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CARREIRAS

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OBITUÁRIO

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Interações virtuais profissionais

Disseminados a partir da pandemia de Covid-19, encontros científicos on-line delineiam nova maneira de compartilhar conhecimento

Cientes de que os riscos de Portugal. Em março, com o início da contaminação pelo vírus quarentena, começou a ser adaptada Sars-CoV-2 tornaram inviável para o formato on-line. “Em termos a realização de reuniões acadêmicas de organização, não encontramos presenciais pelo menos até o final de muitas diferenças, pois todos os 2020, comissões organizadoras de processos de submissão de trabalhos, congressos e conferências de distintas envio de convites e contatos com áreas do saber têm buscado, no mundo palestrantes já eram feitos de digital, uma nova maneira de dar forma remota”, conta Amaro. Entre continuidade à troca de conhecimento as vantagens do novo formato estão entre integrantes da comunidade a forte redução com gastos com científica. “Para evitar o cancelamento passagens, hospedagem e aluguel de dos encontros, passamos a enxergar espaço físico para a realização do a necessidade de planejar eventos encontro, que acontece na primeira on-line durante o período de semana de outubro. “A modalidade isolamento social”, explica Bianca não presencial permite, sobretudo, Amaro, coordenadora-geral de maior participação de palestrantes pesquisa do Instituto Brasileiro de internacionais”, completa. Eventos Informação em Ciência e Tecnologia tradicionais, como a reunião anual da (Ibict) e integrante da comissão Sociedade Brasileira para o Progresso organizadora da 11ª Conferência da Ciência (SBPC) e da Associação Luso-brasileira de Ciência Aberta, Nacional de Pós-graduação e Pesquisa evento internacional voltado para a em Ciências Sociais (Anpocs), também discussão sobre acesso, troca e difusão aderiram ao formato virtual como do conhecimento científico cuja possibilidade de manter as atividades realização acontece alternadamente previstas para este ano. em cidades do Brasil e de Portugal. Se as conferências on-line oferecem

Com cerca de 200 participantes, vantagens como a diminuição de a edição deste ano da conferência custos, por outro lado apresentam o havia sido inicialmente planejada para desafio de administrar a presença de acontecer na cidade de Braga, em um público em alguns casos muitas vezes mais amplo. Estruturado para receber cerca de 300 participantes, a edição deste ano do Congresso de Anestesiologia da Universidade de São Paulo (USP) – promovido desde 2014 pela disciplina de anestesiologia da Faculdade de Medicina (FM-USP) –extrapolou qualquer expectativa dos organizadores, com mais de 7,5 mil inscritos. “Foi um grande desafio porque, além de não termos experiência prévia em eventos desse tipo, o imenso número de interessados trouxe grande responsabilidade para a equipe técnica”, explica uma das responsáveis pelo congresso, a professora da FM-USP Claudia Marquez Simões.

Para viabilizar a realização de um evento desse porte, a solução foi buscar uma empresa especializada. “Não podíamos correr o risco de utilizar plataformas genéricas que não oferecem atendimento rápido, tampouco constante, em caso de problemas técnicos”, observa Simões. Além de assumir a parte técnica da transmissão, a empresa também ficou encarregada do processo de inscrição e da oferta de outros recursos importantes, como tradução

simultânea especializada nessa área do conhecimento. “Na área médica há termos bastante específicos que não podem ser mal interpretados, o que impossibilita o uso de tradução automática, oferecida por algumas plataformas”, explica Daniel Bruno Merello, proprietário da Medicine Cursos, voltada para a produção de eventos e ensino a distância na área da saúde. Desde o início da pandemia, a empresa organizou aproximadamente uma centena de eventos on-line, entre reuniões, conferências e congressos científicos.

Também dedicada à comunidade médica, a V Jornada de Imunologia Clínica e Alergia da FM-USP teve suas datas alteradas duas vezes por causa da pandemia, antes de seus organizadores optarem por realizá-la de forma remota. Reformatada para o modo on-line, a jornada reservou um espaço físico com púlpito e tela especialmente para a transmissão. Foi desse espaço que alguns palestrantes puderam apresentar suas falas e projetar imagens, slides ou power points. “Além disso, criamos um ambiente em 3D que simulava a presença de estandes, possibilitando que os participantes pudessem circular por entre os diversos espaços do evento”, explica Fábio Fernandes Morato de Castro, integrante da comissão científica e um dos responsáveis pela organização da jornada, realizada em setembro. Apesar das inovações, Castro diz que a jornada, com cerca de 800 inscritos, optou pela simplicidade. “Tenho participado de muitas reuniões virtuais por conta da pandemia e posso afirmar que quanto mais rebuscado é o processo, maior o risco de dar errado”, avalia. Além de simplicidade, organização também é fundamental. “É preciso planejar detalhadamente cada uma das atividades. Falta de conteúdo ou falhas de transmissão são cada vez menos consideradas como imprevistos, podendo comprometer a credibilidade do evento.”

Com o aprendizado adquirido a partir da realização de conferências on-line, começa a ser estabelecido um processo de profissionalização dessa modalidade de encontro, algo que pode servir como referência para eventos futuros, mesmo depois do término do período de isolamento social. “Provavelmente teremos um cenário em que os eventos deixarão de ser apenas presenciais para se tornarem híbridos, conjugando interações físicas e virtuais. Já podemos afirmar que esse é um

processo que não tem mais volta”, completa Castro.

O número crescente de encontros virtuais que vêm ocorrendo desde o início da pandemia gerou uma demanda por serviços específicos, que vão além da simples transmissão de conversas em vídeo. “Com mais de 2.300 reuniões acadêmicas realizadas desde março, hoje sabemos que é preciso construir ambientes virtuais que deixem os eventos mais atrativos”, explica Geraldo de Oliveira Santos Neves Neto, um dos fundadores da Doity, empresa situada em Maceió, Alagoas, e especializada na realização de congressos e seminários no formato não presencial. Criada inicialmente para administrar o processo de inscrições de encontros tradicionais, a empresa agora também desenvolve sites e aplicativos para eventos, plataformas para submissão de trabalhos científicos e emissão de certificados e ferramentas de monitoramento e divulgação. Além da construção dessas interfaces, começam a surgir estúdios especializados na transmissão de palestras, sugerindo o caráter híbrido que os congressos podem assumir nos próximos anos.

Os encontros virtuais, no entanto, não possibilitam a interação não

programada, aquela que costuma ocorrer de forma espontânea nos intervalos das apresentações, sendo esse um dos principais pontos negativos do novo formato. “Muitos projetos de parceria e colaboração surgem nesses momentos informais que caracterizam o encontro físico”, reconhece Amaro, do Ibict.

ETIQUETA ON-LINE

Se no início da pandemia era comum uma reunião ser “invadida” por crianças ou animais de estimação, provocando risos entre os participantes, passados seis meses da adoção dos encontros virtuais esse tipo de situação já não parece tão divertido, com frequência incomodando seus participantes. “Também temos percebido que eventos on-line podem ser exaustivos, ainda mais quando transmitem a sensação de serem intermináveis”, observa Marcelo Gameiro Munhoz, do Instituto de Física da USP (IF-USP). Integrante do comitê organizador da 43ª Reunião de Trabalho sobre Física Nuclear no Brasil, prevista para dezembro, o pesquisador chama a atenção para a necessidade não apenas de estabelecer, mas também de cumprir os tempos máximos designados a cada uma das apresentações, além de definir os momentos mais propícios para a interação com o público. “Se as falas não estiverem bem estruturadas e o programa bem organizado, os participantes podem se desinteressar do que está sendo apresentado ainda com mais rapidez do que em um evento presencial”, considera. A apresentação do conteúdo é outro aspecto que demanda atenção redobrada. “Muitos palestrantes optam por ler apresentações previamente redigidas, o que pode ser bastante maçante em um encontro virtual.”

A fim de evitar interrupções desnecessárias, que podem extrapolar o tempo das apresentações, muitos dos encontros têm usado como regra a divulgação do endereço de e-mail dos palestrantes, para eventuais dúvidas ou comentários. Os esclarecimentos ficam para depois do evento. Para interações entre a audiência, a sugestão são os chats abertos durante as apresentações.

AMBIENTE IDEAL

Organizar o espaço de onde se pretende transmitir um evento virtual costuma melhorar a experiência de quem participa. Um erro recorrente diz respeito à iluminação inadequada do ambiente, que pode resultar em uma imagem ruim para quem assiste. “A luz natural constitui um dos melhores recursos para as reuniões que acontecem durante o dia”, afirma o fotógrafo e diretor de arte Paulo Pepe. Quando não é possível contar com ela, pode-se recorrer aos ring lights, iluminadores circulares de vários tamanhos que evitam a formação de sombras indesejadas e são facilmente encontrados em sites e lojas físicas.

Para tirar melhor proveito da luz natural proveniente de uma janela, por exemplo, o ideal é posicionar-se a 45 graus, distante pelo menos 1 metro da parede, se possível. “Dar as costas para a janela é um dos equívocos mais comuns porque a sombra produzida impossibilita a identificação de quem aparece no monitor”, avisa. Usar uma cortina que filtre o excesso de luz também pode ser um bom recurso, assim como é possível recorrer a um abajur quando se busca um efeito mais natural. Outra recomendação é posicionar câmera e tela do computador na altura dos olhos, o que evita a sensação de olhar para baixo.

Quando muito próximas da câmera, bibliotecas ao fundo podem ser um fator de distração. “Há sempre quem vá prestar mais atenção nos títulos que estão na estante do que no que está sendo dito”, observa Pepe. Ele recomenda esse tipo de cenário apenas quando os livros estão distantes pelo menos 2 metros da mesa. “Uma boa saída é utilizar paredes com fundo neutro, que, além de discretas, não geram tanto ruído na imagem que está sendo transmitida”, finaliza. n Sidnei Santos de Oliveira

Para ficar bem no vídeo

• Vista roupas de cores lisas e sem detalhes gráficos

• Quando estiver falando, procure olhar para a câmera em vez de para a tela do computador

• Para obter a melhor experiência de imersão, use fones de ouvido com microfone

• Evite interromper falas. Opte por interagir via chat ou outros canais de comunicação

• Não saia da frente do computador sem avisar, sobretudo em eventos menores

• Verifique previamente a qualidade de sua conexão com a internet

• Desligue rádio e televisão e silencie o celular, para que o som ambiente não provoque interferências

CONHECIMENTO INDÍGENA

Médico da etnia Tuyuka trabalha no enfrentamento da Covid-19 no Amazonas

Desde que se formou em medicina, há cerca de seis meses, Israel Fontes Dutra tem se dedicado ao atendimento de populações indígenas em Manaus, no Amazonas. Integrante da etnia Tuyuka, Dutra é um dos 71 egressos da Escola Superior de Ciências da Saúde da Universidade Estadual do Amazonas (UEA) que, em abril deste ano, tiveram a colação de grau antecipada para reforçar o atendimento de pacientes da Covid-19.

“A cerimônia de colação aconteceu pela manhã e à tarde eu já estava dando entrada no meu registro profissional”, conta Dutra, que na sequência ainda faria seu primeiro plantão em uma unidade de pronto atendimento (UPA) da cidade de Manaus. “Foi um sentimento controverso de felicidade pela colação e de tristeza por encontrar o hospital repleto de pacientes em estado bastante grave”, explica. Por dominar as línguas tukano e tuyuka, Dutra integra duas equipes de atendimento do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do município.

Nascido há 47 anos na comunidade Mercês, no igarapé Cabari, distrito de Pari-Cachoeira, em São Gabriel da Cachoeira, Dutra formou-se em filosofia em 1999 pela Universidade Católica de Brasília. Em 2005, concluiu a graduação em matemática, pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), e, no ano seguinte, iniciou a pós-graduação em dois programas simultaneamente.

Dutra realiza atendimento na comunidade indígena de Jutaí, no município de Autazes, Amazonas

No mestrado em geografia humana, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), pesquisou as relações de parentesco entre os povos Tukano de Pari-Cachoeira, no Brasil, e os Tuyuka de Trinidade, na Colômbia. No mestrado em ciências sociais, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), investigou xamanismo e princípios rituais de pajelança dos Tuyuka.

A decisão de cursar medicina veio logo depois de receber os títulos de mestre e foi motivada pelo impacto de depoimentos de conterrâneos indígenas, sobre as deficiências no atendimento médico e a falta de assistência aos moradores do Alto Rio Negro, território com uma das maiores concentrações de indígenas do país – o povo Tuyuka é uma das 23 etnias que vive na região. “Nas minhas pesquisas de campo, percebi que houve uma perda da tradição de formar novos pajés. Muitos acabam morrendo sem transmitir os conhecimentos para as novas gerações, o que termina por deixar a comunidade ainda mais vulnerável”, explica.

Durante a graduação, quando realizou estágios na Fundação de Dermatologia Tropical e Venereologia Alfredo da Matta (Fuam), em Manaus, Dutra gravou uma série de vídeos na língua tukana sobre doenças como hanseníase e tuberculose e coordenou o projeto de produção de vídeos nas línguas paumari, tikuna, marubo,

Logo após a colação na UEA, o registro do primeiro plantão médico, em Manaus

nheengatu, baniwa e tukana com orientações sobre prevenção da Covid-19. O material foi distribuído pelo programa Telessaúde Fuam. “Até então as orientações não estavam sendo bem compreendidas nessas áreas. Como as campanhas eram feitas apenas em língua portuguesa, os indígenas não entendiam seu conteúdo”, explica.

Detentor de conhecimentos em áreas tão distintas, Dutra diz que a formação eclética tem sido de grande valia em sua atuação no campo da saúde. Filho de pajé, ele ressalta a importância dos saberes ancestrais para a prática da nova profissão. “São universos diferentes, mas que se complementam na busca pela prevenção, tratamento e cura de doenças, bem como pela manutenção da vida.” n S. S. O.

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