Heliópolis, Arte e Educação: a história do Cine Favela e da companhia de Teatro de Heliópolis

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Heliópolis: Arte e Educação A história do Cine Favela e da Companhia de Teatro de Heliópolis A comunidade Cidade Nova Heliópolis é a maior favela de São Paulo e a segunda maior da América Latina. Espalhados por mais de um milhão de metros quadrados vivem cerca de 200 mil habitantes, o equivalente a dois terços do Parque do Ibirapuera em tamanho e três Maracanãs lotados em pessoas. Por lá, existe a Companhia de Teatro Heliópolis e o Cine Favela, dois projetos oriundos de moradores que fundem educação, arte e comunicação de uma maneira autônoma e numa relação entre pares, em que aprendizados são repassados para o próximo e a construção de um cidadão é o maior objetivo. Inspirados na realidade da favela, os projetos conseguiram ultrapassar fronteiras e desconstruir questões que acercam nossa sociedade, desde a resistência contra a discriminação social até a comprovação que o Cinema e o Teatro periférico podem ser feitos de forma profissional e qualificada. O livro reportagem parte de uma perspectiva imparcial que busca retratar a realidade das iniciativas, abordando desde as dificuldades durante seus trajetos até as conquistas alcançadas. A história de projetos idealizados por cidadãos que visam a construção de um bairro educador e a propagação de seu trabalho primeiro para Heliópolis e depois para outras comunidades a sociedade em geral.

Pedro Neves Fonseca


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Heliópolis: Arte e Educação A história do Cine Favela e da Companhia de Teatro de Heliópolis

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Introdução

Na cidade de São Paulo, mais especificamente no bairro do Ipiranga, região sudeste do município, existe uma comunidade chamada Heliópolis. Uma grande favela com 92% de ascendência nordestina, segundo dados do IBGE, constituída a partir dos anos 70 e que desde então passou por diferentes transformações. Segundo a prefeitura, Heliópolis possui hoje 18.080 imóveis - a maior parte dos barracos se transformou em construções de alvenaria - e 75% do bairro já tem infraestrutura urbana. A Fundação Cásper Líbero e a UNAS - União de Núcleos, Associações e Sociedade de Moradores de Heliópolis e Região - fizeram uma pesquisa em que revelam a existência de mais de 100 entidades (religiosas, associações de moradores, ONGs) que realizam programas e projetos na comunidade, voltados à prática religiosa, educação não formal, atividades culturais, artísticas e esportivas. São mais de 3 mil pontos comerciais, segundo o levantamento da Associação dos Comerciantes de Heliópolis (ACHE), entre padarias, pequenas lojas, açougues, cabeleireiros, farmácias, pequenos mercados, oficinas de carro e moto,

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lan houses e mais de 1000 bares. É nesse cenário que nascem diferentes projetos voltados à educação, expressões artísticas e comunicação, além do esporte e o lazer. Destaca-se em Heliópolis a organização entre os moradores, desde as questões de pertencimento à comunidade, até a maneira que se envolvem com as diferentes iniciativas oferecidas. Este livro trata da história de dois desses projetos, a Companhia de Teatro Heliópolis e o Cine Favela. Ambos criados por moradores de Heliópolis, possuem pontos em comum, como a dificuldade de se manter financeiramente, a luta diária para conquistar espaço e reconhecimento dentro e fora da favela, também como a missão de construir uma comunidade melhor para todos os moradores. O livro reportagem busca envolver e incitar a criação de uma imagem particular de Heliópolis. O texto levanta diferentes frentes dos projetos, passando por questões que refletem o local onde vivem, o estabelecimento de uma educação entre pares - em que o aprendido é repassado ao próximo de maneira direta ou indireta - até o objetivo claro de Heliópolis um bairro educador.

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SUMÁ RI O

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HELI ÓPOLI S: A C ON STR UÇÃO DE UM BAIRRO EDUCA DOR

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A C OMPA NHIA DE TEATRO HELI ÓPOLI S: RE SI TÊ NC IA, AR TE E MED O

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HELI ÓPOLI S: A C ON STR UÇÃO DE UM BAIRRO EDUCA DOR São Paulo, 2 de setembro de 2015. Caminhando em direção à estação de metrô Butantã, pensava no que ia encontrar em Heliópolis: afinal, o que me chamou tanto a atenção naquele lugar? Conhecer e entender a sociedade por diferentes ângulos e perspectivas. Me instiga compreender alguns valores enraizados na história brasileira - desde a chegada dos portugueses em 1500, quando o índio foi atraído pelo escambo, passando pelos jesuítas e bandeirantes que exploraram o território em nome da Companhia de Jesus e dos bens naturais, até a escravidão que reflete traços evidentes da sociedade atual. Continuando esse pensamento, a desigualdade social fica explícita quando a questão são as favelas e sua parcela significativa da população: de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), coletados durante o Censo de 2010, cerca de 11,4 milhões de pessoas - 6% da população na época - vivem em aglomerados subnormais- definição para áreas com ocupação irregular com, no mínimo, 51 unidades habitacionais consideradas carentes, com falta de serviços públicos e urbanização. Isso me faz entender que existem divergências econômicas na sociedade graças ao processo de construção do nosso hoje. Não é à toa que as oportunidades e realidades sejam diferentes para quem que nasce no bairro pobre e no bairro rico. Tal discrepância me leva à comunidade de Heliópolis para entender e evidenciar processos educativos de-

senvolvidos pelos próprios moradores que acreditam na criação de um “bairro educador” voltado à construção do ser humano através da arte. O caminho não é complicado até lá, basta seguir na linha verde do metrô em direção à Vila Prudente e descer na estação Sacomã, que fica no coração do Ipiranga. O bairro da zona sudeste do município de São Paulo é nobre e um dos mais antigos da cidade, abrigando importantes pontos históricos, como o Museu do Ipiranga e o Parque da Independência. No Parque, há um monumento que simboliza a Independência do Brasil e o famoso “Grito do Ipiranga”, no qual, no dia 7 de setembro de 1822, Dom Pedro I disse: “Independência ou Morte!”. Nos anos 1970 nascia outra história marcada por mortes e pela luta incessante por independência, quando a prefeitura retirou 153 famílias de áreas ocupadas na favela da Vila Prudente e da Rua Vergueiro para construir vias públicas. Surgia a comunidade Cidade Nova Heliópolis, a maior favela da cidade de São Paulo e a segunda maior da América Latina. Espalhados por mais de 1 milhão de metros quadrados, vivem cerca de 200 mil habitantes, o equivalente a dois terços do Parque Ibirapuera em tamanho e a três Maracanãs lotados em número de pessoas. A partir da estação Sacomã fica fácil chegar a Heliópolis, pois quase todos os ônibus passam por lá. Semanas antes eu havia entrado em contato com Reginaldo José Gonçalves, repre-

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sentante da União de Núcleos, Associações e Sociedade de Moradores de Heliópolis e Região, mais conhecido como UNAS. Eles são uma organização formada pela união de moradores que lutam pela efetivação de seus direitos de cidadãos e estão por todos os cantos da comunidade: foram estabelecidos 14 núcleos, que sediam diversos projetos e têm seus próprios representantes. Atualmente, a UNAS desenvolve diversos projetos nas áreas de Educação, Cultura, Esportes, Habitação, Saúde, Assistência Social, Medidas Sócio-Educativas e Comunicação Comunitária, visando transformar Heliópolis no “Bairro Educador”, promovendo a Cidadania e o desenvolvimento integral da comunidade. O propósito da conversa era entender um pouco da construção de Heliópolis, do papel da União e dos projetos desenvolvidos pela comunidade que envolvessem jovens, além de processos educativos que fossem, de alguma forma, autônomos. Enquanto o ônibus percorre o trajeto, noto uma mudança na paisagem: prédios e lojas dão lugar a botecos e casas de tijolos a vista. As moradias são simples e as vielas parecem sem fim. Chama a atenção as diferentes cores nas janelas, graças aos inúmeros varais com roupas estendidas. A fiação elétrica é um embaralho sem sentido, com várias antenas de TV aberta e a cabo – os famosos “gatos”. Noto uma diversidade de negócios incrível: feira de frutas, venda de CDs, cabeleireiro, sorvete, espetinho, sanduíche... Percebo que faltam poucos pontos para descer e

me aproximo do cobrador, que estava sorrindo e conversava com todos que passavam pela catraca – É incrível a quantidade de negócios diferentes! –, comento. - O pobre desde cedo aprende a necessidade de sobreviver, por causa das condições em que vive. Infelizmente a desigualdade social tem essa questão de um passar mais fome que o outro, por isso a criatividade predomina na comunidade -, me responde ele. Seu nome é Gilberto e fico impressionado com tamanha sinceridade e transparência na resposta. Tem 24 anos, mora em Heliópolis desde que se conhece por gente e trabalha como cobrador há um ano. Foi o que consegui conversar durante os dois minutos antes de desembarcar. Uma placa com o nome CEU (Centro Educacional Unificado) Heliópolis, projeto da prefeitura de São Paulo desenvolvido pelo arquiteto Ruy Ohtake, chama a atenção na região. Um portão aberto por onde qualquer um pode entrar e o fluxo de pessoas é grande. Caminhando e observando, noto duas quadras de futebol com crianças jogando bola, uma piscina semiolímpica, parquinho, salas de aula e muitos, mas muitos jovens. Não sei como é a cara do Reginaldo, trocamos alguns e-mails mas não conheço seu rosto. Um homem baixinho, com calça de moletom, agasalho preto daqueles impermeáveis e um boné para proteger da garoa – um dia típico paulistano – se aproxima e não se engana: Fala, Pedro! - Depois de não compreender como

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foi tão fácil para ele me reconhecer – Opa! Sou eu sim, como você sabia? –, pergunto. - Cara, eu moro aqui desde sempre, conheço todo mundo –, responde, carismático. Enquanto conversamos, vamos caminhando para a sede da UNAS, no coração de Heliópolis, como explica o Reginaldo: – A gente representa os moradores da comunidade, o núcleo foi criado justamente para organizar e, juntos, fazer de Heliópolis um lugar bom para todos viverem, por isso nossa sede fica bem no meio, no coração da favela. Realmente, quanto mais caminho, mais pessoas, casas, negócios e vielas aparecem. É como uma cidade completamente diferente de São Paulo, mas ao mesmo tempo, dentro do município. Em qualquer lugar que passo, alguém me cumprimenta, mas só por causa de por quem estou acompanhado, claro. Papo vai, papo vem e, em certa hora, pergunto: - Por que a criação da UNAS? - Ele abre uma risadinha no canto do rosto antes de responder: - Nós constituímos esse núcleo pela necessidade de nos unirmos pela comunidade. Heliópolis nem sempre foi um ‘bairro educador’, em que qualquer um entrava, e as crianças foram vistas como prioridade -, explica. - Existe essa conexão com o lugar em que vivemos, apesar de todo o preconceito, violência e intolerância. Queremos que nossas crianças cresçam tendo oportunidades que nós, os mais velhos, não tivemos - conta Reginaldo. Mais adiante chegamos à sede da

UNAS, uma casa de três andares com salas para reuniões, computadores, espaços para oficinas e uma galera que fez com que eu me sentisse no quintal de casa. Logo na recepção uma senhora diz: - Bom dia menino, bem-vindo ao UNAS - com um sorriso simpático e receptivo. A partir daí sinto uma educação acolhedora, todos vem em minha direção para me cumprimentar, olho no olho e sorriso na cara. Ando de metrô todos os dias e sinto um clima cinzento, ninguém se olha ou demonstra alegria, o intuito das pessoas é ficar numa bolha e chegar logo ao seu destino. Aqui não. Uma boa camaradagem toma conta do ambiente e me sento numa cadeira de plástico ao lado do Reginaldo, para entender melhor o funcionamento do local. - Em nosso trabalho acreditamos na pessoa como sujeito de direito, independentemente da idade, fortalecendo sua autonomia para a efetivação da cidadania, procurando, assim, quebrar as paredes invisíveis que separam as periferias dos outros bairros da cidade -, conta. - Mas como efetivamente fazem isso?-, pergunto. - Buscamos parcerias com agentes dos três setores para dar suporte à implementação de projetos, programas e serviços de forma abrangente nas áreas de educação, saúde, moradia, cultura, esporte, assistência social, mulheres e causas LGBT -, explica. - E qual o impacto disso na comunidade? -, questiono. - Nosso trabalho é legitimo e atende de fato as necessidades da popula-

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ção de Heliópolis e Região, pois temos em nossa história e em nossa estrutura atual, lideranças e pessoas que vivem aqui e entendem a fundo o que é preciso desenvolver. Já são mais de 7.300 pessoas impactadas diretamente -, responde. Nisso, três jovens entram na sala com violões nas mão e advertem - Pessoal, vai começar a aula, vocês podem dar uma “licencinha?” - . Na hora me levanto e mudamos de sala. Fomos para uma com as paredes cheias de desenhos feitos por crianças retratando o seu dia - Dia das Crianças – e que me chama a atenção. Noto muitos retratos com famílias reunidas, pipa com os amigos, a maioria mostrando uma reunião de pessoas. Isso me leva a pensar nos pequenos com os quais convivo e que se atem muito aos bens materiais, ao presente, ao brinquedo... Ali reparei que os valores daquelas pessoas eram diferentes - a união, a família e a amizade prevaleciam nas paredes, onde o normal seriam uma bola de futebol, um skate ou um boné. Voltamos a conversar sobre as iniciativas da favela - Reginaldo, quais as iniciativas que envolvem arte e educação aqui dentro? -, pergunto. - Bem, o Cine Favela, o Instituto Baccarelli e a Companhia de Teatro Heliópolis são projetos de moradores da comunidade pelos quais a “molecada” se interessa, eles abordam temas cotidianos de Heliópolis e desenvolvem oficinas para jovens. - explica. A partir daí ganho um norte para seguir: o próximo passo é entrar em contato com essas iniciativas para

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entender melhor como funciona o trabalho, já que o Reginaldo, apesar de ser muito solista, não explica como realmente atuam, se desenvolvem e se sustentam, mas me passa o Facebook e o site para entrar em contato com os responsáveis. Já são quase 11h e estou atrasado para o trabalho, além disso, minha nova fonte também tem uma agenda para cumprir. Agora com mais informações sobre a comunidade e seu contexto social, fico mais confiante para me aprofundar no tema. - Muito obrigado pela ajuda, Reginaldo! - agradeço depois de tomar um copo d’água. - Meu, estou aqui para o que precisar, manda e-mail ou liga para os contatos que te passei porque tenho certeza que vão te ajudar -, responde antes de me dar um aperto de mão seguido por um abraço. Ele se oferece para me acompanhar até o ponto de ônibus, mas digo que não precisa, quero um momento a sós pelos becos e vielas para sentir e pensar um pouco sobre a razão de estar lá e o objetivo disso tudo. Fico lisonjeado de ver tantos rostos humildes e alegres, em contraponto ao que presencio todos os dias pessoas estressadas no trânsito, mal humoradas com o próximo e reféns do capital. Incrivelmente me vem uma sensação de bem estar e paz interior. Aqueles

dez minutos de caminhada até o ponto são como um relapso de tranquilidade e energias boas, esse sentimento me instiga a entender como são os laços dessa população com sua comunidade, como esses projetos ajudam na construção de um cidadão blindado aos preconceitos de fora: como funcionam esses projetos? De onde vem o dinheiro para sustentá-los? Como é essa relação com a juventude? E com a realidade da favela? Não param de surgir curiosidades, dúvidas e lampejos de investigação. Chego ao ônibus diferente de quando desembarquei naquela manhã agora sinto que existem diferentes histórias e casos a serem estudados e entendidos, percebo o quão pequeno sou em meio àquela comunidade de gente branca, negra, masculina, feminina, nordestina, sulista, rica e pobre. As realidades voltam a se contrastar enquanto o ônibus faz o caminho de volta à estação Sacomã. As casas de tijolo, os becos e as vielas voltam a dar lugar aos apartamentos residenciais de alto padrão, aos comércios locais e ao mundo exterior. Realidades tão distintas no mesmo bairro um primeiro contato com a favela de Heliópolis que trouxe um apanhado de informações e conhecimento... Agora é entender os projetos.

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Quarta-feira, 17 de fevereiro, segunda visita à comunidade de Heliópolis. Desta vez a caminho de um projeto chamado Cine Favela, uma iniciativa que trabalha com jovens e oferece oficinas gratuitas de cinema, capoeira, karatê e dança. Desembarcando na estação Sacomã do metrô, pego um ônibus sentido Avenida Almirante Delamare. A iniciativa fica na altura do número 1.533 da avenida, na Rua do Pacificador, logo depois de um AME (Ambulatório Médico de Especialidades). Estou perdido, pois a referência não me leva ao endereço certo e tenho apenas indicações vagas para chegar. Por isso, opto por descer do ônibus e procurar o Cine Favela a pé. Desembarco em uma rua que sai da avenida principal, algo inesperado, já que, para mim, o ônibus cumpriria todo o seu trajeto em linha reta. Diante de um embaralhado de casas e comércios resolvo perguntar para um jovem aparentemente morador de Heliópolis, que estava subindo o “morro”: - Olá, você sabe onde fica o Cine Favela? - Claro, fica a uns trezentos metros daqui, é só virar a segunda à direita e depois a primeira à direita de novo -, responde. Continuo o trajeto e me sinto mais perdido que antes, então pergunto para uma senhora que fuma seu cigarro tranquilamente em frente ao bar “O Rei da Tilápia”:

- Tudo bem com a senhora? Por acaso o Cine Favela fica aqui perto? - Sim! Você está pertinho, é só seguir mais uns duzentos metros e virar à direita, aí continue em frente que você vai ver a placa do projeto. Com a resposta fico mais tranquilo, já que estou perto, segundo ela. Noto uma placa escondida em um muro azul que parece ser um galpão: Rua do Pacificador. Caminho favela adentro e reparo o ambiente ao meu redor. Enquanto ando, reparo ao meu lado esquerdo um cabeleireiro com cortes a partir de 15 reais, mas o que chama a atenção é a modelo com um black power no cartaz de divulgação. Em seguida vejo uma pizzaria pequena, só com o forno e um banner na porta com um número para as entregas. Curioso, porque dez passos à frente encontro outra pizzaria, mas esta é grande, cheia de mesas e com um vasto cardápio de sabores na entrada. Já do lado direito vejo um mini mercado, daqueles em que se encontra tudo que é essencial para uma casa, desde desentupidor de pia até carregador de celular, um espaço minúsculo entupido de mercadorias. Do mesmo lado tem um boteco lotado de gente com um forró bem alto, sinto um clima alegre e descontraído entre os homens enquanto tomam cerveja. É engraçado como as pessoas olham para você como se fosse um alienígena. É evidente que não sou dali, e eles sabem disso. Um branco, barbudo, de tênis Vans e camiseta do Bob Marley jamais visto naquela

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região é um ponto de interrogação na cabeça dos moradores, o que fica explícito nos olhares ao meu redor, porém são apenas olhares e encaradas. Não sou filho, sobrinho, amigo e nem conhecido de alguém daquela região, por isso tamanha estranheza e desconfiança, mas não passa disso. Caminho tranquilamente por Heliópolis até encontrar, mais ou menos a uns trezentos metros do início da rua, uma placa escrito: Cine Favela. Lá dentro estão dois homens, um mais jovem e outro mais velho, conversando e esperando minha chegada. Meu contato é Reginaldo de Túlio, fundador do Cine Favela e morador de Heliópolis há 30 anos. O outro rapaz que o acompanha é o Donizete Bonfim dos Santos, diretor cultural da iniciativa. Apesar de não saber quem é quem, reparo na roupa simples e humilde dos dois, camiseta do Cine Favela, bermuda e chinelos. Pressuponho que o Reginaldo seja o mais velho, um homem que aparenta uns 50 anos de idade e ascendência japonesa pelos olhos mais puxados, um cheiro forte de cigarro o acompanha e uma voz rouca conversando com o camarada ao lado. O rapaz com que conversa aparenta ter um condicionamento físico mais avantajado, parece que pratica alguma atividade física para manter a forma, ele é mais baixinho e tem uma voz miúda comparada com a do fumante. Ambos parecem me esperar e logo me apresento:

- Muito prazer, sou o Pedro. Meu, me perdi um pouco para chegar, mas perguntei para algumas pessoas na rua e me indicaram certinho o caminho, nunca vi tanto comércio por metro quadrado -, me apresento com uma risada para quebrar o gelo. - O pobre já nasce empreendedor e aprende com a lei da sobrevivência, até os menos criativos tornam-se gênios quando não têm comida na mesa -, responde Reginaldo de maneira curta e direta, enquanto traga o seu Dunhill vermelho. A última vez em que havia comentado com alguém de Heliópolis sobre a mesma questão foi em setembro, na minha primeira visita, quando bati um papo com o Gilberto, cobrador de ônibus. Apesar de serem pessoas diferentes, as respostas são bem parecidas e me fazem entender um pouco do perfil de quem mora lá. O espaço do Cine Favela é bem simples, antigamente o local era um bar que acabou fechando as portas por problemas financeiros. Logo na entrada noto um espaço razoavelmente grande, uns 5 metros de profundidade por 3 de largura, repleto de poltronas e um telão bem grande ao fundo. É assim que utilizam o local para exibir os filmes aos moradores de Heliópolis, porém, para realizar as oficinas, o espaço se transforma. As poltronas são empilhadas e o chão de concreto dá lugar a um grande tatame para realizar as aulas de capoeira e karatê - tatame que é montado e desmonta-

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do todos os dias pelos jovens. Nas paredes, diversas fotos da história do projeto, os festivais dos quais participaram, os jovens que passaram por lá e todas as conquistas desses anos de construção. No fundo da sala, ao lado direito, há cinco computadores numa bancada, acima deles uma estante onde guardam o tatame após uso, e os instrumentos de capoeira e filmagem. Existem dois banheiros, logo na entrada do lado direito, um masculino e outro feminino. Com todas as atividades que realizam, mais os equipamentos que guardam e os computadores que disponibilizam, o local fica minúsculo. Ainda mais quando o tatame está montado e a sala lotada de jovens - além de abarrotado, aquilo vira uma sauna em que os dois ventiladores embutidos na parede não dao conta de refrescar o ambiente. Sento-me em uma das poltronas, preparo o gravador e pego meu bloco de notas. Nisso, o Reginaldo diz: - Vou precisar trabalhar um pouco, mas vai conversando com o Donizete.

Não compreendo muito o que quis dizer, já que no meu entender o seu trabalho era o próprio projeto. - O que ele quis dizer com isso? -, questiono Donizete. - Ele vende jogo do bicho para pagar as contas, inclusive as do Cine Favela -, explica.

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- Mas o Cine não tem apoio ou algum financiamento? - Na verdade tem sim, mas nenhum é fixo e no momento estamos sem verba, por exemplo. Sobrevivemos de editais e de força de vontade, na atual fase é o Reginaldo que está tirando dinheiro do próprio bolso para pagar as contas, lembrando que todos aqui são voluntários, não recebemos salários -, explica. Nascido e criado em Heliópolis, Doni, como prefere ser chamado, está envolvido no Cine Favela há nove anos, além de participar da Companhia de Teatro em Heliópolis desde 2009, e é graças à capoeira que hoje tem essa paixão pelas diferentes artes: - A capoeira me despertou essa vontade de conhecer outras artes, como o teatro e o cinema: o capoeirista é um artista, um jogador e um poeta. Foi através da arte popular brasileira que ele conheceu o mundo e criou família dentro do Cine Favela: - A juventude precisa de um lugar para não ficar na rua, um universo completamente diferente daquele em que realmente vivem, um mundo onde sonhar é possível. O papel do projeto é justamente esse, proporcionar arte, cultura e esporte para essa molecada cercada pela violência.

Durante esses nove anos na iniciativa, Doni diz ter conhecido mais de 1.500 pessoas. Quando pergunto qual teria sido o momento mais especial durante essa jornada, ele faz uma pausa para pensar, abre um sorriso por trás de um rosto duro, um olhar que transparece muita luta e humildade, e responde: - São muitos, mas o que me marcou mesmo foi a oportunidade de ir para El Salvador em novembro de 2015. Fomos em uma comitiva de vinte pessoas que vinham do Grajaú, Cidade Tiradentes, Capão Redondo, Campo Limpo e mais três pessoas da Secretaria Estadual de Cultura. Representando o Cine Favela de Heliópolis, formaram uma comitiva com vinte pessoas. O foco era sentir a cultura local: - Conhecemos uma faculdade por lá, fizemos uma apresentação de capoeira, nos divertimos. Entramos no núcleo da cidade, nos inserimos realmente aos costumes, meios de transporte, a vida de quem mora lá. Em 2009 ele fez seu primeiro filme onde interpretava um capoeirista: - É engraçado como a capoeira me levou para o cinema. Eu me toquei que uma coisa leva à outra. Arte é arte.

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Já em 2010 aconteceu o 10o. Festival de Cinema no Cine Favela, onde Doni atuou no curta metragem “Oscar”, um filme em que interpretava o pai do protagonista (o filme está disponível no Youtube, para encontrá-lo basta procurar por “Oscar CineFavela”). Assisti o curta no celular, a caminho do projeto naquela manhã. “Oscar” retrata a vida de uma criança moradora de Heliópolis que não conheceu seu pai. No filme, a mãe do menino não quer revelar seu paradeiro e isso faz com que Oscar desconfie de que o pai seja desde o “dono do morro” até um senhor que constrói carros de madeira na rua em que mora. A abordagem do trabalho me deixa curioso e decido perguntar sobre a realidade dessa juventude na favela. - O cinema serve como uma forma de educação para esses jovens, levando em conta as oficinas e filmes que produzem? - O mais importante é a disposição e isso não falta para essa garotada, eles estão sempre querendo absorver mais e mais -, diz Doni. Enquanto um estudante de classe média e/ou alta estuda em escola particular a vida inteira e tem a certeza de que vai prestar vestibular, a realidade dos jovens em Heliópolis não é tão simples assim, levando em conta a renda e a falta de oportunidades. Sendo assim, o Cine Favela é uma chance de conhecer o cinema de forma completamente autônoma dentro da comunidade. As histórias, os atores, os roteiristas, todos vivem por lá.

- Qual a importância do projeto ser criado e enraizado em Heliópolis? -, pergunto. - Falta um pouco de instrução ainda, mas isso a gente faz do nosso jeito, o importante é passar por esse processo juntos e alinhados com todas as decisões que tomamos. As oficinas servem como forma de ensinarmos o que nos foi ensinado e assim, passar para a frente. No momento acho que não respondeu minha pergunta, mas depois de alguns minutos compreendo que não existiu nenhum tipo de formação formal dentro do Cine Favela, eles foram absorvendo ao longo do tempo tudo o que lhes foi passado e assim foram construindo uma identidade própria e fortes laços com a comunidade. Foi em 2005 que o Cine Favela teve seu boom, na primeira edição do Festival Cine Favela, que aconteceu exclusivamente em Heliópolis, com a exibição de quatro filmes. Para se ter uma ideia, hoje o festival já está presente em cinco Comunidades Populares - Paraisópolis, Capão Redondo, Cidade Tiradentes, Brasilândia e Heliópolis -, somando mais de 20 pontos exibidores espalhados pela cidade de São Paulo, entre eles: Pontos de Cultura, Estações de Metrô, Casas de Reabilitação, Albergues e espaços públicos, sendo atualmente o maior evento dedicado ao cinema periférico do mundo. Sempre foi realizado entre outubro e novembro - nos últimos anos tem

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variado ou até nem acontecido devido a questões financeiras e de incentivo -, e é um evento que tem como objetivo central a difusão de filmes de todos os gêneros e formatos realizados exclusivamente por ONGs, Associações, Coletivos, Estudantes, Produtores Independentes e Periféricos, do Brasil e do mundo, buscando a inclusão sociocultural de jovens por meio da Sétima Arte. Ao longo de sete anos, foram exibidos mais de 300 títulos, entre curtas e longas-metragens, mais de 400 jovens foram beneficiados pelas oficinas de capacitação cinematográfica e mais de 1.500.000 de pessoas tiveram acesso a obras periféricas provenientes de todos os cantos do mundo, ou seja, um festival que une as periferias de todo o planeta. Ao longo do tempo, voluntários foram chegando e saindo, como a Claviane, atriz que já participou de algumas peças de teatro com o Donizete e lecionava dança Afro:

sempre abertas para que os jovens usem os computadores e a internet do local. No momento, devido à falta de recursos, as oficinas de cinema ainda não começaram, porém, a capoeira às quintas-feiras e aos sábados, às 19h, junto com o karatê às sextas no mesmo horário são as oficinas que estão acontecendo no momento. De repente, no meio da conversa com o Doni, chega uma criança para fazer uma pesquisa em um dos computadores do espaço. O menino não devia ter mais de dez anos e dá um abraço no Donizete antes de sentar e fazer o dever de casa.

- No momento estou engajada na Companhia de Teatro com a peça Medo e tive que optar por abrir mão do meu voluntariado no Cine Favela, mas isso não quer dizer que eu não volte a lecionar por lá -, conta a professora de dança.

- O bom da arte é isso, ela sempre te surpreende, a vida te leva para vários caminhos que você não tem noção onde vão dar, arte é ter expectativa e ser aberto a mudanças.

Outro voluntário é o professor Rubens, do Karatê, que dedica sua vida à arte marcial, dando aulas para os jovens toda sexta-feira, às 19h, na sede do Cine. Os horários de funcionamento variam muito, já que as portas estão

- Como é sua relação com esses jovens nas oficinas que ministra? -, pergunto. - Eu sempre procuro ser um educador amigo, deixar o ambiente alegre, afinal, a gente vem aqui para se sentir bem e se distrair. - E você se vê como um artista e educador daqui a alguns anos?

Decido mudar de tópico e falar do incentivo à cultura dentro de Heliópolis e o acesso que os moradores tem a exposições, peças e cinemas. - Existe acesso à cultura em Heliópolis? -, pergunto

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Noto um incômodo na feição de Doni antes da resposta: - A educação ainda precisa chegar às pessoas, a demanda por cultura ainda é muito baixa e isso é culpa do consumismo. A visão de hoje é de trabalhar mais para adquirir mais bens materiais e comprar um carro legal, uma moto legal - é isso de que se vangloriam. - Mas a situação melhorou ou piorou nos últimos anos? - Hoje temos um acesso rápido à informação, e informação é poder. O acesso à internet permite coisas que há vinte anos jamais imaginaríamos, tem muita coisa acontecendo e se nos empoderarmos das redes é uma maneira de compartilhar nosso trabalho e assim atingir o maior número de pessoas. Nisso o Reginaldo volta ao Cine Favela, fumando mais um cigarro, e todo agitado pergunta - E aí, acabou já? Minha vez? -. Dou uma risada de canto e respondo - Está pronto para o interrogatório? Reginaldo de Tulio tem 52 anos e veio para São Paulo em 1981, junto com sua então namorada, para tentar realizar o sonho de ser ator. O garoto cheio de sonhos chegou à capital paulista perdido e decidiu inscrever-se em um curso de teatro que lhe haviam indicado, porém, era um lugar muito desorganizado, viviam mudando de sede e deixavam os alunos na mão. Nesse mesmo período, Reginaldo

foi convidado para fazer parte de seu primeiro filme, chamado “Gota de Sangue”. Lá, o jovem ator teve a oportunidade de conhecer profissionais da área e se envolver no processo de produção do filme, além de sua atuação como coadjuvante. Como era de se esperar, acabaram as gravações e o dinheiro recebido era muito pouco, ainda mais sabendo que teria de esperar outra oportunidade para atuar e receber mais dinheiro. Nesse momento complicado, a então namorada do ainda jovem cineasta lhe deu um ultimato: “vai ficar nessa ilusão de ser ator ou vamos nos casar logo?!”. O sonho do garoto foi interrompido e então teve de buscar outras maneiras de sobreviver. Já morando em Heliópolis decidiu vender jogo do bicho, atividade que sustenta sua casa e o Cine Favela até hoje. Nasceram os filhos e Reginaldo ainda tinha aquela vontade de trabalhar com cinema, tanto que, certo dia, caminhando pela rua, encontra um cartaz dizendo: “procura-se atores”. Sem pensar muito, já se inscreveu no processo seletivo e só depois contou a sua esposa. A partir daí o cinema voltou à vida do paranaense e o resultado daquele projeto empolgou tanto sua companheira que ela começou a se envolver também com o cinema, sendo hoje a maior aliada de seu marido no Cine Favela, organizando todo o setor administrativo e escrevendo projetos para editais. Inclusive, foi nesse projeto que o embrião do Cine Favela foi forma-

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do, graças a sua exibição dentro da comunidade de Heliópolis. Em 2003 começou a gestação. No início, o projeto tinha o intuito de preparar pessoas para atuarem em filmes, mas ao longo do tempo Reginaldo foi percebendo a falta de incentivo à cultura dentro da comunidade, e foi aí que começaram as exibições de filmes para os moradores de Heliópolis. O tempo foi passando e hoje já são mais de 200 jovens beneficiados anualmente com atividades esportivas e culturais promovidas pelo Cine, como oficinas de capacitação cinematográfica e teatral, aulas de capoeira, karatê e boxe, além de encontros e reuniões de movimentos populares e folclóricos. Em seu currículo, o projeto soma mais de oito curtas-metragens, com destaque para “Uma Nota Só”, com direção de Laís Bodanzky e roteiro final do argentino Pablo Meza; a coprodução dos longas “Luz Nas Trevas”, de Helena Ignez, e “Hipóteses para o Amor e a Verdade”, de Rodolfo García Vázquez. Além disso, a associação é responsável pela realização do maior evento cinematográfico do mundo, o Festival Cine Favela de Cinema, dedicado à difusão de filmes periféricos, que, ao longo de sete edições, já exibiu mais de 300 títulos, atingindo mais de 1.500.000 de pessoas. A equipe do Cine Favela é completamente voluntária e passou por diversas mudanças desde a fundação, passando por altos e baixos. Hoje, o Cine Favela conta com uma equipe qualificada, porém, houve uma época

em que os mais experientes, pela falta de patrocínio ou ajuda, acabaram abandonando o barco e modificando a estrutura do projeto. Tal deficiência na parte financeira fez com que o projeto dependesse de trabalho voluntário e isso desestabilizou o planejamento, já que os envolvidos têm contas a pagar, comida para colocar na mesa e famílias para sustentar. Os profissionais remunerados e com experiência e formação na área deram lugar a jovens de Heliópolis que fizeram parte desse processo que ainda tinha dinheiro em caixa para financiar a equipe, ou seja, os então alunos de edição e câmera agora tornaram-se voluntários do projeto. - O Donizete, por exemplo, recebia uma verba do Ponto de Cultura, mas eles atrasaram a última parcela, sendo que o Doni necessita desse dinheiro por uma questão de sobrevivência -, explica. - Você fala muito de editais e da dificuldade de se bancar, então como entra dinheiro no Cine Favela? -, pergunto. - Nós jamais tivemos um grande patrocinador, mas tenho certeza que, se um dia chegar alguém disposto a nos bancar, jamais vai deixar de ajudar. Isso porque temos imenso prazer em fazer isso acontecer, ajudar essas crianças que precisam da gente -, explica. - Ganhamos um edital em direitos humanos que durou seis meses, foi show de bola. No último sábado [13 de março de 2016],

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aqui estava lotado e fomos passando pela comunidade sendo reconhecidos pelo povo, isso é o mais gratificante - poder ajudar a nossa comunidade. O Cine Favela já teve incentivos maiores em outros anos, como da Petrobrás, da Lei Rouanet, mas duraram pouco tempo e não trouxeram solidez ao projeto. A grande questão é não ter o privilégio da certeza que os professores se sustentem do Cine Favela ou que as crianças recebam uma ajuda de custo para estudar lá dentro. Porém, novos ares dão esperança ao fundador. - Eu acho que um dia a gente consegue, acredito que estamos próximos dessa transformação com um curso profissionalizante em câmera e edição de vídeo, faltam detalhes para realizar esse sonho, já ganhamos o projeto, mas falta nos dar o dinheiro-, conta. - Mas tudo isso depende dos editais, certo? -, pergunto. - Por exemplo, organizamos um festival de cinema em que recebemos 540 filmes de todo o mundo sem ganhar 1 real, é duro você montar esse trabalho sabendo que não tem estrutura para fazer muitas coisas-, explica. - Então como estão vivos diante de tanta dificuldade financeira? - Trabalho com vendas, vendo jogo do bicho pela comunidade e contribuo com o dinheiro do meu ganha pão. Às vezes surgem umas palestras por aí que resultam em

um cachê, inclusive o Donizete foi chamado para representar o Cine Favela em Cidade Tiradentes e ganhou 300 reais, mas só vai receber depois de 15 dias, essas coisas dificultam muito, mas já passamos por fases mais críticas em que já pensei até em desistir-, conta. - E como foi essa fase? - Foi em 2014, do meu ponto de vista a gente ia parar com o Cine Favela. Estava segurando o aluguel do meu próprio bolso, não é fácil quando você sustenta um espaço sem ter ajuda. A cultura ser uma coisa tão grande quanto o esporte e você ter que pagar o aluguel de um espaço para fazer cultura para uma nação é um absurdo. O primeiro câmera do Cine Favela hoje é fotógrafo oficial do subprefeito do Ipiranga e, assim como ele, parceiros de fora de Heliópolis decidiram seguir outros caminhos. Desolado quando a maioria da equipe o abandonou, Reginaldo teve uma ideia – Pensei: vamos produzir oficinas de cinema para que as pessoas possam aprender e depois trabalhar com a gente. Ou seja, a ideia de Reginaldo era deixar de depender de colaboradores externos e ele resolveu traçar um plano a longo prazo: fornecer oficinas e depois recrutar os alunos para virarem professores. Deu certo. A partir daí foi-se construindo uma nova fase do projeto, em que a profissionalização dos jovens também virou prioridade. Os alunos do ballet, capoeira, edição e

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karatê agora são treinados para tornarem-se professores. - Diante de todo esse cenário, você acredita que o certo seria a cultura ser uma obrigação, uma coisa disponível para todos? -, pergunto. - O Cine Favela ajudou a enriquecer a cultura desse país. Quando foi fundado, nasceram muita arte e cultura nas periferias, nasceu Festival de Cinema, Oficina de Cinema, Produção de Cinema, fica de exemplo a viagem que o Donizete fez para El Salvador, e o pessoal de lá vindo para cá, conhecendo nossa cultura e nossas raízes-, conta. - Aí quando você quer concorrer a um edital é uma briga para conseguir, é uma briga para a prestação de contas. Eu nem vejo uma questão de obrigação da secretaria de cultura, mas deveria ter um caminho mais fácil, são 10 anos de Cine Favela e ninguém se oferece, mesmo conhecendo todo o nosso trabalho, nem para pagar um aluguel e bancar dois funcionários-, continua. - E todos esses problemas que te fazem pensar em parar? -, pergunto. - Nossa preocupação não é parar de fazer cultura, nossa maior preocupação é ter dinheiro para conseguir manter o espaço, proporcionar uma estrutura diferente para as pessoas. Por que não temos atividades durante o dia? Se tivéssemos ajuda para os professores eles estariam disponíveis durante o dia e à noite. O aluno que vai à escola pela manhã vem à

tarde e vice-versa-, completa. - Quando e como teve início essa fase de produção do Cine Favela em que as oficinas começaram? - No fim de 2006 a produção dentro do Cine Favela alavancou, ganhamos o Programa VAI, um projeto de 18 mil reais para o ano todo, em que conseguimos trazer professor de câmera, roteiro e edição-, conta. O Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais - VAI, foi criado pelo então vereador Nabil Bonduki com a finalidade de apoiar financeiramente, por meio de subsídio, atividades artístico-culturais, principalmente de jovens de baixa renda e de regiões do Município desprovidas de recursos e equipamentos culturais. Em 16 de outubro de 2013, o projeto de lei 453/2010, que amplia o programa VAI – Valorização de Iniciativas Culturais, em vigor desde 2004 em São Paulo, foi aprovado na Câmara Municipal de São Paulo e sancionado pelo prefeito Fernando Haddad, aumentando, assim, a escala da iniciativa. Esse período do VAI dentro do Cine Favela trouxe um aprendizado que rendeu frutos e independência, como explica Reginaldo: - Hoje não precisamos mais desses professores, já temos roteirista, câmera, editor, tem tudo. Se eu ganhar um edital do Ponto de Cultura neste ano, o professor de edição que contrato é o Donizete. Não há necessidade

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de trazer de fora, ao invés de dar uma oportunidade para alguém daqui. A galera está comigo há muito tempo e tem capacidade de ministrar as oficinas. - O Cine Favela nasceu em 2004, como foi esse período de entender a finalidade do projeto? -, pergunto. - Quando participei daquele filme, na época em que ainda não existia o Cine Favela, gostava de me envolver com tudo - comecei a fazer parte da produção, da montagem do cenário e fui criando ciclos de amigos. Esse pessoal que fazia parte do filme fundou o Cine Favela comigo, eles achavam que expondo o projeto na televisão, no jornal e na revista conseguiríamos um patrocínio-, explica. Nesse ponto as coisas complicam e noto um tom de tristeza na voz desse homem simples e sonhador. Ele faz uma pausa de aproximadamente cinco segundos e continua: - Então o que aconteceu é que acabou o filme e os fundadores começaram a abandonar o barco. Chegou um momento em que sobraram eu e minha esposa, mas eu não queria deixar o projeto daquele jeito, foi aí que comecei a concorrer a editais-, conta. - E como foi o primeiro edital a que concorreram? -, pergunto. - A primeira vez não deu certo e fiquei muito irritado, achei que a culpa era da prefeitura e não me conformava. No ano seguinte reformulamos o projeto e percebi

que realmente estava errado, existem diversos projetos de cultura e um jogo de concorrência. Nos dois anos seguintes eu ganhei o edital (VAI) -, explica. - E como foi essa época? -, pergunto. - Cara, você tinha que ver, a Rede Globo estava aqui na porta e isso é o mais bacana para quem te patrocina, eles veem que o investimento foi bem feito. A partir daquele edital é que começaram as formações - a princípio de forma mais lenta e ao longo do tempo foram se desenvolvendo até chegar aos dias de hoje, em que temos pessoas capacitadas para fazer um trabalho de excelência no cinema e agentes culturais multiplicadores-, conta. - E você tem exemplos de jovens que fizeram as oficinas e hoje caminham com as próprias pernas no cinema? -, pergunto. - Teve dois jovens, o David e a Carol, que fizeram oficina aqui no Cine, aprenderam a montar projetos para concorrer a editais e desde então vivem disso. Essa é a prova da raiz que construímos aqui dentro-, diz. - Por exemplo, esse garoto que veio fazer lição de casa: vocês sempre deixam as portas abertas, qualquer um pode entrar, existe processo seletivo? - Queremos que os jovens façam suas atividades aqui, tem internet de graça e computadores, mas a prioridade são os alunos. Esse que entrou aqui é aluno de capoeira e dança de rua. Aqui é aberto

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para qualquer um, independentemente de cor, raça, gênero ou idade, existimos para isso. E se formos analisar, todo jovem que passa pela cultura e pelo esporte vai ser um cidadão íntegro na sociedade e nossa missão é formar esses cidadãos dentro da comunidade de Heliópolis. - Existe a preocupação de quebrar o paradigma da marginalização da cultura periférica? Existe um preconceito da sociedade a respeito do “favelado”, o Cine Favela tem a preocupação de quebrar essa imagem? -, pergunto. - A construção do ser humano vem em primeiro plano, podemos viver na favela por 200 anos, mas ela nunca vai deixar de ser periferia. Nós podemos ser cidadãos íntegros sendo ou não da periferia, a sociedade vive um caos em que não é mais só a periferia que é marginalizada, vemos bairros chiques destruindo sonhos, destruindo cidadãos-, observa Reginaldo. - Mostrar para a alta sociedade que a periferia vai deixar de ser periferia jamais vai acontecer, o importante é nós que moramos na favela nos sentirmos cidadãos dignos como qualquer outro, independente se moramos nos Jardins ou em Heliópolis-, completa. - Me explica melhor o que quer dizer? -, pergunto. - Tentamos mostrar para os moradores da comunidade que eles são capazes de ser cidadãos como outros quaisquer, não ter vergonha de falar que mora em Heliópolis.

Qual a diferença de morar em Heliópolis ou no bairro em que o marido jogou a esposa do oitavo andar? Que cidadão é esse que poderia ensinar ao próximo mas fica destruindo sonhos?-, indaga. Enquanto penso na próxima pergunta, Reginaldo me olha com uma cara de decepção e fico imaginando o que se passa por sua cabeça - o que foi, Reginaldo? -, pergunto em tom de tristeza. - As pessoas que tem conhecimento em nosso país hoje, um grau de estudo avançado, eram para ser espelhos para os outros, mas não. Você vê uma sociedade em que o poder domina as classes, é assim desde a época medieval e dura até hoje, com os gladiadores e os escravos. Tinha a alta sociedade que usufruía dos mais pobres para se entreter nas batalhas dos gladiadores-, diz de forma triste e decepcionada. - A favela mudou muito ao longo do tempo, quando viemos para cá em 1985 você só ouvia coisas ruins sobre Heliópolis, mas a construção do ser humano que buscamos fazer, junto com outros projetos dentro da comunidade, trouxe outra perspectiva de vida dentro de Heliópolis. Antigamente você não entrava aqui para fazer uma reportagem, ouvíamos tiros todos os dias aqui dentro, era um cenário de guerra-, continua. - Você fala com tanto sentimento que parece estar falando de um filho, e não de uma comunidade-,

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digo com uma risada zombeteira para tentar mudar um pouco o clima pesado de suas palavras. - Por que hoje precisamos trabalhar a cabeça do adolescente? Porque ele é como um sobrinho, um filho para nós. Aí quando for mais velho e trabalhar em uma empresa ou algo do tipo, ele vai lembrar do Cine Favela e vai ajudar o projeto-, fala Reginaldo. - Vai ter uma hora em que você vai estar cansado de tanta dor de cabeça com o Cine Favela, já pensou no momento de parar? -, pergunto. - Uma hora eu sei que não vou aguentar mais, mas meu plano é deixar tudo em ordem para que jovens como o Donizete possam assumir o projeto e jamais regredir, tenho como maior sonho espalhar milhares de Cine Favelas por diferentes comunidades, algo impossível se dependermos dos nossos recursos atuais-, responde. - E o que falta para esse sonho se realizar, além da questão financeira? -, pergunto. - Incentivo dos pais. Tinha um me-

nino que era bom no karatê, mas não existia incentivo algum dos pais. Hoje esse adolescente está aí na rua, fazendo sei lá o que, ao invés de se envolver com cultura e arte. Mas não são todos assim, sempre tem mães pedindo ajuda para que o filho faça alguma oficina no Cine Favela, o pouco que a gente fizer para esse jovem vai fazer a diferença no seu futuro e no de sua família-, conta. - E existe a ideia de abrir mais oficinas? -, pergunto. - Já tivemos boxe, vamos tentar ginástica olímpica, dança africana, karatê, capoeira, cinema, ballet e aula de sinais. Essa é novidade e vai ajudar nos documentários que fazemos. No próximo, por exemplo, a ideia é já existir legenda em sinais-, fala. - E qual a mensagem que você tenta sempre passar para esses jovens? -, pergunto. - Eu sempre falo para eles: se o Lula foi presidente do país sem estudo algum, por que você, que tem estudo, não consegue? -, finaliza.

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A C OMPA NHIA DE TEATRO HELI ÓPOLI S: RE SI TÊ NC IA, A R TE E MEDO “Estado emocional resultante da consciência de perigo ou de ameaça, reais, hipotéticos ou imaginários”, consta no dicionário Aurélio. A sensação de medo, um sentimento que retrai, isola e derruba até o maior gigante. Na noite de 12 de maio de 2006 o medo tomou conta da cidade de São Paulo. Dois dias antes, a Secretaria de Administração Penitenciária decidira transferir presos de uma penitenciária para outra, após escutas telefônicas terem levantado suspeitas de que facções estariam planejando rebeliões e fugas. Um dia antes, o líder do PCC - Primeiro Comando da Capital -, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, havia sido transferido da P II de Avaré, no interior do Estado, para a penitenciária de segurança máxima e submetido ao RDD – Regime Disciplinar Diferenciado - de Presidente Venceslau, também no interior de São Paulo. No mesmo dia, motins foram realizados em diferentes presídios do Estado de forma articulada. A partir daí o terror tomou conta da cidade. A noite seguinte virou palco de atentados contra policiais, guardas civis e agentes prisionais, dentro dos quarteis, bases móveis e delegacias, num cenário de guerra. No dia 13 de maio foram contabilizados pela Polícia

Militar 103 ataques, com 72 mortes e 55 feridos, todos atribuídos ao PCC. O governo estadual sentiu-se afrontado e resolveu contra-atacar, anunciando a morte de 19 supostos criminosos entre a noite do dia 13 e a manhã do dia 14. O dia 15 de maio foi uma segunda-feira de pânico para os cidadãos paulistanos. Os serviços de transporte foram interrompidos por conta dos 51 ônibus atacados nas 24 horas anteriores, prejudicando a rotina de uma grande parcela da população. E não foi só o transporte. Escolas e universidades suspenderam as aulas, comércios e bancos fecharam mais cedo e até o Aeroporto de Congonhas foi esvaziado por causa de uma suspeita de bomba. Já eram 150 atentados, com 96 mortes e 55 feridos. O governo do Estado anunciou o fim das rebeliões nas penitenciárias estaduais somente após 72 horas. Entre os mortos estão não só policiais, integrantes do PCC e civis, mas pais, mães, filhos e filhas. Esse cenário de terror e medo é intensificado nas periferias paulistanas: o pobre sofre mais que qualquer outra classe social nesse período, confundido com bandidos ou mesmo envolvido com o crime organizado. São mães que viram seus filhos levados de seus braços, sabendo que seriam as-

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sassinados e depois teriam seus corpos despejados em uma vala qualquer. É a cegueira de querer acreditar naquilo que já sabem ser impossível, o dia que seus filhos retornarão aos seus braços e acabarão com a solidão deixada após suas partidas. Inspirada nesse cenário, a Companhia de Teatro Heliópolis lançou na noite do dia 12 de maio de 2016 a peça “Medo”. O grupo é formado por um elenco de oito atores e retrata o período dos atentados do PCC na perspectiva das mães de Heliópolis que perderam seus filhos. A encenação acontece no casarão de três andares, sede da Companhia, localizado no coração do Ipiranga. Com direção e concepção de Miguel Rocha e texto de Gustavo Guimarães Gonçalves, a obra consiste em diferentes espaços físicos e sensoriais, onde o espectador - no máximo 15 pessoas por apresentação - percorre a casa em que viveu a pianista, cantora e ativista cultural Maria José de Carvalho.

A C OMPA NHIA Duas semanas antes da estreia da peça faço o trajeto até o metrô Sacomã e depois caminho 15 minutos até a Rua Silva Bueno, 1.533. Havia marcado um encontro com Miguel Rocha para conhecer a Companhia de Teatro e entender um pouco mais sobre a peça prestes a estrear. É muito fácil reconhecer o casarão. Em meio a lojas, botecos e restaurantes destaca-se uma casa amarela. O portão principal tem um desenho simulando o palco do teatro com uma plateia de fundo, diversos desenhos de gatos pretos espalhados pelo muro, assim como um retrato inspirado na antiga dona da casa segurando um pote cheio de cores e cifras musicais. Miguel me recebe na porta, um homem negro de altura mediana com cabelo black power e olhos grandes e bem abertos, que te captam e contam histórias por si só. Logo entramos para começar o bate-papo e reparo que há um caos dentro da casa, as obras e ajustes para a estreia da peça tomam conta do espaço sujo e cheio de entulhos.

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- Desculpe a desorganização, é que está uma correria para a estreia da peça -, fala Miguel.

Sentamos em uma mesa no meio do casarão, e o diretor mexe em algumas coisas no computador antes da conversa. - Então, Miguel, queria só explicar um pouco o propósito do livro, que tem a finalidade de retratar histórias de práticas educativas dentro de Heliópolis, mostrar um pouco da arte feita na periferia. - Antes de mais nada gostaria só de deixar uma coisa bem clara em relação ao meu conceito de periferia, pois, para mim, Heliópolis não é periferia, pelo contrário, estamos mais no centro da cidade do que diversos outros bairros -, conta. - Eu trabalho no centro e não demorei vinte minutos para chegar aqui -, concordo. - Pois é. Por exemplo, a Cracolândia é periferia? A questão de periferia é social, econômica ou geográfica?

Sinto que Miguel fica incomodado com o termo e logo no início da conversa fico preocupado porque o aborreci, mas deixo que continue seu raciocínio. - Não estou negando que sou ou não sou da periferia, estou pouco me lixando para o termo, a questão é saber provocar as pessoas

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para essa reflexão, assim como devo ter feito agora com você.

De maneira sutil e muito inteligente ele me explica o propósito da Companhia de Teatro, que desde a sua concepção em 2000 procura cutucar o espectador e fazê-lo refletir sobre a sociedade em que vive e sobre as diferentes realidades da cidade de São Paulo. - Existe também uma questão de mercado. Precisamos pensar no produto. No teatro, o grande público que o frequenta vai para ver o artista, pouco interessa a peça da qual ele faz parte. Isso se deve muito à grande mídia -, conta. - É muito mais vantajoso para a Ilustrada, da Folha de S.Paulo, divulgar uma peça do Thiago Lacerda do que o espetáculo que nós vamos lançar. Isso porque o público adquire esse tipo de produto, a preocupação não é o contexto do espetáculo -, continua. - Aí entra a questão dos universos. Por exemplo, a nossa assessora de imprensa disse que seria difícil divulgar o “Medo” na revista Veja, porém, quem disse que nós temos interesse em sair na Veja? A questão é ter percepção de onde você está e o universo que atinge. - Mas e se a Veja quiser divulgar a peça? - Não somos comerciais, não nos vendemos, mas se quiserem divulgar nosso trabalho não vou ser hipócrita e esnobar, nós que-

remos ocupar espaços, mas sempre lembrando do nosso propósito de ser contra pensar no teatro como um simples produto para fazer dinheiro. - Entendi. - Nós não queremos esnobar ninguém e achar que vamos mudar o mundo com as nossas peças. O propósito é plantar uma sementinha e levantar um debate, assim como você quer fazer com o seu livro. - E o que falta para inverter esse cenário de comercialização do teatro, como você disse? - Não adianta você ter um discurso e a sua prática ser muito distante desse discurso, precisamos passar por essa reflexão na favela, nos postos de saúde, na sociedade toda. O problema do brasileiro é que ficamos muito na base do discurso e esquecemos de fazer a diferença na prática. - E na prática, como isso funciona? - Somos construídos a partir das nossas referências e a juventude negra não tem muitas referências, a televisão não faz questão de empoderar essa juventude. Os negros sempre remetem a empregadas, porteiros, jardineiros, o bandido. Sempre no subemprego, submundo, a favela é um lugar de medo para a sociedade. - E como é a realidade? - Existe uma questão muito complexa. Por exemplo, Heliópolis tem 200 mil habitantes, quantos você acha que são bandidos ou ligados ao tráfico? Pouquíssimos, mas

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essas coisas ruins se sobrepõem às coisas boas, isso porque o ser humano está acostumado a ser tomado pela desgraça mais do que pelo bem. - E qual a relação da peça em cartaz com essa realidade? - O olhar das pessoas sobre a favela é isso do assalto, do bandido, e isso é reforçado na imprensa de forma sensacionalista, amedrontando a sociedade. O medo está instaurado na cidade, todos andam num estado de tensão muito alto: é medo de ser assaltado, de quando toca a campainha à noite, sempre um olhar estranho, um estado de suspeição.

A partir daí começo a perceber o poder do teatro em retratar uma realidade tão complexa e desconhecida por quem não mora na favela. O medo da sociedade ao andar nas ruas é um contraste do conforto e da ganância predominantes nas elites brasileiras. São carros blindados, escoltas, condomínios com segurança máxima e pouca integração com a periferia. Miguel, por exemplo, nasceu em uma realidade completamente diferente da de São Paulo. Ele vem de uma pequena cidade do Piauí chamada São Miguel do Fidalgo, um vilarejo com cerca de 3.000 habitantes. Sua mãe, ainda

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jovem, conheceu um rapaz e acabou engravidando, dessa gravidez nasceu o dramaturgo, que mal conheceu o pai antes que ele se mudasse para a capital paulista. Passaram-se os anos e o jovem, como muitos que não tiveram esse contato, decidiu se aventurar e, aos 16 anos, se mudou para Heliópolis com o intuito de se aproximar da figura paterna. Coincidentemente, uma jovem chamada Dalma Régia, também de São Miguel do Fidalgo, e que já conhecia Miguel de vista lá da escola onde estudaram, decidiu seguir os passos dos irmãos mais velhos e migrar para São Paulo, alguns anos depois de Miguel. - Eu não sabia o que era a favela, como funcionavam as coisas. Todos os meus irmãos já haviam se mudado para Heliópolis e quando cheguei fiquei impressionada com a complexidade das coisas -, conta Dalma.

A coincidência está justamente no fato de ela e Miguel serem casados e, também, os únicos membros remanescentes da primeira peça da Companhia de Teatro, chamada “A Queda para o Alto”, obra baseada no livro de Sandra Mara Herzer, de 1982, uma jovem poetisa brasileira de auto identificação lésbico-transexual, também autodenominada Anderson Bigode Herzer.

A escritora foi uma criança com problemas, marginalizada, interna da antiga Febem, e é disso que se trata a parte autobiográfica de sua obra, um relato que denuncia a barbárie das “instituições socioeducativas” para menores e, ao mesmo tempo, critica de forma lúcida e inteligente o quadro social que leva à situação. Na época, com 19 anos de idade, o sonhador Miguel decidiu juntar alguns jovens de Heliópolis para montar uma peça de teatro e deu certo. Além de repercutir muito bem dentro de Heliópolis, o espetáculo conseguiu um patrocínio para rodar o Brasil durante dois anos e, a partir daí, nascia a Companhia de Teatro Heliópolis. O jovem diretor começou a namorar a atriz de 16 anos e se casaram um tempo depois, sendo o primeiro filho do casal um trabalho que perdura até hoje, assim como o casamento. São 16 anos de Companhia e 14 anos casados, os frutos dessa relação são o Gustavo, a Isabelle e a Heloísa. Gustavo está no elenco de “Medo”. - Vivemos da Companhia de Teatro, sempre foi nosso sustento para a família e nos orgulha viver da arte, já passamos por muitas dificuldades, daquelas de não ter comida na mesa e nem dinheiro para o aluguel, mas nossa união e a paixão pelo teatro nos ajudaram

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e ajudam a superar todas as barreiras -, diz Dalma. - Quando cheguei em Heliópolis me lembro que sempre aconteciam muitos assassinatos, quase toda semana tinha um, as pessoas corriam pela favela para ver o corpo jogado na rua -, diz Miguel, retomando a inspiração que teve para a peça. - Com o passar do tempo isso diminuiu, mas percebo que existe, no país, muitos sumiços de pessoas, um grande número de desovas, aqueles cidadãos que não fazem parte da contagem do governo, são atos específicos diretamente relacionados à polícia e ao poder paralelo. - É muito difícil você ver alguém morto na televisão, hoje em dia as pessoas simplesmente somem e é isso o que eu fiz questão de demonstrar na peça, esse estado de suspensão, a favela em silêncio está em perigo, mas para se ter esse silêncio você precisa de muito barulho antes. - Tem uma névoa, alguma coisa pairada no ar que quem mora na favela sente, eu sinto. Sabemos quando acontece algo de errado lá dentro, ninguém precisa avisar ninguém. A peça tenta retratar esse sentimento de angústia, essa energia estranha.

Houve muito estudo para tentar retratar esses sentimentos e demonstrar na peça essa névoa que paira não só na favela, mas na ci-

dade como um todo. Para isso, um dos livros que serviram de inspiração para o elenco foi “Medo Líquido”, do sociólogo polaco Zygmund Bauman, em que ele debate justamente a ansiedade constante do ser humano e os seus medos. - Temos medo de perder o emprego, da violência urbana, do terrorismo, de ficar sem o amor do parceiro, da exclusão. O resultado? Estamos sempre circulando dentro de shoppings centers, dirigindo carros blindados, vivendo em condomínios fechados, lutando por atualização constante e acúmulo de conhecimento -, consta na sinopse do livro.

Ainda criança, lá no Piauí, um circo foi visitar a cidade onde Miguel morava. O vilarejo pequeno estava na expectativa daquela novidade, e a cidade parou - Lembro-me vagamente desse episódio, mas foi a primeira vez em que me encantei com a arte.

Quando chegou a São Paulo, aos 16 anos, foi estudar em uma escola chamada Gonzaguinha e uma peça de teatro que assistiu foi o suficiente para convencê-lo do seu destino. - Sempre fui uma criança muito engajada e decidi então que queria ser ator. A partir daí comecei

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a me dedicar a isso, fazendo diferentes oficinas e cursos livres pela cidade.

A Companhia de Teatro começou a partir da peça “A Queda para o Alto”, que Miguel desejou montar. - Fazia parte de um grupo de teatro em São Caetano do Sul e o diretor daquela oficina havia montado a peça e me mostrou o texto, então decidi juntar um grupo de amigos em Heliópolis para ensaiar, porém teatro é como um casamento, tem seus altos e baixos.

No começo eram 35 pessoas para “Queda para o Alto”, mas apenas 17 foram viajar pelas sete capitais em que se apresentaram. - Gostava muito de trabalhar com elencos numerosos, mas era uma grande frustração lidar com muita gente, eram muitos problemas pessoais que acabavam cancelando ensaios, desentendimentos internos que atrasavam o processo, então decidimos trabalhar com elencos mais enxutos.

A partir desse momento em que decidiram se organizar melhor, em 2001, conseguiram uma parceria com o Sesc São Paulo, em que realizaram oficinas de teatro para grupos de jovens de Heliópolis com coordenação de Luis Carlos Moreira. Também em 2001,

estreou na cidade o espetáculo “Queda para o Alto”, com texto de Carlinhos Lira, baseado no livro de Sandra Mara Herzer, sobre a vida das internas da Febem. Posteriormente viajou com essa montagem por várias cidades do interior de São Paulo com o patrocínio da Eletropaulo. Em 2002, encenou “Queda para o Alto” em sete capitais brasileiras, dessa vez patrocinada pela Petrobras. Em 2003, o grupo estreou o novo espetáculo, “Coração de Vidro”, de Carlinhos Lira, com base na obra de José Mauro de Vasconcelos, sobre a luta para a preservação da natureza, apresentado no CEU - Centro Educacional Unificado Meninos e no Sesc Ipiranga. Em setembro de 2007, fez a pré-estreia do espetáculo “Os Meninos do Brasil”, em parceria com o MCTA - Movimento Cultural Teatral e de Artes - de São Caetano do Sul, com texto e música de Carlinhos Lira, direção musical de Gesiel de Oliveira, no CEU Meninos, fazendo uma série de apresentações para a comunidade de Heliópolis e escolas da região, além de São Caetano do Sul, no Bosque do Povo, dentro do projeto “Maio Teatral”, com o patrocínio da Secretaria Municipal de Cultura. Em 2009, realizou o projeto Arte e Cidadania em Heliópolis, que envolveu a formação de jovens artis-

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tas da comunidade, além da montagem do espetáculo “O dia em que Túlio descobriu a África”, com patrocínio da Petrobras, apoio do SESC São Paulo e da Secretaria de Estado da Cultura. Em outubro de 2010 estreia “Eu Quero Sexo...Será que vai Rolar?”, que inaugura uma nova fase do grupo, já com sede própria na Casa de Teatro Maria José de Carvalho. A última peça da Companhia, resultado do projeto “Arte e Cidadania em Heliópolis”, foi “Um Lugar ao Sol”, construída a partir de um processo colaborativo coordenado por Miguel Rocha, em que os artistas envolvidos no projeto realizaram de próprio punho uma intensa pesquisa em Heliópolis, colhendo depoimentos de moradores sobre o que seria “um lugar ao sol”. A peça discorre sobre a vida de quatro moradores de uma comunidade que, após passarem por acontecimentos marcantes, buscam compreender o sentido de suas vidas em seu cotidiano. Em 2013 a Companhia começou uma nova etapa que foi criar um núcleo fixo da equipe, apenas com quem quisesse estudar teatro e realmente se envolver de corpo e alma com o projeto. Eram eles: Miguel Rocha, Donizete Bonfim, Klaviany Costa, Dalma Régia e David Guimarães.

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- A partir daí começamos a estudar e a trabalhar mais o grupo para melhorar e qualificar nossas peças, antes focávamos muito no processo e no desenvolvimento, mas os patrocinadores se interessam mesmo é pelo resultado final da peça.

Durante esse período várias fichas foram caindo (entre 2009 e 2013) e perceberam que acabavam investindo muito tempo e dinheiro no projeto. Sendo assim, integrantes começaram a abandonar o barco, nunca finalizando a peça “Medo”. O espetáculo, por exemplo, só tem Dalma e Klaviany do núcleo duro, os outros não conseguiram se organizar ou não tinham tempo para contribuir nesse projeto, por isso, os outros seis atores desse elenco são convidados que toparam participar. Nem todos são de Heliópolis, mas receberam o convite de Miguel para participar do espetáculo. - Temos uma filosofia de trabalho que é contra testes para fazer parte do elenco, por exemplo, no ano passado começamos com oficinas de teatro às quintas e, a partir dessas oficinas, já fico de olho no pessoal e vejo quem pode contribuir para o próximo espetáculo-, explica Miguel.

Esse é o caso de Alex Mendes, 19 anos, morador de Heliópolis que

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fez parte da oficina no ano passado e foi convidado para participar de “Medo”. - Sempre curti cinema e comecei a me interessar por teatro, nisso abriram as oficinas aqui na Companhia e, durante esses encontros, o Miguel me convidou para fazer parte da peça. Era uma oficina que não trabalhava só com jogos teatrais, mas também com o corpo e as sensações. Inclusive, tem muito a ver com a peça que retrata essa questão sensorial -, explica.

mães batalhadoras e resistentes. - E o que a Companhia de Teatro representa? - Ela tem seu papel educativo, em que constrói um senso crítico através dos enredos, não te dá as coisas de mão beijada e te faz pensar sobre um certo tema. As pessoas estão muito acostumadas a ter as coisas mastigadas, mas a arte tem isso de construir um senso crítico através da re-

Alex é jovem aprendiz em Administração e faz cursinho, apesar de não saber muito bem o que quer, mas pretende seguir uma carreira no cinema. Apesar de ser ator em “Medo”, gosta muito de direção, roteiro e ama dançar, mas só em casa assistindo vídeo na frente do espelho. Ele já fez dança afro na própria Companhia, faz parte do movimento LGBT e acredita que a arte traz voz a esses movimentos - é nela que consegue se expressar e unir a voz das minorias. - Como foi o seu envolvimento com essa peça? - A peça tem dois anos e o elenco mudou muito, eu só observava os ensaios e sentia um pouco aquilo. É muito grandioso fazer parte dessa peça que mostra a revolta de muitas pessoas e o feminismo presente no empoderamento das

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flexão, algo que falta muito em Heliópolis.

Klaviany, 28 anos, que fez parte do Cine Favela e é membro do núcleo fixo da Companhia, concorda com Alex e ainda reforça: - Eu vejo a Companhia como um ato de resistência, é diferente

você morar em Heliópolis e falar que faz parte de uma Companhia de Teatro, de uma banda, de um Cine Favela. O olhar da sociedade de dentro e fora da comunidade é diferente para balconista ou vendedor. - Mas esse olhar é no sentido pejorativo? - Eu digo ato de resistência porque o trabalho é feito para o pessoal de Heliópolis, mas muitas ve-

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zes esse trabalho não chega ou, se chega, ainda há falta de interesse. É muito difícil confrontar a grande Mídia, por isso o preconceito. - Como foi se preparar para a peça, vocês estudaram sobre os atentados de 2006? -, pergunto a Alex e Klaviany. - Para mim não teve muito um preparo, já é nossa realidade, conhecemos histórias de pessoas próximas que sofreram naquela época -, conta Alex. - Eu vim de um processo da peça “A inocência do que eu (não) sei” e vejo ligações com essa questão da educação dentro de Heliópolis -, diz Klaviany.

- Sou filha de nordestino e de origem humilde, existe certo preconceito a respeito da carreira artística, mas eu resolvi realizar esse meu sonho.

Em 2011 se formou no Senac em Teatro e conheceu a Companhia no ano passado. Miguel a convidou especificamente para esse espetáculo.

O enredo de “A inocência do que eu (não) sei” apresenta quatro trajetos que mostram os desejos e as contradições de pessoas em busca de aprendizagem: o Menino Rapaz que vence; a Feliz Mulher que se adapta; o Caminhante em busca do saber e a Mulher que come maçã. De modo poético e irônico a peça extrapola o universo escolar para discutir relações humanas mediadas por dispositivos de controle social e econômico, como consta na divulgação da Organização SP Escola de Teatro. Outra integrante de “Medo” é Francine Teixeira, 44 anos, moradora do Ipiranga e convidada por Miguel para fazer parte do elenco. Ela está no teatro há muito tempo, porém, não consegue se sustentar sendo atriz.

Outro ator da peça é Lucas Ramos, de 24 anos, morador do Grajaú, Zona Sul de São Paulo. Ele está envolvido com a arte desde os 7 anos, quando fez parte do programa “Jovens Brilhantes”, de Moacyr Franco, no SBT. Também fez parte do “Ballet do Balão Mágico”, da mesma emissora e, a partir daí, começou a se dedicar à dança. Fez jazz, ballet, dança de rua e de salão. Aos 12 anos conseguiu uma bolsa para estudar teatro e aos 15 já sabia que queria seguir nesse ramo.

- Essa performance tenta mostrar que a nossa realidade continua a mesma, de 2006 para cá nada mudou. Tanto naquela época com as “Mães de Maio”, quanto hoje em manifestações devido ao cenário político, o povo mostra sua força e capacidade de lutar pelos seus direitos -, explica.

- Conheci o Miguel aos 19 anos, por causa de uma amiga em co-

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mum e ele me convidou para fazer parte do projeto. Minha primeira peça na Companhia foi “O dia em que Túlio descobriu a África”, onde rodamos vários Sescs de São Paulo, foi uma bela experiência.

Foi justamente nessa época que a Companhia passava pelo processo de capacitação do elenco do projeto, a fase de arrumar a casa. Lucas estava presente e ajudando durante essa etapa. Ele também fez parte do elenco de “Eu Quero Sexo...Será que vai Rolar?”, em que o elenco era formado só por jovens e realizaram uma temporada de três meses em São Paulo. - Sobre “Medo”, quem é seu personagem? -, pergunto - Não trabalhamos com personagens, ninguém tem nome. Foi um processo colaborativo que surgiu do Miguel e que prevalecia em construirmos figuras para ter uma peça com pouco texto, muito performática e sensorial. - Então reformulando, o que você representa na peça? - Faço uma figura de Carcará, um bicho que caça coisa podre como o Urubu, porém, as pessoas interpretam de diferentes maneiras. Tem gente que acha que sou a morte ou um vampiro, o bandido ou a polícia. Não queremos jogar na cara das pessoas, lançamos elementos e a ideia é que o espectador tire suas próprias conclusões. - E o que você aprendeu durante os

ensaios e a preparação dessa peça? - Acima de tudo adquiri muito conhecimento durante esse ano de construção da peça, parece que fiz uma faculdade, desde a abordagem dos temas, os debates, as críticas e os estudos. Assim fui me desenvolvendo e enriqueci muito como ator nesse processo.

A Companhia sobrevive graças a concursos públicos via editais da Prefeitura. Por exemplo, o Casarão não é da Companhia, é do Estado. Houve uma concessão do espaço por causa do projeto. - Dependemos muito dos envolvidos na Companhia, fazemos desde os ensaios até lavar o banheiro. A questão de verba para a manutenção do grupo é fundamental, a falta de dinheiro para pagar os atores faz com que eles procurem outros meios de sustento e a peça não sai.

No ano passado, por exemplo, conseguiram o projeto aprovado pela Lei de Fomento ao Teatro, em que realizaram a peça “A inocência do que eu (não) sei”. O Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo realiza dois editais por ano, sendo um por semestre, onde os grupos interessados apresentam seus projetos que são avaliados por Comissões Julgadoras, compostas por

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membros com notório saber em teatro. O programa é desenvolvido em diversos espaços públicos desempenhando o importante papel de revitalização de áreas degradadas, inaugurando novos espaços teatrais e levando o teatro às ruas da cidade. Suas atividades ocorrem em todas as regiões de São Paulo, sendo uma grande meta levar a atividade teatral do centro para as regiões periféricas da capital ou, no caso, de atividades teatrais da periferia para o centro. - O nosso principal público é o jovem e trabalhamos numa perspectiva de teatro contemporâneo, em que o discurso não é o mais importante, mas sim, as relações humanas, a crítica social -, explica Miguel. - E como trazer o público de Helió-

polis e o de fora para assistir uma peça na Companhia? - Quando chegamos a essa casa estávamos nessa perspectiva de como trazer o público de Heliópolis e do Ipiranga para a Companhia, tentando não rotular o público. As pessoas devem ter os direitos iguais, mesmo com diferentes realidades. - Mas você acha que no Brasil é assim que acontece? - Você não pode comparar o pobre com o rico. O ideal seria se todos pudessem ter os mesmos direitos, mas numa visão social e financeira eles não são iguais. Por exemplo, quando é rico chamam de jovem, quando é pobre chamam de menor, o vocabulário já é diferente. O preconceito é enraizado, se eu apareço em um restaurante caro vou ter um tratamento diferente de um homem branco. O capitalismo muda a relação entre as pessoas e as coisas.

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PO SFÁC I O

O ambiente de Heliópolis é repleto de contradições e paradigmas a serem quebrados, uma comunidade tão rica em cultura, identidade própria e autonomia, mas também com altos níveis de pobreza, abuso policial e tráfico de drogas. No mês de agosto tive a oportunidade de conhecer a comunidade. Fiz uma visita acompanhada pelo responsável por toda a comunicação da UNAS, o Reginaldo. Ele me ajudou e guiou os caminhos que o livro reportagem poderia seguir, surgindo como possível fonte e indicando diversos personagens de Heliópolis. Ele afirma que a grande questão é que não enxergamos o que realmente acontece lá dentro. Normalmente, somos influenciados por estereótipos acerca desse universo, mas poucos procuram contar a história de uma favela com uma abordagem humana que evidencie avanços, seres humanos e identidade própria, sem julgamentos ou juízo de valor. Durante a execução do projeto, meu maior objetivo foi ser o mais fiel possível com a realidade e retratar o que se passa em Heliópolis, com suas iniciativas e moradores. O livro não tem cunho político, opinativo ou denunciativo, a grande proposta é evidenciar histórias ligadas às ações educativas da comunidade.

Como jornalista, me abstive de qualquer opinião, visitando os projetos, escutando personagens e sintetizando os fatos. Tive acesso a informações muito ricas em relação a personagens para guiar o livro, graças à facilitação de contatos que a Viração e o Reginaldo me passaram. Ao todo foram 10 visitas à Heliópolis, sendo quatro ao Cine Favela e seis à Companhia de Teatro. Nesse período conheci personagens, rotinas e realidades diferentes, além de criar uma imagem diferente do que tinha e desconstruir um preconceito que existe, porém, muitas vezes não se manifesta. Durante os últimos seis meses de elaboração do livro acabei me envolvendo com o tema, querendo entender cada vez mais como fazem as oficinas, a relação com os jovens, como se mantém financeiramente e como é o dia a dia de um morador de Heliópolis. A conclusão que tiro dessa experiência é que independentemente de ser rico ou pobre, preto ou branco, velho ou jovem, é necessário voltarmos nossos olhares à realidade de dentro das favelas por todo o Brasil. Vivemos em uma sociedade em que o medo prevalece principalmente em cidades grandes como São Paulo, por isso, acabamos

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não aceitando o incomum para o “nosso universo”, muitas vezes por causa de um preconceito reforçado pela mídia sensacionalista que prefere mostrar uma angulação trágica, em que o negro é bandido, o jovem é menor e o pobre é incapaz. Esse sentimento acaba enraizado na gente e, de maneira inconsciente, acabamos gerando pensamentos e atitudes que não são de nossa essência. Por exemplo, no mês de abril fui assaltado na rua perto de casa, um bairro nobre da cidade de Cotia. Quando avisei meu orientador sobre o que havia acontecido, ele logo achou que tinha sido roubado em Heliópolis – ou seja, de maneira involuntária aquele pensamento vem. A proposta desse livro é justa-

mente de quebrar essa imagem de que a favela é muito perigosa, que projetos desenvolvidos lá dentro são piores e que as pessoas que fazem essas iniciativas acontecer são inferiores. Existe um ponto cego na sociedade capitalista em que vivemos e muitos fazem questão de não pensar a respeito disso, porém, esses cidadãos pertencentes à essa zona cega lutam a cada dia por um objetivo: ajudar sua comunidade a construir um bairro educador, integrador e pacífico, independentemente do olhar que vem de fora. Uma busca incessante para mostrar que o sistema é desigual, que existem realidades completamente diferentes e que dinheiro não define talento e qualidade.

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Fonseca, Pedro Neves Heliópolis: arte e educação : A história do Cine Favela e da Companhia de Teatro de Heliópolis / Pedro Neves Fonseca. - São Paulo, 2016. 56 p. Trabalho de conclusão de curso (graduação) – Escola Superior de Propaganda e Marketing, Curso de Jornalismo, São Paulo, 2016. Orientador: Renato Essenfelder 1. heliópolis. 2. livro reportagem. 3. jornalismo. 4. arte-educação. I. Essenfelder, Renato . II. Escola Superior de Propaganda e Marketing. III. Título. Ficha catalográfica elaborada pelo autor por meio do Sistema de Geração Automático da Biblioteca ESPM

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