JaĂne Monteiro
Retratos do chĂŁo caipira
Retratos do chĂŁo caipira JaĂne Monteiro
JAÍNE CAROLINA DE GÓES MARIA MONTEIRO
RETRATOS DO CHÃO CAIPIRA
Projeto Experimental de caráter profissional, elaborado como Trabalho de Graduação (TG), requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Jornalismo, sob orientação do Prof. Dr. João Rangel Marcelo
Universidade de Taubaté TAUBATÉ - SP 2018
Ă€ eterna primavera que floresce desse ChĂŁo Caipira.
Agradecimentos Me orgulho em dizer que cresci e amadureci. Só eu e minha família sabemos o quanto foi difícil, em diversos aspectos, chegar onde estou hoje. Mais do que concluir essa etapa, o processo de aprendizado durante o período na Universidade foi muito além do que a academia pressupõe. A caloura que foi surpreendida no trote do vigésimo terceiro dia de fevereiro, em 2015, e foi embora para Campos do Jordão cheia de tinta, ovo, farinha – e outras coisas que até hoje não descobri o que são - já não é a mesma pessoa que hoje sai deste departamento com a cabeça erguida e com o coração invadido pelo sentimento de missão cumprida. Desde então, o crescimento é constante, tanto como ser humano, quanto como estudante e profissional. Muita coisa mudou de lá para cá: minha cidade, meus rumos, meus empregos, meus jeitos de pensar, meus jeitos de ver o mundo. Tudo no plural. Tudo constante. Tudo intenso. Apesar dessa velocidade em que a vida se arrasta, a melhor mudança ainda estaria por vir, pois a família aumentou e a motivação também. Começo, então, agradecendo à minha sobrinha e afilhada, Antonella, que mesmo ainda tão pequena, se tornou a maior paixão da minha vida. À ela, dedico esta e outras conquistas que estão por vir, bem como a constante busca pela minha melhor versão e a minha inabalável esperança de um mundo melhor. Agradeço ao meu irmão e cunhada por dividirem o amor de vocês conosco. Agradeço à minha mãe, meu padastro, meu pai e minhas avós, Dona Beth e Dona Benê, pelo amor e apoio incondicionais desde que nasci, em todas as escolhas e nos momentos em que o mundo pareceu desabar sob minhas costas. Eu jamais poderia ultrapassar todas essas barreiras sem a minha família ao meu lado. Saibam que onde quer que estejamos, meu amor é eterno. Este projeto, apesar de levar apenas um nome na autoria, abraçou muita gente. Retratos do Chão Caipira foi feito também por pessoas que não aparecem nos textos, e pelas quais fui acolhida de forma tão gentil e generosa. Agradeço imensamente por terem contribuído ao doarem seu tempo precioso para contar histórias, pois foram igualmente fundamentais para
a elaboração da narrativa, da forma mais pura e verdadeira possível. Esses relatos foram extremamente importantes não só para que o livro se tornasse real, mas também para a minha formação profissional, e principalmente, para o meu crescimento pessoal. Como jornlista e como ser humano, me renovei e tenho esse dever de reinvenção à cada novo desafio que a profissão me impõe. Em Paraibuna, em especial, floresci junto com todas as novas flores que desabrocham desse pedaço de chão e serei eternamente grata por isso. Deixo um agradecimento em especial ao amigo paraibunense José Vicente de Faria, que me auxiliou na busca por fontes, com dados, documentos, conversas e caronas sempre que necessário e possível. Sr. José, detém de uma sabedoria espetacular e sempre esteve à disposição para ajudar neste projeto, desde antes mesmo da existência, de fato. Minha admiração e orgulho eternos por todo o trabalho feito por João Rural, e que José, juntamente com outras peças fundamentais, lindamente dão continuidade até hoje no Instituto Chão Caipira. Ao meu amigo e orientador, João Rangel, agradeço imensamente por todas as vezes em que me atendeu no auge da minha insegurança. Agradeço também pelas conversas regadas à café, algumas risadas e palavras motivadoras. Agradeço também ao Aguinaldo de Jesus, do Núcleo Laboratorial de Fotografia “Ismael Lopes”, que não só tratou as imagens que compõem o livro com excelência, como igualmente me atendeu em todos os momentos de desespero com muita atenção e paciência. Agradeço também ao Felipe Piccina, que revisou todos os textos com toda a atenção e me deu diversas injeções de ânimo quando precisei; à Professora Adriana Cintra, que durante as aulas e revisões também me fez refletir sobre as coisas boas da vida à cada nova frase que eu escrevia neste livro. Deixo também toda a minha gratidão ao corpo docente do Departamento de Comunicação Social da Universidade de Taubaté pelos ensinamentos, pelas oportunidades e por toda a bagagem transmitida, que a partir de agora passo a levar comigo para o resto da vida. Dedico todo meu amor e admiração também ao Pedro Zandonadi, que diagramou esse livro, esteve comigo nas visitas à cidade e em todas as vezes me deu total apoio - e o ombro para chorar, claro. Tem um pedaço dele em cada página desse projeto, literalmente. Agradeço pela compreensão, pela companhia e por tanto amor, como sempre. Estendo à família Zandonadi, pois aqui também deixo registrado toda a minha gratidão pelo acolhimento e apoio em todas as
vezes que precisei ao longo dessa etapa difícil. Agradeço também aos meus amigos que a faculdade me trouxe, por todas as vezes em que nos apoiamos, orientamos, abraçamos e desesperamos juntos. A cada aula, trabalho, semestre, e reuniões de emergência para saber quem dividiria o lanche com quem na hora do intervalo, nossa amizade se fortaleceu. Vocês, sem dúvidas, se tornaram minha segunda família em Taubaté desde que deixei meu lar em Campos do Jordão. Sentirei saudades, em especial de André Luis e Emerson Tersigni, que tanto foram meus escudeiros, quando preciso, bem como os defendi com unhas e dentes em todas as vezes que achei necessário e justo. Por tantas discussões, trabalhos feitos do nosso jeito, conversas de apoio e as inúmeras piadas, quero agradecê-los por serem do jeito que são e por terem participado dessa caminhada comigo até aqui. À vocês digo: o trio segue invicto! Por último e não menos importante, meu agradecimento também especial à Débora Santos. Dividir a casa com essa jornalista incrível é uma das melhores partes que posso mencionar durante os quatro anos em que estive na faculdade. Foram dias e mais dias de conversas, risadas, choros, desesperos, boletos a mais, horas de sono a menos, mas sempre com muito companheirismo, amizade, compreensão, ponderação e respeito. Juntas, somos ainda mais fortes! A mulher que sou hoje foi descoberta a cada passo que pisei à frente, pois me encontrei como ser humano, como alguém que pode fazer algo bom pelo outro e pelo mundo sempre que possível. Como jornalista, este projeto representa o início de uma realização; como aluna, uma das etapas concluída; como pessoa, sou melhor e maior, pois notei que, na verdade, a grandiosidade que possuo é ter nas mãos a oportunidade e o privilégio de desenvolver a capacidade de ouvir, ver e conhecer o mundo do outro. Estabelecer contato com as pessoas é como abrir uma janela que antes nunca fora vista ou notada. A partir de agora, com essa janela escancarada, farei do clarão de luz que passou a iluminar o meu espaço interno, uma oportunidade para enxergar caminhos para novas jornadas e a força para abrir novas janelas, fazendo com que outras pessoas vejam através dos meus olhos e percebam também a luz natural que erradia dentro de si. Essa é a completa obra divina em minha vida, pela qual sou grata a cada dia novo que nasce.
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Sumário Semente ao solo Prefácio A paz de seu Li Tocando o barco Anjo do Sertão A vida é salva Melodia da alma Contém amor Referências Legendas
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Semente ao solo
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uem vem de fora não imagina o que as entrelinhas e as nuances deste pedaço de chão têm para mostrar. A Rodovia dos Tamoios é a principal via de acesso até Paraibuna, na altura do quilômetro 32, tanto para os viajantes do Vale do Paraíba quanto para quem sobe a serra a partir da praia. A cidade, que faz divisa com vizinhos menores como Jambeiro, Salesópolis e Santa Branca, tem também a maior cidade do Litoral Norte, Caraguatatuba, bem ao seu lado. Além disso, Paraibuna também divide as águas da represa com Redenção da Serra e Natividade da Serra. Ao chegar, nota-se logo o céu de um azul típico de interior, que contrasta não só com o colorido das casinhas coloniais do minúsculo centro da cidade, mas também com o verde das montanhas que a rodeiam. Nesse mesmo centro pacato localizam-se a igreja Matriz de Santo Antônio e o pequeno coreto, que compõem o cenário das prosas de quem resolve tirar um tempo sentado no banco da pracinha. E, em dias de festa, tudo fica grandioso: a Praça se ilumina, ganha novas cores e novos sons. Mais adiante, no calçadão, bastando virar a rua da lanchonete de esquina, o largo do mercado também abriga alguns eventos, como a Festa do Folclore e Cambuci, em agosto, e as barracas de feira aos domingos. O próprio prédio do mercadão municipal se destaca com sua arquitetura característica, de
paredes azuis e brancas e placas entalhadas à mão. É o ponto de encontros e reencontros, principalmente aos sábados e domingos, como manda a tradição. Ali, uns sentam para papear ao som da viola caipira, alguns dançam e cantam animados na ‘Domingueira de Viola’; outros compram verduras, legumes, peixe fresco. Há os que aproveitam para renovar a ida ao barbeiro e outros, mais contidos, que apenas observam enquanto ‘molham as palavras’ com aguardente de alambique acompanhado de pastel frito na hora. Nos tempos antigos, Paraibuna abrigou confrontos entre bandeirantes, escravos e o povo indígena que por ali viviam no auge do período cafeeiro. A cidade também foi rota dos tropeiros que transitavam entre o mar e as montanhas e decidiram instalar-se naquele lugar para comercializar seus produtos. Atualmente, boa parte do cenário é resultado dessas missões, pois entre as idas e vindas, alguns decidiram fazer da cidade a sua casa e propagar seus ritos culturais. O lugar segue de braços abertos para quem por ali deseja pousar, oferecendo sempre o sorriso mais sincero de sua gente ou os sabores mais marcantes de sua cultura. Não é coincidência que, seguindo à direita na rua de paralelepípedos do mercadão, um dos pontos turísticos é a bica d’água, que convida para matar a sede de história. Os dizeres que estampam sua
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fronte já comprovam que, desde há muito, a cidade sempre foi ponto de parada dos aventureiros: ‘Quem bebe água da bica, por aqui fica’. E que privilégio é ficar por essas bandas! Ao sair do centrinho da cidade, as estradas de chão batido nos levam a cenários ainda mais acolhedores: as casinhas simples em meio às montanhas, o gado que pasta no caminho verdejante. Os galhos das árvores dançam com o vento, enquanto os passarinhos despreocupados cantam a melodia e rodeiam pelo ar. À noite, sem a interferência das luzes da cidade, a lua brilha soberana e as estrelas criam um pontilhado para os que fazem desse céu o telhado de casa. Com muito esforço, essa paisagem resiste. Novas gerações chegam e, com elas, novos costumes. Hoje, tudo que os antigos preservam em suas memórias é estranhamente distante. Com os novos, chegam a tecnologia, a pressa, o agora. Para estes, todo o antigo se arrasta, num ritmo difícil de se compreender. Em Paraibuna, o que predomina é a constante luta para que costumes e tradições permaneçam não só nas lembranças dos mais velhos, mas também no presente de quem chegou agora. Com seu jeito simples, o povo por ali tem muito a ensinar aos forasteiros sobre hospitalidade, gentileza e simplicidade. Paraibuna é terra de gente que carrega no peito e na memó-
ria uma identidade que é só sua. É terra de gente que ensina e mostra a todo momento aquilo que não se troca por um pedaço de papel, mas que é para eles tão mais valioso do que qualquer outra coisa no mundo: o orgulho de ser o que se é. Sejam bem-vindos ao que os paraibunenses chamam de Chão Caipira. Se acomodem... Aceitam um cafezinho para acompanhar essa prosa?
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Prefácio
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ra festa do padroeiro quando a jovem jornalista pisou pela primeira vez em Paraibuna. Um microfone e um bloquinho de notas foram seus instrumentos de trabalho naquele dia tão especial no chão caipira. A partir disso, se colocou à disposição para contar histórias. Ouviu música raiz, se lembrou de bons tempos, conversou com moradores e conheceu os atrativos da festa. No Instituto Chão Caipira, teve acesso a tudo que temos de mais valioso: nosso acervo histórico. Nesse espaço, vivem os 40 anos de trabalho de João Rural, que se dedicou a retratar a cultura caipira em Paraibuna e nas demais cidades do Vale do Paraíba. Hoje, essa cidade também abriga os esf orços das novas gerações para que nossa história e nossas tradições sejam valorizadas, exaltadas e vividas. Como conhecedor da terra onde sempre pisei e tenho orgulho de seguir caminhando, acompanhei tudo de perto, sempre com muito apoio e dedicação. Todos os relatos que o livro traz, são discursos singelos de quem expõe ao mundo a nossa identidade composta por tradições, sabores, cultivos, sons, histórias, assombrações, recordações, lembranças, decepções,
entre tantas outras coisas que fazem parte da vida interiorana. De forma poética e sensível, “Retratos do Chão Caipira” ressalta a luz que nossa cultura possui naturalmente, simplesmente por ser da maneira como se apresenta. Nosso povo se alegra em saber que nosso jeito de viver está sendo enaltecido de alguma forma, ainda mais em dias como hoje. Nos alegra também a visão da juventude que se interessa pelos saberes de nossos antepassados e esperamos que isso nunca pare. É sempre importante fomentar a cultura dos personagens que participaram da formação de nossa nação, formatando nossa linguagem cultural pelos sertões do Brasil, com suas tropas, construções, plantações e alimentos em geral. Desta forma, ao longo desta longa jornada, a percepção que se reafirma é que o caipira está dentro de nós, pois faz parte de nossa formação. Este livro, a partir de agora, também faz parte do que somos e do que seremos. São raros os que se ocupam de nossas raízes e, por eles, estaremos sempre à disposição para fazer florescer nossas sementes. José Vicente Faria
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A paz de Seu Li
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ma estradinha de chão batido leva até o Bairro Espírito Santo, zona rural de Paraibuna. Nesse lugar, vive um homem de jeitão simples, que já fez do sorriso largo e espontâneo sua maneira mais simpática de desejar boas vindas a quem se achega para o café. Aloísio Fonseca, conhecido como Seu Li, se considera o típico paraibunense raiz. Nascido e criado na cidade, reafirma quantas vezes forem necessárias o seu orgulho pelo lugar onde nasceu e vive. A memória vai longe, ao encontro de pessoas que já se foram e momentos que não voltam. No auge dos 88 anos muito bem vividos que Seu Li carrega como se fossem plumas, a capacidade tão aflorada em se lembrar de tantos detalhes dá inveja aos mais novos. Na casinha simples, as paredes expõem retratos de pessoas amadas e uma coleção particular de trabalhos em couro e em crina que ele faz para passar o tempo. Rédeas, bolsas e outros adereços são costurados a mão. A varanda é o espaço que convida qualquer pessoa a sentar e sentir a brisa de fim de tardes tranquilas. Nos fundos da casa, encontra-se o lugar favorito de Seu Li: um quartinho onde fica o fogão a lenha. É também onde ele guarda umas tralhas e mais um monte de histórias que ele faz questão de contar para a família. Uma janelinha minúscula dá vista para um lago, onde
Seu Li pesca em dia de temperatura amena. Espiando por ali, consegue ver tudo aquilo que realmente faz sentido na vida: o jovem senhor dá uma aula de vivência e ainda tem um paraíso para chamar de seu. Se no final de todo arco-íris há um tesouro, aquela é a verdadeira riqueza de Seu Li. - “É que grã-fino eu num sô memo, né? Aqui eu tenho de tudo, tenho conforto... Pra mim, tá bão demais aqui”, afirma com convicção. Próximo ao quartinho, está o fogão de barro onde ele fazia biscoitos e broas com a esposa. Era o convite certo para chamar as visitas e que hoje, também, virou mais um canto de lembranças cheias de carinho depois que dona Luzia foi levada por Deus. O casal se conheceu quando o primo de Aloísio casou-se com o primo de Luzia. Seria clichê dizer que a união foi por conta do destino, mas a mineira de Paraisópolis e o paraibunense se esbarraram e não se soltaram mais. Com ela, teve três filhos e uma bagagem cheia de amor. Além da memória impecável, Seu Li é bom de conta. - Eu fiquei do lado dela 60 anos, cinco meses, oito dias e três horas. Seu Li acredita que seguir em frente é estar ao lado da esposa, mesmo que não mais fisicamente. Fez e continua fazendo tudo por ela, com um sorrisão no rosto e o peito cheio
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de afeto. Os olhos se esforçam para não deixar que as lágrimas da saudade rolarem. Ele consegue e se sente forte por conseguir sempre; segue a vida e qualquer brecha da prosa é uma oportunidade para anunciar que um dia eles irão se encontrar. No lado de fora da casa, muito espaço para os animais. Ali ele cria vacas, cavalos e galinhas. Com um quintal grande, igual ao seu coração, o senhor moço divide espaço com alguns sobrinhos, que moram em casas próximas e são sua principal companhia. No domingo, todos se juntam. O almoço é farto em comidas, vozes e alegria das crianças que correm pelo gramado. Por muitos anos, Seu Li se viu nesse mesmo cenário. Com o pai, sua infância foi toda no meio do mato. Os dois andavam a cavalo de madrugada até a fazenda da família, no bairro do Cedro, em Paraibuna. Por lá, cuidavam da plantação e dos animais. Seu Li, ainda com apenas 12 anos, aprendeu a cozinhar sozinho e fazia as refeições para as pessoas que o ajudavam na fazenda. - “Eu também brincava, mas eu ia mais pro sertão com o meu pai. Lá o pessoal fazia cerca, rachava mourão, formava pasto, roçava capim gordura, e eu era cozinheiro da turma. No café, era um bardão de deiz litro de café. Depois eu
fazia o almoço também”, conta. Mais tarde, também seguiu trabalhando duro, e os calos nas mãos não o desmentem; plantou e colheu por diversas vezes para sustentar a família. A horta no quintal levou fartura para a mesa, e os animais, como galinhas e bois, também serviam de alimento. Tantas vezes plantou e colheu que ele mesmo criou sua própria raiz e floresceu no sertão. E assim Seu Li floresce todos os dias quando acorda pela manhã e vê que, diante de todas as coisas que a vida lhe impôs, seu coração sempre esteve no lugar certo, bem onde está agora. Apesar disso, também teve sua curta e indesejada experiência na cidade. Sua feição muda. Não gosta de entrar no assunto e fica aborrecido, com cara amarrada só de pensar nessa fase. - Ah, morar na cidade num dá, não. - Mas por quê? - “Não tem resposta”, responde de forma categórica. - ”Aqui não tem grã-finagem com roupa. Na cidade a gente tem que andar arrumado e limpo. Eu não ando sujo, mas na cidade, em dois, três dias tem que trocar a roupa. Onde já se viu isso? Na cidade não pode andar de qualquer jeito, aqui a gente anda à vontade, sem medo. A gente
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come as coisas do quintal, sabe? Tem franguinho caipira, feijão arroz, batatinha, frango, carne, linguiça e verdura. Não tem enrosco!” Com uma visão peculiar sobre o mundo ‘lá fora’, Seu Li não entende muitas coisas que, para quem vive na cidade, viraram rotina. Apesar disso, reflete por diversas vezes sobre coisas para as quais não encontra resposta e, outras vezes, a resposta vem de sua própria caminhada pela vida. Para ele, se a roça não planta, a cidade não janta. - “Nessa vida eu aprendi que o grã-fino da cidade quer se apoderar das coisas do caipira da roça. Tem um ditado que diz que a enxada brigou com a caneta. É assim: a caneta diz ‘eu sou grã-fina, eu faço tudo!’. A enxada responde ‘se a gente não trabalha, vocês não comem’ e é verdade, né”, conclui. E quando pensa sobre a lembrança mais feliz da sua vida, Seu Li vai direto ao alvo, como sempre. - “Ah, mas é claro que é o sertão!”, sorri. “Eu trabalhava, ia pro mato, caçar, andava com o pé no chão. Gostava de ir no mato, eu dormia no mato, ouvia os passarinhos e até onça. Eu tinha medo, mas eu dormia com o fogo aceso pra onça não chegar. Andei o litoral inteiro com o meu pai, porque ele tinha amigo demais! Até hoje, fico quieto, pensando. . . É gostoso lembrar dessas andanças!”, relata,
com tom de alegria e saudosismo. Há sempre uma janelinha pela qual se deve olhar. A partir disso, já não se sabe mais o que é dentro e o que é fora, porque tudo faz parte de um só mundo. Talvez, se realmente aquele pequeno espaço de Seu Li, já tão judiado pela ação do tempo, fosse um quadro pintado à mão, ele valeria milhões. Quem sabe, até exposto em uma galeria de arte famosa pelo mundo afora. Mas, na vida real, isso vale bem mais do que pedaços de papel podem comprar: essa é verdadeira paz de Seu Li.
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