Greve na Tela - O movimento de 1978 a 1980 pela lente do documentário

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Greve na tela o movimento de 1978 a 1980 pela lente do documentรกrio Pedro Passos Guijarro 1



Greve na tela o movimento de 1978 a 1980 pela lente do documentário Pedro Passos Guijarro

Trabalho de Conclusão de Curso

Universidade de São Paulo (USP) Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP) Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE) Bacharelado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo Dezembro 2018



Agradecimentos

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Introdução

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1. O estouro inicial em São Paulo

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2. O assassinato de Santo Dias

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3. O novo sindicalismo do ABC

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4. Greve geral de 1979

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5. Produçãoe Distribuição

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Conclusão

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Referências Bibliográficas

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Apêndice - Entrevistas

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Agradecimentos Primeiramente gostaria de agradecer a todos os que passaram pelo meu caminho nesses anos de graduação e me ajudaram a construir, de alguma forma, a pessoa que eu sou hoje. Obrigado ao Renato Levi por topar me orientar nesse trabalho. Aos amigos do jornalismo, agradeço pelo companheirismo nos momentos bons e ruins. Marcelo e Vini, obrigado por serem meus camaradas nesses seis anos e por termos aprendido juntos a construir essa relação de confidência que eu espero que continue por muitos anos. Anita e Sara, que junto comigo passaram pela aventura de morar por seis meses longe, mas provaram que é possível construir em outro lugar e com outras pessoas nossa segunda casa. Bibi, Ju e Thi, obrigado por me apoiarem mesmo quando eu não acredito que seja capaz e também por me proporcionarem tantos momentos de felicidade genuína. Aos amigos do Centro Acadêmico, obrigado por me transformar e abrir meus olhos para a realidade. São muitos companheiros que estiveram comigo ao longo de todos esses anos, mas um agradecimento especial vai para o Rodrigo e a Zito, por terem me trazido para esse universo, mesmo sem eu perceber, e por continuarem sendo meus exemplos até hoje. Aos amigos da vida, vocês vieram antes e durante esse turbilhão universitário, vamos continuar ainda mais próximos depois dele passar. Ju Mazze e Helô, mesmo com a distância sinto que vocês estão sempre ao meu lado, cada reencontro 7


é mais feliz. À Ju Odri eu agradeço por terem se tornado uma pessoa essencial, sempre torcendo por mim. Vitória, Manu e Amanda, que se tornaram amigas queridas nesse tempo todo. Ao Marcel eu agradeço por ser meu melhor amigo, o mais antigo, da família, companheiro que eu sei que sempre posso contar não importa o que aconteça. Aos meus pais, Antonia e Paulo, agradeço por suportarem toda essa espera e por me apoiarem não importa os caminhos que eu trilhe.

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Introdução

A ideia de falar sobre os documentários produzidos em meio às grandes greves do final da década de 1980 surgiu, em grande parte, por conta de uma curiosidade pessoal em torno dessas produções. Entrei em contato com o filme Braços Cruzados, Máquinas Paradas, no primeiro ano de graduação na ECA, durante uma greve estudantil. Desde então, a potência com que o filme retratou aquele movimento de massa, que há 40 anos modificou estruturalmente a política e a economia brasileiras, se tornou um tema de muito interesse para mim. Embora exista uma grande fortuna crítica, principalmente na academia, acerca desses filmes, sempre senti falta de um relato que trouxesse as experiências dos próprios cineastas, seus motivos para filmar os operários, o modo como funcionava a produção e distribuição das obras em meio à ditadura militar, à censura e à falta de interesse comercial que sempre prejudicou o cinema documentário no Brasil. Da mesma forma, conhecer mais o próprio movimento sindical desse período foi importantíssimo. Muitas vezes as greves foram descritas como um grande movimento amplo e espontâneo, mas ao se debruçar sobre o assunto é possível ver as muitas nuances da disputa política e econômica 9


que estava sendo travada pelos operários. Esses pontos de vista e interesses dos diferentes grupos também moldaram o cenário do cinema que ali foi realizado. Foi importante também conhecer as bases do documentário brasileiro, principalmente dos filmes que se utilizaram da linguagem audiovisual para retratar “o povo”. Para isso foi incontornável passar pelo livro Cineastas e Imagens do Povo, de Jean Claude Bernardet, que dá um panorama das produções que tentaram de maneiras distintas falar sobre esse “povo”, conceito muitas vezes simplista e ligado ao campo da sociologia. Mas também foi importante conhecer mais sobre o documentário clássico e as tendências que vinham do exterior. Para isso, o ensaio Espelho partido: tradição e transformação do documentário de Silvio Da-Rin, pôde dar um panorama das principais vertentes e associá las ao que é produzido por aqui. Passei a me focar cada vez mais na virada promovida pelas obras que tentaram quebrar as barreiras que separam o cineasta daqueles que são retratados na tela, ou que, ao menos, deixam claro a existência dessas barreiras e exploram seus limites. Esse trabalho parte de um questionamento central: com a eclosão de tantos filmes tematizando o movimento popular e sindical, a partir de suas manifestações políticas, seria possível caracterizar um movimento do documentário brasileiro? A partir disso, quis entender quais as distinções dos filmes produzidos no período de 1978 a 1980, em relação ao que foi produzido antes e depois, no campo do documentário. A seleção de cineastas entrevistados — Claudio Kahns, João Batista de Andrade, Renato Tapajós, Roberto Gervitz e Olga Futemma — ajudou a construir uma visão daquele momento histórico. Cada um, com seus filmes, conseguiu passar adiante ao menos uma parte daquilo que ocorreu nesse grande movimento social e histórico. A partir das conversas, também foi possível construir uma visão crítica das di10


ferentes tendências de cada diretor e de como isso forjou a linguagem dos filmes e as discussões que cada um deles propõe. Outra questão que foi de grande importância na escolha desse tema girou em torno da cobertura midiática realizada por jornais e televisões sobre as greves daquele período. Diferentemente do cinema, o jornalismo, na grande maioria das vezes, cobriu os acontecimentos em São Paulo e em São Bernardo a partir de uma perspectiva factual incompleta e generalizante. Exceto pelos jornais locais, nos bairros, e pelos jornais militantes, a cobertura foi repleta de lacunas, fato que tornou sempre difícil para a população entender o que acontecia, o contexto das motivações das greves, suas implicações e resultados. Essa é uma das razões para a grande repercussão que esses documentários tiveram, reunindo em suas exibições um número elevado de pessoas interessadas em saber o que se passava no movimento. Foram numerosos os debates feitos junto com os cineastas, de forma que foi possível para os realizadores ter um retorno direto dos espectadores de suas obras. São vários os relatos do público participando, elogiando determinadas sequências, aplaudindo e até mesmo criticando certas opções dos cineastas na representação. Isso abriu um canal até então nunca explorado, nem pela mídia, tampouco pelo cinema feito anteriormente. Esse canal de retorno dos filmes para aquele “povo” — não mais tão abstrato — que aparece na tela foi uma das grandes viradas não muito experimentadas até então. Enquanto o grande jornalismo retratava os movimentos populares e sindicais a partir de uma ótica negativa, fruto das linhas editoriais e de seus interesses, o documentário geralmente se apropriava das pessoas, dos trabalhadores e dos movimentos populares, muitas vezes para reforçar suas próprias teses sociológicas, sem que muitas dessas obras fossem vistas por aqueles que nelas apareciam.

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Estas questões relativas à representação não foram completamente solucionadas, é verdade. Ainda assim, há uma diferenciação nas intenções, na linguagem e lugar social daqueles jovens que buscaram entrar em contato com os operários. Houve também um esforço para desmascarar o discurso de autoridade do diretor/ narrador, um esforço para intervir politicamente na realidade, para participar do movimento — com maior ou menor intensidade. Ao todo, estima-se que entre 1978 e 1984 houve uma média anual de 214 greves1, número que representou um renascimento dessa forma de reivindicação, visto que nos anos anteriores, por conta da repressão do regime militar, não há registro de movimentos semelhantes. Vale ressaltar também que, embora nos anos seguintes, após o retorno da democracia, tenha havido um crescimento acentuado no número de greves, houve também uma dissipação, pois as greves deixaram de ter a mesma centralidade que tiveram no final da década de 70.

1 Os dados se referem apenas ao estado de São Paulo. 12

Por fim, acredito ser de grande importância realizar essa retomada, tanto das questões que envolviam o movimento grevista quanto da sua manifestação cultural a partir do documentário. A luta e a ação política levadas a cabo pelos trabalhadores transformaram não apenas a realidade do próprio movimento operário, mas também levou consigo um processo de transformação nas formas de representação do trabalhador. Em um curto período de tempo foram derrubados muros — tanto na realidade concreta, com esse golpe nas bases econômicas da ditadura, quanto no campo da linguagem engendrada nesse contexto.


1. O estouro

inicial em São Paulo

Embora a associação mais comum feita em torno das greves do final da década de 70 seja com o movimento liderado por Lula e o Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo, na realidade a primeira grande greve que fez ressurgir o movimento operário brasileiro durante a ditadura ocorreu em São Paulo, no ano de 1978. Ao contrário do que se passou no ABC paulista, o movimento em São Paulo se organizou de forma silenciosa, sem a presença de uma grande liderança e por fora do sindicato. Há várias explicações possíveis para essa diferença, entre elas a longa história de lutas do operariado paulista, que remonta desde as experiências dos anarquistas em 1917. Esse passado fazia com que, na capital, fossem mais fortes os interesses dos diferentes governos em controlar os sindicatos e reprimir a classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, os trabalhadores de São Paulo também já possuíam mais experiências de luta e intervenção política, pois a capital já era espaço de uma intensa disputa entre correntes e partidos políticos. O Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo estava sob comando do dirigente Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão, uma figura bastante controversa. Ele participou da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”2 e era franco apoiador da ditadura civil-militar em seus primeiros anos. Logo após 13


o início do regime, foi nomeado interventor do Sindicato dos Metalúrgicos de Guarulhos, e em, 1965 foi eleito presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, à época o maior da América Latina. O fato se repetiu pelos 22 anos seguintes, até 1986. Joaquinzão ganhou a alcunha de pelego, ou seja, a pele que amortece os atritos entre a cela e o cavalo, que no contexto do operariado significa aquele sindicalista que defende o patronato. Diante desse contexto, o movimento grevista de 1978 cresceu por fora da estrutura sindical. O caminho desses metalúrgicos trazia várias semelhanças com as experiências das greves operárias de Osasco e Contagem, realizadas em 1968 e organizadas em torno das comissões de fábrica clandestinas. Essas comissões funcionavam como espaços alternativos de disputa, dada a ineficácia dos sindicatos, que estavam sob intervenção na época. Ambas foram duramente reprimidas pelo regime militar3 .

2 Passeata organizada pela organização Tradição, Família e Propriedade (TFP), realizada antes do golpe. 3 Por muito tempo, o ensaio do sociólogo Francisco Weffort sobre o tema era uma das únicas referências de análise sobre essas greves, considerando-as espontâneas, mas entrevistas com os operários grevistas feitas posteriormente mostram que o movimento já havia sido planejado desde o ano anterior. 14

Em São Paulo, essas comissões se ampliaram a partir de espaços de organização popular, como associações de bairro e comunidades eclesiais, nos quais as organizações de esquerda conseguiam exercer sua influência de formas desprezadas pelo regime militar. No momento em que estouraram as greves houve uma grande surpresa e o aparato de repressão não conseguiu conter a expansão desse movimento. Sua luta se voltava principalmente contra a carestia e o arrocho salarial, mas por trás dessa pauta havia muitos operários buscando repensar a estrutura sindical brasileira e propor novas formas de organizar a luta da classe trabalhadora.


Foi no desenvolvimento deste trabalho popular que surgiu a Oposição Sindical Metalúrgica (OSM), movimento que reunia diversas organizações operárias e políticas em uma frente de oposição à direção do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Em grande parte das fábricas da cidade, foi essa oposição que impulsionou a formação das comissões de fábrica e a organização das greves. Foi em 1978 que eles estiveram mais perto de conquistar a eleição no sindicato, impulsionados pelo respaldo dos operários à greve. A paralisação e o processo eleitoral foram retratados pelo filme Braços Cruzados, Máquinas Paradas, documentário pioneiro no retrato dessa explosão, que junto com as greves no ABC abalou as bases econômicas da ditadura. Sua produção ficou marcada pela relação de apoio à Chapa 3, encabeçada pelos membros da OSM. Essa incursão cinematográfica direta no movimento operário rompeu com um longo período de distanciamento imposto pelos militares.

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O movimento paulistano serviu como um alerta de confrontos maiores que estavam por vir no Brasil e que iriam abalar tanto a estrutura sindical quanto as estruturas políticas da ditadura. Pode-se dizer que os metalúrgicos de São Paulo foram a vanguarda que deu os primeiros passos de uma luta prolongada que resultaria no retorno da democracia no ano de 1985. A preparação dessa primeira explosão já estava acontecendo desde muito antes e trazia ecos de uma longa história das lutas das classes populares para defender a manutenção de suas condições de vida

A eleição de 1976 Uma das experiências mais importantes nos anos que precederam a deflagração da greve foi a eleição municipal de 1976. Nos anos anteriores, durante as poucas eleições permitidas pela ditadura, já vinha ocorrendo um crescimento na insatisfação popular com o regime militar. Em 1974, as eleições nacionais tocaram um alarme. A votação massiva do MDB (Movimento Democrático Brasileiro), único partido de oposição permitido pela ditadura, garantiu uma maioria legislativa ao partido, fato que nunca tinha acontecido nos dez anos de ditadura até então. De acordo com o cineasta Roberto Gervitz, diretor do filme Braços Cruzados, Máquinas Paradas, “Foi um primeiro grande ‘não’ que o regime militar recebeu”. Antes desta eleição, todas as outras haviam sido vencidas pela ARENA (Aliança Renovadora Nacional), partido alinhado com os interesses dos militares. Em grande parte, a esquerda nunca tinha depositado seus votos no MDB, por considerá-lo uma oposição consentida pela ditadura e não um real representante dos interesses populares. Em 74, porém, o povo se utilizou desse partido pela primeira vez para dar uma resposta aos governantes. Gervitz descreve essa votação como “Um primeiro grande balanço dos anos de chumbo”.

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Em 1976, ano das eleições para prefeitos e vereadores, Gervitz e o diretor Sérgio Segall filmaram juntos o documentário A História dos Ganha Pouco. Os dois eram alunos do curso de Ciências Sociais da USP e foram acompanhar o processo eleitoral em um bairro na periferia de Osasco. Lá, eles captaram um fenômeno político renovador, que foi o surgimento de candidaturas oriundas das classes populares. A proposta do filme era acompanhar os dois candidatos da associação de moradores do bairro Jardim D’Ávila, um candidato pela ARENA e outro pelo MDB. Gervitz explicou que a divisão dos candidatos acontecia pelo caráter clientelista da associação de bairro, que precisava de canais para dialogar com as instâncias superiores de poder na prefeitura, “embora também existissem diferenças sutis ideologicamente entre um e outro, que explicavam por que cada um escolheu um partido”. Ainda que os partidos tivessem programas muito distintos, era mais interessante para a associação do bairro ter duas candidaturas. Ao acompanhar os candidatos, os jovens diretores também conheceram muito da vida cotidiana daquela periferia, o que tornou o filme quase um documentário antropológico que mostrava as dificuldades cotidianas, como falta de saneamento e de políticas públicas, em meio ao contexto das eleições. O trabalho foi uma primeira tentativa da dupla de fazer a obra retornar às pessoas nela retratadas, algo que estaria presente também em Braços Cruzados, Máquinas Paradas. Embora fosse um filme bastante amador, feito com Super 84, foi bastante difundido após sua finalização, principalmente em associações de bairro de diversas cidades, mas também em comunidades eclesiais de base e outros espaços de reunião popular. Muitos dos filmes que já tinham sido realizados sobre as classes populares não eram vistos pela população. Como exemplo, Gervitz cita a experiência das Caravana Farkas5 , proposta de quatro documentários que pudessem discutir 18


as questões sociais do Brasil, realizada em 1964 por Thomaz Farkas. “Mas naquele momento a gente entendia isso como uma espécie de apropriação”, analisa. “A gente ia lá, filmava, se apropriava daquilo e não devolvia para as pessoas. Só passava na cidade para os intelectuais e os estudantes” Para Gervitz e Segall, que já tinham participado de um grupo de estudos com Renato Tapajós anteriormente, os filmes produzidos poderiam ter um importante papel nos lugares onde haviam sido feitos. Tanto é que foi por meio da ampla difusão de História dos Ganha Pouco que eles se aproximaram da Oposição Sindical Metalúrgica e foram convidados para cobrir a eleição sindical de 1978 em São Paulo.

Surgimento da Oposição Sindical Metalúrgica O Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo era o maior da América Latina, contando com aproximadamente 400.000 operários em sua base territorial. No período posterior ao golpe militar de 1964, ele era caracterizado por práticas assistencialistas e pela delação de opositores para as empresas e órgãos repressivos da ditadura. A estrutura do sindicato se baseava no modelo proposto durante a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas. Embora o governo tenha acabado em 1945, a sistematização que atrelava o sindicato ao Estado vigorou até a década de 80. O modelo era inspirado no corporativismo fascista italiano. Cada setor da produção

4 Filmadora simples para curta-metragens, que aperfeiçoava a filmagem em 8mm. 5 Os documentários realizados pela Caravana Farkas foram Memórias do Cangaço, Nossa Escola de Samba, Subterrâneos do Futebol e Viramundo.

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(indústria, comércio etc.) tinha uma estrutura hierarquizada por níveis, começando pelos sindicatos, e chegando até federações e confederações. Nesse formato, era proibida a formação de centrais operárias ou frentes sindicais, o que comprometia o dinamismo do movimento operário. Com isso, essas organizações acabavam desempenhando um papel muito mais burocrático e assistencial do que propriamente de defesa dos trabalhadores. “Tinha uma série de amarras, era uma camisa de força para o movimento sindical”, descreve Gervitz, que em Braços Cruzados, Máquinas Paradas faz uma dura crítica a essa estrutura. Foi na luta contra esse imobilismo do sindicato que surgiu a Oposição Sindical Metalúrgica. O núcleo da OSM se formou a partir da experiência do movimento que organizou a greve na fábrica da Cobrasma, em Osasco, no ano de 1967. Duramente reprimida, essa mobilização antecedeu a publicação do AI-5, decreto que caracterizou a fase mais dura do regime militar e que praticamente desestruturou todas as organizações de esquerda e operárias. No início da década de 1970 foram dados os primeiros passos para a formação da Oposição, que fazia um trabalho de base com os trabalhadores de forma local, a partir de pequenos grupos internos às fábricas. Publicamente os operários do grupo já disputavam também as eleições do Sindicato dos Metalúrgicos de SP com a Chapa Verde, sem obter grandes votações. Durante esse período, cresceu a influência da OSM, que passou a organizar comissões de fábrica clandestinas e até as interfábricas, espécie de conselhos interligando os operários de fábricas de diferentes pontos da cidade. Mas é somente a partir de 1975 que o movimento vai se adensando e passa a reunir diversas organizações de esquerda, que enxergavam no crescimento do movimento operário paulista uma oportunidade de também fazer avançar suas próprias demandas. Entre tais organizações esta20


vam Ala Vermelha, Ação Popular, POLOP, POC, PORT, PCdoB, Grupo 1º de Maio, membros da Pastoral Operária e militantes independentes. A atuação da OSM se expandiu, reunindo militantes não apenas nas fábricas, mas também nos bairros, a partir do trabalho de base nas associações de bairro e grupos eclesiásticos. O operário Hélio Bombardi, um dos principais articuladores da greve em 1978, descreveu a evolução da OSM: “De 72 até 78, quando explodiu a greve, foram seis anos de conversa, de discussão, de organização, de passar material pros companheiros [...], era um trabalho de formiguinha no começo mas era aquele trabalho diário”6 . Esse trabalho de formiga seria a semente do movimento que iria estourar em 1978 e sacudir a conjuntura nacional.

Braços Cruzados Em 1977, o Banco Mundial divulgou que, em 1973, o regime militar havia alterado os dados inflacionários, maquiando a situação real do país e ocultando uma perda salarial estimada em 34,1%. A revolta que essa notícia trouxe aos trabalhadores deu um maior impulso à OSM, que encampou uma campanha pela reposição salarial do período. Isso deu um impulso ainda maior às mobilizações operárias, e a Oposição passou a vislumbrar uma possibilidade real de ganhar as eleições para o sindicato no ano seguinte. Tendo isso em vista, os dirigentes da OSM entraram em contato com Roberto Gervitz e Sérgio Segall, para apresentar aos cineastas o projeto de um longa-metragem sobre a eleição no Sindicato dos Metalúrgicos de SP. A intenção era denunciar as manobras e fraudes da Chapa

6 Entrevista para o Projeto Memória da Oposição Sindical Metalúrgica, que reúne, desde sua criação, um grande acervo de depoimentos dos operários que compunham a OSM e é realizado pelo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas), entidade criada por educadores, acadêmicos e sindicalistas. 21


1, encabeçada por Joaquinzão. “Eles tinham visto o História dos Ganha Pouco e vieram falar que iam acontecer as eleições” conta Gervitz. “Queriam que flagrássemos como as eleições eram fraudadas para mostrar isso para a opinião pública”. As filmagens de Braços Cruzados, Máquinas Paradas foram iniciadas ao mesmo tempo em que começaram a explodir as primeiras greves nas principais fábricas da cidade. A Oposição já sabia da articulação dessas greves, e as promovia a partir do seu trabalho clandestino nas comissões de fábrica. Para os cineastas, isso foi uma surpresa. “Eles não falaram isso de início, porque tinham medo de divulgar esse trabalho que era ilegal”, afirma Gervitz. O filme acabou sendo dividido em dois momentos distintos. No primeiro, é abordada a greve, a partir de entrevistas com operários na porta das fábricas, mostrando suas reivindicações. No segundo momento, é abordado o processo eleitoral, mostrando a dificuldade da Oposição e as interferências da Chapa 1, que tornaram a eleição questionável. Por se tratar de um filme realizado em conjunto com a OSM, as opiniões expressas no documentário são alinhadas às opiniões e ao programa da chapa. “Era um filme para a Oposição, inclusive porque nossa formação sindical não era muito grande, por conta da ditadura, os estudantes tinham sido apartados do movimento operário”, contou Roberto, “Fomos honestos, falamos desde o início sobre essa nossa defasagem, mas que estávamos interessados em fazer um filme para utilizarem no trabalho deles”. Braços Cruzados, Máquinas Paradas acabou captando muitas das discussões que estavam sendo travadas no seio do movimento sindical do período. Ao dar espaço para os operários da oposição divulgarem o seu programa político, o filme seguiu um caminho narrativo que não questionava aquelas posições. A principal bandeira era a abolição da estrutura sindical que vigorava desde a época do Getúlio Vargas e 22


que, na visão dos operários, amarrava o movimento. “A gente realmente fez um filme de propaganda nesse sentido”, admite Roberto. Aí estava uma das maiores diferenças entre o movimento iniciado em São Paulo e aquele que surgiria no ABC paulista em 1979. Havia entre os dois grupos de operários uma grande distância no que dizia respeito às experiências de luta já vivenciadas. Para Renato Tapajós, um dos principais documentaristas que retratou o movimento sindical no ABC, “Enquanto São Bernardo era um território virgem em relação às organizações partidárias de esquerda, São Paulo já tinha uma origem marcada pela ação de determinadas organizações”. Para ele, essa carga moldava de forma determinante as ações dos operários da capital. Enquanto os operários do ABC viam no sindicato uma diretoria que respeitavam, em São Paulo a diretoria do sindicato já havia sido completamente deslegitimada. As consecutivas fraudes eleitorais não davam esperanças de uma superação sem que fosse implodida a estrutura sindical vigente. Gervitz comenta essa discussão no âmbito dos sindicatos: “A OSM discordava do Lula, porque ele falava que dentro dessa estrutura dava pra fazer muita coisa, enquanto o movimento da Oposição falava que não, que essa estrutura era uma amarra e que a gente tinha que acabar com ela.” O filme, do início ao fim, transmite esse ponto de vista. Naquele momento, Sérgio e Roberto buscaram transmitir exatamente aquele programa que a OSM queria implantar. “A nossa capacidade de fazer cinema, nosso domínio da linguagem, nossa capacidade intelectual, a gente colocou a serviço do movimento” conta Gervitz. “Queríamos que o filme tivesse uma função importante dentro da organização e do movimento, mas as ideias não eram nossas” Embora considere que a oposição tinha um trabalho mais interessante, no sentido de ser um movimento mais horizontal, com muitos líderes, Gervitz acredita hoje que Lula estava mais certo “em termos de visão”. Havia uma grande 23


crítica em torno de Lula, por parte das organizações de esquerda, que defendiam que ele focava apenas no sindical, sem levar os operários a um avanço de consciência. “Eu lembro que, por um período, o Partido Comunista fazia uma crítica ao Lula por não politizar o movimento” — analisa o cineasta — “mas na realidade era o movimento possível naquele momento”. Ainda assim, ele considera que em relação ao “grau de avanço das organizações”, a Oposição podia ser considerada pioneira pois não dependia de uma única figura e tinha sua liderança democraticamente dividida entre diversas pessoas. Essa era uma das principais características da OSM. Entre seus líderes estavam nomes como Hélio Bombardi, Stanislaw Szermeta, Waldemar Rossi, Anízio Batista e Cleodon Silva. Além deles, um dos dirigentes mais importantes foi o operário Santo Dias da Silva, que teve um significativo diálogo com os documentaristas que cobriram as greves em São Paulo.

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2. O assassinato de Santo Dias

Foi na década de 1960 que o metalúrgico Santo Dias da Silva veio de Terra Roxa, município no interior do estado de São Paulo, para a capital. Por aqui, ele logo se tornou um líder na associação do Bairro de Vila Remo, na periferia da Zona Sul. Nesse período ele também começou a trabalhar na fábrica da Metal Leve e se vinculou à Pastoral Operária, tendo posteriormente, ao longo de sua vida, se tornado próximo do arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns. Durante os anos 1970, Dias começou a militar na Oposição Sindical e, em 1978, foi um importante articulador de greves e comissões de fábrica. Nas eleições para o sindicato, foi o candidato a vice-presidente da Chapa 3, ao lado de Anísio Batista de Oliveira. Gervitz conta que, durante a produção de Braços Cruzados, Máquinas Paradas, Santo Dias foi destacado pela Oposição para acompanhar os realizadores. “Ele que nos ajudava a programar as filmagens, dizendo em quais dias deveríamos ir em cada fábrica”, afirma o diretor, que também diz ter sido muito importante essa articulação feita por Dias, pois era ele quem viabilizava os principais contatos necessários para as gravações. “Tínhamos uma relação bem próxima com ele”.

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Santo Dias foi assassinado em 1979. Após a grande movimentação no ano anterior, os trabalhadores promoveram mais uma jornada de greves, marcada para o mês de outubro. Dias foi, junto a um grupo de mais de 100 operários, à porta da fábrica Sylvânia, no bairro de Santo Amaro, para garantir a manutenção de um piquete que estava sendo realizado por lá. Foi nessa ocasião que o soldado Herculano Leonel, da Polícia Militar, atirou em Dias. Testemunhas que estavam presentes relataram que o metalúrgico havia ido ajudar um companheiro que estava sendo levado pelos militares quando estes deram um tiro para o alto. Com o início de uma reação dos operários, o policial disparou contra ele, perfurando seu tórax. A morte aconteceu a caminho do hospital. O trágico assassinato gerou uma radicalização da greve, que ao final durou 10 dias. Foi realizada uma grande manifestação no dia 31 de outubro, marcando o velório de Santo Dias, que aconteceu na Praça da Sé. A importância do dirigente da OSM era incontestável e o velório foi acompanhado de perto por diversos cineastas. Olga Futemma, que à época trabalhava com Renato Tapajós no filme A Luta do Povo, conta que filmou o velório, junto com o fotógrafo Zetas Malzoni. “O Zetas vinha filmando o séquito, chorando. A gente acompanhava a viúva, todos chorando, e a câmera não tremia”. Para ela, isso mostra a consciência que era necessário ter ao documentar um acontecimento histórico. “Você tem chances de outras coisas, mas de captar aquele momento você não tem mais”. Em 2004, a filha de Santo, Luciana Dias, a jornalista Jô Azevedo e a fotógrafa Nair Benedicto lançaram o livro Santo Dias – Quando o passado se transforma em História. Na obra, está registrada a biografia do líder operário e também uma análise das principais lutas que ele encampou no contexto do movimento sindical paulista.

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Santo e Jesus Metalúrgicos O documentário Santo e Jesus Metalúrgicos tem um formato bastante diferente das outras produções focadas no movimento sindical. Dirigido por Claudio Kahns e Antonio Paulo Ferraz, o filme começou em 1978, acompanhando o caso do assassinato do operário Nelson de Jesus, que tinha ido discutir com os patrões o pagamento de horas extras trabalhadas. O acontecimento teve alguma repercussão midiática e, por conta disso, Kahns foi chamado por seu amigo Antonio Paulo Ferraz para acompanhar a movimentação que acontecia no bairro do Brás, onde ficava a fábrica. “Ele me ligou falando de um crime que tinha acontecido em uma fábrica, sem muitos detalhes. Ele queria ir filmar e eu topei”, conta o diretor.

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Os dois começaram a frequentar o local e ir ao bairro onde o operário morava, para acompanhar a família e os colegas de trabalho de Jesus. “Foi um negócio brutal e nós resolvemos fazer uma coisa meio antropológica”. Nessas primeiras filmagens eles conheceram Santo Dias, que já era um dirigente sindical na época. É ele quem aparece no filme relatando a morte do companheiro. “Nós logo pensamos que ele seria o narrador do filme” comenta Kahns. “Entrevistamos ele, levando para um lugar lá na periferia, perto do Socorro, e ele contou toda a história”. No ano seguinte, porém, ocorreu o assassinato de Santo Dias. Esse fato deu uma guinada completa na produção do filme. Kahns conta que estava ouvindo o rádio quando soube da morte de um operário e decidiu ir ao local para filmar. Ao chegar, descobriu que a vítima era Santo Dias. Esse crime acabou se tornando o fio condutor da obra, que faz uma forte denúncia da repressão, ligando os assassinatos de Jesus e Dias. “O filme começa com a praça que foi inaugurada

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como uma homenagem a ele” explica Kahns, que escolheu o nome do documentário justamente por seu simbolismo católico. “Como o outro operário chamava Jesus, tivemos essa sacada para o nome do filme ser Santo e Jesus Metalúrgicos”. Por seu teor crítico, o filme teve diversas de suas sequências censuradas. Ele havia sido vetado pela Polícia Federal, sob alegação de provocar conflito de classes e denegrir a imagem da instituição, que aparecia como órgão repressor. Kahns conta que foi a Brasília defender o filme com um advogado. “Ao final, a gente conseguiu liberar o filme, sem cortes, no Conselho Superior de Censura”.

A Luta do Povo Um outro coletivo de grande importância entre 1978 e 1980 foi o Movimento Custo de Vida (MCV). Em 1978, o grupo fez uma grande passeata na Praça da Sé, reivindicando que ow governo tomasse providências em relação ao crescente au29


mento do custo de vida, que advinha dos altos índices inflacionários. Na esteira do assassinato de Santo Dias, foi o MCV que realizou, em parceria com a OSM, o cortejo fúnebre do metalúrgico. Santo e sua esposa, Ana Dias, também foram importantes quadros do MCV, que tinha forte ligação com as comunidades eclesiais de base. Esse movimento foi tema do filme A Luta do Povo, de Renato Tapajós. O diretor, que nesse período já produzia filmes no ABC, associando-se ao Sindicato dos Metalúrgicos, realizou esse documentário na capital em parceria com a Associação Popular de Saúde (APS). O filme foi gravado entre 1979 e 1980 e começa justamente com o velório de Santo Dias. Olga Futemma, que também participou desse projeto, destaca que filmagem foi uma das mais marcantes das quais participou. Ela conta que, no momento da montagem do filme, havia um grande interesse para que a obra fosse usada politicamente, e relata que militantes do PCdoB costumavam ir à sala de montagem para discutir com a equipe quais planos deveriam ser usados. “Eles me pediram para tirar um plano, que era belíssimo, do pessoal chegando ao Ibirapuera durante uma manifestação”, comenta Olga. “Pediram para cortar porque era muito bonito. Diziam que distraía”.

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3. O novo

sindicalismo do ABC

Como já falamos anteriormente, há diferenças fundamentais entre o movimento grevista no ABC e aquele que se desenvolveu na capital paulista. A maior delas se dava em torno das figuras que lideravam as greves e suas estratégias e visões distintas sobre a utilização da estrutura sindical. Embora a questão que separava esses dois sindicalismos, em São Paulo e no ABC, estivesse centrada nas diferentes visões políticas de cada um deles, houve também um desenvolvimento bastante distinto dos acontecimentos dentro de cada um desses círculos operários. No ABC, o movimento começou a partir de 1977 com pequenas greves locais e teve seu estopim com a greve de 1979, que durou 45 dias. Mas, mesmo após ser decretado o fim da paralisação, os operários de São Bernardo não deixaram os holofotes e mantiveram uma construção constante das lutas impulsionadas pelo sindicato. Em São Paulo, já à época do assassinato de Santo Dias em 1979, as comissões de fábrica impulsionadas pela Oposição Sindical Metalúrgica passaram por um processo de desarticulação e, embora suas lideranças continuassem atuando intensamente na articulação do movimento, o sindicato nunca foi dirigido por eles. Ao longo dos anos seguintes, a OSM se uniria aos esforços de diversos sindicatos nacionais pela criação da CUT (Central Única dos Trabalhadores). 33


A fundação da CUT representava a solução vislumbrada pelos sindicalistas de São Bernardo — entre eles, a figura central do movimento, Luís Inácio Lula da Silva. A fundação de uma central nacional que reunisse os sindicatos sem um atrelamento ao Estado — como anteriormente — representava, na visão de Lula, uma refundação do sindicalismo brasileiro, sem que sua estrutura precisasse ser destruída como preconizavam os operários de São Paulo.

Evolução do movimento O ABC paulista foi uma região de industrialização tardia no estado de São Paulo. A região foi beneficiada em grande medida pelos investimentos estrangeiros aplicados no Brasil na metade da década de 1950. Uma série de medidas econômicas e comerciais foram tomadas durante os governos de Café Filho e Juscelino Kubitschek de forma a favorecer o investimento direto na indústria brasileira através da aquisição de máquinas e formação de uma indústria moderna. O setor mais favorecido por essa entrada de capitais foi o automotivo, que teve no ABC a maior concentração de novas fábricas7 . Por conta dessa formação posterior em relação a outros segmentos industriais, a região teve menor influência e intervenção de organizações políticas de esquerda, desenvolvendo um sindicalismo sui generis no país. Diferente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, a influência das bases operárias era muito mais sensível no ABC. Já no início da década de 1970, houve tentativas de ação grevista na região do ABC de forma autônoma por parte dos operários e sem o apoio do sindicato, que, à época, era dirigido por Paulo Vidal. Ao mesmo tempo, o sindicato ampliava sua atuação enquanto mediador da relação entre os operários e empresários, dissociando-se da Federação dos Metalúrgicos de São Paulo, órgão que reunia os sindicatos do interior do estado. 34


Deste período, é interessante o comentário de João Batista de Andrade, que na época trabalhava no programa Hora da Notícia, da TV Cultura8 . Ele havia ido realizar uma série especial no ABC em 1972, enfocando o movimento contra o arrocho salarial que se iniciava por lá. “Paulo Vidal era um conservador. O Lula já era um dos diretores, mas ninguém conhecia ele ainda”, diz. Ele comenta que o programa captava justamente a reivindicação mais direta por salários, mas que ele já enxergava naquele contexto uma luta mais ampla. “O saldo daquilo era a luta contra a ditadura, porque o arrocho salarial era a base da ditadura.” Além dos dois primeiros programas, nos quais entrevistou Paulo Vidal, João Batista de Andrade realizou um terceiro, quando conversou com Lula. “Eu fiz um depoimento com ele, que dizem que foi a primeira vez que ele foi entrevistado pela TV”, comenta o cineasta, “Inclusive, o Renato Tapajós diz que viu o Lula pela primeira vez nessa reportagem.” Três anos após a entrevista, em 1975, Lula é eleito presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema. Em seguida, o II Congresso dos Trabalhadores Metalúrgicos, realizado em 1976, aprova uma série de pautas que dá respaldo ao Sindicato. Entre elas, a redução da jornada de trabalho, o reconhecimento dos delegados sindicais e a organização de comissões internas nas fábricas9 . A isso, somou-se a divulgação, pelo Banco Mundial (BIRD), da manipulação de índices econômicos que embasou os reajustes salariais concedidos entre 1973 e 1974. Tal manobra resultou numa perda de cerca de 34% no salá-

7 Sobre os instrumentos econômicos utilizados para expandir a indústria no período, foi uma legislação específica da Superintendência da Moeda e do Crédito que permitiu o aumento nas importações de máquinas. 8 O Telejornal foi idealizado em 1972 pelo então diretor de jornalismo da TV Cultura, Fernando Pacheco Jordão. Tinha em sua equipe Vladimir Herzog como editor e João Batista de Andrade como repórter especial. O programa foi ao ar até 1974, quando grande parte da equipe jornalística foi demitida por intervenção do regime militar. 9 Ao contrário das comissões pensadas pelos operários da capital, o II Congresso dos Metalúrgicos de São Bernardo vinculava a criação dessas comissões ao sindicato, de forma paritária, com empresários e sindicalistas. 35


rio real dos trabalhadores, e levou o sindicato a uma campanha pela reposição dos valores perdidos.

Documentarista no sindicato Um dos cineastas mais atuantes na cobertura do movimento sindical do ABC foi Renato Tapajós. Sua aproximação com o Sindicato dos Metalúrgicos aconteceu a partir de um curso de análise cinematográfica, originalmente realizado no Museu Lasar Segall e para o qual foram convidados dirigentes do sindicato, explica o cineasta. “Eles gostaram do curso e me convidaram para levar a experiência para o sindicato. Foi a primeira atividade que eu realizei junto com eles e durou uns três meses, mais ou menos”.

10 O congresso aconteceu entre os dias 21 e 28 de janeiro de 1978, a partir de um debate suscitado pela Tribuna Metalúrgica, órgão informativo do sindicato 36

Por conta dessa aproximação através do curso, Tapajós acabou sendo convidado para realizar alguns filmes para o sindicato. O primeiro deles foi Acidente de Trabalho. A obra aborda uma das questões pelas quais o sindicato batalhava à época, que era a instalação de mecanismos de segurança para reduzir o elevado número de acidentes com operários. Olga Futemma, que trabalhava com Tapajós à época, contou que esse foi um dos poucos projetos em que conseguiram filmar dentro de uma fábrica, “Nós chegamos a filmar uma fabriqueta que produzia peças para uma fábrica grande. Era de uma precariedade, uma sujeira e máquinas sem manutenção”. Conforme explica Tapajós, o filme era uma tentativa de ver sob outra ótica o acidente de trabalho, “não como era mostrado pelos patrões, como culpa ou desatenção dos operários, mas


como algo promovido pela própria estrutura do trabalho das empresas”. Finalizado em 1977, Acidente de Trabalho marcou o início da parceria do cineasta com o sindicato.

Trabalhadoras Metalúrgicas - presença feminina no ABC Nesse período inicial da parceria, foram feitos vários curtas abordando aspectos diferentes do contexto do operariado. Entre eles, chama a atenção o filme Trabalhadoras Metalúrgicas. Realizado em função do I Congresso das Mulheres Metalúrgicas de São Bernardo do Campo e Diadema10 , o filme foi dirigido por Tapajós e codirigido por Olga Futemma. Os dois se conheceram em função do curso que Tapajós ministrou no Museu Lasar Segall, em São Paulo, onde Olga trabalhava à época como programadora. Juntos com Maria Inês Villares, Roberto Gervitz e Sérgio Toledo Segall, eles formaram um grupo que estudava o cinema documentá-

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rio. Embora não mantivessem uma parceria formal, frequentemente os membros do grupo trabalharam juntos em filmes realizados entre 1976 e 1980. A produção do filme sobre o Congresso das Mulheres foi feita a pedido do Sindicato dos Metalúrgicos, para divulgar as discussões e as pautas que ali seriam propostas. Inicialmente, seria apenas um registro do encontro, mas Olga e Tapajós propuseram à direção do sindicato que o filme também abordasse a realidade das mulheres trabalhadoras de São Bernardo. “A gente disse que queria ter uma bandeira: salário igual por trabalho igual”, explica Olga. A crescente participação feminina no setor escondia uma forte diferenciação salarial entre homens e mulheres. O Dieese havia divulgado que 50% dos homens metalúrgicos recebiam o dobro do salário de 50% das mulheres nas mesmas funções. A isso, somam-se no filme as denúncias das trabalhadoras sobre as condições insalubres no serviço e assédios recorrentes.

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As filmagens também acabaram extrapolando o registro do evento e mostraram a rotina das mulheres operárias. Cenas do cotidiano nas fábricas são intercaladas com imagens delas nos momentos de lazer, em uma montagem que dá força à proposta do filme de discutir as mudanças no papel social das mulheres. Olga conta que, embora Trabalhadoras Metalúrgicas tenha sido muito bem recebido pelas operárias, que nunca haviam se visto na tela, em outras exibições a obra suscitou polêmicas. “Tem uma hora que eu pedi pro fotógrafo focalizar alguns detalhes assim: meias de seda, sapato salto alto, unhas tratadas, por que elas se produziram para ir ao congresso”, explica a diretora. Mas a escolha de abordar esses detalhes foi rechaçada por reforçar estereótipos do universo feminino. “Eu achava aquilo uma maravilha, mas levei tanta cacetada das feministas”.

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4. Greve geral de 1979

Ao longo de 1978, a campanha de reajuste salarial proposta pelo sindicato não estabeleceu um valor de reajuste único para toda a categoria. A ideia era ampliar o poder de negociação em cada fábrica e também deslegitimar a negociação direta da Federação dos Metalúrgicos do Estado de São Paulo com o governo, que estabelecia os reajustes à revelia dos operários. Essa campanha levou a uma série de greves localizadas em diversas fábricas de São Bernardo. Embora tenha sido considerada ilegal pelo governo do estado e pelo Ministério da Fazenda, a greve conquistou um reajuste de 11% ao final do ano. A partir de 1978, Renato Tapajós passou a acompanhar sistematicamente os acontecimentos ligados aos metalúrgicos. “Nesse momento, foi o próprio Lula que me ligou e me convidou para ir lá filmar, porque aquilo era inédito”, conta o cineasta, “Eu montei rapidamente uma equipe, a gente não tinha financiamento, mas a gente montou uma equipe em grande parte voluntária e fomos para lá começar a filmar”. Esse movimento amplo de greves parciais que começou em 1978 deu as bases para a organização, no dia 13 de março de 1979, às vésperas da posse do general João Figueiredo, da primeira greve geral metalúrgica desde a instauração da ditadura militar em 1964. João Batista de Andrade associa 41


o movimento grevista ao momento político: “O ano de 79 ficou marcado tanto pela anistia quanto pela greve no ABC”, explica. “A greve tinha essa mesma característica de greve local, de enfrentamento salarial. Na minha visão, eles podiam achar que era isso, mas eu acredito que era mais do que aquilo”. A greve de 1979 foi marcada também pela corrida para acompanhar os acontecimentos no ABC. Se, antes, apenas a equipe de Renato Tapajós acompanhava regularmente o movimento operário de São Bernardo, a partir de março de 1979 diferentes grupos — tanto de cineastas quanto de jornalistas — passaram a filmar o dia-a-dia da grande greve que tinha surpreendido a todos. Olga descreve essa ação vanguardista dos cineastas: “Quando eclodiu a greve, a primeira [no ABC] durante o período ditatorial, a gente já tava lá. É interessante isso, foi um movimento de uma importância extraordinária e quem primeiro chegou lá foi o cinema, não foram os jornalistas”. Para ela, “começaram a aparecer pessoas muito interessadas no que estava acontecendo, mas o trabalho miúdo de divulgação foi o pessoal do cinema que fez”. João Batista também conta que foi para o ABC com urgência, “a gente acabava improvisando muito as condições de filmagem, não tinha dinheiro e tal, acabava conseguindo uns parceiros. Eu resolvi filmar lá, editar rapidamente, para que o filme circulasse ainda durante a greve”. Tapajós, que já estava filmando em 78, conta que prolongou a captação para poder acompanhar desde o início a greve de 79. “Aí nós filmamos todo o processo de construção da greve, desde o começo até seu auge, numa assembleia no estádio de Vila Euclides”. De acordo com Claudio Kahns, três grupos de cineastas se dividiam na cobertura da greve, “Basicamente, quem estava filmando no ABC era o Leon [Hirszman], o Renato Tapajós e o João Baptista [de Andrade]. Tinha um ou outro carinha filmando mais precariamente, mas no geral eram esses três 42


grupos”. O próprio Kahns compôs a equipe de filmagem de Hirszman. “O Adrian [Cooper, diretor de fotografia] me chamou para ir junto fazer a produção. Então começou uma saga de dois meses, acompanhando as greves” explica, “Era o que estava acontecendo no Brasil naquele momento.”

Greve! e Dias Nublados O livro Cineastas e Imagens do Povo, de Jean-Claude Bernardet, se tornou uma referência para a discussão das questões que envolvem a relação entre os cineastas e o povo, e as formas como este é retratado na tela. Como base do estudo, Bernardet selecionou filmes que representam a essência do processo que chamou de “crise do modelo sociológico”. 43


No capítulo O intelectual diante do outro em greve11 , o autor faz um apanhado de algumas produções que buscaram retratar, a partir da linguagem do documentário, a greve dentro do universo do operariado brasileiro. Entre as análises que foram propostas nesse texto, a que nos interessa é aquela que comparou os filmes Greve!, de João Batista de Andrade, e Dias Nublados, de Renato Tapajós. Esses dois filmes tematizam os principais acontecimentos da greve de 1979, a intervenção do governo militar no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema e a volta dos operários ao trabalho. A intervenção foi entre os dias 23 de março e 18 de maio e persistiu mesmo após a trégua dos operários. A greve, que já tinha 10 dias de duração no momento em que o governo interviu, passou por cinco dias cruciais antes do retorno dos operários ao trabalho para a

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trégua prometida de 45 dias. Nesse contexto, os dois filmes fazem caminhos completamente distintos para mostrar os fatos ocorridos, e trazem também seus posicionamentos políticos acerca do movimento. João Batista de Andrade escolheu mostrar, no filme Greve!, um panorama que liga a greve no ABC aos embates políticos que ocorriam por conta da “abertura democrática” planejada por Ernesto Geisel e que começava a ser implementada pelo recém-empossado João Figueiredo. Andrade discute a relação dos operários com o que acontecia fora do ABC. “Só o meu filme que revela isso, eles não queriam ouvir a sociedade civil apoiando, eles não se interessavam” diz

11 No apêndice da reedição de 2003 do livro, foi incluído o artigo Filmar Operários, publicado na revista Caderno de Crítica, da Embrafilme, e que analisa os filmes Greve, Braços Cruzados Máquinas Paradas e Chapeleiros.

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Andrade. “Tem uma cena, que era na famosa assembleia do sábado, em que alguém tenta ler um documento de apoio assinado por várias entidades civis, OAB, ABI, vários sindicatos, associações, e ninguém queria ouvir aquilo, não interessava para eles”. Dias Nublados, de Tapajós, tinha outra visão da greve. Seu filme pauta o movimento a partir dos acontecimentos, sem a presença de narração ou de dados inseridos, contando apenas com entrevistas, discursos e imagens de cobertura das assembleias. O propósito do filme, mais que promover uma análise das políticas do sindicato, foi montar uma narrativa com seu ponto de vista, partilhado pelo sindicato, visando divulgar o que se passou durante a intervenção e fortalecer a direção do próprio sindicato. “Num determinado momento, o Lula e a diretoria do sindicato desapareceram e a gente continuou filmando por conta própria”, conta Tapajós. “Quando eles retomaram a 46


direção do sindicato, a gente pôde sentar para conversar qual ia ser o destino daquele trabalho”. Essa relação já estabelecida entre o cineasta e os dirigentes contrasta com a posição de Andrade, que, sem esse vínculo, fez um filme composto de análises próprias. Ainda que seu filme também seja uma obra que busca a intervenção na realidade e não uma análise sociológica do que se passava, sua visão era independente das posições do sindicato (sendo, inclusive, crítica em determinados momentos). Ambos os filmes foram produzidos, montados e exibidos ainda durante o período da greve. Isso era parte de uma estratégia dos cineastas para divulgar rapidamente o movimento e tentar ampliar o alcance do que se passava no ABC para outros lugares, já que a televisão e o jornalismo não cumpriam esse papel. “As TVs não divulgavam”, comenta João Batista de Andrade, ao falar do papel que seu filme teve na divulgação do movimento. “Foi um filme que, durante a greve, foi exibido em vários lugares: igrejas, salões. 47


O fato é que o filme circulou, foi para o mundo inteiro. Ele substituía a TV, já que a TV não podia mostrar aquilo.”

A líderança de Lula Para além dos diferentes lugares de onde falam os cineastas em Greve! e Dias Nublados, há também outro fator que torna as abordagens dos dois filmes bastante distintas. Trata-se da discussão em torno da liderança de Lula no movimento grevista e o impacto que sua ausência teria causado nos dias que separam o início da intervenção e o retorno ao trabalho. Enquanto Tapajós fez um filme alinhado com a luta interna do sindicato e que, portanto, não dá margem a um questionamento das posições da entidade, Andrade propõe em seu filme uma análise do papel do líder no movimento, fazendo uma reflexão que transcende Lula, mas que usa ele como objeto de análise. “Eu tinha algumas diferenças com o Lula. Só pelo fato de ele ter liderança, ter carisma, não quer dizer que ele esteja certo. Isso é bobagem”, argumenta.

12 João Batista de Andrade foi militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), conhecido pela alcunha de “partidão”.

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Ao mesmo tempo, o diretor aborda de forma crítica, em uma das principais cenas de Greve!, a ausência de liderança no movimento. Ao filmar uma assembleia que ocorreu em um sábado, sem a presença de Lula, ele e o diretor de fotografia Aloysio Raulino se aproximavam de diversos grupos de operários dispersos, que na ocasião ignoravam os discursos, para perguntar da greve. “Quer dizer, o filme opera uma alteração na realidade, para que ela se revele”, comenta Andrade, que interpretou aquela desorganização dos operários como um sinal da


falta que uma figura central fazia. “Acabou sendo uma das coisas mais fortes do filme, mostrar as pessoas assim, nessa agonia louca.” A montagem de Dias Nublados não possibilita essa interpretação sobre as possíveis consequências da ausência temporária de Lula. A filmagem da assembleia exibe apenas o momento no qual a polícia reprime os trabalhadores e acaba com a reunião no Paço Municipal. No filme de Tapajós, o mais importante era dar espaço para que as ideias do sindicato se expressassem. Para ele, “[João] Batista [Andrade] tinha uma visão muito definida a respeito da luta operária, a partir da visão de mundo do ‘partidão’12 ”, o que explicaria certos posicionamentos do cineasta. “Eu tinha uma visão diferenciada, onde entra muito menos esse lado da organização histórica dos trabalhadores e mais a explosão no mo49


13 Os filmes eram exibidos em caravanas por todo o país na campanha de assinatura para a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT). O filme Greve! também foi exibido, apesar de suas divergências com a ala lulista. 14 O Centro Popular de Cultura foi criado em 1961, no Rio de Janeiro, ligado à União Nacional de Estudantes (UNE). A partir do projeto de construção de uma “cultura nacional, popular e democrática”, ele reuniu artistas de teatro, música, cinema, literatura, artes plásticas etc.

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mento em que ela estava acontecendo ali em São Bernardo”. Dessa forma, Tapajós acreditava que sua visão da luta operária ficava menos comprometida do que a de outros diretores, que foram ao ABC com uma ideologia prévia. Para Andrade, a diferença se dava justamente pela escolha de Tapajós de entrar no movimento a partir do sindicato. “Ele fez o filme enquanto militante, porque ele acreditou naquilo, como uma coisa que podia ser uma resposta.” Os dois já haviam trabalhado juntos antes, em um documentário que Tapajós havia feito sobre o movimento estudantil na Universidade de São Paulo. “Cinematograficamente, a gente era muito diferente, tínhamos um pouco de divergência política”, explica Andrade. “São visões diferentes, mas eu acho que por isso os filmes se complementam.”


Balanço do movimento - ABC da greve e Linha de Montagem Após esse período no qual Greve! e Dias Nublados fazem seu recorte, a greve se estendeu por quase dois meses. Dois longas-metragens buscaram mostrar a totalidade do movimento: ABC da Greve, de Leon Hirszman, e Linha de Montagem, de Renato Tapajós. Ambos foram finalizados após o fim das greves e tiveram a função de provocar a reflexão e propor um balanço sobre os acontecimentos em São Bernardo. Linha de Montagem também se tornou um importante instrumento nas campanhas de fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Partido dos Trabalhadores (PT)13 e também no movimento das Diretas Já. Hirszman já havia dirigido o importante documentário Maioria Absoluta, em parceria com o Centro Popular de Cultura (CPC)14 , em 1964, e sua filmografia era bastante vasta

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quando o diretor, que havia participado do movimento do Cinema Novo, foi para o ABC cobrir o movimento que se desenrolava na greve de 1979. Ele veio do Rio de Janeiro para São Paulo acompanhar a greve junto com Adrian Cooper e Claudio Kahns. Os registros do filme foram feitos em 2 meses, desde março até o fim da greve, em maio. Durante esse período, Hirszman ficou morando com Claudio Kahns e, para realizar as filmagens, ambos iam para São Bernardo praticamente todos os dias. A finalização de ABC da Greve e a posterior distribuição do filme só ocorreu após a morte de Hirszman, em 1987. O filme foi lançado oficialmente em 1990, por meio do apoio da Cinemateca Brasileira e do Ministério da Cultura. Já o filme Linha de Montagem, acabou sendo um dos poucos longas-metragens que acompanharam o movimento após as greves de 1979, registrando os acontecimentos do ano seguinte, quando ocorreu a prisão de Lula. O filme começou com a proposta de ser um curta, mas acabou se prolongando e tornou-se um longa-metragem. Ele foi um importante instrumento para que Tapajós conseguisse reforçar, junto à diretoria do sindicato, a importância do cinema na luta concreta dos operários, por conta do grande impacto que o filme teve.

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5. Produção e Distribuição

Uma das características mais marcantes em todos os filmes analisados é a capacidade dos realizadores de produzir e exibir as obras, mesmo em meio à escassez de recursos que marcava o cinema independente do final da década de 1970. No período, o cinema conviveu tanto com a intervenção constante do governo militar, por meio da censura, quanto com a falta de iniciativas públicas e privadas de fomento às produções. Nesse cenário de penúria, foi possível manter uma produção consistente, que tinha como viés principal a ação política e não a viabilidade comercial. Mais do que isso, tratou-se de uma expansão do cinema documentário, que deixou de ter como interlocutor somente o público dos meios intelectuais e universitários para dialogar com audiências maiores e que nunca haviam tido contato com sua representação audiovisual. Uma combinação de fatores possibilitou que essas produções se tornassem mais prolíficas. Por um lado, as crescentes crises econômicas da ditadura impulsionaram a abertura democrática, o que possibilitou o retorno de muitos exilados ao país e consequentemente uma maior liberdade ideológica. Por outro, estavam surgindo uma série de inova-

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ções técnicas no campo audiovisual, o que tornou as produções muito mais ágeis e baratas, apesar de certo atraso em relação a outros países, como França e Inglaterra. Vale dizer que essa ebulição não esteve circunscrita ao Brasil. Claudio Kahns, por exemplo, morou na França entre 1971 e 1975 e contou que, por lá, viu muitas produções do cinema militante, tendo inclusive participado de uma filmagem durante uma manifestação contra a Guerra do Vietnã, em frente à Embaixada dos Estados Unidos. Houve também forte influência do cinema cubano, que durante os anos 1960 trouxe diversas inovações técnicas e foi referência para cineastas como Renato Tapajós, como ele mesmo contou em sua entrevista. Dessa forma, os cineastas se valeram de um circuito alternativo nascente para fazer circular os seus documentários. Em sua maioria, os filmes não tinham um retorno comercial, então as produções precisavam ser enxutas. Por conta disso, muitos dos diretores optaram por produzir curtas-metragens e trabalhar com equipes engajadas, que também estivessem interessadas no movimento.

O movimento enquanto produtor A parceria com sindicatos e organizações populares foi uma das estratégias utilizadas para burlar o sistema de produção e distribuição comercial e forjar um caminho independente para os filmes. Essa parceria facilitou bastante a escolha de temas políticos para os documentários, pois quem articulava as formas de produzir o filme eram os próprios interessados na realização. Mas, ao mesmo tempo, o investimento era sempre pequeno, o que fazia com que todos os cineastas buscassem formas mais econômicas de filmagem. Entre essas parcerias diretas com o movimento sindical, as principais foram o filme Braços Cruzados, Máquinas Paradas e os filmes de Renato Tapajós realizados em conjunto com 54


o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. O primeiro não teve grande apoio financeiro, por se tratar de uma chapa de oposição à direção do sindicato, ou seja, um grupo que não se utilizava do aparato da entidade. Mesmo assim, houve um importante papel da OSM na articulação de Gervitz e Segall para que conseguissem distribuir o filme, inclusive com a participação da organização educacional FASE15 , que atuava em vários estados brasileiros. A principal referência de trabalho orgânico, realizado de forma articulada com organizações sociais, no entanto, foi Renato Tapajós. Junto ao sindicato, ele estabeleceu uma relação de produção colaborativa, na qual os temas dos filmes eram discutidos previamente com os diretores da entidade. Assim, seus filmes foram os mais prolíficos entre os realizados no ABC de forma que o início de sua trajetória cinematográfica se confunde com as lutas do sindicato. Tapajós descreve o processo de criação da seguinte forma: “Eu desenvolvia uma ideia e ia ao sindicato para fazer uma reunião com a diretoria e discutir o filme. Uma vez discutido, o sindicato assumia a produção. O que não significa que ele pagasse totalmente por ela”. Assim, o diretor e o sindicato buscavam levantar recursos com apoiadores que fossem simpáticos à militância dos operários.

Circuito alternativo de exibição A participação do cinema documentário no circuito comercial, irrisória antes da ditadura militar, tornou-se praticamente nula durante o regime. Muitos filmes feitos naquele período tiveram sua exibição proibida ou trechos censurados. Com esse bloqueio institucional, foi

15 Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, organização não governamental fundada em 1961. O foco de seu trabalho era o desenvolvimento local, comunitário e associativo, tendo um trabalho conjunto com oposições sindicais e movimentos comunitários de base. 55


preciso criar uma rede alternativa para que as obras circulassem. Foi assim que começaram a ser realizadas exibições em espaços do próprio movimento, com um público mais interessado nas discussões propostas. O curta-metragem A História dos Ganha-Pouco, de Roberto Gervitz e Sérgio Toledo Segall, foi uma das primeiras experiências com este tipo de exibição que dialogava diretamente com as pessoas retratadas na tela. O filme foi apresentado na associação de bairro do Jardim D’Ávila, propondo que, após a exibição, os moradores discutissem os problemas que eles mesmos haviam levantado no filme. “Eram debates bastante participativos, porque as pessoas se viam ali, o Brasil nunca havia tido um cinema em que as pessoas se vissem na tela”, comenta Gervitz. O sucesso desse primeiro encontro fez com que os diretores fossem convidados para levar o filme a diversas entidades semelhantes em bairros periféricos, inclusive em outros estados. Os próprios cineastas acompanharam o filme em várias dessas exibições e debates. Relembra Gervitz: “Eu e o Sérgio ficamos projetando o filme por mais de um ano. A gente ia nos bairros daqui de São Paulo, fomos para Minas Gerais. Tínhamos interesse em ver as discussões sobre os filmes.”

16 As exibições de lançamento dos filmes Greve!, no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, e Linha de Montagem, no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, são exemplos de sessões lotadas 56

Com os documentários realizados em meio às greves, o circuito se ampliou. As obras também passaram a ser levadas para os sindicatos, promovendo a divulgação e o debate sobre as próprias greves. Não são poucos os relatos de exibições lotadas de operários16 e com debates entre os presentes. Gervitz conta que era comum os operários se animarem com uma cena


específica de Braços Cruzados, Máquinas Paradas, na qual há uma encenação do momento em que a greve começa dentro de uma fábrica. Embora na vida real, o momento de início de uma greve raramente fosse simultâneo, o diretor afirma que havia uma forte comoção quando os operários assistiam a essa representação. João Batista de Andrade também participou deste circuito sindical. O lançamento de Greve! Foi realizado no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, durante a greve retratada. O filme ainda não havia sido censurado, portanto foi feita uma ampla divulgação “Saiu anúncio no [jornal] Estado [de S. Paulo]”, conta Andrade. “Tinham filas que desciam do sindicato e dobravam a rua para ver o filme. Era uma coisa impressionante”. O lançamento do longa-metragem Linha de Montagem também chamou um grande público para o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, onde aconteceu a exibição. Para o evento, foi solicitada uma autorização da censura, mas, de acordo com Tapajós, diretor do filme, a resposta não foi dada até o dia para o qual estava programado o lançamento. “No dia do evento, estavam lá o Lula, Chico Buarque, o prefeito de São Bernardo e mais um monte de autoridades, além de um público operário gigantesco”, relembra. Em determinado momento, chegaram viaturas da polícia querendo apreender o filme. Foi necessário que o prefeito de São Bernardo interviesse, ficando acertado que, após a exibição, os policiais levariam os rolos consigo. Antes que o filme terminasse de ser exibido, os diretores do sindicato passaram os rolos de filme para uma das faxineiras da entidade que os escondeu dentro de uma sacola de plástico. Assim, foi possível levar o filme para fora do sindicato sem que a polícia percebesse. Tapajós, que estava acompanhando a exibição, só foi saber como as coisas aconteceram muitos anos depois, quando a mesma funcionária contou a história em depoimento a Eduardo Coutinho para o documentário Peões. “Na medida em que o filme 57


sumiu, os policiais ficaram irritados”, conta Tapajós. Com a aglomeração de pessoas no lançamento, entretanto, os policiais foram obrigados a sair da porta do sindicato, com medo de uma reação do público.

Tatu Filmes Após as grandes greves, um grupo de cineastas que já estavam realizando filmes independentes, incluindo documentários políticos, resolveu se reunir para criar uma produtora que fosse comandada por eles mesmos. Dessa iniciativa, nasceu em 1981 a Tatu Filmes, que reuniu alguns dos principais nomes do cinema independente produzido em São Paulo. Os idealizadores foram Claudio Kahns e Adrian Cooper, que se juntaram a outros cinco cineastas. A produtora foi uma forma encontrada pelos diretores de viabilizar seus próprios projetos e de outros colegas, tanto no campo do documentário como no da ficção. Lá foram produzidos os documentários ABC da Greve, Santo Jesus Metalúrgico, filmes sobre movimento indígena, movimento popular e demais temas frequentemente negligenciados. Ao mesmo tempo, também foram produzidos filmes de ficção premiados como Janete, de Chico Botelho, e Marvada Carne, de André Klotzel. Além disso, a Tatu Filmes contava com projetos publicitários que viabilizavam economicamente os projetos autorais da empresa, já que não havia estrutura de financiamento a partir de editais ou programas públicos. Claudio Kahns conta que a produtora conseguiu o contato para criar os filmes de uma empresa que fazia treinamentos dentro de multinacionais. “Os filmes eram produzidos para a Shell, para uso interno, com roteiro pronto. Isso era o que pagava as contas”. Também se contava com uma rede de apoio, formada por amigos e pessoas interessadas em fortalecer o cinema independente que despontava. De acordo com Kahns, diante do elevado custo dos negativos, o filme ABC da Greve, que 58


seria inicialmente um curta-metragem e depois se transformou em um longa, foi viabilizado graças à ajuda de pessoas como Thomas Farkas e Henfil, que ajudaram a cobrir os gastos. Dessa forma, a produtora acabou incentivando e retroalimentando a produção de um cinema jovem em São Paulo. A Tatu foi uma das primeiras produtoras a se instalar na Vila Madalena e criou uma forte agitação cinematográfica na região, que depois foi seguida por outros. “Esse esquema de produzir que nós aplicamos na Tatu não existia antes. Não era uma cooperativa, era uma empresa, mas havia sete cineastas tocando ela”, analisa Kahns. “Fomos novidade, a gente era o cinema da Vila Madalena”.

CDI - Cinema Distribuição Independente Além da vontade de criar filmes e exibi-los no circuito sindical, surgiu também a ideia de impulsionar a distribuição dos filmes para além do circuito cineclubista, para torná-los mais acessíveis a públicos mais amplos. Assim nasceu a ideia de fundar a Cinema Distribuição Independente (CDI), empresa criada e controlada pelos próprios realizadores. Antes de seu surgimento, a distribuição ficava principalmente a cargo da Distribuidora Nacional de Filmes Brasileiros (Dina Filmes), criada em 1974 pelo Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros (CNC). Essa empresa se propunha a distribuir, entre os cineclubes nacionais, os filmes que antes ficavam relegados apenas ao circuito cultural de elite. Parte do acervo da Cinemateca Brasileira foi cedido à Dina Filmes em 1976, visando estimular sua circulação pelo país. Nos anos 1980 a entidade passou a ser considerada ineficiente pelos cineastas independentes que não conseguiam distribuir seus filmes pelo circuito comercial. Foi aí que surgiu a ideia de criar uma empresa desvinculada do Conselho

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dos cineclubistas e que tivesse maior agilidade para distribuir os filmes produzidos em meio às movimentações políticas daquele período. “A gente percebeu que a federação dos cineclubes, que já fazia esse trabalho antes, era um pouco amadora demais, tinha alguns problemas” explica Roberto Gervitz “por isso achamos importante a distribuição ser um pouco mais controlada pelos realizadores independentes”. A CDI, criada em 1981, funcionava em parceria com as principais produtoras independentes. Juntas, elas reuniam o dinheiro necessário para colocar em prática um esquema de distribuição que substituiu o sistema da Dina Filmes, que deixou de existir ainda nos anos 1980.

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Conclusão O cinema documentário não é, e nem deve se propor a ser, uma recriação do real na tela. Ele parte das experiências reais para elaborar e reelaborar, a partir delas, as suas definições estéticas e políticas. Com os filmes analisados neste trabalho não é diferente. As imagens produzidas junto ao movimento operário não representam a totalidade daquilo que aconteceu em São Paulo e no ABC, mas criam uma rede de signos que representam historicamente o movimento que ocorreu. O resultado dessas empreitadas cinematográficas tem uma importância por construir uma memória rica não apenas em torno da história, mas em torno dos indivíduos que construíram essa história. Com o avanço das técnicas de captação e gravação, há uma ampliação das possibilidades de representação. Mesmo assim, no campo popular ainda havia um déficit, nem todos os realizadores que buscavam retratar o povo e as situações de opressão e luta política, necessariamente se davam conta que a representação cinematográfica necessariamente carrega uma série de aspectos muitas vezes camuflados.. Nesse sentido, o filósofo Jacques Rancière trabalha conceitos que dialogam muito com questões presentes nessa análise dos documentários produzidos nas greves de São Paulo e do ABC nos anos 1970 e 1980. Para ele, a ruptura que tem ocorrido na representação contemporânea não mudou radicalmente a sua estrutura, a diferença é que com a maior facilidade proporcionada pelos avanços tecnológi61


cos, a especificidade das obras não é mais dada por uma técnica em particular, mas pelos códigos e temas apresentados. Uma cena de rua ou a vida de qualquer pessoa tem direito de ser citada na arte, isso transformou a memória artística institucionalizada e abriu espaço para novos temas. Para Rancière, um filme “documentário” não é o oposto de um “filme de ficção”, apenas por nos mostrar imagens que saíram da realidade concreta ao invés de uma história inventada. A realidade não é um mero efeito estético, mas um dado a ser compreendido. Isso está presente nos documentários selecionados, neles não há apenas um trabalho de apreciação do movimento, com o intuito de retratar precisamente os acontecimentos. Há também uma leitura própria do movimento, uma interação do cineasta com esse movimento e um resultado que aglutina tudo isso na síntese de um filme. A realidade retratada não pode ser isolada do imaginário que ela produz no espectador.

17 O filme de Eduardo Coutinho utiliza trechos dos filmes Linha de montagem, ABC da greve e Greve!, para conduzir as entrevistas com os operários. 62

Além disso, cabe dizer o quanto parece ter acontecido, com diferentes nuances, um movimento de partilha coletiva das experiências entre os diferentes cineastas, formando uma certa unidade política baseada no encontro de percepções individuais discordantes. Emprestando novamente conceitos de Rancière, o cinema documentário se caracteriza como uma modalidade de ficção dos fatos, mais homogênea no que diz respeito à produção, porque aquele que concebe a ideia do filme é, muitas vezes, também aquele que o realiza, mas ao mesmo tempo complexa, por encadear ou entrelaçar uma série de imagens heterogêneas.


As experiências de filmar o movimento popular não deixaram de acontecer após 1980. Alguns cineastas continuam mostrando os caminhos seguidos, propondo novas relações com os indivíduos e explorando os limites de representação. Os filmes de Eduardo Coutinho são exemplos desse mergulho reflexivo na forma de expor as relações entre cineasta e entrevistado. Não à toa, seu filme Peões se utiliza de alguns documentários feitos nas greves de 197917 , para realizar a sua própria retomada da memória operária. Ao convidar os operários grevistas para rever os filmes nos quais eles aparecem, Coutinho opera um interessante trabalho de auto reflexão. Ainda que não se trate de uma reconstituição completamente fiel dos fatos, pois isso seria uma tarefa irrealizável, os documentários filmando as greves de 1978 a 1980 se tornaram parte importante da memória audiovisual construída no período. Hoje eles são importantes referências no campo do documentário brasileiro e se mantém dialogando até hoje com a realidade do país.

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Referências Bibliográficas

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Apêndice Entrevistas

Claudio Kahns

Queria entender um pouco como você se envolveu com esse movimento, se é que podemos considerá-lo um movimento de cineastas. Como foi para você criar e participar desse filme? Olha, eu morei na França quase quatro anos, 1971 a 1975. Lá eu vi muito filme militante do mundo inteiro. Filme político, documentário político. Eu fui para lá ficar uns 3 meses e, no fim, passei quase quatro anos e acabei me envolvendo com o pessoal que fazia a resistência à ditadura [brasileira] na imprensa europeia. Lá tinha um grupo de jovens e a gente se reunia às vezes, fazíamos alguns trabalhos. Naquela época eu tinha uma Super 8 e cheguei a ser preso quando fui filmar uma manifestação contra a Guerra do Vietnã. Lá, eu fiquei estudando cinema, daí voltei e quis en68


trar na ECA. Em 1976, eu estava trabalhando na Cinemateca e encontrei um cara que tinha conhecido em Paris, o Adrian Cooper. Aqui, nós logo ficamos amigos e começamos a fazer coisas para a televisão estrangeira. Como vocês chegaram ao ABC? O Leon Hirszman chamou o Adrian para fazer a fotografia de um curta que ele queria fazer lá. Estavam começando as greves, em 1979. O Adrian me chamou para ir junto fazer a produção. Então começou uma saga de dois meses, acompanhando as greves. E a produção do seu filme em São Paulo? Um amigo do Rio me ligou falando de um crime que tinha acontecido em uma fábrica, sem muitos detalhes. Ele queria ir filmar e eu topei. Foi aí que começamos a fazer Santo e Jesus Metalúrgicos. Na verdade, inicialmente era um filme sobre o Nelson de Jesus, um operário que tinha sido morto por um sócio da empresa em que ele trabalhava. Foi um negócio brutal e nós resolvemos fazer uma coisa meio antropológica em cima disso. Começamos a ir pra lá e o crime já estava tendo bastante repercussão. Nesse processo, a gente conheceu um cara que era muito bom. O Santo Dias? Sim. Nós logo pensamos que ele seria o narrador do filme. Entrevistamos ele, levando para um lugar lá na periferia, perto do Socorro, e ele contou toda a história. Pouco tempo depois dessa filmagem, teve uma greve de metalúrgicos em SP e eu ouvi no rádio que um operário tinha sido morto em um piquete. Logo, eu decidi ir lá filmar e, chegando no lugar, descobri que era o Santo. Como o outro operário chamava Jesus, tivemos essa sacada para o nome do filme ficar sendo Santo e Jesus Metalúrgicos. Como foi um PM que atirou, teve muitas manifestações em SP por conta disso. No filme tem até uns trechos de matérias de televisão e jornal. O filme começa com a praça que foi inaugurada com uma homenagem a ele. Mas a produção durou cinco anos, entre o começo e a edição final.

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Foi nessa época que vocês criaram a Tatu Filmes? Você chegou a falar em movimento... Não era um movimento mesmo, eram algumas pessoas. Nesse sentido, eu e o Adrian resolvemos abrir uma produtora. Nós chamamos algumas pessoas que também tinham equipamento. Dito e feito: abrimos a Tatu Filmes na Vila Madalena. Eram sete cineastas. O Mario Mazetti, que já morreu, tinha o contato de uma empresa que fazia filmes para a Shell, de treinamento. Então isso era o que pagava as contas. Paralelamente, a gente colaborava com vários filmes que estavam sendo feitos, sobre índios, sobre os operários, sobre tudo. Esse esquema de produzir, que nós aplicamos na Tatu, não existia antes. Não era uma cooperativa, era uma empresa, mas tinha sete cineastas tocando ela. Fomos novidade, a gente era o “cinema da Vila Madalena”. Em paralelo, outro pessoal jovem começou a abrir também. Superfilmes, a Barca Filmes, a Gira. Ela também retroalimentava esse cenário, produzindo novos filmes de outros grupos? Sim, ficava uma sinergia. Nessa época, a gente estava reivindicando o apoio da Embrafilme também. Porque ela lançava muito filme no Rio e pouquíssima coisa em São Paulo. Ali na Tatu rolava um centro de produção e de agitação cinematográfica, tinha esse lado político também. Também existia uma distribuidora, que chamava Dina Filmes, que distribuía filmes para sindicatos. Mas achávamos que tinha que ser uma coisa mais dinâmica. Então resolvemos abrir uma distribuidora com as principais produtoras, cada uma dava uma parte do dinheiro, para distribuir os filmes políticos que a gente fazia. O Santo e Jesus, os filmes do Renato Tapajós, os filmes do Farkas. Aí nasceu a CDI [Cinema Distribuição Independente], em 1981. A gente não fazia aquilo para deixar numa prateleira. Esses filmes eram feitos durante a ditadura militar. Como era o esquema de produção e distribuição tendo esse limite da censura? O Santo e Jesus foi censurado em algumas sequências, por exemplo. Eu fui pra Brasília com um advogado e defendemos no Conselho Superior de Censura. Acho que a gente conseguiu liberar o filme sem cortes, mas antes tinha que mandar pra censura obrigatoriamente. 70


Na hora de fazer o filme, como foi o primeiro contato com os operários e com a família deles? A gente chegava na fábrica e no intervalo, na hora do almoço, a gente ia conversando. Pedimos autorização do dono para filmar dentro da fábrica, porque a gente estava fazendo “um documentário sobre fábricas no Brás”. Fomos chegando aos poucos. E como funcionava a rede de pessoas que estavam juntas filmando os acontecimentos no ABC? Basicamente, quem estava filmando no ABC éramos nós, o Renato Tapajós e o João Batista [de Andrade]. Tinha um ou outro carinha filmando mais precariamente, mas no geral eram esses três grupos. O que levou a gente foi a ideia do Leon [Hirszman] de fazer um filme político, documentar as greves, o que estava acontecendo ali. Era o que estava acontecendo no Brasil naquele momento. Vocês já enxergavam uma importância no que estavam fazendo lá? Em documentar para além daquela imprensa televisiva. Sim, a televisão era tudo fake news. Eu cheguei a ir na Globo, a pedido do Leon, para tentar localizar no arquivo deles uma assembleia que a gente perdeu. Não tinha passado nem uma semana. O cara falou: “Não tem, aqui só tem futebol”. A assembleia eles tinham apagado. Isso tudo era feito sem nenhum apoio institucional? Era totalmente por fora. Como eu te falei, no ABC da Greve tivemos alguns apoios financeiros, mas eram ajudas pontuais. O Leon conseguia levantar uma grana por já ser consagrado na época, expoente do Cinema Novo e respeitado internacionalmente. Mas no geral era bem difícil.

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João Batista de Andrade

Como você se aproximou dessa mobilização dos operários em 1979? Minha história com o ABC era mais antiga. Para começar, eu era militante na universidade. Quando houve o golpe, eu tava no quinto ano de engenharia na Poli. Fiz meu primeiro filme, sozinho, em 1967, o Liberdade de Imprensa, que foi proibido e apreendido. Em 1972, junto com o Vlado [Vladimir Herzog], a gente fez o Hora da Notícia, programa da TV Cultura onde eu fazia os especiais. Nessa época, eu resolvi fazer um especial sobre o ABC, sobre o sindicato que era dirigido pelo Paulo Vidal e tinha começado um movimento contra o arrocho salarial. O Lula já era um dos diretores, mas ninguém conhecia ele ainda. Então eu fiz três especiais. Para mim, o saldo daquilo era a luta contra a ditadura, porque o arrocho salarial era a base da ditadura. Eu fiz duas entrevistas com Paulo Vidal e na terceira ele não estava, quem estava era um diretor, era o Lula. Então eu gravei um depoimento dele, que dizem ter sido a primeira entrevista dele para a TV. O Renato [Tapajós] diz que viu o Lula pela primeira vez nesta reportagem. Aí em 1979 tem a anistia, mas o ano ficou marcado pela greve no ABC. A greve tinha essa mesma característica que eu estava dizendo, era uma greve local de enfrentamento salarial. Tanto que meu filme revela que eles não queriam ouvir a sociedade civil apoiando, isso não interessava. Tem uma cena na famosa assembleia do sábado, que alguém tenta ler um documento de apoio assinado por várias entidades civis — OAB, ABI, vários sindicatos, associações — mas ninguém queria ouvir aquilo. Na minha visão, eles podiam achar que era isso, mas eu via que era mais do que aquilo. Eu fui pra 72


lá, meio de urgência, a gente acabava improvisando muitas condições de filmagem, não tinha dinheiro. Eu resolvi filmar lá, editar rapidamente, para que o filme circulasse ainda durante a greve. Então o Greve! foi um filme que, durante a greve, foi exibido em vários lugares: igrejas, salões e até no exterior. Você falou da sua experiência anterior com o Liberdade de Imprensa. Você tinha alguma experiência com o jornalismo? Foi a partir do Liberdade de Imprensa que o Fernando [Pacheco] Jordão e o Vlado me convidaram para participar do Hora da Notícia. Esse meu filme tinha um cinema incisivo, que vasculha e não aceita a realidade do jeito que ela aparece, e que tenta buscar o que está por trás de tudo. Eu desenvolvi técnicas para fazer os entrevistados revelarem as coisas, sem que eu tivesse que falar. Na área do jornalismo do Hora da Notícia a experiência dos dois [Fernando Jordão e Vladimir Herzog] era fundamental, mas a grande marca do programa eram os especiais que eu fazia, porque era o que diferenciava o programa, era onde ia mais fundo. Como era o financiamento dos seus filmes, do Greve!, do Trabalhadores, Presente, etc.? Olha, financiamento não tinha, então as pessoas participavam mais voluntariamente. Eu sei que houve algumas vendas depois e a gente andou pagando um pouco pras pessoas. O fato é que o filme circulou, foi para o mundo inteiro. Em 1979, ele foi para o primeiro Festival Latino Americano, lá em Havana, onde eu ganhei o prêmio especial do Júri. Hoje em dia, você vai em qualquer cinemateca e tem cópia desse filme. Também acabou colando bastante com o filme que eu fiz em seguida, O Homem que Virou Suco, que tem cenas da greve. Um impulsionou o outro. Como foi o lançamento de Greve!? O filme era da Raiz [produtora]. Pra você ter uma ideia, o filme foi lançado durante a greve, no Sindicato dos Jornalistas de SP, em várias sessões. Saiu anúncio no [jornal] Estado [de S. Paulo]. Tinham filas que desciam do sindicato e dobravam a rua para ver o filme. Era uma coisa impressionante. Mas, a partir daí, cópias foram apreendidas quando ele foi proibido. 73


No livro Cineastas e Imagens do Povo, do Jean Claude Bernardet, ele compara o seu Greve! com o Dias Nublados, do Renato Tapajós. Como você enxerga a relação entre os dois filmes? Eu acho que é o seguinte: no Greve! eu não era lulista. Nunca fui. Só pelo fato de ele ter liderança, ter carisma, não quer dizer que ele esteja certo. Isso é bobagem. Eu acho que ele foi importante, sempre respeitei a importância dele, mas eu sempre discordava de muita coisa. Só que o meu filme revela isso, que eu não estava fazendo um filme lulista, era um filme sobre a importância da greve no Brasil e não a importância da greve no sindicato. Então, os filmes são muito diferentes. Eu tenho uma sequência que é típica desse meu comportamento, que é quando o Lula tinha desaparecido num período. Perguntei como é que estava a greve. Quando eu perguntei se a ausência do Lula era uma perda, eles começaram a contar vantagem: “Não, de jeito nenhum, porque cada um de nós é um Lula, nós estamos todos unidos”. Aí, veio a assembleia de sábado. Quando eu via as pessoas falando, tentando convencer os outros, eu falava para o Aloysio Raulino ir com a câmera lá. O filme opera uma alteração na realidade, para que ela se revele. A gente ia de um lado para o outro, pegando os discursos super dramáticos, mostrando os operários perdidos. Acabou sendo uma das coisas mais fortes do filme, mostrar as pessoas assim, nessa agonia. Você mostra esse momento em que o Lula desaparece, para depois mostrar o retorno dele. Sim, aí vem o retorno dele. No final, tem o último momento da greve, que é quando ele fala para acabar. A vitória acabou sendo uma vitória para a sociedade, para a luta contra a ditadura, não exatamente para eles, apesar de eles não terem buscado isso. O que ficou provado é que a sociedade tinha força para mobilizar. A diferença é essa, ao passo que o Renato [Tapajós] resolveu entrar no movimento, ficar militante do movimento. Eu tinha as minhas divergências com ele. Cinematograficamente, a gente era muito diferente. No caso, aí tínhamos um pouco de divergência política, porque ele acreditou naquela força social. Eu acho que o lulismo foi uma coisa muito forte. Tem alguns filmes que a massa está branca e preta e o Lula está colorido. Mas eu acho que, no fim, os filmes se complementam. 74


Seus filmes foram usados pelos sindicalistas posteriormente? Sim, inclusive quando resolveram criar o Partido dos Trabalhadores pediram uma cópia do filme Greve!. Os setores mais radicais, mais lulistas, criticavam justamente por causa dessa minha postura mais independente na abordagem da greve. Mesmo assim, pediram uma cópia e levaram nas viagens que eles fizeram para levantar as assinaturas para criar o partido. O Aloysio Raulino estava no Greve! como fotógrafo. Queria que você falasse um pouco sobre a sua relação com ele. O Raulino era uma pessoa, assim, importantíssima, que tinha uma disposição enorme. Ele tinha uma rapidez muito grande para filmar, usava [filme de] 16 [milímetros]. Mas eu sou um diretor muito presente, filmando documentário é comum que eu ponha a mão no ombro do fotógrafo e fique forçando ele. Eu sou muito atento ao que está acontecendo e também atento ao resultado da nossa interação no momento. A gente funcionava perfeitamente, mas ele como um bom fotógrafo e eu, um bom diretor. Ele era um grande amigo, foi uma perda enorme. Fizemos vários filmes juntos.

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Olga Futemma

Dentro desse recorte que estamos propondo, de documentários sobre a classe operária realizados no fim da ditadura, você pode dar um panorama da sua participação? Minha entrada no documentário sobre movimentos sociais se deu através do Renato Tapajós. Quando era estudante da ECA [Escola de Comunicação e Artes], eu fiz um curta de 27 minutos sobre o bairro da Liberdade. O meu curso foi dedicado a fazer esse filme, que era um convênio entre a USP e o Instituto Nacional de Cinema Educativo. Montei outros filmes, segui por essa especialização de montagem, mas só comecei a trabalhar com movimentos sociais em 1976. A partir daí, outros filmes foram chegando. A produção era sempre muito apertada, não tínhamos na época esses editais. Às vezes eram ações de amigos, outros cineastas e colegas, que disponibilizavam película, mas era assim que conseguíamos fazer as coisas. Eu me lembro de um filme, com a Pastoral Operária da Zona Leste, sobre mortalidade infantil. Naquela época, os estudos demonstravam que havia uma mortandade de crianças por doenças muito tranquilas [de tratar], era um absurdo. Depois, veio o filme A Luta do Povo. Nele eu trabalhei na montagem, com o pessoal do PCdoB na sala ao lado. Eu nunca vou esquecer do dia em que eles me pediram para tirar um plano, que era belíssimo, do pessoal chegando ao Ibirapuera durante uma manifestação. Me pediram para cortar porque era muito bonito, distraía. Depois, fizemos um filme sobre o teatro operário, que foi feito no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, que chegou a ter um fomento. A peça foi escrita por um operário e aí a gente entrou no sindicato para filmar. Nessa época, se eu não me 76


engano, eu já tinha feito o Trabalhadoras Metalúrgicas, acho que em 1978. Eu lembro que o Lula queria apenas um registro do Congresso da Mulher Metalúrgica. A gente disse que queria fazer o filme ter uma bandeira, que era salário igual por trabalho igual. Quando eclodiu a greve, a primeira greve no ABC durante o período ditatorial, a gente já estava lá, já conhecia o pessoal. É interessante isso, foi um movimento de uma importância extraordinária e quem primeiro chegou lá foi o cinema — não foram os jornalistas, não foram os músicos, eles chegaram depois. Quem estava na cola era o cinema. Eu acho isso muito interessante, porque não tínhamos as facilidades de hoje, era película, câmera, equipamentos pesados. Começaram a aparecer pessoas muito interessadas no que estava acontecendo. Só depois vieram os políticos para desfilar, mas o trabalho miúdo de divulgação foi o pessoal do cinema que fez. E vocês exerciam alguma influência sobre o movimento? A gente não tinha voz pra dizer para onde ia o movimento. Nós éramos muito discretos com relação ao movimento propriamente dito. Não nos cabia dizer “é pra ir pra greve” ou “acho que não é”. Na minha opinião, isso foi correto. A gente era próximo, mas não devia se meter. As fábricas eram muito diferentes das de hoje, me contavam que os homens faziam xixi numa calha na própria linha de montagem, porque não podiam sair para ir ao banheiro. Era muito diferente, muito precário. A gente nunca conseguia entrar nas grandes fábricas. Vocês chegaram a tentar? Sim, mas não rolava. Nós chegamos a usar, no Linha de Montagem, planos de fábricas grandes, cedidos por colegas. Nós chegamos a filmar, em um outro curta — o Acidente de Trabalho — uma fabriqueta que produzia peças para uma fábrica grande. Era de uma precariedade, sujeira e máquinas sem manutenção... Como foi seu contato com as operárias no filme Trabalhadoras Metalúrgicas? Eu não me sentia nem um pouco distante quando eu entrevistei as operárias, as casas delas eram iguais à minha. Nesse filme, tem uma hora que eu pedi pro fotógrafo focalizar alguns detalhes, como meias de seda, sapato de salto 77


alto, unhas tratadas. Isso porque elas se produziram para ir ao congresso e eu achava aquilo uma maravilha. Mas eu levei tanta cacetada das mulheres. As operárias achavam o máximo, mas as feministas questionavam: “poxa vida, mas por que ficar focalizando nessas coisas?”. Eu acho bonito, um ato de resistência. Na época eu achava que era intelectual que queria ficar “mulambento”, pra ver se ficava perto ou igual aos operários. Não se trata disso, o que elas faziam era uma valorização da sua figura. Como foi sua aproximação com o Renato Tapajós? Eu era programadora de filmes do Museu Lasar Segall e o Renato foi dar um curso de cinema. Ele entrou lá para dar um curso de cinema porque, durante o período de prisão dele, ele conheceu o Maurício Segall, ficaram amigos e o Maurício lhe deu um emprego. Eu tenho a impressão de que, hoje em dia, a nova ditadura vai sufocar pela perda do emprego, pelas condições mais cruéis de trabalho. Ali, não. Todas as pessoas que eu conheci e que tinham sido presas pela ditadura estavam, não muito depois, com trabalho. Depois, a gente caminhou juntos um pedaço do nosso caminho. Temos dois filhos juntos, maravilhosos. Sobre o filme Trabalhadoras Metalúrgicas, como era feito o esquema de distribuição? Dentro do sindicato, nas igrejas que apoiavam o movimento, nas associações de bairro, em cineclubes. Ou seja, o mais caseiro impossível, era filme embaixo do braço mesmo. Tinha um circuito, não formalizado, mas onde dava a gente colocava o filme. Depois, os cineastas independentes de São Paulo criaram a CDI [Cinema Distribuição Independente]. O Claudio Kahns comentou sobre essa iniciativa. Ele também foi muito importante, como produtor e diretor. Fez aquele filme sobre o Santo Dias que é importantíssimo. Nós também filmamos o enterro do Santo Dias, foi terrível o assassinato. O Zetas [Malzoni, fotógrafo] vinha filmando o séquito, chorando. A gente acompanhava a viúva, todos chorando, e a câmera não tremia. A gente conseguia chorar junto e, com uma parte do cérebro, tinha que ir na eficiência, porque não tinha filme abundantemente, a câmera muitas vezes era alugada, a gente não podia vacilar. Não podíamos ter uma equipe que a gente não confiasse que ia imprimir

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aquela coisa. Documentário é assim, você tem chances de outras coisas, mas de captar aquele momento você não tem mais. Trabalhando atualmente na Cinemateca, com a preservação da memória audiovisual, qual a importância, para você, de preservar essa memória das greves a partir de uma visão cinematográfica? Não dá pra cuidar de tudo. Nem toda memória sobrevive, isso é ilusório. Acho que essa memória das greves, dos movimentos sociais, é riquíssima para nós vermos o que essas obras podem nos ajudar. Não quer dizer que sejam todas obras-primas. Mas elas estavam ali a serviço de uma ideia, de uma resistência, e isso não é pouco. Como reflexão, eu acho que esses filmes são ferramentas muito preciosas. Não quer dizer que nós vamos repetir, porque os contextos são completamente diferentes. Então, não dá pra repetir a experiência, mas dá pra pensar. Onde foram parar as associações de bairro? Onde foram parar as organizações para mutirão, mesmo os pequenos sindicatos, as pastorais da saúde, da terra. A esquerda não ajudou depois. Quando o MDB, na época, conseguiu chegar ao poder, foi uma alegria muito grande, porque ou era MDB ou ARENA. Mas aí chegava o vereador e falava: “mas agora deixa, viu, agora vai dar tudo certo”. Você esvazia, entendeu? Esvazia essa espontaneidade? Sim, do movimento, porque você quer controlar. Onde foram parar os orçamentos participativos? Campinas tinha um forte, que era a conversa das pessoas do partido com as pessoas. Acabou. Não tem milagre depois. No fundo, aquele discurso do Mano Brow1 , eu entendo o que ele tava falando. Volta pras bases, porque senão fica tudo tão distante que você fica sem aquela rede de proteção. Muitos movimentos foram dissolvidos por conta de uma certa arrogância da parte progressista que acha que não precisa dialogar.

1 Em 23 de outubro de 2018, o Rapper Mano Brown fez um discurso durante ato da campanha presidencial de Fernando Haddad (PT) nos Arcos da Lapa no Rio de Janeiro. Na ocasião ele criticou a falta de diálogo do partido com suas bases populares. 79


Renato Tapajós

Para começar, eu gostaria que você fizesse um pequeno panorama da sua participação no polo de documentários que surgiu no ABC. Eu fiquei preso durante cinco anos, por causa da minha atividade política. Já tinha alguns filmes realizados antes dessa prisão e, quando eu saí da cadeia, retomei a atividade no cinema. Quem estava ganhando um certo destaque era o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, então eu me aproximei deles através de um curso de cinema, realizado no Museu Lasar Segall, no qual participaram dirigentes do sindicato. No final do curso, alguns membros da diretoria perguntaram se eu não poderia fazer alguns filmes para eles. O primeiro foi Acidente de Trabalho, que era uma tentativa de ver o acidente de trabalho não como culpa ou desatenção dos operários, mas como algo que era promovido pela própria estrutura do trabalho nas empresas então existentes. Quando estourou a greve de 1979, foi o próprio Lula que me ligou e me convidou para ir lá filmar. Eu montei rapidamente uma equipe, em grande parte voluntária, e fomos para lá. O sindicato não só se dispôs a jogar uma verba própria, como abriu para nós uma série de conexões — nacionais e internacionais — para produzir o documentário. A gente filmou até o final da greve e também alguns dos desdobramentos. Começamos a montar o filme que viria a ser o Linha de Montagem, que estreou no Sindicato dos Metalúrgicos e foi um tremendo sucesso.

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Como foi essa primeira exibição? A gente pediu a autorização da censura para fazer a projeção no sindicato. Eles ficaram enrolando e o resultado foi que a gente teve que fazer a projeção antes de ser emitido o certificado. No dia do evento, estavam lá o Lula, Chico Buarque, o prefeito de São Bernardo e mais diversas autoridades, além de um público operário gigantesco. Lá pelas tantas chegou a polícia, três viaturas, e tentaram subir com a ordem de apreender o filme. O negócio esquentou, mas conseguimos que fosse liberada a projeção do filme e depois eles levariam os rolos embora. Mas aconteceu uma peripécia: os rolos sumiram antes de entregar para os policiais. Eu não estava a par do que tinha acontecido e só fui descobrir anos depois vendo aquele filme do Eduardo Coutinho [Peões], que mostrava o depoimento de uma funcionária do sindicato que levou os filmes para casa numa sacola. Na medida em que o filme sumiu, os policiais ficaram irritados, mas o público que tinha acabado de ver o filme começou a cercar os carros da polícia. Diante do perigo de ter seus carros virados, eles foram embora. Quais eram as referências de cinema militante que você tinha na época? Internacionalmente, eu tinha acesso e me interessava muito pelo cinema cubano. O tipo de cinema que os cubanos estavam fazendo na área de documentário era uma referência importante para mim. Também tinha referências mais clássicas, dos grandes documentaristas que a gente tentava ver e discutir. Nessa sua relação com o sindicato na produção dos filmes, como era o processo na hora de filmar? Vocês discutiam o projeto previamente? Normalmente, a partir do Linha de Montagem, eu passei a ter uma porção de ideias de um cinema voltado para o público operário. O que acontecia é que eu desenvolvia uma ideia e ia ao sindicato, aí fazíamos uma reunião com a diretoria para discutir o filme. Uma vez discutido, o sindicato assumia a produção do filme. O que não significa que eles pagassem totalmente o filme. A partir do momento que a gente tinha uma ideia aprovada, eu assumia a organização das filmagens e a gente ia filmar. A maior parte dos filmes não tinha roteiro prévio, ele era elaborado a partir do ma-

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terial gravado. Essa é uma maneira que eu gosto muito de trabalhar. Você não precisa ficar forçando a realidade, mas o filme em si é um produto da riqueza do real. No livro Cineastas e Imagens do Povo, do Jean-Claude Bernardet, ele faz uma comparação entre o seu filme Dias Nublados e o Greve!, do João Batista de Andrade. Qual a sua visão sobre as questões apontadas no texto? Eu acho que havia uma diferença de fundo entre os meus filmes e os filmes do Batista. Ela tem origem em questões ideológicas anteriores. Não tanto questões cinematográficas. O Batista, ele tinha uma visão muito definida a respeito da luta operária, a partir da visão de mundo do partidão [PCB]. Eu tinha uma visão diferenciada, onde entra muito menos esse lado da organização histórica dos trabalhadores e mais a explosão no momento em que ela estava acontecendo ali em São Bernardo. Acredito que esse tipo de postura dava uma visão menos comprometida da luta operária do que a visão do João, que tinha uma certa carga ideológica inicial. Como era a relação entre as equipes que cobriam o movimento lá no ABC? Tanto entre cineastas como entre as equipes televisivas que iam para lá. O pessoal que ia cobrir o ABC, de um modo geral, tinha uma visão de esquerda e uma visão de apoio à greve. Pessoas com um posicionamento totalmente contrário à greve não tinham muita possibilidade de entrar no meio das assembleias, etc. Havia uma certa identidade entre essas equipes, tanto cinematográficas quanto de jornalistas, e os operários. O que fazia com que, muitas vezes, eles nos ajudassem em uma série de coisas que, sem apoio, a gente não conseguiria superar. Entre nós, equipes de cobertura, havia uma colaboração muito grande, frequentemente até com troca de material. Não rolava muito essa coisa da exclusividade, sair na frente e conseguir uma coisa que os outros não conseguiram. Rolava um trabalho coletivo para que o resultado fosse favorável a uma visão do público sobre a greve. Como você via as diferenças entre o movimento que aconteceu no ABC, em 1979, e aquele de um ano antes, em São Paulo? As greves que aconteceram em São Paulo tiveram uma origem muito marcada pela presença de determinadas organizações de esquerda, como o Partido Comunista [PCB]. 82


Enquanto São Bernardo era um território meio virgem em relação às organizações partidárias de esquerda, por ter sido resultado de uma industrialização relativamente recente. Isso fez, de certa forma, com que aquilo que aconteceu em São Bernardo tivesse um grau de espontaneísmo, às vezes até uma certa inocência, que não tinha mais em São Paulo. A liderança que existia em São Bernardo não tinha um passado político, de organização e teoria política. De modo algum é possível dizer que as direções eram marxistas. Não eram. Muita gente que se formou nessa época foi aderir a esse ou aquele ponto de vista depois. Você considera que seus filmes produzidos no seio do movimento operário influenciaram o próprio movimento? Qual foi a transformação que essa experiência proporcionou na sua vida militante? Pessoalmente, posso dizer que quando fui filmar em São Bernardo, eu já possuía uma formação política determinada. O que eu não conhecia da minha experiência política anterior era a prática política do proletariado, da classe operária. Esse tipo de contato eu tive inicialmente lá, e imagino que a maioria dos cineastas também. O que eu acho que também serviu para que os nossos documentários não ficassem carregados de teoria. Eu acho que a maior parte das pessoas construiu uma visão concreta sobre a luta de classes, lá em São Bernardo. Participando, filmando, ou só assistindo os embates que estavam acontecendo. Isso dá a esses filmes um sabor bem particular, um sabor de novidade. A gente não estava fazendo aquele trabalho repetitivo, baseado em modelos anteriores, estávamos tentando representar esse processo de maneira que transparecesse uma novidade criativa.

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Roberto Gervitz

Como você estava inserido nesse movimento de documentários produzidos no final da ditadura? Bom, quando eu comecei não tinha movimento. Na verdade, o Braços Cruzados foi o primeiro filme de longa-metragem sobre as greves. Eu e o Sérgio Segall tínhamos feito um filme, na periferia de Osasco, que chamava História dos Ganha-Pouco. A gente fazia Ciências Sociais na USP e resolvemos fazer esse filme sobre as eleições municipais para prefeitos e vereadores. Isso foi dois anos depois de o MDB ter vencido, surpreendentemente, as eleições para cargos legislativos. Foi um primeiro grande ‘não’ que o regime militar recebeu, um primeiro grande balanço dos anos de chumbo. Em 1976, começou a surgir um fenômeno novo, que eram candidatos oriundos das classes populares. Tinha uma associação “amigos do bairro” de um lugar, então saía um candidato da associação. Isso via MDB e via ARENA também. Nós fomos para um bairro de periferia chamado Jardim D’Ávila e dali saíram dois candidatos. Isso acontecia porque a associação de bairro trabalha num esquema clientelista, então você tem que ter canais para chegar ao poder. Se você fosse MDB e o prefeito fosse ARENA, você não teria o canal. A gente acompanhou a vida cotidiana no bairro durante seis meses, fizemos um filme quase antropológico mostrando o dia-a-dia numa periferia. Isso tudo dentro do background das eleições. Nossa proposta era retornar para as pessoas do bairro, para que aquilo fosse usado pelas organizações populares. O filme foi muito distribuído e a gente levava ele para debater em muitos lugares. 84


Ele era exibido sempre nesses espaços? Sim, em associações de bairro, comunidades eclesiais de base, essas coisas. Pelo filme ter se tornado conhecido, no começo de 1978 a gente foi procurado por pessoas da Oposição Sindical Metalúrgica. Eles tinham visto o História dos Ganha-Pouco e vieram falar sobre as eleições para o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, que era o maior da América Latina e tinha na diretoria um pelego. A gente começou a cobrir e, nesse processo, começaram as greves, organizadas pela Oposição. Eram greves no interior das fábricas, feitas com comissão de fábrica. Havia, nesse início, outros cineastas além de vocês? Tinha o Renato Tapajós, com quem a gente estudou documentário. Ele, eu, Sérgio Segall, Inês Villares, Olga Futemma. A gente fez um grupo de estudos de documentário. Com as greves de São Bernardo e o crescimento das greves, cresceu a importância desses filmes para o movimento sindical. Então houve, em alguns momentos, uma colaboração entre esses cineastas. Havia mais exemplos de parcerias, não? Sim, tinham vários. Mas eu acho que eram cineastas que tinham concepções diferentes da política e do mundo sindical. Tinham cineastas que eram mais ligados ao Partido Comunista. Outros, como nós, que não éramos ligados exatamente a nenhum partido, tínhamos uma visão menos vanguardista do movimento. O Sérgio era meu amigo desde os seis anos de idade. Quando ele tinha mais ou menos uns 15 anos, ele ganhou uma Super 8 do pai. Eu fazia música, então eu musicava os filmes, mas era algo bem amador. Eu também já tinha uma ligação com o cinema forte, por ter fundado o cineclube do Colégio Santa Cruz. Nós fizemos um filme, que chama Parada Geral, sobre uma greve que aconteceu na ECA [Escola de Comunicação e Artes] em 1975. A faculdade ficou parada por 6 meses. Foi a primeira greve estudantil desde 68. Queríamos o filme justamente para discutir essa mobilização, os encaminhamentos, os problemas da greve.

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Você comentou que a proposta dos seus filmes era “se tornar um instrumento de reflexão e organização”. Você acha que isso diferenciava o documentário que vocês fizeram daqueles produzidos em outros períodos? Antes você fazia como, por exemplo, na Caravana Farkas, que tem filmes super importantes, mas que não voltavam para aquelas populações, eles eram feitos lá e vinham para cá. Muitos filmes foram feitos sobre as classes populares, mas naquele momento a gente entendia isso como uma espécie de apropriação. A gente ia lá, filmava, se apropriava daquilo e não devolvia para as pessoas. Só passava na cidade para os intelectuais e estudantes, mas na verdade aquilo ali poderia ter um papel onde foi feito. Quanto à relação de vocês com a OSM, o convite feito por eles já estava atrelado a um apoio à oposição? Claro, era um filme para a Oposição. Inclusive, nossa formação sindical não era muito grande, a gente não conhecia quase nada de sindicalismo. Então fomos honestos, falamos desde o início dessa nossa defasagem, mas que estávamos interessados em fazer um filme para eles utilizarem no trabalho deles. Queriam um filme que flagrasse as fraudes no sindicato e, ao mesmo tempo, discutisse a estrutura sindical. Essa era a principal bandeira da OSM, discutir a estrutura sindical, que era algo que vinha desde o Estado Novo. Era uma camisa de força para o movimento sindical e isso está no filme claramente. O programa do filme, as posições políticas presentes, são da Oposição Sindical. A gente realmente fez um filme de propaganda nesse sentido. Nesse sentido, você enxerga a superação dessa estrutura sindical varguista, que amarrava o movimento? Tinha uma grande discussão na época. A OSM discordava do Lula, porque ele falava que dentro dessa estrutura dava pra fazer muita coisa, enquanto eles achavam que a gente tinha que acabar com ela. Historicamente, sem tirar a importância da Oposição Sindical, eu acho que o Lula estava mais certo, em termos de visão. Eu acho que a estrutura, ela se arrebenta na prática, não na teoria. Eu acho que a oposição tinha um trabalho muito mais interessante em alguns aspectos, no sentido de ser muito mais horizontal — não tinha um líder, tinha muitos líderes. Se você comparar o Braços Cruzados com o Linha de Montagem, você percebe bem

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isso. O Braços Cruzados não tem um líder, ele não é em cima de alguém, ele foi feito de vários personagens. Enquanto todos os filmes que foram feitos no ABC falavam do Lula. É interessante perceber essas diferentes posições entre cada cineasta nessa época. Inclusive, a Oposição tinha muitas diferenças dentro dela. Você tem líderes com posições bastante distintas. Isso porque era uma frente de diversos partidos e várias organizações sindicais. Era mais frágil, por um lado, e mais poderosa por outro, sendo mais horizontal e mais democratizada. O dirigente Santo Dias aparece em Braços Cruzados. Qual a relação de vocês com esse líder? O Santo foi o cara que a Oposição Metalúrgica destacou para acompanhar o filme. Ele nos ajudava a programar as filmagens, dizendo em quais dias deveríamos ir em cada fábrica. Ele que fazia nossa ponte com a direção. Ele que viabilizava certos contatos. Tínhamos uma relação bem próxima com ele. Estávamos fora do Brasil quando ele foi assassinado. A fotografia de Braços Cruzados foi do Aloysio Raulino, que também estava presente em vários outros filmes. Isso definiu o resultado estético? Uma coisa que nós desejávamos era não abordar o operário como massa. Em vez de mostrar a massa, mostrar o indivíduo. Isso já vinha desde os Ganha-Pouco. Nós estimulamos muito o Aloysio a fazer os grandes closes que ele fez no filme. Aquilo aproximava a gente das pessoas, e não de uma ideia de massa dos operários. Eu acho que ele tinha um sentimento muito humano, era um cara muito sensível. O filme ficou com essa presença, como câmera de documentário ele era como poucos. E quanto à produção e distribuição? No Braços Cruzados, a distribuição recebeu um grande apoio da OSM. Mas o filme também foi distribuído para o Brasil inteiro, graças a uma organização ligada à educação sindical, chamada Fase. Eu e o Sérgio ficamos projetando o filme por mais de um ano. A gente ia nos bairros aqui de São Paulo, fomos para Minas Gerais. Tínhamos interesse em ver as discussões sobre os filmes.

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Essas exibições costumavam ter grandes discussões? Sim, bastante debate. Eram encontros bastante participativos, porque as pessoas se viam ali. As pessoas se soltavam, falavam da sua vida, dos seus problemas, da dificuldade de organização. Quem nunca tinha feito greve ficava de olho bem aberto, para ver o que estava sendo feito. É interessante também a cena da parada das máquinas, que muita gente questionou. Tinha uma puta força, as pessoas aplaudiam na hora. Porque era um momento marcante para eles. Por que vocês quiseram fazer essa cena no meio do filme? A gente não podia entrar na fábrica. Então o filme tinha muita gente falando sobre a greve, mas não mostrava a parada. É engraçado, porque o momento é quase uma cena do Eisenstein2 . Todo mundo puxando os botões, desligando as coisas. Mas, na verdade, não era assim que começava a greve. Na exibição, as pessoas batiam palma e ao mesmo tempo riam. Geralmente os operários vão parando aos poucos, mas simbolicamente a cena era muito importante, porque eles sentiam a própria força.

2 Serguei Eisenstein foi um dos mais importantes cineastas soviéticos. Participou ativamente da Revolução de 1917 e estão entre seus principais filmes: A Greve, O Encouraçado Potemkin e Outubro.

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Voltando à questão da distribuição, a CDI e outras empresas independentes tiveram um papel importante nesse momento? A CDI surgiu de nós mesmos, dos realizadores. A gente percebeu que a federação dos cineclubes, que já fazia esse trabalho antes, era amadora demais. Por isso achamos importante a distribuição ser um pouco mais controlada pelos realizadores independentes. Nossos filmes não eram comerciais, não podiam nem passar no cinema, então era uma distribuição em espaços alternativos. Passávamos nas universidades, organizações sociais e comunidades de base.


Como a experiência desse filme transformou as suas experiências posteriores? Eu acho que isso transformou não só o meu cinema, mas ficou presente em mim como cidadão. Eu passei a ver as pessoas do povo de um outro jeito, antes era uma coisa abstrata. Quando eu era estudante de Ciências Sociais, era “O Povo”. Mas quando você começa a ir aos bairros, frequentar e conhecer os operários, você vai se relacionando com os indivíduos, deixa de ser abstrato e passa a ser concreto. Eu acho que esses filmes são muito importantes, porque eles documentaram de maneira bastante intensa, aquele momento do Brasil. De uma maneira multifacetada, porque tem diferentes pontos de vista politicamente. O fato de serem construídos dessa forma cria um corpo e torna esses movimentos presentes na memória das pessoas. Eles captam a intensidade e a surpresa daquele momento.

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