos, mas essa não é o principio do menos, da redução, mas o da hierarquia e do mínimo indispensável. Esta forma de pensar, de trabalhar, cria soluções extremamente simples mas eficazes, naturais e por vezes óbvias. A economia de meios é capaz de produzir qualidades essenciais: seja o espaço, as sensações, os usos ou o conforto, e trabalhar em economia de meios faz com que se chegue lá em detrimento do resto. O maior luxo que se augura parece ser o mesmo em qualquer lugar: grandeza espacial. O respeito pela paisagem e pelo lugar é por exemplo bem ilustrado no projecto de Cap Ferret. As árvores encaixam na casa, ou vice-versa, sem agredir nem a paisagem nem o terreno ou elementos naturais existentes. Sem destruir nada, sem subtrair nada, sem pretensões nem artifícios. As suas obras parecem factos da vida, usando meios simples e eficazes, sem ser obstru-
Fig.62 Casa em Cap Ferret - Lacaton&Vassal
tivos, leves, e sem objectivos de ensinar qualquer tipo de lição.
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“Um chão de betão polido é tão bonito como um de mármore. (...) Para nós, ambos são bons, esteticamente falando: usando como tal o mais barato. (...)” (Lacaton & Vassal, 2006 : 124) Esta dupla procura evitar qualquer efeito alheio à função primária do material em si. A predilecção por materiais baratos como os painéis ondulados de policarbonato, alumínio ou madeira, assim como a sua perceptível renúncia aos materiais naturalmente nobres, prende-se com questões de lógica. Lacaton & Vassal libertam o material da sua função narrativa, colocando-o na área da sua performance. O importante não é o significado do material mas o que ele permite. São escolhidos pelas suas qualidades específicas sem outro tipo de conotações. Obviamente que o custo destes materiais influencia na escolha, contudo, não por questões esteticamente moralistas (como no sentido do material pobre ideado pela Arte Povera), nem enquanto crítica à sociedade de consumo (como o caso da estetização do desperdício à boa maneira da Pop Art). O facto de se gastar menos dinheiro no campo da materialidade, permite potenciar outras qualidades de determinado projecto. Como por exemplo proporcionar o dobro do espaço. Neste ponto denota-se uma certa dimensão política, uma vez que vai directamente contra a minimização do espaço como expresso na doutrina do Die Wohnung für das Existenzminimum, (traduzindo à letra: apartamento com o mínimo para a existência, fundado no Segundo Congresso dos CIAM em 1929 em Frankfurt) o qual foi então institucionalizado em vários países nos programas públicos de realojamento no pós II Guerra Mundial. Contrariando a equação: orçamento mínimo=espaço mínimo então lei, igualmente o contrário é verdade: máximo orçamento=máximo espaço, o que Lacaton & Vassal procuram é o mínimo orçamento para o máximo de espaço. Frequentemente, além do programa pretendido, criam espaços sem função aparente mas a qual será explorada pelos futuros residentes no decurso da sua vivência nesse mesmo espaço. A tecnologia é usada na obra destes arquitectos como ready-made, num semelhante processo de détournement, como o exemplo de tornar uma estufa em habitação. Para eles a estufa é a última machine à habiter, com a sua construção inteligente, eficiência no seu comportamento climático, e no valor de economia de produção. Um cruzamento de funções e propósitos. Compreende-se que a vivência de Jean-Philippe Vassal em África terá sido crucial na postura projectual das suas obras: “(...) em África é fácil viver no exterior com um tipo de arquitectura mais ou menos efémera (tenda ou cabana) e que podem ser facilmente alterados” (2006 : 126) já na Europa o clima é diferente e daí ter que haver adaptações, extensões para que se registe essa adaptação. A arquitectura vernacular africana oferece inúmeros exemplos destas adaptações no sentido de proteger na medida do necssário. Materiais naturais (árvores,
Fig.63-64 Casa em Floirac - Latapie House, Lacaton&Vassal
plantas) e produtos industriais (ferro oxidado, contentores, barris de petróleo)
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são usados como materiais de construção. Para os africanos esta combinação não apresenta problemas. Não se preocupam tanto com os materiais, apenas
A ideia deste duo é a de que se pode sempre fazer muito com quase nada. O
usar o disponível e que tal seja adequado a uma determinada situação ou fun-
problema que se afigura e que entorpece este modo de actuar são os bits de
ção. Em relação a África, tudo é possível desde que funcione, não há bons ou
informação, de modos convencionais de fazer, de hábitos, de necessidades e
maus materiais, há materiais que se adaptam melhor a esta ou aquela circuns-
fantasias que são sem dúvida interessantes mas que complicam o trabalho. É
tância.
imperativo que haja uma desformatação dos agora cânones para que haja pro-
Enquanto para uma legião de arquitectos a forma seja o critério de avaliação
gressão da arquitectura. Para tal é necessário levar as ideias à sua conclusão
qualitativa de uma determinada construção para que se inclua na “vanguarda”
lógica, relativizando as coisas e quando necessário desviá-las
da disciplina, para Lacaton & Vassal, compreende-se que a forma é o resultado da espacialidade interna. O desenvolvimento de linguagens e exploração
“(...) para nos sentirmos bem, afinal, é suficiente estar com um amigo próximo à
formais sofisticados parecem ser hoje o ponto essencial no trabalho de muitos
volta de uma mesa com um copo de vinho.” (Lacaton & Vassal, 2006 : 143)
arquitectos, quando no caso deste atelier, a forma é uma consequência do projectar de dentro para fora. “Hoje em dias as fachadas são talvez mais brilhantes ou mais espectaculares, os edifícios mais tortos, as formas mais bizarras, mas basicamente os planos de alguns anos atrás eram mais interessantes, os espaços maiores...” (Lacaton & Vassal, 2006 : 141) Rompendo com as convenções da arquitectura contemporânea, intitulados de
naïve, Lacaton & Vassal prosseguem o seu trabalho sem intuitos de subversão. “A óbvia rejeição de qualquer extravagância formal e o decisivo evitar polémicas ao nível do programa atribuem a este tipo de arquitectura qualidades subversivas, as quais provavelmente esperam ser descobertas, qualidades reminiscentes das pinturas naïves de Henri Rousseau, quem inicialmente não foi levado a sério pelos seus contemporâneos pois estes encaravam o seu trabalho como restrito, preferindo ao invés a lustrosa virtuosidade da pintura de Salão. Foi preciso uma nova geração de pintores (...) que puderam reconhecer que o afastamento estético de Rousseau das convenções da arte oficial do seu tempo abriu as portas a uma nova beleza que apontou o caminho para uma renovação básica na arte e na sociedade sentida no séc.XX. De um modo muito similar, a arquitectura de Lacaton & Vassal pode parecer hoje em dia como naïve para muitos cujos deslumbrados por demasiada arquitectura de Salão e estão cegos perante o radicalismo da simplicidade e a beleza do autoevidente. Mas quando os olhos deslumbrados recuperarem, os contornos do que é importante tornar-se-á visível.” (Ruby, 2006 : 76)
A consciência da temporalidade dos edifícios é outra das suas preocupações. Se este factor for tido em conta, talvez se produzam edifícios mais leves, mais transformáveis, até desmontáveis, envolvendo até o seu desaparecimento, ten-
Fig.65 Casas em Mulhouse - Mulhouse, Lacaton&Vassal
do em mente a questão de que não se está a construir para a eternidade.
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conclusão
O mundo passa por um momento em que se mostra imperativo parar e reflectir. Uma crise económica - que agora parece esmorecer, abriu a mesa à discussão de certos temas, já em crise há longo tempo, e que de igual modo merecem a devida (maior) atenção. A sociedade está partida, cada vez mais fracturada. As divisões sociais e culturais, traduzidas em conflitos de todo o tipo, aumentam a par das respectivas desigualdades. A cidade deixou de ser o que era e caminha para algo que não se compreende. O espaço à manifestação individual parece enorme e simultaneamente confinado. A degradação ambiental cresce ao ritmo da economia. A pobreza aumenta a par da população. A alienação e a anomia vêem-se fomentadas pelo “já tudo inventado” e pronto a consumir. Os valores parecem outros e aparentemente desconhecidos. Por estes e outros motivos - vários abordados no presente documento, mais ou menos interligados, e de acordo com a actual conjuntura, pensa-se, veementemente, que se entrou numa época de necessária transição. A transição que se augura, crê-se que encontra possíveis pontos de reformulação em certas práticas da informalidade, apesar de todas as suas contradições. O bairro de lata foi esse ponto de partida, um ponto de partida já de si delicado, e em que a compreensão das características positivas existentes simbolizam simultaneamente o seu reverso. A dualidade existe, e para explicar uma vertente foi necessário mencionar a outra. Sem nunca pretender poetizar a pobreza ou os contextos relacionados, e com igual vontade de denunciar a sua extrema
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condição, o bairro de lata foi usado a título de referência - como um procurar de
como reconhecendo a sua diferença.
respostas a uma crise onde todas as formas da mesma sempre existiram.
Seria naif pretender voltar a uma urbanidade dentro de um quadro urbanístico
No bairro de lata postulou-se encontrar elementos positivos que se pudessem
e arquitectónico tradicional (ou sequer manter o “modelo” vigente), porque,
inverter. Procurou-se sublimar o bairro de lata, no fim, contudo, não foi possí-
entre tantas outras razões, o processo histórico da urbanização, por dinâmica,
vel ficar alheio a tudo o que faz com que os ditos “elementos positivos” se verifi-
assim o impõe. Porém, entende-se fácil cair na nostalgia em relação a valores
quem. Pode-se, e deve-se tentar desviar mas não se pode ficar indiferente.
e princípios aparentemente perdidos no mundo contemporâneo –aspecto que também anuncia a transição. Entende-se portanto urgente adaptar e preparar a cidade às novas circunstâncias e lógicas, primeiro as actuais, depois as futu-
*
ras. Depois, onde existe habitação, e como parte da integração (na sua amplitude
Comece-se pela cidade, porque não faz sentido falar da história da humanida-
e moldes), urge existir também cidade – mais uma vez se insiste na metáfora
de sem essa, que será o lugar onde boa parte da mudança está a ter lugar. A
da manta de retalhos. A habitação, aspecto controverso, na sua existência e/ou
sociedade porque causa e consequência da cidade, ambas indissociáveis, espe-
ausência, compreende-se que é também em si causa e consequência de várias
lham a transformação emergente – e em que a cidade é o espaço da revolução
problemáticas. As novas disposições que a actual sociedade encerra não estão
por excelência As cidades estão a crescer e provavelmente assim vão continuar,
contempladas no estreito leque oferecido pelo sistema vigente. Soluções redu-
a ocupar territórios mais e mais vastos, onde a população é e será cada vez
toras e prontas a habitar, formas massificadas e desligadas das necessidades
mais numerosa, e a sua diversidade proporcional. Contudo, e por essa mesma
dos utilizadores (e em que outros não vislumbram qualquer tipo de solução).
razão, certos princípios – primeiros e essenciais à convivência, têm de existir.
Mais uma vez, e crê-se que sobretudo através da participação, esse factor pode
Constata-se portanto que é necessário que haja espaço ao indivíduo para que
ser alterado de forma a responder adequadamente às reais demandas de quem
esse se possa manifestar nas suas várias vertentes, (desde que tal não ponha
habita/habitará. Como já dito, os tradicionais métodos de provisão de habita-
em risco a harmonia com os demais), e tal estende-se à cultura e respectivas
ção (de âmbito social e/ou privado) apresentam desfasamentos na relação com
práticas, aos modos de vida múltiplos (que a própria cidade contemporânea
o que os utilizadores pretendem, o que estão dispostos a, ao que se podem
criou e continua a criar), à expressão pessoal nas suas várias formas. A cidade
permitir economicamente. Se a cidade contemporânea forja novos estilos e
deve contemplar um plano em aberto, que através da participação da popula-
condições de vida, o espaço privado (em sintonia com o espaço público) deve,
ção em conjunto com as devidas instituições e saberes, se mostre apta a absor-
também esse, ser alvo de escrutínio. Não se fala só em flexibilidade, mas sim
ver e realizar as mesmas. Compreende-se ao mesmo tempo que só através da
na abertura do inacabado, e não enquanto regra, mas possibilidade. Refere-se
comunicação e tolerância recíproca tal será possível. A integração de todas as
mais uma vez a inversão, para que dentro do que já existe, se possam também
áreas no espaço urbano deve verificar-se, e os territórios marginais devem ser
atribuir novos significados.
“cosidos” de modo a que o “direito à cidade” seja uma realidade de todos. Como é sabido, as fragmentações espaciais dão azo a fragmentações sociais, mas com
Para que haja mudança, e de forma a que essa seja efectiva, é fundamental ter
isto também não se pretende uma cidade total - nem totalitária, pois o mosaico
em linha de conta o suporte primeiro a toda a actividade humana. A socieda-
fragmentário dos vários territórios faz parte da diversidade. A actual “cidade
de, para que se realize na sua plenitude, depende de um suporte saudável. A
partida”, através de cirurgias urbanas, da participação das várias comunidades
sustentabilidade social depende portanto de uma sustentabilidade ambiental.
no processo de integração social e urbano, na base da compreensão mútua da
A distribuição igualitária dos recursos e o respeito pelos mesmos, num respei-
liberdade individual e na vontade colectiva, deve estar disponível a que se inter-
to para com uma natureza que é por sinal, também a humana. Dentro de um
secte a si mesma em toda a sua dimensão. Serão estas intersecções dos vários
âmbito arquitectónico (e urbanista), essa transformação passa inevitavelmente
territórios e/ou comunidades, como uma manta de retalhos, que permitirão
por uma diferente compreensão da estética e seus princípios: por um lado é
uma unificação urbana. Tendo em mente que a concepção do urbano cresce
inevitável a aceitação das suas múltiplas expressões individuais e colectivas;
na re-apropriação dos seres humanos face às suas condições em termos de es-
por outro, urge um ajuste da disciplina ao momento presente, e tal, tem reper-
paço e tempo. Sublinhando que a questão da sustentabilidade social, essencial
cussões no meio ambiente, e questiona a sua própria epistemologia.
ao bem estar de todas as partes e actores urbanos, passa pela construção de uma cidade mais plural, valorizando identidades e características comuns, bem
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A arquitectura e o urbanismo têm uma palavra na intervenção para a mudança porque constituem e podem transformar as partes físicas da cidade, tendo essas repercussões nos vários âmbitos da mesma. O seu carácter de intervenção e poder - para o bem e para o mal, abre essa perspectiva de catalizador da mudança. Mas esse trunfo deve ser conjugado no plural. Nesta fase de transição parece ser necessário que todos os intervenientes em jogo, e nos seus diferentes campos de acção, em várias frentes, tomem a iniciativa. Sejam artistas, arquitectos/urbanistas, políticos, filósofos, economistas, escritores, etc, seja o comum cidadão, todos, a seu modo, devem criar mecanismos para a mudança, estabelecer novas ideias, abrir outros caminhos, com vista a novos horizontes em que o singular possa também ser plural. Mas só através da comunicação e participação do extenso mosaico social tal será possível. Ao pôr em causa tantos princípios pretende-se que esses sejam objectos de reflexão, para que a sociedade e as suas práticas se regenerem. O rumo a tomar passa por criar hipóteses, experimentar, inventar outras utopias, numa convergência de saberes e seres com vista à pluralidade e desenvolvimento. A grande batalha de qualquer crise que implique a mudança, como no caso presente – e em relação à cidade e suas derivações, à habitação e seus moldes, à estética e seus pressupostos, à degradação ambiental e respectivos discursos demagógicos – é sobretudo epistemológica. Parecem ser as próprias bases dos saberes que necessitam ser reformuladas. Entre o formal e o informal, paralelos de um mesmo sistema - mundo, deve-se procurar conjugar a cidade com o melhor de ambos (ainda que tal dependa de conceitos tão abstractos e controversos). Partiu-se de muitos pressupostos, confrontaram-se realidades e contextos muito diferentes, traçaram-se diagonais e panorâmicas procurando coser vários temas, tentando estabelecer ideias e conceitos. Enunciou-se o que de melhor a sociedade consegue criar - assim como o pior da mesma. O objectivo essencial foi o de hipotisar soluções para que tudo que gira à nossa volta mude para melhor. Chega-se ao fim com ainda mais dúvidas do que com aquelas que se começou, mas tal parece ser inerente à incansável procura do conhecimento. Apenas uma elação concreta se pode retirar: o elemento destabilizador - intrínseco ao mesmo, seja na realidade formal ou informal, independentemente do contexto ou latitude, é o próprio ser humano. O grande problema reside na “condição humana”, no que de melhor a mesma
Fig.66 Terra. fotograma de La Haine
pode construir bem como no seu oposto - na sua mais perversa manifestação.
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