O Pintor Debaixo do Lava Loiças

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Ilustração

Afonso Cruz

Rita Rocha

Sacrifício ao Amor

O Pintor debaixo do Lava-Loiças





O Pintor debaixo do Lava-Loiças

Sacrifício ao Amor Afonso Cruz

Ilustração

Rita Rocha


Ficha Técnica Título | O Pintor Debaixo do Lava-Loiças Título Integral | O Pintor Debaixo do Lava-Loiças. Sacrifício ao Amor Autor | Afonso Cruz Ilustrações | Rita Rocha Editora | Rabo de Cágado Ano | 2013 Design Gráfico | Rita Rocha Arranjo Textual | Rita Rocha Faculdade de Belas-Artes Universidade de Lisboa Mestrado de Desenho


Tu és a minha vida, o meu amor platónico... És a Natureza e as Estações que por ti passam. És a minha Primavera no Jardim e o Inverno na carne. És a terra que beijo e a neve que me acaricia.

Sors

ELE


Ela dividia o seu jardim em quatro partes e nunca pisava o que que ficava do lado esquerdo, Ela não deixava... Pois, aquela terra, quando pisada... Provocava insónias à noite.



Inclinava-se sobre os traços que os seus pés haviam sulcado... e nos seus traços, lia o que estes lhe diziam...



Obrigava-o a beija-la, para a acordar. Para acordar a terra! Para acordar os mortos.



Portava-se como um oráculo da Antiguidade. Ditava regras, que mudava constantemente.

“As linhas arredondadas eram as linhas da paixão! Não deveriam ser interrompidas por linhas rectas, pois isso provocava demasiados suspiros”



“As linhas direitas eram as linhas do fĂ­gado ou do conhecimento. Se fossem muito grandes eram duvidas, se fossem curtas eram respostas.â€?



Ele punha-lhe raminhos de louro no cabelo, para dissipar as sombras da tristeza, mas quando se esta triste... ...N達o se consegue chorar.



Uma vez obrigou-o a passar a tarde a saltar ao pé-coxinho,

“A terra não deve ser pisada pelo pé direito de um homem.” Ditava ela as suas regras ao vento.



“Palavras... As Palavras são tudo.” Dizia ela.

“A palavra ninho tem ovos lá dentro e um pássaro. Não confundamos as palavras com as coisas, mas as palavras são as coisas. Mapa não é território, há mapas, mas não há nenhum território.”



“A palavra água ou se bebe ou afoga-nos.” E ela repetia, enquanto lágrimas lhe escorriam no rosto, que era assim que se separava a humanidade.

“Os que pegam nas coisas para morrer e outros para viver e há água que nos afoga por dentro. Por dentro...”



“Sem as palavras eramos ocos.”

E encostada, aguardando o aproximar do sonho, dizia-lhe.

“Os sonhos de dormir são mais distantes e vem de lugares tao antigos que nunca lá poderemos chegar a caminhar pelo tempo. Só lá chegaremos a dormir... Adormecidos... Deitados no chão... Adormecidos...” E ela adormeceu...



Era Inverno. Ele abria os braços. Ela atirava bolas de neve. Ele recebia o impacto com prazer, como se estivesse a ser fuzilado pelo amor. Nevava. Ele mantinha-se perfeitamente imóvel... Com os braços abertos. Era um sacrifício ao amor. Nevava Com os braços abertos. Nevava. Sorria Amava.



O Pintor debaixo do Lava-Loiças

Sacrifício ao Amor Frantiska dividia o seu jardim em quatro partes e eles nunca

muito grandes eram duvidas, se fossem curtas eram respostas.

pisavam o quadrado que ficava mais distante, do lado esquerdo

Punha muitas vezes raminhos de louro no cabelo, pois o louro

de quem saía de casa. Frantiska não deixava, pois aquela terra,

dissipa as sombras, mas quando se está triste não se consegue

quando pisada, provocava insónias à noite.

chorar. As regras mudavam todos os dias. Uma vez Sors foi

Quando acabava de correr pelo jardim, Frantiska costumava

obrigado a passar a tarde a saltar ao pé-coxinho, pois, disse

inclinar-se sobre os traços que os seus sapatos haviam sulcado

Frantiska, a terra não deve ser pisada pelo pé direito de um

no chão, os traços que as suas correrias haviam feito na terra, e

homem.

lia o que diziam. Pronunciava sentenças solenes, muito serias, e

Dividia as gemas das claras dos ovos estrelados e quando

obrigava Sors a beijar o chão (para acordar a terra, para acor-

comia uma, não comia a outra. Dizia que há dias para comer a

dar os mortos). Portava-se como um oráculo da Antiguidade e

gema e outros para comer a clara.

tinha, na sua cabeça, um conjunto de regras que mudavam com frequência.

- Repete comigo o que eu disser, Jozef. As palavras são tudo. Olha: a palavra frio desce. A palavra calor sobe. A palavra ninho

Dizia que as linhas arredondadas sulcadas pelos seus sapatos

tem ovos lá dentro e um pássaro a dormir. Há quem não queira

eram as linhas da paixão e não deveriam ser interrompidas por

que confundamos as palavras com as coisas, que o mapa não

linhas rectas, pois isso provocava demasiados suspiros. As linhas

é o território, mas as palavras é que são as coisas. Há mapas,

direitas eram as linhas do fígado ou do conhecimento. Se fossem

mas não há nenhum território. A palavra porta abre e fecha; e a


palavra janela, se for velha, tem o vidro partido. A palavra água

Sors brincava com Frantiska: abria os braços e ela atirava bo-

ou se bebe ou afoga-nos. Porque há pessoas com sede e pessoas

las de neve, sem qualquer compaixão. Sors recebia o impacto

que se afogam. E assim que se separa a humanidade: uns pegam

com prazer, como se estivesse a ser fuzilado pelo amor. Eram

nas coisas para morrer e outros para viver. E há a palavra mar

balas frias, mas deixavam-lhe a pele da cara vermelha, a arder.

que afunda todos os navios.

Frantiska parecia não se cansar. Durante minutos baixava-se, le-

Frantiska olhava em frente enquanto, com o pé, desenhava círculos na terra. - Olha: são tão importantes, Jozef, que sem elas éramos ocos. Sem a palavra vertical andávamos a rastejar e sem a palavra horizontal só poderíamos sonhar acordados. Os sonhos de dormir são mais distantes e vêm de lugares tão antigos que nunca

vantava-se, arredondava a neve na concha das suas mãos e atirava as bolas contra a cara dele. Ria-se quando acertava (batia palmas e gritava «bravo!») e fazia caretas de descontentamento quando falhava. Chegava a praguejar. Sors mantinha-se perfeitamente imóvel, com os braços abertos. Era um sacrifício ao amor.

lá poderemos chegar a caminhar pelo tempo, pelo passeio, pelos

O inverno, muito por causa disso, era a estação de que ele

jardins. Só lá chegamos deitados, adormecidos até ao chão. Re-

mais gostava. Era quando ele se tornava o alvo de Frantiska. Com

pete comigo, Jozef: cova, dedo mindinho, sete...

os braços abertos, encostado ao muro.

Aquelas tardes eram eternas e duravam infinitos e, no inverno, a neve enchia os telhados de branco.


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Frantiska

Tu és a minha vida, o meu amor platónico... És a Natureza e as Estações que por ti passam. És a minha Primavera no Jardim e o Inverno na carne. És a terra que beijo e a neve que me acaricia.

Sors


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