Visão

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ENTREVISTA PEDRO NUNO SANTOS

Nºº 142 1428 2 8 . 16/ 16/7 A 22/7/2020 020 0 . CONT. E ILHA IILHAS: LH A S: €3, €3,70 70 . SEMANAL SEM M ANA A AN L

“NÃO ESTAMOS HABITUADOS A MINISTROS LIVRES QUE DIZEM O QUE QUE PENSAM” A NEWSMAGAZINE N EWSMA M GA A ZIN N E MAIS MA A IS LIDA L I A DO D O PAÍS PA ÍÍS S

AS MELHORES MELHO ORES EESPLANADAS SPLA ANADAS DEE LISBOA D LISBOA E DO DO PORTO PORTO

WWW.VISAO.PT W W W.VISA WWW SAO. O PT

JUSTIÇA O OSS G GESTORES ESTORES DE SUCESSO SUCESSO CAÍDOS C AÍDO OS EEM M DESGRAÇA DESSGRAÇA COVID-19 A ASS SSEQUELAS EQUEELA AS Q QUE UE FFICAM ICAM D DEPOIS EPO OIS D DA A CU CURA URA

Ricardo Bellino O milionário brasileiro apaixonou-se pela Comporta, há seis anos, e quer abrir um empreendimento de luxo na região

OS BRASILEIROS RICOS QUE APOSTAM EM PORTUGAL MESMO EM TEMPO DE PANDEMIA, CONTINUAM A QUERER VIVER E A INVESTIR NESTE LADO DO ATLÂNTICO, QUE VEEM COMO UMA ALTERNATIVA A MIAMI. TÊM IDEIAS, PROJETOS, DINHEIRO E, AGORA, UMA CONFIANÇA RENOVADA NO NOSSO SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE. “SENTIMO-NOS MUITO MAIS SEGUROS CÁ”, AFIRMAM


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DUAS OPÇÕES DE LEITURA DA REVISTA Pode escolher como prefere ler a edição semanal: em formato pdf, com primazia para o grafismo, ou em formato de texto, para uma leitura mais confortável do texto

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A EVOLUÇÃO FORÇADA Uma investigadora portuguesa está a estudar a resposta dos animais para se adaptarem às mudanças provocadas pelo aquecimento global LUÍS RIBEIRO

Diana Madeira quer saber se as alterações climáticas podem acabar com uma espécie de minhocas marinhas do género científico Ophryotrocha. Olhando para elas, uns vermes minúsculos que mais parecem centopeias viscosas, é fácil pensar que a sua extinção, seja por que razão for, não t d l d O bl

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24 horas seguidas, subindo ao topo três do mais de 2 700 metros vezes, perfazendo ados do na n vertical. Em 2012, de altura escalados em também no Yosemite, fez subidas “E Cap”, da Half Dome consecutivas do “El kin as três mais altas e do Monte Watkins, rqu perfazendo p elevações do parque, 2 133 me metros verticais em menos de 19 horas. oi com David Allfrey, E dois anos depois, ren do subiu sete rotas diferentes s. N “El Cap”, em sete dias. No México, em endero er Luminoso Lu 2015, escalou o Sendero – ha no n Parque P 500 metros de rocha de pen três horas, Potrero Chico, em apenas ni quando muitas duplas de alpinistas p ção. demoram dois dias, com proteção.

MPRE DIMEN EMPREENDIMENTO ARRISCADO Na origem de Free Solo está uma amizade e a determinação em superar o que parece impossível. Alex Honnold e o realizador Jimmy Chin também < ANTERIOR

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VISÃO 16 JULHO 2020 / Nº 1428

RADAR 14 Raios X 16 A semana em 7 pontos 18 Holofote 19 Inbox 20 Almanaque 21 Transições 22 Próximos capítulos 24 Imagens do mundo FOCAR 66 Foi você que pediu o Bloco Central? 70 Ambiente: o futuro verde de Paris 74 Fotorreportagem: A margem dos (in)visíveis

MARCOS BORGA

10 Entrevista: Beatrice Leanza

40 “A TAP é nossa, ponto final parágrafo” Pedro Nuno Santos é perentório ao defender que a transportadora aérea nacional deve continuar na esfera do Estado. Em entrevista à VISÃO, o ministro das Infraestruturas e da Habitação fala também da sua relação com o primeiro-ministro e da sua ambição em liderar o partido

28 Portugal é bacana Nunca houve tantos brasileiros a residir no nosso país, cada vez mais procurado por famílias abastadas do Brasil. Como vivem, que negócios trazem e o que tanto os seduz neste cantinho da Europa

VAGAR 78 Entrevista Matilde Campilho 84 Pessoas 86 Tendências

48 Já não há estrelas no céu

VISÃO SETE

54 Depois da tempestade Covid-19

Eram banqueiros reputados e gestores de sucesso, até serem apanhados em escândalos e processos mediáticos. António Mexia é a mais recente estrela a perder o lugar no firmamento da economia nacional

Estudos de todo o mundo apontam para lesões que podem ser consequência da infeção pelo SARS-Cov-2. Se deixarão sequelas, é algo que os especialistas consideram ser ainda demasiado cedo para saber

60 O senhor da esperança 89 As melhores esplanadas de Lisboa e do Porto OPINIÃO 6 Dulce Maria Cardoso 8 Mafalda Anjos 23 José Manuel Pureza 73 Pedro Norton 88 Miguel Araújo 114 Ricardo Araújo Pereira Interdita a reprodução, mesmo parcial, de textos, fotografias ou ilustrações sob quaisquer meios, e para quaisquer fins, inclusive comerciais.

Em 1972, Joe Biden tornou-se um dos mais jovens senadores dos EUA. Agora, com a ajuda da pandemia, tem fortes chances de expulsar Donald Trump da Casa Branca e de ser o mais velho Presidente da América

Online

W W W.V I S A O . P T

Últimos artigos na BOLSA DE ESPECIALISTAS VISÃO

Mafalda Anjos

Luís Delgado

Hugo Rodrigues

COVIDIÁRIO Oh, não! Será que tenho Covid?

LINHAS DIREITAS O nosso PIB é tão ridículo

PEDIATRIA Praia, coronavírus e crianças: como gerir?

16 JULHO 2020 VISÃO

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LINHA DIRETA

Correio do leitor

Irrevogável, o novo programa e podcast da VISÃO A partir desta quarta-feira, passou a ser irrevogável. A VISÃO tem mais um programa em vídeo e podcast, para ver em direto no Facebook às quartas-feiras pelo meio-dia. O Irrevogável será um programa semanal de entrevistas políticas, com os protagonistas que dão que falar, marcam a agenda e acrescentam valor ao debate público. Conversas incisivas, com cerca de meia hora, que podem ser vistas também em diferido no site ou ouvidas em podcast no Spotify, iTunes e Buzzsprout. Na estreia, contamos com o socialista Francisco Assis. O Irrevogável vem juntar-se ao Olho Vivo, um programa de comentário da atualidade política e económica semanal, às quintas-feitas à mesma hora (e também em podcast), com o painel de olheiros residente Mafalda Anjos, Filipe Luís e Nuno Aguiar.

OS MELHORES ESPECIALISTAS, NA EDIÇÃO ESPECIAL VISÃO SAÚDE

No início da pandemia, falava-se numa segunda vaga, a ocorrer no outono/inverno. Qual será o efeito das férias no número de casos? Margarida Silva, Viseu SEGUNDA VAGA

A razão de ser duma segunda vaga da Covid-19 há de encontrar-se: 1) na ligeireza com que o levantamento das restrições tem vindo a ser entendido por alguns cidadãos; 2) na pressa ou no descuido com que as restrições foram retiradas. António Bernardo Colaço, Lisboa TAP

Faz mal tomar banho a meio da digestão? A alimentação interfere no cancro? As dúvidas que envolvem os temas de saúde são muitas e as respostas nem sempre são fáceis de encontrar, tal é a diversidade de opiniões espalhadas pela internet. Para esclarecer as questões que mais incertezas levantam, está nas bancas um número especial da VISÃO Saúde, com dezenas de artigos de alguns dos melhores especialistas do País, que respondem e explicam em pormenor os problemas mais comuns que afetam a saúde dos portugueses. Ao longo das páginas desta edição, os especialistas abordam questões complexas, como cancro, Alzheimer e Parkinson – doenças que atingem cada vez mais portugueses –, mas também descodificam temas que parecem simples e, no entanto, costumam gerar dúvidas: deve ou não usar-se cotonetes? Os soluços passam mesmo com um susto? É perigoso misturar álcool com medicamentos?

Já nas bancas

Gosto bastante da opinião de Rui Tavares Guedes na VISÃO. É sempre uma sensata, pensada, moderada. Gostei particularmente da desta semana [Os céus não podem esperar, na edição 1427]. Uma TAP mais sustentável é, sem sombra de dúvida, a direção certa para o seu futuro. Celina Veiga de Oliveira

No tempo das ex-colónias, tivemos uma frota marítima de excelência. Agora, se ficássemos sem a TAP, ficávamos à mercê das companhias estrangeiras e sem esse património. A sua sustentabilidade deve ser preservada. Diamantino Reis, Portimão

MÁRIO COELHO Como leitor e assinante, queria agradecer a vossa referência ao toureiro Mário Coelho [edição 1427]. Ao contrário de outra imprensa, não demonstraram preconceito sobre este assunto. Délio Borges, Angra do Heroísmo

Contactos

visao@visao.pt As cartas devem ter um máximo de 60 palavras e conter nome, morada e telefone. A revista reserva-se o direito de selecionar os trechos que considerar mais importantes.

NOVA MORADA

CORREIO: Rua da Fonte da Caspolima

PERCEÇÃO Imagens de pôr os olhos em bico 4

VISÃO 16 JULHO 2020

POUCA TERRA As memórias do caminho de ferro

CENTENÁRIO Recordar Amália

– Quinta da Fonte, Edifício Fernão Magalhães, 8, 2770-190 Paço de Arcos


Obrigado aos nossos mais de 500 mil clientes Ser nº1 na satisfação é o melhor prémio que um Banco com apenas 4 anos pode receber Sermos distinguidos com o prémio do Índice Nacional de Satisfação do Cliente, enche-nos a todos, no Banco CTT, de orgulho. É o reconhecimento da atenção que damos aos nossos Clientes e do compromisso que assumimos em responder às suas necessidades. Este é o melhor prémio que um Banco com apenas 4 anos pode receber. Obrigado!

Prémio atribuído em 2020 pelo ECSI Portugal - Índice Nacional de Satisfação do Cliente, no sector da Banca. Este prémio é da exclusiva responsabilidade da entidade que o atribuiu.


AUTOBIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA

O sul da vida

ILUSTRAÇÃO: SUSA MONTEIRO

POR DULCE MARIA CARDOSO

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terra quente cheira às figueiras que vão tombando os ramos para a estrada, uma fita de asfalto que se estica para longe, pontilhada aqui e ali pela cal de pequenos povoados. Tudo parece abafado por uma campânula de silêncio que as cigarras raspam, raspam, raspam. Há também, horizontal, a indolência lodosa da Ria, a que quase se cola a outra, mais horizontal ainda, do mar. O céu é uma calma monotonia azul-bebé. São quase cinco da tarde, a vila está deserta. Ninguém na esplanada do Sumol nem na dos Cuernitos Bimbo, ninguém nos lounges do brunch orgânico, ninguém nas lojas de souvenires a 2 euros, ninguém nos restaurantes das vistas panorâmicas, as ruas vazias. O sol amareleceu as letras por baixo dos arco-íris afixados nalgumas montras das lojas, Vai ficar tudo bem. Um acaso qualquer – já não sei qual – trouxe-me pela primeira vez a Santa Luzia no verão de 2000, esse marco longínquo da minha adolescência, Que idade terei no ano 2000?, as contas teimavam sempre na mesma resposta: trinta e seis anos, Ui, que velha. A contrapartida da velhice consistiria em estar perto de atingir ou ter já atingido os destinos para que pais e escola me empurravam, um bom emprego, um marido atencioso e bem-sucedido, filhos bonitos e espertos, uma vivenda num bairro chique,… no ano 2000 eu seria velha, mas teria uma vida muito melhor do que a dos meus pais, só era preciso que o tempo passasse, talvez não viessem a existir os robôs e o teletransporte, mas ainda assim, ala, futuro, que aí ia eu. Nessa altura, a passagem do tempo engonhava tanto, o que era compreensível, a construção de um futuro confortável tinha de ser morosa. Só que, de repente, o tempo resolveu desembestar e num abrir e fechar de olhos eu estava às portas do novo milénio, ali estava ele, na vida e não no calendário, anunciado com fogos de artifício na agência de viagens da Avenida de Roma, só precisava de escolher se o festejava com champanhe em Paris junto da Tour Eiffel ou em Nova Iorque na Times Square. Não fiz nem uma coisa nem outra. O novo milénio chegava e afinal eu não era assim tão velha ou não me via assim tão velha. Por outro lado, também acumulara mais fracassos do que sucessos: desalentara-me da advocacia, fora preterida nos concursos para técnica superior de primeira na Função Pública, não pudera acompanhar as minhas amigas na compra dos T4 nos subúrbios perto da A5 quanto mais na segunda casa na Aroeira, falhara a maternidade, a grande festa da Expo e a inauguração do Lux, as discussões éticas sobre a clonagem da ovelha Dolly, a organização familiar das ceias de natal, as manifestações para a independência de Timor Leste, as férias em Cuba, o peso ideal, em suma, dessintonizara-me dos que me rodeavam. Mas nesse verão passei uma quinzena em Santa Luzia numa casa alugada, um quarto, uma sala, um pátio e

uma açoteia em frente à Ria. Fui tão feliz a nadar na praia da Terra Estreita e a tomar banho de mangueira no pátio, que a memória desse agosto é um dos bens mais preciosos que possuo. Quando regressei a Lisboa anunciei, pomposa, Quero envelhecer a sul. Não, eu não era velha. No ano seguinte o meu pai morreu, os aviões incendiaram-se contra as torres, publiquei o meu primeiro romance, o Clude nasceu e continuei a perder antigas certezas, substituindo-as por renovadas vontades. A piscina do aldeamento onde agora me hospedo está também quase sem ninguém. Em forma de um infinito torto, é rodeada por um relvado onde, na parte mais estreita, um trio de palmeiras da Califórnia se abismam para o céu. Para além de mim, do Pedro e do pequeno Tomás, só um casal a fazer paciências nas espreguiçadeiras. Quando entram na água, começam a conversar comigo. Apesar de morarem cá há muitos anos, não sabem falar português, Não precisamos, explica a mulher, os portugueses entendem-nos. Dirão várias vezes, Os portugueses isto, os portugueses aquilo, e vou avaliando mentalmente se me encaixo nas diversas características que nos apontam. Expressando-se num inglês perfeito, esclarecem que são holandeses, Aqui é tudo muito barato e o clima, meu deus, o mar, o marisco, a paisagem. Também têm queixas, a desorganização dos serviços, a burocracia, a falta de civismo na estrada, a pouca oferta de produtos biológicos. Apesar disso, não têm saudades da Holanda. Dizem saudades em português com um sotaque engraçado. Estávamo-nos a despedir, quando a mulher comenta, No ano passado, por esta altura, havia umas quarenta pessoas aqui na piscina, este ano está uma maravilha. Respondo que isto assim não pode durar. Ela concorda, Vão acabar por descobrir uma vacina e volta tudo ao mesmo. Não era isso que eu queria dizer, mas o casal já se afastava em direção às suas espreguiçadeiras. Ao fim da tarde, na ida ao supermercado, levo a máscara presa ao pulso pelos elásticos, Pensava que já tinha visto tudo, diz uma velha sentada à frente da loja que vende golfinhos e crocodilos insufláveis, Como é que ia imaginar que pudesse não haver verão?, mais à frente, Oh amigo isto sem turistas não dá para nada, confessa o dono do restaurante a um cliente que está à espera do pedido takeaway de frango e batatas fritas, O dali da frente já fechou de vez, se perco o negócio perco a minha vida. Tem a pele maltratada pelo sol e as mãos calejadas. As suas palavras desfazem-se nas voltas gritadas das andorinhas. Daqui a nada o sol põe-se, a rebentar de vermelho, mas até lá vai embaralhando o horizonte de rosas, amarelos e lilases. Ainda aqui não estou, no meu sul. Sei que este lamento se torna obsceno entre o lamento maior e coletivo em que agora vivemos, mas não consigo evitá-lo. É que vai sendo tarde, na minha vida. visao@visao.pt

Fui tão feliz a nadar na praia da Terra Estreita e a tomar banho de mangueira no pátio, que a memória desse agosto é um dos bens mais preciosos que possuo. Quando regressei a Lisboa anunciei, pomposa, Quero envelhecer a sul. Não, eu não era velha

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OPINIÃO

A batata quente do regresso às aulas P O R M A F A L D A A N J O S / Diretora

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em sei que as férias escolares estão aí, vai tudo a banhos e, à boa maneira portuguesa, enquanto o pau vai e vem, folgam as costas. Preferimos nem pensar muito no tema das escolas, porque até setembro sabe-se lá o que vai acontecer, e depois disso logo se vê. Nada mais errado. Andamos a fugir da questão há meses, com algum facilitismo: vamos tarde e vamos mal nesta matéria. Faltam respostas e indicações concretas. E se há tema que tem enorme impacto, transversalmente, em toda a sociedade é este: o que fazer com os nossos filhos daqui a dois meses? Vamos por partes. A abertura ou o fecho das escolas tem enorme impacto pandémico, como um pouco por todo o mundo se percebeu (só os peritos portugueses fechados lá no seu Conselho Nacional de Saúde logo no início ouvidos entenderam o contrário, mas adiante). Este é o sítio onde há maior índice de concentração diária de pessoas, fechadas em espaços pequenos, e pessoas estas que, por definição, são potencialmente irresponsáveis e pouco cuidadosas. Pensar, por exemplo, que usam sempre a máscara corretamente é uma ficção. Miúdos que vivem ou contactam com os seus agregados familiares, que muitas vezes estão entregues aos avós, potenciais grupos de risco, e que andam de transportes públicos. Vamos ser claros: abrir ou fechar escolas é das decisões com maior impacto na evolução do temido Rt, a taxa de contágio do vírus. Por outro lado, o papel das escolas na sociedade é muito maior do que ensinar a matéria aos alunos. É também um importantíssimo local de socialização, cidadania e empatia, de acompanhamento social, de apoio aos mais desfavorecidos. É, nunca é demais relembrar, nas escolas públicas que muitos miúdos têm a sua única refeição decente do dia. Por fim, a decisão da abertura das escolas impacta a vida de muitos milhões de portugueses. Sobretudo dos pais, que terão de se organizar nas suas rotinas diárias e profissionais: Vão ou não poder trabalhar nas empresas ou terão de ficar em teletrabalho os que conseguirem? Com quem deixam os miúdos? Terão atividades? Mas

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VISÃO 16 JULHO 2020

HISTÓRIAS DA CAPA

1 também dos professores, que têm de se adaptar e organizar nos seus métodos de ensino. Precisam de se equipar e preparar para reforçar as competências de ensino à distancia, ou nem por isso? Terão as condições de segurança necessárias? É verdade que convivemos com inúmeras incertezas. Não se sabe como vai o vírus evoluir, como será o comportamento no verão e no início do outono. Mas as respostas e orientações do Ministério da Educação sobre a abertura do próximo ano letivo têm sido poucas e demasiado vagas. Informou-se que o ano escolar pode reabrir com aulas presenciais, à distância ou em regime misto, ou seja, está tudo em aberto. E, de acordo com as indicações mais recentes, deve ser garantido, “sempre que possível”, o distanciamento de pelo menos um metro entre alunos. Uma exigência menor do que a que era recomendada anteriormente, que era de 1,5 a 2 metros. Com o tamanho de turmas que há hoje, tanto no público como no privado, quais são as escolas que permitem este distanciamento? Terão as turmas de se desdobrar? Mas como, se os horários já estão sobrecarregados? Com a evolução pandémica que se adivinha, não me parece possível um regresso 100% presencial. E não vejo que exista melhor alternativa do que as escolas reabrirem num regime misto. Com aulas presenciais e com aulas à distância. Mas, tal como acontece nas empresas, alternariam por turnos: metade das turmas vão à escola numa quinzena, a outra metade na seguinte, rotativamente, e os alunos que não vão à escola acompanham pela internet. Assim garante-se uma muito menor concentração de alunos nas escolas (e uma mais eficiente despistagem caso ocorra algum contágio), e ao mesmo tempo, liberta os pais pelo menos metade do mês para recuperarem as suas rotinas normais. Não é o ideal, mas é a solução que melhor coordena todos os interesses em causa. Não vai ser fácil, e é por isso que é melhor começar desde já a trabalhar no cenário mais provável. Tudo isto deveria ficar definido o quanto antes, pais e professores serem informados o mais depressa possível, e não ser improvisado em cima da hora (e do joelho) em setembro. manjos@visao.pt

O tema de capa são os brasileiros endinheirados que escolheram Portugal para viver. Temos boas fotos de reportagem...

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Porém, não passam a ideia de quem deu o salto para a Europa.

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Uma fotografia com um dos protagonistas da nossa história, Ricardo Bellino, resulta melhor.


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Beatrice Leanza Os museus competem com um modelo generalizado de entretenimento, rápido e intensivo. Esta situação está a afastar as pessoas de formas profundas e sustentadas de confronto consigo mesmas Diretora-executiva do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT)

MARIANA ALMEIDA NOGUEIRA

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VISÃO 16 JULHO 2020

MARCOS BORGA


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A nova diretora-executiva do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT) nasceu em Itália, mas a paixão pela Ásia e a vontade de viver no epicentro do presente levaram-na, em 2002, até Pequim. Foi na China que, ao longo de 17 anos, construiu uma carreira como curadora e crítica de arte, pautada por projetos que promovem a interdisciplinaridade nas artes e a construção de diálogos culturais. Chegou a Portugal em setembro de 2019 e, desde então, projeta um museu que seja casa para o debate de ideias que inquietam, tanto as instituições culturais como a sociedade. Habituada a ouvir os sinais do tempo, a fim de os interpretar, Beatrice Leanza, 41 anos, partilha com a VISÃO a sua necessidade de viver o tempo presente e refletir sobre o agora para construir um amanhã viável. O que levou uma rapariga de 24 anos a trocar a Europa pela Ásia, na viragem do milénio? Estava aborrecida. É sempre a resposta mais imediata que me apetece dar. Na realidade, penso que tenha sido uma encruzilhada de situações, uma confluência de ocorrências e de interesses que me levou até Pequim. Por um lado, especializeime em Estudos Asiáticos, com uma dissertação centrada na arte contemporânea chinesa. Por outro, encontrávamo-nos nessa viragem do milénio, com a entrada do mundo oriental nos circuitos de arte e, nessa altura, interessava-me muito o discurso em torno da questão da arte para a academia e a arte para o mercado. Percebi que, se queria entender a realidade que se estava a construir, não podia ser uma observadora à distância, tinha de ir lá. E o que viu fascinou-a? O século XXI trouxe um crescimento exponencial para a China, a que assisti com grande prazer e no qual

tive, de certo modo, o privilégio de participar. A mudança era palpável nos vários ambientes artísticos, os artistas começaram a reclamar espaços na cidade, não só físicos mas também ideológicos. A produção artística cresceu muito nessa altura. Essa produção artística acabou por se tornar refém dos mercados e do crescimento económico sentido na China? O dinheiro mexe tudo. É a base que põe a funcionar as ignições dos motores que abrem conversas. A China que começou a emergir após 1978 foi o início de tudo o que veio depois. A superestrutura artística contemporânea e experimental chinesa é um reflexo desta evolução política e começou a ser construída quando um país, que não tinha nada e que lidava com os poderes da censura, entra na Organização Mundial do Comércio e cresce economicamente. Foi libertador poder fazer parte disso. Liberdade não é uma palavra que associemos à relação que os chineses têm com o Governo. Sentiu-se constrangida na atividade artística? Veja o que, hoje, se passa nos Estados Unidos da América. Parece-lhe que aquelas pessoas se sentem livres? Elas estão a verbalizar de um modo extremamente gritante o quão insignificantes e ignoradas se sentem. A China não é o único país que nega direitos aos cidadãos. É uma ideia errada afirmar que os cidadãos chineses não exercitam a sua vontade ou direitos; têm apenas uma forma muito particular de o fazer, ditada pela História, pela cultura e por determinados eventos que marcaram o país. Que forma particular é essa? Usam a vontade que têm de fazer parte do “milagre chinês” e transformam-se em empreendedores. É uma questão muito difícil de generalizar, porque há sempre dois lados. Por exemplo, os artistas beneficiaram enormemente do crescimento económico chinês, fez deles milionários. Os curadores europeus deveriam começar a olhar com mais atenção para a arte contemporânea do Oriente? Já há muitos que olham. Aliás, acho que já olhavam no início do milénio, quando fui para Pequim, não só os curadores, mas também outros artistas e os críticos. No final da

década de 90 do século passado, sentiu-se um enorme entusiasmo relativamente à arte contemporânea chinesa. O Ocidente tem o hábito de se apaixonar por algo que considera exótico e focar-se nisso durante alguns anos. Primeiro, foi o Japão; depois, a China; depois, a Índia. Se procurarmos no Google os catálogos de arte dos últimos anos, verificamos esta realidade de uma forma muito evidente. Esta obsessão ajudou a consolidar o mercado de arte chinês à escala mundial? Não só. O mercado da arte faz parte de um sistema artístico mais global, que a China levou mais de dez anos a construir. Tem de se ir somando as peças, uma a uma, até o puzzle estar pronto. É preciso produção artística, é necessária a existência de mercado, de correntes underground, de instituições governamentais ou privadas que suportem tudo isto. Quando as peças encaixam todas, o sistema está pronto. E aí o adjetivo “contemporânea”, atribuído à arte, ganha uma nova dimensão? É um adjetivo que perdeu um pouco o significado. Encaro-o mais como uma procura de caminhos que permitam desemaranhar a forma como entendemos o presente. Enquanto sociedade, temos sérios problemas em perceber como viver o – e no – presente. Como coletivo, deveríamos olhar para as áreas artísticas enquanto ferramentas que nos permitem navegar através deste presente. São áreas de conhecimento que oferecem pontos de vista privilegiados para compreender a realidade do dia a dia. Como podemos entender melhor esse quotidiano? Quero evitar uma leitura dialética do presente, quebrar uma visão da realidade em que se encontram constantemente fronteiras, mesmo que sejam invisíveis, referências às origens, algo que senti também quando vivi na Ásia. No Ocidente, temos uma visão meio romanceada do mundo, que nos leva a pregar uma coisa e viver outra. Queremos diversidade, mas compartimentamos conceitos, impomos barreiras ao diálogo. Ao longo de toda a minha carreira, esforcei-me por criar, sempre que possível, avenidas de diálogos. O museu surge como um lugar 16 JULHO 2020 VISÃO

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que tem a capacidade de albergar confrontos de ideias e conversas, que, de outro modo, correriam o risco de não ter uma casa. É mais benéfico quando a contemporaneidade é entendida como um olhar sobre tópicos que sejam urgentes na sociedade. Nas últimas semanas, observámos conflitos fora das paredes dos museus, com a destruição de estátuas, de obras de arte pública. Que papel podem ter as instituições culturais na mediação deste género de conflitos? Cada instituição deve escolher o modo de agir e a posição a tomar. As instituições culturais têm de estar presentes para a comunidade que servem, independentemente das tensões de que estivermos a falar. Não há uma regra, não há fórmulas. Vivemos um momento histórico em que é muito complicado encontrar e definir uma solução única. Cada comunidade tem de ser entendida de acordo com as necessidades que apresenta. Em última análise, os museus têm o dever de continuar a construir avenidas através das quais possam passar conversas difíceis e conteúdos diversificados, que encontram nestas instituições espaço para serem ouvidos e moderados. A longo prazo, e não só no âmbito cultural, mas também político, social e económico, sabemos que, enquanto sociedade, temos a oportunidade de fazer melhor. É isso que representa abrir um museu ao presente. Outra questão prende-se com o impacto que as grandes feiras de arte e a troca de obras entre museus tem no ambiente. É algo que a preocupa? Enormemente. Acreditamos que um museu deve dar o exemplo de dentro para fora. Não apenas na comunidade artística, mas na cidade que serve, na comunidade em que está inserido. Das grandes às pequenas coisas, é uma questão que colocamos alto e bom som. A totalidade do exercício artístico que pusemos em prática dentro do museu assenta na questão da sustentabilidade. Por exemplo, numa reflexão sobre a ação que o ser humano tem no ambiente, a instalação sonora Extinction Calls permite ouvir, em todo o edifício, cantos de aves extintas ou ameaçadas. É uma chamada de atenção para o modo como vivemos o ambiente juntos. 12

VISÃO 16 JULHO 2020

Deveríamos olhar para as áreas artísticas enquanto ferramentas que nos permitem navegar através deste presente. São áreas de conhecimento que oferecem pontos de vista privilegiados para compreender a realidade do dia a dia

Tomaremos medidas muito concretas no sentido de diminuir a pegada ecológica do MAAT, desde a escolha de quem colaborará na produção das exposições, passando pela redução do excesso de materiais, sempre que possível, até à possibilidade de reciclar determinados elementos de algumas exposições. Todo o metal que constitui a Beeline, a instalação arquitetónica que se encontra na sala oval, será recuperado. Os cartões que usamos para nos identificarmos deixaram de ser em papel, são em PVC reciclado. Também já decidi que deixaremos de vender água engarrafada em garrafas de plástico e que retiraremos todas as máquinas de venda automática de comida e bebida. O negócio das exposições polui, é algo inegável, mas quero dar todos os pequenos passos possíveis a fim de torná-lo o menos impactante para o ambiente possível. Como dizia, o exemplo para o público, para a comunidade, tem de partir de dentro. Sente que esse público tem vindo a afastar-se dos museus? Como explica este aparente desinteresse? É uma questão um pouco mais complexa, dava uma discussão à parte. Atualmente, os museus competem com um modelo generalizado de entretenimento, muito rápido e intensivo. O cansaço mental e a deseducação ditam o modo como nos relacionamos com o mundo à nossa

volta. Esta situação está a afastar as pessoas de formas profundas e sustentadas de confronto consigo mesmas. As pessoas passam a ser incapazes de ter conversas. Por outro lado, as instituições deviam posicionar-se como zeladoras do conhecimento, mas também tentar perceber as audiências que têm à frente e encontrar uma forma de chegar até elas, mostrar-lhes a importância de manter conversas interessantes e pertinentes. Não podemos continuar a culpar a tecnologia, porque, ao fim e ao cabo, o problema é a educação. A programação do MAAT para os próximos meses vem, de certa forma, construir esta relação com a comunidade? O maat Mode 2020 é um programa que tem precisamente o objetivo de pensar o papel do museu na cidade. É um prelúdio do que farei no futuro, ao nível da programação. Claro que a Covid-19 veio atrasar a abertura do espaço físico ao público, mas iniciámos um programa online, uma semana depois de ter sido declarado o estado de emergência. Virtualmente ou no espaço do museu, as conversas podem sempre existir, desde que as pessoas sejam convidadas a participar. Estes diálogos podem surgir em workshops, palestras, atividades para famílias. Por exemplo, temos um programa de conferências com os artistas participantes na exposição The Peepshow, nas quais os puxamos para fora da zona de conforto. São desafiados a apresentar a pessoa que existe por trás do artista, o lado B. Têm espaço para mostrar a sua arte e o motor da liberdade que permite a cada um ser artista, ao mesmo tempo que se expõem de uma forma muito honesta perante o público. Outra forma que encontrámos de trazer o museu para fora das paredes foi através de conversas semanais, no YouTube, que juntam um convidado da área de Arquitetura com convidados de outras áreas criativas. Gosto desta multidisciplinaridade, de trabalhar com artistas, designers, arquitetos, urbanistas... enfim, construtores do futuro. Tem algum artista nacional de eleição? Tenho de admitir que não. Mas esta é uma excelente oportunidade para aprender e passar a conhecer novos artistas. mnogueira@visao.pt


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A INFORMAÇÃO QUE PRECISA EM TEMPOS DE PANDEMIA, COM O RIGOR, ISENÇÃO E CREDIBILIDADE VISÃO NESTA EDIÇÃO, FIQUE AINDA A SABER. ► Os doentes cardíacos têm mais probabilidade de contrair covid-19?

► A alimentação interfere no cancro?

► O que é pior para os diabéticos : açúcar a mais ou a menos ?

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► O que é o “DéJà-vu”?


RAIOS X

Turistas, nem vê-los

O turismo, um dos principais pilares da economia portuguesa, é dos setores que mais se estão a ressentir com os efeitos da pandemia

M A N U E L B A R R O S M O U R A mbmoura@visao.pt

Fecho das fronteiras, aviões em terra e deslocações limitadas empurraram o número de hóspedes, em Portugal, para quedas inéditas, em março e abril. E as restrições impostas por alguns países relativamente a viagens para Portugal ameaçam fazer deste verão um verdadeiro pesadelo para o setor

40

HÓSPEDES EM PORTUGAL EM CADA MÊS NOS ÚLTIMOS 10 ANOS (VARIAÇÃO PERCENTUAL HOMÓLOGA)

33,3%

20

0

2011

2012

-20

-40

-60

2013

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2015

2016

2017

2018

2019

2020

€3,8 mil milhões

Este é o valor estimado de perdas de receitas nos meses de julho e de agosto para o setor do turismo, causadas pela ausência de visitantes britânicos que, no ano passado, foram responsáveis por 9,4 milhões de dormidas, nos espaços hoteleiros portugueses, 5,9 milhões dos quais no Algarve, de acordo com os dados do Turismo de Portugal.

14,6%

Este foi o peso do consumo turístico no PIB nacional, em 2018. A força de trabalho envolvida no setor, em alojamento, restauração e similares, no final do primeiro trimestre de 2020, era de 322,7 mil pessoas, 6,6% do total de empregados na economia.

-62,3%

-80

-97,4%

2020 é um ano perdido. O próximo vai ser de recuperação. E 2022 será novamente o melhor ano do turismo” FRANCISCO CALHEIROS, PRESIDENTE DA CONFEDERAÇÃO DO TURISMO DE PORTUGAL, EM DECLARAÇÕES À EXAME FONTE INE, Instituto Nacional de Estatística, e a Exame

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VISÃO 16 JULHO 2020

INFOGRAFIA MT/VISÃO


EXAME

Nova edição A T U A L

C R E D Í V E L

L Í D E R

Privatizações

Férias por cá

Construção

Entrevista

Quem ficou com as empresas vendidas desde os anos 80?

Como o Turismo está a atacar este verão e o futuro

Os planos dos novos donos da Herdade do Pinheirinho

O desenvolvimento do País, aos olhos de Freire de Sousa

À

V E

J Á

N D A

J Á

À

V

E N D A

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POR RUI TAVARES GUEDES*

GETTY IMAGES

PONTOS DA SEMANA

UMA VACINA CHEIA DE DÚVIDAS

*Diretor-executivo rguedes@visao.pt

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VISÃO 16 JULHO 2020

No dia em que for anunciada a descoberta de uma vacina eficaz contra a Covid-19, o mundo vai respirar de alívio e até gritar de alegria. Mas quanto tempo durará a euforia? Quanto tempo resistirá a emoção de sentir que este pesadelo estará prestes a chegar ao fim? É melhor prepararmo-nos para uma festa rápida sem nos distrairmos do essencial: continuar a lavar as mãos demoradamente e usar a máscara sempre que sairmos à rua. Produzir vacinas para um planeta inteiro significa, neste momento, fabricar quase oito mil milhões de doses, e isso, naturalmente, vai demorar muito tempo. Além de que outra dúvida surgirá: quem serão os primeiros a beneficiar deste avanço científico? Quase tão difícil quanto a descoberta da vacina será a sua distribuição por um mundo ávido, mas habituado a assistir a uma enorme desigualdade no acesso aos medicamentos. Ninguém tem dúvidas, face aos concorrentes atuais, de que as primeiras vacinas serão descobertas e começarão a ser produzidas em países ricos. Para quem? Para as populações desses mesmos países ou para quem mais dela necessitar por esse planeta fora? Quem definirá os critérios para a distribuição? Como e quando poderão os países pobres ter acesso à vacina,

já que não têm dinheiro para garantir a sua compra? Este filme, se bem se recordam, já teve uma primeira parte logo no início da pandemia, naqueles tempos em que a escassez de máscaras cirúrgicas, de reagentes para testes e de ventiladores fez muitos países entrar numa escalada de preços para tentar assegurar a sua proteção. Mais tarde, viu-se também como a situação pode descambar rapidamente, quando Donald Trump deu ordem para comprar a produção quase total de Remdesivir, o medicamento que consegue encurtar o tempo dos doentes nos cuidados intensivos. Agora, seria conveniente voltar a ouvir Bill Gates, que há muito alertou para a mais que provável ocorrência desta pandemia e para a necessidade de os governos começarem a pensar já na produção e distribuição da vacina, mesmo antes de o seu fabrico estar concluído. Nos últimos dias, Gates deixou um novo aviso, ainda mais importante: “Se deixarmos que os medicamentos e as vacinas cheguem a quem pagar mais por eles, em vez de às pessoas e aos locais onde são mais necessários, teremos uma pandemia mais longa, mais injusta e mais mortal.” Ninguém diga que não foi avisado – mais uma vez.


530 NÚMERO

Mil jovens saíram de Portugal entre 2009 e 2019

FRASE

Estamos a viver uma tempestade perfeita” Anthony Fauci, imunologista que foi conselheiro de seis presidentes dos EUA, sobre a potência do vírus SARS-Cov-2, que considera “espetacularmente eficiente a espalhar-se de humano para humano” e que, ainda por cima, tem “um grau elevado de morbilidade e de mortalidade”

No espaço de uma década, o número de pessoas a viver em Portugal diminuiu em quase 300 mil, apesar de, entre 2009 e 2019, se ter registado um aumento da população idosa e um saldo migratório positivo, segundo revela um relatório da Pordata, agora divulgado. A maior quebra ocorreu no grupo etário entre os 25 e os 39 anos, que passou de 2,3 milhões em 2009 para menos de 1,8 milhões no ano passado.

EUA

Trump já usa máscara?

E U R O PA PORTUGAL

Estratégia sem milagre Uma versão preliminar do tão aguardado Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal 2020-2030, elaborado por António Costa Silva, foi entregue ao Governo. Nesse plano, o gestor elenca uma série de prioridades e de objetivos estratégicos para o País, que passam pelo alívio da carga fiscal, pela aposta numa linha ferroviária de alta velocidade, entre Lisboa e o Porto, e pela reindustrialização, de forma a tornar Portugal uma “fábrica da Europa”, entre muitos outros pontos incluídos nas 120 páginas do documento. As primeiras críticas foram rápidas a apontar que o documento não apresentava qualquer ideia milagrosa ou inovadora. Não é de estranhar: há muito que em Portugal o problema não é a falta de ideias, mas a de execução.

A hora decisiva de Angela Merkel Nos últimos dias, Angela Merkel tem multiplicado os seus recados sobre a União Europeia, em vésperas do decisivo Conselho Europeu de 17 e de 18 julho, em que espera que os líderes dos 27 não se unam apenas para lhe cantar os parabéns, no primeiro dia de trabalho, por causa do seu 66º aniversário. O seu objetivo é outro, conforme avisou o Parlamento Europeu: “Precisamos de uma solidariedade extraordinária.” A dúvida está em saber se ela consegue unir, sob a sua influência, os chamados países “frugais” (Holanda, Dinamarca, Áustria e Suécia) com os do Sul, mais atingidos pela pandemia e a precisarem, urgentemente, de um plano de apoio. Por repetidas vezes, ela tem afirmado que “ninguém sairá desta crise sozinho”, mas, às vezes, até parece que está a remar sozinha.

BRASIL

Demissão como arma Os dados oficiais têm confirmado as muitas denúncias que as organizações ambientalistas fazem há meses: este ano, a desflorestação da Amazónia está a aumentar a um ritmo recorde, muito superior ao de épocas anteriores. O que fazer para impedir a destruição do chamado “pulmão” da Terra? No go-

Noutros tempos, alguém teria gritado “parem as máquinas”, pois era preciso mudar a edição do jornal, que estava a ser impressa, porque acabava de chegar uma notícia importante. Agora, tudo isso é feito de forma instantânea, numa qualquer página da internet. O mais surpreendente é quando, nestes tempos estranhos em que vivemos, a “grande notícia” é algo de corriqueiro e banal já para milhões de pessoas em todo o mundo: usar uma máscara de proteção, no meio de uma pandemia. A diferença é que, desta vez, foi o Presidente dos EUA, Donald Trump, a fazê-lo, durante uma visita a um hospital militar. Para se proteger? Não, com certeza, de um vírus que ele sempre desvalorizou – só se for das sondagens que indicam que a sua reeleição está cada vez mais difícil...

verno de Bolsonaro usa-se a técnica já utilizada noutros setores, como no da Saúde e no da Educação, em que os ministros estão sempre a ser substituídos. Agora, na Amazónia, o método foi o mesmo: demitiu-se a coordenadora-geral do organismo que vigia e mapeia o desmatamento. Acabam, assim, os números incómodos.

16 JULHO 2020 VISÃO

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HOLOFOTE

Paschal Donohoe O Roy Keane das Finanças

O debate como desporto Paschal Donohoe nasceu há 45 anos, num bairro residencial do Norte de Dublin. O pai trabalhava para a empresa de ferries StenaSealink, que ligava a Irlanda à Grã-Bretanha, e tinha um pequeno negócio de aluguer de tendas para exposições – o primeiro trabalho de Paschal foi a ajudar o pai a montar tendas. Depois de completar o ensino secundário numa escola católica só para rapazes, ganhou uma bolsa para estudar Política Económica na Faculdade de Trinity, na Universidade de Dublin. A asma impediu-o de almejar grandes voos no desporto, mas em contrapartida fez-se membro de clubes de debate, o que lhe daria estofo para a carreira que o esperava.

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Das vendas para a política Após a universidade, foi contratado pela Procter & Gamble, em Newcastle, Inglaterra, onde trabalhou seis anos e chegou a diretor de vendas e marketing. Nessa altura, conheceu a mulher com quem viria a casar em 2001, a inglesa Justine Davey. Dois anos depois do casamento, um amigo convenceu-o a abandonar a carreira no setor privado e a regressar a Dublin para se candidatar a membro da câmara municipal, nas eleições de 2004. Donohoe seria um dos 63 eleitos.

VISÃO 16 JULHO 2020

O MINISTRO IRLANDÊS BATEU A ESPANHOLA NADIA CALVIÑO, FAVORITA A SUCEDER A CENTENO NA PRESIDÊNCIA DO EUROGRUPO, O QUE É VISTO COMO UMA VITÓRIA DOS PAÍSES PEQUENOS CONTRA OS GRANDES LUÍS RIBEIRO

O ministro do excedente Donohoe subiu aos poucos na hierarquia do Fine Gael, o principal partido de centro-direita irlandês. Em 2013, chegou a ministro pela primeira vez, assumindo a pasta dos Assuntos Europeus. Tornou-se entretanto ministro dos Transportes e do Turismo, passou para ministro da Despesa Pública e das Reformas e, finalmente, aterrou nas Finanças. Considerado conservador e cuidadoso com as contas, conseguiu o primeiro excedente orçamental na Irlanda desde a crise de 2008 – tal como Mário Centeno em Portugal.

Vitória dos pequenos A eleição do irlandês para o Eurogrupo foi uma surpresa. A espanhola Nadia Calviño contava com o apoio dos gigantes: além do seu país, também Alemanha, França e Itália (e ainda Portugal) estavam do seu lado, o que corresponde a 80% do PIB da União Europeia. Mas não conseguiu a maioria à primeira; à segunda, os três países que apoiavam o candidato do Luxemburgo passaram para o lado de Donohoe, numa vitória dos países pequenos face aos grandes. O novo presidente do Eurogrupo, no entanto, não tem muito tempo para celebrar: cabe-lhe tentar recuperar uma economia esfrangalhada pela pandemia.


INBOX

M O D É S T I A À PA R T E

A importância desta série é manter o tema vivo. Afinal, o que tem a igualdade de tão assustador?

Estava apenas a tentar ser um pai responsável JOHNNY DEPP Em tribunal, o ator explicou que forneceu marijuana à filha Lily Rose, na altura com 13 anos, para que ela não experimentasse drogas com pessoas que não conhecia

Gostaria de apelar a todos os líderes para que escolham o caminho das energias limpas, por três razões vitais: saúde, Ciência e economia. O carvão não tem lugar nos planos de recuperação económica pós-Covid-19

CATE BLANCHETT A atriz australiana interpreta o papel de Phyllis Schlafly, uma antifeminista norte-americana que liderou a campanha contra a Emenda para a Igualdade de Direitos, na década de 1970

FRASE DA SEMANA

Défice de 7% traduz bem a crise brutal que vamos viver

C H O Q U E F R O N TA L

MARCELO REBELO DE SOUSA O Chefe de Estado comentava as previsões económicas para a segunda metade do ano, que são piores do que se pensava inicialmente

ANTÓNIO GUTERRES Apelo do secretário-geral da ONU, num encontro online, promovido pela Agência Internacional de Energia (AIE), sobre a transição para as energias limpas

Desperdiçamos tempo e dinheiro com sistemas atrasados no Estado

A pandemia da Covid-19 não está controlada. Antes pelo contrário, está a piorar

A sociedade tem o de de ter noção ão vai que o vírus não o, está ser eliminado, espalhado por ndo todo o mundo

JOSÉ TRIBOLET O cofundador e presidente do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores dá como exemplo o Portal das Matrículas

TEDROS GHEBREYESUS O diretor-geral da OMS anunciou a criação de um comité para avaliar a resposta à pandemia

PEDRO SIMAS MAS O virologista defende efende que é preciso aprender prender a viver com o vírus, protegendo a população pulação mais vulnerável ável

Fontes: The Independent, SIC, TVI, Page Six, Diário de Notícias 16 JULHO 2020 VISÃO

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ALMANAQUE

NÚMEROS DA SEMANA

5 000

73 201

O número de pessoas desaparecidas no México já ultrapassou as 73 mil, sendo que a maioria – 71 678 – desapareceu desde que a violência ligada ao tráfico de estupefacientes se intensificou em 2006, indicaram as autoridades. Segundo a Comissão Nacional de Buscas, houve um aumento de dez mil desaparecidos desde janeiro de 2019 e, desde que o atual Governo tomou posse, em 2018, registaram-se 27 871 casos.

15 000

A Maçonaria portuguesa, através da Grande Loja Legal de Portugal/Grande Loja Regular de Portugal (GLLP/GLRP), enviou 15 mil máscaras cirúrgicas para São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Guiné-Bissau, apoiando o combate à pandemia da Covid-19.

73 985

A Polícia Federal do Brasil concedeu, no primeiro semestre deste ano, perto de 74 mil registos de armas de fogo, o que representa 89% do total atribuído em 2019, no país. 20

VISÃO 16 JULHO 2020

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O futebol voltou a França, após a suspensão do campeonato há quatro meses devido à Covid-19, com o Paris Saint-Germain a golear o Le Havre num jogo particular, para o qual as autoridades permitiram a entrada de cerca de cinco mil adeptos.

Máscaras e luvas são a nova praga Materiais de proteção contra a Covid-19 estão a ser encontrados em grandes quantidades em rios europeus Os cientistas dos laboratórios parceiros de Tara encontraram máscaras e luvas nas margens e nas praias de sete rios europeus, durante recolhas de amostras efetuadas em junho, disse Romy Hentinger, chefe da cooperação internacional desta fundação francesa para a proteção dos oceanos, à rádio francesa France Inter. “É preocupante para o futuro” porque se pode “deduzir que outras já chegaram ao mar”, acrescentou a porta-voz, sublinhando que as máscaras de proteção de uso único, feitas de polipropileno e “muito finas”, “irão fragmentar-se rapidamente”. Os rios em causa estão entre os nove maiores rios europeus

explorados em 2019 pelos cientistas, no âmbito de uma missão relacionada com microplásticos: Tamisa, Elba, Reno, Sena, Ebro, Ródano, Tibre, Garonne e Loire. “Estamos à espera dos resultados finais destes cientistas, que estão em vias de completar o estudo destes rios”, acrescentou Romy Hentinger. Uma expedição realizada entre maio e novembro de 2019 já tinha detetado a presença de microplásticos em 100% das amostras de água, revelando que já estão presentes nos rios e que “não se degradam no mar, sob a influência dos raios UV e do sal”, como se pensava, explicou Martin Hertau, capitão daquele laboratório flutuante.

UNESCO

Serra da Estrela já é um Geopark Mundial O Geopark Estrela foi reconhecido, na sexta-feira, 10, como Geopark Mundial pelo Conselho Executivo da UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. A candidatura fora entregue em novembro de 2017, aprovada pelo Conselho Mundial de Geoparques em setembro de 2019 e, agora, foi ratificada por aquele organismo numa reunião do conselho executivo, juntamente com mais 14 novos Geoparques Globais na Europa, Ásia e América Latina, o que eleva a Rede Global “para 161 em 44 países”. Além da serra portuguesa, foram agora designados os geoparques de Cliffs of Fundi e Discovery (Canadá), Xiangxi e Zhangye (China), Lauhanvuori-Hämeenkangas (Finlândia), Toba Caldera (Indonésia), Rio Coco (Nicarágua), Hantangang (República da Coreia), Yangan-Tau (Rússia), Djerdap (Sérvia), Granada e Maestrazgo (Espanha), The Black Country (Reino Unido), Dak Nong (Vietname) e Kula-Salihli (Turquia). Em Portugal, a serra da Estrela vem juntar-se a Açores, Arouca, Naturtejo da Meseta Meridional e Terras de Cavaleiros.


TRANSIÇÕES

MORTES

O advogado João Araújo, que defendeu o ex-primeiro-ministro José Sócrates na Operação Marquês e que já não acompanhou a fase final do debate instrutório do processo devido à sua situação de saúde, morreu no passado dia 8. Tinha 70 anos e sofria de cancro. A atriz Kelly Preston morreu na manhã de domingo, 12, aos 57 anos, depois de uma batalha de dois anos mantida em privado contra um cancro da mama, confirmou o marido, John Travolta, na sua conta de Instagram. A filha dos líderes anti-Apartheid da África do Sul, Nelson Mandela e Winnie Mandela, morreu na segunda-feira, 13, num hospital de Joanesburgo. Zindzi Mandela tinha 59 anos e era embaixadora da África do Sul na Dinamarca. Em 1985, foi ela quem leu para todo o mundo a carta em que o pai recusava ser libertado em troca da denúncia de crimes praticados pelo Congresso Nacional Africano.

MUDANÇA DE NOME

A equipa de futebol americano de Washington, que há 87 anos era denominada Redskins, vai trocar de nome, por este ser considerado de teor racista, uma vez que é usado para designar nativos da América do Norte. Na segunda-feira, 13, o clube explicou que, após “análise aprofundada”, chegou à conclusão de que também o logótipo, que identifica um índio, é racista, pelo que será igualmente substituído.

J A C K C H A R LT O N 1 9 3 5 - 2 0 2 0

O defesa goleador Em 1966, fez parte da equipa de Inglaterra que fez Eusébio e milhões de portugueses chorar. Em 1995, fomos nós que nos rimos à conta da sua Irlanda, país que o recebeu como um dos seus Jack Charlton fez toda a sua carreira de futebolista no Leeds, ao serviço do qual fez 773 encontros e marcou 96 golos, apesar de ser defesa-central, vencendo, entre outras provas, um campeonato inglês e uma Taça das Cidades com Feiras, que antecedeu a Taça UEFA. Só chegou à seleção aos 30 anos, mas ainda a tempo de disputar 35 jogos e marcar seis golos. Foi, ao lado do seu irmão Bobby, campeão do mundo em casa, em 1966, num Mundial em que a Inglaterra eliminou Portugal, de Eusébio e demais Magriços, nas meias-finais. Como treinador, Jack Charlton passou por Middlesbrough, Sheffield Wednesday e Newcastle, mas foi com a seleção irlandesa que teve mais sucesso, levando a equipa ao Euro’88, na Alemanha, e aos quartos de final do Mundial’90, em Itália. Orientaria ainda a seleção do trevo por mais seis anos. Falhou as qualificações para o Euro’92, na Suécia, e o Mundial’94, nos EUA. E o mesmo aconteceu com

o campeonato da Europa de 1996, em Inglaterra. Desta vez, frente a Portugal, no Estádio da Luz, numa noite chuvosa de novembro. A República da Irlanda vendeu cara a derrota, que só aconteceu depois de uma hora de jogo, com golos de Rui Costa, Hélder e Cadete. Portugal regressava a Inglaterra, onde perdera a presença na final de 66 perante a equipa dos irmãos Charlton, e Jack anunciava a intenção de dizer adeus à seleção irlandesa. Não sem que antes os milhares de irlandeses que se deslocaram a Lisboa exigissem a sua presença no relvado, uma hora depois do apito final. “We want Jack, we want Jack!”, gritaram, fazendo com que o inglês mais irlandês do mundo aceitasse ficar mais um ano no cargo. Em 1996, terminou a carreira e retirou-se para a sua casa, em Northumberland, Norte da Inglaterra, para junto da família. Na última sexta-feira, 10, morreu, como 85 anos, depois de lutar contra um linfoma e a demência. M.B.M. 16 JULHO 2020 VISÃO

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PRÓXIMOS CAPÍTULOS

Em 2019, Santa Sofia recebeu 3,8 milhões de visitantes PERISCÓPIO

MARCOS BORGA

TGV

I S TA M B U L

Santa Sofia entre credos

O regime turco decidiu voltar a transformar a antiga basílica de Constantinopla em mesquita, já a partir do dia 24 –uma decisão que desagradou ao mundo cristão O primeiro-ministro turco, o islamita e conservador Recep Tayyip Erdogan, cumpriu, na semana passada, uma das suas mais antigas promessas: transformar a Basílica de Santa Sofia numa mesquita. Na sexta-feira, 10, o Conselho de Estado, o mais alto tribunal administrativo da Turquia, aceitou o pedido de diversas associações, tendo revogado uma medida governamental de 1934, que conferia a Santa Sofia o estatuto de museu. Logo após esta decisão, Erdogan anunciou que a antiga basílica bizantina de Constantinopla passará a estar aberta às orações muçulmanas enquanto mesquita, já a partir do dia 24 de julho. Esta é uma importante obra arquitetónica que foi construída no século VI pelos bizantinos, que ali coroaram os seus imperadores, sendo classificada como Património Mundial pela UNESCO e uma das principais atrações turísticas de Istambul. Em 2019, a basílica recebeu cerca de 3,8 milhões de visitantes. Convertida em mesquita em 1453, após a captura de Constantinopla pelos otomanos, foi transformada em museu em 1934 pelo líder da jovem República da Turquia, Mustafa Kemal, desejoso de “oferecê-la à Humanidade”. Vários países, nomeadamente a Rússia e a Grécia – que seguem de perto o destino da herança bizantina na Turquia –, assim como O MAR os Estados Unidos da América e a França, criticaram a decisão de Erdogan. A UNESLEVA O MEU CO, por sua vez, lamentou “profundamenPENSAMENTO te” a decisão “tomada sem diálogo prévio”, enquanto o Conselho Mundial de Igrejas, PARA ISTAMBUL. que reúne cerca de 350 igrejas cristãs PENSO EM (nomeadamente protestantes e ortodoxas), manifestou a sua “tristeza” e “consternação”. SANTA SOFIA E O próprio Papa Francisco disse estar “muito ESTOU MUITO angustiado” com o destino de Santa Sofia. Nada que faça Erdogan mudar de ideias. ANGUSTIADO O líder turco acusa “aqueles que não troPAPA FRANCISCO peçam contra a islamofobia nos próprios Durante a leitura da países” de atacar “a vontade da Turquia de mensagem do Dia Internacional do Mar usar os seus direitos soberanos”. M.B.M. 22

VISÃO 16 JULHO 2020

Volta, Sócrates, estás perdoado Já é conhecido o draft do plano de recuperação económica, elaborado pelo consultor do Governo, António Costa Silva. Entre as várias propostas que implicam uma forte aposta no investimento público, está o regresso da alta velocidade, para já, entre Lisboa e Porto, e, depois, com ligações a Espanha, bem como a construção de um novo aeroporto, para a Área Metropolitana de Lisboa. No seu retiro da Ericeira, José Sócrates já deve estar a ajeitar o nó da gravata: TGV e aeroporto? O País precisa dele! PRESIDENCIAIS Marcelo “on the road” Marcelo Rebelo de Sousa parece estar num contrarrelógio final, de forma a

recuperar as boas graças – e respetivas intenções de voto... – de uma certa direita, alegadamente desiludida devido à sua coabitação com António Costa. Depois de ter substituído a vichyssoise por “um reforço de chantilly” (segundo revelado pelo Expresso), num almoço com personalidades ligadas ao Observador, nesta semana, a VISÃO revelou que Salvador Malheiro, nada mais do que um dos vicepresidentes do PSD, pode vir a ser o seu diretor de campanha. Mas a cereja no topo do bolo foi a sua visita à Madeira, onde parece ter conseguido controlar os danos: depois desta, o presidente do Governo Regional, Miguel Albuquerque, terá “congelado” as suas intenções de protagonizar uma candidatura alternativa a Belém...

LISBOA Vai tudo ficar às cores Depois de, há uns anos, a Câmara Municipal de Lisboa ter pintado de cor de rosa o asfalto de uma rua, na zona do Cais do Sodré, a pulsão cromática voltou, em força, e desta vez em tons de azul, à Rua dos Bacalhoeiros. Segue-se o verde, noutra artéria. Estará Fernando Medina a compor um arco-íris, à dimensão de uma Joana Vasconcelos, para nos dizer que “vai ficar tudo bem”?...


OPINIÃO

As labaredas do inferno P O R J O S É M A N U E L P U R E Z A / Professor universitário. Deputado do Bloco de Esquerda

O

episódio conta-se em poucas palavras. Na semana passada, numa audição parlamentar no âmbito do trabalho de especialidade da lei de despenalização da morte assistida, um representante da Federação Portuguesa pela Vida dirigiu-se aos deputados dos partidos proponentes da despenalização assim: “Só vos desejo que não passem o resto da vossa vida com a responsabilidade de terem aprovado esta lei!” A violência brutal deste “desejo” é a expressão do fanatismo de uns poucos no debate da despenalização da eutanásia. Incapazes de lidar com uma sociedade eticamente plural, usam a ameaça das labaredas do inferno como técnica de pressão. Creem-se guardiões da única doutrina verdadeira e pura e investidos na missão de converter o mundo ao Bem (que é o deles, claro), fazendo guerra aberta contra quem acolhe coerentemente o pluralismo. Não têm opiniões, têm dogmas. Têm dogmas deontológicos e têm dogmas jurídicos. Por isso, a rigidez dos códigos é o seu escudo contra o que de desarmante há na livre determinação de cada um perante o que lhe acontece. E essa é a questão central do debate sobre a despenalização da morte assistida: decidir se deve prevalecer a rigidez de um código que condena à prisão o médico que entende, em consciência, ajudar um doente irreversivelmente violentado pela dor e pela degradação física a antecipar a morte, poupando-o ao extremar dessa violência que a continuação do sofrimento significa para ele, ou se se deve abrir, excecional e prudentemente, esse código a considerações elementares de humanidade, que são a última salvaguarda do respeito de cada um por si próprio quando a dor está a tomar conta de uma vida que chega ao fim. O fechamento às vidas concretas das pessoas concretas e à liberdade de decisão de cada um numa ordem de valores plural é a marca do dogmatismo fanático. Para os dogmáticos, a convivência tolerante entre mundividências é sinal de afrouxamento relativista, de abertura ao vale tudo, de banalização do mal. À tolerância, os dogmáticos

preferem invariavelmente o absolutismo das categorias abstratas sempre formuladas no singular para serem convenientemente ferramentas do seu poder (falam da vida, não falam das vidas; falam da verdade, não falam das diferentes parcelas de verdade). E, como expressão desse fechamento à diversidade das vidas, o dogmatismo fanático ergue trincheiras na lei penal e nos códigos deontológicos. Para o dogmatismo, se a realidade de heterogeneidade de convicções fundas das pessoas (dos médicos, por exemplo) contraria a unicidade da regra legal ou deontológica, é a realidade que está mal e a regra que está certa. Absolutize-se, portanto, a norma e a realidade converter-se-á. Pelo meio, aos que tentem mudar a lei ameace-se com as labaredas do inferno. Os anunciadores das labaredas do inferno não conseguem viver com uma pequena coisa: a liberdade dos outros. A tal ponto que, quando ela os contraria, chamam-lhe libertinagem. O livrearbítrio é algo que lhes causa uma urticária terrível. Para eles, vale o mandamento e a obediência, porque a autonomia de decidir de cada um é uma manifestação de soberba, de individualismo, de desdém para com a “ordem natural”. Para eles, lei que se afaste dessa ordem é celerada e a tarefa do legislador é estritamente pôr em letra de código um suposto direito natural que ninguém discutiu, porque a discussão só traz problemas aos dogmas. Legislador que se atreva a ir mais longe, a não prescindir da sua liberdade de ponderar os valores diversos que coexistem na sociedade concreta é legislador ímpio, leviano, condenado ao fogo eterno. Que mundo tão triste, o do fanatismo dos dogmáticos! Todos, crentes seja no que formos, vivemos a vida como um dom. O dom maior que é possível conceber. Fazer dessa experiência de dom uma experiência de aprisionamento – “foi-te dada, tens de a levar até ao fim, não sejas ingrato” – é uma brutal contradição. É cada um de nós que administra esse dom – essa é a nossa maior responsabilidade, esse é o nosso maior direito. E não há labaredas do inferno capazes de nos privar dessa responsabilidade e desse direito. visao@impresa.pt

“Que mundo tão triste, o do fanatismo dos dogmáticos!”

16 JULHO 2020 VISÃO

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IMAGENS

RESIGNAÇÃO E R E VOLTA

FOTO: ANDREJ ISAKOVIC /GETTY IMAGES

FOTO: FOTO: ANDREI PUNGOVSCHI/GETTY IMAGES

As medidas de confinamento continuam a gerar manifestações de protesto, numa altura em que crescem os casos de Covid-19 e em que a Natureza, sempre ela, deixa a sua marca, por vezes de forma trágica

BUCARESTE, ROMÉNIA Uma mulher reza, durante um protesto contra as medidas de confinamento, decretadas pelo governo, para fazer face à pandemia

FOTO: HECTOR VIVAS/GETTY IMAGES

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VALLE DE CHALCO, MÉXICO Trabalhadores abrem várias covas em simultâneo, devido ao crescimento do número de mortes. O México já é o quarto país do mundo com mais vítimas mortais por Covid-19

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VISÃO 16 JULHO 2020

BRISTOL, REINO UNIDO Vista aérea da Queen Square, onde foram pintados corações na relva para promover o distanciamento social, numa altura em que se reabriram bares e restaurantes no país


FOTO JOHAN ORDONEZ /GETTY IMAGES

BELGRADO, SÉRVIA Os protestos contra as medidas de confinamento tornaram-se violentos na capital da Sérvia, depois de o governo ter imposto mais restrições para tentar fazer face ao amento do número de casos com Covid-19

SAN MIGUEL PETAPA, GUATEMALA Trabalhadores de uma fábrica têxtil tomam as suas refeições separados por plásticos, agora, no regresso ao trabalho, após um mês de quarentena 16 JULHO 2020 VISÃO

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IMAGENS

FOTO: STR/GETTY IMAGES

FOTO: CHAIDEER MAHYUDDIN / GETTY IMAGES

MEULABOH, INDONÉSIA Muitas casas ficaram destruídas, na província de Aceh, na sequência de uma violenta tempestade que provocou vagas enormes, que varreram algumas das zonas mais densamente habitadas da região

FOTO: CHARLY TRIBALLEAU/ GETTY IMAGES

FOTO: NELSON NUNES

KUMAMOTO, JAPÃO Chuvas torrenciais provocaram grandes inundações e o deslizamento de terras. As autoridades dizem que cerca de 60 pessoas terão morrido e que os prejuízos são enormes, com muitas habitações destruídas

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VISÃO 16 JULHO 2020

ALQUEVA, PORTUGAL O cometa Neowise a brilhar na noite do Alentejo, numa das melhores zonas da Europa para se observar o céu estrelado. Recentemente descoberto, este cometa só voltará a ser visível a partir da Terra daqui a mais de 6 800 anos


FOTO: GARY HERSHORN / GETTY IMAGES

JIUJIANG, CHINA Ruas submersas e edifícios inundados, na província de Jinxiang, depois de uma barragem ter cedido devido à forte pressão das águas, provocada pelas chuvas torrenciais. As autoridades contam mais de 140 vítimas mortais

NOVA IORQUE, EUA Uma tempestade sobre o céu de Manhattan, vista de Jersey City. Um aviso de nuvens negras quando a cidade tenta regressar ao normal

16 JULHO 2020 VISÃO

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Em família A consultora imobiliária Nídia Saba com o marido e as filhas. Mudaram-se para Portugal no verão de 2018, depois de duas décadas a viver nos EUA

A vida dos brasileiros ricos em Portugal


Nunca houve tantos brasileiros a residir em Portugal, cada vez mais procurado por famílias abastadas do país irmão. Algumas chegam diretamente dos Estados Unidos da América, o destino de eleição nas últimas décadas. Como vivem, que negócios trazem e o que tanto as seduz neste cantinho da Europa – um porto seguro para enfrentar a pandemia, dizem, graças ao sistema de saúde RUI ANTUNES

MARCOS BORGA


Assim que Portugal decretou o estado de emergência, no dia 18 de março, Andrea e Rodolfo Guerra rumaram à serra da Arrábida. Quando trocou a cidade de Belo Horizonte por uma vida nova em Lisboa, em 2017, o casal brasileiro adquiriu ali uma quinta, com animais e árvores de fruto, refúgio perfeito sempre que pretendem desligar dos negócios que têm na capital, entre a arte e o imobiliário. Isolarem-se no meio da Natureza, para escapar à pandemia, pareceu-lhes a decisão mais sensata. “Fechámos tudo e fomos para lá dois meses, em autoconfinamento. Cultivámos hortas e nasceram cinco porquinhos, 14 pintinhos e quatro pássaros”, alegra-se Andrea, dando graças por estar deste lado do Atlântico, num momento em que o mundo enfrenta uma crise sanitária sem fim à vista. “Olho para o Brasil e vejo como beneficiamos de segurança ao nível da saúde. Aqui, sabemos alguns números. Lá, são os nossos conhecidos que estão infetados, é o nosso vizinho, o vírus está à porta de nossas casas. Até o Bolsonaro foi capa no New York Times por ter dado positivo.” Rodolfo não tem dúvidas: “Sentimo-nos muito mais seguros cá. Do Presidente da República à pessoa mais humilde, todos tiveram uma atitude responsável.” A confiança no sistema de saúde parece ser a mais recente virtude que as famílias mais abastadas do Brasil estão a descobrir em Portugal. Ao contrário do que era regra, já não são apenas brasileiros à procura de emprego em setores menos qualificados, como o da restauração ou o da construção civil, a instalarem-se no nosso país para viver. Agora, além de profissionais qualificados, assiste-se à chegada de famílias de classe alta que, durante as últimas duas décadas, tinham preferido rumar em massa 30

VISÃO 16 JULHO 2020

Aposta Andrea e Rodolfo Guerra com a família na sua galeria de arte peculiar, em Alfama. A Primner, assim se chama, também é joalharia, café e lugar de tertúlias

para os Estados Unidos da América. Cada vez mais, deixam-se seduzir pelo estilo de vida europeu, e até a crise pandémica joga hoje a favor da opção Portugal, admitem, com elogios ao Serviço Nacional de Saúde. O médico José Hugo Luz, a realizar um doutoramento no Hospital Curry Cabral, na área do cancro, destaca a capacidade de antecipação como um fator decisivo para o sistema público não ter entrado em colapso. Os próximos tempos prometem manter o nível de alerta. A Covid-19 está longe de controlada, e a recuperação económica, tão dependente do turismo, surge como outra grande incógnita no horizonte. Nada que abale

o otimismo de Rodolfo Guerra. “É evidente que esta situação afeta o mundo inteiro, mas o turismo é como andar de bicicleta, nunca se perde o jeito. Num prazo que eu não sei dizer se é de três meses ou de dois anos, Portugal vai afirmar-se como a grande zona balnear de luxo da Europa”, antevê, tão convicto quanto o empresário Ricardo Bellino sobre o impacto positivo da pandemia no empreendimento de luxo que tem projetado para a região de Alcácer do Sal. DÉJÀ-VU

Depois de uma queda em meados da década passada, o número de brasileiros a residir em Portugal tem vindo


Sentimo-nos mais seguros cá. Do Presidente ao mais humilde, todos tiveram uma atitude responsável RODOLFO GUERRA, empresário

Número de brasileiros em Portugal 151 304 119 363

2010

111 445 105 622

2011

2012

FONTE Serviço de Estrangeiros e Fronteiras

92 120 87 493 82 590 81 251 85 426

2013

2014

2015

2016

2017

105 424

2018

2019 AR/VISÃO

a aumentar ano após ano. Em 2019, atingiu um novo máximo, acima dos 151 mil. O antigo embaixador do Brasil nos Estados Unidos da América e em Portugal, Luiz Alberto Machado, associa estas oscilações “às perspetivas económicas mais ou menos favoráveis em momentos históricos específicos”. Assim como na primeira metade da década de 2010, quando a economia portuguesa “passava por dificuldades”, se verificou “um aumento no fluxo de emigrantes portugueses” para o Brasil, em anos mais recentes “a tendência inverteu-se”, no entender do diplomata, por via das “facilidades legais oferecidas pelo Estado português” e do “bom trabalho que sucessivos governos fizeram na promoção da imagem do País como um destino atraente”. A mensagem alastrou-se por brasileiros radicados na América, tanto que muitos estão a chegar diretamente daquele que é o principal destino das grandes fortunas do Brasil. Na bagagem, uma vontade de abrir negócios distintivos e criar riqueza. “Parece que estou a assistir ao mesmo fenómeno pela segunda vez”, comenta Nídia Saba, 49 anos, que se mudou para Portugal, no verão de 2018, depois de duas décadas nos Estados Unidos da América. “Quando cheguei, em 1997, havia apenas um ou outro brasileiro com casa de férias e, de repente, foi uma enxurrada para lá”, concretiza, ao estabelecer um paralelo com a nova vaga de imigração para Portugal de compatriotas endinheirados. Em Orlando, na Flórida, esta consultora imobiliária fez carreira no mercado de casas de luxo, e é neste fluxo intercontinental de brasileiros 16 JULHO 2020 VISÃO

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Sonho O empresário Ricardo Bellino quer construir um empreendimento de luxo ligado ao polo, na Herdade da Comporta

que aposta desde que inaugurou, no ano passado, na Marina de Cascais, uma franquia da Piquet Realty, agência com escritórios em Orlando, Miami e Nova Iorque. É por lá que anda neste mês de julho. Embora condicionado, nos últimos meses, pelas restrições impostas pelo novo coronavírus, o foco passa por identificar ali clientes a quem possa “vender” o Portugal que a cativou desde a primeira viagem exploratória, em 2015. Hospedada num hotel da Avenida da Liberdade, Nídia lembra-se bem da impressão inicial. “Eu vinha de uma cidade onde tudo parece um conto de fadas, por causa da Disneylândia. Mas ao apreciar esta combinação de cidade grande com serra e Natureza, tão acolhedora, falei: ‘Nossa, Portugal é bacana’.” Desde então, não parou de colecionar trunfos. Do regime fiscal ao custo de vida – incluindo “educação, financiamento bancário e seguro de saúde” –, da “afetuosidade dos portugueses” à “proximidade das grandes cidades europeias”, dos “restaurantes familiares” e com “mais Estrelas Michelin” ao vinho e respetivas provas “na Cartuxa, Bacalhôa e Adega Mãe”, sem esquecer a “língua em comum e a fluência generalizada em inglês”, a segurança, o clima, as praias, os museus, os castelos. Com os clientes que já vivem em Portugal, não precisa de tantos argumentos. A própria pandemia, em vez de obstáculos, criou oportunidades. “Não teve um lado ruim para nós. Os estrangeiros estão a sair dos apartamentos em Lisboa para moradias”, constata. “Só atrapalhou nas visitas, mas mostramos vídeos ou usamos luvas, máscaras e proteção para sapatos. Até parece que estou na Lua.” O SOBE-E-DESCE DE SINTRA

Assim que as duas filhas adolescentes começam as aulas, Nídia gosta de acompanhar o marido Carlos num passeio de bicicleta. A partir da moradia onde residem na Quinta Patino, o condomínio privado em Alcabideche (Cascais) que rivaliza com a Quinta da Marinha no campeonato de mansões por metro quadrado, chegam a pedalar 60 quilómetros numa manhã. O desafio é quase sempre o mesmo: o sobe-e-desce da serra de Sintra. Em Orlando, as ruas floridas e os lagos abundantes embelezam o cenário. Só que o terreno sempre plano 32

VISÃO 16 JULHO 2020

Cada vez mais, as pessoas procuram refúgios afastados dos grandes centros urbanos RICARDO BELLINO, empresário

torna-se monótono para qualquer ciclista que se preze, mesmo amador. Os circuitos acidentados da Penha Longa, da Malveira da Serra ou da Pena, enquadrados por uma paisagem não menos exuberante, são mais aliciantes do que a terra da Disneylândia. É já em fim de conversa que ela confidencia como estes percursos sinuosos entusiasmaram o marido na mudança para o país dos bisavós dele – os Gama Rodrigues, do lado materno, e os Camacho, do lado paterno. As 12 bicicletas alinhadas na garagem, quatro adquiridas já em Portugal, não a deixam mentir. O fuso horário é perfeito: uma vez que Carlos gere negócios na América e no Brasil, o telefone só começa a tocar ao início


Investimento brasileiro em imóveis no estrangeiro % do total investido no ano (Valor investido em milhões de dólares)

0%

EUA

Portugal

37,2% (975)

5,4% (143)

França 10,7% (280)

Outros 46,7% (1 223)

100%

2009

29,9% (810) 5,9% (160) 11,2% (303)

53% (1 436)

2010

5,4% (194) 10,6 (383)

34,5% (1 242)

49,5% (1 783)

2011

30,3% (1 397) 5,5% (252) 12,3% (569)

51,9% (2 395)

2012

31% (1 675)

6,8% (368) 12,6% (681)

49,6% (2 680)

2013

35,7% (2 189)

8,7% (533) 11% (676)

44,6% (2 737)

2014

38,6% (2 278)

9,7% (570) 10,1% (594)

41,6% (2 456)

2015

12% (738) 9,6% (595)

40,8% (2 517)

34,4% (2 161)

17% (1 065) 9,6% (602)

39% (2 450)

33,6% (2 219)

20,4% (1 348) 8,5% (562)

37,5% (2 480)

37,6% (2 325) 2016

2017

2018 FONTE Banco Central do Brasil

da tarde, deixando-lhe a manhã livre para o passatempo favorito. Foi Nídia quem impulsionou a travessia do Atlântico. Queria “dar mundo” às duas filhas mais novas (a mais velha já estava noiva do namorado norte-americano e veio casar-se a Portugal em novembro passado), nascidas nos Estados Unidos da América e com uma vivência praticamente restrita ao estado da Flórida. “Elas viviam muito dentro da cultura norte-americana, que é muito centrada em si mesma. Portugal oferece diversificação cultural e uma História mais mundial”, argumenta, referindo dois exemplos que, logo nos primeiros tempos por cá, confirmaram as expectativas. No aniversário de Rebecca,

a filha mais nova, o Parabéns a Você entoou-se “em cinco línguas”, tantas quantas as nacionalidades presentes; e Isabella, a filha do meio, viajou para Itália em representação da equipa de voleibol da escola internacional que ambas frequentam. Ao fim do primeiro ano já toda a família estava rendida à chamada “terrinha”. Há saudades do jardim com acesso direto ao lago, local de passeios de barco e desportos aquáticos em Orlando, mas em contrapartida a cadela Rosie perdeu o medo de correr à solta na relva: as águias e os jacarés deixaram de ser ameaças. Guilherme Grossman, diretor da agência imobiliária luso-brasileira Consultan, atesta o “interesse muito

AR/VISÃO

grande e crescente” das famílias ricas brasileiras neste cantinho da Europa. Na hora de emigrarem, diz, “começam a considerar Portugal uma alternativa à Flórida”, o que se reflete no mercado. “Temos um nicho de vendas entre os três e os cinco milhões de euros.” A convicção é reforçada por Luís Lima, presidente da Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal, e assenta na tese de que a eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA, em 2016, beneficiou a procura deste lado do Atlântico. “Quem ponderava investir em Miami, como é tão habitual entre os brasileiros, optou por um mercado mais seguro como o português. E quem já lá havia investido, com receio 16 JULHO 2020 VISÃO

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da instabilidade política e eventual desvalorização de ativos, está a seguir o mesmo caminho”, observa, antes de assinalar a mudança de paradigma em relação a um passado recente. “Hoje, chegam a Portugal cidadãos brasileiros de uma classe social mais elevada e motivados para a criação do seu próprio negócio.” “ADORO O IMPOSSÍVEL”

Apesar de atribuir o seu espírito empreendedor ao avó português, um vimaranense que todos tratavam por “seu Ribeiro” e que fundou no Brasil uma empresa de tecidos, Ricardo Bellino diz nunca ter imaginado viver em Portugal até visitar a Herdade da Comporta, em 2014. A convite do Grupo Espírito Santo, logo se convenceu do potencial turístico da região, mas já sofreu três desaires: num primeiro momento, o colapso do banco dirigido por Ricardo Salgado impossibilitou-o de avançar com um plano de investimento; de seguida, ensaiou uma aproximação a Pedro Almeida, empresário que esteve na linha da frente para comprar a propriedade, até o Ministério Público vetar o negócio por falta de transparência; e, no verão passado, já a viver em Portugal, apostou na aquisição da Herdade do Pinheirinho, 25 quilómetros a sul da Comporta, tendo recuado na hora das propostas vinculativas por “falta de garantias jurídicas satisfatórias” por parte do Novo Banco. Está agora em marcha a quarta tentativa, numa sociedade com o empresário alemão Stefan Maria Gast que envolve a construção de um empreendimento de luxo ligado ao polo, um desporto a cavalo sem tradição em Portugal. A ideia é abrir um clube, na primavera de 2021, capaz de se afirmar como epicentro da modalidade na Europa – contemplando, por exemplo, um SPA para os animais –, e avançar depois para um hotel boutique de 35 suítes, 27 residências privadas, um segundo hotel de 150 quartos e uma universidade de desporto e empreendedorismo. Segundo Bellino, a conclusão do complexo, na periferia de Alcácer do Sal, está prevista para 2024 e implica um investimento a rondar os 300 milhões de euros. A pandemia não o assusta, bem pelo contrário. “Existe agora uma recetividade maior para projetos que impulsionem a economia e, além disso, os juros estão baixos e há liquidez de mercado”, 34

VISÃO 16 JULHO 2020

Uma porta para a Europa Com projetos em Nova Iorque, Miami, Londres, Lisboa e Angola, Fernanda Marques é, aos 55 anos, uma das arquitetas e designers de interiores mais conceituadas do Brasil. Em 2015, insatisfeita com o rumo político do país, ponderou mudar-se para Portugal, mas a destituição da Presidente Dilma Rousseff pôs um travão a esses planos. Já tinha até comprado um apartamento no Chiado, em Lisboa, que mantém até hoje como segunda habitação – uma tendência que também tem vindo a acentuar-se, nos últimos anos, entre a classe alta brasileira. Desde então, Fernanda e o marido, Gil Faiwichow, fazem da capital portuguesa uma espécie de ponto de partida para as viagens na Europa. No ano passado, foram a Paris assistir ao torneio de ténis de Roland-Garros, estiveram em Veneza durante a exposição bienal de arte e ainda passaram uns dias em Ibiza, conta Fernanda. “Comparando com o Brasil, na Europa fica tudo muito próximo”, justifica. Ao longo destes anos, a arquiteta diz ter testemunhado uma transformação em Lisboa para melhor. “Havia muitos edifícios abandonados e o comércio era pouco sofisticado. Agora, só ali no meu bairro, abriram muitas lojinhas simpáticas, de queijo francês, de moda, os restaurantes do Avillez. Na minha rua também remodelaram completamente dois edifícios”, salienta. Sobre um futuro mais assíduo em Portugal, não fecha a porta, mas... “Está no radar, quem sabe mais para a frente.”

nota, com o mesmo otimismo que prevê uma boa resposta dos clientes, em linha com uma tendência que já se verifica: “Cada vez mais, as pessoas procuram refúgios afastados dos grandes centros urbanos, mas de acessos rápidos.” A capacidade de virar o jogo a seu favor vem de longe. “Os Estados Unidos da América deveriam estender um tapete vermelho para dar as boas-vindas a Ricardo Bellino e ao seu génio empreendedor.” Assim termina George Ross, ex-vice-presidente-executivo de Donald Trump na Trump Organization, a nota introdutória do livro 3 Minutos para o Sucesso, lançado nos EUA em 2006. No ano seguinte, o empresário brasileiro, autor do livro, mudou-se para a ilha paradisíaca de Key Biscayne, ao largo de Miami, tendo-lhe sido atribuído o visto E11, exclusivo para imigrantes com “uma habilidade extraordinária em ciências, artes, educação, negócios ou desporto”. E Bellino era, nas palavras de Ross, “um campeão olímpico do mundo dos negócios”. O livro desmonta a estratégia seguida em 2003 para convencer o atual Presidente dos EUA, então um magnata do imobiliário em Nova Iorque, a dar o nome a um empreendimento de luxo em São Paulo, no Brasil. Era suposto a reunião durar uma hora, mas o interlocutor de Ricardo Bellino “não estava com disposição” e concedeu-lhe três minutos. “Dei-lhe um deadline, ele cumpriu, fim de conversa. Tornámo-nos parceiros de negócios”, resume o próprio Trump no prefácio sobre a génese do seu primeiro projeto imobiliário no estrangeiro. Confrontado com a escassez de tempo, Bellino ignorou a apresentação que havia planeado e fez mira ao ego do homem sentado à sua frente: após enumerar as marcas de luxo que faturavam milhões em São Paulo, acenou com a proposta de tornar o condomínio de golfe e lazer uma referência entre a elite paulista, chamando-lhe “Villa Trump”. “Donald Trump disse aos conselheiros para não me deixarem sair sem um acordo escrito e acabei por ficar lá uma hora”, conta agora Bellino, no resort da Penha Longa, em Sintra, onde reside há dois anos com a mulher e as duas filhas. Aos 56 anos, o empresário natural do Rio de Janeiro diz que não podia “estar mais feliz” com a mudança para Portugal. As palestras e


Pequenos luxos De bicicleta, o médico José Hugo Luz põe-se num ápice no local de trabalho, o Hospital Curry Cabral, a partir da sua moradia nas Avenidas Novas

o aconselhamento personalizado a empreendedores têm dominado a sua vida profissional desde os tempos em Key Biscayne – e já lhe garantiram parcerias na área educativa com duas universidades portuguesas –, mas é sobretudo este projeto imobiliário de longo prazo a razão do seu entusiasmo: “A única coisa que eu fazia nos Estados Unidos da América era gastar dinheiro, mas na verdade sou um atrevido, gosto de desafiar a vida, não aceito as coisas. Como Walt Disney, adoro o impossível, porque no impossível tenho muito menos concorrência.” E será impossível um carioca habituado às águas quentes de Miami mergulhar na Comporta? “Adoro água gelada. A água lá é tão fria que uma pessoa até arde”, responde, divertido. MIAMI? CASCAIS

Miami era para ter sido o destino de César Batas, 40 anos. Tinha já casa alugada e os filhos inscritos na escola quando, no último dia de uma

Em Portugal, viajamos uma hora de carro e vemos lugares completamente diferentes JOSÉ HUGO LUZ, médico

viagem à Europa, de passagem por Portugal, para visitar pela primeira vez a terra do pai, próxima de Mangualde, um desconhecido lhe trocou as voltas. O almoço era de trabalho, com o objetivo de negociar uma aplicação para gerir a frota de 80 táxis que possui no Rio de Janeiro, e saiu-lhe a conversa da ida para os Estados Unidos da América. Justificação: dar aos dois filhos, Manuela e Bernardo, uma alfabetização em inglês. Para seu espanto, responderam-lhe que em Portugal todas as escolas ensinam a língua de Shakespeare. Acabou em Cascais, numa moradia à entrada da vila. Advogado de formação, embora nunca tenha exercido, César chegou há dois anos e meio decidido a viver dos rendimentos no Brasil – além dos táxis, tem um pequeno café. Queria apenas escapar à insegurança e proporcionar a melhor educação aos filhos, mas depressa se cansou do ócio e decidiu abrir um espaço infantil para celebrar aniversários 16 JULHO 2020 VISÃO

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que ele gere com a mulher Marcela. Nas principais cidades brasileiras, é tradição aproveitar a ocasião para juntar miúdos e graúdos em “festas megalómanas, tipo casamento”, nas quais as crianças brincam e os adultos comem e bebem à discrição. “No mínimo, custam três a quatro mil euros”, avança César que já tinha explorado o conceito no Brasil e agora o adaptou à realidade portuguesa – mais em conta, ainda que também assegure a “versão” brasileira. O Anima Park, em Alcabideche, foi inaugurado há um ano com escorregas, slide, arborismo, flippers e outras atrações para a pequenada, distribuídas por mil metros quadrados, mas a declaração do estado de emergência, a 18 de março, obrigou ao fecho de portas. Reabriu no dia 15 de junho, com restrições ao nível da lotação – máximo de 50 crianças, em vez de 120 – e longe da adesão pré-pandemia. “O negócio estava a correr muito bem e agora está a recuperar muito devagar”, lamenta o proprietário. A crise sanitária também parou o segundo projeto que, entretanto, abraçou nesta vida de imigrante. Depois de trazer a Portugal artistas como Fafá de Belém e Vitor Kley, a produtora de concertos Connect Sound, da qual é sócio, viu-se forçada a cancelar os espetáculos dos últimos meses. Só deve retomar a atividade no final do ano, com a promoção de concertos do grupo Melim. “Como não são bens essenciais”, César estima que “os dois negócios vão ser muito afetados”, até porque “os portugueses são conservadores nos gastos e vão querer poupar dinheiro”. Nem tudo é mau, porém. Apesar de considerar que Portugal “foi muito extremista ao isolar todo o mundo durante três meses”, uma vez que “o destino natural do vírus

O número de brasileiros a residir em Portugal tem vindo a aumentar, ano após ano 36

VISÃO 16 JULHO 2020

O "RESFRIADINHO” DE BOLSONARO E OS MAIS DE 1,8 MILHÕES DE INFETADOS A situação atual no Brasil não é invejável. Percebe-se, por isso, que os imigrantes brasileiros se sintam melhor em Portugal O novelo é grande, mas basta puxar pela ponta que está à vista para ele se desenrolar e mostrar como anda tudo ligado. A febre, o cansaço e as dores musculares que há uns dias levaram o Presidente do Brasil a fazer o teste da Covid-19 servem bem de metáfora para as aflições que o país tem atravessado. Da mesma maneira, o novelo lembra o “rolo” em que se encontra metido Jair Bolsonaro, que ajuda a explicar por que razão tantos brasileiros estão sem vontade de regressar a casa. Há três meses e meio, quando o coronavírus já tinha feito vítimas mortais no Brasil, ouvíamos o seu Presidente comparar a epidemia a um “resfriadinho”, dizendo-se “nada inquieto” com a hipótese de ser contaminado. “Pelo meu histórico de atleta, não precisaria me preocupar”, justificava. “Nada sentiria ou seria acometido, quando muito, de uma gripezinha ou resfriadinho.” Daí para a frente, Bolsonaro faria das suas ações públicas uma montra da alardeada despreocupação – incentivou aglomerações, raramente usou máscara e distribuiu apertos de mão como se a expressão “distanciamento físico” não constasse do seu vocabulário. “O vírus 'tá aí. Vamos ter de enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, porra. Não como um moleque. Vamos enfrentar o vírus

com a realidade. É a vida. Todos nós iremos morrer um dia”, dizia no final de março, depois de defender que só era necessário isolar socialmente as pessoas de saúde frágil. Agora que testou positivo para a Covid-19, o antigo capitão promete seguir os protocolos médicos, mas confessa-se impaciente. “Não sei ficar parado, vou ficar despachando por videoconferência. O cuidado mais importante é com seus entes queridos, os mais idosos. Os outros também, mas não precisa entrar em pânico. A vida continua.” A atitude temerária do Presidente – que muitos apelidam de inconsciente – não ajuda a acalmar os ânimos e as críticas. E a sua decisão de tomar hidroxicloroquina ainda menos. Além de não ter eficácia comprovada contra a Covid-19, este derivado da cloroquina pode causar arritmia, aumentando o risco de morte – Bolsonaro está, por isso, a submeter-se a dois eletrocardiogramas por dia. Mas, embora já tenha 65 anos, o que o coloca num grupo de risco, e esteja isolado no Palácio da Alvorada, a sua residência oficial, em Brasília, parece mais preocupado em passar ao mundo a mensagem de que o Brasil é um bom aluno. “Nenhum país do mundo fez como o Brasil. Preservamos vidas e empregos sem espalhar pânico, o que


Desinfeção Numa favela do Rio de Janeiro, com a Cidade Maravilhosa como pano de fundo

também leva à depressão e à morte. Sempre disse que o combate ao vírus não poderia ter um efeito colateral pior que o próprio vírus”, escreveu na sua conta do Twitter, aparentemente indiferente ao facto de o país ser o segundo do mundo com o maior número de vítimas e casos confirmados de Covid-19, só atrás dos Estados Unidos da América. A vida continua, claro, mas o que Jair Bolsonaro não escreve é que o Brasil já tem mais de 1,8 milhões de infetados por SARS-CoV-2 e ultrapassou as 70 mil mortes. Pior: investigadores da Universidade Federal de Pelotas estimam que o país terá, na realidade, pelo menos oito milhões de infetados pelo coronavírus (quase seis vezes mais do que o número oficial) e alertam para a hipótese de

1,864 MILHÕES Número de casos de infeção confirmados no Brasil, na terça-feira, 14 de julho

Lugar ocupado pelo Brasil no mundo em número de infeções e de mortes, logo a seguir aos EUA

72 100 Número de mortes por Covid-19 confirmadas no Brasil, na terça-feira, 14 de julho

vir a registar cerca de 110 mil mortes até ao início de agosto. A projeção é de Domingos Alves, especialista em modelagem computacional e porta-voz de um grupo de cientistas das universidades de São Paulo, que se baseou no anunciado regresso do contacto social estimulado pela reabertura económica em muitas cidades. Para a projeção contou igualmente a curva de infeção, que ainda está a subir. O inquilino do Palácio da Alvorada também preferirá fingir não saber que, ao contrário daquilo que se passa na Europa, onde a idade é o fator mais decisivo para a taxa de mortalidade, em cidades como São Paulo a morada e a cor de pele são determinantes. No final de junho, a Rede Nossa São Paulo, uma organização não

governamental que todos os anos desenha um mapa da desigualdade desta cidade, concluiu que os moradores negros das periferias são as maiores vítimas da doença. Negros e pobres, acrescentese. Não admira que uma outra organização não governamental, a Oxfam, tenha sinalizado recentemente o Brasil como “zona emergente” de fome extrema, juntamente com a Índia e a África do Sul. No relatório O Vírus da Fome: Como a Covid-19 Está a Aumentar a Fome num Mundo Faminto, esta ONG conclui que a pandemia veio acelerar o crescimento da pobreza e da fome em todo o país, alertando: “O governo federal está a falhar no apoio às pessoas mais vulneráveis do Brasil.” E deste “rolo” é que Bolsonaro não sairá tão cedo. R.R. 16 JULHO 2020 VISÃO

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Voltas trocadas César e a mulher queriam dar aos filhos uma alfabetização em inglês. Iam para Miami, mas acabaram em Portugal, onde todas as escolas ensinam a língua de Shakespeare

é que se propague por mais gente, como se assiste agora”, o empresário diz sentir-se mais seguro do que se estivesse no seu país natal: “O risco de contaminação é igual, mas o sistema de saúde é muito mais eficaz do que no Brasil, nem se compara.” AO SABOR DA ARTE

A nova vaga de imigração tem sido acompanhada pela propagação de espaços, iniciativas e negócios de cunho brasileiro. São disso exemplos a Livraria da Travessa, a Casa Pau Brasil (loja de vestuário, cosmética e decoração com marcas de prestígio), o banco Itaú, o bar Clássico, no areal da Costa de Caparica, ou o Bossa Market, uma festa anual que combina moda, gastronomia e música ao vivo. Para dar a conhecer o movimento artístico do Neoconcretismo, Andrea e Rodolfo Guerra optaram por abrir na lisboeta Alfama uma galeria de arte peculiar – a Primner, assim se chama, também é joalharia, café e lugar de tertúlias, se subirmos ao loft cheio de objetos de culto no último andar. Há o biombo chinês com mais de 300 anos, as cadeiras de cinema da Nova Zelândia ou a mesa de cabeceira que fez parte do cenário do filme Casablanca. “A arte é o melhor negócio”, enfatiza Andrea, que justifica a aposta no Neoconcretismo por ser “meio desconhecido na Europa e ter grande margem de valorização”. O selo do Brasil está igualmente presente na Magma, a joalharia, onde brilham as malas de senhora criadas por uma amiga. Certo dia, numa festa de aniversário, a fadista Mariza viu uma na mão de Andrea e não resistiu a elogiá-la. “É sua”, respondeu-lhe a brasileira. “Não tenho apego nenhum aos bens materiais. Gosto da energia em movimento.” Esta consultora financeira apaixonou-se por Lisboa quando veio, em 2017, para duas semanas de férias, a segunda no Porto. Não chegou a passar pela Invicta porque começou logo a procurar casa na capital. “É ali que eu quero morar”, indicou ao agente imobiliário que a guiava, ao avistar as imponentes torres de São Gabriel e de São Rafael, no Parque das Nações. O amor à primeira vista não foi alheio ao que viu do outro lado da estrada: a Estação do Oriente, obra do arquiteto espanhol Santiago Calatrava, de quem é admiradora. Com Andrea e Rodolfo, um cirur38

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gião cansado de “30 anos no bloco”, chegaram dois dos cinco filhos, Pedro e Bárbara. Ele ficou à frente da galeria, tendo regressado entretanto ao Brasil para coordenar outro projeto idealizado pela família, um hospital veterinário público; ela gere o aluguer de um prédio de seis andares, junto ao Largo do Rato, transformado num único apartamento. Está decorado com jardins interiores e mais de uma centena de quadros, sendo mais procurado por empresas estrangeiras, à razão de 400 euros por noite. Antes da pandemia, o preço aproximava-se dos €1 000, mas agora há menos voos, menos turistas e uma crise global de desfecho incerto. Ainda assim, aparecem sinais animadores. “Uma imobiliária apresentou-nos uma proposta para o aluguer anual do apartamento e um norte-americano encantado por arte alugou o loft por um mês”,

adianta Andrea. Do outro lado do Tejo, a quinta que compraram na serra da Arrábida só recebe artistas convidados e, nesses dias, transforma-se em “espaço de introspeção e criação artística”. Já quando está a sós com a família, Andrea vê-o mais como um “local de oração”, onde pode exercitar o lado espiritual. “Da varanda vejo o castelo templário de Palmela”, salienta, ela que andou semanas a treinar com o marido para fazerem o Caminho de Santiago, a partir de Lisboa, objetivo concretizado em setembro. A agricultura não foi a única atividade a que se dedicaram durante o período de isolamento. Com a arte sempre presente, o casal aproveitou para abrir uma empresa, nos Estados Unidos da América, tendo em vista a criação de um fundo de investimento que vai permitir a qualquer interes-


Os mais abastados começam a considerar Portugal uma alternativa à Flórida sado a aquisição parcial de obras artísticas, em moeda digital. “Tem boa internet na quinta”, graceja Rodolfo, que segue divertido ao prometer que vai pensar num regresso ao Brasil “quando acabar o vinho português”. Andrea desenvolve a ideia: “O Brasil é maravilhoso, mas tem muita violência. E aqui é lindo, né? Andamos 20 quilómetros e, além da beleza natural, encontramos algo medieval ou da cultura muçulmana. Depois, Marrocos está a uma hora e meia, Paris a duas horas; em poucos meses fui a Londres, Suíça, Itália...” Parar é morrer para este casal nos cinquentas. “Com Rodolfo vou para qualquer lugar do mundo. Somos filhos da ânsia e da vontade de viver.” SAMBA E CIÊNCIA

O risco de contaminação é igual, mas o sistema de saúde é muito mais eficaz do que no Brasil CÉSAR BATAS, empresário

A pé, de bicicleta ou de scooter elétrica; 15, 7 ou 4 minutos. Qualquer que seja a opção, o médico José Hugo Luz não demora a chegar ao local de trabalho, o Hospital Curry Cabral, a partir da sua moradia nas Avenidas Novas. Este luxo é uma das vantagens de Lisboa em comparação ao Rio de Janeiro, onde morou até há três anos, mas esta não é a única razão que o faz hesitar entre regressar e ficar, dentro de um ano, quando terminar o doutoramento que está a realizar em Portugal. Da gastronomia às viagens a desbravar o País (e também Espanha), os tempos livres enchem-lhe as medidas. “Adoro o peixe. A dourada e o robalo são muito mais saborosos do que no Brasil; do bacalhau nem se fala”, diz este radiologista de intervenção que já andou de norte a sul com a mulher e os dois filhos. “Como as distâncias são curtas, Portugal é muito bom para passear de carro, algo que eu raramente fazia no Brasil.” A praia de Galapos, na Arrábida, e uma vila alentejana estão no topo das preferências. “Monsaraz é espetacular. As

muralhas, as vistas para o Alqueva e o restaurante Sabores de Monsaraz. Ficámos na esplanada e a senhora trouxe-nos um pouco de tudo, bochechas de porco preto, migas de bacalhau, vinho branco. Lá ao fundo acho que dava para ver Espanha...” De Viana do Castelo a Faro, José e a família já visitaram o Douro, a serra da Estrela, Guimarães, Viseu, Évora, Peniche e muitas outras localidades. “Tem sido uma descoberta incrível”, faz saber. “Viajamos uma hora e vemos lugares completamente diferentes.” E o que dizer dos concertos improvisados com Miguel Coimbra, músico dos Dama? Um regalo para quem não larga o cavaquinho. “Sem ele não teria vindo para Portugal”, brinca o médico que tem como superior hierárquico, no Curry Cabral, Élia Coimbra, mãe de Miguel. Quando há convívios em casa dela, é certa a cantoria. “No meu aniversário também organizei uma roda de samba em minha casa. Chamei a portuguesada toda”, conta alegremente. A avó era pianista clássica, a mãe canta “na noite do Rio de Janeiro” e ele também dá uns toques no violão. Neste verão, não irá visitar a família, como é hábito em agosto. “Portugal se comportou bem em relação aos outros países da Europa, mas no Brasil a Covid chegou de forma muito agressiva. Aqui o sistema público de saúde se preparou um pouco antes, conseguiu dar resposta e nos sentimos mais seguros”, reconhece. Três vezes por semana, José não abdica das suas partidas de ténis no Lisboa Racket Centre, em Alvalade – chegou a sonhar tornar-se profissional quando estudou nos EUA, entre os 14 e os 19 anos –, mas a missão prioritária em Portugal é a investigação no tratamento do cancro do fígado. O seu doutoramento tem como objetivo demonstrar que, utilizando-se materiais “mais baratos e eficazes”, é possível acelerar o crescimento da parte saudável do órgão numa fase pré-operatória, de modo a viabilizar a remoção da parte cancerosa. Este procedimento é designado por “embolização portal”. “Queremos mudar o paradigma existente em todos os centros de cancro do mundo”, ambiciona este brasileiro de 45 anos, que tirou quatro anos de licença sem vencimento no Instituto Nacional do Cancro, do Rio de Janeiro, para somar valor à Ciência. Com um pouco de samba à mistura, porque não? rantunes@visao.pt 16 JULHO 2020 VISÃO

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Convicção “Levo muito a sério as minhas funções”

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PEDRO NUNO SANTOS

“Não sou adjunto de ninguém, sou um ministro da República!” “A TAP é nossa, ponto f inal parágrafo.” E para o ministro das Infraestruturas e da Habitação assim deve continuar, na esfera do Estado. Uma conversa sobre o impacto da pandemia, a relação com o primeiro-ministro de “um ministro do PS que pensa pela própria cabeça”, a suposta ala esquerda e a ambição de liderar o partido, a arrogância que lhe imputam, o autocontrolo que lhe falta e a autenticidade de que não abre mão F I L I P E L U Í S E M A FA L D A A N J O S MARCOS BORGA

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Para Pedro Nuno Santos, 43 anos, Portugal não está habituado a ministros livres, que dizem aquilo que pensam. É convictamente contra acordos à direita e só vê para o PS uma saída: um posicionamento claro à esquerda. A intervenção na TAP foi devidamente explicada aos portugueses? Porque é que a empresa não pode cair e por que razão é considerada um motor da economia nacional? Admito que não é fácil explicar. Sobretudo, tendo em conta as inúmeras dificuldades por que passam os portugueses. Para não falar nas necessidades, em matéria de serviços públicos. Temos essa consciência. Mas o Governo chegou rapidamente à conclusão de que os prejuízos para a economia nacional, se a TAP caísse, superavam em muito este esforço. Quanto seriam esses danos? Tem um valor em mente? Não é fácil. Mas sabemos que a TAP exportou, em 2019, 2,6 mil milhões de euros. Num país com um problema crónico de balança de pagamentos, é fundamental que não percamos empresas tão fortemente exportadoras. E há outro número, que se repete anualmente, e que corresponde às compras que a TAP faz a mais de mil empresas nacionais: 1 300 milhões de euros. E 100 mil postos de trabalho indiretos. É um estudo da McKinsey, não é invenção do Governo. Ora, o setor do turismo é fundamental e a TAP é o maior contribuinte nesta área, em termos de passageiros transportados. E a ilusão de que, se a TAP caísse, era substituída por qualquer outra companhia também seria perigosa. A aviação não funciona assim. A TAP faz com que Lisboa seja um hub, um centro. O que torna um conjunto de rotas viáveis, mas que nunca o seriam se a companhia aérea que as faz não estivesse centralizada em Lisboa. Se perdermos a TAP, perdemos este hub de Lisboa. E o mais perto seria o de Madrid… E nós perderíamos muito com isso. Não é fácil de explicar, mas a decisão política implica riscos. O senhor fala de 2,6 mil milhões de exportações da TAP e de encomendas a mil empresas. Mas com a reestruturação, e o previsível emagrecimento da empresa, esses números vão descer. Ainda assim, justifica-se esta injeção de capital e outras que, eventualmente, se lhe seguirão? Nós faremos uma reestruturação e um redimensionamento da TAP, 42

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exatamente porque a queremos viável. Ponto. Não podemos pensar que o processo de redimensionamento é evitável. É óbvio que a TAP tem de passar por ele. Isso implica uma redução da sua atividade. Mas essa redução, infelizmente, não é apenas da TAP: é de toda a economia, em Portugal e lá fora. Faremos um ajustamento que permita a viabilidade da empresa. E as recessões não são eternas. Mas acha saudável que esses 100 mil postos de trabalho indiretos sejam garantidos pelo esforço dos contribuintes e não pelos méritos e resultados da empresa? Não vejo a economia nesses termos. Nos últimos dois anos, a TAP deu prejuízos na ordem dos 100 milhões de euros. Mas o contributo que deu para a economia nacional ultrapassou e compensou largamente esse valor. A TAP é uma empresa estratégica. Por isso, o Estado deve fazer o que está ao seu alcance para salvá-la. A não ser que queiramos ser um país pobrezinho. Não há nenhuma economia do mundo – e podemos ir à mais liberal, aos EUA – em que o Estado não assuma um papel decisivo nos setores que considera importantes. Vamos aos EUA, ao Reino Unido, à Holanda, para percebermos que não podemos ser os anjinhos da economia global? Mais: não há nenhum país que tenha deixado cair a sua companhia aérea. Podemos ser os primeiros. Mas não é com este Governo.

Não há nenhum país que tenha deixado cair a sua companhia aérea. Podemos ser os primeiros, mas não é com este Governo Mas o que é para si fazer um bom trabalho? Qual é o objetivo? A TAP pode continuar a dar prejuízos eternamente, agora na esfera do Estado? O que eu espero é que a TAP sirva a economia nacional. E não seja um peso para o Estado. Nos últimos 20 anos, a TAP teve prejuízos crónicos – mas, durante esse período, nunca recebeu um cêntimo do Estado português! Estamos a meter 1 200 milhões de euros numa empresa, no quadro de uma crise global provocada pela pandemia. Temos de olhar para a própria recessão como uma situação transitória, ainda que de grande incerteza quanto à sua intensidade ou duração. A TAP tem um papel muito importante no transporte de turistas, mas estaria muito mal se dependesse só disso. Nós não concorremos com as low-cost. Onde somos mais fortes do que os outros é no transporte transatlântico. E aí, temos de continuar a ser fortes. Porque é isso que a torna uma companhia aérea


Críticas à gestão da TAP “Um ministro tem a obrigação de revelar aos portugueses o estado em que estão as empresas que tutela”

interessante para muitas outras. A TAP é uma empresa maior do que o País que serve, porque não serve apenas Portugal. No processo de reestruturação não podemos afetar em demasia aquilo que a TAP faz hoje. E o plano de reestruturação deve acompanhar de perto o plano estratégico. Os despedimentos são inevitáveis? Não são inevitáveis. O que é inevitável é reduzir os custos com pessoal. Mas há várias formas de o garantir. Precisamos de uma empresa com menos aviões, menos trabalhadores e menos rotas, isso é a verdade. Neste processo, o senhor ministro produziu várias declarações suscetíveis de retirar valor à TAP: “É um negócio que não é bom para ninguém”, “não vale nada”… Isto não desvaloriza mais a empresa? Ninguém avalia uma empresa com base no que o ministro diz. Supostamente, a Lufthansa teria interesse na TAP. E acha que a Lufthansa chegava a Portugal e, porque o ministro disse maravilhas da TAP, começaria a meter mundos e fundos na companhia? Não. Mas o senhor tinha a opção de se ter abstido de considerações, positivas ou negativas… Aí é que está o erro: o ministro fala aos portugueses e tem a obrigação de revelar em que estado estão as empresas que tutela. É essa a minha interpretação da função de ministro. Se vou ao Parlamento e há um deputado que assume uma posição de defesa do privado, eu tenho de fazer a defesa

do interesse do Estado. E não minto! É a minha maneira de ser. Não sei se é uma chatice para muita gente, mas é assim que os ministros se deviam comportar, todos! Achar que uma Comissão Europeia faz a avaliação do estado de uma empresa em função de declarações de um ministro, ou que um banco credor faça a avaliação com base nessas declarações… Enfim… Não quero ser acusado de ser arrogante, mas as minhas respostas sobre esta questão são suficientemente sólidas para matar qualquer conversa sobre o assunto! Estão a pedir que eu diga, sobre uma empresa que, em 2019, tinha 580 milhões de euros de prejuízo, que está em boas condições? E se eu estivesse calado podia ser que ainda conseguisse “enganar” Bruxelas? O sr. Neeleman continuará a colaborar com a TAP em que moldes? Não é o sr. Neeleman. É a companhia Azul. No Brasil, que a Azul cobre muito bem internamente, a TAP é alimentada de passageiros por eles. Não só, mas também. E o contrário também acontece. E é de todo o interesse manter essa ligação, visto que a TAP é a principal companhia da Europa a voar para o Brasil. Olhando para trás, Diogo Lacerda Machado fez uma boa negociação na reversão da privatização feita pelo governo de Passos Coelho? Não foi o dr. Lacerda Machado que fez a negociação, foi o Estado português. O resultado a que se chegou foi o resultado possível, dentro do contexto herdado do nosso governo. Aliás, se não tivéssemos feito aquela reversão, a TAP, provavelmente, já não existia como a conhecemos. Há quem diga que Lacerda Machado, entretanto, defendeu menos os interesses do Estado e mais os interesses do sr. Neeleman. Não falo em nenhum administrador em particular, o Estado tem lá seis. E com certeza que eles estiveram sempre a defender os interesses do Estado, que foi quem os nomeou. O que transpareceu neste processo é que o senhor ministro queria a nacionalização da TAP e que o primeiro-ministro esteve sempre mais reticente. É verdade? O que eu sabia era que a empresa estava mal, que precisava de uma inter-venção e que o acionista privado não queria lá meter um cêntimo. O que defendi, desde a primeira hora, foi o óbvio. Se um dos sócios mete lá

Banqueiros alemães com as pernas a tremer: “Senti-me mal, durante muito tempo, com essa frase” É notório que ainda se irrita muito com certos comentários e críticas. [Risos.] De facto, há pessoas que controlam melhor a irritação. E eu devia controlá-la melhor, porque, depois, passo uma imagem de arrogante, e não sei mais o quê… Mas nós somos seres humanos! Depois tenho o meu gabinete a dar-me na cabeça… Escrevi no Twitter, levo na cabeça. Vou para casa, a minha mulher, a mesma coisa…

Já se arrependeu de declarações públicas que fez? [Hesitação] Não de todas… [Risos.] Um político tem direito a aborrecer-se! Quando há aquela coisa: “Atenção, não podes falar assim… Atenção, não podes dizer isso… Põe-te direito, ajeita o casaco, a gravata é assim, o cabelo é assado…” Enfim, isto também nos afasta das pessoas. Depois parecemos robôs e as pessoas não se reveem em nós.

Por falar em declarações de que pode arrepender-se, o senhor ficou muito colado àquela intervenção… … dos banqueiros alemães com as pernas a tremer?

Vê como sabe ao que me refiro? Arrepende-se dessa frase? Nós dizemos as coisas em determinados contextos. Havia uma ideia subjacente que foi traduzida numa expressão muito primária. E, pela repercussão que teve, obviamente que me senti mal, durante muito tempo. A ideia de que devíamos ter sido mais firmes na negociação com a Troika mantém-se. Mas a forma como o disse, perante o impacto que causou, foi muito desagradável, e preferia não tê-lo dito. 16 JULHO 2020 VISÃO

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“Não é possível manter o distanciamento social nos comboios” O desconfinamento esqueceu-se de acautelar a situação nos transportes ou – até porque se chamam “coletivos” – é da sua natureza andarem cheios? Não houve qualquer desleixo. Antes do desconfinamento, houve uma redução da oferta, porque não havia procura. Mas a CP, que é a empresa que este ministério tutela, está a funcionar a 100%, desde o dia 4 de maio. A lotação média, nas horas de ponta, entre as seis e as nove da manhã, tem estado sempre muito baixa, com a exceção de alguns comboios, ali pelas 6h30 da manhã. Mesmo assim, estamos a rondar os dois terços e, raramente, os 70 por cento.

A verdade é que mesmo só com metade da lotação, qualquer comboio já parece cheio. Um terço de um comboio! Um comboio urbano tem dois terços de lugares em pé, um terço sentados. Um comboio da Linha de Sintra leva duas mil pessoas, em carga máxima. Ora, se levar apenas mil, já é uma imensa multidão. O que há aqui é um problema de perceção – e as pessoas não se sentem seguras. Antes da pandemia, chegávamos a ter comboios a andar a 160% da sua capacidade teórica máxima. O teletrabalho, o layoff e as escolas fechadas são fatores que fazem com que o problema não seja maior. Na Alemanha, em França, em Inglaterra, as lotações não estão a dois terços. Assumiu-se o que, se calhar, mais tarde teremos de assumir: que não é possível controlar a lotação de um comboio.

Para manter o distanciamento social recomendado nos comboios é impossível satisfazer a procura? Se quisermos que a economia recupere não é possível. Precisamos de transportes públicos. 44

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dinheiro, para salvar a empresa, e o outro não, o primeiro fica a mandar. Não é assim que funciona a economia de mercado? Mas, com 70% do Estado, a TAP é uma empresa pública…. … E bem! Permanecerá assim ou regressaremos, no futuro, ao modelo dos 50-50? O modelo dos 50-50 provou não servir. Dizer que o atual modelo se mantém para sempre é errado, porque os ministros e os governos mudam, felizmente. Mas essa questão nem sequer se coloca, por agora. Em termos teóricos, se dissermos, à partida, que queremos privatizar uma empresa, ainda por cima com um prazo, perdemos força negocial. Não se devia ter colocado uma data para a venda do Novo Banco, por exemplo. Claro que os possíveis interessados privados ficam à espera do último dia. A TAP é nossa, ponto final parágrafo. Defende então que o Estado detenha uma posição maioritária numa companhia aérea de bandeira? Na minha opinião pessoal, faz todo o sentido. Os senhores pretendem fazer uma prospeção internacional, para encontrar uma equipa de gestão para a TAP? Sim, esse é o nosso objetivo. Claro que, até lá, precisamos de uma equipa de transição, à frente da empresa. Serão injetados agora 1 200 milhões de euros. Até onde está preparado para ir, em termos de injeções futuras de capital do Estado, na TAP? A avaliação feita com a TAP e a Comissão Europeia, com base em previsões da IATA, resultou nos 1 200 milhões, até fevereiro. É o valor e o período com que estamos a trabalhar. A partir daí, tudo terá que ver com a evolução da pandemia e, sobretudo, da economia. É preciso cautela – e não podemos fazer juras nesta matéria. Porque diz que a comparação com o Novo Banco é injusta? Considera altamente improvável que, em cinco anos, o Estado venha a ter de meter 12 mil milhões na TAP? Primeiro porque não é um banco. Depois porque nós estamos na TAP, e não estamos no Novo Banco, e por isso temos um nível de controlo, monitorização e fiscalização muito diferente. E não estamos pressionados a vender a empresa nem a fazê-lo de qualquer maneira. E porque há outras compara-

ções que se podem fazer. A Caixa Geral de Depósitos é uma empresa pública, recebeu uma capitalização de cinco mil milhões, teve um plano de reestruturação, negociado com a UE, está a ter excelentes resultados e é bem gerida. Mudando de assunto... Como viu o ultimato do presidente da Câmara de Cascais, Carlos Carreiras, que ameaçou bloquear os autocarros provenientes de concelhos vizinhos, para controlar a pandemia no seu próprio concelho? Eu compreendo a posição do senhor presidente da Câmara de Cascais. A sua primeira preocupação é com os seus munícipes. E por isso toma medidas e manifesta a sua ansiedade relativamente ao risco em que se encontra a sua população. Eu prefiro não fazer considerações sobre as atitudes ou declarações dos autarcas, que vivem, legitimamente, esta ansiedade. Essa sua compreensão é extensível às declarações de Fernando Medina, que foi bastante crítico para com as medidas de controlo da pandemia, em Lisboa, por parte das autoridades sanitárias? É extensível a todos os autarcas. Eu diria apenas que a resposta que temos dado à pandemia tem sido boa e que a senhora ministra da Saúde tem feito um trabalho excelente e que é reconhecido pelo País. Mas Fernando Medina foi especialmente crítico… Não conheço bem os termos de avaliação e de análise do senhor presidente da Câmara de Lisboa. Na altura, foi interpretado como tendo feito uma crítica, também, à senhora ministra... … Embora ele tenha vindo esclarecer que não foi isso… E ainda bem que corrigiu, senão teria sido injusto. Esse episódio foi interpretado como a abertura da corrida à sucessão do PS: as críticas de Fernando Medina e as suas declarações recentes em que faz uma demarcação de António Costa… Os dois potenciais sucessores a marcarem terreno face ao secretário-geral. É uma análise justa? Não, não é. Estamos é mal habituados. Não estamos habituados a ministros livres, que dizem aquilo que pensam… Não sei bem a que se referem essas análises quando dizem que me de-marquei do secretário-geral do PS. Se era a pensar nas presidenciais, tenho a dizer que sou um dirigente do


Estatuto “Respeitamos muito o primeiro-ministro, mas os ministros também devem ser respeitados”

PS que deu uma opinião bastante óbvia para uma grande maioria dos socialistas. Isso nada tem que ver com a liderança do Governo. Como ministro, tenho autonomia, ponto um. Segundo, não sou um ministro independente. Sou um dirigente do PS que pensa pela sua cabeça. Então, acho que o PS deve ter um candidato da sua área às presidenciais, e que, não o tendo, votarei sempre num candidato da esquerda – e isto é um ataque a alguém? Isto é simplesmente um dirigente do PS a dizer aquilo que pensa! Nós respeitamos o primeiro-ministro e os ministros também têm de ser respeitados. Eu não sou adjunto de ninguém, sou um ministro da República! Fiz o meu juramento perante o primeiro-ministro e o senhor Presidente da República (PR) e levo muito a sério a minha função! O cargo de PR é unipessoal, mas eu faço parte de um Governo, que é um órgão coletivo – e eu existo como ministro.

Estamos mal habituados. Não estamos habituados a ministros livres, que dizem aquilo que pensam... Mas a avaliação que faz do mandato de Marcelo Rebelo de Sousa é positiva ou negativa? Tenho ouvido essas leituras… Que é um posicionamento sectário, de partidarite. Ou seja, as pessoas querem anular a política… Bem, eu faço parte de um partido, que tem uma declaração de princípios e que integra uma determinada família ideológica. E que tem uma determinada visão do

mundo, e valores, que não partilho com o senhor Presidente da República. Mesmo entendendo que as relações institucionais tenham sido boas; que o senhor Presidente da República tenha conseguido estabelecer uma relação próxima com o povo português, o que sempre achei muito importante, não tenho a visão conservadora da sociedade que ele tem. Eu não acho que o SNS seja defendido com Marcelo Rebelo de Sousa, e tenho uma visão do Estado, do Estado social bastante diferente… Eu quero um PR que tenha uma visão política mais próxima daquela que eu defendo para a sociedade. Mas votar num candidato do PCP ou do BE não será ainda mais contraditório com o que o PS defende? Que garantias lhe dá um Presidente comunista sobre o cumprimento de tratados internacionais, seja na Europa, seja na NATO, e que o PS subscreve? O PCP já deixou, por exemplo, cair o tema da apropriação dos meios de produção? Um Presidente militante do PCP, do BE, um Presidente de esquerda, tem uma determinada visão da vida, da sociedade e da forma como nos fazemos representar no Estado, e de como não se aceita que uma determinada elite mande no País e no povo português… Não tenho dúvidas nenhumas de que partilho uma visão muito mais próxima do PCP e do BE. Na hora de fazer um governo, em 2015, nós fizemos acordos com o PCP e com o Bloco… Qual é a surpresa? Há quem diga que, depois, os domesticaram… Essa afirmação é desrespeitosa para com esses partidos. Em presidenciais, vota-se em cidadãos e não em partidos. Como pode afirmar que votaria sempre nos candidatos do Bloco ou PCP sem saber sequer que candidatos terão? Um cidadão defende princípios, valores, e eu defendo uma candidatura que saia de partidos que têm uma visão sobre a justiça, a igualdade, o respeito por quem trabalha e um pensamento sobre o papel do Estado na economia que nenhum homem de direita terá. Está a dizer que o PS está mais próximo dos programas do PCP e do BE. Ora, o PS defende a participação na NATO, a integração europeia, a economia de mercado e a iniciativa privada. Isto tem mais que ver com o PSD do que com o PCP… 16 JULHO 2020 VISÃO

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Porquê? O PCP defende a nacionalização das tabacarias?… Está a caricaturar… Então, é melhor nós não caricaturarmos. Nós governámos com o apoio destes partidos. E não nacionalizámos nada! Trabalhámos com eles… Os senhores querem à força toda empurrar-nos para o PSD… O PS, perante uma bancarrota, fez um Bloco Central. E, em 1977, Mário Soares governou com o apoio do CDS. Não precisou de ser empurrado... E mal! Eu adorava o dr. Mário Soares. Mas sou contra o Bloco Central. Sou convictamente contra. Um dos maiores problemas da nossa democracia é, por vezes, haver uma confusão programática entre PS e PSD. E se o PSD vier a viabilizar o Orçamento para 2021? O senhor sentir-se-á desconfortável no Governo? Vamos por partes: eu nunca me sentirei confortável ao lado do PSD em matérias como a da defesa do SNS ou do Estado social. Não temos a mesma visão. Nem a da defesa dos direitos dos trabalhadores. Não nos empurrem para o PSD, porque isso é péssimo para a democracia. Nós não. O PCP é que, pelos vistos, sim, ao votar contra o orçamento suplementar, enquanto o PSD se abstinha… O PS deve percorrer algum caminho para fazer com que PCP e BE se sintam confortáveis com os nossos orçamentos. Mas repare a forma como leu esse voto do PCP: “Empurrou o PS para.” É uma forma de ver que também existe dentro do PS e da qual não partilho. O PS enjeitará um voto do PSD que lhe aprove o orçamento de 2021? Se me disser assim: “O PS faz um orçamento que não segue nenhuma exigência do PSD e, mesmo assim, o PSD viabiliza-o?” Ah, claro que sim… Mas acredita nisso? Eu não… Eu também não. Sendo assim, prefiro encontrar parceiros que partilhem a mesma visão da sociedade. Seja como for, agora, o PCP votou contra. Será que achou o orçamento demasiado à direita, ou preferiu ter mãos livres para cavalgar o descontentamento social que nos espera? Ou as duas coisas… Mas o mais importante é focarmo-nos no próximo, para 2021, e garantir que temos o BE e o PCP dentro do orçamento. E cabe-nos 46

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a nós não facilitar qualquer descolagem do BE ou do PCP. Como viu a saída de Mário Centeno? Há quem diga que revelou mais egoísmo do que sentido de Estado… Mário Centeno foi o ministro das Finanças que mais tempo exerceu o cargo. Estávamos à espera que ele ficasse dez anos? Ele fez um trabalho excelente, em nome do País, deu muito de si, numa das funções mais desgastantes num governo, fez mais do que alguma vez algum ministro das Finanças tinha feito. Com que direito é que o podemos julgar ou exigir que ele estivesse não se sabe mais quantos anos? Veio esta crise, e quando vai acabar? E nós temos o direito de o prender até ela acabar? O País, no momento da sua saída, devia ter sido mais justo para com ele e ter revelado mais respeito. Se fica, está agarrado ao poder. Se sai, não devia ter saído. Tenham paciência! Por toda a Europa a política “escorreu” muito para o centro, o que abriu brechas nos extremos. Para si o caminho para o PS é, portanto, posicionar-se mais à esquerda? O rótulo significa zero. O que acontece é que os portugueses estão zangados connosco, com o sistema, com os partidos. Estão zangados porque a sua vida não sai da cepa torta. Não ata nem desata. Os filhos vão estudar e não conseguem um bom emprego, ou ser bem pagos e não conseguem constituir família até aos 30 anos…

“Não me sentia bem em ter um Porsche e por isso desfiz-me do carro” Porque disse que era um erro um socialista ter um Porsche? Eu nunca disse que era um erro, disse que me sentia mal com isso.

Mas um socialista não pode ter um Porsche? Não faço quaisquer juízos e só falo por mim. Há coisas que são racionais e outras têm mais a ver com a sensibilidade. Eu nasci num meio privilegiado, tive sempre um modo de vida confortável mas, a determinada altura, senti-me mal, porque tinha uma coisa que era fútil, na medida em que a maioria das pessoas não podia ter. E eu não me sentia bem. E para me sentir melhor desfiz-me do carro. O resto, a história do Maserati, que aparece nas redes sociais... Bem, não é meu – e o meu pai faz o que quiser com as coisas dele.


Bloco Central? “Não me sentiria confortável ao lado do PSD em matérias como a defesa do SNS ou do Estado social...”

Os portugueses estão zangados connosco, com o sistema, com os partidos. Estão zangados porque a sua vida não sai da cepa torta As pessoas estão zangadas. E nós, ou conseguimos restabelecer o contacto com elas, mediante políticas que mudem de forma significativa a forma como vivem, ou vamos continuar a perder a sua confiança. E essas mudanças não se fazem com o centro-direita, nem se fazem com presidentes da República de direita. Ana Gomes é uma figura do PS que pode vir a candidatar-se. Terá, então, o seu voto? Não quero comentar hipotéticas candidaturas do PS, em concreto. Falei em termos abstratos. Mas o discurso fortemente anticorrupção, que é popular, de Ana Gomes não serviria para travar uma figura como André Ventura? Precisamos de boas candidaturas à esquerda. Que possam travar qualquer tentação oportunista ou populista de André Ventura. Que é um

político que prometeu vir para mudar, mas que já revelou vícios dos piores, sem convicções, com um discurso adaptado ao que for necessário em cada momento e que nos vai dando provas de que não é confiável. Tem explorado muito o tal sentimento de zanga, sem que tenha soluções para resolver os problemas. Baseia-se apenas na exploração do ódio, nada mais. Falou do político robô em que as pessoas não se reveem (ver caixa): o senhor, como eventual futuro secretário-geral do PS e candidato a primeiro-ministro, apostará na autenticidade? Eu prefiro que as pessoas olhem para mim como eu sou, sem jogo escondido, com todos os defeitos. Outra coisa é ser mal-educado, e não quero sê-lo. Às vezes acusam-me de ser arrogante. Eu sei que não o posso ser. Mas eu nunca fui arrogante com o povo português. Já fui arrogante, é verdade, com aqueles que, por cima, continuam a mandar no País e a fazerem o que querem há décadas. Há décadas! Isso irrita-me mais do que outra coisa qualquer. Neste ministério, vou lidando com uma realidade que só conhecíamos de ouvir de longe. Temos na capital uma certa elite prepotente – e eu quero usar de toda a assertividade e força na defesa do País e dos portugueses. Tem a ambição de liderar o PS e ser candidato a primeiro-ministro? Quando? Ser transparente e desassombrado não é dizer tudo o que nos vem à cabeça. Eu estou a exercer funções que estão a dar-me muito prazer, em nome do PS, num governo liderado por António Costa. Não tenho nenhuma pressa em que o meu trabalho ou a governação do PS e de António Costa sejam interrompidos. É uma questão que, neste momento, não se coloca. Mas está preparado para esperar sentado, como dizia, esta semana, Carlos César? Eu só estou sentado nesta entrevista… É raro estar sentado. O que me interessa é fazer bem o meu trabalho, com dedicação e respeito pelo povo português. O senhor é tido como representando a ala esquerda do PS… … O que eu nego. Não sou um representante da ala esquerda do PS. O PS é que é um partido de esquerda. Quem é a ala direita do PS? É o Francisco Assis. E ele é meu ami-

go. Tenho muito respeito por ele. É um homem que pensa bem, que diz o que pensa, e é um homem livre. Falta-nos mais disso, na política. Dizer que ele é da ala direita não é uma crítica, é uma caracterização ideológica. E primeiro-ministro é de que ala? Da grande ala esquerda do PS, claro… A sua relação com António Costa mudou alguma coisa quando, no congresso do PS, em 2018, depois de um marcante discurso seu, o líder do partido veio dizer que ainda não ia meter os papéis para a reforma? Temos uma boa relação de trabalho que funciona muito bem. Não quer dizer que tenhamos exatamente a mesma visão sobre todos os assuntos. Os congressos servem para que os militantes digam o que pensam, com honestidade. Isso não é ir contra ninguém. Se um congresso não fosse o local próprio para cada um defender a sua visão política para o partido, mais valia chamar-se comício. Marques Mendes, na SIC, disse que o senhor tem uma relação de paz podre com o primeiro-ministro… Isso não tem sentido nenhum. Eu e o primeiro-ministro falamos bem e trabalhamos bem um com o outro. Eu, como ministro, estou sempre disponível para o ajudar nas tarefas da governação. E ele está sempre disponível para desbloquear algumas matérias dos meus dossiers. Até agora, não existe um único exemplo em que ele me tenha falhado ou eu a ele. O primeiro-ministro sabe que sou como sou desde que me conhece. E o primeiro-ministro não lhe puxa as orelhas quando o senhor tem certas intervenções menos… ortodoxas, digamos assim? Puxar as orelhas não faz sentido na relação entre o primeiro-ministro e um ministro. Já vos disse antes: um ministro não é um adjunto. E a posição sobre as presidenciais é uma matéria partidária. O que seria se não fosse político? E o que o moveu para vir para a política? Provavelmente, estaria a trabalhar nas empresas da família. A verdade é que me senti sempre mal, ao ver que os meus amigos não tinham o que eu tinha. Por constatar que quem me rodeava não tinha a mesmas facilidades do que eu. Eu sei que isto, dito por um político, não parece credível, é o estado a que chegámos… visao@visao.pt 16 JULHO 2020 VISÃO

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A

A suspensão forçada de António Mexia das funções executivas na EDP, por lhe serem imputados quatro crimes de corrupção ativa e um de participação económica em negócio, marca o fim de uma era: a dos empresários e gestores “rockstars”, assumidamente liberais, que gravitavam em redor de Ricardo Salgado e do Grupo Espírito Santo (GES), integrando uma rede de influências que capturou empresas públicas, privadas e alguns dos maiores negócios do Estado. Como Mexia, também o ex-presidente da PT Zeinal Bava ou o “peão” Nuno Vasconcellos, surgido durante o assalto ao BCP e a defesa da OPA sobre a PT, se assumiam, no início deste século, como representantes de uma geração moderna, cosmopolita e talentosa, com um discurso virado para a defesa dos interesses dos acionistas – e que soava como música aos ouvidos dos analistas e investidores financeiros. Apesar das diferenças geracionais, essa postura encontrava respaldo junto de gestores bem relacionados com o poder político e empresarial, como Henrique Granadeiro. Próximos de António Carrapatoso, Filipe de Botton, Alexandre Relvas e Diogo Vaz Guedes, anfitriões em fevereiro de 2004 da convenção do Compromisso Portugal, no Convento do Beato, em Lisboa, estes gestores, entretanto apanhados nas malhas da 50

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JOÃO RENDEIRO

O BANQUEIRO DOS RICOS O fundador e maior acionista do Banco Privado Português (BPP), entretanto liquidado, foi absolvido do crime de burla qualificada no caso da Privado Financeiras, uma das sociedades-veículo do banco especializado na gestão de fortunas, mas nem por isso pode respirar de alívio: o Tribunal da Relação de Lisboa acaba de condenar o antigo banqueiro a cinco anos e oito meses de prisão, por crimes de falsidade informática e falsificação de documentos em coautoria, agravando em mais de oito meses a pena aplicada pelo tribunal de primeira instância. O processo judicial prendia-se com a ocultação e adulteração da contabilidade do BPP, que terão gerado perdas de cerca de 40 milhões de euros para vários clientes.

Justiça, participaram ativamente na apresentação de propostas para o desenvolvimento do País, assentes numa aliança entre a política e os negócios capaz de criar um novo modelo de capitalismo à portuguesa. O movimento, de cariz neoliberal, em que também pontificavam nomes como António Horta Osório, Fernando Ulrich, António Borges ou Paulo Azevedo, quis afirmar-se como espaço de reflexão de uma nova geração que se mostrava disponível para “pensar” Portugal e traçar o futuro do País. Com o tempo, percebeu-se que muitos deles, a partir de confortáveis gabinetes em grandes empresas e escritórios de advocacia e de consultoria, empenharam-se, sim, em lucrar com os seus próprios negócios, premiando-se com generosos salários e bónus. As poucos, foi construída uma teia de interesses que se alimentou do (fraco)

crescimento económico nacional, por via das participações cruzadas entre bancos, grandes empresas e Estado. Um triângulo fatal. António Mexia, vencedor habitual de prémios de gestão e boas práticas cá e lá fora, é o mais recente “gestor-maravilha” a ser derrubado do seu pedestal, na mesma semana em que ficou a saber-se que o Ministério Público acusa Ricardo Salgado de ter liderado uma “associação criminosa” dentro do Banco Espírito Santo (BES). Até há três anos, quando foi constituído arguido no processo das rendas excessivas, no seguimento de uma investigação do Ministério Público iniciada em 2012, o gestor agora suspenso da EDP era apontado como uma exceção. Não fossem as notícias recorrentes sobre o seu salário anual e os prémios de gestão que, nos anos bons, podiam ultrapassar os três mi-


A JUSTIÇA ESTÁ A ACUSAR EMPRESÁRIOS E GESTORES SEM RESPONSABILIZAR AS ORGANIZAÇÕES

Z E I N A L B AVA

O GESTOR PREMIADO

Luís de Sousa, perito em políticas anticorrupção

Zeinal Bava também não escapou a uma chuva de processos e inquéritos judiciais, depois da saída da PT (agosto de 2014) e da Oi (outubro do mesmo ano). Em março, na quarta sessão do debate instrutório da Operação Marquês, processo no âmbito do qual lhe são imputados crimes de corrupção passiva, branqueamento de capitais, falsificação de documentos e fraude fiscal qualificada, disponibilizou-se para devolver 6,7 milhões de euros (que se encontram arrestados) dos 25,2 milhões que terá recebido do alegado “saco azul” do GES – e que Bava continua a sustentar ter sido um empréstimo para comprar ações da antiga PT. Foi já condenado ao pagamento de uma coima de 600 mil euros pela CMVM.

lhões de euros brutos, podia dizer-se que Mexia era um sobrevivente entre as ruínas de uma era dominada pela marca Espírito Santo. Apesar da pesada dívida, os lucros da EDP, embora em parte explicados pelas rendas excessivas, atestam a sua capacidade de gestão. Ainda que tenha decidido percorrer os corredores das grandes empresas e da política, António Mexia foi sempre identificado como um homem da constelação do GES. Licenciado em Economia pela Universidade de Genebra, deu aulas, foi adjunto do secretário de Estado do Comércio Externo, Miguel Horta e Costa (mais tarde CEO da PT) e vice-presidente do antigo ICEP. Não resistiu ao apelo da banca de investimento e entrou na ESSI (posteriormente BESI), o banco de investimento do BES, onde ascendeu ao círculo de gestores pró-

RICARDO SALGADO

CAÍDO EM DESGRAÇA

ximos de Ricardo Salgado. Durante anos, ainda evitou conviver diretamente com a política, mas acabou por aceitar o convite do ex-ministro Joaquim Pina Moura para presidir à Gás de Portugal. Seguir-se-iam a Galp Energia e a EDP – com uma passagem pelo cargo de ministro das Obras Públicas durante o breve governo de Pedro Santana Lopes. Na EDP, está há já 13 anos. Cumpria o quarto mandato quando recebeu a “ordem” de suspensão assinada pelo juiz Carlos Alexandre. A PARCERIA DA PT

Henrique Granadeiro e Zeinal Bava foram outras “estrelas” que também perderam o lugar no passeio da fama, após a queda estrondosa do GES. O investimento ruinoso de 897 milhões de euros em papel comercial de uma holding do GES abanou a antiga Por-

Sobre o antigo Dono Disto Tudo recai a acusação mais grave feita, até hoje, contra um banqueiro em Portugal. O Ministério Público deverá, por estes dias, acusar Ricardo Salgado de liderar uma associação criminosa dentro do Banco Espírito Santo (BES) a partir do departamento financeiro e de mercados, que era liderado pelo ex-diretor financeiro Amílcar Morais Pires. A investigação sustenta que Salgado terá sido o cérebro de uma rede criminosa no GES e no BES, recorrendo a pagamentos ocultos, fraudes e desvio de centenas de milhões de euros para fomentar a corrupção, tendo lesado o antigo BES em mais de mil milhões de euros. À margem dos órgãos de gestão e de controlo e dos supervisores, com o objetivo de socorrer o grupo familiar.

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HENRIQUE GRANADEIRO

J A R D I M G O N Ç A LV E S

PENSIONISTA DE LUXO O ex-presidente do BCP criou, ao longo de duas décadas (entre 1985 e 2005), o maior grupo financeiro privado em Portugal. Mas a vida do banqueiro mudou quando saiu do conselho superior do banco, em 2007. Em consequência do caso das 17 offshores não reportadas à entidade de supervisão, alegadamente para suportarem a cotação das ações do banco, Jardim Gonçalves, hoje com 84 anos, foi condenado, pelo crime de manipulação de mercado e falsificação de documentos, a dois anos de pena suspensa, a uma coima de 600 mil euros e à inibição de quatro anos de atividade na área financeira. Em março, o Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que o ex-presidente do BCP deixou de ter direito a receber dois terços da pensão de 175 mil euros mensais paga pelo banco.

tugal Telecom (hoje Altice Portugal), mas também lhes custou a carreira – e vários processos e contra-ordenações que enfrentam até hoje. Granadeiro, que em parceria com Zeinal Bava aniquilou, em 2007, a OPA da Sonaecom, foi arrastado pelo turbilhão que envolveu aqueles a quem tratava como “irmãos adotivos”, desde que, ainda jovem, travou conhecimen52

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to com José Manuel Espírito Santo, seu colega no Instituto de Estudos Superiores de Évora, e com o primo Ricardo Salgado. A demissão do cargo de presidente da PT, a par da recusa da Pharol (ex-PT SGPS) em pagar-lhe prémios de gestão, ter-lhe-ão complicado a vida financeira, muito alavancada pelo investimento no negócio de vinhos do Monte dos Perdigões, em Reguengos de Monsaraz. Zeinal Bava também não escapou a uma chuva de processos e inquéritos judiciais. Em fevereiro de 2015, perante a comissão parlamentar de inquérito ao BES, protagonizou um momento mento hilariante quando invocou a falta lta de memória para se recusar a esclarecer arecer um conjunto de factos que dificilmente mente escapariam ao seu conhecimento o enquanto CEO da PT e da brasileira ra Oi, cargos de que se demitiu em 2014. 014. O gestor regressou a Portugal, mas as por pouco tempo. Os estudos dos filhos em Londres foram o pretexto para ara se mudar para a capital inglesa e ficar mais próximo dos meandros do mundo financeiro anglo-saxónico, no o qual conservou contactos. É lá que o gestor “estrangeirado” – como era conhecido hecido quando entrou para a PT em 1999, 9, recém-chegado da City londrina – tem a sua base, familiar e profissional,l, viajando esporadicamente a Lisboaa para prestar declarações no âmbito da investigação judicial da Operação Marquês. rquês. Em março, na quarta sessão do debate instrutório, disponibilizou-se para devolver 6,7 milhões de euros (que que se encontram arrestados) dos 25,2 milhões ilhões que terá recebido do alegado “saco o azul” do antigo BES – e que Bava continua inua a sustentar ter sido um empréstimo o para comprar ações da antiga PT. Como Granadeiro, o “mago o das Finanças” deixou a PT sem glóriaa após 15 anos na empresa de telecomunicaunicações. Mas fê-lo certamente com m uma conta bancária bastante mais robusta. busta. O lastro deixado pelos gestoresores-estrela é já demasiado grande e pesa nos bolsos dos portugueses. Da implosão da PT e do colapso do BES, ao assalto ao BCP (após a saída de Jardim Gonçalves) e ao desmembramento da Cimpor, a destruição de valor – e de postos de trabalho – é tremenda. Afinal, quem controla as más práticas negociais e como se pode combater a corrupção nas grandes empresas? “FALHA” HUMANA

Os processos judiciais mais mediáticos

O “AMIGO” DO GES O futuro do antigo chairman da PT continua suspenso pelas conclusões do debate instrutório da Operação Marquês, em que lhe são imputados crimes de corrupção passiva, branqueamento de capitais, peculato, abuso de confiança e fraude fiscal qualificada. O Ministério Público sustenta que Granadeiro recebeu cerca de 24,5 milhões de euros do “saco azul” do GES, entre 2007 e 2012, em troca da sua oposição à OPA da Sonaecom e do aval à venda da participação da PT na Vivo à Telefónica – negócios que terão beneficiado o acionista BES. Entre o processo da Pharol e contraordenações da CMVM, já foi condenado, pela polícia da bolsa, a uma coima de 750 mil euros.

SE A CORRUPÇÃO NÃO FOR PREVENIDA, SÓ RESTA APANHAR OS CACOS E CHAMAR A POLÍCIA” Nuno Guita, membro do Observatório de Economia e Gestão de Fraude



AS MARCAS DA COVID-19 Aquela que surgiu como uma infeção pulmonar parece estar a afetar muito mais órgãos do corpo humano, provocando danos neurológicos e outras doenças, como a diabetes. Resta saber se as sequelas são passageiras ou se ficarão para a vida MARIANA ALMEIDA NOGUEIRA

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“Como é que se chama aquilo com que eu comecei a andar? Ai, não era a bengala, o outro antes... Ainda há muitas palavras que falham, quero lembrar-me e parece que isto bloqueia.” Não só as palavras teimam em fugir a Paula Lopes como o paladar também ainda não regressou completamente ao normal; e há dias em que acorda extremamente cansada e tanto a visão como a audição parecem enfraquecidas. “Agora já consigo ler, mas as minhas filhas dizem que ando surda. Não acontece com todos os sons, mas alguns deles não oiço e preciso que as pessoas repitam”, conta. A enfermeira de 55 anos, do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, deu entrada na Unidade de Cuidados Intensivos do Curry Cabral, a 16 de março, dois dias após o marido, ambos infetados pelo novo coronavírus. Trinta e oito dias, uma pneumonia e uma trombose na perna esquerda depois, acordou do coma e foi transferida para o serviço de infeciologia e daí para o da reabilitação. Teve de reaprender a andar, primeiro com um andarilho e a seguir com ajuda de uma bengala que a acompanhou até casa, quando teve alta, a 22 de maio. Quase três meses após ter negativado o vírus, o regresso à normalidade é uma maratona para ser corrida com calma e com a ajuda dos médicos e da família. “Já consigo andar sem bengala, mas canso-me muito. Não me consigo baixar, e o subir é terrível, tenho de pedir ajuda”, explica Paula. Também a vida de António Faustino, 71 anos, mudaria radicalmente ao cruzar-se com a Covid-19. Após ter dado entrada no Hospital Curry Cabral, a 2 de abril, António passou oito dias na unidade de cuidados intensivos, aos quais se seguiram 32 dias de medicina interna e 36 de reabilitação. Tal como Paula, teve de reaprender a andar. “A primeira vez que o fiz parecia que pesava 200 quilos. Duas enfermeiras ajudaram-me a passar da cama para o sofá”, conta. António desenvolveu um hematoma interno na zona da anca, que os médicos ainda não conseguiram perceber se se trata, de facto, de uma sequela direta do novo coronavírus e que acabaria por provocar uma lesão aguda do 56

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Danos prolongados Marco Correia, um informático de 42 anos que negativou o vírus a 11 de maio e que nunca foi internado, conta que ainda tem “cãibras nos gémeos e espasmos nos dedos, além de dores nos pulmões e falta de ar”

nervo femoral esquerdo, deixando a perna sem ação. “Hoje, a perna é como se estivesse sem vida. Quando estou sentado e quero levantá-la, ela não obedece.” Se antes ocupava o tempo da reforma com um part-time num restaurante, que o ajudava a combater a solidão e a manter-se ativo, agora, além de acusar ainda muito o cansaço, tem de usar um aparelho para impedir a perna esquerda de dobrar mais do que 30 graus e perder completamente a força. As lesões físicas e neurológicas descritas por Paula e por António são partilhadas por outros pacientes em todo o mundo e têm dado origem a uma série de estudos, com o intuito de se descobrir as dimensões reais que a doença pode ter no corpo humano. Inicialmente encarada como uma infeção exclusiva do sistema respiratório, a Covid-19 tem vindo a ser apontada, em dezenas de estudos, como causadora de lesões neurológicas, as quais podem ir de

AS LESÕES NEUROLÓGICAS PODEM IR DE DORES DE CABEÇA A ENCEFALOPATIAS, COM ESTADOS DE CONFUSÃO E DELÍRIO


SEQUELAS Apesar de ser cedo para se falar em sequelas definitivas, há algumas lesões que têm sido observadas

FIBROSE PULMONAR Em alguns doentes, a destruição dos alvéolos pulmonares e dos vasos sanguíneos pode dar origem à sua substituição por fibroses (cicatrizes), que dificultam o transporte de oxigénio para o sangue.

dores de cabeça intensas a encefalopatias que originam estados de confusão e de delírio, formação anormal de coágulos no sangue, inflamação das paredes dos vasos sanguíneos ou mesmo o aparecimento de diabetes tipo 1. “É preciso frisar que estes casos são raros e que se verificam em doentes internados com quadros graves”, alerta Margarida Tavares, infeciologista no Hospital de São João, no Porto, acrescentando: “Além disso, ainda não conseguimos prever a evolução das lesões, porque a doença existe apenas há seis meses e só chegou a Portugal em março. Não há dados suficientemente robustos para dizermos que x por cento das pessoas ficarão assim e outras ficarão assado”. O pneumologista Filipe Froes concorda: “Neste momento, não temos ainda o retrato completo, estamos a construir o puzzle e temos só algumas peças. Falta experiência suficiente, de uma forma integrada, para termos um retrato mais fidedigno das sequelas destes doentes.” Ainda assim, segundo o especialista, é possível catalogar as lesões em físicas, cognitivas e psicológicas, estando perante algo que não é exclusivo da infeção provocada pelo novo coronavírus e que responde pelo nome de síndrome pós-internamento em cuidados intensivos. DOS PULMÕES PARA O RESTO DO CORPO

Uma das razões pelas quais a Covid-19 apresenta tanta diversidade de sintomas e lesões

LESÕES NEUROLÓGICAS Nos casos mais raros e graves, as lesões vão de encefalopatias causadoras de estados de confusão, delírios e alterações de humor a AVC isquémicos. Nos restantes doentes, tem sido registado cansaço extremo, dificuldade de concentração, alterações de sono, de olfato e do paladar, dores de cabeça e perda de memória.

DIABETES TIPO 1 Muitos especialistas acreditam que a resposta do sistema imunológico à infeção por SARSCov-2 pode afetar as células beta pancreáticas, responsáveis pela produção de insulina, dando origem ao aparecimento da diabetes.

prende-se com o modo como o vírus entra no organismo. O SARS-Cov-2 liga-se às chamadas proteínas ACE-2, envolvidas no processo de regulação da pressão arterial e existentes à superfície das células. Apesar de serem abundantes nos pulmões, estas proteínas revestem as paredes de muitos órgãos, nomeadamente o pâncreas onde estão as células que produzem insulina, os rins, o fígado ou o intestino delgado, tornando-os vulneráveis à infeção. “O facto de um órgão ter o recetor ACE-2 não significa necessariamente que será afetado, era preciso que o vírus circulasse muito no sangue, o que não acontece, e que o sistema imunitário fosse incapaz de controlá-lo nos pulmões”, refere o especialista em doenças infeciosas Tiago Marques. Margarida Tavares defende que, “embora o sistema respiratório seja e continue a ser o local privilegiado da infeção e da patologia Covid-19, sabemos que podemos ter algumas complicações cardíacas, de foro cardiovascular”. No caso de Paula Lopes, a trombose na perna esquerda levou-a ao bloco para a colocação de uma rede na veia cava inferior, a fim de se evitar que o coágulo subisse para os pulmões. “Quem está sedado e muito tempo parado pode ter estas complicações”, explica Paula. No entanto, vários estudos em todo o mundo têm apontado para uma formação anormal de coágulos no sangue, provocada pelo novo coronavírus. “Têm-se verificado fenómenos tromboembólicos que podem afetar o sistema cardiovascular, ou até mesmo o sistema nervoso central dos doentes, resultantes de um estado em que a coagulação está aumentada e que parecem realmente ter origem numa hipercoagulabilidade provocada pela Covid-19”, afirma Margarida Tavares. Ficar com fibroses nos pulmões foi a primeira sequela a preocupar doentes e especialistas, mas recentemente o foco tem apontado também para os danos neurológicos. Apesar de, nas suas formas mais agudas, parecerem ainda eventos raros e reservados a casos graves, têm-se multiplicado os estudos que se debruçam sobre eles. Uma análise da Universidade de Liverpool, publicada na revista Lancet Psychiatry, debruçou-se sobre 125 casos graves de Covid-19, de pessoas internadas em hospitais do Reino Unido, verificando que 77 doentes tiveram um acidente vascular cerebral (AVC) causado por coágulos no sangue, hemorragia ou inflamação dos vasos sanguíneos. Trinta e nove apresentavam ainda sinais de confusão e de alterações de comportamento e de humor. Outro estudo, publicado na revista Brain, e levado a cabo pelo Queen Square do Instituto de Neurologia, do Colégio Universitário de Londres, mostrou que, num universo de 43 doentes, 30 tinham sido afetados ao nível do sistema nervoso central, desenvolvendo 16 JULHO 2020 VISÃO

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Falta de memória As palavras fogem à enfermeira Paula Lopes, cuja visão e audição parecem enfraquecidas

estados confusionais agudos, encefalites e AVC isquémicos, consequentes da hipercoagulabilidade presente nos vasos sanguíneos; e sete apresentavam alterações ao nível do sistema nervoso periférico, nomeadamente síndrome de Guillain-Barré, uma fraqueza muscular de aparecimento súbito, causada pelo ataque do sistema imunitário ao sistema nervoso periférico. Ainda assim, a maioria dos pacientes observados demonstrou uma recuperação quase total, salvo raras exceções. Um terceiro estudo, liderado por um investigador de Albacete, em Espanha, e publicado na revista médica Neurology, analisou 841 pacientes hospitalizados com Covid-19, chegando à conclusão de que 57,4% desenvolveram algum tipo de sintoma neurológico, de mialgia a dores de cabeça, mas também tonturas e alterações do olfato e do paladar, ou mesmo AVC e encefalites, nos casos mais graves. “Não é a banal pessoa, destas que agora estão a aparecer muito, com poucos sintomas ou assintomáticas, que vai ter este tipo de lesões”, sublinha José Ferro, diretor do Serviço de Neurologia do Hospital de Santa Maria, explicando que estas sequelas não são específicas da Covid-19. “A ação inflamatória infeciosa de qualquer vírus pode provocar uma disfunção geral no cérebro que, geralmente, é transitória. O risco de AVC é maior nos doentes que têm Covid-19, mas, apesar de tudo, na experiência que tenho em Santa Maria, é uma raridade; tivemos no máximo dois casos”, refere o médico.

Pesadelo O enfermeiro Luís Dias foi internado após a polícia ter arrombado a janela do seu quarto para o encontrar já com as extremidades roxas e em hiperventilação. Passou 32 dias em coma

do seu quarto para o encontrar já com as extremidades roxas e em hiperventilação, conta que teve muitos pesadelos nos 32 dias que passou em coma. “Sonhei que estava numa cadeira de rodas no Hospital Egas Moniz, na sala dos médicos, e que passava dias e noites sem ninguém me mexer.” Paula Lopes também teve “pesadelos horrorosos”. “Também não me consigo lembrar de absolutamente nada do que se passou na semana antes de ir parar ao hospital.” Já António Faustino não tem qualquer memória do dia do internamento nem dos oito dias que esteve em coma. “Estas pessoas vêm muito abaladas, é natural que se verifiquem lesões cognitivas ao nível de perturbações do sono, alterações do ciclo diurno/noturno, alterações da memória e ansiedade”, refere Filipe Froes. Quanto às sequelas neurológicas que parecem afetar a maioria dos pacientes vítimas de uma forma leve da doença, estas prendem-se com a alteração do olfato e do paladar, cãibras e dores na região cervical, torácica e dorsolombar, que se fazem sentir durante muito tempo além do dia em que o teste dá finalmente negativo. Marco Correia, um informático de 42 anos que negativou o

DANOS NEUROLÓGICOS E PSIQUIÁTRICOS

“Quando se fala de neurologia da Covid-19, fala-se de muita coisa ao mesmo tempo. Uma coisa é o delírio dos cuidados intensivos, outra coisa é ter uma encefalite pós-infeciosa”, afirma o especialista Tiago Marques. Delírio é uma palavra que pode assustar, mas, devido aos medicamentos dados aos pacientes em coma induzido, é natural que possa surgir. O enfermeiro Luís Dias, 51 anos, internado a 4 de abril no Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa, após a polícia ter arrombado a janela 58

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OS ANTICORPOS DIRIGIDOS PARA MATAR OS VÍRUS ACABAM POR PROVOCAR DANOS COLATERAIS


vírus a 11 de maio e que nunca foi internado, conta que ainda tem “cãibras nos gémeos e espasmos nos dedos, além de dores nos pulmões e falta de ar”. RESPOSTA AUTOIMUNE

No início de junho, um grupo internacional de cientistas escreveu uma carta aberta ao editor do New England Journal of Medicine, alertando para uma possível ligação entre o novo coronavírus e o aparecimento de diabetes tipo 1. Os autores da carta apontam para a concentração da proteína ACE-2, à qual o vírus se liga, nas células pancreáticas beta, responsáveis pela produção de insulina, e revelam-se preocupados com o facto de este poder danificá-las ao ponto de alterar todo o controlo da quantidade de açúcar que está a circular no sangue. “Linearmente falando é uma coisa muito rara. Sabemos que pode acontecer com qualquer vírus, porque é uma questão relacionada com a ativação imunológica quando há infeção viral, mas o que parece acontecer nesses casos não é a infeção direta das células beta pancreáticas, mas antes a destruição imunológica”, afirma Tiago Marques. O especialista explica que, apesar de o corpo humano funcionar muito bem, não é perfeito e, por vezes, quando os vírus se camuflam, imitando as proteínas de superfície das células, os anticorpos dirigidos para os matar acabam por

Aprender a andar António Faustino desenvolveu um hematoma interno, na zona da anca, que acabaria por provocar uma lesão aguda do nervo femoral esquerdo, deixando a perna sem ação

provocar danos colaterais. “Matam células nos órgãos infetados como nos órgãos não infetados, é uma resposta autoimune.” Ainda é cedo para falar de sequelas para a vida. Os especialistas são unânimes em afirmar que mesmo as diversas lesões observadas podem não depender inteiramente da Covid-19. “Nesta fase, temos de apostar no melhor programa de reabilitação possível para minimizarmos o risco de qualquer perda funcional e investir muito na recuperação física, psíquica e mental destes doentes, precisamente para limitarmos eventuais sequelas que possam persistir”, afirma Filipe Froes. Paula Lopes continua a fazer fisioterapia três vezes por semana e, apesar das dores no ombro e do cansaço que a impede de realizar tarefas como aspirar a casa, acredita que conseguirá recuperar na totalidade. Para António Faustino, o cenário é diferente: os médicos já lhe explicaram que a recuperação será muito lenta e dificilmente será total. “Eu não sinto melhoras nenhumas. Se existirem, são mínimas e impercetíveis.” Já Luís Dias, apesar de ter saído dos cuidados intensivos com as pernas da largura dos punhos, recuperou o peso, não tem dificuldades em respirar e teve alta da fisioterapia. Será um caminho longo, percorrido ao ritmo natural do corpo humano e da Ciência e feito em conjunto com o resto do mundo. mnogueira@visao.pt 16 JULHO 2020 VISÃO

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BIDEN O SONHO ANTI-TRUMP

Em 1972, tornou-se um dos mais jovens senadores dos EUA. Agora, aos 77 anos, com a ajuda da pandemia e apesar das gafes, tem fortes chances de expulsar Donald Trump da Casa Branca por ser “uma pessoa que ninguém consegue odiar” FILIPE FIALHO

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Ao longo das 14 temporadas em que apresentou a série televisiva O Aprendiz, Donald Trump divertiu-se, vezes sem conta, a despedir concorrentes. A 3 de novembro, o empresário nova-iorquino que se converteu no 45º Presidente dos EUA habilita-se a receber voz de expulsão da Casa Branca. A pandemia Covid-19, a brutal recessão económica e a reabertura do debate racial na sequência da morte de George Floyd afundaram a popularidade do Chefe de Estado. As sondagens vão quase todas no mesmo sentido e indicam que Joe Biden e os demais candidatos do Partido Democrata podem reconquistar a Sala Oval e obter, também, uma dupla maioria no Congresso – no Senado e na Câmara dos Representantes. Na opinião de uma das mais bem informadas analistas políticas de Washington D.C, Amy Walker, a eleição agendada para 3 de novembro pode resultar num “autêntico tsunâmi”, com Donald Trump e os republicanos a serem humilhados nas urnas. Um cenário que a liderança dos democratas desvaloriza para evitar euforias e triunfalismos prematuros. Ninguém quer repetir o que aconteceu em 2016, quando Hillary Clinton era a clara favorita para bater Trump, acabando, no

Quem será a número 2? Biden já anunciou que vai escolher uma mulher para a vice-presidência, caso vença. Sete candidatas

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Dupla presidencial Entre 2008 e 2016, Barack Obama e Joe Biden partilharam a Casa Branca e tornaram-se amigos

entanto, por perder devido aos seus erros de campanha – nomeadamente ao dar como garantida a sua vitória em estados que depois penderiam para Trump por uma margem mínima (ver infografia): “Se essas 40 mil pessoas do Wisconsin, do Michigan e da Pensilvânia não tivessem mudado de ideias...”, costuma dizer a mulher cujo marido, Bill Clinton, e Barack Obama descreveram como a “mais bem preparada” para liderar os EUA. Os democratas sabem que não podem baixar a guarda, porque ainda faltam mais de 100 dias para a votação e não é de excluir que haja surpresas desagradáveis até lá – tendo em conta que Donald Trump e os seus já demonstraram que podem recorrer a todo o género de truques

TAMMY DUCKWORTH

KAMALA HARRIS

KEISHA LANCE BOTTOMS

Senadora de 52 anos, filha de um marine e de uma tailandesa, integrou a administração Obama. No Iraque, onde pilotou helicópteros, perdeu as duas pernas.

A senadora e ex-procuradorageral da Califórnia, com 55 anos, é uma das dirigentes mais habilitadas para o cargo – e também uma hipótese para liderar a pasta da Justiça.

A presidente da câmara de Atlanta, de 50 anos, é uma apoiante de Biden desde a primeira hora. A falta de experiência política pode prejudicá-la – ou talvez não.




Veterano de Washington Joe Biden cumpriu sete mandatos como senador antes de se tornar vice-presidente, e esta é a sua terceira candidatura à Casa Branca

lhe passaram a chamar “Amtrak Joe” (devido à companhia ferroviária). GAFES E CONTRADIÇÕES

Em 1987, Joe Biden decide cumprir o sonho que alimentava desde o final do curso de Direito: candidatar-se à Casa Branca. A experiência correu mal. Viu-se forçado a desistir depois de o New York Times o acusar de plagiar discursos de Robert Kennedy, o irmão de JFK e antigo procurador-geral dos EUA, e de Neil Kinnock, o líder dos trabalhistas britânicos. O desgaste e o stresse dessa campanha acabariam, meses depois, por manifestar-se da pior forma. Dois aneurismas levaram-no à porta da morte, a tal ponto que chegou a receber a extrema-unção no mais conhecido hospital militar dos EUA, o Walter Reed, em Bethesda, no Maryland. A sua recuperação demorou quase um ano, mas “Amtrak Joe” regressou aos seus afazeres parlamentares e, nas duas décadas seguintes, liderou dois importantes comités do Senado – o judicial e o dos Negócios Estrangeiros. No

primeiro, distinguiu-se pelo contributo que deu às iniciativas legislativas de Bill Clinton – contra as armas automáticas e contra a violência doméstica; no segundo, tentou contrariar a fúria intervencionista de George W. Bush e dos neoconservadores, apesar de também ele, em 2003, ter votado a favor da invasão do Iraque para eliminar armas de destruição em massa e depor Saddam Hussein. Quatro anos mais tarde, lança o seu livro de memórias e decide novamente entrar na corrida para a Casa Branca. Nas primárias, Hillary Clinton e Barack Obama não lhe dão hipótese. O senador do Illinois revelou até ser bastante magnânimo quando convidou Joe Biden para ser o seu vice-presidente. O candidato já conhecido pela sua tendência para gafes, boutades e afins, a 31 de janeiro de 2007, refere-se desta forma ao homem que conquistará depois a Casa Branca e o Nobel da Paz: “É o primeiro afro-americano mainstream articulado, brilhante, com boa aparência e bonito. É a personagem inspiradora para um livro.” Estas declarações forçaram-no a apresentar

desculpas a Obama e, ao contrário do que então se previa, a relação de ambos evoluiu para uma amizade que dura até hoje. Pelo meio, enfrentaram várias crises em conjunto e Biden era das poucas pessoas na Casa Branca que se podia dar ao luxo de discordar do commander-in-chief. Por exemplo, só em 2011, opôs-se à intervenção militar na Líbia que culminou na morte de Muammar Kadhafi, e também não aprovou o raid no Paquistão que ditou a morte de Osama bin Laden, com o argumento de que, em caso de falhanço, Obama jamais seria reeleito. A sinceridade entre ambos fez igualmente com que a Sala Oval fosse testemunho de outro acontecimento traumático para o vice-presidente, a luta contra o cancro de “Beau” Biden. O filho mais velho de Joe faleceu em 2015, mas Obama chegou a oferecer-se para pagar os milionários tratamentos do jurista e herdeiro político do clã do Delaware, que morreu com 45 anos. Donald Trump irá invocar todas as contradições e erros de Joe Biden, ao longo do último meio século. Tendo em conta as sondagens, vai usar e abusar de tudo quanto possa ser comprometedor para o candidato democrata, incluindo o episódio mal explicado de alegado assédio sexual a Tara Reade, antiga colaboradora de Biden no Senado, em 1993. A grande questão é saber se algum testemunho mais ou menos sórdido poderá ainda mobilizar o eleitorado a reeleger o atual Presidente. Em declarações à revista L’Obs, Allan Katz, académico e antigo embaixador dos EUA em Portugal, não tem dúvidas. “Joe Biden vai ganhar. (...) Ninguém o consegue odiar. Ninguém pode ter medo dele. (...) Cometeu erros e teria sido preferível haver um candidato mais jovem, mas é uma pessoa de bem, honesta.” Um dos maiores apoiantes de Trump, o senador Lindsey Graham, parece concordar: “Se não admirarmos Joe Biden como pessoa, então muito provavelmente temos um problema. Como não gostar?” A 3 de novembro saberemos se têm razão. ffialho@visao.pt 16 JULHO 2020 VISÃO

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FOCAR

“A política é a arte de identificar problemas em qualquer lado, diagnosticá-los incorretamente e aplicar as piores soluções” Groucho Marx Ator e comediante norte-americano (1890-1977)

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Entendimento Em 2018, pouco tempo após Rio chegar à presidência, PS e PSD fizeram dois acordos que os líderes consideraram fulcrais

BLOCO CENTRAL

Parceria escondida com o rabo de fora

Do “nim” sobre Centeno no Banco de Portugal ao fim das reuniões no Infarmed, do Orçamento Suplementar à desvalorização dos debates quinzenais, Rio volta a estar mais alinhado com Costa e a estratégia é para manter. Orçamento do Estado do próximo ano pode ser o passo seguinte de uma p sintonia muito pouco discreta P E D R O R A Í N H O E O C TÁV I O L O U S A D A O L I V E I R A

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fim dos debates quinzenais com o primeiro-ministro, a abstenção no Orçamento Suplementar, a eleição de Francisco Assis para o Conselho Económico e Social e a passadeira estendida para a (nada secreta) nomeação de Mário Centeno para o Banco de Portugal. São estes os incontornáveis e mais recentes episódios em que o PSD de Rui Rio deu a mão ao PS de António Costa. Em época de arranque das negociações do Orçamento do Estado para 2021, multiplicam-se no Governo as juras de amor à esquerda, ao mesmo tempo que, dentro de portas, o líder social-democrata jura a pés juntos que não está a atalhar caminho para a reedição de um bloco central. Mas, depois do fim da Geringonça, e com a ameaça de uma crise económica de consequências imprevisíveis, será que Costa e Rio desenham, agora, as primeiras linhas de um modelo que, há 40 anos, juntou Mário Soares e Carlos Mota Pinto na mais ampla frente parlamentar que secou os partidos da oposição? Esta semana, o Governo começou a receber os partidos com que, desejavelmente, vai aprovar o Orçamento do Estado do próximo ano. Mas não foram uns partidos quaisquer. A três meses de a previsão de contas para 2021 ter de entrar na Assembleia da República, o convite foi estendido ao Bloco de Esquerda, ao PCP, ao PEV e, num piscar de olhos à atual configuração parlamentar, também ao PAN. “O espaço natural de entendimento deve ser feito com os partidos à nossa esquerda e com os partidos ambientalistas. Por isso, queremos discutir com esses o Programa de Recuperação Económica e o Orçamento do Estado para 2021”, sublinhava no início da semana Duarte Cordeiro, ele que é o ponta de lança de Costa no Parlamento e o principal responsável – agora que Pedro Nuno Santos está ocupado com outros dossiês – por garantir que a soma de votos no hemiciclo é suficiente para ultrapassar mais esta etapa. A oposição do PCP na votação final do Orçamento Suplementar e os mais recentes avisos de Jerónimo de Sousa e de Catarina Martins sobre uma aproximação vertiginosa entre o PS e o PSD numa série de temas fundamentais não afastam o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares dessa linha dis-

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BLOCO CENTRAL

Centrão com Marcelo Anuncie que é candidato em outubro, novembro ou dezembro, Marcelo Rebelo de Sousa terá António Costa e Rui Rio do seu lado. A 13 de maio, na célebre visita à Autoeuropa, o secretário-geral do PS lançou o atual inquilino de Belém para uma nova candidatura presidencial, quando prometeu regressar à fábrica de Palmela no primeiro ano do segundo mandato do Presidente da República. “Como não há duas sem três, cá temos de voltar outra vez”, atirou o primeiroministro. Mesmo que os socialistas não concedam um apoio formal a Marcelo, foram já várias as vozes que confirmaram o clima de romance. Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros, defendeu que o Presidente e o primeiro-ministro “combinam harmoniosamente”, e Eduardo Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, já antecipou que votaria “sem hesitações” no atual chefe de Estado, mesmo que Ana Gomes avance. A ex-eurodeputada é a pedra no sapato da direção do partido. Francisco Assis afirmou que a apoiaria e também Pedro Nuno Santos, figura mais proeminente da ala esquerda do PS, aposta numa candidatura da área socialista. Em entrevista à VISÃO (ver página 40 e seguintes), o ministro das Infraestruturas e da Habitação diz que, na RTP, “deu uma opinião bastante óbvia para uma grande maioria dos socialistas” ao avisar que votará em qualquer personalidade dessa área – ou, na ausência de alguém, num candidato do BE ou do PCP –, por ter uma “visão do mundo e valores” que não partilha com Marcelo. À direita, tudo é mais pacífico. Apesar das irritações que Marcelo tem suscitado ao seu eleitorado tradicional, Rio quase arrumou o assunto em entrevista à TSF. Apoiar Marcelo? “Sim, é o mais provável. Não vale a pena estar com coisas, é obviamente o mais provável”, garantiu.

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cursiva. Duarte Cordeiro relativiza, até, o aperto de mão simbólico entre Costa e Rio, no acordo entre os dois líderes que permitiu a nomeação de Centeno para suceder a Carlos Costa no Banco de Portugal, apesar de todas as reservas que o líder social-democrata foi manifestando em público contra a escolha do ex-ministro das Finanças. “Tal como na anterior legislatura, tem havido entendimentos pontuais com o PSD. Os próprios partidos à nossa esquerda vão tendo entendimentos pontuais com o PSD”, lembrou o secretário de Estado, numa farpa às “coligações negativas” que esquerda e direita formaram, isolando o PS, para aprovar o alargamento dos trabalhadores com acesso ao subsídio de desemprego e apoios fiscais às micro, pequenas e médias empresas, no âmbito do Orçamento Suplementar. Mas o tiro dos comunistas já estava dado e, quando disparou, Jerónimo de Sousa fê-lo, aliás, com armas pesadas. À boleia da instabilidade económica e social que já se adivinha, como fatura da crise sanitária em que o País mergulhou com a pandemia da Covid-19, está formada uma “conjuntura propícia” à concretização de um novo “bloco central” na política portuguesa, avisou Jerónimo. “Estão a pensar dar uma nova vida ao chamado bloco central, que pode ser formal ou informal, mas que será sempre como foi no passado: o bloco central de interesses políticos e económicos”, denunciou abertamente, num comício no Porto, o secretário-geral comunista. Catarina Martins não foi tão explícita, mas nem por isso deixou de chamar a atenção para as pontes (ou os “acordos”) que PS e PSD conseguiram criar para viabilizar – sobretudo, mas não só – a correção às contas de 2020. “Não só aconteceu no Orçamento Suplementar, com o PSD a mudar a sua posição inicial para ir ao encontro do Governo, mas também no acordo para alterações regimentais no Parlamento” e “mesmo no acordo para eleição de órgãos externos à Assembleia da República”. Noutro episódio, no final da semana passada, a mudança do nome que o PS tinha em cima da mesa para presidir ao Conselho Económico e Social fez o PSD passar de uma rejeição absoluta para uma aprovação quase absoluta da proposta dos socialistas. Assis – que esta semana foi entrevistado na rubrica Irrevogável, da VISÃO – foi eleito com 170 dos 230 votos dos deputados.

DEPUTADOS CONTESTAM MUDANÇAS NA AR

No caso das mudanças ao regimento da Assembleia da República, que tanto brado deram devido à redução do número de vezes em que o primeiro-ministro prestará contas aos deputados, Rio não foi poupado por alguns elementos da sua própria bancada. Num grupo de WhatsApp composto por parlamentares, Luís Marques Guedes, Emídio Guerreiro

PROPOSTAS DE RIO PARA ALTERAR O FUNCIONAMENTO DO PARLAMENTO ENFURECERAM VÁRIOS DEPUTADOS DO PSD


e Álvaro Almeida foram os mais duros, especialmente por terem sabido das iniciativas legislativas através da comunicação social. Almeida, que chegou a ser o ministro-sombra de Rio para as Finanças e que, no final de junho, renunciou ao cargo de coordenador da Comissão de Saúde e de vice-coordenador da Comissão de Orçamento, terá mesmo questionado se os deputados não servem para mais do que ocupar as cadeiras do plenário e ainda se foi a falta de convicção sobre a justeza das propostas a ditar a ausência de debate interno. Pedro Rodrigues, ex-líder da JSD, que em maio se demitira do cargo de coordenador da bancada na Comissão de Trabalho e Segurança Social, apresentou mesmo duas declarações de voto sobre as reformas defendidas por Rio. Numa delas, sobre o projeto que alterava a periodicidade dos debates preparatórios dos conselhos europeus, escreveu que a mudança assentava na “convicção da primazia do poder executivo” face ao

Azedume As aproximações entre PS e PSD têm deixado Catarina Martins e Jerónimo de Sousa de pé atrás

Parlamento, indo em “sentido contrário à tradição e ao ideário do PSD de Francisco Sá Carneiro”. Internamente, Rio tem procurado esvaziar a ideia de que esteja a facilitar a vida a António Costa, reduzindo o escrutínio feito pelo PSD, ou, sequer, a abrir caminho a um bloco central (formal ou informal). Um alto dirigente do partido diz, aliás, à VISÃO que a estratégia traçada em 2018 está “incólume”. “Em algumas matérias, o PS é que se tem chegado a nós”, assegura a mesma fonte, que nega qualquer hipótese de que o líder social-democrata “se subjugue” ao primeiro-ministro. DE “FACADA” EM “FACADA”

Na cronologia das duas legislaturas, há ainda aquele momento, em abril de 2018, quando a Geringonça ainda

respirava a plenos pulmões, em que Costa e Rio apareceram lado a lado, em São Bento, para juntar assinaturas num acordo sobre a descentralização de competências da administração central para o poder local e outro sobre a posição de Portugal na negociação de fundos comunitários para a década seguinte. “Facadinha” nas costas dos parceiros parlamentares? O primeiro-ministro garantia que não. “Temos de perceber quais as matérias em que deve haver entendimento e outras em que é normal a existência de divergência, mantendo cada um a sua própria identidade, de forma a assegurar aos portugueses a liberdade de escolha em relação à melhor solução de Governo em cada momento”, resumia o socialista nesse momento. Mas já aí ficava clara a estratégia que, depois das legislativas de 2019, o PS iria assumir abertamente. Na teoria, mantém-se o discurso de que o diálogo se faz, preferencialmente, à esquerda. Na prática, os dois partidos vão continuar a sentar-se à mesa sempre que Rio perceba que, com isso, pode afastar o PS da “extrema-esquerda” e sempre que Costa considere útil um apoio do PSD para chegar aonde precisa de chegar. Desde aí, houve alguns episódios em que o primeiro-ministro recorreu à disponibilidade do líder do maior partido da oposição. Assim aconteceu em julho do ano passado, quando Rio viabilizou, com uma abstenção, a revisão do Código do Trabalho, em que estavam inscritas medidas como a limitação dos contratos a termo, o duplo alargamento dos contratos de muito curta duração, a determinação do número máximo de renovações dos contratos temporários, a eliminação do banco de horas individual, a criação de uma contribuição adicional para a Segurança Social, a pagar pelas empresas que recorram a mais contratos a prazo do que a média das sociedades que operem no seu setor, ou o alargamento do período experimental para jovens à procura do primeiro emprego e desempregados de longa duração. O PSD chegou também a negociar com o PS a recuperação do tempo de carreira dos professores e a revisão da Lei de Bases da Saúde. Em ambos os casos, Rio acabou fintado e bastante criticado internamente. Será que está disponível para voltar a ser com o Orçamento do Estado do próximo ano? visao@visao.pt

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CRÉDITO FOTO

AMBIENTE

O futuro verde de Paris

O confinamento permitiu às cidades vislumbrar um futuro mais amigo do ambiente. A presidente da câmara da capital francesa, Anne Hidalgo, quer que isso seja a realidade do presente V I V I E N N E WA LT, E M PA R I S *

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s ciclistas que pedalavam em direção a uma praça empedrada na margem esquerda do rio Sena pareciam um grupo de amigos a divertir-se numa corrida de domingo à tarde, em finais de junho. Mas este não foi um passeio qualquer. Para eles, trata-se de uma revolução em curso. De uma das bicicletas saltou uma mulher magra de cabelos escuros, envergando um corta-vento dos Chicago Cubs: Anne Hidalgo, a presidente da Câmara Municipal de Paris. Enquanto retirava o capacete, dizia aos jornalistas ali concentrados que a capital francesa precisa de reduzir drasticamente o número de veículos em circulação – uma mensagem crucial da campanha que


Bicicletas como símbolo Nos últimos anos, foram criados mais de 1200 km de ciclovias em Paris

mitar o aumento da temperatura média mundial abaixo dos 2 ºC em relação aos níveis pré-industriais. Mas são as cidades, onde vive a maioria da população do planeta, que têm de encontrar os meios para atingir estes objetivos. Embora as metrópoles ocupem apenas 2% da superfície terrestre, elas consomem 78% da energia do mundo e produzem mais de 60% de todas as suas emissões de carbono, segundo estatísticas da Organização das Nações Unidas. “As cidades são uma relíquia da era industrial”, comenta Richard Florida, especialista em urbanismo na Universidade de Toronto (Canadá). “Elas têm de ser redesenhadas para se tornarem mais saudáveis e seguras.”

STEPHANE CARDINALE - CORBIS/GETTY IMAGES

VENCER OS DESAFIOS

permitiu a sua reeleição, em 28 de junho. “Estamos a chegar lá, mas ainda temos um longo caminho a percorrer”, salienta. Anne Hidalgo não é única dirigente de um município a tentar transformar a vida urbana. Na Europa e nos Estados Unidos da América, e até numa metrópole como Istambul, presidentes de câmaras têm prometido criar milhões de hectares de novos parques, financiar empresas que mudem para a energia solar, modernizar edifícios e proibir viaturas particulares de entrar em bairros nos centros das cidades – tudo isto com o propósito de reduzir a pegada de carbono e de travar a poluição. Estes esforços não poderiam ser mais urgentes. Foram líderes nacionais que, em 2015, assinaram o Acordo de Paris, um pacto climático global que visa li-

O silêncio sinistro que se abateu sobre as cidades durante os meses de confinamento ajudou a reforçar esta mensagem, afirma Anne Hidalgo, aquando de uma entrevista no seu amplo escritório com painéis de madeira, na Câmara Municipal de Paris, dois dias depois de ganhar um segundo mandato de seis anos. “Conseguíamos respirar; conseguíamos ouvir os pássaros, mas não era a vida real, e as pessoas tinham medo”, relembra, aludindo aos quase 30 mil franceses que morreram por Covid-19. “Em todo o caso, pensámos: ‘Se pudesse ser assim, que agradável seria.’” Não têm sido fáceis os anos em Paris desde que Anne Hidalgo iniciou funções em 2014: desde ataques terroristas devastadores, em 2015, até um incêndio calamitoso na Catedral de Notre-Dame, em 2019. Apesar das tragédias, ela manteve os planos de tornar a sua cidade mais verde e amiga das pessoas. Tal ambição mereceu os elogios do lóbi

EMBORA AS METRÓPOLES OCUPEM APENAS 2% DA SUPERFÍCIE TERRESTRE, ELAS CONSOMEM 78% DA ENERGIA DO MUNDO

ambientalista, mas também a ira de motoristas profissionais e de outros parisienses. A medida mais controversa de Anne Hidalgo foi a criação de 1 300 quilómetros de ciclovias que agora cruzam Paris, um plano que ela tenciona expandir ainda mais. Com esta ação, eliminou milhares de espaços para estacionamento e fechou completamente ao trânsito estradas principais. Uma delas é a que conduz à margem norte do Sena e que permitia aos carros ir de um lado para o outro na cidade em poucos minutos – agora, está reservada aos peões. A partir de 2024, todos os veículos a gasóleo também serão proibidos de entrar em Paris. Engenheiros têm vindo, entretanto, a qualificar os edifícios da cidade de acordo com a sua eficiência energética e, segundo Anne Hidalgo, já readaptaram cerca de 50 mil com melhores estruturas de isolamento e de ventilação. A presidente da câmara também afrouxou rígidos códigos de construção de modo a permitir, por exemplo, que os moradores plantem árvores nos seus bairros – algo que, anteriormente, exigia superar íngremes obstáculos burocráticos. UMA TRINCHEIRA VERDE

Globalmente, Anne Hidalgo está entre os autarcas mais ativos no que toca às mudanças climáticas desde que a sua cidade acolheu a 21ª Cimeira do Clima (COP 21), durante a qual o Acordo de Paris foi assinado. Exerceu a presidência rotativa do C40, um grupo de grandes cidades fundado em 2005 para coordenar as políticas climáticas globais, até ao final do ano passado. Esta organização revelou-se uma rede crucial para dirigentes locais que tentam pôr em prática iniciativas ambientais, sobretudo em países – como os EUA – onde as autoridades federais oferecem pouca ajuda. “Estamos praticamente entregues a nós próprios”, diz-nos o presidente da câmara de Filadélfia, Jim Kenney, numa reunião do C40 realizada em Copenhaga, em outubro último, referindo-se aos mayors norte-americanos. “Podemos até causar um grande impacto, mas não conseguimos fazer tudo.” A sensação de partilhar uma trincheira verde ajudou a criar laços entre os presidentes dos municípios mais atingidos pela pandemia. Um dos primeiros telefonemas de parabéns que Anne Hidalgo recebeu, depois de reeleita maire,

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ELEITORES MAIS AMBIENTALISTAS

Nem todos os parisienses estão satisfeitos com as mudanças. Na manhã seguinte ao nosso encontro com Anne Hidalgo no seu gabinete, milhares de motoristas da Uber e de companhias

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ALAIN JOCARD/GETTY IMAGES

foi do mayor de Los Angeles, Eric Garcetti, seu sucessor na liderança do C40. O grupo reuniu-se online em maio, para debater como remodelar as suas cidades abaladas pelo coronavírus, e muitos autarcas já estão a agir. Giuseppe Sala, o presidente da câmara de Milão que se propôs criar 36 quilómetros de novas ciclovias, disse a repórteres: “As pessoas estão prontas para mudar de atitude.” O seu homólogo de Londres, Sadiq Khan, aumentou o valor das portagens para quem entrar de carro no centro da cidade. Anne Hidalgo também aproveitou a oportunidade. Enquanto milhões de parisienses eram forçados a ficar em casa, a cidade foi transformando, paulatinamente, mais 50 quilómetros de estrada no que designou por “ciclovias corona”. Quando a capital reabriu, em meados de maio, os moradores aperceberam-se de que deixou de ser permitido entrar de carro na principal artéria leste-oeste, a Rua de Rivoli. Mas podem andar de bicicleta ou de scooter pelo coração comercial de Paris, do Museu do Louvre à Praça da Bastilha, em poucos minutos. Convenientemente para a presidente da câmara que adora andar de bicicleta, a ciclovia passa juntinho à sede do município. “Vou frequentemente de bicicleta de casa para o escritório; não há carros, apenas ciclistas e peões”, exulta Anne Hidalgo. “Subitamente, ganhámos este espaço de silêncio.” Garantida a sua reeleição, a maire de Paris já pensa em novas medidas para transformar o ambiente urbano. Um dos conceitos-chave é o da “cidade de 15 minutos”, projeto de um dos seus consultores, [o franco-colombiano] Carlos Moreno, professor de Inovação na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne. A ideia é desenvolver uma infraestrutura que permita que os moradores, em apenas um quarto de hora a pé, tenham acesso a serviços, como transportes públicos, lojas e escolas que ficam distantes de suas casas. “A pandemia da Covid-19 mostrou-nos que é possível trabalhar de maneira diferente, para criar novos centros”, explica Moreno. “Estou otimista.”

THOMAS SAMSON/GETTY IMAGES

AMBIENTE

de táxis juntaram-se no Boulevard Raspail, uma das principais avenidas que atravessa a margem esquerda do Sena, numa manifestação de fúria para com o programa anticarros da presidente da câmara. Durante várias horas, eles imobilizaram com os seus veículos duas das quatro vias da alameda, buzinando ruidosamente.

DESDE MAIO, DEIXOU DE SER PERMITIDO CIRCULAR DE CARRO NA PRINCIPAL ARTÉRIA LESTE-OESTE, A RUA DE RIVOLI. SÓ DE BICICLETA

Objetivo olímpico A presidente de câmara Anne Hidalgo quer apresentar uma cidade verde ao mundo, nos Jogos de 2024 apesar dos protestos dos automobilistas

“Temos 2 500 motoristas entre os manifestantes, tudo por causa da senhora Hidalgo”, vociferou Anthony, 53 anos, no protesto pós-eleitoral contra a presidente da câmara. Ele tem a sua própria empresa de táxis e recusou-se a revelar o apelido. “Não se trata de ser a favor ou contra o ambiente. Repare: os nossos carros são elétricos!”, acrescenta, apontando para algumas das viaturas. No entanto, os eleitores estão cada vez mais ao lado dos ambientalistas. Nas eleições municipais de 28 de junho, o partido Europa Ecologia – Os Verdes (EELV na sigla em francês) conquistou as câmaras de grandes cidades, como Lyon, Bordéus e Estrasburgo. Em certa medida, Anne Hidalgo também deve a


OPINIÃO

sua vitória a um pacto eleitoral que firmou com Os Verdes. Partidos ecologistas obtiveram, igualmente, quase 10% dos lugares do Parlamento Europeu em 2019, assim como 20% dos votos nas eleições locais na Alemanha. Muitos eleitores admitem que as mudanças climáticas são agora a sua maior inquietação. Anne Hidalgo não se surpreende. “Há muito tempo que previa isto”, observa. “A preocupação dos moradores com o ambiente é enorme em todas as grandes cidades do mundo. Na verdade, é a questão número 1.” Além de gerir a crise atual, Anne Hidalgo já está a preparar os Jogos Olímpicos programados para julho de 2024, em Paris. O seu objetivo, diz, é uma total transformação da cidade. Várias piscinas públicas à beira-rio, arquitetadas propositadamente para os Jogos de Verão, irão tornar-se instalações permanentes. Depois de limpo, será possível nadar sem perigo no rio Sena [cujas margens são Património Mundial da UNESCO.] O subúrbio de Seine-Saint-Denis, maioritariamente habitado por imigrantes, a nordeste de Paris – uma das áreas mais pobres em França –, vai assistir a um boom de construções, designadamente uma Aldeia Olímpica amiga do ambiente, uma Cidade dos Média e um centro aquático. Alargar-se-á também uma rede de transportes elétricos e mais rápidos na capital. E, apesar de o orçamento olímpico ultrapassar os 7 mil milhões de euros, Anne Hidalgo está determinada a aderir aos princípios ambientais. Foi por isso que cancelou um acordo de patrocínio, avaliado em 100 milhões de euros, com o gigante petrolífero francês Total, e proibiu a participação da indústria de combustíveis fósseis. “Os Jogos Olímpicos vão ser um motor muito, muito importante para transformar a cidade”, acredita ela. Se as suas previsões se concretizarem, em breve os parisienses irão viver numa cidade mais arborizada e tranquila – mesmo com as buzinadelas dos motoristas que contestam as ideias de Anne Hidalgo. *Com Ciara Nugent, em Copenhaga, e Mélissa Godin, em Londres

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Pedro Nuno e as presidenciais POR PEDRO NORTON

A

aquilo que Rio adiou, sem quals declarações de Pedro quer vantagem: declarar o seu apoio Nuno Santos sobre as prea Marcelo. É o CDS que tem um sidenciais, proferidas na problema bicudo. O seu eleitorado semana passada na RTP, nunca morreu de amores pelo atual têm um profundo signifiPresidente e, na ausência de um cado político. Não versam candidato alternativo, pode ser tené sobre as presidenciais. tado a engrossar as hostes de André Confuso? Nem por isso. Ventura. O problema é que o CDS As ditas eleições são, aliás, tamnão se pode permitir ver Ventura bém elas, muito paradoxais. Ararrecadar um resultado melhor do riscam-se a ser muitíssimo inteque o que teve o partido nas últimas ressantes por várias razões, sendo legislativas. Mas para o evitar precique nenhuma delas é a eleição do saria de avançar com um candidato Presidente. Essa está mais do que próprio… que lhe desse absolutas resolvida e só um assomo narcísico garantias de bater Ventura. A equapode transformar a ideia de bater o ção, já se vê, não é fácil de resolver, recorde de Mário Soares num evento e a reconfiguração do espaço à disignificativo. Mas a contenda não reita do PSD pode estar mesmo aí, deixa de ter, como digo, outros moao virar da esquina. tivos de interesse. Tanto mais que há Mas é à esquerda que, estranhaum conjunto de temas e combates mente, se trava o mais laterais importantes dos combates. para seguir. As declarações feroz E assim regressamos O primeiro desses do ambicioso a Pedro Nuno. O que temas é o do mais está verdadeiramente do que previsível ministro das causa é tão-só a afastamento entre Infraestruturas em sucessão de António Presidente e primeisão claras para Costa e o posicioro-ministro. Adquirido que está o apoio quem as queira namento do PS no espectro político por(quase explícito) do entender. tuguês. Dois temas PS, a Marcelo interesPedro Nuno em relação aos quais sa agora, sobretudo, o primeiro-ministro cuidar da sua base deseja uma tem sido inteligentetradicional de apoio. clarificação mente ambíguo. E esta, parece evidenOra, as declarações te, não vive exatamendo ambicioso ministro das Infraeste confortável com a ideia de um truturas são claras para quem as bloco central Belém/São Bento. queira entender. Pedro Nuno deseja A descolagem é inevitável, começou uma clarificação. E apela a uma já com o fim das reuniões no Infargrande frente de esquerda que, reumed e só se acentuará à medida que, nida a pretexto de uma candidatura para o Presidente, se for tornando presidencial (estará seguramente a evidente que a situação se degrada pensar em Ana Gomes), possa servir ao nível sanitário, económico ou socomo um teste à força de todos cial. O tema pode até ser de pequena quantos desejam a colagem definipolítica. Mas no quadro de instativa do PS à extrema-esquerda. E, bilidade em que vivemos pode ter já que estamos nisto, que lhe sirva consequências inesperadas. como termómetro para aferição da Outro ponto de interesse é sua própria força. obviamente a medição de forças Tudo isto é interessante. Nada que se fará à direita. E o problema disto tem que ver com a eleição do não é exatamente de um PSD que próximo Presidente. visao@visao.pt acabará inevitavelmente por fazer

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F O T O R R E P O R TA G E M

A margem dos (in)visíveis

Mesmo durante o confinamento, as equipas de rua que prestam apoio aos toxicodependentes nunca ficaram em casa. Viagem a uma cidade que ninguém quer ver J O S É C A R L O S C A R VA L H O

VÂ N I A M A I A

Proteção As equipas de rua da Crescer – Associação de Intervenção Comunitária procuram os recantos de Lisboa onde se consomem drogas e desempenham um importante papel na defesa da saúde pública. Aos pés de Martinho Dias, 41 anos, está o caixote para onde são recolhidas as seringas usadas. Diariamente, distribuem centenas de kits de consumo, que incluem seringas esterilizadas. Com a pandemia, entregam também máscaras, gel desinfetante e refeições, devido à crise económico-social provocada pela doença. Sem as notícias, muitas das pessoas que acompanham nem se aperceberam do que se passava até verem as ruas vazias

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Apoio Num grupo de quase uma dezena de consumidores, há quem se afaste e se volte contra a parede para fumar heroína com a privacidade possível. Devido à pandemia, várias pessoas viram a sua desintoxicação adiada. Para fazer frente aos desafios trazidos pela Covid-19, a Fundação Gulbenkian entregou 300 mil euros ao Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), que financia, quase na totalidade, muitas das organizações que lidam diretamente com toxicodependentes. O dinheiro será distribuído por 40 projetos que atuam em Portugal continental

Exemplo “Devo ser o carocho mais famoso do mundo”, anuncia, bem-humorado, Tiago Praça, 47 anos. Afinal, já terá dado mais de três dezenas de entrevistas a meios de comunicação social estrangeiros, curiosos por conhecerem o País onde o consumo de drogas foi descriminalizado. Deixou a heroína há alguns meses, pela primeira vez em 30 anos, mas continua a consumir crack (cocaína em cristais)

Equilíbrio Enquanto o enfermeiro Paulo Caldeira, 40 anos, distribui metadona, o monitor Vítor Lopes, 39 anos, oferece um cacho de bananas, doadas por um hipermercado, ao ex-campeão do mundo de hóquei em patins, Luís Lourenço, 46 anos: “Há quase dez anos que eu não toco em nada. Tenho a certeza de que conseguia deixar a metadona, mas psicologicamente é uma segurança”, admite o empresário, seguido pelos técnicos da associação Ares do Pinhal, em Lisboa

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Recomeçar Há cinco anos, Maria Costa, 56 anos, perdeu os pais e decidiu mudar de vida. “Os consumidores são como adolescentes imberbes, muito imaturos, e a morte dos meus pais fezme crescer”, afirma. Começou a consumir crack aos 37 anos e ainda não largou completamente o vício, mas já não dorme na rua e arranjou um emprego fixo, pela primeira vez em duas décadas. É o filho de 34 anos, o seu “único incentivo”, quem lhe gere o dinheiro para evitar tentações

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Desprotegidos Carlos desvia a máscara para beber água e aproveita para disparar alguns episódios da sua vida. Esteve detido no Estabelecimento Prisional de Lisboa por agredir um segurança, “não foi por roubo, nem nada disso”, clarifica. Aos 56 anos, é consumidor de heroína – “não injeto, só fumo”. Precisa de 10 euros para garantir a dose diária. Não aceita a refeição oferecida pela Crescer porque já almoçou: “Fica para quem precisar mais do que eu”

Mudança Dora Oliveira, 37 anos, chega apressada à Praça de Espanha, a última paragem da equipa da Ares do Pinhal. “Há dez anos que não consumo heroína, dou a minha cocaína de vez em quando, mas é fumada, nunca injetada”, conta. “Às vezes, ia a uma loja, roubava uma camisola ou um perfume e vendia para consumir, mas nunca me prostituí.” Chegou a dormir na rua, mas hoje vive numa casa arrendada com o companheiro. “Não me importo de dar o exemplo e de dizer que tenho orgulho de estar na metadona”, afirma

Crise De costas, como se ainda escondesse um segredo, Luís fuma heroína numa aparente solidão. Esteve 16 anos sem consumir. Sofreu uma recaída há um mês, quando a sua vida se desmoronou. Perdeu o emprego por causa da Covid-19, não conseguiu pagar a renda e foi atirado para a rua – quase metade das pessoas acompanhadas pela Crescer não tem teto. A psicóloga Rita Santana, 25 anos, ouve-o com atenção, tal como o par Martinho Dias (ser par significa que também ele foi toxicodependente). Está limpo há três anos: “Eles veem-me como um exemplo”

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VAGA R

“O acaso é o maior romancista do mundo. Para se ser fecundo, basta estudá-lo” Honoré de Balzac Escritor (1799-1850)

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LIVROS

Matilde Campilho

“Lá estou eu com as minhas histórias? Sim, aqui estou” SEIS ANOS DEPOIS DE ‘JÓQUEI’, A ESCRITORA ESTÁ DE REGRESSO COM ‘FLECHA’, UM LIVRO DE MICROCONTOS, ALGUNS DO TAMANHO DE UMA FRASE. IMAGENS, CENAS E MOMENTOS DE UMA AUTORA QUE APRENDEU A TIRAR, MAIS DO QUE A ACRESCENTAR LUÍS RICARDO DUARTE DIANA TINOCO

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N LIVROS

Não será exagero dizer que era um dos livros mais esperados dos últimos anos. Em 2014, Matilde Campilho estreou-se com o livro de poesia Jóquei, que rapidamente chegou à segunda e terceira edições, para continuar, nos anos seguintes, e até hoje, a ser reeditado. Foi um inesperado sucesso, que atravessou fronteiras e cruzou o Atlântico, tendo tido grande recetividade também no Brasil. Era o seu verso livre e torrencial, e o seu sotaque meio português, meio brasileiro, que transparecia nessas páginas, como testemunhas de uma vida também ela errante. Nascida em Lisboa, em 1982, Matilde Campilho foi vivendo aqui e ali, escrevendo guiões por onde passava e, mais tarde, poemas que davam conta dessa vivência, desse mundo observado em velocidade. Agora, criou raízes, e não foi por causa da pandemia em que vivemos. Fixou-se em Lisboa, e a janela do seu quarto começou a ser o enquadramento a partir do qual contempla o mundo. As histórias, no entanto, não acabaram. Aos poucos, sentiu-as chegar, num outro registo, mais propício a um novo desafio. Assim nasceu Flecha, uma coletânea de mais de 200 histórias curtas, algumas de uma única frase, outras um pouco mais longas. Com elas, fixa o que de mais importante e mais banal atravessa a vida de qualquer pessoa. Podemos ler este livro como uma homenagem à antiquíssima arte de contar e partilhar histórias? Partilha é uma boa palavra para falar deste livro e de onde ele nasce. Gosto de histórias porque elas unem. Sempre que um homem e uma mulher se encontram, há qualquer coisa que se conta. O que se passou naquela manhã, confissões mais íntimas, o que imaginamos... Por vezes, a partilha é só connosco, mas não desaparece, seja em frente ao espelho, seja em silêncio, seja até em sonhos. A partilha destas histórias não tem nada que ver com as grandes torres de marfim da literatura. É o contrário. Liga, não separa. Ninguém fica de fora. Hoje fala-se muito, na antropologia, da importância que as fofocas tiveram na história da Humanidade. Era uma forma de recolher informações sobre os clãs desconhecidos das redondezas... Exato. Além do prazer de as ouvir e contar, as histórias sempre foram um

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História comum Missal para leitores devotos, guia para almas errantes, manual para espíritos ávidos: Flecha (Tinta da China, 268 págs., €16,50), o novo livro de Matilde Campilho, tem a força dos objetos com que nos relacionamos diariamente. Será para ler do princípio ao fim ou seguindo os caprichos do acaso. É um livro de histórias curtas, mas evidencia-se sobretudo pelas imagens que convoca. Mais do que uma pulsão narrativa, o que encontramos aqui é a descrição de acontecimentos que marcam o mundo e a Humanidade. Conquistas, derrotas, o que nasce, o que se descobre, o que se esquece. A nossa história comum num contar mínimo mas preciso, contido mas fulgurante.

meio para chegar mais longe. E também para dar um passo atrás, o que nem sempre é mau. Recebemos histórias dos outros e, com elas, aprendemos e repensamos o que sabemos. É engraçado ter referido a questão da fofoca, que é vista como uma coisa má e negativa – e pode ser, de facto, dependendo do que a sociedade transmite e incute. Mas na base delas também está a necessidade que as pessoas têm de contar histórias. O senso comum, às vezes, também tem um olhar negativo: “Lá estás tu com as tuas histórias...” Sim, como se fosse uma coisa má. Não tem de ser. Também se ouve muitas vezes numa conversa: “Calma lá, que não foi bem assim.” Ou: “estás a exagerar.” E qual é o problema? Estou só a ensaiar maneiras de contar a história, a fazer com que ela fique mais agradável para todos. Se estamos sentados a uma


“ATRAVÉS DAS HISTÓRIAS, APROXIMAMO-NOS DO MISTÉRIO DO TEMPO, NÃO PARA O ENTENDER, O QUE SE AFIGURA IMPOSSÍVEL, MAS PARA O HABITARMOS” mesa, porque razão não devemos encontrar outra cor, outro ritmo, acrescentar o tal ponto ao conto? Ainda para mais nos tempos em que vivemos. Em que sentido? Vivemos entre dois extremos. A obsessão com os factos e, no ponto oposto, a sua deturpação total, mascarada de objetividade. Claro que há lugares e situações específicas, em que queremos que nos contem só os factos, pois precisamos deles para pensarmos sozinhos. Mas, no resto, talvez seja importante aceitar que existem vários pontos intermédios, que pintar ou exagerar uma história não tem de ser uma coisa negativa. Lá estou eu com as minhas histórias? Sim, aqui estou. É pessoa de partilhar histórias todos os dias? Sobretudo com a minha família e os meus amigos mais próximos. A minha avó usava uma expressão muito bonita: “À mesa, não se envelhece.” E mantemos essa tradição de ficarmos à mesa, depois do almoço de domingo, sentados, só a ouvir-nos uns aos outros. Sem julgamentos, sem tentarmos perceber se aquilo está certo ou errado. É a história pela história. A partilha pela partilha. É muito curiosa essa frase da sua avó, porque no final do livro, num ensaio em que reflete sobre as histórias, defende precisamente que com elas a Humanidade tenta vencer o tempo. Interessa-me muito essa ligação e, sobretudo, a questão do tempo. É o nosso maior mistério. Até fico meio perdida quando penso nesse assunto. Porque a literatura, a música, as artes plásticas são lugares onde o tempo vira outra coisa. São momentos em que tens consciência de que o tempo,

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LIVROS

tal como o conhecemos, que passa velozmente, sem parar, talvez não seja bem assim. Através das histórias, aproximamo-nos do mistério do tempo, não para o entender, o que se afigura impossível, mas para o habitarmos. Refere, nesse ensaio, a ideia de suspensão. Não é uma paragem, é o tempo que se suspende. Não estamos imóveis, porque continuamos a receber coisas, mas num outro ritmo, num ritmo que permite que coisas diferentes se juntem. De onde vem essa ligação ao contar histórias? Li numa entrevista que teve uma infância muito aventureira, ao ar livre. Se calhar, era só uma história (risos)... Mas é verdade: vivi a infância fora de Lisboa, perto de Santarém. Era a mais velha de três irmãos, mas das mais novas de muitos primos. Passava muito tempo sozinha na rua, mas também a ouvir os meus primos, sobretudo os mais velhos. Nunca se colocavam crianças de um lado e adultos do outro. Estávamos sempre juntos à mesa. Por vezes, diziam-nos: agora, é só para ouvir. Não era ficar calado, era ouvir. Hoje, põe-se um ecrã à frente das crianças. Sinto que pertenço a uma geração muito afortunada. Crescemos fora dos ecrãs, no exterior, com as pessoas. Antigamente, entrar num restaurante era ficar maravilhado com o aquário. Hoje, se calhar, nenhuma criança o vê. Perde-se o que o acaso nos dá. Saberão essas crianças contar histórias quando crescerem? Acredito que sim. Não sou velha do Restelo. Esta geração nasceu com os ecrãs. Vão continuar a ser humanos e a precisar de tudo aquilo de que nós precisamos também. E uma dessas coisas são as histórias. Elas existem desde o início do mundo. Não será agora que vão ser interrompidas... Vão provavelmente mudar, ter outra expressão. Vivemos hoje num limbo. Talvez a tradição de que ainda somos guardiões será substituída por outra que ainda desconhecemos. Quando muitos leitores seus estavam à espera de um novo livro de poemas, publica um volume de histórias curtas. Uma surpresa. Também o foi para si? Estava nos seus planos? Agora, é fácil dizer que não foi uma surpresa... A verdade é que estive muito tempo sem saber o que seria,

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e mesmo se haveria, um segundo livro. Mas passaram-se seis anos. O processo foi lento e pensado. O que escrevemos reflete inevitavelmente as nossas leituras. Nesse sentido, não houve surpresa alguma. Quando publiquei o Jóquei, lia sobretudo poesia. Nos últimos anos, andei mais à volta do conto, do ensaio, das narrativas longas. No Jóquei, já encontrávamos alguns poemas em prosa. Era a semente deste livro? Talvez. Não vejo muitos pontos em comum nos dois livros. Apenas a ideia das imagens. O Jóquei também era muito gráfico. Foi o que guardei desse livro. Ia sugerir a velocidade. Os títulos Jóquei e Flecha remetem para isso, são velozes... Será que são? Sim, eu acho o Jóquei um livro veloz. Porque também foi escrito em velocidade. O que não quer dizer pressa, até porque os poemas foram escritos ao longo de vários anos. Mas houve essa escrita em andamento, em trânsito. Este é um livro feito em casa, a ver o mundo a partir da janela do meu quarto, a misturar memória e imaginação. O ritmo e o compasso da escrita são diferentes. Dizia mais no sentido de, ao reunir tantas histórias, e algumas tão curtas, haver em Flecha a vontade de percorrer o mundo todo, de ser “toda a gente e toda a parte”, como no verso de Álvaro de Campos.

“ANTIGAMENTE, ENTRAR NUM RESTAURANTE ERA FICAR MARAVILHADO COM O AQUÁRIO. HOJE, SE CALHAR, NENHUMA CRIANÇA O VÊ. PERDE-SE O QUE O ACASO NOS DÁ”

Sempre pensei neste livro como uma sequência de pontos que o leitor pode unir à sua vontade. E, sim, alguns são velozes. Muitos são apenas momentos, cenas. Nuns casos, quis alargá-los; noutros, reduzir ao máximo, até chegar a uma única frase. A flecha é atributo dos deuses, também dos heróis ou de quem se quer defender. Qual foi o seu ponto de partida? A minha ligação com a flecha nunca foi o ponto de onde é disparada ou aonde vai acertar. Apenas o seu movimento contínuo. Por muita pontaria que façamos, há sempre qualquer coisa que nos escapa, que não acerta. Por isso, imaginei essa flecha como qualquer coisa que atravessa vários momentos, vários gestos, vários mundos, atuais ou de há cinco mil anos, lugares conhecidos ou sem nome. Nunca me interessou essa visão endeusada. Procurei, pelo contrário, acontecimentos banais. Esse conceito esteve presente desde o início da escrita do livro? Escrevi estas histórias num caderno pequeno, pouco maior do que A5. O tamanho ajudava a saber quando parar, o que acabei por perceber intuitivamente, pois ficou-me no corpo. Foi um trabalho de todos os dias. E quando chegava a casa, ao final do dia, passava as histórias para o computador e guardava-as numa pasta. Ainda está para ser feita a história da importância das pastas dos computadores na criação de títulos... Foi o que aconteceu aqui. Começou por ser “corda” e “arame”, sempre qualquer coisa que unia, mas que nunca chegava a um lugar. “Flecha” surgiu a meio do processo. Foi uma nova experiência de escrita? Foi sobretudo uma descoberta, que começou com as tais leituras que me levaram a novos autores e ritmos. Mas a principal mudança foi a que ocorreu na minha vida. Vivia de uma maneira mais nómada, mas nos últimos anos assentei em Lisboa, a cidade onde nasci. E estou contente com isso. A minha escrita, hoje, é fisicamente mais quieta. Move-se agora por outros meios. É estar atento – o famoso “pare, escute e olhe” –, e as histórias vão chegando. As que vêm da memória, as que se cruzam com a imaginação, as que os outros viveram e contaram...


Valoriza muito, no texto final, o contributo dos outros. Até que ponto foi importante para a criação destas histórias? Não posso, nem consigo, estar fechada a todos aqueles que me rodeiam, sejam mais ou menos íntimos. Aliás, gosto muito de conversar com estranhos, da experiência do outro que não conheço. Para este livro, foi muito importante trazer isso para a página, colocar-me no lugar do outro, ver a partir dele. Uma percentagem mínima destas histórias nasceu da minha experiência. Muitas vêm da História e da própria literatura. Eu tinha, desde o início, coisas sobre as quais queria escrever. Mas, muitas vezes, o que me deu mais gozo foi procurar informação sobre determinada figura ou assunto e perceber que, no fim, a minha atenção se desviou para

qualquer coisa lateral, inesperada, mas ainda mais interessante. Ao desdobrar-se à minha frente, numa dinâmica própria, este foi um livro que me ensinou muitas coisas de que eu não estava à espera. Há uma grande permanência de figuras clássicas. É verdade. Percorre este livro a ideia de que há pontos fundamentais nas nossas vidas e na História. Podemos considerá-los santuários, os grandes momentos. Mas, entre eles, existe um sem-fim de acontecimentos, na maior parte banais, que nos fazem chegar aonde chegamos. Quis colocá-los todos ao mesmo nível. O que se destaca e os pequenos momentos ocultos, mas necessários para que qualquer coisa se destaque. É isso que explica a alternância de textos pequenos e outros ainda mais pequenos, de uma só frase.

O livro começou por ser apenas de frases curtas, os intervalos entre os momentos maiores, que só apareceram depois. Uns contrastam com os outros. E, na verdade, esta importância dada aos momentos pequenos é contrária ao que se espera da literatura e da vida. Queremos sempre uma história grandiosa e com uma boa moral? Talvez. Tenho lido muita banda desenhada japonesa, sobretudo The Walking Man, do Jiro Taniguchi. É uma série espantosa, o oposto dessa maneira ocidental de contar histórias. Não procura a explosão. É apenas um homem que caminha e que, depois, regressa a casa. Mas cada vinheta é um acontecimento, por mais simples que seja. Há uma ditadura da ação, neste mundo dominado por séries de televisão e pelo romance? Não sei. Apenas acredito que é possível ocupar o tempo com menos informação, de forma que ela nos habite mais. Séries, filmes, notícias – tudo é tão veloz... Tens de receber, experienciar, pensar e, depois, comentar ou partilhar. Esse ritmo exclui completamente a ideia de mudança pessoal, que pode ser diária ou mais demorada. Não há tempo para te mudares dentro do que recebes. Mas podemos, pelo contrário, deter-nos numa frase, numa imagem. Essa experiência de escrita lenta, aquela que tira mais do que acrescenta, foi muito importante para mim. O seu primeiro livro de poesia tinha poemas longos e em prosa, o seu primeiro livro de prosa tem histórias curtas, algumas que se confundem com um verso. Há uma dimensão lúdica nestas histórias? Gosto muito de brincar, o que, para muitos, é qualquer coisa associada a uma certa idade. Mas quando se faz aquilo de que se gosta – e eu tive a sorte de poder ser o que faço e fazer o que sou –, nunca se perde essa componente lúdica e de diversão. A minha casa está cheia de bonecos. Tão depressa tenho uma reprodução de uma escultura grega, como um super-herói ou o Charlie Brown. Quero manter esse imaginário das histórias que geram histórias. Mas, acima de tudo, quero desafiar os meus limites, brincar com a minha forma de fazer as coisas, de escrever. A do primeiro livro funcionou, serviu muito bem. Mas, agora, quis encontrar outra. rduarte@trustinnews.pt

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SILVIA ZAMBONI

PESSOAS

Zeca Baleiro

PORTUGAL ALI TÃO PERTO (E TÃO LONGE) Nunca antes o artista brasileiro esteve tão perto da música portuguesa como neste seu novo disco de versões: Canções d’Além-Mar. Uma “homenagem sincera e apaixonada”

Encontrar músicos portugueses que se dizem influenciados pela música popular brasileira é fácil, assim como travessias atlânticas de cá para lá, em direção a colaborações e a parcerias. O contrário é muito mais raro. A tendência tem-se alterado nos últimos anos, mas historicamente a música popular portuguesa contemporânea teve sempre muita dificuldade em encontrar o caminho para o gigantesco mercado do público (e artistas) brasileiro. É por isso que, ainda hoje, é surpreendente este novo disco de Zeca Baleiro, nascido

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no Maranhão, há 54 anos. Dito pelo próprio, este Canções d’Além-Mar é uma “declaração de amor à música feita em Portugal, com ênfase na produção das últimas décadas”. Ao todo, são 11 faixas que vão de grandes clássicos, como Balada de Outono, de José Afonso, Menina Estás à Janela, de Vitorino, ou Canção do Engate, de António Variações, a temas menos óbvios, como Tu Não Sabes, de Pedro Abrunhosa, Razão de Ser (e Valer a Pena), da Ala dos Namorados, ou É no Silêncio das Coisas, de José Cid. Num texto escrito a propósito deste seu

trabalho, o músico brasileiro explicava como tudo começou: “Nos anos 80, ganhei de presente da amiga Laurinda – por feliz coincidência o nome de uma linda canção lusitana – uma cassete com canções de Fausto, Vitorino, Sérgio Godinho e José Afonso. (...) A partir de 1999, quando lancei o meu segundo disco, Vô Imbolá, me apresentei diversas vezes em Portugal e, a cada viagem, voltava carregado de CD portugueses (e africanos também, mas aí já é assunto pra outra história), buscando enriquecer meu repertório e tomando contacto


Canções d’Além-Mar O novo disco de Zeca Baleiro apresenta 11 versões de música portuguesa. Começa com Às Vezes o Amor, de Sérgio Godinho, e termina com É no Silêncio das Coisas, de José Cid

com artistas de vários matizes musicais – canção tradicional, rap, rock, fado, música experimental, música pimba etc. Alguns desses álbuns e algumas dessas canções trazidos d’além-mar passaram a fazer parte da minha discoteca afetiva, de tal modo que passei a contagiar amigos e familiares com esse repertório.” E já vinham de trás as experiências de colaboração com músicos portugueses. No projeto Navegar é Preciso, em 1999, em São Paulo, Zeca Baleiro partilhou o palco com Pedro Abrunhosa. Em 2001, atuaria com Sérgio Godinho na Festa do Avante e, em 2003, cantou com ele o Coro das Velha, no disco de colaborações do músico português, O Irmão do Meio. Como faixa-bónus de Baladas do Asfalto e Outros Blues, de 2006, gravou Frágil, de Jorge Palma. Além das canções já citadas, Zeca Baleiro empresta a sua voz a Às Vezes o Amor, de Sérgio Godinho, Ali Está a Cidade, de Fausto, Capitão Romance, dos Ornatos Violeta, Todo o Tempo do Mundo, de Rui Veloso, e Bairro do Amor, de Jorge Palma. Em certos casos, é como olharmos (ouvindo) para algo que conhecemos muito bem de um novo ângulo e perspetiva. E se é verdade que em algumas destas canções se começa por estranhar o sotaque com o seu festival de vogais abertas, é ainda mais verdade que é em projetos assim que melhor se entende o alcance a força da expressão “lusofonia”. E se ainda houvesse dúvidas sobre a natureza deste objeto, Zeca Baleiro esforça-se, mais uma vez, por escolher as palavras certas para o definir: “Não é uma antologia, mas um recorte afetivo do cancioneiro português feito por um músico brasileiro, uma homenagem sincera e apaixonada.” Pedro Dias

de Almeida

JOANA RIBEIRO (Kamyla)

ANA MOREIRA (Isabel)

SARA SAMPAIO (Marta)

LÚCIA MONIZ (Psicóloga)

Uma mãe nunca desiste

Foram várias as conversas que o realizador Bruno Gascon manteve com diversas mães de crianças desaparecidas para chegar à angústia cortante de uma só mulher, a protagonista do seu novo filme Sombra, Isabel, interpretada pela atriz Ana Moreira. Um aviso diz-nos que “este filme é uma obra de ficção inspirada em factos verídicos” mas o trailer já revelado remete de imediato para o caso de Rui Pedro, desaparecido de Lousada em março de 1998, quando tinha 11 anos. Em Sombra, Isabel fica sem chão desde que o filho desapareceu, e passados 15 anos esta mãe mantém um único objetivo: não desistir de procurar o filho que as autoridades e a justiça teimam em querer esquecer. “Este é o filme mais pessoal que já realizei. A caminhada que fiz junto aos familiares de crianças desaparecidas mudou para sempre a minha forma de ver o mundo”, afirma Bruno Gascon, realizador de Carga (2018), a sua primeira longa-metragem, sobre tráfico de seres humanos. O elenco faz-se de mais nomes de peso, como Joana Ribeiro, Lúcia Moniz, Ana Bustorff e Sara Sampaio; do lado masculino, encontramos Miguel Borges, Vítor Norte e Tomás Alves, entre outros. Esta produção da Caracol Studios foi filmada em 2019 em Viana do Castelo e chega às salas de cinema a 22 de outubro. S.C.

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TENDÊNCIAS

A alegria das capulanas As cores e os padrões dos tecidos africanos são cada vez mais visíveis nas revistas de moda, mas também nas ruas e nas casas portuguesas. A versatilidade é a chave deste sucesso, que os profissionais do ramo acreditam ser mais do que uma moda BÁRBARA BARBOSA

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os últimos anos, os padrões dos tecidos africanos, exóticos e distintos, têm sido apropriados por estilistas internacionais, surgindo em coleções inteiras que lhes são dedicadas. O cenário repete-se por terras lusitanas, onde a tendência se espelha nas ruas e nas casas de quem é fã – de agora ou de sempre – deste pano secular. A capulana é um nome moçambicano que se disseminou pelo mundo fora. Em Zanzibar, este tipo de panos chama-se “kanga” e em Madagáscar, “lamba”. No Norte de Angola, são conhecidos como “panos do Congo”. E a sua estética vai variando. A Norte de Moçambique, as cores características são as mais vivas, como o rosa, o amarelo, o vermelho e o lilás, en-

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Criadora “Ao vestir um tecido africano, as roupas transportam-nos para esse mundo cheio de vida”, diz Roselyn Silva

quanto a Sul se usam cores mais sóbrias, como o castanho, o verde-escuro e o bege. Este tecido retangular em algodão é estampado em toda a sua superfície e impresso nos dois lados. Tradicionalmente, tem uma moldura e um motivo centrais. “Os motivos são geométricos e florais, mas alguns motivos animais, como pássaros, também são usados”, diz Sofia Vilarinho, responsável pelo Atelier Alfaiates Africanos, um projeto que tem como objetivo dar emprego digno a alfaiates africanos que pretendem estabelecer-se em Portugal. Sofia, que é designer de moda especializada em capulanas, acredita que o que está a impulsionar esta nova tendência é a sua potencialidade para a modernidade e a sua versatilidade. “Os padrões evoluem com a sociedade, porque cada um tem o seu jeito de amarrar o pano e porque passaram a fazer-se vestidos, calças e saias, malas, toalhas de praias” e outros a partir dele. “Nos últimos três anos, houve um aumento significativo da procura por capulanas. O público em geral está mais atento à cultura africana em todas as suas vertentes: música, gastronomia, moda… Para as marcas e os artistas africanos, é uma grande oportunidade para mostrar o nosso potencial”, afirma Roselyn Silva, designer e dona de um atelier com o seu nome. Quem trabalha com capulanas concorda que ainda há espaço para o seu crescimento em Portugal. O Movimento “Vidas Negras Importam” pode estar a contribuir para isso. “A moda acompanha a História e a História acompanha a moda. É um casamento longo”, declara Mariama Barbosa, apresentadora do programa Tesouras e Tesouros, na SIC Caras. SÍMBOLO DE DISTINÇÃO

DIANA TINOCO

Quem trabalha na indústria adapta-se aos tempos que vivemos. “Por querer tudo

A CAPULANA É UMA PALAVRA MOÇAMBICANA QUE SE DISSEMINOU PELO MUNDO FORA. NO NORTE DE ANGOLA, SÃO CONHECIDOS COMO “PANOS DO CONGO”

perfeito, desperdiçava muito tecido no atelier, porque o desenho tinha de casar bem. Quando comecei a fazer máscaras comunitárias, reutilizei esses retalhos e restos de tecido, e tem sido um sucesso”, diz Roselyn Silva. A designer ocupa-se, tradicionalmente, de roupas em tecido africano usadas com glamour, o que já levou uma das suas criações para a passadeira vermelha dos Globos de Ouro, em 2015, vestida por Leonor Poeiras. Também a Oficina das Mamãs, gerida pela Associação Voluntária de Mães e Crianças Carenciadas, alargou o seu âmbito com a pandemia. Com cerca de 90 trabalhadoras, a oficina dedica-se à venda de peças de capulana. Numa tentativa de se diferenciar, produz sobretudo artigos para o lar e, agora, máscaras. Paula Brito, fundadora do projeto, fala de um aumento da procura nos últimos dois anos. Um bom sinal, pois “a receita das vendas reverte para as 90 famílias envolvidas [em Moçambique]”, anuncia. Este têxtil está intrinsecamente ligado ao continente africano e resultará das trocas comerciais com árabes e persas. A partir do século XIX, foram os holandeses, inspirados nos tecidos das suas colónias na Indonésia, que começaram a produzi-los e a exportá-los para África. “As ligações estreitas com a Índia ajudaram no conhecimento e na produção de estampados em wax print”, e o recurso a desenhadores africanos permitiu-lhes criar ilustrações e figuras que agradassem à população, conta Sofia Vilarinho. Os panos estampados eram sofisticados e, por isso, símbolos de poder. O seu uso estava reservado à elite africana, que os usava sobretudo em momentos de festa. Os escravos, sem voz, usavam panos brancos e lisos. “Havia afirmação social através dos panos, e isso ainda hoje tem influência na imagem que temos deles e no desejo de os ter”, revela Mariana Pimenta, fundadora da página do Facebook “Capulana With Love”. Roselyn Silva, nascida em São Tomé e Príncipe, diz que a capulana é “uma tradição de África e, por isso, faz-nos lembrar calor, alegria e Natureza. Ao vestir um tecido africano, as roupas transportam-nos para esse mundo cheio de vida”. “Muitos clientes ficam rendidos por causa disso: as capulanas influenciam o nosso ânimo, e o semblante muda completamente”, conta a designer. E, assegura, mesmo quem nunca tenha usado o tecido antes fica imediatamente rendido. É uma questão de experimentar. visao@visao.pt

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CRÓNICA

P O R M I G U E L A R A Ú J O / Músico

Crónica do prédio em frente

Na janela ao lado, um jovem empresário, jovem empreendedor, jovem adulto de colarinho azul, ou branco, não sei, para yuppie é um jovem, se tivesse sido apanhado pelo telejornal a roubar galinhas ao vizinho em noite de Lua cheia era logo homem

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lhar para um prédio, o prédio que se vê do meu jardim, e ousar na indelicadeza de entrar por cada uma daquelas janelas adentro, alma indiscreta que adentra sem pudor cada um daqueles domésticos cárceres. Naquela janela, uma senhora velha, pés inchados, avó, mãe e sogra, o programa da tarde sem som, o mangustão e seus efeitos milagrosos, os sorrisos, a árvore das patacas, as cantoras, a alegria vespertina que asperge em todas as direções de dentro daquele aparelho televisor e a senhora com as canelas inchadas, pés inchados mergulhados numa bacia azul com água morna com sal, sal dos Himalaias, diz que tem propriedades, sal cor de rosa, onde já se viu, no meu tempo sal era sal e isto parece mas é remédio dos ratos ou remédio dos escaravelhos, na volta querem-me matar, bem faziam eles. Na janela ao lado, um jovem empresário, jovem empreendedor, jovem adulto de colarinho azul, ou branco, não sei, para yuppie é um jovem, se tivesse sido apanhado pelo telejornal a roubar galinhas ao vizinho em noite de Lua cheia era logo homem. 39 anos, jovem. Se o apanham numa daquelas falcatruas financeiras retiram-lhe logo o jovem e aplicavam-lhe pena imediata, pronta e irreversível sentença de ser automaticamente despromovido a “homem”, lá se ia o jovem, ele que se ponha a pau. Tirou a gravata, o casaco e os sapatos e pôs as pantufas, nem sonha que o vizinho do outro lado da rua consegue ver estas coisas através das paredes, calçou as pantufas, “roupa de casa”, e está neste momento a googlar “terrenos Costa Vicentina bom preço”. A filha reclama por uma opinião urgente relativa ao penteado do pequeno unicórnio de longas crinas azul-celeste e o imberbe yuppie lá cede um ríspido aval, diz que lindo, que lindo, também terá essa capacidade de ver sem sequer olhar e agora googla “Tesla preços”, há uma inquietação que lhes vem de dentro, yuppie e filha, filha e yuppie, filha escova crinas, pai googla por sinais exteriores de riqueza, motivações comuns. Naquela janela, placa a dizer “vende-se”, cortina corrida, uma senhora de bata/avental azul sem mangas sobe no elevador com a missão de mudar as partículas de pó de sítio num frenético e vigoroso espanar, há de correr a cortina para entrar luz, há de abrir as janelas para entrar ar. Pode ser que ar, luz e pó espanado se unam algures no confins do Grande Todo numa espécie de oração, como que convocando algum eventual comprador, a placa como quem grita “comprem-me, comprem-me”, algures nos subúrbios de Maturín uma professora acaba de decidir que chega de Venezuela, vai emigrar sozinha, googlou “calidad de vida Europa ranking” e começou por baixo, o dinheiro não estica, Estónia não, Grécia também não, Portugal porque não, Lisboa não, o dinheiro não estica, Porto, vou para o Porto, chega deste calor e desta podridão que me esturricam os miolos, guio um Uber, pode ser que conheça alguém. A velha rosna alto que a água da bacia arrefeceu. O yuppie encomenda da Amazon um daqueles livros que ensinam a esticar o dinheiro em dez passos, a filha conversa com o unicórnio e a senhora espana, espana, o apartamento imbuído de ar fresco e luz, espana, espana, só para de espanar quando avistar no céu o avião da venezuelana a descer para o Sá-Carneiro. visao@visao.pt


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