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Crítica de Arte em Pernambuco Escritos do século XX
Ana Mae Barbosa André Rosemberg Antonio Franca Ariano Suassuna Cícero Dias Fred ZeroQuatro Gilberto Freyre Grupo Camelo Joaquim Cardozo Joaquim Inojosa Jomard Muniz de Britto José Cláudio Marcelo Coutinho Mário Pedrosa Moacir dos Anjos Montez Magno Rigel de Orion Vicente do Rego Monteiro Wellington Virgolino
CrĂtica de arte em Pernambuco 2012
Clarissa Diniz Gleyce kelly Heitor Paulo Marcondes Soares (org.)
Escritos do sĂŠculo XX
S u m á r i o
Em defesa do futurismo
34
Rigel de Orion
A arte moderna
38
Joaquim Inojosa
Algumas notas sobre a pintura no Nordeste do Brasil
72
Gilberto Freyre
Sobre a pintura de Telles Júnior
90
Joaquim Cardozo
O eterno em arte
100
Vicente do Rego Monteiro
“É preciso conduzir a arte à vida cotidiana”
102
Entrevista com Cícero Dias
O modernismo brasileiro
106
Antonio Franca
Pernambuco, Cícero Dias e Paris
134
Mário Pedrosa
Diálogo sobre a arte
142
Antonio Franca
A respeito de Wellington Virgolino
148
José Cláudio
Não há Nordeste
154
José Cláudio
Teatro, região e tradição
158
Ariano Suassuna
Manifesto tropicalista: porque somos e não somos tropicalistas
174
Jomard Muniz de Britto
II manifesto tropicalista: inventário do nosso feudalismo cultural
178
Jomard Muniz de Britto
Depoimento
182
Montez Magno
O que fazer da crítica cultural?
186
Jomard Muniz de Britto
O futuro imprevisível da arte
190
Montez Magno
Bula para ganhar nos salões
198
Wellington Virgolino
Pinceladas sobre a arte: entrevista com Gil Vicente, Paulo Bruscky, Silvio Hansen e Wellington Virgolino.
202
André Rosemberg
Caranguejos com cérebro
214
Fred Zeroquatro
Artes plásticas no Nordeste
218
Ana Mae Barbosa
Um funil de cabeça para baixo
228
Grupo Camelo
Objetos desejosos: uma entrevista com o antropólogo Lawrence Jakimo Pokot
236
Marcelo Coutinho
Desmanche de bordas: notas sobre identidade cultural no Nordeste do Brasil
260
Moacir dos Anjos
A arte moderna Joaquim Inojosa
38
Em defesa do futurismo Rigel de Orion
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O eterno em arte Vicente do Rego Monteiro
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O futuro imprevisível da arte Montez Magno
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S u m á r i o 2
106
O modernismo brasileiro Antonio Franca
72
Algumas notas sobre a pintura no Nordeste do Brasil Gilberto Freyre
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Sobre a pintura de Telles Júnior Joaquim Cardozo
158
Teatro, região e tradição Ariano Suassuna
Diálogo sobre a arte Antonio Franca
142
A respeito de Wellington Virgolino José Cláudio
148
“É preciso conduzir a arte à vida cotidiana” Entrevista com Cícero Dias
102
Depoimento Montez Magno
182
Pernambuco, Cícero Dias e Paris Mário Pedrosa
134
Um funil de cabeça para baixo Grupo Camelo
228
Bula para ganhar nos salões Wellington virgolino
198
Pinceladas sobre a arte: 202 entrevista com Gil Vicente, Paulo Bruscky, Silvio Hansen e Wellington Virgolino. André Rosemberg O que fazer da crítica cultural? Jomard Muniz de Britto
Objetos desejosos: uma entrevista com o antropólogo Lawrence Jakimo Pokot Marcelo Coutinho
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Artes plásticas no Nordeste Ana Mae Barbosa
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Não há Nordeste José Cláudio
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Manifesto tropicalista: porque somos e não somos tropicalistas Jomard Muniz de Britto
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II Manifesto tropicalista: inventário do nosso feudalismo cultural Jomard Muniz de Britto
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Caranguejos com cérebro Fred Zeroquatro
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Desmanche de bordas: notas sobre identidade cultural no Nordeste do Brasil Moacir dos Anjos
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a arte moderna por joaquim inojosa
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algumas notas sobre a pintura no nordeste do brasil por gilberto freyre
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o eterno em arte por vicente do rego monteiro o futuro imprevisível da arte por montez magno
manifesto tropicalista: porque somos e não somos tropicalistas por jomard muniz de britto
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em defesa do futurismo por rigel de orion
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teatro, região e tradição por ariano suassuna
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ii manifesto tropicalista: inventário do nosso feudalismo cultural por jomard muniz de britto caranguejos com cérebro por fred zeroquatro
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o modernismo brasileiro por antonio franca
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diálogo sobre a arte por antonio franca
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a respeito de wellington virgolino por josé cláudio
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artes plásticas no nordeste por ana mae barbosa
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desmanche de bordas: notas sobre identidade cultural no nordeste do brasil por moacir dos anjos
202
pinceladas sobre a arte: entrevista com gil vicente, paulo bruscky, silvio hansen e wellington virgolino. por andré rosemberg 228
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“é preciso conduzir a arte à vida cotidiana” entrevista com cícero dias
um funil de cabeça para baixo por grupo camelo
sobre a pintura de telles júnior por joaquim cardozo
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pernambuco, cícero dias e paris por mário pedrosa
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não há nordeste por josé cláudio
depoimento por montez magno bula para ganhar nos salões por wellington virgolino
186
o que fazer da crítica cultural? por jomard muniz de britto
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objetos desejosos: uma entrevista com o antropólogo lawrence jakimo pokot por marcelo coutinho
Confundindo o estabelecido. Estabelecendo diferenças. É assim, com Jomard Muniz de Britto como (anti)método, que este livro se constitui. Se o dito “estabelecido” acerca da crítica de arte em Pernambuco é que ela teria sido inexistente até a década de 1990, a diferença que é preciso estabelecer é permitirmo-nos enxergar um pensamento crítico que destoa das expectativas em torno de um modelo recorrente de crítica de arte, habitualmente argumentativo e judicativo. Ampliando o sentido de “texto crítico”, inquietações e discussões perpassam escritos diversos – cartas, artigos, manifestos, ficções, entrevistas, ensaios, manuais, depoimentos –, que compõem um universo aqui recortado. Insatisfeitos com o discurso da ausência, fomos em busca das singularidades da prática crítica desenvolvida a partir de Pernambuco, ao longo do século XX. Interessava-nos perceber como esse pensamento respondia ao debate estético travado nacionalmente, ao passo que também instaurava discussões específicas no seio de um repertório local de múltiplos embates. Assim, os escritos aqui reunidos a um só tempo articulam posicionamentos frente ao nacional, e esforços de compreensão – raramente consensuais – do que poderia ser (e tantas vezes foi) circunscrito como “arte” ou “campo da arte” de Pernambuco. Essa não conformidade de posicionamentos se traduz na heterogeneidade desta coletânea. O esforço panorâmico – sempre arbitrário – que impulsiona este projeto é redefinido na edição que fazemos na his-
15
tória a partir da escolha de certos textos, bem como por razões contingentes, como a não autorização quanto à publicação por parte de alguns autores. Todavia, a necessidade de sistematizar registros dessa história, lançando luz sobre questões que nos parecem fundamentais e urgentes, mantém aceso o impulso – nutrido, ademais, por uma relação de afecção e ressonância que certas preocupações e abordagens têm sobre nós. Desse modo, neste nosso recorte, evidenciam-se questões como a emergência da modernidade – com as disputas (também geopolíticas) entre vanguarda e tradição –; a constituição e problematização da ideia de uma identidade “nordestina”, “pernambucana” ou “brasileira”; o debate entre forma, conteúdo e função da arte; a relação entre arte e política; questões do campo, do circuito e da crítica; a relação da arte com o espectador, o público ou o povo; as implicações entre arte e tecnologia; as tensões entre arte, linguagem, ficção e expressão, dentre outros. A eminência do século XXI, por sua vez, recoloca algumas dessas questões, criando um debate também entre o “moderno” e o “pós-moderno”, o que leva alguns autores a por a história em perspectiva, estabelecendo sínteses e distinções. As manifestações da modernidade nos anos de 1920, em Pernambuco, foram marcadas pelo embate entre diferentes formas de modernismos: de um lado, os chamados “futuristas” (próximos aos movimentos modernistas europeu e paulista); de outro, os chamados “regionalistas”. As manifestações dos “futuristas” – termo contestado pelos próprios, dado seu teor à época pejorativo e simplifcador –, de modo geral, parecem assumir uma conotação heroica, típica do modernismo em suas primeiras formações (particularmente, ao vislumbrar a ideia de atualização do país, ou da região, pela incorporação das linguagens artísticas da modernidade europeia). Por outro lado, dentre os regionalistas, viu-se a recorrência às especificidades locais e regionais da cultura, como, de resto, na segunda fase do modernismo – só que, aqui, pela afirmação de um regionalismo que fosse capaz de revelar as forças da tradição como um dos elementos da diversidade e de mediação da modernidade para se pensar a região. O esteticismo característico da mencionada fase heroica pode ser identificado no manifesto Em defesa do futurismo (1924), de Rigel de Orion1, marcado que está pela afirmação dos “saltos” do progresso, da
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Provavelmente, um pseudônimo cujo autor não foi possível identificar.
instantaneidade, das rupturas, típicas dos escritos de Marinetti, contra os arcaísmos e anacronismos das tradições, mas, também, em particular, contra o que o texto caracteriza, no contexto moderno, como “a ferrugem dos falsos adeptos”. O texto tem também a especial preocupação de defender os “verdadeiros futuristas” (que escreveriam “para satisfazer uma necessidade íntima”) contra aqueles que elevavam “a voltagem de absurdismo escrevendo coisas insinceras que eles próprios não entendem”. Às voltas com o problema da equivocada compreensão do futurismo, Rigel de Orion aventa a possibilidade de outro nome para o movimento, Sugerismo, vinculado à ideia de que a arte futurista não dita sentidos, senão os sugere: “Sugerir - eis tudo. (...) Daí o enigmatismo dessa arte”. Desse modo, Rigel de Orion aponta para uma ética da arte também em relação ao seu público: para o autor, os futuristas “não descem à compreensão da maioria plebeia. (...) [Daí] o segregrismo dessa escola. (...) [Os futuristas] são incompreensíveis para a maioria burguesa. Que importa! O artista não deve descer ao público. O público é que precisa subir até ele”. Em A arte moderna (1924), carta literária aos editores da revista paraibana Era Nova, Joaquim Inojosa, seu representante no Recife, afirma a convicção da necessidade de “uma nova expressão de arte” contra as “velhas fórmulas”. E embora evoque as manifestações de uma arte nova, recusa, por seu turno, o rótulo de futurismo, que julga “inaceitável entre nós”, visando afirmar-se como moderno. Apesar disso, é possível identificarmos no texto certas passagens à Marinetti. À procura de uma expressão nacional, Inojosa erige a figura de Graça Aranha como elo fundamental na configuração dos modernismos esboçados, ou em gestação, entre nós. Ao elaborar uma ampla contextualização do que chama de “Credo Novo” – cujo momento primordial teria se dado na Semana de Arte Moderna, mas que teve na revista Klaxon seu ícone principal –, passa em revista os desdobramentos do movimento em São Paulo e Rio de Janeiro, até chegar a Pernambuco e à Paraíba, com rápida consideração sobre o Pará e o Rio Grande do Norte. Crítico do parnasianismo, do academicismo, do naturalismo, do passadismo, declara guerra a todas as modalidades de arte oficial, bem como ao que caracteriza como “regionalistas sistemáticos”, e afirma ser a arte algo do presente, sem passado, nem futuro. Com isso, diz ser o belo algo relativo no tempo. Frente à intelectualidade pernambucana, identifica uma completa falta de unidade e de diretriz, salvo “isoladamente” por “certos valores”.
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Pode-se identificar em seu argumento a existência tanto de uma crescente adesão à arte moderna, quanto de grupos completamente reativos a ela, mas, também, daqueles que, embora não a aceitem “em todas as suas feições”, não a “desdenham” – aqui, tem-se uma referência direta a Gilberto Freyre e a outros intelectuais a ele ligados. Por fim, convoca a revista a ser “o porta-voz de todos os clamores de renovação”. No ensaio Algumas notas sobre a pintura no Nordeste do Brasil (1925), Gilberto Freyre desenvolve uma reflexão a propósito da ausência quase que total da “paisagem” e da “vida do Nordeste brasileiro” na pintura regional até, pelo menos, os anos 1920 e 1930. Valendo-se de outros intérpretes, identifica o nosso alheamento em relação ao nosso meio. Embora considere ser essa uma situação generalizável “ao conjunto brasileiro de paisagens regionais”, Freyre procura limitar sua fala ao âmbito do Nordeste. No seu modo de ver, por ser o cenário do sertão e do agreste “violentamente rebeldes” tanto para as formas acadêmicas, quanto para as impressionistas, falta-lhe os pintores que o pintem “com a coragem e as tintas” necessárias. A exceção à regra seria Telles Júnior, que pintou, mas não interpretou, no sentido sociológico, e apenas documentou e fixou a paisagem nordestina em termos eminentemente telúricos. Aí está o que lhe dá destaque e igualmente denuncia a sua insuficiência, posto que lhe faltaria “o elemento humano local”. Esta ausência, em seus diversos modos de ocupação da paisagem nordestina, será notada por Freyre no conjunto da pintura pernambucana e nordestina – sobretudo, a vida cotidiana dos negros no contexto da escravidão. Para ele, “o Nordeste da escravidão foi um luxo de matéria plástica que a pintura brasileira não soube aproveitar”. A pintura do século XIX de Pedro Américo e Victor Meirelles é identificada pela presença do humano em fronts de batalhas. Mesmos os “pintores de formação francesa” dedicaram-se, em geral, mais à pintura da “gente ilustre” que àquele cenário da vida cotidiana, ao qual sequer dispomos de uma “coleção fotográfica”. Resta-lhe a referência ao “tempo dos holandeses”, onde figuraram, com o exotismo dos seus pintores, “retratos, acabados ou em borrão, de tipos de índios, negros e mestiços”. É, pois, no período dos surtos modernistas, que Freyre vai identificar a emergência de jovens artistas que, comprometidos com a “renovação”, não deixam de versar “assuntos regionais, sem perderem o sentido brasileiro e universal das coisas”. Na crítica de Joaquim Cardozo à pintura de Telles Júnior (1926), a referência à paisagem como documento, marcada de certa aridez realis-
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ta, é louvada, em todo caso, por representar, na visão do poeta/crítico: “a compreensão identificadora de uma paisagem característica de uma região”. Cardozo argumenta que esse processo revela a superioridade de Telles Júnior em relação à pintura de sua época, apesar da ausência da temática das gentes e das edificações do lugar. Contudo, assinala que a repetição temática desse pintor gozaria de maior beleza e harmonia se fosse acompanhada de uma “interpretação livre”. Por outro lado, para ele, tal repetição não redunda em monotonia, visto ser a pintura de Telles Júnior marcada pela forma rítmica na reprodução da paisagem. Em todo caso, Cardozo evidencia um conjunto importante de motivos que parecem escapar “à pupila estática” desse pintor, motivo pelo qual faz coro com Gilberto Freyre ao identificar em sua obra a ausência de um procedimento interpretativo, fixando-se unicamente no registro documental. Ao mesmo tempo em que assim o critica, o absolve, já que reconhece que a maioria dos pintores brasileiros igualmente não fixaram em suas obras a imagem da “multidão mestiça”. Ao menos, como procura indicar, a obra de Telles Júnior não se apresentaria de forma “fracionária e incaracterística”, como parece perceber em muitos casos. No seu modo de ver, a “exatidão da paisagem regional” é o valor principal da obra desse pintor. No breve texto “O eterno em arte”, Vicente do Rego Monteiro propõe-nos uma concepção idealista de arte fundamentada em princípios essencialistas de valores supostamente atemporais. Nesse sentido, definir arte como antiga ou moderna é algo completamente descabido, visto que parece haver algo de “essencial permanente” na arte que não a permite envelhecer, talvez por suas “verdades espirituais”. Para ele, o materialismo objetivista do mundo burguês transformou sua arte em “decalcomanias acadêmicas”, mas, também, em “reprodução fotográfica dos objetos”. Assim, com o advento da fotografia na era moderna, o campo das artes plásticas teria reencontrado a natureza de sua finalidade, levando o artista a se voltar para o que Monteiro caracterizou como “valores eternos”. Tais valores essenciais, no que pese o tom vago de seu significado, parecem autenticar na arte antiga o que teria se perdido na arte moderna: sua “qualidade espiritual”, capaz de lhe garantir “ser obras de arte em todas as épocas”. Assim, Vicente do Rego Monteiro esboça sua posição diante do problema das acepções “futuristas” do modernismo, sublinhando uma moderação diante dos arroubos do primeiro momento moderno que, mais tarde, seria aprofundada no contexto do “retorno
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à ordem”, preocupação estética com a qual sua obra passa a comungar. Por sua vez, prende-nos a atenção a chamada da matéria com entrevista de Cícero Dias concedida ao Diário de Pernambuco: É preciso conduzir a arte à vida cotidiana (1948). Indagado sobre as influências que o artista sofre seja da pintura de uma determinada região, como a França, seja de um artista já consagrado, Dias não só confirma tais influências como algo ao qual nenhum artista pode se manter alheio como, também, não as vê como algo ao qual o artista deva se justificar pelo procedimento da cópia. Há, contudo, em seu depoimento, dois pontos de vista, em princípio, relativamente distintos, mas que aparentemente parecem assumir uma perspectiva convergente. Assim, ao falar sobre a importância de Picasso, sobre a atualidade de suas realizações, finda por sentenciar a inexistência de passado e futuro na arte, condicionada que está pelo que é atual: que é, no seu modo de ver, a forma que dispõe para resistir como arte. Ora, se o atual parece apontar para uma dimensão sincrônica, de um estado permanente do agora; não escapa, contudo, à diacronia que o intersecciona entre os legados do passado e os vislumbres do futuro. E a própria obra de Dias é expressão disso. Tanto que ao falar de seu trabalho, reivindica a necessidade de, como no título da matéria, “reconduzir a arte ao cotidiano”, afirmação que, ademais, aponta para o singular processo então vivenciado por sua obra: flexibilizando os padrões da abstração geométrica, Cícero Dias imbuía suas formas de referências biográficas, paisagísticas, sensíveis e afetivas de sua vida em Pernambuco. Com um generoso esforço de síntese que atravessa variados movimentos e autores, no texto/conferência O modernismo brasileiro (1948), Antônio Franca traça uma abordagem do caráter relacional entre tradição e modernidade, de modo a perceber aí ou uma tradição da modernidade, ou uma longa duração da modernidade. Em geral, modernidade será compreendida pelo autor mais como um modo de pensamento social e político, do que de uma perspectiva estética, embora Franca não descure destas questões2 – particularmente quando faz a distinção entre
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A ênfase sobre o “conteúdo” (“política”) em detrimento da “forma” (“estética”) decorre, no pensamento de Antonio Franca, da seguinte lógica do processo de transformação perpetrado pela modernidade: “o sentido [do autêntico modernismo] é o da libertação da forma acadêmica pela renovação do conteúdo que, por sua vez, tomará novas formas”. Assim, para Franca, a confusão política do “falso” modernismo (para ele, o “futurismo”), seria um “movimento de deformação para esconder e preservar a natureza reacionária do velho conteúdo com a roupa dos tempos”.
Crítica de Arte em Pernambuco
Escritos do século XX
estéticas evolutivas e decadentes, tomado que está por certa visão evolucionista do pensamento ocidental. Nessa direção, Franca faz um longo apanhado do modernismo, que remonta aos primórdios dessa forma de racionalidade, dedicando suas últimas páginas às formas de nativismo no modernismo brasileiro, bem como à configuração do tradicionalismo regional como um fator da modernidade no pensamento freyriano. Para Franca, a modernidade brasileira teria início no século XIX – com autores como Abreu e Lima, Tobias Barreto e Euclides da Cunha –, havendo estado estreitamente vinculada à transformação do status político do Brasil: “A corrente moderna surge praticamente com a desilusão da independência de 1822, feita pelos reacionários antes que os renovadores a fizessem”. Desse modo, para o autor, toda a modernidade estaria profundamente relacionada a uma aproximação diante das questões do povo, evidência de sua relação com o pensamento político comunista que então ganhava corpo no Brasil: “O que importa sobretudo à corrente renovadora e aos seus corifeus é o povo. ‘A magna questão é social’ (...). Eis aí a essência e a missão do modernismo: tomar a defesa da terra e o partido da gente que se sente como desterrada no próprio país (...), fomentando a revolução social, cujas consequências serão a promoção do homem do povo à categoria de classe dominante”. É nesse sentido que, de sua visão histórica da modernidade, emerge um conjunto de responsabilidades políticas e sociais para a arte moderna – e, portanto, para os artistas e outros intelectuais. Calcado nas preocupações sociais que atravessam a estética moderna de Graça Aranha (pensador cujo papel, no modernismo brasileiro, o autor sublinha), Antonio Franca criticará o difuso posicionamento social do modernismo paulista – na figura de Mário de Andrade –, afirmando que “a arte [pode] obstruir a prática social e política mesmo dizendo-se social e alegando função social avançada, se permanece numa autossuficiência acreditando sintetizar toda a evolução cultural, ignorando seu justo papel de meio para a transmissão e obtenção da cultura, da qual contudo é a um tempo expressão e fator”. Compreendendo os “líderes do movimento de renovação moderna” como os “arquitetos da cultura brasileira, construtores da nossa democracia popular”, convocará, portanto, a arte a alinhar-se à “ofensiva” das “forças democrático-populares e seus objetivos políticos”, a saber: “uma liderança segura que sintonize os destinos do Brasil aos rumos do mundo contemporâneo”. Em direção diversa à de Antonio Franca, e enquanto Gilberto
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Freyre e Joaquim Cardozo convocavam os artistas a se envolver com as questões regionais na abordagem de seus fenômenos sociais e culturais (bem como pela invenção de formas de representação da região), em Pernambuco, Cícero Dias e Paris (1948), Mário Pedrosa, por sua vez, escapando aos riscos de uma interpretação anedótica das demandas regionalistas, defenderá que, no Cícero Dias dos anos 1940, “dos temas regionais só restou o que era realmente do domínio plástico: certas formas vegetais e arquitetônicas tiradas da paisagem pernambucana, sobretudo recifense e certas cores locais, azuis e amarelos que resistem a qualquer luz”. Seu texto, publicado em Pernambuco à época da polêmica exposição do artista na Faculdade de Direito do Recife – quando apresenta abstrações, assim como pinturas semanticamente ambíguas, como Galo ou abacaxi (1946), Moça ou castanha de caju (1946) –, cumpre, assim, importante papel na flexibilização das relações entre arte e (geo)política, representando um ponto de abertura estética que, paulatinamente, se generalizaria por entre artistas de gerações subsequentes. Mais adiante, no que concerne a um reconhecimento da “autonomia” e legitimidade do campo e da recepção da arte local, Pedrosa desconstrói preconceitos comuns à época – e ainda hoje insistentes: ao invés de acusar o público pernambucano por suas ressalvas quanto à obra de Cícero, pondera que “o público de Pernambuco é tão culto quanto o do Rio. O problema não é de cultura, de preparo intelectual, que é o que, geralmente se entende por cultura. A concepção artística do público letrado de Pernambuco é a mesma do nosso público carioca ou paulista. Província ou metrópole, o público de lá como o de cá está ainda em grande parte impermeável à arte, precisamente pela cultura adquirida e não pela ausência dela”. Por fim, o conflito político quanto ao “lugar” e à “função” da arte, estabelecido na referida exposição de Cícero Dias, é sintetizado – não sem ironia – no texto Diálogo sobre a arte (1948), de Antonio Franca. Ao assumir uma linguagem literária em sua crítica (o texto é uma conversa entre o “povo” e o “escritor”), Franca retoma questões que teriam sido debatidas em “mesa-redonda” da mostra do artista na Faculdade de Direito do Recife, da qual participaram, segundo registros, Orígenes Lessa, Mário Pedrosa, Rubem Braga e Aníbal Machado, e na qual as contradições entre o condicionamento da criação e a emancipação social foram postas em jogo: “(...) [povo] “Precisamos saber se o artista está do lado do povo ou da reação. Ele assinou o manifesto contra o petróleo?” /(...) [escritor] “Mas afinal és o povo ou um indivíduo?”. Assim, Diálogo sobre
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a arte encerra as questões colocadas pelos textos anteriores de Freyre, Cardozo, Pedrosa e Franca, justificando – ainda que com ambiguidade irônica – a pertinência política da arte não anedoticamente social, como o caso da abstração: “[escritor] “O abstracionismo pode ter mais conteúdo popular que a arte que reproduz cenas da “decomposição social” existente e clama por revoltas em sugestões eloquentes. O artista que apenas transmite emoções do momento não faz arte, porém obras de propaganda social. Somos propensos a reconhecer na pintura abstracionista sentido progressivo de tendências sociais avançadas. (...) Foste, ó povo, viste e não entendeste. Volte e observe novamente. Se arte é criação e toda criação uma experiência, aguardemos seus resultados.” Ainda às voltas com questões similares, e calcado na análise de outro momento do campo da arte de Pernambuco, A respeito de Wellington Virgolino (1961) é um texto em perspectiva: para falar da obra do artista, José Cláudio retorna à experiência do Atelier Coletivo (1952), numa crítica que, permeada por uma análise de caráter historiográfico, está, todavia, baseada em “saltos” por entre a história. Para o autor, enquanto muitos integrantes do Atelier Coletivo teriam “cansado de contar casos”, Wellington teria mantido vínculo com os princípios do grupo: “inspirar-se no povo, e não apenas fazer do povo (...) motivo de nossos quadros, mas falar pela sua língua, fazer como se o quadro fosse pintado pelo próprio vendedor de frutas, motivo do quadro”. Assim, analisar a obra de Wellington configura-se, no texto de José Cláudio, numa visada crítica sobre o projeto estético e político partilhado por aqueles reunidos, na década anterior, em torno do Atelier Coletivo. Anos depois, já com alguma distância, o olhar lançado sobre aquele período carrega certo ceticismo diante do engajamento – social, de abordagem realista – então perpetrado: “Queríamos ser heróis da guerra holandesa, e os pintores que nos interessavam eram os que eram perseguidos e presos não como pintores revolucionários, mas como políticos: misturávamos a atuação do pintor com a atuação do político. (...) Mas isso durou somente enquanto nos empenhávamos em fazer uma mão parecida com uma mão, e nos admirávamos de poder materializar o que estava escondido para os outros e guardado em nossa retina, como quem guarda uma fotografia que tem para bater”. Atravessando sua leitura do Atelier Coletivo, José Cláudio aborda ainda o problema da circulação das reproduções de obras de arte e a questão de uma “identidade nordestina” da pintura, concepção-chave à época da formação do Atelier – e evidência da presen-
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ça e influência decisiva da obra de Abelardo da Hora –, tema que mereceria nova atenção do autor. Nesse sentido, Não há Nordeste (1961) é quase um libelo contra a exigência de uma identidade para a pintura pernambucana e, mais abrangentemente, nordestina. Num texto primoroso, José Cláudio questionará o determinismo estético da arte, presente numa abordagem atmosférica da pintura – “a luz que ali penetra não se mede com fotômetro” –, bem como numa expectativa antropológica da mesma: “o fato de ela espelhar dados literariamente acessíveis, folclóricos, ecológicos, iconográficos”. Assumindo uma posição que vai de encontro à sua formação no Atelier Coletivo, o autor defende uma radical liberdade da criação, geopoliticamente irrestrita – “não há pintura tribal, ancestral, hereditária, que vem com a farinha que a gente come ou o sangue que a gente tem” – e, desse modo, vinculada especialmente à subjetividade do artista e do espectador. Contra a adesão da arte à cultura, José Cláudio energicamente afirma que “o pintor é estrela, sem nada ter com raça, cozinha ou clima. Ele é uma exceção (como exceção são todos os homens)”. Em Teatro, Tradição e Região (1962), Ariano Suassuna depõe sobre as influências do “regionalismo tradicionalista” – liderado por Gilberto Freyre – em sua formação intelectual. Afirmando reconhecer a relevância de Freyre, dado seu empenho no projeto por tornar significativos um povo e uma região, Suassuna revisa uma série de debates e críticas em torno do regionalismo e indica seus pontos de convergência e discordância em relação ao movimento que, de acordo com o autor, não pode ser lido como um todo homogêneo. Uma das principais distinções empreendidas no texto é a diferença entre dois regionalismos – um chamado de “posição” e outro chamado de “histórico” –, sendo o primeiro característico de um ethos compartilhado a partir de uma região, e o segundo decorrente de um projeto político assumido por um grupo de indivíduos. Ao criticar veemente um tipo de regionalismo que se apropriaria de forma pitoresca dos elementos de uma região, Ariano propõe um projeto regionalista calcado na necessidade em criar uma linguagem universal a partir da experiência regional, e dialoga com Vicente do Rêgo Monteiro ao argumentar a favor de uma concepção perene de certos valores da arte, elaborando uma estética que esteja além de seu tempo. Assim, sugere que o regionalismo não deve ser um modismo ligado a um período específico, e sim a busca pela síntese de outros tempos e movimentos para a constituição de uma “estética genuína”.
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Na contramão do desejo de perenidade, o Manifesto porque somos e não somos tropicalistas (1968), assinado por Jomard Muniz de Britto, Aristides Guimarães e Celso Marconi, assume uma configuração ética típica dos manifestos estético-artísticos da vanguarda, com a demarcação de posições, diagnósticos de certo quadro de imobilismo ou marasmo mantido pela força das tradições culturais de um lugar ou grupo determinado, e pela ruptura ou recusa dessa situação. Outra característica importante, manifestada sobretudo com o fim de se negar proposições sectárias ou ortodoxias, está expressa na ambivalência de suas sentenças – no caso, o jogo de afirmação-negação já se dá no próprio enunciado do Manifesto, ao tempo em que evidencia, pondo em tensão, com recurso à paráfrase e à paródia, os modos do discurso regionalista e tradicionalista representado pelo pensamento freyriano e seu campo de influência. Mas, mais do que uma simples autoproclamação como tropicalista, o manifesto se assume como ato transitório de uma posição de vanguarda que se insurge contra o que ela acusa de “tutela sincretista, lusotropical, sociodélica, joãocabralina, t-p-n-ística”, presente no cenário cultural da época, provinciano e com influência marcante sobre o que seria a “nova e novíssima geração”. A posição vanguardista do grupo é a de um amplo diálogo com diversas tendências do experimentalismo artístico no Brasil, mas, alerta-se, “sem subserviência”. No plano local, esse diálogo se compõe, também, dos lances do poema processo. Em seus enunciados, o Manifesto não só se contrapõe à ambiência culturalmente conservadora regida pela “fidelidade regionalista” e pelo “amor às nossas tradições” (é o que ele se pergunta), como atesta “a decadência da esquerda festiva”, provavelmente de inspiração fincada nos ideais do MCP e do CPC, que julga como manifestação retórico-panfletária. Mas, igualmente, declara: “abaixo o fanatismo tropicalista!”. E finaliza com uma referência ao Manifesto Comunista de Marx e Engels, provavelmente com o mesmo espírito e natureza parafrásico-paródica já mencionada: “Tropicalistas de todo mundo, uni-vos”. O segundo Manifesto, intitulado Inventário do nosso feudalismo cultural (1968) – assinado pelo grupo pernambucano, mas, também, por representantes da Paraíba e Rio Grande do Norte, bem como por Caetano Veloso e Gilberto Gil pela Bahia e como lideranças nacionais do movimento tropicalista na música –, embora mantenha as características ético-estéticas próprias de um manifesto, como já referidas, assume uma conotação mais reflexivo-interpretativa de suas posições. Nesse sentido,
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começa por distinguir o que vem a ser tropicalismo do que identificam como “tropicanalha”. Se o primeiro se revelaria por uma atitude radical de crítica e criação frente à realidade brasileira da época, nos termos de uma militância instauradora de “novos processos criativos”, com o uso de tecnologias massivas e o recurso à livre expressão, capaz de expor/ explodir as contradições fundamentais de nosso subdesenvolvimento; o segundo termo, ao contrário, será visto como conservadorismo passadista, alheamento e purismo frente à nossa realidade cultural e política. Trata-se, como o define o manifesto, de uma “retaguarda cultural significando alheamento, de tentar dar respostas passadas aos problemas, revelando o passadismo através da nostalgia, do donzelismo, do pitoresco do cartão postal, da carência de informação, contribuindo assim para uma perpetuação do subdesenvolvimento; enxergar com viseiras e preconceitos”. O Manifesto discute a cultura em termos tanto artísticos, quanto de políticas culturais amplas, como as ligadas ao Estado e ao campo intelectual. Assim, denuncia o autoritarismo e a verticalidade com que ações e reformas institucionais, por exemplo, das Universidades, se processam sem a participação da comunidade estudantil, sendo, ao contrário, fruto da ação de uma elite intelectual, sob as diretrizes do então acordo “Mec-Usaid”. Daí a pergunta sobre se o “acordo” foi realmente “extinto” ou “disfarçado”. O clima “dedodurismo” nas instituições públicas também é denunciado, tendo como referência a Sudene. Propõe o fim dos Conselhos de Cultura e das Academias de Letras, por não prestarem serviço à coletividade. Ao soltar “o tigre das perguntas”, lança ainda dúvidas sobre o caráter privatista de certos grupos teatrais e a subserviência com que “jovens artistas” se mantêm em relação aos “industriais-artistas e aos intelectuais conselheiros, comprometidos com o poder constituído”. Critica os suplementos literários e os críticos, e se questiona sobre o porquê do temor deles para com a “Vanguarda Poética”. Também os críticos de cinema são acusados de promoverem Hollywood em detrimento de nossa produção e de apresentarem mais desentendimento da situação do que o próprio público. Por fim, propõe a desobediência aberta e radical à censura. Três pontos primordiais indicam a reivindicação do Manifesto como modo de distanciamento do feudalismo cultural: o apoio a “toda iniciativa de cultura ‘não oficial’”; o apoio ao “Poder jovem” do “movimento radical-estudantil” e dos “intelectuais independentes”; o apoio a “qualquer movimento de vanguarda cultural” caracterizado pela ruptura com os “padrões” em geral.
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Datado do ano de recrudescimento da Ditadura Militar, o Depoimento (1968) de Montez Magno assinala uma posição política para a arte produzida naquele estado de exceção: “Uma das características principais da arte atual é o seu poder de levar o espectador a uma ação. Este dado, a meu ver, é extremamente importante porque implica numa tomada de posição filosófica de parte do artista (e também do público), que é nova e sobretudo adequada aos dias de hoje”. Para o artista – cuja obra estava em diálogo com o neoconcretismo e a arte conceitual brasileira e latinoamericana –, naquele momento era preciso emancipar semântica e fenomenologicamente o público, entendido não somente como “massa” ou “povo”, mas como outro, sempre compreendido em suas singularidades: “a arte se estende a todos e estimula e desenvolve a nossa capacidade perceptiva”. Assim, Montez Magno politicamente circunscreve as relações estéticas posteriormente conhecidas como “arte-vida” (“possivelmente, a meu ver, isto nos levará cada vez mais a uma fusão do binômio arte-vida”), atentando para a importância da participação do outro, da ação, do processo, das relações contextuais – características fundamentais para a contemporaneidade, e que naquele momento se anunciavam com radicalidade e clareza. Em O que fazer da crítica cultural? (1979), Jomard Muniz de Britto nos lança um conjunto de proposições indicativas do que seria o fazer crítica cultural hoje. Sua dicção parece assumir um posicionamento desconstrucionista e marcadamente intertextual. Ambivalente e dialógica; pautada, pois, por mediações. Trata de apontar na direção do que se poderia chamar de crítica poética e que ele configura em termos de procedimento crítico-criativo. Assim, quando lança o olhar sobre a obra plástica de Sergio Lemos, o faz através de uma crítica que comungue com o procedimento do artista e se faça “inventário desejante”, método de sondagem que o texto identifica em Sergio Augusto, Jean-Claude Bernadet e Silviano Santiago, mas, poderíamos igualmente acrescentar, poderia ser identificado em Susan Sontag e Julia Kristeva. Uma primeira assertiva que Jomard nos propõe é a de uma crítica que reflita “uma crise da linguagem”, que nos leve a suspender o caráter judicativo de certa crítica estabelecida. Propõe-nos, ainda, uma “crítica alternativa”, que nos faculte optar por “várias propostas – de linguagens”. Nesse itinerário, a crítica se manifesta simultaneamente como “partidária” e “fragmentária”: “desde que o crítico – em seu reforço de criação paralela não esconda a primeira pessoa do singular plural, sua ideologia, suas idios-
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sincrasias”. Uma característica substantiva dessa crítica é que seu teor polêmico esteja associado ao seu tom divertido. E até “mais humorada do que polêmica” – carnavalizada “em sua busca de maior seriedade”. Uma crítica como “luta cultural”, sem adornos, sem academismos. Uma crítica sem paternalismos e sem psicologismo didático, mas “em projeção pedagógica”. E se pergunta: na forma de “uma crítica cortante em suas radicalidade”, frente ao instituído? Neste ponto, revela a urgência de se “reler e reviver Paulo Freire”, e nos indica que “os círculos de cultura não são ficções, mas fricções histórico-existenciais”. Por fim, como nota de esperança e como tarefa que devemos seguir, propõe “uma educação crítico-criativa, conscientizadora porque libertadora”. Em O futuro imprevisível da arte (1981/1992), Montez Magno retoma a discussão temporal recorrente nos primeiros anos do século XX sem, contudo, pretender sistematicamente constituir um projeto estético e político para o “futuro da arte”. Assim, a partir de reflexões sobre a relação entre arte e tecnologia, seu texto problematiza a própria necessidade de pensar esses “futuros”, evidenciando a contingência das concepções e ambições da arte: “atualmente qualquer definição do que seja arte corre o risco de se perder na imprecisão, ou numa visão parcial do fenômeno artístico”. Mais adiante, o autor enfrenta a crise do sujeito diante do novo momento de industrialização e informatização da vida social, sublinhando suas possíveis implicações diante da arte e, em especial, da capacidade criadora do indivíduo – assim, Montez Magno reproduz temores comuns à época: “Nos produtos criados pela tecnologia não existe esse sentido subjetivo, pelo contrário, a objetividade é, podemos dizer, própria e inerente à tecnologia e aos seus produtos”. Na conclusão do ensaio, todavia, escrita em meados dos anos 1990, Montez revê o dilema outrora entrevisto e, admitindo ser a relação arte-tecnologia um problema ainda em aberto, recoloca suas preocupações para o campo da linguagem: “já não é mais o produto da tecnologia (o objeto) a ser utilizado e trabalhado pelo artista, mas a técnica utilizada como veículo e instrumento de trabalho”. Dessa forma, O futuro imprevisível da arte lança luz sobre uma questão também partilhada por artistas contemporâneos a Magno, como Paulo Bruscky e Daniel Santiago. Bula para ganhar nos salões (1983) ecoa a ironia e as preocupações críticas dos anos 1960/70 na voz de um artista então com mais de três décadas de trajetória, Wellington Virgolino, cujo percurso coincide com o período de adensamento e institucionalização de um campo para a arte
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de Pernambuco, desde a Sociedade de Arte Moderna do Recife (1948). Assim, o texto – escrito em forma de manual de instruções – dá a ver a importância dos salões de arte para o campo local ao passo que os coloca numa perspectiva histórica que permite sua sátira. Em Bula para ganhar nos salões expõem-se problemas da criação, institucionalização e recepção da arte, atentando também para as relações profissionais/pessoais que estruturam parte significativa de seu campo. Num contexto então rarefeito quanto a textos que encampassem a crítica institucional há muito recorrente na produção artística, Wellington Virgolino apresenta, assim, contribuição valiosa. A inserção da produção artística nordestina e, em especial, pernambucana, tem sido questão recorrente entre o repertório de preocupações dos artistas e teóricos atuantes na região, como percebemos nos textos de Gilberto Freyre, Ana Mae Barbosa e Moacir dos Anjos neste livro publicados. Curiosa contribuição para esse debate é Pinceladas sobre a arte (1988), conversa promovida por André Rosemberg entre os artistas Gil Vicente, Paulo Bruscky, Silvio Hansen e Wellington Virgolino, que discutem as disputas envolvidas nessa relação – critérios de análise, valores de mercado, políticas culturais, hierarquias do campo, práticas associativas, dentre outras. Especial ênfase é dada ao debate sobre a crítica, denunciada por relações antiéticas ou exclusivamente pautadas pelo mercado; do mesmo modo, também as relações entre instituições e mercado são discutidas e relativizadas, numa conversa que evidencia o protagonista papel que este cumpria naquela década, em Recife e em todo o País. O manifesto Caranguejos com cérebro (1992), assinado por Fred Zeroquatro, e que serviu como bandeira do movimento Mangue, encontra-se construído em três partes: a que define o conceito de Mangue; a que dá um diagnóstico do estado de estagnação crônica vivida pela Manguetown; e a que aponta para a cena Mangue como “circuito energético” das “boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop”. O que o manifesto reivindica como “uma antena parabólica enfiada na lama” representa a sua “imagem símbolo”. No que pese a força e a radicalidade crítica com que o manifesto traça uma cartografia da cidade do Recife, nela identificando a estagnação econômica e o marasmo cultural, é curioso notar que a sua estruturação narrativa se dá pela identificação de uma antiga analogia do biológico com o telúrico, expressa em imagens que estabelecem uma clara homologia entre espa-
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ço geográfico e corpo biológico. Tanto que na terceira parte do manifesto, descreve-se a cena da cidade, com o aterramento de seus estuários e a morte de seus rios, a um sujeito tendo um infarto, ao qual é necessário um choque, para que não morra: analogia que aqui procura validar a ideia de um choque cultural para a cidade. Ana Mae Barbosa se dedica a pensar as relações entre centro e periferia no texto Artes plásticas no Nordeste (1993), analisando as forças envolvidas no campo da arte do Brasil quanto ao conhecimento, circulação e legitimação da produção artística dessa região no contexto nacional. Enquanto a arte produzida no Nordeste não teria encontrado respaldo similar àquele que obtivera a literatura regionalista, para a autora, tal situação – “certa dose de exclusão e distância (...) com relação ao centro de poder das artes plásticas” – teria tornado os artistas nordestinos “mais bem preparados para dialogarem com as correntes contemporâneas da multiculturalidade”. Assim, seu texto será um passeio por entre artistas que encararam a diversidade cultural como questão política e estética, trajetória que traz à tona, por outro lado, a própria diversidade da produção artística da região, contra “o abstrato, o matérico, o minimal, a arte clean” recorrente nas “regiões dominadoras do país”. Ana Mae Barbosa contextualiza seu esforço de evidenciar diferenças – estéticas, sociais, políticas, regionais –, no seio da polaridade Armorial x Tropicalismo (referenciada em Ariano Suassuna e Jomard Muniz de Britto, respectivamente): “é neste jogo dialógico, no espaço intercultural dessas duas posições, no trânsito entre elas, que hoje estão sendo definidas as singularidades da arte”. Em torno desse jogo de antagonismos – que a autora relaciona a instâncias diversas, como o conflito e o consenso, o público e o privado –, a autora constrói uma abordagem historiográfica da produção pernambucana, elencando iniciativas e artistas que percorreram todo o século XX, visando sublinhar suas singulares contribuições à arte brasileira, cuja então recente (e em processo) “descoberta” dos artistas do Nordeste é criticada como projeto de hegemonia cultural, donde surge também uma crítica à prática curatorial, para a qual Ana Mae reivindica um “falar com” as obras, em vez de um “falar para”. A produção de artistas mulheres (o termo “arte feminina” é problematizado no texto) – outra categoria minoritária, para além da já “minoria Nordeste” – recebe especial atenção da autora, e dá corpo à sua crítica à historiografia tradicional, marcadamente europeia: “o movimento feminista nas artes obrigou a revisão dos cânones de valor da arte con-
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temporânea”. Criticando também o privilégio de certas linguagens em detrimento de outras, a exemplo da exclusão da fotografia das grandes narrativas da arte brasileira, o pensamento de Ana Mae Barbosa assume, assim, as preocupações dos estudos culturais (à época ainda tímidas no contexto do campo da arte brasileira), clamando por “diversidade, por uma política da diferença. Respeito à diferença é instrumento de consciência estética no Nordeste”. O esforço de artistas por desvincular-se da forte tradição regionalista, latente na década de 1990 em Pernambuco, fomentou uma série de práticas que apontavam para a ruptura com um pensamento artístico situado. Para os que buscavam uma ruptura com o pensamento de região instaurado ao longo do século XX, era importante que houvesse o entendimento de que coexistiam na cidade, nem sempre de forma harmônica, a tradição e a crescente sintonização e adesão de artistas ao pensamento conceitual que permeava a produção contemporânea, nacional e internacionalmente. É em sintonia com essa reconfiguração que o texto/conversa Um funil de cabeça pra baixo (1997), de autoria do grupo Camelo (Ismael Portela, Jobalo, Oriana Duarte, Marcelo Coutinho e Paulo Meira) se apresenta. O texto articula uma série de preocupações então emergentes, como a importância do processo, a desmaterialização da obra de arte, a necessidade de escapar às classificações dos grandes esquemas explicativos da história da arte, e o momento do “pulo do gato” – no qual ideias tomam forma. Interessava a esses artistas burlar as possibilidades de classificação de suas proposições, o que fazem quando experimentam a diluição da autoria e “corcoveiam” frente a modelos estabelecidos de crítica, instituição e história. Objetos desejosos: Uma entrevista com o antropólogo Lawrence Jakimo Pokot (1999) é uma fundamental contribuição no sentido de pensar a arte para além dos contornos culturalistas habituais, colocando-a no seio das discussões e invenções da linguagem, da cognição, da ciência. Compreendendo que a criação age no campo da constituição dos modos de perceber, Marcelo Coutinho inventa uma interlocução que, explorando seu caráter ficcional, retroativamente circunscreve campos talvez pouco explorados pela arte, mas de especial interesse para a obra desse autor – como a difereça radical do outro (alteridade irredutível e inegociável) e a não essencialidade da linguagem. Tomando a antropologia como ponto de partida, Marcelo Coutinho lança luz, nessas entrevistas, sobre as disputas pela legitimidade do pensamento (questão central
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na ciência, mas também na arte), problematizando a dimensão social e contingente das “verdades” e dos “paradigmas”, e assim abrindo espaço para a dimensão política da criação: “A linguagem é instrumento desejoso (...). É desejo de presentificação daquilo que, por natureza, é impossível de presentificar. Linguagem é evocação. Evocação e reconstrução. (...) Por ser desejosa, a condição natural da linguagem e do discurso é de reconstrução e construção. E de clara evocação daquilo que não existe”. No seio do esforço de Marcelo Coutinho em desconstruir as unívocas estruturas do pensamento cabe, também, um jogo entre o pensamento “cristão ocidental” e seus outros, na entrevista anunciados não só em Pokot como, em especial, através de todos os teóricos/autores nordestinos citados pelo entrevistador e pelo entrevistado – a exemplo da referência ao sistema filosófico de Evaldo Coutinho. Assim, na esteira das reivindicações geopolíticas que atravessam os textos de Freyre, Ana Mae Barbosa, Moacir dos Anjos ou a entrevista Pinceladas sobre a arte, Marcelo Coutinho inclui uma importante crítica às lógicas de estruturação do pensamento e da linguagem, assumindo uma posição libertária que indica traços de um modo de perceber que, na virada do Século XXI, parece querer anunciar-se. Desmanche de bordas: Notas sobre identidade cultural no Nordeste do Brasil (2000), de Moacir dos Anjos, finaliza o recorte cronológico aqui apresentado. Neste texto, o autor empreende uma revisão dos principais debates e embates em torno de uma “identidade nordestina” e suas implicações na produção artística e cultural de Pernambuco e do Nordeste, ao mapear o processo das construções de espacialidades para a arte – latino-americana, brasileira, nordestina – experienciadas ao longo do século XX e apontar como esses espaços pautaram singularidades e criaram estratégias de distinção. O autor, que estrutura sua análise do global para o local, apresenta um percurso histórico da ideia de Nordeste como contraponto ao paradigma da identidade nacional, que no Brasil afirmou-se no início do século XX a partir da região Sudeste – cuja hegemonia política e econômica encerrou também o projeto de representar o País. Nesse sentido, o Nordeste é apontado pelo autor como um projeto de construção de um lugar simbólico comum – uma região – que, ao buscar se distinguir das outras regiões do Brasil, elegeu uma série de signos dela representativos, aos quais uma produção que se pretendesse genuína deveria responder. E, em um processo de distinção – ao sinalizar as mudanças emergentes, na década de 1990 –, Anjos aponta o fim
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do século XX como um momento de reposicionamento desses lugares, e atenta para o surgimento de novas cartografias e de novos referenciais para se pensar o mundo e reinventar identidade(s), antes tomadas como naturais ou totalizantes. Como se pode entrever nesta breve apresentação, ainda que aqui pautados por questões mestras, os textos republicados conjugam variadas nuances críticas, oferecendo múltiplas leituras. É nesse sentido que, mesmo estando o livro cronologicamente estruturado, nas páginas que se seguem, por meio de três sumários distintos, propomos outros agrupamentos como chaves de leitura e análise, cuja organização sublinha aproximações e antagonismos e, principalmente, nosso olhar sobre essa história. Por sua vez, o projeto gráfico deste livro, desenvolvido pelo artista Vitor Cesar, dialoga com a lógica de organização dos cartemas de Aloísio Magalhães. Constituindo-se, portanto, como uma espécie de texto que atravessa os demais, os cartemas apontam para a rica produção visual do Pernambuco do Século XX, cuja interlocução com a crítica local está aqui aludida pela presença de Aloísio Magalhães. Mais adiante, na intenção de não nos restringir ao recorte que foi aqui possível de ser feito, compõe o livro também um conjunto de referências bibliográficas que extrapola nossas escolhas, delineando o território por nós pesquisado e podendo servir como indicações para futuras pesquisas. Assim, de alguma maneira confundindo e estabelecendo diferenças, Crítica de arte em Pernambuco: escritos do século XX deseja ser uma contribuição para o adensamento dos estudos acerca dessa história, em constante invenção.
Clarissa Diniz, Gleyce Kelly Heitor e Paulo Marcondes Soares organizadores
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C r í t i c a d e a r t e e m P e r n a m b u c o 35
Publicado originalmente na Revista do Norte. Recife, 2a quinzena de 1924.
—Rigel de Orion
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Em defesa do Futurismo
Muito malsinada há sido a moderna maneira de Marinetti... É que essa onda de espíritos nervosos, que, rompendo bruscamente com as praxes arcaicas, lançou a base da arte do futuro, tem sido lamentavelmente incompreendida. O brusquismo dessa erupção, cujas lavas candentes produzem ao se arrefecer artísticas colunas basálticas de emoção, é o que mais tem escandalizado o sisudismo ostrear da burguesia literária, apegada secularmente às praxes que necessárias e justificáveis, na época em que tiveram seu afélio, hoje vão sendo arquivadas num anacronismo de carcérulas. O evolucionismo – nefasto preconceito – procurado invocar para combater essa mutação soberba que tem sido chamada de futurismo, vai hoje recebendo a etiqueta classificadora dos museus. Está sendo sepultado na história. Os darwinistas também combateram De Vries, mas tiveram que ceder o passo à evidência experimental das mutações. Nada de diferenças mínimas integradas pelo tempo. Transformações bruscas – eis tudo!
Rigel de Orion
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A própria geologia cada vez mais vai sendo obrigada a aceitar a evidência inconteste do catastrofismo. ... Na arte também há desses catastrofismos. Renascimento. Romantismo. Simbolismo. Impressionismo. Futurismo! Não é possível que na época em que a instantaneidade das vibrações hertzianas anula as distâncias; em que o avião transforma em dias distâncias que há dez anos eram meses, há um século eram anos; não é possível que se escreva, se pense, se sinta, como naqueles soterrados lustros. Águas passadas não moem engenhos. O que me há de acontecer daqui a vinte anos está muito mais próximo de mim do que o que sucedeu há vinte anos, diz Unamuno. De acordo. É que o tempo, no seu transcorrer, obedecerá à rigidez algébrica do desenvolvimento em quadrado. E o progresso segue na razão direta do quadrado dos tempos. Aliás o progresso não caminha por evolução; corre vertiginosamente por saltos. Para que invocarmos as azinhavradas imagens mitológicas, ou as arcaicas comparações líricas, se o gênio do homem nos proporciona pelas conquistas magníficas do seu progresso reservatórios inesgotáveis de emoção? Para que falar em inexpressivos tritões inexistentes se o submarino sonda objetivamente o fundo dos mares e o dreadgnout golfa morte das suas mil e uma escancaradas bocas nefastas? Para que se evocar a força de um Hércules ou Pigmalião quando as cachoeiras esbanjam seus milhões de H. P.? Para que lembrar o bronze numa época em que o cimento armado substitui o próprio aço nas suas múltiplas aplicações? No entanto os futuristas têm sido escarnecidos e quiçá ridicularizados. O ridículo porém não atinge movimentos avassaladores como esse – “Não se cai no ridículo. Sobe-se ao ridículo”.
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O futurismo é incompreensível? Não. É compreensível somente de uma minoria emotiva que constitui a elite da arte. O que mais tem emperrado o passo dessa maneira moderna de sentir é a ferrugem dos falsos adeptos. Muitos que não têm o potencial sensitivo, capaz de discernir as sutilezas de emoção que cansada dos aparentes disparates que encerram, por vezes, profundezas filosóficas, só entendíveis pelos eruditos, dizem-se futuristas e para compensar a fraquíssima amperagem da emotividade nula, procuram elevar a voltagem de absurdismo escrevendo coisas insinceras que eles próprios não entendem. Desses para os verdadeiros futuristas a diferença é flagrante. Os primeiros escrevem sem sentido. Não os preocupa vazar estados d’alma – que não têm –; sugerir sentimentos – que não sentem. Daí as tolices enfaticamente ditas, chatices à guisa de bizarrias. Os segundos não. Escrevem para satisfazer uma necessidade íntima. Traduzem os sentimentos como eles são. Não descem à compreensão da maioria plebeia. Limitam-se a sugerir a uma minoria eleita. Sugerir – eis tudo. Sugerismo, tal poderia ser o nome do mal crismado futurismo. Daí o enigmatismo dessa arte. O segregrismo dessa escola. Escola não. Universidade. Pois não há futurismo, há futuristas. São incompreensíveis para a maioria burguesa. Que importa! O artista não deve descer ao público. O público é que precisa subir até ele.
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Originalmente publicado na revista Era Nova. João Pessoa, 1924.
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A ARTE MODERNA
Carta literária dirigida a Severino de Lucena e S. Guimarães Sobrinho, diretores da revista Era Nova, da Paraíba do Norte. Meus caros amigos Severino de Lucena e S. Guimarães Sobrinho: Li, surpreso, o editorial que vocês escreveram na Era Nova, constituindo-me o seu representante intelectual no Recife. Honraram-me, sobremodo, as expressões de tanta gentileza, tradutoras iniludíveis de um bem raro sentimento de estima, com que se referiram à minha pessoa, que, se para vocês algum mérito possui, creio seja apenas o de sentir pela Paraíba a mais viva admiração, o de propagar o valor de seus homens e admirar o belo das suas coisas. Nunca me enganei em cultivar a amizade, em mim nascida pela admiração, dos dois brilhantes intelectuais paraibanos que, com audácia e com amor, fundaram e dirigem a melhor revista literária do Norte do Brasil e a tornam rival das mais bem acabadas do Sul. Que deverei fazer como representante de um magazine em cujas colunas saem publicados trabalhos das mais autorizadas penas, e, vez outra, para destoar desse programa, crônicas minhas, feitas de pedaços de sonhos que costumo colar pela concatenação das palavras? Sei: trabalhar, para corresponder à gentileza dos meus amigos. Trabalhar, porém, tendo em vista um escopo único: aproximar de mais a mais, estreitar irmanamente, as inteligências, de si tão unidas, da Pa-
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raíba e de Pernambuco, por que assim sejam aqui conhecidos os valores daí, e familiares, nessa bela capital, os que pelo Recife mourejam. Não podem desconhecer-se intelectualmente dois estados vizinhos, que têm, para exigir e assegurar o paralelismo de sua marcha, as conquistas da história e a glória do passado. Paraíba e Pernambuco não se separaram senão para melhor se desenvolverem: deram-se as mãos na objetivação de seus ideais, na política, na administração e nas artes. Impossível fugirem uma da outra duas famílias que residem próximas justamente porque se acham ligadas pelos mesmos sonhos e laços de parentesco, tão amigas que vivem a enamorar-se das janelas, a sorrir para um sol que a ambas ilumina, a olhar para os campos verdejantes onde não existem marcos que delimitem os seus domínios. Há, nos arraiais da inteligência, atualmente, e como sempre houve em todas as épocas, uma nova geração que anseia por ideais novos. Sobretudo, já ergueu os olhos para a meta entressonhada, em São Paulo, no Rio, Recife e Pará. A Paraíba não fugirá ao apelo que lhe faço de acompanhar-nos nesse esforço gigânteo e nessa luta sem tréguas para desapressar-se das velhas fórmulas da arte, num combate cavalheiresco, e, se necessário, desapiedado, à geração antiga. Os rapazes daí acompanhar-nos-ão, decerto, nessa renovação artística necessária a que os zoilos chamam de “futurismo”, denominação marinética inaceitável entre nós, projétil nas mãos dos que não têm base para discutir. O movimento acha-se vitorioso no Rio e em São Paulo. Hoje, nessa deliciosa Mauriceia, os passadistas enragés, não cultivando uma nova expressão de arte, não contestam, entanto, a sua necessidade. Aceitam-na, embora, por um caso de tradição de família, permaneçam nos velhos moldes bolorentos, como elementos representativos do seu tempo, no Instituto Arqueológico da Arte. Seria, porém, mais nobre não fugissem aos efeitos daquilo que julgam vitorioso por sua seiva, número e valor dos que combatem. Graça Aranha, todos sabem, trouxe para o Brasil, depois de uma longa estada na França, o credo da Arte Nova, rezado, pela primeira vez, na Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo. Em fins de 1922, quando afirmei, nesta cidade, que nada estávamos fazendo porque fazíamos tudo velho, acharam absurdas, e até, ridículas, as minhas asserções. Depois, as visitas de Antônio Ferro, Jorge Barradas, De Garo, e, em parte, Dakir Parreiras e Joaquim de Rego Monteiro, para
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não falar na vitoriosa passagem de Paulo Torres, mostraram que a razão se achava do meu lado. Austro-Costa, a princípio o meu mais intransigente adversário, voltou-se inteiramente à nova arte poética. Raul Machado publica versos modernos; Araújo Filho e Anísio Galvão aplaudem o Credo Novo; Faria Neves Sobrinho não o condena. Nem tão pouco Maviael de Prado e Silvino Lopes. Dois inimigos conheço, que se mostram irredutíveis, por uma questão de capricho: os srs. Oscar Brandão e João Barreto de Menezes. São dois espíritos que nunca sentiram a influência do “novo”, pois que apareceram numa escola já existente e nela persistem ficar até o fim da vida. Pergunto, porém, por que o sr. João Barreto, ao invés de tornar-se condoreiro, ao menos por amor à memória do seu pai, se filia ao parnasianismo, que foi, em certa época, um sopro renovador; e por que o sr. Oscar Brandão, que tanto ama as já sediças árvores brasileiras, regatos e montanhas, se desvia daquele que parece ter sido o seu maior mestre, o tão chorado autor do – Ó que saudades que tenho, da aurora da minha vida?... Não os compreendo, certamente. Ora, meus amigos, que a renovação de que falo é necessária e inevitável, provo-o com esta pergunta: Onde se já viu persistir, por séculos, uma escola literária? Tivemos o romantismo, o lirismo, o condoreirismo, o naturalismo, e que mais? Escolas ou não-escolas, substituíram-se umas às outras, e sempre, nesses embates, venceu a audácia dos novos contra a prepotência mental dos velhos. Por que persistirmos inertes ante a evolução do pensamento e das artes? Esse movimento modernista a que chamam de “futurismo” (no Brasil não há “futurismo”. Morra o “futurismo”, gritou o Ronald) não nasceu no Brasil, nem existirá somente no Brasil. Surgiu na Itália, com Marinetti e Papini, saindo o primeiro a pregar suas ideias em Paris e Londres. E hoje, em toda parte a reação continua forte. Aos poucos a Arte Moderna ganha terreno à arte antiga. Convem recordar, aqui, o que foi a Semana de Arte Moderna em São Paulo, o primeiro grito atroador do Credo Novo em plagas brasílicas. Permitam que o faça: – 1922. Teatro Municipal. São Paulo artístico, intelectual, burguês, comparece ávido de novidades. Toda uma multidão de escol. Casa repleta. Ânsia de originalidades. Sobe o pano. E vê-se, como presidente, o vulto simpático de Graça Aranha. Rodeia-o a mais bela floração inte-
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lectual da pauliceia: Menotti Del Picchia, poeta d’anuziano; Oswald de Andrade, trinta anos de imaginação e audácia; Guilherme de Almeida, com as musas a dançarem bailados nos seus olhos pequeninos, azuis e inquietos; Rubens de Morais, um pensador na idade de vinte e dois anos, conversando com se deuses do Olimpo gritassem no seu eu interior, tal a elegância de suas maneiras helênicas, o arranjo metódico de palavras e ideias; Sérgio Milliet, um enviado do Parnaso para expressar os pensamentos das musas no tocante à renovação; Anitta Malfatti, pintora; Tarsila do Amaral, pintora e poetisa; Brecheret, escultor de nomeada; Villa Lobos, cabelos grisalhos de estudo e de talento, na direção da grande orquestra; Enéas Ferraz, Carlos Drummond, Rocha Ferreira, Couto de Barros, Candido Mota Filho, Pedro Rodrigues de Almeida, Rego Monteiro, Manuel Bandeira, Francisco Lagreca, Tasso de Almeida, Luis Aranha, René Thiollier. Ali estão representadas todas as artes. Ergue-se Graça Aranha e explica o código renovador. E recitam, os demais, e pintam, e tocam, condenando a cara do passado, muito suja para ser de hoje. Tanta coisa assim, estranha, incompreensível... E a vingança começa de medrar. Cresce. Multiplica-se. Cria tentáculos. Aquilo é um insulto à educação artística de toda aquela gente. Chufas. Risos. Vaias. Uma vaia que de tão grande se torna glorificadora. Baixa o pano. Vissem-nos: riam sarcasticamente. E diziam: “enquanto nos vaia a multidão, zombamos de sua ignorância e vamos realizando nosso ideal de arte”. Nasceu naquela noite, para o Brasil, o... “futurismo”. Meses depois, Graça Aranha era o pensador da Estética da vida; Mário de Andrade, o ironista revolucionário da Pauliceia desvairada; Oswald de Andrade entregava à bondade comercial de Monteiro Lobato, o romance Os condenados, outra pedra para o alicerce do monumento; Menotti Del Picchia escrevia essa epopeia de emoções, jazz-band de palavras e de ideias verdes, de poesia bárbara, a que intitulou de O homem e a morte, construído “nas telas largas dos silêncios solitários”; Guilherme de Almeida ensaiava as Canções gregas e natalika, somente agora saídos do prelo; Rubens de Morais preparava os seus Paralelepípedos e Sérgio Milliet silhuetava o Oeil-de-boeuf... Klaxon foi a buzina do automóvel em que passeavam desassombradamente com os seus cartazes de iconoclastas impiedosos. E a vaia, perguntar-me-ão? E aquela vaia do Teatro Municipal? Ah! Meus amigos, não foram eles os primeiros artistas, vaiados. Contento-me em criar apenas um exemplo: o dos poetas que constitu-
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íam o Parnase contemporain, em França, séc. XVIII1. O público educado na velha escola do romantismo não perdoou aos poetas novos a coragem de demolir a obra dos antigos para fazer vitoriar o parnasianismo. Um verso parnasiano era um insulto ao bom gosto da época. E tão humilhante se tornara o título – parnasien – que, segundo nos conta Catulle Mendès, citado pelo sr. Ronald de Carvalho “era pejorativo usado em último grau de recurso, até pelos cocheiros, nas suas truculentas contendas de boleia a boleia”. Uma vaia! E que vaia glorificadora! Ao menos de gente que podia frequentar o Teatro Municipal na rica pauliceia... desvairada, no momento. Todo artista vaiado é artista glorificado, e todo aquele que sai a pregar ideias renovadoras, tem, contra si, o tumulto de ignorância dos que ainda o não compreenderam. A vaia é a expressão coletiva de um sentimento. E como os sentimentos variam constantemente, as vaias de hoje são aplausos de amanhã. Se a plateia aceitasse sem protesto o que dizem os artistas novos, nada de novo diriam estes: porque tudo que dissessem estaria sabido e aceito pela plateia. Temos visto em toda a história da humanidade que os heróis exaltados de hoje são os desprezados de amanhã, e vice-versa. Neste caso prefiramos que a vaia preceda a glorificação. São Paulo, que em 1922, vaiou a sua mocidade de artistas, hoje a aplaude e faz justiça aos seus ideais. Em carta que me dirigia em 21 de dezembro de 1922, afirmava Menotti Del Picchia: Creio que, com essa cruzada, legarás teu nome a uma das batalhas mentais mais notáveis, cuja vitória já não se discute mais, uma vez que nossa função, no momento, é pensar dos feridos e enterrar os cadáveres mumificados dos adversários mortos... Creio que tua missão aí é mais árdua e arriscada, porquanto, em São Paulo, a diversidade e a inquietude das correntes étnicas que formam sua população tornam-no mais acessível ao Credo Novo. Aí deve haver mais fixidez e ser quase inexpugnável o baluarte da velharia. Como sabes, São Paulo é para os
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Nas publicações posteriores do texto, a datação foi corrigida para “século XIX”. [Nota dos editores]
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“futuristas” um burgo vencido. Enterramos o fuste da nossa bandeira bem no coração da gente paulista, que hoje – não fosse ela multidão, e como tal, mulher – aplaude nossa vitória. O ruído da celebrada vaia repercutiu no Rio de Janeiro, mas, como o anúncio vivo de algo excelentemente original. Naquele vozerio distinguiu-se, perfeitamente, o grito renovador. Consciências esclarecidas ouviram-no, calaram, refletiram. Para logo justificá-lo. O autor da Estética da vida teve adesão (o termo aplica-se) de pensadores e artistas, entre os quais Ronald de Carvalho, Álvaro Moreyra, Tristão de Athayde, Paulo Torres, Renato Vianna, Renato Almeida, Onestaldo Penaforte, Mário Ferreira, Oswaldo Orico, Peregrino Júnior, Buarque de Holanda, Agripino Grieco, Paulo de Magalhães, Olegário Mariano, Angelus, Di Cavalcanti. Foi apreciando esse movimento que Antônio Ferro, esse talento que, de tão multifário, se torna endiabrado, escreveu no Diário de notícias, de Lisboa: Da literatura brasileira, por exemplo, conhece-se apenas meia dúzia de nomes. Esses nomes, porém, gloriosos e fortes, pertencem a um Brasil que já hoje não existe, a um Brasil que se recorda com saudade, que se respeita, mas, que já não está coerente com o movimento da Avenida Central e com as obras do Morro do Castelo. A literatura brasileira está vivendo uma hora de renovação, está se libertando da onda de romantismo que a inundou, que lhe deu uma alta expressão, mas uma expressão retórica. A literatura brasileira voou muito alto nos poemas de Castro Alves e de todos os “condoreiros”... Precisa descer um pouco, agarrar-se mais à vida, integrar-se na atmosfera trepidante e sonora do Brasil moderno, acompanhar as locomotivas que vão rasgando as florestas e vão semeando cidades pelas terras incultas do interior... Essa atualização da literatura brasileira começa a desenhar-se. O primeiro impulso foi dado, num belo exemplo que é preciso mostrar a Portugal, pelo acadêmico Graça Aranha, o autor de Canaã, romance eterno, romance em bronze.
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E termina: O Morro do Castelo, no Rio de Janeiro, está a ser destruído... A cidade tende a alargar-se e aquele Morro é uma parede que lhe impede o natural desenvolvimento. O Morro do Castelo é um símbolo. A velha literatura brasileira é um morro glorioso, morro de um castelo encantado onde pousaram águias e onde viveram príncipes lendários... Mas a literatura brasileira precisa de ser atualizada, precisa de modernizar-se. O Morro do Castelo da Retórica opõe-se a essa renovação, a essa marcha para o futuro... Urge destruí-lo. Destruir-lhe a forma e guardar-lhe o espírito. Graça Aranha e os seus companheiros não devem descansar. Se não destroem os vários morros que rodeiam a alma brasileira, a alma da raça, arriscam-se a ficar emparedados. São estas as palavras do mágico de Leviana. Tomando o seu conselho, todos nós devemos empregar algumas horas de trabalho na destruição do velho morro. A literatura brasileira atravessa, atualmente, uma fase de descanso dominical. Os velhos, tendo trabalhado durante a semana, alapardam-se burguesmente a dormir o sono dos satisfeitos. Aos moços cabe romper contra a apatia e dar, a esses dias monótonos, uns tons alegres de festa, ânsias, de sonhos. A poesia-pau-brasil do parnasianismo está gasta, porque os poetas de hoje querem a sua arte livre, sem códigos, sem preconceitos, sem mordaças. Há muitos anos que se diz a mesma coisa e faz-se mister que outros motivos inspirem aos artistas. A arte não tem passado, nem futuro: tem presente. Realizemos a arte da hora atual. O século não é mais de carros de bois, porém, do automóvel e do aeroplano. A hora que passa, a civilização de hoje, apresenta um traço febril, nervoso, agitado, que influi na mentalidade, pela atuação vigorosa do meio sobre o homem. Desaparecerão as fórmulas frias, marmóreas, estéreis – frutos pecos do ontem sonolento. Alguma coisa de belo ficará, certamente, do que se destruir: será guardado com respeito religioso, no lugar onde, nos templos, se conservam os ossos de certas entidades da igreja. O sol nasce todos os dias no mesmo horizonte, mas não ilumina as mesmas cabeças. Andar com os velhos é envelhecer com eles. Prefiro,
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até, esmagá-los a sujeitar-me aos seus caprichos injustificáveis. O único exemplo que nos podem dar é o da experiência. Nós, entanto, sabemos que a experiência é inimiga da mocidade, porque é filha da velhice. Erga a mocidade a fronte, para que nela se possa colocar o estema da vitória. A vitória, no caso, pertence à Arte Moderna. Para consegui-la – guerra aos preconceitos artísticos. Liberdade e Alegria. Guerra aos códigos literários, às fórmulas preestabelecidas. Guerra ao parnasianismo, ao gagaísmo, ao academismo, ao naturalismo da prosa, ao virtuosismo, ao conformismo, ao copismo, ao dicionarismo. Guerra aos “almofadinhas do soneto”, aos gramáticos “apteros”, aos regionalistas sistemáticos. Guerra ao passadismo inatualizável. Guerra à estética absoluta, à arte oficial, à pintura de cópia. Guerra ao belo como o fim da arte. A arte é livre: a beleza é relativa. Obras que ontem foram belas para certos artistas, hoje não o são para nós. Ao desenho de Ingres há quem prefira o de Greco; ao colorido de Delacroix, o de Pissarro e Van Donghen; à música de Wagner, a de Debussy; ao alexandrino de Verlaine o de Victor Hugo. Não há um belo definitivo, gritou André Cresson. Há um belo para certo lugar, certa raça, certa época. Se a Renascença foi a época da pintura, nós estamos hoje na época da música. Stravinsky substituiu Ticiano. “A verdadeira beleza, disse Kant, não tem finalidade, mas é viva e livre”. Para quase todos os escritores do século XVIII, em França, a ideia de beleza não se confundiu com a de utilidade? E o idealismo absoluto não era o seu característico, para certos filósofos do século XIX? Quão desinteressada, entanto, é a arte! E quão livre! Não pensam alguns, erradamente, que o único fim da arte é a beleza? (“A arte em si (Ronald) é independente de qualquer limitação moral ou social”). É o absoluto metafísico, em arte, que hoje ninguém mais admite. Pensavam assim escritores de dois séculos passados. E já naquele tempo, escrevia Voltaire, partidário da relatividade da arte, as palavras que vou transcrever mui adequadamente: Demandez à un crapaud se que c’est que la beauté, le “to Kalon”? Il vous repondra que c’est sa crapaude avec deux gros yeux ronds sortant de sa petite tête, une gueule large et plate, un ventre jaune, un dos brun. Interrogez un nègre de la Guinée; le beau est pour lui une peau noire, huileuse, des yeux enfoncés, un nez épaté. Interrogez le
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diable; il vous dira que le beau est une paire de corne, quatre griffes et une queue. Consultez enfin les philisophesi ils vous répondront par du galimatias; il leur faut quelque chose de conforme à l’archétype du beau en essence, au “to Kalon”. Para uns a arte é a alegria. Para outros, a dor. Nada se define menos do que a ideia de beleza. Quando visito uma exposição de pintura, agradam-me quadros que o senso estético de outros repele. E há quem, admirando o Strauss da Salomé, deteste o das valsas vienenses. Certa arte dominou em certa época e em certo meio: v. g., a escultura na Grécia e a pintura na Renascença Italiana. Dessa vitória, que passou, ficaram, exato, obras duradouras. Por quê? Porque as construíram verdadeiros artistas: e o verdadeiro artista é sempre atual. Os versos de Musset, por exemplo, não são de hoje, entanto sua poesia nos impressiona vivamente. Todo artista, tem, em si, uma grande harmonia. Integra-se na natureza como se penetrasse na região do sonho. E sai, torturado e ébrio, não a imitar o que sentiu, não a repetir o que viu, mas, a transfigurar e criar, transmitindo-nos aquela harmonia que nele estava latente. E quando sai ébrio e torturado é para gritar livremente, em atitudes francas de liberdade e alegria, como certos prisioneiros há anos encarcerados em catres absconsos. A alma do artista é um reservatório inesgotável de emoções: despertam-nas os motivos, mas ele procura realizar a sua impressão conforme o ritmo pessoal que as distingue. Quanto maior o artista, tanto maior a criação na sua obra. Chegamos, destarte, a esta conclusão: Arte – desinteresse: liberdade: relatividade. Ora, meus amigos, o momento é de reação contra as velhas fórmulas, os preconceitos de escola, em prol de uma arte viva e livre. Cada século tem a sua expressão. O movimento é agitado, e, até, revolucionário. Em todas as artes. Na escultura há “uma reação contra o assunto”, chefiada por Bourdelle. Na poesia a reação contra o parnasianismo, e na prosa contra o naturalismo. Na música, Satie, ao lado de Stravinsky, combatem Debussy, que já está considerado passadista. Em França, a modernidade apresenta-se sob a feição de quatro ou cinco correntes: a de Jules Romains; a de Proust e Giraudoux; a de Cocteau e Radiguet; a de
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Apolinaire Cendrars; a de Max Jacob. Não falo em outros países para evitar desnecessárias explicações. Mas, falo do Brasil. No Brasil o movimento é chefiado por Graça Aranha, o qual teve audácia de afirmar, há poucos dias, na Academia Brasileira de Letras, que, ou esta se reformava ou desaparecia, grito idêntico àquele do manifesto futurista contra Montmartre, de Mac Dermarle: “Il faut détruire Montmartre”. Graça Aranha representa, na hora atual, um caso inteiramente à parte na literatura brasileira. A sua idade não o fez perder os lampejos de mocidade dos vinte anos. Nele, o espírito não envelheceu com os cabelos. Mostra-nos que a alegria deve brilhar na alma dos velhos, e estes, reagir contra o marasmo intelectual e a indiferença pela Vida, compreendida no sentido de Beleza. Escreveu Canaã, que o celebrizou. Depois, Malazarte. Depois, Estética da vida. Além daquelas páginas de profunda saudade sobre Machado de Assis e Joaquim Nabuco. Graça Aranha tem sido, no Brasil, talvez, o único diplomata, que, no estrangeiro, continua a exercer decisiva influência na mentalidade de sua pátria. Exemplo? Após longa ausência, escreve-nos Estética da vida, que vem revolucionar pelo estilo e pelas ideias, as letras pátrias. Dos escritores brasileiros, um dos que, atualmente, realizam, como o deseja Marinetti, um estilo pessoal. Estética da vida é uma verdadeira composição musical, em que, através dos sons, se adivinham as ideias. Harmonia, vibração, sonoridade, ritmo, e, por sobre tudo isso, pensamento. “Suas imagens,” disse Ronald de Carvalho, “têm a vibração luminosa dos relâmpagos, radiando o céu carrancudo dos nossos dias de inquietação e pessimismo”. Pensando que o “Universo só pode ser sentido, entendido, interpretado, como função estética do nosso espírito”, e de que o homem é um animal artístico tanto quanto um animal religioso, repele o esteta ilustre a ideia de que a beleza seja o fim supremo da arte, e a de que a arte esteja subordinada à utilidade social. – “A arte não reside somente naquela sensação indeterminada do que convencionalmente se chama beleza. Esse conceito do belo não abrangeria o sentimento da unidade infinita do Todo, já denominado o fato supremo do espírito humano”. – “A beleza em si, a beleza objetiva, é uma ideia abstrata, cujo subje-
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tivismo é infinitamente variável. O belo é um perpétuo equívoco entre os homens”. E, depois de muito discutir, brada o mestre: – “Os modernos exprimem o desencadeamento das coisas, ignorado dos antigos”. É esse vulto simpático, rodeado e querido dos moços, o chefe do movimento renovador no Brasil. A vitória caber-lhe-á, certamente, porque a sua audácia não recua, e o seu talento polimorfo dia a dia se enriquece de uma cultura multifária. Filiado ao movimento, Ronald de Carvalho tem-lhe prestado um concurso valiosíssimo. Ninguém desconhece a cultura metódica, o bom senso, a honestidade crítica, o estilo sonoro, do pensador de O Espelho de Ariel e do poeta dos Epigramas irônicos e sentimentais, uma as figuras, hoje, de mais relevo na literatura brasileira. A sua obra é já bastante vasta e nela ressumbra um equilíbrio mental muito raro num país onde existem Osórios-Duque-Estradas... Ronald de Carvalho é prosador e é poeta. Como prosador, diz: A verdadeira tradição, em arte, é o respeito à antiguidade, e o horror aos métodos do passado. Somente se renova aquele que tem a coragem de se libertar. Veneremos os antigos, e, como prova do nosso amor, não os imitemos. E, como poeta, poeta moderno, livre da matemática do soneto, escreve:
FILOSOFIA A realidade é apenas Um milagre da nossa fantasia... Transforma numa Eternidade o teu rápido instante de alegria ! Ama, chora, sorri... e dormirás sem penas, porque foi bela a tua realidade...
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ELOQUÊNCIA Como é suave o silêncio, como é fina discreta a sua deliciosa queixa... Em vão tentarás traduzi-lo, amigo. Deixa apenas, em surdina, bater no silêncio o coração... PUDOR Não digas que a vida é boa nem que é má. Pobre Efêmero, triste Efêmero dolente... A vida não é boa nem má, a vida é indiferente. ARTE POÉTICA Olha a vida, primeiro, longamente, eternecidamente, como quem a quer adivinhar... Olha a vida, rindo ou chorando, frente a frente. Deixa, depois, o coração falar. TEORIA Cria o teu ritmo a cada momento. Ritmo grave ou límpido ou melancólico; ritmo de flauta desenhando no ar imagens claras de bosques, de águas múrmuras, de pés ligeiros e de asas, ritmo de harpas, ritmo de bronzes, ritmo de pedras,
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ritmo de colunas severas ou risonhas, ritmo de estátuas, ritmo de montanhas, ritmo de ondas, ritmo de dor ou ritmo de alegria ! Não esgotes jamais a fonte da tua poesia, enche a bilha de barro ou o cântaro de granito com o sangue da tua carne e as vozes do teu espírito ! Cria o teu ritmo livremente, como a natureza cria as árvores e as ervas rasteiras. Cria o teu ritmo e criarás o mundo.
Tristão de Athayde, o conhecido crítico, um dos comandantes em chefe da nova crítica brasileira, talento e cultura associados, afirma, num recente estudo sobre A velha Europa e o Brasil adolescente: Devemos perseverar na reação, na busca da expresão nova que nos satisfaça. Queremos sol. E o ceticismo, que superamos em nós, nos ensinou afinal que há sempre qualquer coisa de novo debaixo do sol. Ninguém desconhece a vigorosa personalidade literária de Agripino Grieco, um crítico rigoroso, na expressão disciplinar da palavra, porém, acertado, equilibrado, estudioso e inteligente. Ele foi que escreveu, referindo-se à Pauliceia desvairada de Mário de Andrade: Só a leitura superficial, desatenta e inepta é que pode ver nessa arte moderna a simples extravagância (que muitas vezes existe como blague ou como simples falta de talento, o que não é o caso). O que há é o desejo de desarticular o aparentemente fundido para novamente articular uma realidade muito mais ampla, com elementos diversos, mas, em geral, convergentes e cujo disparate é apenas aparente ou transitório.
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Parece-me desnecessário referir-me à falange vitoriosa dos que no Rio e em São Paulo acompanham o mestre querido que é Graça Aranha. Na capital paulista, onde se iniciou o movimento, destacam-se, não há negar, Oswald de Andrade, esteta, pensador, romancista e crítico; Mário de Andrade, revoltado, revolucinário, iconoclasta, e construtor ao mesmo tempo, porque, sobre as ruínas do que destrói, constrói a sua obra; Menotti Del Picchia, imaginação ardente, fogueira viva de entusiasmo; Rubens de Moraes, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, e outros já citados. E Sérgio Milliet? Deste, poeta de rara vibratibilidade, podemos dizer que é o alto-falante entre São Paulo e Paris: leva de São Paulo o que se produz de bom; e traz, de Paris, o que surge de novo e interessante. Guilherme de Almeida reside, hoje, no Rio e publicou, recentemente, dois livros modernos: um em prosa – Natalika, outro em verso: A flauta que eu perdi. São, deste último estes versos – A coluna: O artista talhou no mármore ilustre a base que quieta da coluna, o fuste direito de canas finas, a volta suave das volutas pacientes, a arquitrave plana e serena, o friso em que desfila um relevo indeciso de deuses calmos e de heróis brilhantes. E quando, anos depois de trabalhos tão grandes, chegou à coroação da coluna votada ao seu deus familiar, o artista estava velho. E os seus olhos fecharam-se para o mistério da beleza realizada. E somente os que vieram depois dele viram a obra toda acabada. Então, entre as sombras da planície sinistra, da coluna do deus doméstico fizeram um túmulo para o artista. Da poesia literária de Mário de Andrade, que Agripino Grieco chamou “poesia profunda, vinda do íntimo e vinda da terra, poesia virgem e inquieta, que leva consigo toda a personalidade e não o simples devaneio”, citemos estes exemplos:
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O REBANHO Oh! minhas alucinações! Vi os deputados, chapéus altos, sob o palio vesperal, feito de mangas-rosas, saírem de mãos dadas do Congresso... Como um possesso num acesso em meus aplausos aos salvadores do meu estado amado!... Desciam, inteligentes, de mãos dadas, entre o trepidar dos táxis vasculejantes, a rua Marechal Deodoro... Oh! minhas alucinações! Como um possesso num acesso em meus aplausos aos heróis do meu estado amado!... E as esperanças de ver tudo salvo! Duas mil reformas, três projetos... Emigram os futuros noturnos... E verde, verde, verde!... Oh! minhas alucinações! Mas os deputados, chapéus altos, Mudavam-se pouco a pouco em cabras! Crescem-lhes os cornos, descem-lhes as barbinhas... E vi que os chapéus altos do estado amado, com os triângulos de madeira no pescoço, nas verdes esperanças, sob as franjas de oiro da tarde, se punham a pastar rente do palácio do senhor presidente... Oh! Minhas alucinações.
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POEMA Meu gozo profundo ante a manhã Sol a vida carnaval Amigos Amores Risadas E as crianças emigrantes me rodeiam, pedindo retratinhos de artistas de cinema, desses que vêm nos maços de cigarro... Sinto-me a Assunção de Murilo! Libertei-me da dor... Mas todo vibro da alegria de viver! Eis por que minha alma ainda é impura. Têm condenado Mário de Andrade, chamando-o de extravagante. A condenação vale-lhe de elogio. Mário compreendeu que, nessa batalha contra as velharias, era necessário entrar adestrado, forte e corajoso, para que o temessem os inimigos e soubessem da quantidade e resistência do material de combate. Menotti Del Picchia, de O homem e a morte: Meu amor é um beduíno nômade num deserto sem limites e adora a sombra que corre em sua frente, na areia ruiva, longa como uma lança... Ele corre atrás da sombra como nós corremos atrás do nosso destino. ....................................................................... Sérgio Milliet, do Oeil-de-boeuf:
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RÈVERIE Ne plus sentir penser ses yeux caméléons... Mais tant de pitié me fait mal Caméléons Aventurines Couleur de mer, et traitres Mais si doux “J’AIME SES YEUX COULEUR D’AVENTURINE” Quel beau sonnet je pourrais faire si je n’étais un “futuriste” Quatre par quatre les rimes et deux tercets et un salut “Trois Mousquetaires” Au cinéma les d’Artangnan sont ridicules et j’aime mieux Hayakawa Ah ! le siècle automobile aéroplane 75 Rapiditié surtout Rapiditié Mais moi je suis si Romantique Ses yeux ses yeux ses yeux caméléons... C’est bien le meilleur adjectif. Mais alguns exemplos de escritores de vários países, permitam vocês que cite, dessa poesia moderna, livre de preconceitos, e desapressada das regrinhas miúdas de métrica e alexandrinos. De Carlos Alberto de Araújo:
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SALVAR Mais um desejo, amigo! É preciso soltar, pelas florestas e adormecidas, todos os nossos desejos tímidos, procurando mesmo assombrá-los, para que fujam, para que corram e se desviem por todos os lados... Mais um desejo É preciso que a pálida vida, encontre sempre um desejo perdido nos seus longos passeios desoladores, que ela saiba salvar... De Oswaldo Orico: A que passou, a que deixou, quando passou uma impressão no olhar, uma forte impressão. Não falou pelos lábios mas falou pelos olhos, o que quer dizer falou pela ilusão. Foi tão vertiginosa e passageira Tão nervosa e agitada, que chegou a deixar saudades na calçada. Quando ela passa é a vida em movimento, a graça tanto mais bela quanto mais ligeira. De Henri Mugnier: L’ARBRE Je me souviens d’un arbre de mon enfance Que j’ai planté, étant pétit;
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Il a poussé, poussé, en confiance, Et puis un jour il a fleuri. Le mur de la maison de mon grand-père Le preservait Du vent mauvais Et legard ait à la lumière. Lors, devant sa première fleur j’ai fait des rêves, Des rêves où je mangeais des fruits, De bonnes pêches A la peau fraiche Au jus sucré, à la chair blonde et dans laquelle Un noyau aurait mis Son goût d’amande amère et sa couleur vermeille. Je dus aller en ville et quand je m’en revins, Tout avait disparu de mon ancien jardin: Un blé encore en herbe et léger sous la brise Lentement s’efforçait à grandir pour les hommes. De Guilhermo De Torre (Madrid, 1922): POEMA ULTRAISTA Al volante todas las carreteras se encabritan En el juego de las velocidades los pedales barajan un kaleidoscopio de perspectivas tornátiles El coche es un arco combado que dispara trajectorias ensaciables Adelante Hacia el vertice Trepanamos aldeas ancladas y campinas que galopan En el cross-country cosmico Las montanas rivales
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enarcam sus lomos al saltar Cogido de las manos paralelamente avanzamos con los cables y los rios que permutan sus cauces Saltos entre las redes de itinerarios Trepidaciones El motor padece taquiarritmia Las ventanillas deshojan un album de paisajes El parabrisas multiplica nuestros ojos que cosen los panoramas evasivos Y el viento liquefacciona los sonidos En la embriaguez dinamica el auto siembra una estela de celulas aladas. Trechos da poesia La danza delle giornate grigie cariocas, de Vin Ragognetti: Mattinata Languida e pigra come una femmina dopo una notte di orgia e di amore. Tinnula e tifola pel cielo gravido di negro nuvolaglie senza fine la voce noiosa ed oca della giornata che sorge come un addio senza il suo essenziale e doloroso significato. La cittá muore di strazio sapendo che allora comincia a vivere le sue prime ore di lavoro. ......................................................... Trechos de Solitude D’étoiles, de Charles Baudouin:
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Sous un drap noir, les étoiles sont mortes, et toutes les lumières des hameaux, Étoiles tristes de la terre, pleurent leurs souers d’en haut. Comme elles sont perdues et solitaires, et comme elles sont veuves, ce soir, Et mortellement en épreuve, ce soir, nous terrestres étoiles-sous le deuil du ciel noir ! .............................................................................................. Enrique González Martinez, poeta mexicano, publicou, o ano passado, em Buenos Aires, o seu livro El romero alucinado, e conquistou os maiores triunfos. Pertencem-lhe estas composições: RETORNO Pieza negra y cerrada... Un leve roce... un blando ruido... Estoy solo, estoy solo commigo mismo... De todo me doy cuenta y siento escalofrios... Es el alma que vuelve de su viaje nocturno al cuerpo que estaba dormindo. EL ALARIDO Grita, corazón, grita... Que tu alarido suene y el gran silencio rompa. Grita al mar y a la tierra y al cielo y que el cielo y el mar y la tierra te oigan... Grita, corazón, grita... Es el unico instante, y la sola Ocasión en que estalle el tumulto de una vida sin rumbo y sin normas...
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Es el unico instante... Mañana ya no será ahora !... Não é menor o número dos que, na prosa, sentiram a influência da nova arte, e vão construindo o seu estilo, que é muito diferente do estilo dos outros, como esse Antônio Ferro, de Colette, o Graça Aranha de Estética da vida, o Menotti de O homem e a morte. Queiram ou não queiram, a Arte Moderna vencerá. Para glória da Humanidade. E ódio mais intenso de s. excia. a Tradição, irmã gêmea de s. s. o Rotineirismo. Meus caros amigos: Isto já não é mais uma carta, e sim, um manifesto. Manifesto, carta ou relatório, quero mostrar, num balanço muito ligeiro, que este movimento moderno é muito sério e muito agitado. Desejo ainda falar do Recife. Antes, porém, duas palavras sobre o Pará e sobre o Rio Grande do Norte. Em Belém do Pará, existe uma vigorosa e ativa intelectualidade. Um grupo de talentosos rapazes, aliado a elementos da geração anterior, trabalha tenazmente no jornalismo, na poesia, na prosa. As ideias de arte moderna encontraram, para abraçá-las e tornar-se, ali, o seu defensor audaz, o brilhante poeta Bruno de Menezes, proprietário e diretor da revista literária Belém Nova. O seu livro Bailado lunar é um bailado de ideias surgindo num ritmo elegante e pessoal. Poeta de harmonia interior. Isto é: artista. A lua é a bailarina imemorial dos ares. Entre cortinas da Bretanha e céus nevoentos a Lua oferta à Noite os nenúfares dos seus jardins feitos de aromas brancos... A Lua dança, erguendo os braços alvacentos com três estrelas cintilando sobre os flancos. A Lua, levantina, é uma silhueta longa,
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esguia, ciprestal, esgalhada em mil ramos, que se arqueia e se afina e se acurva e se oblonga, toda coberta de arabescos e recamos. Há um “solo” de oboé num “jazz-band” yankee... E a lua, o corpo num arco, dobra-se em gesto morto na histeria coreográfica do Ritmo. ..................................................................................... No Rio Grande do Norte o jornalista Luís da Câmara Cascudo, espírito estudioso e de largos conhecimentos literários, abraçou as ideias da Arte Moderna, e o fez com a convicção própria das inteligências moças e fortes. Chega-me a vez de falar de Pernambuco. E começo por afirmar que a intelectualidade pernambucana, salvante se considerarmos isoladamente certos valores, se caracteriza por uma visível falta de unidade de vistas, trabalhando sem ideal e sem diretriz. Que somos, no mundo das letras? Uns trabalhadores efêmeros, porque não agimos unidamente. Não seguimos os exemplos de alguns antepassados, os quais, reagindo contra as velharias do tempo, renovaram as fórmulas da tradição e assinalaram o espírito de uma época de audácia e de brilho. Homens há, e de mérito. Mas, ou não ouvem o barulho de Klaxon, ou não querem compreender Klaxon. Felizmente, porém, de tanto gritarem na Europa e no Sul do Brasil, já se prestam ouvidos aos clamores da hora que passa, às exortações para uma arte livre e atual. Um ano faz que, no Recife, falar de arte nova (para muitos – de “futurismo”), era despertar o riso irônico da multidão de literatos, ou dos não-literatos. Eu, só – posso dizê-lo –, reagia contra essa atitude de indiferença e de zombaria dos nossos homens de letras. Os meses se passaram, e eis que, certo dia, com surpresa, aquele que mais me combatia, o então parnasiano-lírico Austro-Costa, me enviava, para as colunas da revista por mim fundada, Mauriceia, os seus primeiros versos modernos – O Recife da madrugada é um poema futurista.
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Confesso que exultei porque a adesão valia muito. Outros vieram; e outros continuam a vir. Faz-se me necessário recordar aqui o que foi a visita de Paulo Torres a esta cidade. De passagem para a Inglaterra, quis o suave poeta dos Bailados Brancos visitar o Recife, porque ainda se diz, lá por fora, que no Recife existe certa agitação literária. À comunicação de sua visita, aprestamo-nos para recebê-lo. E o fizemos sinceramente, porque sabíamos homenagear um escritor de talento. No salão das conferências do Diário de Pernambuco, reunimos, para ouvir a leitura do seu novo livro, um público distinto, seleto e culto, famílias, intelectuais, poetas, jornalistas e artistas. Organizamos um programa em que incluímos os nomes dos velhos e dos novos, numa leal confraternização de passadistas e modernistas. Entenderam alguns dos primeiros, porém, ser uma ironia o simples fato de homenagearmos um representante da arte nova. E os srs. Oscar Brandão e João Barreto de Menezes, esquecidos de que estavam ali a convite dos promotores da festa, precederam a declamação de seus versos de explicações desnecessárias e inoportunas, usando até, de expressões grosseiras. O revide se fez ouvir, estabelecendo-se uma discussão que, de toda forma, deveria ter sido evitada. E tornaram-se, destarte, os negadores sistemáticos da necessidade de uma renovação. Paulo Torres, entanto, lendo parte do seu livro, conquistou os aplausos da emoção despertada no espírito dos presentes. O autor de A hora da neblina, não é só um poeta de rara vibratibilidade; mas, também, o artista elegante da forma dentro do seu código literário. Tanto naquele volume como em Bailados brancos uma requintada estesia se manifesta em todos os versos, música, ritmo e ideia. As composições em prosa que leu não são menos uma expressão de sua alma vibrátil e de seu pensamento de arte sutil, de tão sutil – quase transcendental. Logo ao chegar ao Recife escreveu estes versos sobre a cidade que vinha de admirar. Longe de decantá-la num alexandrino, dizendo o que, talvez, já tivessem dito os poetas da terra, fê-lo sob uma forma nova e expressando pensamentos novos:
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RECIFE: CIDADE-MULHER Quando eu a vi, de longe, as suas casas Pareceram-me cubos colossais... O cais... os seus guindastes pareceram-me Uns braços musculosos de gigante. Quando eu a vi, de longe, O movimento... os automóveis, como carretilhas, Carretilhando as ruas asfaltadas, Tive a impressão de que ela delirava Numa crise de nervos Na crise louca das velocidades... Mas quando a vi de perto: era mulher... Uma linda mulher esguia e loura Toda vestida de “foulard”, nervosa, Pisando com seus passos de camurça O tapete das pontes e das ruas... E alguém me disse: Repara bem, Ela é tão linda... Que Deus a vendo tão mulher e linda, Lhe deu, para mirar sua beleza O espelho branco do Capibaribe... Dele são ainda os exemplos seguintes: A BAILARINA DO ESPAÇO Nesse lugar, nesse lugar... fazia um frio, um frio astral... e Alguém, baixinho, me contou: A bailarina, a bailarina, a bailarina do Espaço, desengonçada, magra, fria e fina...
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A bailarina, a bailarina, – Que corpo elástico, esquisito e leve! – é uma Tanagra feita flor de espuma e neve... A bailarina, a bailarina – mas que graça! – lá vem rolando como um corrupio, a equilibrar-se sobre o espaço frio, entre duas esferas de fumaça e três bolhas redondas de vazio... A bailarina, a bailarina... E, toda curva, desequilibrada, toda embriagada, desarticulada, sugere uma criatura original, dançando, elástica, esquisita e tonta na ponta de um florete de cristal... O DIVÃ DA ALCOVA DA BAILARINA Seu divã É de um veludo côncavo, qualquer, Destinado a guardar um talismã... ...Pois o fundo, macio, do divã Tem a forma de um corpo de mulher... Escrevendo versos de tão elevado sentimento de Beleza, Paulo explica assim a sua arte: Eu penso que a Beleza é o abstrato transportado para a terra; eu penso que a Beleza é o Infinito transportado para o finito; penso diferente da maioria dos homens que, pela incapacidade cerebral de se abstraírem, reproduzem unicamente o que está ao alcance dos cinco sentidos. A passagem de Paulo Torres pelo Recife despertou de modo inesperado as inteligências moças para guerrearem os antigos, e estes para se defenderem. Austro-Costa é hoje um dos elementos mais fortes da campanha
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pela arte nova. O poeta do Mulheres e rosas, alma apaixonada de artista jovem e entusiasta, deu nova forma à sua poética, e, de lança em riste, vai combatendo tenazmente os “almofadinhas do soneto”. Prepara o seu Poemas impossíveis, ao qual pertencem estes versos: A TRISTEZA E A PIEDADE DO HOMEM AZUL DO AMANHÃ Era o homem moreno e humilde de quem ninguém se lembrava quando o Preconceito e o Egoísmo discutiam vãos valores, mas de quem muito se falava, se falava... quando se falava em amores... No Passado o homem sonhava o sonho brando da Humanidade: fora bom e leal na digna tristeza da sua vida de visionário sem glória e sem malícia, de ingênuo e estranho artista adolescente. Mas, porque havia de, lutando, triunfar humilde e bom, e porque havia, forçosamente, de seguir para o Amanhã e ser chamado – o “Todo Azul”, de tão branca que fora sua nobreza na Adversidade e de tão azul que fora sua Constância serena, logo a Inveja, que é toda negra, de vício, a Covardia, que de tão vil já não tem cor, e a Impotência, que é cor de raiva e desespero, vomitaram a bílis azinhavrada da Perfídia e do Rancor na azúlea estrada do homem moreno e bom e humilde. E o homem, já todo azul, entristeceu. Entanto, porque soubera amar com melancolia e arte, cedo se arrependeu de sua inútil tristeza. Ele que amara os velhos e as Crianças, adorando a Mulher em todas as mulheres e, sonhando e chorando,
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hinos de Amor entoara, e misereres celebrando todas as coisas belas e mansas da Natureza: o Sol, a Brisa, o Mar, os passarinhos, as estrelas, o Luar, as árvores, as rosas, ele viu, afinal, que, sem sangrar as mãos pelos espinhos, não teria coroas de rosas maravilhosas para o seu Sonho de Beleza. Então silencioso, mas risonho, ficou a espetalar os derradeiros mal-me-queres do Passado pelos jardins românticos da Cidade, na sua boemia espiritual só compreendida pelos homens perfeitos, e pelas lindas mulheres que andavam a encher de ouro e de azul a sua Vida... São Francisco de Assis – entretecendo ninhos para os implumes passarinhos de seu Amor e de suas mais nobres quimeras, – assim o homem moreno que era humilde e bom, sorrindo, perdoou e teve pena dos homens cor de vício e de maldade: E começou a caminhar para o Amanhã, todo azul e coroado de primaveras... E quem é que, não aceitando, lamentavelmente não aceitando o Credo Novo, contra ele se revolta e nos move à guerra da ironia despeitada? Dois nomes conheço bem: o srs. Oscar Brandão e João Barreto de Menezes. Do primeiro pouco admiro essa atitude, quando sei que, sendo mau poeta, talvez apreciável sonetista, não possui a cultura artística que lhe traria o necessário discernimento. Revolta-se por uma questão de revoltar-se. Por quê? Não sabe. É necessária a renovação? Não sabe. Já houve renovações? Não sabe. A que escola poética pertence? Também não sabe. Quer dizer: o sr. Oscar Brandão, acostumado a viajar nos bondes a
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quatro patas do passadismo, estranhou o bonde elétrico e o automóvel da hora atual, e prefere andar a pé, claudicante. Não cultivando um ideal de Beleza e desconhecendo que cada século tem a sua expressão, marcha indiferente, admirando apenas o que, de tão admirado, já se tornou sediço: árvores, regatos e flores... “da minha terra”. Quanto ao sr. João Barreto de Menezes, somente me causa surpresa que um espírito culto como o seu não aceite, com as restrições que o senso filosófico ou estético preferisse, uma renovação inevitável e característica de uma época. O sr. João Barreto possui uma chama interior que, bem aproveitada, resultaria em benefícios para as nossas letras. Em menos de dois meses escreveu, além de vários poemas, duzentos e tantos sonetos, embora o nosso Bilac haja escrito menor número em toda a sua vida. Persisto em que amanhã, quando o movimento renovador estiver vitorioso, não será uma inteligência lúcida como a do sr. João Barreto que permaneça no erro de o não aceitar. Tanto o sr. Oscar Brandão como o sr. João Barreto, porém, perderam o bonde. Atrasaram-se. Que marchem a pé. Nós continuaremos a nossa escalada para a vitória final. Aqui no Recife ainda existem espíritos vigorosos, os quais, não a aceitando em todas as suas feições, não desdenham da Arte Moderna. E creio poder citar os srs. Aníbal Fernandes, Gilberto Freyre, Faria Neves Sobrinho, Araújo Filho, senhorinha Heloísa Chagas, Raul Machado, Maviael do Prado, José de Sá, Lucilo Varejão, Anísio Galvão, Costa Rêgo Júnior, Humberto Carneiro, Mário Sette, José Campello, Silvino Lopes, senhorinha Débora Monteiro. Dos mais novos – Góes Filho, João Pugliesi, Dustan Miranda e Mário Porto, apenas o primeiro ainda um tanto revoltado. É urgente que eu clame, nesta carta, e o propague a mil trombetas, a adesão valiosa de Raul Machado à Arte Nova. Filho da Paraíba e educado nos mais adiantados centros intelectuais do País, parnasiano que, em Água de Castália, elevou bem alto a sua arte, discípulo de Olavo Bilac e de Alberto de Oliveira, nome considerado em todo o Brasil, escrupuloso na forma e original na ideia, Raul Machado compreendeu que havia necessidade de uma expressão nova na arte. E, sem que abandonasse por completo os moldes antigos, o que es-
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tou certo, ainda fará, escreveu os versos abaixo, nos quais se percebem as ideias cantando num ritmo emocional, e a imaginação liberta dos freios do parnasianismo, fabricados por Heredia, mas inadmissíveis nos tempos atuais. Outros versos modernos tem Raul Machado construído, e eu me regozijo em proclamar essa vitória como de uma elevada significação para as letras brasileiras. Aqui estão duas das suas últimas composições: POEMA DE UMA NOITE DE ALUCINAÇÃO No silêncio da noite alta, o céu, magnífico, ardia Numa erupção de estrelas cor de ouro e de sangue. E a quietude da terra era tamanha Que a luz dos astros, suavemente caindo, Como que fazia um murmúrio e um sussurro na treva... Súbito, entre a folhagem verde, que dormia, Num estremecimento langue. Um vulto de mulher, alucinada e estranha, Surge, aos poucos. E o seu corpo, sonoro e lindo, Como uma estátua de mármore, na escuridão se eleva! Eras tu, ó Poesia! Espírito fecundo. Que no íntimo de todas as coisas vives e palpitas! Eras tu que te erguias, para adotar e celebrar o Mundo, Com as suas glórias e belezas infinitas! Eras tu, que vinhas a eterna lira em punho e a alma em delírio acesa. Embalar, com o teu canto, a vigília dos astros e o sono da Terra: Eras tu, que vinhas quebrar o silêncio e a contrição da Natureza, Com uma vibração de harmonia imortal que em teu seio se encerra! E ao ver-te, não sei por que, minh’alma estremeceu...
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Um marulho de versos encheu meu coração... E então, Eu, Que só tinha na vida olhos doridos para chorar, – Diante da universal indiferença, ajoelhei-me na treva imensa, e comecei a cantar!... MADMOISELLE-MADAME... Ao JOAQUIM INOJOSA Apesar dos estragos que o éter e a morfina Vão fazendo em teu corpo e em sua estonteante formosura, – Uma graça diabólica ilumina A tua “bataclânica” figura E a tua cabecita à la garçonne. – Quando tu passas, lépida e fútil, pela rua, Quase vestida, quase nua, Em movimentos desarticulados, Olhos de beladona, olheiras fundas, lábios tintos, Há uma rebelião completa dos instintos E um alarma de todos os pecados ! – Mas, alheia a esse tumulto de almas em surpresa, Sobranceira ao entusiasmo, à admiração comum, Na tua glória anônima e sem fim, Segues, com o teu “lulu” da Pomerânia, n.º 1 E a tua sombrinha, minúscula, japonesa, De cabo exótico e ponteiras de marfim...
Significa isso que a vitória nos sorri. Não há descrer. O momento é de luta. Na luta vencem os mais bem aparelhados e mais corajosos. Adesões como a de Raul Machado proclamam-se na radiotelefonia da propaganda.
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O que, entanto, não me causa grande alegria são as adesões da mediocridade, que, não tendo triunfado na sua arte, abraçam o Credo Novo como paliativo às suas derrotas. Daí certas extravagâncias e o argumentar-se, muitas vezes, serem os seus autores representantes da corrente renovadora. É preciso estudar para escrever. E sem cultura de arte não se compreendem as Belezas universais. É, em síntese, essa a situação do movimento moderno no Recife. Resta-me, agora, pedir que a Paraíba nos acompanhe. Já vocês publicaram, em um dos últimos números da Era Nova, um editorial sob o título Renovação literária, e nele escreveram: Demos mais esta vez razão a Augusto Comte: nada há absoluto. Esse movimento forte, partido da mocidade intelectual de São Paulo, em prol de uma falada renovação em arte e literatura no Brasil, não deixa de oferecer o seu merecimento. Se não se pode trazer à baila algo de nuevo no que diz respeito aos antigos, imortais motivos de Arte e de Estética, contentemo-nos, então em combater a toda a força o nosso mal maior: o lugar comum, a eterna repetição das mesmas expressões, das mesmas palavras. Se não se podem inventar novos sentimentos, então aprendamos a expressá-los sem a chateza, sem a vulgaridade com que os intelectuais de agora se acostumaram a fazê-lo. Isso é o que entendemos por renovação. Nesse aspecto, ela não é apenas louvável, é urgente. Há espíritos brilhantes nas letras paraibanas. Carlos D. Fernandes, José Américo de Almeida, Américo Falcão, José Rodrigues de Carvalho, Vieira d’Alencar, Álvaro de Carvalho, Celso Mariz, padre Pedro Anísio; e essa nova geração que faz da mocidade a chama do ideal realizador, S. Guimarães Sobrinho, João da Matta, Antônio Botto, Paulo d’Anízio, Eudes Barros, Rui Carneiro, e outros, os quais não devem nunca olhar para o passado, e sim, abandonar na estrada, a fim de serem recolhidos ao
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Hospital da Decadência, os que os não quiserem acompanhar na vitoriosa ascensão para uma Arte nova, livre, desinteressada. Porque, ou a Paraíba se filia ao movimento renovador ou, em arte, ficará no Morro do Castelo da antiguidade. Não. Faz-se necessário substituir os bondes da T. L. F. por outros que correspondam aos ideais modernos desse povo carinhoso, inteligente e trabalhador. Está decretada, aí também, a falência da arte antiga. Seja a Era Nova o porta-voz de todos os clamores de renovação, e assim terá cumprido a sua mais nobre finalidade. Seja a Klaxon paraibana. Do ex-corde Joaquim Inojosa Recife, 5-7-924.
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Originalmente publicado no Livro do Nordeste, comemorativo do centenário do Diário de Pernambuco: 1825-1925. Recife: Off. do Diário de Pernambuco, 1925.
—Gilberto Freyre
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ALGUMAS NOTAS SOBRE A PINTURA NO NORDESTE DO BRASIL
Aquele interesse pelas coisas na razão inversa de sua proximidade que Lafcadio Hearn encontrou na Martinica, encontraria também entre nós. Vem dessa tirania da distância sobre os nossos olhos e sobre a nossa imaginação o não termos ainda produzido um pintor verdadeiramente nosso: a paisagem e a vida do Nordeste brasileiro se acham apenas arranhadas na crosta. Nos seus valores íntimos continuam virgens. É que as tintas capazes de interpretar a paisagem do Nordeste, ora de um ocre todo seu, que exige incisões de traço e até ascetismo de cor e repele carícias de esfuminho e agrados de tintas macias; ora de uma exuberância lubricamente tropical, parecendo querer chupar tintas e cores com a fome de um mata-borrão imenso – não são por certo os entretons corretamente acadêmicos dos velhos gramáticos da pintura; nem as cores carnavalescamente brilhantes dos “impressionistas” – isto é, daqueles cujo “impressionismo” é preciso farpear de aspas. Mesmo quando a pintura se tem aproximado, no Nordeste, da paisagem regional tem sido para a sacrificar, por um desses processos, à tirania da distância. Tem sido para escrever em mata-borrão como se escrevesse em papel de linho. Já Euclides da Cunha, a propósito de ser a geografia física do Brasil um “livro ainda inédito”, escrevera: “Alheamo-nos desta terra. Criamos a extravagância de um exílio subjetivo, que dela nos afasta enquanto vagueamos como sonâmbulos pelo seu seio desconhecido”. E mais adian-
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te: “As nossas mesmas descrições naturais recordam artísticos decalques, em que o alpestre da Suíça se mistura, baralhado, ao distendido das “landes”; nada do arremessado impressionador dos itambés a prumo, do aspecto rebrilhante dos cerros de esquartzito, do desordenado estonteador das matas, do dilúvio tranquilo e largamente esparso dos enormes rios, ou do misterioso quase bíblico das chapadas amplas1...” Na pintura especialmente tem sido assim. Nossos pintores têm vivido alheios à paisagem, que os desorienta sem dúvida pela dessemelhança de cor e de luz da europeia em cujo contato sua técnica se oficializa languemente. E dão ideia de uns como castrati, incapazes de fecundar os ricos assuntos que se oferecem, virgens e nus, tanto aos pintores como aos escritores de tendências pictóricas. Ainda não apareceu pintor com a coragem, as tintas, o ritmo épico, a bravura de traço capazes de interpretar a paisagem do Nordeste, nos seus contrastes de verticalidade – a da palmeira, a do visgueiro, a do mamoeiro – e de volúpias rasteiras – a do cajueiro, a do mangue, a da jitirana. O mesmo se passa com a paisagem amazônica, com a do Brasil Central, com a do Paraná, com a do Vale do Rio Doce. Mas aqui me limitarei a falar da do Nordeste, embora sob o critério de região e de tradição pudesse generalizar e estender a maior parte destes reparos ao conjunto brasileiro de paisagens regionais – quase todas ainda tão virgens de pintores que as revelem quanto o Nordeste. No Nordeste, esperam ainda pintores com a coragem e as tintas para as pintar, rudezas do alto sertão e do “agreste”, violentamente rebeldes ao acadêmico dos mestres convencionais como ao carnavalesco dos contramestres “impressionistas”; todo esse “mortífero derrame de luz”, descrito por José Américo de Almeida em página vigorosa, e que, além de vertente ocidental de Borborema, “transforma as campinas num cinzeiro”; esses maciços de caatingueiras, salpicadas nos tempos de chuva de vermelhos sensuais que brilham depois, nos primeiros dias de sol, com um escândalo de sangue fresco; salpicadas também de amarelos e de roxos espessos, oleosos, gordos, às vezes dando vida a formas que são meios-termos grotescos entre o vegetal e o humano, verdadeiros plágios da anatomia humana, do sexo de homem e da mulher. Formas
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Gilberto Freyre comete um equívoco ao Euclides da Cunha (“misterioso quase bíblico das chapadas bíblicas”), aqui corrigido com referência no texto original. [Nota dos editores]
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Escritos do século XX
no verão alto chupadas pelo sol de todo esse sangue, de toda essa cor, de toda essa espécie de carne; e quase reduzidas aos ossos dos cardos; a relevos duros, ascéticos, angulosos, assexuais. Não haverá, talvez, paisagem tropical como a do Nordeste brasileiro, tão rica de sugestões para o pintor; nem animada de tantos verdes, tantos vermelhos, tantos roxos, tantos amarelos. Tudo isso em tufos, cachos, corólulas, folhas, de recortes os mais bizarros como os cachos vermelhos em que esplende a ibirapitanga ou arde o mandacaru; como as formas heráldicas em que se ouriçam os quipás; como as folhas em que se abrem os mamoeiros; como as flores em que se antecipam os maracujás; como as coroas-de-frade. Coroas-de-frade que, no silêncio de igreja dos meios-dias do “agreste” e do sertão, parecem recordar os frades mártires e os padres heroicos que o Nordeste tem dado ao Brasil. É como se a paisagem tivesse ao mesmo tempo alguma coisa de histórico, de eclesiástico e de cívico; e participasse das tradições da região, associando-se pelas suas formas vegetais aos feitos humanos: aos sacrifícios e aos heroísmos dos homens que a tornaram essencialmente brasileira e católica. Entretanto, da paisagem do Nordeste, só a “mata” achou, até hoje, quem a fixasse com gosto, ainda que com insuficiência; e esse raro pintor brasileiro com o senso regional intensamente especializado foi Jerônimo José Telles Júnior. De Telles Júnior escreveu uma vez Oliveira Lima que não era um artista vagamente brasileiro, mas “um artista essencialmente pernambucano”; e mais do que isso: “pintor da mata, não o pintor do sertão”. Pintor de uma zona e não de uma região inteira. “A mata – são palavras de Oliveira Lima, escritas em 1905, quando ainda vivia em Pernambuco, quase ignorado, o pintor pernambucano, a quem tive anos depois como meu mestre particular de desenho – a mata com o seu bafejo perfumado, a sua atmosfera de calor úmido, o seu estremecimento de fecundação e a sua pulsação de crescimento, é o que particularmente fascina aquela palheta vibrante”. E ainda: “ele nunca se sente mais à vontade do que refletindo e fixando as ladeiras de barro vermelho sobre o qual rodas de carros de bois deixam sulcos profundos nas porções mais enxutas, entre as poças escuras; as túmidas várzeas de massapê cobertas de canas, tão apertadas as plantas que não têm quase espaço para agitar suas folhas laminadas, de que emergem como penachos as frechas pardacentas; as capoeiras emaranhadas em que a vegetação brota irregularmente, algu-
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ma mais viçosa, outra mais vagarosa, toda ela de um tom verde-claro de esperança; mas que tudo, as matas propriamente, com suas árvores linheiras, a procurarem por um natural instinto os raios de sol, erguendo os troncos enlaçados pelos cipós, sobre um chão forrado de folhas secas e limpo de garranchos que não logram medrar na sombra eterna. São estas árvores elegantes e frondentes que Telles Júnior decididamente prefere às árvores menos alteosas, tortuosas e pouco densas da caatinga ou do sertão. Preso à “mata” como se tivesse nascido para a pintar, para fixar os verdes de suas árvores e os vermelhos do seu massapê, Telles Júnior não a interpretou: apenas a fixou. Estava aí sua insuficiência: não ser a sua pintura, de interpretação. O interesse das telas de Telles Júnior está principalmente na documentação que oferecem – documentação exata, quase fotográfica – de uma fase da paisagem nordestina: a da natureza “já assenhoreada pelo homem e defendendo a custo a sua integridade selvagem e as suas opulências florestais”; a da natureza tropical perturbada nas suas últimas volúpias selvagens pelos avanços civilizadores da cana-de-açúcar. Porque em certos trabalhos do pintor pernambucano chegam a branquejar, à distância, casas de engenho; chegam a fumegar ao longe bueiros de banguês. Mas o elemento humano local, animador dessa paisagem de “mata”, Telles sempre o desprezou na sua pintura descritiva. Nos seus quadros – à exceção de um ou outro – a vida de engenho apenas se adivinha de longe, por aqueles sulcos de rodas dos carros de bois no vermelho das ladeiras, observados por Oliveira Lima. Do grosso das pinturas de Telles pode-se dizer que parecem ilustrações para um compêndio de geografia física; e não paisagens para um livro de geografia humana. Os coqueiros existiam mais para ele do que os homens; as mangueiras mais do que as mulheres; os morros mais do que os sobrados; as moitas mais do que os mucambos. Os próprios animais aparecem pouco nos seus quadros. É raro uma pintura de Telles como Domingo no campo: avermelhada por uma briga de galo. Sua cor é o verde. Seu vermelho, o do barro. O elemento de sua predileção é o arvoredo com uma ou outra mancha encarnada ou azul: o massapê, a água dos rios, a água do mar das costas de Pernambuco, uma saia de lavadeira, um xale de negra. Seus quadros mais característicos são aqueles em que aparecem coqueiros; aqueles em que o pintor se delicia em surpreender os efeitos dos ventos de agosto sobre as palmas dos coqueiros velhos das
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praias do Nordeste; aqueles em que estão retratadas estradas de subúrbios do Recife: Madalena, Remédios, Aflitos, Campo Grande, Caxangá. Quase tudo que é verde regional ele apanhou: desde o verde azulado do alto-mar ao verde doentio dos mangues. Mas as casas, os homens, as barcaças, as jangadas, o interior dos engenhos – isso nunca interessou vivamente a Telles Júnior. Surpreende como uma técnica de produção que era toda um encanto para os olhos – a de fazer açúcar nos banguês ou nos engenhos de almanjarra, contemporâneos da meninice de Pedro Américo e de Telles – tenha sempre escapado ao interesse dos nossos pintores. Só os hóspedes da terra procuraram fixar a beleza ingênua da provinciana indústria animadora da nossa paisagem. Franz Post, principalmente. Dele nos restam, como se sabe, desenhos e pinturas deliciosas, fixando aspectos da vida de engenho do Nordeste. Era então a indústria de fazer açúcar o esforço que hoje nos parece quase brinquedo de meninos grandes, dos engenhos movidos a mão, a roda de água ou a giro de animais. Aos desenhos de Franz Post animam figuras de negros trabalhando no meio daquelas fábricas de aquedutos de pau ou tangendo os carros de bois cheios de cana madura. Nas sua pinturas aparecem casas-grandes; figuras de senhores de engenho; e sob telheiros acachapados, cenas de trabalho caracteristicamente regionais; danças de negros; flagrantes de xangôs, em que se prolongam os gestos de semear, de colher, de plantar cana. A técnica da produção do açúcar oferece, com efeito, elementos para uma pintura tão nossa que é verdadeiramente espantoso o fato de sempre lhe terem sido indiferentes os pintores da terra; espantoso que Post – um estrangeiro – tenha sido o maior, quase o único pintor do trabalho e da dança do trabalhador nos canaviais e nos engenhos do Nordeste. A plástica da mineração e da tecelagem, que o grande pintor que é Diego Rivera vai interpretando no México com uma nota épica nessa interpretação, não é por certo mais poética nem mais rica em sugestão de beleza – beleza viva, forte, masculina e até mesmo (pode-se dizer fazendo paradoxo) “feia e forte” – que a plástica da indústria do açúcar, do trabalho nos engenhos tradicionais do Nordeste; e hoje nas usinas – embora estas reduzam ao mínimo o elemento humano, a cor humana, local ou regional, o ritmo tradicional, brasileiro, afro-brasileiro, do braço operário. Já o francês Tollenare, visitando, em 1816, um engenho pernambu-
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cano de roda de água, observava nos escravos africanos e afro-brasileiros que deitavam canas na boca das moendas a elegância de movimentos. Os que conhecemos o processo de fabrico de açúcar nos banguês, sabemos como se sucedem em verdadeiro ritmo os efeitos plásticos do trabalho de fazer açúcar à maneira tradicional da região. Não é só a entrega de cana à boca da moenda. Há ainda as figuras pretas, pardas ou amarelas de homens que se debruçam sobre os tachos de cobre onde se coze o mel para o agitar com as enormes colheres e para o baldear com as gingas; e ante as fornalhas onde arde a lenha, para avivar o fogo; e esses corpos meios nus em movimento, oleosos de suar, se avermelham à luz das fornalhas; e assumem, na tensão de algumas atitudes, relevos de estátuas de carne. Parecem de bronze. Há em tudo isso sugestões fortes não só para a escultura monumental como para a pintura. Imagino às vezes os flagrantes mais característicos do trabalho de engenho fixados em largas pinturas murais, num palácio, num edifício público. Isto é que seria pintura verdadeiramente brasileira pelo seu sentido humano e social; e não os quadros patrióticos, convencionais, cívicos, artificiosos, que ornam as paredes das sedes estaduais ou municipais de governo entre nós. Quadros que são vãs tentativas de ensinar história moral e civismo aos meninos brasileiros. A civilização brasileira de produtores de açúcar e de trabalhadores de engenho já devia ter encontrado sua expressão na pintura; e a decoração mural dos edifícios públicos deveria ser a primeira a fazer sentir à criança, ao adolescente, ao estrangeiro, à gente do povo, o esforço humano, a vitória portuguesa e depois brasileira sobre a natureza dos trópicos. A luta, a dor, a alegria que essa civilização condensa. Imagino uma decoração mural de proporções épicas que nos recordasse os quatrocentos anos de produção de açúcar: desde a fase primitiva, com escravos criminosos atados a corrente à boca das fornalhas incandescentes e senhores de engenhos de barbas ainda medievais, até as usinas de hoje, grandiosas e formidáveis, máquinas monstruosas, claridades de luz elétrica, maravilhas de técnica. Numa como que vingança de técnica do homem contra a natureza, nas usinas são as máquinas que imitam o vegetal, o animal, o humano; que tomam o lugar dos negros, outrora “mãos e pés do senhor de engenho”, na fase célebre do cronista. Todo um mundo de cambiteiros, de banqueiros, de negros de fornalha, de metedores de cana, de mestres de açúcar – recordaria aquela pintura mural ao fixar o passado da economia açucareira do Nordeste,
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contrastando depois esse esforço humano com a vitória das máquinas modernas. Todo um mundo de homens brancos e de cor e também de animais – bois, bestas, cavalos. Os animais que a indústria do açúcar fez sofrer ao lado dos negros e dos brancos. Já deveríamos, na verdade, ter passado a idade passivamente colonial de decorar edifícios públicos com as figuras das quatro estações do ano que não representam aspectos da nossa vida nem regional nem mesmo brasileira; com os Mercúrios; com os eternos leões felpudos e as eternas moças cor-de-rosa e de barrete frígido – convenções tão distantes da realidade da nossa história social, da realidade da nossa flora, da realidade da nossa etnologia. É verdadeiramente curioso ter sido preciso haver uma guerra no Paraguai para o Nordeste do Brasil produzir um pintor: Pedro Américo. Entretanto não faltava no Nordeste onde se exercessem o gosto épico e a eloquência de animador de conjuntos de Pedro Américo, contemporâneo ainda da escravidão. Ele precisou do estímulo de uma luta internacional ou entre Estados – ou antes, entre o Brasil e um caudilho da América do Sul – para pintar quadros eloquentes. Seus olhos não se impressionaram com outras lutas. Com as lutas que o pintor viu desde menino na sua própria terra: do homem com a natureza; de escravos contra senhores. Pedra Bonita, Palmares, a Guerra dos Cabanos, o Quebra-Quilos, a Revolta Praieira, 1817, 1824 – nada disso teve repercussão sobre a sensibilidade de Pedro Américo. Quase o mesmo pode dizer-se de Vitor Meireles, autor de um quadro famoso, A Batalha dos Guararapes, ligado não só pelo assunto como pelo material em que o pintor se baseou, às tradições do Nordeste. Em 1709 mandara a Câmara de Olinda pintar três grandes painéis sobre madeira, para decoração do Paço Municipal: painéis representando a Batalha de Tabocas e as duas dos Guararapes para – diz a resolução oficial daquele ano – “notícia dos que nascerem nos vindouros séculos [...] tendo para maior honra, louvor e glória de Deus e nossa, Amém”. Esses painéis foram efetivamente pintados e, segundo o cronista Pereira da Costa – em notas manuscritas –, confiados pela Câmara de Olinda a Vitor Meireles para estudos necessários à pintura de sua tela. E foram tão úteis – os painéis – àquele pintor de telas patrióticas, que em ofício de 26 de março de 1874, dirigido à Presidência da Província, Meireles confessava: “de nenhum merecimento artístico são aquelas pinturas; entretanto se atendermos à sua antiguidade que se lê da respectiva explica-
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ção com a data de 1709 e aos costumes ali pintados, que me parecem ser reproduzidos com alguma fidelidade, tornam-se por isso não só dignas de apreço como também de utilidade para o trabalho de que me acho comissionado pelo Governo Imperial”. Do mesmo sabor dos painéis da Câmara de Olinda, um tanto arbitrariamente classificados pelo pintor Meireles – nisso bem do seu meio e da sua época, o Rio de Janeiro convencional e como que vitoriano do tempo de Dom Pedro II – como quadros “sem nenhum merecimento artístico”, são os painéis interessantíssimos do forro da Igreja da Conceição dos Militares, do Recife; e os da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres e da Matriz de Iguaraçu. O primeiro representando a Batalha dos Guararapes e mandado pintar pelo governador José César de Meneses em 1781; os de Prazeres, representando as duas batalhas luso-brasileiras contra holandeses, a de 1648 e a de 1649; os de Iguaraçu – onde também foram pintados quadros e painéis sobre assuntos piedosos, principalmente franciscanos – relativos a episódios da história local. Dos painéis da Conceição dos Militares – que podem ser hoje admirados nessa igreja – foi autor, artista da terra, a quem em 1863 – lembra Pereira da Costa – Muniz Tavares, em discurso, referiu-se nestes termos: “O pincel não é de Rafael, de Urbino nem de Correggio, foi porém de um artista pernambucano, patrioticamente inspirado...” Pintores de assuntos piedosos, houve vários no Recife, no século XVIII e desde os fins do XVII, após a Restauração: um destes, Aristides Tebano, que pintou vários quadros na primeira Igreja do Livramento em 1695. Do século XVIII, é João de Deus Sepúlveda, autor – dizem os historiadores – das pinturas no forro da nave da Igreja de São Pedro do Recife; mas não – acrescentam – dos quadros do altar-mor: obra de Francisco Bezerra. Do mesmo século é Luis Alves Pinto, que pintou o forro do coro da mesma igreja. E do século XIX: Sebastião Canuto da Silva Tavares, que informam os historiadores ter pintado os painéis das igrejas de Madre de Deus, Santo Antônio, Santa Rita, Convento de São Francisco do Recife, Recolhimento de Iguaraçu. E ainda: Arsênio Fortunato da Silva. Não está rigorosamente determinado é quem tenha sido o preto “muito orgulhoso de seus dotes”, a quem o inglês Koster, escrevendo no começo do século XIX, chamou “o mais afamado pintor de igreja de Pernambuco”. Recentes pesquisas de mestre Gonçalves de Melo vêm esclarecendo muito fato interessante, ligado às artes, em geral, à pintura, em particular, no Nordeste.
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Pintores de anjos, de santos, de Nossas Senhoras, não nos faltaram, na era colonial e durante o Império, embora nenhum deles tenha sido homem de gênio. Pintores de fidalgos e bispos, de mestres de campo e de patriotas, houve alguns. Mas não há evidências nem mesmo memória de um pintor português ou luso-brasileiro dedicado, nesta ou noutra parte do Brasil, à pintura descritiva – e não apenas alegórica – do indígena, do negro, do escravo, do mulato, do caboclo, da gente do povo. Esta quase só aparece em nossa velha pintura regional como soldado, como miliciano, como henrique, nos painéis patrióticos; ou em quadros de ex-votos ou de milagres de santos. Quando a verdade é que o Nordeste da escravidão foi um luxo de matéria plástica que a pintura brasileira não soube aproveitar. Matéria plástica não só lírica como dramática. E não apenas anedótica e ostensivamente sentimental. Logo o desembarque das massas de africanos, que às vezes chegavam aqui podres de pústulas, escorrendo sangue, manando pus, restos de homens grotescamente reduzidos a cabeças bambas de bonecos dizendo sim, a ventres inchados sobre mulambos de pernas – logo o desembarque dos escravos acompanhados dos “conhecimentos” para os caixeiros verificarem a mercadoria, era alguma coisa de horrivelmente pitoresco. Alguma coisa com um ar estranho de dança macabra que se prestava a pinturas ainda mais dramáticas que as de batalhas e de revoluções. Oliveira Martins recorda, em página célebre, o que eram os negros ao desembarcarem: “à luz clara do sol dos trópicos aparecia uma coluna de esqueletos cheios de pústulas com o ventre protuberante, as rótulas chagadas, a pele rasgada, comidos de bichos, com o ar parvo, esgazeado e idiota”. Mas pintor nenhum no Brasil dos tempos coloniais ou do Império sentiu a dramaticidade dessas cenas ou soube pintá-las. Limitavam-se todos a pintar santos e figuras de anjos no teto ou nas paredes das igrejas; Nossas Senhoras; retratos de capitães-mores e depois barões, viscondes, bispos, uma vez por outra contra sugestivos fundos ou cenários regionais. Material, todo esse, sem dúvida, de interesse para a reconstrução e a interpretação do passado brasileiro, em geral, e do da região, em particular. Mas é para lamentar que o material mais dramático, mais cheio de interesse humano e de significação social, tenha sido desprezado pelos artistas mais antigos do Nordeste. Por outro lado, é em pinturas
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ingênuas de ex-votos nas igrejas, em quadros pintados para registrar milagres de Nossa Senhora ou dos santos – e não nos pintores mais ilustres – que vamos encontrar sugestões da vida cotidiana da região no que ela oferecia de mais característico: o trajo, o vasilhame doméstico, o mobiliário, a cor da gente mestiça, as cores folclóricas predominantes no trajo e na decoração das casas. Os mercados de negros deviam ser um vivo pitoresco ao lado de revelações de forte beleza humana: a beleza que resistia em homens, em mulheres, em adolescentes, em crianças, aos maus-tratos das viagens. Porque entre os negros esverdeados pelas potemas, moleques acinzentados pelas doenças, pretos alongados pela fome em figuras de El Greco, exibiam-se belos adolescentes cheios de viço, negras ainda moças, fêmeas de peitos e nádegas arredondadas, molecas de formas sedutoras ou simplesmente saudáveis – todos deixando-se passivamente apalpar pelos compradores; moles às suas exigências; saltando, tossindo, rindo, escancarando as dentaduras às vezes magníficas; mostrando a língua; estendendo o pulso. Tudo isso como se fossem bonecos, desses que guincham e sacodem os braços ao menor aperto dos dedos de um menino. Havia moleques de tórax mais franzino, que se davam de “quebra” aos compradores de “lotes”; havia – como os anúncios de jornais indicam – pretos raquíticos de pernas cambadas, cabeças achatadas e peito de pombo; havia doentes. Mas não devia ser pequeno o número de negros sãos e de formas eugênicas, dos quais um bom pintor teria feito quadros de conjunto magníficos. Enquanto um pintor igualmente bom mas com pendor para fixar o patológico teria pintado quadros impressionantes de magotes de negros doentes, maltratados, supliciados. O olhar fino e um tanto lúbrico de Tollenare pousou sobre os mercados de escravos do Recife com uma certa volúpia, ainda que no bom do negociante francês existisse a indignação moral contra o comércio humano. E ele assim nos descreve um mercado de pretos na velha capital de Pernambuco: “Grupos de negros de todas as idades e de todos os sexos, vestidos de uma simples tanga acham-se expostos à venda diante dos armazéns. Estes desgraçados estão acocorados no chão e mastigam com indiferença pedaços de cana que lhes dão os compatriotas cativos que encontram aqui. Grande número dentre eles padece de moléstias da pele e está coberto de pústulas. [...] As raparigas conservam os contornos graciosos da adolescência: a cor preta em pouco prejudica o encanto das suas gargantas de Hebe e dos seus seios; aos seus olhos não
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Escritos do século XX
falece uma certa expressão voluptuosa e traduzem com ingênua timidez o desejo de serem compradas por quem as observa com mais interesse”. Descrição ótima. É pena que o francês Tollenare não fosse pintor: com o seu poder de interpretação psicológica nos teria deixado quadros de um interesse humano considerável e até de algum vigor dramático; e não simplesmente flagrantes de pitoresco colonial. Pintores de formação francesa desgarrados ou fixados no Nordeste foram Vauthier, Lassailly, Berard; os filhos de francês Mavignier e Gadault. Todos do século XIX: do meado e do fim. Mas quase não pintaram senão retratos de gente ilustre, embora Vauthier tivesse bem agudo o sentido da paisagem regional e dele – de Louis Léger, não de Pierre – devam existir alguns flagrantes artísticos de natureza pernambucana ao lado dos seus desenhos técnicos de casas e pontes que apodrecem nos arquivos oficiais de Pernambuco. Quanto a Gadault, discípulo na Europa de Léon Coinet, seu entusiasmo era pela pintura de igreja: pintou um Jesus e a Samaritana para a Matriz da Boa Vista; pintou uma Morte de Abel; pintou um Beijo de Judas. Mas pintou também um pôr de sol pernambucano. De estrangeiros, o pintor que se apresenta com maior interesse regional é, depois de Post, Lassailly, que andou fixando muito trecho característico da paisagem pernambucana no século XIX: Olinda, a Várzea, o Beberibe. Mas sem se aventurar nunca à pintura dos tipos regionais, das mulatas do Recife, dos negros, dos escravos. Quanto ao espanhol Manoel Pelaez, diplomado – segundo documento oficial – pela Escola de Belas Artes de Madri e que no fim do século XIX deu aulas de desenho e pintura na Repartição de Obras Públicas de Pernambuco, parece que sua ação foi principalmente didática. Nem fez obra de criação ou interpretação, nem se interessou pelos negros, pelos caboclos e por outros tipos regionais. Entretanto, os negros no Recife de outrora estavam em toda a parte. E é esse Recife de outrora, cheio de negros, de pretas-minas, de mulatas, que não teve infelizmente pintores. Nem nos séculos coloniais nem no século imperial. Cheio de negros e de mulatos só, não: cheio também de procissões e de festas de igreja; de frades esmoleiros e de soldados; de irmãos das almas e de sinhazinhas brancas a caminho da missa. A pintura, mesmo a simplesmente descritiva, ou a ingenuamente anedótica, deixou essa riqueza de vida e de cor quase sem registro.
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Ficaram quase sem registro aquelas mucamas enfeitadas de laços de fitas e de estrelas-marinhas de prata que davam certa pompa oriental às ruas do Recife dos tempos coloniais; aquelas pretalhonas com tabuleiros de arroz-doce, de cabeções picados de renda e reluzindo de miçangas, esplendendo de vermelhões, cheias de ar místico que hoje as rainhas de maracatu caricaturam pelo carnaval; os minas carregadores de palaquim; as negras vendedeiras de caju e de mangas; os haúças enormes, quase gigantes, com o corpo coberto de tatuagens; os pretos carregadores de fardos, de caixas e dos clássicos “tigres” (que às vezes largavam a tampa, emporcalhando-lhes a nudez oleosamente suada). Toda uma multidão que passa pelos livros de viagens – infelizmente bem menos ricos de ilustrações sobre a vida e a gente do Nordeste da última fase colonial que os álbuns sobre o Rio de Janeiro e do Brasil das fazendas de café; que passa principalmente pelos anúncios com descrições tão meticulosas de negros fugidos que, ainda hoje, por meio deles, um pintor de imaginação e de cultura histórica poderia reconstruir cenas inteiras e tipos completos, em quadros que seriam arte e ao mesmo tempo bom material antropológico e histórico. Por meio deles e por meio das descrições de viajantes. A Maria Graham, senhora inglesa que esteve no Recife em 1821 e a quem não faltava queda para o desenho, encantaram as raparigas de cor que viu de cestos de frutas à cabeça e xales azuis-claros atirados sobre os ombros. Henderson admirou a plástica dos negros remadores do Capibaribe. E Tollerane fixou como nenhum outro viajante da primeira metade do século XIX – sem esquecer Koster – os encantos de corpo e as graças de movimentos das negras e mestiças de engenhos do Nordeste. Notou-lhes de feio a flacidez dos seios; seios caídos, moles, às vezes murchos. Porém um feio, esse, que as raparigas disfarçavam com certa arte, servindo-se de pano azul ou vermelho. “Apertam-se abaixo das axilas – escreve o francês – com pedaços de pano azul ou vermelho que lhes desenham bem o talhe e os rins e fazem um grande nó que oculta a deformidade que acabo de assinalar”. E dos movimentos do corpo das negras observa: “são todos suaves e cheios de graça; não há um só que um artista ou uma dançarina possa desdenhar”. A comistão de sangue vem produzindo no Nordeste efeitos os mais diversos e interessantes, tanto de forma como de cor, sem que a pintura da terra, eternamente colonial no sentido parasitário de viver da Europa, dos motivos europeus, das convenções greco-romanas, se aperceba
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de alguns, pelo menos, dos encantos regionais mais vivos, de figura ou forma humana. A pintura da terra continua a procurar para os seus nus, seguindo o exemplo dos Amoedos e dos Antônios Parreiras, a convencional nudez cor-de-rosa dos modelos europeus. Mulheres brancas, louras, ruivas até. Desprezamos a prata – ou antes o ouro – de casa. Nenhum pintor moderno se dedica, no Nordeste, a pintar mulatas, caboclas, negras. Dos mestres da segunda metade do século XIX apenas Aurélio de Figueiredo – que esteve por algum tempo no Recife, onde deu lições de pintura a Telles Júnior – saiu-se um dia dos seus cuidados de alegorista e deixou os motivos ilustres de sua arte – Estrela-d’alva, Lavoura, Comércio, Duas noivas – para pintar A mameluca: uma mestiça espreguiçada na sua rede. Nem ao menos coleção fotográfica dos nossos tipos cruzados, dessas que se vendem em cartões-postais em Martinica e em Guadalupe – capresses, chabines, quadroons, octoroons – possuímos ou procuramos organizar. Que eu conheça, as únicas tentativas nesse sentido são as de Ulisses Freyre, em excursões regionalistas e tradicionalistas que temos realizado juntos, aos domingos, pelo Recife ou pelas praias e pelo interior de Pernambuco, parando nos engenhos, nas feiras, nos lugarejos mais característicos da região. Entretanto a quadraruna do Nordeste, a octoruna, a mulata, a cabocla, tão decantadas nas trovas pelo requeime de sua carne e pela graça de suas formas, já poderia ter produzido, na pintura, alguma coisa como a Maja desnuda dos espanhóis. Essa Maja desnuda que é a sublimação do afrodisismo peninsular. Restam-nos – é certo – do tempo dos holandeses, não dois ou três, mas vários retratos, acabados ou em borrão, de tipos índios, negros e mestiços que aqui se depararam à volúpia do exótico dos pintores europeus trazidos ao Brasil pelo conde Maurício de Nassau. Retratos, alguns deles, em tamanho natural, referindo-se, é claro, ao século XVII. Alguns são de A. Eckhout; outros não trazem assinatura, como o quadro da dança, no Museu Etnográfico de Copenhague, que representa oito homens executando uma dança de guerra, todos de flecha e maça. “Duas mulheres revestidas [...] de cinturas de folhas estão colocadas à direita, debaixo de uma árvore, enlaçadas e tapando os narizes”, informa Paul Ehrenreich, no seu Sobre alguns antigos retratos de índios americanos, publicado em tradução portuguesa pela Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, no seu nº 65. Em Copenhague há também, segun-
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do o mesmo Paul Ehrenreich, dois retratos de negros brasileiros; e no Zoobiblion, “representações de uma dança de negros, de um mercado de escravos em Pernambuco e de uma aldeia de brasilienses (tupis)”. São talvez trabalhos do pintor Zacharias Wagner. Trabalhos encomendados por Nassau. Os cronistas referem que em 1679, no dia 22 de agosto, o Rei Luís XIV da França visitou no Louvre os quadros de assuntos brasileiros – rigorosamente, do Nordeste do Brasil – que o conde Maurício de Nassau lhe oferecera. Oferecera propriamente, não, pois há do sagacíssimo conde germânico – cuja figura está para sempre ligada à história das ciências e das artes no Novo Mundo – uma carta ao ministro do rei da França, em que insinua recompensas: “Avisam-me, e Vossa Excelência terá sem dúvida ouvido dizer, que o rei quer fazer a mercê das Índias que eu tomei a liberdade de oferecer a Sua Majestade”. Dessas “raridades das Índias”, constavam quadros de tipos mestiços ou indígenas do Nordeste dos quais se encontra relação minuciosa, publicada pela Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, no seu nº 33. Já não estão elas no Louvre, porém dispersas. Sabe-se, por uma carta do próprio Nassau ao Marquês de Pompone, que os quadros representavam “todo o Brasil por meio de figuras, a saber: a nação e os habitantes do país, os quadrúpedes, os pássaros, os peixes, frutas, plantas, tudo de tamanho natural, bem como a situação do dito país, cidade e fortalezas com os quais retratos se pode formar uma galeria, o que seria uma cousa mui rara, que se não encontra no mundo, pois eu tive ao meu serviço durante o tempo que vivi no Brasil seis pintores, cada um dos quais pintava aquilo para que era mais apto; e se um curioso vir essa tapeçaria, não terá necessidade de atravessar os mares para contemplar o belo de quarenta quadros os quais poderão servir de modelo para uma tapeçaria”. Convém referir as ilustrações de Franz Post, orlando mapas, no livro de Barlaeus; e os estudos de tipos regionais do Brasil Norte-Oriental que ilustram a obra científica Historia Natullis Brasiliae. Porque Post não se limitou a pintar cenas do Nordeste, em quadros: foi um ilustrador copioso de livros. Trabalhos, todos esses, de hóspedes do assunto tanto quanto o foram da terra; e não é curioso que depois deles, só na década de 1920-1930, pintores do Norte, jovens pintores, começaram a voltar ao assunto? Em Fédora do Rego Monteiro, em Carlos Chambelland e Vicente do Rego
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Monteiro vamos encontrar tipos regionais de negros, de caboclos e de mestiços aproveitados com autêntico interesse artístico, em pintores que marcam o início, no Nordeste, de um bom regionalismo na arte brasileira, marcado também pelas estilizações de caju, por Joaquim Cardozo e de folhas de mamoeiro, por Joaquim do Rego Monteiro; e pelos admiráveis desenhos de 1925 de Manoel Bandeira. Mais feliz com os pintores do que o Brasil foi, antes dessa renovação e da paulista – que culminaria em Portinari –, o México. Mas não só o México: o Uruguai, também, com o seu Figari. Só depois de Portinari e do de Rivera: com um trabalho igual de interpretação nacional ou regional da vida e da gente brasileira. Interpretação, destaque-se bem: e não simples descrição etnográfica ou anedótica. Nem ao menos o Ceará, “terra predestinada à arte pela dor”, segundo Tristão de Ataíde, e a região onde o Brasil mais se aparenta à Rússia dolorosa dos romances, achou – antes dos mexicanos – expressão plástica para o intenso de sua vida e de sua paisagem. Nem ao menos alguma coisa de parecida às fotografias com que a Red Cross faz a réclame dos horrores das fomes na Armênia tem resultado das grandes secas cearenses. Só depois daquela década – 1920-1930 – alguns pintores mais jovens começaram a se apresentar, no Brasil, animados por um ritmo novo de imaginação; libertos da sentimentalidade convencionalmente romântica e também dos abafos de técnica acadêmica; o poder criador em livre e vibrátil tensão; meio revoltados contra a pintura simplesmente anedótica ou cenográfica. E procurando os assuntos brasileiros. Os regionais. Os locais. Não os evitando como outrora – quando só por desfastio um Aurélio de Figueiredo deixava suas figuras alegóricas para pintar uma autêntica mameluca estendida na sua rede do Ceará; e Arsênio da Silva – pintor que teve grande voga no fim do século XIX – abandonava os assuntos piedosos para fixar, em tela que ficou célebre, a cachoeira de Paulo Afonso. Isto sem nos esquecermos do paulista Almeida, no Sul, e Telles Júnior, no Norte. Com esse grupo jovem de pintores, o Nordeste já deixou de ser como o Portugal de Antônio Nobre: um país onde não se sabe “que é dos pintores que não vêm pintar”. Vem surgindo uma pintura de interpretação da vida e da paisagem do Nordeste, ao lado de outra, de romancistas e de poetas. Pintores com o sentido telúrico da sua arte vêm versando assuntos regionais, sem perderem o sentido brasileiro e universal das
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coisas, dos fatos, das pessoas: das relações entre as pessoas; sem resvalarem para o caipirismo ou para o separatismo literário ou artístico. Nem para o patriótico, anedótico, o apologético – perigos a evitar nessa fase nova de abrasileiramento da nossa arte e da nossa literatura. Num país exageradamente sensível ao prestígio como que místico do exótico e do distante como o Brasil, é preciso excitar o entusiasmo criador dos artistas novos em torno das nossas próprias coisas. No que não haverá diminuição para os mesmos artistas, mas intensificação de sua personalidade artística, do seu poder, de sua força. Ninguém, por certo, menos regionalista, no sentido sistemático ou de escola, do que o grande pensador católico dos nossos dias que é Jacques Maritain, a quem se deve a atualização da filosofia estética de São Tomás. Católico nos dois sentidos da palavra: no religioso e no outro. Pois é no professor Maritian, universalista dos mais puros, que muito claramente se lê que a arte “par son sujet et par ses racines [...] est d’un temps et d’un pays”2, E ainda: “Voilà pourquoi dans l’histoire des peuples libres les époques de cosmopolitisme sont des époques d’abâtardissement intellectuel. Les oeuvres les plus universelles et les plus humaines sont celles qui portent les plus franchement la marque de leur patrie”3. E é de Maritain esta citação da Maurras: “l’attique est plus universel à proportion qu’il est plus sévèrement athénien.”4 É o que modernamente se observa num romancista como Thomas Hardy: ninguém mais inglês nos assuntos e nas raízes. Seus romances não parecem somente trazer o selo inglês, porém, mais claro ainda, estampado sobre o selo, o carimbo de Wessex, com a data. Entretanto esse romancista tão regional e tão do seu tempo é o autor da obra de ficção mais universalmente humana que a Inglaterra produziu neste último meio século. Não há perigo nas tendências regionais que se vêm desenvolvendo nos jovens pintores do Nordeste. Ou nos seus novos romancistas, poetas, escritores: alguns deles com alguma coisa de pintores no seu modo de ser escritores e de interpretarem as formas e as cores do homem situado nesta parte tropical do mundo.
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Por seu assunto e por suas raízes [...] é de um tempo e de um país. Eis porque na história dos povos livres as épocas de cosmopolitismo são épocas de bastardia intelectual. As obras mais universais e as mais humanas são aquelas que carregam mais francamente a marca de sua pátria. O ático é mais universal em proporção que ele é mais severamente ateniense.
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Originalmente publicado na Revista do Norte, fase 2, no 2. Recife, agosto de 1926.
—Joaquim Cardozo
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Escritos do século XX
SOBRE A PINTURA DE TELLES JÚNIOR
Telles Júnior foi pintor que teve predileções, cuja obra oferece uma repetição de motivos permanentes expressos numa particular visão, orientada para um realismo atingindo às vezes, é certo e lamentavelmente, a aridez fastidiosa e desagradável de um documento. E, o que é pior, um documento de paisagem apenas. No entanto, esta repetição de motivos permanentes, esta insistência de pintar coqueiros, caracterizando-o como pintor do campo, para quem as edificações (mesmo quando antigas e pitorescas) e os tipos populares, o homem, em suma, eram quase que inexistentes, colocam-o num plano superior aos pintores do seu tempo e mesmo superior à quase totalidade dos pintores de hoje. Porque nesta insistência está a compreensão identificadora de uma paisagem característica de uma região, está a representação do cenário de uma vida social em início de formação, apreendidas num relance de valores emotivos. E Telles Júnior será por isso, mais tarde, como Franz Post já é para os nossos dias, uma fonte curiosa de sugestões a se manifestar nas artes vindouras, a poesia, a pintura, as artes decorativas e aplicadas e os seus futuros animadores terão nela uma companhia amável e encantadora. A esta quase lírica insistência no reproduzir o mais interessante elemento de nossa paisagem, aquele que empresta à massa verde da folhagem uma vibração intensa, teria ele fornecido mais beleza e mais
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harmonia se realizasse uma obra de interpretação livre, um conjunto de imprevistos e incidentes caprichosos. Uma surpresa. Porque a arte de Telles Júnior não surpreende. Nem à natureza, nem ao observador. A ele faltava a inquietação de um Cézanne, de um Signac, ou de um Gauguin. Era calmo, sereno, contemplativo; faltava-lhe a pupila aguda de um Cézanne esperando que os primeiros raios de luz do dia a nascer penetrassem no interior da Catedral de S. Giorgio, em Veneza, para sentir todo aquele interior deslumbrante reviver, surgir da sombra envolvente tomando novas formas que só ele àquela hora surpreendeu. Diante das telas do pintor pernambucano não se tem a revelação de um temperamento único, capaz de produzir um grande entusiasmo; tem-se, sim, uma sensação de doçura e suavidade notável, como a de aflição e tortura nos quadros do seu discípulo Walfrido Mauricéa. Do que ficou dito acima não se conclua, porém, que a obra de Telles Júnior foi monótona; pelo contrário, é muito raro ter-se em pintura um conjunto de tão variadas impressões; mas impressões verdadeiras, profundas, que penetram profundamente a sua sensibilidade para o desejo de reproduzi-las numa como desconfiança da execução, numa insatisfação amorosa e vibrante. Assim ele pintou de um mesmo trecho de caminho, num intervalo de quatro anos, dois aspectos, fez da ação do vento nos coqueiros motivo para mais de um quadro; o ritmo isolado e altivo dos visgueiros altos, senhoriais, é tratado tambem por ele com frequência, como ainda a entrada do porto do Recife, que pintou diversas vezes. Assim, esta frequência não resvalou para monotonia, ficou dentro de um regime rítmico e agradável. Mas era apenas um pintor do campo, um amoroso do verde e do corte vermelho dos barrancos, um pintor dos subúrbios a quem o Recife – cidade em que viveu a maior parte de sua vida –, a quem o Recife pitoresco do seu tempo em quase nada impressionou; à sua visão escaparam essa grande exibição de fachadas que o rio proporciona, a vida das pequenas ruas cheias de flagrantes maravilhosos, o caprichoso conjunto dos telhados, das pontes e das águas, a vida do rio com os estaleiros de alvarengas e barcaças, com as barcaças que saem barra afora, e os mangues, e a pesca nas gamboas, tudo expressões da vida pernambucana que o meu amigo Manuel Bandeira, com a mesma amorosa insistência de Telles Júnior, vai reunindo e colecionando e ainda dentro de uma vibração de pintura nova, intuitiva, original, sua. Repito, foi um pintor do campo e de marinhas, não praticou a na-
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tureza morta, nunca teve jeito para o retrato e mesmo para as figuras. Inabilidades que definem a sua sensibilidade – observando o valor da capacidade de visão sobre a sensibilidade e exprimindo-a numa noção de distância –, que o impelia à sensação dos panoramas e que era pobre demais para atingir o efeito pitoresco de mais perto como sucede na natureza morta ou no retrato. E não lhe era estranha esta impossibilidade, esta impotência da sua arte; daí abandonar completamente o retrato, gênero de trabalho que tentou várias vezes, dedicando-se exclusivamente à paisagem; porque mesmo as marinhas não eram objeto de sua muita predileção: muitos são os quadros de Telles Júnior, é verdade, onde há trechos de mar em que as ondas aparecem agitadas ou mansas, mas era porque ele queria pintar a praia com os coqueiros, a vida intensa dos coqueiros, e perto estava o mar. Então pintava-o. Mas não foi um pintor de marinhas, um artista que pouco se preocupou com as embarcações, com o conhecimento da aparelhagem náutica, não estudou nem sentiu as variações atmosféricas no mar largo, as múltiplas disposições dos grandes céus marítimos. Se pintou marinhas não teve por elas uma verdadeira atração como Castagneto1, este originalíssimo Castagneto que vivia com os olhos postos no mar, na vida do mar. E isto muito particularmente porque, como disse acima, a sua sensibilidade, ou o seu poder sensorial, não surpreendia e voltava-se para um campo mais fácil, que era o horizonte limitado das matas sem imprevistos de perspectiva aérea. E não só por isto. Também porque, para sentir o mar, não basta viver perto dele, precisa de alguma forma ser filho de pescador, como Castagneto, ter lidado com ele, ter sentido todos os seus caprichos, as suas revoltas, ou trabalhado na faina de bordo, no rude serviço de colher amarras e soltar velas. Outros motivos muito ricos de pintura que fugiram à pupila estática do pintor Telles Júnior foram as perspectivas das velhas igrejas, das velhas casas coloniais, as festas populares, religiosas, carnavalescas, com um colorido de muito sabor tropical, de muita alegria. Como se olharia mais tarde, hoje mesmo, com íntima satisfação para as telas que nos descrevessem todo o ritual das procissões antigas, do antigo carnaval, as ruas cheias de gente, os vermelhos e os roxos festivos dos
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Gonzaga Duque – “Castagneto” – Graves e frívolos.
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estandartes e das bandeiras. Bons assuntos para a documentação colorida e dos quais possuímos atualmente uma descrição muito vaga na cinza dos desenhos a carvão da época. Bons assuntos e ainda hoje bem raros são os pintores que se abalançam de tratá-los, raro um Di Cavalcanti com seu Cordão, raríssimo um Vicente do Rego Monteiro com as suas ilustrações de lendas amazônicas2, onde estuda as fisionomias de nossos indígenas como Gauguin estudava as dos índios Maoris. É estranho que, havendo tantos pintores no Brasil, não haja um, que eu saiba, que tivesse a lembrança de fixar flagrantes de uma multidão mestiça numa festa de igreja ou num baile de clube carnavalesco. Absolvamos, portanto, Telles Júnior desta falta e, ainda mais, porque não a cometteu para fazer uma obra fracionária e incaracterística, como muitos que trazem na sua bagagem artística, misturadamente, as pontes de Paris, os canais de Veneza, os igarapés do Amazonas e até os jardinzinhos da capital paulista. Ele fez a paisagem de Pernambuco, a paisagem tão só; o homem entra nos seus trabalhos como um décor, como estas figurinhas que se põem nos projetos de arquitetura para compor o desenho. Nem mesmo o trabalho humano, cheio de uma palpitação de movimento tão intensa, mereceu deste apaixonado do movimento a mais ligeira observação. Apaixonado do movimento, antes obediente do movimento. Este artista que foi exclusivamente pintor da mata, como disse Oliveira Lima3, que apenas fez paisagem de documento sem a interpretar, como disse Gilberto Freyre, 4 foi sempre um obediente do movimento. Não estava na sua vontade, não era desejo seu animar todas as coisas, fazer em torno de sua arte agitação contínua, não uma força imperiosa de sentir mudanças de posição, deslocamento de contornos; não era um seu valor interior a se expandir, a se dilatar num domínio sobre as coisas ao alcance de sua visão, era o poder exterior da natureza agindo sobre a sua sensibilidade, submetendo-a ao fascínio da rapidez, do desordenado, do ímpeto. Obediência. E não era expressão sugestiva, esta expressão sugestiva que fez os arquitetos do estilo gótico aproveitarem as linhas retas em feixe com o fim de realizar o movimento para o alto. Numa ansiedade de prece.
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Légendes, croyances et talismans des indiens de l’Amazone. Oliveira Lima, artigo publicado no KOSMOS. Gilberto Freyre, “A pintura no Nordeste”, Livro do Centenário do Diário.
Sem interpretar, sem imaginação, presa, por influências estranhas, de uma necessidade de mover-se tão constante e tão aguda, ele bem conseguiu, entretanto, um belo dinamismo de paisagem. E aí uma outra razão da sua insistência em pintar paisagem de coqueiros; não há outras em que o movimento seja mais nítido, mais visível e mais complexo. Há uma mobilidade minuciosa, variadíssima, do tronco às palmas, que concorda bem com a sua técnica toda de pormenores e precisão. E agora, sem considerar a observação de Gilberto Freyre quanto à ausência de interpretação na pintura de Telles Júnior, não só em relação ao movimento e à forma como em relação à cor, registre-se que, se ao menos ao movimento ele obedeceu, a cor, excetuando o verde, ele esqueceu. Esqueceu especialmente o colorido dos cajueiros roxos, das folhagens novas, de uma tonalidade verde magenta, numa gradação quase musical de cores quando os verdes vão repontando um a um sobre as folhas tenras. E o colorido vivo dos mulungus, dos flamboyants floridos, toda a festa maravilhosa e policrômica destes longos verões do Nordeste, tão ricos e tão prósperos. Ao pintor pernambucano, mais observador do que contemplativo, esta paisagem que aí está à espera de pintores teria sido objeto de muitos quadros se ele não encontrasse mais facilidade na sua observação dos coqueiros, dos visgueiros, do entrançado das matas. E foi levado por esta pintura fácil, executada quase à primeira impressão, sem torturado trabalho interior, mas cheia de uma vibração muito prolongada, muito alegre e vicejante, que ele pintou durante anos a paisagem de Pernambuco. E pintou quase unicamente os verdes, esses admiráveis verdes tropicais que se estendem sobre as terras planas do Nordeste, compondo-os carinhosamente na sua paleta e depois sobre a tela, batendo-os com a espátula ou esgarçando-os nervosamente com a felpa dos pincéis. Deixo falar Gilberto Freyre, cuja agudeza de observação ágil melhor do que ninguém penetrou a soberba harmonia destes verdes: “Reconheça-se o interesse cada vez maior para Pernambuco da obra de Post e sobretudo da de Telles Júnior, o mestre admirável; por outro lado, convém reconhecer que nenhum deles nos deixou interpretações desse verde que nos delicia e nos enlanguesce e nos serve talvez para atenuar e suavi-
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zar um temperamento ainda assim tão ardente”. 5 Verifica-se, no entanto, que o pintor de Velho visgueiro e do Dia tratou da melhor forma que se podia fazer no seu tempo a cor intensa da nossa folhagem e, se não fixou como agora o pintor De Garo e a pintora Fédora Monteiro Fernandes mostrando “o verde doentio dos mangues e o verde vivo e puro dos coqueiros adolescentes; o dos cajueiros, mosqueado de amarelo e das mangueiras; o das convolvuláceas salpicadas no verão de frutos bravos, e o do mar tropical, que é dos mais rebeldes à fixidez”, ao menos revelou uma predileção sobre todos os modos bem notável.
O principal valor da obra de Telles Júnior é a exatidão da paisagem regional, exatidão romantizada por um sentimento misto de tristeza e de alegria. Na formação intelectual e sentimental de nossas mocidades este valor devia ser como que uma força de atração para a terra pernambucana, para a vida do campo. Nos seus quadros está a primeira lição do nosso futuro gosto decorativo, não uma lição de mestre carrancudo e severo, com ar insuportável de sábio inacessível e perfeito, mas como um doce conselho de avô. E, apesar dessas constantes influências estrangeiras, apesar dessa frequente interrupção na nossa expressão nacional por estes movimentos imigratórios, ele será a primeira e nunca apagada tendência, o primeiro esforço, incompleto, é verdade, mas sincero e sentido, para a manutenção de nossos valores. É lamentável, porém, que, sendo o pintor Telles Júnior tão necessário orientador para a gente jovem, seja tão difícil conhecer os seus trabalhos. Eles estão por aí espalhados em coleções particulares, diversos ainda na posse da sua família, sem que qualquer governador ou prefeito se lembre de colocá-los em presença de todos aqueles que os precisam ver. A obra de Telles Júnior é a mais verdadeira, a mais harmoniosamente sentida paisagem regional brasileira. E, sob a expressão de regional, encarando os diversos aspectos que esta pode apresentar de flora propriamente nativa e transplantada. Oliveira Lima como que quer sugerir em artigo publicado no KOS-
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Gilberto Freyre – artigo publicado no Diário de Pernambuco.
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MOS de 5 de maio de 1905 – aliás, o melhor trabalho escrito sobre Telles – a inferioridade da sua paisagem do litoral com a ideia de justificá-lo como pintor da mata; no entanto, fazendo a devida reverência que merece o grande espírito do Sr. Oliveira Lima, eu ouso dizer que há igualdade de significação em toda a obra de Telles Júnior. Quanto a ser pintor da mata, ele não o foi completamente, uma vez que, trabalhando sempre ao ar livre, não deixou das indicações da vida da região senão o cenário, às vezes distante, quase indistinto, dando, por exemplo, a quem não esteja habituado a ver os trabalhos agrícolas e de moagem nos engenhos de açúcar a ligeira percepção de um sítio onde vai se realizar qualquer coisa, mas que de fato não chega a se realizar. Em toda a obra do pintor não se encontra um quadro, como o de Modesto Brocos, representando uma “casa de farinha”, as negras sentadas pelando mandiocas, todo o movimento e a aparelhagem da fábrica bem visíveis. São sempre desenvolvimentos de planos mais ou menos afastados, avistando-se a cada passo o contorno de uma edificação isolada, emoldurada de arvoredo. Tinha o gosto de ver de longe o pintor Telles Júnior; tons azulados, céus longínquos, céus distantes, muita luz favorecendo a análise de tons que é a sua técnica e a expansão da sua sensibilidade de nativista que amava o trabalho como um conforto de contemplação, simples e natural prazer. Pois não se diga que esse arraigado sentimento de região foi uma coisa procurada, uma pose artística como o indianismo de José de Alencar e o regionalismo do Sr. Mário Sete, trabalhosamente arquitetados na imaginação, traindo a cada passo, através da simplicidade rebuscada, uns surtos de eloquência volumosa e ardorosa muito contrariamente à intenção destes escritores. O pintor sofreu, parece, uma filtração ambiente continuada e lenta durante toda a sua vida uniforme a produzir uma obra inteiriça sem desvios para outros objetivos, sem revoltas, na certeza de possuir uma verdade indestrutível. Daí a sua pintura sem comentário, sem insatisfações e sem crítica. Um puro estado de alma romântica fazendo-se realização espontânea. Este caráter de calma uniformidade no sentimento da natureza torna-se mais em evidência fazendo-se um confronto com os quadros de Walfrido Mauricéa; o artista, parecendo mesmo “um holandês com seu rosto gordo e corado, suas finas barbas louras”, com seus óculos pelos quais se coava “um olhar cheio de bonomia”, mostrava pela fisionomia tudo quanto de tranquilo há revelado na sua arte. Olhe-se, por
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exemplo, dois dos mais agitados dos seus quadros, Ventania e Golpe de vento, e sente-se a tranquilidade dos detalhes, a precisão da minúcia – no primeiro, a ação prolongada, incessante, da ventania, no segundo, as folhas revoltas batidas de um choque imprevisto –, minúcia toda resultante de uma observação demorada e fria; os dois quadros, com toda a movimentação impetuosa que possuem, foram pintados por um temperamento sem crises de inquietação ou de paixão.
Telles Júnior, que tinha na maioria de seus quadros um como cuidado de lhes dar um centro de visão, um ponto que fosse a atração principal do olhar, que teve esta predileção aguda pela paisagem, que possuía tanta faculdade de observação, revela-se-nos um pintor espontâneo, sem esta qualidade de rapidez, esta agilidade à outrance que espanta os ingênuos e os tolos como os admiráveis passes de prestidigitação fazem a alegria ruidosa dos garotos num circo. O sentimento da espontaneidade, no seu valor predominante, instintivo e feliz, frequenta os melhores trabalhos de Telles Júnior. E, se ele não resvalou para a agilidade, este imediatismo superficial que era uma atração na pintura de Emílio Rouède, pintor de marinhas “elétricas” nas quermesses de caridade, como nos diz Gonzaga Duque, 6 também não teve talentos de pesquisador, não desvirtuou a sua arte puramente emotiva, interpretando-a literalmente sem procurar expressões nem formular preceitos a seguir. Foi espontâneo e livre na sua sensibilidade impressiva. Teve bravura e energia. Friso aqui a sua maneira espontânea, porque, havendo nele uma tendência para o menor esforço, pois, como já tive ocasião de dizer, nunca se entusiasmou por outro gênero de pintura que não fosse a paisagem, numa verdadeira indolência que o arrastava para o mais facil, não motivou esta tendência a satisfação interior de fazer rapidamente, de surpreender pela execução em poucos minutos. Telles foi assim regionalista no bom sentido do termo. E é esta a expressão de sua pintura que, por ser paisagenada, ficará sempre presente, muito embora perdendo a sedução da distância no tempo que teria, por exemplo, se ela fosse fixadora de costumes, revelando mais tarde o jeito,
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a linha característica da época, através das festas populares, dos gêneros de habitação, da moda, etc. É até lamentável que, tendo uma tão grande preocupação de pintar o porto do Recife – o porto do Recife daquele tempo, antes das demolições e das avenidas novas, com os cais ensombrados pelas gameleiras, ponto de reunião de vendedores ambulantes, de um pitoresco deliciosamente brasileiro e imperdoavelmente desprezado pelos artistas da época –, não tivesse ele penetrado mais intimamente na vida do porto do Recife, acompanhando os embarcadiços, os marinheiros que se refaziam da monotonia de bordo nos cafés e pequenos restaurantes dos arredores tão típicos, tão cheios de cor local e que seriam para nós, hoje, que já quase os não possuímos, uma doce alegria para os olhos, e seriam ainda uma análise dos caracteres estrangeiros em contato com a população quase toda mestiça da nossa gente pobre. Parece mesmo, olhando-se as telas do porto do Recife, que o pintor é um estrangeiro e – aqui desaparece toda a significação regional de Telles – que olhou a cidade de longe, superficialmente – em verdadeiro contraste com as suas outras telas. E dizer-se que ele empregou nestes quadros tanto tempo e tanto dinheiro (porque são quase todos de grandes dimensões) e até mesmo para fixar uma simples maneira de desembarque de passageiros dos grandes paquetes que não podiam entrar no porto, uma coisa vulgar e mesmo de alguma maneira humorística, ele compôs um grande quadro, quando poderia exprimi-lo melhor num simples desenho. Talvez encontre-se aí um erro de proporção que eu tento explicar, notando que no início de sua vida ele foi destinado à carreira de bordo e a importância que ainda jovem ele deu a este fato não se apagou de todo, e achou que o Araguaia no porto, lembrando um cartaz de companhia de vapores, podia assumir proporções de um grande quadro, resultando apenas um trabalho demorado que a fotografia nos dava com mais precisão e mais rapidez. Um erro de proporção numa obra tão meticulosamente certa, mas explicável, não só pelo que está acima, mas ainda por ser um dos seus únicos quadros onde há comentário e alguma preocupação mental, ele sendo um pintor tão avesso às preocupações mentais.
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Originalmente publicado na Revista Renovação, ano 1, no 1. Recife, julho de 1939.
—Vicente do Rego Monteiro
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Vicente do Rego Monteiro
O ETERNO EM ARTE
Na realidade não existe arte moderna ou antiga, existem valores eternos. Arte não é moda, nem modismo é arte. Os mestres primitivos sentiam e executavam em ritmos, em cores, em linhas e formas, e por isso o essencial permanente não envelheceu. A arte burguesa do século XX, materialista, à procura do mundo objetivo, esquecendo-se das verdades espirituais, limitou-se à procura superficial da forma, atingindo a perfeição das decalcomanias acadêmicas ou da reprodução fotográfica dos objetos. Com a descoberta da fotografia, as artes plásticas voltaram à sua justa finalidade.
O artista deixou de ser uma simples objetiva ou câmara escura e daí volta aos valores eternos e à nossa admiração pelos mestres primitivos. O que diferencia uma obra de arte antiga de uma obra de arte moderna é a qualidade espiritual. Obras de arte de autores desconhecidos, como as que hoje apresentamos aos nossos leitores, possuem os valores essenciais para ser obras de arte em todas as épocas, prescindindo de rótulos de autenticidade. Quantas obras de arte moderna, anônimas, suportariam uma tal experiência, em mercado de arte, onde unicamente os trade-mark estabelecem a disparidade de preço?
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Originalmente publicada no Diário de Pernambuco. Posteriormente republicada na Revista Região. Recife, agosto de 1948.
—Entrevista com Cícero Dias
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“É PRECISO CONDUZIR A ARTE À VIDA COTIDIANA”
Repórter Continua latente a influência da pintura francesa no Brasil?
Repórter Admite então que um pintor pode sofrer influência de outro pintor?
Cícero Não só no Brasil, mas em todos os países onde mais se tem desenvolvido a pintura moderna.
Cícero Toda a obra de um pintor é influência de outros pintores, porém não se deduza daí que um pintor deve copiar outro ou outros. Quando um Picasso é influenciado por Ingres, sabe-se quem é Ingres e quem é Picasso. Como dizia o velho Leonardo Da Vinci: o pintor não deve imitar ninguém, pois cada uma de suas obras deve ser um fenômeno da natureza.
Repórter Durará essa influência e contribuirá para a afirmação de uma arte com características brasileiras? Cícero Essa influência perdurará por muitos anos e será sempre benéfica, de vez que nenhum grande movimento artístico se objetivou alheiado das influências.
Cícero Dias
Repórter Dos pintores novos da Escola da França, qual o que tem exercido mais influências?
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Cícero Justamente Picasso. Sua obra é todo um conjunto de realizações plásticas as mais atuais. A arte que não é atual não resiste. Não há passado nem futuro em arte. Repórter Em todo esse movimento moderno de pintura, não há alheiamento da expressão poética? Cícero Não acredito. Existe em todos os movimentos, mesmo em movimentos de pintura abstrata um estado de poesia plástico permanente. Repórter Mesmo nessa pintura pura, em que a forma e a cor são os únicos elementos da valorização?
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Cícero Perfeitamente. As cores puras nunca traíram, ao contrário, são francas, foram as cores que se empregaram na grande época da pintura. Os azuis egípcios, os brancos gregos, os ocres etruscos, enfim, o homem do povo sempre usou a cor pura. Tanto estou convencido disso que nunca esqueço de levar meus quadros a Escada, na persuasão de que seu valorização cresça em contato com o povo. Repórter Os murais da Secretaria da Fazenda atendem a esse princípio? Cícero Pois não. Apenas o burguês se choca com essa manifestação de arte. É preciso, repito, conduzir a arte à vida cotidiana.
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Conferência proferida na Sociedade de Arte Moderna do Recife. Originalmente publicada na Revista Região. Recife, agosto de 1948.
—Antonio Franca
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O MODERNISMO BRASILEIRO
Apreciando o panorama histórico do pensamento brasileiro, distinguimos facilmente os reflexos dessas duas tendências, que se apresentam como duas grandes correntes: a tradicional e a modernista. Coexistem como forças em polêmica há cerca de um século, mantendo a tradicional o predomínio e levando sempre de vencida os encontros decisivos. A corrente modernista, ou renovadora, insiste em intitular-se moderna e permanece realmente atual, uma vez que não logra supremacia incontestável. Reponta com mais vigor e caráter mais amplo sempre que vence as fases de declínio. A citação de alguns nomes representativos facilitaria reconhecer a continuidade da corrente moderna, que renasce das próprias cinzas toda vez que sobre ela se ateia a ofensiva da corrente tradicional. Abreu e Lima (1796-1860), revolucionário, historiador crítico e polemista, que num curioso contraste defendeu o socialismo e advogou depois a volta de Pedro I, tornando-se um reacionário “caramuru” por exaltação populista. Tobias Barreto (1839-1889), ao qual “nem a monarquia pareceu digna de defesa, nem a república de adesão”. Euclides da Cunha (18681909), que demonstrou profunda compreensão humana ao estudar com critério científico os fanáticos do “monarquista” Antonio conselheiro. Pontes de Miranda, cuja formação de jurista-filósofo o leva a precursor da sociologia no Brasil. Fernando de Azevedo, que com seus estudos sobre a antiguidade clássica, realizados com “espírito moderno”, apareci-
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dos em 1920, iniciou efetivamente a fase atual do movimento modernista. Gilberto Freyre, que estudando a sociedade patriarcal, dividiu entre nossos antigos aristocratas e o “homem da canalha”, do povo – o negro, o caboclo, o índio – sua simpatia pelo aspecto humano dos indivíduos, oculto na condição histórica de componentes de determinadas classes. Resumindo a trajetória desta inclinação histórica para a condição e o interesse da massas populares, citaremos ainda Leonidas de Rezende, que deu à causa do “povo” total adesão. Não resta dúvida de que esta corrente acabará constituindo em completa ideologia a concepção da vida nacional correspondente às tendências culturais das camadas populares. O que a caracteriza não é simplesmente o ideal político: monarquista ou republicano. Pela forma de governo exprimiram mesmo descaso seus grandes nomes do passado. Também não é a forma ou o estilo literário e artístico o que distingue a corrente renovadora, modernista. Nuns ou noutros dos seus expoentes literários, ela pode ter sido clássico-renascentista, romântico-indianista ou byronista, simbolista-realista, modernista do após guerra 1914-1918. Nunca, porém, a forma parnasiana, a clássico-acadêmica, a verde-amarela ou futurista. O que importa sobretudo à corrente renovadora e aos seus corifeus é o povo. “A magna questão é social”, diz Tobias. Os autores mencionados ingressaram na luta política e retiraram-se dela, ou melhor, retiraram-se dos partidos existentes, porque não satisfaziam à sua concepção filosófica popular. Afastaram-se dos velhos partidos para serem os precursores do partido do povo. Seu intuito de honestos pesquisadores é – no dizer de Tobias – “incutir no povo um mais vivo sentimento do seu valor, despertar-lhe a indignação contra os opressores e o entusiasmo pelos oprimidos”. Eis aí a essência e a missão do modernismo: tomar a defesa da terra e o partido da gente que se sente como desterrada no próprio país, segundo expressão de Sérgio Buarque de Holanda, fomentando a revolução social, cujas consequências serão a promoção do homem do povo à categoria de classe dominante. Reflexos da ascendência das camadas populares na opinião nacional, os intelectuais e artistas modernistas, saídos de classes diversas, reconhecendo na causa popular e nos motivos populares mais generosos os variados fatores de criação, se colocam destarte na vanguarda da mesma, tomando seu partido nos conflitos sociais e políticos. Seguem o caminho apontado por Graça Aranha –
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outro nome que devemos incluir entre os citados, tão de perto chegado a Tobias –, que desfraldou a bandeira da luta intelectual em defesa da terra, da qual – afirmou – “se apoderam os estrangeiros”. Reivindicando ainda, como patrimônio comum a todos os povos, a máquina, único elemento capaz de armar o homem brasileiro com os recursos técnicos para vencer a hostilidade da natureza do torrão natal, cuja posse efetiva deve reivindicar com todo seu estoante nativismo. A corrente moderna surge praticamente com a desilusão da independência de 1822, feita pelos reacionários antes que os renovadores a fizessem, com prejuízo, talvez, segundo alguns autores, da unidade da pátria. Nasce da ebulição intelectual observada nos anos agitados do primeiro Reinado e da Regência. Maior impulso manifesta com o movimento da “Escola do Recife” e o movimento positivista, no Rio, com Benjamin Constant; um e outro movimentos acompanhando as conquistas sociais que redundaram na Abolição e na República. Aí se delineia o divisor das correntes modernista e tradicional: mostrando-se esta, desde então, intelectual, moral e cientificamente morta, embora praticamente dominante com o amparo das muletas que lhe tem proporcionado o apoio corrupto dos governos antipopulares, impostos ao país menos pelo desejo de suas maiorias, que pela pressão externa dos imperialismos. Esses movimentos, que José Veríssimo liga a um movimento geral, a que chama de “modernismo”, “refletiam as aspirações da sociedade em ascensão burguesa, cujas inteligências, regra geral, eram propícias às transformações que se anunciavam, e adotavam a filosofia política que as inspirava”, interpreta Hermes Lima. “A modernização, no Brasil (o que equivale a dizer a sua industrialização)”, diz ainda o mesmo autor, “convinha a todo o mundo”. Silvio Romero atesta que “positivismo, evolucionismo, darwinismo, crítica religiosa, naturalismo, cientificismo na poesia e no romance, folklore, novos processos da intuição do direito e da política – tudo se agitou e o brado de alarme partiu da “Escola do Recife”. Nasce, assim, também, a preocupação científica pela condição do “povo” e aparecem os estudos folclóricos entre nós. Entretanto é a partir do após guerra 1914-1918 que se opera novo surto deste movimento de renovação, correspondente à metamorfose econômico-social por que vem passando o país e o mundo, relacionados na história cada vez mais estreitamente ao passo que nos aproximamos dos dias presentes. Este movimento consagrado com o nome de “mo-
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dernismo” vem fazendo jus às exigências das aspirações democrático-populares de antigas raízes históricas, como temos referido na palestra anterior. Reconstitui-se o sentimento nativista com concepções mais amplas, dando conteúdo à democracia popular que delas decorrerá inevitavelmente. Nelas se realizam cabalmente as ideias de Euclides da Cunha, precursor de um “nacionalismo lúcido”, evoluindo o sentimento nativista da antiquada forma antilusista para o objetivo antifascismo. A organização política, independente, do proletariado, iniciada a partir de 1922; o movimento político militar-popular, chamado “tenentismo”; o movimento artístico que teve começo com a famosa Semana de Arte Moderna, realizada no ano citado em São Paulo; o movimento educacional chamado de “escola nova”, reiniciado com o “manifesto dos pioneiros”; o movimento feminista e divorcista pela “emancipação da mulher”; o movimento antropológico em favor do negro e do mestiço; o movimento em prol da educação alimentar e higiênica da nossa gente; o movimento dos estudantes contra o fascismo; o movimento em prol da siderurgia nacional; e ainda o atual movimento pela solução nacionalista do problema do petróleo – são afirmativas concretas deste movimento modernista de renovação. Nessas duas décadas têm tido seus altos e seus baixos. Em determinadas fases de ascensão, sentem-se reforçados e prestigiados pelos homens de ciência e estudo da velha geração que se mostram suscetíveis de acompanhar a marcha do tempo. Têm tido o apoio dos positivistas, que mantêm generosamente o ideal de republicanização da República; têm tido o apoio de liberais que se veem forçados a reconhecer a necessidade de fundir em novas formas as conquistas imperecíveis do individualismo para frustrá-las à deturpação dos interesses oligárquicos; têm tido o apoio de intelectuais católicos que, embora não admitindo o bem terreno “fora da visão espiritualista, teleológica, dos destinos humanos”, não fazem, entretanto, da metafísica cristã bandeira para sustentar a injustiça social vigente; têm tido o apoio de intelectuais protestantes, espíritas e de toda religião e credo que deseja a liberdade do próprio culto; têm tido o apoio de valores da velha guarda aristocrática, que supera os preconceitos de casta, compreendendo a transformação social inevitável, e coloca sua inteligência luminosa a serviço da construção democrático-popular. Principalmente depois de Caio Prado Júnior, temos o “fio condutor” que nos permite compreender em definitivo a formação nacional
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e seu caráter popular. Ela não é (como vimos na palestra anterior) um prolongamento da colonização portuguesa, mas uma nova sociedade que se desenvolveu em antagonismo a que aquela criou, e que dela procura se libertar, democratizando-a. Seus objetivos, tais como anunciam os atuais corifeus populares, são: a independência econômica do país e a implantação de uma democracia que institua insofismavelmente as liberdades populares. Preconizam a criação e o desenvolvimento da grande indústria e a expansão dos mercados internos. Estudam seriamente a reforma agrária, como faz Agnaldo Costa (Apontamentos para uma reforma agrária) e planejam um golpe no latifúndio em forma não muito dessemelhante a já sugerida por Rebouças ante o panorama de desorganização geral provocado pela Abolição, proclamada sem a compensação de providências essenciais de ordem econômica e financeira que não o nosso original laissez-faire. Sustentam, como Amerino Wanick, a necessidade de planejamento da política econômica, financeira e de transportes. Militam por nova orientação para o ensino, liderados por Fernando de Azevedo, insistindo numa reforma educacional, abrindo igual oportunidade para todos, projetando uma educação das massas em larga escala. Todavia, nas batalhas iniciais e sucessivas, as variadas manifestações desses movimentos modernistas têm sido reduzidas. Na luta pela afirmação cada um dos citados movimentos do complexo modernista têm sido derrotados. Têm sido derrotados porque se apresentam isoladamente. No decurso de ofensivas e resistências dos últimos vinte e cinco anos, contudo, têm evoluído. Primeiro, de um “homogêneo indefinido”, que encontraríamos talvez em Graça Aranha, para um “heterogêneo indefinido”, como diria o autor da teoria orgânica da sociedade; depois, ainda para um homogêneo definido, diferenciado, diversificado – diremos. Pois lição irresistível dos dias que vivemos é conceber valores pela imperiosa unidade que se estabelece entre o pensamento e a vida, a teoria e a prática, as partes e o todo social. As noções da cultura moderna se transmitem da vida social à consciência individual com intensidade nunca dantes experimentada nos fatos diários, nos ensinamentos vivos, contraditórios, cruciantes e iluminantes desses anos agitados de conflagração mundial. Nessa agitação provocada por violentos fenômenos sociais de guerra e após guerra, paradoxalmente vislumbramos com facilidade o pano-
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rama da vida nacional e da cultura moderna no Brasil, muito embora somente em referências incompletas e esparsas dela nos deem noções parciais os melhores autores. A prática da cultura moderna no Brasil antecede assim sua consagração literária. Acham-se os intelectuais a reboque do movimento cultural, pois um simples olhar de relance descobre prontamente as identidades gerais contidas nas diversas manifestações do “gênio” brasileiro nos “tempos modernos” e no entanto eles se recusam à sua síntese e se refugiam na simples atividade literária e artística. Contudo, Fernando de Azevedo, na sua palestra de cerca de vinte anos atrás, “O idealismo na educação nova”, fez um paralelo entre o movimento da arte moderna e o da educação nova, afirmando: “um e outro, sem nenhum plano prévio de ação de conjunto, romperam, como expressões da inquietação de nosso tempo e das forças vivas que, recusando a princípio ajuntando obra da geração presente a autoridade das gerações extintas, iniciaram desabridamente, sobretudo nas letras, a fase panfletária de crítica e de demolição. Na aparência – continua o mesmo autor – esses movimentos, no grupo de artistas, caracterizado por um sentimento mais forte de independência e de originalidade, e no dos educadores, em que se encontra mais vivo e tradicional o espírito de disciplina e de autoridade, são dois fenômenos de diversa ordem, mas na realidade homogêneos e concatenados” (o grifo é nosso). Por outro lado, Astrogildo Pereira, em trabalho mais recente, Posições e tarefas da inteligência, afirma que “tanto a Semana de Arte Moderna quanto o 5 de Julho representam, historicamente, senão cronologicamente, dois momentos decisivos, que por isso mesmo adquirem um significado igualmente simbólico”. Adianta ainda que “o paralelismo entre a Semana de Arte Moderna e o 5 de Julho não se limita à sua origem comum nem à sua significação histórica: ele continua a manifestar-se em perfeita sincronização, através das diversas etapas da trajetória percorrida por ambos os movimentos – o “modernismo”, nascido da Semana, e o “tenentismo”, nascido do 5 do Julho”. O modernismo brasileiro, isto é, os movimentos ideológicos de renovação da cultura no Brasil, continua, entretanto, um campo quase virgem ao estudo geral e à interpretação. Generalizou-se uma apreciação unilateral do movimento modernista, muito embora já Graça Aranha houvesse manifestado, no Espírito moderno, que “o movimento espiritual, modernista, não se deve limitar unicamente à arte e à literatura. Deve ser total. Há uma ansiada necessidade – observa – de transformação filo-
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sófica, social e artística”. Entretanto a literatura insistiu em limitá-lo ao movimento artístico partido da Semana de Arte Moderna. Esta [ilegível] errônea esposada por Mário de Andrade hipertrofiou a função educativa, entre nós desorganizada mas bem ampla, que exerce a arte, especialmente a literatura, que tem a gloriosa tradição de haver sustentado as grandes lutas políticas e sociais e as mais genuínas aspirações nacionais. Pode a arte obstruir a prática social e política mesmo dizendo-se social e alegando função social avançada, se permanece numa autossuficiência acreditando sintetizar toda a evolução cultural, ignorando seu justo papel de meio para a transmissão e obtenção da cultura, da qual contudo é a um tempo expressão e fator. A falsa soberania da literatura ainda hoje pode ser incontestavelmente verificada. Edita-se uma monumental História da literatura brasileira, de autoria de um grupo de notáveis escritores, contendo, para estar de acordo com a época, uma introdução sociológica. Tão ilustres autores nos poderiam dar, com a colaboração de outros especialistas, uma história geral da cultura no Brasil, tarefa que ensaiou com feliz sucesso Fernando de Azevedo em seu livro A Cultura Brasileira, seguramente o mais útil e erudito de quantos já se escreveram sobre nosso povo e nosso país. Todavia em virtude de obedecer o plano da obra a critério clássico, por ser livro oficial que serviu de introdução aos resultados do Censo de 1940, fugiu o autor à concatenação dos fenômenos culturais, evitando as interpretações sobretudo no tocante às manifestações culturais modernas. Mas, voltando ao nosso modernismo, carece repetir que o movimento iniciado ou prosseguido barulhentamente com a famosa Semana, concomitante com a irrupção do movimento revolucionário “tenentista”, deflagrado pelo não menos famoso “discurso dinamite”, pronunciado no Clube Militar no mesmo ano, e pelo levante do Forte Copacabana, é apenas uma das diversas manifestações do fenômeno de renovação ligado ao passado através de precursores caracterizados e com raízes na formação popular do país. “Tenentes, já em sua época” – diz Carlos da Costa Leite – “foram Abreu e Lima e Euclides da Cunha, precursores do socialismo no país, aquele escrevendo, em 1855, o primeiro livro publicado no Brasil sobre o socialismo, este defendendo essas ideias em Contrastes e confrontos”. Refletem essas manifestações, como as demais já referidas acima e outras que poderíamos ainda citar, rompidas nos vários setores da vida
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nacional precisamente a começar a segunda década do século, mais profundas transformações econômico-sociais operadas no mundo, significando no país a ressonância da revolução social, como nota Virgilio de Melo Franco, no seu livro Outubro – 1930. As similaridades das expressões do modernismo nas diversas facetas da vida brasileira – na educação, na arte, na política, na história, na economia, no direito, na ciência, na filosofia, na religião mesmo – dizem respeito, em síntese, ao traço comum de movimentos renovadores, apresentando caráter libertário e popularesco. São expressões nas quais se observa a tendência de se penetrarem a um tempo personalismo e humanismo, individualismo e coletivismo, nativismo e internacionalismo, regionalismo e universalismo. Distingue-se que seus autores procuram ensaiar um novo método, o objetivo, o experimental, para a realização artística, a interpretação da vida social e a ação prática. Tais movimentos emergem como germes virulentos de nova concepção cujo conteúdo se desenvolve e adquire forma no desdobramento da luta popular contra a velha concepção da vida patriarcal, representada pelos círculos intelectuais dominantes. Mas provocam e arrastam, ao mesmo tempo, tendências reacionárias que procuram deformar o sentido da onda libertadora. Não encontrando todavia correspondência e estímulo no ambiente progressista, essas tendências passam a chamar-se “futuristas”, da mesma maneira que Mussolini, já derrotado, procurou durante breves dias consolar-se com a esperança na vitória de Hitler, sustentando que “o fascismo seria o regime do futuro”. Daí, o movimento modernista, de genuína base popular, libertário e nativista, haver suscitado o “verde-amarelismo” e outros nítidos movimentos de conteúdo reacionário. Daí, a confusão que se faz geralmente entre o autêntico modernismo, cujo sentido é o da libertação da forma acadêmica pela renovação do conteúdo que, por sua vez, tomará novas formas, e o movimento de deformação para esconder e preservar a natureza reacionária do velho conteúdo com a roupa dos tempos. A este falso modernismo chamamos “futurismo”. Tem acontecido, todavia, mais de uma vez, passar o mesmo autor, artista, político ou educador, por oportunismo, conveniência, indecisão ou necessidade, de uma corrente para outra, conforme prepondera uma ou outra tendência no decurso desses anos de luta acesa. Devemos, pois, nos ater aos fenômenos e não isoladamente aos homens, reflexos daqueles para seguir o curso do movimento modernista, encontrar seu sentido e suas finalidades.
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Escritos do século XX
A velha concepção da vida patriarcal e da vida burguesa rural formadas no passado colonial, no norte açucareiro e no sul cafeeiro, tem vestido roupagens novas para adaptar-se aos tempos e tentou se estratificar no despotismo getulitário chamado Estado Novo, que a linguagem popular chamou simplesmente de fascismo brasileiro. Ainda após a redução deste famigerado “Estado forte”, se acoberta na “ditadura constitucional” do antigo “condestável” do Estado Novo. A concepção modernista da vida social, cuja formação nasceu no após guerra 19141918, de embrião secular, surgiu na ofensiva, demolindo, mas houve por bem passar à resistência nos anos anteriores à última guerra, enquanto o tradicionalismo colonial, revivendo suas esperanças de sobrevivência na apregoada supremacia milenar do Eixo, passou da reação à ofensiva fascista até se desvanecerem seus delírios com a conquista de Berlim pelo Exército Vermelho. O modernismo brasileiro é, assim, a concepção democrático-popular da vida nacional que se forma e se completa na luta contra o fascismo. Para compreendermos esse movimento de renovação da cultura brasileira, devemos situá-lo no quadro universal dentro do que adquire os aspectos peculiares à nossa formação social própria, presa à terra, à região e sobretudo a condições étnicas e econômicas especiais. Devemos situá-lo dentro do panorama mundial da cultura, porém atendendo à natureza da evolução desigual e mesmo paradoxal de nossa formação em relação ao desenvolvimento da cultura nos povos do ocidente e do oriente, dos mais adiantados dentre os quais recebe contudo influxos de progresso e meios de emancipação. Esses influxos vingam, com um já clássico retardamento, quando encontram a formação social em condições de assimilá-los, estimulando o florescimento das renovadoras. Vejamos, pois, os traços gerais da civilização moderna, dentro da qual ressona nosso país. Civilização moderna Ligados ao mundo ocidental pela formação e pela cultura, somos obrigados também a reconhecer que “nossa história – a história do ocidente – em sua mais profunda unidade, desde que sai dos limites de um país determinado e nos inscreve como um membro de um amplo círculo, começa com a aspiração dos gregos” – adverte Werner Jaeger. As ciências que se foram constituindo definitivamente a partir do Renascimento,
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com Francis Bacon, Giordano Bruno, Copérnico, Galileu, Newton, Lavoisier e a plêiade cada vez mais numerosa e universal dos seus continuadores, foram ensaiadas pelos gregos da antiguidade. Da antiguidade é quase toda a formação das matemáticas. Compilaram decerto os helênicos conhecimentos anteriores de persas, egípcios, caldeus, babilônios e assírios, mas é ao seu gênio que se deve a ciência antiga. Aristarco houvera proposto o sistema heliocêntrico retomado por Copérnico. Heráclito, segundo o qual “tudo é movimento”; Demócrito, cujos livros foram destruídos durante a Idade Média; Leucipe e Epícuro, que consideraram a composição atômica da matéria – lançaram na combinação geral das ideias chegadas até nós nos fragmentos e citações de suas obras, as comprovadas teorias da atual físico-química. Na estética, tanto quanto poderia avançar uma civilização nos quadros escravocratas da vida antiga, avançou a helênica. São esses conhecimentos sabidíssimos, mas teremos sempre que repeti-los toda vez que procuramos compreender os tempos modernos. Temporariamente, a história se havia separado em duas direções: ocidente e oriente. Da Grécia parte para o Mediterrâneo, para a Europa, para o Novo Mundo. Mas os gregos já tinham sido, parcialmente, precedidos por fenícios e tiveram nos persas e egípcios seus ascendentes diretos. Entretanto a civilização espraiara-se de tal modo que perderam o contato os dois extremos do mundo. Durante séculos, somente de forma precária, conservaram-se tênues ligações entre o ocidente e o oriente. O Renascimento repõe os dois “mundos” em intercâmbio. Verifica-se então o relativismo das expressões “civilização ocidental” e “civilização oriental”, as quais numa evidente intenção imperialista, são ainda hoje colocadas em antagonismo irreconciliável. A junção dos dois “mundos” em “um mundo só” foi tentada repetidas vezes. Não a conseguiram os árabes com seu “império dos caminhos de caravana”, que ia do Índico ao Atlântico, do Irã à Ibéria, barrados na França, em 732, por Charles Martel. Não a conseguiu o “império dos caminhos terrestres” de Gengis Khan e seus sucessores, entre os quais, Kublai que, das bordas do mar Negro, enviou uma missão ao Papa, em 1298, com o intuito de provocar um entendimento entre o império mongol e a cristandade ocidental, “missão que a encontrou sem Papa, e engalfinhado o papado numa das frequentes disputas de sua história em torno da sucessão”. Não a conseguiram também os “impérios coloniais dos caminhos marítimos dos tempos modernos, sobretudo o português e o inglês, que se mos-
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traram incapazes de efetivar a conquista e a ocidentalização do oriente. Mas essa junção dos dois “mundos” realiza enfim a civilização contemporânea, graças aos possantes fatores de intercomunicação dos povos e das ideias e de interpenetração das culturas, [ilegível] por toda a parte os ideais democrático-populares; graças sobretudo à evolução cultural dos mais adiantados, que põem a cultura a serviço de um humanismo libertário. E – adverte ainda Jaeger – a raiz de todo humanismo está no ideal cultural grego”. O principal fator de junção dos dois “mundos” é desempenhado visivelmente nos dias que vivemos pela União Soviética, constituída por uma união de repúblicas, de povos semiocidentais de semiorientais. Geográfica e politicamente, representa verdadeiro travessão e fiel da balança cujos pratos são o ocidente e o oriente. O primeiro até então pesando mais e o segundo ainda pela metade em regime colonial, porém, contendo valores, quiçá, mais preciosos. Pela primeira vez na história as conferências realizadas em Moscou, em 1944, chegaram a acordos entre potências de um e de outro no mesmo pé de igualdade. De Teerã, na velha Pérsia, centro dos dois “mundos” e ponto original, talvez, das mais antigas civilizações, partiram as decisões mestras que conduziram à liquidação do Eixo fascista e à preparação do novo mundo contemporâneo. A histórica hegemonia do mundo ocidental, gabada pela aristocracia ocidental e desprezada sem dúvida pelos orientais, decorre de sua primazia na industrialização. Mas devemos recordar que são asiáticos os impulsos reiniciais da técnica, estagnada desde o declínio da antiguidade (assinaladamente desde os tempos do imperador Vespasiano), notados no Cáucaso em plena Europa medieval, segundo Lefebvre di Noettes. E também que certos inventos altamente responsáveis pela civilização moderna foram apenas “melhor” utilizados pelos europeus, tais como: a pólvora e a bússola (usadas pelos chins com prioridade de séculos e introduzidas na Europa pelos árabes e gregos do Baixo Império), e a própria imprensa (xilografia). A indústria fabril decorre do desenvolvimento universal da técnica; não é invenção de um só ou determinados povos. Muito embora, certos países da Europa – mas somente graças àquele concurso geral – tenham com antecipação alcançado nela um grau superior de adiantamento. Entretanto, os Estados Unidos, cuja história inicia-se no século XVII, são hoje uma grande potência industrial, a maior. E o Japão, iniciando sua
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história alguns séculos apenas antes da americana, aprendeu tão bem a metalurgia quanto os países dos nórdicos dolicocéfalos, que, aliás, não são dolicocéfalos, de acordo com Marcel Brenant, mas mesocéfalos. O fato de limitar-se ainda em nossos dias a grande indústria a determinados países resulta antes de uma oportunidade histórica que lhes foi favorável – transformada por um efeito político-social em pretensão imperialista de superioridade, consequentemente de raça – do que de possuírem tais países homens mais cultos e matérias-primas essenciais, tais como combustível e minério, sem se acharem sujeitos à sua importação, o que, todavia, aplicado a rigor, não é verdadeiro para país algum. É, pois, simples manejo imperialista, grato aos “reis” da indústria, proclamar um país para sempre essencialmente agrícola ou exclusivamente mercantil. A civilização moderna se caracteriza rapidamente porque a história humana está realizando um grande “salto”, que “não é (segundo Lênin) uma mudança automática, operada em tal dia e hora; mas todo um período de luta intensa”. Em profundidade a história contemporânea percorre aos nossos olhos estonteados milênios no período inferior a uma vida humana. Esta altura compreende, em síntese, as idades do mundo na idade de um homem: da barbárie dos salteadores primevos ao humanismo do século XX – do fascismo, monstruosa expressão de um passado moribundo de “despotismo, escravidão, opressão e intolerância”, à democracia moderna, síntese da luta do homem pela liberdade. Seguramente podemos afirmar que, nesse pulo, o mundo atingirá depressa o limiar de uma nova era. A arte moderna, como a filosofia e a própria cultura, reflete esta conjugação de idades e de estilos para que marchou sua evolução global, que se há de completar nos anos próximos futuros em pleno “século do homem do povo”. Esta tendência artística, este movimento pela concepção popular da arte, marcha abandonando gradualmente suas expressões de simples emoção estética de mal-estar social, de angústia lírica, para tornar-se drama coletivo, meio consciente de luta social, instrumento de renovação e construção da cultura com o domínio de si mesmo, de sua técnica experimental e do mundo popular que está ajudando a criar. O movimento artístico, como o social, vem se integrando em verdadeiro movimento cultural humanista, adquirindo compreensão dessa volta
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à estética grega que se inicia no Renascimento com o retorno não aos cânones clássicos, mas ao seu sentido ideal, humanista. Não para uma imitação servil, como fizera em parte o mesmo Renascimento, mas para dar-lhe também o conteúdo moral que esparramou pelo ocidente o idealismo cristão e a força social moderna. Voltado para esse humanismo total, o modernismo assenta raízes na terra, na região, como na história. Procura sua forma nacional, regional. É popular, mas também herdeiro das culturas tradicionais aristocráticas e burguesa. A tradição popular dá-lhe conteúdo e sentido; a região, forma e vigor. “O modernismo não poderia dispensar o patrimônio artístico que lhe lega a evolução histórica se quiser tornar-se um verdadeiro estilo, um estilo acabado” – advertiu há muito um modernista. “O idealismo do Século XX encerrará numa síntese superior” – diz-nos já em 1908 o professor Zulueta – “o ideal helênico e o ideal cristão – sem prescindir de outros elementos especificamente modernos”. Diríamos: o ideal cultural grego, a ética cristã original, mas sobretudo a ciência e a técnica contemporâneas e o ideal popular. O Olimpo e o Céu, confundidos na Terra e no Homem pela civilização, numa paz duradoura. A civilização contemporânea, mantidos nas suas formas e limites as culturas regionais e os caracteres tradicionais dos povos – é universal. Seu conteúdo tende a ser o humanismo total realizado pelo materialismo dialético. Civilização cristã, a rigor, é a medieval, especialmente a daqueles séculos em que a Igreja, na Europa, reunia todo o corpo social. Para o Brasil, na atualidade, a expressão civilização cristã designa na realidade uma tradição colonial portuguesa. A formação nacional do Brasil, ao contrário, está ligada àquele amplo e histórico processo de elaboração de uma cultura democrática, cujos traços cosmopolitas assinalamos. Concluindo, podemos adiantar, baseados nas repetidas esperanças que têm manifestado no decorrer da história moderna as tendências democrático-populares, que nada impedirá a humanidade de viver nos anos futuros “o belo sonho da vida” que – no dizer de Goethe – “entre todos os povos sonharam os gregos”. Todavia a causa popular tem ainda a vencer poderosos obstáculos. Estilo moderno Síntese dessa evolução da cultura, qual o característico mais geral que
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tende a adquirir o modernismo como estilo de vida e de arte? Se não nos iludimos, a simplicidade ideal aliada à fidelidade ao real como expressão da sociedade e da natureza interpretadas por uma concepção popular realizada em nossos dias pelo universal processo de formação da cultura. Evoluindo, depurando-se, realizando-se, o modernismo afigura-se-nos um naturismo que se imbuiu das novas descobertas científicas, que se penetrou de uma concepção objetiva da natureza e serve-se do método experimental nas suas composições, realizando-se com caráter popular. No aspecto regional e nacional, diríamos que é o bairrismo e o nativismo que se politizam, humanizam, universalizam-se. Seu traço saliente é sua inclinação à expressão da vida popular, confiante na predominância provável da sociedade popular sobre as expressões aristocráticas e individualistas. Gerado nessas, delas se separa, procurando os rumos das novas tendências sociais. Porém, caracterizando-se, propende, mais consciente de sua superioridade, a assimilar as conquistas e os valores históricos e artísticos daquelas, adquirindo a certeza de sua futura superioridade pelos resultados que obtém na tarefa de edificação da cultura popular. Relatando, numa conferência, pronunciada em Belo Horizonte em 1944, as pesquisas e as atividades dos nossos artistas modernos, disse Santa Rosa que “tudo têm revolvido: toda a cultura grega, todos os processos usados na Idade Média, a maneira dos mestres do Renascimento – tudo têm estudado e o que estava esquecido reabilitado”. Todavia, a simplicidade ideal e a fidelidade ao real não são desideratos buscados pela primeira vez, porém o mais generalizado objetivo de perfeição estética da arte antiga e moderna, do clássico de todas as épocas, isto é, da arte nas épocas de plenitude, de apogeu, de síntese: da arte grega como da gótica, da renascentista como da romântica. Não da arte dos períodos de decadência, como, por exemplo, o alexandrinismo, o barroco, o ultrarromantismo. Revela-se a tendência para atingir aquele objetivo clássico de perfeição, com maior ou menor êxito, numa sociedade de costumes elegantes; numa sociedade que pareça aproximar o homem de sua humanização; numa sociedade que tenda ao progresso. Não numa sociedade de costumes preciosos e corrompidos; não numa sociedade que arrasta o homem a uma maior alienação; não numa sociedade que tenda à regressão. Por isso seria ridículo o menosprezo pelo estudo da arte clássica, seja ela greco-romana, gótico-medieval, renascentista ou romântica. No ocidente (escusamo-nos por ignorância de mencionar o orien-
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te), a arte moderna não está ainda tão próxima de suas obras acabadas, como algumas composições e certos autores nos dão a impressão; mas caminha evidentemente para a descoberta e realização das formas – naturalmente não encontradas antes de saturado o conteúdo – que ficarão imortais como representativas do grau de cultura atingido pelo homem nesta era popular vislumbrada e que encerrará as expressões aristocráticas e burguesas como conquistas da evolução histórica, ultrapassadas pela aquisição de valores modernos. As obras-primas desta era serão formidavelmente superiores às do passado, do mesmo modo que o exército mecanizado é superior aos de Alexandre, Carlos Magno, Carlos V, Napoleão e Foch; do mesmo modo que a democracia popular socialista é superior à democracia ateniense escravocrata, à respublica christiana servil medieval, à liberal individualista burguesa. Entretanto aquela simplicidade de sentimento e aquela fidelidade à vida tendendo ao ideal que exprime a beleza grega em forma tão completa; aquela alegoria mitológica e pastoral dos mordazes humanistas e naturistas, que traduz o despertar abrupto da alienação medieval, ao retirar o homem a cabeça das nuvens trevosas do feudalismo, pisando a terra fecundada pelo renascimento da antiguidade clássica – não parecem ultrapassadas pelos artistas modernos, mas se-lo-ão indubitavelmente. Porque estes dispõem de novos métodos relacionados com o progresso da ciência, além de infinitas possibilidades técnicas. Métodos decorrentes de novas teorias sociais de ação prática, que possibilitam à moral uma oportunidade de realização positiva e universal. Na antiguidade, a aspiração de alcançar a plenitude da vida e a perfeição da forma, ante a impossibilidade de serem atingidos os ideais éticos, através da pragmática social e política, numa sociedade escravocrata, deriva sempre para o domínio da estética, ficando a moral no campo das especulações e das tertúlias filosóficas em que, por exemplo, se situava Cícero motejando das presunções moralistas de Catão. A estética estava desprovida do vigor que lhe infundiria um humanismo integral. A perfeição clássica, saturada de ideal humanista, está assim privada de força social. Entretanto, refletindo uma aspiração humanista, é um modelo ideal, cujo estudo em vez de ser desprezado (embora, sim, sua imitação), deve ser repetido e prolongado. Desta forma procedendo, os modernos poderão se corrigir de muitos defeitos e sem dúvida da jacuteia pueril que se inocula nos autores e compositores principiantes. Tomemos um exemplo da literatura clássica para sumariamente
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aquilatar seus valores em face das obras modernas. Apesar de situar-se já num período de decadência, em nenhuma outra obra antiga nos parece mais palpitante a naturalidade em descrever a vida social em consciente superação dos preconceitos da época que no Satyricon, de Petrônio. Esta novela sem igual tem do modernismo a especialidade de imortalizar, na prosa literária e no verso, a linguagem do povo, suas concepções, a expressão de sua vida cotidiana, o próprio calão dos seus vícios, sem que a preocupação moralista ou o mais leve indício de tom panfletário (embora as considerações filosóficas e as supostas alusões políticas do Banquete de Trimalcião), não sejam admiravelmente envolvidas pelo gênio artístico na forma mais bem acabada de uma sátira menipeia, mista de conto milésio, apesar do acentuado realismo com que é descrita uma sociedade corrompida. A preocupação moralista e a finalidade política estão aí desfiguradas, dissolvidas completamente na obra de arte, tal como nas composições modernistas a significação humana da causa popular deve estar dominada pela sublimação estética para que se obtenha autêntica obra de arte moderna. A consciência de uma sociedade superior, de que é arquiteto o modernismo, não poderia encontrar-se num autor romano dos primeiros anos de nossa era. Uma noção original e refinada do belo, ao mesmo tempo aproximada do sentido popular da vida, eis o que reflete uma obra como Satyricon, composta numa fase em que a sociedade romana se democratizava e era corrompida pela autocracia dos Césares (regime que se moldava pelos exemplos orientais para evitar a queda do mundo escravocrata), sem esperanças de atingir uma república igualitária ou mesmo a volta ao ideal republicano que inspirara revoltas e conspirações sucessivas, e avançava paulatinamente para a decomposição social. Satyricon não deve ser julgado somente pelas traduções de traduções que se divulgam entre nós. Do próprio original chegou-nos apenas uma parte, ainda assim mutilada e interpolada, e é de admirar-se que algo dessa obra imorredoura haja escapado à destruição a que votaram os cristãos medievais à maioria das obras antigas. Entretanto é no tema “amor” – a maior fonte do prazer e da alegria – em que a superioridade dos clássicos ainda se destaca. Claro que não nos referimos aos imitadores dos clássicos, os acadêmicos de hoje, que levam sobre aqueles a vantagem dos atuais recursos técnicos. Todavia essa vantagem torna-se absolutamente insuficiente para compensar a insensatez que demonstram como obstinados imitadores ante a evidên-
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cia da superioridade dos fatores modernos. Exige a obra de arte que o artista tenha compreensão adequada da época. A obra de arte deve transmitir a cultura do século para que mereça tal nome e ganhe a imortalidade. O bom artista é antes de mais nada um homem culto. De igual modo se entende deva sê-lo o que apreciar a obra de arte, o que leva Santa Rosa a afirmar em sua palestra citada que “a arte não é popular, muito embora o artista deseje interpretar o sentimento coletivo...”. Todavia deixou ele por concluir que a obra de arte – como fator educacional – concorre à cristalização da cultura na consciência das massas. Naturalmente a vantagem dos antigos para celebrar com arte seus sentimentos de amor e contentamento se explica pelas agitações da atualidade que denunciam, com dores de um parto, o nascimento do mundo popular. O artista moderno só pode sentir, cantar e representar angústias para ser fiel ao tempo. Porém pode juntar ao espírito de suas obras fundadas esperanças de uma vida em sociedade menos sofredora. A intensidade com que certas obras modernistas, certos artistas modernos, exprimem essas angústias e essas esperanças, demonstra sobejamente a exuberância com que há de amar e como há de ser feliz o homem no mundo de paz, livre da necessidade e do medo, que constroem os partidos populares em toda a parte, sustentando uma luta bifronte de edificação da democracia popular nos respectivos países e de destruição do fascismo internacional. Os romanos não tinham motivo para pensar na “salvação dos povos”, próxima ou remota, terrena ou celeste. Neles o amor absorve o vigor das paixões, as forças da vida. Estóicos ou epicuristas, jamais consideraram os defeitos e os vícios, muito menos as funções da vida e os prazeres humanos – a força, o amor, a riqueza – suscetíveis do castigo eterno que o triunfo de uma “moral de escravos” (expressão de Nietzsche) disseminou pelo ocidente. Gregos e romanos desdobravam suas emoções ao máximo e ao extremo, mas tinham os pés sempre assentados na terra e as vistas voltadas apenas para a sociedade dos seus concidadãos. Amaram e cantaram o amor e a glória do mesmo modo que exerceram o poder e praticaram a guerra, sem derivar parcela da intensidade com que estimavam tais virtudes dignas de homens e deuses, para um amor e uma felicidade celestiais em troca do sofrimento e da privação. Sua religião eram emoções vitais; o culto dos prazeres e da pátria, o mais sagrado dos ritos. Do Satyricon poderíamos extrair os seguintes versos de viva atuali-
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dade, nos quais o autor alude e responde às objurgatórias que lhe fariam de empregar a linguagem do povo na obra literária, para colocá-los no vértice de obras modernas: “Quid me spectatis constricta fontes, Catones, “Damnastique novae simplicitatis opus? “Sermonis puri non tristis gratia ridet, “Quodque facit populus, candida lingua refert...” cuja tradução é mais ou menos a seguinte: “Por que me olhais com fronte enrugada, ó Catões! E condenais minha obra porque é de uma simplicidade nova? Uma graça sem tristeza sorri no estilo puro e uma inocente linguagem exprime os costumes do povo...” Artista e político (o senso total do romano jamais discutiu a concepção deformista que presume desligar a arte da política e a política da vida individual), Petrônio parece viver seu mundo estético, realizando-o muito embora em conflito com a bestialidade da ordem dominante ao arbítrio da autocracia cesárea, chamada contudo República Romana. Feito cônsul, pretendeu usar o poder com invulgar capacidade. Projetando sua personalidade de artista na vida pública, dir-se-ia que procurou adjuntar ao Estado, na falta de outros ideais, um senso de estética. Sofreu o revés, naturalmente, pondo em maior relevo a monstruosidade do despotismo. Sua atitude conciliatória – tentativa do mais tolerante dos romanos (e aí descobre-se sua inclinação popular), de harmonizar o despotismo como realidade com a imperativa precisão de conservar os homens com vida para que a sociedade continuasse existindo com a alternativa de tornar possível uma existência suportável – fracassou inteiramente. Não pôde manter, como os modernos, a esperança de ver o homem livre dos regimes despóticos e dos Césares (não se confunda os Césares antipopulares com o popular Júlio César), nem o pretendeu. Quando se sentiu perdido, por não compactuar com o mau gosto da corte de Nero, antecipou-se à condenação por crime de lesa-majestade, dando-se a mais célebre das mortes. Não tomou a atitude passiva, declamatória, dos estóicos (leia-se em Tácito, Annales, Liv. XVI, admitindo-se, como o fazemos, sem existir contudo prova concludente, que o autor de Satyricon seja o mesmo personagem). Permaneceu o mesmo até o último instante, privando seus inimigos da satisfação que experimentam os crápulas em causar e assistir o sacrifício daqueles a quem invejam.
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Quando os modernos se libertarem do sentimento romântico, experimentarão com mais intensidade e consciência que gregos e romanos o gozo do amor e da felicidade. Referindo-se ao poeta Georges Werth, disse Engles: “no que Werth foi moderno, no que ele ultrapassou Heine (porque era mais sadio e mais verdadeiro que este), no que só foi ultrapassado na literatura alemã por Goethe, foi na expressão de uma sensualidade e de apetites carnais sadios e robustos”. Werth era um poeta moderno, do proletariado. A possibilidade de humanizar a vida social, de humanizar o Estado; a possibilidade de suprimir as causas da opressão e da necessidade – eis a superioridade do modernismo sobre o classicismo greco-romano. É a superioridade da ética moderna, do humanismo total sobre a estética e a filosofia antigas. É a superioridade da ciência e da técnica modernas, que libertam o homem, confirmando o ensinamento de Aristóteles de que a escravidão só seria dispensável quando o homem houvesse criado “máquinas-escravos”. É a superioridade de um mundo de nações unidas, construído na luta pela democracia popular, sobre um mundo de opressão de classe em intermitentes guerras de impérios pela hegemonia. Referindo-se à antiguidade clássica, disse Fernando de Azevedo, numa palestra sobre a missão da universidade, que “não podia deixar de fazer uma evocação do passado, numa época em que os homens, dissimulando às vezes sob a máscara de novidade o que há de mais antigo, se presumiram capazes de tirar as coisas do nada, esquecidos de que a humanidade é feita mais de mortos do que de vivos, e que é no seio do passado, tantas vezes esquecido e renegado, que se gera a nova civilização”. “Sem a escravidão antiga, não teríamos o socialismo moderno”, acentuou Engels, e num artigo datado de 1931, Anatoly Lunacharsky escreve que “o caminho que seguimos não é senão aquele que levará a humanidade a uma Grécia clássica nova, desta vez universal, mundial, construída sobre a técnica da ciência e da máquina”. Nosso modernismo literário Adequado ao sentido universal de cristalização – pela ciência e pela técnica modernas, pela eletricidade e pela máquina – das culturas regionais e do caráter popular, num mundo provável de nações unidas em paz e cooperação, que é o traço geral do modernismo ou da cultura moderna, o modernismo brasileiro será a realização do nosso ideal nativista.
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Refletiu-o, no passado, um Gregório de Matos, que sozinho valeu uma escola e um movimento literários. Exprimiu-o o arcadismo dos poetas da Inconfidência em seus sonhos libertários. Realizou-o na forma “indianista” o harmonioso Gonçalves Dias, após deslizar o ideal nativista no byronismo de Álvares de Azevedo que, em momentos de exaltação patriótica, como “Pedro Ivo” ou algumas estrofes de “Um Canto do Século”, se eleva ao lirismo romântico ao poema nacional. “Meu sonho foi a glória dos valentes, “De um nome de guerreiro a eternidade “Nos hinos seculares: “Foi, nas praças de sangue inda quente “Desdobrar o pendão da liberdade “Nas frontes populares”. Depois de glorificar-se na poesia gongórica de Castro Alves, o ideal nativista, profunda tendência ideológica de nossas camadas populares, não chegou todavia a completar-se na insula “poesia científica” preconizada pelo grande Martins Júnior, passando do realismo ao ceticismo parnasiano, cuja decomposição serviu de esterco ao renascimento lusitanista. Nosso modernismo literário reinicia-se em resistência ao academismo conservador, lusista e dissolvente que ganhara ascendência na própria Academia mal se fundara. Literariamente menos oco que o arcadismo dos Esquecidos, Renascidos e Felizes, o academismo deste século não possui sequer a apagada significação social que, apesar do caráter bajulatório escancarado, tiveram as famosas academias do Século XVIII, refletindo esporadicamente anseios locais em roupagens de barroca literatice, numa época em que foi mais cúpida a exploração colonial e mais cruenta a dominação da metrópole portuguesa. Assinalada também como um bafejo de manobra autista do café, a Semana de Arte Moderna, já referida, marcou o renascer gritante de novo surto nativista em literatura, música e artes plásticas. Reflexos de mais profundas e nem sempre visíveis mutações sociais, econômicas, históricas, que costumam antecipar-se aos movimentos políticos, as manifestações estéticas surgiram naquele ano de 1922, fecundo em irrupções revolucionárias, concomitantes com outras manifestações ideológicas de ordem política. Delinearam-se posteriormente os rumos
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ideológicos da formação cultural do país. No Império, como assinalamos na palestra anterior, quanto na República, as diretrizes da formação política e cultural, o gosto literário e artístico, as preferências da opinião foram controlados pelo escol da sociedade tradicional, apesar do acentuado declínio dessa sociedade. Não ocorre este fato exclusivamente de as reformas constitucionais, como a Independência em 1822 e a República em 1889, terem sido precedidas de realizações e mudanças sociais fundamentalmente importantes – a transmigração da Corte para o Brasil, em 1807, e a abolição da escravatura, em 1888 – as quais realizadas sob a premência de fatores internacionais, permitiram às classes dominantes [ilegível] as de acordo com seus interesses [ilegível] formando-lhes a natureza progressista. O caráter quase antirreformista e contrarrevolucionário da Monarquia e a sabotagem que sofreu a República com o desprestígio de Benjamin Constant, o que equivale a dizer apenas fundada, deram oportunidade a que as elites tradicionais mantivessem sua supremacia. As mencionadas reformas foram empreendidas por conservadores receosos, representando os interesses de classes satisfeitas, em cada uma das duas épocas – os senhores de engenho do nordeste e os fazendeiros de café do centro-sul – sob a pressão de forças sociais progressistas, porém economicamente débeis para efetuar a revolução liberal-industrial, liderando as camadas populares. A mistura de raças, o entrosamento de sistemas sociais e econômicos diversos, a simultaneidade de épocas históricas – característicos da colonização e da formação do país – determinam e provocam, nos momentos críticos da história, múltiplas e contraditórias ideologias. Debalde as elites progressistas procuram interpretar e dar forma às aspirações gerais, sobretudo às do povo das cidades, por meio de suas concepções liberais e individualistas. As classes rurais, tradicionalmente dominantes, ligadas aos mercados europeus, através de Portugal e Inglaterra, para o escoamento dos seus “produtos reis” – açúcar, ouro, café, borracha... – estão aliadas de longa data, em caráter permanente, por laços econômicos e culturais, aos comerciantes e banqueiros desses países e outros e, posteriormente, dos Estados Unidos, cujos governos, por sua vez, as sustentam, diplomática, política, financeira e militarmente, a conservarem o poder dentro do país contra a oposição progressista popular. Nesse cenário econômico-social, que temos sucintamente esboça-
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do, cujas contradições se agravaram com as consequências da guerra interimperialista de 1914, ressurge o movimento modernista, isto é, a antiga tendência ideológica nativista, renovadora e revolucionária, a qual, como vimos, vem brotando da evolução social das camadas populares, presa às raízes do Brasil plantadas na terra, desigual em face da evolução cultural dos demais países, mas sob os influxos predominantes no mundo. O ideal nativista, entretanto, foi e tem sido reformado, com o propósito de absorção, pelo clericalismo missionário e pelo arianismo lusitanista, do mesmo modo que o nacionalismo pelo fascismo. Nossa história está cheia de manifestações deformistas do nativismo. Citaremos, como exemplos, o Sepé com suas legendárias façanhas em defesa do território das Missões; o “brasileirismo puro e integral” dos próceres da revista Brazilea; o fascismo indígena de Plínio “anauê”. O nativismo justo tem seus precursores assinalados. O modernismo será sua realização cultural; a democracia popular, sua constituição política. A liderança do modernismo de após guerra 1914-1918 por intelectuais emancipados pelo conhecimento pessoal do meio europeu não envolveu apenas a provocação de precipitar, absorver e controlar a revolução ideológica que despontava nos jovens. Graça Aranha, ligado à velha “Escola do Recife” e, assim, aos “modernistas” de fins do Império, volta a agitar o problema modernista num ambiente que havia sepultado o velho “modernismo evolucionista” – na Academia. Procurou forçá-la a uma decisão antes que o surto modernista, que se achava latejante entre os moços, acabasse por suplantar o mundo intelectual e acadêmico – as velhas elites. Seria naturalmente ineficaz sua tentativa de readaptar as concepções estéticas de mentalidades anacrônicas, acadêmicas, à nova realidade social e ao espírito da época; de realizar uma “revolução melancólica” nas inteligências antes que a nova geração empreendesse um movimento que aquelas não mais poderiam absorver. Graça Aranha e Paulo Prado, duas expressões típicas e os maiores desse esforço de readaptação dos mais velhos ao espírito do tempo, em nossa história literária, indicam a continuidade da evolução ideológica das camadas populares, para as quais propendiam. O primeiro, com O espírito moderno acredita e desilude-se – senão quanto à reforma do academismo, mas dos acadêmicos. Paulo Prado, que nos deu o melhor Retrato do Brasil, sinceramente progressista, ligado intelectualmente a Capistrano de Abreu, como Graça Aranha a Tobias Barreto, crê na reforma dos aristocratas, porque antevê a democra-
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tização da aristocracia. O acadêmico (Graça Aranha é fundador da Academia) e o aristocrata (Paulo Prado é de tradicional família) mostraram pelo exemplo – um com sua concepção estética da “Unidade Infinita do Todo Universal”, o outro com o “Ensaio sobre a tristeza brasileira” prevendo que “a Revolução virá de mais longe e mais fundo” – que acadêmicos e aristocratas podem e devem modificar suas concepções passadistas, ultrapassando os limites da ideologia de uma casta que desaparece, acompanhando o espírito do tempo. No autor de Estética da vida se acham os germes do modernismo atual. Encontram-se na sua obra as tendências contraditórias desenvolvidas a seguir, partindo desse “homogêneo indefinido” que é a concepção confusa do Canaã, indo resultar no “heterogêneo” definido, que são as diversas tendências “modernistas”, distribuídas da “extrema esquerda à extrema direita”, como historiou Menotti Del Picchia, “modernista” (ou antes futurista...) da direita, hoje membro da Academia. Os “modernistas” da direita entram sem dificuldade para a Academia; os da esquerda continuam a lutar pelo modernismo, pela emancipação de nossa cultura popular. Para permanecer leais a esta devem pugnar pela reforma da Academia. A ideologia modernista do nosso homem do povo, tornada cultura brasileira como realização de amplo processo histórico, será regionalista na forma e socialista no conteúdo, como é do espírito do tempo. Assim o modernismo brasileiro terá realizado o tradicional ideal nativista de nossa gente. Mas vejamos sucintamente a evolução do nosso modernismo literário a partir de 1922. Teve ela um duplo sentido. No Nordeste, talvez mais pleno de tradições que o Sul, porém desde fins do século passado em declínio como centro intelectual, o modernismo desponta com o caráter tradicionalista, isto é, de restauração romântica do passado. Deve-se este movimento de recuperação do estilo da nossa sociedade patriarcal ao talento de um moço pernambucano que havia passado alguns anos em universidades inglesas e norte-americanas. Entretanto apesar do sentido tradicionalista, o traço renovador do movimento estava palpitante. É ele quem nos diz: “O regionalismo tradicionalista, que desde 1923 se afirmou no Recife, chocou em mais de um ponto – desde aquele ano ao de 1930 – com o modernismo “oficial” do Rio e de São Paulo. Teve entretanto com ele afinidades, ou antes coincidências, quanto à
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técnica experimental: um tanto como o modernismo das suas metrópoles do sul, aquele movimento de província foi também, e por si mesmo, uma reação contra as convenções do classicismo, do academismo, e do purismo lusitano”. “Reação contra o purismo lusitano”, ao qual Graça Aranha, no sul, abrira combate com a palavra de ordem: “não sejamos a câmara mortuária de Portugal”. O modernismo, tanto no Sul como no Norte, de igual modo na Bahia, com Jorge Amado, e noutras regiões do país, teve a pretensão de revolucionar as concepções. Porém os líderes do movimento no Rio, em São Paulo e no Recife, homens de cultura e talento, mantinham o senso das proporções, desejando apenas reformar o espírito aristocrático e colocar as elites em dia com a evolução social. Contudo, se Graça Aranha chefiava o movimento modernista “na velhice” e Paulo Prado era homem maduro, Gilberto Freyre mal saía da adolescência. Nessa diferença de idade desses três precursores, patronos e líderes do movimento de renovação cultural, está em parte a explicação da mudança operada no ultimo, que começou voltado para o tradicionalismo. Ao inverso da concepção estética de “A unidade infinita do todo universal”, o tradicionalismo romântico de Gilberto Freyre foi a solução sociológico-artística dos impulsos regionalistas que assim se expressaram através do seu talento. Para ele, o desequilíbrio, a perda de estilo, a angústia social tiveram causa no rápido desapego ao passado, em que se precipitava a sociedade naquele período de transição, com o aparecimento no Nordeste ainda patriarcal de novas técnicas, novos inventos, novos hábitos. A influência americana, do cinema principalmente, subvertia os costumes tradicionais. No Rio e em São Paulo, os modernistas procuravam o desabafo no expurgo “catártico” de toda tradição lusa. Em continuação à Semana viria o “pau-brasil”, a “antropofagia”... Por igual as deformações reacionárias do nativismo: o movimento “verde-amerelo”, depois a “bandeira,” o integralismo”. No norte, o movimento tradicionalista, interpretando o passado com técnicas experimentais, assinalava o papel desempenhado na sociedade patriarcal pelo índio, pelo negro, pelo mestiço e assim se inclinava também para a condição e os interesses das camadas humildes. De igual modo, o tradicionalismo do nosso Gilberto Freyre, tomando consciência do passado pela sua restauração mental por meio dos novos processos sociológicos, à procura dos seus valores duráveis,
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evoluía com o próprio curso da formação social a cujas raízes fora remontar. Embebido pelo espírito da terra e da gente – adquirindo o sentido da ecologia regional – avançou para a atualidade, embora ficando no seu limiar, e assim formulou noção aproximada dos nossos problemas sociais em seu conjunto, a qual trouxe formidável conteúdo ao modernismo. Encontravam aplicação os métodos sociológicos que aprendera com os mestres americanos. Daí resultaram Casa grande & senzala e os estudos posteriores. No sentido da formação cultural das camadas populares, o modernismo parte do regional, heterogêneo e indefinido, para o nacional homogêneo e definido, que há de englobar os regionalismos sem lhes destruir os traços. O rumo não seria forçosamente nem dos modernistas do Sul, nem o dos tradicionalistas do Norte, tal como originariamente alardearam seus pioneiros; porém uma resultante dos mesmos e de novos valores e tendências aparecidos e desenvolvidos a seguir. A concepção modernista nuns e noutros se achava na infância. Desdobrar-se-ia paulatinamente. O processo de formação cultural das camadas populares, ou da sociedade brasileira democratizada por imperativos econômicos e sociais de caráter universal, nascia em 1922, mas até a maturidade levaria demorado curso. Gilberto Freyre logo se voltaria das tradições senhoriais para a condição e as aspirações plenas do espírito da terra e de sentido social que não chegaram a ser tradições, porque de camadas oprimidas. Nessas estava mais vivo o contato com a terra, o nativismo e suas tendências de emancipação das culturas originárias. Não obstante cumpria conservar e envolver os valores gerais, universais e humanos dessas culturas. O modernismo brasileiro mergulhou assim no passado, voltando dele, embora ainda confusamente, com o segredo das origens da pátria e o sentido da formação do caráter do povo. Prendeu-se a autênticas tradições brasileiras, que puderam ser compreendidas graças ao método experimental usado na pesquisa, graças à concepção popular decorrente do socialismo europeu e graças à noção humanista da vida social facultada pela cultura moderna. O modernismo brasileiro prepara dessa forma nossa democracia popular. É a ideologia que já começamos a viver ao passo que conquistamos o triunfo sobre a intolerância colonial e o fascismo: há de ser a cultura do nosso homem comum.
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Falamos do nosso modernismo literário-sociológico e muito sumariamente. Para sermos menos incompletos deveríamos abordá-lo na educação, na política, nas artes plásticas, na arquitetura, na historiografia, no folklore, na música, na economia, nas ciências... Entretanto não podemos nos alongar mais. Em estudos separados trataremos noutra oportunidade desses aspectos diversos do movimento de renovação cultural do país. Assinalemos, todavia, a potencialidade dos seus valores em face das elites tradicionais. Comparando as gerações intelectuais que se defrontam na atualidade, diz um crítico – Nelson Wernek Sodré – “se, coletivamente, a nova geração está colocada em nível inferior pela heterogeneidade mesma dos seus valores, individualmente assistimos ao espetáculo de uma série de escritores de talento pleno de lucidez, capazes de analisar e de pesquisar com serenidade e conhecimento”. Essas palavras foram pronunciadas há cerca de 10 anos. As novas condições abertas ao mundo, graças ao triunfo universal dos homens sobre o fascismo, colocaram a vanguarda modernista, pela combatividade própria e manifestações de gênio, à frente de nosso movimento intelectual e político, liderança que todavia perderam ainda em 1945 em face da derrota sofrida no país pelo movimento democrático. O congresso de São Paulo, realizado em janeiro de 1945, que marcou o romper da ofensiva contra o Estado Novo, foi uma prova da supremacia incontestável do movimento modernista na intelectualidade e na opinião do país. Com relação a esse congresso, observamos no seu encerramento: “Quando os intelectuais, após amplos e exaustivos debates, se agrupam em torno de princípios democráticos, síntese do pensamento comum, significa certamente que as forças populares, representadas e interpretadas por aqueles, marcham ativamente para a unidade e estão prontas para romper a investida. Todos os obstáculos lançados contra o processo de nossa formação cultural como nação pelo fascismo e pela corrupção getulista não impediram a unificação e a manifestação das elites que exprimem inegavelmente as aspirações gerais de grandes camadas do povo. Chegou, pois, o momento em que as forças populares estão maduras e prontas para passar da resistência à ofensiva contra o fascismo. Mas a derrota do fascismo no Brasil marcará apenas o começo da construção nacional por meio dos elementos deste movimento renovador, amplo, de caráter democrático-popular, de feição a um tempo universal, humana e regional – que é o modernismo brasileiro, maravilhosamente representado pela maioria dos congressistas”.
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Todavia seu triunfo, o triunfo do movimento democrático, carecia da adesão esperada do maior líder popular do país. Esse líder, entretanto, reincidiu no erro clássico dos nossos homens de popularidade: caiu no populismo. Reproduziu a façanha do General das Massas, o famoso Abreu e Lima, que se tornou partidário da restauração de D. Pedro I no governo que exercera com absolutismo, tomando por aspirações populares o sentimento “sebastianista”. De igual modo, o fascistoide Getúlio Vargas, já apeiado do poder, foi sustentado pelo Cavaleiro da Esperança, que acreditou ver no “queremismo” uma inclinação das aspirações populares, às quais devia render-se. Não era do estofo dos verdadeiros líderes populares modernos, os quais “devem saber impedir os homens de viverem sua vida habitual”, rasgo de caráter que Gorki observara em Lenin. Contudo façamos parada. Na palestra seguinte, voltaremos à política, estudando O Brasil no mundo contemporâneo e esses fatos estarão expostos com mais clareza, no intuito de focalizar novamente os objetivos populares; pois continua na ordem do dia a tarefa da nova geração que já está passando de madura: edificar o país, material e espiritualmente, de acordo com a concepção elaborada pela cultura moderna. Edificação que já dispõe de sem número de obreiros: todos esses que, tendo formado sua consciência moral e sua capacitação profissional, procurando honestamente o caminho justo do sentimento patriótico no tumulto da vida contemporânea, não podem dispensar, na interpretação dos fenômenos, na ação prática e na realização, o método objetivo e o ideal popular, criados pela filosofia moderna, cujo sentido geral é o da luta consequente contra o fascismo. Quando os líderes deste movimento de renovação em cada um dos seus campos específicos – que estiveram tão perto da unidade em 1945 – esclarecidos e unificados, não hesitarem mais com relação ao seu papel de arquitetos da cultura brasileira, de construtores da nossa democracia popular, estará definitivamente estruturada a união do povo brasileiro contra o fascismo e toda sorte de opressão. A ofensiva voltará então para as forças democrático-populares e seus objetivos políticos serão facilmente atingidos por uma liderança segura que sintonize os destinos do Brasil aos rumos do mundo contemporâneo.
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Originalmente publicado na Revista Região. Recife, dezembro de 1948.
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PERNAMBUCO, CÍCERO DIAS E PARIS
Cícero Dias está de passagem pelo Rio, de volta a Paris, após quase dois meses em Pernambuco. Em Recife fez uma grande exposição retrospectiva de 20 anos de trabalho, no salão da Faculdade de Direito. Viam-se ali desde os seus primeiros desenhos, ainda incertos, em que dominavam os temas e assuntos pitorescos ou poéticos, às últimas produções parisienses, de caráter já rigorosamente abstrato. Nenhum pintor brasileiro fez evolução mais radical do que esse menino de engenho pernambucano que se passou para Paris. Os quadros das primeiras épocas, com os seus temas populares, suas cores puramente simbólicas de estados de alma, não anunciavam o pintor desnudo, ortodoxo, todo entregue a problemas de cores, de luz, de formas que ele é hoje. Recife reagiu com vigor à experiência de Cícero. Um ilustre polígrafo da terra, o sr. Mário Melo, encabeçou a reação. Seus artigos diários encontravam eco por toda parte. As famílias burguesas perderam o sossego; homens sisudos e pequenos burgueses moralistas não compreendiam como é que se havia aberto o salão nobre da Faculdade de Direito, tão vetusta, guardiã das mais respeitáveis tradições, àquelas garatujas e monstros. Para a boa gente Cícero era um pernambucano endiabrado, que se perdera em Paris em más companhias. Houve, realmente, uma santa indignição. Chocava, ao lado das formas e das cores sem “significação” realista, a ambiguidade dos títulos
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dos quadros. Muitos desses tinham, com efeito, designações dúbias. Uma das telas chamava-se: Mamoeiro ou dançarino. O fato deu dor de cabeça a quase toda a população. O sr. Mário Melo, com o séquito de seus discípulos, não deixava passar um dia sem perguntar: Afinal, trata-se de dançarino ou de mamoeiro? Um sentimento generalizado de frustração apoderou-se dos seus leitores. Ninguém conseguiu esclarecer o mistério. Não tendo podido penetrá-lo, não se achavam no direito de gostar ou não do quadro. O pior é que nenhum de nós, nem Aníbal Machado, nem Rubem Braga, nem Orígenes Lessa, nem eu, que fomos a Recife, a convite do Diretório Acadêmico de Direito e da Diretoria de Documentação e Cultura, rever o amigo e ver sua retrospectiva, pudemos decifrar o enigma. Aliás, fomos encostados à parede e intimados a dar o nosso parecer, numa espécie de debate público em que Cícero Dias fazia figura de réu e nós, de seus advogados, tal e qual numa sala de júri. A plateia exigia definição, queria saber a todo custo se aquilo era mamoeiro ou dançarino, ou se outra tela, com a mesma terrivel ambivalência, era guarda-chuva ou instrumento de música. Angustiosos momentos. Os homens não gostam de viver na insegurança ou na incerteza. Também detestam tudo que os tira da rotina cotidiana. A sociologia estética já chegou a deduzir, da constância do fenômeno, a lei de que tudo que é novo parece feio. O gosto do público é modelado pelo êxito das obras artísticas anteriores. Todo esforço negando ou desmanchando essa cristalização de sensibilidade que se faz em torno de obras já consagradas, tende fatalmente a levantar as mais vivas oposições. A história de todas as artes é uma sequência ininterrupta desses choques e reações. A assimilação nesses domínios é extremamente lenta. Por vezes, em certas épocas, as inovações se acumulam com o aparecimento simultâneo de grande número de artistas revolucionários e renovadores. Então, o desequilíbrio se agrava. Com efeito, a assimilação é lenta precisamente porque não é cerebral, mas de ordem afetiva, sensível, por vezes simplesmente sensorial. É na música onde o fenômeno é mais concreto e convicente, justamente porque ela é entre as artes a menos redutível a conceitos e ideias. Veja-se, por exemplo, Peliéas et Mélissande, de Debussy. Os que a ouviram pela primeira vez, no Teatro Municipal do Rio, nos idos de 1920, recordam-se da reação hostil ou negativa do público. Poucos, então, a senti-
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ram na sua diáfana pureza musical. Mesmo os que a defenderam, então ardorosamente, contra a hostilidade do público às suas “dissonâncias”, só percebiam, naquela primeira audição, os seus aspectos superficiais, certos acentos e preocupações descritivos, certas modulações de acordes imitando um ruído exterior, sugestões disso ou daquilo, tendo do conjunto apenas uma vaga impressão sonora. A forma propriamente musical, sua tessitura, seu lineamento, a beleza construtiva e melódica passaram desapercebidos. Agora, vejam. É de uma tranparência, de uma clareza de ópera italiana!... A música, de todas as artes, é a mais afastada das solicitações intelectuais: daí seu poder maior de penetração. O domínio da inteligência sobre o ouvido é bem menor do que sobre a vista, muito presa ainda ao trabalho descriminativo do intelecto. Na pintura, os cânones estéticos adquiridos em sedimentação secular fecharam os espíritos às inovações. O academismo é o congelamento das receitas artísticas em vigor na Renascença. Através desse congelamento, essas receitas constituem até hoje o aprendizado artesanal de uma corporação de indivíduos, cuja missão consiste em reproduzir ou imitar fielmente os objetos externos ou o real convencional. Se essas receitas não forem mais válidas, a corporação perderá sua ultima razão de ser. Eis por que o academismo é o maior obstáculo à verdadeira iniciação artística do povo. Eis também por que o sr. Mário Melo e correligionários podiam afirmar falar em nome da maioria do público pernambucano. Daí também a questão que faziam de saber se tal ou qual quadro de Cícero “representava” uma castanha de cajú ou uma cabeça de moça. Sem esta preliminar, ia-se o critério pelo qual estavam acostumados a aferir da boa ou má qualidade de uma pintura. Se a tela representava um caju, então tinha de ser bem direitinho; pois caju é caju, e moça é moça. Só depois de tudo esclarecido, com a segurança do autor de tratar-se de caju, moça, cartola, guarda-chuva, mamoeiro, ou dançarino, é que os letrados darão licença ao povo de gostar ou não da obra. Por isso mesmo, um dos presentes aos debates do Recife propôs se fizesse ali um plebiscito para decidir, democraticamente, se o povo entendia ou não a pintura de Cícero. A assistência deveria pronunciar-se, num ou noutro sentido. Ninguém deve rir-se de tais ingenuidades. A mesma coisa podia acontecer aqui. O público de Pernambuco é tão culto quanto o do Rio. O
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problema não é de cultura, de preparo intelectual, que é o que geralmente se entende por cultura. A concepção artística do público letrado de Pernambuco é a mesma do nosso público carioca ou paulista. Província ou metrópole, o público de lá como o de cá está ainda em grande parte impermeável à arte, precisamente pela cultura adquirida e não pela ausência dela. No domínio estético, essa cultura está anacrônica de três seculos. Ela se rege ainda pelos cânones da Renascença, consagrados à glorificação dos sentidos imediatos, do materialismo burguês triunfante. A academia nasceu para conservar essa cultura. O que impede o acesso à sensibilidade artística não é a ignorância do tabaréu analfabeto ou a inocência da criança. São os preceitos intelectualistas e acadêmicos que levam um escritor, um ministro, um cientista a admirar a contrafação pictórica de um Osvaldo Teixeira ou de um Manoel Santiago, e a torcer a cara para uma tela de Pancetti ou de Portinari. Quando Cícero Dias fez uma exposição em Jundiá, na Escada, ele queria precisamente varar essa crosta de prejuízos dos homens cultos da capital, para atingir a instintividade popular de modesta aglomeração da roça, afastada das pugnas e deformações ideológicas ou intelectuais dos grandes centros. É fato conhecido que um jovem vaqueiro ou pastor analfabeto, mas dotado de sensibilidade plástica inconsciente, pode sentir melhor um quadro moderno que um estudante culto de qualquer das nossas faculdades superiores. Eis o que os letrados tanto custam a compreender. Cícero Dias fez no Recife uma grande experiência. Do ponto de vista cultural, essa experiência está destinada a ter a maior repercussão. Ele conseguiu traumatizar o gosto do público. E nada mais fecundo para a iniciação artística. Fez ele, além disso, para os recifenses, a demonstração da indestrutível continuidade histórica da arte através dos séculos, revelando as afinidades entre a velha arte, a arte perene e a chamada arte moderna. Realmente, com admirável senso didático, Cícero Dias colocou, em sala separada da exposição, lado a lado, a reprodução de um desenho índio de palmeiras, uma paisagem de coqueiros de Teles Junior, uma reprodução de outra paisagem cubista de Picasso com o mesmo tema e um quadro seu inspirado em idêntico motivo. As palmas do artista acadêmico não tinham na composição a menor independência formal, mero detalhe anedótico, ao passo que o desenho indígena era de uma
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Crítica de Arte em Pernambuco
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estrutura que se assemelhava à forma cubista do mestre espanhol, já extremamente condensada, sem qualquer sujeição naturalista. As formas de Cícero, no entanto, não eram mais do que o esquema do motivo original, capaz de abranger, dentro de sua universalidade, outras sugestões objetivas. O pintor pernambucano não chegou de um salto ao abstracionismo de sua fase atual. Há toda uma época intermediária em que o assunto vai perdendo importância até desaparecer por completo. Dos temas ditos regionais só restou o que era realmente do domínio plástico: certas formas vegetais e arquitetônicas tiradas da paisagem pernambucana, sobretudo recifense, e certas cores locais, azuis e amarelas, que resistem a qualquer luz. Certas cores simbólicas dos primeiros tempos, um abuso de malvas e roxos, certos rosas convencionais, tudo espichado sobre a tela, de matéria monótona, sem riqueza, foram postas de lado. Sua palheta enriqueceu-se das cores mais vivas, que se sucedem na tela ou através de um branco ou de um cinza, ou por vezes diretamente. Ele não teme sequer acordes de complementares os mais simetricamente opostos, como verde e vermelho. Mostrou-me, aliás, exemplos disso durante nossas excurssões pelas estradas que saem de recife. Ficaram-lhe na memória visual para sempre. Daí a fidelidade com que guardou no estrangeiro a atmosfera de certas paisagens nordestinas, a luz vigorosa, as cores cantantes entrelaçadas a formas que se aproximam cada vez mais dos triângulos, dos círculos e dos quadrados de Kandinsky, o mestre e o teórico do abstracionismo. As casas recifenses, a fila de casinhas retangulares de um só andar, aqui e acolá guardadas por altos coqueiros baloiçantes, foram essencializadas nas telas atuais a meros quadrados coloridos. Os coqueiros, as bananeiras, os canaviais, as folhas, cajús, cocos, tudo foi reduzido ao essencial, a signos formais independentes de qualquer sugestão natural, direta. Cícero desligou-se da sociedade pernambucana. Já não é mais o menino de engenho melancólico. Nada é mais regional em sua arte de hoje. O que ele conserva de Pernambuco é antes a terra, o ar. Ele vê a terra de cima, como se estivesse trepado no alto de um coqueiro. A luz branca tropical que ficou nas suas telas de Paris vem desse ângulo de sua visão. Pode-se discordar ou não de sua pintura, mas sua importância é
Mário Pedrosa
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evidente para a nossa evolução pictórica. Ele recebeu a lição universal de Kandinsky e Picasso, quando se havia já liberto das reminiscências infantis, do saudosismo regional, de qualquer sentimentalismo poético ou pitoresco dos primeiros tempos. Cícero é um artista brasileiro, mas já não sabe que o é quando pinta suas paisagens. Hoje, o Pernambuco do artista são cores, uma atmosfera luminosa, formas que se movem no espaço. São os materiais da sua linguagem plástica. Pela força comunicativa desta responde uma sensibilidade apurada pela reflexão e o cálculo, paradoxal num homem contraditório e instintivo como esse Cícero Dias, que emigrou de Pernambuco para sempre, levando, porém, o que deste é eterno: ar, luz e cores.
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Mรกrio Pedrosa
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Originalmente publicado na Revista RegiĂŁo. Recife, dezembro de 1948.
—Antonio Franca
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DIÁLOGO SOBRE A ARTE
Não te espantes, paciente leitor, com a pretensiosa filosofice do cabeçário. Trata-se apenas da expressão gratuita de ideias subtraídas a uma “mesa-redonda”. No caso, benigno tribunal de estetas e corpo de jurados tão numeroso quanto uma assembleia. Pretenderam julgar a arte e o artista, uns como moralistas, outros como políticos, certos como bufarinheiros, muitos como povo. Os estetas ditaram enfim a sentença final. Pois, muito embora o artista, como homem, tenha naturalmente sua moral e sua política, a arte é amoral e apolítica. Ou antes, se diferencia por seu campo específico na atividade total do homem. Ora, dirás, é preciso ouvir o povo. Naturalmente, ouvir estrelas. Gargântua, ao nascer, não clamou a plenos pulmões: beber, beber, beber? Era um hábito ancestral. POVO Mas enfim por que nos ocupar com ga-
Antonio Franca
lhofas sobre a arte nesses tempos difíceis em que perdemos a noção própria da existência cotidiana e nos estiola a preocupação de pagar com dinheiro cada vez mais curto o custo da vida que se eleva cada dia? Por que nos induzir a visitar uma exposição de quadros, colocando em nossas mãos um catálogo com preços astronômicos, quando o pão de cem réis que dantes forrava o estômago de um faminto há muito deixou de existir e o que hoje se vende é do tamanho de um ovo e custa um salário? Por que nos iludir com a fantasia de um porvir feliz enquanto o país progride para trás como o rabo de um bezerro e fazem discursos os senhores deputados sobre questões de arte? Na verdade, isto é puro e simples trabalho da reação. Não, senhor escritor, queremos Getúlio! ESCRITOR Vá lá. Getúlio voltará para o inferno em
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boa companhia. Pois se não é morada eterna dos condenados é o Brasil. POVO Mas, enfim, se quer não continuar abusando, fale de uma vez da arte ou vá pra China. ESC. Falar em arte! Expor-nos ao ridículo feito poeta! Cremos perder o tempo vindo ocupar-te com o resultado de um debate sobre assunto que não interessa ao povo. POVO Mas precisamos saber se o artista está no lado do povo ou a favor da reação. Ele assinou o manifesto contra o petróleo? ESC. Estás conversando? O é melhor ouvir música: quem tiver prazer em escutá-la permaneça sentado. POVO Não faças pouco caso, gostamos da dança do fogo. ESC. Fala como moderno apreciado. POVO Afinal, seu escritor, que resolveu o tribunal e como se portou o corpo de jurados? ESC. Queres saber enfim? Reconheceram que devem deixar ao tempo julgar a obra de arte. Quantas vezes, somente o século porvindouro, no outono da vida dos autores, se decide enfim a consagrar sua produção artística? Hoje o mundo marcha com muita velocidade; alguns anos farão o papel de século. POVO Sim, a burguesia está decrépita; o povo
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vencerá nos próximos anos e a obra do artista que for a seu favor terá a chancela do partido do povo. ESC. Talvez, ao contrário, deva o povo trabalhar de fato e os senhores deputados exercerem o ofício de mestre-escola. O discurso não foi condenado pela “educação nova”? Entre os que reprovam a academia de letras, muitos parecem gostar da academia de oradores. POVO Falas da câmara? ESC. São muitas. POVO Bem. Que posso aprender com um escritor que não marcha com o povo? ESC. Mas afinal és o povo um indivíduo? POVO Povo. ESC. Bendito sejas. Vou encerrar. POVO Não. Volte a falar da arte, dos murais do Palácio da Fazenda. O povo condena essa pintura. ESC. Se o público, à primeira vista, a consagrasse por uma aprovação geral, decididamente seria discutível o mérito do artista e a qualidade da pintura. Lembras-te do que disse Gorki de Lenin? Era um homem que sabia fazer o povo viver diferente de sua vida habitual. O chefe proletário só foi consagrado depois que logrou transmitir ao povo russo sua fé
Antonio Franca
na vitória do socialismo e realmente sua consagração geral data de sua morte. A arte genuína é a que abre novas perspectivas à sensibilidade, cria emoções novas e fixa um gosto avançado. Portanto apenas a marcha do tempo pode julgar a obra de arte. Nem o povo nem os críticos especializados da estética poderão dar a última palavra na hora em que apreciam uma obra de arte. A crítica da estética é histórica, diz Croce; e o conteúdo de toda obra de arte é histórico. Noutras palavras, a cultura do século. E como a cultura do século atual é um produto em elaboração, a obra de arte sofre naturalmente a depuração a que estão submetidas as produções dessa cultura se revelando em tendências e aspectos múltiplos. “Há trezentos anos, disse Mário Pedrosa, a arte está perdida”. Na pintura, “anuncia-se um humanismo abstracionista”, disse Aníbal Machado – ambos da “mesa-redonda”. E vamos indubitavelmente para um novo clássico que parece ser, como já se disse, “a fusão do primitivo e do culto, da inspiração e da escola”. Mas até lá a arte moderna será experiência. Pois em nossa época acham-se os resíduos de todas as épocas passadas e os clamores da futura. E enquanto os rumos não se cristalizarem podemos dizer, como Diógenes, que vivemos a procura do homem. O homem sim – pois como concluiu de certa feita o mestre Fernando de Azevedo – pode estar no lar, mas é a fera que ainda está no Estado. Nem tanto nem quanto, diremos. O homem há de ser achado. E a arte, como bela imperfeição de criaturas mortais, a
arte que é coisa mental que se materializa, vai na frente. Está além da moral. Indica pela intuição melhor que a fé dos estadistas e a doutrina dos filósofos ao que eles mesmos aspiram. Pois Lenin não demorou em apreciar a poesia de Maiakovski? Enquanto forma nossos espíritos a noção da ética que condena toda exploração do homem por seu semelhante e nos orientamos em política pelos princípios de uma filosofia que reconheça a possibilidade de edificar uma sociedade livre formada por homens livres – a arte, que é intuição e fantasia criadora pode, sendo autêntica, antecipar o gosto e o espírito de uma época próxima, educarmos para ela, ao mesmo tempo em que para ela nos conduzem os movimentos coletivos guiados por homens esclarecidos e amigos do povo, mas sabendo que não lhe devem fazer a vontade como às crianças as vovozinhas, porém discipliná-lo e educá-lo para a prática afetiva de suas próprias aspirações e ideais. POVO Mas se o artista é da burguesia, sua arte é corrompida. ESC. Marx e Engels, disse Lenin, eram da burguesia; do Brigadeiro disse o professor Leônidas Rezende, que é um ideólogo. O marxismo admite que os ideólogos, como são os artistas, por exemplo, reflitam tendências sociais. Se a arte de determinado autor difere da acadêmica, inferimos que ela pode representar novas tendências. Mas o processo social, como as marés, vão e voltam muitas vezes antes
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de chegar às marés de lançamento, como se diz na linguagem de viveiros de peixe. POVO Um passo adiante, dois atrás – onde está a arte do Sr. Cícero Dias? ESC. Em Pernambuco. POVO Mamoeiro ou dançarino? Carnaval! A arte é a arte! ESC. E por que não? Da arte diferem as outras coisas que não são arte. Em Pernambuco está a arte de Cícero Dias, feita em Paris. Foge aos lugares-comuns esta afirmativa. Ao ouvi-la, sem ter aos olhos a arte em apreço, julgá-lo-emos um pretensioso com a mania do francesismo. Mas foste olhar seus quadros? POVO Fui, vi e não entendi! ESC. Bem, amigo povo, faça nova experiência voltando lá, repita a vista algumas vezes. Deixe o julgamento para mais tarde também, já falamos demais e chega... POVO Mas afinal que acharam da pintura do Cícero os da “mesa-redonda”? ESC. Ouvi-lo-á o amigo quando serenar seus ímpetos reacionários... POVO Reacionários?! ESC. ... contra a pintura aludida. A cultura, meu amigo, é uma decorrência da prática social. Um produto social não pode ser
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julgado por uma assembleia que é por sua vez o joguete dos embates sociais, um fenômeno da vida coletiva. Que seja pintura artística, mas deixemos sem julgamento à história. Se é arte burguesa ou proletária, veremos por seus efeitos. Certos acadêmicos reduziram-na; catolicões recusaram-se a admiti-la como arte. Mas nossos burgueses que ainda têm algum dinheiro compraram alguns quadros. Não falou o Cavaleiro da Esperança numa “burguesia progressista”, que Deus a guarde? A pintura moderna admite que pode ser simples jogo de formas e cores. Que há na música não descritiva de imitação da natureza? Não se trata de justificar a composição de cubismos extravagantes destinados a embrutecer os espíritos pela exibição, como os produtos do futurismo postos a serviço do fascismo que é – segundo definiu filósofo contemporâneo – a ignorância e a crueldade em ação. A arte pictorial abstrata não se define nem como cópia da natureza, nem como a natureza interpretada pela personalidade artística. Apenas o artista é uma parte da natureza, como ser social, e sua pintura, produto natural da emoção estética, pode deixar de apresentar completamente qualquer vestígio de coisas conhecidas. O abstracionismo pode ter mais conteúdo popular que a arte que reproduz cenas da “decomposição social” existente e clama por revoltas em sugestões eloquentes. O artista que apenas transmite emoções do momento não faz arte, porém obras de propaganda social. Somos propensos a reconhecer na pintura abstracionista
Crítica de Arte em Pernambuco
Escritos do século XX
sentido progressivo de tendências sociais avançadas. Naturalmente tal arte pode ser utilizada por gregos e troianos. O comunista Niemeyer não se colocou a serviço do Estado Novo para fazer arquitetura moderna? Mas aí está a moral da amoralidade da arte. O artista também é ser moral e, como homem, político. Nosso Cícero Dias, em sua última fase, deu-nos a impressão de um artista de tão bom quilate quanto a moralidade de seu caráter simpático que transfunde amor à terra e à causa popular. Foste, ó povo, viste e não entendeste. Volte e observe novamente. Se arte é criação e toda criação uma experiência, aguardemos seus resultados.
Antonio Franca
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Originalmente publicado no Diário da Noite ano 15, nº 92. Recife, 6 de janeiro de 1961.
—José Cláudio
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José Cláudio
A RESPEITO DE WELLINGTON VIRGOLINO
Lembrando Wellington pensei: “é preciso dar saltos”. Wellington é aos trinta anos um pintor cansado, veja um quadro dele e parece que estou vendo, bem no claro do dia, o homem enrolado no lençol com medo de ter pela frente mais trinta anos para pintar, porque ele só tem duas saídas: ou mudar de vez ou ir sendo daqui para diante resto dele mesmo, ir-se esticando como corredor cansado e procurando vencer os longos metros só por honra da firma, para justificar a camiseta que veste e o número colado nas costas. O que Wellington tinha para fazer dentro dessa pintura que faz, já fez. Vejo-o requentando com extrema parcimônia um café tantas vezes requentado que só ele mesmo é que pensa que aquilo ainda tem o cheiro e o gosto de outros tempos. Era uma vez uma rapaziada que queria pintar e que só tinha a seu favor o entusiasmo, que a gente sabia que valia muito, mas não sabia como dar emprego a esse capital. Um ensinava ao outro a armar uma grade e cada qual, dia a dia, trazia uma novidade, um pintor que ainda não conhecíamos, um instrumento de jogar tinta, um uso qualquer que a gente ignorava. Queríamos ser heróis da guerra holandesa, e os pintores que nos interessavam eram os que eram perseguidos e presos não como pintores revolucionários, mas como políticos: misturávamos a atuação do pintor com a atuação do político: Siqueiros, Orozco e Rivera eram os heróis e Tamayo era o bandido; o maior quadro do século era um de Fugeron em que um gordo ricaço apodrecia num cadilaque sem
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capota, o guarda-costas, armado de metralhadora, debruçado em cima do parabrisa à prova de bala – a polícia vendida defendendo uma civilização decadente. Morandi era uma insignificância, Guttuso um gigante; Picasso era Macunaíma, sem caráter, mas herói: herói em Guernica e Sonho e mentira de Franco, ou quando era delegado em alguma Conferência da Paz, vilão nas Demoiselles d’Avignon ou qualquer experiência “escola de paris”, símbolo da degenerescência e do esfacelamento. Ficávamos ao mesmo tempo com inveja de Van Gogh e de Spartacus de Goya e de Zapata. Aspirávamos à coroa de mártir: se a polícia tivesse tocado fogo nos nossos quadros estaríamos realizados. Queríamos, nos nossos quadros, uma mãe de Gorki e um herói do povo, Lampião ou Lucas da Feira. Ilustrávamos os livros que líamos: Os curumbas de Amando Fontes, os de Graciliano Ramos e de Jorge Amado, Alina Palm, coisas esparsas de Garcia Lorca, Noel Rosa, Pablo Neruda, Antonio Machado. Só se assoviava sambinha que ferisse as misérias do povo – realismo crítico – e os pintores brasileiros eram Portinari, Di Cavalcanti, algum Guignard, e por uma questão de carinho para com o popular, Djanira, Heitor dos Prazeres e Cícero Dias da época do primitivismo, lamentando que ele se tivesse deturpado e caído no abstracionismo, abstracionismo igual à sarjeta. Lula era um finório, procurando sempre um ponto estratégico que desse saída para muitos lados, para poder virar casaca sem ser notado, água morna (isso eu ainda hoje penso). Admirávamos em Reynaldo Fonseca o domínio, que não possuíamos, do “metier”, e lamentávamos a sua temática aristocratizante. Hélio Feijó e Augusto Reinaldo eram ressonância pálida de formalistas vazios da Escola de Paris, fragmentos desordenados sem a necessária base telúrica que lhes emprestasse algum sentido, e Ladjane, a habilidade do esboço, risonho voo de pássaro que não se sabia quanto poderia durar ou para onde poderia dirigir-se. Uns mais, outros menos, todos aceitávamos que só havia um caminho para o pintor: inspirar-se no povo, e não apenas fazer do povo, dos seus hábitos, o trabalho, a diversão, a religião, o comer e o vestir, o seu proceder em casa e fora de casa, motivo de nossos quadros, mas falar pela sua língua, fazer como se o quadro fosse pintado pelo próprio vendedor de frutas, motivo do quadro. Fazia-se necessário integrarmo-nos no coração da massa, encontrar nas suas diversões o mesmo prazer que ela encontra, dar importância ao que para ela teria importância, para que então, quando falássemos, a sua voz saísse de nossa garganta. Nossos
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quadros seriam os que o homem do casebre pintaria e nos livraríamos de deturpações, porque água que bebêssemos estaria de antemão autenticada por ele. Mas isso durou somente enquanto nos empenhávamos em fazer uma mão parecida com uma mão, e nos admirávamos de poder materializar o que estava escondido para os outros e guardado em nossa retina, como quem guarda uma fotografia que tem para bater. Aos poucos, porém, nos cansamos de contar casos, de usar nossos quadros para narrar de tarde o que tínhamos visto de manhã. Saliento aqui dois pontos que, quem sabe, merecem a atenção dos que, se existem, pensam em pintura dentro dos moldes a que me referi: não é o fato de o pintor descrever mercados e mocambos, sessões de catimbó e vaquejadas, que dá ao pintor cidadania recifense ou nordestina, como também, igualmente, não é o fato de o pintor transportar para suas telas gravuras de capas de folheto, letreiros de barraca, letreiros e ornatos que se vêem nos bancos de feira e nos para-choques de caminhão, maletas de camelô, cobertas de boi de bumba meu boi, estandartes de clube ou de procissão, grades, móveis, arreios, catacumbas, que o faz nordestino, do mesmo modo que Matisse ou Tobey não são respectivamente turco ou chinês por trazerem para suas telas um, odaliscas e o outro, caligrafia chinesa – Wellington, justiça seja feita, nunca se conformou com esse pouco. Wellington permaneceu no que estava. A dedicação respeitosa, o carinho acanhado com que Wellington vem contemplando o que tem feito no espaço de uma década, sem desconfiar, a fidelidade a um princípio de solidariedade humana e uma posição outrora assumida, mais do que à sua pintura, faz com que ele se reserve, para não subverter a paciente organização do seu arquivo. Só de raro em raro dispara dentro dele alguma carga e, antes que as notas fiscais sejam devidamente examinadas, a mercadoria espirra, interjeição ou vômito, e vem mostrar, por cima de gramática e de conveniências, que – como no retrato do pai do artista, nos meninos correndo com roda, naquela cabeça de soldado que desapareceu do Cais José Mariano – debaixo da pedra alguma coisa se move, alguma coisa se contorce, geme, guincha, está viva e quer sair, mas o carcereiro não tem ordem para deixar. Ainda um ponto que pode interessar a quem queira ver de mais perto a pintura de Wellington é a influência má que ela tem recebido do prolongado manuseio de reproduções, desde que é a reprodução que
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nos fornece constantemente notícias sobre pintores que nunca ou quase nunca podemos ver no original. Não falo de reproduções feitas por editores irresponsáveis, como o que me fez pensar durante algum tempo que Guernica era cor-de-rosa e preta, mas mesmo dos que pretendem reproduzir lealmente e são forçados a fazer de um mural gigantesco uma miniatura, e que nos viciam a não levar em conta da proporção das peças, quando o simples tamanho de um painel, de um quadro ou uma miniatura, já de saída, nos esclarece mais e nos joga mais dentro das aspirações do artista do que a mais cuidadosa reprodução que, no entanto, nos negue esse dado. Mas ainda se, por hipótese, tivéssemos diante de nós uma reprodução fiel, na cor, no relevo, nas medidas, haveria um fator que mesmo aí, por si, seria como uma venda irremovível: a dúvida. Pode o próprio pintor passar em cartório um documento dizendo que aquilo que se vê ali é exatamente o que está no quadro que ele pintou e aquelas dimensões são as do seu original, que por mais entusiasmados que estivermos, aquilo bem pode ter sido forjado, ou uma reprodução pode não sair igual à outra, ou o artista pode não ter tido para a reprodução o olho que teve para o quadro. A ausência do contato direto com o quadro nos põe de pés e mãos atados nas mãos das mais tontas versões, e muitos dos pintores que conhecemos através de livros chegam a não existir depois de verdade, nos seus quadros, porque a insistência dos técnicos em fotografia, dos técnicos em impressão, dos técnicos em clicheria nos incutem por fim suas desastrosas predileções, os detalhes apetecidos, e nos fazem conhecer da ocorrência somente aquilo que pode interessar ao suposto olho arguto de um operador atrás de uma máquina, como futebol de televisão. Assim, um dia, chegamos a crer que vemos o Cavalo de Troia quando estamos vendo um cavalo de carrossel e cremos estar com Paolo Uccello quando apenas estamos convertidos a uma reprodução que é um primor, sem deixar de ser uma mentira. Facilmente, pelo vício das reproduções, das reduções, das transposições sempre aproximativas, um gigante de Michelangelo se veste numa figura de história em quadrinhos e cores diluídas, aguadas levíssimas viram mancha opaca, e achamos que até o branco da tela, quando é branca, seja uma capa de cor. Quem já foi vítima de reproduções sabe muitas vezes que é no detalhe que se perde a estampa onde está, exatamente, a palavra que queríamos ou precisávamos escutar de uma pintura.
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Assim, uma composição concebida num muro de algumas dezenas de metros quadrados passa através do funil dos álbuns e nos sopra quadros que pretendem ser o mural, mas que não são projetos de mural, nem rascunhos, nem esboços, nem estudos e sim murais encolhidos, atrofiados não só pelo pouco espaço como pela pobreza de meios de bebida no gebo vocabulário das reproduções.
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Originalmente publicado no Diário da Noite. Recife, 13 de junho de 1961.
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Escritos do século XX
NÃO HÁ NORDESTE
E quem vê o quadro por fora, e mede o quadro pela cor local, e compara o quadro com a geografia e a história do lugar onde o quadro se produz, que idolatra uma pintura pelo simples fato de ela espelhar dados literariamente acessíveis, folclóricos, ecológicos, iconográficos, sem levar em conta que o quadro é um humor que sua das paredes da clausura, câmara indevassável, “cela de nós”, na expressão de Santa Catarina de Siena, onde não chega a luz do sol e que a paisagem exterior, física, não atinge, porque nesse lugar, nessa casa de máquinas, os sentidos se frustram: é ali que a individualidade está nua, e a luz que ali penetra não se mede com fotômetro. É ali que habita o artista e a crítica, mesmo que seja mesquinha, ou o elogio, mesmo que seja exaltado, só conseguem perturbá-lo quando ele não está lá, coeso dentro de si, incapaz de ser tocado, mesmo que seu corpo seja serrado em dois e sua cabeça esmagada entre pedras. Porque o quadro para o pintor é o seu heroísmo, a sua santidade, e é sem pátria, região ou município. Equívoco é encará-lo como produto agrícola. Não há pintura tribal, ancestral, hereditária, que vem com a farinha que a gente come ou o sangue que a gente tem.
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Não é justo cobrar do homem daqui uma pintura x, porque a zona é de mata e de cana, porque o homem daqui é amigo do batuque e do cheiro de suor, porque somos mestiços e a nossa religião é mestiça, porque as árvores aqui têm as folhas sempre verdes, porque o barro do chão é vermelho cor de sangue e o azul do céu é bem vivo, porque das árvores pulam, da noite para o dia, frutas da casca encarnada e os homens daqui comem caco de quartinha e convivem com os bichos do mato: tudo isso não implica em pintura nenhuma. O pintor é estrela, sem nada ter com raça, cozinha ou clima. Ele é uma exceção (como exceção são todos os homens), coma o que comer e vista-se como se vestir. Ele é quem resolve se se quer de barro, ou de gesso, ou de ferro, ou de vidro, conforme seu alcance e a sua consciência. Dele é o mundo todo e o acervo à sua disposição é tudo o que ele consegue enxergar; o seu regime é tudo que ele tiver dente para roer, venha de dentro ou de fora do Nordeste, sem se ligar importância para cascas: rótulo, procedência, via.
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Originalmente publicado em AMADO, Gilberto et al. Gilberto Freyre – sua ciência, sua filosofia, sua arte: ensaios sobre o autor de Casa grande & senzala e sua influência na moderna cultura do Brasil, comemorativos do 25o aniversário da publicação deste seu livro. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1962.
—Ariano Suassuna
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TEATRO, REGIÃO E TRADIÇÃO
Ao dar um depoimento pessoal sobre meus pontos de contato com o regionalismo tradicionalista – movimento que aqui se processou e vem processando sob a liderança de Gilberto Freyre – nem vou me referir sistematicamente à obra dele (pois não sou estudioso de Sociologia), nem tratá-la como algo rígido, morto e acadêmico. Creio mesmo que não existe nada mais oposto ao espírito dessa obra do que a atitude que alguns de seus discípulos vêm tomando diante dela: como se fosse algo estático e não uma obra que sempre se renova e se procura. Ainda, não têm sabido tais discípulos tomar a magnífica lição de independência que Gilberto Freyre deu a todos nós, numa época em que ela deve ter-lhe custado muito mais do que nos custa hoje, quando os caminhos já estão desbravados, quase todos por ele, neste campo da autonomia de nossa cultura. Em torno de Gilberto Freyre não há mais quase diálogo. Não por culpa sua, mas por culpa dos outros, que não se lembram do paradoxo do pensador espanhol, segundo quem “aquele que faz o que o mestre faz, não faz como ele faz”. Por outro lado, não temerei confessar influências recebidas, dele como de outros: esta é uma atitude pouco generosa e tola. Aliás, se fosse me referir a todas elas, seria um nunca-acabar. Em minha formação de artista, recebi influência até de Rafael Sabatini e de Dumas Pai – ainda hoje tenho vontade de escrever novelas com o encanto e o movimento que eles sabiam dar às suas. Boccacio, Cervantes, Gil Vicente, Stendhal,
Ariano Suassuna
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Molière, Plauto, Homero, Virgílio, Dostoievski são os clássicos que leio e releio sem cessar. Dos poetas, recebi influência de Lorca, Drummond, Fernando Pessoa, além dos clássicos já citados e Horácio. E há as influências diárias, profundas e silenciosas dos amigos, entre as quais eu citaria a de um grande poeta desconhecido do Brasil – José Laurênio de Melo. Mas isso tudo é um capítulo muito grande que, a rigor, deveria incluir nomes de poetas populares, como Leandro Gomes de Barros, de pesquisadores modestos e limitados, como Leonardo Mota, e de grandes pintores e filósofos, como meu amigo Francisco Brennand – outro grande desconhecido, até agora – Maritain e Bergson. A ambas essas atitudes procurarei fugir, exatamente no instante em que presto minha homenagem àquele que foi o primeiro a chamar, de modo sistemático e constante, nossa atenção para o fato de que significávamos algo, dando dignidade a uma cultura, a uma maneira de vida, a uma arte até então desprezadas e colocadas de lado. À guisa de introdução e lembrando mais uma vez que não sou estudioso de sociologia – pelo que haverá muita imprecisão aqui – gostaria de fazer uma distinção entre dois regionalismos que pressinto: o “de posição” e os “históricos”. O primeiro é uma posição fundamental, que inclui, de certo modo, uma atitude de vida, e que tem, como decorrência, entre outras coisas, uma posição artística. Os do segundo tipo, são esta posição enquanto assumida por indivíduos ou por grupos num movimento, como o que Gilberto Freyre desencadeou aqui, por volta de 1926. Quando, por exemplo, o jovem ensaísta pernambucano Mozart Siqueira ataca o regionalismo, classificando-o de “assunto de ontem’’ no título de uma conferência, quer-me parecer que ele não leva essa distinção na devida conta. O regionalismo, como movimento histórico, pode estar superado no Nordeste – o que aliás não acredito – mas, enquanto encarado como uma das posições legítimas que se podem tomar em arte, não o está, porque, sob este ponto de vista, nenhuma posição se pode considerar superada. Tomado neste sentido, o regionalismo não é de hoje nem de ontem, é de sempre, como o classicismo ou o barroco. Um estilo não se liga somente à momentânea predominância histórica de que gozou neste ou naquele momento: é uma posição que pode ser adotada com a maior liberdade por qualquer artista, em qualquer momento, sem preocupações de moda ou de anacronismo. Penso, por exemplo, em Shelley e Stendhal, vivendo, ambos, no momento histórico do romantismo, um, porém, em conformidade com a moda e fazendo grande poesia,
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Ariano Suassuna
outro em posição oposta aos gostos de seu tempo e escrevendo uma das maiores prosas que já houve. Penso em Machado de Assis, clássico, entre naturalistas, parnasianos e românticos de terceira ordem. E afirmo, antes de tudo, a liberdade que tem o artista de fazer o que lhe agrada, contra rótulos, contra as inclinações de seu tempo – que, afinal de contas, ninguém está capacitado a apontar quais são, exatamente – e contra qualquer imposição que os deterministas julguem descobrir. Afirmar que os movimentos artísticos duram necessariamente um certo tempo, ficando superados a partir daí – segundo afirma aquele ensaísta – é olhar a arte por um ângulo historicista que amesquinha ao mesmo tempo a arte e a história. É confundir o movimento artístico histórico com a posição fundamental, que pode ser retomada a qualquer momento validamente, bastando para isso que um artista verdadeiro tenha gosto por ela – o que pode suceder em qualquer tempo, em qualquer lugar, a favor ou contra as inclinações da moda. Entretanto, será o próprio regionalismo histórico nosso que examinarei agora, do ponto de vista pessoal que escolhi de início, pois não o considero superado: pelo menos quanto a mim, ele tem inúmeras ligações com a posição nordestina e tradicional que procuro. E, também pelo menos quanto a mim, basta isto para lhe dar validade a meus olhos. É claro que podemos ambos ser anacrônicos, mas ser anacrônico é algo que nunca me preocupou; pelo contrário. Dentro desta orientação, gostaria de falar primeiramente sobre a região. Prefiro empregar o termo assim, menos rígida e mais amplamente, pois sob o nome de regionalismo tem-se englobado tanta coisa de qualidade diferente que é impossível tomar pé ante ele. De modo geral, parece que o regionalismo é uma posição inicial: a daquele que quer criar a partir da realidade que o cerca. A partir daí, porém, cada um toma seu caminho. O que é ótimo, pois afirma-se, de tal modo, que afinal de contas cada artista revela um mundo que é somente seu. Mas vêm então os estudiosos e sentem, ao que parece, uma necessidade didática de classificação. Aí, aquilo que era uma vantagem da origem a uma indefinição de princípios em relação ao movimento. Tal indefinição, no que se refere ao nosso regionalismo, tem-lhe valido certas críticas, às vezes injustas, mas às vezes justas, principalmente no sentido de que é um movimento que fica no pitoresco. Isto é devido, em primeiro lugar, ao fato de que o nome muito geral de “regionalista” acolhe também aqueles que ficam pelas aparências da região, pintando pescadores, es-
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culpindo cambiteiros, escrevendo sobre ambos, sobre cangaceiros, etc., tudo aparentemente dentro do movimento, mas na realidade fazendo arte deplorável. O certo é que não têm nenhuma importância e um só artista de importância que surja num movimento dá a ele autenticidade e força. Em segundo lugar, acontece que o próprio Gilberto Freyre, levado pelo justo e legítimo desejo de ver escritores, dramaturgos, pintores e escultores, provando que se podia fazer da melhor qualidade com os elementos da região, era, principalmente quando começou sua pregação, atacado de impaciência porque eles não apareciam e via-se obrigado a apoiar alguns que não estavam à altura da tarefa. Quando, para exemplificar, vejo José Lins do Rêgo dizer que o regionalismo, “no plano artístico, é uma sondagem na alma do povo, nas fontes do folclore”, sinto uma sensação imediata de repulsa e me recuso a ser chamado de regionalista. Tal regionalismo fica nas aparências do social, fazendo jus a todas as acusações de pitoresco, enquanto que a arte tem de se enriquecer da luz do real pelo sensível, pelos homens, pela vida, pelas coisas que nos cercam, sendo, portanto, algo muito mais profundo. É por isso que procuro um teatro que tenha ligações com o clássico e com o barroco: na minha opinião, esta é a posição que pode atingir melhor o real, no que se refere a mim e a meu povo. Faço da originalidade um conceito bem diferente do de hoje, procurando criar um estilo tradicional e popular, capaz de acolher o maior número possível de histórias, mitos, personagens e acontecimentos, para atingir assim, através do que consigo entrever em minha região, o espírito tradicional e universal. Quero ser, dentro de minhas possibilidades, é claro, um recriador da realidade como tragédia e como comédia, a exemplo do que foram Plauto, Breughel, Molière, Bosch, Shakespeare, Goya e nossos grandes pintores coloniais. Quero um teatro trágico e cômico, vivo e vigoroso como nosso romanceiro popular, um teatro que se possa montar, sem maiores mistérios, até nos recintos de circo, onde o verdadeiro teatro tem-se refugiado, depois que o teatro moderno enveredou por seus caminhos de morte e decadência. Ao agir assim, é claro que não preconizo uma volta ao passado. Não quero o teatro antigo nem o moderno, quero o perene. O de hoje, ou é inconsequente (o chamado teatro digestivo) ou tedioso (o digressivo, seja político ou litúrgico – Claudel ou Brecht). Contra eles, quero fazer teatro como os clássicos faziam e não se faz mais hoje: teatro feito com gente, para gente, com histórias de gente, que tenham princípio, meio e fim. Um teatro que tenha coragem de juntar personagens diferentes,
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Crítica de Arte em Pernambuco
Escritos do século XX
investindo contra um falso entendimento da unidade de estilo. Na vida também há diversidade: personagens de tragédia e de farsa misturados numa só história. O século jansenista francês foi que inventou a unidade de estilo entendida erradamente, o que não havia entre os gregos e muito menos entre os grandes barrocos que foram os elisabetanos. Mas o teatro francês é “teatro de bom gosto”: arte é outra coisa. Assim, prefiro que as histórias sejam dessas histórias sem dono que correm mundo e receberam na sanção coletiva o batismo nordestino. Através delas, procuro absorver o espírito ao mesmo tempo trágico e cômico de meu povo, criando um ângulo novo para olhar o espetáculo do mundo. Quanto mais humanas e coletivas sejam as histórias, quanto mais vivos os personagens, tanto maior número de pessoas, seja em quantidade seja em qualidade, será afetado por elas. Uma arte que, sem concessões de qualquer espécie, atinja profundamente tanto o público comum que vai ao teatro ver um espetáculo, como o rapaz pobre da torrinha, que vai ali em busca de alguma coisa que lhe é quase tão necessária quanto o sono, será sempre superior àquela que só atinja um ou outro. Também, considero um mero acaso que minha região seja rica dessas histórias coletivas que me interessam profundamente. Um acaso afortunado, mas acaso. Minha inclinação é portanto coincidente com a da região, unicamente porque o material que aqui encontro satisfaz meu anseio de comunhão com o real, anseio possuído pelos mestres que admiro e que tento tropegamente imitar. Se a arquitetura de minhas peças é aparentemente convencional, é buscada de propósito, para marcar minhas diferenças com o teatro contemporâneo e, ao mesmo tempo, para facilitar uma comunhão com o público, comunhão que existia no teatro tradicional e que desapareceu agora. A coisa mais fácil e mais frequente no teatro moderno é a “originalidade” e, assim como os verdadeiros pensadores insuflam carne, sangue e vida àquilo que aos olhos modernos parece fórmula morta, acredito num teatro em que se comunica o sangue e a vida dos personagens e histórias a arquiteturas que parecem convencionais aos olhos modernos, mas que são, na verdade, tradicionais e perenes. Que isso sirva de pretexto a espíritos limitados para repetição de obras alheias e adoção de receitas, é outro fato sem importância e que absolutamente não me preocupa. Acredito assim que, por uma inclinação que me é natural e que não forço, minhas peças reflitam o ambiente de minha região ou, pelo menos, os aspectos desta região que penso ver e que formam o cerne do que
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tenho a contar. Minha arte procura se alimentar dessa luz que parte do real e a ele retorna, oferecendo uma resposta domada à sua solicitação fascinante e feroz. Entretanto, conforme já assinalei, reina certa indefinição entre os regionalistas a propósito das linhas que dirigem o movimento. E, quando o próprio José Lins do Rego, falando sobre o grupo recifense, diz que “a este regionalismo poderíamos chamar de orgânico”, sinto-me mais à vontade para me incluir nele, ainda mais porque o texto ensina, adiante, que ser de sua região significa “ser-se mais uma pessoa, uma criatura viva, mais ligada à realidade”, o que, sem dúvida, se aproxima do que procuro. Note-se, aliás, de passagem, que Gilberto Freyre também faz questão de distinguir entre o artista que se serve da arte popular como fonte, superando-a, e o que fica no que ele chama de “folclorismo”, conforme se depreende da nota bibliográfica de seu recente e monumental Ordem e progresso, no trecho a propósito de Villa Lobos. Quanto à obra de Gilberto Freyre, mais particularmente, creio que discordo da maioria num ponto muito importante em relação a ela. Não se trata da velha questão de saber se Gilberto Freyre escreve bem demais para ser sociólogo ou não. Quanto a isto, a única coisa que posso dizer é que ele é o único que leio. E uma das coisas que me levam a simpatizar mais com sua obra são os ataques que ele sofre, principalmente sob o pretexto de que sua sociologia não é científica. Para mim, pelo contrário, sua obra tem caminhado num sentido cada vez mais aberto, mais filosófico e, por isso mesmo, mais profundo e verdadeiro. Eu não gosto da sociologia cientifista. Sei que ela é importante, com suas estatísticas e constatações. Mas há muita coisa importante de que não se gosta e, para mim, esta sociologia é uma delas. Na minha opinião, é ótimo que a sociologia gilbertiana se torne cada vez mais filosófica e menos sociológica. Acho, por exemplo, um livro como Ordem e progresso mais humano e mais liberto de certos materialismos do que Casa grande & senzala. Se bem que não concorde com a desconfiança que este despertou a princípio em certos católicos, achando, pelo contrário, que ele veio abrir um caminho para livrar a sociologia de vários vícios de origem. Que tenha algumas marcas dessa origem – conforme salientou Luís Delgado em artigo que reconhecia, com justiça, a grandeza da obra – é explicável, dado seu caráter de desbravador. E é justo assinalar, também, que as perspectivas da obra gilbertiana inteira vêm se alargando à medida que ela caminha no tempo, renovando-se e procurando-se, conforme assinalei no começo.
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Assim, discordando da maioria, acredito que os grandes momentos de Gilberto Freyre são aqueles – quase todos – em que ele deixa falar o intuitivo que há nele. Não acho, como José Lins do Rego, que nele “é o poeta que se liga ao sociólogo e não o larga nunca”. Penso que Gilberto Freyre caminha cada vez mais no sentido de conseguir uma síntese, atingindo aquele “conhecimento poético” de que fala Marcel. E lamento mesmo, às vezes, que ele não tenha encerrado ainda o ciclo de seus ensaios sociológicos para, sem as limitações do social, tentar a interpretação puramente filosófica da nossa realidade. Sua sociologia, porém, dá a entender que esta incursão é inevitável, ela virá com a tempo. Na verdade, porém, desconfio que sociologia mesmo é a que ele faz, a outra é um meio auxiliar. E tal crença aumenta quando vejo, por exemplo, a atitude diferente que tomam diante do mesmo fato Gilberto Freyre e outros pesquisadores. A escultura popular de Vitalino é um desses. Eu jamais valorizaria uma arte pelo simples fato de ser ela regional e popular: essa escultura sempre me pareceu de segunda ordem e portanto desinteressante, opinião que seu atual sucesso entre os burgueses está começando a corroborar. Pois bem: espantando-me recentemente diante de Gilberto Freyre que uma pessoa de seu gosto tivesse contribuído para valorizar aquilo, tive a surpresa de ouvir em resposta que ele era da mesma opinião que eu. A propaganda feita em torno do escultor de Caruaru fora obra de outros pesquisadores e não dele: o intuitivo acertara e os sociologistas ficaram nas aparências do pitoresco e do social. O contrário ocorre com os santos de madeira e barro, que Gilberto Freyre tudo fêz para valorizar, apontando um caminho vivo, fecundo, nordestino, barroco e tradicional à nossa escultura, numa lição até hoje infelizmente não apreendida nem aproveitada em seu grande alcance. Quanto à pintura, num artigo publicado, se não me engano, antes de 301, a respeito de nossa natureza como fonte de recriação para nossos pintores, fala Gilberto Freyre “de amarelos e roxos espessos, oleosos, gordos, às vezes dando vida a formas que são meios-termos grotescos entre o vegetal e o humano, verdadeiros plágios da anatomia humana, do sexo do homem e da mulher, formas no verão alto chupadas pelo sol de todo esse sangue, de toda essa cor, de toda essa espécie de carne; e quase reduzida aos ossos dos cardos; a relevos duros, ascéticos, angulo-
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O autor refere-se ao ensaio Algumas notas sobre a pintura no Nordeste do Brasil (1925), publicado neste livro. [Nota dos editores]
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sos, assexuais”. Estas palavras são cheias de sugestões para um grande pintor disposto a se abrir diante de nossas formas. E não posso me impedir de lembrar a pintura de Francisco Brennand, que elas pareciam anunciar. Imagino sua novidade no tempo em que foram escritas, pois elas são novas ainda hoje. Mas fica-se de repente perplexo ao vê-lo exaltar, no mesmo artigo, a medíocre pintura mexicana, que estava e está longe de realizar, em relação à sua região, o que Gilberto Freyre sonhava para a nossa. Sonho que o leva, no mesmo artigo, a catar, à falta de um verdadeiro grande pintor, pelo menos vestígios dele em obras que começavam a aparecer no Nordeste e que não passavam de tentativas, de esboços, em sua maioria falhados e sem força. Sonho que, com certas limitações, José Lins do Rego pôde provar não ser vão, quanto ao romance. E Cícero Dias, também de certo modo, quanto à pintura. Porque, na minha opinião, só recentemente a pintura e o romance regionalistas alcançaram uma dimensão universal entre nós através de dois grandes artistas, um mineiro – Guimarães Rosa, e outro pernambucano – o pintor Francisco Brennand. É preciso porém lembrar que Gilberto Freyre tinha que adotar, nesse tempo, uma posição de profeta, pregando no deserto: ele precisava provar de qualquer modo que a posição regionalista era legítima, sofria ao vê-la desprezada, e tinha de catar, aqui e ali, os exemplos de que necessitava para converter e ensinar. Aliás, falo assim, pensando nos outros, não em mim. Desde adolescente, desde menino, quase, desejei escrever criando personagens intuídos a partir da realidade que me cerca. Não considero esta a única posição válida. Penso, por exemplo, em Henri Rousseau, que pintava árvores, florestas e bichos tropicais que nunca tinha visto a não ser através de gravuras, isto na Paris impressionista do final do século XIX e do começo do XX. Penso em Joseph Conrad, polaco, naturalizado inglês, recriando com mão de mestre, como Gauguin, a realidade, os aventureiros, os nativos e as paisagens dos mares do Sul. Posição que o próprio Gilberto Freyre considera legítima, admitindo que a pessoa crie para si o que ele chama “uma região espiritual”, quando a sua não entra em acordo com o mundo interior do artista. Mas o fato é que tal posição praticamente identifica o regionalismo com qualquer ato criador, pois só considera ilegítima a posição do artista que cria sua obra desencarnadamente de qualquer tempo ou espaço, o que – a se excluir, talvez, a música pura e a pintura abstrata – é uma posição que só se admite teoricamente, para efeito de discussão. E então, para que o nome de regionalismo? Este vol-
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ta a assumir aquele caráter de comunhão com a realidade, ora através da região que cerca o artista – o que é a posição normal – ora de outra de sua livre escolha. É por aí que ele atinge seu aspecto mais profundo e tanto mais simpático porque, no panorama da arte contemporânea, é a forma mais vigorosa de nos opormos a uma certa arte desencarnada a que uma falsa ideia de pureza nos quer obrigar. Quanto à minha arte, propriamente, se me referi ao romance nordestino linhas atrás, não foi por acaso. Foi através dele que recebi, quanto a ela, a maior parcela de influência do movimento. Muitas coisas, aliás, me impeliram para esse caminho. Assim, à primeira vista, devo acentuar o fato de ser filho de família sertaneja, criado em fazendas e numa pequena cidade do sertão paraibano. O acaso também desempenha um papel importante em nossa formação: meu pai gostava muito da literatura popular nordestina. Leonardo Mota era seu hóspede, de vez em quando, e ouviam juntos os cantadores que o cearense levava à nossa casa, com seus livros e cantigas anotadas. Mal aprendi a ler, descobri esse material e decorei alguns dos romances, autos e moralidades que ainda hoje são meus temas obsessionais em teatro. Também Monteiro Lobato, cujos livros infantis foram uma grande felicidade de minha infância e que procurei depois, decepcionando-me um pouco com suas limitações, mas que não deixou de me chamar a atenção para o fato de que era errado repetir servilmente aqui os modelos europeus de má qualidade. Que salientava também a riqueza de nossas folhagens, indicando-a aos artistas como ponto de partida para uma arte nossa. Mas para mim, o romance nordestino tinha uma importância toda especial. A revelação que tive dele, também na infância, deu-me um caráter de maravilhoso ao cotidiano, ainda mais porque eu conhecia Itabaiana e Pilar, morava por ali, eram nomes familiares às conversas que eu ouvia: um romance passado naquele lugar mergulhava de repente tudo aquilo que eu conhecia no universo fascinante da arte, cujo papel de “solenizar a vida” aqui se tornava efetivo, diante de meus olhos. Minha primeira tentativa teatral: eu descobrira o teatro de Ibsen, numa velha tradução francesa pertencente a um médico culto e inteligente de Taperoá. Deslumbrado, tentei escrever também uma peça, logo abandonada, exatamente porque o drama urbano ainda não correspondia a nenhum anseio fundamental meu e eu sentia algo falso e mentiroso no que escrevia, tentando repetir Ibsen através de seus próprios caminhos – tão afastados do mundo que me rodeava. Foi preciso que,
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anos depois, no movimento do Teatro do Estudante de Pernambuco – decisivo para mim – Hermilo Borba Filho me desse uma peça de Lorca para que eu descobrisse que era possível atingir o tom eterno da tradição através de minha circunstância. A semelhança entre a Espanha e o Nordeste, a tradição ibérica e mediterrânea, começaram a me obsedar. E a primeira peça que consegui escrever foi o resultado dessas duas influências principais: a do romance nordestino e a de Garcia Lorca. Fato curioso e que cito de passagem é que Gilberto Freyre renegou daquela vez a tentativa, num concurso de que foi julgador e que ganhei contra seu voto. O que prova que, logo que pôde, ele deixou de aceitar as aplicações defeituosas do movimento, pois aquela era realmente uma peça ruim. Mas como a outra – que foi a votada por ele – também não era boa, acredito que ele tenha sido levado a isso – além da possibilidade de a minha ser ainda a pior – por dois fatos que nos separam: em primeiro lugar, Gilberto Freyre é antes um romântico do que um clássico; ele próprio considera o movimento regional-tradicionalista “neorromântico, em suas tendências gerais”; depois, ele é um homem da zona do açúcar, visceralmente ligado às formas, cores, coisas de sua região, enquanto eu sou sertanejo, da civilização do couro. E, apesar de suas tendências apolíneas à harmonia, ele nunca pode esconder, por exemplo, que simpatiza mais com Nabuco do que com Euclides da Cunha, em quem viu, com muito acerto, um sertanejo, e a quem, carinhosamente, censura por comer à força, sendo um asceta de cara fradesca, como todo sertanejo. Ora, minha peça, sertaneja, com tendências antes clássicas do que românticas, concorria com outra da zona da mata, em que o sexualismo dos engenhos estava presente, através de um amor incestuoso entre pai e filha. E, entre duas experiências falhadas, é natural que Gilberto Freyre tenha se inclinado por aquela que aflorava seu mundo, novamente impaciente de vê-lo vivificado e eternizado nas formas da arte. Entretanto, a influência de Gilberto Freyre veio se concretizar não mais diretamente em minha arte mas em minhas ideias, agora através da tradição, o que tem, aliás, se acentuado nos últimos anos. Como ele – mais do que ele, talvez – antipatizo terrivelmente com o movimento modernista. Minha simpatia, no âmbito deste movimento, vai mais para aqueles que renegaram o fundamental das ideias de 22, como acontece, a meu ver, com Carlos Drummond de Andrade. Eu detesto aquilo que se chama “arte de vanguarda”. Não dá dois anos, a arte de vanguarda vira retaguarda. Esta aversão levou-me a procurar a tradição, voltando-me
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para aqueles mestres que são “eternamente nossos contemporâneos”. Eu sentia e sinto que é preciso reencontrar os tesouros da tradição mediterrânea que a arte europeia contemporânea renega. Mas onde rastrear os elementos que nos permitissem assimilar estes segredos em formas nossas? O problema era tanto mais grave em meu caso particular. Nascido de família protestante, estava sendo educado em colégio protestante, por educadores americanos. A guerra trouxera multidões de americanos ao Nordeste. Com eles, ideias, estilos de vida, maneiras americanas. E eu sentia em tudo isso uma ameaça maior do que a nazista, que pelo menos estava mais longe e contra a qual estávamos em guerra, isto é, em oposição declarada. Foi neste período decisivo de minha vida que me caiu nas mãos uma conferência importantíssima de Gilberto Freyre. Chamava-se “Uma cultura ameaçada, a Luso-Brasileira”. Contra o cientificismo e, ao mesmo tempo, contra um nietzschianismo então muito em voga com o período de vitórias do nazismo, chamava Gilberto Freyre a atenção do adolescente que eu era então para “sentimentos que, sem serem rigorosamente experimentais, são, entretanto, realidades tremendas para a vida, a sociedade e a cultura dos povos ameaçados pela negação dos mesmos sentimentos, os quais seriam substituídos por outros menos lógicos”. Acentuava o erro dos novos sistemas ao sonharem com a destruição do que havia de tradicional na cultura ocidental. Falava desta civilização ocidental, “cujas deficiências são decerto enormes, civilização que precisa de ser reorganizada no mais profundo de sua economia e de sua vida, sem que entretanto se justifique o abandono de toda rotina pela aventura de alguma organização inteiramente nova, brutalmente contrária a tudo que é sentimento, forma e estilo de vida tradicional”. Apresentava como caminho a todos nós “a cultura de origem portuguesa, tornada aqui plural, aberta a outras culturas, conservados os valores tradicionais portugueses como o necessário lastro comum, conservada a língua portuguesa como instrumento nacional único de intercomunicação verbal entre os brasileiros de todas as regiões e de todas as procedências, não só por sentimento de tradição como por necessidade prática da articulação das mesmas regiões em nação ou, antes, em larga democracia social, conservado o cristianismo que os portugueses trouxeram a esta parte da América como a forma apolítica mas igualmente nacional ou geral – tão nacional ou geral como a língua – dos brasileiros de origens diversas se intercomunicarem se não sempre
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religiosamente, eticamente – ede participarem – se não religiosa, eticamente – da larga sociedade cristã de que fala T. S. Eliot em livro recente: aquela em que o natural do cristianismo é aceito, sociologicamente por todos; o sobrenatural – com seus dogmas, suas doutrinas, sua teologia – pelos que têm olhos para o sobrenatural”. Voltava a se referir insistentemente na conferência ao cristianismo católico e tradicional dos portugueses, que se opunha ao protestantismo rígido, puritano e estreito dos nórdicos. Dizia que “o cristianismo nunca animou nos portugueses aquele sentido como que profilático de defesa não só da alma como do corpo, tão forte nos puritanos colonizadores da Nova Inglaterra”. Nomes que eu desprezava ou a que ficava indiferente, na História do Brasil, porque eram citados naquele estilo frio, falso, mentiroso, laudatório, da linguagem oficial, apareciam com outra dimensão – Vieira, Camões, Jerônimo de Albuquerque, João Fernandes – sob uma outra luz, que novamente dava dignidade àquilo de que eu sentia necessidade para resistir à invasão espiritual e que já amava sem saber. Era Gilberto Freyre quem vinha me revelar que tínhamos uma tradição e que o caminho que eu procurava era este: “Dentro de suas culturas – quando as possuem vigorosas de tradições como nos portugueses e brasileiros as possuímos – é que os povos verdadeiramente se defendem daqueles imperialismos animados do ideal de reduzir os homens por eles considerados física e culturalmente inferiores – por serem diferentes na cor, na forma do nariz, nos valores de cultura – a seus vassalos, a seus lacaios, a seus servos. Daí o fato de, conscientemente ou não, já estarmos há muito tempo em guerra, os brasileiros, contra imperialismos dessa ordem – não um só, mas vários; e na defesa de valores de cultura essenciais à nossa vida.” Este escritor, tantas vezes acusado de acomodado, advertia-nos de que nós não devíamos “docemente nos submeter à uniformidade continental de regime político desejado por certos americanistas ou a de qualquer espécie de tutela dentro do continente”. Denunciava “os casos de repúblicas da América Meridional e notadamente da Central que têm sofrido o domínio e não apenas a exploração econômica, de instituições plutocráticas do próprio continente americano”. Desmascarava os que estavam empreendendo uma “campanha de desprestígio das tradições luso-brasileiras do Brasil”; os que não reconheciam a grandeza do “estabelecimento, na América, da sociedade que pretende desenvolver-se na maior democracia social dos nossos dias”; os que tentavam dar uma “impressão de miséria intelectual e estética da língua portuguesa, que
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não estaria, assim, em condições de ser aceita e adotada por europeus de procedência mais ilustre – segundo supõem – do que a lusitana”. Em suma: com essa conferência, Gilberto Freyre despertava minha atenção para a língua, cujos clássicos comecei a procurar (levado também, mais proximamente, pela mão amiga de José Laurênio de Melo); para os valores tradicionais, através das velhas casas e igrejas, com suas pinturas, suas cerâmicas, suas talhas e sua arquitetura; para um estilo de vida; para a possibilidade de um caminho na minha arte; e, o que é importante, para a fé católica. Não importa que sua admiração pela Igreja fosse antes de caráter ético e estético do que propriamente religioso e confessional – o que, espero, também virá com o tempo. O que importa é que, mais tarde, quando voltei a procurar nesse campo, sabia que nada mais tinha a perguntar ao protestantismo em que tinha sido educado, mas sim ao catolicismo vivo e aberto. Assim, desanimado por duas novas experiências de pega desenraizada que tentei, resolvi voltar à realidade que me cercava, numa posição em que já tinha feito duas tentativas – Uma mulher vestida de Sol (sob influência de Lorca e do romance nordestino) e o Auto de João da Cruz (já mais pessoal). E foi à fonte tradicional e popular que voltei. Repito: não somente porque ela é a nossa, mas porque a poesia épica popular do Nordeste dá uma lição a todos nós, está a um passo da dramaturgia, da épica e da novelística com que secretamente sonho como as únicas formas aptas a reconduzir nossa literatura e nossa arte a seu verdadeiro caminho – tradicional, realista e barroco – no sentido de posição e não histórico. As peças do teatro moderno são de uma facilidade decepcionante. Nelas não há dificuldades – e portanto também não há estímulo – para o encenador nem para os atores. Seus personagens são profundamente bem-comportados, nunca inventam, nunca se contradizem. Se são trágicos, entram assim no primeiro ato e assim saem no último, mortos com toda elegância, respeitadas convenientemente todas as regras – menos a fundamental. Que diferença dos séculos de vigor, em que o teatro europeu era vivo e jovem! Tinham peças malfeitas, desorganizadas, seja! Mas como parecem mesquinhas diante delas as peças simplesmente bem feitas do teatro contemporâneo! Pois bem: nós não somos sufocados por séculos de arte acumulada, temos filões riquíssimos a explorar, temos uma arte popular viva e fecunda, uma tradição que pode nos fornecer o exemplo e, ao mesmo tempo, temas e problemas que atingem sem dúvida a tragédia e a comédia puras. Somos um povo jovem e
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assim, com esse caráter popular, tradicional, vivo e denso de espetáculo, foram criadas as peças dos povos jovens, o grande teatro, o grego, os mistérios medievais, o elisabetano, o vicentino. Se conseguirmos fixar essas experiências e realizar tal teatro, de um modo que esteja à altura de nossa região, estaremos, ao mesmo tempo, religados à verdadeira tradição do teatro europeu de que descendemos, e afastados do fanado teatro moderno, falsamente refinado, bem-educado, bem comportado, sem grosserias, trocadilhos ou frases de mau gosto, mas cheio de problemas sem sentido – em suma, um teatro que tem tudo, menos vida autêntica, autêntica força e verdadeiro sentido humano. Ao formular este esboço de programa, reencontro a divisa gilbertiana de que parti e de que pareci me afastar tanto, às vezes: região e tradição. Talvez, no meu caso, mais tradição do que região. Ou região porque permite a tradição. Para mim, o importante é reencontrar os segredos que a arte tradicional revelou e que estão sendo cada vez mais renegados e esquecidos. Não para imitá-los, mas para formar o lastro sobre o qual firmaremos os pés para a recriação. O Nordeste é importante exatamente porque oferece, através de algumas manifestações artísticas valiosas, largo campo a esse reencontro, que a Europa nem sequer procura mais, apegada aos mitos de uma falsa vanguarda, inteiramente acadêmica, pior ainda do que a arte acadêmica porque tem aparências de renovação. Por outro lado, a ameaça a que Gilberto Freyre se referia em 1940 não cessou: nossa cultura continua ameaçada. Estamos a caminho de nos tornar uma América de segunda ordem, no que se refere à vida de família e aos valores de cultura mais importantes. Quanto à arte, uma falsa concepção da liberdade particular vai permitindo a derrubada de nossos velhos bairros e de nossas velhas casas, construindo-se em seu lugar as coisas mais feias daquilo que já está sendo chamado entre os burgueses de “estilo funcional”, estilo cujos exemplares bastardos vão fazer nossa geração responsável por outra moda tão detestável quanto o bolo de noiva , como o primeiro, internacional e feio. A pintura está se afogando na busca de uma pureza esterilizaste e sufocante, isto com tão poucas exceções que não bastam para nos tranquilizar. A escultura não existe, nem aqui nem na Europa. O teatro sofre a influência do teatro europeu moderno, retrato exato de certas ‘’nações exemplares” que considero detestáveis. A Inglaterra elisabetana, que não tinha nada de exemplar, deu o teatro de Shakespeare, a Itália dos Bórgias deu todo o esplendor da arte florentina. As nações exemplares, como a Suíça, só
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conseguiram dar hoje a estéril pureza tipo Klee ou Mondrian. A lição de Gilberto Freyre é então, agora, mais atual do que nunca. Dou-me o direito de discutir, às vezes, com ele, mas o cerne de seu ensinamento continua a ser verdadeiro. Estamos vivendo um século de vigor aqui, muito diferente daquele que a Europa vive. Por outro lado, a América não tem, como o Brasil as possui, reservas espirituais suficientes, exatamente por causa daqueles fatores que Gilberto Freyre salientou aqui – a língua, a solução ao problema do convívio racial quase resolvido (digo quase porque a Marinha recusa vergonhosamente pretos ao oficialato, o mesmo acontecendo, para maior vergonha, com algumas ordens religiosas), a tradição católica, a herança mediterrânea, o vigor e a sabedoria de nosso estilo de vida. Lembro-me da fé que Dostoievski tinha na Rússia do século XIX, exatamente pelo que ela tinha de russo e pela capacidade que isto lhe dava de assimilação do que vinha de fora. Mas se formos infiéis a nosso lastro – principalmente no que toca à justiça social e ao convívio racial – corremos o perigo de ver todas as nossas esperanças desfeitas, como os russos viram as suas aportando pura e simplesmente num regime policial em que os valores materiais são ídolos, gozando de tanta importância quanto a de que gozam no país nórdico que é seu rival mais importante. Nossa arte manter-se-á fiel à realidade através do lastro tradicional, ou não se manterá de modo nenhum. E nunca será demais lembrar que foi o movimento dirigido por Gilberto Freyre o primeiro a anunciar profeticamente esta verdade.
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Originalmente publicado no Jornal do Commercio. Recife, 20 de abril de 1968.
—Jomard Muniz de Britto
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MANIFESTO TROPICALISTA Porque somos e não somos tropicalistas
1. Constatamos (sem novidade) o marasmo cultural da província. (Por que insistimos em viver há dez anos da Guanabara e há um século de Londres? Por fidelidade regionalista? Por defesa e amor às nossas tradições?) 2. Recusamos o “comprometimento” com nossos “antigos professores”. (Porque eles continuam mais “antigos” do que nunca: do alto de sua benevolência, de sua vaidade, de sua irritação, de seu histrionismo, de sua menopausa intelectual). 3. Lamentamos que os da “nova e novíssima geração” (a maioria pelo menos) continuem a se valer da tutela sincretista, lusotropical, sociodélica, joãocabralina, t-p-n-ística, etc. e tal. 4. Comprovamos (sem ressentimento) a decadência da esquerda festiva. (A exemplo do faz escuro, mas eu canto, das manhãs de liberdade, do vietnam por ti e por mim, e outros “protestos” puramente retórico-panfletários).
Jomard Muniz de Britto
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5. Afirmamos: “Dessacralizando e corrompendo a esquerda festiva, o tropicalismo investe e arrebenta, explode e explora os seus adeptos tanto quanto os seus atacantes”. (Quá, quá, quá, para os que “não nos entendem”...) 6. Somos (sem subserviência) por Glauber Rocha, José Celso Martinez Corrêa, Nelson Motta, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Hélio Oiticica, Adão Pinheiro, José Cláudio, os poetas de vanguarda. Tudo que for legitimamente NOVO. 7. Reconhecemos a transitoriedade (o trânsito e o transe) do tropicalismo, junto ao perigo de comercialização, de mistificação, de idolatria. Assim como dizemos “abaixo a festiva”, acrescentamos: “abaixo o fanatismo tropicalista!” (Por isso, quem tentar nos apelidar, sorrindo, de “tropicalistas” – ou não tem imaginação, ou é dogmático, ou quer bancar o engraçadinho, ou é burro mesmo). 8. A vanguarda contra a retaguarda! A loucura contra a burrice! O impacto contra a mediocridade! O sexo contra os dogmas! A realidade contra os suplementos! A radicalidade contra o comodismo! 9. “Tropicalistas de todo mundo, uni-vos” – Jomard Muniz de Britto, professor e ensaísta; Aristides Guimarães, compositor de música popular; e Celso Marconi, repórter e crítico de cinema.
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Publicado originalmente em exposição individual de Raul Córdula na Oficina 154. Olinda, 1968.
—Jomard Muniz de Britto e Aristides Guimarães (PE), Alexis Gurguel (RN), Anchieta Fernandes (RN), Caetano Veloso (BA), Carlos Antônio Aranha (PB), Celso Marconi (PE), Dailor Varela (RN), Falves da Silva (RN), Gilberto Gil (BA), Marcus Vinícius de Andrade (PB), Moacyr Cirne (RJ) e Raul Córdula Filho (PB).
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Escritos do século XX
II MANIFESTO TROPICALISTA Inventário do nosso feudalismo cultural
1) O ALGO MAIS QUE OS SIMPLES RÓTULOS NÃO DIZEM O que é tropicalismo: posição de radicalidade crítica e criadora diante da realidade brasileira hoje; vanguarda cultural como sinônimo de militância, da instauração de novos processos criativos, da utilização da “cultura de massa” (rádio, tv, etc.) com a finalidade de desmascarar e ultrapassar o subdesenvolvimento através da explosão de suas contradições mais agudas; “ver” com olhos “livres”. O que é tropicanalha: atitude conservadora e purista em face da cultura e da realidade brasileira hoje; retaguarda cultural significando alheamento, de tentar dar respostas passadas aos problemas, revelando o passadismo através da nostalgia, do donzelismo, do pitoresco do cartão postal, da carência de informação, contribuindo assim para uma perpetuação do subdesenvolvimento; enxergar com viseiras e preconceitos.
Jomard Muniz de Britto e Aristides Guimarães, Alexis Gurguel, Anchieta Fernandes, Caetano Veloso, Carlos Antônio Aranha, Celso Marconi, Dailor Varela, Falves da Silva, Gilberto Gil, Marcus Vinícius de Andrade, Moacyr Cirne e Raul Córdula Filho.
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Além e aquém dessas posições podem existir muitas outras. 2) VAMOS SOLTAR O TIGRE DAS PERGUNTAS Por que os departamentos de cultura de nossas “Universidades” não ouvem os estudantes na programação de suas promoções? Pode haver reforma universitária sem a participação efetiva dos estudantes? Pode existir universidade livre num país sem liberdade? Onde encontra a Imprensa Universitária justificativa para suas publicações? Correspondem elas aos interesses das classes estudantis e intelectuais? Foi realmente “Extinto” o acordo “Mec-Usaid”, ou apenas ficou mais disfarçado? Até quando os representantes da cultura oficial se utilizarão dos cargos que ocupam com o objetivo de promoção pessoal? Por que o dedodurismo (da queimação pessoal e profissional) em todas as repartições públicas, especialmente na Sudene? Por que não foram ouvidos os técnicos da Sudene em seu parecer contrário à “Cruzada ABC”? Já que nenhum serviço prestam à coletividade, por que não se “Extinguem” os Conselhos de Cultura e as Academias de Letras? O que se pode esperar de certos grupos teatrais que se afirmam confirmam como “propriedades privadas”, casas de fulano ou beltrano? Por que alguns jovens artistas ainda persistem numa política de completa subserviência aos industriais-artistas e aos intelectuais conselheiros, comprometidos com o poder constituído? Quando terminarão a erudição, a desatualização e o impressionismo gagá de nossos suplementos literários? Por que os nossos críticos em geral não saem de seus castelos para debaterem publicamente suas ideias? Por que se teme
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tanto a “Vanguarda Poética”? Será que os críticos preferem ser “guardiães de cemitérios” – ou apenas não estão capacitados metodologicamente para julgar o novo? Por que os nossos críticos de cinema ainda continuam a promover mais o cinema made in Hollywood? O desentendimento do público é maior que o da crítica especializada? Constituímos, em verdade, um dos centros cinematográficos mais importantes do país? Por que não “Desobedecer” aberta e radicalmente a Censura – incompetente, arbitrária e estúpida? Como admitir a censura exercida pelos “conselhos universitários”? Como se justificam o bom comportamento e a aceitação das normas impostas pela engrenagem de certos festivais de música, por parte de certos “compositores” sequiosos de promoção? DEBAIXO DAS PERGUNTAS E LONGE DO FEUDALISMO. a) Por toda iniciativa de cultura “não oficial”, descomprometida com a política cultural dominante. b) Pelo “Poder Jovem” (compreendido não apenas como um fenômeno de luta entre gerações) representado pelo movimento radical-estudantil e pelos intelectuais independentes. c) Por qualquer movimento de vanguarda cultural (pois não queremos impor unicamente a nossa posição) que se caracterize pelo rompimento com todos os padrões: morais, sociais, literários, sexuais, etc. e tal.
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Originalmente publicado em folder de exposição individual do autor, na Galeria IBEU. Rio de Janeiro: IBEU, 1968.
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DEPOIMENTO
Uma das características principais da arte atual é o seu poder de levar o espectador a uma ação. Este dado, a meu ver, é extremamente importante porque implica numa tomada de posição filosófica de parte do artista (e também do público), que é nova e sobretudo adequada aos dias de hoje, prenúncio e preparação para os anos vindouros. É com a noção de movimento e depois com a utilização do próprio movimento real que alguns artistas começam a criar obras, no começo deste século, que vêm dar um novo testemunho com uma nova visão da realidade. A partir dos construtivistas russos como Tatlin, Gabo, Pevsner e outros, do grupo do Bauhaus, de Marcel Duchamp, começa a quebra do mito sagrado da peça única e da obra de contemplação. Ação e contemplação implicam em duas atitudes diferentes perante a vida e o mundo. Não é, porém, gratuitamente, nem por acaso, que tal comportamento, na arte, começa a aparecer. Podemos dizer que a intensificação do processo social-econômico (aumento de população + aumento das necessidades = exigências de novas soluções) ocasionou o surgimento de melhores meios de produção. A segunda revolução industrial veio criar, especialmente nos países mais desenvolvidos, um ritmo de vida mais intenso e veloz. A ação veio, portanto, substituir a contemplação, uma vez que o tempo social da vida contemporânea é mais curto e mais denso em relação, por exemplo, ao tempo social de séculos atrás, devido às constantes mudanças motivadas pela necessidade vital
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de novas descobertas. Os meios de comunicação tendo, paralelamente, se desenvolvido, criaram um outro dado: recebemos informações de várias partes do mundo (ou de todo o mundo) e com isso absorvemos e permutamos influências de todos os tipos; isto é, queiramos ou não, o processo de universalização cultural é um fato. A arte não está desligada deste mecanismo social, pelo contrário, ela capta e, às vezes, antecipa de modo bem sensível todas estas mudanças e transições históricas. A passagem da arte contemplativa para a arte de ação é um exemplo sintomático da situação transitiva que vivemos, ou seja, da necessidade de adequação por parte do homem moderno a um mundo cujo ritmo pulsativo de vida tende a se acelerar cada vez mais. Evidentemente isto não ocorre em todos os países, pois há sociedades cujo processo vital está atrasado de muitos séculos, mas que serão obrigados, por força das circunstâncias, a se adequarem ao mundo moderno por questão de sobrevivência. No plano artístico também são várias as realidades e vários os níveis de progresso ou conquista de novos valores estéticos. Temos, no entanto, que dar mais apoio e ênfase à novidade (no sentido de originalidade criativa), pois esta é que representa a dinâmica da vida em seu estágio mais avançado. A arte de movimento, ou cinética, e a arte de participação são as novas conquistas no campo estético, pois aliam à procura e à descoberta de formas originais o desejo de se fazer agir sobre elas, recriando-as, possibilitando a todos o exercício e a vivência artísticas. Penso que a arte de participação é mais um passo para o entrosamento maior da vida com a arte. Começamos já a produzir em série, desmistificando a peça única, reminiscência artesanal multissecular. Fazemos arte com sentido ambiental e outras correntes artísticas estruturam sua maneira de ser conforme a aguda percepção que têm alguns artistas criadores. O artista, atualmente, faz uso e amplia sua percepção sensorial do mundo através de suas múltiplas possibilidades, dentro, é claro, das limitações que nos cercam. Com isto, a arte se estende a todos e estimula e desenvolve a nossa capacidade perceptiva. Possivelmente, a meu ver, isto nos levará cada vez mais a uma fusão do binômio arte-vida, pois as representações metafísicas do mundo irão se desbotando e desaparecendo em face da ampliação dos conhecimentos do homem com respeito a seu modo de ver, sentir, perceber e pensar sobre si mesmo e sobre as coisas que o cercam. A própria realidade e o poder do homem de penetrá-la e conhecê-la melhor trará e será em si mesma tão rica e cheia de
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inovações, que o artista, e com ele o povo, poderão exercitar continuamente a sua sensibilidade estética, pois a meta da arte é de se reintegrar com a vida, de tal forma que todos possam participar criativamente de tudo o que for feito pelo homem para o homem.
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Originalmente publicado em BRITTO, Jomard Muniz; LEMOS, Sérgio. Inventário de um feudalismo cultural. Recife: Gráfica Nordeste, 1979.
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O QUE FAZER DA CRÍTICA CULTURAL?
por uma crítica refletindo – como reflexo da reflexão, espelho direto e deformante, como descrição e interpretação, suspensão do julgamento e projeto de compreensão – uma crise de linguagem. rodando todos os fantasmas da fenomenologia e todas as fantasias estruturalistas. acordando as aparências e deflorando os inconscientes. crise de linguagem também como exercício de literatura: tanto das mais finas escrituras como das mais ferinas escriduras. a substituição do t pelo d sugerindo um breve sinal de deglutição antropofágica. substituindo o ponto de vista fixo dos cartazes publicitários pelos cortes visuais entre bocas e frutos, sérgio lemos propõe uma linguagem diferenciada. parodiando leituras semiológicas. confundindo o estabelecido. estabelecendo diferenças. por uma crítica alternativa, mantendo uma opção deliberada e dilacerada entre várias propostas – de linguagens. sem desejos de exclusão ou exclusivismo. entre o dever de negar (sempre) e o prazer de ex(er)citar-se (mais). entre a ética – como dever de negatividade e de pensamento divergente – e a estética – como desdobramento criativo de prazeres e fruições. entre a diferença pela raiz e o envolvimento pelo con-texto. contextura entre o guloso consumismo e a carência alimentar-elementar a pintura de sergio lemos se manifesta enquanto alternativa de desejos. ficções e fricções. inventário desejante. pulsões de transformação de uma prática social.
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por uma crítica partidária e ao mesmo tempo fragmentária: sem pretender qualquer tipo de isenção e muito menos uma rigorosa continuidade discursiva. desde que o crítico – em seu reforço de criação paralela não esconda a primeira pessoa do singular plural, sua ideologia, suas idiossincrasias. até nos meandros idioletais da crítica: certos estilos de tão pessoais se tornam indecifráveis. sobretudo as vanguardas se confrontam e se contracomunicam como idioletos, às vezes de rara decodificação. há sempre o risco de maneirismo – chame-se estilo ou contraestilo – na plataforma do ar. sérgio lemos, sem alistar-se na famosa escola pernambucana de artes plásticas (argh!), deseja saborear todos esses riscos. sejamos partidários mas não subjetivos demais ou dementes. sejamos fragmentários mas não diluidores de menos. por uma crítica, escridura ou contextura deglutidora dos impasses. por uma crítica tão polêmica quanto divertida, como se pertencesse à sociedade alternativa, antes decantada por raul seixas. talvez até muito mais humorada do que polêmica. corpo carnavalesco durante o ano inteiro e não apenas no período momesco. uma crítica que se permita e reconheça “engraçada”, sobretudo em sua busca de maior seriedade. ponta de lança: do consagrado oswald de andrade ao ignorado wilson araújo de sousa. até mesmo com o perigo de tropeçar em seus próprios trocadilhos. essas lanças humorísticas e esses lances de cruel afetividade, a grande imprensa procura desconhecer nos depoimentos-entrevistas de caetano veloso e gilberto gil. e a mais nova mania, depois dos excessos estruturalistas, de querer ideologizar tudo, termina resultando na maior escassez de humor. talvez, para isso, carlos guilherme mota deseje compensar a sisudez textual da ideologia da cultura brasileira com um caderno fotográfico dos mais irreverentes e oportunos, polêmicos e divertidos. jogando com os valores da classe média televisiva, sérgio lemos não foge dos traumas ideológicos que invadem o mercado de arte. por uma crítica enquanto forma de luta cultural, no acender e atiçar debates. a crítica por trás e adiante das citações por adorno ou do recitativo acadêmico-universitário. tão perfurante como as sondagens crítico-criativas de um sergio augusto, de um jean-claude bernadet, de um silviano santiago. (para ser fiel ao número três). deflagrando o que existe de luta pelo poder cultural em todos os debates de vanguarda ou de retaguarda, a exemplo do que vem sendo denunciado por afonso romano de sant’anna. é pena que, por autodefesa dos “intelectuais”, essa luta cultural venha se perdendo em exercício monologal: tigre de papel
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ou tigresa de canção. mas uma crítica que não “arrombe a festa” pode ser tudo menos crítica cultural. no diálogo que sergio lemos armoniza e, ao mesmo tempo, conflitua entre a nova objetividade e o hiper-realismo, se processa uma latente luta cultural. mínima, embora resistente. por uma crítica em projeção pedagógica, não em sentido psicologista nem por favor de didaticista. nem paternalista pelo reforço das circunstâncias subvencionadas. diante da repressão e da autocensura, do marasmo e das cooptações, onde encontrar as fendas, brechas e mínimos territórios livres(?) para contrapor uma crítica cortante em sua radicalidade? é preciso e urgentíssimo reler e reviver paulo freire: os círculos de cultura não são ficções, mas fricções histórico-existenciais. por uma educação crítico-criativa, conscientizadora porque libertadora. essa é nossa tarefa, a esperança concreta de todos nós.
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Escrito em 1981. Originalmente publicado na Revista PasĂĄrgada. Recife, setembro de 1994.
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O FUTURO IMPREVISÍVEL DA ARTE
Um dos aspectos mais significativos, do ponto de vista cultural, é o fato de que atualmente qualquer definição do que seja arte corre o risco de se perder na imprecisão, ou numa visão parcial do fenômeno artístico. Marcel Duchamp (por aqui às vezes citado, porém pouco compreendido) dizia que a arte era uma condição heraclitiana, logo uma condição circunstancial, de tempo e lugar. Kurt Schwitters, o célebre dadaísta alemão, falava que arte é aquilo que o artista “cospe”, isto é, bota para fora. Foi nesta frase, provavelmente, que o artista norte-americano Allan Kaprow (um dos mais importantes promotores de happenings) inspirou-se para dizer que “arte é tudo aquilo que o artista quer que seja”. O conceito de arte é extremamente elástico e se aplica a tantas atividades estéticas do homem, que difícil mesmo é dizer o que não é arte. Um breve parêntese: entre algumas espécies de animais existem também atividades lúdicas e estéticas. As teias de aranha, as colmeias, os labirintos arquitetônicos elaborados pelos cupins e formigas, possuem, todos, uma estética natural. As danças, brincadeiras, os “jogos” coreográficos na e para a conquista sexual, constituem uma atividade lúdica entre alguns animais. E, ainda, não mais no campo visual, mas sonoro e musical, o belíssimo canto de algumas aves, os sons agudíssimos e lancinantes das baleias e dos golfinhos. Fecha o parêntese. A partir do Dadaísmo (que, curiosamente, irrompeu em Zurique, na
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Suíça, país famoso também pelo seu apego à disciplina e à ordem, muito embora o seja menos atualmente) no começo deste século (1914 para ser mais preciso), todos os cânones e regras estéticas foram violentamente destroçados por esse movimento, cuja norma era romper com as regras. Possivelmente o primeiro gesto iconoclasta foi o de Marcel Duchamp, ao se apropriar de um garfo de bicicleta com a roda sem pneu, fincando-o para baixo, em posição contrária, em um tamborete comprido de madeira, trabalho ao qual chamou com enorme obviedade de Roda de bicicleta. Mas a obviedade e tautologia do título é evidentemente proposital: ele queria com isto evidenciar e revelar aos outros que uma roda de bicicleta pode também ser um objeto de arte, tirando-a do seu contexto utilitário de veículo automotivo para ser agora simples objeto de apreciação visual (e mental, digo). No entanto, Marcel Duchamp ainda não havia pensado em termos de ready made, isto só aconteceu um ano após, com o Secador de garrafas, quando passou a conceituar teoricamente sobre a forma de objetos fabricados e pré-fabricados. A meu ver, o primeiro objeto, chamado de Roda de bicicleta, foi “inspirado” ou calcado em cima de uma roda de bicicleta com pneu criado por Dunlop (John Boyd Dunlop, veterinário escocês), exposta em 1888, voltada para o alto o garfo preso numa tábua. Assim como a invenção do ready made por Duchamp foi obra de simples acaso, também a câmara de ar para pneu de bicicleta, segundo o próprio Dunlop, aconteceu do mesmo modo, por acaso. São decorridos oitenta anos (80 anos!). Pouca gente, no entanto, está informada deste fato, do gesto subversivo e iconoclasta de Marcel Duchamp. Com este gesto ele concretizou, literalmente, por antecipação, a frase já citada de A. Kaprow de que “arte é tudo aquilo que o artista quer que seja”. Mas há aí outra implicação de grande importância: foi o primeiro gesto de perceber nos objetos industrializados uma segunda natureza, a natureza urbana e industrial. Novo parêntese: os japoneses, há mais de mil anos, recolhem objetos naturais (pedras, pedaços de madeira, etc.) como se fossem obras de arte acabadas. Algumas pessoas chegavam a assinar seu próprio nome nos objetos achados.
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Eu chamaria de natureza urbana o mundo dos objetos criados pela indústria e que compõem, para o homem, um novo tipo de habitat. O fato é que o artista contemporâneo que vive em grandes centros urbanos industrializados sofre diretamente desse processo de influência do desenvolvimento tecnológico. A tecnologia, portanto, passou a desempenhar um papel considerável na estética de nosso tempo. Não é sem motivo que o desenho industrial assume, hoje em dia, foros de arte viva, atuante. Algumas pessoas chegam a considerar as máquinas e os mecanismos inventados pela técnica atual como as verdadeiras obras de arte de nosso tempo. No MoMA, de New York, há uma máquina de escrever Olivetti do pós-guerra que está exposta como obra de arte, entre outros tipos de máquina. Pessoalmente tenho certa reserva a aceitar esta tese como verdadeira, apesar de ser parcialmente válida. Por várias razões, inclusive porque aquilo que chamei acima de natureza urbana se aplica bem a centros industrializados altamente desenvolvidos, mas não a áreas cujo subdesenvolvimento ainda é flagrante. Somos, a América Latina, um grande continente subdesenvolvido, política, econômica e socialmente. E culturalmente? Se tomarmos por modelo a cultura europeia, não há dúvidas que nos colocamos em plano defasado em certos setores. Mas nem sempre a cultura está ligada a fatores econômicos, muito embora esteja sempre ligada a fatores sociais. Terceiro parêntese: é sempre bom lembrarmos que o cubismo francês de 1907 sofreu, entre outras, a influência da arte negra africana, oriunda e praticada em alto nível expressional em países subdesenvolvidos. Há, evidentemente, um antagonismo entre o status cultural latino-americano em relação à sua tecnologia, que é atrasada. É preciso saber até que ponto a evolução tecnológica do homem influi e determina novos padrões estéticos e artísticos e se a nova estética, proveniente do avanço tecnológico, corresponde às nossas necessidades espirituais. Nesse aspecto pode-se, inclusive, pôr em xeque a própria tecnologia. Ela tem trazido, ela traz atualmente, para o homem, uma melhoria do ponto de vista existencial? Ela tem melhorado a condição humana, do ser social que nós somos? Ou ela tem acarretado um maior número
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de problemas? E que dizer das armas de extermínio? Das bombas de napalm, das armas químicas e bacteriológicas? E das neuroses? E da alienação do homem, provocada pelo progresso tecnológico desordenado, dentro do qual a pessoa virou peça robotizada, sem vontade própria? E ainda temos aí a engenharia genética, ameaçando o futuro. Parece-me que a tecnologia é uma faca de dois gumes. Poderá ser positiva ou negativa, dependendo de como é empregada, de como é dirigida e para que fins é orientada. Estaria então no homem, no seu comportamento ético e social, político e filosófico, a base e a chave do seu próprio destino? Tudo indica que sim. Mas se é uma questão ética e filosófica, o que é que a arte tem com isso? Ora, toda estética implica numa ética, os gregos já o diziam. Não se pode dicotomizar, separar estes dois campos, que são integrados num só bloco: o da filosofia. Por isso, o artista, mais do que nunca, deve ser consciente do seu papel, deve assumir uma posição no que faz, na sua arte, a partir de uma filosofia, isto é, de uma maneira de ver, pensar e atuar na vida. Em si mesma a tecnologia não é negativa, o uso que se fizer dela e a forma como for empregada é que a conduzirão a um resultado positivo ou negativo. É preciso notar também que, historicamente, quando há uma mudança inovadora, principalmente no campo científico e filosófico, há sempre uma tendência de que as velhas estruturas culturais e mentais se sintam ameaçadas pela destruição dos padrões assimilados e digeridos. Daí o choque e a não aceitação, além do que, se um determinado sistema não funciona bem, não quer dizer que não se possa corrigi-lo. Existe a possibilidade do homem se autogovernar, corrigindo a sua trajetória vivencial. Daí que se a tecnologia surgiu para que o homem pudesse melhorar as suas condições de sobrevivência, ela foi motivada por uma necessidade, sendo positiva a sua origem. Países como a Índia, cujo subdesenvolvimento econômico é notório (apesar de que, como aqui no Brasil, há “ilhas” de riqueza), cuida de ter sua usina atômica. Mas, espiritualmente, seu acervo (religioso, filosófico e artístico) é enorme, de tal forma que sua influência no mundo ocidental, especialmente nos Estados Unidos, é fato por demais conhecido.
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Ora, este é um fenômeno cultural curioso: os Estados Unidos da América do Norte, a maior potência econômica do mundo, muito avançada tecnologicamente, são influenciados pelas religiões e filosofias de um país, subdesenvolvido em vários setores, como a Índia. A meu ver, tal fenômeno mostra que há uma resistência e até uma recusa em se aceitar o modus vivendi e os padrões culturais frutos da tecnologia da sociedade industrial, apegada a valores puramente materiais e mercantilistas. Por isso é que há uma aproximação e uma busca dos valores espirituais e culturais do Oriente, que compensam e satisfazem as carências, nestes setores, principalmente da juventude insatisfeita pelo status social e econômico, que exige um comportamento altamente competitivo com vistas ao sucesso financeiro e social, propiciadores do arrivismo e do egoísmo antiéticos. É possível também que a concepção de arte (ainda dentro da conceituação aqui esboçada), no sentido tradicional, esteja ainda perdurando, o que aumenta violentamente o antagonismo existente entre o que foi e o que é e será. O antagonismo maior, a meu ver, consiste em que, de um lado (a tecnologia) existe o predomínio do racional e da objetividade imanente, e do outro (a arte), é o sensorial e a subjetividade transcendente que preponderam. Invenção versus expressão. Na arte, o fator sensorial e a percepção subjetiva, aliados à linguagem não conceitual técnica, surgem como elementos constitutivos de uma forma expressional humana em que o estético desempenha a ponte de ligação entre o que o artista quer expressar e o espectador que capta, percebe e adapta a “mensagem” recebida, segundo o seu grau de sensibilidade e percepção. Nos produtos criados pela tecnologia não existe esse sentido subjetivo, pelo contrário, a objetividade é, podemos dizer, própria e inerente à tecnologia e aos seus produtos. Outro ponto a ser destacado é que na tecnologia há uma finalidade prática utilitária. Na arte tal não acontece: uma de suas peculiaridades é exatamente a de ser inútil, isto é, não útil, que não tem utilidade prática. Toda arte é feita para ser contemplada e pensada. No entanto, como todo objeto criado pela tecnologia exige uma forma para a sua realização e concreção, evidentemente que o técnico (o
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designer), ao criar a forma adequada para o aparelho ou máquina projetada, não descuida do aspecto estético, pois toda forma (quer de objeto de arte ou de técnica) é estética, não há como fugir disto, daí porque os ready made de Marcel Duchamp, muitos deles baseados e “bolados” em cima de objetos fabricados, se adaptaram a uma estética artística que lhes foi superposta a posteriori. Mas isto só foi possível porque havia, em estado virtual, um elemento estético inerente ao produto industrial. Atualmente (este pequeno ensaio foi escrito há mais de dez anos) o entrosamento da arte com a tecnologia é fato consumado, existindo uma Arte de Computador, ou Arte Cibernética, o raio laser, a holografia, o gás néon, que são usados como “veículo”, como instrumento para a realização de obras de arte. Já não é mais o produto da tecnologia (o objeto) a ser utilizado e trabalhado pelo artista, mas a técnica utilizada como veículo e instrumento de trabalho. Se é verdade o que dizia o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, de que “não existe nenhuma dicotomia entre razão e emoção”, então o conflito, o antagonismo, desaparecem e assim deixaria de existir qualquer impedimento para a fusão da arte com a tecnologia. Esta é uma questão em aberto e envolve outras considerações e enfoques, uma delas diz respeito ao suporte tradicional e convencional da tela. Estaria a pintura a óleo superada?
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Excerto de entrevista concedida a Alberto da Cunha Melo, originalmente publicada em Recife, Jornal do Commercio, 1 de janeiro de 1983.
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BULA PARA GANHAR NOS SALÕES
De como ser selecionado ou mesmo premiado em salões oficiais de artes plásticas: RECEITA 1º Seguir à risca os regulamentos do salão. Esses regulamentos são copiados uns dos outros e, assim, quase idênticos. Mudam apenas no que se refere ao valor dos prêmios e geralmente exigem do artista três trabalhos em cada técnica (pintura, gravura, escultura, etc.). 2º Dentro do espaço que o regulamento pede a cada inscrito, o artista deve se espalhar. Não deve nunca mandar quadros menores de 1 m x 0,85 m e sempre numa mesma linha de concepção. Se possível, um ‘tríptico’ (já que é hábito do júri exigir que cada artista exponha-se por completo), afastando assim o perigo de corte em 90%. 3º Não mande quadrinhos, essa moda só funcionou até 1961. 4º O artista deve estar bem a par das informações que o júri (os burocratas da arte, quero dizer, os críticos) possui do que se faz de
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mais novo no exterior, principalmente nos Estados Unidos do Norte. 5º Se o salão não se realizar no Norte/Nordeste do País, o artista nordestino deve omitir sua origem ou, no mínimo, dizer-se radicado em qualquer lugar do sul, há mais de cinco anos, sob risco de ser sumariamente recusado. 7º O esperançoso artista deve ter bom porte físico. Se possível, de 1,70 m de altura, louro, forte e olhar claro. Se não possuir os requisitos acima, pelo menos seja falante, compreensivo e vista-se bem. Se não tiver nada disso, arrume um secretário, um empresário (ou coisa parecida) e desapareça. Desapareça e reze. Sua sorte está por um fio. 8º Não abuse das cores (você pode ser confundido com um primitivo, decorativo, e ‘isso não existe mais... morreu!’). Fique nas terras, nos sépias e aqui e acolá jogue umas pitadas de vermelho ou azul celeste, só isso. Causa ótima impressão o equilíbrio dessas pitadas. 9º Pelo amor de Deus, não faça flores no quadro (mesmo colagens) nem figurinhas bonitas e jeitosas nem nu feminino – você não entra nem na inscrição. Se não tiver jeito, se for mal de nascença, esforce-se: jogue uns monstrinhos pelos cantos, dê uns traços com o cabo do pincel, de cima a baixo e coloque uns símbolos, se possível fálicos, nos lugares mais inesperados do quadro. 10º Telefone para os jurados da terra, geralmente são colegas mais velhos e ‘cheios’ de muita experiência. Pergunte como vai de saúde, como vai a mulher (se ele for casado com uma) e, sobretudo, o que está fazendo de novo ou se continua com a fase que o colocou na ‘História da Arte’ do Brasil. Enfim, jogue como se mostrar o jogo. Tudo é válido desde que o resultado seja, no mínimo, uma boa e polpuda premiação...
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11º A pintura gestual (mas só em quadros grandes) ainda é muito admirada. Mas não esqueça: Não brigue com as cores... são perigosíssimas, cuidado! 12º Se, depois de todos esses conselhos (e ainda deve haver outros que não me lembro), você não conseguir ser premiado e muito menos ser selecionado, não titubeie: dê uma porrada no jurado mais importante da comissão (naturalmente um do Rio de Janeiro ou de São Paulo) e isso lhe garantirá um fantástico escândalo e notas nas principais revistas e jornais do país (leia-se sul). Essa nota, ou notas, variará de acordo com a força e o tamanho da porrada aplicada. 13º Se realmente você for um artista, esqueça essas dicas, os salões e tranque-se para pintar. Lugar de pintor, de artista, é sua oficina.
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Originalmente publicada no Suplemento Cultural do Estado de Pernambuco, ano 3 no 4. Recife, abril de 1988
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PINCELADAS SOBRE A ARTE Entrevista com Gil Vicente, Paulo Bruscky, Silvio Hansen e Wellington Virgolino.
Wellington Virgolino diz que faz força para se repetir em sua pintura. “Tenho horror a mudar”, afirma. Gil Vicente constata que no eixo Rio-São Paulo está todo mundo pintando do mesmo jeito. “E quem não pintar assim é preterido”, garante. Silvio Hansen acha que a inspiração é algo meio afeminado. “A coisa é mais profissional”, atesta. E para Paulo Bruscky, em Pernambuco não existem críticos de arte em exercício. “Um crítico tem que ter uma formação”, indica. Estas são algumas das opiniões de quatro artistas que se reuniram numa manhã de sábado na Galeria Metropolitana1, no centro do Recife, para falar sobre arte. Nessa entrevista concedida a André Rosemberg eles dão suas pinceladas sobre o Salão Nacional, tendências da arte, Associação
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Atualmente, Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães. [Nota dos editores]
André Rosemberg
dos Artistas, entre outros assuntos. Desde menino Wellington Virgolino está envolvido com a arte. Hoje, com 58 anos e quarenta de carreira, ele vive pintando. Sua obra já foi exposta em quase todo Brasil, em países da Europa e no Japão. Apesar de seu forte ser a pintura, Virgolino já ganhou um prêmio na categoria de escultura no Salão do Estado. Paulo Bruscky publicou seu primeiro trabalho no ano de 1966. Foi um desenho. Hoje, Bruscky faz um trabalho de “mídias contemporâneas” (arte postal, xerox, performances, etc). Já participou de coletivas no Japão, França, Inglaterra, Cuba, Bulgária, Argentina e Brasil. Ganhou o Prêmio Guggenheim, de artes visuais, em Nova Iorque – 1981. Sua carreira profissional começou em 1975, quando foi o primeiro colocado no Salão dos Novos. De lá para cá, Gil Vicente, 30 anos, já ganhou prêmios como o
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MEC/Funarte e o do Salão de Pernambuco, em 1981. Seu trabalho já foi mostrado em coletivas por todo Brasil. Foi um dos fundadores da Oficina Guaianases de Gravura em Olinda. Silvio Hansen, 35 anos, nasceu em Paulista (PE). Foi um dos fundadores da Associação dos Artistas Plásticos de Pernambuco, em 1980. Faz pinturas, desenhos, esculturas, gravuras, performances, arte-correio e artesanato em cerâmica e couro. Já ganhou prêmios no Salão de Arte Global e no Salão de Artes Plásticas de Pernambuco. Suplemento Os artistas nordestinos vêm sendo excluídos dos grandes salões de arte nacionais. Recentemente, na escolha de obras que fariam parte do Salão Nacional, nenhum artista pernambucano foi escolhido. Trata-se de uma discriminação ou a produção artística do Estado não está no nível que vem sendo feito no Centro-Sul do País? Bruscky Eu tive condições de presenciar este fato porque ele aconteceu aqui na Galeria Metropolitana. O que houve foi que o júri do Salão já veio com os nomes no bolso. Normalmente, quando eles chegam por aqui, já têm incluídos os nomes de todos os artistas amigos do Rio e São Paulo. Digo isso porque já participei de comissão julgadora e sei como a coisa funciona, como as cartas são marcadas. O nível do Salão daqui foi excelente e não justifica o que Fernando Cocchiaralle disse, em
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resposta ao Jornal do Commercio, que a arrumação dos quadros do Salão local influiu no resultado do julgamento. Isso não tem nada a ver porque os salões geralmente são julgados com os quadros no chão. Aqui, pelo menos, os quadros estavam fixados à parede. Uma coisa que achei que foi proposital e que desmoralizou o júri de Pernambuco, relaciona-se ao fato de que Rodolfo Athayde, esse artista paraibano, cortado aqui porque não inscreveu, talvez, o que representasse a sua obra, foi justamente o artista escolhido pelo júri para participar do Salão Nacional. No julgamento do nosso Salão, a comissão gastou menos de duas tardes, enquanto que na Paraíba eles passaram três dias para ver um evento paralelo. Isto é uma falta de respeito profissional. A comissão julgadora do Salão Nacional disse que não tinha nenhuma obrigação de escolher alguém daqui. Mas veja: um salão regional é para mostrar a produção da região. Quando o Ministério da Cultura criou o Salão Nacional foi para que as pessoas tivessem uma visão do que está se fazendo hoje em termos de arte no Brasil. Então tem que haver neste Salão Nacional representatividade das diversas regiões. Gil Essas queixas são antigas. Têm a mesma idade do Salão. A verdade é que o Salão Nacional é um salão sulista, principalmente carioca, e não vai deixar de ser nunca. Tenho a impressão que para os organizadores do Salão é o maior entrave do mundo esse nome “Nacional”, que os
André Rosemberg
obriga a sair por aí dando satisfação aos outros Estados. Seria ótimo se não precisássemos deste Salão. Ele é uma espécie de mendigação que fazemos. O que dá vontade é de mandar esse pessoal todo pastar e ir cozinhar a arte deles lá no Sul. Mas o problema é que se um artista quer ter nível nacional ele tem que passar pelo Salão. Virgolino Esses salões, pelo menos na minha época, eram feitos apenas para os artistas ganharem dinheiro. Nessa época não se vendiam quadros, não havia as galerias. Os salões eram nossa oportunidade para ganhar dinheiro. Bruscky Por coincidência, o Wellington achou aqui um artigo dele chamado “Bula de Salão”, onde ele diz como ganhar um prêmio... Virgolino Exatamente. Quer dizer: dormir com os críticos... (risos). Eu conheço pintores que foram feitos assim. Têm talento, evidente (risos). Silvio Eu penso que a nível de seleção para o Salão Nacional, que é a grande festa que acontece no Rio de Janeiro, deveriam ser considerados os três primeiros colocados nos salões estaduais. Aí a coisa funcionaria. Gil Na realização dos salões estaduais poder-se-ia evitar chamar um crítico do Sul. Para quê? Não precisamos dessa “competência”.
Silvo Exato. Não acrescentou coisa nenhuma a vinda de críticos para participarem dos salões daqui. Isso não representa nada: economicamente, inclusive, esta sugestão de Gil pode trazer benefícios. Porque o que se gasta com passagem, hotel cinco estrelas e tudo mais, para trazer um crítico do Sul, poderia ser convertido em outros prêmios ou para aumentar o valor dos prêmios já existentes. Suplemento Como vocês analisam o que vem se fazendo em termos de crítica de arte em Pernambuco? Bruscky Pernambuco não tem críticos de arte. Considero um crítico uma pessoa que tem formação muito grande em artes. Este é o caso de um Beuntemuller, um Olívio Tavares, um Frederico de Moraes. São pessoas que passaram a vida estudando e ainda continuam estudando. Aqui você tem uma pessoa como Celso Marconi... Virgolino Paulo [Azevedo] Chaves... Bruscky Não o considero. Ele não tem embasamento. Eu o tenho mais como um colunista social do que como um crítico de artes. Ele não consegue embasar nada do que escreve. A notícia que sai na coluna dele é cópia transcrita da Folha de São Paulo. Temos bons críticos, mas não em exercício. É o caso de João Câmara e Ladjane Bandeira. Virgolino
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Acho que o bom crítico depende do veículo. Se o Paulo Chaves trabalhasse na revista Veja, seria um crítico de renome nacional. Faria a mesma coisa que Olívio Tavares fez... Silvio Paulo Chaves talvez tenha o dom de escrever, mas ele não tem o de falar. Na realidade ele não chega para você e diz: “Esse caminho está errado”. Se tivéssemos uns dois ou três críticos, que visitassem os ateliês, isso poderia dar uma sacudidela nas pessoas que fazem crítica atualmente, para que elas tomassem uma outra posição. O que há é uma acomodação, até por falta de diálogo. Os críticos pernambucanos não se reúnem. Gil E raramente um crítico vai a um evento artístico e faz uma matéria. Fiz uma exposição em Fortaleza em que foram dois jornais na galeria. Aqui isto não acontece. Silvio Fui vítima do julgamento de minha exposição pelo catálogo. O crítico escreveu que eu o havia pedido para escrever alguma coisa sobre a mostra, quando, na realidade, é obrigação dele fazer matérias sobre arte. Há uma falta de informação sobre o exercício da profissão. Bruscky Para ter seu trabalho divulgado o artista precisa ter um bom relacionamento com os críticos ou então pagar, porque eles não escrevem de graça. Virgolino Se você quer história de pagamento de crítica, eu tenho inúmeras. Quando
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participei de uma exposição no Rio, um crítico passou por cima de mim, disse que eu era o mesmo, aquela frescura. Depois Ranulpho organizou uma exposição minha em São Paulo, na inauguração de uma galeria. De repente este mesmo crítico entra para visitar a individual. Eu vi o Ranulpho falando com o crítico, mas eu não quis falar com ele. De repente Ranulpho me chamou e disse: adivinha quem vai escrever sobre você no catálogo. Então eu disse para o crítico: – É você, não é? Ele me respondeu que sim e eu indaguei: – E Ranulpho vai pagar quanto para você me elogiar? Ele começou a rir. Essa é a verdade. No final ele escreveu um texto arretado, foi lá nas raízes, uma beleza (risos). Eu já vi Frederico de Moraes pegar Reynaldo Fonseca e arrasar. Mas por quê? Porque teve uma briga com ele. Isso não se faz. O cara é um crítico. Suplemento Fala-se de internacionalização das tendências da arte, o que daria às obras de arte um padrão de qualidade ou estética mundial, ampliando assim seu mercado. Ou seja, o que se fizesse na Europa ou nos Estados Unidos seria feito aqui também, respeitando-se as interpretações regionais. Como o rock, que tem suas fórmulas adaptadas a todas as partes do mundo. Um fato como este seria positivo ou negativo para a arte? Bruscky Eu me considero um artista internacional. Mesmo assim é difícil você se desvincular de sua vivência, de sua infância, de sua adolescência, de sua formação.
Esse negócio do cara dizer “eu sou regionalista” não existe. Todo mundo é regionalista. Mas ninguém pode negar um conhecimento que ultrapassa a sua região. Mesmo assim, o Brasil tem um concretismo que foi criado aqui simultaneamente com Goringer, na Suíça. Mas o concretismo é uma coisa brasileira. Eu não faço diferença entre cultura popular e erudita. Quando se cria esse divisionismo, já se está rotulando uma coisa. A cultura é uma só. Quem diferencia a cultura popular da erudita são pessoas que têm interesse em usurpar isso, que ganham dinheiro com isso. Silvio A arte como uma maratona. Partem três mil e no final só sobram os melhores. As pessoas que fazem uma arte por moda ou para atender o mercado, têm um determinado valor naquele momento, mas não há continuidade nisto. Virgolino Eu mesmo faço força para me repetir. Tenho horror a mudar. Meu negócio é repetir mesmo (risos). Mas é fato. A preocupação de mudar, por quê? Algumas vezes estou fazendo uma quartinha e meu filho chega e diz: papai, o senhor já pintou essa quartinha em outro quadro. Mas se eu só me lembrei dela, tem que ser a mesma quartinha. Silvio O Van Gogh mesmo pintou quantas vezes o quadro “Comedores de batata”? (risos) Gil Esse negócio de moda, ou tendência predominante, ou corrente, em certos mo-
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mentos fica em um nível meio preocupante. Essa tendência atual de volta à pintura neoexpressionista, com grandes dimensões, grandes pinceladas, grandes gastos de tinta é algo impressionante. Você abre a maioria das revistas de arte internacionais e só vê isto. É a mesma tendência na Europa e nos Estados Unidos e, consequentemente, no Rio e São Paulo, mas com um maior atraso. Quando se vai ao Centro-Sul do País você se vê em outro mundo, completamente diferente daqui, onde as coisas não chegam ou quando chegam já estão enfraquecidas. No Rio e em São Paulo está todo mundo pintando do mesmo jeito. Isso para poder entrar em um salão, participar de uma coletiva que um crítico está fazendo a curadoria, entrar na Bienal. Lá é quase uma exigência de mercado se pintar dessa forma. E quem não está pintando assim é preterido. Acontece que a forma para uma pessoa que está se iniciando no mercado ser legitimado é participar de um salão, receber um apoio crítico, um prêmio. Então vai todo mundo nesta mesma onda. É enfadonho você visitar exposições no eixo Rio-São Paulo. É um saco. Virgolino Você está chegando ao que diz o livro A palavra pintada [Tom Wolfe]. Nele o autor afirma que o artista pinta de acordo com o que o crítico quer. Ele é quem cria o artista. Segundo o escritor, no futuro, as exposições de pintura serão grandes outdoors com textos dos críticos e uma pequena reprodução da obra do artista. Bruscky
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Um crítico como o Pierre Restany reuniu uma dúzia de artistas amigos, fez uma teoria, se articulou com os críticos e criou um modismo na arte. Tudo isso porque o mercado de artes é sujeito à especulação capitalista. Gil Eu acho que essa tendência da arte tem relação com o mercado. Quer dizer, é ótimo para o mercado internacional de artes que se esteja fazendo coisas parecidas no mundo todo. Isso facilita a venda. Suplemento Um artista plástico para ter sua obra identificada com seu tempo, com o mundo atual, ele precisa sair da sua terra para beber água na fonte de outros centros mais avançados? Ele pode ser um grande artista, um artista do mundo, sem sair de Pernambuco? Virgulino Eu acho que não. Bruscky Casos como o de Virgolino ou o de José Cláudio mostram que é possível conquistar o Brasil morando aqui. Na década de sessenta, entretanto, saiu um trem daqui com um monte de artistas para morar no Rio e São Paulo. Fazendo isso, é fácil para o artista ser reconhecido a nível de crítica. Mas nesse envolvimento com a sua divulgação no Sul, o artista acaba deixando de produzir. Daí a opção de vários artistas de terem ficado aqui, onde eles têm muito mais condições de trabalho. Virgolino Se ser internacional é viajar e beber água em outras fontes, vale citar um Sérgio
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Belo. Ele, por acaso, é internacional porque mudou-se para Paris? Não. Para mim ele continua o mesmo, não vou dizer que pior, mas já está muito envenenado o sangue dele. E já começa a perder as suas raízes. Um camarada para ser internacional pode ficar aqui, pode viajar, pode ler muito, pode não ler. O importante é ter oportunidade. É ter uma crítica séria que o busque onde ele estiver. Gil Para o tamanho da nossa cidade e sua localização, a gente tem um mercado arretado. A ideia que eu tenho é que o mercado daqui cada vez precise menos de coisas de fora, que os artistas precisem menos sair daqui. Você acha que tem algum interesse de um artista parisiense vir expor aqui? De nossa parte há aquela coisa da colônia, aquele desejo de fazer uma exposição em Paris, no Rio. E quando isso acontece, depois de muita batalha, não vai ninguém, não vende nada. Eu sou meio irado com esse negócio. Acho que a produção daqui deve ser resolvida aqui mesmo e o pessoal lá que se vire. Bruscky Fora daqui a pretensão é tão grande que chega ao cúmulo da Associação dos Artistas Plásticos do Rio de Janeiro se autointitular Associação Brasileira de Artistas Plásticos Profissionais. Isso é uma atitude provinciana, que faz questão de separar. Salões no Centro-Sul do País não incluem nenhum artista pernambucano. Bolsas de estudo são distribuídas apenas para artistas do Sul. Virgolino
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É preciso o cara estar lá no Sul para ganhar prêmios nacionais. Quando José Cláudio tirou, estava em São Paulo. Quando Samico tirou, morava no Rio. Montez também morava no Rio. Sem sair daqui para tirar prêmio lá é difícil, impossível. Tem que passar uma temporada lá. Bruscky A pessoa tem que fazer relações públicas para ganhar o prêmio... Virgolino E rebolar muito... Dá um trabalho danado. Era o trabalho que dava para se vender quadros. Hoje em dia não. Só em Boa Viagem tem cem galerias. Na minha época a gente vendia em movelaria. O cara abria a loja e dizia: “É só hoje!”. Suplemento Hoje as galerias são os grandes aliados dos artistas. Mas e os espaços oficiais, onde as exposições vendem muito pouco? Virgolino Isso porque não existe a figura do marchand. O cara que quer ganhar dinheiro e promove o camarada, convida gente. Nos espaços oficiais não se faz isso. Silvio Os responsáveis pelas galerias oficiais são funcionários públicos. Isto quer dizer que se ele vender ou não uma obra ele vai ter no final do mês o seu salário. Bruscky A Galeria Metropolitana é bonita, genial, central, abre dia de sábado e domingo, mas não vende. Não vende porque não fica ligando para os compradores, para o pessoal da sociedade, não tem condições de oferecer um uísque, de fazer relações
públicas... Gil Eu acho que poderia se pensar numa ação conjunta de espaços oficiais e vendedores de arte, de forma a tornar o resultado da exposição numa galeria oficial bom financeiramente. Bruscky A ideia é boa, mas se tratando de uma galeria pública você não pode trabalhar só com artistas bons. É preciso abrir as portas para artistas principiantes. Aqui temos salas para artistas que nunca expuseram, que a gente não pede nem o currículo. Silvio O que Gil fala não é isso não. A proposta é pegar uma galeria e o seu artista para expor em um espaço público. Em troca disto, o artista deixaria uma das suas obras de arte para o acervo da galeria pública. A parte da comercialização ficaria por conta do marchand. Bruscky Mas isso acontece. Já houve exposições aqui na Metropolitana onde ficaram pessoas responsáveis pela venda dos quadros. O espaço está aberto. Qualquer artista pode fazer isso. Gil Mas se poderia pensar em incrementar mais essa opção... Virgolino Entrando em contato com as galerias... Bruscky Mas há um conflito, porque sendo um órgão público, seria necessário se fazer uma licitação. Se alguém chamar uma
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galeria A ou B, os outros vão cair de pau. Silvio Mas a proposta de Gil pode ser analisada... Bruscky O espaço está aberto. Vários artistas já colocaram seus trabalhos aqui com toda uma estrutura para vendê-los. Agora isso depende do interesse do artista. Essa iniciativa deve partir das galeria particulares para o órgão público e não o contrário. Virgolino Se as galerias soubessem dessa oportunidade, elas trariam exposições que não cabem em seu espaço para os espaços públicos. Mas eles não sabem disso. Bruscky Eles não sabem porque não vão a lugar nenhum. Se fecham dentro das casas deles e não enxergam nada. Há uma desunião muito grande entre os galeristas. A competição é tão grande que aqui não existe uma associação de galeristas. Gil O que falta para o circuito daqui é um veículo onde se discuta o que está se fazendo aqui para incrementar o mercado local. Para que o público leia mais sobre o que está se fazendo aqui. No fim, o que está acontecendo é que só se lê sobre os artistas daqui o que sai raramente no Diário de Pernambuco e no Jornal do Commercio. No mais são lidas as publicações do Sul do país. Bruscky Acabam ficando mais informados sobre os artistas de fora do que sobre os da terra... Gil
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É. E na realidade a gente tem nas mãos um mercado bom, um mercado com grande potencialidade e corremos o risco de perder isso. Silvio Poderia até ser uma revista de circulação nacional, que fosse bancada pelas próprias galerias. Bruscky É importante, também, fazer um prospecto com todas as galerias e seus endereços. Porque chega um crítico ou um pesquisador de fora e ele diz assim: “Eu queria ir a umas galerias. Onde ficam?”. Eles sabem onde estão as galerias mais conhecidas. Porém, e as outras onde são expostos também artistas bons, onde tem um cara desconhecido, mas genial? Você tem cem galerias, mas só cinco dominam o mercado e impõem as coisas. Essas cinco não têm interesse em abrir espaço para as outras galerias. Suplemento A inspiração é um fator fundamental na produção de um artista. Eu queria saber qual o relacionamento de vocês com a inspiração. O que é inspiração e quando ela vem? Bruscky Para mim não existe inspiração. O que existe é um trabalho diário e contínuo. Você tem uma ideia, mas se você não amadurecer essa ideia através de um raciocínio constante, é bem difícil se trabalhar. Essa ideia é fruto das coisas que você lê, que vê, dos fatos políticos e sociais de seu país, das coisas que lhe rodeiam, que lhe pressionam, como o
Crítica de Arte em Pernambuco
Escritos do século XX
custo da vida. As ideias são decorrentes de tudo isso. Virgolino Eu, por exemplo, sou feito um cronista social, esse cara que tem que escrever todo dia. Tenho que pintar todo dia. Sou um cara que vivo há mais de trinta anos só de vender quadros. Então minha produção não para, eu tenho que todo dia estar pintando duas horas de manhã, duas de tarde e uma à noite, umas cinco horas no total. Mas todo dia eu pinto. Esse negócio de ter inspiração... Se eu fosse esperar por ela tava lascado (risos). Tenho que me sentar junto da tela, depois de ter lido o jornal, visto a televisão, com a cabeça deste tamanho. Boto o rádio para funcionar em AM e fico ouvindo Samir Abo Hana de manhã e outro cara de tarde. Esse negócio de música eu também não ouço. Se botar a música eu vou ouvi-la e não pintar. Então quando eles largam uma besteira na rádio eu penso: Isso dá quadro. (risos) É essa a inspiração que tenho. É suor mesmo. É aquela eterna frase: oitenta por cento de transpiração e vinte por cento de inspiração. O resto é frescura. Gil O que acontece é que a gente nunca decide assim: hoje eu vou sentar e fazer um quadro perfeito. Particularmente nunca sei se o quadro vai sair bom ou ruim. Isso não vai depender unicamente da minha dedicação ali, tampouco da inspiração. Bruscky O que se chama de inspiração eu acho que é a vontade de trabalhar numa determinada hora. A hora que você quiser
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pintar você pinta, não é? O que se chama de inspiração é aquela predisposição que você também tem para comer ou para fazer qualquer coisa. Gil E o resultado final depende de uma série de itens, de fatores diversos que terminam resultando num bom quadro. Virgolino E quando você recebe uma encomenda? Você tem que entregar um quadro daqui a dez dias e você topa fazer o negócio. Silvio Na minha opinião, inspiração é uma coisa meio afeminada. Uma pessoa que não vai pintar um quadro, porque não tem inspiração, não existe. Você já imaginou um advogado chegar para lhe defender e não estiver inspirado. Você está lascado. Amanhã está preso. Quer dizer, a coisa é mais profissional... Virgolino Mas às vezes ele pode estar mais inteligente: comeu melhor, dormiu bem, deu uma boa relaxada. O cara está mais aliviado. Existem momentos melhores. (risos) Silvio Eu particularmente querendo pintar, pinto a qualquer hora. Agora, se o trabalho vai ser bom ou ruim aí vai ser uma outra questão. Bruscky Wellington está dizendo que depois de uma trepada, dinheiro no bolso, não tem coisa melhor para pintar... Silvio Aí que eu não pinto. Pelo contrário. Eu
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pinto quando estou aperreado. Quando estou liso, precisando de dinheiro, vou pintar. Agora se estiver com dinheiro: pernas pro ar que ninguém é de ferro! Suplemento Aqui no Brasil existe um problema técnico muito grande, que é a aquisição de tintas e outros materiais de qualidade, que só são encontrados no mercado externo. Como esse problema é contornado? Bruscky As associações de artistas plásticos do Brasil obtiveram uma vitória muito grande. Hoje, a Funarte, depois de sofrer pressão de alguns artistas como João Câmara, e entidades de classe, fez uma reunião no Rio, onde foi reivindicado o direito dos artistas adquirirem materiais importados, já que o produto nacional não apresenta qualidade. Atualmente, qualquer artista pode importar até dez mil dólares em material através das associações, ou pelo Ministério da Cultura, sem qualquer protocolo. Virgolino Eu sou igual a Van Gogh; só uso material nacional. Silvio É muito fácil você usar material nacional quando se é holandês. (risos) Gil Na Holanda o cara só fabrica uma tela se ela passar pelo crivo de uma entidade de controle de qualidade. Virgolino Mas antigamente não havia condições de comprar bons materiais. Só havia tinta com querosene. Quando eu descobri que
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essa tinta era proibida, já tinha feito quadro que só a porra. E os quadros ainda estão aí. Eu tenho quadros bonzinhos. Bruscky E teve um camarada aqui que os quadros dele duravam muito. Então perguntaram a ele o que usava para isso. Ele disse que usava mel. Aí a turma começou a usar e as formigas comeram os quadros dos caras todinhos (risos). Gil Você pode comprar um material importado de primeira qualidade, mas se não conservar seu material direitinho, ele vai mofar do mesmo jeito. Porque conservar obras de arte aqui em Recife é difícil pra caramba. Bruscky Gil Vicente colocou um fato importantíssimo agora. Por exemplo: tem uma lei da UNESCO que proíbe a instalação de galerias de arte e museus nas proximidades do mar ou de um rio. Desta forma, Recife é uma cidade proibitiva de ter museus. A Galeria Metropolitana seria proibida. Se você pegar o acervo do Governo do Estado, quando o pessoal termina de restaurar a última obra, reinicia o trabalho pela primeira. É sem fim. Virgolino Se for pensar nisso, em qualidade, na tela, na base, a gente não faz coisa nenhuma. Virgolino Quem é bom mesmo pinta em madeira suja, qualquer coisa. Picasso tem quadros que têm cada lascão desse tamanho. E daí, pô? Suplemento
André Rosemberg
O que a Associação dos Artistas Plásticos de Pernambuco tem feito em benefício de seus associados e o que poderia fazer? Silvio A Associação, de um modo geral, tem contribuído de uma forma geral com todos os artistas. Abrimos mercado com a realização de concursos públicos , como foi o concurso da C&A, da Chesf, o concurso para escolha da obra da Prefeitura – Tortura nunca mais. Não só estamos participando da promoção, mas também opinamos sobre o regulamento e tomamos parte da comissão julgadora. Além disso, a Associação está editando um boletim onde informamos aos associados todos os salões que acontecem anualmente no país, todas as bolsas no exterior e outras informações do interesse da categoria. Vamos abrir o Salão de Arte sobre Papel e estamos instalando filiais da Associação no interior do Estado, que já são quatorze e num futuro próximo serão transformadas em sindicatos. Bruscky A Associação, em conjunto com a URB, conseguiu que as obras de arte em edificações – que são obrigatórias por lei – não fossem mais julgadas pelo Conselho de Cultura da Prefeitura, que é formado por um artista, um escritor, um biólogo, etc. Quer dizer, que condições tinha um conselho desse de julgar? Agora, não existe mais julgamento. A comissão de Artes Plásticas da Fundação de Cultura é quem
examina as obras de arte e dá seu parecer baseado em critérios técnicos, como a perecibilidade, por exemplo. Assim vão se evitar discrepâncias como barrar um trabalho de um Corbiniano Lins, que é um cara que trabalha com escultura há quinhentos anos aqui. Uma outra coisa que nós estamos lutando, em termos de Associação, é a regulamentação da profissão do artista plástico. Para isso já mantivemos contato com o Ministério da Cultura e acredito que estamos perto disso. Silvio Também conseguimos um local para instalar a sede da Associação, na rua da Aurora, num prédio de quatro andares. Bruscky Nessa sede serão dados cursos de pintura, gravura, desenho, como também de medidas contemporâneas, como Xerox. Vai haver uma biblioteca, uma sala de debates. Será desenvolvido um projeto que estamos chamando “Artista em Residência”, que trará artista de qualidade do interior para fazer cursos na Associação, onde ele ficará residindo em um quartinho, sem pagar aluguel e recebendo uma bolsa. A oficina será aberta a qualquer pessoa. Será montado, ainda, um laboratório de fotografia aberto ao público. Se um fotógrafo quiser usar este laboratório, ele terá apenas que pagar uma taxa de manutenção e marcar hora para trabalhar. Serão dados também cursos de fotografia e vídeo.
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Escrito em 1992. Publicado em CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI. Da Lama ao Caos. Rio de Janeiro: Chaos/Sony Music, p1994. 1 CD.
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CARANGUEJOS COM CÉREBRO
Mangue, o conceito Estuário. Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo. Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies comercialmente importantes dependem do alagadiço costeiro. Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas de casa, para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza. Manguetown, a cidade A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex) cidade “maurícia” passou desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais. Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de “progresso”, que elevou a cidade ao posto de “metrópole” do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade. Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história para que os
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primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada à permanência do mito da “metrópole”, só têm levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano. O Recife detém hoje o maior índice de desemprego do País. Mais da metade de seus habitantes mora em favelas e alagados. Segundo um instituto de estados populacionais em Washington, é hoje a quarta pior cidade do mundo para se viver. Mangue, a cena Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife. Em meados de 1991, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de ideias pop. O objetivo era engendrar um “circuito energético”, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem-símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama. Hoje, Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência.
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Publicado originalmente na Revista Estudos Avançados, volume 11, número 29. São Paulo, janeiro/abril de 1997.
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A autora agradece a Claudia Toni e Rejane Coutinho pelo trabalho de checar algumas informações contidas neste artigo: “Sem a ajuda das duas, privada das fontes de referência, e contando apenas com a minha memória, seria impossível escrever este artigo”.
Crítica de Arte em Pernambuco
Escritos do século XX
ARTES PLÁSTICAS NO NORDESTE
A condição política do Nordeste, considerado zona ultraperigosa pelos militares durante a última ditadura, provocou uma diáspora cultural espalhando jovens artistas e intelectuais por entre os polos dominantes do Rio de Janeiro e de São Paulo, centros historicamente mais preparados para receber literatos do que artistas plásticos. Desde o modernismo podemos detectar maior abertura de paulistas e cariocas para com os poetas, novelistas e críticos literários que chegavam do Nordeste do que para com os artistas. Cícero Dias e Antonio Bandeira, embora tenham sido agraciados com alguns elogios da crítica hegemônica do Sul, nunca tiveram nas artes plásticas um reconhecimento na mesma altura que tiveram José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Álvaro Lins, Jorge de Lima, Raquel de Queiroz, na literatura. Poucos aplausos e muito vácuo fizeram com que tanto Cícero Dias, quanto Antonio Bandeira, imigrassem para a Europa, onde obtiveram sucesso mais contínuo e consistente. Mesmo assim foi preciso muita tenacidade de uma nordestina, Vera Novis, para publicar, no ano passado, seu belíssimo livro sobre Antonio Bandeira. Foram quase sete anos de batalha, que começaram quando trabalhamos juntas no MAC-USP. Todos a quem recorríamos reconheciam a qualidade antecipadora da pintura de Bandeira; os colecionadores disputam seus quadros, mas seu nome não faz parte do campo de ação publicitária dos críticos que ditam a moda. A obra de artistas como Carlos Oswald, Aloísio Magalhães ou Lula Cardoso Ayres vai ter que esperar por outros teimosos críticos, fora do circuito dominante, como Vera, ou virar tese de algum estudante de pós-graduação para terem os livros e/ou as retrospectivas que merecem.
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Espero que não demore tanto tempo como no caso de Vicente do Rego Monteiro, o mais original dos modernistas brasileiros. Tendo-se em vista que originalidade era um dos valores máximos do modernismo, demorou muito para que sua obra atingisse um patamar além do mero reconhecimento. Isto só se deu na década de 1970, porque o poder nas artes plásticas naquela época estava nas mãos de um homem sem preconceitos, um historiador de olhar plural, Walter Zanini, que organizou uma inesquecível retrospectiva de Rego Monteiro no MAC-USP. Acredito, entretanto, que certa dose de exclusão e distância dos artistas do Nordeste com relação ao centro de poder das artes plásticas os torna hoje os mais bem preparados artistas para dialogarem com as correntes contemporâneas da multiculturalidade. Afastados do centro por discriminação política durante a ditadura militar e, depois, pelas ditaduras do mercado e da crítica, que teimam em só promover o abstrato, o matérico, o minimal, a arte clean correspondente ao código europeu ou norte-americano branco, os artistas do Nordeste continuaram a desenvolver sua própria cultura visual, rejeitando ou assimilando as correntes internacionais com autonomia pessoal e não por indução, construindo uma trama de diversidade visual incomum, com qualidade, apontando para um pós-colonialismo muito mais definido que nas regiões dominadoras do país. No caso de Pernambuco, a ação de duas brilhantes cabeças pensantes – por sorte, divergentes entre si –, Ariano Suassuna e Jomard Muniz de Britto, foi muito benéfica. De um lado, temos Ariano Suassuna, dramaturgo famoso no Sul e no exterior que, como professor de estética de várias gerações de estudantes da Universidade Federal de Pernambuco, defendia uma abordagem cultural voltada para a visualidade do meio circundante, para a mitologia da terra e para uma narrativa imaginante, que veio a constituir o que ele denominou Movimento Armorial. Do outro lado, Jomard Muniz de Britto, também com enorme influência na formação da mentalidade da juventude da Paraíba, de Pernambuco e do Rio Grande do Norte, encarregou-se da divulgação crítica das teorias da pós-modernidade. Como artista, seus vídeos e suas performances têm chamado a atenção dos estudantes para a existência de uma linguagem internacional, enquanto Ariano os desperta para verem ao seu redor. É neste jogo dialógico, no espaço intercultural dessas duas posições, no trânsito entre elas, que hoje estão sendo definidas as singularidades da arte, até no Primeiro Mundo. As linhas que demarcam as diferenças culturais podem ser estabelecidas pelo consenso ou pelo conflito, mas, em ambos os casos, a discussão aberta que voltou a ser praticada no Recife – graças, principalmente, a esses dois intelectuais – tem buscado aclarar as definições de
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tradição e pós-modernidade, realinhando os limites entre arte popular e arte erudita, entre o público e o privado e, principalmente, desafiando as noções de desenvolvimento e progresso. Ariano e Jomard vêm operando para a geração atual o que duas outras escolas pernambucanas operaram para a minha geração. Uma foi a escola de um homem só, Abelardo Rodrigues, que não apenas como colecionador didata, mas, principalmente, como formador de opinião da juventude, construiu uma visão sincrética entre barroco e modernismo, antecipadora da contemporaneidade. A outra escola informal de arte e estética foi o Gráfico Amador, felizmente já estudado na tese de Guilherme Cunha Lima, defendida na Inglaterra. No Gráfico Amador, especialmente Aloísio Magalhães, Orlando da Costa Ferreira, Gastão de Holanda e José Laurênio de Melo foram os introdutores de minha geração às ambiguidades do Modernismo no que se refere às relações entre arte e design. A aprendizagem assistemática, prazerosa, realizada através da práxis que associava o ver, o fazer e discussões acaloradas que as duas escolas ofereciam, veio a ser sistematizada em termos de métodos e concepções sobre ensino da arte na Escolinha de Arte do Recife, da qual Noemia Varela, em parte motivada pelo inconsciente coletivo modernista da época, com alguma dose de influência de Augusto Rodrigues, a quem, em contrapartida, influenciou mais tarde, e principalmente por sua invulgar cultura educacional e sensibilidade, comandou a modernização do ensino da arte no Nordeste com enorme abertura para a pluralidade de expressão. O mesmo olhar plural tem presidido as atividades da melhor escola contemporânea de artistas do Nordeste, a Oficina Guaianases, que espero continue plural agora que foi incorporada à Universidade Federal de Pernambuco. Em termos de pluralismo, a Oficina Guaianases corresponde, para o Nordeste, ao que significou para o Sul dos Estados Unidos o Grupo Tamarind, hoje funcionando também em uma Universidade, a de New Mexico, em Albuquerque. Nem nos piores momentos políticos os artistas nordestinos se submeteram à ditadura do Sul, que por anos vem valorizando quase que exclusivamente a genealogia minimalista, abolindo o figurativo das exposições, e condenado ao pecado qualquer adequação da imagem ao referente, isto nos dias de hoje quando, como diz Graig Owens1, os artistas já não põem entre aspas o referente, mas trabalham no sentido de pô-lo
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Graig Owens. Beyond recognition: representation, power and culture, Berkeley University of California Press, 1992. Editado por Scott Bryson, Barbara Kruger, Lynne Tillman and Jane Weinstock, depois da prematura morte do autor.
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em atividade, problematizando-o. Mesmo nos tempos heroicos de Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo, que foi tão eficiente e plural no que concerne às políticas de saúde, de educação, de moradia e de bibliotecas, o Centro Cultural São Paulo, da Secretaria de Cultura do município, na área de artes plásticas, só exibia o que a crítica modernista greenbergiana – já um pouco atrasada – considerava vanguarda, abolindo completamente o figurativo. É verdade que a produção concreta, neoconcreta, abstrata e conceitual deu ao Brasil muito do que há de melhor em artes plásticas até agora. No Nordeste, podemos nos referir ao trabalho de Sérvulo Esmeraldo, Montez Magno, Paulo Bruscky, José de Barros, e há muitos mais. Entretanto, a obsessão minimalista com a pura opticalidade que domina os poderosos exclui outras tendências, tornando-se uma espécie de conservadorismo da vanguarda, impedindo que outras manifestações floresçam. Os críticos guardiões da absoluta autonomia da arte decretaram pela intransigência sua submissão a uma única tendência e poucas variáveis próximas, o que podemos chamar, parodiando Graig Owens, de minimalismo degenerativo. Aos poucos, tornaram-se incapazes de avaliar o figurativo e suas muitas contestações do real, fecharam-se mais ainda em grupos e usam de todas as armas, inclusive a violência da exclusão, para defenderem seus direitos de proprietários de uma corrente estética e de alguns artistas. A multiculturalidade do Nordeste muito beneficiar-se-ia com a ampliação de espaço crítico e de visões alternativas, tão urgentes e necessárias nas artes plásticas no Brasil. Os críticos de arte batem nos ombros uns dos outros, num acordo tácito de silêncio ou sinal de convênio elogio. Os ricos debates que explodem aqui e ali na área da literatura não têm eco nas artes plásticas, embora a teoria da arte esteja tomando a teoria literária de empréstimo já há bastante tempo. O último construto teórico específico das artes plásticas foi a Iconografia de Panofsky. De lá para cá, desconstrucionismo, neoestruturalismo, multiculturalidade, estética da recepção, estética antropológica, estética cibernética etc., assimilados de outras áreas, têm buscado significação no domínio visual, formando não um melting pot, como acusam os puristas, mas uma colcha de retalhos teórica bem recortada e definida, garantindo a pluralidade de valores. A crítica de arte e as instituições no Brasil necessitam de uma redefinição cultural para serem capazes de avaliar as diferenças. O novo Instituto de Arte Contemporânea da Universidade de Pernambuco está dando exemplo de política cultural pluralista e muito se espera dele no Recife. Também aberto às diferenças tem atuado o Núcleo de Arte Contemporânea da Universidade da Paraíba. Têm havido acusações à
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ditadura do minimalismo no sentido de haver transformado a arte em nosso país numa mera cópia dos padrões europeus e norte-americanos, atestando a condição periférica do Brasil2. Isso, para mim, não tem a menor importância. Para a contemporaneidade, transformação, apropriação, hibridismo, tradutibilidade, canibalização são a norma. O que me incomoda na crítica hegemônica do Rio de Janeiro e de São Paulo é a ausência de olhar plural. Projetos que poderiam ter se tornado influentes em termos de Brasil terminam limitados pela falta de capacidade analítica para a diversidade, embora se espalhem geograficamente. É o caso do Instituto Itaú Cultural e do projeto Artes com A Folha. Este último, muito promissor no sentido do reconhecimento do outro, operou positivamente em várias áreas do Brasil, mas no Nordeste histórico3 foi tímido. Na seleção dominou a política de confirmação do reconhecimento. Faltou o olhar que vê onde os outros ainda não viram. Dos três escolhidos, Efrain Almeida mora no Rio e expôs no MAM-SP, no Paço Imperial e na Galeria Camargo Vilaça; José Rufino, que já havia sido premiado em São Paulo e participado de exposições até no exterior, era considerado artista do primeiro time da região antes de ser descoberto pelo projeto Antarctica Artes com A Folha, que tanto alardeou sua missão de resgate dos jovens desconhecidos, a ser feita através da megaexposição organizada em São Paulo durante a Bienal 96, uma espécie de Aperto nacional. Talvez o viés da pré-seleção tenha limitado a ação da curadora, a inteligente e articulada Lisette Lagnado, que produziu uma exposição sobre o new readymade em 1993, premiada como a melhor daquele ano. Conta-se em Recife, onde nenhum artista foi escolhido (Patrícia Azevedo nasceu em Recife, mas vive e trabalha em Minas Gerais), a piada de que o auxiliar de curadoria, que lá foi para fazer a primeira seleção dos artistas, estava preocupado em encontrar um equivalente a Arthur Bispo do Rosário no Nordeste. Este sim foi “descoberto” por Frederico Moraes, um dos poucos críticos no Brasil capaz de não só descobrir Bispo, mas também de avaliar o figurativo. O que ocorreu com o Nordeste, todavia, não contamina todo o projeto, que teve muitos pontos positivos. Um deles foi mostrar ao poder central as condições mais que precárias nas quais trabalham os jovens artistas do outro Brasil.
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A expressão foi tirada do título do artigo de Marcelo Coelho sobre a Bienal Brasileira: Bienal atesta condição periférica do Brasil: toda a arte brasileira parece imitação de linguagens estrangeiras, o que não diminuiu a qualidade do que se faz aqui. Folha de S. Paulo, 13 maio 1994, caderno 5, p.8. Histórico Nordeste compreende Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Sergipe.
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Um dos curadores escreveu um artigo na Folha de S. Paulo contando o caso de um candidato à exposição Antarctica Artes com a Folha a quem pediu para ver alguns outros trabalhos; o artista respondeu pedindo tempo, pois os outros trabalhos estavam em casa de uma tia e ele não tinha dinheiro para pagar o ônibus a fim de ir pegá-los. Este curador foi capaz de ver, reconhecer e registrar as diferenças de contexto, e até de se comover com elas4. Curadores começam a deixar de ser anjos de pureza5 e a desenvolver uma linguagem que fala com em lugar de uma linguagem que fala para. A pós-modernidade da curadoria reside na comunicação autêntica e plural e não mais no discurso unilateral, unívoco e individual do colonialismo interno. Não quero dar a impressão errada de que sou regionalista ou localista, reclamando dos internacionalistas. Seria uma mistificação, inclusive por estar escrevendo este artigo enquanto ensino numa universidade norte-americana, que se pretende internacional6. Entretanto, para ser internacional é necessário não apenas estar amplamente informado pela internet mas, principalmente, ter flexibilidade para perceber o outro embebido em seus próprios valores e não previsualizado ou prejulgado por um único código, muito menos pelo código hegemônico do poder. A pluralidade entre os jovens artistas do Recife, que conheço melhor que outras cidades do Nordeste, vem sendo nutrida pela pluralidade de seus mestres: João Câmara, Francisco Brennand, José Cláudio, Montez Magno, Paulo Bruscky, Gilvan Samico, Reynaldo Fonseca, Abelardo da Hora. As relações entre o figurativo e o real, por exemplo, são pouco amadurecidas na atualidade no eixo Rio-São Paulo em virtude da ditadura da neovanguarda7. No Nordeste, metamorfoseiam-se e diferenciam-
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Omito o nome do curador porque não tenho condições de consultar o artigo e não quero comprometê-lo caso a minha informação não esteja bem precisa. Apropriação de termos usados por Vicent Kaufman em Angels of purity, revista October, n.79, p. 50, Winter 1997. Contudo, sobre Arte no Brasil só encontrei na biblioteca velhos catálogos, o Dicionário de Artes Plásticas de Roberto Pontual e poucas referências nos muitos livros sobre Arte latino-americana que têm sido publicados nos Estados Unidos nos últimos dez anos. Sobre neovanguarda, ver a revista Art Criticism, v.11, n.1, 1996, p.90-110, que traz o resumo de um seminário organizado em outubro de 1995 pela Universidade de Cambridge para discutir o livro The cult of the avant-garde artist, de Donald Kuspit. A tônica da discussão foi a diferença entre a vanguarda modernista, movida pelo break with tradition ou search for the new, comemorados por Clement Greenberg e Harold Rosenberg, e o artista da neovanguarda, ironicamente conformista, usando arte não só para se tornar parte do establishment, mas como um fetiche vazio, uma commodity negociável. Conclusão dos debates: para o artista da neovanguarda, Arte é uma carreira cínica em lugar de desesperada e incerta, como a dos modernistas.
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-se de artista para artista. O figurativo como representação no Nordeste distancia-se das preocupações da crítica modernista, que se ateve a considerações acerca do realismo visual, para traduzir as inquietações da crítica contemporânea com as múltiplas manifestações do realismo perceptual. Trata-se de um figurativismo que desacredita o real com a mesma força que o abstracionismo, embora menos literalmente. Comecemos por Reynaldo Fonseca que, como Balthus, é um cético do realismo, pois reduz a figura a um esquema visual sempre presente em sua obra e ressalta a narrativa. Ele ficcionaliza a representação, enquanto João Câmara ficcionaliza a objetividade do real. Câmara trabalha o reverso cultural da imagem, o ato de pintar permanecendo como mediador entre o observador e o assunto. Sua pintura protege o tema contra o olhar objetivo. É em virtude da diversidade, associada à alta qualidade da construção simbólica dos mestres, que se pode ter hoje no Recife jovens artistas que, afirmando sua linguagem pessoal, permanecem fora do circuito da franchise crítica que decide as artes no país. Gil Vicente é um exemplo. Seu ponto alto é o metaretrato da arte em Pernambuco através da representação dos artistas, seus amigos e influenciadores, representação esta que revela no tratamento da superfície pictórica índices que decodificam a arte dos representados. Por outro lado, as figuras em sua pintura significam principalmente através do espaço vazio entre elas, ou que as cerca, uma sofisticação de linguagem muito atual. Já a obra de Sebastião Pedrosa, que ele próprio teima em esconder, é radicalmente diferente. Suas discretas caixas-esculturas, trazendo à memória o culto japonês do invólucro e mitologias nordestinas ocultas, operam um hibridismo cultural sedutor. Outra diferença entusiasmante é Romero Andrade Lima, conhecido em São Paulo principalmente pela cenografia e animação cultural. Contudo, de maior importância e densidade é sua escultura, resultante sincrética da introjeção da linguagem construtiva contemporânea e da saga cultural do Nordeste. Isso o torna herdeiro do valioso sincretismo de Rubem Valentim e Gilvan Samico. Por sincretismo, quero significar uma tal relação simbiótica de duas culturas que torna o objeto reconhecível como seu por ambas as culturas que o permeiam8. O vídeo desconstrucionista da obra de Rubem Valentim, feito por Sílvio Zamboni, nos mostra o artista assimilando o geometrismo construtivo da arquitetura de Brasília, entrecruzando-o com os desenhos-símbolos do candomblé. O mestre do sincretismo pernambucano é,
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Moshe Barasch (1996), Visual syncretism: a case study, em S. Budick e W. Iser, The translatability of cultures, Stanford: Stanford University Press, 1996.
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sem dúvida, Gilvan Samico, associando a dicção das imagens populares da literatura de cordel ao espaço clean do modernismo. Sincretismo da mesma natureza preside a obra de Romero, introjetando a linguagem bauhausiana de um Oskar Schlemmer com o armorialismo de Ariano Suassuna, mas construindo objetos de definida inventiva pessoal. Para sublinhar ainda mais as diferenças, quero ressaltar o vigoroso trabalho de Paulo Meira, inscrito na reconstrução pós-moderna da serialidade. Também a respeito de diversidade, é preciso lembrar os trabalhos de Luciano Pinheiro, José Patrício, Adão Pinheiro, Crisaldo Moraes, Ismael Caldas, Roberto Lúcio (Pernambuco) e Miguel dos Santos (Paraíba). Reflexão destacada merece a arte das mulheres. No meu tempo, havia muitas artistas mulheres no Recife. O cânone histórico, implacável com o feminino, passou uma borracha na maioria. Guita Charifker e Maria Carmem continuam sendo reconhecidas e merecidamente comemoradas. Reclamo também para Thereza Carmem Diniz alto reconhecimento pela maestria e sutileza de sua gravura e destaco em sua obra a magnífica construção imagética das relações espaciais e arquitetônicas entre o Recife e Olinda, hierarquizadas e sensualmente representadas numa xilogravura que articula a influência da verticalização da gravura oriental e as linhas definidas, de corte profundo, da gravura popular nordestina (Olinda e Recife, 1965). O movimento feminista nas artes obrigou a revisão dos cânones de valor da arte contemporânea e dos historiadores de arte. Gombrich, por exemplo, não cita nem menciona qualquer artista mulher em sua famosa A História da Arte (1950), largamente usada nas escolas de arte de todo o mundo ocidental, nas quais estudam, principalmente, mulheres. Fato inadmissível pela Nova História da Arte. Entretanto, no Brasil, muitas artistas mulheres ainda temem o adjetivo feminino, porque, como lembra Lucy Lippard (1995), “este assunto, esta admissão de consciência sexual tem tradicionalmente sido tomada como sinônimo de inferioridade”9. É por isso que, no eixo Rio-São Paulo, as mulheres artistas bem sucedidas se recusam a participar de exposições adjetivadas pelo feminino, embora aceitem participar de exposições de mulheres nos Estados Unidos, algumas vezes em museus dedicados só à arte das mulheres. No Nordeste, ao contrário, as mulheres estão se organizando para expor e até mesmo enfrentando o resgate de temas menosprezados por serem considerados femininos ou domésticos. Esta é mais uma vantagem flexibilizadora para o Nordeste, resultante de ter sido relegado por
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Lucy Lippard, The pink glass swan. New York: The New Press, 1995, p.58.
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Escritos do século XX
muitos anos à heterogeneidade das margens. A audiência feminina tem aumentado no Nordeste, o que tem ajudado a conquistar para o trabalho das mulheres a mesma consideração outorgada aos trabalhos dos homens. Galerias dirigidas por mulheres têm procurado tornar visível a arte das mulheres, organizando exposições e debates como o que presenciei na Galeria Artespaço, de Boa Viagem, em agosto de 1996. O trabalho extremamente sério e inovador de artistas mulheres está sendo reconhecido, como é o caso de Viga Gordilho e Norma Couto (Bahia), Alice Vinagre (Paraíba), Oriana Duarte, Bete Gouveia, Cristina Machado, Angela Poluzi, Virginia Colares, Clementina Duarte e Cristina Ribeiro (Pernambuco), Regina Guedes (Rio Grande do Norte), Dodora Guimarães (Ceará). As mulheres no Nordeste estão impondo sua condição ao mundo das artes, e não apenas criando nos termos estabelecidos pelos homens e pelo Primeiro Mundo das artes no Brasil. Estranho que no Nordeste a fotografia tem sido pouco explorada. Trata-se de um meio cuja gramática visual se coaduna com o realismo codificado, a imanência fenomenológica e o estranhamento psicológico que vem designando a arte contemporânea. A última Bienal do Whitney Museum de New York foi dominada pela fotografia, e é nela que se realiza um dos maiores artistas brasileiros atuais: Sebastião Salgado. Ressalto no Nordeste a obra fotográfica de Mario Cravo Neto e a fotografia pictórica de Ana Mariani, embora tenha procurado neste artigo evitar falar dos nordestinos de São Paulo ou do Rio de Janeiro, mesmo daqueles resistentes à assimilação pelo código hegemônico. Quis homenagear a resistência em permanecer geográfica e institucionalmente na periferia do poder e, principalmente, a flexibilidade dos intelectuais e artistas que vivem no Nordeste em coexistir com diferentes códigos culturais e estéticos e serem capazes de avaliar e julgar cada um dos códigos, respeitando os valores enunciados no próprio código e no seu contexto. A arte hoje, cuja autonomia vem sendo relativizada pelos estudos culturais, demitiu a onipotência dos modelos modernistas europeu e norte-americano branco e clama por diversidade, por uma política da diferença. Respeito à diferença é instrumento de consciência estética no Nordeste.
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Originalmente publicado no catálogo Grupo Camelo. Núcleo de Arte Contemporânea da UFPB, maio de 1997.
—Grupo Camelo1
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Este texto foi montado tendo como matriz gravações em áudio de uma reunião do grupo Camelo, na noite de 9 de abril de 1997. Estiveram presentes Ismael Portela, Oriana Duarte, Marcelo Coutinho e Paulo Meira.
Grupo Camelo
UM FUNIL DE CABEÇA PARA BAIXO
Se Isso Vos Interessar Quem não é Julien Sorel? Stendhal. Quem não é Nietzsche? Nietzsche. Quem não é Julieta? Shakespeare. Quem não é o Sr. Teste? Valéry. Quem não é Lafcadio? Gide. Quem não é um homem livre? Barrès. E assim sucessivamente... Jacques Rigaut, em 3 Histórias 3. — Ele é mais ruidoso em significado porque ele é absolutamente cru (...) ele não tem a clareza do sentimento tipicamente construtivo. A crueza a que me refiro é aquela do ruído mental. Aquela do ruído de sentimento. — (...) Da necessidade que as pessoas têm de dar acabamento em determinados trabalhos, acabamento técnico mesmo: “Por que você não fez isso?”. Eu respondo simplesmente que não sentia o menor prazer. Percebo que as pessoas precisam disto, desta referência do esforço do fazer manual... — Mas a questão não passa por aí. Independente do artista ou do públi-
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co. Isto de “ser ou não ser preciso” só cabe ao trabalho. — É o trabalho que precisa. Não é você. — Vamos dar um ponto final nesta de técnica definitiva, única. O trabalho é que define o grau de domínio necessário a ser utilizado. ◊ — (...) é quando surge a natureza do mago no processo artístico. — E qual seria a mágica? — O espaço dominado através da disposição das coisas. E esta disposição possibilitando um diálogo entre as partes. — Diálogo... — Sim, diálogo. Porque o diálogo é composto de relatos que tornam a narrativa aberta e disponível para combinações diversas. — Seria, então, esta impressão de mágica. Que não é nada mais do que enfrentar o espaço. O processo passa pelo perceber que não há nada mais o que fazer com as mãos. Apenas olhar para todos os lados. ◊ — Eu corcoveio diante de uma obra que me leve a uma contemplação profunda. Diante daquilo que é hermético. Porque nada é apenas avistado. Não é olhar uma superfície. Não adianta. Não se contempla com rapidez. Por isso odeio o olhar treinado, classificador. Aquele olhar que julga e depois contempla. O olhar crítico que não mergulha. Ora, antes deve vir a contemplação. — O lugar comum da observação e da crítica descarta o desconexo, o que está fora dos verbetes de enciclopédia. — E o motivo de existir este lugar comum, confortável, seguro, é o estarrecimento diante da não possibilidade de classificação. — E parece ser a condição atual da história. — Do jeito que você estava ontem... Parece que hoje relaxou.
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— Aconteceu a exposição. — E eu preciso ir para casa. — Você quer outro café? ◊ — Ser corcoveador... — Nós podemos corcovear diante do hibridismo... — E diante de determinadas pessoas. — E também cuspir uma autêntica cuspida de camelo... — Impregnadora como chiclete do inferno! — Pedro II de corcovas. — Mas os camelos não chegaram aqui no nordeste. — Bobagem... Foi um sonho. — E agora é realidade. — Eis o hibridismo! ◊ — Teu trabalho, de um momento para o outro (...) Você começou a falar que estava lendo algumas coisas que estavam fazendo seu cérebro evaporar. E, paralelo a isso, surgiu a sua ideia, a sua maneira, de construção do espaço e eu achei isso muito curioso. É como se fosse uma ilustração utópica destas ideias. — Mas é mesmo. Hoje eu estava falando que todo o meu êxtase intelectual acontece quando eu consigo tornar “forma” um conhecimento. Quando eu consigo visualizar. E não é um processo racional, porque eu não busco fazer uma cópia. Quando meu olhar se transforma diante do texto, ele se torna animal furioso. E passa a ver claro no escuro. E daí surge a obra.
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— Há autores de filosofia ou de antropologia que criam um universo espacial. É possível ver um espaço físico, organizado de determinada forma, lendo este ou aquele autor. — É... E há autores de certos momentos de nossas vidas. — Eu não sou um bode de duas cabeças. ◊ — Este “não sou eu” já é um processo. Até que ponto minha procura não é evitar a construção confortável do acerto? — Você quer evitar aquelas obras que são como cacoetes, tiques nervosos, que o artista cria para ser facilmente reconhecível à distância. Como por exemplo: “O artista do couro”, “o artista do vidro”, enfim, aqueles sujeitos que fazem do procedimento a sua “assinatura”. — Você quer tornar irreconhecível esta “assinatura”. — O mergulho é fascinante. — E a dúvida é o veneno necessário. ◊ — Por mais que a moral ocidental esteja se tornando múltipla, não existe um indivíduo que pense: “ali, naquele setor, as pessoas pensam o tempo como tempo cíclico”. Não existe! Não existe esta possibilidade. Você imaginar que alguém está ali pensando solitariamente num tempo cíclico e outro está pensando solitariamente num tempo linear, não existe. Eu posso até imaginar que as tribos do miolo da amazônia podem pensar o tempo de maneira diferente. Mas quem é ocidental e está implicado nesta lógica de economia, de processamento de informação, está mergulhado em uma mesma noção de tempo. Não consigo imaginar que na Argentina... — Você não consegue perceber a ideia de “tempo tríbio”, numa ausência de linearidade na compreensão do que seja passado-presente-futuro? — Sim, consigo admitir principalmente porque este negócio em várias áreas está sendo cada vez mais falado...
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— Mas acontece no meu trabalho, sabia? — Não! — O quê?! — Eu não estou falando do meu, do seu trabalho. Não é nada disso não. Estou falando que existe uma noção cultural geral. Não é do trabalho individual, não. — É lógico que existe no trabalho. — O que existe é um total descontrole do antes-durante-depois. — Na produção? — Em tudo. Na vida que anda em compasso de futuro, sem compreensão do passado. Vivemos mergulhados em um processo de avanço tecnológico contínuo. De eterno futuro. — Eu estou falando de experiência pessoal! — Eu já sonhei com o futuro... — Tudo bem, tudo bem. A sequência é uma coisa abstrata. Mas, o tempo cíclico, como qualquer noção de tempo, não é uma ficção? E aquilo que Borges fala sobre superposição de tempos não é uma ficção? Tudo é criação humana. Não existe nada que seja absolutamente real. — Mas o tempo cíclico é confortável para uma compreensão de espaço-tempo individual. É o pontuar do giro do carrossel que, por sua vez, gira em torno da angústia da origem. O eterno retorno se contrapõe à linearidade nesta questão que indaga sobre os questionamentos fundamentais do homem e de suas origens. Perguntar “por quê?” e perceber o que mudou no seu modo de formular esta pergunta. Mas a pergunta sempre volta. — Percebo que nós latinos temos uma relação muito forte com esta imagem do eterno retorno. ◊
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— O que me interessa no tempo não é uma questão aplicada diretamente ao trabalho. — É uma questão hiper sedutora. — É importante por ela mesma. Não é necessário que tenha que sair uma obra daí. — Mas com certeza acaba sendo importante para ela. — Eu não me preocupo em aplicar todo conhecimento, tudo que leio ou me interesso, dentro do meu trabalho. — Mas quem diabo sabe o que vai acontecer? As aplicações não são do tipo “laboratório”. São aplicações absolutamente descontroladas. Como vai surgir a influência de um texto lido hoje em minha cabeça? — Por que tudo tem que ser prático? Questões práticas ou praticar questões? — Mas não dá para dissociar... Há um processo natural. Se existe um conteúdo que estamos discutindo e se nos comprometemos com o exercício de dar forma a determinados pensamentos, então qualquer conhecimento, desde que seja de interesse do artista, fatalmente irá gerar uma obra. — Ou não...Rá! Rá! Rá! — Mas quem sabe qual a fisionomia deste amálgama que está em minha cabeça? Eu sei? Você, de fato, escolhe reflexões? Não existe situação mental passível de ser controlada. É uma doce ilusão das pessoas que estão acordadas imaginarem que estão dominando algum processo. Ninguém está dominando processo nenhum. Se eu tivesse possibilidade de optar, jamais teria pesadelos. Mas eu tenho. E são pesadelos terríveis. E quem está dando estes pesadelos para mim? — Você mesmo? — De que maneira este espaço pode ser analisado? Este pré-espaço anterior a qualquer formulação de um objeto? Qual a fisionomia disto? Não tem controle. É um mosaico bizantino. Estamos colando peças.
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Crítica de Arte em Pernambuco
Escritos do século XX
E que rosto final têm? É curioso porque esta imagem final sou eu. Mas eu não sou capaz de ver. Só se eu não estivesse em mim eu poderia ver. Eu sou a própria imagem estampada. E você joga ela no seu trabalho... — A imagem que está estampada não se vê. Só quem está fora dela pode vê-la. — Todas as informações que estão sendo processadas aqui, que a princípio eram apenas de conteúdo estratégico, com o tempo foram tornando-se outras. Creio que todos os nossos trabalhos se modificaram. As informações trocadas aqui entre nós são muitas. Formam também um volume sem controle. Com referências as mais diversas. Porque cada um de nós possui uma linhagem pessoal. — Isto é que faz com que o grupo se ligue. — A falta de controle é uma bola que se autoconstrói. ◊
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Originalmente publicado no catálogo Panorama de arte brasileira 1999. São Paulo: Museu de Arte Moderna, 1999.
—Marcelo Coutinho Dedico esta entrevista ao raciocínio nômade e sempre generoso de Clylton Galamba.
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Objetos Desejosos Uma entrevista com o Antropólogo Lawrence Jakimo Pokot
Em publicação anterior, meu texto a respeito de Lawrence Jakimo Pokot foi amplamente mutilado e o pouco que sobreviveu dele ainda sofreu sérios erros de editoração1. Naquela ocasião, apresentei-o como sendo um “místico” que muito havia influenciado a construção de minha obra. Aplicar a ele tal definição, porém, não se tratou de qualquer erro editorial: foi de minha inteira responsabilidade. Não conhecia o suficiente as atividades deste homem e tentava vê-lo, compreendê-lo sob a curta ótica e o parco instrumental que naturalmente caracteriza a nós, cristãos ocidentais. Para culturas tão estranhas à nossa, tão mais antigas e tradicionais como aquelas que hoje compõem o Quênia, o termo “místico”, tal qual o entendemos, precisaria englobar outras áreas do saber, como a medicina, a química, a psicologia e a filosofia. Levando em conta que este, digamos, sábio, é consultado para aprovar ou vetar o traçado urbano, indicar a cor das portas e a melhor combinação de vizinhos na aldeia, somos levados a pensar que este homem poderia também ser considerado urbanista, arquiteto e assistente social, ao mesmo tempo. Quando encontrei L.J. Pokot aqui, no Recife, durante o carnaval de 1998, hospedado no Hotel Central, foi este termo, “místico”, indevidamente
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Jornal que circulou nas cidades de Olinda e Recife, em agosto de 1997, como forma de divulgação do evento multimídia “Mônadas”, que teve como local a antiga fábrica de tecelagem Tacaruna.
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aplicado a ele, que deu início a nossas conversas. Eu passava por um dos períodos mais difíceis de minha vida. Os ruídos vindos da rua em orgia só tornavam minhas dores mais desproporcionais. Eram dores do espírito, aparentemente imateriais, mas que por vários momentos manifestavam-se nas juntas de meu corpo e em vertigens inauditas. Foi quando recebi na casa de meu amigo, o crítico literário Anco Márcio Tenório Vieira, o telefonema de um outro velho amigo, o físico Vinícius do Vale Navarro, paraibano de João Pessoa, hoje professor de astrofísica na Universidade de Cambridge: Pokot chegara ao Recife duas semanas antes do início do carnaval. Nas condições em que me encontrava, mergulhado em uma estranha e macabra euforia, sinal típico de uma vindoura depressão, não seria de espantar que a imagem de Pokot tivesse sido tão recorrente em mim, mesmo que não soubesse deste seu novo arroubo em visitar o Brasil. Afinal, era este homem que tratava em suas palestras da necessidade de voltarmos a ver na dor e na adversidade não o fim, mas a oportunidade de verificar a passagem. Porém, o fato é que quando soube da presença física, real, de L.J. Pokot na cidade, atribuí a isso uma aura mágica. Um doce ditame do acaso. “Deus não joga dados”, pensei. Pokot já havia estado no Brasil várias vezes. Por mais que houvesse conhecido figuras ilustres da intelectualidade brasileira e internacional, manteve-se à parte de um conhecimento público mais vasto. Ainda jovem, acompanhou Claude Lévi-Strauss em terras Nambiquaras, como colaborador de língua inglesa à expedição2. Desta experiência surgiu sua primeira publicação: Entre os Olhos: O que não foi visto por uma expedição europeia entre os Nambiquara da América do Sul3, datada de 1942,vinda a pú-
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Em Tristes Trópicos ( São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1996, pag. 248), Claude Lévi-Strauss não se refere nominalmente aos seus colaboradores na expedição Nambiquara. Apenas indica: “a expedição incluía de início quatro pessoas que formavam o pessoal científico, e sabíamos muito bem que nosso êxito, nossa segurança e até nossas vidas dependeriam da fidelidade e da competência da equipe que eu ia contratar”. O antropólogo Edmund Leach, em seu ensaio Lévi-Strauss ( São Paulo: Ed. Cultrix, 1970, pag. 12), nos diz sobre a expedição Nambiquara: “Os detalhes desta expedição são difíceis de determinar. Inicialmente, Lévi-Strauss teve dois companheiros científicos empenhados em outras espécies de pesquisa. O grupo deixou sua base em Cuiabá, em junho de 1938, e atingiu a confluência do rio Madeira e Machado no fim desse ano. Segundo parece, estiveram em movimento o tempo quase todo”. Não se sabe ao certo o motivo do ilustre antropólogo ter se furtado de dar o nome dos demais cientistas que compuseram esta expedição. Between the Eyes – What has not been seen by an European expedition among the Nambiquara in the South America (Cambridge Mass, 1942).
blico antes da publicação de Tristes Trópicos, obra do ilustre antropólogo francês. Nos anos cinquenta, participou, ao lado dos irmãos Villas-Boas, de outra expedição, esta no Pará, para estudar os Ravé-Potí. Seu interesse era verificar os laços entre os ritos e imagens de passagem dos Ravé-Potí e sua tribo natal, no Quênia. Publicou em 1964 o ensaio “O Oriente de Lá: Estudo Comparativo do Devir entre os Ravé-Potí e os Kummah”4 . Esta tornou-se sua última publicação e o último registro de seu pensamento naquilo que ele hoje chama de “dialeto acadêmico” ou de “pornografia intelectual”, referindo-se ao gosto universitário em “transmutar todo pensamento, livre e fluxo por natureza, em papel e pedra”. Após a publicação de “O Oriente de Lá”, sentiu-se profundamente cansado em tentar conciliar a natureza “pequena e tribal” de seu raciocínio, gerado no Quênia, com a grandiloquência da ciência ocidental que havia lhe chegado através dos filtros ingleses de Cambridge. De volta à África, abandonou seu emprego de professor na Universidade de Nairobi e montou bases em sua terra natal, de onde sai periodicamente para divulgar suas ideias na forma de palestras ou de conversas individuais demoradas com “aqueles que detecto como micropartículas de algumas modificações lentas do que virá”. Foram ao todo, entre nós, quatro encontros. Sempre na varanda do pequeno restaurante do Hotel Central, na Boa Vista. Eu chegava em torno das três da tarde, como havíamos marcado antecipadamente. Sentado sempre na mesma poltrona de aparência muito confortável, mais assemelhada a um útero, de tão profundo era o seu acomodar, estava Lawrence Jakimo Pokot, fumando lentamente seu já terceiro maço de cigarros com filtro. Afundado nesta poltrona, seu corpo negro e franzino, já enrugado, alternava gestos ágeis e nervosos, com uma calma e silêncio tumulares. Em duas de nossas conversas, instalou-se um silêncio profundo. Silêncio este tão persistente que, não o suportando, por duas vezes levantei de minha cadeira e parti. Quando cheguei à calçada do hotel, ouvi sua voz vinda da varanda: “Não foram vocês que criaram o tempo lógico? Por que tanto espanto? Estarei aqui amanhã, na mesma hora”. Nestes encontros, Pokot falou-me de sua afeição especial por esta região específica do Brasil, o Nordeste, e de seu deleite pelo carnaval negro do Recife. Contou-me ainda de como tomou conhecimento da obra do filósofo
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The East There – A comparative study of the becoming between the Ravé-Potí and the Kummah (Cambridge Mass, 1964).
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Evaldo Coutinho, através de A Visão Existenciadora, que lhe chegara às mãos numa edição pirata impressa na Argélia. Além de ouvir os tambores que rufavam no bairro de São José, Pokot tinha como intenção encontrar-se com este homem que, para ele, tinha construído um dos mais belos sistemas de “para-filosofia” e “para-literatura” da língua portuguesa. Em seu pensamento, parcialmente expresso aqui, reparam-se traços do que seria para nós uma análise antropológica. Porém naquilo que a antropologia possui em comum com a filosofia: a busca por uma análise básica do Homem. Cá e acolá etnográfico, Pokot impõe sua noção peculiar de espaço e tempo nos ritos de passagem, francamente baseada na experiência específica de seu povo de origem, os Kummah. Se Van Gennep vê nos ritos de passagem a função de mudança de status social do indivíduo5; se a psicóloga Monique Augras, inspirada no próprio Gennep, sugere que na passagem “vai-se de um ponto para outro”, que “é uma imagem altamente espacial”6, Pokot irá sugerir uma outra visão: “a passagem não é objetual, não é verificável através dos olhos”7. Utilizando-se do caso Kummah, nos diz que a passagem desdobraria-se indefinidamente, durante todo o correr da vida, entre dois pontos: nascimento e morte. No primeiro de nossos encontros expus-lhe meu projeto, já em andamento, de nomear, com palavras criadas por mim, sensações íntimas, complexas que, exatamente por serem absolutamente pessoais, carecem de uma denominação e, por consequência, de uma dicionarização. Trata-se de um trabalho lento, disse-lhe. Em um ano de trabalho havia escrito não mais que três verbetes. Falei-lhe da palavra que exporia em breve, em forma de videoinstalação, naquela que seria a minha primeira exposição individual. Foi ele que alertou-me do caráter votivo e do desejo de passagem que estavam evidentes em Aveclo.
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Ver Les Rites de Passage ( Paris: Nourry, 1909) Ver Passagem: Morte e Renascimento ( In: O Imaginário e a Simbologia da Passagem, Danielle Perin Rocha Pitta (org.), 1984, Ed. Massangana Recife, PE, pag. 35). Em O Oriente de Lá: Estudo Comparativo do Devir Entre os Ravé-Potí e os Kummah (Cambridge, Mass. 1964, pag. 204), Pokot discorre sobre o tema da Passagem como fenômeno de ordem psíquica, individual, processado portanto dentro de uma outra ordem temporal. Diz-nos Pokot: “Passage as a rite is a social aggregator, a permission-obligation of change given to the individual by his group . However, the passage is not always really consolidated. Often, one verifies that the social arrangement was not enthroned at the psychic time of the individual who has been through the rite” E usando o exemplo dos Ravé-Potí, nos diz mais adiante: “In the cases of bodies emptied from a new order, that have made use only of the sacred rite’s appearance, the Ravé-Potí usually make the individual in question swallow clay to the point of nearly suffocation with the intention to fulfill his deep emptiness”.
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O que levo a público agora é apenas o conteúdo de nossa primeira tarde juntos. Tendo este encontro versado sobre passagem, sobre o desejo latente que habita objetos e palavras e, por consequência, sobre arte, achei conveniente separá-lo dos outros assuntos abordados por ele e por mim em nossos encontros. Foi ele que deu início a esta nossa primeira conversa, com seu português só não perfeito por ser levemente contaminado por um estranho sotaque, mistura de inglês britânico e tacuch, sua língua natal. Pokot Estou contente que esteja aqui, que tenha me tornado uma referência constitutiva para você. Mas por que quis ligar meu nome ao termo “místico”, quando citou-me naquela publicação? Publicação, diga-se de passagem, difícil de dignificar a presença do nome de qualquer indivíduo... MARCELO Ingenuidade minha. Desculpe-me. Não encontrei o termo exato para defini-lo. O senhor bem sabe que, entre nós, para sentir que compreendemos, precisamos isolar os fatos e nomeá-los. Pokot Sei, meu amigo. Vocês batizam as coisas se utilizando de nomes velhos, pré-existentes. Nomes firmes perante o texto histórico que vocês aceitam como legitimador. Mas chamar-me de místico seria reduzir-me a uma nomenclatura que vocês próprios desrespeitam. Trata-se de uma palavra que um dia referiu-se a algo existente. Porém dela pouco ou nada sobreviveu. Vocês preferiram optar – se é que é dada ao homem qualquer opção – por uma espécie de realismo que, de tão real, tornou-se fantástico. Creio que daí, deste realismo histriônico, podem surgir outros fluxos, ainda inauditos. MARCELO O que o senhor quer dizer com “outros fluxos”? Pokot Tudo se comporta como sopros, que oferecem aos nossos olhos a possibilidade de ver, simultaneamente, a parte de dentro da pele de um leopardo e a parte de fora desta mesma pele felina. Elas não se apresentam como duas superfícies diversas. São uma. O aprimoramento desta vontade de capturar a realidade acabou por levar seu povo para um lugar exatamente oposto à concretude dos fatos e das coisas. E, consequentemente, acabamos por nos encontrar num ponto deveras comum, nós representantes das chamadas “sociedades primitivas” e vocês, mantenedores desta dita “sociedade complexa”: a presença onipresente da imagem. A imagem, como você bem sabe, é o idílio da coisa real. Apoiados na imagem, levados pelas mãos, por seus caminhos,
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podemos chegar muito longe. Para além daqui. Assim, podemos antever o que virá, caso sejamos sensíveis a tais sopros. Marcelo O senhor parece estar sugerindo que é possível antever o futuro... Pokot O que é o futuro? Marcelo Bem, aquilo que ocorrerá daqui a, digamos, vinte e quatro horas. Pokot E quando não se usa relógio? Marcelo Ora... Pode-se usar o sol, a lua ou a alternância das estações do ano. Pokot Vocês pensam no tempo como algo que corre e escorre por nossos corpos, meu bom amigo... Veem a ilusão do tempo quando os cabelos rareiam, as peles enrugam, os descendentes crescem, morrem, quando algo ou alguém se afasta de vocês. Nestas tipologias de visão, vocês se imaginam como algo pertencente a um lugar anterior ou posterior ao atual. Mas para nós Kummah, como disse, isto não existe: trata-se de uma ilusão. E, vale a pena dizer: uma ilusão infernal, verdadeiramente o haliob. Em nossa estrutura pessoal e por extensão cultural, não nos verificamos como uma mesma pessoa durante muito tempo. Podemos ser batizados e ganhar um nome diferente quantas vezes for necessário, neste período que vai do jahamkat ao kathamjah8. Marcelo A mudança de nome representa a finalização de uma passagem... Pokot Sim... De forma geral podemos pensar em passagem como um movimento, um movimento filiado ao tempo e nada devedor do espaço. Um movimento que leva alguém de um estado temporal a outro. Mas o tempo, como já lhe disse, é uma noção condicionada. Ele não é objetual. Por mais que reparemos nele impresso nas coisas, o que vemos não é o tempo em si, imaterial por essência, mas os rastros de sua ação que já efetuou-se. Assim, ele possuirá as mais variadas conformações. Van Gennep tenta descrever para vocês como a noção de tempo se comporta nos ritos de passagem de alguns lugares da África Ocidental. São ritos de geração e morte. Que duram um período de tempo frequentemente longo. E que ao fim deles é assegurada a mudança necessária.
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Em idioma tacuch, o equivalente ao termo “nascimento” é “jahamkat”, que se traduzido rigorosamente significaria “lá vem”. Para nossa “morte”, os Kummah possuem o termo ‘kathamjah”, uma inversão de sílabas que poderia ser traduzido como “evaporou”.
Crítica de Arte em Pernambuco
Escritos do século XX
Mas entre nós, Kummah, a passagem se efetua como sentido desdobrado e perene, não como sentido fixo e temporalmente localizado. Por assim dizer, estamos vivendo um longo e ininterrupto processo de passagem... A nossa heteronomia ostensiva nos garante a manutenção da situação de mobilidade da passagem. O nome é prescrito por uma autoridade específica, que diagnostica a necessidade do indivíduo livrar-se de um objeto do passado. Prender-se a uma das feições desta ilusão pode oferecer o haliob ao pobre sofredor. Marcelo Eu poderia traduzir haliob como “inferno”? Pokot Creio que não. Marcelo O senhor poderia me descrever o conceito desta palavra? Pokot Nada de conceitos, meu jovem, nada de conceitos... Você experimentou parte desta visão. Quando se detém a imagem, não se necessita de conceitos. Marcelo Eu experimentei? Como assim? Pokot [ Silêncio] Marcelo Quantos nomes uma pessoa pode assumir durante a vida? Pokot Quantos se fizerem necessários. Vou lhe relatar um caso desta nossa estrutura de heteronomia ostensiva. Existiu um velho homem entre nós que se manteve inviolável por boa parte de sua vida. Durante uma noite de inverno, teve um sonho pavoroso no qual um mensageiro vindo do Katham-huruk9 lhe avisava dos malefícios de manter-se casto durante muito tempo. Seu pênis iria penetrar-lhe as vísceras e fundir-se numa única estrutura de carne que lhe cobriria inclusive o ânus e nenhuma substância ou produto poderia ser expelido de seu corpo. Enxergou-se como um balão inflado até o limite de estourar e, finalmente, viu-se estourando e de si jorrando grandes quantidades de esperma, fezes, urina e sangue. Acordou naturalmente apavorado com a mensagem de alerta que lhe viera dos céus e resolveu consultar-me. Marcelo E como o senhor agiu?
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“Katham-huruk”, palavra mista, englobaria em si algo próximo de nosso conceito cristão de “além”, ou seja, o lugar para onde iríamos após-morte e, no caso dos Kummah, onde entrariam em “kathamjah”. Porém, é importante atentarmos que o termo “huruk”, usado separadamente, pode denominar em tacuch tanto “fezes bovinas”, fertilizantes do solo, quanto “vagina da mulher amada”. Portanto, temos aqui um sentido muito ampliado da ideia de além.
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Pokot Ora, não sou homem diante do qual um sonho passa despercebido... Prescrevi-lhe um novo nome. Nome este, aliás, que, reconheço, já deveria ter-lhe prescrito há muito mais tempo. Eu ainda era um novato na função. O fato é que estruturado pela liberação do nome anterior, que funcionava como um terrível objeto que o ancorava naquilo que vocês chamam de “passado”, o homem floresceu e novamente entrou no fluxo. Passou a experimentar todas as formas possíveis de liberação de seu sêmen. Para aquele homem, nenhuma diferença existia entre uma palmeira, um ser humano e um hou-hou10.E cada uma destas experiências certamente o modificaria. Iriam torná-lo, de alguma forma, outro, deixando-o com muita rapidez, dono de periódicas novas estruturações e detentor de novos nomes. Entrou em kathamjah já muito velho, tendo passado por cerca de cinco mil nomes, com o crânio rachado por um gorila. Marcelo Caso eu tenha entendido bem, o senhor está dizendo que vocês Kummah não possuem qualquer marcação cronológica? Pokot O tempo para vocês é externo. Ele lhes é ditado à sua revelia, montado sobre esta estranha estrutura que vocês chamam de trabalho e produto. Para nós, o tempo não é linha: é ponto. Não existe a conjugação pretérita do verbo ser, tampouco a futura. Quando nos referimos à ideia de Ser como indivíduo, apenas seria possível aplicarmos a forma de gerúndio. Trata-se de uma estrutura interna, baseada nesta bela palavra de sentido perene: sendo. Marcelo Mas o senhor referiu-se a esta figura de autoridade que prescreve os novos nomes para os indivíduos. Esta figura não funcionaria como um marcador de tempo externo, tal qual um relógio? Pokot Não. Não quando já se visitou o Haliob. Esta figura de autoridade, o puckotoch, está aqui e acolá. Nesta peculiar situação, vemos tudo. Vê esta marca em minha nuca? [Pokot vira-se e apresenta uma profunda incisão de forma oval que mesmo os cabelos crespos não conseguiam esconder] Marcelo É uma marca muito profunda. O que isto significa? Pokot Esta forma amendoada tenta reproduzir a forma de um olho. Esta incisão foi feita com o pucko, instrumento ritual de ferro
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Espécie de cão do mato, que vive dos restos alimentares apodrecidos deixados por outros animais de maior porte. Parente da hiena, é habitante das margens do lago Victoria. [Nota do revisor]
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que penetra e calcina a pele até a estrutura óssea do crânio. Eu ainda era jovem quando foi passada para mim a função de manter fluida e assegurada a nossa heteronomia ostensiva. Foi esta marca que me dotou de um nome fixo, este que ainda hoje carrego e que representa a posição de puckotoch. Marcelo Puckotoch seria o homem que, tendo experimentado a visão do Haliob, foi alçado socialmente a esta posição de guardião da mobilidade nominal, estou certo? Pokot Quase isto, quase isto. Nasce-se predestinado a tal visão. Esta marca em minha nuca representa a integração das três formas de tempo conjugadas em mim e gravadas em meu corpo. De uma forma ou de outra todo homem possui, por natureza, a inscrição destas três formas na própria configuração de seus corpos. Pense em seu corpo caminhando por uma vereda... Existe o andar dos pés que experimenta as texturas da areia, as variadas temperaturas que o solo nos oferece, o conforto de pisar a terra fria, que estava à sombra de uma árvore. O corpo instala-se no presente absoluto. Nele, sentimos dores, prazeres, confortos e desconfortos, frios e calores que são manifestações sólidas da mais absoluta presentificação das coisas. Através destas sensações nos é revelado o teor do instante. Já a presença dos olhos, que vara vereda adentro, nos retira do instante e nos oferece as possibilidades de configuração daquilo que virá: as curvas, a escuridão, o sol, que se põe frente aos nossos olhos e nos ofusca, um possível lago a atravessar. Os olhos, sempre mirando para frente, nos oferecem o símbolo do futuro, muito longe do agora. Mas ainda temos as costas. E, em especial, a nuca: esta nossa parte tão vulnerável. Este é nosso ponto cego. É o que deixamos para trás. É aquilo que nos permitiu chegar e estar experimentando o instante desta nossa caminhada pela vereda, mas que não mais avistamos. O passado e a configuração frágil e cega da nuca poderiam funcionar como uma boa imagem do Haliob. Marcelo O olho gravado na nuca teria o significado de enxergar todo o trajeto da vereda que ficou para trás, ou seja, ver o passado... Pokot É estar instalado todo o tempo, simultaneamente, nos três lugares. Por isso, a mim e a nós puckotoch, é vetada a heteronomia. Foi-me reservada esta posição. Não posso experimentar a graça reservada aos comuns. Próximo da morte, quando transferir a chaga para a nuca de meu filho, poderei por fim ganhar outro nome e entrar em kathamjah.
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Marcelo Trata-se de um cargo passado de pai para filho, pelo que o senhor disse. Sempre é escolhido o primogênito para tal responsabilidade? Pokot Não. Tudo depende da cor dos ventos que envolveram o momento do nascimento da criança. Só aqueles que nasceram soprados por ventos róseos claros poderão assumir o posto. Marcelo O senhor quer dizer que os ventos possuem cores? Trata-se de uma simbologia ou... Pokot ... Concretude? Veja, meu jovem, é impossível medir ou estabelecer fronteiras firmes entre as duas coisas. Lembre-se de Cassirer, por exemplo, que já há tanto tempo esforçou-se para convencer vocês das incertezas na diferenciação entre estas duas coisas. Mas o que interessa é que hoje poucos são capazes de ver este fenômeno das cores do ar. Porém mesmo entre vocês do mundo ocidental existem aqueles que perseveraram nesta percepção e tentaram defendê-la. Lembra do irlandês De Selby? Marcelo Nunca o li diretamente. Sempre através de Le Fournier ou de Hatchjaw & Basset. Pokot Em um livro seu intitulado Álbum de campo, De Selby fala da presença de um “ar negro” que envolvia a Europa pouco antes da primeira grande guerra. A princípio, pensou que fosse o acúmulo de poluição das nascentes fábricas e indústrias. Mas logo se deu conta de que só ele vislumbrava tal coloração peculiar. Cor sempre premonitória de alguns eventos que estão por ocorrer no corpo social. Seguindo este raciocínio que, como você vê, também foi percebido por um pensador ocidental, nós observamos a predominância da cor dos ventos que envolvem o recém-nascido. Caso sejam róseos, ele terá uma vida longa e a fortaleza necessárias para ocupar o posto de puckotoch. A propósito, o próprio De Selby, em Horas douradas, comenta a variação das cores de nascimento e também aponta para o róseo como a cor da longevidade. Marcelo Desviando um pouco o assunto, se o senhor me permitir, gostaria de falar de seus vínculos com nossa cultura. O senhor foi professor na Universidade de Nairobi, possuiu fortes vínculos com a antropologia e especificamente com a etnografia. Estudou em Cambridge, fala diversas línguas e ainda faz questão de viajar frequentemente pelo mundo... Pokot [Interrompendo]... Já foi mais frequente. Hoje prefiro estar entre os meus...
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Marcelo Mas, de qualquer forma, ainda faz este movimento, de estar lá e cá, não é? Como é possível coligar uma educação formal inglesa com o fato tão fundamental de o senhor ser um puckotoch? Pokot Este é um traço do caráter Kummah. Aos olhos estrangeiros, conciliamos, fundimos. Você deve saber o quanto somos diferentes de nossos vizinhos, os Nuer, descritos pelo meu colega Pritchard. Ao contrário deles, sempre violentos e ariscos com seus visitantes, nós somos receptivos. Não é difícil, para aqueles que possuem olhos argutos, desconfiar de gentileza e receptividade em excesso. Elas contêm em si uma voz oposta. A nossa defesa, no que diz respeito a nossas relações com a alteridade, é baseada na mentira. É possível que sejamos o povo mais mentiroso, lúbrico e dissimulado da África Central. Marcelo Como aconteceu? Me fale destes primeiros contatos com o ocidente... Pokot Nos apresentamos, a princípio, como um povo mudo. Provavelmente seríamos o primeiro povo geneticamente mudo da face da terra. Éramos, portanto, duplamente interessantes para nossos colonizadores. Assim, sendo uma cultura “só ouvidos”, a palavra de Jesus nos emprenharia com mais voluptuosidade. Durante o primeiro ano de presença dos missionários, nada falávamos. Só ouvíamos. Apenas balançávamos nossas cabeças em sinal negativo, acompanhado de um som gutural assemelhado a um “humrrum”. O gesto era dúbio, não restava dúvida. Mas a ânsia por uma imensa plateia, finalmente só ouvidos para a “palavra”, fez os missionários darem mais atenção ao “humrrum” do que ao negativo pendular de nossas cabeças. Eles se apaixonaram por nossa aparente docilidade. Porém, não estavam satisfeitos com o negativo pendular. Com muito trabalho, tentaram modificar o movimento da esquerda para a direita, indicativo de “não”, e substituí-lo por um mais adequado, que desloca a cabeça de cima para baixo, reforçando o “humrrum”. Quando finalmente o movimento de nossas cabeças aprumou-se, eles choraram de emoção. Mas tal foi a surpresa da missão quando verificou que o som gutural havia se transformado também. Enquanto nossas cabeças balançavam afirmando, das gargantas saía um outro muxoxo, um tanto quanto desalentador, um ruído lingual assemelhado a “tss, tss, tss”. Marcelo Povo ardiloso os Kummah... Pokot Trata-se de uma bela tradição. Eles ficaram muito impressionados quando já no segundo ano de mudez, falamos em con-
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junto a palavra yêh-zhúch. Eles imaginavam que haviam nos curado de nossa mudez orgânica, através da ação da fé e da aceitação de Jesus em nossos corações. O parentesco fonético entre yêh-zchúch e Je-sus tornou-se um emblema da conversão para eles. O que eles demoraram a descobrir foi que em dialeto tacuch, esta palavra assemelhada ao nome de seu salvador tinha o significado de “impotência sexual”, ou “homem que não cumpre com seus deveres de marido”. MARCELO A estrutura mentirosa de defesa cultural dos Kummah ajudou o senhor em sua carreira universitária em Cambridge? POKOT O fato é que a dissimulação e a mentira como traço de defesa cultural nos foi, e ainda é, elemento de grande utilidade. Através dela, passamos a dialogar mais altivamente com quem quer que fosse. Em Cambridge, fui considerado um dos mais próximos seguidores do método de campo do professor Malinowsky. Ele próprio, já um tanto esquecido, imputava a mim o título de herdeiro. Minhas qualidades Kummah, qualidades de enorme plasticidade diante da alteridade, me credenciavam a experimentar o método de campo de Malinowsky com mais profundidade. Chamei meu método de “imersão aguda” e muitas vezes o apelidei de “método de compaixão etnográfica” para me fazer mais claro aos ouvidos ocidentais. Mas, voltando à sua questão primeira, foi a plasticidade Kummah que agiu sobre mim e me dotou da possibilidade de trafegar entre povos os mais díspares. Somos uma cultura plástica, maleável, receptiva, mas a dissimulação e a mentira nos manteve a integridade. Trata-se de pensar a mentira não como traço de mau caratismo, como um lado assombreado da alma humana. Trata-se de reparar que os homens preferem ouvir “sins” do que “nãos”. Pode-se facilmente fazer alguém crer que estamos inteiramente convencidos, ou ainda, convertidos, de seus argumentos repetindo, durante uma conversa, periódicos “humrrum”, “certamente”, “claro, claro”. Este artifício enche de vaidade aquele que compulsivamente fala e que tenta convencer o mundo de suas magníficas percepções. O lado mau, a deformidade de caráter, sempre será do falador compulsivo, daquele que tenta engendrar a vastidão do mundo em sua teia particular de leituras. Me utilizei da vaidade alheia, do falador compulsivo, através de meus ouvidos bastante generosos. Em tacuch existe um termo que em muito pode elucidar as relações que travamos com outras tradições culturais. Este termo se aplica às crianças. Chamamos aquelas que desobedecem em silêncio
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seus pais de tantuo-hou11. O meu método de compaixão etnográfica surpreendeu meu velho professor, que me imaginava um de seus últimos e derradeiros cúmplices absolutos. Ele me aconselhava algo, eu dizia sim, mas continuava trilhando meu próprio caminho. MARCELO O fato de descrever os Kummah como o povo mais mentiroso da África Central e sendo o senhor um Kummah, nós poderíamos desconfiar de todas as suas palavras nesta entrevista. Isto não o incomoda? POKOT [risos] É temerário, devo admitir. Mas cabe a vocês me julgar, não a mim. Entre a mentira e a loucura existe uma delicada fronteira. Nós não acreditamos em nossas mentiras e isto nos faz apenas cínicos e gaiatos aos olhos alheios, mas nunca aos nossos próprios olhos. Vocês, ao contrário, acreditam em suas próprias mentiras, se desestruturam quando finalmente elas não podem ir à frente e isso faz de vocês um povo esquizofrênico. Esquizofrênico aos olhos de outros povos e até mesmo aos seus próprios olhos. MARCELO Diz um amigo meu, ex-seminarista, Hilton Lacerda: “que a plateia acredite na mágica que se efetua no palco, nenhum problema. Porém, o mágico que acredita em sua própria mágica...” POKOT Existe uma grande diferença. Exatamente. Seu amigo está correto. Além do mais, a dissimulação entre nós é um elemento de defesa cultural. MARCELO Mudemos de assunto, senhor Pokot. Em uma de suas palestras, publicadas nos Anais de Psicologia Social da Universidade de Salamanca, tive a oportunidade de tomar contato com suas ideias sobre “objetos desejosos”. Caso eu não esteja enganado, o senhor iniciava falando de objetos simples que seriam presentificações do desejo de vir a ser e, posteriormente, falava de grandes edificações sociais que possuiriam o mesmo princípio desejoso. O senhor poderia expor mais uma vez estas ideias? POKOT Sim, claro, com muito prazer. Mas se lembre que em Salamanca eu tive dois dias para expô-las. MARCELO Tenho todo o tempo necessário para o senhor...
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Rigorosamente, tantuo-hou significaria “criança cujas orelhas foram comidas por um hou-hou. Em português falado no Nordeste brasileiro, estaria próximo de criança “malouvida”.
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POKOT Obrigado, obrigado. Sua juventude é benevolente, como toda juventude. Sempre pensam que tem todo o tempo mundo... Mas, vamos adiante, não é ? As palavras são a presentificação da ausência, estou certo? Quando eu falo: “ontem eu fui trabalhar”, estou evocando uma situação que já não existe. Estou presentificando uma ausência. Quando digo “gostaria de amar novamente” também estou presentificando o vazio físico de uma dada situação, que não está mais aqui, que apenas poderá vir a estar um dia. Existe uma marca fundamental na linguagem que é a eterna e constante construção e reconstrução daquilo que um dia existiu, daquilo que um dia existirá. A linguagem se constrói aqui e agora, quando se fala, quando se escreve. Porém aquilo que a move, que a faz efetuar-se, não está aqui nem agora. Está antes ou depois do instante. A linguagem é instrumento desejoso, portanto. É desejo de presentificação daquilo que, por natureza, é impossível de presentificar. Linguagem é evocação. Evocação e reconstrução. O elemento desejoso da linguagem pode ser verificado quando, periodicamente, olhamos um fato passado de nossas vidas e construímos um discurso qualquer, para nós mesmos, que justifique uma condição presente. Logo mais adiante, nossa vida muda novamente. Então olhamos para o mesmo fato passado e, estranhamente, enxergamos nele outra coisa e recontamos para nós mesmos uma outra história que dote de sentido a condição atual. Por ser desejosa, a condição natural da linguagem e do discurso é de reconstrução e construção. E de clara evocação daquilo que não existe. MARCELO Ludwig Wittgenstein se refere à linguagem como instrumento que tenta expressar aquilo que não é passível de ser expresso. Porém, exatamente aquilo que não possui possibilidade de ser expresso é o que move, que movimenta a linguagem... POKOT Sim, sim. Gosto da ideia de Wittgenstein sobre o que movimenta a linguagem. Este lugar estranho e inacessível à comunicação. Esta fenda escura, aberta sob nossos pés, que funda todas as narrativas míticas da “origem” e do “sentido”... O “sentido das coisas”... O que dá sentido a uma proposição é algo imaterial, que não está na objetividade das palavras, dos fatos e dos objetos. Os fatos representados, os signos, são em si mortos, desprovidos de sentido. O sentido do signo não está no signo, está na imaterialidade da mente. De fato, o que move o dizer da linguagem é sua impossibilidade de tudo dizer. MARCELO E quanto aos “objetos desejosos”? POKOT O que vale para o discurso da palavra, vale para aque-
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le dos objetos. Portanto, nos objetos está contido o desejo de ser. Eles são indicadores da ausência, assim como as palavras. Vê-se isso muito claramente quando pensamos na lógica dos “objetos votivos”, que vocês ocidentais abandonaram quando foram obrigados a escolher a lógica da arte como linguagem autônoma. Mas o que rege o objeto votivo é o mesmo núcleo que rege a obra de arte. E, provavelmente, vocês tenham esquecido disso. Vi aqui, na região Nordeste do Brasil, desde que estive aqui pela primeira vez antes de me juntar à equipe de Lévi-Strauss no Mato Grosso, uma forte presença do objeto votivo. São os chamados “ex-votos”, não é? Quando um homem esculpe em madeira seu tumor na cabeça, ele retira de si o tumor. Ele efetua seu desejo de livrar-se da doença, construindo-a em madeira, ou cera. O objeto não possui nenhuma autonomia linguística. Ele não é “belo”, não é “feio”. Ele não é equilibrado plasticamente e isto não é levado em conta como elemento essencial. Ele é desejo. Desejo latente. O objeto, no caso o ex-voto, que é um remanescente do objeto votivo e das estruturas pagãs da religião, é um receptáculo da ligação direta entre o crente e a divindade. Em si, ele nada é. Ele apenas é, tanto para o crente, quanto para a divindade a qual ele travou contato. O ex-voto é um exemplo claro da noção de um objeto desejoso. MARCELO E o que vale para o ex-voto valeria para todo e qualquer objeto? POKOT De forma mais ou menos contundente, sim. Porém, para vocês ocidentais isto seria uma ideia difícil de defender e argumentar. Salamanca já aconteceu há muito tempo... Quando penso no volume de tempo e dinheiro que o ocidente gasta preocupado com comunicação entre indivíduos, quando vejo a pulverização do corpo geral da sociedade em grupos e subgrupos étnicos, econômicos, religiosos, sexuais, sou levado a crer que a Internet e a informática são objetos desejosos. Eles são indicadores da ausência. E a ausência é a matéria construtora deste sentimento motriz, o desejo. Quando não há ausência, não há desejo. MARCELO Lembro-me do senhor se referir à arte ocidental como “um mal necessário”, que poderia alertar para a lógica dos objetos desejosos. O senhor poderia se estender um pouco a este respeito? POKOT É um mal necessário. Não gosto do que vocês chamam de arte. De nenhum tipo de arte. O que fazemos em minha aldeia é reverenciar a presença do mundo, não a ausência dele. E o que vocês
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fazem é um cultivo mórbido da ausência. Vocês perderam o elo com a transcendência e se lastimam disso, construindo uma estética. Estética é a tentativa de construção de um sucedâneo para o sentimento de orfandade que a modernidade lhes impôs. Quem crê não precisa de arte. Vocês estão à deriva. Se saio do conforto de minha cultura secularmente imóvel, satisfeita, para me encontrar com vocês, é por compaixão. É preciso reconstruir esta ponte. E penso que posso ajudar. Mas quando entro neste lugar que para vocês possui o valor de um templo, o museu, e vejo esta multidão de almas desesperadas jogando grandes quantidades de tinta sobre tecidos e papéis; quando vejo um homem jogar-se no chão e, pateticamente, esfregar a mão em placas de metal em busca de concentração de energia, fico melancólico e penso que ainda levará muito tempo para vocês chegarem a alguma conclusão objetiva sobre o problema do religare. MARCELO O senhor refere-se ao artista alemão Joseph Beuys? POKOT Sim. Tive a oportunidade de vê-lo efetuando uma solitária manifestação de fé na transcendência, com uma ação física. Ele agia como um pajé. Creio que batizou seu trabalho com um nome em latim, Vitex Agnus Castus, se não estou enganado. Mas para que um pajé se justifique, ele precisa de crentes. Por isso este artista agia para plateias, através de aulas, palestras, ou atividades grupais. Confesso, porém, era melancólico ver aquele homenzarrão prostrado, esfregando a mão besuntada de óleo em barras de ferro, tentando convencer a audiência da necessidade de transcender. MARCELO A arte como “mal necessário” possui, portanto, para o senhor, o sentido de que nela, na arte, existiria o princípio do objeto desejoso... POKOT A ação desesperada destes homens de tanta boa vontade indica uma ausência. Uma ausência fundante para seu povo. Quando a função imaginativa cedeu lugar para a função racional, a cultura cristã começou a adoecer. É possível que todo o desenvolvimento da função racional e da crença absoluta na verdade da matéria já estivesse contida no nascedouro da ética cristã em seus primórdios. Poucos povos possuíram um deus que efetivamente viveu, que se fez carne e deixou rastros concretos de sua vida terrena. Se Deus fez-se homem, naturalmente o passo seguinte seria: Deus não está no além, está entre nós, é o próprio homem feito de carne e osso. Quando Deus é ideia, imagem inefável, pura transcendência, é provável que a materialidade das coisas
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continue sendo um dado insignificante da existência. Pois a Verdade estaria sempre para além daqui. A arte para vocês funcionou e ainda continua funcionando como mecanismo compensatório para o excesso de carne e osso que impregnou suas ideias e seus corações. Se a cultura cristã é insaciavelmente desejosa, esta atividade que vocês crêem ser autônoma, a arte, acabará por catalisar pesadamente a ausência. Através dela, vocês teriam a oportunidade de enxergar seu ruído com a transcendência, seu desejo de escapar deste mundo de carne e osso que criaram para si próprios. Um dia, é possível que vocês se livrem da estética. Por enquanto, ela é um dos pouquíssimos indícios, um dos raros canais de religare que resta a vocês. Por isso a arte é um mal necessário. Por enquanto, apenas existem pastores sem rebanho. Homens descabelados à beira de uma síncope nervosa. MARCELO Poderíamos dizer que todo objeto de arte possuiria algo básico de ex-voto, de objeto votivo. Toda obra de arte seria um objeto desejoso... POKOT Sim. Direta ou indiretamente, todo objeto de arte é desejoso e, portanto, indicador da ausência. Alguns artistas manifestam um tipo de desejo de expurgo. Certa feita, nos anos setenta, em Londres, visitei uma exposição que em muito me nauseou. Era um pintor que lembrava muito o expressionismo do início do século. Porém, concentradamente mais mórbido. Eram figuras humanas despedaçadas, em sangue... MARCELO Era Francis Bacon ? POKOT Não sei. Não gravei o nome desta pobre alma. Saí da exposição entre nauseado e preocupado não só com a saúde mental do pintor, porém com a fratura cultural que tinha forjado tal mente e, fundamentalmente, a doença social que ele acusava. MARCELO Certamente era Francis Bacon. POKOT De qualquer forma, a lógica do objeto desejoso estava lá. Ele retira de si, e por consequência, da sociedade, o tumor e materializa-o fora do corpo. Depois ele oferece a imagem materializada deste tumor para o templo sagrado, que no caso de vocês é o museu ou a galeria. Já o tal alemão pensa menos no tumor e mais no sucedâneo, na cura. A ação de esfregar as mãos nas barras de metal tentava divinizar ações as mais banais. Além de criar, obviamente, um cerco energético entre ele, o “pontífice”, a audiência e aquilo que está para além daqui. Creio que
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era ele que dizia “eu sou uma bateria”, referindo-se à ideia de que continha em si um radiador de energia. Chegou-me através de amigos que frequentaram a Sorbonne informações sobre uma xamã brasileira que trabalhava com um princípio mais propriamente curativo que o deste alemão. Creio que os germânicos tenham uma natural dificuldade de lidar com tais concepções... Para vocês brasileiros, sempre será mais fácil. MARCELO Creio que o senhor se refere a Lygia Clark, uma artista brasileira. Ela trabalhou com arte durante boa parte de sua vida, quando então passou a chamar o que fazia de “terapia”. POKOT Quem bom que esta senhora tenha tido a lucidez de trocar o nome de sua profissão. Não posso garantir que o novo batismo que ela escolheu seja dos melhores. Normalmente o nome, quando já é muito antigo, carrega muito peso sobre si. Acaba por esvaziar-se, ou ser incapaz de denominar ou conter novos fenômenos. O fato é que existem determinados fenômenos que falam do lado de fora das fronteiras disciplinares, que estão, por assim dizer, fora dos nomes. Sei que vocês costumam chamar de arte até produtos provindos dos manicômios... MARCELO Sempre tive dúvidas sobre a validade de denominar objetos produzidos por doentes mentais utilizando o termo “arte”. POKOT O problema nunca será do objeto. Ele precisa existir. Todos os objetos do mundo são necessidades, pois eles são conservadores do desejo de ocupar uma ausência. É claro que uma sociedade que produz objetos em excesso, que se desfaz muito facilmente daquilo que possui para pôr algo aparentemente novo no mesmo lugar, está indicando uma confusão qualquer. Pois esta compulsão pela renovação inscreve, indica, uma ausência, um vazio fundamental de fato preocupante. Mas retornemos ao problema dos manicômios. Creio que os objetos produzidos por doentes mentais são objetos, tal qual são objetos aquilo produzido pelo pintor sanguinário de Londres. O problema sempre será daquilo que Lévi-Strauss chama de “grade”. Será sempre de disciplina do olhar. A questão sempre será: “o olhar que converge para o objeto vem de qual fronteira?”. Esta “grade”, que no caso do ocidente é uma grade de olhares disciplinados, oferecerá a possibilidade de abordagem e de nomenclatura dos fatos e das coisas. Os doentes mentais, e seus primos segundos, os artistas e cientistas de fato criadores, estão apenas cumprindo a norma dialética entre ausência e desejo, estão construindo seus objetos. A esquizofrenia é, fundamentalmente, da grade, responsável que é pela possibilidade do olhar e da nomeação das coisas. É até mesmo triste re-
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parar que os objetos sempre estarão no mundo. Basicamente eles sempre serão, se não os mesmos, muito próximos da forma que possuem hoje. O que definirá suas nomeações serão as novas conformações da grade. Aqueles, preocupados em nomeá-los, estão empreendendo uma tarefa marcada para morrer. Pois os objetos são sólidos, enquanto os nomeadores terão suas nomeações periodicamente alteradas. MARCELO É curioso... O senhor me falou sobre os objetos votivos e em janeiro deste ano tive acesso a um livro de Walter Burkert onde ele faz uma boa introdução aos credos pessoais, fora das religiões oficiais, existentes no mediterrâneo antes do cristianismo se tornar religião oficial de Roma. Estes credos pessoais tinham representações exatamente nos objetos votivos, nas dádivas oferecidas a certas divindades. Pensei que seriam objetos antiestéticos, ou melhor dizendo, não estéticos. POKOT Sim, sim. Conheço o livro. Antigos cultos de mistério. Para maiores aprofundamentos, procure informar-se sobre a obra do monge beneditino português Venâncio Pereira Alçadas. Voz votiva: é este o título de seu livro. Nele, estão descritas grandes construções votivas no sul de Portugal e no norte da África. E uma bela história é lá contada. Existiu uma grande cidade construída para que ninguém morasse. Era absolutamente vazia. Foi destruída pelos mouros em 1350. Conta Pereira Alçadas que a cidade fora construída por um homem de grandes posses, Cabrita Vinhas, em 52 d.C., como oferenda para Afrodite. A dádiva pedida à deusa do amor e da fertilidade em troca da cidade erguida era, sem dúvida, de caráter amoroso. A construção esférica dos ladrilhos que pavimentavam as ruas vazias e os símbolos circulares esculpidos em cada uma das esquinas indicavam isso. Em 1158 um descendente deste mesmo homem teria pedido uma outra graça à mesma divindade, desta vez uma ação votiva e não um objeto. No meio da cidade vazia, construída pelo seu ancestral, ele faria uma longa confissão de seus pecados. Após todo o correr de um dia ter se desenrolado, ele destruiria com as próprias mãos a cidade com o auxílio de um martelo e de um escopo. Tendo em vista que a cidade só foi destruída pelos mouros, devemos concluir que o pobre parente de Vinhas não teve muito sucesso em sua empreitada votiva. O “taurobóleo”, rito muito difundido no mediterrâneo, que se perde no passado, que encontramos referências até mesmo no “Katokochimoi”, de Eupalino de Mégara, é especialmente interessante. Neste caso, a vontade votiva desprende-se do objeto e torna-se temporal, rito.
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O indivíduo que evoca a divindade deveria matar um boi e banhar-se em seu sangue. Num ciclo de vinte anos deveria refazer a ação para, assim, reconstruir a “capa protetora” que precisava renovar-se, desgastada que estava ao fim de cada ciclo. Trata-se de uma constelação de “symbolon eutychies”, presente no taurobóleo. E todos se ligam ao desejo de boa vida terrena. Tanto o sangue quanto o animal, o touro, são elementos característicos das pulsões de terra. MARCELO Nos anos sessenta surgiu um grupo de artistas plásticos chamado “O Grupo de Viena”. Eles utilizaram-se de sacrifícios animais, banhos de sangue, automutilações... POKOT Nunca ouvi falar. Mas, ao que parece, este grupo era um pouco mais desesperado que o artista estripador de Londres, não? [risos] MARCELO Porém, dentro de seu próprio raciocínio, eles estariam manifestando uma “ausência”, tentando ocupá-la com suas ações físicas. O “Teatro de Orgia e Mistério”, de Hermann Nitsch possuiria parentescos com o rito do taurobóleo que o senhor acabou de descrever. POKOT Sim, sempre existirão parentescos entre quaisquer que sejam os fatos humanos. Mas, como já disse, tudo variará dependendo da conformação do olhar que se debruça sobre os fatos e as coisas. Pois os fatos e as coisas sempre estarão como sempre foram. É possível que o olhar disciplinar, que caracteriza o ocidente, esteja modificando-se. Por conseguinte, traçando novos parentescos entre fatos e coisas. Mas é bom lembrar: o taurobóleo não possui vontade estética, apenas vontade de fé e diálogo com o divino. Não se trata de um fetiche-objeto esvaziado, como é o caso da obra de arte. Ele, o taurobóleo, evoca forças reais. O elemento dionisíaco deste tipo de arte que você me descreve esboça um desejo de mistério, mas não creio que seja capaz de provocar o numinoso, esta estreita porta que conduz apenas um homem, individualmente, até a imagem do mistério. Estes fenômenos artísticos lembram os ritos por serem temporais. Por dissolverem o objeto (por excelência o indicador do espaço) em movimento (que é em si a representação do correr do tempo). Mas, como disse, ao meu ver, são ritos desapegados. São o desejo de numinoso. Além do mais o rito real possui um, digamos, “roteiro” cuja origem perde-se no passado de pais, avós e bisavós... Pelo fato do rito não possuir um criador-indivíduo e sim um criador-social, ele possui um caráter agregador. Trata-se de códigos compartilhados. Não é o caso desse tipo de arte que você me descreve. E especificamente
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da arte do século XX, que se caracteriza exatamente por ser desagregadora. Ela cinde a sociedade por criar códigos novos e descartar aqueles secularizados. MARCELO Vejo que o senhor está cansado... POKOT É possível. Como lhe disse, arte me cansa. Gostaria de preparar-me para o encontro de amanhã com o professor Evaldo Coutinho. MARCELO Antes que encerremos este encontro, gostaria que me dissesse o que o fez visitar o Recife durante o carnaval. POKOT Antes de qualquer coisa lembre-se que este é um dos três berços onde nasceu sua nação. Não à toa os três berços tomaram para si a mesma autorrepresentação: o carnaval, o grito dionisíaco “euhai”. Assim, podemos conhecer um povo. Vai-se em direção à sua autoimagem. Ela representará seu desejo de ser. Em torno dela, pode-se enxergar as cores do ar. Não vê? [Pokot olha em torno de si, mirando o vazio, e inspirando forte] São lilazes. MARCELO O que indicam ? POKOT [Silêncio] Procure nas Horas Douradas, de De Selby. Mas, voltando a falar sobre minha viagem, devo dizer-lhe que a leitura dos escritos solipsistas de Evaldo Coutinho moveram-me em direção ao Recife. MARCELO Faz ideia de como seus escritos chegaram à Argélia? POKOT Via universidade de Salamanca. A visão existenciadora foi traduzida por um jovem estudante de filosofia, Xeriar Meursault. Ao que parece, o conceito de “existenciação” do professor Evaldo Coutinho goza de um prestígio crescente entre os jovens argelinos. No que diz respeito a mim, vejo-o como construtor de um sistema parafilosófico de grande sensibilidade. Sua narrativa não se curva à aridez típica de boa parte da prosa filosófica do século XX. Possui contornos estilísticos visionários, como que assemelhados àqueles dos grandes místicos do passado cristão, como San Juan de La Cruz, que versava sobre o indizível: “deve-se dizer, mas não dizer”. Porém, sua mensagem parece ser inversa. Quando nos diz que por mais resistentes e perpetuáveis que sejam as coisas, elas se fatalizam à efêmera duração da vida consciente do indivíduo, ele deposita todo o Ser do mundo no homem. É possível que vejamos no professor Evaldo também algum parentesco com a ideia de Schopenhauer do “mundo como vontade e representação”. Porém seu estilo, sua forma de construção textual indicam uma espécie qualquer
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de intertextualidade. Algo além do que é dito expressamente habita sua obra. Este algo parece ser uma voz mítica, provavelmente de caráter heróico, como indica a tradição cristã. “Eu fundo o mundo” é uma noção claramente cristã... E é esta a ideia-base de A visão existenciadora. Interessa-me muito reparar que, normalmente, quando um homem é acometido por uma imagem mítica primordial e dispõe-se a dar-lhe voz, esta voz toma contornos estilísticos muito rebuscados, como que iluminados com ares visionários. Veja o estilo apocalíptico, assemelhado a São João, que costura as frases de Nietzsche, no Zaratustra. É como se a voz de formas arcaicas de pensamento necessitasse de uma sonoridade sempre curvilínea e nunca retilínea. Muito provavelmente, o professor Evaldo Coutinho não concordará comigo. Porém, devo expor-lhe minhas percepções. Existem outros aspectos muito interessantes na ideia do homem como o existenciador do mundo. A “composição alegórica”, como nos diz o professor, de “rostos e entrechos”, que o Ser do mundo nos oferece, é única para cada indivíduo. A idade desta “alegoria” oferecida é a minha idade. Eu morro, o mundo morre. Por consequência também somos sujeitos do mundo alheio, do mundo composto, “existenciado” por cada consciência que nos vislumbrou. Então quando alguém que nos conheceu morre, uma das nossas conformações de existência também morre. Trata-se de uma concepção de existência que levanta várias outras questões: se somos seres de linguagem; se as linguagens criadas são filtros que nos distanciam e nos impossibilitam de tomar contato com a realidade natural; se o nosso universo e nossa única realidade é o símbolo; se o símbolo, base da linguagem, é convencionado socialmente; se lemos o mundo a partir destas convenções, qual seria a medida de nossa individualidade, qual seria a fronteira entre aquilo que é pessoal e intransferível e aquilo que, criado pelos limites impostos pela convenção, é social? Seria possível delimitar uma fronteira? A inflação aparente do ego, representada por A visão existenciadora, já não denunciaria o esgarçamento desta estrutura, o ego, neste final de milênio cristão? Inflacionando o ego, estrutura existenciadora do Ser do mundo, o professor Evaldo Coutinho não estaria, num movimento compensatório, alertando para o risco desta dissolução egóica que o ocidente vive? Pense que, mesmo de estilo aparentado ao de San Juan de La Cruz, este filósofo brasileiro é contemporâneo da filosofia europeia dos anos 1960 e 70. Foi esta filosofia que desapropriou as dores do indivíduo, derramando-as no corpo social...
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Originalmente intitulado Quinze notas sobre identidade cultural no Nordeste do Brasil globalizado e datado de 1998, este texto foi expandido e publicado em HOLLANDA, Heloísa Buarque de; RESENDE, Beatriz (org). Artelatina: cultura, globalização e identidades cosmopolitas. Rio de Janeiro: Editora Aeroplano, 2000.
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DESMANCHE DE BORDAS Notas sobre identidade cultural no nordeste do Brasil1
Nota primeira: começando pela América Latina Enunciar um discurso sobre arte latino-americana (um texto crítico, a curadoria de uma exposição) implica, necessariamente, negociar com as expectativas existentes sobre as fronteiras simbólicas que singularizariam, no campo das artes visuais, aquilo que é produzido no conjunto dos muitos países que formam a América Latina. Caso se tome, como índices dessas expectativas, as narrativas que até meados da década de 1980 se detiveram no assunto, há dois principais caminhos para realizar este enfrentamento: aquele onde se encontram as narrativas que buscam justificar a inserção da arte latino-americana nos cânones da História da Arte Ocidental (como uma manifestação idiossincrática dos valores estéticos legitimados por essa História) ou, alternativamente, o que agrupa as narrativas empenhadas em denotar algo que seria próprio somente ao universo simbólico dessa região. Enfatizando a assimilação, no primeiro caso, ou a diferença, no segundo, ambos os caminhos se equivalem, contudo, ao tratar a produção artística da América Latina como um todo homogêneo.3 Nota segunda: jogo de desarmar A crítica a essas narrativas reducionistas vem sendo tecida – com especial ênfase a partir da década de 1990 – na forma de vários textos e exposições.4 Em termos amplos, essas outras narrativas argumentam que,
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a despeito da existência de legados culturais e de processos históricos comuns a várias das nações que constituem a América Latina, a expressão arte latino-americana é incapaz de abarcar, sem escamoteamentos ou excessivas simplificações, a diversa, complexa e dinâmica produção simbólica de artistas nascidos ou residentes nessa região. Opera-se nessa crítica, de fato, o desvelamento de uma construção identitária latino-americana fundada no eurocentrismo, que hegemoniza o campo disciplinar da história da arte e que teve, por décadas, larga aceitação não apenas fora, mas também no interior da própria região. E a essa indevida homogeneização do que é distinto, opõe-se a celebração da multiplicidade de enunciados artísticos que se manifestam a partir da própria América Latina e que continuamente reinventam, de pontos os mais diversos e distantes, o que seria, simbolicamente, essa região. Nota terceira: ficções O alcance dessa formulação crítica não se restringe apenas às narrativas sobre o conjunto da arte latino-americana. Em cada um dos países e regiões que integram a América Latina se encontram, com graus diferenciados de complexidade, construções identitárias que por longo tempo se quiseram naturais e totalizantes. Há uma ideia de Brasil, por exemplo, formulada a partir dos espaços subnacionais que detêm o poder (político, econômico, simbólico) de nacionalizar falas locais. Existem também ideias de suas várias outras regiões, enunciadas, a partir delas próprias, em relação aos centros hegemônicos do país; ideias que são menos catalogações do real sensível, do que constructos ficcionalizados daquilo que tornaria esses espaços distintos dos demais e a qualquer um outro irredutível. Nota quarta: outras cartografias Tanto uma quanto outras ideias têm sido forçadas, em tempos recentes, a mover-se do campo do que parece ser natural para o campo do que é construção. Uma das principais razões para essa mudança tem sido a intensificação do fluxo internacional de bens simbólicos que, comprimindo o tempo e o espaço em que se desenrolam ação e pensamento, flexibiliza as fronteiras que apartam lugares distintos e provoca a proposição e a permuta incessantes de posições diferentes de mundo. Ainda que os locais de vida permaneçam fixos, os espaços vividos, nos quais se articulam e se criam os produtos culturais que registram a individualida-
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de de grupos, sofrem um processo de permanente desterritorialização e estranhamento, de desmanche da geografia e da distensão temporal específicas em que se fundam e se afirmam sistemas de representação.5 Resta saber se esse desmonte de fronteiras implica a impossibilidade de pensar a produção simbólica desses espaços como objeto de escrutínio ou se é possível, a partir de seu conteúdo crítico, elaborar uma outra cartografia dessa produção, na qual a rigidez das divisões geopolíticas ceda lugar à demarcação dos novos contornos identitários que têm sido traçados por seus artistas. Nota quinta: a invenção do Nordeste Embora possa por vezes parecer eterna ou natural aos brasileiros, a ideia de Nordeste é de pouco mais de um século, sua origem remontando à reação política ao desmantelamento das economias do açúcar e do algodão e à busca de uma solução para a crise enfrentada conjuntamente pelas províncias brasileiras que delas dependiam. É somente nesse momento que começa a ruir a percepção provincial então vigente e que se elabora um discurso regionalista e nordestino, o qual se define e se afirma não apenas em oposição ao seu ‘outro’ mais próximo – o ‘Sul’ cafeeiro –, mas também em relação a um passado de suposto bem-estar e harmonia.6 É através desse discurso e das ações oficiais dele derivadas que se demarca o espaço do que é Nordeste e se conforma uma identidade cultural nordestina, a qual legitima e representa, simbolicamente, aquele espaço. Nota sexta: mitos, paisagens e memórias A cristalização desta ideia de região se processa na primeira metade do século XX. Através de ensaístas (Gilberto Freyre, Djacir Menezes), romancistas (Graciliano Ramos, José Lins do Rego, José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz), músicos (Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro) e pintores (Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres, Carybé), os habitantes daquele espaço descobrem e articulam, a partir de influências portuguesas, africanas, holandesas e indígenas, um legado de mitos, paisagens e memórias que lhes seria específico e próprio. Por meio do resgate seletivo do que individualizaria aquele espaço, essa variada produção cultural inventa os códigos de compreensão simbólica de uma comunidade e simultaneamente a eles se conforma, adquirindo um inequívoco caráter regional e fazendo com que o Nordeste se perceba e se apresente como
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nordestino. Ainda que fisicamente dispersos e distintos em quase tudo, os habitantes dos seus mais distantes recantos constroem um lugar simbólico comum e passam, gradualmente, a se imaginar como pertencentes a uma comunidade única.7 Nota sétima: um exemplo Momento exemplar desse processo de construção identitária é o Livro do Nordeste, organizado por Gilberto Freyre em 1925. Seu objetivo declarado, contudo, não era o de apenas mapear e demarcar, em diversas áreas temáticas, o especificamente nordestino; era também o de fixar a região como berço da nacionalidade brasileira.8 A identidade nordestina se conformaria, portanto, não apenas por diferenciação ao que seria próprio das demais regiões do país, mas também como guardiã das raízes e tradições culturais da nação. É neste contexto que se faz inteligível o embate, ainda nos anos vinte, entre o regionalismo nordestino e o modernismo paulista, no qual o segundo é acusado por Freyre de propor a europeização da cultura brasileira e o primeiro se busca fazer notar como refúgio da “alma” e das “reminiscências” do país, ameaçadas que estariam por um conceito “apressado” de modernização.9 Ambos, de fato, expressavam visões distintas do que seria e distinguia, então, o Brasil; oferecendo sedutores espelhos aos habitantes do país, disputavam a autoria da arquitetura simbólica com que aqueles se diferençavam do que lhes era estrangeiro. Nota oitava: produzindo tradição Se os modernistas estenderam e emprestaram, apoiados na força real e simbólica da nascente indústria, seu próprio olhar a todo o Brasil, a proposta regionalista não foi por isso esquecida. Por sua força imagética e apelo telúrico, este ideário informou, por muitas décadas, a maior parte da produção cultural do Nordeste brasileiro, dotando-a de forte sentimento de localização no mundo, de identidade entre pares e de alheamento voluntário a tudo que passasse ao largo de suas referências mais caras e próximas. E a essa forma identitária regionalista está intimamente associado o conceito de tradicionalismo, o qual expressa impermeabilidade a informações que violem ou questionem imagens e ideias estabelecidas antes do tempo da memória; imagens e ideias que são confirmadas e comunicadas de uma a outra geração.10
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Nota nona: vida, forma e cor Esta preocupação em fixar o que seria definidor do caráter nordestino resultou, no campo das artes plásticas, numa produção centrada na organização de paisagens, tipos e ícones que sintetizariam, em termos visuais, o que é próprio à região. A construção dessa visualidade esteve desde o início, entretanto, eivada de interpretações conflituosas sobre o repertório de imagens que efetivamente distinguiriam simbolicamente o Nordeste: se alguns artistas assumiam, em seus trabalhos, um tom celebratório de cores, formas e gentes encontráveis naquele espaço, outros utilizavam imagens e cenas comuns da região como índices das precárias condições de vida de seus habitantes.11 O que aproxima essas visões distintas é o desejo de representar, através de uma figuração fortemente apegada ao mundo sensível, um território perfeitamente definido e avesso a contaminações. Nota décima: do temor à homogeneização Não causa estranheza que o processo de globalização cultural tenha despertado, no Nordeste do Brasil – como em tantas outras regiões ciosas do caráter original e íntegro de sua tradição cultural –, reações conservadoras e protecionistas, temerosas de que o grande influxo de bens culturais minasse a ideia, largamente partilhada pelos nordestinos, de pertencimento a uma comunidade. Implícita neste receio está a identificação desse processo com a homogeneização de culturas locais sob o manto unificador de um outro padrão cultural, supostamente dominante e internacionalizado; em termos mais específicos, há a associação daquele processo à gradual substituição de valores centrais da identidade nordestina por outros, próprios a uma tradição cultural considerada estranha às raízes da região. Ao evocar os mesmos fantasmas ‘modernistas’ combatidos no passado, esta interpretação termina, contudo, por escorar-se em uma concepção simplista e ‘universalizante’ do processo de globalização, obscurecendo seu caráter crítico e desmitificador. Nota décima primeira: nem uma coisa nem outra Apesar dos temores apregoados, o contato e a colisão entre discursos e imagens diversos sobre o mundo têm gerado respostas de afirmação ou reconstrução identitária e desenvolvido um generalizado fascínio pela diferença. O resultado mais paradoxal da intensificação dos fluxos mundiais de informação tem sido, de fato, o de frustrar expectativas de
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homogeneização de culturas e de fraturar a noção, implícita no ideário modernista, de hierarquia entre elas; familiariza o mundo, ao contrário, com um ambiente cultural complexo e diversificado, instituidor de uma nova e ampliada cartografia da produção e circulação simbólicas. E é por ter demonstrado a insustentabilidade da ideia de universalizar uma determinada tradição cultural, que se pode argumentar que este processo está intimamente associado ao abandono de uma noção monolítica do que define o modernismo e ao reconhecimento quer seja da coexistência de diferentes modernismos,12 da emergência de contramodernismos,13 ou mesmo do surgimento do pós-modernismo,14 o qual teria na horizontalização das trocas culturais uma de suas mais marcantes características. Nota décima segunda: há, contudo, a mesma velha história Um risco e um problema. O primeiro se refere à possibilidade de que o interesse pela diferença cultural seja reduzido meramente a uma atração pelo exótico, esvaziando o que de mais profícuo pode haver no confronto entre distintas formas de vida: o abandono da arrogante prerrogativa, até então detida pelas regiões ‘centrais’, de estabelecer modelos de representação simbólica para aqueles situados à sua ‘margem’.15 Cabe aos produtores de bens culturais das regiões ‘periféricas’ evitar ser desse modo apreendidos e consumidos pelo olhar do ‘outro’, impondo-lhe a igualdade dos diferentes e assumindo a natureza sincrética, tensa e transacional de suas culturas, irredutível tanto a um passado idealizado, quanto a modelos acríticos de modernidade. O problema, por sua vez, diz respeito às assimetrias dos fluxos de informação mundializados – mais volumosos no sentido regiões ‘centrais’- regiões ‘periféricas’ do que no sentido oposto – e na própria forma de entrelaçamento da rede de comunicações que torna possíveis as trocas culturais, baseada mais em relações radiais a partir dos ‘centros’ do que transversalmente entre espaços da ‘periferia’. É necessário, portanto, criar meios não apenas para inverter o sentido hegemônico em que se difundem as produções simbólicas do mundo, mas também para adensar a rede de comunicações entre regiões ‘periféricas’, desta forma conectando “zonas de silêncio”.16 Nota décima terceira: impressionantes esculturas de lama Pensar a identidade nordestina neste contexto requer, portanto, considerar as formas específicas de integração/reação ao processo de
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globalização cultural elaboradas pelos que produzem bens simbólicos no Nordeste do Brasil; é deles a responsabilidade de problematizar e recriar sistemas de representação que não mais conseguem traduzir modos de vida compartilhados pela comunidade da qual fazem parte. Talvez a ideia mais madura do que seria a identidade cultural nordestina na contemporaneidade tenha vindo da música pernambucana, principalmente dos artistas ligados ao movimento mangue beat. Foi por sua fertilidade estar associada à troca incessante de matéria orgânica entre o doce e o sal das águas do rio e do mar, que os manguezais do Recife foram tornados metáfora da necessidade de intensificar trocas culturais entre as mais diversas tradições de vida; o isolamento cultural, assim como o aterro dos estuários dos rios, só bloqueia a permuta de diferenças de que se alimentam os que vivem em cidades e mangues. Com a imagem de “uma antena parabólica enfiada na lama”, Chico Science, Fred 04 e outros ofereceram sua articulada resposta àqueles que não viam alternativas entre a canonização acrítica e folclorizada dos ritmos nordestinos nos modos em que foram originalmente formulados e a adoção, também acrítica, de ritmos e formas musicais criados em outras tradições. Através da injeção de “um pouco de energia na lama”, mostraram ser possível conectar o universo fértil dos manguezais “com a rede mundial de circulação de conceitos pop”, dando, com isso, ânimo e corpo novo à diversidade cultural da cidade.17 Ao invés de causar a morte das tradições musicais de Pernambuco, o movimento mangue tornou-as contemporâneas dos que se ocupam da criação artística local. De fato, há muito não se tocavam e ouviam tanto e tão longe alfaias de maracatus quanto através do sincretismo musical por ele criado na década de 1990. A estratégia do movimento mangue não é, contudo, uma proposta apenas para a música ou destinada somente à renovação cultural de Pernambuco, sendo antes uma postura universal de criação. O mangue é qualquer parte, é um ponto de vista de onde se fazem e desfazem, com lama e computadores, pontes com outras partes. Nota décima quarta: passagens entre espaços e tempos A partir de iconografias, memórias, materiais e procedimentos fincados nas suas experiências reais e imaginadas do Nordeste, artistas plásticos nordestinos – residentes ou não em suas terras nativas – também têm esboçado maneiras próprias de lidar com o sombreamento dos limites arbitrários de sistemas de representação simbólica, criando dis-
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cursos que continuamente trafegam entre os vários espaços e tempos em que são instados a viver na contemporaneidade. Através de suas obras, a cultura regionalista se amolece e se redefine como o conjunto de modos individuais de enunciar embates e negociações entre lugares simbólicos diversos que se comunicam e se tocam. A região deixa gradualmente de ser um território “fechado”, sem que isso implique que seus artistas recusem o cotidiano habitado em favor de uma afiliação a códigos criados em outros espaços.18 O “livro” do Nordeste passa, assim, a ser outro; sem abrir mão de rendas de bilros e de maracatus, a ideia do que é ser nordestino é agora tecida sobre um delicado e complexo mapa de influências recíprocas e de negociações com outras culturas. Nota décima quinta: Nordestes Os trabalhos desses artistas não oferecem, evidentemente, uma representação simbólica perfeitamente delineada do que é hoje o Nordeste, o que equivaleria a propor uma alternativa identitária rígida para um espaço múltiplo e em construção permanente. Dão visibilidade, entretanto, a proposições estéticas que, embora marcadas pelo que é presente nos locais de onde se enunciam (por exemplo, o apego à figura, a religiosidade latente, a artesania, o uso de matérias cruas), terminam por destes desprender-se e, em trânsito constante, alcançar ainda outros lugares e momentos. São trabalhos que, cada qual a seu modo, fazem do Nordeste um território movente imerso numa temporalidade que se contrai e distende. São trabalhos críticos que desmontam a ideia de região como algo imutável e que reconstroem suas fronteiras como espaços de trocas. São trabalhos que, ao constantemente reinventar formas de expressão e de vida, parecem afirmar que não há somente um Nordeste, mas muitos. Nota décima sexta: exposição (memórias do mundo) Ao longo de toda a infância, José Rufino passou seguidas e longas temporadas no engenho do avô paterno, no município de Areia, Paraíba. Apropriando-se do nome e dos guardados de seu ascendente, por vários anos o artista desenvolveu trabalhos em que lidava com o universo escriturário e sentimental no qual seu avô vivera. Documentos, cartas, livros, cadeiras, escrivaninhas, carimbos, velhas máquinas de datilografar: tudo virava suporte para a criação de objetos, instalações e desenhos. O que era história privada e antiga tornava-se, com seu gesto, obra pública e recente. Hoje prescinde dos rastros materiais de sua memória afetiva
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para transitar entre tempos distintos. Interferindo em documentos que registram negócios passados de lugares diversos, José Rufino evoca o cotidiano emaranhado em que viveram aqueles que os manusearam e aproxima, num processo de universalização de suas lembranças de origem, o interior da Paraíba a parte qualquer do mundo. Além de vários tempos, são agora espaços distantes que também se roçam nas construções do artista. As memórias de Areia deixam de ser inventário do repertório simbólico com que primeiro enxergou a vida e se transformam em meio próprio de acercar-se de tudo o que há hoje em seu alargado entorno. Nota décima sétima: exposição (educação pela pedra) Na performance A Coisa em si, a artista Oriana Duarte toma uma sopa feita com pedras coletadas no lugar onde se encontra e pedras trazidas da cidade onde pela última vez a tomou. Ao ingerir a sopa, a artista faz de si depositária do que, metaforicamente, distingue e identifica aqueles espaços dentre todos os outros: seus solos, os chãos sobre os quais todo o resto se ergue e se sustenta. Ao repetir a performance em outros lugares, ainda outras pedras e outros chãos vão-se acomodando no avesso impuro de seu colo, dissolvendo as fronteiras geográficas do mundo de fora e construindo, dentro de si, passagens entre o que antes era afastado. Tomando a sopa de pedras, Oriana Duarte incorpora e carrega, portanto, os lugares por onde passa, desterritorializando-os e compondo, nela mesma, uma cartografia nova e contemporânea do mundo em trânsito que habita: um mundo de simultânea preservação de dessemelhanças e de negociação constante entre formas distintas de pertencimento à vida. Nota décima oitava: exposição (in progress) É também de um mundo de espaços e indivíduos híbridos que trata a instalação Base central cão mulato, de Edson Barrus. Ciente de que a constante (re)invenção da identidade de um povo ou nação é tarefa daqueles que se ocupam com a produção de bens simbólicos, o artista busca meios para dar concretude e visualidade ao que considera a ideia-síntese de Brasil: o cão mulato, o cachorro sincrético, o vira-lata tirado do lixo e ungido à raça nacional. Por meio do ajuntamento mambembe de parafernália eletroeletrônica (computador, impressora, retroprojetor, televisão, vídeo, projetor de slides, etc.), o artista se transforma em cientista e liquidifica, com mordacidade, ideias de pureza de raça e de evolução genética através do uso da tecnologia. Tomando o cão mulato por
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símbolo de brasilidade, enxerga o país – assim como o seu próprio trabalho – como um espaço mestiço, transacional e para sempre in progress. Nota décima nona: information Certa vez Hélio Oiticica disse que o Brasil “simply doesn’t exist”.19 Talvez seja possível dizer que o Nordeste do Brasil, como espaço de limites simbólicos definidos, tampouco exista. Permanece, em todo caso, como repositário de símbolos, mitos, técnicas e imagens que o confirmam como um partícipe da diversa, complexa e impura herança cultural do mundo. E se é pouco prudente tentar estabelecer os contornos precisos de sua identidade no mundo contemporâneo, pode-se afirmar, com alguma segurança, que as distinções dicotômicas presentes em debates travados na primeira metade do século XX (regionalismo versus modernismo, tradição versus europeização) não mais fazem sentido.
Nota vigésima: Mateus Enter (Chico Science) eu vim com a Nação Zumbi ao seu ouvido falar quero ver a poeira subir e muita fumaça no ar cheguei com meu universo e aterrizo no seu pensamento trago as luzes dos postes nos olhos rios e pontes no coração Pernambuco embaixo dos pés e minha mente na imensidão
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Esse ensaio foi publicado em Artelatina: cultura, globalização e identidades cosmopolitas, organizado por Heloísa Buarque de Hollanda e Beatriz Resende (Rio de Janeiro, Editora Aeroplano, 2000). Ele toma por base um texto anterior do autor, “Quinze notas sobre identidade cultural no Nordeste do Brasil globalizado”, publicado nos Cadernos de Estudos Sociais 14 (1), 1998. Novas notas foram adicionadas ao texto original, várias foram dele suprimidas e outras ainda modificadas. Pesquisador do Instituto de Cultura da Fundação Joaquim Nabuco e Diretor Geral do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães – MAMAM. Brett, Guy. “Border Crossings”, in G. Brett (ed.) Transcontinental. Nine Latin American Artists. London, Verso, 1990. Ver, entre outros, os textos reunidos em Noreen Tomasi et al. (eds.) Visiones de las Americas. Nova York, American Council for the Arts, 1992; Nelly Richard (ed.) Art from Latin America. La Cita Transcultural. Sydney, MCA, 1993; Gerardo Mosquera (ed.) Beyond the Fantastic. Contemporary Art Criticism from Latin America. Cambridge, MA, The MIT Press, 1996. Para um survey da produção crítica sobre arte latino-americana, ver Genocchio, Ben. “The Discourse of Difference. Writing ‘Latin American’ Art”. Third Text 43, Summer 1998. Hall, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 1997. Penna, Maura. O que faz ser nordestino. São Paulo, Cortez, 1992; Albuquerque Jr, Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife, Massangana/São Paulo, Cortez, 1999. Sobre o conceito de “comunidades imaginadas”, ver Anderson, Benedict. Imagined Communities. Londres, Verso, 1991. Freyre, Gilberto et al. O Livro do Nordeste. Recife, Arquivo Público Estadual, 1979. Azevedo, Neroaldo Pontes de. Modernismo e regionalismo (os anos 20 em Pernambuco). João Pessoa, UFPB/Recife, UFPE, 1996; Dimas, Antonio. “Um Manifesto Guloso”, prefácio a Freyre, Gilberto, Manifesto Regionalista. Recife, Editora Massangana, 1996. Sobre o conceito de “tradicionalismo cultural” ver Coelho, Teixeira. Dicionário Crítico de política cultural. São Paulo, Iluminuras, 1997. Albuquerque Jr, Durval Muniz. Op. cit. Nicholls, Peter. Modernisms. A Literary Guide. Londres, Macmillan, 1995. Bhabha, Homi K. The Location of Culture. Londres, Routledge, 1994. Featherstone, Mike. Undoing Culture. Londres, Sage, 1995. Richard, Nelly. “Postmodern Decentrednesses and Cultural Periphery: The Disalignments and Realignments of Cultural Power”, in Gerardo Mosquera (ed.) Op. cit. Mosquera, Gerardo. “Some problems in transcultural curating”, in Jean Fisher (ed) Global visions towards a new internationalism in the visual arts. Londres, Kala Press/The Institute of International Visual Arts, 1994. Science, Chico e ZeroQuatro, Fred. “Caranguejos com Cérebro”. Manifesto do movimento mangue reproduzido no encarte do primeiro CD de Chico Science & Nação Zumbi, Da lama ao caos. Rio de Janeiro, Sony, 1995. Sobre os conceitos de região aberta e região fechada, ver Traba, Marta. Duas décadas vulneráveis nas artes plásticas latino-americanas 1950-1970. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. Information (catálogo de exposição). Nova York, Museum of Modern Art,1970.
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Crítica de Arte em Pernambuco Escritos do século XX Organização Clarissa Diniz Gleyce Kelly Heitor Paulo Marcondes Soares
Azougue Editorial
Produção Executiva Bebel Kastrup Projeto Gráfico Vitor Cesar Assistente de Produção Virginia Correia
Equipe Anita Ayres, Barbara Ribeiro, Evelyn Rocha, Larissa Ribeiro, Luciana Fernandes, Thaís Almeida, Tiago Gonçalves e Welington Portella
Assessoria de imprensa Dani Acioli | A Ponte Comunicação Autores Ana Mae Barbosa André Rosemberg (entrevista com Gil Vicente, Paulo Bruscky, Silvio Hansen e Wellington Virgolino) Antonio Franca Ariano Suassuna Cícero Dias Fred Zeroquatro Gilberto Freyre Grupo Camelo (Ismael Portela, Oriana Duarte, Marcelo Coutinho, Paulo Meira) Joaquim Cardozo Joaquim Inojosa Jomard Muniz de Britto José Cláudio Marcelo Coutinho Mário Pedrosa Moacir dos Anjos Montez Magno Rigel de Orion Vicente do Rego Monteiro Wellington Virgolino Digitação de texto Cecília Kastrup Revisão de texto Cristhiano Aguiar
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Editor chefe Sergio Cohn
Agradecimentos Alexandre Suassuna Ana Mae Barbosa Ana Maria Belluzzo André Rosemberg Aparecida Nogueira Ariano Suassuna Beth da Matta Biblioteca do Instituto Ricardo Brennand Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco Carlos Ranulpho de Albuquerque Clarice Magalhães Companhia Editora de Pernambuco Dantas Suassuna Eduardo Dimitrov Eglantine Alice Nery Felipe de Almeida Cardozo Flavia Costa Fred Zeroquatro Fundação Gilberto Freyre Fundação Joaquim Nabuco Galeria Ranulpho Gil Vicente Gilberto Freyre Neto Instituto Cultural Ladjane Bandeira Ismael Portela Jamille Barbosa Joaquin Franco Jomard Muniz de Britto José Cláudio Marcelo Coutinho Márcia Bandeira Marco Polo Guimarães Marinês Oliveira Moacir dos Anjos Montez Magno Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães Natália Barros Naymme Moraes Oriana Duarte Paulo Bruscky Paulo Herkenhoff Paulo Meira
Raymonde Dias Renato Valle Rodrigo Braga Rosa Melo Rose Gondim Silvio Hansen Tereza Didier Universidade Federal de Pernambuco Vera Pedrosa Waldir Simões de Assis Filho Wilton de Souza Agradecemos a todos os autores e veículos presentes neste livro por autorizarem gentilmente a reprodução dos textos. Em raros casos, não obtivemos sucesso em contactar autores/famílias. Por se tratarem de textos significativos pela sua qualidade e relevância, decidimos mantê-los na publicação, acreditando que os autores compartilhem do projeto. Os respectivos direitos encontram-se reservados.
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ C951 Crítica de arte em Pernambuco : escritos do século XX / Clarissa Diniz, Gleyce Kelly Heitor, Paulo Marcondes Soares (org.). - Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2012. il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7920-090-8 1. Arte moderna - Pernambuco - Séc. XX. 2. Arte brasileira - Século XX - História e crítica. 3. Crítica de arte. I. Diniz, Clarissa. II. Heitor, Gleyce Kelly. III. Soares, Paulo Marcondes. 12-4746.
CDD: 709.81 CDU: 7.036(81)
06.07.12 17.07.12
037051
Imagens Aloísio Magalhães p. 1 p. 2 p. 283 p. 284
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Pátio com colunas, 1979. Cartema, 58,5x41,5cm. Coleção MAMAM. Cachorro em pé, 1979. Cartema, 59x42,1cm. Coleção MAMAM. Garrafa, 1979. Cartema, 59x42cm. Coleção MAMAM. Tobogã, 1979. Cartema, 59,5x42cm. Coleção MAMAM.
Crítica de Arte em Pernambuco
Escritos do século XX
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