PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
Pedro Segreto Moura
Microcinema O impacto das novas tecnologias digitais sobre a produção audiovisual.
Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao programa de PósGraduação em Design da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Design. Orientador: Prof. Rejane Spitz
Rio de Janeiro Março de 2004
Pedro Segreto Moura
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Microcinema O impacto das novas tecnologias digitais sobre a produção audiovisual.
Dissertação apresentada como requisito parcial pata obtenção do grau de Mestre pelo programa de PósGraduação em Design da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. Rejane Spitz Orientador Departamento de Design – PUC-Rio Prof. Denis de Moraes Departamento de Comunicação – UFF Prof. Luis Antônio Coelho Departamento de Design – PUC-Rio Prof. Rafael Cardoso Denis Departamento de Design – PUC-Rio
Prof. Jürgen Heyde Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 04 de março de 2004 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora ou do orientador.
Pedro Segreto Moura
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Graduou-se em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/UFRJ em 1998. Trabalha diretamente na área de design, desenvolvendo peças para o mercado audiovisual.
Ficha catalográfica Moura, Pedro Segreto Microcinema : o impacto das novas tecnologias digitais sobre a produção audiovisual / Pedro Segreto Moura ; orientadora: Rejane Spitz. Rio de Janeiro : PUC-Rio, Departamento de Artes e Design, 2004. 140 f. ; 30 cm Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Artes e Design. Inclui referências bibliográficas 1. Artes – Teses. 2. Cinema. 3. Tecnologias digitais. 4. Audiovisuais – Produção. 5. Linguagem e recepção. I. Spitz, Rejane. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Artes e Design. III. Título. CDD:700
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Dedico este trabalho ao meu pai. De coração.
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Agradeço a minha mãe, a minhas avós Yvette e Inha, a Beth, a Vera.
Resumo Moura, Pedro Segreto; Spitz, Rejane. Microcinema: o impacto das novas tecnologias digitais sobre a produção audiovisual. 140 p. Rio de Janeiro, 2004. Dissertação de Mestrado. Departamento de Artes e Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Partindo do discurso cinemanovísta, observo certas possibilidades de uso para as ferramentas digitais na direção do fortalecimento de uma cinematografia independente que se afirme frente ao cinema hegemônico. Promovendo disrupções de sentido a partir dos experimentos de linguagem e tecnologia é PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
possível se expandir as possibilidades de formação de consciências criativas. Ao tratar e compor representações imagéticas, o designer traz sua parcela de contribuição para esta movimentação cultural nascente – o Microcinema.
Palavras-chave Design; cinema; tecnologia; história; política; ideologia; linguagem; recepção.
Abstract Moura, Pedro Segreto; Spitz, Rejane. Microcinema: o impacto das novas tecnologias digitais sobre a produção audiovisual. 140p. Rio de Janeiro, 2004. Dissertação de Mestrado. Departamento de Artes e Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Visiting ideas of Brazilian Cinema Novo, I observe possibilities of use of the digital tools in order to strength an independant cinematography facing the hegemonical cinema. Promotin disruptions of meaning parting from language and technological experiments its possible to expand the possibilities of the buiding up of creatives consciousness. The designer, treating and composing imagetic PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
representations, brings his parcel of contribution to this borning cultural mouvement – the Microcinema.
Keywords Design; cinema; tecnologie; history; politics; ideology; language; reception.
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“Tudo é possível, mas nada é real.” Living Colour
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Sumário
Introdução
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1 Do Cinema Novo ao Microcinema
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1.1. Cinema Novo, Retomada e Digitalização
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1.2. Microcinema: tecnologia e movimentação
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2 Compromissos e Urgências
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2.1. Um diagnóstico: a sociedade, a cultura e o cinema.
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2.2. Atualizando discursos
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2.3. Realizando
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3 A interação reformadora
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3.1. Mudança qualitativa
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3.2. Dicotomia contrastada
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3.3. (Re)Formando
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4 O Microcinema como prática
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4.1. Desígnios, interfaces e inserções
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4.2. Finalização
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Conclusão
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Referências Bibliográficas
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Anexos
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Introdução
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Introdução
A produção audiovisual vem sendo remodelada, assim como outras áreas do fazer artístico, com a chegada das novas ferramentas digitais. Mais baratas, ágeis e de fácil operação, as câmeras numéricas, as ilhas de edição não-linear e as estações de tratamento e manipulação de imagens abrem novos espaços para a realização de obras autorais, independentes. Desde os primórdios, paralelamente à formação de uma linguagem cinematográfica caudatária do teatro e da literatura de fácil decodificação, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
desenvolvida no entretenimento comercializado, aparecem outras formas de construção dos filmes no ambiente artístico das vanguardas ou ligado à explosão política soviética. A partir do final da primeira Grande Guerra, com o cinema norte-americano tornando-se hegemônico por todo o globo ao dominar o circuito de exibição internacional, começam a reaparecer cinemas contraculturais, experimentais, que dialetizam com o ambiente cinematográfico estabelecido. A informatização dos processos cinematográficos, repercutindo tanto na produção como na exibição das obras audiovisuais, traz novo sopro a esta vertente expressiva que não se coloca apenas à mercê das exigências mercadológicas, produzindo títulos que questionam os limites da linguagem clássico-narrativa. Contudo, não são somente realizadores ou grupos isolados que se apropriam das possibilidades abertas pela tecnologia digital no manejo de imagens cinemáticas. Toda e qualquer frente de produção audiovisual hoje conta com este novo arsenal, dos blockbusters hollywoodianos aos curtas-metragens de estudantes universitários. Com o intuito de compreender como este fenômeno pode alterar as relações de saber e poder dentro de nosso ambiente urbano terceiro-mundista, esta dissertação lança um olhar sobre uma movimentação cultural nascente, que vem se fortalecendo a partir das possibilidades trazidas por este novo paradigma tecnológico. Uma movimentação contra o esvaziamento dos conteúdos críticos no cinema corrente, a favor de um cinema retórico, estético,
Introdução
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político. Uma movimentação de inclusão de novas formas expressivas, de novos públicos. Este estudo pretende apreciar esta conjuntura histórica a partir de determinadas posições teóricas para, então, voltar a ela com questionamentos, colocações, críticas, proposições, enfim, idéias, num efetivo diálogo entre prática e teoria na busca de enriquecimento recíproco. O trabalho conceitual fornecendo instrumentos de leitura como componentes óticos, partes da objetiva que retrata o acontecimento, que flagra o instante. Assim, revela-se uma figura de fortes cores e contrastes. Imagem de uma sociedade, de um cinema, de uma tecnologia, retida num segmento de tempo, o menor, um frame, um átomo. Reflexão que se funda nesse momento temporal indivisível, instante de presença, flash de um processo
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que se inicia. O texto vai sendo alinhavado com uma pluralidade de tecidos. História, política, ideologia, linguagem e design. Visadas para um fenômeno pós-moderno. Uma revolução em tempo real. Uma transição que, ainda longe de completar-se, pode tomar distintos rumos. Desprovido do distanciamento necessário a quem tece críticas, busquei na própria história do cinema brasileiro um correlato desse fenômeno, um parâmetro, um norte para o meu discurso. O Cinema Novo, então, mostrou-se como fonte a verter enunciados. De posse de recém-adquirido instrumental, os cinemanovístas propuseram estéticas e políticas. Ao atualizar o projeto glauberiano é possível que encontremos uma tradição que sirva como alicerce na construção e entendimento de um campo cinematográfico independente no Brasil, baseado nos zeros e uns das imagens sintéticas. Após serem descritos, no capítulo 01, os processos históricos que vão do surgimento do Cinema Novo passando pela retomada pós Collor de Melo e da chegada da tecnologia DV até a aparição do cinema digital, busco no segundo capítulo trançar idéias e possibilidades. A partir de um diagnóstico da sociedade pós-moderna e da compreensão das nossas especificidades nas atividades intelectual e artística, reativa-se a pregação de Glauber Rocha, politizando a discussão sobre o emprego dos meios digitais na disseminação de informação e no agenciar de acontecimentos.
Introdução
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Lidando com os experimentos de linguagem – formadores diretos da percepção humana –, as obras audiovisuais podem tanto instigar audiências, como sedimentar atitudes. Mesclando autores que se complementam, o terceiro capítulo vai examinar, a partir dos estudos de linguagem e da teoria da recepção, como a experiência cinematográfica pode fomentar a criatividade e a inovação, colocando em prática as propostas formalizadas no capítulo anterior. Ao interagirem, espectador e obra se co-formam em um processo sempre inacabado, sempre por vir. As interações mediadas pela linguagem conferindo ao sujeito a possibilidade de se reavaliar, de se perceber. Para que sejam alcançados os efeitos provocados no ato de apreensão é necessário que se estabeleça uma prática que não veja a linguagem como um limitador, mas sim como um campo de experimentações a ser dilatado. As PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
tecnologias numéricas revolvem o fazer cinematográfico, fazendo com que certas possibilidades sejam potencializadas pelo “artificializar” das imagens. O Design, como atividade e método, encontra na prática cinematográfica um novo campo de ação. Envolvendo-se em diversas etapas da realização audiovisual, o designer pode colaborar na figuração de representações e na sistematização de procedimentos. Práticas em exercício, conjugadas com novas oportunidades, delineiam facilidades de atuação onde a estética e a técnica se imbricam às questões econômicas na formatação de obras provocadoras, revolucionárias. Filmes, festivais, mostras. Sites, impressos, comunicações. O fenômeno da digitalização repercute em todo o universo audiovisual. Esta pesquisa pretende apresentar amostras palpáveis desta movimentação em curso, surpreendendo o que já ocorre, abrindo caminhos para o pensar. Uma visão analítica mas utópica das alterações correntes no imaginário (multi)midiático.
Do Cinema Novo ao Microcinema
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1 Do Cinema Novo ao Microcinema Traçando um paralelo histórico.
“Hoje, a revolução se faz no dia-a-dia. E aí está o grande desafio de minha geração, aproveitar-se da ressonância de gritos do passado sobre o espaço convulsionado do agora para projetar uma imagem do futuro”. 1 Erik Rocha As novas tecnologias de realização audiovisual abrem um fértil campo de ação para muitos que antes ficariam à margem do mercado por não terem acesso
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aos meios de produção. A democratização em curso do acesso a ilhas de edição, câmeras e estações de tratamento – pelo barateamento de seus componentes e pela melhora da qualidade técnica do chamado equipamento doméstico – reordena o meio cinematográfico, suscita questões e gera a necessidade da revisão de conceitos e idéias. Uma adequação, uma evolução do pensar em resposta às novas possibilidades. Para discorrer sobre um fato do qual não se tem o distanciamento histórico necessário – a produção digital de imagens – procuro traçar um paralelo entre o momento vivido pelos realizadores do Cinema Novo e a atual geração de diretores. O discurso glauberiano mostra-se como um cotejo interessante, já que expõe uma situação estético-tecnológica análoga a que vivemos nos dias de hoje, em que avanços tecnológicos possibilitam avanços de linguagem. Em Glauber Rocha faço uma busca retrospectiva e, ao mesmo tempo e principalmente, prospectiva, atrás de um passado e de possíveis futuros. Atrás de perspectivas político-cinematográficas, tão escassas nos dias atuais. Este capítulo pretende expor as conexões prováveis e improváveis entre os dois períodos, com a intenção de encontrar as extensões daquela época em nosso tempo, para posteri-
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ROCHA, Erik 2002. Pg. 14
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ormente, no capítulo 02, atualizar as falas e propostas cinemanovístas e revestir de ideologia o uso das ferramentas digitais. ... o fato de um passado recente do cinema brasileiro ser objeto de retrospectivas e debates, no Brasil ou no exterior, ultrapassa o interesse puramente histórico ou acadêmico, sendo mais a reativação de um capital simbólico que pode ter o seu papel no jogo político em que se decide a viabilização de seu futuro. (XAVIER, 2001. Pg. 13)
“Sem passado não há resistência”. A frase de Jean-Luc Godard, no filme O Elogio do Amor, de 2001, nos coloca diante de um problema: com que qualidade interagimos com o passado? O importante é que se estabeleça um diálogo crítico com este passado, para que se possa observá-lo não como algo estático, que permanece aprisionado em seu momento histórico, mas como algo que emana freqüências a serem captadas nos dias de hoje. Cada um responde e reage ao seu PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
próprio tempo. Tempo que permite conexões e acessos às experiências passadas. Experimentações que podem, e devem, configurar-se como agentes de transformação hoje. O passado revisitado nos coloca diante de suas elaborações, suas crises e soluções. Discursos realizados na distância temporal nos atingem com suas ondulações. Não devemos abrir mão de compreende-los em toda sua amplitude, afinal, a partir de um novo ponto de vista é possível que idéias mostrem-se claras, mesmo tendo parecido turvas, ou invisíveis, aos olhos de seus contemporâneos. Ou seja, argumentos elaborados no passado podem conter leituras e/ou prescrições que hoje façam sentido, que colaborem na maturação de raciocínios, mas que imersos em sua própria época, pareciam restritos a apenas uma realidade ou discussão. Longe da busca de uma idéia de origem, o que importa é rastrear as cicatrizes (além das muitas feridas abertas) deixadas pelo passado no presente, as dívidas do presente perante as injustiças do passado, que traz inscritos os deveres, as obrigações e os direitos que o presente deve realizar. (SARLO, 2000. Pg. 179) ...há duas maneiras de considerar o acontecimento, uma consiste em passar ao longo do acontecimento, recolher dele sua efetuação na história, o condicionamento e o apodrecimento na história, mas outra consiste em remontar o acontecimento, em instalar-se nele como devir, em nele rejuvenescer e envelhecer a um só tempo, em passar por todos os seus componentes ou singularidades. (DELEUZE, 1992. Pg. 211)
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A contextualização espaço-temporal de uma linha de pensamento proporciona uma melhor compreensão de quais são as questões a serem atacadas no momento. Assim, estarei situando a discussão na relação entre o cinema digital, contemporâneo, e o cinema novo, um emblemático passado, no espaço terceiromundista, mais especificamente brasileiro.
1.1. Cinema Novo, Retomada e Digitalização
O cinema brasileiro vive cíclicos históricos de mortes e renascimentos. A produção de filmes no país tem como marco o dia 19 de junho de 1888, quando
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do convés do navio Brésil, em sua volta do velho continente, Afonso Segreto realiza a que é considerada a primeira filmagem ocorrida em nossas terras, flagrando, da entrada da Baía de Guanabara, a cidade do Rio de Janeiro. Passada a Bela Época, entre 1907 e 1911, que presenciou uma conjunção de interesses de produção, exibição e distribuição abarcados por uma mesma empresa, o cinema vem prematuramente a falecer com não mais de 20 anos de atividade em 1912. Fato ocorrido devido à crescente hegemonia dos interesses internacionais, que antes conviviam com a produção nacional. As duas décadas seguintes são caracterizadas por ciclos e surtos regionais, que têm como sua maior expressão o pioneirismo e excelência de Humberto Mauro. Porém, esta produção é irregular e em grande parte marginalizada no circuito comercial, progressivamente tomado pelo cinema norte-americano. Na década de 30, com os problemas vividos pelo cinema americano, causados pela passagem do mudo para o sonoro, surge um novo momento de fertilidade que ocorre com a instalação de três grandes estúdios de produção no Rio de Janeiro, sendo o mais notável deles a Cinédia. Contudo, no final da década, o mercado é novamente saturado pela retomada do cinema norte-americano. Devido a isto, todos fecham as portas, encerrando suas atividades e mais um momento de nossa cinematografia.
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Em 40, a produção ressurge no Rio de Janeiro com a Atlântida Cinematográfica – pela primeira vez um projeto liderado por artistas e pessoas do meio. Já em 1947, em virtude das dificuldades crônicas dos filmes brasileiros no mercado exibidor, a Atlântida passa a ser controlada pelo principal representante do cinema norte-americano na época, o distribuidor Luis Severiano Ribeiro, e projeta nacionalmente as chanchadas, catapultando ainda mais figuras como as de Oscarito e Grande Othelo, entre outras. Então, neste momento é reeditada a situação da Bela Época, quando todo o processo da produção de filmes é realizado por uma mesma companhia, das filmagens à exibição ao público pagante. 1950, São Paulo marca o cenário cinematográfico nacional com sua tentativa de implantar moldes industriais de produção com a companhia Vera Cruz, que também não chega a durar mais de quatro anos. Extingue-se em 54, todavia tendo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
despertado o pólo cinematográfico paulista, que a partir daí marcha junto com o carioca. É nesta década que se observa uma inicial migração do público do cinema para a televisão, que começa a se popularizar no país. Estes são, rapidamente, momentos chave que antecedem o que Ismail Xavier veio a chamar de cinema brasileiro moderno, período de maior fertilidade da produção nacional. É nesta fase que floresce o Cinema Novo, movimento cinematográfico capitaneado por Glauber Rocha, como veremos a seguir, passando pelos governos militares e a Embrafilme, estendendo-se até a suspensão de todas as atividades, com a chegada do Presidente Fernando Collor de Mello, em 1990. Somente em 1994, observa-se o reaquecimento da produção. Enfim, hoje vivemos mais uma tentativa de consolidação, quando as máquinas digitais abrem espaços e trazem novas oportunidades e anseios.
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O cinema brasileiro moderno
Se a tentativa de implantação de um modelo industrial para nossa produção não obteve sucesso, os filmes continuaram a ser produzidos de forma artesanal2. Da leva de filmes artísticos feitos na segunda metade da década de 50, destacamse dois realizadores: Walter Hugo Khouri e Nelson Pereira dos Santos. Nelson dirige Rio 40 graus em 1955, seu primeiro longa-metragem, utilizando-se das lições do movimento neo-realista italiano, mas sem deixar de lado uma profunda impregnação de brasilidade. Este pode ser considerado o marco do início do cinema moderno brasileiro. O neo-realismo buscava se aderir à realidade, em contraposição às fantasias PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
distribuídas por Hollywood. Para isso, utilizava-se da linguagem corrente nas ruas, de diálogos simples, de locações externas em pontos conhecidos pela população, de situações do cotidiano, fugindo das representações heróicas. As atividades espontâneas e atores não profissionais, que quase representavam a si mesmos, também foram recursos empregados para a elaboração das narrativas autênticas, exploradas por diretores como Roberto Rossellini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti. Este movimento inauguraria uma grande transformação no cinema internacional, que teria como expressão na França a Nouvelle Vague. Inserido na constelação do moderno, o jovem cinema brasileiro traçou percursos paralelos à experiência européia e latino-americana. Viveu, no inicio dos anos 60, os debates em torno do nacional-popular e da problemática do realismo, dados que nos lembram, em especial, o contexto italiano. Por outro lado, em consonância com novas estratégias encontradas pelo cinema político, foram típicos, ao longo da década, os debates em que, na tônica do "cinema de autor", godardianos e não godardianos discutiram os caminhos do cinema entre uma linguagem mais convencional e uma estética da colagem e da experimentação, ou entre uma pedagogia organizadora dos temas, própria ao documentário tradicional, e a linha mais indagativa, de pesquisa aberta, do cinéma-vérité. Tais debates colocavam em confronto cineastas que acreditavam na potência comunicativa da linguagem clássica e cineastas que, inspirados ou não em Brecht, definiam a crítica ao próprio cinema como condição de um cinema crítico voltado para as questões sociais. (XAVIER, 2001. Pg. 15) 2
Aqui oponho artesanal à industrial, entendendo que a diferença entre as duas possibilida-
des de produção cinematográfica não se dá pela qualidade técnica aplicada ou por maquinário disponível, mas sim por uma questão de logística de produção e comercialização.
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A partir de 1961, projeta-se no cenário nacional a figura do baiano Glauber Rocha, na irrupção do chamado Cinema Novo. Glauber estréia com Barravento e logo depois realiza o emblemático Deus e o diabo na terra do sol, tendo como suas principais referências os cinemas de Humberto Mauro e Nelson Pereira dos Santos. O momento político era de extremo otimismo por parte daqueles que sonhavam com perspectivas socialistas para o Brasil, com a chegada de João Goulart ao poder, após Jânio Quadros ter renunciado à presidência da república. Um importante foco de discussão cinematográfica fervilhava naquele momento. Os cineclubes fornecem, diretamente de seus quadros, uma série de nomes, como o do próprio Glauber, para a formação do Cinema Novo – movimento cinematográfico de maior influência e expressão já acontecido em nosso país. Com sua fórmula que agrega a exibição de filmes ao debate posterior às exibições, o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
cineclubismo foi importante vetor na construção de uma reflexão crítica coletiva cinematográfica no Brasil. Além de funcionar como uma janela alternativa ao circuito comercial, exibindo predominantemente curtas-metragens, se mostrava como uma tímida possibilidade de distribuição. Abrigados em escolas e universidades, os cineclubes aproximaram aqueles que tinham algum interesse por cinema dos movimentos estudantis, extremamente politizados. O cinema vivia uma fase de ascensão, de explosão criativa, com a aproximação, finalmente, da intelectualidade com o meio cinematográfico. O que veio a trazer uma visão ideológica para uma produção que até então se encontrava sob o signo do entretenimento. O que se via era um cinema militante, um cinema de autor, que buscava liberar-se do aprisionamento técnico e alçar um vôo criativo. O Cinema Novo buscava na falta de recursos sua força expressiva. Outros diretores envolvidos foram: Carlos Diegues, Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Leon Hirszman, Walter Lima Júnior, entre outros. Suas preocupações estético-ideológicas foram formalizadas e sintetizadas na célebre frase de Glauber Rocha: “Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, que fala sobre uma realidade política, artística e tecnológica.
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As temáticas abordadas por esse movimento, bem como sua expressão estilística, estavam profundamente amarradas a possibilidades tecnológicas surgidas na época. Novas câmeras, mais leves que as usadas até então, e equipamentos portáteis para a captação de som em sincronia com a imagem autorizavam a prática do postulado glauberiano. O cinema ganhava a possibilidade do registro da realidade mais fugidia. As equipes cinematográficas são reduzidas e o registro de temáticas como a pobreza e a miséria brasileiras se traduzira em movimento estilís-
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tico, manifestado por Glauber em A Estética da Fome, em 1965. O Cinema Novo não pode desenvolver-se efetivamente enquanto permanecer marginal ao processo econômico e cultural do continente latino-americano; além do mais, porque o Cinema Novo é um fenômeno dos povos novos e não uma entidade privilegiada do Brasil: onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade, e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da censura intelectual, aí haverá um germe vivo do Cinema Novo. Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí haverá um germe do Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e a sua profissão a serviço das causas importantes do seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo. A definição é esta e por esta definição o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do Cinema Industrial é com a mentira e com a exploração. (ROCHA, 1965)
Existia uma proposta de redução de custos e da realização de filmes de orçamentos abaixo do padrão estabelecido pela grande indústria. A necessidade de expressão político-artística falava mais alto. Apontando para uma produção em moldes coletivos, pensava-se em estabelecer uma rede própria de distribuição, que escoasse a produção que não se encaixava, ou mesmo não queria se submeter, ao dito “circuitão”, dominado pela forte presença norte-americana. Portanto, o Cinema Novo apoiava-se em um tripé: produção autoral, baixos orçamentos e renovação de linguagem, revestidos por uma vontade política e transformadora. Este era o ideário a ser aplicado para que se produzisse na adversidade econômica terceiro-mundista, sem deixar de exercer uma ação política transformadora. A política dos autores – um dos pontos deste triplo apoio – foi originalmente exposta pelos jovens turcos, como eram chamados os críticos cinematográficos da importante revista francesa Cahiers du Cinéma. Tendo observado arroubos autorais no cinema comercial americano, reverenciaram autores como Alfred Hitchcock. Tradicionalmente, em Hollywood são os produtores, e não os
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diretores, os realizadores dos filmes – aqueles que viabilizam o negócio e não aqueles que direcionam as escolhas artísticas e estéticas. Uma mudança de ponto de vista foi explorada por François Truffaut, Eric Rohmer, Jean-Luc Godard, na tentativa de elevar o cinema à categoria de obra de arte. A busca por um cinema autoral vinha como uma bandeira a ser hasteada, que desde logo tremulava sob a força dos ventos soprados do antigo continente. A partir da perspectiva autoral, dava-se vazão às expressões particulares e fortificava-se a busca por novas extensões para a linguagem cinematográfica. Conferindo densidade poética, ampliando os espaços para a ambigüidade, foram as visões absolutamente pessoais que os diretores do Cinema Novo expuseram em suas fitas o que os configurou como marco na história de nosso cinema, além de ter dado visibilidade a esta produção em diversas partes do mundo. Embutida na noção de auPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
tor estava a recusa da indústria, dos grandes estúdios e da linguagem clássiconarrativa utilizada nos filmes americanos principalmente, que, para os cinemanovístas, afastavam o cinema da realidade. O ser autor de filmes é uma condição mais dramática e absurda [do que a de um simples realizador] – que sofre pressões externas mas é esmagada pelo conflito inevitável do autor: esta forma de olhar o mundo é tão individual que, mesmo nos casos forçados, é impossível disciplinar a visão aos regulamentos dos visores tradicionais, formulados para divertir e dar lucro. (ROCHA, Glauber Apud BERNADET, 1994. Pg. 142)
Os filmes autorais expressam o sujeito que dirige e dispara a obra audiovisual. Esta expressão cultural tem como molde a idéia do escritor literário por trás de seus livros. Maneirismos visuais, ritmos e atmosferas são empregados na direção de situar o diretor como um poeta, um pintor, que é individualizado por seu estilo. A importância maior está na contribuição individual. Como coloca JeanClaude Bernadet, “o autor é aquele que diz Eu”3. O autor é/era independente, livre, revolucionário. Abril de 64, uma nova conjuntura política se instaura no Brasil a partir do golpe militar, atingindo diretamente toda a movimentação cultural do país. O Ci-
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BERNADET, 1994. Pg. 21.
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nema Novo buscou expressar sua perplexidade diante desta nova realidade. Terra em transe, de 1967, é uma resposta à ditadura, uma tentativa de reposicionamento, de diagnóstico, realizada por Glauber. Entre 65 e 68, os cinemanovístas deslocam suas temáticas do campo, do cangaço, da vida rural, para focarem suas observações no mundo urbano pequenoburguês, retratado como um desfile de amarguras. Neste período, Castelo Branco é sucedido por Costa e Silva, eleito pelo Congresso e representante de uma linha nacionalista do exército. A tentativa de manter uma fachada liberal permitia que fossem muitas as expressões culturais que viessem à tona no Brasil, controlado por militares que até então negavam assumir a figura de ditadores. Com muitos dos direitos constitucionais ainda mantidos no país, os filmes, assim como várias outras manifestações vindas da sociedade, eram censurados e, logo depois, liberaPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
dos pelo exercício da advocacia. A agitação no país continuava. Houve em 1968 a “Passeata dos Cem Mil” no Rio de Janeiro, tendo como sua principal figura o líder estudantil Vladimir Palmeira. Os intelectuais, os movimentos estudantis, a esquerda do Brasil se articulavam em grande efervescência. O agito era tal que Costa e Silva, pressionado pela ala fascista do exército, sancionou o Ato Institucional número 5. O AI-5 fechou o Congresso, concedeu poderes ditatoriais ao Presidente da República, suspendeu os habeas corpus, distinguiu crimes políticos de crimes civis e revogou completamente a Constituição Republicana. Assim, a repressão se instaurou da forma mais brutal possível. Glauber, então, ensaiava uma vitória sobre uma instância fundamental da produção cinematográfica, a distribuição e exibição dos filmes, fundando a Difilm, em resposta defensiva à crise instaurada pelo golpe militar de 64 e ao cerceamento das liberdades individuais pelo AI-5, em 68. Nesta mesma época, surge um novo movimento cultural no Brasil com uma proposta de incorporação da mistura, do “outro”, das tradições e das linguagens. O Tropicalismo concentrava sua maior força na música de Caetano Veloso, Os Mutantes, Gilberto Gil, Rogério Duprat, Tom Zé e outros. Trabalhando com colagens, ironias e paródias, o movimento encontrou ecos no cinema, principalmente em Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, de 1969, que faz referências ex-
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plícitas às chanchadas, até mesmo por contar com Grande Othelo em seu elenco, um dos principais atores da época da Atlântida. Não era mais possível falar com clareza, tal como se desejava no começo, da realidade social e política do Brasil, esta tendência realista ou neo-realista do primeiro Cinema Novo a que me referi pouco antes. O discurso, então, tornou-se metafórico, deu uma meia volta pela metáfora. E da sistematização da metáfora ao desejo de explodir as formas, a distância é curta. Toda a dinâmica modernista verdadeira é uma dinâmica de explosão das formas, diante de uma realidade que contém um coeficiente de violência insuportável. Esta dinâmica se instalou no coração do Cinema Novo como resultado, se podemos dizer assim, da violência da ditadura. (PIERRE, 1997. Pg. 103)
O Cinema Novo encontrou no Tropicalismo novos temperos e condimentos para seu caldeirão cultural. Passaram a um cinema de excessos, com seu olhar voltado para o periférico, para o disforme, absorvendo a antropofagia modernista, o
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kitsch, o descaráter nacional e o curto-circuito entre a tradição nobre e a cultura de massa. Deixam de lado uma posição pedagógico-concientizadora e assumem a construção de espetáculos provocativos, inspirados em uma cultura pop. É neste momento que Glauber Rocha roda O Dragão da maldade contra o santo guerreiro, apontando suas alegorias contra o AI-5, em 1969. Respondendo as indagações trazidas pelo Tropicalismo, mas as abordando de maneira distinta, surge o Cinema do Lixo, o Cinema Marginal, ou como ficou conhecido Udigrúdi, corruptela de underground. Sob o lema “quando a gente não pode nada a gente se avacalha e se esculhamba”, este cinema reveste-se com a “estética do lixo”, obviamente atualizando, e radicalizando, a “estética da fome” glauberiana. Representam a experiência dos vencidos e a temática dos colapsos dos sujeitos históricos. Retomando as propostas originais do Cinema Novo – a “política dos autores”, os filmes de baixo orçamento e a renovação da linguagem cinematográfica –, realizadores como Rogério Sganzerla – que inaugura esta movimentação com O bandido da luz vermelha, de 1968 –, Júlio Bressane, Neville D‘Almeida, Luiz Rosemberg, dialogam com o “teatro da agressão”, do grupo Oficina, e com a liberação sexual em curso. Enquanto isso os cineastas egressos diretamente do Cinema Novo buscam um maior diálogo com a audiência, através de uma linguagem mais comunicativa,
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em favor de um cinema de mercado, mas que não deixe de lado sua postura autoral. Estes realizadores, então, abandonam uma posição revolucionária para assumir um caráter reformista em suas obras. Assim, sofrem veementes críticas por
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parte dos mais jovens envolvidos no cinema do lixo. [O Cinema Marginal] instaura uma poética do espaço urbano marcada pela tensão entre olhar e objeto, pela definição de uma nova atitude do sujeito atrás da câmera, deliberadamente oposta, irônica, ante a câmera participativa do Cinema Novo. Não procura a identificação – entre personagem e platéia, cineasta e público, cinema e real –, reconhece a dissociação, a separação. Conta estórias, mas as compõe como música; trabalha as disjunções entre os procedimentos fílmicos (enquadramento, montagem, trilha sonora) e a ficção. Ora retira a ação dramática de foco, a sonega ao espectador, definindo uma poesia do espaço off (fora do campo de visão) e do tempo off (da nova função à elipse narrativa, ao salto do tempo). Ora dá uma empostação especial ao fato de a ação dramática encontrar-se no centro, pela duração da imagem desconfortável, pela rigidez do enquadramento fixo ou a regularidade impassível do movimento de câmera. Cinema de simetrias, construções em abismo (o filme dentro do filme), seu estranhamento da imagem se articula a um tratamento do som que procura novo sentido para o ouvir no cinema. (XAVIER, 2001. Pg. 78)
Em 1974 surge a Embrafilme, órgão estatal voltado para o financiamento da produção cinematográfica. Alguns dos realizadores do Cinema Novo são absorvidos pela máquina do Estado. Roberto Farias, na presidência do órgão, e Gustavo Dahl, na direção da distribuidora, convocam os realizadores a uma adequação ao mercado, expressa na idéia “mercado é cultura”. De certa forma, observa-se uma bipolaridade entre aqueles que tinham acesso às verbas do governo e os outros do “salão dos excluídos”. Embora esta dicotomia seja um tanto quanto simplificadora do momento, ela é esquematicamente interessante para que se possa traçar um retrato da situação. O cinema brasileiro assume uma postura mais dialógica com um movimento em direção a um maior pluralismo e a uma reflexão sobre a sociedade, buscando nova relação entre observador e observado. Com O amuleto de Ogum, de 74, Nelson Pereira dos Santos vem propor o Novo Cinema Popular. A idéia central é o respeito pela cultura popular, aproximando-se dela sem uma visão crítica, sem tentar explicá-la, enfim, buscando não falar sobre o povo, mas sim lhe dar expressão.
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Na busca pela revisão do passado são abundantes os filmes de resgate histórico, como Getúlio, de Ana Carolina, Xica da Silva, de Cacá Diegues e O ano de 1978, de Arthur Omar. Outra temática recorrente do período são as adaptações literárias, como Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto, transposição para o cinema do livro homônimo de Jorge Amado. Os cineastas reivindicam o direito à fantasia e trabalham suas obras de forma naturalista, como estratégia sedutora do espetáculo. No fim do Governo Médici, iniciado no final de 69, o Cinema Marginal perde fôlego, tornando-se rarefeito. O Cinema Novo já não mais se caracteriza como movimento, mas como sigla para identificar um grupo, agora
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hegemônico, atuando junto à Embrafilme. Vinte anos de cinema (60 a 80). Estética da fome. Tropicalismo. Estética do lixo. Emergência do experimental. Diálogo com a literatura e a história: conflito de vozes na composição de memória e identidade. O carnaval como interrogação, no filme experimental, e como espetáculo, no cinema de mercado. O cinema da abertura, o Naturalismo, a militância, as alegorias da modernização. O trajeto do cinema brasileiro mostra suas transformações, sua pluralidade, seu diálogo com o movimento geral da sociedade. (XAVIER, 2001. Pg. 125)
Paralelamente ao cinema estatal da Embrafilme, associado principalmente às grandes produtoras cariocas dos antigos cinemanovístas, podemos identificar, a partir da segunda metade dos anos 70, dois outros importantes setores da produção cinematográfica no país. Surgidos com o crescimento da reserva de mercado para os filmes nacionais, longas e curtas, se desenvolve, de um lado, um setor de produção eminentemente comercial, que tem como ponta de lança a pornochanchada da Boca do Lixo paulista, e de outro, um setor alternativo de produtores de documentários, principalmente de curta-metragem, em torno das Associações Brasileiras de Documentaristas, que se pluralizam pelos estados. Em um quadro em que se falava, outra vez, da morte do cinema nacional e no qual vê-se a produção se deslocando para a mão de realizadores que recusam os modelos da constelação moderna, observa-se o término deste período, tendo como marco final o filme Cabra marcado para morrer, realizado em 1984 por Eduardo Coutinho.
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O Brasil vive a instauração da Nova República, em 1985, com as eleições indiretas de Tancredo Neves, que não chegou a assumir o poder, tendo falecido às vésperas de sua posse. O vice, José Sarney, assume a Presidência da República. Os partidos políticos são novamente legalizados. Em 1986 é lançado, pelo Ministro Dilson Funaro, o Plano Cruzado, trocando a moeda do país na tentativa de uma estabilização econômica. Também é a partir desta época que começam a ser elaboradas leis de incentivo fiscal para a produção cultural do país, a Lei do Curta e a Lei Sarney . Os cineastas buscam um cinema de “alto astral”, em contraposição às tonalidades críticas e agressivas de um momento anterior. Existe um empenho para a formação de público a partir de filmes de entretenimento, de temáticas descontraídas. É notável a influência da linguagem televisiva em várias fitas da época, como PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
é o caso de Bar Esperança, de Hugo Carvana, realizado momentos antes em 1983, de Menino do Rio e Garota Dourada, de Antônio Calmon, hoje autor de novelas. As obras realizadas apresentam uma espécie de “naturalismo da abertura” – termo utilizado por Ismail Xavier para caracterizar a época – que não se conecta ao real, é pura simulação. A espetacularização do sexo, da violência, da miséria, é traço recorrente em várias produções, que buscavam uma “mentalidade profissional” para atingir o mercado. A busca é pela industrialização, fugindo ao paradigma artesanal e intelectualizado dos anos 60 e 70. São Paulo configura-se como maior pólo de produção, embora seja possível dizer que o cinema brasileiro permaneceu em crise durante toda década de 80.
O cinema da retomada Em 1989, o país realiza as primeiras eleições diretas para Presidente depois de 29 anos sem pleito popular. O eleito é Fernando Collor de Melo, ex-governador de Alagoas, que toma posse no princípio do ano de 1990. Entre uma série de medidas administrativas e econômicas, que mexeram radicalmente com a vida da nação, Collor decreta o fim dos órgãos e mecanismos estatais de fomento à cultura. É o fim da Embrafilme. Embora de funcionamento deficiente e viciado, a Embrafilme ainda mantinha as atividades cinematográficas do país articuladas de certa
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forma, chancelando projetos e provendo estrutura para a realização de diversos filmes. Em 1992, somente dois longas são produzidos e este é o último dos assassinatos de nosso cinema. ...o Brasil, atualmente, não se encontra em condições de manter o papel de difusão de sua própria cultura cinematográfica no estrangeiro, uma vez que dissolveu a estrutura oficial do Estado para gerir o cinema nacional. (...) Este ato de liberalismo selvagem teve conseqüências graves. (PIERRE, 1997. Pg. 88)
Após três anos de produção quase nula, o cinema nacional vive sua mais nova retomada. Em 1993, é notado um inicial reaquecimento das realizações, com a promulgação da Lei do Audiovisual – que disponibiliza 1% dos impostos a serem recolhidos junto às empresas como renúncia fiscal a ser aplicada na produção audiovisual –, embora esta só comece a gerar frutos em 1995, dois anos depois. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
Entre 93 e 94, com o dinheiro da extinta Embrafilme, organizou-se o Prêmio de Resgate do Cinema Brasileiro, que a partir de três processos de seleção, ocorridos neste ínterim, apoiou 90 projetos cinematográficos: 25 curtas, 9 médias e 56 longas. Fica para a história, como marco da retomada, o filme Carlota Joaquina, a princesa do Brasil, de Carla Camurati, de 1995, que alcançou a marca de mais de 1 milhão de espectadores em todo o Brasil e voltou a atenção do público para uma produção que vinha se adensando. Lamarca (94), de Sérgio Rezende, O Quatrilho (94), de Fábio Barreto, que concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro assim como O que é isso companheiro? (97), de Bruno Barreto, Terra estrangeira (95), de Walter Salles Jr. e Daniela Thomas e Central do Brasil (98), também de Walter Salles, são outros títulos de marcante importância na demarcação deste período de reconciliação entre os espectadores e a cinematografia nacional, possibilitada pelos mecanismos econômicos do “mecenato”. Entre 95 e 97 são produzidos mais de 100 filmes de longa metragem no Brasil. É de Central do Brasil o maior prêmio internacional dado até hoje a um filme da retomada. O Leão de Ouro de Berlim, recebido em 99, trouxe prestígio internacional – que serviu e vem servindo de aval para nossas produções. A imagem de Fernanda Montenegro, uma de nossas mais importantes e famosas atrizes, recebendo um prêmio em uma festa estrangeira, se tornou um importante patrimônio simbólico para este cinema que sempre buscou
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reverter a imagem que muitos brasileiros tinham de nossa cinematografia no final da década passada. Sexo, palavrões e violência, eram muitas vezes associados a nossa produção, que no imaginário popular, ficou muitas vezes restrita a signos representantes da pornochanchada. A Lei do Audiovisual sofre uma mudança em 96, passando a disponibilizar para a realização de filmes até 3% dos impostos a serem pagos. Este mecanismo, juntamente com a artificial paridade vivida entre real e dólar, possibilita que investidores particulares coloquem dinheiro no mercado e façam a produção crescer. É importante lembrar que o dito ‘cinema da retomada’ não foi empurrado por investimentos privados, o dinheiro colocado à disposição das produções é público, pela via da renúncia fiscal. Não existe um direcionamento, uma política cultural em nosso país apontando para esta ou aquela direção. São os departamentos de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
marketing e seus executivos que decidem qual é o destino dado ao dinheiro público, o que pode causar uma série de distorções – como é o caso de Chatô, filme ainda não finalizado pelo estreante Guilherme Fontes, que captou através das leis de incentivo o maior montante de dinheiro em toda nossa história recente. Os filmes da retomada ficam marcados por um pragmatismo voltado para o mercado, nacional e estrangeiro. As produções utilizam-se de uma estratégia de lançamento que primeiro as exibe no exterior, principalmente em festivais e mostras, na tentativa de ganhar prêmios que atestem sua qualidade para o mercado interno, que só depois as coloca em distribuição. Desta forma, as realizações têm um sotaque cosmopolita, uma identidade adequada aos mercados globalizados. É forte a presença de atores televisivos em toda esta produção, talvez para gerar interesse junto ao público e espaço de negociação, junto a possíveis investidores. Entretanto, observa-se um impulso revisionista, imerso numa pósmodernidade de rearticulações, releituras e recuperações, que busca apoio nos preceitos culturais do cinema modernista, embora reveja sua fórmula, a adequando a um formato palatável aos mais diversos gostos. Embrenhados na tradição, esses filmes vão novamente despertar um “cinema do cangaço”, explorado pelos cinemanovístas, como em Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, de 96, e Corisco e Dadá, de Rosemberg Cariry, de 97. Mesmo Carlota Joaquina vai
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beber na fase tropicalista do Cinema Novo, utilizando-se da carnavalização, da anarquia, da subversão da História, características marcantes do cinema do final dos anos 70. A cultura popular e a rearticulação das tradições são as referências máximas deste cinema brasileiro do final do milênio, embora paradoxalmente temperadas com modelos internacionais. Entretanto, imersas no espírito da preservação, permanecem isoladas e estáticas, imaginando-se afirmadoras de uma identidade nacional, e, de certa forma, não notam que esta tradição já é simulada, um simulacro de autenticidade. Diferentemente do que ocorreu no Cinema Novo, realizam-se obras que não apresentam – com clareza, ao menos – um caráter político, contestatório, ou mesmo um direcionamento ideológico. Outra característica desta produção é sua diversidade: seja ela geográfica, com produções de várias partes PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
do país; etária, são muitos os estreantes em longas, mas, ao mesmo tempo, são muitos aqueles “veteranos” que voltam a produzir depois de anos afastados dos sets; temática, retratando muitas realidades e contando diversas estórias; ou mesmo, em termos de gênero, pois é grande o número de mulheres a dirigirem filmes, diferentemente de décadas anteriores, quando predominava a figura masculina sentada na cadeira de diretor. Fazendo uma brevíssima síntese da cultura audiovisual brasileira nas últimas décadas, teríamos, então, esse primeiro pós-moderno - o dos anos 80 - que assimila o discurso do pós-modernismo (principalmente o norte-americano) e os aspectos mais superficiais da pós-modernidade (até por sua condição de país periférico, de modernização lenta e incompleta) para contrapor-se ao nacionalismo retrógrado, ao autoexotismo folclorizante. Assim o segundo pós-moderno brasileiro vai tentar refazer a equação modernista e rearticular a identidade nacional juntamente com a consciência da globalização cultural. Há, porém, várias diferenças em relação ao modernismo ou ao Cinema Novo, por exemplo. A primeira delas é que já não é necessário o gesto de ruptura com uma estética anterior (nem com nenhuma outra estética).Também não se trata de uma vanguarda lançando idéias originais: a idéia de rearticulação da tradição e da identidade nacional com uma roupagem "globalizada" não só faz parte do establishment, como assegura o funcionamento do mercado cultural no Brasil de hoje. Podemos dizer, portanto, que a cultura brasileira (o audiovisual incluído) parece colocar permanentemente em funcionamento uma espécie de dialética do cosmopolitismo. Que talvez pretenda apresentar como síntese uma permanente oscilação entre a negação das diferenças (portanto, a afirmação e a prescrição do cânone ocidental) e sua articulação consciente para o redimensionamento desse cânone. (PRYSTHON, 2002. Pg. 77)
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1999, o real sofre uma grande desvalorização com o final da paridade monetária com o dólar. O mercado encolhe, os investidores enrijecem suas possibilidades de investimento. Os departamentos de promoção sofrem cortes e adotam uma política mais dura. Vem a virada do século e os filmes permanecem explorando uma linguagem estetizante, através de exercícios de estilo. São produções que privilegiam os aspectos técnicos, que se equiparam, em muitos casos, à excelência de realização estrangeira. A busca neste momento é pela consolidação e solidificação das posições ganhas nos anos anteriores junto ao público e ao mercado.
Nós que aqui estamos assistindo a filmes digitais
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A produção nacional começa a sentir os impactos da tecnologia digital. Em filmes como: A rocha que voa, de Erik Rocha, O invasor, de Beto Brant, Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, é notável o uso de tecnologia digital na realização das obras. Rocha que Voa mostra-se como concretização, uma das possíveis, do diálogo entre a herança cultural deixada pelo Cinema Novo e uma nova geração de realizadores que encontra nos meios digitais novas possibilidades de atuação. Manipulando digitalmente o material captado em diversos suportes, seu autor encontra uma vertente expressiva e uma tecnologia que possibilita a execução de suas intuições criativas. O maior desafio de qualquer documentarista que se propõe a trabalhar nos meandros da História é o de tentar reunir as importantes e variadas fontes dessa memória para revitalizá-la e criar uma ponte que gere uma reflexão atual sobre o tempo presente. Daí nasce a linguagem de Rocha que voa, uma linguagem contemporânea que expressa algumas das questões fundamentais para a minha geração. O filme está permeado por dúvidas e indagações sobre os possíveis caminhos, as possíveis utopias do nosso tempo. Quis estabelecer um diálogo, um diálogo poético entre a geração de meu pai e a minha. A prática política do intelectual hoje é diferente. (ROCHA, Erik. 2002. Pg. 13)
Mas não só realizadores jovens vêm buscando no numérico, no binário, ferramental para viabilizarem suas obras. A sedutora possibilidade de se exporem
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como autores, não comprimidos pelas expectativas mercadológicas, e trabalharem mais próximos à esfera do artesanal, distantes dos intrincados e dificultosos meios convencionais de produção em película, vem atraindo diretores experientes como José Joffily, que realizou, em 2002, o filme Dois perdidos numa noite suja, baseado na obra de Plínio Marcos, utilizando-se de tecnologias digitais em várias fases do processo produtivo. Da mesma forma, Domingos de Oliveira achou nas pequenas câmeras DV uma possibilidade de transpor para as telas os conflitos existenciais dos personagens de Separações, de 2001, totalmente rodado em digital. Houve uma vez dois verões (2002), de Jorge Furtado, foi filmado em apenas 24 dias, mesmo contando com atores inexperientes. Possibilitado por um orçamento 30% mais barato do que se realizado analogicamente, apresentou ao público um produto com imagens de qualidade inferior àquelas encontradas usualmente nas salas de cinema comercial. Mas com sua narrativa ágil, não assusta a audiência, que, a caPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
da dia, fica mais habituada a novas texturas fílmicas – trazidas a público pelos filmes do Dogma95, como veremos no final deste capítulo. Licenças poéticas, metáforas e exploração de texturas da imagem já são mais bem aceitas no circuito convencional de produção de cinema. Com a tecnologia do vídeo, o cinema ganhou a superfície do plano em detrimento da perda da profundidade de campo. Agora, com o digital, ganha também uma maleabilidade inédita, que possibilita ousadias de linguagem e, quem sabe, a chance de renovar permanentemente os preceitos ditados pelo mercado. (BAMBOZZI, 2003. On-line)
Esta é uma questão trazida pela inserção das novas tecnologias na produção audiovisual. Com qualidade técnica ainda não comparável a das películas 35mm, os filmes digitais têm de ser calcados em bons roteiros e no exercício de ator, que ganha um novo sopro cinematográfico. Não mais precisando estar cerceado pelos 10 minutos de filmagem dos chassis 35mm, a possibilidade de imersão nas personagens é muito maior, afinal as paralisações nas filmagens são reduzidas – as fitas digitais gravam 1 hora de material ininterrupto, se for o caso. O trabalho com o ator é potencializado e gravar mesmo os ensaios torna-se artifício explorado por alguns diretores, como o próprio Domingos. As propostas autorais são mais uma vez colocadas em pauta, entrincheirando-se novamente em cineclubes, que dão vazão a uma produção que cresce a cada
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dia. Esta produção vinda de escolas de cinema – somente no Rio de Janeiro são mais de três cursos universitários –, de pequenas produtoras caseiras, utiliza-se ou não das leis de incentivo, e é realizada na maioria das vezes movida a paixão e cinefilia. É curioso notar que nos últimos dois anos, portanto de 2002 para cá, surgiram mais de dez cineclubes no Rio de Janeiro, entre eles: Cineclube Digital, organizado e apresentado pelo diretor Walter Lima Jr., o Tela Brasilis, o Cine Buraco e o Cachaça Cine Clube, todos eles fundados por alunos egressos do curso de cinema da Universidade Federal Fluminense. É o debate cinematográfico ganhando viço novo, caminhando paralelamente com as novas possibilidades de produção. Se nas décadas de 50 e 60 os cineclubistas utilizavam-se de pequenas publicações para difundirem suas programações e idéias e projetavam principalmente filmes PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
realizados em 16mm, hoje é a Internet, com seus espaços de discussão e seus sites, hospedados em provedores gratuitos, que serve de impulso comunicativo na hora de se organizar um evento a volta de qualquer assunto, no caso, o Cinema. Os cineclubes atuais continuam dando visibilidade a uma grande quantidade de curtas metragens e os exibem a partir de diferentes suportes. O tradicional 16mm ainda tem seu espaço, mas formatos digitais, como o DVD ou vídeos analógicos, são assistidos por uma audiência de interessados, em muitos destes espaços alternativos. A câmera empregada nesse tipo de cinema subjetivo se assemelha a uma caneta esferográfica. Só pode ser operada pelo próprio realizador porque “respira” como ele. Talvez esteja aí a grande revolução promovida pelas chamadas “câmeras numéricas”, digitais: o filmar se transforma numa ação solitária, pessoal e intransferível. É como escrever, pintar e compor. O cinema digital veio dar vida nova ao cinema autoral. Veio também abrir maneiras diferentes de mostrar os filmes às pessoas e, sobretudo, modificar os métodos arcaicos e dispendiosos de exibi-los nos cinemas. (REICHENBACH, 2003. Online)
Se os cineclubes dão nova força ao cinema e, mais especificamente, sucitam debates em torno do tema, são as muitas mostras e festivais que permitem que realizadores de várias partes do país possam trocar suas experiências e observar o que vem sendo produzido aqui e no resto do mundo a partir das mesmas possibilidades tecnológicas, além de distribuirem prêmios que vão de dinheiro à viabilização de finalização e fornecimento de suprimentos. Destacam-se dois festivais entre
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muitos: um deles, o Fluxus4, antigo Festival Brasil Digital, em sua terceira edição, dá espaço a obras realizadas nos mais diversos suportes e traz categorias específicas de filmes realizados para serem transmitidos pela Web e de filmes de linguagem experimental. O outro, o Anima Mundi, que já em sua 11a edição, é realizado no Rio de Janeiro e em São Paulo e estende-se pela rede mundial de computadores. Com mais de 80 mil espectadores em apenas 15 dias, o festival mobilizou 14 salas de exibição, promoveu oficinas e workshops e exibiu 599 títulos de 39 países diferentes, em 2003. O Brasil foi o país com maior número de participantes na mostra competitiva, com 105 obras. Nestes como em outros festivais – muitos já ocorrem exclusivamente na rede – o número de participantes vem crescendo ano após ano, e a hibridação de suportes vem tornando cada dia mais difícil estabelecer fronteiras entre o que é animação, vídeo, filme.
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Hoje, vários sites na Internet se somam a esta movimentação e armazenam e disponibilizam um acervo significante de obras audiovisuais que somente necessitam de boa conexão para serem vistas. Este é um aspecto tecnológico, a transmissão de áudio e imagem via rede, que ainda está se aperfeiçoando. Depende, essencialmente, da popularização de conexões em banda larga, por onde trafegam com maior velocidade, pacotes maiores de informação. São notáveis os sites: www.curtaocurta.com.br, que digitaliza e hospeda gratuitamente qualquer obra de até cinco minutos que lhes for enviada, e o site www.portacurtas.com.br, patrocinado pela Petrobrás, portanto uma iniciativa estatal nessa área embrionária. Estes são apenas dois exemplos dentre um grande número de sites que se propõe a dar espaço às novas produções e que, além de exibirem as obras, divulgam datas de festivais, críticas e matérias, servindo como pólos de circulação de informação e idéias para qualquer um que queira se expor a esta nova produção ou esteja interessado em mostrar seu trabalho e/ou entrar em contato com outros realizadores. A rede já é um braço importante na disseminação de hábitos culturais e vem servindo de campo de ação para aqueles que não tinham como divulgar seus trabalhos.
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Vide: http://www.fluxusonline.com
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Sem dúvida, a dose de insensatez biográfica que torna possível o cinema brasileiro mudou de tom; está mais profissional, tem lastros oficiais, maior retaguarda de formação, tecnologias mais acessíveis e de maior agilidade, mas não descartou de vez os estratagemas que marcam o uso da imaginação heterodoxa para viabilizar um filme. (XAVIER, Ismail. In NAGIB, 2002. Pg. 11)
Janela da Alma, de João Jardim e Walter Carvalho, Xuxa e os duendes, dirigido por Paulo Sérgio de Almeida e Rogério Gomes – este o primeiro filme nacional a utilizar-se de caríssimas câmeras digitais que filmam em 24 quadros por segundo como em película5 –, além de Babilônia 2000 e Edifício Master, ambos de Eduardo Coutinho, são todos, juntamente com os já citados, pioneiros no uso das tecnologias digitais na produção cinematográfica nacional. Porém, o filme que se tornou um marco da entrada do cinema digital nas salas de exibição do circuito comercial foi Nós que aqui estamos por vós esperamos, de Marcelo Massagão, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
1999, todo feito em um computador caseiro, que teve distribuição nacional, atingindo um grande público para uma obra realizada nestes moldes. Longa de 73 minutos de duração, o filme de Masagão foi produzido em um computador caseiro: um Dual Pentium 240Mhz, com 126 MB de memória RAM, 28 GB de espaço em disco rígido, uma placa digitalizadora Perseption e um software de edição chamado Speed Razor 3.5. Uma máquina que já está obsoleta para os dias de hoje, apenas cinco anos depois, e que custou aproximadamente vinte mil reais. Além deste custo, o diretor se gastou US$ 80 mil com material de arquivo comprado de bancos de imagem, cinematecas, estúdios de cinema, museus e redes de TV, e mais US$ 30 mil na passagem da cópia final digital para película 35mm, realizada em Los Angeles, pela Four Media Company. Nesses moldes, é o trabalho pessoal do diretor e de sua equipe o principal capital investido por aqueles que desejam realizar obras audiovisuais, se aproximando de uma situação já experimentada nos primórdios do Cinema Novo. Após duas mil horas de edição, o que faz a máquina ter um custo de R$ 10 por hora editada, Masagão – que é um dos organizadores do Festival Mundial do
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O vídeo á gravado a 29.97 quadros por segundo no padrão NTSC e a 25fps (frames per
second) no padrão PAL.
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Minuto, para realizações de até um minuto de duração – apresentou no Festival de Recife do mesmo ano sua visão abrangente e fragmentada da vida humana no século XX, costurada pela História e pela Psicanálise. Possíveis referências são a vídeo arte de Bill Viola, o filme Histórias Reais de David Byrne, a publicidade em geral, a pintura e o cinema de Peter Greenaway, com suas composições e reinterpretações das imagens cinematográficas. A partir de ícones, Masagão encadeia e funde fotos, pinturas, trechos de filmes, em movimentos que se harmonizam com a música composta por Win Mertens, autor da trilha de A barriga do arquiteto, de Peter Greenaway. Legendas comentam e pontuam as cenas construídas por fusões, aberturas de janelas e sobreposições, usadas de forma alegórica. Variações rítmicas, diferentes velocidades, apropriação de materiais vindos de diferentes suportes e ressignificados, proPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
põem uma polissemia de sentidos que se calca na referência, na manipulação e nas paráfrases. Os fragmentos expostos trabalham em um nível de dupla significação, conservando seu sentido original e ganhando novas possibilidades de interpretação ao serem reassociados no fluxo do filme. Assim, todo filme é construído num processo de resgate e reapresentação da História através de imagens, mais ou menos conhecidas do público em geral. A computação gráfica abriu um sem número de possibilidades de lidar com o material pesquisado, que não seriam factíveis se métodos tradicionais e analógicos de realização fossem aplicados. Assim, as novas tecnologias servem de força motora para a popularização da produção e a criação de espaço de exibição para toda uma recente produção de filmes em nosso país. Para uma melhor compreensão de quais as reais possibilidades dessas novas ferramentas e o porquê de elas terem provocado uma mudança de paradigma tecnológico para a realização audiovisual, será traçado um breve histórico desta tecnologia no restante do capítulo, além de um retrato de como esta movimentação vem ganhando corpo em outras partes do mundo e vem se configurando como uma possibilidade revolucionária para aqueles que desejam utilizar-se das obras audiovisuais para provocar e revolver a cultura institucionalizada pelas forças hegemônicas de saber e poder.
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1.2. Microcinema: tecnologia e movimentação
Na última década, os computadores pessoais ganharam grande poder de processamento aliado a uma incrível capacidade de armazenamento de dados. Nossas máquinas reportavam a números que passaram de dezenas para centenas – hoje as mais populares têm, em média, 256 MB de memória RAM, bem distantes dos 8 ou 16 MB a que estávamos habituados. Das centenas, passaram aos milhares, e hoje, facilmente, se encontram harddisks com mais de 100 Gygabites de capacidade de armazenamento. Produtoras de animação, escritórios de design, casas de finalização já podem
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processar e criar imagens digitais. Ilhas de edição, que até cerca de cinco anos atrás dependiam de dispendiosos investimentos, hoje, com o advento do formato DV, caíram de custo. Se, antes, uma estação Silicon Graphics chegava a custar mais de US$ 30 mil e sistemas de edição AVID alcançavam os US$ 80 mil, agora, adquirir maquinário suficiente para captar, editar e finalizar um produto audiovisual se torna factível, até mesmo para profissionais liberais. O mercado se reordena para alinhar-se a funções nascidas de uma nova realidade em que a Internet promete ser possibilidade de distribuição de informação e em que os computadores, a cada dia, alteram os processos produtivos. O mini-DV, as ilhas de edição não-linear, assim como as estações de manipulação e tratamento da imagem digital, se configuram como novas possibilidades: mercadológicas, artísticas e cinematográficas de expressão individual, de expressão autoral. A partir da disseminação das ferramentas digitais, uma intensa movimentação vem tomando conta de pequenos espaços, brechas deixadas pelo mercado. Sites, festivais, mostras, pequenas salas de projeção, vem se pulverizando por várias partes do globo. Mesmo o circuito comercial vêm cedendo terreno para uma produção que se utiliza de novas lógicas de divulgação e realiza obras audiovisuais que não mais respeitam fronteiras clássicas, que diferenciam animações, vídeos e cinema, em compartimentos estanques.
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Vídeo Digital: uma ferramenta revolucionária Corria o ano de 1982 quando o diretor americano Francis Ford Coppola, retornando de uma viagem ao Japão, anunciou que o futuro do cinema seria eletrônico, já vislumbrando o que para muitos, naquele momento, pareceu apenas um exercício de futurologia ou alguma jogada de marketing. Nesse mesmo ano, já utilizando técnicas pioneiras no uso dos computadores para a produção cinematográfica, roda o filme One from the heart, inovando ao produzir digitalmente os storyboards que decupavam a trama. Este foi o início de um processo que vem se intensificando até os dias de hoje: o uso de ferramentas e técnicas digitais na produção de imagens em movimento. Os primeiros discos de armazenagem de imagens apareceram, ainda com PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
preços bastante elevados, no final da década de 80. Lentos ao manipular o material gravado, tinham capacidade de guardar apenas 30 segundos de vídeos digitalizados e eram normalmente utilizados na aplicação de efeitos visuais sobre imagens pré-gravadas. No início dos anos 90, o maior custo despendido na montagem de ilhas de edição digitais era com o hardware de compressão6, que possibilitava que as imagens fossem armazenadas nos HDs7, de pouca capacidade, da época. Neste momento, poucos podiam imaginar que câmeras digitais fossem um dia ser vistas quase que como periféricos – máquinas externas que se acoplam ao computador – e que a edição de vídeos seria uma das aplicações que mais cresceria na utilização dos computadores pessoais, em número de usuários e de máquinas montadas. Neste momento, as câmeras S-VHS e Hi-8 chegavam às lojas e traziam um aumento de qualidade para as imagens captadas de forma caseira, embora ainda fossem analógicas.
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A compressão digital de informação ocorre quando, através de um algoritmo matemático,
certa quantidade de informação é dispensada por ser redundante. Desta forma, um fundo de cor chapada pode ser “carregado” em uma imagem comprimida apenas a partir de seu contorno e de uma única informação de sua cor. Quanto mais uniforme for uma imagem, mais comprimida ela poderá ser. 7
Hard Disks, discos rígidos eletromagnéticos que armazenam as informações digitais.
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As primeiras ilhas de edição que trouxeram os computador para dentro de seus quartos refrigerados e escuros somente usavam as máquinas para controlar os players e gravadores envolvidos no processo de cópia de trechos de várias fitas matrizes para uma única fita final com o material editado, ainda de forma linear e analógica. As plataformas de edição AVID, montadas a partir de computadores Machintosh, foram as primeiras a trabalhar de forma não-linear e custavam mais de US$ 50 mil. A edição não-linear difere da forma tradicional, linear, pois todas as imagens envolvidas no processo de edição são capturadas e indexadas dentro dos HDs. Assim, o acesso a um determinado trecho que se queira ocorre diretamente, não precisando que se corra uma fita linearmente do ponto onde se encontra até a imagem que se deseja. Desta forma, o processo de edição se torna mais rápido e ágil, permitindo que o raciocínio empregado ocorra de forma mais fluida, não sofrendo com as várias interrupções à busca de material. Além disso, uma vez PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
que o material é capturado, não mais sofre as perdas decorrentes das inúmeras cópias do antigo processo. A matriz digital dentro de um disco rígido não se altera por mais que se realizem dezenas de diferentes edições, que afinal são somente uma série de referências e instruções registradas em um arquivo digital de base binária. O mercado de edição digital se desenvolveu graças ao barateamento dos HDs, que, além de passarem a possuir maior capacidade de armazenamento, também ganharam mais velocidade para lidar com as informações gravadas. Os programas de edição também foram caindo de preço e ficando cada dia mais sofisticados. Hoje, é possível encontrar no mercado vários softwares com este propósito. Variam de preço e de escopo, indo desde os bem baratos e limitados até os complexos programas de composição e manipulação digital, que custam alguns mil dólares. Até a chegada do processador Pentium da Intel, em 1993, os PCs8 só podiam lidar com imagens de 160x120 pixels, enquanto uma imagem no formato DV é formada por 720 pontos na horizontal e 480 pontos na vertical , ou seja, é quatro vezes maior do que a capacidade das máquinas da época. 8
Personal computers.
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Isso começa a mudar quando os processadores dos computadores pessoais começam a operar com velocidades acima dos 200Mhz. A partir deste momento, as máquinas começaram a poder manobrar imagens que excediam os 320x240 pixels sem a necessidade de hardwares extras muito caros. 1995, a Sony apresenta o revolucionário formato DV e subseqüentemente o protocolo de transferência de dados international standard IEEE 1394 chega também ao mercado. Esta porta para a transferência de dados entre máquinas foi originalmente lançada com o nome de FireWire, pela Apple, para as máquinas Macintosh. Através desta interface, conectar uma câmera e muitos outros periféricos ou unidades de armazenamento de dados a um computador ficou quase tão fácil quanto ligar um simples mouse.
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As câmeras DV foram dia-a-dia diminuindo de tamanho, entretanto sem perder a qualidade de sua imagem ou o apuro de seus canais de áudio. O produto que então havia sido lançado para o mercado caseiro passou a ser experimentado por profissionais que se tornaram entusiastas de sua vantagens. As câmeras digitais mais baratas, e portanto mais acessíveis ao usuário doméstico, possuem apenas um CCD – componente que capta e processa a luz. Vindo através das lentes, o impulso luminoso é convertido pelo CCD em sinal elétrico e é gravado em base numérica, zeros e uns, em aparatos eletromagnéticos. Já as câmeras semiprofissionais, como as Sony DSRPD 150 e VX1000 ou a Cannon XL-1, gravam as imagens com três CCDs, nos quais cada um registra exclusivamente uma componente de cor da imagem – verde, vermelho e azul. Os raios luminosos, após passarem pelas lentes, atravessam um prisma que os decompõe em três, assim cada CCD grava uma componente. Desta forma, as imagens gravadas possuem melhor qualidade e maior fidelidade de registro de cor. Foram estas câmeras de três CCDs que caíram nas graças de fotógrafos e diretores por seu tamanho reduzido, sua facilidade de operação e seu baixo custo, seja do próprio equipamento, seja das fitas e suprimentos. Cada quadro registrado no formato DV possui a resolução de 500 linhas horizontais nas câmeras semiprofissionais, que utilizam fitas mini-DV, e chega a 750 linhas nas câmeras profissionais, que suportam o uso de fitas DV. A distinção entre estes dois modelos de fita digital apenas se dá no seu formato e
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tamanho, já que as duas registram o mesmo tipo de sinal. As distintas capacidades de resolução provêm de características intrínsecas às câmeras. A grande vantagem introduzida por esses equipamentos foi que, deste momento em diante, todo o processo de confecção audiovisual, que vai desde a captura das imagens até a entrega de um vídeo finalizado, passou a ser digital. As ilhas envolvidas neste processo são ditas DV nativas, pois não empregam nenhum outro tipo de sinal de vídeo e assim a imagem não passa por nenhum processamento ao ser mandada de uma máquina para outra. Os dados numéricos são somente transferidos, gravados de um suporte para outro, mantendo sua qualidade original, da mesma forma que um texto não perde suas partes quando salvamos algo que redigimos do HD para um disquete. As imagens armazenadas nas pequenas fitas mini-DV9, ao serem passadas para dentro dos computadores, não sofrem PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
queda alguma em sua qualidade e se apresentam como clones perfeitos de suas matrizes dentro dos HDs. Enquanto isso, as imagens analógicas a cada geração de cópia ou transferência de suporte, sofrem com perdas e com a adição de ruídos a imagem e áudio. A Sony e a Panasonic desenvolveram, respectivamente, os formatos DVCAM e DVCPRO. Empreendimentos individuais na tentativa de aprimorar o formato DV, que não é de propriedade de um só fabricante, e sim um formato aberto, ou seja, qualquer fabricante pode produzir artefatos DV a partir de um caderno de especificações. O formato DV utiliza um método de armazenamento de informações que aplica distintos fatores matemáticos de compressão para cada parte da imagem. Portanto, o céu azul de uma paisagem urbana é mais comprimido do que um complexo emaranhado de prédios, assim a transferência de informação, seja da
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As fitas mini-DV tem apenas 1/12 do tamanho de uma fita VHS, isso é um dos fatores que
possibilita que as câmeras DV sejam bem pequenas e leves. Muitas vezes é difícil destinguir uma câmera fotográfica, mesmo que digital, de uma câmera mini-DV. Cada uma dessas fitas pode armazenar 60 minutos de vídeo e áudio. Sendo que os canais de áudio deste formato possuem qualidade superior à dos CDs.
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câmera para o computador ou para um projetor digital, é otimizada quadro-aquadro. Dessa forma, alcançamos taxas de compressão que, juntamente com computadores mais potentes, possibilitaram que uma revolução se instaurasse no universo da produção audiovisual – hoje, é absolutamente factível que se realize todo um audiovisual em uma estrutura caseira, que gera produtos de qualidade técnica compatível com as expectativas do mercado profissional. São necessários aproximadamente 10 Gigabytes de capacidade de armazenamento para cada hora de vídeo gravado no formato DV. Estes arquivos são bem maiores do que os que carregam áudio, que necessitam de apenas 600 Megabytes para cada 1 hora de música, falas ou ruídos. É por esta razão que as ilhas de edição não-linear trabalham com áudio não comprimido, já que são montadas com capacidade para lidar com os pesados arquivos de vídeo, e podem manter fielmenPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
te toda qualidade obtida no momento do registro. Depois da chegada ao mercado, em meados de 98, dos processadores Pentium II, mais poderosos e rápidos do que os disponíveis até então, eram muitos os computadores, montados com este propósito, que podiam trabalhar com imagens full-screen, aquelas que ocupam toda a superfície da tela. Porém, o hardware envolvido neste processo ainda era razoavelmente caro. Sendo assim, foi no mercado profissional, primeiramente, que a edição digital começou a se popularizar. Virado o milênio, quase toda máquina caseira pode manipular e editar imagens geradas no formato DV e conta com portas IEEE 1394. As ilhas de edição não-linear estão por todos os lados. Imagens em DV já são utilizadas por profissionais liberais e autônomos, agências de propaganda, além de “realizadores” caseiros que dão vazão a seus impulsos criativos ou mesmo gravam cenas de seu cotidiano para registro. O formato, aos poucos, começa a ser utilizado em transmissões broadcast e serve de base para um sem número de outros usos, onde a sua qualidade excede as necessidades requeridas. Essas imagens já superam em qualidade as imagens geradas profissionalmente por canais de televisão de dez anos atrás, realizando um melhor registro de imagem do que as câmeras analógicas BetaSP – ainda muito utilizadas profissionalmente até hoje. É notável que o vídeo
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digital tem uma qualidade aproximadamente duas vezes melhor do que a do formato VHS, tão popular no uso doméstico na década passada. O DV, além de permitir a realização de peças audiovisuais com um orçamento muito inferior ao que estávamos habituados, permite que as experimentações sejam exercidas sem o pudor necessário a quem corta o material original com tesouras e une as partes com fita adesiva, como era feito no tempo das moviolas. As manipulações temporais, cromáticas e de textura, juntamente com as novas caligrafias de edição e a possibilidade de infinitas experimentações a partir de uma mesma matriz – que agora deixou de ser física para se constituir em agrupamentos binários de zeros e uns – permitem que se renove o arsenal de recursos da linguagem audiovisual e libertam o artista/produtor para o erro. Sem o machado econômico pendendo tão fortemente sobre sua cabeça e munido de um arsenal PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
tecnológico que lhe permite tentar, errar, voltar atrás e escolher, a produção audiovisual pode se reaproximar do artístico, do singular, não precisando mais ficar atrelada ao extremamente palatável e/ou comercial. Muitos diretores contemporâneos, tanto nos Estados Unidos quanto em outros países, sentem-se esmagados e limitados por aquele sistema (o hollywoodiano), com seus tentáculos internacionais. Clamam pela possibilidade de um cinema independente, que dê asas a uma criação mais pessoal e autônoma, o que é perfeitamente legítimo. (COLI, 2002. Pg. 26)
Num primeiro momento da mudança de um paradigma tecnológico, toda a cadeia de produção é otimizada. Embora continuemos a fazer o que já fazíamos, agora o fazemos de maneira mais rápida e barata. Num segundo momento, o que pode vir a acontecer é o surgimento de obras novas. Obras que explorem, a partir de um novo ferramental, a linguagem de forma surpreendente. Afinal, na história da imagem, sempre existiu uma parceria constante entre criação e seu modo de fazer, entre a obra e seu suporte de realização. O maior potencial do vídeo digital é dar aos cineastas um maior controle sobre seus projetos – não apenas durante o processo de produção, mas também controle sobre as imagens, que poderão ser manipuladas, aperfeiçoadas e armazenadas eletronicamente. Sem a interferência de investidores externos e com um número de limitações técnicas reduzido, os diretores podem produzir com maior fre-
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qüência, praticar mais seu ofício, assumir maiores riscos e permanecer crescendo e melhorando. São várias as instâncias da produção a se baratearem ou se simplificarem. Por exemplo, todo o processo de iluminação tradicional de uma cena a ser gravada ou filmada toma horas e cada novo ajuste provoca grandes esperas nos sets de filmagem. Utilizando-se de equipamentos digitais, iluminar fica mais fácil, rápido e barato, além de requerer um número menor de pessoal envolvido. Assim, é possível gravar um maior número de cenas por dia de filmagem, além de permitir que o trabalho seja mais fluido, mantendo-se o envolvimento e a concentração focados no processo de atuação. Outra grande diferença diz respeito à possibilidade que se tem de registrar muito mais material bruto do que quando se trabalha com as caras
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películas 16 ou 35mm. Quando todo o arsenal tecnológico estiver a nossa disposição num nível de custo menos proibitivo, as mudanças serão também estéticas e não somente tecnológicas. Então o cinema mudará. Acho que então não precisaremos mais nos dirigir às massas, ao grande público heterogêneo. Não será preciso faturar muito com a exibição porque os custos serão menores, o preço a pagar será bem mais reduzido. Com isso poderemos fazer filmes para minorias, para as imensas minorias. Aí então o cinema será mais fino, mais complexo, profundo e intelectual, ou não, dependendo das minorias escolhidas. Será possível o experimentalismo, a audácia. O cinema será fundamentalmente o mesmo. E ao dirigir-se a essas imensas minorias de toda a Terra, a sua universalidade não será sua limitação, se não o contrário, sua vivificação constante. As possibilidades estéticas aumentarão e seguramente os grandes públicos de massa, cativos do cinemão americano, irão se modificando, educando-se, ou não. Mas haverá a possibilidade de se fazer cinema barato e atender aos diversos cinemas de minorias, que atenderão seletivamente suas sessões de cinema. Como produtores, não precisaremos então fazer concessões a recursos estéticos emprestados para conquistarmos nossos pequenos públicos. (AMARAL, 2002. Pg. 19)
Todo o aparato digital pode popularizar e democratizar o acesso à produção audiovisual. Produções podem ser realizadas com baixíssimos orçamentos e de forma minimalista. Estes são novos espaços de produção que tem na Internet uma tribuna aberta para o seu discurso. Aliando todos esses novos recursos digitais, são muitos aqueles que vêm produzindo e emanando idéias a partir das mais diversas partes do planeta. Toda uma agitação em torno destas facilidades vem gerando um murmurinho que está somente começando a ecoar.
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Microcinema, uma movimentação cultural “Não é um filme, mas um conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao público, a consciência de sua própria existência.” Glauber Rocha10
O termo Microcinema foi utilizado pela primeira fez em São Francisco, 1993, quando alguns realizadores se juntarem para criar o Total Mobile Home Microcinema, um espaço para a exibição e discussão de filmes, nos mesmos moldes dos cineclubes brasileiros. As projeções acontecem no subsolo do apartamento de um de seus fundadores, que sugerem US$ 5 de doação para quem vai assistir e oferece US$ 100 para cada exibidor, que, por muitas vezes, recusa a oferta por querer colaborar com a iniciativa de Rebecca Barten e David Sherman, os organiPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
zadores. Contando com apenas 30 assentos, já exibiram mais de 120 títulos, na sua maioria realizados em suportes alternativos, principalmente digitais. Cinema eletrônico, e-cinema, cinema online, muitas são as expressões usadas para caracterizar as novas obras que cada dia estão mais presentes nos recantos da cultura audiovisual. Porém, o termo Microcinema abraça e traduz uma série de aspectos desta nova produção. Hoje ao realizar uma busca no Google11 à procura do termo, encontramos 75 entradas em textos em português e 26.000 por toda rede. Se a busca for um pouco mais ampla, como quando procuramos todos os textos que possuam em seu corpo a expressão digital video, acham-se mais de quatro milhões de entradas por toda Internet. Sob esse novo signo, bastante flexível, abrigam-se diferentes tipos de produção. Curtas de animação, manipulações impressionistas de imagens précaptadas, documentários, ficções. O que os torna semelhantes é a preocupação em se enquadrar numa nova maneira de criar, distribuir e mesmo de ver filmes. Em grande parte dos casos, são filmes gravados em vídeo digital, editados e pósproduzidos em casa e exibidos de forma alternativa ou hospedados em sites pela
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ROCHA, Glauber Apud GOMES, 1997. Pg. 599
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Motor de busca de páginas e conteúdos na Internet. Acesse www.google.com.
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Internet. Micro diz respeito a algo individual, pequeno, assim como suas expressões e, respectivamente, seus custos. O nome dado ao espaço traduz uma série de idéias de acordo com seus fundadores12: Total, um termo que convida à investigação de suas impossibilidades; Mobile denota uma constante mudança de perspectivas; Home, domiciliar, onde o coração está, uma zona temporária autônoma; e Microcinema, um pequeno espaço para a projeção de filmes e uma categoria de ação. Assim, fica explicitado que o termo se refere não somente a uma movimentação cinematográfica em torno das possibilidades trazidas pelas novas tecnologias, mas também propõe a disseminação de espaços alternativos para a exibição e discussão de filmes. Termo de múltiplos usos e leituras, da mesma forma que buscam ser suas obras.
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São esses espaços – que se proliferam pelos EUA e também pelo Brasil, como é o caso do recente ressurgimento dos cineclubes no Rio de Janeiro – que dão janela para muitas obras que não encontram espaço na grade comercial de distribuição e exibição, possibilitando que muitos artistas possam explorar as fronteiras da linguagem e da acessibilidade cultural de certas audiências. A arte subversiva necessita de espaços subversivos. Esta ligação direta entre os realizadores alternativos e os espectadores é um dos trunfos do Microcinema. Os efeitos de estratégias e movimentos "silenciosos" desse tipo, o caráter pouco burocrático da rede mundial de computadores e a disponibilidade de recursos para se trabalhar com baixos orçamentos devem mudar definitivamente o panorama da produção dita "avulsa" ou genuinamente independente de vídeos e filmes. Os festivais e eventos no exterior há muito vêm detectando a riqueza da confluência e proximidade entre suportes e formatos. Vários sites e distribuidores online estão disponibilizando trabalhos produzidos com essas características. Entre os mais famosos, estão o FiFi - Festival Internacional de Filmes para Internet (www.internetfilm.org), o D-film, que organiza mostras itinerantes de formatos curtos também fora da Internet (www.dfilm.com), além de distribuidores e promotores de filmes digitais como a Atomfilms (www.atomfilms.com) e o iFilm (www.ifilm.com). (BAMBOZZI, 2003. Online)
Enfrentando as dificuldades impostas pelo circuito comercial de distribuição, os filmes do Microcinema muitas vezes são levados de mão-em-mão para as salas de exibição por seus próprios realizadores, que regularmente permanecem
12
Vide: http://www.totalmobilehome.com
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para as discussões posteriores à projeção. Assim, as sessões restauram o diálogo, dando voz tanto aos diretores como à audiência. Talvez este seja um dos mais importantes fatores na configuração do Microcinema como uma movimentação – o fomento ao pensar cinematográfico disparado por novas oportunidades de produção. Uma movimentação cultural se diferencia de um movimento a partir do momento que não possui um manifesto ou um direcionamento ideológico claro e hegemônico, porém congrega muitos ao redor do mundo a darem suas contribuições particulares, sejam elas práticas, como filmes ou vídeos, sejam elas no plano das idéias, repercutindo esta nova forma de produção e exibição audiovisual. Filmes avant-garde, underground, experimentais, de garagem, pessoais, que distantes do chamado mainstream, são realizados nos mais diversos suportes, desde os antigos Super-8, até a mais recente tecnologia do DV. Todos dirigindo seus PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
esforços para que se mantenha na mão dos artistas o total controle sobre suas obras, que assim podem expandir a forma como os filmes são tradicionalmente realizados, seja na aproximação tecnológica com a obra, seja explorando pequenas vielas e escuros becos da linguagem cinematográfica. Inovação. Somam-se a isto os baixos custos de produção e temos a reedição da proposta cinemanovísta, que também se instaurava sobre este mesmo tripé da renovação de linguagem, baixo orçamento e política autoral, como vimos na primeira parte deste capítulo. O vídeo digital é o aparato tecnológico que torna possível, hoje em dia, a existência de uma movimentação cinematográfica que dispõe de uma nova gramática de produção, em prol da “pureza artística”. Superar as coerções da indústria e dos produtores, ou seja, do mercado, se mostra como alvo a ser atingido. Produzir sem as interferências externas ao ato criativo. Dar a cara. O Microcinema, que tanto exacerba o caráter autoral e individual de suas obras, exprime seu caráter coletivo através dos festivais e mostras e dos chats e foruns da rede. O ‘artístico’ advém quando a obra encontra em si mesma sua razão de ser. Quando o prazer (estético) já não é tributário da encomenda (religiosa). Em termos práticos e prosaicos: quando o fabricante de imagens toma a iniciativa, em vez daquele qua financiava a obra. A profissionalização do artista não constitui critério. Nem mesmo a assinatura da obra. O critério é a individualidade assumida, atuante e falante. Não a grife ou a rubrica, mas a tomada da palavra. O artista é o artesão qua diz, convictamente, ‘eu’. Que entrega, pessoalmente, ao público não as artimanhas do ofício ou as regras de aprendizado, mas seu papel no seio da sociedade em seu con-
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junto. No extremo limite, pode não fazer nada com as mãos – como é o caso, hoje em dia, dos ‘artistas’ da comunicação – contanto que diga e escreva: Eis como vejo o mundo. (DEBRAY, 1993. Pg. 223)
Um ato de invenção em que a estética e a técnica se confundem, parceiras na construção de novas e expressivas imagens. Representações alegóricas, vertentes poéticas da imagem, múltiplas identidades e leituras para a informação contida em malhas, vetores e pontos. A elaboração e proliferação de significantes e significados. Fatores presentes em uma produção que tem espaço para o artístico e não se limita às barreiras impostas pelo mercado. O baixo custo dessas novas produções afastam o cinema da indústria, o trazendo de volta para as possibilidades artísticas e artesanais, que não devem estar amarradas exclusivamente a preocupações mercadológicas. A Internet como ferramenta de distribuição abre novos ca-
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minhos a serem trilhados e possibilita o intercâmbio transcultural. Vivemos uma revalorização do autor, do dito “cinema de arte”. A cena independente ganha força e mostra-se como tendo espaço para abrigar as mais diversas formas de expressão. Microcinema é filmar localmente e exibir globalmente.
A nova onda Hoje, muitos já são os casos notórios de uso das tecnologias na produção de filmes que alcançaram distribuição mundial e começam a mudar o panorama comercial de produção cinematográfica. A técnica é só um meio. Instigados pelas capacidades e mesmo pelas limitações das novas ferramentas, cineastas vêm trabalhando sobre as possibilidades e cerceamentos estéticos do digital. Realizadores de renome se colocam lado a lado a uma extensa massa de estreantes e amadores, na exploração deste novo campo. O bem sucedido Buena Vista Social Club, do consagrado diretor Win Wenders, por exemplo, foi totalmente rodado com câmeras digitais, que registraram 150 horas de material original na ilha de Fidel Castro, Cuba. A partir de agora, serão expostos alguns casos nodais, que são de grande importância ao constatarmos uma contaminação mundial pelos meios digitais de produção.
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Hoje, uma tempestade tecnológica está caindo, a partir da qual se realizará a democratização final do cinema. Pela primeira vez, qualquer um pode fazer filmes. Quão mais acessível se tornam os meios, mais importância ganha a avant-garde – não é acidental a conotação militar do termo “avant-garde”. Disciplina é a respostas... nós temos que uniformizar nossas realizações, afinal, as obras individuais serão decadentes por definição!13 (Trecho de texto disponível no endereço www.dogme95.dk)
Princípio de 1995, o diretor dinamarquês Lars von Trier tem a idéia inicial de um manifesto cinematográfico e convida o também diretor de cinema Thomas Vinterberg para darem início a uma “nova onda”. Em 45 minutos o manifesto estava redigido. O Dogma95 é uma tentativa de restringir as possibilidades de realização, na busca pela quebra da ilusão nas obras fílmicas. É um movimento coletivo de cineastas, fundado em Copenhague, Dinamarca, com a intenção de influen-
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ciar e questionar todo o meio cinematográfico. Os primeiros filmes que portavam o certificado Dogma95 em suas aberturas surpreenderam positivamente a qualificada audiência do Festival de Cannes do ano de 1998. O filme Os idiotas, de Lars von Trier, participou neste ano da competição principal. Todo feito com uma câmera digital Sony VX1000, mini-DV, o filme utilizou a mesma tecnologia que Festen, outro filme Dogma na mesma competição, realizado por Vintenberg, compatriota de Trier. Celebration, como foi chamado no mercado internacional, foi todo gravado com câmeras de 1CCD, pequenas mesmo que comparadas as já diminutas câmeras de 3 CCDs. A maioria dos filmes Dogma foi fotografada com câmeras digitais domésticas e não encontrou restrições econômicas para a sua realização. Em média, cada um custou aproximadamente US$ 1 milhão, custo bastante baixo se comparado às cifras astronômicas envolvidas na produção de um blockbuster americano. O manifesto do Dogma95 foi pensado originalmente como uma quebra, uma mudança de foco para os profissionais que, através do Dogma, poderiam esquecer
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Today a technological storm is raging, the result of which will be the ultimate democrati-
sation of the cinema. For the first time, anyone can make movies. But the more accessible the media becomes, the more important the avant-garde, It is no accident that the phrase “avant-garde” has military connotations. Discipline is the answer ... we must put our films into uniform, because the individual film will be decadent by definition!
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por um instante o peso do maquinário envolvido na produção moderna de filmes e desenvolver e exercitar sua criatividade, assim como fica explicitado no site que divulga esta proposta dogmática. Sintetizando tendências atuais observadas por seus proponentes, o Dogma não é um movimento individualista, é a busca por um campo unificado de discussão. A essência do Dogma95 é a de desafiar a linguagem cinematográfica convencional – no intuito de produzir filmes autênticos, na busca da verdade. Isso significa cortar vários recursos dramáticos, tais como iluminação, sonorização posterior à captação, maquiagens. Por outro lado, ganha-se tempo para o improviso na atuação, afinal não existem paradas para o retoque da maquiagem ou ajustes de luz e trocas de roupa. Além disso, com o uso exclusivo da câmera na mão, é a câmera que segue o ator e não o ator que fica subordinado à máquina. Assim, os PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
atores têm mais liberdade de atuação, que, juntamente com o roteiro, formam as duas principais matérias-primas manipuladas por diretores de obras Dogma. Essas circunstâncias não usuais de realização exercem restrições e trazem liberdades ao diretor, que é forçado a ser criativo. Ao mesmo tempo, cortando custos de produção, o Dogma95 promove uma democratização econômica e cria um campo de trocas possíveis entre vários realizadores ao redor do mundo, que passam a utilizar um repertório restrito de variações dramáticas e de recursos de produção. Compartilhando das mesmas facilidades tecnológicas e restritos sob um mesmo voto de castidade, os filmes tendem a dialogar entre si, criando um ambiente de inovação, que vai contra a mediocridade e o convencionalismo. As dez regras que compõem o voto de castidade são: 1. Toda captação deve ser feita em locações. Cenários artificiais não são permitidos. 2. O som nunca deve ser produzido à parte das imagens e vice-versa. 3. Câmera, só na mão! 4. O filme deve ser colorido. Iluminação artificial não é permitida. 5. Manipulações óticas e filtros são proibidos. 6. O filme não pode conter ações superficiais. A violência não é permitida.
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7. Alienações geográficas e/ou temporais não são permitidas. O que quer dizer que o filme se passa aqui e agora. 8. Filmes de gênero não são aceitos. 9. O formato final dos filmes deve ser 35mm. 10. O diretor não pode assinar sua obra. Estas regras foram pensadas não para restringir, mas pelo contrário, para encorajar a imaginação e a criatividade, além de colocarem em pauta um debate específico sobre o fazer cinematográfico. Cansados de atuarem confinados em uma logística que inibe a livre criação e aprisiona o ato cinematográfico em organogramas, escalas e restrições técnicas, Vintenberg e Trier desejaram promover para diretores profissionais a purificante experiência cinematográfica.
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Muitos foram os filmes Dogma que chegaram ao circuito internacional e possuem distribuição regular para home video. Foram estas obras que primeiramente chamaram atenção para as possibilidades de se trabalhar profissionalmente com equipamentos que foram projetados para o uso doméstico. Neste mesmo momento, meados da década de 90, um outro evento ocorria e mais tarde iria se mostrar como inspirador para uma mesma movimentação – a realização de filmes de baixo orçamento sendo realizados e alcançando sucesso comercial em platéias de diversas partes do mundo. Na época, o jornalista Peter Broderick redigiu uma série de artigos sobre estas obras de orçamento reduzido, ente elas: El Mariachi, Clerks e Loss of Gravity, todos feitos com menos de US$ 100 mil, por volta de 1992. Assim, o próprio Broderick, ciente das novas possibilidades atuais, fundou em março de 1997 a Next Wave, um fundo de financiamento para filmes de baixíssimo custo (ultra-low budget films) – menos de US$ 200 mil – que pretende otimizar as oportunidades para novos realizadores lançarem suas carreiras.
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Diretores comumente me perguntam: “Quanto eu necessito para fazer um filme?”. Atualmente minha reposta é: “Bem, quanto você tem? Porque, provavelmente isto é o suficiente.” E eu nunca pude dizer isso antes.14 (ROCHESTER, 2002. Online)
A Next Wave, além de financiar filmes captados em película ou vídeo, dá suporte técnico e logístico para que as obras sejam realizadas dentro de parâmetros técnicos de qualidade e possam contar com estratégias de lançamento e distribuição profissional, assim acompanhando os filmes desde sua captação a sua chegada ao mercado. Todo esta assistência provida pela empresa talvez seja tão ou mais importante que os fundos levantados, já que a Next Wave se propõe a ser um centro de troca de informações técnicas sobre a realização de filmes digitais, fornecendo know-how e colaborando nas decisões estratégicas a serem tomadas na
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hora da realização e lançamento. A idéia base é possibilitar que os diretores possam executar suas obras da forma mais barata possível e com todo o controle criativo em suas mãos. Da mesma forma que o Dogma, os filmes financiados pela Next Wave têm seu enfoque principal na atuação e em seus conteúdos, já que tecnicamente ainda são inferiores àqueles realizados com grandes orçamentos. Normalmente não podendo contar com estrelas, os diretores devem tirar proveito do trabalho com atores menos conhecidos e gastar o máximo de tempo em planejamento e ensaio, indica a receita de Broderick e seus colaboradores. A Agenda 2000 é o braço de produção da Next Wave, produzindo exclusivamente filmes captados digitalmente a serem lançados no mercado exibidor regular. Para submeter um filme é necessário que o diretor tenha experiência anterior comprovada e que o realize em inglês, não importando se ficção ou documentário. A Next Wave conta com uma rede internacional de conselheiros – diretores, produtores e outros profissionais da indústria cinematográfica – que atuam na identificação e suporte a novos diretores em todo o mundo.
14
Filmmakers used to say to me [Peter Broderick], “How much do I need to make a fea-
ture?” These days my answer is, “Well, how much do you have? Because that’s probably enough.” And I could never say that before.
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Em média os filmes submetidos à Next Wave são orçados entre US$ 40 mil e US$ 60 mil. Mais de 10 títulos foram realizados nos primeiros quatro anos de atividade. Feito com um orçamento de US$ 27 mil, Slacker, de Richard Linklater, é um dos precursores desta onda de filmes de baixo custo. Entretanto, a partir do início de 2003, com o DV cada dia mais popular, a Next Wave começa a receber mais e mais propostas de filmes a serem realizados com não mais de US$ 1.500. Pessoas têm realizado filmes com não mais de 900 dólares usando câmeras domesticas, digitais. Elas possuem um computador pessoal com os softwares necessários, assim detendo os meios de produção e pós-produção audiovisual. Então, podem fazer tantos filmes quanto queiram, os finalizando em vídeo.15 (ROCHESTER, 2002. Online)
Um dos principais marcos históricos da conquista de espaço no mercado por filmes de baixo orçamento, realizados com tecnologia digital, sem dúvida alguma, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
é A bruxa de Blair, realizado em 1999 por dois estreantes, Dan Myrick e Eduardo Sanchez. Com 83 minutos de duração, o filme de horror foi realizado com uma câmera de vídeo caseira e uma 16mm, emprestada pela escola de cinema que os dois diretores cursavam então, para filmar as 20 horas de material bruto, que, depois de editadas, foram transpostas para película cinematográfica 35mm. O filme explora a leveza do equipamento e, na tentativa de se colar ao real, foi todo realizado com câmeras na mão. Tendo um investimento inicial de apenas US$ 31 mil e tendo rendido mais de US$ 130 milhões, este título pode ser considerado o de maior sucesso comercial de todos os tempos, se levarmos em consideração sua relação custo x renda. A partir de uma estratégia de divulgação via Internet, os realizadores conseguiram fazer com que o filme rendesse 4.000 vezes seus gastos de realização. 1994, três estudantes de cinema desaparecem nas florestas de Burkittsville, Maryland, EUA, enquanto rodavam um documentário sobre a lenda de mais de 200 anos da Bruxa de Blair. Um ano depois o material foi encontrado. Esta é a 15
The way people are making movies for as little as $900 is they have essentially a home
video camera that’s digital. They have a desktop computer. And they have software. And so they can essentially own the means of production and the means of post-production. And then they can make as many movies as they want to make. And they can finish them on video.
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estória divulgada pela rede e que despertou o interesse de grande parte do público. No site, estopim de seu lançamento, tudo é descrito como verdade, como se o filme que viesse a ser exibido fosse um documentário sobre este fato. Bruxa de Blair é um filme dento de um filme. O site www.blairwitch.com recebeu mais de 50 milhões de visitas e fez parte integrante da campanha de sucesso alcançada, funcionando como um componente interativo do filme. O site, contendo material extra e links escondidos, provocou a discussão em torno da obra mesmo antes de seu lançamento, o que possibilitou uma maior visibilidade para possíveis distribuidores que foram assisti-lo no Sundance Festival de 99. Só para se ter uma idéia, mais de 60 sites não-oficiais foram criados em pouco tempo sobre o The Blair witch project.
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Novas tecnologias de produção aliadas a um inteligente e instigante uso da rede internacional de computadores fizeram de A Bruxa de Blair um exemplo bastante concreto de como vem surgindo uma nova forma de aproximação com a produção audiovisual. Munidos de novas estratégias, provindas de um entendimento correto de como operam as relações de interesse dentro da rede, muitos realizadores podem fazer com que lucros sejam obtidos a partir de obras feitas “à mão”. De qualquer forma, o filme de Myrick e Sanchez não deixa de ainda ser uma exceção no mercado comercial mundial, porém nos serve como lição e não deixa de instigar novos desejos de conquista de espaço. Tão marcante como A Bruxa de Blair é Waking Life, de Richard Linklater, realizado em 2001. Um vídeo, uma animação, um filme? Produto das mais novas possibilidades de tratamento digital da imagem, captado por câmeras mini-DV de um CCD, daquelas de turista japonês, cinescopado16 e distribuído para as salas de projeção em película cinematográfica 35mm, esta peça audiovisual se encontra em um grande entrecruzamento de formatos: digital e analógico, animação e filme, profissional e doméstico.
16
Processo de transposição de material em vídeo para película.
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O filme de Richard Linklater , que já havia realizado o bem-sucedido comercialmente Before Sunrise de 1995 (Antes do Amanhecer em salas brasileiras), com Ethan Hawke e Julie Delpy, é considerado a primeira “animação” digital independente feita nos Estados Unidos. Nele são promovidos os encontros de sua personagem principal, o jovem Wiley Wiggins, com os mais diversos seres, como alienígenas, bêbados, cineastas e acadêmicos, em diferentes situações, sendo algumas mais realistas, outras extremamente oníricas. Travando debates sobre filosofia, a consciência da vida e questões pósmodernas, nosso ‘herói’, Wiggins, percorre seus sonhos, dormidos ou acordados, sempre despertando para mais uma nova realidade. Porém, esta encontra-se embebida no entorpecer do sono, que continua confundindo tanto personagem, como espectadores, na tentativa de estabelecer limites mais precisos para o estado de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
consciência de Wiley. São sonhos dentro de sonhos, como numa babuska, envoltos por tangos, jazz, bossas e música erudita, que dão o tom correto para que se embale esta narrativa não linear, na tentativa de reproduzir o encadeamento indeterminado das noites de sono mais conturbadas. Linklater encontrou na dupla de animadores Bob Sabiston e Tommy Pallotta parceiros e viabilizadores para seu projeto. Sabiston, que se graduou em Pesquisas em Computação Gráfica (Computer Graphics Research) no MIT Media Lab, escreveu seu próprio programa de manipulação de imagens, denominado Rotoshop, que roda em acessíveis computadores Macs G4. Baseado na técnica da rotoscopia17, o programa parte de imagens captadas digitalmente e possibilita que se desenhe sobre cada um dos quadros (frames) daquele vídeo. Interpolando os traços desenhados em tablets18 e sobrepostos às imagens filmadas, o computador facilita o trabalho gerando as transições necessárias de um instante ao outro, trabalhando com a mesma lógica de vários outros pro-
17
Técnica que consiste em pintar ou desenhar por cima de imagens pré-captadas em vídeo
ou película, no intuito da obtenção de efeitos visuais. 18
Periférico que permite que se desenhe sobre uma superfície que transfere para a tela do
computador o que foi traçado.
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gramas de animação digital. Assim, obtêm-se imagens a partir da manipulação de todo o quadro ou apenas de alguma de suas partes, alcançando efeitos de uma movimentação real, mantida a partir do que se captou, mas com as aparências mais distintas, tanto quanto queira ou possa a criatividade de quem pilota a máquina. Linklater, Sabiston e Pallotta, além de terem produzido um argumento que sustentasse a narrativa, e de terem forjado uma ferramenta tecnológica que possibilitasse a execução da idéia, planejaram e executaram uma lógica de produção que se reflete em força imagética para seu filme. Para cada um dos encontros de Wiggins chamaram um “animador” diferente, não necessariamente especialistas em computação gráfica, mas sim artistas de força expressiva que emprestaram a Waking Life sua própria linguagem, dando ao filme uma in-coerência visual amarrada pelas limitações do software, ao mesmo tempo que uma diversidade estilístiPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
ca a partir da experiência de cada um dos animadores. Waking Life se apresenta como a materialização de vários anseios. A possibilidade real de se alcançar o mercado com uma obra produzida a partir de uma estrutura caseira, mas que obteve um resultado final instigante e de uma qualidade inegável. Se as ferramentas e possibilidades estão na mesa, e como vimos no decorrer do capítulo, são vários os exemplos de sua concretude, com que intenção devemos nos munir de tal arsenal? A partir de que ideologia? Como, então, podemos atualizar as propostas proferidas pelos cinemanovístas e trançá-las com o que vem tomando corpo na produção audiovisual digital? Qual será o papel do intelectual e do artista que deseja se munir das novas ferramentas na nossa realidade terceiro-mundista? Questões em aberto que vislumbram ser respondidas no próximo capítulo desta dissertação.
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2 Compromissos e Urgências Glauber Rocha, um dínamo ideológico.
“O saber prático de início é invenção. Para serem descobertas, utilizadas e verificadas, é preciso que as possibilidades sejam antes inventadas.”19 Jean-Paul Sartre
A partir de um diagnóstico da sociedade contemporânea, ou pós-moderna,
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capitalista, e da vida levada por grande parte das populações dos grandes centros urbanos, é possível observar a carência de um maior comprometimento político e ético dos indivíduos para consigo e, conseqüentemente, para com a coletividade. Este capítulo pretende observar a figura de Glauber Rocha como disparador de um raciocínio, buscando no passado recente matrizes para uma prática política, para uma prática audiovisual. Glauber reveste todo sua oratória cinematográfica com princípios políticos e ideológicos e, juntamente com outros pensadores, pode nos fornecer vetores a serem aplicados ainda hoje. Armados das ferramentas digitais, devemos observar o campo dos possíveis e direcionar nossa produção, seja ela teórico-acadêmica ou prática, para a construção de uma realidade que se descole das mazelas, aparentemente irreversíveis, encontradas no mundo da globalização, das propostas neoliberais e do capitalismo tardio. Erik Rocha diz, com extrema propriedade, que A Rocha que Voa não é um filme sobre Glauber, e sim um filme através de Glauber. Da mesma forma busco, através de Glauber, trazer à cena o pensar sobre qual o papel a ser exercido pelo intelectual nos dias de hoje, para que a discussão sobre as novas tecnologias e seu
19
SARTRE, 1994. Pg. 16
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impacto na produção audiovisual não se torne, apenas, um agregado de tecnicidades. Parece-me ser de grande importância observar este fenômeno a partir de uma perspectiva que englobe a construção das imagens e os avanços da linguagem cinematográfica, mas que não deixe de fora os aspectos sociais, políticos e ideológicos pertinentes. Traçado o paralelo histórico e deflagrada a discussão, aspira-se então delinear, a partir de diversos autores, uma forma para a ação intelectual e artística, que pode encontrar uma figura que abrigue dialeticamente estas duas atividades, nos dias atuais. O presente capítulo pretende demonstrar uma possibilidade de uso para as novas tecnologias que não se perca em tecnicidades e, sim, possa constituirse enquanto uma fibra a mais em um feixe universalizante20, que, contando com diversas frentes de ação, deva estabelecer-se em nossa sociedade. Desta forma, a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
atuação intelectual e a prática audiovisual podem desenhar juntas um esboço de ideal para nortear as ações e os usos que se darão a partir de um novo paradigma tecnológico. Unindo idéias e criação com tecnologias de baixo custo e alta performance, cavaremos nossas trincheiras no éter digital, nas entranhas da rede, e buscaremos apontar para um futuro em que haja mais espaço para as singularidades humanas e para a realização de um porvir coletivo. É clara a crença de Foucault no fato de ser somente através de tal ataque multifacetado e pluralista às práticas localizadas de repressão que qualquer desafio global ao capitalismo poderia ser feito sem produzir todas as múltiplas repressões desse sistema numa nova forma. (HARVEY, 1992. Pg. 50)
20
Jean-Paul Sartre coloca que a luta pela universalização é aquela “contra a exploração, a
opressão, a alienação, as desigualdades, o sacrifício dos trabalhadores em prol do lucro.” Universalização dos direitos, da cultura, da educação. (SARTRE, 1994. Pg. 46)
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2.1. Um diagnóstico: a sociedade, a cultura e o cinema.
De início, questões: qual o retrato que podemos traçar da sociedade atual dos grandes centros urbanos do mundo capitalista? Ou melhor, para onde vão se encaminhando as relações sociais na contemporaneidade? Qual o papel que a indústria cultural tem exercido na modelagem dos indivíduos e, conseqüentemente, do ambiente pós-moderno? Que cinema vem sendo produzido e veiculado em grande escala? Qual a ação que este cinema vem exercendo na configuração da vida ocidental? Sendo mais específico, qual a ação que este cinema vem exercendo sobre a realidade brasileira e qual sua influência sobre a produção local?
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Essas são perguntas importantes a serem respondidas para melhor compreendermos o entorno histórico e social em que estamos inseridos e, assim, tentarmos delimitar as possibilidades existentes para, finalmente, elaborarmos propostas de ação. Perguntas que dão partida a outros questionamentos. Perguntas que não encontram respostas definitivas ou precisamente formatadas, mas que voltam nosso foco para situações que encontramos no cotidiano, e que muitas vezes, dispersas e difusas aos nossos olhos, parecem não compor um mesmo panorama. Glauber Rocha, nosso dínamo, já na década de 70 dizia: “É preciso que o povo pense, desenvolva sua capacidade racional e dialética para evoluir qualitativamente. Noventa e três por cento do cinema que se faz hoje é um cinema de alienação e está em vias de se transformar no ópio do povo”.21 Desta forma é possível observar que muito do que iremos examinar aqui vem se estabelecendo como norma faz décadas, como veremos no decorrer do capítulo. Os processos mantenedores de uma hegemonia são lentos, mantidos em um ritmo que não perturbe o adormecer da sociedade. Glauber, com esta afirmativa, dispara e aponta caminhos para nossa investigação de quais são as características do mal-estar vivenciado nos dias atuais e de como a indústria cultural vem fortalecendo tal processo.
21
ROCHA, Glauber Apud GOMES, 1997. Pg. 358
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A sociedade e as relações sociais Estamos todos diante de uma paisagem social que parece aterradora. Os comprometimentos políticos são áridos e parecem já estar com suas raízes queimadas, impossibilitados de gerarem frutos ou mesmo o mais leve verdejar. As comunidades, desprovidas de algo que as configure como tal, não mais servem como balizadoras para as relações que dentro dela se estabelecem. Estão estéreis devido à falta de irrigação política, à falta de um campo onde, como coloca Marco Aurélio Nogueira, se “disputam as idéias a respeito do viver coletivo”22. Assim, o que cultivam os indivíduos? Mesquinharias, desprezo pelo espaço público, valorização única e exclusiva de interesses privados. Enfim, vivemos em uma sociedade individualista, onde a noção de coletivo encontra-se em crise por falta, mesmo, de compreensão do que é. Nada mais parece dar sentido às comunidades, que não PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
encontram o entendimento do que vem a ser o comum ou o comunitário. Uma das características de nossa época atual, que marca quase todas as esferas da existência, é certamente o afrouxamento dos laços que unem o indivíduo a instâncias que o transcendam. A lógica do individualismo, levada a seu extremo, encontra nas condições materiais de existência hoje uma afinidade sem precedentes. Nunca fomos aparentemente tão livres de proibições e imperativos quanto na sociedade atual. Acreditamos – nos fazem acreditar – que somos autônomos para decidir o que quer que seja de nosso interesse, sem pagar tributo a instituições, tradições, padrões morais, valores políticos, etc. (BEZERRA Jr., 2002. Pg. 05)
As pessoas vão sendo levadas a um processo paradoxal que as individualiza de forma homogênea, provocando o fenômeno chamado de multidão solitária23. O espaço social compreendido como área de disputas de forças políticas em busca da hegemonia se vê totalmente esvaziado, dando lugar apenas à concretude de vias e edificações por onde perambulam pessoas desprovidas de perspectivas cívicas e intenções ideológicas. Desta maneira é a política que se encontra enferma enquanto atividade e cultura. Afinal, como estabelecer a prática política em um espaço que só é físico, não mais simbólico, e em um tempo aprisionado como presente interminável e sufocante?
22
NOGUEIRA, 2003
23
IANNI, 2000. Pg. 154.
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Com a dispersão do espaço para reais interações humanas e um fracionamento das identidades coletivas é impossível que se mantenham tradições, culturas locais, hábitos e práticas de grupos minimamente heterogêneos. Assim, vão-se demolindo os pilares de sustentação das relações com o passado. Desprovidos de perspectivas futuras, todos vamos sendo impelidos ao imediatismo absoluto. O tempo foi comprimido em presente, único, irrefutável, imediatizado, que não comporta a figura de futuro, tão cara àqueles que projetam e planejam. Um presente hiperveloz que não se move em seu lugar no tempo. Presentificados estamos todos. Deixamos de ser os homus psicologicus da modernidade para nos tornarmos os homus instantaneus, vestidos com nossas personalidades solúveis. Desprovidos de utopias, cumprimos um ritual que exterioriza os valores de reconhecimento. Temos que, espetacularmente, estar sempre expondo nossas competências à flor da pele, assim como nossa criatividade, nosso poder de autogerenciaPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
mento, explicitados por um corpo que serve de outdoor promocional de nosso gozo, seja ele físico, medicamentoso ou, mesmo, genético. Consumimos sensações, colecionamos, acumulamos estímulos físicos, sexuais. Estampamos em nossos corpos nossas superficiais virtudes e pregamos em nossas lapelas nossas conquistas, vitórias e recordes. Cobertos por personalidades passageiras, vamos nos adequando às situações sem estabelecer princípios éticos e morais. Tudo é possível, não existe mais instância reguladora, a não ser nós mesmos, que, iludidos, achamos que não nos foram incutidos elementos de controle. A sociedade cria nichos e os homogeneíza, mas todos se vêem “livres”, sob controle de suas escolhas. Porém, o controle se dá em todas as instâncias, não existe mais fora, estamos todos sendo monitorados constantemente, realizando ficções niilistas que já previam a presença do “grande irmão” que tudo enxerga e tudo vê. Experimentamos uma noção de singularidade rasa, construída fragilmente sobre as palafitas do consumo. O Mercado, instância globalizadora, carimba em todos a marca de consumidores. Sob sua ótica, finalmente, somos todos iguais! Ao menos, imersos na massa, no mercado e nas estatísticas dos departamentos de marketing e vendas. E quanto mais iguais melhor. Assim, formamos um mercado consumidor palpável e seguro para consumir os mais diversos produtos ofertados ininterruptamente. Produtos obviamente produzidos dentro da lógica da globalização, que utiliza a mão-de-obra barata do terceiro mundo e recebe os lucros de
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vendas planetárias, em valores compatíveis com o mercado europeu ou americano. Este sim é um grande negócio! Aparentemente estão todos conformados, gerentes endividados de sua própria existência. Como Victor Papanek coloca24, a conformidade é um valor humano que possibilita formações sociais e esforços conjuntos, porém, muitos parecem ter confundido, com o passar do tempo, conformidade de ação com conformidade de pensamento, de idéias. Passivos diante do bombardeio da indústria cultural e dos agentes do poder hegemônico, vamos caminhando pelos currais do trabalho alienante e do desemprego avassalador, segregados em segmentos sociais estanques; vemos agravar-se de forma alarmante as dificuldades na aquisição do conhecimento, embora imersos em um mar de informações de proporções colossais.
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O processo é o mais homogeneizador possível, mas sem que se faça estardalhaço. As singularidades são aplainadas para dar lugar a indivíduos de superfície regular e de reações que não frustrem as expectativas. Os espaços onde poderiam aflorar idéias são descaracterizados como tal. Os trabalhadores são expostos a processos repetitivos, nas mais diversas áreas, que não dão margem ao novo. Mesmo as escolas e os centros de formação apresentam programas que servem ao imediatismo, onde não se conclui nada. Estamos sempre desatualizados, expostos a sermos trocados por obsolescência. Assim, a maré da alienação parece nunca entrar em vazante, mantida pela indústria cultural, que como veremos adiante, contribui de forma definitiva na manutenção de toda essa situação. Marcuse observou que a única igualdade que a sociedade afluente oferecia aos indivíduos atomizados pela concorrência generalizada era uma igualdade abstrata, que se realizava como desigualdade concreta: a dos consumidores. Constituía-se uma paisagem humana de indivíduos que moravam engavetados em prédios de apartamentos, possuíam carros novos, com os quais suportavam terríveis engarrafamentos para ir a lugares parecidos com os locais onde viviam e trabalhavam. Esses indivíduos tinham em casa geladeiras e freezers abarrotados de comidas enlatadas, liam os mesmos jornais e revistas, viam os mesmos filmes, ouviam as mesmas músicas, orgulhavam-se da singularidade de suas personalidades e no entanto cada vez mais se assemelhavam uns aos outros. (KONDER, 2002. Pg. 90)
24
PAPANEK, 1984. Pg. 154.
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Entramos em uma era na qual tudo se desloca velozmente, seja no tempo, seja no espaço. Obcecados pela rapidez, tudo se movimenta em ritmo frenético. Deixamos de lado o indivíduo e damos prioridade ao meio global, globalizado. Era das experimentações, pós-moderna, que busca tinturas em todas as épocas anteriores para pintar seus quadros. Hasteia como seu emblema o ctrl-c e o ctrl-v do corte-cola numérico. Provoca-se uma arte que não se quer bela, mas sedutora, atraente, porém ainda submetida à esfera econômica que decide sobre o valor das obras e seu poder de circulação. O artista/produtor trabalha em casa, conectado à rede, já que os suportes foram desmaterializados e troca-se tudo pelo intermédio dos impulsos e elétrons. Informações que correm pelos cabos e fibras da Internet, tendo como sua matéria-prima as ondas telemáticas.
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A indústria cultural: gerando e reformando A compreensão da atuação da indústria cultural configurou-se, ao longo do século XX, como uma das mais importantes chaves para o entendimento de como se dão os mecanismos de subjetivação na sociedade atual. Assumindo muitas vezes o papel que antes cabia aos esforços políticos e ideológicos, as mídias – hoje multi – caracterizaram-se como os principais formadores de opinião e “conscientização” no ocidente capitalista. Atualmente, esmaeceu-se a fronteira entre as culturas dos povos e a indústria cultural. Fortalecendo, juntamente com o Mercado, o impulso globalizador vivido nas últimas décadas, a produção cultural em moldes industriais observa a todos enquanto consumidores de seus produtos, e se ocupa da construção da homogeneidade de suas platéias. As culturas locais tendem a adaptar-se às modas propagadas pela metrópole, que, efêmeras e propositadamente passageiras, acentuam as necessidades de troca e o ritmo do consumo, não só de roupas, carros ou estilos musicais, mas também de hábitos sociais, de estilos de vida, de relacionamentos estáveis. Quando muito, os costumes locais são apropriados e retransmitidos de forma já ascética, esterilizados e inócuos, de volta para os consumidores de um suposto regionalismo já reprocessado e diluído, convertido também em moda. Estes são os moldes de um novo processo de colonização, que não vê com bons
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olhos efervescências locais que possam distrair a atenção do público, que deve manter-se fiel aos blockbusters e suas infindáveis franquias.
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A produção cultural em escala notavelmente ampliada exigiu colossais investimentos e rendeu lucros gigantescos. Para viabilizar-se, contudo, ela precisava de certa padronização, de certa limitação imposta à diversificação das expressões culturais: por isso, investiu também na formação de um vasto público consumidor de comportamento passivo e, tanto quanto possível, desprovido de espírito crítico. O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio. Para disputar um espaço sempre maior no mercado, os produtos são naturalmente levados a cultivar a preguiça e o comodismo dos consumidores, desencorajando-os de quaisquer esforços de inquietação conseqüente ou questionamento ousado. Desenvolve-se uma produção que, no conjunto, evita estimular a reflexão de seus destinatários, produzindo-lhes na sensibilidade impactos anestesiadores e atrofiando-lhes a imaginação. Mesmo suas qualidades de amenidade e leveza são utilizadas para gerar conformismo: a diversão favorece a resignação. Divertir-se significa estar de acordo. (ADORNO & HORKHEIMER Apud KONDER, 2002. Pg. 82)
A expressão cultural sempre abrigou em seu seio contradições, investigações e valores críticos. Hoje, porém, imersa na sociedade de consumo voltada para o saciar de desejos momentâneos, vão estreitando-se os caminhos da contestação. São esvaziadas as tentativas de expor divergências ou de construir diversidade, sempre na intenção de induzir os pensamentos, os olhares, as percepções, para a absorção da ideologia dominante. As sociedades alimentam-se “inocentemente” de produtos culturais que acreditam ser mero entretenimento, diversão. Legitimam protocolos, muitas vezes, tendo-os como inofensivos, isso, se os reconhecem a partir de sua miopia cultural. Já em 1935, Benjamin dizia que “frui-se, sem criticar, aquilo que é convencional; o que é verdadeiramente novo, é criticado com repugnância”25. Assim, as massas são vacinadas contra os contestadores, que freqüentemente são taxados de radicais. (...) o radicalismo e o empreendimento intelectual são a mesma coisa, e são os argumentos “moderados” dos reformistas que levam necessariamente o intelectual a esse caminho, mostrando-lhe que é preciso contestar os próprios princípios da classe dominante; caso contrário, vai servi-lhe parecendo contestá-la. (SARTRE, 1994. Pg. 38)
Dentro da enorme diversidade de produtos oferecidos pela indústria cultural presentemente, o cinema apresenta-se como motor maior na promoção das mais 25
BENJAMIN, 1969. Pg. 228
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diversas frentes de comercialização. Os filmes norte-americanos, distribuídos em todo o globo quase sem exceção, trazem embutidos em seus conteúdos um sem número de ambições materiais a serem adquiridas pelo público. Dos Aston Martin pilotados por James Bond aos cortes de cabelo ostentados pelo star system hollywoodiano, tudo estará disponível nas boas lojas do ramo bem perto de você! Este cinema produzido pelo Tio Sam move milhões e milhões de dólares ao redor do mundo, construindo subjetividades, desejos, todos compatíveis com as expectativas geradas pelos departamentos de marketing. A linguagem cinematográfica parece não ser terreno de exploração para diretores e produtores, que utilizam efeitos especiais e métricas de edição, que colaboram na geração de uma aura de fantasia que embrulhe todo o pacote de aspirações. Os filmes não são produzidos com a intenção de provocar a audiência, mesPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
mo sendo ferramentas importantes para a constituição da sociedade contemporânea – que prega a criatividade, a singularidade, a autogestão pessoal, como vimos – falseiam valores e, fora o impacto aplicado nas glândulas do consumo, disponibilizam somente sensações. Constroem uma experiência a ser digerida juntamente com a pipoca comprada na bonbonnière minutos antes da sessão. Bonbonnières essas que hoje são a verdadeira mola econômica das salas de cinema, afinal fatura-se mais com guloseimas e refrigerantes do que com a própria bilheteria do filme em cartaz. O diretor de cinema, de Stroheim a Visconti, sempre foi um mestre de cerimonia em função de um interesse da cultura, de uma certa tradição, a tal ponto que o cinema se converteu numa mecânica completamente ridícula e inútil de convenções dramáticas, de close-up para dizer eu te amo. (ROCHA, Glauber Apud ROCHA, Erik, 2002. Pg. 45)
Glauber chamou tais filmes de “cinema digestivo”, exacerbando seu caráter passageiro enquanto fomentadores da criatividade. Esta produção, casada com os interesses do capitalismo, visa produzir um efeito de saciedade no público, instaurando assim uma imobilidade própria da empanturração por alimentos culturais de baixo poder nutritivo. O cinema brasileiro não passa impune pela influência que sofre do cinema de mercado estrangeiro. Após o último de seus renascimentos – que tem como
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marco o filme Carlota Joaquina, de Carla Camuratti, realizado em 1994 –, a produção nacional voltou-se para o mercado. Com a intenção de conquistar público por aqui e reconhecimento nos festivais estrangeiros, nossos filmes – ao menos aqueles que conseguem algum espaço para distribuição – muitas vezes copiam, ou tentam copiar, a forma americana, que se tornou paradigma de acabamento e “agradabilidade” até mesmo para o cinema europeu. O que se realiza são fitas que se pretendem entretenimento e que rejeitam a herança experimental deixada pelo Cinema Novo e pelo Udigrúdi com todas as suas forças. Nosso cinema vem a somar na paradoxal paisagem pós-moderna, onde são muitos os significantes e muito
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pouco os significados. Vem se proliferando um cinema satisfeito, disciplinado, sem angústias formais, sem risco, sem sabor. Para reconciliar-se com o grande público e com o mercado, o cinema parece ter renunciado aos seus ímpetos criativos e à sua função contestatória. (...)A tendência dominante tem como paradigma o modelo de produção e de linguagem do cinema comercial, maquiado pela estética publicitária e pelos recursos dramáticos da telenovela. (ROCHA, Erik. 2003)
São produções caras para o padrão nacional, que já chegam às salas de exibição com seus custos bancados por uma lei de incentivo fiscal que enfraquece a luta por espaço de distribuição. Afinal, ninguém precisa contar com as bilheterias para ter retorno financeiro com seu filme. Esta é uma política estatal atrapalhada – na melhor das hipóteses –, que privilegia os detentores de contatos pessoais e políticos e deixa nas mãos de multinacionais e estatais – pois são elas que tem um volume fiscal que permite a viabilização de projetos cinematográficos – a decisão de qual serão as produções agraciadas pelo mecenato contemporâneo. Com a chegada dos canais de televisão a cabo no Brasil, imaginou-se formar um novo veio de escoamento para a produção nacional. Todos pensaram em parcerias e espaços nas grades dos diversos canais que se disponibilizaram para o público. Porém, o que se vê é a existência de mais um suporte para sermos soterrados por sitcons estrangeiras, documentários que não dizem respeito à nossa realidade e reprises pagas de muitos e muitos filmes que continuam rendendo para os grandes estúdios internacionais.
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Finalmente, o que se pode observar é que, nos moldes atuais de produção e distribuição, a realização de produtos audiovisuais e o acesso que a população em geral tem a eles é deficiente e viciada. Os espaços são poucos e as oportunidades de se romper com esse sistema parecem inexistir. Diante do retrato causticante traçado nas últimas páginas, relatando muitas das características do que Deleuze veio chamar de sociedade de controle, parece que estamos mesmo aprisionados em nosso tempo, de mãos atadas, e que o que nos resta é aguardar um presente próximo, em que, ao menos, sejamos anestesiados para assim não sofrermos, entorpecidos pelo Grande Irmão.
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A força da alavanca Contudo, o que foi descrito acima não deve servir como atestado de óbito da criatividade humana e, sim, como alerta das urgências a serem respondidas, se realmente estivermos dispostos a reverter certos quadros, ou melhor, se estivermos dispostos a verter o novo e, assim, caminharmos em direção a uma realidade menos opressora à própria diversidade humana. Principalmente neste momento, quando forças de esquerda assumem o poder no Brasil com a eleição do governo Lula, novas perspectivas se abrem àqueles que desejam ser contaminados pela esperança. Embora tais processos estejam indicando uma banalização e um esvaziamento das potências subjetivas, também apontam alguns efeitos colaterais que podem ser interessantes: sua polifonia vertiginosa está contribuindo para estilhaçar a rigidez analógica que constringia os corpos e as subjetividades da sociedade disciplinar. (...)Talvez seja a hora de resgatar o prazer na confusão das fronteiras e a responsabilidade na construção. Hora de exercer resistência aos dispositivos paralisantes de poder-saber, assim como de criar novos territórios existenciais. (SIBILIA, 2002. Pg. 209)
Se foram os grandes interesses comerciais e a manutenção do poder hegemônico capitalista os motivos da ampliação das desigualdades econômicas e culturais, será com artefatos providos por eles que poderemos municiar, ao menos, uma frente de ação universalizante. São as novas tecnologias digitais, tanto de produção como de distribuição de informação, o calcanhar de Aquiles de toda a
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rede contemporânea de manutenção e ampliação do principado do capital. Delas iremos nos servir para que com, ações transformadoras, possamos estabelecer uma nova relação com o tempo e com o espaço. A idéia que será introduzida nas próximas páginas se pautará na lógica da alavanca. Se o avanço tecnológico sempre foi o diferencial entre as expectativas de produção e possibilidades de transmissão de informação do terceiro mundo em comparação com as realizações das nações desenvolvidas, agora é ele que abre um novo campo possível para a atuação intelectual, “seja porque cresceram as oportunidades de obter audiência, seja porque aumentaram os meios de difusão de i-
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déias”26. A engrenagem capitalista engloba macros e micropoderes que definem uma cartografia do imaginário coletivo. Na sinuosa mecânica da dominação, que se expande e assume distintas formas, as relações de poder se capilarizam em toda parte. Simultaneamente, descentralizam-se os pontos de resistência, multiplicam-se as brechas para a confrontação de mentalidades e expandem-se as áreas de dissensos. Diferentes horizontes de luta emergem, diluindo a idéia mítica de que a sociedade é administrada por uma fortaleza inexpugnável, infensa a vulnerabilidades. (MORAES, 2003)
Assim, a Internet – criada pelas forças militares americanas em 1969 para descentralizar o armazenamento da informação – servirá de ponto de apoio, prosseguindo na utilização da metáfora da alavanca. É a rede mundial de computadores, unificada pelo protocolo de transmissão de dados TCP/IP (Transmission Control Protocol/Internet Protocol), que se coloca no horizonte como espaço possível de distribuição dos novos audiovisuais, que se realizará a partir da proliferação de acessos em banda larga – que permitem um fluxo maior de informação navegando entre os provedores e aqueles que acessam a rede. Outra tecnologia elaborada e disseminada pelos centros capitalistas servirá de braço de ação, dentro dessa possibilidade que observo: o Digital Vídeo (DV) possibilita um maior acesso à produção. Com baixo custo, da captação à pósprodução, qualidade de imagem compatível com as exigências do mercado e, ainda, com boa possibilidade de compressão dos dados para posterior transmissão, o 26
NOGUEIRA, 2003
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DV já vem alterando práticas de realização, aquecendo certos nichos do mercado e criando espaço para projetos que antes estavam fadados a não saírem do papel – como vimos no capítulo 01. A força necessária será empregada por aqueles que buscam caminhos alternativos e revolucionários, no sentido de romper com o que já está instaurado, para que se desloquem e ponham-se em movimento as massas pensantes e criativas, que podem libertar o homem de sua prisão alienante e homogeneizadora. Mas, para que se dispare este processo, necessita-se envolver as pessoas com uma proposta de uso político e ideológico das novas tecnologias. É neste momento que Glauber Rocha serve de dínamo para este despertar. Ao atualizarmos seu discurso e suas propostas torna-se possível, como disse Erik Rocha, seu filho, “aproveitarse da ressonância de gritos do passado sobre o espaço convulsionado do agora paPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
ra projetar uma imagem do futuro”27. Entretanto, Glauber é somente mais uma dentre as muitas vozes que devemos, ou podemos, escutar. No caso desta dissertação, ele se torna um dos principais oradores, já que discuto questões relativas à produção audiovisual.
2.2. Atualizando discursos É relacionando tecnologia, estética, política, cinema, compromisso social, discurso e ideologia que Glauber vem a configurar-se como um dos possíveis disparadores de uma nova movimentação audiovisual no país. Suas propostas de ação intelectual e artística podem ser atualizadas no momento em que um novo arsenal tecnológico abre portas para novas realizações e em que a sociedade necessita que se forme uma vontade coletiva transformadora. Cada um responde e reage ao seu próprio tempo. Os caminhos não se repetem, cada momento tem suas particularidades e seus desafios. O importante é criar uma possibilidade de diálogo crítico com o passado. Vivemos um tempo de hipóteses, caminhos, não de teses. É preciso movimentar as sombras e repensar o cinema poético-político. (ROCHA, Glauber Apud AVELLAR, 2002. Pg. 17) 27
(ROCHA, Erik, 2002. Pg. 18)
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Ação intelectual Inicialmente, devemos compreender qual o papel a ser exercido pelos intelectuais nos dias de hoje – abarco nesta figura artistas, arquitetos, designers, urbanistas, enfim, todo aquele que exerça a ação intelectual em seu processo de trabalho, seja ele um intelectual tradicional ou um intelectual orgânico, como compreendia Gramsci. É imprescindível que se carregue de potência esse personagem que pode, e deve, ser um dos motores de transformação da realidade que presenciamos. O intelectual deve pôr o campo em crise, provocar reações, produzir ruído. Deve fazer de seus atos, políticas. Políticas que possam contaminar seu entorno imediato geram uma onda de renovação. Glauber tinha uma nítida visão da ação intelectual. Para ele, o intelectual PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
deve ser um revolucionário, descendo de uma postura privilegiada e se integrando no processo político. Não se satisfazendo com as situações que os cercam, aqueles que fazem das palavras e do pensamento seus instrumentos não podem manter-se encastelados nas altas colinas da elaboração teórico-filosófica. O quadro social clama ações por parte daqueles que ainda preservam sua capacidade crítica e que vêem dia após dia serem ceifadas as possibilidades de realização de grande parte da população. São cada vez maiores os contingentes que, desprovidos da capacidade de tanger seu próprio viver, assumem o que o poeta Zé Ramalho chamou de vida de gado28, vivendo um dia-a-dia tangido por instâncias superiores. Desta forma, são os intelectuais, dentre outros, aqueles que possuem a possibilidade de romper com o que aí está posto e, ao menos, construir hipóteses de futuro. ...a resolução dos problemas políticos da América Latina não podia ficar no puro plano da crítica. É preciso uma transformação histórica. A transformação histórica em determinado momento se faz pela prática política, pela luta revolucionária que supera essa atitude crítica. Então, o intelectual latino-americano(...) a primeira coisa que ele tem que fazer é negar-se completamente, é desmistificar-se completamente, é sair desse papel de intérprete, de crítico da história sem uma participação concreta, política, na história. A única forma dele se revolucionar e se desmistificar é fazer do pensamento, e da ação política uma coisa integrada. (ROCHA, Glauber Apud ROCHA, Erik, 2002. Pg. 18)
28
Letra da música Admirável Gado Novo
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Assim como Glauber Rocha, outros pensadores afirmaram a necessidade de se revestir de compromisso político as ações práticas e intelectuais. Norberto Bobbio aponta como modelo de conduta: “uma forte vontade de participar das lutas políticas e sociais do seu tempo que não o deixe alienar-se”29. Mas é em Antonio Gramsci que vamos encontrar um plano de ação que se casa harmoniosamente com as necessidades e possibilidades atuais. O intelectual gramsciano é um agente de atividades gerais, portanto, afeito a este mundo de tanta informação sobre os mais diversos assuntos, porém portador de um conhecimento específico, que o permite estabelecer um ponto de vista sólido e criterioso, para assim ordenar este mar de dados disponíveis com alguma intenção. É exatamente na união entre a atividade teórica e a prática política, na exposição pública de suas certezas e indagações, que o intelectual pode ser decisivo na PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
consolidação de uma postura resistente com relação aos rumos que o mundo vai tomando. É ele quem pode desconfiar até mesmo das questões, afinal, as perguntas recortam o todo, limitando o universo das respostas. O intelectual deve revolucionar, propondo novas questões, instaurando a problemática, já que as verdades são, em grande parte, apenas constructos humanos. O processo revolucionário está incutido nos atos criativos, no imaginar, no fantasiar. Rompendo de forma mais bruta com o convencionado ou apenas gerando pequenas fissuras na hegemonia vigente, a revolução se dá nas mais diversas escalas e necessita de todos os envolvimentos possíveis. Não nos cabe avaliar as dimensões, e talvez nem as formas, dos esforços alheios. O importante é agir, vencer a estática, imbricar as atividades do pensar com as ações pertinentes a cada um que se dispuser a ser agente na evolução de uma inteligência coletiva. O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloqüência, motor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões, mas num imiscuir-se ativamente na vida prática, como construtor, organizador, persuasor permanente, já que não apenas orador puro... (GRAMSCI, 1968. Pg. 08)
29
BOBBIO, 1997. Pg. 79
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Mesmo a arte necessita deixar as muradas que a cercaram nas últimas décadas, que a tornaram hermética, discursando para alguns poucos “escolhidos”. Como é possível observar, propostas como a da arte pela arte ou de elaborações culturais que não enxergam as interações entre os campos existentes, esvaziam sua pertinência diante das premências pós-modernas. Paulo Emílio Salles Gomes, um dos maiores críticos e pensadores cinematográficos que este país já teve, observa as relações entre o cinema e a realidade terceiro-mundista: “O esforço de progresso apenas cultural num quadro de subdesenvolvimento geral leva os cineastas a se debaterem diante da adversidade, ao invés de realmente combatê-la”30. Assim, deixa claro que os esforços devam ser na direção de extrapolar seu próprio campo, contaminando seu entorno e mesmo outras atividades exercidas dentro do corpo
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social, para que se possa verdadeiramente compor uma massa crítica. O culto do estilo pelo estilo que eqüivale, no campo estético, ao indiferentismo político e à recusa desprendida e distanciada de qualquer “engajamento”, constitui-se originalmente contra as tomadas de posição dos escritores e artistas que pretendem assumir explicitamente uma função social... (BOURDIEU, 2001. Pg.196)
Por um cinema revolucionário “Se o cinema comercial é a traição, o cinema de autor é a revolução.” Glauber Rocha 31
A atividade intelectual impregnada de comprometimento político a serviço de uma causa social pode encontrar expressão através dos mais diversos meios. Entretanto, esta dissertação discute o envolvimento da produção de peças audiovisuais, potencializada pelas novas tecnologias, com propostas ideológicas, hoje escassas em nossa sociedade. Assim, vislumbrando o exercício intelectual expresso através de peças audiovisuais, Glauber afirma: “Acho que a realidade está à disposição de todos, desde que seja encarada por um autor que tenha concepção ideoló-
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GOMES, 1996. Pg. 87
31
BERNADET, 1994. Pg. 139
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gica e política”32, unindo prática política e exercício cinematográfico em uma única proposta de ação. Glauber Rocha instigava a todos a se vestirem com cores revolucionárias na intenção de provocar a esfera criativa das pessoas. Informadas e senhoras de seus instrumentos mentais, poderiam fazer a “revolução das massas criadoras”33. Fica claro em seu discurso o dever a ser cumprido pelos cineastas: persistir em caminhos que levem à mudança dos hábitos culturais das populações, do público. Não no intuito de formar platéias para seus filmes, mas sim com a intenção de gerar pluralidade, espaços para todos. Não era um cultivar dos gostos pessoais, era munir os indivíduos de liberdade. Os filmes deveriam ser revolucionários, atuando de modo político e promoPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
vendo a especulação filosófica, apresentando uma estética que universalizasse os meios criativos e que integrasse realmente o povo à nação. Glauber, impregnado pelo nacionalismo modernista da época, queria construir bases sólidas para um cinema brasileiro. A busca por uma arte que realmente penetrasse no inconsciente, que imprimisse experiências nas platéias, mostrava-se como uma das diretrizes do cinema de Glauber Rocha. Por ter a exata noção de que nosso povo era – e ainda é – um povo em formação, ele tinha urgência em contribuir, não como uma voz isolada, mas como propulsor de um movimento, para o crescimento rumo à maturidade de nossa nação. Inquieto, enfático muitas vezes, vivo, criticava aqueles que imaginavam uma arte política desprovida de valores estéticos. A estética deveria ser vigorosa para alcançar seus objetivos, comunicando-se diretamente com o que ainda há de primitivo, matéria bruta a ser lapidada, dentro dos espectadores. Glauber chegou a afirmar: “O desafio hoje é reaproximar o sentido estético do sentido político”34. A renovação de linguagem era uma das peças fundamentais dos cinemanovístas, com já vimos anteriormente, no capítulo 1.
32
ROCHA, Glauber Apud BERNADET, 1994. Pg. 140
33
ROCHA, Glauber Apud GOMES, 1997. Pg. 379
34
ROCHA, Glauber In AVELLAR, 2002. Pg. 17
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Assim, as realizações possibilitadas pela inserção das novas tecnologias na produção audiovisual vão ao encontro do pensamento glauberiano, em relação à logística de produção, com pessoal reduzido e despido de mirabolâncias técnicas. Desafiar as convenções, propor novos experimentos de linguagem deveriam conduzir a execução cinematográfica a um ato revolucionário. Sem as pressões da técnica sobraria espaço para o novo. O autor é o maior responsável pela verdade: sua estética é uma ética, sua mise en scène é uma política”. Donde a necessidade de rejeitar os refletores gongorizantes, a maquiagem, as cenografias de papelão: o autor precisa apenas de um operador, uma câmera, alguma película e o indispensável para o laboratório – equipe mínima. O resto é liberdade e mise en scène. Só assim o autor pode livrar-se das convenções e encontrar a realidade “numa visão livre, anticonformista, rebelde, violenta, insolente. (ROCHA, Glauber Apud BERNADET, 1994. Pg. 140)
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Com uma produtora e distribuidora própria, a Difilm35, imaginou fazer filmes baratos, de forte impacto, polêmicos, que não tivessem que se submeter aos caprichos monetários do mercado. Glauber pregava que os filmes do cinema subdesenvolvido, ou seja, da América Latina em geral, não tinham de ser culturalmente subdesenvolvidos, o que estaria ocorrendo se copiassem as fórmulas estabelecidas pelo mercado internacional. Glauber certamente deixou um legado para o cinema brasileiro. Astuto observador da realidade que o cercava, tentou imprimir em suas propostas e filmes uma marca indelével, produtora de inquietações, paixões, incompreensões, enfim, das mais diversas experiências. Personalidade que contribui de forma definitiva na visão que podemos ter de um cinema brasileiro hoje, foi tão importante como intelectual orgânico, buscando ser representativo de sua classe ou grupo, quanto como intelectual tradicional, permitindo a continuidade histórica de suas propostas. Embora os personagens do Cinema Novo tenham se envolvido em uma problemática e ambígua relação com os militares, logo no início dos anos 70, incluindo o próprio Glauber, isto não invalida suas idéias matriciais, que permanecem passíveis de atualização.
35
Vide capítulo 01
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2.3. Realizando “Toda pessoa pode fazer um filme. Se estou fazendo isso como intermediário, é porque ainda não chegou o momento em que foi dada a oportunidade às pessoas para fazerem os filmes.”36 Glauber Rocha
O Cinema Novo tinha como principal eixo uma tríade de ação baseada na política dos autores, nas realizações de baixo orçamento e na renovação de linguagem, tudo isso envolto em uma proposta revolucionária coletiva. A partir das enormes dificuldades encontradas pelos realizadores em exercer sua função nos moldes clássicos de produção – produzindo em película e alcançando o circuito
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exibidor convencional – e das possibilidades trazidas pelo meio digital, é chegada a hora de reeditarmos o que nos foi ofertado por eles, mas sem deixar de lado a preocupação política que nos trazem seus filmes. Informação e conhecimento são bens-chave em nossa sociedade. Não sendo materiais e dispostos ao desgaste, fazem com que toda a estrutura social de trocas se reordene em um novo modelo cultural de irradiação que prioriza o acesso em detrimento da posse. Sendo as imagens multimidiáticas um dos principais vetores de disseminação deste novo quadro que se apresenta, principalmente em nosso ocidente capitalista de primazia visual, um melhor entendimento de como se modelam tais conteúdos serve, finalmente, para uma melhor compreensão da sociedade em que vivemos.
36
ROCHA, Glauber In ROCHA, Erik, 2002. Pg. 117
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Produzindo imagens virtuais A extrema preocupação mercadológica que enfrentam produções cinematográficas, que necessitam utilizar-se dos mecanismos do mecenato para viabilizarem sua feitura, vem forçando muitos realizadores a abandonarem propostas autorais para efetivarem seus esforços. Aqueles que dispõem do montante necessário para que se faça um filme, ou mesmo um vídeo, muitas vezes não estão preocupados com os conteúdos ou com o caráter renovador das obras. O retorno financeiro e o marketing institucional vêm em primeiro lugar, desfocando, assim, os exercícios de ruptura, que assustam investidores com o medo da incompreensão por parte do público. Desta forma são asfixiadas propostas mais autorais. A tecnologia digital, que se barateia com o passar dos anos, abre um novo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
campo de possibilidades para aqueles que não querem se aprisionar atrás das grades comerciais desse ciclo vicioso – só o que é conhecido vende, só o que vende é produzido, só é produzido o que é conhecido. As novas tecnologias afastam a produção audiovisual do caráter industrial e a aproxima do artesanato. As estruturas, tanto de captação, assim como as de edição e pós-produção, são hoje quase caseiras, e seu produto já atinge uma qualidade que, para vários propósitos, é muito satisfatória. Necessita-se reconciliar as preocupações artísticas com a produção cinematográfica. Afinal, é o poder de engendrar o novo, pertinente às experiências estéticas efetuadas pela arte, que pode fazer germinar o saber e a consciência nas audiências. A linguagem cinematográfica não deve contentar-se em ser espelho do mundo, deve assumir toda sua performatividade e acionar sua capacidade de alterar estados. Ao ser exposta a uma obra audiovisual, seja lá qual for seu suporte, a audiência deve sentir-se estimulada a acordar da sonolência gerada pelos mecanismos de manutenção da hegemonia vigente. A busca é por meios que gerem a tomada de uma consciência reflexiva.
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É preciso que o artista assuma a possibilidade do erro para produzir um trabalho de busca, fruto de pesquisa, dúvidas e inquietudes que produzam um conhecimento não dogmático. Seria uma pena se a nova geração perdesse a oportunidade histórica de mostrar a cara, cheia de defeitos e contradições. É preciso tirar proveito do caos de influências e saber dialogar tanto com nossa rica herança cultural-estética do cinema autoral dos anos 60/70, como com as experiências contemporâneas que os meios digitais proporcionam. Daí pode surgir uma linguagem potente, aberta, multifacetada, imperfeita, dissonante. O cinema precisa reconectar-se à vida em todos os seus aspectos – político, social, afetivo, sensual, grotesco e delirante. Romper a normalidade dos sentidos, criar espaços ingovernáveis, novos fluxos poéticos ligados à história. Descobrir com entusiasmo as formas que revelam os signos do caos. Há caminhos não percorridos. Que o cinema seja um convite aliciante à reflexão, à crítica, ao sonho... (ROCHA, Erik. 2003)
Mas quais são os conteúdos a serem explorados por este novo cinema digital? A partir de quais temáticas estaremos provocando uma alteração nos estados
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mentais do público? Perguntas que não devem encontrar respostas, pois finalmente buscamos a força da pluralidade. Neste momento, mais importante do que se diz, é como se diz e com que intenção. Principalmente que tenha intenção. Quando se fala em estranhamento, problemática, não estamos necessariamente falando de filmes com sentido hermético, de difícil acesso a seus conteúdos. Combate-se o “cinema digestivo”, que traz como atrativo somente o extremamente palatável. É equivocado o pensamento de que uma nova tecnologia soterrará sua antecessora. As obras digitais não vislumbram encerrar o ciclo do nitrato de prata, embora exista quem defenda este caminho. Não estamos fazendo comparações e nem tecendo juízos de valor. O que importa neste momento é darmos partida a um novo processo cultural em nossa sociedade. Uma movimentação que vise à construção do conhecimento e do saber universal. Somente estamos tirando proveito das ferramentas disponíveis, que por si só não são boas nem más. Da mesma maneira, não procuramos apresentar as novas tecnologias como salvadoras da humanidade, nem a produção audiovisual como exclusivo processo universalizante. Mas parece estar nítido que devemos, cada qual em sua área de ação, buscar alternativas para a massificação e o empobrecimento das relações sociais. É essencial que o cineasta brasileiro mais experiente recupere o fôlego cultural e, ao mesmo tempo, se amplie a energia criativa do cinema jovem, pois o exercício mais consistente da capacidade de invenção continua fundamental para um cinema
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que teve sempre na qualidade seu mais efetivo argumento, sua legitimação nas condições adversas. Afinal, sejam quais forem os mecanismos de viabilização do cinema na nova conjuntura a sua relevância dependerá da força de expressão e de envergadura de seus autores, dentro das várias tendências. (XAVIER, 2001. Pg. 126)
O que se discute nesta dissertação é a busca por um cinema da retórica, um cinema problematizante. Aqueles que se municiarem dos bits e frames para somarem nesta jornada podem renunciar ao clássico selo de realizadores. Queremos mais, queremos ser virtualizadores cinematográficos, audiovisuais. Queremos navegar pela rede alardeando nossas idéias, nos aproveitando de uma nova ferramenta que vem suplantar uma das maiores dificuldades para aqueles que
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produzem de forma independente: a distribuição.
Vencendo a última barreira Assim como a água, o gás e a corrente elétrica vêm de longe às nossas necessidades, por meio de um esforço quase nulo, assim também seremos alimentados por imagens visuais e auditivas, nascendo e esvanecendo ao mínimo gesto, quase a um sinal. Paul Valéry37
Os meios de produção com qualidade técnica compatível com o mercado profissional, com o passar do tempo, foram ficando cada vez mais acessíveis. Da passagem do cinema para o vídeo analógico e deste para o digital, o maquinário necessário para se realizar obras audiovisuais teve seu preço reduzido, assim como em outras esferas de atividade produtiva, como nas artes gráficas, na feitura de um livro, etc. Mas em todos estes casos, permanecia a grande dificuldade de tornar visível tal produção. Seja para gerar remuneração por seu próprio trabalho, seja para expor suas idéias e pensamentos ao público, distribuição e exibição sempre estiveram nas mãos daqueles que possuíam capital para formar a dispendiosa estrutura que se fazia necessária.
37
VALÉRY Apud BENJAMIN, 1969. Pg. 209
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A rede global de computadores, com sua anárquica disposição para transmitir dados, aparece como possível solução para essa penosa questão. Afinal, do que adianta realizar um filme e ficar com as latas no colo? A Internet vem alterar o modelo vigente da relação da sociedade com os meios de informação. Deixamos o modelo da irradiação, onde a informação é gerada a partir de um ponto e dele transmitida em uma via de mão única, como acontece nos casos do rádio e da televisão, para o modelo do encadeamento, no qual todos os membros da comunidade global são, a um só tempo, emissores e receptores de informação. A partir do advento da World Wide Web, somos potencialmente nós de um enorme emaranhado de dados que corre freneticamente sem um órgão gestor. Assim como abre suas portas para o nefasto, como o uso da rede por pedófilos, a Internet se confi-
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gura como um novo espaço de visualização para a produção artística e cultural. Parece-me decisivo multiplicar as frentes de ação compartilhada e, sobretudo, as redes de entidades, associações e coletivos, dentro e fora da Internet. Com baixo custo econômico e rapidez, as redes têm autonomia para difundir extensivamente informações e conhecimentos, sem controles externos. Ao mesmo tempo, promovem o diálogo e a cooperação à distância, facilitando a convergência de iniciativas e campanhas, e reforçando a sociabilidade política baseada em visões de mundo afins. Os nós interativos podem servir de estuários para a defesa de identidades culturais e do pluralismo, para a promoção de valores éticos e para a longa luta pela democratização da esfera pública. A teia de conexões permite aperfeiçoar táticas de denúncia, resistência, pressão e insurgência contra o status quo. (MORAES, 2002. Pg. 19)
No que diz respeito diretamente à produção audiovisual, a rede se mostra afeita a sua exibição, pois se quer multimídia intrinsecamente, além de abrir um enorme espaço de trocas que possibilita a realização da saída vislumbrada por Jean Renoir para a distribuição de filmes autorais: “pequenos públicos em muitos países, ao invés de um grande público num único país”38. Contudo, as experiências atuais de transmissão de vídeos via Internet são ainda bastante precárias. Porém, a velocidade com que andam os melhoramentos tecnológicos, a união entre processamento de alto desempenho e de altas taxas de transmissão de dados em banda larga não tarda em possibilitar que se vivencie com os audiovisuais o que já é uma realidade para os arquivos sonoros.
38
BERNADET, 1994. Pg. 48
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A indústria fonográfica vem dia-a-dia debatendo-se nos noticiários, embora sua morte já esteja anunciada. Este é somente o primeiro mamute capitalista que vem tombando frente à maré digital, que mina aqueles que não sabem, ou não querem, navegar por suas correntezas. Há não mais de cinco anos, a possibilidade de se ter uma rádio transmitindo livremente provocava inúmeras dificuldades legais e financeiras. Hoje, ao contrário, podemos sem maiores dificuldades disponibilizar o acesso a uma programação própria, a partir de um sítio pessoal, talvez hospedado em um provedor gratuito. Uma banda musical, atualmente, pode gravar seu trabalho em plataformas semiprofissionais (como os modelos mais baratos da Pro Tools39), obtendo resultados que pouco deixam a desejar em comparação com as estruturas de uma grande gravadora, ou com os estúdios de grande porte. Após a realização da gravação e da masterização, enquanto o caminho natural seria as prensas de vinil ou os “queimadores” de CD, agora disponibilizar as músicas na PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
rede, cobrando ou não pelo acesso, utilizando-se de compressores, tais como o famoso e polêmico MP3, se torna uma opção real para divulgar um trabalho. Em um futuro próximo, televisão e computadores pessoais serão artefatos híbridos e não saberemos exatamente onde começa um e termina o outro. Fazendo uma analogia com as rádios virtuais e com as possibilidades encontradas hoje por aqueles que trabalham com áudio (que manejam arquivos mais leves do que aqueles que carregam imagens e sons conjuntamente), fica fácil vislumbrarmos que dentro em breve estarão solucionadas por completo as dificuldades presentes na transmissão de audiovisuais. Assim, disponibilizar ficções, documentários ou qualquer outro gênero audiovisual se tornará ato rotineiro, e todos poderemos assistir de forma indistinta: vídeos hospedados em sítios particulares e a programação regular dos canais abertos no mesmo aparelho. (...) a televisão integrada ao ciberespaço não funcionará mais segundo o princípio da programação por horário, mas propondo programas de geometria variável, explorando as possibilidades da interatividade. Além disso, o mesmo espaço de comunicação, acolhendo os produtos das grandes indústrias de programa, conterá também vídeos propostos por amadores, jornalistas alternativos, atores políticos, sociais e culturais diversos. (LÉVY, 2000. Pg. 208)
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http://www.digidesign.com
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Dessa forma, produzindo e transmitindo digitalmente, sem uma pressão financeira tão incisiva, podemos antever os dias em que todas as instâncias da realização audiovisual serão acessíveis a muitos que queiram disseminar suas mensagens. Este não é um horizonte tão distante. Precisamos agora, momentos antes, nos preparar para dominar os saberes necessários e formar uma frente de ação que venha a utilizar tais recursos de forma compromissada com a coletividade. Fundamentalmente, nós, habitantes do terceiro mundo, devemos buscar respostas efetivas e construir ações práticas na direção de se pulverizar o acesso à rede nas mais diversas camadas sociais, de procurar mecanismos de remuneração a partir dos trabalhos disponibilizados e de dar visibilidade ao material produzido, rompendo com a espessa camada de futilidades presentes na Internet. A desintermediação possibilitada pela rede se traduz em energia anárquica e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
estimula aqueles que almejam pôr em circulação sua produção. O hipertexto traz concretude ao processo de co-autoria entre produtor e espectador, dando a este último decisivo papel na concepção da obra. O audiovisual se torna interativo se linkando a outros conteúdos e permitindo a navegação cruzada por um imenso universo informativo onde realizamos os possíveis contidos nos bancos de dados espalhados por todo mundo e atualizamos sentidos, construídos a partir de nossos conhecimentos em perpétua rearticulação. A produção digital encontra nas infovias um canal de escoamento totalmente afeiçoado a seus formatos multimidiáticos. (...) o ciberespaço manifesta propriedades novas, que fazem dele um precioso instrumento de coordenação não hierárquica, de sinergização rápida das inteligências, de troca de conhecimentos, de navegação nos saberes e da autocriação deliberada de coletivos inteligentes. Proponho, juntamente com outros, aproveitar este momento raro em que se enuncia uma cultura nova para orientar deliberadamente a evolução em curso. (...) A alternativa é simples. Ou o ciberespaço reproduzirá o mediático, o espetacular, o consumo de informação mercantil e a exclusão numa escala ainda mais gigantesca que hoje. Esta é, a grosso modo, a tendência natural das ‘supervias da informação’ ou da ‘televisão interativa’. Ou acompanhamos as tendências mais positivas da evolução em curso e criamos um projeto de civilização centrado sobre os coletivos inteligentes: recriação do vínculo social mediante as trocas de saber, reconhecimento, escuta e valorização das singularidades, democracia mais direta, mais participativa, enriquecimento das vidas individuais, invenção de formas novas de cooperação aberta para resolver os terríveis problemas que a humanidade deve enfrentar, disposição das infra-estruturas informáticas e culturais da inteligência coletiva. (LÉVY, 1996. Pg. 117)
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Construindo uma utopia: a Era do Conhecimento O sonho é o único direito que não se pode proibir.40 Glauber Rocha
Vivemos uma realidade saturada de apelos visuais, envolta em um crescente número de possibilidades de acesso às mais distintas informações. Para irmos contra a maré individualista e homogeneizadora, característica de nossa sociedade, buscamos a construção de um coletivo de singulares, em contraposição ao que Octavio Ianni veio chamar de a “multidão solitária”41, formada por meio de manipulações ideológicas em grande parte promovidas pelos meios de comunicação de massa. Para tanto, uma das principais tarefas a se cumprir por parte da ação intelectual é a formatação de ideais. Faz-se necessário que se criem novas utopias, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
regiões futuras, alvos finais para uma longa caminhada, afinal “o ideal fornece ao sujeito razões para agir (e não agir), e sentido para suas ações”42. Tolhida em um presente interminável, a sociedade carece de perspectivas futuras, de um ponto para onde caminhar. Desprovidos de uma rota que guie suas ações, os indivíduos se debatem sem objetivos práticos a serem alcançados. Assim, parafraseando Norberto Bobbio, precisamos elaborar princípios-guia, que justifiquem as ações que serão tomadas, disseminar informações-meio, que forneçam os recursos necessários à superação dos obstáculos, para, finalmente, alcançarmos conhecimentos-processo, que se sedimentem na consciência de cada um, ainda mantendo-se plásticos para que não enrijeçam as possibilidades da experiência. Em um mundo saturado de informações como o nosso, onde as pessoas são expostas diariamente a um sem número de significantes, agravam-se sobremaneira as dificuldades do conhecer. Não tendo como discernir entre o que devem ou não, ou o que querem ou não absorver, os indivíduos vão permitindo que esta esfera
40
ROCHA, Glauber In GOMES, 1997. Pg. 603
41
IANNI, 2000. Pg. 154
42
BEZERRA Jr., 1999. Pg. 06.
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decisória se externalize, ficando a cargo de interesses outros que não os seus pessoais. Este oceano informacional vai criando uma falsa sensação satisfatória de que está se democratizando o conhecer. Porém, a dita Era da Informação vem produzindo discrepâncias ainda maiores – estamos às vésperas de possuir uma grande faixa de pessoas duplamente analfabetas, ignorantes da leitura, da escrita e, agora, da relação com as novas máquinas. A Era do Conhecimento fica então apresentada como ideal a ser perseguido. Uma utopia pós-moderna, que pretende se concretizar a partir da libertação do ato criativo universal. Um ambiente político e ideológico, produtor de consciência. Da consciência de sermos meios para fins aos quais vamos ter acesso também. Uma Era perseguida nos menores e nos maiores atos. Fabulada enquanto ideal, mas vivenciada cotidianamente na elaboração de nossas intenções. Espaço sócioPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
político imerso na ética, onde o sentimento comunitário ganhe novo viço e as singularidades dos indivíduos não se confundam com egoísmos e individualismos. O intelectual, compreendido aqui de forma bastante abrangente, pode apresentar-se como um dos agentes da evolução da inteligência coletiva, somando a outros esforços com a mesma direção transformadora. A construção de uma movimentação impregnada de idéias, de informações, se mostra premente. Informações que possam se transmutar em um conhecimento sedimentado, embora dotado de elasticidade, moldável de acordo com os desejos e subjetividades de cada sujeito. A Era do Conhecimento se opõe à atual Era da Informação, recheada de conteúdos estanques, rígidos e muitas vezes impenetráveis para muitos daqueles desprovidos de educação. A democratização da informação só acontecerá de fato quando esta for apropriada de forma livre por todos os indivíduos. A Era do Conhecimento é aquela na qual as trocas efetuadas provocam um real impacto nas mentes e corações, e não somente soterra as pessoas com uma imensa quantidade de dados inaproveitáveis, afinal “informação excessiva é uma das melhores induções ao esquecimento”43.
43
HARVEY, 1992. Pg. 289
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Recortando suas possibilidades de construção, observamos quais são as contribuições possíveis a serem efetuadas pela produção audiovisual. Ao estender as possibilidades da linguagem cinematográfica, estabelecendo novos repertórios, em cada indivíduo, mediados por suas subjetividades, estaremos inventando uma nova realidade. Afinal, os limites do seu mundo são os limites da sua linguagem. Neste momento devemos, de imediato, promover acontecimentos geradores de ação. Acontecimentos podem ser provocados das mais distintas formas. Acontecimentos a partir da linguagem. Acontecimentos a partir do Cinema.
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Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. (...) Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo. (DELEUZE, 1992. Pg. 218) Chamo de acontecimento (...) um fato que carrega uma idéia, quer dizer, um universal singular, porque limita a idéia carregada, em sua universalidade, por sua singularidade de fato datada e localizada, que tem lugar a um certo momento de uma história nacional e que se resume e totaliza, na medida em que é seu produto totalizado. (SARTRE, 1994. Pg. 37)
Na direção contrária às mazelas do mundo contemporâneo, individualista, desprovido de utopias, provocador de homogeneização, a arte e, particularmente, o cinema tem seu papel fundamental, no questionamento das verdades constituídas e na instauração da reflexão criativa. Como textos audiovisuais que permaneçam com seus significados em devir, com brechas, lacunas a serem preenchidas pelas experiências e subjetividades daquele que se expõe à experiência estética, podem contribuir neste sentido? Podem os conteúdos ser provocadores da heterogênese almejada? Afinal “um fato inteiramente previsível nada nos ensina, enquanto um acontecimento surpreendente nos traz realmente uma informação”44. Enfim, busca-se um cinema a ser enxergado e não somente visto. Afinal, entre o ver e o enxergar existe o plano da significação.
44
LÉVY, 1996. Pg. 57.
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3 A interação reformadora A recepção dos textos de fruição.
“Pegar as pessoas em flagrante delito de fabular é captar o movimento de constituição de um povo, segundo Deleuze. A fabulação como um discurso de minoria que cria suas próprias impossibilidades, e ao mesmo tempo cria um possível. Criação e povo é o que falta. O cinema é revolucionário quando os enunciados, já coletivos, são como germes do povo por vir. (...) Não supor um povo, mas contribuir para sua invenção.”45 Ivana Bentes Somente a partir de uma produção audiovisual que dê espaço a aventuras PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
antinaturalistas, que utilize a desfamiliarização, a polissemia, o tornar estranho, enfim, a subversão da percepção rotineira dos fatos, é que poderemos comunicar diferentes pontos de vista da realidade que experimentamos. Deixando lacunas de compreensão a serem preenchidas pelos espectadores estaremos fomentando a fantasia e as singularidades pessoais. São significados em devir, através de paisagens semânticas móveis e acidentadas, que podem potencializar a heterogênese. São então nossas palavras de ordem: a problematização da mensagem, a imprevisibilidade e a enunciação. Este capítulo pretende, a partir das idéias de Wolfgang Iser sobre o ato de leitura, de Pierre Lévy sobre o que é o virtual e de Roland Barthes sobre o prazer do texto, clarificar quais são alguns dos mecanismos e formas a serem empregados no provocar do conhecimento. Para tanto, entrelaçaremos as abstrações conceituais expostas por estes três autores, tendo como pano de fundo todo o arcabouço levantado e utilizado nos demais capítulos, com a linha de raciocínio empregada em toda a dissertação, no intuito de estabelecer recortes na experiência audiovisual que a afastem dos mecanismos e camuflagens criadores de uma falsa harmonia – na verdade uma hegemonia – e a aproximem da postura político-ideológica exposta no capítulo anterior. 45
BENTES, 1997. Pg. 103
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3.1. Mudança qualitativa
“Não é a ‘pessoa’ do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do desfrute: que os dados não estejam lançados, que haja jogo.”46 Roland Barthes
Imagens, textos, mensagens. A partir de que premissa podemos estruturar um raciocínio que nos leve a uma prática geradora de artefatos culturais instigantes? Culturalmente alocada, a visão serve como porta de entrada para um sem número de informações. Em que momento os apelos visuais e comunicativos consti-
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tuem-se enquanto experiência para o espectador? Sobre qual tabuleiro rolam os dados do ininterrupto jogo da constituição do sujeito? E finalmente, demarcados os espaços de negociação, sendo as tecnologias digitais de produção audiovisual as peças em foco, quais os movimentos que colocarão em xeque os opacos objetos da cultura de massa hegemônica, e disponibilizarão aos jogadores a refração e a reflexão da arte a serem dispostas neste xadrez?
Seres de linguagem As imagens fílmicas. Os cortes, enquadramentos, seqüências. Estruturas gramaticais. As fusões indicando passagens de tempo, os cortes secos, quadros congelados. Códigos. Planos médios, close-ups, planos americanos. Movimentos de câmera, a música incidental. Repertório. As cartelas de abertura, os créditos finais, as entradas de legenda. Escritos. Ruídos, falas, diálogos. A edição, a decupagem, a sonorização. Estilos, caligrafias, maneirismos. Comédias, dramas, musicais. Gêneros. A encenação, a composição, o raccord. A linguagem cinematográfica intermedia as experiências vividas pela audiência na sala escura, assim como a escrita preenche as páginas dos jornais; as no46
BARTHES, 2002. Pg. 09
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tas, arpejos e acordes, formam as músicas; e mesmo, como as palavras e imagens povoam nossos sonhos e pensamentos. As linguagens instrumentalizam a recepção e condicionam o saber. Servem de interface entre o sujeito e a empiria, entre o sujeito e o seu espaço mental. De fato, o real só se configura como tal na medida em que uma significação a representa. Se é na linguagem que encontro limites para o conhecer, são os limites da linguagem os limites do meu mundo. São os limites da linguagem, meus próprios limites. Descrever, lembrar, pensar. Falar, ouvir, perceber. Todas, atividades que
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trafegam através de códigos e sistemas simbólicos. As línguas, as linguagens e os sistemas de signos induzem nossos funcionamentos intelectuais: as comunidades que os forjaram e fizeram evoluir lentamente pensam dentro de nós. Nossa inteligência possui uma dimensão coletiva considerável porque somos seres de linguagem. (LÉVY, 1996. Pg. 98) Benjamin atribuía uma significação decisiva à linguagem. (...) Por um lado, a realidade se expressa na língua, naquilo que podemos dizer sobre o real; por outro lado, o real só existe para nós na medida em que o conhecemos e conseguimos, ainda que canhestramente, dizê-lo. (KONDER, 2002. Pg. 154)
Entretanto, as linguagens não se restringem a estar de permeio entre os indivíduos e o real, mas também nos confrontam com realidades que ainda não foram criadas e nos fornecem arsenal e campo para a invenção. Desta forma, quanto mais se enriquecem as linguagens, quanto mais se ampliam e estendem, maiores são as possibilidades do simular, do imaginar. Se são as singularidades que vêm sendo aplainadas pela cultura de massa e pelos interesses capitalistas, como vimos no capítulo anterior, são os repertórios pessoais que vêm dia após dia sendo reduzidos e equalizados. Preenchidos por conteúdos que somente reafirmam as mesmas mensagens, embora sempre vestidos de novidade, os acervos mentais dos indivíduos sofrem de uma atrofia que vai tornando-se crônica. Sendo a linguagem motor e alimento na formatação de tais repertórios, é sua extensão e refinamento, fator determinante para um revés deste quadro homogeneizador.
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O lidar criativo com a linguagem audiovisual pode prover novas experiências, dilatar realidades inertes. A construção dos sujeitos é obra sempre inacabada, por refazer. Contudo, o leitor pode assumir – ou ser colocado em – postura passiva, não atuando numa troca que necessita de perpétuo trabalho. Sujeito e empiria se co-formam mutuamente na interação que permanece em fluxo constante. Assim, é através da linguagem, ou de seu uso, que podemos tornar este certame em prazerosa e desafiadora reinação. Habilitado a manipular informações e convertê-las em conhecimento, o indivíduo pode, munido de sua inteligência, usufruir as aventuras criativas do saber. Mas para isso, precisa de estímulos, de nutrientes que possam fazer crescer tais possibilidades. Se a atividade audiovisual, hoje, pode contar com um paiol tecnológico que permite alternativas para fora dos grandes sistemas de produção e merPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
cado, a realização de obras que fujam da linguagem hegemônica, disseminada principalmente pelo cinema norte-americano, pode tornar-se uma notável contribuição no despertar do ato inventivo. Peculiarizando coleções de experiências e dotando de poder de escolha os indivíduos, estaremos, enfim, nos aproximando de uma efetiva democratização dos meios de informação. Afinal, mais e mais indivíduos poderão tirar real proveito da enchente de informações a que estamos todos expostos. Sem discernimento, tamanha gama de ofertas mais confunde do que instrui. A Internet juntamente com a instantaneidade dos e-mails forjam uma ferramenta ainda em experimentação. Fomentar as particularidades humanas e moldar coletividades regionais consistentes dentro da globalização são potenciais a serem explorados na lida com a linguagem. Perverter a hegemonia e implementar a inovação produtiva.
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A tangente criativa “a linguagem não como espelho do mundo mas como instrumento para a ação dotada de performatividade47” Benilton Bezerra Jr. 48
Uma mensagem que não seja transmitida em código legível, não será atualizada de maneira adequada, podendo mesmo nem ser notada. Não fazendo parte do repertório prévio do sujeito, nem trafegando em linguagem reconhecida, os conteúdos não operam o ato comunicativo e ficam retidos nas dificuldades da decodificação, tornando-se difusos e dissolvendo-se no ar. Sem exercer nossas capacidades, frustramos o ímpeto da compreensão e não alcançamos o prazer da leitura.
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Os repertórios são a combinatória de elementos biográficos, históricos, sociológicos e neuróticos de cada sujeito – como coloca Barthes49 –, moldando e conformando as possibilidades de interação do indivíduo com seus mundos. Regulam a absorção, a fruição e a experiência estética, se encontrando em estado de permanente mutação. Da leitura ao sonhar, passando pelo entreter-se e pelo estudar, abrem suas portas, nichos, gavetas e proporcionam comparações, equiparações, tomadas de posição e resoluções afirmativas ou negativas. Qualquer cidadão urbano de classe média, morador de qualquer cidade grande, de Teerã a Tóquio, está fadado a ter um ‘banco de imagens’ bem sortido, na verdade, saturado, que é continuamente enchido por viagens e revistas. Seu musée imaginaire pode espelhar a mixórdia dos produtos mas é, mesmo assim, natural para o seu modo de vida. (JENCKS Apud HARVEY, 1992. Pg. 271)
O contato com a arte exige do indivíduo atividades imaginativas e perceptivas que acabam por definir e delimitar suas próprias atitudes. Como seres alojados no tempo e no espaço, nossas representações são suscetíveis ao cambiar desses fatores. Entrepostos entre o que somos e o que seremos, estão, então, linguagens e repertórios. Entidades proporcionais que se retroalimentam num processo fecha47
Capacidade de alterar estados.
48
BEZERRA Jr., 2001. Pg. 03
49
BARTHES, 2002. Pg. 73
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do, cíclico, definindo muito do que podemos vir a ser. Trabalhando sob um regime que dosa redundância e inovação nos discursos, vamos construindo nosso viver, compreendendo o que já podemos saber e conquistando e aprendendo o que está nas margens de nosso conhecimento. É nesta balança, que tem em um de seus lados o repertório e do outro a novidade, que devemos avaliar o peso da mensagem artística, autoral. Pierre Lévy coloca que o virtual “trata-se de um modo de ser fecundo e poderoso, que põe em jogo processos de criação, abre futuros, perfura poços de sentido sob a platitude da presença física imediata”50. Opondo o virtual ao atual, e não ao real, como diz o senso comum, Lévy apresenta a idéia de problematização na virtualização e de resolução na atualização. No ato de apreensão de uma obra, atualizamos e realizamos simultaneamente. Realizamos códigos e signos, estrutuPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
ras de sentido restritas pela própria mecânica cultural. No entanto, atualizamos conteúdos e experiências, condicionados por nossas interpretações. A atualização aparece então como a solução de um problema, uma solução que não estava contida previamente no enunciado. A atualização é criação, invenção de uma forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e de finalidades. Acontece então algo mais que a dotação de realidade a um possível ou que uma escolha entre um conjunto predeterminado: uma produção de qualidades novas, uma transformação das idéias, um verdadeiro devir que alimenta de volta o virtual. (LÉVY, 1996. Pg. 16)
A atualização – produção inventiva singular, mediada por nossas subjetividades e pelo caldo cultural a que estamos expostos – é ato de criação, e é no ato criativo que se embute o ato revolucionário, já que, subvertendo o já existente, produz o novo. Se as experimentações visuais podem disparar, pelo processo do estranhamento, a interpenetração de espectador e obra, gerando um acontecimento, então é aqui que se esvaece qualquer dúvida com relação à sua força provocadora. Todavia, novos experimentos de linguagem sempre podem ser convertidos em maneirismos gratuitos a ilustrar obras de raso conteúdo. O que nos cabe agora é permanecermos no front do todo-digital, sempre estendendo os limites das linguagens com a qual operamos. Afinal, somos seres de linguagem, constituídos por esta experiência coletiva que é a reconstrução diária dos vocabulários, gramáticas,
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dialéticas e retóricas, e se alcançamos novas áreas a serem exploradas na linguagem, assim alargamos mesmo o que somos. O espectador médio, acostumado a uma oferta maciça de redundância garantida, dificilmente entra em sintonia com as áreas de escuridão e silêncio, com a rarefação do ritmo e o elastecimento de sentido, do cinema de arte. Daí a necessidade de lidarmos com os tropismos da audiência, sempre despidos do medo dos riscos da incompreensão. Tangenciando o campo do conhecido, entramos em contato com o repertório mas, ao mesmo tempo, traçamos uma reta que cruza as fronteiras do novo. O cinema, o vídeo, o audiovisual, provocadores oníricos por excelência, podem discursar engendrando a criatividade e germinando o saber. A arte é
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mensagem ambígua, pulverizada de significados, à espera de atualização. A nova experiência emerge a partir da reorganização de experiências sedimentadas, a qual, em razão de tal estruturação, dá forma à nova experiência. Mas o que acontece durante este processo apenas pode ser experimentado se as nossas sensações, padrões, concepções e valores do passado são evocados nesse processo, amalgamando-se com a nova experiência. A experiência sedimentada condiciona a forma e a forma da nova experiência se manifesta na reorganização seletiva da experiência sedimentada. O ato da recepção não se funda na identificação de duas experiências diferentes, uma nova, outra sedimentada, mas na interação destas duas, ou seja, em sua reorganização. (ISER, 1999. Pg. 52)
É o poder da imaginação que desperta o sujeito, revolvendo o terreno do já sabido e o colocando em questão. A realidade transfigurada pela arte põe o sujeito a pensar, a reavaliar. Invadido pelo estranho, desmascara certezas e reconhece contradições. Ao manipularmos as linguagens podemos abrir fendas na segurança do já pensado e instaurar a riqueza do devir. Glauber Rocha, parâmetro para novas ações, buscava aliar política e estética em uma perspectiva vigorosa de inovação. Esta é uma postura política a ser assumida: dispor obras audiovisuais que estimulem o cogitar. Intrinsecamente distintos, os humanos somente necessitam livrar-se da ignorância para desenvolverem suas singularidades e não sofrerem o mal-estar da uniformidade forçada.
50
LÉVY, 1996. Pg. 12
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São muitas as mensagens com as quais temos contato todos os dias. Filmes, programas televisivos, revistas, impressos. Mas quais serão as distinções entre aquelas que enrijecem o imaginar, ou mesmo pouco contribuem, e aquelas que despertam o pensamento? A que regime devem filiar-se as obras do Microcinema? É na idéia da produção do novo, da incitação da diferença, neste movimento entre o virtual e o atual que buscamos apoiar nosso raciocínio que distingue a produção audiovisual comercial e uma possível movimentação em direção ao artístico, ao autoral, a partir das novas tecnologias. Todavia, é melhor que fique claro que certos contrastes e distinções serão intensificados para que se possa discorrer sobre determinados aspectos, embora saibamos que na realidade os gradientes são mais delicados, suaves, e muitos textos habitam as longas fronteiras entre o que instiga e o que faz adormecer. Para melhor podermos distinguir duas propostas de aproximação para com as obras audiovisuais e, conseqüentemente, de interação possíPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
vel com seus conteúdos, iremos expor uma dicotomia forçosamente saturada, binária, uma oposição abstrata que não corresponde fielmente ao real, mas torna mais claro o partido a ser tomado.
3.2. Dicotomia contrastada
“(...) o texto é apenas uma partitura, (...) são as capacidades dos leitores, individualmente diferenciados, que instrumentam a obra.”51 Wolfgang Iser Texto. Tecido capaz de estimular atos, veicular informações. Excerto de linguagem. Construção esquemática que prefigura seu objeto. Conjunto de posições dadas, familiares e/ou estranhas. Pluralidade de sentidos a ser realizada pelo leitor. Conjunto de instruções para a produção de significado, para a construção do objeto estético. A partir desta definição abrangente de texto, é possível falarmos em textos cinematográficos, textos musicais, textos imagéticos, que não necessariamente 51
ISER, 1999. Pg. 11
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ficam restritos às letras e palavras impressas ou escritas sobre o papel. Se o termo texto assume uma abrangência maior que a de seu uso comum, a leitura ganha novos contornos, mais largos que os de costume. O ato de leitura então configura-se como gesto de interação dinâmica entre sujeito e objeto comunicativo – seja lá de que natureza este for – englobando o processo perceptivo. Neste segmento de capítulo estaremos estabelecendo uma dicotomia entre o que Roland Barthes veio a chamar de textos de prazer e textos de fruição, construindo um paralelo entre a utilização da linguagem cinematográfica hegemônica, dita clássico narrativa, e as possibilidades oferecidas pelo cinema autoral ou artístico, que trabalha retoricamente nas fronteiras da linguagem. Então, serão expostas distinções que buscam seccionar a produção corrente entre obras que buscam a distração e outras que geram o espanto. Entre aquelas que se contentam em dizer e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
aquelas que preferem sugerir.
Textos de prazer
Um cinema digestivo, como dito por Glauber Rocha, domina o circuito de exibição comercial e vem trabalhando com conteúdos possíveis que somente são realizados pelos espectadores no momento de sua apreensão. Textos com poucas lacunas, poucos brancos a serem preenchidos, saturados, que quase impossibilitam a contribuição da audiência na construção de sua acepção. Um cinema condizente com nossa realidade de muitos significantes para poucos significados. Obras que renunciaram, em grande parte, aos ímpetos criativos e à sua função contestatória. Filmes maquiados com a cosmética publicitária e que não fogem muito à gramática narrativa da teledramaturgia buscando a saciedade do espectador e sua imobilidade, trabalhando sob uma política da distração. Apresentam-me um texto. Esse texto me enfara. Dirse-ia que ele tagarela. A tagarelice do texto é apenas essa espuma de linguagem que se forma sob o efeito de uma simples necessidade de escritura. Não estamos aqui na perversão, mas na procura. (BARTHES, 2002. Pg. 09)
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Tais textos tagarelas não renunciam à estrutura de prover inovações e manejar redundâncias. Não deixam de gerar expectativas, de guarnecer vazios, porém estes são encontrados em número reduzido e estritamente controlados. Contudo, são lançados proporcionando um espaço de jogo limitado, afinal, se faz necessário que a audiência tenha a ilusão de ser ela a construir sentido a partir de decisões próprias, mas que na verdade são impostas pelo texto. Se prevejo algo que mais a frente concretiza-se, satisfaço-me. Mesmo a surpresa e o contraditório, se não escapam ao repertório do indivíduo, somente fazem cumprir uma realização, nunca uma atualização. Não trazem em si sugestões de raciocínio, apenas, mergulhados na repetição, fornecem à audiência algo que já foi previamente dado. Apresentando uma sintonia com os hábitos culturais do público ao qual se dirige, repetem conteúdos, esquemas ideológicos, situações, sempre recobertos por novas capas,
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novas aberturas e apresentações. Novos pacotes a reforçar antigos sentidos. Guillermo Orozco Gómez, em seus estudos culturais sobre a televisão, relata o caso da série televisiva americana Dallas – já veiculada no Brasil, anos atrás – “onde pude constatar que audiências de vários países perceberam significados e significações similares, não obstante suas múltiplas diferenças segmentárias”52. Este tipo de produção, que visa o mero entretenimento, emana sem cessar informações superficiais sem dar margem ao jogo com seu leitor. Sendo o efeito estético o propulsor para novas experiências, este diminui proporcionalmente à medida que são oferecidos ao público produtos que visam se fechar em verdades, sem deixar espaços para que o espectador contribua com sua visão singular. A existência de uma linguagem hegemônica, formatada e exportada pelos Estados Unidos, condiciona audiências e produtores ao redor do mundo. Filmes são rotulados como divertimento, dando a impressão de não trazerem em si conteúdos ideológicos. Porém, vendem ao público globalizado um way of life condizente com uma política internacional autocentrada, que vê o restante do mundo como mercado consumidor e/ou mão-de-obra barata a manufaturar produtos que levarão o selo de marcas de empresas americanas. As produções locais, sejam elas televisivas ou cinematográficas, muitas vezes se encerram nos limites desta já naturali52
GÓMEZ, 2001. Pg. 07
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zada forma de assistir aos filmes. O espectador médio já tem internalizado uma série de códigos e realiza, sem titubear, os programas confortáveis de filmes de ação, comédias românticas, terror, ou qualquer um dos gêneros clássicos restantes. Esta é uma produção que contenta, enche, dá euforia. Pratica um regimento da comodidade, que, através do disparar de sensações como o medo, a ansiedade ou a ternura, fornecem um prazer que é individual – inerente da experiência cinematográfica – mas não pessoal, singular. Todos se alegram no mesmo momento, todos choram no mesmo momento. Filmes tais quais montanhas-russas emocionais que seguem estritas receitas de roteiro, que esquematicamente mexem com as emoções dos espectadores. Barthes coloca que os textos de prazer vêm da cultura, não rompem com ela. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
Não rompem com as expectativas geradas pela linguagem utilizada. Não aumentam o repertório, somente se servem dele. Contudo, textos de prazer não devem ser confundidos com o prazer do texto, que advém, não de um processo de aceitação passiva, mas sim de uma resposta produtiva à diferença experimentada.
Textos de fruição Todo texto comporta em si virtuais a serem atualizados e possíveis a serem realizados. O real, assemelhando-se ao possível, promove operações mecânicas. Assim como o acionar de um botão, realizar um determinado conteúdo necessita apenas da operacionalização de uma linguagem, de um código. Já o atual em nada se parece com o virtual, afinal, ao transpassar a membrana composta pelas subjetividades e pelo repertório, a mensagem amolda-se às facilidades particulares de cada indivíduo. Os contentos virtuais estimulam, então, uma produção de sentido peculiar a cada um de seus leitores. Na virtualização, as distinções são amainadas e o grau de liberdade de apreensão aumenta, criando um vazio motor. Enquanto isso, possíveis são estáticos, encontram-se retidos nas obras, quer estas sejam lidas ou não. As notas musicais de uma canção estão indelevelmente registradas em seu suporte – seja um disco de
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vinil ou um aparato digital – independentemente de sua audição ou não por parte de um sujeito. O virtual, diferentemente, só eclode no ato de leitura, quando são resolvidas indeterminações de sentido e o texto vem a significar. As coisas só tem limites claros no real. A virtualização, passagem à problemática, deslocamento do ser para a questão, é algo que necessariamente põe em causa a identidade clássica, pensamento apoiado em definições, determinações, exclusões, inclusões e terceiros excluídos. Por isso a virtualização é sempre heterogênese, devir outro, processo de acolhimento da alteridade. (LÉVY, 1996. Pg. 25)
Desta forma, podemos observar os textos como forma oca53 a ser preenchida pelo sujeito no ato de apreensão. Suplementando com suas representações os espaços deixados em claro, o leitor estabelece uma relação com o texto. Diferentemente do que ocorre com os textos de prazer que se assemelham a sólidos platôniPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
cos, regulares e congruentes. Formas simétricas, que, ao serem observadas a partir de um determinado ângulo, revelam seu lado oposto, idêntico e harmônico ao já visto previamente. Os textos de fruição, segundo Barthes, trazem um desconforto, colocando em questão o que já se sabe. Relativizando toda experiência precedente à leitura, tais textos nos colocam em uma situação de perda. Perdem-se certezas, vacilam bases históricas, culturais e psicológicas. A consistência de gostos, apreços, valores, entra em crise em sua relação com a linguagem. O leitor é alçado a um novo ponto de vista de si próprio e de sua bagagem histórico-cultural, podendo tecer novas relações entre seus conhecimentos e colocar em questão verdades que porventura parecessem absolutas. Enquanto textos de prazer manejam, predominantemente, figuração e percepções, que requerem a pré-existência de um objeto dado, textos de fruição sistematizam representações, ou seja, colocam o leitor na lida direta com o não-dado, com o ausente. Mensagens e conteúdos polissêmicos ganham concretude na interação entre obra e sujeito, re-formadores da consciência.
53
ISER, 1999. Pg. 172
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É no processo da fruição que damos de encontro com o novo absoluto. Sigmund Freud, pai da Psicanálise, coloca que: “No adulto, a novidade constitui sempre a condição da fruição”54. Daí o porquê de a fruição provocar um arrebatamento que pode chegar ao cancelamento do discurso, já que este, para ser apreendido, não pode fugir do regime de redundâncias e inovações – como já vimos. A excentricidade criativa guia sobre esta fina e delicada linha que envolve o repositório de nossos saberes. Dosando exceções e regras pode-se almejar a fruição, ou contentar-se com o realizar. No momento histórico em que estamos inseridos, são as forças provocativas da fruição que podem alterar o estado das coisas. São os textos de fruição que podem, e devem, ser escritos por máquinas digitais de baixo custo. O Microcinema – juntamente com várias outras manifestações de diferentes naturezas –, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
afastando-se da linguagem hegemônica, em sua interação com as audiências, pode fazer com que a inércia cultural pós-moderna seja vencida. Favorecendo o tornarse autor, a atividade em detrimento da passividade, o espectador (aquele que somente assiste) transforma-se em lei(a)tor – idéia veiculada por J. L. Weissberg55 – tomando parte no processo de re-criação das obras às quais é exposto.
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BARTHES, 2002. Pg. 50
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PLAZA, 2000. Pg. 11
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3.3. (Re)Formando “A virtualidade do texto alimenta minha inteligência em ato.”56 Pierre Lévy
Textos de vanguarda, uma vez captada a atenção de seus leitores, disparam os processos de interpretação. A significação nada mais é do que uma negociação estabelecida entre texto e audiência. Perceber, conhecer, absorver, entender. A recepção de textos de fruição pode alterar as disposições dos sujeitos e abrir espaços para a construção do conhecimento. Enquanto o cinema clássico narrativo, tornado hegemônico por Hollywwod,
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busca dragar o espectador para dentro de seu enredo, o constituindo assim como um observador privilegiado, que mesmo imaterial coloca-se dentro do espaço proposto pelo filme, o Microcinema busca o fortalecimento da experiência audiovisual, abraçando o espectador como co-autor da obra em curso. Os leitores, alçados à condição de co-autores das obras com as quais interagem, sofrem uma mutação qualitativa de suas consciências. Experiências provocadas por textos que convulsionam sentidos desnaturalizando toda percepção do espaço vivido e das memórias de que dispomos. O leitor é transcendido no ato da leitura e passa a se achar numa posição posterior àquela na qual iniciou a leitura. Novos horizontes são riscados e o que somos escoa entre novas percepções. Problematizada a própria existência, os olhos abrem-se passando a perceber. Hoje, muitos são aqueles que somente usufruem do ver – nada além de uma capacidade fisiológica. A aquisição do olhar – atividade sensorial dependente da atenção – já pode transfigurar toda realidade à nossa frente. Entretanto, a grande conquista é a do perceber, que através da linguagem proporciona uma nova e rica interação com o mundo. É na direção desta mudança de status da recepção que um cinema autoral deve caminhar, habilitando os sujeitos à troca, ao diálogo.
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LÉVY, 1996. Pg. 49
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A interação A estrutura do texto e a estrutura do ato de leitura constituem os dois pólos da situação comunicativa. Para que o ensejo perceptivo ocorra é necessária a formação de coerência, ou seja, a mensagem transmitida deve reverberar no acervo mental do leitor, não escapando por completo de suas capacidades intelectuais. Assim, o texto e a atividade do leitor se conformam em um ato que não é redutível a nenhuma de suas partes isoladas. Não há a bipartição entre sujeito e objeto, é na interação que se encontram as particularidades deste evento difusor. Como explana Iser: “o repertório e as estratégias textuais se limitam a esboçar e pré-estruturar o potencial do texto; caberá ao leitor atualizá-lo para construir o objeto estético”57. E, como já vimos, a atualização somente se dá mediante a peculiaridades de cada PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
indivíduo. No momento do ato de leitura, o leitor envolve-se em um processo que acaba por transcendê-lo. Reformulando o texto já formulado para poder incorporá-lo, o sujeito transmuta informação em conhecimento, absorvendo, dentro de suas possibilidades, os conteúdos expostos. A partir de um movimento retroativo, o presente modifica o passado no fluxo da leitura. Avançando no texto, o leitor vê sua compreensão do lido se modificar. Cada novo segmento textual, cada novo elemento apresentado, rearticula os segmentos passados, à medida que os contradiz, os reafirma, os desenvolve. É neste processo que o objeto estético vem a formar-se, no entrecruzamento das perspectivas textuais estabelecidas pelo leitor. Cada perspectiva elaborada forma camadas na construção textual e renova as possibilidades do texto. Partindo das diferentes perspectivas apresentadas pelo texto – por exemplo, a perspectiva da protagonista e a do narrador de uma determinada obra –, o leitor realiza sínteses que conformam o objeto estético. Sínteses textuais são agrupamentos de perspectivas interagentes que são equalizadas formando configurações de sentido, as Gestalten.
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ISER, 1999. Pg. 09
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A partir do que Wolfgang Iser veio a chamar de ponto de vista em movimento, podemos compreender como textos de fruição podem renovar a percepção humana. Em uma mecânica cíclica, onde cada segmento textual deixado para trás conforma-se como horizonte, pano de fundo, para o novo segmento que se apresenta como tema, o ponto de vista em movimento enquadra as possibilidades de leitura de um texto, já que a apreensão de um tema é sempre delimitada por um horizonte previamente dado. Ao leitor cabe estabelecer as Gestalten identificando a relação entre as perspectivas textuais, assim não é possível que se estabeleçam significações arbitrárias a partir de um texto, por maior número de vazios que este comporte. Se variam as possibilidades de interpretação a partir de uma mesma obra, elas não se fundam na estrutura textual e sim nos diferentes repertórios de ca-
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da indivíduo, que vai interagir de forma única, exclusiva, com o texto. O horizonte empresta um contorno ao que está em primeiro plano, uma vez que o contorno é condição determinante da forma. Com cada mudança de ponto de vista, começa a forma a perder outra vez sua diferenciação, no momento em que recua para o segundo plano, tornando-se, enquanto horizonte, contorno para uma nova forma, a qual, em consequência, é por ela condicionada. Cada momento articulado da leitura resulta numa mudança de perspectiva e cria uma combinação intrínseca de perspectivas textuais diferenciadas, de horizontes vazios de memórias esvaziadas, de modificações presentes e de futuras expectativas. Dessa maneira, no fluxo temporal da leitura, o passado e o futuro convergem continuamente no momento presente; assim, o ponto de vista em movimento desenrola o texto mediante suas operações sintéticas, transformando-o na consciência do leitor em uma rede de relações. (ISER, 1999. Pg. 23)
As capacidades de cada leitor de lidar com seu próprio acervo mental são decisivas ao condicionarem a interação do ato de leitura, a partir da memória, do interesse, da atenção. Constituir o sentido de uma obra, ao formar representações mentais dos conteúdos provenientes das tessituras exploradas, é um ato criativo dependente dos inúmeros fatores que condicionam a inteligência e o repertório das audiências. Fatores culturais, políticos, sociais, repercutem sobre nossas competências e limitam ou ampliam a criatividade na recepção – na atualização – e a produtividade de cada legente, que deve coordenar, perspectivar e interpretar os pontos de vista do texto.
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No processo de leitura emerge uma série de possibilidades de atualização, que devem ser escolhidas ou deixadas de lado pelo leitor. Neste decurso, onde ocorrem seleções e exclusões, originam-se as Gestalten dotadas de sentido. São exatamente as relações não-selecionadas que provocam um distúrbio positivo, por assim dizer, em todo o processo. Permanecendo em segundo plano, formam um leque de ramificações virtuais não exploradas que dão um estranho sabor ao texto. A abundância de possibilidades não selecionadas durante a leitura significa que elas estão presentes, mas não são atualizadas. Essas possibilidades virtuais representam aquela parte da experiência não-familiar que ganha um contorno sem ser ainda focalizada. Sua virtualidade provoca “associações estranhas”, as quais se sobrepõem às Gestalten de sentido já estabilizadas, afetando estas de tal modo que perdem sua determinação; isso significa que atos de apreensão começam a organizarse de uma maneira diferente. (ISER, 1999. Pg. 41)
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Estimulados pela heterogeneidade do texto – que às vezes acopla-se ao repertório e às vezes o escapa –, os leitores produzem sentidos que não são estáveis. Servindo como matéria-prima para a conscientização, as obras de fruição provocam o questionamento dos limites existentes entre o espaço mental e a realidade. Deste modo, acabam por entrar em crise as linguagens e suas representações, que a partir do ato de leitura reformam o perceber a si próprio.
De leitores a co-autores “Perceber-se a si mesmo no momento da própria participação constitui uma qualidade central da experiência estética (...)”58 Wolfgang Iser Escutar, perceber, ler, equivale a formar-se. Nos envolvendo com o texto, vamos deixando para trás o que somos. O texto, se perfurado por vazios, configura-se como auto-interface para o sujeito, possibilitando sua interação com seu próprio espaço mental. Durante a constituição de sentido, o leitor põe-se em estado produtivo e passa a constituir-se, na medida em que constitui uma realidade que lhe é estranha.
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ISER, 1999. Pg. 53
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Após o ato da leitura, o leitor encontra-se em uma posição que é posterior ao que lhe é familiar. O mundo vivido então se apresenta de forma estranhamente nova e clama por novas representações. O que somos transmuta-se em horizonte e um outro Eu apresenta-se como tema a ser representado. É nesta conjugação entre o antigo – o já estabelecido – e o nupérrimo que se abrigam as forças da recriação. A informação recém absorvida ganha forma no primeiro plano, enquanto o repertório é revisitado, ganhando nova vida, ao fundo. Ao deglutir as posições manifestas no texto, ao transformá-las, ao questioná-las, somos induzidos a descobrir a condicionalidade daquilo que nos é familiar e passamos a uma posição crítica com relação a nós mesmos e ao mundo que nos cerca. Ao passarmos a perceber as normas e regras a que estamos submetidos como tais, abrimos um novo leque de oportunidades de adquirir consciência do meio PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
em que estamos envolvidos. Expondo as estruturas e mecanismos intrínsecos das linguagens, como por exemplo em um cinema retórico, passamos a discutir procedimentos e padrões. Assim, podemos, após o ato de leitura, retornarmos à empiria com questionamentos e contestações, provindos da descoberta de que o mundo é uma realidade passível de observação e não um dado estático e indiscutível. Provocado, instigado, o leitor é compelido a sair de uma posição inerte, de pura absorção e inquestionável arrebatamento diante das verdades expostas, e passa a ser peça fundamental na construção de sentidos. Interpretando e representando, atualiza o texto de forma particular, criando terreno para suas próprias experiências. Neste momento turvam-se os limites entre produtor e leitor e na interação todos se configuram como autores. Possibilidade desafiadora e, por vezes, incômoda, que nem sempre encontra reverberação por parte das audiências médias, já habituadas à preguiçosa tarefa de manejar somente textos de prazer. Afastar-se de representações que já foram formadas muitas e muitas vezes é empreitada de risco, já que nos defrontaremos com o desconhecido. Porém, esta é a única maneira de criarmos campo para o surgimento das novas representações. A experiência estética – vivência transformadora a partir da arte e da cultura – acontece na medida em que os textos empurram seus leitores a transfigurar o que lhes é familiar. Ao formatar o objeto estético, mediante ao que Iser chamou de
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a emoção original59, o leitor degusta um acontecimento que mina o já sabido. Tomando consciência de uma alteridade interior, formulamos o não-formulado e descobrimos o que até esse momento parecia subtrair-se à nossa existência. A representação protelada não só se opõe à nossa inclinação habitual de degradar os conhecimentos apresentados ou evocados. Além de nos obrigar a reagir a nossos produtos, ela nos induz a representar o que pelo conhecimento era encoberto, ou seja, a descobrir no conhecimento o que não podíamos ver enquanto dominava a perspectiva habitual que controlava os nossos conhecimentos. A dificultação da representação acaba por separar o leitor de disposições familiares, dando-lhe a possibilidade de imaginar o que talvez parecia inimaginável em face da determinação que dominava seus padrões até esse momento. (ISER, 1999. Pg. 136)
Imergindo em diferentes universos ficcionais, ou mesmo compartilhando de novos pontos de vista com relação à empiria, o leitor experimenta o pensar de um
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outro. Ao abandonar, por um certo tempo, suas disposições individuais, passa a se ocupar de algo que não se enquadrava no horizonte de suas experiências. A incorporação deste novo que surge em ato acontece ao mesmo tempo em que a consciência começa a assumir uma nova forma. Isso não quer dizer que abandonamos por completo o que éramos, mas sim que as nossas experiências e critérios anteriores passam a interagir com a presença não-familiar do texto. “A nova presença somente é estranha enquanto a experiência, relegada ao passado durante a leitura, permanece o que era quando principiamos a leitura”60. São as experiências de estranhamento que disparam os processos de reformulação. No ato de apreensão do não-dito, do não-formulado, não são todas as disposições do legente que são evocadas, somente certas facetas e regiões entram em atividade. Cada texto, então, desperta distintas áreas do repertório, distanciando o leitor de suas orientações dominantes, assim, agindo de forma retroativa sobre o acervo mental de cada sujeito. A fruição somente é bem sucedida quando formula algo no leitor, que, através dos lugares vazios, é induzido a agir no texto. Ou seja, é ao tangenciar os limites da linguagem que a arte e a cultura podem pôr em ação forças transformadoras e singularizantes.
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ISER, 1999. Pg. 113
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ISER, 1999. Pg. 05
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Mecanismos provocativos “O prazer do texto vem evidentemente de certas rupturas.”61 Roland Barthes
Muitas são as estratégias e mecanismos possíveis a serem utilizados no intuito de perfurar a estrutura textual com vazados e rasgos de sentido. Subverter a percepção rotineira das coisas faz com que o leitor se coloque em estado produtivo. Vazios, estranhamentos, deslizes semânticos, figuras de linguagem, expedientes que evitam o dizer e se realizam ao sugerir. Os lugares vazios62 – lacunas que marcam enclaves no texto – demandam PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
ser preenchidos pelo leitor no ato de representação. A partir de paisagens semânticas móveis e acidentadas, de significados em devir, provoca-se o descontrole e a imprevisibilidade no ato de leitura, que coloca em jogo as possibilidades de cada sujeito. Provocados a participarem do processo de significação, os leitores são levados a imaginar o não-dito, povoando-o com suas projeções. Enfim, completar as indeterminações do texto significa tomar atitude, o que transforma o texto em experiência para o leitor. “Com efeito, os lugares vazios de um sistema se caracterizam pelo fato de não poderem ser ocupados pelo próprio sistema, mas apenas por outro”63, daí advém a necessidade de se estimular a constituição de repertórios que habilitem o trabalho mental dos indivíduos. As rupturas, as quebras de expectativa, as fragmentações de padrões familiares, interrompem a coerência do texto, transformando-se em estímulo para a formação de novas representações. Suspendendo o fluxo contínuo de leitura, os textos de fruição podem fomentar o conhecimento no momento em que impulsionam a imaginação a representar o que parece encoberto.
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BARTHES, 2002. Pg. 11
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ISER, 1999.
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ISER, 1999. Pg. 107
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Os vãos encontrados entre os segmentos textuais, assim como os cortes entre as imagens cinematográficas, suspendem a conectabilidade, abrindo uma multiplicidade de combinatórias factíveis, tornando a escolha uma decisão seletiva por parte do leitor. Obviamente, ao serem elaboradas respeitando os limites impostos pela linguagem clássica, hegemônica, as relações possíveis entre um plano e outro dentro de um filme são apenas realizadas por uma audiência que, imbuída dos códigos – mesmo que não consciente deles –, não é despertada de sua baixa motricidade imaginativa. Somente as obras que buscam a polissemia e a desfamiliarização, expondo seus exercícios de linguagem, fazem colidir as representações, difi-
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cultando o desenho de uma forma constituída e rígida para suas apreensões. A dificultação de representações faz com que abandonemos representações formadas, ocupamos uma posição contrária a nossos próprios produtos; criamos então representações que não teríamos produzido se os nossos hábitos familiares ainda fossem determinantes. (ISER, 1999. Pg. 134)
Não gerando a satisfação de expectativas, mas sim a sua modificação constante, as obras autorais promovem a formulação. Assim sendo, no processo de leitura interagem expectativas modificadas e lembranças transformadas. A realidade se vê em xeque diante dos olhos do leitor, que através da arte passa a reconhecer o mundo a partir de novos complementos gerados por experiências vicárias proporcionadas pela ficção. Todavia, nem sempre são explícitas as determinações de um texto e, muitas vezes, significados aparentes disfarçam conteúdos mascarados. Trabalhando em distintos níveis de significado, tais obras possibilitam deslizes semânticos que trazem dinâmica à estrutura textual. Cada representação formada é abandonada ao reagirmos a um novo estímulo, que se mostra condicionado pelo segmento anterior. Os significados vão sendo compostos no processo de apreensão, encadeando informações, que se retro-modificam, e cancelamentos, que trazem indeterminação. Como já foi dito anteriormente, são o repertório e as subjetividades de cada sujeito que lhe dão, ou não, capacidade de penetrar nos significados mais ou menos profundos de cada obra.
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Expandindo as possibilidades semânticas da linguagem, a utilização de figuras como a metáfora, a alegoria ou o pleonasmo, provocam, a partir de analogias, contraposições ou cotejos, novas representações. Colocando lado a lado figurações que aparentemente parecem não se concatenar, por exemplo, as metáforas requerem do leitor o estabelecimento de uma semelhança entre os segmentos que formam o sentido figurado. Ao abrir um sem número de possíveis combinatórias entre os elementos de linguagem, potencializamos o manipular de nossos repertórios, que ganham novo viço no recombinar de seus componentes.
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O leitor deve então descobrir equivalência para os segmentos textuais e ao mesmo tempo formular um padrão para a avaliação e para a própria atitude. Numa só palavra: enquanto pano de fundo cancelado de procedimentos esperados, os lugares vazios liberam no leitor uma crescente produtividade; esta se expressa no fato de que com cada relação realizada o leitor deve produzir também o código para apreendêla. (ISER, 1999. Pg. 167)
Tendo acervos digitais disponibilizados pela rede internacional de computadores e a pulsão pós-moderna de recombinar e ressignificar, os produtores de textos, atualmente, dispõem de uma condição privilegiada ao lidarem com as possibilidades de exploração da linguagem audiovisual – assim como em outras áreas da produção cultural. As novas caligrafias de edição, provindas da aproximação nãolinear com o material, constantemente evocam procedimentos esperados para, logo em seguida, transformá-los em lugares vazios. Ao negar expectativas geradas durante o ato de leitura, cancelando o conhecimento prévio do leitor, as negações do texto64 suspendem as certezas e retransformam o repertório em conhecimento virtual a ser atualizado. Os blocos de conhecimento, assim como as normas selecionadas no acervo mental do indivíduo, perdem sua validade momentaneamente. O efeito de negação problematiza o acesso que o legente tem a suas próprias expectativas. Procedimentos negativos infligem lacunas em regiões da linguagem que, de início, pareciam conhecidas para o leitor. Matrizes de uma produtividade despertada, não deixam de fazer parte da estrutura textual; assim, ainda impõem certos limites à apreensão em curso.
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Os fenômenos decorrentes de experiências de linguagem, observados neste capítulo, são imensuráveis, portanto não possuem escala ou instrumental que os meça. Sendo assim, variáveis tão diversas quanto a pluralidade humana, necessitam de trabalho constante e duradouro para fazer com que seus efeitos sejam observados. No entanto, dependendo da qualidade do texto, podem contaminar com seus germes mesmo nos primeiros contatos. A cultura e a arte, difundidas através da educação, são as bases para a construção de um terceiro milênio mais equânime e justo socialmente. Para que a fruição de textos instigantes possa prover acontecimentos geradores de experiência, de conhecimento, se faz necessária uma prática que externe pontos de vista criativos através de suas obras. Uma prática que possa dar voz às abstrações da teoria e às fantasias da ficção, orientando seus passos para um norte PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
autoral e artístico. A prática audiovisual, renovada pelo surgimento das novas tecnologias digitais, pode dar vazão a aventuras independentes. Veículos de linguagem, as imagens podem, conjugadas com o som, esgarçar os limites que as contornam e operar a re-formação dos sujeitos.
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ISER, 1999.
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4 O Microcinema como prática Uma visão a partir do design.
Pequenas equipes, orçamento reduzido, idéias a serem exploradas, pluralização dos meios de exibição. A nova ordem visual, trazida pela imagem numérica, reordena as estruturas de produção audiovisual. Ao reavaliar cada uma de suas células, elementos e processos, demandam novos atores. A luta por uma vertente autoral, que se estende desde as primeiras disputas pelo mercado cinematográfico, se revigora com as novas tecnologias e a Internet, dando ênfase a uma produção
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libertária. O vídeo-digital traz diferentes abordagens para a construção do espaço imagético. Os novos sistemas introduzem um poder de manipulação que, se já era factível, hoje tornou-se muito mais acessível e barato, o que implica alterações nas relações econômicas e mercadológicas. O Design, como campo produtor de imagens, também sofre as reverberações da onda digital. São crescentes as possibilidades de inserção do designer em quadros que lidam com representações numéricas. O cinema e o vídeo vêm, dia após dia, aderindo cada vez mais à computação gráfica – instrumental tecnológico já corrente na prática do design. A reorganização dos modos de produção abre espaços e gera a necessidade de um personagem apto a compor e manipular imagens digitais. Um novo universo estético vem surgindo, potencializando preceitos pósmodernos. A utilização do passado como pastiche, das misturas e reapropriações, potencializa-se com o acesso digital à informação corrente em bancos de dados dispostos pela rede. Um pós-cinema, máquinas semióticas, sintetizadores imagéticos: esse é um panorama que apresenta questões a serem averiguadas por teóricos e práticos. O Design configura-se como parte interessada a compor um olhar crítico sobre esta nova realidade de atuações.
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Imiscuído no processo artístico da criação cinematográfica, o Design vai trabalhar na tríplice fronteira entre cultura/estética, técnica/tecnologia e produção/mercado, colaborando para dar forma a obras de veio autoral e de circulação independente. A arte não consiste mais, aqui, em compor uma ‘mensagem’, mas em maquinar um dispositivo que permita à parte ainda muda da criatividade cósmica fazer ouvir seu próprio canto. Um novo tipo de artista aparece, que não conta mais história. É um arquiteto do espaço dos acontecimentos, um engenheiro de mundos para bilhões de histórias por vir. Ele esculpe o virtual. (LÉVY, 1996. Pg. 149)
Ao atualizar propostas cinemanovístas, mesmo inadvertidamente, através da prática digital, o Microcinema encontra espaço para aliar discurso e imagens em agenciamentos criativos. Desconstruindo procedimentos, na tentativa de transcenPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
der os contornos de origem, invoca novas vanguardas. As figurações telemáticas podem, juntamente com outras frentes de ação, promover a retomada da arte como ação. Podem fornecer energia motriz para o caminhar na direção de um viver que abrigue as expressões singulares e as propostas coletivas em um só corpo social. Para tanto, necessitam expor as entranhas da linguagem, rompendo criticamente com seus limites e promovendo vazios na compreensão sedimentada. A partir desse ponto de vista, a arquitetura e o design pós-modernos podem representar um novo elemento de ruptura e, contraditoriamente, enquadrar-se num processo de crítica. Mas essa crítica não se pode centrar em objetos, pois se o fizer estará regida por um conceito de tempo linear, de sucessão. A idéia de combinação, conjunção, dispersão e reunião de linguagens, espaços e tempos parece mais atraente. Ao discurso da inclusão, que rapidamente parece perder sua "utilidade", podese opor um discurso de conjugação, possibilidade amplamente visível na moderna indústria, que, ao mesmo tempo, não excluiria os fenômenos antes omitidos pelo próprio Movimento Moderno. Essa proposta não deixa de ser uma retomada de algo perdido na afirmação da modernidade ocidental e de algo contido também nos Grandes Racionalismos: a possibilidade de se estabelecerem formas de pensamento e de criação mais livres, mais acessíveis e menos sofisticadas, que incluam espectador, usuário ou consumidor - como se queira chamar o cidadão -, como elemento ativo e participante no projeto. (SOUZA, 2000. Pg. 79)
Neste capítulo pretendo, a partir de uma específica noção de design, observar quais são as prováveis inserções, e contribuições, do designer na produção audiovisual. Flagrar a criação digital em curso. Prover exemplos da conjugação de artifícios de linguagem com as novas tecnologias. Obras, que já tendo sido veicu-
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ladas, demonstram um novo manejar da prática audiovisual, autorizando intenções políticas na aproximação com este novo arsenal. No entanto, o puro diletantismo seria insuficiente e inoperante na sedimentação de um campo para expressões audiovisuais que fujam ao hegemônico, e exaustivo, exercício do plano e contraplano encontrado em novelas e títulos americanos, em geral.
4.1. Desígnios, interfaces e inserções
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“Com a dispersão de sentidos e a fragmentação de identidades coletivas, não é somente a autoridade da tradição que vai a pique; também se perdem as âncoras que permitem viver o presente não como instante, ao qual se seguirá outro instante que também chamaremos de ‘presente’, mas sim como projeto.” Beatriz Sarlo65 “Se existe um país carente de sistemas de organização coletiva, de clareza na difusão de informações, de planejamento estratégico da produção, de soluções criativas para problemas aparentemente insuperáveis – enfim, de projeto – este país é o Brasil.” Rafael Cardoso Denis66
Implicados em um presente que nos consome, estamos despidos de futuro. Sem o salutar exercício da formação de utopias e sonhos, trafegamos cerceados pelo imediatismo corrosivo, que faz com que a recordação se turve e a projeção se impossibilite. A volatilidade das posições – sejam elas econômicas, sociais ou até mesmo culturais – dificulta planejamentos ao longo do tempo. Para que haja projeto deve haver tempo para o seu desenvolvimento, aprimoramento e execução. Para que haja projeto deve haver futuro. A fabulação – exercício que extrapola os limites do seu próprio momento – é faculdade que vai adormecendo, embalada por uma cultura de massa, que em grande parte vê o Design apenas como atividade cosmética. Ao fixarmos um ponto na distância temporal, desenhamos caminhos, objetivos ao longe, que servirão
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SARLO, 2000. Pg. 178
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DENIS, 2000. Pg. 223
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de guia para nossas ações. Sem isso, vagueamos errantes, vivendo cada instante como primeiro e único. Democratizar os acessos à informação, e, principalmente, habilitar as pessoas a lidarem com seu conteúdo, pode servir como objetivo a ser alcançado. O Microcinema se movimenta gerando acontecimentos. Cooperando na formatação de textos de fruição, o designer pode se estabelecer como mais um agente transformador. Embebido nas características do seu tempo, imbuído de seus poderes e quereres, pode encontrar no audiovisual mais um campo fértil para o seu exercício.
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Designer, o especialista em problemas de interface “o design pressupõe uma nova forma de feitura e fruição de objetos e informações. Pressupõe, também, uma nova estética.”67 Ana Luisa Escorel
A digitalização em curso de meios de produção, acesso e fruição, de imagens e informações, dá forma a um novo arquétipo de ação. Sendo um campo que sofre diretamente o impacto da mudança de paradigma tecnológico, o Design encontra na superfície fílmica novos espaços a compor. Contudo, com qual expertise contribuirá tão diversa ocupação? Objeto de difícil definição, o Design já foi, historicamente, muitas vezes definido. No entanto, os limites desta atividade acompanham a evolução das tecnologias e muitas são as novas conexões que vão sendo estabelecidas. Muitos são os novos espaços a serem ocupados pelo designer. Descrito classicamente como a prática de elaborar, a partir de projeto, artefatos a serem reproduzidos por meios mecânicos, industriais, o Design já encontra-se desconfortável dentro de tais fronteiras. As novas tecnologias problematizam sobremaneira questões como a reprodutibilidade, o uso. Elaborar o projeto gráfico, pensar a estrutura de navegação, enfim, formatar páginas para a Internet é
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ESCOREL, 2000. Pg. 111
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ofício que revitalizou toda área de projetos gráficos dentro do Design. No entanto, o produto gerado não se comporta como matriz a ser reproduzida; o arquivo digital gerado é único, ficando hospedado em um provedor e sendo acessado inúmeras vezes por seus usuários. Assim está colocado o desconforto em se adequar novas atividades da profissão com a definição previamente apresentada. Observa-se – como coloca Rafael Cardoso Denis em sua Introdução à história do design68 – já nas raízes etimológicas da palavra design, que sua função transcende em muito o que transparece na denominação “Desenho Industrial”, freqüentemente utilizada em muitos países. O substantivo design vem imediatamente do inglês, dando a idéia de plano, desígnio, intenção – é possível referir-se a um design do universo, ao design de um carro ou a um design urbano. Originalmente, a palavra vem do latim designare, verbo que traduz designar e desePUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
nhar. Portanto, já em sua origem fica registrada a ambigüidade entre a realização prática do formar, do traçar, e o aspecto abstrato do conceber e do planejar. Assim, o design opera a conjugação entre esses dois aspectos, dando forma material a abstrações e idéias. Desta forma, o designer apresenta-se como personagem apto a reconhecer, isolar & relacionar, definir e resolver problemas. Partindo metodicamente do processo projetual, leva em consideração as tecnologias disponíveis, o contexto em que determinado artefato será inserido e os elementos estéticos que lhe darão harmonia visual e ergonômica. Um profissional habilitado a colocar-se como interlocutor nos processos de produção. Consciente de todo o percurso de realização, dotado de uma visão multidisciplinar, o designer é um generalista que contribui com seu caráter de planejador, com sua visão sistêmica dos processos de produção. Ao mesmo tempo, é um especialista que executa certas etapas da produção; sempre transladando entre a visão ampla e o foco específico. Trabalhando na interseção entre as ciências e a arte, a intuição e a razão, o cultural e o técnico, são as interfaces69 seu campo de ação. Fica nítida esta idéia ao compreendemos, por
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DENIS, 2000
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Dispositivo físico ou lógico que faz a adaptação entre dois sistemas, de acordo com o di-
cionário Aurélio Eletrônico Século XXI, v. 3.0.
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exemplo, que um cartaz é a interface entre seu conteúdo e seu público alvo; da mesma forma, um objeto pode ser considerado a interface entre seu usuário e sua própria função. Assim, é a partir do entendimento do design como método para a abordagem de problemas de interface, que se lança o olhar sobre a produção audiovisual digital neste capítulo. Tendo como sua principal matéria-prima o imaginário – disponibilizado pelas culturas locais e globais, pelas relações sociais, em constante modulação a partir dos processos de subjetivação –, o designer abraça questões relativas à identidade, à imagem, ao acesso, à interação, nas mais diversas escalas. Permeando todos os procedimentos com sua capacidade criativa, arma-se da disciplina do projeto e das incertezas da invenção.
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Configurando objetos de uso e sistemas de informação, o designer pode colocar-se como agente a questionar, ou a confirmar, a cultura da sociedade em que está inserido, assim esquivando-se das aplicações meramente cosméticas do seu trabalho. Envolto em uma ação que é ao mesmo tempo interpretadora e criadora, encontra diversas formas e suportes para sua expressão. Sendo imagens e sons as matérias a intermediarem o ato comunicativo do cinema, é exatamente nesta seara que pode contribuir o design, ao mesmo tempo em que amplia seu campo de ação. A cooperação na construção formal de audiovisuais aproxima designers e cineastas. O estabelecimento de um diálogo vivo e fértil pode fazer surgirem novas e distintas aproximações com a realização audiovisual. (...) coisa que se impõem ao nosso conhecimento racional é a constatação de que, na arte, como tomada de consciência do ser humano por ele mesmo, no plano da apreensão sensível do real, não bastam as sensações, os sentimentos e as paixões: tão imprescindível quanto esses ingredientes, tão essencial como eles, é a forma. (KONDER, 2002. Pg. 214)
A computação gráfica vem ampliando as possibilidades de atuação de designers ao redor do mundo. Assim como no advento da impressão mecânica, no surgimento da fotografia, do cinema e da TV, e em outros momentos de inovação tecnológica, as atividades artísticas e de produção de informação sofrem alterações em seu próprio bojo.
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Se cotejarmos as ferramentas de trabalho utilizadas atualmente por designers – como processadores de imagem estática, geradores de ambientes tridimensionais, softwares de composição – com as necessidades inerentes ao processo de finalização70 de audiovisuais, observaremos que o designer é o profissional talhado para exercer as atividades de manipulação da imagem digital. O tempo é peça chave para essa transposição de possibilidades – das obras estáticas para as cinéticas. É a inserção da variante tempo que difere a execução de um folder, por exemplo, da de uma peça comunicacional animada, como uma vinheta. Ao domar o tempo, o designer pode se inserir em uma produção que busca nos estímulos auditivos e visuais sua forma de intermediação, sendo diversos os espaços a surgirem
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para o seu exercício. O terreno em que se forja a imagem, por sua vez, é o terreno dos significados, dos valores simbólicos, das associações construídas a partir de dados culturais e, portanto, o terreno por excelência do designer, esse profissional eminentemente contemporâneo, especialista em questões de comunicação. (ESCOREL, 2000. Pg. 59)
Devido às características que vêm sendo descritas, é possível vislumbrarmos duas frentes de colaboração para a atividade do design na produção do Microcinema. Dois mirantes de onde o designer pode exercer sua ação crítica e construtiva. Duas formas de inserção. Uma primeira horizontal, em que o designer colocase como interlocutor do processo de realização, contribuindo com sua capacidade de planejamento. E uma segunda vertical, quando ele próprio se insere como executor de tarefas específicas dentro da produção audiovisual.
Inserções: Horizontal e Vertical Dentro da proposta de produção de obras autorais, fica clara a prevalência da fala do diretor. Quem dirige é ao mesmo tempo: disparador dos processos de criação e intermediador das instâncias ou etapas de realização. Perpassando todo o decurso da produção, desde a escolha ou elaboração do roteiro, até a definição das estratégias de lançamento, o diretor é quem orienta todos os profissionais envolvi-
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Etapa final da realização audiovisual, que será esmiuçada no segmento 4.2.
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dos, na intenção de concatenar as muitas variáveis incluídas na feitura cinematográfica. Por exemplo, são do diretor definições cruciais que dizem respeito à decupagem das cenas, à escolha das locações, às características gerais da fotografia, à deliberação de uma caligrafia de edição. Deriva diretamente do diretor o impulso artístico encontrado em um filme realizado dentro de moldes independentes. O designer vem colaborar com sua possibilidade de compreender todo o processo de forma longitudinal, podendo servir como mediador entre diferentes esferas, co-formando um mesmo vetor expressivo a partir de todas elas. A inserção horizontal do designer na produção audiovisual, colaborando como planejador, como interlocutor, entre as etapas de constituição das imagens e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
áudios71, não rivaliza com a ação do diretor. Diferentemente do diretor, o designer não define o caráter das obras, mas trabalha em prol de uma coerência entre as diversas linguagens exploradas no cinema e a intenção artística exposta pelo autor. Equacionando fatores tecnológicos, estéticos e econômicos, o designer busca atender às demandas de uma determinada produção, fazendo com que aquele conjunto de relações estabelecidas exprima somente aquele sistema de informação, nenhum outro mais. Enquadrar expressões artísticas dentro de limites financeiros, considerando os recursos tecnológicos disponíveis, é tarefa premente quando estamos falando de obras que se valem de baixo orçamento e do uso de ferramental de ponta, na tentativa de se alargarem os limites impostos pela linguagem. De fato, para poder exercer com equilíbrio sua função, o designer de maneira geral, o designer gráfico em particular não deve esquecer que é um elo na cadeia que vai da fabricação ao uso do produto e que, portanto, as questões relativas à viabilidade
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Hoje, encontramos profissionais que se intitulam sound designers. No entanto, esta dis-
sertação trata exclusivamente dos processos de elaboração da imagen. Assim, fica aberto no campo acadêmico o espaço para que outros tratem desta ligação entre o design e o desenho sonoro de peças audiovisuais.
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econômica, tecnológica e prática de seu projeto devem ser tão relevantes para ele quanto as questões relativas à linguagem. (ESCOREL, 2000. Pg. 25)
Definir, por exemplo, se determinada produção deve ou não partir para o uso de câmeras mais sofisticadas e caras, é decisão a ser tomada em conjunto pelo diretor, que determina o partido estético apropriado, pelo fotógrafo, que traz a experiência da prática e a fala sobre viabilidades de realização, e pelo designer, que visualiza quais os possíveis efeitos de certa decisão sobre outras frentes de execução. Na prática, se um filme for rodado em suporte digital e sua cópia final for em preto&branco, é quase imperceptível a diferença entre o registro feito por uma câmera de um ou de três CCDs. No entanto, o aluguel, ou mesmo a compra, de uma ou outra câmera demanda distintos graus de investimento, ou de comprometimento de parte do orçamento, além de influenciar diferentes níveis de acabamenPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
to para figurino e cenografia. Figuras como a do diretor de arte, ou do production designer, são empregadas em muitos filmes de médio e/ou grande aporte financeiro. Responsável por dar materialidade às intenções do diretor, este profissional trabalha em conjunto com figurinistas, produtores, cenógrafos, fotógrafos, pessoal de efeitos especiais, editores, compreendendo todos os aspectos da realização cinematográfica, dentro de um contínuo de inter-relações. Contudo, as obras de baixo orçamento, muitas das vezes, não podem contar com este personagem, que interliga os vários fatores da expressão audiovisual. A falta de estruturação faz com que conceitos, determinações, idéias prévias, vão se esvaindo frente às circunstâncias e dificuldades da realização. Não dispondo de um agente que faça com que as premissas estruturais perpassem todas as esferas envolvidas, é muito o que se perde. Se cada etapa da realização for estanque, muda, corre-se o risco da elevação dos custos, da falta de clareza expressiva72, do não encadeamento das linguagens. Enfim, falhas e desgastes podem ir se somando, na medida em que caminha o projeto.
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Mesmo a confusão dos sentidos e conteúdos é um partido a ser tomado conscientemente,
pois se as ambigüidades e incertezas vierem da falta de habilidade daqueles que produzem, as obras não conseguirão comunicar o que deseja o autor.
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Já participando isoladamente de certas etapas da produção audiovisual, os designers podem ampliar seu campo de ação, promovendo o design como método. No momento em que, para reduzir custos, várias ocupações vão sendo deixadas de lado e profissionais vão acumulando funções dentro das produções audiovisuais, o designer pode encontrar novos espaços para sua atividade. Especialista multidisciplinar em questões de identidade, pode oferecer a possibilidade de prover de coerência visual toda uma produção – desde a tipografia utilizada no cartaz de lançamento, passando pela paleta de cores encontrada nas cenas, até a navegação dentro do sítio promocional de um filme. É crescente o uso expressivo dado à tipografia nos meios audiovisuais digitais. A familiaridade em lidar com famílias tipográficas, espaçamentos e caracteres, mais uma vez aproxima o designer desta produção. As referências vão se enPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
trecruzando. Impressos sugerem movimentos, enquanto vinhetas e chamadas televisivas, apresentam telas diagramadas, invadidas por elementos gráficos. Muitos são os designers que hoje produzem artefatos a serem empregados na produção audiovisual. Desde a elaboração dos books para a captação de recursos, no momento da pré-produção, até as cartelas de créditos finais de um vídeo, o Design vem servindo a este nicho de mercado, abastecido por um senso estético que abrange a pragmática da execução e a liberdade da criação. (…) estética é uma ferramenta, uma das mais importantes no repertório do designer, que auxilia na formatação das formas e cores em entidades que nos sensibilizam, nos questionam, sendo bonitas, excitantes, cheias de deleites e significados.73 (PAPANEK, 1984. Pg. 22)
O designer se insere verticalmente numa produção no instante em que fecha seu foco de visão, deixando de lado uma compreensão abrangente, sistêmica, e aproxima sua lida de uma atividade pontual. Quando é ele o executor de determinada etapa do projeto.
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(...) aesthetics is a tool, one of the most important ones in the repertory of the designer, a tool that helps in shaping his forms and colors into entities that move us, please us, and are beautiful, exciting, filled with delight, meaningful.
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Os filmes digitais, não contando com imagens que tenham a mesma qualidade das geradas analogicamente em película 35mm, necessitam de uma cuidadosa etapa de finalização e tratamento. É neste momento que são realizadas superposições, calibragens de contraste, brilho e cor, aplicação de texturas, manipulações temporais. Sendo assim, pode-se dizer que, dentro da produção digital audiovisual, este é o estágio em que as características plurais dos designers podem ser mais bem empregadas. Com isto não digo serem menos relevantes os outros serviços que vêm sendo prestados, porém se existe um profissional que é afeito a esta imersão nos pontos e linhas das imagens cinematográficas, podendo tratá-las como
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se fossem pinceladas sobre uma tela, este personagem é o designer. A imagem digital torna simples algumas operações impensáveis até há pouco tempo em sistemas do tipo fotomecânico: alteração das cores, das texturas, dos movimentos e da perspectiva, inserção de imagens sobre porções e cores desejadas de uma outra imagem, refocagem e reenquadramento da imagem, mesmo após a captação da mesma, entre outras possibilidades. Ressaltamos ainda que, com a televisão digital, as diferentes fases da produção audiovisual – pré-produção, produção e finalização – serão completamente reformuladas. (PARENTE, 1999. Pg. 27)
Já habituado ao uso de computadores para a execução de suas tarefas, o designer vê seus caminhos convergirem com uma produção que vem assumindo a digitalização em várias de suas etapas. A concepção de imagens sintéticas, mais ou menos aderidas ao real, expande as possibilidades de apreciação da realidade, permitindo que autores extrapolem os limites da apresentação, da realização, e se lancem em instigantes peripécias virtualizantes.
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4.2. Finalização “Se o realizador não inventar a imagem, a palavra fica palavra e o filme não nasce.”74 Jean-Claude Bernadet
A maleabilidade e a economia dos sistemas digitais favorecem sua democratização. Os suportes vêm se imbricando, fazendo com que limites clássicos como os da animação, do cinema e do vídeo, se esmaeçam. Não está distante o dia em que toda e qualquer produção audiovisual tenha ao menos uma de suas etapas de realização executada em meio digital.
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Cineastas já vêm monitorando suas filmagens em circuitos de vídeo. Editam seus filmes em ilhas não-lineares, adicionam efeitos digitais e incorporam a estética videográfica em suas obras. Videomakers, por sua vez, filmam em película para posterior finalização eletrônica. Kinescopam75 o produto final, visando à exibição em salas de cinema. Tudo se contamina reciprocamente, fazendo surgir novas regiões de interseção e indefinição. O cinema configurou-se como uma linguagem específica, transitando do campo do entretenimento para o universo artístico. O vídeo sedimentou-se mais por sua contaminação com outros sistemas expressivos do que por uma forte demarcação de identidade própria. A hibridação dos suportes, a convergência dos meios, provocam novas práticas e ampliam possibilidades. Personagens digitais contracenam com atores reais nos muitos títulos lançados pelo mercado norteamericano. Cenários são inteiramente modelados e constituídos em ambientes 3D, para posteriormente comporem, junto com registros do real, as cenas que vão ao ar. O fundo azul ou verde dos chromakeys76 serve como porta dimensional para outras realidades, para outras formas de expressão.
74 BERNADET, 1994. Pg. 23 75 Processo de transferência de vídeo em suporte magnético para película cinematográfica. 76 Técnica em que a imagem é recortada automaticamente pelo computador, que substitui uma determinada freqüência de cor por outra imagem.
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A rocha que voa – título já citado no primeiro capítulo –, através de suas imagens e de sua relação com a linguagem cinematográfica, problematiza a recepção e a relação obra-espectador. Manipulando digitalmente o material captado em diversos suportes – vídeo, película 16mm e Super 8 –, seu autor buscou na experimentação abrir espaços para a construção de significados por parte do espectador, que é convocado a deixar de lado uma postura passiva. Obra polissêmica, de diversas apreciações, constrói de forma poética uma releitura, uma atualização, do potencial transformador do cinema. Uma obra que busca na experimentação gráfica de sua superfície pictórica abrir vazios de sentido, enriquecer o ato comunicativo. Partindo desta mistura, desta tensão entre a memória afetiva e a memória factual, documenta, sem descartar o fascínio dos delírios, fragmentos, rochas, iPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
lhas, constelações, camadas de memória. Tece articulações, apresenta uma realidade que ainda não existe. Manipula a linguagem, o ritmo, no labirinto frenético das recordações, nos contrapontos sensoriais, na montagem, nas texturas. Recria seu próprio repertório iconográfico, intervindo nas cores, luzes e urdiduras. Assim, mais do que simplesmente alterar o suporte da película para o digital, podese perceber que estas mudanças também dizem respeito a formas de trabalho e abordagens estéticas diferenciadas. A nova "cara" do audiovisual caracterizada marcadamente por uma maior possibilidade de manipulação das imagens se manifesta em rearticulações da linguagem e conseqüentemente em novas formas de absorção do conteúdo por parte do espectador. O resultado é um híbrido de linguagens e procedimentos que se contaminam reciprocamente. (BAMBOZZI & JESUS, 2003)
Neste, como em outros filmes, o material imagético teve seu caráter expressivo levado às últimas conseqüências. As entranhas da linguagem expostas ao público não deixam sua artificialidade passar despercebida. Constructos esculpidos nas estações eletrônicas, bit após bit. Artigos que não mais respondem às normas e cronogramas das produções analógicas. Imagens que somente atingiram seu talhe final nas mãos de operadores numéricos, que fizeram deslocar a figuração do momento da captação para o da finalização. Transpostas as imagens captadas no real para a eletrônica, há então um novo momento de criação. Logo, o raciocínio cinematográfico é remodelado e se atualiza mediante o impacto das novas tecnologias.
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Tecnologias de representação Toda a produção de imagem, desde os desenhos rupestres pré-históricos até a modelagem tridimensional de atores, utilizada na série Matrix77, emprega uma determinada tecnologia. Os avanços tecnológicos remanejam as formas de produção em toda sua estrutura e gramática. Além de despertarem novos desejos, conformam novos meios de recepção e incitam novos significados. Contudo, cada mudança de paradigma tecnológico não exclui o anterior, na verdade o revitaliza, o questiona. Cada nova técnica se sobrepõe às anteriores, formando um novo campo de possibilidades. A partir de Lévy, podemos considerar que os aspectos tecnológicos, tanto de confecção como de fruição das imagens virtuais, deslocam-se no eixo possíPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
vel/real. Ao trabalhar com programas de modelagem tridimensional, de manipulação digital da imagem ou de animação vetorial, os produtores de imagem estão sempre cerceados pela limitação dos logaritmos utilizados por tais aplicativos. Mesmo que a combinação de funções e filtros, encontrada em muitos destes programas, tenda ao infinito, suas orquestrações matemáticas encontram-se dentro de um conjunto de operações predefinidas e restritas pelas possibilidades dos softwares e hardwares envolvidos. Assim, o que observamos é um universo de possíveis a se realizarem a partir de escolhas e ações tomadas por quem opera a máquina, seja ela digital, como as citadas acima, seja ela analógica, como um antigo projetor movido à corda. No que diz respeito à apreensão de tais imagens, os aparatos tecnológicos de que fazemos uso também caminham neste mesmo eixo, afinal de contas, por maior que seja um banco de dados, a visualização das imagens disponíveis realiza tão somente uma escolha dentro de um número finito de possibilidades. Mesmo um simples par de óculos – máquina de visualização utilizada como aparato para a fruição de um texto – também só realiza as correções, ou distorções, óticas possíveis a partir de sua fabricação.
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Série de três filmes produzida pela Warner Bros. e dirigida pelos irmãos Andy Wa-
chowski e Larry Wachowski.
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A tecnologia digital, transitando nas estruturas binárias de seus códigos, somente apresenta ao usuário, ou ao produtor, uma quantidade limitada de recursos, assim como também ocorre ao operarmos ferramentas analógicas. Desta forma, não é o uso, ou não, de uma determinada ferramenta que faz com que se escrevam textos de fruição ou de prazer. Esta diferença reside na intenção almejada pelos diferentes autores e não na tecnologia empregada. (...) não se deveria falar de imagens virtuais para qualificar as imagens digitais, mas de imagens possíveis sendo exibidas. O virtual só eclode com a entrada da subjetividade humana no circuito, quando num mesmo movimento surgem a indeterminação de sentido e a propensão do texto em significar, tensão que uma significação, ou seja, uma interpretação, resolverá na leitura. (LÉVY, 1996. Pg. 40)
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Se observarmos o desenvolvimento das máquinas de representação ao longo dos anos é possível concluirmos que as ferramentas numéricas, de manipulação e criação de imagens, reaproximam a representação cinematográfica da pintura, em um movimento em espiral – que permite que ao retornarmos a um mesmo ponto já visitado anteriormente, o observarmos a partir de uma outra ótica, possibilitando, assim, responder a uma nova gama de questões. Philippe Dubois, em A linha Geral (as máquinas de imagens), e Régis Debray, em As três idades do olhar
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, desenvolvem cronologias sobre o progresso
das técnicas de representação. Traçando paralelos entre os dois textos, intento perceber como ao manejar operações tecnológicas entre as possibilidades do instrumental e a realização dos usuários, alteram-se as ênfases nas fases de produção, assim abrindo espaços para a atuação do designer. Dubois estabelece a sua cronologia das máquinas de produção de imagem dividindo a história em cinco fases, a começar pelas máquinas utilizadas pelos pintores do Quattrocento, passando pela fotografia, pelo cinema, pela televisão e o vídeo e, enfim, finalizando suas cinco ordens com as atuais imagens informáticas.
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Capítulo VIII do livro Vida e Morte da Imagem, de 1992.
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Já Debray divide sua cronologia em três momentos, ou midiasferas 79 como prefere chamar. Iniciando com a logosfera, era dos ídolos religiosos, que dura do advento da escrita à criação da imprensa, assim abarcando as máquinas de ordem 1 de Dubois, passa pela grafosfera, era da arte, que se estende até a chegada da televisão a cores e termina na videosfera, era do visual, que é precisamente a época em que vivemos. A portinhola ou a câmera obscura, máquinas de ordem 1 renascentistas, prefiguravam as imagens. Projetando sobre a superfície pictórica algo que o artista desejasse pintar, mas não operando sua inscrição que permanecia por conta da mão humana, dotavam de semelhança e precisão as telas executadas na época. Geravam objetos únicos, materiais, concretos. No entanto, com o surgimento da fotografia em 1839, já na grafosfera, isso se altera. É neste momento que se PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
apresentam, inicialmente, as questões referentes à reprodutibilidade técnica das imagens. O objeto gerado pela fotografia é múltiplo, não cabendo mais pensarmos qual das ampliações de uma foto é a original. Imersos na era da arte, temos como referente principal o real, a natureza a ser representada, mas já filtrada pelas subjetividades daquele que opera a objetiva que registra. Representação mediada pela máquina de ordem 2, que agora inscreve a imagem, demitindo a mão de seu fazer artístico e dando mais importância ao olhar. Longe da semelhança alcançada pela pintura, o que se encontra é um realismo objetivo, trazido pelas reações químicas do nitrato de prata. Imagens-ícone que não pretendem evocar a presença transcendente dos ídolos religiosos, como as imagens-índice da logosfera, mas sim buscam motivar a lembrança pela parte, pela obra. A partir das máquinas de ordem 3, introduz-se a necessidade de maquinário para que se efetue a recepção das imagens geradas por câmeras cinematográficas. Projetores e telas de projeção servem como suporte final das imagens em movimento. Relegado a segundo plano com a fotografia, o sujeito é trazido de volta à luz, mas agora pelo investimento imaginário que este deve fazer ao lidar com as imagens imateriais do cinema. A imagem-movimento só acontece em um momento de ilusão, afinal não existe registro real deste movimento na tira de fotogramas, 79
Vide em anexo as tabelas-resumo das cronologias de Dubois e Debray.
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somente um possível a se realizar mediante uma operação tecnológica e, de certa forma, uma deficiência ótica que possuem os humanos, que não conseguem registrar individualmente as imagens contidas no rolo de filme. Imagem que cativa, traz a assinatura do artista, é reproduzida muitas vezes, mesmo que para cobrir seus altos custos de produção. Gravada, faz com que exista a possibilidade de imersão naquele realismo-tempo quantas vezes se quiser. É com a chegada da TV, máquina de ordem 4, que vemos a passagem para a era do visual, a videosfera. Inicia-se uma fase onde as imagens podem ser transmitidas à distância, ao vivo, imediatas ao acontecimento. Imagens sem passado, realismo da simultaneidade, imateriais e sem registro em suporte. Diferentemente do cinema, não encontramos vestígios, nem marcas legíveis, da existência de imagens no suporte magnético das fitas de vídeo. As imagens da videosfera são soPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
mente processo. Processo analógico até o último quarto do século XX e, depois, processo digital com as imagens informáticas de ordem 5. Na era do visual, a produção de imagens se realiza em computadores, scanners, câmeras numéricas. Máquinas que ou manipulam ou mesmo modelam seu próprio real. Não existe mais, necessariamente, a captura, a inscrição ou a reprodução da realidade, agora trabalha-se na concepção, na simulação. Realismo artificial que serve às grifes, à publicidade, à indústria cinematográfica, criando eventos inimagináveis e, na maioria das vezes, inexeqüíveis para as máquinas das ordens anteriores. Imagens que beiram a abstração, produto de cálculos complicados, substituem a impressão de realidade característica do cinema pela impressão de presença dos simulacros digitais. Imagens auto-referentes, que desprezam o natural, imagens-símbolo. Hoje, já existem filmes totalmente gerados digitalmente, simulações completas – como é o caso de Final Fantasy 80. No entanto, a prática mais corriqueira é a que capta imagens a partir do real, depois as manipula, ou mesmo compõem, antes de irem para as telas. Desta maneira, podemos dizer que as máquinas de ordem 3 e 4, respectivamente cinema e vídeo, passaram a equivaler às tavolettas da 80 Filme produzido pela Columbia Pictures e dirigido por Hironobu Sakaguchi em 2001.
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Renascença, apenas pré-figurando, mesmo que inscrevendo, as imagens que serão realizadas. A captura do real agora aproxima-se da escolha de cores e texturas a serem utilizadas pelo pintor, e não mais ao quadro finalmente realizado. A inscrição fotográfica, ou magnética, é mera obtenção de matéria-prima que posteriormente vai ser trabalhada e transformada pelo computador. Metamorfoses, transgressões, interferências, desarticulações. O registro bruto anunciado pelas câmeras vai se distanciando do produto final. As imagens sintéticas promovem uma ilusão de terceiro grau, ou seja, passam pelo primeiro grau da captação, pelo segundo da manipulação, e, finalmente, alcançam o terceiro no momento de sua apresentação. Diferentemente, o cinema convencional trabalha ilusões de se-
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gundo grau, ainda aderidas ao figurativo. Diferentemente das imagens fotográficas e cinematográficas, resistentes em sua fatalidade figurativa, a imagem eletrônica resulta muito mais flexível e manipulável, como uma massa de moldar. Não por acaso, essas atitudes maleáveis das imagens eletrônicas e digitais possibilitaram à vídeo-arte e à computer art retomarem o espírito transgressivo das vanguardas históricas do século XX e aprofundarem o rompimento com os modelos pictóricos (perspectiva, figuração e as relações homogênicas de tempo e espaço) herdados do Renascimento. (SCOVINO, 2002)
A fita Waking Life serve como exemplo desta proximidade entre o audiovisual digital e a pintura, onde as imagens captadas digitalmente foram sendo privadas de sua realidade após a manipulação digital. Visualmente o que observamos na fita são imagens: flutuantes, hipnóticas, poéticas, fantasiosas, fantasmagóricas. Enquanto uma caricatura de Steven Soderbergh81 discursa, o céu ao fundo muda de cor e a terra movimenta-se. A própria personagem transforma-se, seus contornos tornam-se inconstantes. Em alguns momentos, a tela assemelha-se a um quadro impressionista. Segundos depois, se parece com um painel de Andy Warhol. Logo em seguida, sugere inesperadas referências ao Surrealismo. Já é possível hoje falarmos de pinturas cinematográficas, de um cinema cubista, de narrativas abstratas, de manipulações impressionistas. O filme de Richard Linklater é somente mais uma das cartas a compor este novo leque de alternativas para um cinema que busca novo fôlego na informatização.
81 Diretor cinematográfico.
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A figuração no Microcinema, então, se dá no âmago das máquinas digitais, e não nas engrenagens e mecanismos das câmeras. Atraído por seu lidar com imagens e tecnologias, o designer encontra na etapa de finalização82 seu momento de maior relevância vertical. Munido de seu senso estético, de sua habilidade ao lidar com as ferramentas que se fazem necessárias e compreendendo as limitações econômicas dos projetos, o desenhista industrial pode contribuir com uma nova ótica na concepção dos audiovisuais do Microcinema. Trafegando de um pólo ao outro nos distintos momentos da criação e da apreensão, do real para o possível em seu momento de captação, do possível para o real nas operações de manipulação tecnológica, as experimentações digitais, que cada vez mais descolam da realidade as imagens, ou apenas as mantém aderidas por uma memória de real, conferem novas possibilidades aos produtos audiovisuPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
ais. Irradiados pelos sítios da rede, transmitidos pelas televisões a cabo ou mesmo projetados nas salas de cinema, a expressividade buscada em tais imagens não é decorativa ou cosmética, mas sim provocadora. Estranhamento necessário para que um acontecimento ocorra fomentando o novo, a idéia.
Figurações Digitais “Essas técnicas [de figuração numérica] não podem deixar de interessar artistas à procura de novas experiências e de novas investigações perceptíveis.”83 Edmond Couchot
O vídeo digital, sendo mais maleável, amoldável, aberto às intervenções do artista, do que foram as imagens analógicas, promove atos de invenção, onde a estética e a técnica se confundem em favor da construção de novas e expressivas imagens. As possibilidades trazidas pela informatização da realização audiovisual conferem maior liberdade de expressão e maior controle sobre a criação. A aplica82 Por mais que as imagens estejam sendo concebidas nas telas dos computadores, e não finalizadas como nos moldes de produção tradicionais, este termo diz respeito a uma fase da concepção audiovisual, e não deve ser entendido em estrito senso. 83
COUCHOT In PARENTE, 1999. Pg. 45
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ção de filtros e efeitos acontece em tempo real e, assim, o processo de tratamento das imagens torna-se mais dinâmico, fazendo nascer uma forma própria de pensar e modelar o tempo, o espaço e o movimento. A voga atual consiste em dissolver a imagem, em privilegiar soluções não lineares de organização do texto, em camuflar a informação principal, despistando o entendimento através de uma excessiva valorização do arbitrário. (ESCOREL, 2000. Pg. 19)
As imagens sintetizadas por maquinário numérico, além de se constituírem como um tipo específico de expressão, são novos meios para perceber e interpretar o mundo que nos cerca. Afinal, o grande gol das tecnologias digitais não é o da simulação fiel da realidade, mas sim o de comunicar novos e diferentes pontos de
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vista sobre o real. As questões de elaboração e fruição estética se movem no eixo virtual/atual, segundo as idéias de Lévy. Ao utilizar ferramentas de construção imagética, o produtor enquadra esteticamente os conteúdos de sua obra, atualizando um sem número de percepções e subjetividades, sempre móveis e em construção, para assim dar forma a sua expressão. Deste ponto de vista, cada um de nós se aproximará das ferramentas disponíveis de forma distinta, explorando sua utilização de forma pessoal e única, de acordo com o caldo cultural ao qual estivermos expostos. Desta maneira, o que acontece é apenas uma, e somente uma, atualização dentro das virtualmente infinitas variações de combinatórias, ou seja, mesmo tendo em mãos o mais simples dos instrumentos, cada um de nós fará exclusivo uso de suas finalidades. O momento da fruição também mostra-se único, afinal "pode-se dizer que um ato de leitura é uma atualização das significações de um texto, atualização e não realização, já que a interpretação comporta uma parte não eliminável de criação."84 São muito variados os fatores que moldam o ato da recepção. Fatores intrínsecos do sujeito, como suas pré-disposições, sua índole e temperamento, além de fatores externos, como o momento da fruição, o contexto em que ela se dá e mesmo sua posição geográfico-espacial.
84 Lévy, 1996. Pg.41
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As alterações cognitivas das imagens dão espaço a figurações poéticas, autorizando novos desejos. As intervenções cromáticas, o manejo da velocidade e do tempo como elementos expressivos, os ruídos provocados, buscam um elastecimento do sentido e provocam suspensões na compreensão. Os audiovisuais redigidos pelo Microcinema podem, ao povoar de estranhamentos óticos suas mensagens, fazer com que seus textos aproximem-se qualitativamente da fruição, deixando de lado o seu caráter de prazer. Com os diversos tratamentos de imagem, o texto sugere outros vazios e conexões, em diferentes camadas de apreensão, que não as da narrativa ou do conteúdo dramático. Contra o processo de automação das percepções, protelando a formação de sentido, o Microcinema vê nas alegorias, nas metáforas, nas repetições, hipérboles PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
e elipses, enfim, nas figuras de retórica, fonte para o despertar das consciências criativas. Ao manejar formas e cores, ao expandir o universo de compreensão, ao expor a artificialidade de sua retórica, esta produção abandona a janela albertiana límpida e translúcida, para assumir a intervenção como hábito. Livre do figurativismo massivo da produção hegemônica, o cinema digital pode exercer um expressionismo cibernético, moldado pelas características de seu tempo e pelas premências em questão. (...) o processo de captura do real se dará por construção de conceitos e imagens, por uma ‘escritura’ de suas possibilidades de intervenção na sua estrutura. Os efeitos de edição, a adição de filters, o uso de colagem, as dissoluções de figuras e as inserções de textos nas imagens não são, de maneira alguma, um processo decorativo; constituem, por assim dizer, elementos de articulação da imagem como sistema de expressão. (SCOVINO, 2002)
Trabalhando com uma multiplicidade de imagens que fazem referência imediata à estética dos quadrinhos e videojogos, o filme Corra Lola Corra, do realizador alemão Tom Tykwer, realizado em 1998, mostra-se como uma interessante amostra da união entre tratamento imagético e experimentos de linguagem. Abordando como suas questões centrais o tempo e o determinismo, o diretor explora dialeticamente uma estrutura tripartida, onde as possibilidades da vida, do jogo e do próprio cinema, são colocadas em pauta.
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Obra lúdica, ágil, por vezes surpreendente, esta fita discorre, a partir de pressupostos filosóficos, sobre a voracidade do tempo, que a todos sorve. Como escapar dele é, exatamente, o problema metafísico a ser resolvido por Lola, nossa protagonista. Lola tem 20 minutos para arrumar 100.000,00 marcos alemães para salvar a vida de seu namorado Manni, que acaba de envolver-se em sérios problemas com traficantes que desejam lhe matar. Como em um jogo: perde-se e ganha-se. No entanto, se a vitória não for alcançada na primeira tentativa, por que não uma segunda chance? O filme se desenrola em três rounds, três linhas temporais que correm em paralelo, unindo-se em um ponto de fuga temporal. Cada round é superado pelo anterior na medida em que Lola vai aprendendo a partir de cada uma das experiências por que passa. Uma espiral dialética que comporta três situações correlatas faz com que a persoPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
nagem passe por inusitado tirocínio, somente possível dentro dos limites fantásticos do Cinema. No primeiro round: a tese, Lola morre. No segundo: a antítese, Manni morre. Finalmente, no terceiro: a síntese, ambos escapam e vivem feliz para sempre, como em um conto de fadas – outra das referências de Tykwer. Relógios estão por todo lado, sublinhando imageticamente os conceitos explorados pelo diretor. Lola está imersa em uma prisão temporal, cíclica e repetitiva, determinada. Outros ícones também são utilizados para reforçar a idéia do ciclo temporal a ser vencido por Lola: a roleta, a espiral, a fila de dominós. Diversos recursos estilísticos são usados para expressar a distância temporal experimentada pelas personagens. Ao mesmo tempo em que salientam para o espectador os diferentes pontos de vista, as diferentes imagens também abrem perfurações no vocabulário cinematográfico corrente, incitando o espectador a fazer suas próprias conexões. A meta da arte é transmitir uma sensação quanto ao objeto, como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o “estranhamento” das coisas e o da forma dificultada, um procedimento que aumenta a complexidade e a duração da percepção, uma vez que o processo perceptivo é fim em si mesmo para a arte e deve ser prolongado. (CHKLOVSKI, Victor Apud ISER, 1999. Pg. 133)
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Tykwer encapa cada um dos fios temporais de sua trama com diferentes matizes e urdiduras. O presente, a ação na qual Lola está envolvida, é representado por imagens registradas em película 35mm, apresentando uma textura familiar às audiências. As tramas paralelas, quando nem Lola nem Manni estão presentes, são retratadas por câmeras de vídeo com sua estampa suja e pixelada85. O passado aparece em flash-backs em preto&branco. O futuro é contado com o auxílio de imagens estáticas seqüenciadas, que demonstram possíveis caminhos a serem traçados por personagens secundários. A cada round tem-se uma nova possibilidade de futuro apresentada à audiência. Cada qual determinada por pequenas variantes do comportamento de Lola. Ainda existem cenas totalmente retratadas em um gradiente contrastado que vai do preto ao vermelho. Interlúdios que falam da paixão, como numa Love PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
Story, de Lola e Manni. Paixão, motor de toda ação que transcorre nos vários planos temporais da estória. A cor vermelha inclusive tinge os cabelos de Lola. Pinta as setas que indicam graficamente o caminho correto, como numa estrada de tijolos dourados. A co-fusão de referências. O uso indiscriminado de técnicas digitais. A aproximação gráfica com a imagem cinematográfica, predominantemente, e classicamente, pictórica. Tipografias diegéticas86 ou não. O uso da animação disparando cada round que começa. Lola correndo desesperada escada a baixo. O telefone fora do gancho, testemunha da ligação de Manni. Imagens aceleradas, o tempo esgarçado em câmera lenta. A tela repartida dispõe duas ações que dialogam no espaço cinemático, porém não interagem na diegese. Corra Lola Corra orquestra com habilidade: os experimentos de linguagem, as misturas de suporte, as referências pós-modernas, em um objeto que reclama pelo repertório de seu espectador, o transformando em horizonte de um novo evento em curso.
85
Quando uma imagem digital possui baixa resolução, os pixels – menor unidade gráfica de
uma imagem matricial -, ampliados, ficam aparentes. Então, diz-se da imagem, pixelada. 86
Relativo a diegese – universo ficcional construído a partir dos dados de um texto.
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Assim como a ampliação [o grande plano] não tem por única finalidade tornar mais claro o que ‘sem ela’ seria confuso (graças a ela, pelo contrário, vemos aparecerem novas estruturas da matéria), tampouco a câmera lenta coloca simplesmente em relevo formas de movimento que já conhecíamos, mas descobre outras formas, perfeitamente desconhecidas, que não representam absolutamente movimentos rápidos tornados lentos, mas antes aparecem como movimentos fluidos, aéreos, supraterrestres. (BENJAMIN, 1969. Pg. 231)
Experiências acionadas por um autor, realizadas nos sintetizadores de imagem. Misturas digitais, afeitas àqueles que manejam as máquinas com senso estético e vontade expressiva. O Microcinema, nascente ainda, prematuro talvez, alça o estandarte da invenção. A conjunção de olhares, a multidisciplinaridade do ato cinematográfico e do fazer design, principia um diálogo, onde prática e idéia podem se concatenar.
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A divisa entre cinema e design vem se formando numa aproximação promovida pela tecnologia. Ainda um tanto quanto árida, merece a exploração continua e a colaboração diária. Em um procedimento de retroalimentação, os dois campos podem expandir suas fronteiras, numa fértil troca de idéias. Podem construir textos de fruição, transpassados de lacunas e excentricidades. Podem conformar uma área de trabalho, gerar público para suas obras. O Microcinema, a partir de expressões talhadas nesta estrema, agencia práticas e manifestações.
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Conclusão
Os mecanismos de representação cinematográfica que já foram exclusivamente fotomecânicos, com as câmeras analógicas e seus registros em película, passaram por uma fase eletromagnética, com o vídeo, e agora alcançaram a informatização de seu instrumental. Em cada uma dessas etapas, as mudanças do paradigma tecnológico alteraram os meios produtivos e as logísticas de produção. Princípio da década de 60: Glauber Rocha projeta-se nacionalmente com o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
surgimento do Cinema Novo. A partir de uma proposta que conjugava produções autorais de baixo orçamento com experimentos de linguagem, apoiada numa estética vigorosa justificada por posições político-pedagógicas, os cinemanovístas exploravam as potencialidades de um novo arsenal técnico. Câmeras leves e gravadores portáteis que possibilitaram a captação sonora direta, autorizavam o postulado glauberiano: uma câmera na mão e uma idéia na cabeça. Princípio do terceiro milênio: câmeras de vídeo caseiras digitais vão se popularizando, disparando uma movimentação audiovisual calcada no barateamento dos equipamentos e nas novas possibilidades de difusão alardeadas pela rede internacional de computadores. Disposta, coincidentemente, sobre o tripé cinemanovísta, porém sem os mesmos direcionamentos ideológicos, esta agitação cultural renova uma prática independente. São mostras, filmes, sítios na Internet e festivais, espalhados por todo o mundo, que dão certa unidade a uma produção que enxerga os ruídos como matéria expressiva e a linguagem como campo de experimentação. Animações, vídeos, filmes? Reunida sob o conceito comum de Microcinema, confunde suportes, não estabelecendo limites claros entre o que vai sendo produzido. A sociedade urbana pós-moderna sofre de um mal-estar promovido pelos interesses capitalistas na cultura de massa que aplainam singularidades, homogeneí-
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zam indivíduos e, paradoxalmente, germinam o individualismo, criando multidões solitárias. Momento histórico em que as dimensões temporais foram achatadas em um presente interminável. O passado, lócus dos repertórios, e o futuro, tão caro àqueles que planejam, projetam, diluíram-se, dissolveram-se. A atualidade dos homus instantaneus, prioriza a informação em detrimento do conhecimento, já que o excesso turva o discernimento. Na contramão dos fatos, na direção das utopias, a cultura pode alterar expectativas a partir de ideais transformadores. Os intelectuais e os artistas, podem, ao lidar com a linguagem, conformar uma fibra a mais em um feixe universalizante – vetor dinâmico produtor de consciência. Afinal, se o grande volume de informação, que nos é oferecido através dos mais diversos meios, não for convertido em conhecimento de forma equânime, passaremos a presenciar um processo de excluPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210319/CA
são sem igual em toda nossa história. Assim, o que se propõe é a busca por uma mudança qualitativa que permita a passagem da atual Era da Informação para uma utópica Era do Conhecimento. Sendo a linguagem o fator a intermediar as experiências humanas, é exatamente ao dilatar suas fronteiras e expandir seu repertório que a atividade cultural pode fornecer ao homem novos mirantes de onde observar a si próprio. Gerando alternativas à linguagem hegemônica dos textos de prazer, permeando de vazios suas criações, o Microcinema pode riscar uma tangente criativa dando forma a textos de fruição, fomentadores de singularidades e da inovação. Alçando o leitor a um papel de co-autor a partir de estranhamentos e desfamiliarizações no ato de apreensão, o contato entre texto e audiência reforma sujeitos, obras e repertórios, que são transcendidos em um diálogo que permanece em perpétua construção. Textos que funcionam como mediadores para experiências e acontecimentos, pois no ato de leitura não existem objetos ativos (o texto, o escritor) nem passivos (o leitor) – o foco está na interação. A experiência estética e sua construção se dá no eixo virtual/atual, permanecendo neste terreno movediço das subjetividades, dos humores e dos momentos instantâneos. A atualização de significados se dá diferentemente a cada apreensão
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de uma obra, assim como a cada utilização de uma mesma ferramenta aproveitamos diferentes combinações de suas funções virtuais. Enquanto isso, a tecnologia corre pelo eixo possível/real, realizando um ou mais possíveis disponíveis em máquinas e técnicas, mas nunca extrapolando a gama de possibilidades existente, seja em um martelo ou em um computador de última geração. O designer, especialista em problemas de interface – local onde se dão as interações –, identidade e imagem, encontra distintas possibilidades de inserção nas linhas de produção audiovisual, trazendo contribuições e ocupando espaços. Esquematicamente, uma inserção horizontal, quando colabora com sua visão sistêmica de planejador, e outra inserção vertical, quando é ele próprio o executor de tarefas específicas.
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Já que imagens e sons são os elementos que dão materialidade à interface cinematográfica, é precisamente na sua constituição que pode o designer exercer suas habilidades e aptidões. A partir da digitalização do fazer audiovisual, as câmeras de cinema ou vídeo passaram a apenas pré-figurar as imagens. Afinal, a figuração não mais se dá no momento da captação, que se tornou mera obtenção de matéria-prima, mas sim na fase de finalização, realizada em sintetizadores numéricos – hoje, computadores pessoais de uso doméstico. Assim, é frente às telas das máquinas digitais que designers e diretores podem estabelecer uma cooperação, transformando pixels, vetores e frames em quadros cinemáticos, em representações cinematográficas. Ao manipular texturas, luminâncias, cores, velocidades, de forma expressiva, rompemos a superfície fílmica com perfurações que afastam as imagens do naturalismo da linguagem clássico-narrativa. Retoricamente as estruturas formais são expostas na busca pelo despertar das audiências, exigindo que deixem de lado sua baixa motricidade intelectual e passem a construir o texto a partir de dados, aparentemente, incongruentes. Assim, partindo do discurso cinemanovísta observamos possibilidades de uso das ferramentas digitais para a constituição de uma massa crítica. Promovendo disrupções de sentido a partir dos experimentos de linguagem pode-se expandir
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as possibilidades de formação de consciências criativas. Ao tratar e compor representações imagéticas – articulando estética, tecnologia e mercado – o designer traz sua parcela de contribuição para esta movimentação cultural ainda prematura – o Microcinema. O diálogo entre história, política, linguagem e design tenta sistematizar uma visão que flagra acontecimentos em curso. Trazendo à tona aspectos econômicos, como as novas possibilidades de produção, exibição e distribuição; estéticos, rompendo a hegemonia do clássico-narrativo; e políticos, pluralizando realizadores e platéias; esta dissertação espera explicitar as recentes oportunidades trazidas pelas novas tecnologias para a atuação de designers na seara audiovisual, além de contribuir na constituição de mais um campo de discussão acadêmica.
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Afinal, quando muitos acharam que era impossível, já era virtual.
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Anexos
DEBRAY, Régis. As três idades do olhar In Vida e morte da imagem. Petrópoilis, RJ: Vozes, 1993. Midiasferas
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Momento histórico Regime A imagem tem como princípio de eficácia (ou relação ao ser) Modalidade de existência
Logosfera Após a escrita Ídolo Presença (transcendente) A Imagem é vidente Viva A Imagem é um ser
Grafosfera Após a imprensa Arte Representação (ilusória) A imagem é vista Física A Imagem é uma coisa
Videosfera
Após a TV à cores Visual Simulação (computadorizada) A imagem é visualizada Ritual A Imagem é uma percepção Referente crucial O Sobrenatural O Real O Performático (fonte de autoridade) (Deus) (A natureza) (A máquina) Fonte de luz Espiritual Solar Elétrica (de dentro) (de fora) (de dentro) Objetivo e expectativa de.. Proteção (e salvação) Deleitação (e prestígio) Informação (e jogo) A Imagem captura A Imagem cativa A Imagem é captada Contexto histórico Da Magia para o Religioso Do Religioso para o Do Histórico para o Histórico (tempo cíclico) Técnico (tempo linear) (Tempo individualizado) Deontologia Exterior Interna Ambiente (direção teológico (administração (gestão tecno-econômica) política) autônoma) Ideal e Norma de Trabalho Eu celebro Eu crio Eu Produzo (uma força) segundo a (uma obra) segundo o (um acontecimento) Escritura (cânon) Antigo (modelo) segundo Minha concepção (moda) Horizonte Temporal A eternidade A imortalidade A atualidade (repetição) (e Suporte) (tradição) (inovação) duro (pedra e madeira) flexível (tela) imaterial (monitor) Modo de Atribuição Coletiva = Anonimato Pessoal = Assinatura Espetacular = Grife, Logotipo, Marca (do feiticeiro ao artesão) (do artista ao gênio) (do empresário à empresa) Fabricantes organizados em... Cleiricatura → Corporação Academia → Escola Rede → Profissão Objeto de Culto O Santo O Belo O Novo (Eu sou sua salvaguarda) (Eu lhe dou prazer) (Eu o surpreendo) Mídia / Museu / Mercado Instância de Governo 1) Curial = o Imperador 1) Monárquica = (artes plásticas) 2) Eclesiástica = Academia 1500-1750 Publicidade Mosteiros e Catedrais 2 ) Burguesa = 3) Senhorial = o Palácio Salão + Critica →1968 (audiovisual) Continente de Origem e Ásia Europa – Florença América – Nova York (entre Antigüidade e Cidade-Ponte (entre Cristandade e (entre Moderno e Cristandade) Modernidade) Pós-Moderno) Modo de Acumulação Público: o Tesouro Particular: a Coleção Privado/Público: a Reprodução Aura Carismática Patética Lúdica (anima) (animus) (animação) Tendência Patológica Paranóia Caráter Obsessivo Esquizofrenia Ponto de Mira do Olhar Através da imagem Mais do que a imagem Somente a imagem (a vidência transita) (a visão contempla) (a visualização controla) Relações Mútuas A intolerância A rivalidade A concorrência (religiosa) (pessoal) (econômica)
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DUBOIS, Philippe. A linha geral. Cadernos de Antropologia e Imagem, Rio de Janeiro: UERJ, n. 9, 1999. Máquinas de Imagem ou Sistemas de Representação
Pintura Renascentista
Fotografia
Cinema
TV / Vídeo
Imagens Informáticas
Data Inicial
Quattrocento
Julho de 1839
Maquinário
Modelo perspectivista monocular, forma de figuração mimética. Máquinas de captação. Ex.: Portinhola, Tavoletta, Câmeras Obscuras.
Máquina de tipo químico que inscreve a imagem em seu suporte. Ex.: Daguerreótipo.
Fim do Séc. XIX
Introduz uma máquina de recepção do objeto visual, posterior à imagem, o projetor. Maquinaria produtora de imaginário. Ex.: Cinematógrafo, projetores, câmeras mecânicas.
Anos 30 Pós II Guerra
Telas catódicas, processo de dupla varredura entrelaçada. Ex.: Televisor, transmissor, antenas repetidoras, videocassete, circuitos fechados, videovigilância.
Último quarto do século XX
Ex.: Computadores, scanners, câmeras digitais.
Maquinismo / Humanismo
Semelhança / Desemelhança
(o lugar do Real e do Sujeito) Postura Pictural do Sistema
(o grau de analogia e os limites da mimesis, a questão do realismo na imagem)
01
Máquinas de pré-figuração, de captura, puramente óticas. Não são operadoras de inscrição. A imagem permanece sendo feita pelas mãos do homem, logo individual e subjetiva.
Visava obter uma forma figurativa que mostrasse mais o mundo “tal como o homem pode vê-lo”. Trazia um realismo subjetivo e interpretativo, pois as imagens eram geradas a partir da mão humana, semelhantes ao objeto representado.
Imagem cuja materialidade é a mais diretamente sensível: a tela e seu grão, a pincelada, o odor, o relevo da matéria, etc. Auge da materialidade concreta, tátil, literalmente palpável. Seu caráter de objeto único lhe dá seu valor de obra de arte.
02
Início da fase maquinista, da inscrição, na figuração. Gera imagens estáticas. Uma representação objetiva, “automática”, onde o gesto humanista se encontra na condução da máquina. Entre o objeto e sua representação, nada se interpões além de um outro objeto.
Aumento do realismo nas imagens, a partir da perfeição e da exatidão das imagens fotográficas, tidas como “mais verdadeiras”. Traz um realismo objetivo. A fotografia se beneficia de uma transferência de realidade da coisa para sua reprodução. Passamos de um efeito de realismo a um efeito de realidade.
Objeto múltiplo, reprodutível, possui seguramente menos relevo e corpo que a pintura, porém existe realmente, como realidade concreta e tangível.
03
A imagem cinematográfica pode ser considerada duplamente imaterial: na Fase da visualização, da medida em que é uma imagem pós-contemplação. O realismo cinematográfico refletida, por um lado, e uma imagem Sem a máquina de projeção acrescenta ao realismo da projetada, por outro. Eventualmente só se vê a realidade-película impressão fotoquímica a pode-se tocar a tela, mas não a do filme, sua parte reprodução do movimento que é imagem. O movimento representado fotográfica. Reintroduz o um realismo do tempo. não existe efetivamente em nenhuma Sujeito na imagem, mas Imagens gravadas passíveis que imagem real, é um tipo de ficção que dessa vez pelo lado do só existe através de nossos olhos em podemos rever, logo reviver espectador e de seu nosso cérebro. Apresenta imaginariamente. investimento imaginário. materialidade somente no filmepelícula, que trás imagens objetais: os fotogramas.
04
Fase da transmissão à distância, ao vivo e imediata. Imagem dinâmica sempre presente, sem passado. O espectador se transforma em índice de audiência.
Mimesis do “tempo real”, ao vivo. O realismo da simultaneidade vem se juntar àquele do movimento para formar uma imagem cada vez mais próxima do Real.
Não existe imagem fonte, somente um processo, uma operação.. A imagem de vídeo não existe, é pura síntese de tempo em nosso mecanismo perceptivo. Sem corpo nem consistência, é boa para ser transmitida.
05
As máquinas geram, modelam, o próprio “Real “, que se torna maquinista, alterando seu estatuto. Não há mais captura, inscrição ou reprodução da realidade, mas sim concepção. O objeto e a imagem, a fonte e o resultado, se unem para formar um só. A idéia de representação perde seu valor. O criador é um programador e o espectador um executor do programa.
Não reproduz mais, mas gera seu próprio Real, que é sua própria imagem, assim a relação de semelhança não faz mais sentido, já que não há mais representação nem referente. Não é mais a imagem que imita o mundo, é o Real que se torna semelhante à imagem, em um loop sem fim, como dois espelhos colocados frente a frente. Realismo artificial, sintético.
Imagem puramente virtual, atualiza um possível de um programa matemático. É menos uma imagem que uma abstração. Produto de um cálculo. Impulso a uma falsa materialidade se firma nas pesquisas de realidade virtual. A impressão de realidade é substituída pela impressão de presença.
Ordem
Materialidade / Imaterialidade