Os manuscritos de Londres

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VENDA PROIBIDA

ASSINANTE

Nº 154 ■

EXEMPLAR DE

Dezembro 2008

Dezembro 2008 Nº 154 ■

POLUIÇÃO AUMENTA RISCO DE MORTE DE BEBÊS PALHA DE CANA PODE PRODUZIR CARVÃO E BIOÓLEO

Os manuscrios de Londres Doc Documentos D descobertos escobertos por am liligação ão entre brasileiras reforçam a alquimia e a química m moderna

PESQUISA FAPESP

POBREZA DO SOLO DA MATA ATLÂNTICA SURPREENDE

>> ESPECIAL EXPOSIÇÃO

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IMAGEM DO MÊS

NASA

A primeira imagem

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A Terra vista da Lua, numa foto histórica e pioneira captada por uma sonda da Nasa em 1966, ressurgiu com detalhes e nitidez que rivalizam em qualidade com as imagens atuais. A sonda fora enviada para registrar fotos da superfície lunar na preparação da missão tripulada de 1969. As imagens foram transmitidas por rádio para a Terra, onde ficaram gravadas em fitas que só podiam ser vistas num equipamento especial. Acabaram esquecidas, ofuscadas pela profusão de registros produzidos pelos primeiros homens na Lua. Agora, ao custo de meio milhão de dólares, as fitas foram recuperadas e suas imagens restauradas com a ajuda de novos recursos tecnológicos.

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DAVID SHANKBONE/WIKIMEDIA COMONS

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REPRODUÇÃO

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> CAPA 16 Manuscrito descoberto

por pesquisadoras brasileiras reforça idéia de que a alquimia sobreviveu à idade da razão

> ESPECIAL II 61 EINSTEIN

O Universo além da física

> POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

> ENTREVISTA 10 Manning Marable,

da Universidade Columbia, defende que a revisão do passado pode recriar o futuro racial dos EUA

28 BIOCOMBUSTÍVEIS

Encontro em São Paulo discute tecnologias de produção de etanol 30 Mohamed Hassan, da

Academia de Ciências para o Mundo em Desenvolvimento, sugere criação de centro internacional de pesquisa no Brasil

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CAPA

32 PARCERIA

Metade do tempo de computador instalado na Unicamp foi usado por pesquisadores de outros estados 33 ECONOMIA

Nicholas Stern diz que a busca de eficiência energética pode ajudar a amenizar os impactos do clima no Brasil

34 INOVAÇÃO

A venda da Alellyx e da CanaVialis é um exemplo de como pesquisa competitiva pode criar riqueza 38 TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO

Saem resultados preliminares dos projetos do Instituto Microsoft Research -FAPESP 42 ESTADOS UNIDOS

Obama promete mais verbas para a pesquisa e uma nova pauta ambiental

> SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 6 CARTAS 7 CARTA DA EDITORA 8 MEMÓRIA 22 ESTRATÉGIAS 44 LABORATÓRIO 88 SCIELO NOTÍCIAS ........................

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> EDITORIAS

> POLÍTICA C&T

> CIÊNCIA

> TECNOLOGIA

> HUMANIDADES

WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

EDUARDO CESAR

LAURA DAVIÑA

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REPRODUÇÃO

EDUARDO CESAR

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>

CIÊNCIA

48 SAÚDE

Poluição do ar aumenta em 50% risco de morte de recém-nascidos 52 BACTERIOLOGIA

Combate a bactérias causadoras de diarréias ganha novas estratégias 56 NEUROLOGIA

Modelo com células humanas abre caminho para tratar esclerose amiotrófica

58 FÍSICA

Elétrons essenciais à criação de computadores quânticos são mais bem compreendidos 60 ASTRONOMIA

Observatórios acompanharão apagão de Eta Carinae 84 EVOLUÇÃO

Contemporâneos dos dinossauros, pequenos lagartos habitam as florestas brasileiras 86 ECOLOGIA

A Mata Atlântica é mais pobre que a Amazônia em nitrogênio

94 AGRICULTURA

HUMANIDADES

102 HISTÓRIA

Novas técnicas transformam palha da cana em bioóleo, carvão siderúrgico, carbeto de silício e, no futuro, etanol 99 MEDICINA

Trajetória de africano alforriado mostra o Brasil escravagista 106 LITERATURA

Estudo analisa linguagem das peças de Nelson Rodrigues

Unicamp cria e licencia um novo dispositivo para drenagem torácica 100 ENERGIA

Águas de esgotos e efluentes industriais podem ser usadas para produzir hidrogênio e eletricidade

............................... 90 LINHA DE PRODUÇÃO 110 RESENHA 111 LIVROS 112 FICÇÃO 114 CLASSIFICADOS

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>

> TECNOLOGIA

CAPA MAYUMI OKUYAMA FOTO ANA MARIA ALFONSO-GOLDFARB E MÁRCIA FERRAZ

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CARTAS cartas@fapesp.br

As reportagens de Pesquisa FAPESP mostram a construção do conhecimento essencial ao desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução. ■

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Prêmio Nobel A reportagem de Fabrício Marques “O coro dos excluídos” (edição 153) trata de possíveis injustiças na indicação do mais prestigioso prêmio científico, o Prêmio Nobel de ciências. O texto traz alguns nomes de possíveis injustiçados, entre eles o do físico brasileiro César Lattes. De fato, há uma polêmica em torno da não indicação de Lattes, porém o nome do cientista brasileiro que chegou mais perto (e certamente o mais injustiçado) é de Carlos Chagas. Esse médico foi discípulo de Oswaldo Cruz, que inaugurou um dos centros de pesquisa mais importantes do mundo em medicina tropical. Chagas fez uma descoberta científica sem precedentes na história da medicina. Foi indicado duas vezes para receber o Prêmio Nobel (em uma das vezes, foi o único nome apontado para receber o prêmio e, mesmo assim, não foi nomeado pelos membros da Academia Real de Ciências da Suécia; por quê?). Quero deixar a sugestão para a revista que paute uma reportagem sobre o assunto da não indicação desse cientista. Haroldo F. de Campos Velho São José dos Campos, SP

física do Aleijadinho, confesso-me preocupadíssimo com o futuro da história da arte no Brasil, disciplina à qual me dedico há mais de 50 anos e que, vejo agora, parece em via de extinção. Isso porque há pouco uma historiadora deu-se ao trabalho de “provar” por a + b que nunca existiu uma Missão Artística Francesa, pura invencionice do historiador Afonso de E. Taunay; agora, numa tese defendida na Universidade de São Paulo – aliás, retomando uma teoria velha de 80 anos –, tenta-se provar que Antônio Francisco Lisboa é um mito! Assim, uma barretada no século XIX, com a demolição da Missão Francesa, e outra no século XVIII, com o apagamento do Aleijadinho! De minha parte, começo a reunir documentos para acabar com o século XVII, provando que também Frans Post nunca existiu, não passando de um codinome de Maurício de Nassau, que aliás nunca esteve no Brasil, mesmo porque todo o episódio do Brasil holandês não passa de ficção a serviço da indústria açucareira de Pernambuco! José Roberto Teixeira Leite Historiador de Arte São Paulo, SP

Recebemos o primeiro exemplar da assinatura de Pesquisa FAPESP e a achamos extremamente interessante e agradável de ler. Gostamos especialmente do artigo sobre Aleijadinho. Foi uma surpresa saber que a revista também destaca a história da arte e esperamos que em futuras edições continuem abordando o tema. Rynaldo Papoy Guarulhos, SP

MIGUEL BOYAYAN

Aleijadinho A respeito da reportagem “Paranóia e mistificação?” (edição 153) na qual se questiona a própria existência 6

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Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

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CARTA DA EDITORA FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CELSO LAFER

PRESIDENTE

Conhecimento com aventura

JOSÉ ARANA VARELA

VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, HORÁCIO LAFER PIVA, JACOBUS CORNELIS VOORWALD, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ DE SOUZA MARTINS, JOSÉ TADEU JORGE, LUIZ GONZAGA BELLUZZO, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

Mariluce Moura - Diretora de Redação

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI

DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ

DIRETOR CIENTÍFICO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER

DIRETOR ADMINISTRATIVO

ISSN 1519-8774

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, MÁRIO JOSÉ ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA

EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORES EXECUTIVOS CARLOS HAAG (HUMANIDADES), FABRÍCIO MARQUES (POLÍTICA), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA), RICARDO ZORZETTO (CIÊNCIA) EDITORES ESPECIAIS CARLOS FIORAVANTI, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE) EDITORAS ASSISTENTES DINORAH ERENO, MARIA GUIMARÃES REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO EDITORA DE ARTE MAYUMI OKUYAMA ARTE JÚLIA CHEREM RODRIGUES, LAURA DAVIÑA, MARIA CECILIA FELLI FOTÓGRAFOS EDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201 COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), BRAZ, CHICO LOPES, DANIELLE MACIEL, GEISON MUNHOZ, GONÇALO JUNIOR, LAURABEATRIZ, MARCOS GARUTI, REINALDO JOSÉ LOPES E YURI VASCONCELOS.

OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

PARA ANUNCIAR (11) 3838-4008 PARA ASSINAR FAPESP@TELETARGET.COM.BR (11) 3038-1434 FAX: (11) 3038-1418 GERÊNCIA DE OPERAÇÕES PAULA ILIADIS TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br GERÊNCIA DE CIRCULAÇÃO RUTE ROLLO ARAUJO TEL. (11) 3838-4304 e-mail: rute@fapesp.br IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 35.800 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO DINAP GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP FAPESP RUA PIO XI, Nº 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA – SÃO PAULO – SP

SECRETARIA DO ENSINO SUPERIOR GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

INSTITUTO VERIFICADOR DE CIRCULAÇÃO

Um nome muito estranho – alkahest –, uma procura rocambolesca por antigos documentos, uma sugestão de caminhos misteriosos pela velha alquimia para tentar chegar à moderna química, de repente, lendo a matéria de capa desta edição, foi inevitável para mim a lembrança de O nome da rosa e de O pêndulo de Foucault, duas incursões poderosas do semiólogo Umberto Eco pela ficção literária, a primeira, a meu juízo, mais bela e bem realizada que a segunda. Talvez fosse o clima da narrativa, talvez a percepção do quanto a razão ocidental transitou por sendas tortuosas para criar o saber e o discurso científico contemporâneos, o certo é que a reportagem induziu a lembrança e me provocou a vontade reler os livros de Eco. Mas isso não importa muito, o que realmente tem importância aqui é dizer com quanto prazer concluímos que, dentre todos os bons textos deste número de Pesquisa FAPESP, aquele que relata o achado, por Ana Maria Alfonso-Goldfarb e Márcia Ferraz, de documentos do século XVII relativos ao alkahest, o hipotético solvente universal alquímico, seria indiscutivelmente o tema da nossa capa. Foi sem sombra de dúvida um belo trabalho de história da ciência o que as duas pesquisadoras vinculadas ao Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência (Cesima), da PUC de São Paulo, realizaram, no âmbito de um projeto temático apoiado pela FAPESP. Ana Maria e Márcia lançaramse à procura dos importantes papéis, dados como perdidos há muito tempo, nos arquivos da Royal Society, em Londres, e lá os encontraram, inclusive com detalhes precisos e preciosos da receita do solvente que reduziria qualquer substância a seus componentes primários, de acordo com as expectativas da alquimia. Em fase final de tradução, os manuscritos serão objeto de um artigo na Notes and Records, a revista científica da Royal Society, e serão apresentados na instituição em meados do próximo ano pelas pesquisadoras brasileiras e mais o professor Piyo Rattansi, do University Col-

lege London, que as ajudou na transcrição e análise dos documentos. A reportagem do editor de humanidades, Carlos Haag, relata com grande vigor a partir da página 16 os detalhes da descoberta das historiadoras e o que ela revela da convivência muito mais longa do que usualmente se admite entre a química moderna e o saber alquímico. Vale a pena conferir. *** Várias outras reportagens desta última edição de 2008 merecem uma leitura atenta em razão daquilo mesmo que revelam. Por exemplo, chamo a atenção para o texto a partir da página 48, do editor de ciência, Ricardo Zorzetto, sobre novos estudos que comprovam como a poluição do ar nessa megalópole chamada São Paulo aumenta em 50% o risco de morte de recém-nascidos. Outra reportagem de peso é a da editora assistente de tecnologia, Dinorah Ereno, sobre novas técnicas que permitem transformar palha e outros resíduos da cana em variados produtos voltados à geração de energia. Na seção de política, atenção para a proposta de Mohamed Hassan, diretor executivo da Academia de Ciências para o Mundo em Desenvolvimento, de criação, em São Paulo, de um centro internacional de pesquisa em biocombustível, detalhada em entrevista ao editor especial Marcos Pivetta, na página 30. Ele apresentou a proposta durante a conferência internacional sobre biocombustíveis, entre 17 e 20 de novembro, da qual o editor de tecnologia, Marcos de Oliveira, dá notícias na página 28. Ainda em política, atenção à reportagem do editor Fabrício Marques sobre a venda da Alellyx e da CanaVialis para a Monsanto, operação que guarda algumas lições sobre a criação de riqueza a partir da pesquisa competitiva. E para terminar sugiro a leitura da entrevista de Manning Marable, professor da Universidade Columbia, a partir da página 10, que faz pensar muito sobre relações inter-raciais, ante a notável vitória de Barack Obama para a Presidência dos EUA. PESQUISA FAPESP 154

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() MEMÓRIA

Engrenagens da vida Surgiram nos anos 1950 as primeiras máquinas do país que substituíram as funções do sistema coração-pulmão

extracorpórea (CEC), que substituía as funções dos dois órgãos enquanto se reparavam defeitos nas estruturas do coração. Foi também em 1953 que o médico paulista Hugo Felipozzi conheceu a máquina CEC, no período em que estava nos Estados Unidos para se aperfeiçoar em cirurgia torácica. “Na volta a São Paulo ele trouxe fotografias e desenhos do equipamento, já pensando em construir algo semelhante aqui”, conta Walter José Gomes, pesquisador, cirurgião e professor da disciplina de Cirurgia Cardiovascular, a cadeira que foi de Felipozzi na Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo. Com apoio financeiro da Fundação Anita Pastore D’Angelo, Felipozzi montou uma equipe multidisciplinar de pesquisadores em regime de tempo integral e passou a trabalhar no Instituto de Cardiologia Sabbado D’Angelo. “Havia profissionais de todas as áreas, de engenheiros a bioquímicos, que, juntos, construíram a máquina de CEC nacional”, diz Gomes. Em 15 de outubro de 1955 um

REVISTA BRASILEIRA DE CIRURGIA CARDIOVASCULAR

ARQUIVO DE FAMÍLIA

REVISTA BRASILEIRA DE CIRURGIA CARDIOVASCULAR

Neldson Marcolin

A

ssociada normalmente aos nomes tradicionais da área – como Hugo Felipozzi, Euryclides Zerbini e Adib Jatene – e à qualidade da produção científica, a cirurgia cardíaca brasileira tem uma parte menos conhecida, mas não menos importante. Foi graças, em grande medida, à produção nacional dos equipamentos utilizados nas salas de operação que a especialidade se desenvolveu e obteve expressão internacional. A realização de cirurgias cardíacas “a céu aberto” só se tornaram possíveis com a construção da primeira máquina de circulação extracorpórea no Brasil, em 1955. “A céu aberto” é a expressão usada pelos médicos para designar a cirurgia em que se opera o coração por dentro. Para isso é preciso fazê-lo parar de bater mantendo o paciente vivo. Como resolver o problema? A solução surgiu em 1953 quando o cirurgião norte-americano John Gibbon inventou uma bomba coração-pulmão artificial, ou máquina de circulação

Felipozzi e Zerbini (acima): gosto pela cirurgia e pela tecnologia

Primeira CEC total, em 1956, feita por Felipozzi

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INCOR

Cirurgia cardíaca com circulação extracorpórea, comandada por Zerbini, em 1958

coração no Brasil e aproveitou sua fama para obter verbas e construir o Instituto do Coração (InCor, do HC/USP). “Como Felipozzi, Zerbini percebeu que era importante conhecer, dominar e produzir aqui a tecnologia usada nas cirurgias e com esse intuito criou a Oficina Coração-Pulmão no final da década de 1950, que

depois se tornou a Divisão de Bioengenharia”, diz a pesquisadora Idágene Cestari, diretora de Pesquisa e Desenvolvimento da Divisão de Bioengenharia do InCor. Jatene fez o mesmo no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia e instalou no prédio, ainda nos anos 1960, um avançado centro de bioengenharia.

A primeira máquina é de 1956. A da direita foi feita em 1958

EDUARDO CESAR

com Adib Jatene incluso, também construiu uma máquina de CEC, usada pela primeira vez em 1958, e transformou em rotina as cirurgias a céu aberto no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Zerbini criou uma caravana e viajou pelo país com o equipamento operando em várias cidades. Em 1968 fez o primeiro transplante de

REVISTA BRASILEIRA DE CIRURGIA CARDIOVASCULAR

menino de 3 anos foi o primeiro a ser operado da válvula pulmonar com uso de circulação extracorpórea parcial. E em novembro de 1956 houve a primeira operação no país com CEC total, seguida de muitas outras. Esse foi só o primeiro produto da equipe de Felipozzi. Outros foram construídos, como próteses valvares, tubos de materiais plásticos para substituição da artéria aorta e oxigenadores descartáveis de plástico, por exemplo. Com o fechamento do instituto poucos anos depois dessas cirurgias, o médico mudou-se para a EPM, mas não teve o mesmo apoio para montar um centro de bioengenharia nos mesmos moldes. Euryclides Zerbini teve sorte diversa. Sua equipe,

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ENTREVISTA

Manning Marable

A história negra viva Professor da Universidade Columbia defende que a revisão do passado pode recriar o futuro racial dos EUA

H

á um site da Universidade Columbia, em Nova York (www. columbia.edu/cu/ccbh/mxp), inteiramente dedicado ao líder negro Malcolm X, assassinado numa tarde de domingo, 21 de fevereiro de 1965, no Harlem, diante de sua mulher grávida, de três dos seus quatro filhos e de uma multidão de centenas de pessoas que aguardavam mais um de seus eletrizantes discursos. Malcolm, que um filme de 1992 do diretor Spike Lee tornou famoso no mundo inteiro, completaria 40 anos três meses depois daquela dramática tarde. O site em questão, sob o título geral “The Malcolm X project at Columbia University”, é resultado de um trabalho persistente e ambicioso do professor Manning Marable, docente de história e ciência política da Columbia, fundador do Instituto para Pesquisas em Estudos Afro-Americanos e diretor do Centro de História Negra Contemporânea da mesma universidade. Além da construção de uma robusta versão multimídia da autobiografia do líder negro, o objetivo declarado do site é a pesquisa e o desenvolvimento de uma ampla e densa biografia dessa personagem nascida em Ohio, em 1925, e que, ainda criança, teve o pai assassinado brutalmente pela Ku Klux Klan. Já em 2009 a busca empreendida por Marable deve resultar na publicação de seu novo livro, Malcolm X: a life of reinvention. Não se pense, entretanto que esse professor de 58 anos, um dos mais importantes scholars negros no meio acadêmico norte-americano, autor até aqui de 19 livros, é pesquisador de uma figura só. Muito longe disso, as variadas lideranças

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do passado e do presente que a já longa luta de afirmação dos negros nos Estados Unidos vem gestando estão todas sob o olhar atento de Marable, como se pode constatar, por exemplo, em seu livro publicado pela Civitas Books em 2005, Living black History: how reimagining the african-american past can remake America’s racial future. Tal atenção inclui, é claro, o presidente eleito dos Estados Unidos. E Marable, por meio de sua coluna “Along the color line”, publicada em mais de 400 veículos impressos e virtuais, em seu país e também no Canadá, Reino Unido, Caribe e Índia, tratou de examinar sob todos os ângulos a candidatura de Barack Obama e conclamar seus leitores para ajudar a construir a vitória do candidato democrata. Em janeiro de 2008, por exemplo, ele dizia: “Precisamos nos mobilizar para dar apoio à eleição de Barack Obama, não só por ele ser progressista e inteiramente qualificado para a Presidência, mas também porque só sua campanha pode forçar todos os americanos a superar o silêncio centenário sobre raça que cria um profundo abismo a cruzar a vida democrática desta nação”. Em outubro, num artigo em que examinava menos a estratégia da campanha e mais a bem traçada estratégia política do grupo de lideranças negras moderadas da qual Obama faz parte, Marable observava que foi nos debates televisivos que “milhões de perplexos americanos brancos finalmente perceberam que um afro-americano provavelmente seria eleito presidente”. E essa estonteante percepção, dizia ele, levantou uma onda de racismo, pondo abaixo a aparente neutralidade diante

da questão racial com que o país parecera se acostumar nos últimos anos. Ainda em outubro, num artigo em que argumentava em favor do programa econômico do candidato democrata para reverter alguns dos piores efeitos da recessão econômica anunciada, o professor da Columbia assegurava que também por isso o voto em Obama era “absolutamente necessário e essencial para os trabalhadores negros e para todos os americanos”. Obama eleito, no dia seguinte, 5 de novembro, Manning Marable já explicava em entrevista num programa de rádio em Nova York por que realmente contara com a vitória, ainda que o surpreendesse a rapidez com que ela se construíra no começo deste século XXI. Uma razão era a rápida transformação étnica da sociedade americana que, nos próximos 30 anos, fará efetivamente dos negros, mulatos, latinos e asiáticos-americanos a maioria da população do país. A outra era a sólida formação do grupo de lideranças negras pragmáticas, não baseadas politicamente no critério de raça, mais ao centro do espectro ideológico do que os políticos negros que emergiram do movimento dos direitos civis dos anos 1960 e 1970 e capazes de apelar diretamente aos brancos com um novo projeto geral para a nação. A entrevista que se segue com Manning Marable foi feita em sua sala, num prédio da avenida Amsterdam, bem perto da avenida 119, lado Oeste, no belo campus da Columbia, num começo de tarde nublada, em 1º de dezembro de 2006. Com a decisão de publicá-la agora, enviei algumas questões ao professor sobre a vitória de Barack Obama e ele respondeu

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Mariluce Moura, de Nova York

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mandando seus artigos sobre o tema que julgava mais importantes. Escolhi usar alguma coisa deles na abertura e manter a entrevista original de dois anos atrás. Para começar, gostaria de ouvi-lo a respeito de suas pesquisas sobre Malcolm X. Seu objetivo é uma grande biografia? — Malcolm X foi um dos americanos mais importantes da metade do século XX. Mais do que qualquer outro negro americano, ele representou a população negra urbana dos Estados Unidos. Nenhuma outra figura foi mais significativa do que Malcolm X ao interpretar as políticas e a raiva do povo afro-americano entre os anos de 1950 e 1970. ■

E por que ele é tão significativo? — Dentro da cultura afro-americana, Malcolm corporifica duas metáforas ou duas expressões de cultura: a do ladrão e a do pregador. A vida de Malcolm foram os conhecidos 30 anos. Na década de 40, aqui no Harlem, ele era bem conhecido pelo apelido de “Detroit Red”, um jovem gângster, um bandido que lidava com drogas e prostituição. Tinha sido preso aos 21 anos e ficara detido por sete anos e sete meses, um tempo em que se transformou: juntou-se a um obscuro grupo islâmico, o Nation of Islam, liderado por Elijah Muhammad, que conservava elementos do islamismo sunita tradicional, mas era essencialmente um culto negro, racista, defensivo e profundamente autoritário, produto de uma reação à supremacia branca nos Estados Unidos. Nesse sentido, ele simplesmente invertia a teologia do privilégio branco, acusando os brancos de serem Satã, o diabo, enquanto tornava negros os deuses. Essa teologia, que tinha em si elementos do Islã tradicional, difundia-se entre negros pobres e prisioneiros, como Malcolm, então confinado numa prisão no estado de Massachusetts. Ele uniu-se ao culto e, quando saiu da prisão, em agosto de 1952, teve uma projeção meteórica como o maior portavoz nacional de Elijah Muhammad. Em 1962 e 1963, ele se tornou extremamente proeminente no campus das universidades americanas e na televisão como um líder negro raivoso que desafiava a não-violência de Martin Luther King e se opunha à integração racial. Ele era a favor da separação nacionalista negra, da criação de empresas e instituições totalmente negras controladas pelos próprios negros. Os negros deviam formar comunidades autônomas que eles controlariam dentro das cidades dos Estados Unidos. Visava, ■

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tornou-se uma figura muito influente na mídia e na imprensa, tanto que a cobertura jornalística gerou ciúmes e oposição dentro da Nação do Islã. E por falar em oposição, em relação a Martin Luther King, como aparecia a figura de Malcolm X? — Os dois eram freqüentemente citados como contrários, o que, na minha opinião, está incorreto. Deve-se ver que tanto Malcolm quanto King evoluíram na direção um do outro ideológica e politicamente. No final de sua vida, em 1964-65, Malcolm X era completamente contrário à Guerra do Vietnã. Ele foi o primeiro americano proeminente, e, cer■

ROBERT LLEWELLYN /CORBIS/LATINSTOCK

enfim, uma divisão racial nada diferente da que se estabeleceu entre hindus e muçulmanos quando da separação entre Índia e Paquistão em 1947, dado que os negros receberiam um certo número de estados no Sul para onde poderiam se mudar todos os afro-americanos e de onde os brancos poderiam sair. Assim teríamos uma separação de raças e dessa forma encontraríamos uma igualdade política real e genuína. Era, claro, uma visão racista, criada e construída pelos negros em resposta ao racismo dos brancos. Não era uma estratégia que Malcolm, ao fim de sua vida, apoiava ou aceitava. Mas durante aquele período de sua vida, quando Malcolm acreditava nisso, ele

tamente, o primeiro americano negro a mostrar-se contrário à Guerra do Vietnã, que denunciava como uma guerra racista e imperialista. Foi Malcolm também quem argumentou que os negros americanos deveriam ir à ONU para apresentar sua situação ao mundo como um caso de genocídio e discriminação em vez de definir nossa luta simplesmente como uma luta pelos direitos civis. Ele dizia que era uma luta pelos direitos humanos. Finalmente Martin Luther King acolheu essas duas posições de Malcolm: em 1967 posicionou-se contra a Guerra do Vietnã e acolheu também a idéia de direitos humanos na questão da racialização nos Estados Unidos. Malcolm X também lançou o que, mais tarde, seria chamado de black power, construindo instituições negras fortes, e o controle político negro de grandes cidades com a eleição de prefeitos negros, deputados e senadores. O doutor King da mesma forma apoiava o black power, muito embora o slogan controverso o alienasse em muitos aspectos. King não se opunha à idéia da representação negra e de políticos negros e eleitos. Assim, os dois homens na verdade aproximavam-se cada vez mais em termos ideológicos e pessoais, o que acho muito significativo. Em meu livro mais recente, Living black History, que traz na capa uma foto dos dois juntos, proponho que Malcolm X seja entendido como um líder de direitos humanos que evoluiu em termos políticos e ideológicos, especialmente em questões de raça e libertação nacional. ■ As posições de Malcolm tiveram mais con-

seqüências do que as de Martin Luther King na continuidade da história dos negros nos Estados Unidos? — Não concordo com esse raciocínio. Eu diria que elas foram complementares em uma análise que desafia a desigualdade racial e a injustiça humana. Diria que os dois abordaram o problema do racismo de forma um pouco diferente, mas que representaram as vozes centrais na desconstrução e deslegitimização da supremacia branca e da injustiça racial. Seus estudos voltam-se à história dos negros nos Estados Unidos no século XX, mas também se dirigem ao século XIX e a outros momentos do passado. Seria possível resumir sua visão e estabelecer uma comparação com o Brasil nessa área? — Ah sim, escrevi muito sobre isso em Great wells of democracy: the meaning of race in american life, publicado em 2002, e também num outro livro anterior, Afri■

Convergência entre Martin Luther King e Malcolm X

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can and Caribbean politics, publicado em Londres pela Verso, em 1987. A despeito do título, nele há referências ao Brasil. Eu proponho que o respeito às histórias dos povos de descendência africana no Brasil e nos Estados Unidos possuem grandes semelhanças, mas também diferenças profundas. As semelhanças mais significativas são as lutas pela liberdade, pelos diretos humanos e pela dignidade humana enfrentadas pelos povos de descendência africana, transcendendo os épicos históricos. Isso inclui o comércio transeconômico de escravos, a escravidão em si, a emancipação no Brasil em 1888 e nos Estados Unidos em 1865, e também o período pós-emancipação, chamado nos Estados Unidos de Reconstrução. Inclui também a luta pela liberdade e igualdade durante o século XX. Há, portanto, um paralelo no sentido de que as pessoas negras sofreram discriminação e falta de acesso a educação, habitação e saúde – todos os componentes daquilo que constitui os direitos humanos no século XXI. Mas há uma diferença fundamental, ou melhor, várias diferenças fundamentais entre as duas nações. E a mais importante delas é que, no Brasil, a história da formação do estado brasileiro – de sua sociedade política e da construção da sociedade civil – é apoiada pela consciência nacional e pela identidade nacional que superam a consciência de raça. Nos Estados Unidos, o estado foi construído sobre um claro fundamento racial. ■ O que comprova isso? — Posso dar um exemplo. A primeira lei aprovada pelo governo dos Estados Unidos quando o Congresso se reuniu pela primeira vez, isto é, a lei mais importante, a da imigração de 1790, definia a cidadania americana exclusivamente para pessoas brancas e livres. Em outras palavras, para ser considerado um membro do estado era preciso ser branco, preferivelmente um homem branco e com propriedades. Até 1920, nenhuma mulher podia votar nos Estados Unidos. Podiam votar todos os brancos que tinham propriedades até os anos 1790, e daí até os anos 1830 todos os homens brancos acima de 21 anos, independentemente da renda ou de suas propriedades. A raça definia a cidadania e o acesso ao voto. A raça definia quem podia fazer parte de um júri ou mesmo apresentar provas em um tribunal. Aos negros, se fossem escravos, não era permitido sequer apresentar provas. Os negros foram definidos como propriedades nos Estados Unidos por aproximadamente 250 anos e

uma enorme diferença. Há uma segunda grande diferença que reforça isso.

Diferente do Brasil, onde a formação do estado é apoiada pela consciência nacional, nos Estados Unidos o estado foi construído sobre um claro fundamento racial

a maioria dos afro-americanos não votava em eleições presidenciais americanas até 1968. E isso porque a lei de direitos civis e a lei de direito ao voto só foram aprovadas, respectivamente, em 1964 e 1965. Os negros nominalmente tinham direito ao voto e uma minoria nos estados do Norte e do Meio-Oeste, além da Costa Oeste, podia votar, mas os negros no Sul não. Eles não podiam levar, praticar ou garantir seus direitos constitucionais pelo voto. Portanto, o estado democrático foi racialmente preconfigurado. Já no Brasil – e não estou minimizando a centralidade ou a importância da discriminação racial no país –, de forma muito semelhante ao que ocorreu em Cuba, a consciência nacional transcendeu a questão da identidade racial para a maioria dos brasileiros, mesmo para os brasileiros negros, que, até muito recentemente, definiam sua própria identidade nacional fora de um contexto racial. Nos Estados Unidos isso jamais foi verdade: era preciso ser branco para ser americano. Afro-americanos não eram considerados, através da maior parte da história americana, sequer pessoas, sujeitos, éramos propriedades. E esta é

E qual seria? — É que nos Estados Unidos houve uma guerra civil e no Brasil não houve. E isso é, historicamente, extremamente importante. A Guerra Civil foi o conflito fundamental da história americana. Seiscentos e cinqüenta mil americanos foram mortos e 2 milhões foram feridos numa população de 38 milhões de pessoas. Pode-se ver como essa guerra foi poderosa. E seu foco era se o país deveria ou não manter a escravidão, permanecer meio escravo e meio livre. No final da guerra, os negros ganharam sua liberdade técnica, os homens negros conquistaram o direito ao voto por um certo tempo, direito revertido uma dúzia de anos mais tarde. Portanto, foi preciso uma guerra para acabar com a escravidão. Enquanto isso, no Brasil, a escravidão tornava-se crescentemente uma instituição econômica disfuncional. Até os próprios senhores de escravo começaram a se agitar por alguma espécie de fim da escravidão que lhes desse uma compensação. Olhavam o modelo da Índia Ocidental, dos britânicos, observavam como os plantadores do Caribe receberam compensação financeira e sentiam cada vez mais que a propriedade de escravos como forma econômica de exploração do trabalho não era tão produtiva ou competitiva quanto o modelo do livre mercado. Os economistas já criticavam o Brasil, sua dependência da escravatura, e começaram a atribuir muito do atraso do país a essa dependência. Isso não aconteceu nos Estados Unidos, foi preciso uma guerra. Na memória do conflito, mesmo numa eventual visão da televisão ou de um filme americano, percebe-se quão poderosa é a imagem do Sul no Partido Republicano, mesmo hoje quando se tornou o partido do lixo Dixie. Todos os racistas, sulistas brancos, que odiavam os direitos civis, que odiavam Martin Luther King, juntaram-se no Partido Republicano nos anos 1960, 1970 e 1980, sob [Ronald] Reagan. E isso é o cerne, o coração da ideologia do Partido Republicano. Se alguém quer entender o Iraque tem que entender a segregação de Jim Crow e se quer entender Abu Ghraib precisa entender os linchamentos dos negros no Sul. Não há diferença: é a mesma bestialidade, o mesmo racismo, o ódio, a demonização e a estigmatização experimentados pelos negros americanos que eles dirigem agora a todos que se lhes ■

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opõem. Eles apenas exportaram a mesma informalidade para o resto do mundo. E é a mesma gente. Um dos mestres da arquitetura da supremacia branca é, uma vez mais, Trent Lott, senador pelo Mississippi, o segundo na escala de poder do Partido Republicano no Senado [o senador renunciou em novembro de 2007]. Essas diferenças históricas entre Brasil e Estados Unidos criaram diferentes estratégias de sobrevivência entre escravos e seus descendentes e, inclusive, diferentes estratégias culturais. No Brasil, por exemplo, onde o racismo é mais velado, a necessidade dos escravos de se expressarem em termos religiosos, mas fugindo à repressão do governo e às perseguições policiais (que, entretanto, ocorreram por muito tempo), terminou por levá-los a estabelecer algumas correspondências entre seus cultos originais e os cultos católicos e a criar uma nova religião negra e brasileira, o candomblé. Muito mais adiante, alguns grupos começaram a incorporar em suas práticas também elementos do espiritismo kardecista, e o resultado foi um candomblé modificado em nova religião, a umbanda. Aqui nos Estados Unidos, onde o racismo se constituiu tão abertamente, e o ódio dos brancos se expressou com tanta força, os negros criaram suas expressões religiosas dentro das religiões brancas, protestantes. Mas se observo hoje uma igreja no Harlem, posso ver ali, no poder que o canto e o corpo têm no culto, algo que me lembra muito o que se passa no candomblé, por exemplo. — Está correto, eu conheço o candomblé. De certa forma, a presença do corpo e da voz nesses termos ocorreu nos Estados Unidos por meio do pentecostalismo. Os pentecostais foram fundados no Templo Azusa, em San Diego, Califórnia, em 1905, em grande parte por afro-americanos. E a fé pentecostal ou sagrada tem grande ênfase na posse física de Deus por uma pessoa. Assim, há movimentos físicos profundos, cantos, excitação e entusiasmo no culto, muito diferente do que se dá nas igrejas episcopais, anglicanas ou metodistas. Agora há milhões de brancos nos Estados Unidos que são pentecostais. Mas eles são largamente conservadores em termos políticos, não se engajam em associações progressistas ou de esquerda, em uniões de comércio ou organizações políticas. Acreditam na máxima do “dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César”. Mas a maioria da fé negra é radical e progressista em sua expressão e conteúdo porque a igreja negra era a única instituição permitida pelos senhores brancos ■

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para os negros. Lhes era permitido utilizar um dia da semana para comungar com Deus, tocar música, dançar e cantar para Deus. E essas expressões religiosas foram o lugar para a afirmação da identidade e da consciência. Foram também o embrião das lideranças negras. Depois da Guerra Civil, quem se tornou a liderança lógica da comunidade negra foram, claro, os pastores. Eram eles que concorriam a cargos públicos, que se elegiam e se tornavam legisladores no Congresso. E não surpreende que, no século XX, o primeiro candidato negro a presidente, de certo modo bem-sucedido, porque não conseguiu a Presidência mas ainda influenciou o debate nacional, tenha sido Jesse Jackson, um pastor. No começo do século XX, o congressista negro mais poderoso era Adam Clayton Powell Jr., do Harlem, um pastor da Igreja Batista Abissínia. E ocorre que o próprio doutor King era um pastor. Sua identidade como cristão negro, no papel de organizador da igreja como uma instituição de resistência ao racismo, à pressão racial, criou uma tradição que é em geral progressista e esperançosa em desafiar a desigualdade e a repressão governamental. Assim, há uma rica tradição progressista, mas há também a tradição conservadora no âmbito das igrejas pentecostais. Há muita contestação a suas propostas teóricas e a seus trabalhos aqui na Universidade Columbia? — Não sei, não tenho conhecimento de pessoas que me contestem. Bem, mas eu não me preocupo nada com as críticas, e sim em fazer o trabalho que quero fazer. Estamos perseguindo projetos intelectuais, a vida de Malcolm, e um projeto que chamamos de African and criminal justice. Se você procurar em nosso website “raça, crime e justiça”, verá que temos um curso para jovens negros e hispânicos em Rikers Island, a maior prisão dos EUA, logo ali no East River. Usamos o hip hop e a poesia falada para fazer com que os jovens de 15, 16 e 17 anos escrevam sobre suas experiências na prisão e sobre o papel do complexo industrial carcerário na destruição de suas vidas e de suas famílias. Promovemos a organização e o treinamento de eleitores [ele se refere ao Voter education, treinamento de eleitores, com informações sobre funcionamento do processo eleitoral, contagem de votos, uso de cédulas, formas de se registrar para obter o equivalente ao título de eleitor nos EUA etc.]. Dou aulas regularmente na prisão de Sing Sing, também em Nova York. ■

Não me preocupo em nada com o que as pessoas não gostam no meu trabalho. O senhor se define teoricamente como marxista. Imagino que ser um professor negro e marxista na Universidade Columbia, estudando uma personalidade tão controversa quanto Malcolm X, esteja longe de ser uma posição confortável, não? — Mas você deve se lembrar que, por muitos anos, Edward Said esteve aqui. E ele foi por muitos anos do conselho nacional da Organização para a Libertação da Palestina. Seu livro sobre orientalismo criou o campo de conhecimento que é chamado nos Estados Unidos de cultural studies. Muito antes, cem anos atrás, houve aqui na Columbia um professor como Joel Spingarn [professor de literatura comparada na Columbia de 1899 a 1911, judeu, ativista dos direitos civis e grande incentivador da publicação de escritores negros nos anos 20]. Portanto... ■

■ Qual o seu sentimento sobre o futuro dos

negros aqui nos Estados Unidos? É possível chegar a uma situação de igualdade real, ao fim efetivo de todo comportamento racista, a uma democracia de verdade nesse sentido? Você acredita nisso? — Penso que nossa situação é complicada aqui nos Estados Unidos em função daquilo que em meus textos chamo de racismo daltônico [color-blind racism]. Isso mostra que os sinais que costumavam significar branco e preto na era Jim Crow foram derrubados [Marable refere-se às leis Jim Crow, leis racistas que vigoraram de 1876 a 1965 nos estados do Sul e vizinhos, entre elas as que exigiam que as escolas públicas e a maioria dos locais públicos, inclusive trens e ônibus, tivessem instalações separadas para brancos e negros. Oficialmente elas foram revogadas pela Lei dos Direitos Civis de 1964]. Leis foram aprovadas determinando direito ao voto, acesso ao emprego sem discriminação de raça. Leis de ação afirmativa foram aprovadas (por breve período e agora estão sendo desmanteladas). No entanto, apesar das mudanças no regime político, a realidade da desigualdade racial continua a se ampliar para milhões de negros. Como isso é possível? Bem, sob aquilo que chamo racismo daltônico, há três instituições básicas que reforçam o processo de racialização: desemprego em massa, encarceramento em massa em prisões e perda em massa dos direitos eleitorais. Cada uma dessas coisas reforça as outras. No Harlem, as taxas reais de desemprego de homens negros adultos estão entre 40 e 50%, incluindo os

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subempregados, quero dizer, aqueles que buscam emprego em tempo integral, mas só encontram empregos de meio período. O desemprego em massa rouba os direitos dos prisioneiros: em 1980 havia meio milhão de americanos na prisão, hoje são 2,3 milhões. Mas isso subestima o número real. Se contados os que estão em cadeias, os que se encontram em condicional e os que estão em observação, o número é 6 milhões, metade deles negros e um quarto latinos, hispânicos. E para todos há a perda do direito eleitoral. Na eleição presidencial de 2000, na Flórida, 800 mil residentes não puderam votar porque foram condenados por um crime – 40% deles eram negros. George Bush foi eleito por menos de 550 votos. Oitocentos mil não puderam votar. Oitocentos mil! Eles são cidadãos do país, pagam impostos ao governo e não podem votar nunca mais. No estado do Mississippi, um terço de todos os homens negros perdeu o direito eleitoral, são privados do voto para sempre porque tiveram uma única condenação por crime. De modo que, se você violar a lei aos 18 anos de idade, cumprir sua pena e sair aos 21 anos, você ainda não vai poder votar quando tiver 70 anos. Isso é uma democracia? Como justificar isso? Portanto, com a perda do direito eleitoral e o encarceramento em massa, os pobres, os desempregados, as minorias raciais, negros, mulatos e hispânicos são expulsos das instituições políticas do país. Portanto, há uma profunda crise da democracia nos Estados Unidos, um governo crescentemente autoritário e repressivo, o uso da violência e da força extrema pelos aplicadores locais da lei. Há alguns dias [começo de dezembro de 2006], um carro com três jovens negros desarmados foi alvejado 50 vezes pela polícia. E eles estavam desarmados. Esse tipo de rotina de violência ocorre em cidades de todos os Estados Unidos. ■ E o que fazer para aumentar a participa-

ção dos negros no processo político? — Já pensei e li muito sobre esse assunto. A questão mais crítica que devemos abordar é o esforço político para transformar essas leis eleitorais repressoras, para restaurar o direito ao voto de 6 milhões de americanos, quase todos pobres, da classe trabalhadora, negros ou mulatos, que foram arrancados de sua cidadania e de seus direitos eleitorais. Isso é cada vez mais importante. ■ Parece-lhe bom o voto compulsório, como

no Brasil? — Eu preferiria mudar o dia da eleição para sábado e domingo, num fim de se-

mana, para que mais pessoas tivessem acesso. Não me oponho ao voto compulsório, mas, é claro, a classe dominante nos Estados Unidos ficaria horrorizada com uma coisa dessas. Eles não querem que as pessoas votem, querem que os ideólogos das oligarquias controlem o cenário político. Então há que se trabalhar por décadas para se conseguir uma mudança... — Sim. Mas acredito que muito da liderança terá que vir dos setores mais oprimidos. Acredito que terá que vir dos jovens, das mulheres, de muitas pessoas pobres, dos prisioneiros. Isso é parte do motivo pelo qual faço um trabalho educacional dentro das prisões, porque, assim como Malcolm X, acredito que as visões da maior depressão irão oferecer aos indivíduos, mulheres e homens, a maior visão social. ■

Gostaria ainda de lhe perguntar de que forma seu projeto sobre Malcolm X, portanto, o trabalho de pesquisa acadêmica, pode influenciar a atividade política nesse sentido. Porque, acredito, seu projeto não é apenas de estudo, mas de um estudo voltado para a ação. Qual é o elo, enfim, entre seu projeto e sua visão política nesse caso? — Malcolm X dá corpo a uma política radical e independente e ao cultivo e desenvolvimento de uma liderança com a visão centrada no desafio do poder e das instituições brancas nos Estados Unidos. Em Living black History, eu documentei como e por que a visão de Malcolm era tão importante. E não simplesmente para visões históricas. Claro que eu gostaria de completar essa biografia dentro dos próximos anos e mudar para outro projeto, mas acredito que Malcolm X representa uma espécie de modelo. Não que eu esteja tentando sugerir que Malcolm era perfeito, bem longe disso. Ele cometeu erros, como todos os líderes políticos, mas podemos aprender muito com seu exemplo, sua coragem e visão social e com a vitalidade de sua visão. Com sua visão, podemos aprender muito sobre a capacidade de resistir a Abu Ghraib, a guerras no Iraque, aos exemplos do Katrina... os corpos negros mortos deixados flutuando no rio Mississippi... Aprendemos a analisar e a entender o verdadeiro significado do governo em ação, porque os negros foram as vítimas e simplesmente foram deixados para morrer, o mundo inteiro testemunhou isso, o mundo testemunhou o crime cometido pelo estado sob Bush. ■ ■

Uma das razões para a vitória de Obama foi a formação do grupo de lideranças negras que ele integra, pragmáticas, não baseadas politicamente no critério de raça, mais ao centro do espectro ideológico do que os líderes dos anos 1960 e 1970 e com um novo projeto para a nação

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da química Descoberta de pesquisadoras brasileiras reforça a idéia de que a alquimia sobreviveu à revolução científica moderna | Carlos Haag

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m “O alkahest ou a busca do absoluto”, de A comédia humana, Balzac narra a trágica obsessão de Balthazar Claës, discípulo de Lavoisier, enfurnado em seu laboratório para descobrir o processo de transmutação do carbono em diamantes puros, para tanto abandonando a família e dilapidando sua fortuna em produtos químicos. A história traz uma curiosa “incoerência” ao mostrar um seguidor do pai da química moderna, um digno representante da ciência racionalista, maculando sua reputação em nebulosos saberes medievais, nitidamente alquímicos. Sem querer, Balzac, por meio da ficção, cutucou um nervo ainda hoje sensível para a história da ciência: o saber alquímico e a tradição hermética não foram eliminados tão facilmente pela revolução científica, mas conviveram por longos séculos, de formas diversas e em diferentes níveis. A mais recente prova documental desses paralelos e permanências entre momentos tão diversos como aqueles em que se gerou a hermética medieval e o que deu nascimento à ciência moderna acaba de ser descoberta, em Londres, nos arquivos da Royal Society, por Ana Maria Alfonso-Goldfarb e Márcia Ferraz, ambas do Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência (Cesima), da PUC-SP. Trata-se de série de documentos do século XVII, dados como perdidos, em que membros da venerável instituição britânica, uma pioneira na promoção do saber científico moderno, discutem o lendário alkahest (e a sua “receita”), o hipotético “solvente

universal” alquímico que poderia dissolver qualquer substância, reduzindo-a em seus componentes primários. Ana é coordenadora do Projeto Temático, apoiado pela FAPESP, As complexas transformações da ciência da matéria: entre o compósito do saber antigo e a especialização moderna. Foi justamente fazendo pesquisas para o projeto, em Londres, que as pesquisadoras, após um intenso trabalho de busca, encontraram os documentos. “Fizemos questão de compartilhar esse achado com a Royal Society e, em meados do ano que vem, ao lado do professor Piyo Rattansi, do University College London, que nos ajudou na transcrição e análise da documentação, vamos apresentar os manuscritos redescobertos, bem como iremos publicar um artigo sobre esse achado na revista Notes and Records of the Royal Society”, conta Ana. Os textos já estão praticamente traduzidos pelas historiadoras, mas os originais permanecerão no acervo da sociedade científica britânica. “Quando apresentamos as nossas descobertas à direção da Royal Society o entusiasmo deles foi intenso, porque perceberam a importância desses papéis para a história da ciência e que, ainda assim, não haviam sido encontrados e estudados”, fala. “Esta é a única receita completa (com apenas uma ou outra palavra cifrada) encontrada do alkahest, e a partir desses documentos conheceremos ainda mais os ‘porões’ do que era a grande ciência feita naquela época.” O Cesima já possuía a coleção digitalizada dos documentos da

sociedade inglesa, o que facilitou muito o trabalho in loco, sem, entretanto, trazer à tona os agora encontrados. As pesquisadoras não levam ao pé da letra a idéia de um “solvente universal”. “Em termos modernos não é efetivamente um solvente, mas para as melhores cabeças científicas da época era o ápice do que se poderia entender como um solvente universal”, afirma Márcia. Elas tampouco estão interessadas em testar a descoberta num laboratório e nem sequer acreditam que isso seja realmente possível de ser feito, já que muitos dos materiais podem ter os mesmos nomes até hoje, mas não são os mesmos prescritos na receita. “Tentativas modernas de colocar em prática receitas alquímicas são, em geral, fracassadas, porque há uma série de fatores a serem levados em consideração. Quando uma receita pede, por exemplo, ‘excremento de morcego das cavernas da Mesopotâmia’, o que pode substituí-lo?” Segundo as historiadoras, a importância real da existência desses papéis é repensar, ainda mais e de forma documental, a crença de que a alquimia, baseada numa cadeia de mistérios, não resistiu à passagem para um universo racional, mecanicista, onde o mistério é inadmissível, tendo desaparecido por completo entre os séculos XVI e XVIII, dando lugar à química moderna, e se transformado em mera “figura poética”. “As idéias ditas alquímicas, sob outro nome, continuaram a intrigar grandes figuras que conhecemos como representantes da ciência moderna. Mesmo PESQUISA FAPESP 154

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tentou conseguir a fórmula do solvente. Para ele, o alkahest seria melhor do que o fogo, já que, ao contrário deste, que, no final da combustão, sempre reteria matéria nas cinzas, o alkahest separaria substâncias sem ser afetado por elas. O interesse do belga era medicinal: um tal solvente capaz de reter o prima entia dos corpos teria grandes poderes curativos, pois era um modo seguro e não destrutivo de obter as virtudes médicas dos “simples”. Para Van Helmont seria o remédio contra todas as doenças, mas apenas poderia ser conseguido como “um presente de Deus para alguém que merecesse essa graça”. Buscas incessantes e infrutíferas fizeram com que caísse no esquecimento e mesmo virasse motivo de piada entre químicos, que o viam como quimera alquímica. Apesar disso, nomes da ciência como Starkey, Glauber e mesmo Robert Boyle (The sceptical chymist) se interessaram pelo conceito solvente universal do belga e consideraram que ele poderia ser obtido.

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quando eles se diziam contrários a esses processos antigos, entre seus pares, ainda os aplicavam em seus trabalhos”, pondera a pesquisadora. “O bonito na história da ciência é justamente não haver uma razão única, mas várias ‘razões’ ao longo do tempo, muitas vezes convivendo juntas. A convivência entre a alquimia e a química perdurou até meados do século XIX, como uma segunda agenda, ‘secreta’, de figuras importantes como Newton, Boyle, Pascal, Boerhaave, entre outros.” A idéia do alkahest, ou de que seria possível conseguir um solvente universal que dissolvesse materiais e não 18

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fosse “marcado” por essas substâncias, tomou corpo a partir de uma citação vaga feita por Paracelso (1493-1541), em De viribus membrorum, onde, no capítulo sobre como curar as doenças do fígado, ele se refere ao solvente universal que preservaria o fígado e até mesmo poderia assumir suas funções se este estivesse comprometido. Durante os séculos XVII e XVIII a busca do alkahest se transformou numa febre entre os seguidores do médico suíço. Seu poder curativo interessou vivamente o médico belga Joan van Helmont (1579-1644), que, a partir da citação de Paracelso,

aí a relevância de se descobrir tais documentos e discussões numa instituição como a Royal Society, cujo lema, Nullius in verba, ressalta a vontade de estabelecer a verdade no domínio dos fatos, baseando-se somente na experiência científica. A prova documental de que houve um debate sério sobre o solvente universal dos alquimistas, que envolvia seus membros mais notáveis, como o primeiro-secretário da sociedade, Henry Oldenburg (1619-1677), e Jonathan Goddard, um de seus lentes mais proeminentes, coloca novamente em questão a continuidade da alqumia em plena idade da razão. De certa forma, isso até se reflete na história fantástica de como foi a descoberta desses manuscritos que, longe de mágica, foi, observa Ana, fruto de “uma boa hipótese e persistência canina” por parte das duas pesquisadoras. A “boa hipótese” eram as várias entradas no Minute book de 1661 da Royal Society que faziam referência ao interesse de seus membros na busca do “solvente universal”. Isso não era novidade, já que essas observações podiam ser lidas por qualquer um nos microfilmes digitalizados da biblioteca da sociedade. O que faltava achar eram os documentos aos quais elas faziam referência. Isso ninguém conseguiu descobrir. “Isso só reforça a importância, hoje

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pouco reconhecida, do trabalho direto sobre documentos originais das grandes bibliotecas, não cedendo à tentação mais cômoda provocada pela ilusão da tecnologia, que pode levar muitos pesquisadores a só pensar na existência daquilo que foi digitalizado.” Para estudiosos anteriores, o que não estivesse no catálogo digital não merecia ou não precisava ser pesquisado. Ana e Márcia, que não estavam em busca da tal receita, mas estavam interessadas em analisar os papéis de Goddard, sentiram que havia algo de curioso nos escritos, em especial os chamados “fundos fechados” do arquivo. “Há memórias que parecem tratados de química moderna, mas existem receituários com coisas estranhas que contrariavam o bom senso da ciência moderna, como ‘a prata que não é prata’ e assim por diante. Fomos, então, atrás dos documentos não publicados”, contam. Para complicar a busca, no catálogo on-line se havia grafado erradamente o composto como “alchahert”, o que impossibilitava achá-lo numa busca digital. As pesquisadoras também notaram que, na classificação dos arquivos, havia uma lógica especial, que era coerente com o pensamento do século XVII, mas que, por essa razão, poderia enganar o observador moderno. “Passamos, então, a pensar em procurar segundo os critérios que alguém daquele tempo usaria para guardar e catalogar suas informações.”

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O PROJETO As complexas transformações da ciência da matéria: entre o compósito do saber antigo e a especialização moderna

MODALIDADE

Projeto Temático COORDENADOR

ANA MARIA ALFONSO-GOLDFARB – PUC-SP INVESTIMENTO

R$ 678.511,91 (FAPESP)

para a audiência de médicos da Royal Society. Oldenburg, continuam os registros, designou Goddard para analisá-lo e fazer as observações necessárias sobre o texto apresentado. Este cumpriu a sua tarefa, observando os prós e os contras da possibilidade de aquele líquido ser o solvente universal e levou seu trabalho para uma nova reunião. E, para surpresa geral, nessa mesma reunião mencionase uma receita, esta sim do próprio alkahest, documento que as pesquisadoras também encontraram. A resposta de Oldenburg ao parecer de Goddard, trazida numa próxima reunião, ainda está desaparecida e as pesquisadoras acreditam que ela ainda será encontrada em novas investidas nos arquivos. Mas

elas já haviam encontrado, com trabalho árduo e inteligência, o que tantos pesquisadores, ao longo de séculos, não se deram ao esforço de buscar, apesar da sua importância. “No centro de tudo estava uma discussão fisiológica ligada às descobertas recentes e incipientes, feitas, em 1653, por Thomas Bartholin (e, ao mesmo tempo, por Olaus Rudbeck) sobre a existência do sistema linfático.” Não se sabia bem naquela época como entender a linfa e se pensava que, talvez, ela funcionasse como um “solvente universal”, capaz de dissolver o que não interessava ao corpo sem adquirir os traços do que consumira. Esse desconhecimento era perfeitamente natural: o sistema linfático só deixaria de ser precariamente compreendido apenas em 1746, quando William Hunter analisou a fundo o papel e a função dos vasos linfáticos. “Acreditava-se que o sistema linfático tinha essa função solvente, mas, como a hipótese não poderia ser testada no interior do corpo humano, era preciso uma receita para que se pudesse experimentar in vitro num laboratório”, explica Márcia. “Eles acreditavam piamente estar diante de um princípio universal, bem nos moldes do ideal universalista do século XVII. Então meia Europa procurava um solvente universal, enquanto a outra metade procurava entender o sistema em termos médicos. Eles, portanto, teriam reunido tudo naqueles doREPRODUÇÕES DO LIVRO O MUSEU HERMÉTICO: ALQUIMIA & MISTICISMO, DE ALEXANDER ROOB

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pista estava numa das minutas digitalizadas que trazia a observação intrigante: “Que se transcreva o texto de Goddard, para melhor leitura, e se guarde, com todo o cuidado, a receita do alkahest”. As historiadoras se concentraram, então, na busca dos registros perdidos da série de quatro reuniões que tiveram lugar na sociedade entre outubro e novembro de 1661. Resolveram que valeria a pena também manusear a papelada de Oldenburg. “Os bibliotecários ingleses ficavam curiosos e suspeitosos com aquelas duas brasileiras que pediam cada vez mais e mais documentos e arquivos”, lembra Ana. Naquele acervo, as duas pesquisadoras depararam com um manuscrito em latim que trataria “de um líquido animal análogo ao alkahest” e que, afirmam as minutas, teria sido lido pelo secretário PESQUISA FAPESP 154

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suas obras, ninguém menos do que o incansável pesquisador da fórmula do alkahest de Paracelso. Para as historiadoras, é possível estabelecer uma teoria e dessa forma fechar o círculo e entender o que aconteceu: Joan van Helmont teria feito uma receita de um “solvente universal” e seu filho a teria talvez entregue a Colhans, que, por sua vez, reproduziu um segundo documento ligando o alkahest à recente descoberta do sistema linfático. Tanto um quanto outro documento parecem ter sido repassados a Oldenburg. O secretário, de volta à Inglaterra, reuniu um grupo seleto e fez a leitura de ambos, incluindo a receita do famigerado alkahest, pedindo ao respeitável Goddard que desse o seu parecer sobre a real possibilidade do solvente. Goddard entregou suas considerações ao grupo, com sua terrível letra de médico: daí a recomendação de “se transcrever o documento, para melhor leitura e guardar, com cuidado, a receita do alkahest”. A persistência canina conseguiu reunirse à boa hipótese. Mas qual seria a razão de tanto segredo? Ao contrário do que se imagina, o motivo não seria a “vergonha”

de pesquisar com afinco “mistérios” da alquimia. “Tratados e receituários herméticos desse porte eram vistos, mesmo naqueles tempos mecanicistas, como segredos de Estado, já que traziam conhecimentos sobre como manipular metais e outros materiais com fins militares, medicinais ou mesmo para a produção de supérfluos caros como vitrais”, analisa Ana. Assim, a existência dos chamados “livros de segredos”, porque guardavam, literalmente, a sete chaves “segredos de ofícios”. Oldenburg, por exemplo, era reconhecido por seu talento em manter tais segredos e arrancá-los de outros sempre que possível.

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importante lembrar que a invenção da imprensa, por si, não garantiu a divulgação em massa do conhecimento científico, o que só ocorrerá no século XIX. Estamos falando de um saber que era dividido entre poucos, feito por poucos para poucos. Tratava-se de uma segunda agenda na pauta dos novos cientistas, entre os quais Isaac Newton.” Sir Isaac, aliás, é um caso exemplar que tem incomodado muitos historiadores da

REPRODUÇÕES DO LIVRO O MUSEU HERMÉTICO: ALQUIMIA & MISTICISMO, DE ALEXANDER ROOB

cumentos.” Mas como Oldenburg teria conseguido uma “receita” do alkahest? “Ele era um elo importante de uma cadeia de figuras geniais que, naquela época, discutiam entre si e em segredo temas como esses, pessoas como Spinoza, Huygens, entre outras, concentradas em especial nos Países Baixos e no que seria, mais tarde, a Alemanha. Oldenburg, alemão de nascimento, era a figura ideal para funcionar como o link britânico”, diz Ana. Foi numa viagem ao continente que o secretário encontrouse com um médico, seu amigo, chamado Colhans, um homônimo do astrônomo Johann Christopher Colhans. “Isso dificultou ainda mais e gerou mais confusão para encontrar os manuscritos, porque pesquisadores sempre pensaram que as referências feitas por Oldenburg a Colhans se referissem apenas ao astrônomo. Ele, no entanto, grafou o nome do médico com ‘C’ e do colega com ‘K’”, conta Márcia. O detalhe importante que fugiu a muitos por causa desse engano é que Colhans, médico, era amigo fraternal de Franciscus-Mercurius, filho de Joan van Helmont e editor póstumo de

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ciência desde que John Maynard Keynes, assim reza a lenda, teria comprado sua escrivaninha num leilão e encontrado, num fundo falso, escritos sobre alquimia, magia e religião. “A reação foi imediata. A história da ciência privilegiava apenas o conhecimento que tinha alguma relação com a ciência moderna e que, por ter evoluído, fazia parte do que merecia ser contado e investigado. A idéia de ciência estava estreitamente ligada à idéia de progresso, o que implicaria que, ao longo do tempo, os antigos ‘conheceram’ pior do que os medievais, e estes, pior do que os modernos”, analisa a pesquisadora. Segundo essa visão, continua, “não haveria espaço para entender os modos diferentes de ‘conhecer’ diferentes autores em diferentes épocas, todos muito diversos dos nossos e, ainda assim, válidos em seu próprio contexto”. “De fato, muitas das obras que geraram a ciência moderna parecem estar num limiar. Por um lado captavam muito dessa lógica totalizante dos saberes de vozes trazidas do passado. Por outro, iniciavam um contato com a nova cosmologia e as novas idéias que, certamente, iriam substituir

o antigo projeto de saber.” Eis aí a lógica da célebre frase de Keynes: “Newton não foi o primeiro da idade da razão, mas o último dos magos”. Isso não deve, entretanto, ser entendido literalmente, nem de forma sensacionalista, ressaltam as historiadoras, como se descobríssemos “pecadilhos” de cientistas. “Newton, por exemplo, transitou pelas ciências ditas ocultas, mas com objetivos pragmáticos e instrumental de pesquisador sério. Ele tinha um pé na alquimia e outro na ciência, abrindo possibilidades que os cientistas mais racionais não conseguiam enxergar”, observa Piyo Rattansi. “Pensamos nos parâmetros da ultra-especialização da nossa cultura. Newton utilizava todos os meios disponíveis em busca da verdade e do saber. O estudo da alquimia permitiu a ele elaborar conceitos revolucionários da ciência.” Para o pesquisador, que auxiliou as historiadoras brasileiras, a descoberta dos manuscritos revela um novo aspecto do debate ocorrido em meados do século XVII sobre a ligação entre o alkahest e o fluido linfático estudado por anatomistas da época, mais uma evidência de que era possível associar idéias tão diversas.

Portanto, a documentação do alkahest reafirma a necessidade de se levar em conta a continuidade de um pensamento alquímico que se julgava morto e pronto a dar lugar para a química moderna. Até mesmo porque o solvente universal, embora importante, não é o único caso de sobreposição de idéias a ser apresentado na Royal Society. “Poucos foram aqueles que, no século XVIII, realizaram um trabalho de experimentação química tão vigoroso como Hermann Boerhaave, que ajudaria a estabelecer um padrão experimental moderno”, lembra Ana. “Talvez, por isso, poucas vezes ele foi visto pelos estudiosos a não ser na ótica exclusiva do Iluminismo. Mas ele assentou investigações importantes sobre bases alquímicas tradicionalíssimas, ainda que sem perder de vista os parâmetros de seu próprio tempo.” Nas palavras do próprio Boerhaave: “Os alquimistas de épocas passadas, em contraposição aos químicos de agora, agiram muito mais sábia e corretamente”. Como notam as pesquisadoras, ele é um caso exemplar, mas não isolado, de como “experimentos” alquímicos foram traduzidos por muitas figuras importantes do tempo das luzes para um novo padrão experimental, mas, ainda assim, dentro de pressupostos muito próximos dos antigos alquimistas, que conviviam, na forma de uma segunda agenda, com a criação da nova ciência moderna. “Isso explica a permanência de antigas fontes na ciência do seiscentos e do setecentos em textos considerados até há pouco radicalmente modernos”, nota Ana. Os alquimistas continuam chegando. ■

> Artigos científicos 1. ALFONSO-GOLDFARB, A. M.; JUBRAN, S. A. C. Listening to the whispers of matter through Arabic hermeticism: New studies on the Book of the Treasure of Alexander. Ambix (Cambridge). v. 55, p. 99-121, 2008. 2. ALFONSO-GOLDFARB, A. M. ; FERRAZ, M. H. M. “Experiências” e “experimentos” alquímicos e a experimentação de Hermann Boerhaave. In: Ana Maria Alfonso-Goldfarb; Maria Helena Roxo Beltran. (Orgs.). O saber fazer e seus muitos saberes: experimentos, experiências e experimentações. São Paulo: Educ/ Editora Livraria da Física, 2006, p. 11-42. 3. PORTO, P. A.; Summus atque felicissimus salium: The medical relevance of the Liquor Alkahest, Bulletin of the History of Medicine. v.76, p. 1-29. 2002.

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ESTRATÉGIAS MUNDO

à inovação O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) concedeu ao Uruguai um empréstimo de US$ 34 milhões para impulsionar a inovação tecnológica em áreas como biotecnologia, ciência da informação e comunicações. O dinheiro será destinado a projetos vinculados a quatro linhas de ação. A primeira, responsável por 50% do total do empréstimo, destina-se a projetos de pesquisa e inovação dentro das empresas. A segunda vai financiar bolsas de estudo no exterior, para elevar a qualificação dos pesquisadores do país. A terceira linha de ação busca reforçar os serviços prestados por centros tecnológico e a quarta, estimular a avaliação das políticas públicas de ciência, tecnologia e inovação. “O objetivo é fortalecer a posição internacional do Uruguai para alcançar uma maior integração com a economia mundial”, disse Juan Carlos Navarro, chefe da equipe do BID que negociou o empréstimo, ao jornal uruguaio La Republica.

> Incerteza no Paquistão Atta-ur-Rahman, cientista que reformou o setor de ciência e tecnologia do Paquistão, deixou o cargo de chefe da Comissão de Educação Superior, 22

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Está concluída a primeira fase de construção do Observatório Pierre Auger, instalado em Malargüe, região semidesértica no oeste da Argentina. O encerramento dessa etapa marcou a inauguração oficial do observatório, que, antes mesmo de estar totalmente pronto, já vinha gerando dados científicos importantes. Projeto internacional que conta com a participação de 70 instituições de pesquisa de 17 países, entre os quais o Brasil, o Pierre Auger começou a ser construído no ano 2000. Seu objetivo é estudar a constituição e a origem dos raros e misteriosos raios cósmicos, que caem sobre a Terra como uma chuva de partículas energizadas. O Pierre Auger é o maior empreendimento dos físicos destinado a estudar o fenômeno. Até hoje não há consenso entre os pesquisadores sobre em que regiões do Cosmos essas partículas Espelho do observatório: raios raros energéticas se formam. Nessa etapa inicial foram investidos US$ 53 milhões. O Brasil endescontente com o trou com cerca de US$ 4 milhões, dos quais US$ 2,5 milhões contingenciamento de foram financiados pela FAPESP. Para flagrar os raios cósmicos, recursos para pesquisa. o observatório conta com um conjunto de 1.600 detectores de superfície espalhados por uma área de 3 mil quilômetros da proO governo deu à comissão apenas US$ 32 milhões dos víncia de Mendoza e 24 telescópios de fluorescência. A segunda US$ 56 milhões alocados fase do projeto contempla a construção um observatório irmão para 284 projetos, ameaçando do Pierre Auger no hemisfério Norte, nos Estados Unidos.

PIERRE AUGER É INAUGURADO

> Impulso

MIGUEL BOYAYAN

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a continuidade da pesquisa acadêmica. Alinhado ao ex-presidente Pervez Musharraf, que renunciou em agosto, Atta-ur-Rahman perdeu prestígio no novo governo e vinha sendo pressionado a deixar o cargo. Ele se tornou um grande aliado dos pesquisadores paquistaneses em 2002,

quando foi designado para a comissão e conseguiu elevar o orçamento anual das universidades de US$ 4,9 milhões para US$ 220 milhões atuais. “É uma grande perda para a ciência e a educação superior no país”, disse

Razina Alam Khan, presidente do Comitê de Ciência e Tecnologia do Senado paquistanês à agência SciDev.Net. O atual governo de coalizão do Paquistão, eleito em fevereiro, ainda não anunciou sua política de ciência e tecnologia.

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ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ

> Norte-americanos descobrem a China Um número recorde de norte-americanos está fazendo graduação e pós-graduação na China, segundo o relatório anual do Instituto de Educação

a língua local. Mas, com a importância que o país está conquistando, mais estudantes querem investigar o que está acontecendo na China do ponto de vista político e econômico”, disse Allan Goodman, presidente do IEE, ao jornal The New York Times. Com o crescimento, a China já se tornou o quinto destino mais freqüente de alunos norte-americanos, perdendo ainda para o Reino Unido, a Itália, a Espanha e a França.

> Estranho desinteresse inglês

Internacional (IEE, na sigla em inglês). No período 2006/2007, 11.064 alunos dos Estados Unidos estavam matriculados em instituições chinesas, 25% a mais que no ano anterior e oito vezes mais do que no ano acadêmico de 1995/1996. “Os jovens costumavam ir à China para estudar história ou

Uma pesquisa feita por encomenda da União Européia mostrou que os jovens do Reino Unido são os menos interessados em seguir carreira científica entre os 27 países-membros do bloco econômico. A metade dos irlandeses e 43% dos jovens ingleses declararam-se desprovidos de talentos para abraçar a carreira científica. No outro extremo do ranking, apenas 10% dos búlgaros e dos eslovenos disseram-se despreparados para a vida acadêmica. Cerca de 25 mil jovens com idades entre 15 e 25 anos foram

O primeiro satélite de comunicaO SILÊNCIO ções da África parou de funcionar DO SATÉLITE apenas 18 meses após seu lançamento. O NIGCOMSAT-1, que custou US$ 240 milhões ao governo da Nigéria, entrou em pane no dia 9 de novembro, devido a um defeito nos painéis solares. O jornal nigeriano ThisDay, citando fontes do governo, sugeriu que a baixa qualidade do material usado no satélite seria a causa do problema. O NIGCOMSAT-1 foi fabricado na China e teria uma vida útil de 15 anos. O satélite foi lançado em 2007 num clima de otimismo. Prometia impulsionar o desenvolvimento da África, levar as comunicações a comunidades rurais, além de servir como ferramenta para a pesquisa e o ensino a distância. “O dramático é que o governo investiu muito no satélite, em detrimento de gastos com educação e saúde”, afirmou à agência SciDev.Net Akin Soyinka, da entidade Nigeria Internet Watch.

entrevistados pela empresa Eurobarometer. O resultado preocupa o Reino Unido, cada vez mais dependente da presença de pesquisadores estrangeiros em seus laboratórios. Segundo um relatório de 2007, mais de um quinto dos alunos de pós-graduação em ciências

e engenharias vem de outros continentes e só 29% são britânicos. “Precisamos nos esforçar mais para entender o que entusiasma os jovens e como atraí-los para a ciência”, disse à agência BBC Diana Garnham, chefe do Britain’s Science Council. Para reforçar o interesse em assuntos científicos em todo o continente, a Comissão Européia está propondo a organização de um evento chamado Capital Européia da Ciência, que aconteceria anualmente em cada um dos 27 países. Um dos objetivos seria estabelecer elos entre a educação científica e o trabalho recente feito pelos pesquisadores.

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ESTRATÉGIAS MUNDO

NASA

O FUTURO DA ISS

O maior projeto de cooperação tecnológica internacional em termos de duração, custos e número de países participantes está completando dez anos, mas só agora deverá se dedicar com mais afinco à vocação de produzir pesquisa. A Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês), construída por um consórcio de 15 países a um custo estimado em US$ 100 bilhões, enfrentou uma série de percalços, de atrasos no fornecimento de peças a restrições orçamentárias – o pior deles foi a explosão do ônibus espacial Columbia, em 2003, que fez cessar por quase três anos as viagens norte-americanas à estação. Os astronautas do ônibus Endeavour, que esteve na estação no mês passado, começaram a traTripulantes da Endeavour trabalham na ampliação da estação balhar na ampliação do espaço físico da ISS, que, até junho, poderá abrigar até seis astronautas > Domínio por longos períodos, o dobro da capacidade atual. A ampliação Segundo ela, muitos dos países-membros da União promete ter impacto na produção científica da estação. Além de dos franceses Européia, que está haver mais astronautas em órbita, eles estarão menos ocupados A França está dominando com a montagem da ISS, cuja conclusão está prevista para 2010. bancando a Europeana, uma biblioteca digital mostraram-se céticos Nos últimos anos, com a competição por verbas para experiêncriada para oferecer em relação à iniciativa, mas cias espaciais e o espaço restrito na estação para realizá-las, conteúdos sobre a história, a ISS tornou-se um alvo constante de críticas da comunidade agora estão mudando de a literatura, as artes científica, principalmente nas áreas de cosmologia e física. idéia. O acervo irá combinar

e a ciência da Europa. Quando o site Europeana (www.europeana.eu) for aberto, em meados deste mês, a metade dos 2 milhões de páginas e documentos disponíveis será escrita em francês. “Até a queda do muro de Berlim vai ser ilustrada com imagens de um documentário da televisão francesa”, disse ao jornal The New York Times Viviane Reding, responsável pelo projeto. 24

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recursos digitais de museus e bibliotecas na forma de pinturas, mapas, vídeos e jornais. O material poderá ser baixado livremente pela internet e utilizado por pesquisadores, estudantes e o público em geral. O acervo vai incluir, por exemplo, a reprodução da Carta Magna da Grã-Bretanha, de 1215, e uma cópia da Divina comédia, de Dante. O projeto deve custar € 400 milhões.

> Machismo acadêmico Dirigentes acadêmicos da Índia ignoraram um conjunto de incentivos anunciados em março pelo governo da Índia para ajudar mulheres a conciliar a carreira científica com a vida familiar. No rol de propostas, destacaram-se a oferta de um horário de trabalho flexível para

mulheres com filhos e a construção de creches nos institutos. “Mas a apatia dos dirigentes na aplicação das propostas é absurda”, disse à agência SciDev.Net Vineeta Bal, membro da força-tarefa criada para aumentar a participação das mulheres na ciência. A situação, segundo ela, é mais complicada no estado de Kerala, de arraigados costumes patriarcais.

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ESTRATÉGIAS BRASIL

> País terá 101 novos centros de pesquisa O estado de São Paulo terá 35 dos 101 novos centros de produção científica e tecnológica de ponta instalados em todo o país por meio do Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia. Foi anunciada no dia 27 de novembro a lista dos projetos contemplados no programa, que investirá cerca de R$ 600 milhões na criação de centros temáticos de excelência incumbidos de fazer avançar o conhecimento em áreas vitais para o desenvolvimento do país ou em temas de fronteira nos quais a pesquisa nacional tem alto desempenho. O apoio da FAPESP permitiu a duplicação dos recursos federais dirigidos a São Paulo para criação de institutos no estado. Por meio de termo de cooperação firmado entre a FAPESP e o CNPq serão investidos R$ 187.166.343, divididos igualmente entre as duas instituições para o apoio aos 35 projetos selecionados. A Fundação também propôs que as duas instituições aprovassem valores adicionais de R$ 25 milhões em razão da qualidade das propostas verificada durante o processo de análise. “É muito positiva a iniciativa do MCT e do CNPq com o Programa dos Institutos Nacionais de C&T. A colaboração com a FAPESP deu-se de forma muito construtiva e o CNPq fez um excelente trabalho na

operacionalização do processo de seleção, usando assessores internacionais e um comitê de seleção de primeira linha”, disse Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. “Os institutos selecionados estimularão a produção científica paulista e brasileira, o desenvolvimento de aplicações e a formação de estudantes. Como característica especial, ao lado da excelência, está a colaboração científica entre grupos de pesquisa de várias regiões do país”, afirmou. O programa é coordenado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/MCT), em parceria com a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o Ministério da Saúde, a Petrobras, o BNDES

e seis fundações estaduais de amparo à pesquisa, entre as quais a FAPESP. O valor é o maior destinado a uma chamada pública para apoio à pesquisa no Brasil. A Região Norte sediará oito institutos,

a Nordeste, 14; a Centro-Oeste, 3; a Região Sul, 13; enquanto no Sudeste, onde o aporte chega a R$ 319 milhões, abrigará 63 unidades. A lista completa está disponível no site do CNPq (www.cnpq.br).

Seis universidades se uniram para criar um laboratório virtual voltado para treinar estudantes e pesquisadores na construção e no uso de sistemas computacionais interligados. Batizado de Grid Educacional, o projeto aproveita a infra-estrutura comum de processamento de dados das seis instituições: as universidades Estadual Paulista (Unesp), de São Paulo (USP), Estadual de Campinas (Unicamp), Federal do ABC (UFABC) e Federal de São Carlos (UFSCar), além da Universidade Internacional da Flórida, nos Estados Unidos. Os equipamentos utilizados pelo projeto foram doados pelas empresas Intel, Kingston, Seagate e SGI, e a importação do maquinário foi financiada pela FAPESP. Coordenado pelo Centro Regional de Análise de São Paulo (Sprace), localizado no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), o projeto prevê a instalação de dois servidores em cada uma das seis instituições de ensino. “A área de processamento de alto desempenho é relativamente nova e ainda conta com pouquíssima capacitação no Brasil”, disse Sérgio Ferraz Novaes, coordenador do Sprace e professor da Unesp.

LABORATÓRIO VIRTUAL

LAURABEATRIZ

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ESTRATÉGIAS BRASIL

A astrofísica Beatriz Barbuy, professora do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG/USP) e vice-presidente da União Astronômica Internacional (IAU), foi agraciada com dois prêmios importantes. Em meados de outubro, foi à Itália receber o Trieste Science Prize, concedido anualmente pela Academia de CiênBeatriz Barbuy em Trieste, onde recebeu o prêmio da TWAS cias do Mundo em Desenvolvimento (TWAS), em reconhecimento a aproveitado a oportunidade contribuições à astrofísica e por ampliar o conhecimento sobre e realizem novas parcerias a evolução da composição química das estrelas. O outro contemde estudo. E seria melhor plado foi o físico indiano Roddam Narasimha. Cada um recebeu US$ 100 mil. E, no início de novembro, Beatriz foi uma das cinco ainda se fossem geradas novas perguntas científicas agraciadas com o Prêmio L'Oréal-Unesco 2009, que todos os que permitam o trabalho anos distingue cinco mulheres de notável contribuição à ciência. Também foram laureadas Athene M. Donald, da Universidade de conjunto de físicos, geógrafos e biólogos”, Cambridge, na Inglaterra, Eugenia Kumacheva, da Universidade de afirmou. Outro objetivo, Toronto, no Canadá, Akiko Kobayashi, da Universidade Nihon, no Japão, e Tebello Nyokong, da Universidade de Rhodes, na África segundo a pesquisadora, do Sul. Além do prêmio, cada vencedora receberá US$ 100 mil. é criar espaços onde os

TWAS/MASSIMO SILVANO

DUPLO RECONHECIMENTO

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> Integração na Amazônia Mais de mil pesquisadores reuniram-se em Manaus, entre 17 e 20 de novembro, na Conferência Internacional Amazônia em Perspectiva para discutir formas de integração dos três grandes programas que estudam o bioma da Amazônia: o Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), a Rede Temática em Modelagem Ambiental da Amazônia (Geoma) e o Programa de Pesquisa em Biodiversidade (PPBio). “Se vamos integrar a Amazônia como entidade viva, precisamos articular esses programas”, afirmou Rita Mesquita, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordenadora da conferência. “Esperamos que os cientistas tenham 26

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cientistas possam ser ouvidos pelos formuladores de políticas públicas e também consigam compreender a demanda de conhecimento da sociedade. “Esse espaço ainda não existe em nenhum dos três programas”, disse.

> A memória da ditadura Pesquisadores interessados em documentos sobre o período da ditadura militar (1964-1985) poderão ter acesso, pela internet, a parte

do acervo do Arquivo Geral do extinto Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops). O Arquivo Público do Estado de São Paulo, que detém esse acervo, deu início à sua participação no projeto Memórias Reveladas – Centro de Referência das Lutas Políticas, coordenado pelo Arquivo Nacional. O objetivo do projeto é colocar à disposição do público, pela internet, registros documentais sobre as lutas políticas no Brasil

durante a ditadura. A participação paulista na primeira fase do projeto terá duração de oito meses. Entre as atividades previstas está a microfilmagem de 2 mil pastas com dossiês. O projeto prevê ainda a digitação de 420 mil fichas temáticas do Arquivo do Deops. Nessa fase, apenas essas fichas poderão ser consultadas pelo público. São Paulo mantém registros do Deops abertos para consulta pública desde o início da década de 1990.

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INPE

Um livro que detalha as perspectivas da produção de etanol e de outras energias renováveis foi lançado pela Secretaria de Desenvolvimento do governo paulista. Intitulada Bioenergia no estado de São Paulo, a publicação aborda o histórico da produção de bioenergia no estado e a importância de São Paulo no setor, que é responsável por 60% da produção de etanol no Brasil, além dos benefícios ambientais. Também são explorados os principais entraves ao desenvolvimento da bioenergia, como a ausência de um mercado internacional, e sugeridas políticas públicas para aumentar a produção e garantir sua sustentabilidade. O livro foi organizado pelo físico José Goldemberg, coordenador da Comissão de Bioenergia do Estado de São Paulo, em parceria

> Apoio a empresas nascentes

A obra: disponível na internet

com o pesquisador do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), Francisco Nigro, e com a secretária executiva do Centro Nacional de Referência em Biomassa, Suani Coelho. O conteúdo da publicação teve origem em oito seminários técnicos conduzidos pela comissão, que contaram com mais de 500 participantes e discutiram 14 temas. A obra está disponível para download no endereço www desenvolvimento.sp. gov.br/noticias//files/livro_ bioenergia.pdf

A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) lança neste mês um novo programa de recursos não reembolsáveis. O alvo agora são projetos considerados criativos e originais abrigados em incubadoras tecnológicas. Poderão inscrever-se empresas com até dois anos de existência. O Programa Primeira Empresa Inovadora (Prime) vai oferecer R$ 120 mil a cada empreendedor selecionado. “A intenção

é permitir que boas idéias floresçam”, disse Eduardo Moreira da Costa, diretor de Inovação da Finep. Numa primeira etapa, 18 incubadoras de todo o país, que serão responsáveis regionais pelo programa, selecionarão os 2.005 contemplados. Num segundo momento, cada empresa poderá pleitear outros R$ 120 mil, que deverão ser usados na preparação da comercialização do produto. Mas o dinheiro será fornecido na forma de empréstimo sem juros, a ser pago em cem prestações.

EXEMPLO DO INPE

da bioenergia

EDUARDO CESAR

> Diagnóstico

Uma tese de doutorado defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) debruçou-se sobre as quase cinco décadas de trajetória do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e procurou responder à pergunta: como o Inpe conseguiu se consolidar apesar dos percalços sofridos pelo programa espacial brasileiro, disputado por militares e civis, e as mudanças políticas e econômicas que o país viveu desde os anos 1960? A conclusão do autor da tese, o sociólogo Guilherme Reis Pereira, é que o Inpe conseguiu estabilidade ao diversificar suas atividades, ao integrar a pesquisa ambiental com a espacial e ao obter recursos atendendo a demandas científicas, sociais, econômicas e de proteção ambiental. “Foi um meio de justificar a sua existência. A cooperação com instituições nacionais e internacionais trouxe recursos financeiros e humanos”, afirmou Pereira, cuja tese foi orientada por Leda Maria Caira Gitahy, do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) da Unicamp. Segundo ele, a criação em 1985 do Ministério da Ciência e Tecnologia, ao qual o Inpe é vinculado, foi fundamental para a retomada da cooperação internacional, permitindo, por exemplo, o desenvolvimento dos satélites de sensoriamento remoto em A construção do satélite Cbers 2: cooperação parceria com a China. PESQUISA FAPESP 154

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>

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

BIOCOMBUSTÍVEIS

A força da colaboração Conferência internacional discute tecnologias e políticas públicas para produção de etanol Marcos de Oliveira

O

reconhecimento do desenvolvimento brasileiro na produção de etanol de cana-de-açúcar e as discussões e perspectivas da extração desse combustível do bagaço de cana e de outros tipos de biomassa marcaram os debates sobre ciência e tecnologia na Conferência Internacional sobre Biocombustíveis realizada em São Paulo, em novembro. Organizado pelo Ministério das Relações Exteriores, o evento apresentou um consenso sobre a necessidade de mais pesquisa e inovação para melhorar a primeira geração de etanol, feita da fermentação e da destilação da cana ou do milho. A segunda geração de biocombustíveis, que possui sugestões de várias rotas tecnológicas para extrair álcool do bagaço ou de outro tipo de biomassa formada de celulose, ainda deve demorar alguns anos para se tornar comercial. “Existe uma tendência de acreditar que a segunda geração é melhor que a primeira, embora ela se mostre mais complicada. Ainda temos que melhorar muito a primeira geração”, disse o professor Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, na sessão especial “O papel da pesquisa científica na área de biocombustíveis”, coordenada pela Academia Brasileira de Ciências. “As usinas de cana-de-açúcar ainda não utilizam o conhecimento da genômica, por exemplo, para melhorar a produtividade das lavouras.” Para Brito Cruz, os biocombustíveis de segunda geração podem ser úteis ao Brasil, mas são mais importantes em países que não têm as mesmas condições climáticas e territoriais. Richard Murphy, especialista em bioenergia do Imperial College de Londres, na Inglaterra, que trabalha com fungos que degradam celulose, disse que o importante é que as soluções encontradas tenham processos sustentáveis e ajudem a reduzir as emissões de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera. “Estamos estudando a primeira e a segunda gerações, mas já sabemos que a pri-

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meira depende do rendimento do solo por hectare (ha), levando-se em conta as condições climáticas”, disse Murphy. “A produção de trigo no Reino Unido, por exemplo, onde foi inaugurada recentemente uma fábrica de etanol com parte desse cereal que seria usada como ração, é de 700 toneladas por hectare (ton/ha), enquanto na África Oriental é de 1 ton/ha e na Ucrânia e no Cazaquistão chega a 3,5 ton/ha. Então é preciso melhorar as condições agrícolas e de infra-estrutura para aumentar o rendimento onde é preciso.” Para Murphy, não se pode descartar nenhuma experiência porque os dados ainda são referentes a poucos anos. Ele cita o exemplo do milho nos Estados Unidos. “Segundo informações que tenho dos estados de Iowa e Nebrasca, os níveis de CO2 diminuíram 50% em relação ao uso de combustíveis fósseis. É uma grande mudança.” Para Brito Cruz, cada país deverá escolher a matéria-prima mais adequada para a sua agricultura no âmbito da produção de biocombustíveis. Outro participante da conferência que reuniu delegações de 92 países foi o sudanês Mohamed Hag Ali Hassan, presidente da Academia Africana de Ciências e diretor executivo da Academia de Ciências para o Mundo em Desenvolvimento (TWAS, na sigla em inglês). Ele disse que cabe à ciência e tecnologia ajudar o desenvolvimento

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de culturas para biocombustíveis sem concorrer com alimentos. “Na África existem muitas áreas degradadas que poderiam ser aproveitada para produção de etanol”, disse Hassan. Mas a implementação das novas áreas passa pela efetivação de políticas públicas. “Muitos políticos estão sedentos por informações corretas sobre o que pode ser feito para a produção de biocombustíveis sem prejudicar o ambiente”, lembrou Murphy. “Nós precisamos auxiliar os gestores de políticas a entenderem melhor as opções que temos nessa área”, disse. Para Hassan é preciso ter políticas claras de cada governo para combustíveis de biomassa e as academias de ciência deveriam colaborar nesse sentido. Até agora só se conhece bem a experiência brasileira de produção de etanol, segundo Hassan. “Precisamos ver outros países e ampliar o que se conhece no âmbito global.” Depois de assistir à palestra de Brito Cruz, que expôs a pesquisa científica em São Paulo – do seqüenciamento dos genes expressos do genoma da cana (Sucest), iniciado em 1999, até o recente Programa de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) da FAPESP, além dos números da produção brasileira de etanol –, Hassan elogiou a bem-sucedida experiência em pesquisa e desenvolvimento do estado de São Paulo e sugeriu a criação de um centro internacional de pesquisas em

biocombustíveis no Brasil. “Seria para treinamento não só de brasileiros, mas também para cientistas e fazedores de política da África, por exemplo. Seria uma oportunidade para participarmos dessa transformação”, disse Hassan (leia entrevista na página seguinte). No dia seguinte, durante a conferência “Biocombustíveis e inovação: pesquisa e desenvolvimento, biocombustíveis de primeira e segunda geração; oportunidades para a ciência e tecnologia”, Hassan voltou a falar da palestra de Brito Cruz e da sugestão para se formar um centro internacional de excelência em biocombustíveis no Brasil que tivesse a participação da FAPESP. “Foi fascinante ver o que se faz aqui”, disse Hassan. Ele voltou a falar também do papel das academias de ciência no aconselhamento de governos mostrando vantagens e desvantagens de tudo o que se refere aos combustíveis não fósseis, do plantio à produção. O professor José Goldemberg, pesquisador do Centro Nacional de Referência em Biomassa do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (IEE/USP) e coordenador da Comissão de Bioenergia do Estado de São Paulo, disse que um centro de pesquisa em biocombustíveis está sendo criado no estado de São Paulo e deve agregar as três grandes universidades paulistas, USP, Unicamp

e Unesp, com recursos que devem chegar a US$ 100 milhões. “Esse centro em São Paulo pode fazer parte desse instituto internacional proposto pelo professor Hassan. Poderemos desenvolver tecnologia que interesse a todos”, disse Goldemberg. Ele falou também da esperança depositada na segunda geração de biocombustíveis. “É um sonho de todo mundo fazer etanol com o bagaço, que é um polímero de sacarose, o problema é quebrar o polímero e extrair a sacarose. Eu considero que a tecnologia que pode resultar em bons resultados é a gaseificação da biomassa.” Esse processo se refere à transformação em gás de qualquer tipo de biomassa, desde o bagaço e a palha da cana (leia matéria na página 94), resíduos do arroz, da soja e de outros produtos agrícolas. “Esses gases são usados até para produzir diesel.” Para a química brasileira Helena Chum, há 30 anos radicada nos Estados Unidos e atualmente pesquisadora do Laboratório Nacional de Energias Renováveis (NREL, na sigla em inglês), é preciso um esforço entre os países para comparação de dados analíticos, índices e custos sobre a produção de biocombustívies em todos os processos. “É preciso um sistema de colaboração se quisermos transformar os biocombustíveis em commodities e um intercâmbio de pesquisadores para a caracterização desses produtos”, disse Helena. ■ PESQUISA FAPESP 154

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Um centro do Brasil para o mundo Marcos Pivet ta

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m sua visita ao Brasil para participar de um evento sobre biocombustíveis, o diretor executivo da Academia de Ciências para o Mundo em Desenvolvimento (TWAS, na sigla em inglês), Mohamed Hassan, defendeu a implantação em São Paulo de um centro internacional de pesquisa nessa área. Nesta entrevista, o físico sudanês, de 61 anos, que mora em Trieste, na Itália, onde fica a TWAS, dá mais detalhes sobre a proposta: Como o senhor imagina que poderia ser esse centro internacional para estudo de biocombustíveis em São Paulo? — Essa idéia surgiu ao olhar para a pesquisa feita no mundo em biocombustíveis. O Brasil e os Estados Unidos são responsáveis por cerca de 70% dos artigos científicos publicados em revistas científicas internacionais dessa área. Talvez os Estados Unidos publiquem um pouco mais, mas o Brasil publica muito também. Vi também que o estado de São Paulo é muito forte em pesquisa (não só em biocombustíveis, mas na ciência como um todo) e responde por 40% de toda a pesquisa brasileira. Isso também me encorajou muito a fazer essa proposta. Para promover uma colaboração internacional na área de pesquisa e planejamento de biocombustíveis, temos de procurar um dos melhores centros que já existem no mundo nessa área. Me parece que o estado de São Paulo tem toda a capacidade de transformar um centro de pesquisa em biocombustíveis numa instituição internacional, de atuação global. ■

Como funcionaria esse centro internacional? — Há muitos modelos de construção de centros internacionais.

Mas o mais importante é que o governo ou estado onde ficasse esse centro teria de prover o grosso de suas despesas, mais ou menos como acontece aqui na Itália. Em Trieste, por exemplo, onde estou, há um centro internacional de física teórica e a Itália banca cerca de 90% das despesas. O resto do dinheiro vem de organizações internacionais. O centro funciona debaixo de um guarda-chuva internacional. Nós aqui na TWAS estamos debaixo da Unesco (que gerencia os fundos e o pessoal da academia). Então, a primeira coisa de que precisaríamos é o apoio do governo local, o que tenho certeza não será difícil no caso de São Paulo. Depois teríamos de ter uma organização internacional para atuar como um guarda-chuva do centro. Isso é algo que precisaria ser discutido com várias organizações internacionais, inclusive a Unesco. O mais importante é a forma de funcionamento do centro, que deveria fornecer financiamentos e bolsas para pesquisadores extremamente talentosos de fora do Brasil, sobretudo de países relativamente pobres. Esses pesquisadores iriam para o Brasil de-

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Mohamed Hassan: biocombustível para a África

senvolver pesquisa e expertise na área de biocombustíveis. Depois voltariam para seus países de origem para disseminar seu conhecimento. Desse jeito, o Brasil também se beneficiaria porque é uma forma muito boa de atrair ótimos alunos para o país, e o Brasil é líder mundial em biocombustíveis. ■ Quanto dinheiro precisaria ser investido num centro assim? — A partir das experiências que já tivemos, estimo que sejam necessários cerca de US$ 20 milhões por ano.

Mas no início do projeto seria necessário investir uma quantia extra para criar o centro? — Claro. Mas o Brasil precisaria investir pouco dinheiro se optasse por transformar um centro que já existe numa instituição internacional. Nesse caso, não seria preciso investir em instalações e infra-estrutura, pois tudo isso já existe. Outra alternativa seria criar um centro totalmente novo. A Embrapa, por exemplo, poderia fazer um novo centro em biocombustíveis. Nesse caso, o investimento inicial seria maior, sem dúvida. ■

■ Como o senhor avalia a produção de etanol no Brasil? — Com certeza, a experiência do Brasil nesse campo é única. É algo muito bem-sucedido em termos econômicos e, ao mesmo tempo, é bom para o meio ambiente. Mas não sabemos se essa experiência pode ser replicada em outros países. Para isso, precisamos justamente de mais pesquisas. Não é tão fácil para outros países reproduzir o que o Brasil fez. Talvez a experiência brasileira precise ser adaptada a diferentes formatos ou poderíamos pensar numa segunda geração de

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biocombustíveis usando tipos distintos de plantas. Na conferência de São Paulo recomendamos que para lugares como a África, que tem grandes áreas de terra negligenciadas ou situadas em desertos, poderíamos tentar usar essas regiões para produzir biocombustíveis. Mas seria preciso muita pesquisa para encontrar plantas capazes de crescer em ambientes difíceis, onde não há muita água. Na África precisaremos de plantas capazes de crescer em lugares assim. Há alguma pesquisa desse tipo sendo feita, mas não numa escala muito grande. Usar o milho (para produzir etanol), como fazem os Estados Unidos, é um problema, não é útil para os países em desenvolvimento. Usar as áreas hoje negligenciadas pela agricultura para produzir biocombustíveis é uma questão que deveria ser prioridade para a África.

Parece-me que o estado de São Paulo tem toda a capacidade de transformar um centro de pesquisa em biocombustíveis numa instituição internacional, de atuação global

■ O senhor acredita que a cana-de-açú-

car poderia ser usada para produzir biocombustíveis em alguma parte da África ou essa hipótese está fora de questão? — No momento não vejo como isso poderia ser feito. A cana necessita de um ambiente especial, com grandes quantidades de água. Ela não teria viabilidade comercial. Acho que o melhor seria apostar em outras plantas, como arbustos, que têm o benefício de fixar o solo, parar a erosão e podem ser úteis para a produção de biocombustíveis. Essa deve ser a melhor forma de investir nesse campo para países que não têm abundância de água como o Brasil. Se escolhermos outro caminho, receio que possa haver problemas na produção de alimentos. Não estou dizendo que toda a África deve seguir esse caminho. Em algumas partes, como o sul da África, talvez haja alguma viabilidade de se plantar cana, mas é algo localizado.

nesse setor. O Brasil deveria agarrar essa oportunidade para tornar a pesquisa em biocombustíveis mais global do que é hoje. No longo prazo, também seria bom para o Brasil do ponto de vista econômico. Se o Brasil formar gente especializada nesse campo e estabelecer parcerias no exterior, esses especialistas voltarão um dia para seus países e mostrarão a seus governos a importância dos biocombustíveis. No longo prazo, não apenas a pesquisa em biocombustíveis floresceria, mas também empresas no setor. Isso ajudaria a economia do Brasil e do mundo como um todo. Como ficou claro na conferência de São Paulo, os governos estão interessados na área. Mas eles precisam de um líder. Com a crise econômica mundial, o preço do petróleo caiu e algumas pessoas dizem que uma recessão global pode postergar a discussão sobre biocombustíveis e mudanças climáticas. Qual a sua opinião sobre essa questão? — Quem pensa assim tem visão curta sobre os biocombustíveis e as mudanças climáticas. No longo prazo, quando se calcula o preço do petróleo, deve-se levar também em conta o preço que o meio ambiente paga por essa escolha. Os estragos ao meio ambiente também deveriam ser incluídos no preço do ■

Há pesquisa em biocombustíveis na África? — Eu diria que deve haver apenas dois ou três pesquisadores africanos especializados em biocombustíveis. A ajuda do Brasil é para nós, africanos, muito importante nessa área. Por isso, realmente precisamos desse centro internacional no Brasil. O centro também beneficiaria os países avançados, inclusive os europeus, que não têm muita pesquisa na área. É uma oportunidade para o Brasil ser líder em treinar gente ■

petróleo. O mundo está vivendo uma crise econômica, mas o pior será o número de pessoas que ficará sem emprego por causa dela, na Europa, nos EUA, em todo lugar. Uma das vantagens dos biocombustíveis será a criação de muitos empregos. Imagine quantas áreas onde hoje não há cultivos, sobretudo na África por causa da aridez, poderão ser usadas para plantar espécies destinadas à produção de biocombustíveis. Essas áreas vão precisar de milhares e milhares de trabalhadores – e isso será bom para a economia desses países. Além disso, o petróleo não durará para sempre. Temos de procurar por alternativas que sejam renováveis como a energia do sol. ■ O Brasil poderia abrigar centros inter-

nacionais de pesquisa em outras áreas? — O país poderia ter um centro em outra área de energia renovável, até em energia solar. Hoje não há nenhum centro internacional nesse campo, que poderia pesquisar a conversão direta da energia solar em eletricidade. As ciências espaciais também são um setor de ponta no Brasil, como é na China e na Índia, onde a colaboração internacional é muito necessária. ■ A cooperação científica entre países em

desenvolvimento está aumentando? — Há cerca de 25 anos, quando a TWAS começou a trabalhar essa questão das cooperações Sul-Sul, as colaborações entre os países em desenvolvimento eram muito pequenas e invisíveis. Mas havia uma explicação para essa situação: naquele tempo, a ciência nos países em desenvolvimento, mesmo nos grandes, como China, Índia e Brasil, não era muito forte. Hoje a situação mudou. Se olharmos para o globo atualmente veremos que há universidades no Brasil, na China, na Índia, com o mesmo nível de qualidade de instituições da Europa e Estados Unidos. Encontramos universidades de nível mundial nesses países. Talvez a pesquisa feita nelas ainda seja um pouco inferior ao que se encontra nos países desenvolvidos, mas a educação é do mesmo nível. Também há da parte dos governos desses grandes países em desenvolvimento – e eu também incluiria o México nesse grupo – o compromisso de promover a cooperação Sul-Sul na área científica e tecnológica. ■ PESQUISA FAPESP 154

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PARCERIA

Cálculos partilhados Metade do tempo de computador de alto desempenho da Unicamp foi utilizada por pesquisadores de outros estados

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de processamento três vezes superior, financiado pelo governo federal. Segundo Edison Zacarias da Silva, sem a aquisição feita em 2006 teria sido comprometida a realização, nos últimos três anos, de simulações computacionais em áreas como física, química, biologia, engenharia, matemática e genômica. “Nossas máquinas estavam ficando obsoletas, assim como as dos demais Cenapads espalhados pelo Brasil e que formam o Sistema Nacional de Computação de Alto Desempenho (Sinapad), e o governo federal, ao qual somos vinculados, não proporcionou recursos naquela época para atualizar os sistemas”, afirma o professor. Sete Centros de Alto Desempenho compõem o Sinapad, ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT)

e à Rede Nacional de Pesquisa (RNP). “Graças à ajuda da FAPESP, o Cenapad de São Paulo ficou em situação mais favorável e por isso tornou-se referência para pesquisadores de outros estados”, observa. O centro abrigou no período o maior parque computacional voltado para a pesquisa no Brasil. Para ter uma idéia da importância da máquina financiada pela FAPESP, até abril passado o quinhão de tempo utilizado pela USP chegou a 42% do total – esse porcentual só foi reduzido agora porque o novo sistema, aquele com capacidade de processamento três vezes superior, entrou em funcionamento há poucos meses e os pesquisadores da USP começaram a usar mais esse novo equipamento. A USP também se beneficiou do Programa de Equipamentos Multiusuários

Multiusuários Em porcentagem, a distribuição por estado das instituições que utilizaram o computador financiado pela FAPESP...

14,31% 4,68% 0,83%

0,33%

0,35%

4,11%

0,01% 0,01%

... e o uso da máquina por área de conhecimento

0,05% 9,00% 3,79%

0,30%

49,19% 0,24% 12,81%

2006 - 30/08/2008

Física Química Engenharia Biologia Matemática Computação

Tempo CPU (%) 87,7 7,2 3,5 0,8 0,2 0,2

FONTE: CENAPAD SÃO PAULO – PERÍODO DE 23/12/2005 A 30/08/2008

C

om três anos de operação, um sistema computacional adquirido em 2006 pelo Centro Nacional de Processamento de Alto Desempenho em São Paulo (Cenapad-SP), em Campinas, encarna uma história de sucesso. A máquina, financiada pela FAPESP, tornou-se largamente utilizada por pesquisadores de vários lugares do Brasil: nada menos de 50% do tempo de uso do sistema até agosto de 2008 foi dedicado a cálculos feitos por pesquisadores de outros estados, com destaque para o Rio Grande do Sul, Ceará, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Maranhão. A outra metade do tempo da máquina, que está abrigada na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), foi partilhada com instituições paulistas. Grupos da Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, utilizaram 31,87% do tempo do equipamento. A Unicamp ficou em segundo lugar, com 11,14% do tempo, seguida pelas universidades Federal de São Carlos (UFSCar), com 2,25%, Estadual Paulista (Unesp), com 2,06%, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com 0,99%, e, por fim, a Universidade Federal do ABC (UFABC), com 0,88%. “O investimento feito pela FAPESP rendeu frutos em vários lugares do Brasil”, diz Edison Zacarias da Silva, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp, e coordenador do Cenapad-SP. A aquisição foi feita por meio do Programa de Equipamentos Multiusuários da FAPESP e custou US$ 390 mil. O balanço da atividade é oportuno porque a máquina acaba de cumprir seu ciclo de operação mais importante. Recentemente, ela começou a funcionar acoplada a um equipamento ainda mais moderno, com capacidade PESQUISA FAPESP 154

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> da FAPESP: em 2007, o Centro de Computação Eletrônica da universidade recebeu um supercomputador IBM PowerPC 970 que, à época, se tornou o primeiro de uso acadêmico do país a entrar no Top 500, ranking dos computadores mais potentes do planeta. Dotado de 448 processadores que operam em conjunto, possibilita um desempenho de 2,9 trilhões de operações por segundo (teraflops). Fila - A máquina do Cenapad-SP

financiada pela FAPESP, fornecida pela Silicon Graphics Inc. (SGI), é um sistema composto de 70 processadores, com capacidade de processamento de 420 gigaflops. A demanda científica para cálculos de alto desempenho no Brasil é enorme e o tempo médio de espera na fila do Cenapad da Unicamp gira em torno de cinco dias. O parque computacional é utilizado remotamente. Por meio da internet, pesquisadores cadastrados podem submeter, a partir de seus computadores pessoais, cálculos de suas pesquisas, cujos resultados de novo podem ser vistos, recolhidos e analisados pelos pesquisadores em suas instituições. Quando os cálculos terminam, o pesquisador recebe um e-mail automático informando. A maior parte do tempo das máquinas do Cenapad é utilizada por físicos, em particular para a resolução de problemas em nanociência. No caso do sistema adquirido em 2006, pesquisadores da área de física foram responsáveis por 87% do uso da máquina, seguidos pelos da área de química (7,2%), engenharia (3,5%), biologia (0,8%), matemática (0,2%) e computação (0,2%). Os pesquisadores apresentam relatórios anuais onde prestam contas sobre a produção acadêmica associada ao uso dos sistemas do Cenapad. Em três anos, a máquina propiciou 211 trabalhos publicados em revistas internacionais, 187 trabalhos divulgados em congressos internacionais, 13 teses de doutorado e 16 dissertações de mestrado. ■

Fabrício Marques

ECONOMIA

Mudanças à vista A busca de eficiência energética pode ajudar a amenizar os impactos de climas extremos no Brasil

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o Brasil as transformações do clima podem redefinir o trajeto e o fluxo de rios, reduzindo a capacidade de produzir energia elétrica. Podem também diminuir a produção agrícola e o abastecimento de água, ampliando as áreas de alcance de doenças como a malária, e levar a Floresta Amazônica ao colapso, alertou o economista Nicholas Stern, coordenador do Relatório Stern no workshop Avaliação do Relatório Stern, realizado no dia 3 de novembro passado na FAPESP, como parte do Programa Fapesp de Pesquisa em Mudanças Climáticas Globais, com apoio da embaixada britânica. Apresentado em 2006, o relatório analisa os impactos econômicos das mudanças climáticas e estima que um investimento equivalente a 1% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial poderia evitar perdas próximas a 20% do PIB em 50 anos. “Risco ignorado é potencialmente risco ampliado”, disse Stern, conselheiro do governo britânico que nos dias seguintes ao workshop esteve à frente de seminários também na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e no Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) em Brasília. Ele acredita que seja possível conciliar as medidas de adaptação às mudanças climáticas com políticas nacionais de desenvolvimento econômico. “As adaptações para melhorar a eficiência energética têm grande potencial para gerar renda e trabalho, além de representar uma fonte de energia”, comentou. “A eficiência será o principal motor do processo de recuperação, assim como o desenvolvimento de tecnologias limpas.” Um grupo de economistas brasileiros trabalha com cientistas, desde junho de 2007, para delimitar com precisão os

possíveis impactos das mudanças climáticas sobre agricultura, produção de energia, uso da terra, recursos hídricos, biodiversidade e saúde humana no país. Os resultados devem ser apresentados em junho do próximo ano, anunciou Jacques Marcovitch, professor da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do estudo Economia das mudanças climáticas no Brasil. “Esse trabalho pode representar uma oportunidade de construir o futuro”, disse Marcovitch. A perspectiva de alteração dos regimes de chuva na Argentina e no Chile implica problemas sérios de abastecimento de água e alimentos porque “a infra-estrutura não se adapta tão rapidamente”, ressaltou Vicente Barros, professor da Universidade de Buenos Aires e co-presidente de um dos grupos de trabalho do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), em um seminário no dia 30 de outubro na FAPESP. “O problema não é só menos água, mas também a água que pode chegar em momentos inoportunos.” Segundo Barros, os atuais modelos de previsão climática indicam que logo pode faltar água na região de Mendoza, um dos principais centros urbanos da Argentina. Uma pesquisa de opinião em 11 países, incluindo o Brasil, indicou que quase metade dos mil entrevistados em cada país quer que os governos exerçam um papel mais ativo na redução de emissões de gás carbônico, um dos principais responsáveis pelas mudanças climáticas, mas somente 25% disseram que os dirigentes estão fazendo o bastante. “Mesmo com o corte de 80% nas emissões teremos impactos inevitáveis”, disse Martin Parry, professor do Imperial College, em Londres, que participou do workshop, “e os danos residuais poderão ser imensos se não investirmos em adaptação agora”. ■ PESQUISA FAPESP 154

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FOTOS EDUARDO CESAR E MARCIA MINILLO

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INOVAÇÃO

Risco premiado A venda da Alellyx e da CanaVialis para a Monsanto por US$ 290 milhões é um exemplo de como a pesquisa competitiva pode criar riqueza Fabrício Marques

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oi o maior negócio já feito no Brasil envolvendo empresas de biotecnologia desenvolvidas por meio de capital de risco. Por US$ 290 milhões, o equivalente a R$ 616 milhões, a multinacional Monsanto comprou no dia 3 de novembro as empresas brasileiras Alellyx Applied Genomics e CanaVialis, ambas sediadas em Campinas (SP) e criadas pelo fundo de capital de risco Votorantim Novos Negócios para procurar soluções tecnológicas direcionadas ao cultivo de cana-de-açúcar, laranja e eucalipto. A Alellyx foi fundada em 2002, com a reunião de um grupo de pesquisadores que participaram no final dos anos 1990 do seqüenciamento do genoma da Xyllela fastidiosa – a bactéria causadora da praga do amarelinho nos laranjais –, financiado pela FAPESP. Tornou-se uma empresa de pesquisa aplicada dedicada à criação – com base na genética molecular – de produtos e tecnologias que beneficiem a agricultura. Alellyx é Xyllela ao contrário. Para criar a CanaVialis, em 2003, a Votorantim Novos Negócios reuniu pesquisadores experientes em melhoramento genético de cana, com destaque para os da Rede Interuniversitária para Desenvolvimento do Setor Sucroalcooleiro (Ridesa). A CanaVialis é hoje a maior empresa privada de

melhoramento de cana-de-açúcar do mundo, está desenvolvendo variedades da planta com vantagens genéticas e tem contratos com 46 usinas de cana. O investimento da Votorantim Novos Negócios na criação das duas empresas foi de cerca de US$ 40 milhões. As duas empresas continuarão a ser administradas de forma independente e seus 250 funcionários serão mantidos. Em suas instalações, a Monsanto vai concentrar suas atividades mundiais de pesquisa e desenvolvimento em cana-deaçúcar. A chave do negócio foi o interesse da multinacional em investir no emergente mercado de cana e transformá-la na quarta cultura de seu portfólio de negócios, ao lado do milho, da soja e do algodão. “A cana-de-açúcar está sendo eleita pela Monsanto como uma cultura global”, observou André Dias, presidente da Monsanto do Brasil. “As demandas mundiais por açúcar e biocombustíveis estão começando a crescer em um ritmo mais rápido do que os níveis de produção de cana-de-açúcar. Esperamos que a aquisição da CanaVialis e Alellyx nos permita combinar

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nossos conhecimentos em melhoramento de lavouras de soja, milho e algodão ao melhoramento da canade-açúcar. O objetivo é aumentar a produtividade desta cultura e reduzir a quantidade de recursos necessários para sua produção”, afirmou Dias. Segundo ele, o Brasil vai se transformar na plataforma de pesquisa e desenvolvimento de cana da Monsanto. “O país terá um papel de destaque não só como gerador de tecnologia, mas também como usuário das tecnologias.” Dos 20,2 milhões de hectares de cana plantados em todo o mundo, mais de 6,8 milhões de hectares estão no Brasil. A safra 2007/2008 deve colher 547 milhões de toneladas, 15,2% a mais do que a anterior. Metade dela é destinada à fabricação de etanol, o que faz do Brasil o segundo maior produtor do combustível no mundo. O primeiro lugar cabe aos Estados Unidos, que extraem etanol do milho. A Monsanto investe atualmente US$ 800 milhões em pesquisa e desenvolvimento – a cana-de-açúcar passará a disputar um quinhão desse investimento. Para Ricardo Madureira, presidente da Alellyx e da CanaVialis, a aquisição permitirá às duas empresas dar mais velocidade a seu trabalho de pesquisa e desenvolvimento. Em 2009, por exemplo, a CanaVialis deve apresentar uma cana de ciclo precoce, colhida no início da safra e com mais sacarose, obtida por melhoramento genético tradicional. “Já vínhamos trabalhando há um ano e meio nesse projeto, inclusive em parceria com a Monsanto”, disse Madureira. A CanaVialis também desenvolve plantas transgênicas junto com a Alellyx. Em 2006, a primeira cana transgênica começou a ser testada numa propriedade agrícola no Paraná. Essa cana possui um gene retirado do vírus causador do mosaico, uma das doenças que atacam essa cultura. O gene manipulado pela Alellyx conferiu resistência à doença em laboratório.

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André Dias, o presidente da Monsanto, disse esperar que a aquisição propicie o lançamento de novas tecnologias por volta de 2016. “Embora seja um investimento de longo prazo que completa nosso portfólio de pesquisa e desenvolvimento, esperamos levar germoplasmas para outras áreas de plantio ao redor do mundo em meados da próxima década”, afirmou. A Monsanto não está sozinha no interesse pela cana. No final de outubro, a multinacional suíça Syngenta AG informou que está entrando no mercado de cana e desenvolvendo uma nova tecnologia capaz de reduzir os custos do plantio por hectare em torno de 15%. A inovação deve ser lançada em 2010. Transferência de tecnologia - Fer-

nando Reinach, diretor-executivo da Votorantim Novos Negócios, afirma que a venda aconteceu um pouco antes do que se previa inicialmente. “Imaginávamos que isso fosse demorar pelo menos uns oito anos para acontecer”, afirmou. “Mas esse é o princípio do venture capital. Você investe em pesquisa científica com potencial tecnológico e faz a parte mais arriscada. Transforma num negócio e mais tarde vende para quem terá fôlego para investir na sua expansão. É comum que a transferência de tecnologia para a sociedade seja feita por grandes empresas”, explicou Reinach, que é professor da Universidade de São Paulo e foi um dos coordenadores, no final da década de 1990, do seqüenciamento da Xyllela fastidiosa.

Ele ressalta que, apesar da venda para uma empresa estrangeira, o complexo de pesquisa e desenvolvimento da Alellyx e da CanaVialis permanecerá no Brasil. “Trata-se do primeiro grande caso de empresa de venture capital de pesquisa científica no Brasil que tem sucesso, o que pode abrir espaço para novas iniciativas e investimentos”, afirmou. Ele lembra que, quando o genoma da Xyllela fastidiosa foi publicado na revista Nature, em 2000, um dos pesquisadores do programa, João Paulo Kitajima, da Unicamp, monitorou as empresas que fizeram o download do seqüenciamento assim que as informações foram disponibilizadas na internet. Nenhuma empresa brasileira se interessou, ao contrário de diversas multinacionais. “Me lembro que, na época, escrevi um artigo dizendo que estávamos despreparados para o sucesso, pois havíamos alcançado um feito científico, mas o país não tinha estrutura para se beneficiar daquele ganho”, disse. Embora as duas empresas tenham sido vendidas para uma multinacional, Reinach vê hoje uma situação bem diferente. “Ainda não temos empresas brasileiras com fôlego para investir, mas teremos um centro de pesquisa mundial localizado no Brasil e isso faz muita diferença”, afirma Reinach. “A Monsanto não tem conhecimento em cana-de-açúcar. É uma cultura nova para eles”, diz o pesquisador. De acordo com Reinach, as negociações para a venda duraram oito meses e havia outras empresas estrangeiras na disputa. “Foi um leilão”, afirma. Desde o ano passado a Monsanto tinha uma parceria tecnológica com a CanaVialis e a Alellyx para desenvolver e comercializar as tecnologias da Monsanto aplicadas à cana-de açúcar, como a tecnologia BT, com a propriedade de tornar a planta resistente a pragas, e a

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ELLIOT W. KITAJIMA/USP

Colônias da Xyllela fastidiosa, que ataca laranjais

Roundup Ready (RR), que torna plantas resistentes ao herbicida glifosato. Segundo Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, a venda das duas empresas é um raro e alentador exemplo no país de criação de valor e riqueza a partir de pesquisa científica competitiva internacionalmente. “Nesse formato, que consiste em criar uma pequena empresa, criar propriedade intelectual nesta empresa e vendê-la a um valor superior ao investido, só me lembro do caso da empresa mineira Akwan Information Technologies, adquirida pelo Google”, diz Brito Cruz. A Akwan, um site de buscas criado por professores da Universidade Federal de Minas Gerais, foi comprada em 2005 e se tornou o centro de pesquisa e desenvolvimento do Google na América Latina. “Esse caso demonstra uma possibilidade importante que o Brasil precisaria explorar mais. O fato de a Monsanto operar sua plataforma de pesquisa e desenvolvimento em cana no Brasil também é um elemento positivo, porque de novo demonstra que pesquisa competitiva atrai investimento e atividade de grandes empresas mundiais.” Para o físico José Fernando Perez, diretor científico da FAPESP entre 1993 e 2005 e articulador do Programa Genoma FAPESP, cujo primeiro fruto foi o seqüenciamento da Xyllela fastidiosa, a venda da Alellyx e da

CanaVialis é expressiva também por ocorrer num momento de retração dos investimentos internacionais. “A aquisição não acontece num momento em que há dinheiro sobrando, o que reforça a sua importância. A venda permite que o país receba investimento quando poucos estão recebendo. Quem sabe quais outros países estavam competindo conosco?”, indaga Perez, que hoje é presidente da empresa de biotecnologia Recepta Biopharma. Para ele, a aquisição da Alellyx e da CanaVialis é um indicador de sucesso da visão que formou o Programa Genoma FAPESP. “As lideranças que formaram o programa se envolveram com a Alellyx. O retorno é sem precedentes. Não conheço projeto científico que tenha propiciado um investimento desse porte no Brasil”, disse Perez, que emenda: “A venda mostra que fazer ciência no nosso país pode ser um ótimo negócio”. Investimento fértil - Perez afirma que

o sucesso da venda das empresas mostra o acerto da política de investir nelas – além do investimento em pesquisa genômica da FAPESP e do governo federal, as empresas vinham recebendo recursos públicos para projetos de pesquisa da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). “Tanto o investimento público foi fértil que permitiu uma venda em condições vantajosas. A biotecnologia é uma área que exige investimento alto e tem retorno demorado. Em certo momento, as empresas precisam de uma injeção de capital maior e só grandes empresas conseguem isso. É um ciclo que se cumpre para que a pesquisa redunde em produtos de alto valor comercial e cheguem à sociedade.” Perez lembra que, desde a primeira apresentação ao conselho superior da FAPESP, o grande objetivo do Programa Genoma da FAPESP era a formação acelerada de

recursos humanos para o desenvolvimento da biotecnologia no país. O fato de uma multinacional ter arrematado as duas empresas emergentes causou desconforto no governo federal. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo no dia 5 de novembro, o ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, disse que ficou “surpreso e decepcionado” com a notícia da venda. “Não sei quanto a Votorantim colocou nessas empresas ao longo desses anos, mas o setor público colocou muito dinheiro”, afirmou Rezende. “A venda para qualquer grupo estrangeiro é decepcionante.” O ministro lembrou que a Finep aprovou R$ 49,4 milhões em subvenção econômica para pesquisas nas empresas nos últimos três anos – dos quais R$ 6,4 milhões já foram desembolsados. “São duas empresas que receberam investimentos do governo e, justo quando esse investimento estava amadurecendo, foram vendidas por um preço bastante módico”, disse. José Fernando Perez também lamentou que não existam empresas nacionais com apetite para investir nas empresas. “Mas a frustração é pequena em comparação aos indicadores de sucesso”, disse. Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, diz que, naturalmente, teria sido melhor se a compra fosse efetivada por um grupo brasileiro. “Mas infelizmente não faz parte da tradição dos investidores brasileiros apostar em atividades relacionadas à ciência e à tecnologia muito avançadas, mesmo que haja algumas honrosas exceções que confirmem a regra”, afirmou. ■

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TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO

Conhecimento e inclusão Saem os primeiros resultados dos projetos do Instituto Microsoft Research-FAPESP que buscam avanço da ciência e impacto social

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omeçam a surgir os primeiros resultados de um esforço de pesquisa que busca obter avanços no conhecimento em tecnologia da informação (TI) e também alcançar aplicações de impacto social. Os coordenadores dos cinco projetos financiados desde 2007 pelo Instituto Microsoft Research-FAPESP de Pesquisas em TI apresentaram os resultados preliminares de seus trabalhos, num workshop realizado na sede da FAPESP no dia 19 de novembro – no qual também foram anunciados dois novos projetos selecionados na segunda chamada de propostas do instituto. Em comum, os projetos estão debruçados sobre questões científicas complexas cuja solução trará benefícios nos campos da inclusão digital, da saúde pública, da agricultura e da eficiência dos serviços públicos. “Esse esforço da FAPESP com a comunidade científica de São Paulo em um conjunto de áreas ligadas à ciência da computação busca aumentar o impacto e a visibilidade internacional da boa ciência que se faz no estado”, disse Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. O objetivo da parceria entre a FAPESP e a Microsoft não é resolver problemas tecnológicos da Microsoft, mas desenvolver aplicações

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futuras da tecnologia da informação. “A Microsoft apóia pesquisas realizadas no Brasil e deseja acrescentar mais projetos aos já existentes”, disse Daron Green, pesquisador sênior para investigações externas da Microsoft. O projeto PorSimples: simplificação textual do português para inclusão e acessibilidade digital desenvolve ferramentas capazes de simplificar a linguagem dos textos em português disponíveis na internet para facilitar o entendimento tanto por crianças e adultos em processo de alfabetização quanto por analfabetos funcionais e pessoas com problemas cognitivos. A equipe do PorSimples, coordenada por Sandra Maria Aluisio, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação de São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP), já escolheu um analisador sintático que identifica estruturas complexas e adaptou um analisador de discurso capaz de mostrar as relações entre as partes de um texto, ajudando na sua compreensão. Foram avaliados nove sumarizadores para o português, alguns construídos pela equipe, para escolher o mais adequado para o projeto. Uma ferramenta que remove redundâncias também foi criada para tornar os textos mais curtos. “O objetivo é ajudar quem tem problema de entender textos longos, cons-

truções sintáticas complexas e também de inferir informações implícitas nos textos. Nossa proposta é trabalhar na criação de páginas com acessibilidade universal ao garantir que os textos em português sejam claros e simples para que eles sejam facilmente compreendidos por um número maior de leitores”, disse Sandra Aluisio. Um dos focos do projeto é a criação de dois softwares. Um deles, que está em fase mais avançada de desenvolvimento, busca ajudar os autores a preparar versões mais simplificadas de seus textos antes de serem publicados. O autor submete o texto ao programa, que propõe uma nova versão com construções menos complexas e palavras mais fáceis de entender pela grande maioria. A segunda ferramenta procura fazer essa transformação em textos já publicados na rede – o desafio é produzir um novo texto que permaneça coerente, pois o autor não irá intervir no resultado final. Saúde pelo celular - Usar computa-

dores de mão ou celulares inteligentes para auxiliar profissionais que atuam em programas como o de saúde da família é o objetivo do Projeto Borboleta: sistema integrado de computação móvel para atendimento domiciliar de saúde. A equipe coordenada por Fabio Kon, professor do Departamento de Computação do

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Instituto de Matemática e Estatística da USP, está desenvolvendo um sistema que permita ao profissional da saúde baixar em seu celular o histórico do paciente que será visitado, acrescentar dados, transmitir imagens e dados a um especialista e receber dele um pré-diagnóstico em tempo real. O projeto já chegou a um protótipo inicial, que vem sendo testado no acompanhamento de 40 pacientes com problemas de locomoção que precisam ser atendidos em casa. “Trabalho com o desenvolvimento de software há 15 anos e, nos últimos tempos, comecei a me preocupar com o real impacto de minhas pesquisas na sociedade. Comecei, então, a buscar temas que pudessem tocar a vida das pessoas. Daí o interesse por esse projeto”, diz Fabio Kon. A iniciativa está exigindo esforços de pesquisa em quatro frentes. Uma delas é a criptografia, para permitir que os dados sobre a vida dos pacientes coletados pelos celulares circulem de forma segura. “Do ponto de vista científico, há um bom potencial para desenvolver novos processos de criptografia”, diz Kon. “Os algoritmos de criptografia são pesados e os celulares têm processadores mais fracos. É preciso criar novos algoritmos”, afirma. Outra frente é a pesquisa no campo de multimídia. O desafio é desenvolver meios de capturar e armazenar informações em forma de texto, vídeo, exames de diagnóstico por imagem, e também de acessá-las de forma eficiente. A terceira frente vincula-se ao campo da saúde pública. Procura-se estabelecer conceitos para nortear os modelos computacionais que vão gerenciar os sistemas. Por fim foi preciso desenvolver um software que rode nos celulares e num grande servidor – um protótipo já está sendo testado.

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Combate à burocracia - A ampliação

da eficiência dos serviços prestados por órgãos públicos é a meta do projeto X-gov: aplicação do conceito de mídia cruzada a serviços públicos eletrônicos. Coordenado pela pesquisadora Lucia Vilela Leite Filgueiras, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), investiga meios para coordenar diversos tipos de mídia – internet, telefone fixo, celular e TV interativa – para o cumprimento de etapas de serviços de governo. Busca-se desenvolver uma ferramenta que sirva de base para diversos tipos de operações – por meio dela seria possível fazer ajustes direcionados ao tipo de serviço eletrônico oferecido para a população. “Quanto mais simples e adaptável o software, mais chance de ele ser implementado e de o serviço tornar-se menos burocrático”, afirma a pesquisadora do Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais da Poli. A equipe do projeto criou 18 componentes que podem ser combinados em diferentes aplicações voltadas para a prestação de serviços públicos. Uma aplicação piloto utiliza sete desses sistemas para dar acesso a informações sobre escolas públicas. A partir do momento em que for acoplada às bases de dados das escolas, propiciará a matrícula em unidades da rede pública por meio eletrônico. A consulta para obtenção de informações e a própria execução do serviço poderão ser feitas por meio de mídia cruzada, aproveitando as vantagens específicas para apresentação e transmissão de dados do telefone celular, da internet e da TV interativa. Hoje um cidadão pode consultar sua situação em órgãos públicos apenas

pela internet, como o Detran, acessando informações sobre multas e pontos na carteira. O software expandiria as possibilidades de interação virtual entre cidadão e governo, com o envio de alertas e mensagens por e-mail ou celular e futuramente pela TV interativa, além da substituição de etapas que hoje exigem a presença do usuário no órgão público. “Trabalhar com mídia cruzada repercute também na inclusão de pessoas com necessidades especiais, porque elas teriam acesso aos serviços pela mídia com a qual se adaptassem melhor”, explica a coordenadora do projeto. Arquitetura de redes sociais - No pro-

jeto E-cidadania: sistemas e métodos na constituição de uma cultura mediada por tecnologias da informação e comunicação, a ambição é desenvolver a arquitetura de redes sociais, semelhantes, por exemplo, à rede de relacionamentos Orkut, que permitam a interação de pessoas de quaisquer classes sociais ou diferentes necessidades – a idéia é que elas consigam facilmente compartilhar informações – como troca de produtos, serviços, idéias, bens e outras atividades. “Usamos o conceito de ‘design socialmente responsável’ para que as tecnologias sejam utilizadas em favor da sociedade brasileira, que tem desafios de várias naturezas, entre eles o baixo letramento”, diz Maria Cecília Baranauskas, coordenadora do projeto e professora do Instituto de Computação da Unicamp. O design dos sistemas disponíveis, explica a pesquisadora, não teve a preocupação de facilitar o acesso de todos os segmentos sociais. “Então, nos cabe pensar como criar essa interface de tal maneira que as pessoas olhem para o monitor e saibam o que fazer, que consigam entender e usar o sistema comunicando-se e trocando informações”, disse Maria Cecília. Através de redes computacionais, todos podem compartilhar os mais diferentes recursos, mas o acesso fácil e universal ainda é um desafio. Há barreiras tecnológicas, educacionais, culturais, sociais e econômicas que dificultam a interação. Por isso, diz Maria Cecília, busca-se vencer essas barreiras por meio da concepção de sistemas, ferramentas e modelos capazes de facilitar o acesso do cidadão ao conhecimento. A equipe do E-cidadania já discutiu as características de sistemas que envolvem redes

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Os pesquisadores estão debruçados sobre questões científicas complexas cuja solução trará benefícios nos campos da saúde, agricultura e serviços públicos sociais para definir o tipo de arquitetura que seria utilizada no software proposto pelo projeto. Um protótipo do software deverá estar pronto no início do ano, incluindo informações levantadas durante três workshops realizados com a participação da Vila União, comunidade de Campinas alvo do projeto. O projeto E-Farms: uma estrada de mão dupla de pequenas fazendas para o mundo em rede possui dois objetivos: fazer o conhecimento científico avançar, investigando novos algoritmos e modelos matemáticos para a agricultura, e desenvolver ferramentas computacionais para promover o acesso colaborativo e de baixo custo de cooperativas e pequenos produtores rurais a informações estratégicas para a tomada de decisões na área agrícola. “Este é um projeto de mão dupla porque, ao mesmo tempo que pretendemos facilitar o acesso do agricultor a dados importantes para o seu negócio, precisamos do seu feedback e da sua participação para alimentar uma rede de produtores e cooperativas”, afirma a coordenadora do projeto, Claudia Bauzer Medeiros, professora do Instituto de Computação da Unicamp. De acordo com ela, o caminho para transmissão de dados do campo para a internet foi construído no primeiro ano de atividade do projeto. “Os primeiros sensores de temperatura foram montados no campus da Unicamp, simulando uma rede local em uma propriedade rural, e os dados estão sendo transmitidos via rede sem fio para um computador na Faculdade de Engenharia Agrícola, que os retransmite para o Instituto de Computação, de onde são publicados em tempo real na web”, explica. O próximo passo é concluir, no próximo ano de pesquisas, a segunda “mão” de que fala o título do projeto: programar e interferir nos sensores via a mesma infra-estrutura sem fio. Além disso, vários resultados científicos foram obtidos no primeiro ano, com novos modelos de previsão de safra e algoritmos de processamento de imagens de satélite, capazes, por exemplo, de reconhecer padrões específicos de um tipo de cultura em uma de

imagem, facilitando a sua identificação e, com isso, diminuindo o custo para fazer previsão de safra. Esses resultados estão sendo publicados em congressos e em revistas indexadas. “O E-Farms é um bom exemplo de projeto em que avanços científicos são aplicados na solução de grandes problemas de relevância econômica e social”, diz a coordenadora do projeto. “Trabalhar em áreas aplicadas oferece desafios peculiares que acabam gerando novas perguntas científicas. Ao ajudar a resolver um problema, passamos a enxergar outras coisas – e aí surgem novos problemas para resolver”, afirma a coordenadora. O projeto tem a colaboração de pesquisadores da Faculdade de Engenharia Agrícola e do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) da Unicamp, e a parceria da cooperativa agrícola Cooxupé, com 11 mil produtores de café nos estados de São Paulo e Minas Gerais. Novos projetos - No workshop realizado

na FAPESP no dia 19 de novembro foram apresentadas as duas nova propostas selecionadas na segunda chamada de projetos de pesquisa do Instituto Virtual de Pesquisas FAPESP-Microsoft Research, que terão dois anos para gerar resultados. Um deles, coordenado por Jacques Wainer, professor do Instituto de Computação da Unicamp, buscará desenvolver um sistema de informação capaz de detectar alterações em imagens de fundo de olho indicativas de retinopatia diabética, complicação do diabetes que afeta a passagem de sangue e pode levar à perda da visão. O projeto tem como parceira a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A idéia é desenvolver um software capaz de detectar alterações de fundo de olho, como hemorragias, alterações vasculares, cicatrizes e sinais de processos inflamatórios. O programa será usado para fazer a triagem de pacientes que precisam ser submetidos a exames especializados. “O desafio é criar um sistema altamente sensível, que não deixe de fora nenhum portador da doença, caso contrário ele poderá prejudicar

alguns pacientes”, diz Wainer. Por isso, durante a fase de desenvolvimento do software, todos os pacientes cujas retinas tiverem suas imagens também receberão atendimento médico. Para desenvolver o sistema, os pesquisadores usarão técnicas de pontos característicos, adotadas na análise de vários tipos de imagem, mas precisarão criar novas abordagens científicas para resolver problemas peculiares da retinopatia diabética. Após a avaliação do sistema, ele será aplicado na Unidade Básica de Saúde da Vila Mariana, como parte do Mutirão da Catarata e do Diabetes, organizado pelo Instituto da Visão da Unifesp. O segundo projeto, coordenado pelo professor Flávio Soares Corrêa da Silva, do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo, busca desenvolver uma arquitetura de software, chamada de JamSession, que permita a construção de mundos virtuais, como o conhecido Second Life, mas de caráter descentralizado – em vez de usar um grande servidor, esses ambientes seriam baseados em vários computadores interligados. “Existem mundos virtuais 3D voltados para o entretenimento, que têm como característica possuir um proprietário, pois é uma empresa quem disponibiliza o serviço. A idéia é criar uma rede ponto a ponto que substitua o servidor”, diz Flávio. “Essas iniciativas hoje são difíceis de implantar. É preciso ser um exímio programador para conseguir construir sua rede. A idéia é utilizar alguns avanços recentes do campo da inteligência artificial, uma área em que tenho experiência, para simplificar as interações em mundos virtuais”, afirma o pesquisador. A intenção, segundo o professor, é que qualquer pessoa com acesso a internet banda larga possa criar seu espaço nesse mundo virtual e, eventualmente, oferecer serviços que se revertam em renda. As possibilidades são variadas, mas, apenas para exemplificar, seria possível criar nesse mundo salas de aula virtuais, em que alunos e professor interagem por computador. ■

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CHRIS MCGRATH/GETTY IMAGES/AFP

ESTADOS UNIDOS

A era Obama Novo presidente promete mais verbas para a pesquisa, uma nova pauta ambiental e o fim do “obscurantismo” da era Bush

A

s expectativas dos cientistas norte-americanos com a posse do primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos, Barack Obama, que assume no dia 20 de janeiro, são tão otimistas quanto as de seus 64 milhões de eleitores. As intenções são boas: Obama prometeu ampliar o orçamento dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês) e da agência espacial norte-americana (Nasa), investir um valor recorde na pesquisa de energias renováveis, remover embaraços para as pesquisas de células-tronco embrionárias e virar pelo avesso a agenda ambiental do país, que durante a era Bush foi marcada pela negação do aquecimento global. As condições para levar tais propostas adiante são auspiciosas: o Partido Democrata conquistou maioria nas duas casas do Congresso. “As propostas de Obama são um sinal de que o presidente eleito reconhece a importância da ciência para o país”, disse à revista Nature Ralph Cicerone, presidente da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. “O mundo respeita a ciência norte-americana e ela pode servir de instrumento de boa vontade e de boas políticas”, afirmou. A grande dúvida é saber até que ponto as ambições do novo presidente serão bloqueadas pela dura realidade da crise. A condição de preferido do setor científico ficou evidente durante a campanha, quando Obama atraiu o apoio de 61 laureados com o Prêmio Nobel, enquanto seu rival John McCain obteve escassas cinco assinaturas de vencedores do Nobel de Economia para sua plataforma anticrise.

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A clara oposição às políticas no campo da ciência e do meio ambiente do governo Bush, vistas como obscurantistas por um largo espectro da comunidade acadêmica, ajudou a pavimentar o apoio.

E

m relação às pesquisas com célulastronco embrionárias, Obama já disse a que veio. Poucos dias depois de eleito, anunciou por meio de John Podesta, chefe de sua equipe de transição, que irá suspender a proibição imposta por Bush, por motivos religiosos, de uso de verbas federais na realização de pesquisas com linhagens de células-tronco embrionárias produzidas a partir de 9 de agosto de 2001. “Sobre a pesquisa de células-tronco, e em vários temas, vemos que a administração Bush fez coisas que provavelmente não beneficiarão o país”, afirmou Podesta. Ainda se discute o meio a ser utilizado para derrubar o veto. O mais provável é que Obama emita uma ordem executiva retirando a proibição e patrocine uma nova legislação sobre o tema, que permitiria o trabalho com quaisquer linhagens de células-tronco derivadas de embriões que seriam descartados em clínicas de fertilização. Bush já vetou em duas ocasiões legislações desse tipo, mas a deputada democrata Diana DeGette apresentou há poucas semanas um projeto que permite o uso de linhagens independentemente da data em que foram obtidas. Especialistas acreditam, contudo, que a ordem executiva é desnecessária. A advogada Robin Alta Charo, professora de bioética da Universidade de Wiscounsin, disse que daria na mesma se Obama simplesmente comunicasse aos NIH que passassem a fomentar a pesquisa de novas linhagens. Se a questão das células-tronco está bem encaminhada, há dúvidas em relação à velocidade com que Obama conseguirá implementar suas políticas nos campos da energia e do meio ambiente em meio à recessão. Em contraposição a Bush, que se recusou a ratificar o Protocolo de Kyoto, Obama propõe reduções obrigatórias das emissões de gases de efeito estufa e declarou simpatia ao sistema de compra e venda de créditos de carbono deflagrado por aquele acordo. “Demora não é mais uma opção e nega-

ção não é mais uma resposta aceitável”, declarou o novo presidente. É possível, contudo, que uma legislação nesse sentido não seja aprovada antes de 2010. Há consenso no futuro governo de que o ano de 2009 deve ser consagrado ao enfrentamento do desemprego e da crise econômica – e o controle da emissão de gases, pelo menos no curto prazo, não colabora com tais objetivos. “A legislação de mudanças climáticas é controversa até mesmo entre os parlamentares do Partido Democrata e dificilmente virá no início do governo”, diz David Goldston, colunista da revista Nature. Existem opções menos ambiciosas que podem dar fôlego a Obama no primeiro ano de mandato. Segundo disse à agência Bloomberg o senador democrata Jeff Bingaman, do Novo México, poderá ser votada em 2009 uma lei para estimular a conservação de energia em edifícios e meios de transporte e produzir mais eletricidade a partir de fontes renováveis. Outra possibilidade é permitir que 18 estados interessados em regulamentar a restrição à emissão de gases por automóveis tenham liberdade para fazer isso. O governo Bush conseguiu bloquear tais regulamentações com o argumento de que são de âmbito federal. Muitos pesquisadores estão confiantes na remoção de outros tipos de entrave. David Wilcove, professor de ecologia da Universidade de Princeton, lidera uma campanha para restaurar dispositivos de uma legislação federal de 1976 que regula o manejo de florestas de forma a manter a viabilidade das populações de vertebrados. Certas restrições foram suspensas em 2005 para beneficiar a indústria madeireira.

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urante a campanha, Barack Obama defendeu enfaticamente a ampliação do orçamento para a pesquisa nos Estados Unidos. Prometeu gastar US$ 15 bilhões por ano no desenvolvimento de energias renováveis, ante apenas os US$ 2 bilhões atuais. Também deu apoio a um pleito dos cientistas para dobrar nos próximos dez anos o orçamento dos NIH, que hoje consomem US$ 30 bilhões por ano. Quando pedia votos na Flórida, onde fica a Nasa, Obama prometeu revitalizar a exploração espacial, cujo orçamento é consi-

derado insuficiente para conseguir os objetivos propostos por Bush: o retorno à Lua antes de 2020 e missões tripuladas a Marte depois disso. O novo presidente já propôs prolongar a vida útil dos atuais ônibus espaciais, que deveriam ser aposentados em 2010, e antecipar a estréia das naves que os substituirão, o que está previsto para 2015. Para tanto, o orçamento da Nasa, que equivale a US$ 17 bilhões anuais, receberia um reforço de pelo menos mais US$ 2 bilhões. Com o déficit das contas federais batendo em US$ 1 trilhão e diversos setores da economia pedindo ajuda, parece difícil que o novo presidente consiga honrar todas as promessas. “Obama prometeu muitas coisas – e todas elas custam dinheiro”, disse o deputado republicano Vern Ehlers, um dos mais eloqüentes defensores da pesquisa e da educação no Congresso norte-americano.

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as há promessas que não dependem de dinheiro. Obama comprometeu-se na campanha a elevar o status do titular do Escritório de Políticas de Ciência e Tecnologia (OSTP, na sigla em inglês), que sob a gestão de George W. Bush diminuiu de importância. A expectativa é em relação ao nome que escolherá para ocupar o cargo. Quem desempenhou o papel de conselheiro científico na campanha foi Harold Varmus, diretor dos Institutos Nacionais da Saúde entre 1993 e 1999, laureado em 1989 com o Nobel de Fisiologia ou Medicina pela descoberta dos oncogenes retrovirais. O cargo de titular do OSTP ficou vago nos cinco primeiros meses do governo Bush e acabou ocupado pelo físico John Marburger, que tinha um lugar na hierarquia da Casa Branca pouco privilegiado, sem acesso direto ao presidente. Marburger acabou envolvido em várias denúncias de censura a documentos e depoimentos de pesquisadores vinculados ao governo, sempre no sentido de amenizar previsões acerca dos efeitos do aquecimento global. Só em setembro de 2007 o assessor admitiu que as mudanças climáticas são um fato e que a Terra pode se tornar um lugar “inabitável” se não houver cortes nas emissões de monóxido de carbono. ■

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> Alergia saudável

Mau hábito: dirigir e falar ao celular

anti-histamínico. Mas talvez seja melhor pensar duas vezes antes de tomar um antialérgico. O biólogo Paul Sherman, da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, avaliou LAURABEATRIZ

Espirros, lágrimas nos olhos e coceira são sintomas comuns de alergia, nada que não se resolva com um bom

MARSHALL ASTOR/WIKIMEDIA

Telefone e direção definitivamente não RISCOS DO combinam. Já se sabia que falar ao celular CELULAR com o veículo em movimento aumenta o risco de acidentes de trânsito – tanto que em vários países, Brasil inclusive, esse comportamento é proibido por lei. Agora um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, indica que o problema não está apenas em ocupar uma das mãos com o celular, mas no próprio ato de manter uma conversa ao telefone durante a condução do automóvel. A equipe do psicólogo Lee Strayer constatou que mesmo o uso de equipamentos que deixam as mãos livres – os chamados hands-free, como fones de ouvido – distrai o motorista, elevando o risco de batidas e atropelamentos. Para verificar se havia fundamento nessa suspeita, Strayer e seus colaboradores recrutaram 96 pessoas para fazer um teste de direção em um simulador – metade do grupo falava ao telefone usando fones de ouvido e o restante conversava com um suposto passageiro. Quem falava ao telefone mudou de faixa sem perceber mais vezes e também perdeu as entradas que deveria tomar do que as pessoas que conversavam com um passageiro (Journal of Experimental Psychology: Applied). “Quando se analisam os dados, fica claro que conversar com um passageiro prejudica menos o motorista do que falar ao telefone”, disse Strayer. “O passageiro auxilia o motorista a conduzir e lembra o caminho.”

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646 trabalhos e descobriu uma relação inversa entre alergias e algumas formas de câncer – de boca, pescoço, intestino, pele e útero, pâncreas e glia cerebral – associadas a fatores ambientais (Quarterly Review of Biology): elas eram menos comuns nos alérgicos. O grupo de Sherman propõe que alergias protegem contra câncer por ajudarem a expelir partículas estranhas, além de servirem como aviso de que há substâncias no ambiente a serem evitadas. Uma exceção foi a asma que, apesar do fundo alérgico, está associada a uma maior incidência de câncer pulmonar. Os autores ponderam que a asma obstrui as vias respiratórias e impede que o muco seja expelido, o que explicaria

a associação. Para eles, esses indícios devem estimular pesquisas sobre a relação entre câncer e alergias.

> Como fazer mais veias Pesquisadores do Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil, ligados ao Instituto Gulbenkian de Ciência, em Lisboa, desvendaram como novos vasos sangüíneos se formam em regiões lesionadas. O desenvolvimento de novos vasos é essencial para a cicatrização: são eles que transportam proteínas antiinflamatórias para a região do ferimento, melhoram a oxigenação do tecido e levam nutrientes essenciais para a reconstrução da pele. Em artigo publicado

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UM OUTRO SISTEMA SOLAR

obesidade mórbida. Em casos severos de diabetes, essas feridas podem até levar à amputação do pé do paciente.

Backwell, da Universidade de Nova Gales do Sul, e Leeann Reaney, da Universidade Nacional da Austrália, se embrenharam em manguezais e pântanos australianos para analisar TANYA DETTO

em novembro na revista PLoS One, o grupo do oncologista Sérgio Dias mostrou que tudo depende da ativação da proteína Notch em células derivadas da medula óssea chamadas de células precursoras. Quando ativada, a Notch leva essas precursoras a aderirem à área da lesão, onde estimulam as células endoteliais – as que constituem veias e artérias – a produzirem vasos sangüíneos. Conhecer os detalhes desse processo pode ajudar no tratamento de feridas que resistem a cicatrizar, um problema comum em pessoas que sofrem de diabetes ou

LYNETTE COOK/OBSERVATÓRIO GEMINI

Astrônomos canadenses, norte-americanos e britânicos pela primeira vez viram planetas fora do Sistema Solar, antes detectados só de modo indireto. Com o telescópio do Observatório Keck, no Havaí, eles identificaram em meados deste ano três planetas ao redor de uma estrela jovem e quente, a HR 8799. Esse sistema planetário foi observado inicialmente em 2007, quando haviam sido encontrados dois planetas. Agora a equiÀ vista: ilustração recria estrela e seus planetas pe de Christian Marois, do Instituto de Astrofísica Herzberg, no Canadá, confirmou a presença de um terceiro planeta, um gigante > Tamanho nem gasoso como Júpiter. A análise das imagens sugere que sejam sempre é documento planetas muito jovens, com cerca de 60 milhões de anos – a Terra tem 4,5 bilhões –, e emitem muito calor à medida que Não só no jogo de pôquer contraem, razão por que podem ser vistos na faixa de radiação o blefe é fundamental. infravermelha (Science Express). Estão de 25 a 70 vezes mais Também é estratégia de distantes de sua estrela do que a Terra está do Sol. “A descobersobrevivência e manutenção ta foi feita após observar poucas estrelas, o que leva a concluir do poder em outras espécies. que planetas assim são freqüentes”, disse Marois. Simon Lailvaux e Patricia

Vem que tem: garra pode ser blefe

o comportamento dos caranguejos-violinistas (Uca mjoebergi). Com carapaça de apenas dois centímetros, esses animais têm uma das pinças bem maior que a outra que se regenera se perdida. Depois de constatar que os machos dessa espécie avaliam o tamanho do adversário – e de sua pinça – antes de se meter numa disputa, a equipe mediu o tamanho da garra, sua força e a resistência a ser arrancada. Constataram que as garras que nunca haviam sido perdidas davam uma dimensão da força real do caranguejo. Já as pinças regeneradas em geral eram maiores, mas nem sempre mais fortes e resistentes, além de serem mais leves e sem dentes (Functional Ecology). “Os machos com garras regeneradas podem blefar sobre a habilidade de lutar. Eles não são bons lutadores, mas a aparência da pinça indica aos outros que não vale a pena se meter com eles”, diz Lailvaux.

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Não adianta apenas despejar a água de CHOVA OU garrafas e pneus velhos cheios de ovos do FAÇA SOL mosquito Aedes aegypti, o transmissor da dengue, para evitar surtos da doença. Os ovos resistem no seco por semanas até que caia uma chuva, a água se acumule e as larvas possam nascer. Um grupo do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro descobriu por que esses ovos suportam períodos longos fora da água. Em artigo publicado em setembro na BMC Developmental Biology, os pesquisadores mostram que entre 11 e 13 horas após as fêmeas depositarem os ovos forma-se uma cutícula que contém quitina, polímero natural responsável pela dureza do esqueleto externo dos insetos, e funciona como uma terceira camada protetora do embrião. A cutícula manteve os embriões intactos mesmo depois de imersos por meia hora em uma solução de cloro. Os resultados sugerem que é justamente essa cutícula que confere ao embrião do Aedes proteção contra o ressecamento. Uma coisa fica clara: ainda mais importante do que eliminar focos de reprodução dos mosquitos é não deixar que eles se formem.

Dengue na arte: Aedes aegypti em muro de São Paulo

> Dieta tóxica nas veias

> Genes explicam mal do cacau

FOTOS EDUARDO CESAR

O término do seqüenciamento do genoma do fungo Moniliophthora perniciosa fornece agora a biólogos e agrônomos outra forma de entender e combater a vassoura-de-bruxa, doença

que devastou as plantações de cacau da Bahia. Ao identificar e analisar os 16.329 genes que integram o material genético do M. perniciosa, pesquisadores de São Paulo, da Bahia e dos Estados Unidos verificaram que o fungo é capaz de produzir uma quantidade intensa de toxinas e hormônios que facilitam sua sobrevivência no interior dos cacaueiros. As conclusões, detalhadas na edição de novembro na revista BMC Genomics, explicam os mecanismos de interação do fungo com as plantas que vinham sendo estudadas havia anos e mostram com mais detalhes como a vassoura-de-bruxa pode evoluir.

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Quem está internado em uma unidade de terapia intensiva (UTI) muitas vezes precisa receber na veia uma mistura de nutrientes rica em óleos, a chamada nutrição parenteral. A nutricionista Maria Fernanda Cury-Boaventura, da Universidade de São Paulo, e o bioquímico Rui Curi avaliaram o efeito de dois tipos de dieta parenteral sobre o sistema de defesa. Eles deram a 20 voluntários saudáveis, ao longo de seis horas, 500 mililitros de emulsão com 80% de óleo de oliva e 20% de óleo de soja. Em outro teste os voluntários receberam uma infusão contendo apenas óleo de soja. A comparação mostrou que a mistura de óleo de oliva e de soja é menos tóxica para as células do sistema de defesa do que a dieta à base de óleo de soja.

A primeira não afetou os neutrófilos, as primeiras células a chegar a um foco inflamatório, mas reduziu em 20% a capacidade de proliferação dos linfócitos, células que reconhecem moléculas e microorganismos invasores em resposta a um forte estímulo (Journal of Parenteral and Enteral Nutrition). Já o óleo de soja reduziu em 60% a capacidade proliferativa dos linfócitos. Mais grave: tanto linfócitos quanto neutrófilos apresentaram sinais de morte celular. “Estamos investigando como os lipídios levam essas células à morte”, diz Maria Fernanda. Segundo Curi, esses resultados devem provocar uma reavaliação da dose e do tipo de lipídio a ser administrado aos pacientes em estados críticos. “Essas pessoas necessitam de aporte energético. Precisamos suplementá-las e melhorar seu sistema de defesa, e não piorar”, diz.

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por boto-vermelho Na Amazônia as gestações inexplicadas costumavam ser atribuídas ao boto que, segundo a lenda, se transforma num belo rapaz branco e seduz as mulheres. Em busca desse sucesso, homens da região recorrem a amuletos vendidos nos mercados das cidades. Diz a crença que segurar um olho seco de boto-vermelho (Inia geoffrensis) torna as mulheres mais interessadas numa conversa. Acredita-se também que polvilhar a área genital com um pó feito com o pênis seco do boto e talco é receita certa para dar mais prazer às parceiras. Se não funcionar, talvez não seja falha da superstição. Pesquisadores da Universidade Federal

Sedução: amuletos em busca de sucesso

do Amazonas e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia descobriram que há trapaça no comércio (Marine Mammal Science). Eles extraíram material genético de 43 olhos secos comprados no Mercado Ver-o-Peso de Belém, no Pará, no Mercado Central de Manaus, no Amazonas, e no Mercado Municipal de Porto Velho, em Rondônia, e nenhum era do boto-vermelho. Nos mercados

de Belém e Manaus os comerciantes vendem olhos de golfinhos marinhos do gênero Sotalia. Já em Porto Velho a criatividade é maior: olhos de golfinho, porco ou ovelha são vendidos por boto. Parte do engodo pode ter origem cultural. As populações ribeirinhas respeitam o boto-vermelho como entidade mágica e resistem a matá-lo, forçando os comerciantes urbanos a procurarem alternativas.

do campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Ele avaliou a capacidade de 38 voluntários (8 homens e 30 mulheres) reconhecerem expressões de raiva, medo, tristeza, asco, alegria e surpresa, e relacionou os resultados aos níveis hormonais – e, no caso das mulheres, também à fase do ciclo menstrual. As mulheres em fase menstrual, quando os hormônios estrogênio e progesterona estão em baixa, identificaram expressões de raiva e tristeza melhor do que os homens ou as mulheres que se encontravam em outra etapa do ciclo. “Esse é provavelmente o motivo pelo qual mulheres com queda abrupta de estrogênio têm maior risco de episódios depressivos e de ansiedade”, estima Guapo. Esses indícios sugerem que pode ser proveitoso levar em conta as diferenças entre homens e mulheres para diagnosticar e tratar patologias psiquiátricas (Agência USP de Notícias).

NAS ONDAS SONORAS

Quem vê a praia, o calçadão com o famoso padrão ondulado > Mulheres lêem e os coqueiros imagina que Copacabana, um dos bairros emoções no rosto mais conhecidos do Rio de Janeiro, seja tranqüilo. Mas o grande número de moradores, a aglomeração de turistas e o Mulheres na fase menstrual trânsito são responsáveis por um nível de ruído que chega a são campeãs em reconhecer ser um problema de saúde pública. Pesquisadores do Deparraiva ou tristeza nos outros. tamento de Engenharia Mecânica da Universidade Federal É o que diz o psiquiatra Vinicius Guandalini Guapo, do Rio de Janeiro desenvolveram um modelo que considera fontes de barulho como trânsito e indústria parâmetros populacionais e ambientais para produzir mapas de ruído que permitem prever o nível de poluição sonora de uma região (Environmental Monitoring and Assessment). Aplicado a Copacabana, o modelo deixa claro que ruído é um problema importante no bairro. Para os autores, mapas de ruído são uma ferramenta valiosa para plaBairro do barulho: poluição sonora de Copacabana pode danificar a saúde nejamento urbano. PESQUISA FAPESP 154

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FATIMA RODRIGUES/WIKIMEDIA COMMONS

IZENI FARIAS E TOMAS HRBEK/UFAM

> Levando carneiro

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CIÊNCIA

População SAÚDE

Poluição do ar aumenta em 50% o risco de morte de recém-nascidos na cidade de São Paulo Ricard o Zorzet to

S

e puder escolher onde morar em metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro ou mesmo Porto Alegre, é melhor optar por uma casa ou apartamento o mais distante possível – a dois quarteirões, no mínimo – das ruas e avenidas mais movimentadas. Será bom para a sua saúde e a de seus filhos. É que os poluentes emitidos pelo motor de automóveis, ônibus e caminhões geralmente se espalham por um raio de até 150 metros a partir do ponto em que são lançados ao ar e transformam as grandes avenidas, a exemplo da Paulista ou da 23 de Maio, em São Paulo, por onde fluem dezenas de milhares de veículos por dia, em imensas chaminés que despejam sobre a cidade toneladas de partículas e gases tóxicos. As conseqüências mais imediatas – e moderadas – de encher os pulmões todos os dias com o ar quase irrespirável das metrópoles são logo sentidas: irritação nos olhos e nas vias aéreas, mal-estar e crises de asma. Outras mais graves, que se instalam lentamente no organismo, como o aumento da pressão arterial e a ocorrência de paradas cardíacas, podem passar despercebidas por nem sempre apresentarem uma relação tão clara e direta com esse fator ambiental. Nos últimos tempos, porém, vem se tornando evidente que a poluição do ar não afeta só quem a respira. Anos atrás o médico Nelson Gouveia, da Universidade de São Paulo (USP), analisou dados de 214 mil crianças nascidas na capital paulista e concluiu que a exposição das gestantes à poluição, em especial nos três primeiros meses, leva à diminuição do peso dos bebês ao nascer, um dos principais determinantes da saúde infantil. Agora ele estimou, ainda que indiretamente, outro impacto da poluição inalada pelas grávidas sobre os recém-nascidos: o aumento do risco de morte nos primeiros dias após o parto. Levando em consideração o fluxo de veículos nas ruas de São Paulo medido pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) nos horários de pico e a distância a que essas

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Cor de chumbo: poluentes dos carros saturam o ar paulistano

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JOSE LUIS DA CONCEICAO/AE

sufocada mulheres viviam das ruas e avenidas mais movimentadas, Gouveia e a médica Andréa Peneluppi de Medeiros, da Universidade de Taubaté, interior de São Paulo, criaram um indicador da exposição materna aos poluentes do ar. Em seguida, foram atrás de informações sobre 631 crianças que nasceram em hospitais de 14 bairros da Zona Sul paulistana entre agosto de 2000 e janeiro de 2001. Andréa e Gouveia encontraram sinais de fumaça por trás da história dos 318 bebês que haviam morrido ainda na

primeira semana de vida. A poluição não foi a causa direta das mortes, claro. Mas havia de algum modo contribuído. Descontados outros fatores que aumentam o risco de morte nesse período – como o baixo peso ao nascer, a idade materna e a não-realização de exames pré-natal, entre outros –, emergiu o impacto da poluição: os bebês de mulheres que haviam inalado mais gases e fumaça durante a gestação corriam risco 50% maior de morrer nos primeiros dias depois do parto. “Há fatores mais importantes para a morte neonatal, mas esse dado indica que os po-

luentes do ar exercem um efeito danoso importante sobre a saúde das gestantes e seus filhos”, afirma Gouveia. Nem foi preciso tráfego intenso para o efeito surgir. Filhos de mulheres que viviam numa área de uns poucos quarteirões por onde passavam entre 6 e 45 veículos por hora nos períodos de pico – ou seja, uma região bastante tranqüila – apresentaram risco 46% maior de morrer na primeira semana de vida, segundo artigo a ser apresentado em breve em artigo na Environmental Health Perspectives. PESQUISA FAPESP 154

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TIAGO QUEIROZ/AE

Não é a primeira vez que a poluição aparece associada à mortalidade perinatal, período que inclui a gestação e a primeira semana após o parto. Anos atrás a equipe do médico Paulo Hilário Saldiva, também da USP, que há quase duas décadas estuda os efeitos da poluição sobre a saúde, havia demonstrado que nos dias mais poluídos morrem mais bebês ainda em gestação na capital paulista. Saldiva e o médico Luiz Amador Pereira identificaram ainda que o poluente associado à maior

probabilidade de morte dos fetos foi o monóxido de carbono (CO), gás sem cor nem cheiro que resulta da queima incompleta dos combustíveis nos carros, como detalharam em 1998 na Environmental Health Perspectives. Do trabalho de Andréa e Gouveia, ficam um alerta e dúvidas, afinal, quais seriam as alterações que a poluição provoca no organismo elevando o risco de morte dos bebês? “Ainda não há uma idéia precisa do mecanismo biológico por trás desse efeito”, comenta Gouveia,

que recentemente constatou que a poluição é responsável por 5% das mortes por problemas respiratórios em crianças e idosos em sete capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Vitória, Curitiba, Fortaleza e Porto Alegre). A resposta para essa questão parece surgir no andar logo abaixo ao da sala de Gouveia na Faculdade de Medicina da USP. No Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental a equipe coordenada por Saldiva e pela patologista Thais Mauad concluiu recentemente uma bateria de testes em que foi possível comparar o impacto sobre a saúde de viver em ambientes poluídos como as ruas de São Paulo com o de viver num lugar com ar puro e limpo. Laboratório no jardim - Um achado

importante é que a poluição altera a estrutura da placenta, o órgão responsável por levar oxigênio e nutrientes ao feto. Thais, Saldiva e a bióloga Mariana Matera Veras mantiveram ao longo de meses várias gerações de camundongos em dois tipos de ambiente com a qualidade do ar controlada – com e sem poluentes, o que seria praticamente impossível com seres humanos. Eles instalaram nos jardins da Faculdade de Medicina, a 20 metros da esquina da avenida Dr. Arnaldo com a rua Teodoro Sampaio, cruzamento de tráfego intenso na maior parte do dia, duas câmaras com gaiolas de camundongos. Uma recebia o ar poluído das ruas, o mesmo respirado por quem freqüenta os arredores do Hospital das Clínicas, enquanto à outra chegava ar filtrado. Em cada câmara os pesquisadores mantiveram grupos idênticos de roedores em diversas fases do ciclo reprodutivo: antes da concepção, durante a gestação e depois do nascimento dos filhotes. Para isolar os efeitos sofridos pelos machos dos sentidos pelas fêmeas, Saldiva e Mariana repetiram o experimento, formando casais com os machos que haviam sido criados em ambiente com ar puro e as fêmeas em atmosfera poluída – e vice-versa. Ao final de cada gestação, Mariana avaliou a estrutura da placenta e o peCorredor de so dos filhotes. Na fumaça: avenida placenta das roe23 de Maio, em São Paulo, em doras criadas em horário de pico ambiente poluído 50

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os canais que levam o sangue materno para o embrião eram mais estreitos. E o tecido através do qual ocorre a troca de oxigênio e nutrientes, mais fino. Responsáveis por absorver alimento e oxigênio, os capilares do feto se distribuíram por uma superfície maior, numa provável reação à dificuldade de obter nutrientes, descrevem os pesquisadores em artigo na Biology of Reproduction de setembro. “É uma indicação de que a placenta tenta se adaptar ao máximo para superar essa situação adversa”, comenta Mariana. Mesmo assim os filhotes das fêmeas que respiraram ar poluído eram menores e mais leves que os das que receberam ar limpo – a perda de peso foi maior na prole das roedoras expostas à poluição antes e durante a gestação. “Não importou o período em que a exposição aos poluentes ocorreu. O resultado foi o mesmo: filhotes com baixo peso, o que aumenta o risco de desenvolver diabetes e problemas cardiovasculares na vida adulta”, explica Mariana. “As alterações na placenta indicam que até houve aumento do transporte de oxigênio, mas a passagem de nutrientes podia estar comprometida.” Os prejuízos, porém, começaram em um estágio bem anterior do ciclo reprodutivo. As roedoras que viviam em ambiente poluído eram menos férteis – produziam 36% menos células germinativas – e sofriam aborto espontâneo com mais freqüência do que as da câmara de ar filtrado, segundo artigo na Environmental Research. Curiosamente o período fértil das fêmeas que cresceram respirando ar poluído durou, em média, três vezes mais do que o das criadas em ar puro. Mesmo essa alteração fisiológica não favoreceu a reprodução. Apesar de férteis por mais tempo, elas demoravam mais que o normal para aceitar a cópula do macho, conta a bióloga. Dos testes, surgiram também evidências experimentais de como a exposição prolongada aos poluentes – em especial partículas mais finas, com diâmetro inferior a 2,5 micrômetros – prejudica o desenvolvimento dos pulmões. No 15º dia e no 90º dia após

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O PROJETO O impacto das exposições intra-uterina e nas fases iniciais do desenvolvimento pós-natal aos poluentes atmosféricos no desenvolvimento de alterações adversas na vida adulta

MODALIDADE

Projeto Temático COORDENADOR

PAULO HILÁRIO SALDIVA – FMUSP INVESTIMENTO

R$ 528.826,84 (FAPESP)

o nascimento, Thais avaliou a estrutura e a capacidade dos pulmões de quatro grupos de camundongos filhos de pais que haviam passado a vida em ambiente poluído ou na câmara com ar limpo – esses períodos correspondem, respectivamente, à infância e ao início da idade adulta nos seres humanos. Uma quadra no peito - Os filhotes que

cresceram em ambiente poluído cujos pais também haviam respirado ar carregado de partículas durante toda a vida tinham pulmões menos desenvolvidos e capacidade respiratória menor do que os animais que só tiveram contato com a poluição no interior do útero materno ou depois do nascimento. Obviamente os roedores que sempre receberam ar puro, cujos pais também respiraram ar filtrado, apresentaram o melhor desempenho. “Ainda não sabemos se os danos observados nos roedores são definitivos”, comenta Thais. Caso seja possível transpor para os seres humanos esses resultados, apresentados em outubro deste ano no American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine, equivaleria a dizer que os paulistanos filhos de pais também paulistanos, além de – e também por – viverem em uma cidade com ar de qualidade distante da desejável, correriam mais risco de apresentar capacidade respiratória reduzida. A maior parte dos danos ocorreu durante a formação dos alvéolos,

bolsas microscópicas em cujo interior ocorrem as trocas gasosas da respiração – o oxigênio do ar inalado se difunde para o sangue e o gás carbônico é eliminado para a atmosfera. O que ocorre nessa fase pode ser determinante para a capacidade respiratória do adulto. É que da infância até o fim da puberdade formam-se 85% dos 300 milhões de alvéolos dos pulmões humanos, que somam uma superfície de troca de gases equivalente à de uma quadra de tênis. Como são muito finas, as partículas de menos de 2,5 micrômetros de diâmetro não ficam retidas pelos cílios microscópicos que revestem as vias aéreas e filtram o ar inalado. E, ao atingir os alvéolos, elas os danificam e alteram seu desenvolvimento, conta Thais. Com menos alvéolos, a superfície de troca de gases diminui. A saída para reduzir os efeitos da poluição e melhorar a qualidade de vida das pessoas – reduzindo também os gastos públicos com internações e tratamentos (leia Pesquisa FAPESP 129) – todos sabem: ampliar a rede de transporte público e melhorar sua qualidade; reduzir o uso de automóveis; fiscalizar a emissão de poluentes; modernizar a frota de ônibus e caminhões; e melhorar a qualidade do combustível comercializado no país. “Como em qualquer questão ambiental, essas medidas exigem a atuação do poder público e também a participação da sociedade”, diz Gouveia. “Nós, cidadãos, não podemos nos omitir de nosso papel na história.” ■ > Artigos científicos 1. MEDEIROS, A.P.P. et al. Traffic-related air pollution and perinatal mortality: a case-control study. Environmental Health Perspectives. v. 116. n.12. dez. 2008. 2. VERAS, M.M. et al. Particulate urbana ir pollution affects the functional morphology of mouse placenta. Biology of Reproduction. v. 79. p. 578-584. set. 2008. 3. MAUAD, T. et al. Chronic exposure to ambient levels of urban particles affects mouse lung development. American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine. v.178. p. 721-728. out. 2008.

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BACTERIOLOGIA

Guerra

no intestino

Novas estratégias podem ajudar a combater bactérias causadoras de formas graves de diarréia

U

ma bióloga brasileira que trabalha há dez anos nos Estados Unidos encontrou uma nova possibilidade de controle de uma variedade de bactéria que provoca intensas diarréias. Essa variedade, a Escherichia coli enterohemorrágica ou EHEC, causa no Brasil cerca de 5 mil casos de diarréias muitas vezes sanguinolentas, seguidas de complicações renais (cerca de 600 mil adultos e crianças são hospitalizados por diarréias agudas de origem bacteriana no país todo ano). Em outros países, porém, provoca surtos com milhares de vítimas. Nos Estados Unidos, por exemplo, a EHEC atinge cerca de 73 mil pessoas, com 1.800 a 3.600 hospitalizações e de 60 a 550 mortes por ano. Vanessa Sperandio e sua equipe da Universidade do Texas, da qual faz parte o biólogo também brasileiro Cristiano Moreira, testaram 150 mil moléculas sintéticas dessa universidade e encontraram uma, identificada pela sigla LED 209, que inibiu a virulência de duas variedades de bactérias que causam surtos de diarréias nos Estados Unidos, incluindo a EHEC. Apresentada em um artigo publicado em agosto na revista Science, a LED 209 liga-se a uma proteína das bactérias chamada histidina quinase e as impede de produzir a toxina Shiga, que agrava a infecção intestinal – as bactérias continuarão pelo intestino, mas inofensivas. “Não precisamos matar todas as bactérias, mas apenas fazer com que parem de produzir toxinas”, diz Vanessa, bióloga formada pela Universidade de Campinas (Unicamp). “Se matarmos todas as EHEC, as que sobreviverem vão liberar mais toxinas, que vão agravar

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o quadro clínico, e podem se tornar resistentes a medicamentos.” A LED 209 funcionou de modo satisfatório em camundongos e coelhos contra uma variedade de bactéria causadora de diarréias que se espalha pelo organismo e causa infecção generalizada, a Salmonella typhimurium. No entanto, essa molécula é absorvida e desaparece no intestino, por essa razão apresentando pouca eficácia contra a EHEC, que vive somente no intestino. “O que temos de fazer agora é modificar essa molécula, para que não seja absorvida no intestino”, comenta Vanessa. Em março, com base nesse e em outros resultados, Vanessa recebeu um financiamento de US$ 6,5 milhões dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos – dos quais já conta com outros US$ 2,5 milhões – para desenvolver novos medicamentos contra bactérias causadoras de diarréias graves, em especial a EHEC, que constitui um problema de saúde pública não só nos Estados Unidos. Em 1996, 7.500 pessoas foram acometidas de um surto em Sakai, no Japão. Na Argentina, Chile e Uruguai a EHEC responde por quase metade dos casos de diarréias sanguinolentas. De 5% a 10% das pessoas infectadas por EHEC, em especial crianças com até 2 anos de idade, podem apresentar também, em seguida, a chamada síndrome hemolítica urêmica, marcada por anemia, pela queda no número de plaquetas, células do sangue responsáveis pela coagulação, e por insuficiência renal. Os antibióticos, usados para deter outras bactérias, têm efeito contrário com a EHEC porque intensificam a produção da toxina Shiga e agravam a destruição das células dos rins.

FOTOS CDC

Carlos Fioravanti | ilustrações Laura Dav iña

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Ao longo de dez anos Vanessa descreveu com detalhes crescentes os mecanismos pelos quais a EHEC sobrevive e se multiplica nos intestinos. Em 1999 na revista PNAS ela mostrou que essa linhagem de bactéria possui proteínas de superfície que funcionam como sensores de ambiente, os chamados quorum sensing, identificados antes em uma variedade de bactéria causadora da cólera. Esses sensores detectam a quantidade de dois hormônios – a noradrenalina, produzida nos intestinos, e a adrenalina, liberada pelas glândulas supra-renais – que acionam as defesas do organismo contra agentes invasores como essas bactérias. Vanessa demonstrou que as bactérias se aquietam à espera de momentos mais favoráveis quando há muito desses hormônios por perto; caso contrário, começam a se multiplicar e a colonizar o intestino. Em outro trabalho, publicado em 2003 também na PNAS, ela relatou o

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papel ambivalente da noradrenalina e da adrenalina. Esses dois hormônios ajudam a proteger o organismo, mas podem também beneficiar as bactérias, de dois modos diferentes: ativando genes que levam à produção da toxina Shiga e pondo para funcionar o flagelo, um tipo de cauda que permite à bactéria nadar mais facilmente. Outro estudo da equipe de Vanessa, publicado este ano na Nature Reviews, detalha a comunicação química entre as bactérias e o organismo em que se instalam: os intestinos de um adulto, com cerca de cinco metros de extensão, abrigam de 500 a 1.000 espécies diferentes de bactérias que, se reunidas, formariam uma massa de 1,5 kg. Somada a contribuições de outras equipes, essa base de conhecimento pode agora ajudar a testar e a encontrar novos medicamentos. No Brasil e em outros países, a mais perigosa entre as EHECs, a O157:H7, intensamente estudada pela equipe do

Texas, causou até agora casos isolados de severas infecções intestinais, às vezes seguidas de problemas renais, em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais. Os levantamentos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do Instituto Adolfo Lutz registram até agora menos de dez casos por ano no estado de São Paulo. Pesquisadores dessas duas instituições relataram em 2002 na revista Emerging Infectious Diseases os primeiros casos esporádicos de diarréias causadas por esse subtipo de EHEC em moradores da cidade de São Paulo, um deles portador do vírus HIV, e de Campinas. Um mês depois a mesma equipe, coordenada por Beatriz Guth, da Unifesp, apresentou na mesma revista o primeiro caso de síndrome hemolítica urêmica associada à infecção intestinal causada por outro subtipo de EHEC em um bebê de 8 meses internado no Hospital São Paulo.

OS PROJETOS Análise fenotípica e molecular de amostras de Escherichia coli do sorogrupo O113

Escherichia coli enteropatogênica atípica MODALIDADE

Avaliação da atividade in vitro e in vivo de anticorpos humanos anti-E.coli enteropatogênicas e E.coli produtoras de toxinas Shiga

Projeto Temático

MODALIDADE

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa

MODALIDADE COORDENADOR

WALDIR PEREIRA ELIAS JUNIOR – Instituto Butantan

COORDENADORA

BEATRIZ ERNETINA CABILIO GUTH Unifesp

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa COORDENADORA

INVESTIMENTO

R$ 790.675,07 (FAPESP)

SOLANGE BARROS CARBONARE Instituto Butantan

INVESTIMENTO

R$ 118.610,98 (FAPESP)

INVESTIMENTO

R$ 99.462,08 (FAPESP)

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“Felizmente não temos surtos, mas os especialistas dos institutos de pesquisa e dos órgãos públicos de saúde estão alertas, porque se trata de uma doença emergente”, comenta Beatriz. No Brasil os casos de diarréias causadas por EHEC não estão ligados só à pobreza e à falta de saneamento básico, mas também a descuidos com a higiene. Em um levantamento que ela ajudou a orientar, o pediatra da Unifesp Renato Lopes de Souza procurou em unidades de terapia intensiva de hospitais da cidade de São Paulo casos de crianças com síndrome hemolítica urêmica que haviam antes apresentado quadros de diarréia grave. Encontrou 13, atendidas de janeiro de 2001 a agosto de 2005 principalmente em hospitais privados (70% do total). Os pesquisadores identificaram em sete crianças anticorpos contra bactérias do grupo EHEC e em outras três as próprias bactérias, indicando uma associação, nem sempre lembrada pelos médicos, segundo Beatriz, de sérios problemas renais com infecções prévias causadas por bactérias. “As crianças com síndrome hemolítica urêmica já chegam às UTIs em estado grave e os médicos dificilmente associam com diarréias”, diz ela. Em busca de uma vacina - No Brasil,

outra variedade, a Escherichia coli enteropatogênica (EPEC), também é mais preocupante. Menos agressiva que a EHEC, a EPEC deve causar cerca de 30 mil casos de diarréias provocadas por bactérias por ano nas regiões mais urbanizadas do Brasil ou cerca de 180 mil nas menos urbanizadas. Em crianças bem nutridas a EPEC causa infecções intestinais que normalmente desapare-

cem em até uma semana apenas com reidratação oral, mas nas mal nutridas pode causar diarréias persistentes, com duração superior a 14 dias, cuja repetição pode prejudicar o crescimento e o desenvolvimento mental. Em experimentos feitos em camundongos e em células (in vitro) no Instituto Butantan, uma equipe coordenada por Maria Leonor Oliveira conteve a EPEC estimulando a produção de anticorpos contra uma proteína, a intimina-beta, por meio da qual essas bactérias se ligam às paredes do intestino. De acordo com o estudo publicado em outubro na revista FEMS Immunology Medical and Microbiology, dois fragmentos de intimina-beta conduzidos por via oral por meio de bactérias do gênero Lactobacilus, as mesmas utilizadas na fabricação de iogurtes e queijos, reduziram em até 80% a adesão da mais comum entre as 12 variedades de EPEC a células epiteliais humanas. “Uma vacina contra diarréia ainda é necessária por causa da precariedade do saneamento básico, que facilita a disseminação dessas bactérias, principalmente entre as crianças nas regiões mais afastadas dos grandes centros urbanos”, comenta Waldir Elias Jr., pesquisador do Butantan que participou desse estudo. “Os adultos saudáveis”, acrescenta sua colega Roxane Piazza, “são imunizados naturalmente e desenvolveram anticorpos antiintimina, por causa do contato contínuo com as EPEC”. A próxima etapa será ver se essa estratégia detém infecções intestinais diretamente em camundongos e contra outros tipos de EPEC já encontrados no país. Até lá, a melhor forma de evitar diarréias em recém-nascidos ainda é

o aleitamento materno. “Criança que mama não tem diarréia causada por EPEC”, diz Solange Barros Carbonare, pesquisadora do Butantan que encontrou anticorpos contra essas bactérias em todas as centenas de amostras de colostro e leite materno que analisou nos últimos anos. O experimento no Butantan mostrou que a estratégia de bloquear a intimina poderia ser usada tanto para a EPEC quanto para a EHEC. Alguns tipos de EPEC e as EHEC vivem nos intestinos de bois, vacas, ovelhas, cabras, macacos, cães e gatos, aos quais raramente causam problemas. Chegam ao ser humano por meio do contato com animais, terra, água ou alimentos contaminados. “Qualquer alimento cru ou não pasteurizado pode trazer essas bactérias”, comenta Beatriz. “Não descarto a transmissão de pessoa a pessoa, de um adulto portador da bactéria para uma criança, por exemplo, por meio de mão sujas.” Nos Estados Unidos os surtos mais recentes originaram-se de carne de hambúrguer, de espinafre e de tomate que haviam sido colonizados pelas bactérias, que causam problemas mesmo em quantidades muito baixas. Bastam 100 EHEC para desencadear a infecção intestinal, enquanto a cólera, também caracterizada por diarréia e desidratação intensas, só começa depois de 100 milhões de bactérias Vibrio cholerae terem se instalado no organismo. ■ PESQUISA FAPESP 154

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NEUROLOGIA

O

Em busca de

CONEXÕES Modelo com células humanas mostra um caminho para tratar esclerose amiotrófica

MIGUEL BOYAYAN

Maria Guimarães

primeiro sinal pode aparecer de repente: um movimento antes natural como o simples gesto de estender a mão para pegar um copo d’água se torna difícil, como se o braço travasse. Ao longo de meses ou anos, os músculos falham cada vez mais, até que se atrofiam. No final, os únicos movimentos que uma pessoa com esclerose lateral amiotrófica pode controlar são os dos olhos. É o caso do físico britânico Stephen Hawking, que há mais de 40 anos vive com essa enfermidade que costuma levar à morte em menos de uma década. Apesar de se manifestar nos músculos, o problema na verdade está na morte dos neurônios motores, os comandantes das contrações musculares e dos movimentos voluntários do corpo. Experimentos feitos nos últimos anos com células-tronco ajudam a entender a doença, mas não sugerem possibilidades de terapia com essas células. “Já imaginou substituir uma célula alojada no final da coluna que se prolonga até o dedo do pé?”, argumenta a bióloga brasileira Maria Carolina Marchetto, pesquisadora do Instituto Salk, nos Estados Unidos. “É um trajeto muito complicado, a célula não consegue achar o caminho.” A edição de dezembro da revista internacional Cell Stem Cell Para andar traz a mais recente contribuição da pesquisadora outra vez: para entender o mal que, estima-se, nos Estados neurônios Unidos faz 15 novas vítimas a cada dia. derivados de A equipe de Carol, que inclui o também bracélulas-tronco sileiro Alysson Muotri e o norte-americano Fred (em verde, Gage, chefe do Laboratório de Genética do Salk, à direita) desenvolveu um modelo inovador para estudar a esclerose lateral amiotrófica em seres humanos. “O inédito da nossa pesquisa”, explica Carol, “foi utilizar pela primeira vez um modelo in vitro totalmente humano para estudar a esclerose lateral amiotrófica”. Em placas de plástico, ela cultivou neurônios motores feitos a partir de célulastronco embrionárias humanas e astrócitos, células cerebrais em forma de estrela que integram a glia – cola, em grego –, o tecido que nutre e sustenta os neurônios e dá estrutura ao

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CAROL MARCHETTO E FRED GAGE/INSTITUTO SALK

cérebro. É um avanço importante porque a maior parte dos estudos é feita em camundongos, mas em geral as drogas que funcionam neles não produzem o mesmo efeito em seres humanos. Esse sistema permite estudar como mutações em genes específicos dão origem a diferentes manifestações da esclerose lateral amiotrófica. Uma das mutações – a estudada por Carol – produz uma versão deficiente da proteína SOD1, que deixa de ser metabolizada e passa a se acumular nos neurônios motores. Como um corredor longo e estreito que é transformado em depósito, os detritos nos neurônios bloqueiam a passagem de nutrientes e substâncias de sinalização para a extremidade que estimula o músculo. Com isso, o neurônio não tem como cumprir sua função e morre. E o músculo se atrofia. A doença não se limita aos neurônios. Nos últimos anos, o grupo do neurocientista Don Cleveland, da Universidade da Califórnia em San Diego, mostrou que quando a mutação está nas células da glia elas produzem substâncias que dão origem a uma reação inflamatória e com isso ativam o sistema imunológico. “As células de defesa migram até o sistema nervoso e atacam os neurônios, matando-os”, explica a bióloga. A descoberta foi uma boa notícia para perspectivas de tratamento, já que não existem drogas que consigam restabelecer a saúde do neurônio motor. Estudos recentes de outros grupos mostraram que se as células-suporte estão saudáveis, os neurônios afetados vivem mais. A melhor alternativa pare-

ce ser impedir que o sistema imunológico ataque os terminais dos neurônios, com medicamentos imunossupressores e antioxidantes. Novas perspectivas - É uma reviravolta terapêutica. O medicamento até agora mais eficaz contra a doença, o riluzole, elimina o neurotransmissor glutamato que se acumula nas conexões entre os neurônios em atividade, função normalmente desempenhada pelos astrócitos saudáveis. Mas ele estende muito pouco a sobrevida do paciente. O grupo de San Diego testou cinco compostos antioxidantes e conseguiu reduzir a atividade oxidativa das células. A droga mais promissora, a apocinina, parece de fato melhorar a sobrevivência dos neurônios em cultura com astrócitos portadores de mutação. O passo seguinte será construir modelos in vitro mais complexos: tridimensionais, com maior diversidade de células cerebrais e até vasos sangüíneos. Assim, espera-se reproduzir em laboratório as condições o mais próximo possível das que realmente acometem as pessoas com a doença. Esses modelos também devem permitir o exame do efeito provocado por mutações responsáveis por outras variedades de esclerose lateral amiotrófica. Estudar a SOD1 tem sido proveitoso, embora ela esteja por trás de apenas 2% dos casos. Outra mutação foi identificada pelo grupo da geneticista Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo (USP), e descrita em 2004 no American Journal of Human Genetics. Ela altera a proteína

VAP-B, essencial no transporte de substâncias dentro das células. De lá para cá, vários grupos de pesquisa publicaram trabalhos esmiuçando o funcionamento da proteína. Já se sabe que a mutação a torna insolúvel e acaba formando agregados dentro das células. “O mais importante é que identificar essa proteína, que parece interferir em vários tipos de esclerose lateral amiotrófica, deixa claro que genes aparentemente raros podem ajudar a desvendar mecanismos patológicos comuns”, comemora a geneticista. Mayana tem se esforçado para entender melhor a doença. Miguel Mitne-Neto, um dos alunos de doutorado orientados por ela, estuda a interação da VAP-B com outras proteínas. Em artigo publicado em 2007 na revista Protein Expression and Purification, ele mostrou que a mutação reduz a afinidade da VAP-B com duas outras proteínas que atuam no cérebro – a tubulina e a GAPDH – cujo funcionamento deficiente já foi verificado em outras doenças neurodegenerativas. Para entender melhor como essas proteínas atuam no cérebro e testar possibilidades de tratamento, vem a calhar o novo modelo desenvolvido por Carol e Muotri. “Já estamos em contato com eles para colaborarmos nessa nova fase do estudo”, conta Mayana. ■ > Artigos científicos 1. MARCHETTO, M. C. N. et al. Non-cellautonomous effect of human SOD1 astrocytes on motor neurons derived from human embryonic stem cells. Cell Stem Cell. v. 3, n. 6. dez. 2008.

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o i e l o b o bambolei O O bamboleio das partículas FÍSICA

Elétrons essenciais à criação de computadores quânticos são mais bem compreendidos Reinald o José Lopes

C

onhecer os obstáculos ao longo do percurso é tão importante quanto alcançar a linha de chegada na corrida para se projetar uma forma eficiente de computador quântico, máquina capaz de utilizar as propriedades das partículas fundamentais da matéria para fazer cálculos muito mais rapidamente do que os computadores convencionais. É o que sugere o trabalho de físicos brasileiros que estudam uma característica das partículas atômicas chamada spin – giro, em inglês –, que no caso das partículas de carga negativa (elétrons) pode ser descrito, ainda que com alguma imprecisão, como o sentido em que giram ao redor de seu próprio eixo. Investigando essa propriedade dos elétrons, a equipe do físico José Carlos Egues, da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos, descobriu recentemente uma interação entre essa partícula e o caminho que ela percorre, que pode afetar o controle do spin, uma das tecnologias – a spintrônica – imaginadas para o desenvolvimento de uma eletrônica não-convencional útil para

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a computação quântica. Em paralelo, o grupo do engenheiro elétrico Gilberto Medeiros-Ribeiro, do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas, vem testando experimentalmente o controle do spin de elétrons em diferentes componentes que, quem sabe, um dia possam integrar esses computadores do futuro. Nos computadores atuais – usados em casa ou no trabalho – a informação é codificada em unidades chamadas bit, representadas pelos números 0 e 1, que representam ausência ou presença de corrente elétrica. Por analogia, a unidade básica da computação quântica é o bit quântico ou qubit, que pode ser codificado no spin dos elétrons. Embora os elétrons não sejam esferas – estão mais para pontos, sem dimensão espacial –, assume-se que girem em torno do próprio eixo como um peão. Dependendo do sentido de rotação, diz-se que o spin é up (para cima) ou down (para baixo), o equivalente ao 0 e ao 1 dos computadores tradicionais. Aí as semelhanças terminam. De acordo com a mecânica quântica, parte da física que explica o comportamento

das partículas subatômicas, cada elétron pode, a um só tempo, girar para baixo e para cima e também em todos os outros sentidos, como se assumissem simultaneamente os valores 0 e 1 e todos os intermediários, como 0,23 ou 0,65, entre outros – é o que os físicos denominam sobreposição de estados quânticos. Só se conhece ao certo o sentido de rotação ou o valor do spin no momento em que ele é medido. Essa característica faz do spin dos elétrons uma base interessante para a computação quântica, uma vez que, se for controlada, a sobreposição de estados aumenta exponencialmente a capacidade de fazer cálculos – cada qubit seria capaz de lidar com muito mais informação do que os bits clássicos. Em condições ideais, algumas centenas de qubits poderiam codificar mais informação do que o número de partículas elementares de todo o Universo. Apesar desse potencial astronômico, o valor prático da computação quântica ainda precisa ser totalmente demonstrado. “As aplicações ainda vão demorar. Por enquanto é um erro conceitual dizer que o computador quântico vai ser bom para tudo, superando os computadores clássicos em qualquer tarefa”, explica Egues. Até agora as vantagens estão restritas a problemas bem específicos como a compreensão de fenômenos quânticos da física e da biologia ou o desenvolvimento de formas mais seguras de codificação de informação (criptografia). Giro sob controle – O desafio é trans-

formar essas possíveis aplicações em realidade. No caso da spintrônica, a dificuldade envolve tanto a indução do spin desejado nos elétrons de determinado material quanto impedir que, feito um peão cambaleante, eles acabem oscilando e assumindo o spin oposto. Segundo Egues, a primeira demonstra-

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OS PROJETOS 1. Interações magnéticas e transporte eletrônico spin polarizado em pontos quânticos magnéticos 2. Materiais nanoestruturados investigados por microscopias de tunelamento e força atômica através de medidas de transporte

MODALIDADE

1. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa 2. Programa Jovem Pesquisador COORDENADORES

1. JOSÉ CARLOS EGUES DE MENEZES – IFSC 2. GILBERTO MEDEIROS RIBEIRO - LNLS INVESTIMENTO

EDUARDO CESAR

1. R$ 93.343,20 (FAPESP) 2. R$ 587.417,83 (FAPESP)

ção sólida de que era possível enfrentar a instabilidade do spin veio em 1999, de um trabalho de David Awschalom, da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, nos Estados Unidos. A partir desse resultado começou uma corrida para aumentar esse controle e dominar a inversão do spin – fazê-lo passar de up para down, o que equivaleria a uma operação com um único qubit. Um dos fatores que dificultam esse controle é a sutil variação de temperatura do material onde estão os elétrons – no mundo atômico a temperatura corresponde ao nível de agitação das partículas, o que significa que mesmo em um sólido elas nunca estão totalmente imóveis. Essa agitação interfere na trajetória que o elétron percorre ao redor dos átomos e pode modificar seu spin – é a chamada interação spin-órbita, um caminho de mão dupla, uma vez que tanto a trajetória afeta o spin quanto vice-versa.

Em um trabalho publicado em 2007 na revista Physical Review Letters, Egues e seus colaboradores identificaram uma nova forma de interação entre o spin do elétron e a órbita do próprio elétron – um efeito com influência pequena, mas significativa, sobre o bamboleio dos elétrons. “Essas interações entre spin e órbita também podem ser boas, pois permitem manipular o spin da maneira desejada, controlando a trajetória dos elétrons”, diz o físico da USP. Em outro trabalho de 2007, publicado na Physical Review B, o grupo de Egues, em parceria com Fabricio Souza, atualmente pesquisador na Universidade de Brasília, demonstrou teoricamente que é possível construir um dispositivo capaz de selecionar os elétrons segundo o spin que apresentam em determinado momento – o chamado diodo de corrente de spin –, útil para a realização de operações computacionais que envolvam o controle da rotação dessas partículas. Os diodos de spin, construído experimentalmente este ano por pesquisadores da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, deixam passar apenas elétrons com o mesmo sentido de rotação, funcionando como um filtro, de modo semelhante aos diodos da eletrônica convencional, que só deixam passar eletricidade em um sentido. A era do diamante – Ainda que mui-

tos trabalhos lidem com o controle de elétrons em materiais como o silício, largamente usado nos computadores tradicionais, alguns estudos avaliam o uso de alternativas mais exóticas, como o diamante. Em geral considerado um material isolante – por não permitir a movimentação nem a manipulação de elétrons –, o diamante pode em determinadas circunstâncias funcionar como um excelente semicondutor. Para isso,

basta que entre os átomos de carbono existam impurezas, como átomos de nitrogênio. Cada átomo de nitrogênio substitui dois dos seis átomos de carbono que compõem a estrutura interna em forma de tetraedro do diamante. Essa substituição deixa o espaço de um carbono vago – é o chamado centro de vacância – e permite a manipulação dos elétrons do nitrogênio. Usando microondas, Gilberto Medeiros-Ribeiro e Thiago Alegre, da Universidade Estadual de Campinas, conseguiram controlar experimentalmente o spin dos elétrons nesses centros de vacância, como descreveram em artigo de 2007 na Physical Review B. “Conhecendo espacialmente a impureza no diamante, é possível determinar a mudança de estado de spin”, conta o pesquisador do LNLS. Espera-se que o controle desse fenômeno permita, no futuro, usar essas estruturas para realizar operações computacionais. Medeiros-Ribeiro, porém, recomenda cautela diante do pouco que se sabe sobre os mecanismos básicos da computação quântica. “A cada problema vencido, aparece outro. Os obstáculos são difíceis de ser transpostos e existem limites fundamentais para o que podemos fazer que ainda não são bem compreendidos”, diz. Para Egues, as incógnitas mostram a fertilidade científica desse campo: “Se soubéssemos aonde isso vai dar, não haveria tantos grupos ■ estudando esses problemas”. > Artigos científicos 1. BERNARDES, E. et al. Spin-Orbit Interaction in Symmetric Wells with Two Subbands. Physical Review Letters. v. 99. 2007. 2. ALEGRE, T.P.M. et al. Polarization-selective excitation of nitrogen vacancy centers in diamond. Physical Review B. v. 76. 2007.

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ASTRONOMIA

Uma estrela cheia de mistérios

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partir da última semana de dezembro – e pelos próximos três meses – astrônomos no Brasil, na Argentina e no Chile apontarão seus telescópios para uma mesma região do céu à direita da constelação do Cruzeiro do Sul, nesta época do ano visível apenas durante a madrugada. Eles pretendem observar com o maior nível de detalhe possível um fenômeno que se repete a cada 5,5 anos na nebulosa de Eta Carinae: a redução brutal de brilho da maior e mais luminosa estrela da Via Láctea, a nossa galáxia. O apagão da estrela Eta Carinae que os astrônomos esperam registrar ocorreu há 7.500 anos. Só será visto agora porque a luz leva todo esse tempo para chegar ao Sistema Solar. Identificada há 16 anos pelo astrônomo Augusto Damineli, da Universidade de São Paulo, a perda de luminosidade da Eta Carinae, em geral 5 milhões de vezes mais brilhante do que o Sol, ainda intriga os astrônomos. Atinge gradualmente diferentes faixas de radiação (rádio, infravermelho e raios X) e dura três meses. Distante 7,5 mil anos-luz da Terra, a estrela pode ser observada com binóculos, mas o apagão só é detectável com equipamentos especiais. A regularidade com que ocorre e o perfil da perda de brilho da estrela fortalecem a explicação de Damineli para o fenômeno. Eta Carinae não seria uma estrela, mas duas: uma menor e mais quente e outra maior, mais fria e mais brilhante. Numa espécie de balé cósmico, a estrela menor, com massa 30 vezes superior à do Sol, gravita em torno da estrela principal, três vezes maior que a primeira. O resultado dessa atração mútua é uma órbita elíptica que a estrela menor percorre em 2.023 dias. Pelos cálculos de Damineli, o apagão ocorre na fase de aproximação máxima entre as estrelas, quando a menor é em parte encoberta pela principal.

Nebulosa Homúnculo: formada por gás ejetado da estrela Eta Carinae

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Até recentemente se acreditava que esse eclipse explicasse a redução de luminosidade detectada pelos telescópios em terra e no espaço. Mas a realidade não é tão simples. Se o eclipse fosse a única causa, todas as faixas de energia deveriam se tornar indetectáveis a um só tempo. Não é o que se observa, pois algumas somem antes das outras. A partir de simulações tridimensionais do comportamento das estrelas, Atsuo Okazaki, da Universidade Tokkai-Gakuen, no Japão, interpreta de outro modo o apagão: além do eclipse, a perda de brilho seria resultado de perturbações causadas pelos ventos de partículas que emanam das duas estrelas e colidem a velocidades altíssimas – no período de aproximação máxima a estrela menor mergulha nos ventos da maior, que a envolvem e interferem na radiação por ela emitida. Nas observações de agora os astrônomos esperam enxergar através dos ventos e registrar quando e em que ordem as faixas de radiação deixam de brilhar. “São questões que podem permitir conhecer características obscuras da estrela secundária, como massa e temperatura da superfície”, diz Damineli. “Essas informações tornarão possível prever o futuro dessas estrelas”, conta o astrônomo, que acompanhará o apagão no telescópio do Southern Observatory for Astrophysical Research (Soar), nos Andes chilenos. ■

Ricard o Zorzet to

HST/NASA

Observatórios vão acompanhar o apagão da Eta Carinae

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ESPECIAL EINSTEIN 1I

O UNIVERSO ALÉM DA FÍSICA 63 Pluralismo e relativismo nas

sociedades humanas: o impacto das idéias de Einstein

Mauro Almeida 64 O dossiê Einstein no FBI:

a documentação de sua luta pelos direitos civis

Olival Freire 66 De Galileu a Einstein: do tempo

da física ao tempo vivido

Pablo Mariconda 68 É possível produzir um Einstein?

Algumas reflexões sobre Einstein e a educação

Antônio Augusto Videira 69 As contribuições e críticas

de Einstein à física quântica

Silvio Chibeni 70 O tempo no teatro

Sérgio de Carvalho 72 Um cientista nos trópicos: a viagem

de Einstein à América do Sul

Alfredo Tolmasquim 74 O tempo e a memória

Martín Cammarota 76 Impactos da obra de Einstein

no campo da física médica

Roberto Covolan 77 O mistério do Universo em aceleração

Gary Steigman 79 Piaget, Einstein e a noção

de tempo na criança

Lino de Macedo 80 Movimento browniano,

caos e fractais

Carmen Prado 82 Buracos negros: rompendo

os limites da ficção

George Matsas

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AS TEIAS DA

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Os relatos apresentados neste encarte mostram como o pensamento de Albert Einstein se formou, se consolidou e se espraiou para muito além da física. E com uma contribuição do Brasil. Um desvio da trajetória da luz observado no eclipse solar em 1919 em Sobral, no interior do Ceará – e também na África Ocidental –, foi decisivo para dar credibilidade à teoria geral da relatividade e conferir prestígio a seu autor. Poucos anos depois o próprio Einstein esteve no país, especificamente no Rio de Janeiro, quando realizou um pequeno périplo pela América do Sul em 1925. “No primeiro dia achou tudo maravilhoso, mas na volta para a Alemanha, quase dois meses depois, após passar por Buenos Aires e Montevidéu, não suportava mais o calor, a comida e as numerosas homenagens”, contou o historiador da ciência Alfredo Tolmasquim em uma das apresentações. Este segundo encarte, de três, faz parte da programação paralela da exposição Einstein, no pavilhão Armando Arruda Pereira, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Os eventos são uma parceria do Instituto Sangari com Pesquisa FAPESP. Nas palestras, não só físicos mas também filósofos, antropólogos e pedagogos, entre outros representantes das ciências humanas, FÍSICA compareceram momentaneamente munidos de uma linguagem simples, para dialogar com a platéia e mostrar como a obra de Einstein influenciou suas respectivas áreas de trabalho. Na antropologia, o físico alemão inspirou o relativismo pop, “uma espécie de niilismo”, como definiu o antropólogo Mauro Almeida. O teatro também tem sua maneira própria de lidar com o tempo, que no palco resulta da organização dos elementos de cada cena, como explicou o diretor teatral Sérgio de Carvalho. Já o pedagogo Lino de Macedo mostrou como Einstein motivou o psicólogo suíço Jean Piaget a pensar o tempo da aprendizagem, em especial o das crianças. A força do físico alemão chegou a campos ainda menos imaginados como o ativismo social contra as disparidades sociais nos Estados Unidos no início do século XX. O historiador da ciência Olival Freire contou em sua apresentação que o FBI, a agência norte-americana de investigações, quase expulsou o cientista dos Estados Unidos sob acusação de espionagem para a hoje extinta União Soviética. O filósofo Silvio Chibeni mostrou que Einstein lançou também as bases de uma nova área da física, a mecânica quântica. Curiosamente, às vezes ele próprio desconfiava das implicações de suas teorias. O físico George Matsas comentou que Einstein morreu aos 76 anos, em 1955, possivelmente sem acreditar em buracos negros, corpos celestes extremamente compactos, dotados de um campo gravitacional descomunal a ponto de atrair até mesmo a luz, e previstos na teoria da relatividade geral, de 1915. Os vídeos de cinco minutos com os principais momentos de cada apresentação e o texto sobre elas estão no site de Pesquisa FAPESP (www.revistapesquisa.fapesp.br). Lá se encontram também os resumos, os vídeos e as íntegras das palestras complementares à exposição Revolução genômica, que representaram a primeira experiência da revista em ampliar o debate sobre a ciência no Brasil e no mundo.

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idéia de que diferentes povos teriam sistemas equivalentes de vida. Aquilo que Almeida descreve como o experimento de Sobral da antropologia aconteceu numa aldeia da ilha de Nova Guiné, em que o antropólogo polonês Bronislaw Malinowski procurou mostrar que a sociedade que estudou funciona tão bem quanto a nossa, mas com instituições e costumes diferentes. Mas foi o lingüista Benjamin Lee Whorf quem propôs um princípio que chamou de princípio da relatividade lingüística ou princípio da relatividade cultural, em que a percepção dos fenômenos por uma sociedade depende da estrutura lingüística que adota. O exemplo maior apresentado por ele eram os hopis, uma tribo indígena norte-americana que percebe o tempo e o espaço de maneira completamente diferente da visão ocidental moderna – não há antes, agora e depois –, algo que estaria embutido na linguagem deles. “Einstein, coitado, estava alimentando uma visão liberada de antropólogos que se sentiam perfeitamente à vontade para dizer que os povos primitivos estavam além do pensamento ocidental moderno. Encontravam-se, de certa maneira, com as idéias mais avançadas da física.” E a idéia se estendia para usos e costumes. A norteamericana Margaret Mead catalogou papéis sociais em diferentes sociedades da Nova Guiné, que vivem isoladas umas das outras por montanhas íngremes. Conforme a cultura local, marido e mulher podiam ambos desempenhar papéis femininos, ou masculinos ou adotar comportamentos invertidos em relação ao esperado. E nos Estados Unidos tudo seria relativo: tudo o que se pode imaginar acontece, vale tudo. A idéia era usar outras culturas como exemplos de tolerância e convivência com os quais norteamericanos deveriam aprender.

MAURO ALMEIDA

Mesmo que a maior parte das pessoas não entenda a física de Albert Einstein, Mauro Almeida mostrou que a terminologia entrou para o vocabulário popular. “A idéia de abolição de um espaço e um tempo absolutos pela teoria da relatividade teve um efeito extremamente forte na visão de mundo, na visão das sociedades e, em particular, entre os antropólogos que estudavam outros modos de vida”, contou o antropólogo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) no dia 25 de outubro, na palestra “Pluralismo e relativismo nas sociedades humanas: o impacto das idéias de Einstein”. É essa leitura, de que tudo é relativo, que ele chama de relativismo pop. O mundo relativístico foi descrito pelo historiador Paul Johnson, que afirmou no livro Tempos modernos, de 1983, que o mundo moderno nasceu no Brasil. Foi em 1919, quando as fotografias de um eclipse solar feitas na África Ocidental e em Sobral, no Brasil, comprovaram a teoria da relatividade geral. Foi um momento de grande impacto para a ciência, mas sobretudo para a sociedade, que passou a ver tudo como relativo: não havia mais tempo e espaço, bem e mal, conhecimentos nem valores. Pode parecer exagero, mas para Almeida a influência foi mesmo grande e chegou à antropologia profissional, em publicações a partir de 1920. Almeida mostrou que alguns antropólogos não escaparam da divulgação errônea da teoria da relatividade. De acordo com a física, observadores em diferentes sistemas de referência descrevem o mundo de maneira diferente, medindo distâncias e tempos de forma distinta, mas as leis da natureza serão sempre as mesmas e todos medirão da mesma maneira a velocidade da luz. Bem diferente do que prega a visão pop, que só reteve a idéia de que diferentes observadores vêem fenômenos diferentes, mas concluiu disso que não existem leis válidas para todos. “O relativismo pop é uma espécie de niilismo”, resume Almeida. Aplicado à antropologia, esse conceito leva à idéia de que cada sociedade tem seus princípios e eles são incompatíveis entre si, como se cada grupo humano fosse um mundo isolado dos demais sem constantes que os unissem. Antropologia relativa O início da etnografia moderna, segundo ele, coincidiu com a comprovação da teoria da relatividade. A partir dos anos 1920, antropólogos passaram a viajar mundo afora para estudar diferentes sociedades e tentar comprovar a

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MARCIA MINILLO

A leitura popular das idéias do cientista alemão resultou num equívoco, segundo antropólogo da Unicamp

Almeida: relativismo pop influenciou ciências humanas

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Essa moda levou, disse Almeida, a um beco-sem-saída em que no final do século XX a antropologia ficou desacreditada. “Como se não fosse capaz de fazer juízo nenhum e recusar-se àquilo que seria obrigação do cientista, que é de alguma maneira subsidiar a ação e a conduta.” O papel moderador do antropólogo foi discutido numa polêmica recente sobre infanticídio em indígenas: grupos religiosos acusaram antropólogos de omissão, pois deveriam intervir impedindo essa prática, para alguns comparável ao aborto. Almeida também apresentou exceções ao relativismo antropológico que expôs em sua palestra. Claude Lévi-Strauss, o antropólogo francês que está completando 100 anos de idade e fez seu experimento etnográfico no Brasil nos anos 1930, foi influenciado por uma teoria da relatividade mais próxima daquela formulada por Einstein. Ele fez uma análise mais refinada do que a de Margaret Mead, separando as relações sociais em categorias, como relações conjugais, entre gerações ou

entre irmãos. Com isso, pôde concluir que, embora haja diferenças profundas em como as sociedades funcionam, elas compartilham princípios comuns: as relações entre consangüíneos, por exemplo, são acompanhadas por atitudes opostas às das relações de afinidade. Mais recentemente, os indígenas brasileiros têm sido estudados pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que desenvolveu o que chamou de perspectivismo ameríndio. Essa concepção diz que sujeitos humanos e não-humanos apreendem o mundo a partir de pontos de vista distintos – os animais, por exemplo, se veriam como gente, conforme a visão de mundo dos índios: para uma onça, uma pessoa é uma presa. “A forma que cada espécie ocupa é, no fundo, um envoltório; é uma espécie de roupa da qual você pode entrar e sair”, explicou. Os índios dizem que essas roupas são como referenciais; ao adotar a roupa dos animais, nos vemos como humanos. Só os xamãs conseguem transitar entre os diferentes corpos e trazer para as pessoas os efeitos de mudar a perspectiva. O perspectivismo indígena sugere um humanismo generalizado. “A lição desse humanismo é que nós, que acreditamos que apenas nós somos humanos, somos os verdadeiros animais.” Ao tratarmos animais como presas, nos comportamos também como animais. Mudam as interpretações, mas, sem querer, Einstein até hoje permeia áreas do conhecimento para as quais provavelmente nunca imaginou contribuir.

OLIVAL FREIRE

disponíveis no site do FBI. A abundante documentação em que o jornalista norte-americano se apoiou é resultado da investigação conduzida por Edgar Hoover, “diretor quase eterno do FBI”, que pretendia expulsar do país uma das maiores personalidades da ciência por sua suposta espionagem a favor da extinta União Soviética, portanto uma atitude antiamericana. O processo só foi arquivado quando o cientista, doente, foi hospitalizado de maneira quase irreversível, acabando com os planos de Hoover. “Imaginem vocês se ele tivesse obtido sucesso [...]. A história e a própria exposição a que nós estamos assistindo talvez não existissem ou teriam sido bastante diferentes”, comentou o historiador. Judeu alemão discriminado em seu país, Einstein migrou em 1933 para os Estados Unidos, quando foi contratado pela Universidade de Princeton. Alguns anos depois, em 1940, obteve a cidadania norte-americana, ato que teve grande significado político naqueles tempos de guerra: um dos alemães mais ilustres do século XX adotando um novo país e jurando sua bandeira. Como cidadão americano, suas posições políticas se tornaram ainda mais incisivas: ele não poderia se calar numa sociedade em que lincha-

A idéia de abolição de um espaço e um tempo absolutos pela teoria da relatividade teve um efeito extremamente forte entre antropólogos

Historiador da ciência apresenta um ativista contra as disparidades raciais nos Estados Unidos

Ícone cultural do século XX, Albert Einstein não é só conhecido por suas contribuições à física. Ele também adotou posturas políticas claras como ser pacifista e se recusar a apoiar a Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial. Na Segunda, ele chegou a defender que as nações democráticas deveriam se armar para enfrentar a ameaça nazista. Mas foi de uma faceta menos conhecida que Olival Freire, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), tratou na palestra “O dossiê Einstein no FBI: a documentação de sua luta pelos direitos civis”, no dia 25 de outubro: a de opositor da segregação racial nos Estados Unidos. Apesar de só ter vindo à tona em 2002, quando o jornalista Fred Jerome publicou o livro The Einstein file, os dados em que ele se baseou são públicos e estão

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AUMULLER, AL, PHOTOGRAPHER

Homenagem mútua Embora avesso a homenagens e honrarias das quais recusou várias, Einstein aceitou o título de doutor honorário pela Universidade Lincoln em 1946. O motivo da exceção era condizente com sua militância: se tratava de uma universidade pequena na Pensilvânia que se propunha a educar homens negros que não seriam aceitos em outras universidades. “A separação das raças [...] não é uma doença das pessoas de cor, mas uma doença dos brancos”, disse em

Einstein recebe a cidadania americana em 1940

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MARCIA MINILLO

mentos de negros eram corriqueiros e aconteceram até os anos 1960. E chega a adotar uma retórica americana para expor suas opiniões: “Todos que aprendem pela primeira vez ou têm notícia pela primeira vez desse estado de coisas numa idade mais madura sentem não só a injustiça, mas a desmoralização dos princípios dos fundadores dos Estados Unidos, o princípio em que todos os homens são criados iguais”, disse num manifesto à Liga Urbana Nacional em 1946. Para Freire, uma boa ilustração da atitude de Einstein são a amizade que ele manteve com negros norte-americanos que tinham posição de destaque na defesa dos direitos civis dos negros. Um deles era o historiador W.E.B. Du Bois, fundador da National Association for the Advancement of Colored People, associação que o físico alemão foi convidado a integrar – e aceitou. Em texto para a revista que Du Bois editava, Einstein condenou o racismo e defendeu a necessidade de a minoria negra unir-se contra a opressão da classe dominante que os tratava como inferiores. Mas seu ato mais marcante nessa amizade foi se propor a testemunhar a seu favor quando Du Bois foi processado por acusação de ser ligado ao Partido Comunista. Era 1951 e o cientista ativista já estava com a saúde bem debilitada, mas acabou não precisando ir ao tribunal. “Quando o advogado de defesa anunciou que Du Bois tinha uma única testemunha de defesa que era o cientista Albert Einstein, o juiz pediu a suspensão da sessão e, quando voltou, disse que o caso estava arquivado”, contou Freire.

Olival Freire: anti-racismo ativo revelado

seu discurso em que aceitou a homenagem. “Não pretendo me calar a esse respeito.” Não se calou. Há inúmeros registros de cartas escritas a autoridades e manifestações diversas de apoio por esse cientista que não só mantinha amizades com negros, mas visitava esses amigos na rua de Princeton em que viviam segregados. Numa sociedade em que brancos não costumavam cumprimentar negros, muito menos se sentar perto deles, Freire mostrou alguns depoimentos marcantes de pessoas sem projeção política que eram excluídas da sociedade pela cor de sua pele, como o de uma mulher negra: “Eu ia freqüentemente com a minha mãe para a cozinha do Instituto de Estudos Avançados onde Einstein trabalhava. Ele vinha sempre na hora do almoço. Ele era tão simpático! Eu lembro de andar pelo instituto com Einstein, e também ia ao seu escritório. Eu tinha 6 anos na época”. Mesmo que os registros fossem públicos no site do FBI, demorou para que essa faceta viesse à tona. Para Freire há duas razões. “A primeira é que a imagem pública de Einstein e a dimensão do seu combate à segregação racial refletiam a dificuldade que os Estados Unidos tinham, e eu diria que ainda têm, de lidar com o seu próprio passado.” No dia em que falou no Ibirapuera, 25 de outubro, poucos dias antes das eleições norte-americanas, o físico-historiador baiano chamou a atenção para o fantasma que pairava sobre a vitória projetada de Barack Obama: 2% ou 3% do eleitorado poderia mudar para o lado republicano na última hora pelo simples motivo de o candidato democrata ser negro.

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A segunda razão apontada por Freire é que a Universidade de Princeton, onde Einstein trabalhava, é (e já era) uma das mais renomadas do país. Mas está sediada numa pequena cidade onde a segregação racial era acentuada. Era exatamente a universidade para onde os jovens do Sul, região conhecida por sua inclinação racista, se encaminhavam não só pela qualidade do ensino mas por ali estarem protegidos de conviver com raças por eles consideradas inferiores. “Essa faceta de Einstein, portanto, é

incômoda não só para a imagem e para o modo que os Estados Unidos lidam com sua história recente, mas ela é especialmente incômoda para a história da própria Universidade de Princeton”, disse o historiador. Ele festeja o fato de terem sido jornalistas americanos a trazer à tona o lado anti-racista de uma das maiores personalidades do século XX, dando maior impacto à revelação.

PABLO MARICONDA

dos eventos naturais) e a idéia de relatividade do movimento (e de sua caracterização físicomatemática). “Esses dois aspectos, presentes no pensamento de Galileu, convergem em um sentido preciso para a concepção relativista de Einstein”, disse o filósofo da USP. No início do século XVII, Galileu foi o primeiro a introduzir na física o conceito de que o tempo é uma grandeza mensurável, ligada à determinação matemática do movimento. Fez isso por meio da chamada lei da queda dos corpos, segundo a qual a distância percorrida pelos corpos em queda livre é proporcional ao quadrado do tempo decorrido. Estabeleceu-se, assim, uma relação entre o espaço e o tempo. Com essa lei Galileu modificou a própria significação do conceito de tempo e criou o que se entende, desde então, como o tempo físico. “Isso abriu a possibilidade do desenvolvimento de uma cronologia centrada na natureza, diferentemente da cronologia medieval ou renascentista que se centrava no homem e nos seus afazeres”, comentou Mariconda. “Galileu introduz o tempo físico para além daquilo que poderíamos chamar de tempo social.” Essa modificação na significação da noção de tempo está intimamente ligada a uma nova concepção da natureza, que é vista como composta por regularidades imanentes às ligações observáveis

Filósofo da USP diz que Einstein desenvolveu as idéias de Galileu

FOTOS MARCIA MINILLO

Na palestra intitulada “De Galileu a Einstein: do tempo da física ao tempo vivido”, o filósofo Pablo Mariconda, da Universidade de São Paulo (USP), traçou um paralelo entre as idéias de Galileu Galilei (1564-1642) e Albert Einstein. Segundo o pesquisador, o trabalho de Einstein, embora revolucionário, não promoveu uma ruptura em relação às teses de Galileu Galilei (1564-1642), mas um desenvolvimento do pensamento do cientista italiano, que vivera quase três séculos antes do gênio alemão. “Einstein aprofunda a constituição do observador científico, que, cada vez mais, se separa do observador comum”, disse o filósofo, que fez a apresentação no dia 1° de novembro. Mariconda comparou especificamente as idéias de Galileu e de Einstein sobre duas questões fundamentais da física: o tempo físico (e a organização espaço-temporal

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Mariconda: entre as idéias do físico alemão e do cientista italiano

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entre os acontecimentos. Essas regularidades podem ser matematicamente expressas e adquirem o estatuto de leis eternas, presentes em todas as transformações observáveis na natureza. Na concepção de tempo físico introduzida por Galileu, o termo tempo designa, na verdade, um movimento físico, uma seqüência de eventos físicos tomada como padrão de medida de tempo. Essa peculiaridade faz com que os instrumentos desenvolvidos para medir o tempo, os relógios, devam estar constantemente em movimento uniforme, sem aceleração. Os ponteiros de um relógio, por exemplo, devem percorrer um dado espaço fixo a um intervalo de tempo sempre regular. “Galileu marca o início da cronometria”, disse Mariconda. Einstein dá um passo além na definição do tempo. Para ele, além de grandeza física, o tempo é uma dimensão do espaço natural. “Vocês podem ver, principalmente na parte relativa ao tempo da exposição Einstein, a dilatação e contração da dimensão temporal proposta pelo físico alemão”, afirmou. Para estabelecer a relação entre as idéias de Galileu e Einstein sobre a questão da relatividade do movimento, Mariconda retrocedeu ainda mais no tempo e recorreu às teses do polonês Nicolau Copérnico (1473-1543). No século XVI, ao apresentar a sua hipótese do duplo movimento da Terra (rotação e translação), Copérnico introduz o chamado princípio da relatividade óptica do movimento, que determina três situações possíveis na relação entre o observador e o objeto observado: o movimento pode ser produzido pelo observador, pela própria coisa observada ou por ambos. “Esse princípio chama a atenção para a relatividade do conceito de movimento e de repouso em relação ao observador”, explicou o filósofo. Galileu aprofunda essa concepção na direção da relatividade mecânica, segundo a qual o movimento e o repouso são estados

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REPRODUÇÃO

Galileu marca o início da cronometria. Einstein dá um passo além na definição do tempo, que é visto como uma dimensão do espaço natural

Galileu: o primeiro a medir o tempo

relativos e complementares dos corpos: um só pode ser definido em relação ao outro. Ou seja, o movimento só pode ser caracterizado em função dos corpos que não participam desse movimento. “Segundo Galileu, o movimento é totalmente extrínseco à natureza das coisas”, disse. “Ele é definido como uma simples modificação das relações espaço-temporais entre as coisas.” De acordo com as idéias do cientista italiano, dois corpos animados pelo mesmo movimento estão em repouso entre si e, ao mesmo tempo, em movimento em relação a todos os outros corpos que estão fora desse movimento comum. O princípio da relatividade de Galileu possui uma importante conseqüência experimental: um observador situado no interior de um sistema em movimento não consegue definir se esse sistema mecânico está em repouso ou em movimento uniforme. Galileu, portanto, mostra as diferenças entre um observador interno e outro externo a um sistema em movimento. “A relatividade einsteiniana aprofunda essa perspectiva”, comentou Mariconda. Einstein muda de maneira muito peculiar a posição do observador em seus experimentos de pensamento. O físico imagina, por exemplo, o que aconteceria se fosse possível postar um observador se movendo à velocidade da luz (300 mil quilômetros por segundo). Uma das conseqüências dos estudos de Einstein é demolir a noção de que há um tempo absoluto, como dizia Isaac Newton. Para um observador em movimento na velocidade da luz, o tempo passa mais lentamente do que para as demais pessoas, segundo a relatividade de Einstein.

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ANTÔNIO AUGUSTO VIDEIRA Filósofo da Uerj comenta as idéias do físico alemão sobre educação

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Na palestra “É possível produzir um Einstein? Algumas reflexões sobre Einstein e a educação”, o filósofo Antônio Augusto Videira, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), falou da visão do físico alemão sobre a educação. Einstein era contra o ensino voltado a formar especialistas e acreditava que a educação deveria se preocupar em forjar seres harmoniosos, com múltiplas habilidades, a serviço de sua comunidade. “Infelizmente, muito pouco do que Einstein defendeu para a educação é aplicado hoje”, afirmou o filósofo, na apresentação feita em 1° de novembro. Videira disse que a visão de Einstein sobre educação foi influenciada pela experiência pessoal do físico. Durante a infância e a juventude, Einstein morou em diferentes cidades alemãs e mesmo no exterior – na Itália e depois na Suíça, onde estudou na Escola Politécnica de Zurique –, e essas mudanças freqüentes fizeram com que ele entrasse em contato com distintas culturas. Embora fosse judeu, Einstein chegou até a ter aula numa escola católica num período da infância. “Seu pensamento sobre educação é extraído daquilo que ele aprendeu nesses diversos contextos culturais, sociais e pedagógicos”, afirmou o filósofo da Uerj. Para o físico alemão, as pessoas deveriam ser responsáveis por sua própria formação, e não apenas depender da instrução formal. Einstein, por exemplo, sempre leu muito, tendo entrado em contato com as idéias de físicos e filósofos, como Immanuel Kant e David Hume, ainda antes da adolescência. Isso não quer dizer que o físico fosse simplesmente um defensor do autodidatismo. Einstein não era contra o ensino formal ou o professor, mas a favor de que os alunos de uma escola ou universidade se sentissem envolvidos em seu processo de formação. Einstein acreditava que não era necessário ser especialista em ensino para falar sobre educação. “Ele sempre foi contra a idéia de que a educação tem como principal objetivo formar especialistas”, afirVideira: seres harmoniosos mou Videira. O fílósofo

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citou duas frases do físico que sintetizam essa visão não-utilitarista da educação: “Não basta ensinar ao homem uma especialidade, porque assim ele se tornará uma máquina utilizável, mas não uma personalidade” e “Os excessos do sistema de competição e de especialização prematura assassinam o espírito e impossibilitam qualquer vida cultural e chegam a suprimir os progressos nas ciências do futuro”. O gênio alemão também achava que a educação das pessoas tinha de privilegiar a noção de prestação de serviços para a comunidade e servir de base para a formação de um pensamento independente. O pesquisador da Uerj afirmou que as teses de Einstein sobre educação são diametralmente opostas às idéias dominantes no ensino atual. “Nossos cursos são cada vez mais especializados e as pessoas estão sempre preocupadas com diplomas que vão lhes permitir obter um emprego”, comentou Videira. “As idéias de Einstein são bonitas, mas infelizmente muito pouco praticadas.” Einstein achava que a educação deveria auxiliar o ser humano a atingir sua plenitude, que deveria ser formada por múltiplas competências. “Em vez de nos preocuparmos com as excelências no sentido de sermos sempre os melhores, de tirarmos sempre 10, seria melhor tirarmos várias notas 7 desde que esses 7 pudessem estabelecer uma sólida personalidade”, explicou o filósofo. Aula socrática Com exceção do início da carreira, quando exerceu de forma intensiva a função de professor, Einstein nunca deu muitas aulas, muito menos aulas formais. Mas o físico gostava de interagir com estudantes e assistentes. Só era avesso a dar aulas meramente expositivas, como faziam os professores catedráticos, e também não era favorável a submeter os alunos a um excesso de provas e testes. Videira comentou que um assistente de Einstein dizia que o gênio gostava de dar aulas ao estilo de Sócrates, o antigo filósofo grego, privilegiando o diálogo e a troca de informações entre o mestre e os alunos. Antes de terminar a palestra, Videira respondeu à questão, em parte retórica, se é possível produzir um Einstein. “Acho que podemos responder de duas maneiras: com um sim e com um não”, disse o pesquisador. O não foi justificado pelo fato de ser impossível, a seu ver, produzir um gênio, algo “infabricável”. O sim mereceu outro tipo de explicação. “Se estivermos preocupados em fazer com que as pessoas se sintam responsáveis e satisfeitas com a sua própria formação, nesse caso acho que sim. Acho que podemos produzir não apenas um, mas muitos Einsteins”, ponderou. O filósofo encerrou a apresentação com mais uma citação do físico sobre ensino: “Parece que a reputação científica e as qualidades pessoais nem sempre caminham lado a lado; para mim uma pessoa harmoniosa é mais válida do que o mais sofisticado criador de fórmulas ou inventor de sistemas”.

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fenômeno conhecido como efeito fotoelétrico. Para dar conta das observações desse fenômeno feitas no final do século XIX, o físico alemão propôs que a luz tinha uma natureza granular: o que atinge o metal são pequenos pacotes de luz. Uma proposta revolucionária diante da teoria sedimentada, até aquele momento, de que a luz tinha natureza ondulatória. Só dez anos depois o norte-americano Robert Andrews Millikan conseguiu mostrar, com uma série de experimentos, que a equação proposta por Einstein para descrever aspectos quantitativos do fenômeno estava correta. A idéia dos quanta de luz foi muito contestada entre os físicos – e continuou contestada mesmo depois que Einstein ganhou o Prêmio Nobel em 1921. “Einstein foi solitário na defesa dessa perspectiva durante muito tempo.”

SILVIO CHIBENI Professor da Unicamp mostra o cientista renomado pela relatividade como um dos pais da mecânica quântica

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Teoria na prática Chibeni mostrou que a quantização de propriedades físicas também foi aplicada por Einstein na explicação de diversos outros fenômenos. Em 1905 ele usou a teoria para explicar o curioso fenômeno do movimento browniano, que tinha sido descrito a partir de como grãos de pólen se movem num fluido. A confirmação experimental de suas equações nos anos subseqüentes foi fator decisivo para que a teoria dos átomos fosse definitivamente aceita. Usando os mesmos princípios teóricos, em 1906 ele explicou certas anomalias no comportamento de sólidos a baixas temperaturas. Em 1924 adotou e desenvolveu a proposta de uma estatística quântica, feita pelo então desconhecido físico indiano Satyendra Bose. E por fim apoiou, nessa MARCIA MINILLO

Da perspectiva de um físico filósofo – ou um filósofo da física – o pensamento de Einstein ganha ainda mais profundidade. Na palestra “As contribuições e críticas de Einstein à física quântica”, no dia 8 de novembro, Silvio Chibeni, do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mostrou que a contribuição do renomado físico alemão vai muito além da teoria da relatividade com que o público leigo o identifica. Ele não só foi pioneiro em formular os princípios da mecânica quântica, como também buscou melhorá-los discutindo as limitações da teoria. Como boa parte dos avanços científicos, a teoria da relatividade foi formulada de maneira incremental por vários pesquisadores que trabalhavam no problema. “A relatividade restrita era algo que já estava mais ou menos no ar, na época. A contribuição de Einstein foi principalmente no sentido de fechar esse conhecimento, de dar uma finalização e sobretudo um enfoque filosófico diferente, que modificou a forma pela qual os assuntos estavam sendo discutidos”, contou Chibeni. Mas a partir daí o cientista alemão passou adiante do que outros pensavam e deu o pulo para explicar a relatividade geral, que tem a ver com gravitação. “Nesse caso a contribuição dele foi mais individual, quase tudo dependeu dele.” Em termos de idéias originais, a contribuição de Einstein também foi decisiva na criação do segundo dos grandes pilares da física contemporânea, a mecânica quântica, cuja formulação final foi proposta em meados da década 1920 por dois físicos independentemente: o alemão Werner Heisenberg e o austríaco Erwin Schrödinger. Foram esses nomes que entraram para a história da ciência mais fortemente associados à mecânica quântica, mas foi o trabalho precursor de outro alemão que estabeleceu os fundamentos da teoria. “Há pouca dúvida de que sem a contribuição de Einstein esse desenvolvimento importante na física teria demorado muito mais para acontecer”, disse o filósofo paulista. Ele explica que é comum considerar-se que a física quântica nasceu em um artigo publicado por Max Planck em 1900, em que propôs uma fórmula na qual considerava que o processo de produção de luz fosse quantizado – em pacotes em vez de gradual. Mas na verdade a quantização só foi proposta como um aspecto físico real em 1905, num trabalho em que Einstein explicou como elétrons se desprendem de placas metálicas sobre as quais incide luz, um

Chibeni: justiça à mecânica quântica

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mesma época, a idéia bizarra – porém fundamental para a mecânica quântica – das “ondas de matéria”, formulada pelo jovem Louis de Broglie. Mas o próprio Enstein não ficou completamente convencido com todo esse trabalho precursor. Quando a teoria final foi formulada, ele se tornou, até o fim da vida, o seu principal crítico. Embora achasse a teoria correta, afirmava que ela era incompleta. “Um indício dessa incompletude é que as predições quânticas em geral têm um caráter probabilístico e, em geral, não especificam algumas propriedades dos objetos individuais”, explicou Chibeni. Fazendo uma comparação, é como se alguém informasse a média de idade de um grupo de pessoas, mas não a idade de cada uma. O mais importante argumento apresentado por Einstein para a tese da incompletude da mecânica quântica foi publicado em 1935, em colaboração com Boris Podolsky e Nathan Rosen. Eles estudaram certos pares de objetos que foram criados juntos e compartilham propriedades físicas, mesmo se transportados para locais distantes. Se a mecânica quântica estivesse completa, qualquer ação sobre um deles afetaria instantaneamente o outro. “Para Einstein isso era inaceitável, por violar aquilo que ele chamava de princípio da localidade ou princípio da ação local, segundo o qual as ações físicas não podem ser instantâneas e atingir imediatamente objetos remotos no espaço.” Seguindo essa linha de pensamento – que logo foi considerada dissidente pela comunidade dos físicos, em 1952,

o norte-americano David Bohm – que na época estava no Brasil, trabalhando na Universidade de São Paulo – conseguiu formular uma teoria mais completa que a mecânica quântica. Ironicamente, porém, sua proposta tinha um aspecto indesejável: justamente violava o princípio da localidade. “Quando esse fato foi notado, naturalmente surgiu a questão de saber se essa ‘não-localidade’ seria uma particularidade da teoria de Bohm ou, ao contrário, uma propriedade intrínseca de qualquer teoria mais completa que a mecânica quântica”, disse Chibeni. A resposta foi dada pelo escocês John Bell, que em 1964 provou que qualquer teoria completa e local viola certas predições estatísticas da mecânica quântica. De acordo com o filósofo da Unicamp, essas predições foram inequivocamente confirmadas em diversos experimentos realizados desde então. Esses resultados teóricos e experimentais tiveram como ponto de partida as críticas de Einstein, que apontou rumos de investigação, o que deixa claro que mesmo criticando ele contribuiu de maneira extremamente positiva – mesmo que a teoria tenha seguido um rumo contrário ao que ele imaginava. “Ele não viveu para ver que suas críticas à mecânica quântica desembocaram num resultado que ele detestaria, ou seja, para completar a teoria quântica é preciso abrir mão da localidade”, concluiu o filósofo da Unicamp.

SÉRGIO DE CARVALHO

uma peça que dura duas horas ou três horas ou quatro horas no palco pode contar uma ficção que dura anos”, disse. Buscar maneiras de representar momentos desconexos, indicar a passagem do tempo e se reportar ao passado são desafios nada banais que o dramaturgo enfrenta. E que são diferentes em cada momento da história. O teatrólogo contou que a discussão sobre o tempo foi proeminente no meio teatral no início do século XX, a mesma época em que Einstein publicava as teorias que mudavam a física. “O teatro estava procurando um tempo não empírico, um espaço-tempo diferente, o tempo do sonho, o tempo da história, tempos diversos do tempo dos indivíduos que se relacionam.” A grande dúvida era como representar o passado no presente – uma discussão típica da era do drama, que dominou o século XIX, em que a ação se desenvolvia em um presente contínuo, sempre em busca do futuro. “A peça começa, você vê duas pessoas se relacionando e se pergunta o que vai acontecer no futuro imediato delas.” Mas por que o teatro não poderia saltar adiante, voltar para a infância... Ou seja, apresentar um tempo não-contínuo, como fazem os romances? Não é uma limitação do teatro em si, mas uma característica que define o drama, que ainda hoje domina os palcos. “O drama é a forma literária do teatro que con-

Tempo do teatro é relativo e tem representação diferente conforme a época, diz dramaturgo

“A duração do espetáculo teatral se relaciona com o que os atores estão fazendo no palco uns em relação aos outros, o que os atores fazem em relação à luz, à música, ao cenário... Ou seja, essa organização dos elementos da cena define a passagem do tempo e a experiência no teatro, mas isso se dá sempre na forma de trânsito com o público.” Foi assim que Sérgio de Carvalho, diretor do grupo de teatro Companhia do Latão e professor da Universidade de São Paulo (USP), armou a cena no dia 8 de novembro para demonstrar como o tempo no teatro é relativo e multidimensional, na palestra “O tempo no teatro”. Com uma presença de palco durante a palestra que não deixou dúvidas quanto à sua ocupação principal, Sérgio de Carvalho mostrou que no teatro há vários tempos – e que o tempo da peça pode ser desconexo com o da ficção. “Porque

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O tempo no teatro conjuga o ponto de vista da ficção, da imaginação, o tempo do público e o momento histórico no qual a ação e a narração se inserem

centrou o olhar sobre relações entre indivíduos”, disse Carvalho, contrastando a outros momentos e outras escolas teatrais, como o teatro grego, que cultivava focos mais diversos e chegava à escala atemporal dos deuses. Mas a forma dramática se instalou e é ao que estamos habituados ainda hoje. Um dramaturgo que tentou subverter o tempo, mas ainda dentro dos moldes do drama, foi o norueguês Henrik Ibsen. Já perto do final da vida, em 1896, ele queria representar o passado e escreveu uma peça chamada John Gabriel Borkman, em que uma mulher chega à casa de uma amiga e percebe que ela praticamente não sai de casa e no sótão mora um homem que não sai dali há 8 anos. “Você começa a ver que é uma peça meio sombria, o homem fica lá marcando o tempo, como um bicho enjaulado.” Para Carvalho, essa peça em que as pessoas já não têm presente puro é soturna e estranha, porque algo não funciona em pôr o passado no tempo presente sem sair do drama. Porque as personagens sem vida no presente são de certa forma fantasmas.

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• Maria Guimarães MARCIA MINILLO

Outros tempos Mas nem sempre houve esse cárcere do presente. Duzentos anos antes, nas peças do inglês William Shakespeare o tempo e o espaço eram descontínuos. Nelas, cenas consecutivas em diferentes pontos do palco não necessariamente seguiam o tempo da narração. A interpretação funcionava de uma maneira hoje impensável, em que as personagens também atuavam como narradores, anunciando diretamente ao público o que fizeram fora da ação do palco e quanto tempo passou. “Um homem pode representar uma mulher, um gesto representar um exército; o que você vê é diferente do que você imagina.” O diretor da Companhia do Latão deixou bem claro como nos afastamos dessa forma de narrativa com um exemplo bem corriqueiro. “Imagine como você reagiria estranhamente se visse na novela das 8 uma personagem dizer assim, para a câmera: ‘Vou representar uma mulher’. Você acharia esquisito. Eu acharia esquisito uma personagem estar conversando com a namorada e de repente olhar para a câmera e falar ‘É uma louca, mas tem método’.” “Antes do período dramático não havia problema nenhum em pôr no mesmo quadro duas coisas, dentro do teatro, dois tempos”, contou. Muito da liberdade – e da falta dela – vem do palco: como ele se organiza, como se

divide, e da cenografia. Características que mudaram muito ao longo da história do teatro, desde as apresentações de rua até os palcos com cenários elaborados. Tempo e espaço dependem um do outro, relação que volta a esbarrar nos conceitos da física. Dos anos 1960 para cá a discussão se tornou ainda mais drástica, com uma tentativa de desconstruir o tempo da ficção. Um exemplo foi uma peça do grupo Living Theater que, em 1960, mostrava alguns homens sentados no palco de um teatrinho em Nova York. Eles se injetavam uma droga e ouviam música, nada acontecia. “O problema do tempo e da ação foi todo deslocado para a platéia”, analisou Carvalho. Nos anos 1970 o norte-americano Bob Wilson começou a fazer peças cada vez mais longas. Uma apresentação de seu grupo pode durar 24 horas, e um ator demorar duas horas para atravessar o palco. “Talvez fosse muito chato, mas quem viu percebeu que esse jogo do trabalho do ator com aquelas imagens que estavam sendo projetadas no palco criava um completo distúrbio perceptivo no espectador, quase uma sensação de perda de referência espaço-temporal radical.” Para ele, pensar o tempo no teatro é extremamente complexo porque é uma conjugação do espetáculo com o que esse espetáculo projeta. Conjuga o ponto de vista da ficção, da imaginação, o tempo do público e o momento histórico no qual a ação e a narração se inserem. E cada época tentou reinventar o teatro renovando essas relações que se dão sempre no nível do espaço e do tempo conjugadamente.

Carvalho: tempo no teatro suscita reflexão

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trabalhar na Universidade de Berlim: não precisaria dar aulas, apenas seminários e palestras. O salário era confortável e incluía uma vaga na Academia Prussiana de Ciências e a diretoria do instituto de física que viria a ser criado. Quando pensou que finalmente teria tempo e tranqüilidade financeira para trabalhar, quatro meses depois que chegou a Berlim eclodiu a Primeira Guerra Mundial e, pela primeira vez, Einstein começou a se envolver em questões políticas. Os intelectuais e cientistas da época se engajaram diretamente na polêmica sobre o conflito. “Para os não-alemães existiam duas Alemanhas: a do Kaiser, beligerante, e a da ilustração, do conhecimento, da cultura, da ciência”, contou o diretor do Mast. Os principais cientistas e intelectuais alemães reagiram a essa posição e fizeram o “Manifesto dos 93”, em que diziam que a Alemanha era uma só, a do Kaiser. Ocorre que Einstein não assinou o manifesto porque acreditava que os cientistas não deveriam se envolver na questão. Para ele, ciência e cultura teriam de estar acima das fronteiras nacionais. Essa posição o levou a escrever um contramanifesto, conclamando “os bons europeus” a se unirem contra a guerra, algo imediatamente considerado uma espécie de ato de traição. Foi nesse período que Einstein assumiu de vez o pacifismo e passou a apoiar o sionismo, movimento de criação de um Estado judaico na Palestina.

ALFREDO TOLMASQUIM Historiador conta como o humor do cientista foi se alterando durante a viagem à América do Sul

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A comprovação da teoria geral da relatividade na cidade de Sobral, no Ceará, e na ilha de Príncipe, no golfo da Guiné, em 1919, fez mais pela fama de Albert Einstein do que todos os artigos revolucionários publicados entre 1905 e 1916. O resultado foi anunciado por pesquisadores ingleses em uma sessão solene da Academia de Ciências de Londres e noticiado como de grande importância para a ciência primeiramente no jornal The Times e depois pela imprensa de todo o mundo. “Foi um dos primeiros grandes eventos de mídia no século XX”, contou o pesquisador em história da ciência e diretor do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), Alfredo Tiomno Tolmasquim. Ao se tornar uma celebridade mundial, o cientista alemão começou a viajar pelo mundo para divulgar suas idéias científicas, receber homenagens e defender o pacifismo e o sionismo. “Foi dentro deste contexto que ele visitou o Brasil, em 1925.” Tolmasquim falou no Parque do Ibirapuera na agenda cultural paralela à exposição Einstein, com o tema “Um cientista nos trópicos: a viagem de Einstein à América do Sul”, no dia 9 de novembro. Para entender melhor as motivações do cientista em visitar países sem muita expressão em um lugar distante, Tolmasquim lembrou que o reconhecimento pelos artigos de 1905 ocorreu muito lentamente. Foi apenas em 1914, aos 35 anos, que ele recebeu e aceitou um convite atraente para

Tolmasquim: anúncio de 1919 foi grande evento de mídia

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Personalidade mundial Mesmo com o envolvimento político, ele continuou dando palestras e trabalhando na teoria geral da relatividade, que publicou em 1916. Uma das idéias básicas da teoria diz que um corpo de grande massa, como o Sol, deforma o espaço em torno de si e qualquer objeto que passar na região vai seguir essa deformação, inclusive a luz. Como se poderia comprovar a hipótese? Observando a luz de uma estrela passando perto do Sol. “Você olha a luz da estrela perto do Sol, depois olha a luz da estrela longe do Sol e vê se houve alguma mudança”, explicou Tolmasquim. A única maneira de fazer a observação seria no momento do eclipse do Sol – quando a Lua encobre a luz solar e é possível ver as estrelas que estão próximas. No artigo de 1916 Einstein previu qual seria a deflexão da luz de uma estrela próxima calculando pela massa do Sol. Para fazer a comprovação da teoria saíram as duas expedições britânicas, para o Ceará e para o golfo da Guiné, na África, que comprovaram a deflexão prevista pelo físico. “Aí sim vai acontecer o que não aconteceu em 1905”, disse o pesquisador. A imprensa faz uma cobertura enorme e transforma Einstein em uma personalidade mundial. Se por um lado ele era muito festejado, por outro ficou na berlinda e começou a receber muitas críticas de alemães nacionalistas contra a posição que tomou durante a guerra. Nessa época também foi lembrado o fato de ele ter abdicado da nacionalidade alemã, ainda muito jovem. Além disso, era judeu e os nacionalistas alemães

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O CARETA, 16/05/1925. ACERVO BIBLIOTECA NACIONAL

consideraram que houve uma conspiração dos judeus para derrubar o imperador alemão. Quando acabou a guerra, o Kaiser abdicou e foi proclamada a República de Weimar. Não bastasse tudo isso, existiam setores que não concordavam com a teoria geral da relatividade. Começou uma campanha chamada por Einstein de campanha anti-relatividade, que envolvia nacionalismo, anti-semitismo e divergências científicas. No centro de todas essas questões, Einstein pensou em ir embora para outro país e deixar as polêmicas para trás, mas foi convencido por alguns colegas a ficar – a Alemanha, afinal, era o centro da física no mundo. “Foi naquele momento que ele decidiu começar a se manifestar com Palestra no Clube de Engenharia, no Rio: gente demais, calor e barulho mais ênfase e usar sua voz para divulgar suas idéias científicas e pacifistas”, disse Tolmasquim. Começou, então, a dar muitas palestras, não só divulgane, em dezembro de 1923, seguiu uma carta para Berlim. do a relatividade e a nova física, como interagindo com Einstein disse que aceitava, mas apenas em 1925. O Brasil entrou na história por iniciativa também da os cientistas. Foi a Holanda, Noruega, Dinamarca, Praga, Viena, Estados Unidos, Inglaterra, França, Japão, Palestina Associação Hebraica. Os líderes da comunidade judaica e, em 1925, Argentina, Uruguai e Brasil. da Argentina alertaram os líderes no Uruguai, Brasil e A viagem começa pela Argentina, na época um país Chile sugerindo que aproveitassem a visita de Einstein à muito diferente do Brasil, então extremamente agrário. América do Sul para convidá-lo a ir aos seus países. No Rio A Universidade do Rio de Janeiro, a primeira do Brade Janeiro, o rabino Isaiah Raffalovich, líder judeu local, conseguiu que a Escola Politécnica o convidasse. “A carta sil, havia sido criada em 1922. Na Argentina, porém, para Einstein não saiu da universidade, mas foi feita pelo existiam cinco universidades no mesmo ano, além de próprio rabino em nome de Paulo de Frontin, na época alguma pesquisa em física. Havia também a presença relativamente alta e organizada de imigrantes alemães. diretor da Escola Politécnica, e do diretor da Faculdade de Eles criaram a Instituición Cultural Argentino-Germana, Medicina, Aloysio de Castro”, contou Tolmasquim. O cienque reunia cientistas alemães e argentinos interessados tista alemão também aceitou vir ao Brasil e Uruguai. na ciência e cultura germânicas. Um dos objetivos era trazer pesquisadores importantes para dar palestras e Estado de espírito um dos primeiros nomes citados foi o de Einstein. Mas Einstein desembarcou no Rio no dia 21 de março, ficou o convite não se concretizou de imediato porque existia apenas um dia e embarcou para Buenos Aires, onde cheentre seus integrantes a mesma divergência no âmbito da gou dia 24. Um mês depois foi para Montevidéu, ficou instituição que já ocorrera na Alemanha sobre as posições uma semana e, em seguida, voltou ao Rio para ficar mais políticas de Einstein. uma semana. “Ele escreveu suas impressões em um diário Outra instituição cultural, a Associação Hebraica da de viagem que indica como seu estado de espírito foi se Argentina, também tinha o objetivo de trazer judeus emialterando durante a estadia na América do Sul”, disse o nentes em artes e ciências. Ao tentar contatar o cientista, pesquisador. “No primeiro dia achou tudo maravilhoso, descobriu-se que ele só aceitava convites feitos por instimas na volta para a Alemanha, quase dois meses depois, não suportava mais o calor, a comida e as homenagens.” tuições científicas para evitar que sua imagem fosse usada de uma forma ou de outra. A Associação Hebraica sugeriu, Uma das primeiras anotações quando ele chega ao Rio, então, que a Universidade de Buenos Aires fizesse o convite, antes de ir para a Argentina, é: “O Jardim Botânico, bem colocaram dinheiro à disposição para ajudar nos custos como a flora de modo geral, supera o sonho das mil e uma

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noites. Tudo vive e cresce a olhos vistos por assim dizer. Deliciosa mistura étnica nas ruas: português, índio, negro, com todos os cruzamentos. Espontâneas como plantas, subjugados pelo calor. Experiência fantástica! Indescritível abundância de impressões em poucas horas”. Semanas depois, sozinho, sem muitos interlocutores científicos, assediado pela imprensa, participando de inúmeros eventos, solenidades e discursos, o humor dele foi mudando sensivelmente. “A palestra que deu no Clube de Engenharia do Rio, por exemplo, foi uma catástrofe.” O público era composto de militares e diplomatas com as esposas e filhos. O calor era grande, a sala estava superlotada e a janela teve de ser aberta. Piorou, porque havia o barulho da rua. Einstein deu a palestra em francês e desenhou uma série de fórmulas no quadro. Depois escreveu no diário: “Compreensão impossível a começar pela acústica. Pouco sentido científico. Eu sou um tipo de elefante branco para os outros, eles para mim uns tolos”. Na segunda palestra na Escola Politécnica, apesar do grande número de pessoas, restringiram a entrada e o evento foi mais agradável.

Na terceira e última palestra dada no Rio de Janeiro, na Academia Brasileira de Ciências (ABC), houve algo diferente: um artigo específico escrito por ele especialmente para a ocasião. Naquele momento, no Brasil, a teoria da relatividade ainda provocava muita curiosidade entre os poucos cientistas e intelectuais. Mas, para Einstein, em 1925, sua teoria já estava estabelecida e o que o interessava eram as questões relacionadas à constituição da luz, sobre a qual ainda havia debates no meio cientifico europeu. Ele escreveu o artigo “Observações sobre a situação atual da teoria da luz” em alemão, em papel timbrado do Hotel Glória, onde ele se hospedou, com a data de 7 de maio de 1925, e posteriormente publicado no primeiro número da revista da Academia Brasileira de Ciências, em abril de 1926. O texto original, deixado no Brasil para ser traduzido, foi achado por Tolmasquim, que tratou de divulgá-lo em congressos de história da ciência nos anos 1990.

MARTÍN CAMMAROTA

tudo o que nos rodeia. “Por isso é tão difícil para nós, leigos em física, compreendermos a teoria da relatividade”, explicou o neurocientista argentino Martín Cammarota, pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e estudioso do funcionamento da memória, durante a palestra “O tempo e a memória”, no dia 15 de novembro. Cammarota disse que Einstein não desenvolveu nenhum conceito teórico que tivesse uma aplicação direta na biologia teórica e na neurologia da memória. Mas, ainda assim, é possível traçar uma analogia entre o físico alemão, tempo e memória. Antes de se aprofundar no tema, o pesquisador argentino definiu os termos aprendizado e memória. “Aprendizado, na sua definição neurobiológica, é uma modificação ou alteração relativamente permanente”, disse. Ele enfatizou que essa alteração comportamental não é absoluta: é relativamente permanente no comportamento

Neurocientista relaciona memória com o tempo proposto pelo físico

Para tentar compreender as idéias e as teorias de Albert Einstein, como o conceito de tempo, é preciso utilizar a memória porque ela é quem dá a nossa noção de tempo. Nossas memórias nos dizem que hoje é hoje, amanhã é amanhã, que virá outro dia, e que há uma continuidade temporal. A forma como interpretamos o mundo está intimamente relacionada com a idéia de que o tempo é absoluto e tem a ver com o modo como interagimos e entendemos

• Neldson Marcolin

Cammarota: memória é essencial para a compreensão do tempo

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Se podemos nos perguntar se o tempo é absoluto ou relativo, é porque possuímos memória. Ela nos dá a noção de que o tempo flui em uma direção

FOTOS MARCIA MINILLO

As fases da memória A primeira dessas fases da memória, a codificação, indica que antes que a informação possa ser aprendida e transformada em memória tem que ser percebida e processada. As informações são então traduzidas em impulsos elétricos. Depois são armazenadas e, finalmente, expressas de alguma forma. “Nós só sabemos que sabemos alguma coisa quando nos lembramos dessa coisa. E, se não lembramos, não sabemos que sabemos”, disse. “Esse é um paradoxo muito interessante para nós, estudiosos da memória.” O pesquisador falou então sobre o tempo, algo importante para a memória, classificada de acordo com o tempo que dura, dado que ela é um registro temporal de um fato passado. A primeira é a memória sensorial. O melhor exemplo para entendê-la é quando se fecham os olhos e, durante um momento, ainda é possível perceber o ambiente, como se os olhos estivessem abertos. Há também a memória de curta duração, utilizada, por exemplo, para lembrar o número do telefone da pizzaria escrito no ímã de geladeira. “Lemos o número no ímã e

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vamos até o telefone para fazer o pedido. Se esquecemos de pedir o refrigerante temos de voltar à geladeira e rever o número para ligar”, disse, para exemplificar como é essa memória. Por último, há as memórias de longa duração. “É a memória que tenho da minha mãe, de Buenos Aires, do meu apartamento. São aquelas que perduram durante o tempo”, contou. Ele ressalta que utiliza a palavra “perdurar” numa acepção corriqueira, em razão de as memórias serem relativas (ou subjetivas) e não permanentes (ou objetivas). “A memória de cada um de nós sobre esta palestra não vai ser a mesma porque somos todos diferentes uns dos outros, não passamos pelas mesmas situações e também porque não estamos sentados no mesmo lugar.” Ela não é permanente no tempo e muda constantemente, ainda que boa parte das pessoas acredite que seja completamente fiel à circunstância original. Tanto a memória sensorial como a de curta duração e a de longa duração englobam, dentro delas, vários subtipos de memórias. “Se hoje podemos falar sobre o tempo e nos perguntar se ele é absoluto, relativo ou se existe ou não, é porque possuímos memória”, afirmou. São elas que nos dão continuidade e, por isso, identidade. “Percebemos o tempo como algo contínuo em que parece fluir em uma única direção.” Essa noção biológica do tempo condiciona nossa forma de interpretar o mundo que nos rodeia.

• Ricardo Zorzetto FRITZ KAHN, 1926/NATIONAL LIBRARY OF MEDICINE

real ou potencial, que ocorre como conseqüência de uma experiência. “O aprendizado é algo que nos permite registrar o passar do tempo, e a memória é o registro desse aprendizado que fica em algum lugar do nosso cérebro e que nos diz que o tempo passou, entre outras coisas.” Dizendo de outra maneira: o aprendizado é um processo que não dá para se observar, embora se possa observar o produto desse processo. E o produto do aprendizado é uma unidade de informação que se refere ao passado. “Já a memória é o que nos permite manter durante um breve espaço de tempo o passado vivo no presente; é uma unidade psíquica de informação, uma representação do passado”, disse Cammarota. A definição de memória está acompanhada de três fases nas quais o processamento de informação se divide: codificação, armazenamento e expressão. Para entender isso, existe a eletrofisiologia, ramo da fisiologia ou da neurofisiologia que se encarrega de estudar os fenômenos elétricos que ocorrem no cérebro e respondem a certas regras preditas pela mecânica quântica. De acordo com Cammarota, a mecânica quântica e alguns preceitos da teoria da relatividade restrita (ou especial) são usados na eletrofisiologia, por exemplo, para entender como o cérebro codifica a informação.

Representação artística do cérebro, por Fritz Kahn

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ROBERTO COVOLAN Físico da Unicamp relatou algumas aplicações práticas dos trabalhos publicados em 1905

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Os pesquisadores, não raro, reagem com desagrado quando lhes perguntam para que servem suas teorias ou trabalhos científicos. Para a maior parte deles, a ciência é a busca pelo conhecimento e se justifica como tal. “Há uma pressão da sociedade para que os investimentos em pesquisa retornem para essa mesma sociedade – e esse é um anseio legítimo –, mas, por outro lado, não há razão para se ter ansiedade a esse respeito”, disse o físico Roberto Covolan, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Muitas vezes, pesquisas teóricas que buscam esclarecer problemas fundamentais acabam, no seu devido tempo, conduzindo a aplicações extremamente interessantes.” Os trabalhos de Albert Einstein fornecem alguns excelentes exemplos. Covolan falou na palestra “Impactos da obra de Einstein no campo da física médica”, do dia 15 de novembro, sobre aplicações hoje usadas correntemente que derivaram de quatro famosos artigos publicados em 1905. O primeiro trabalho que Einstein publicou naquele ano, em março, tem o título “Sobre um ponto de vista heurístico referente à produção e conversão da luz”, no qual ofereceu uma explicação para o efeito fotoelétrico. A idéia de que a luz interage com a matéria por meio de quanta – pacotes de energia – não era exatamente nova.

Covolan: aplicações práticas surgem a seu tempo

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Em 1900, o físico alemão Max Planck havia proposto essa tese em um artigo que originou a mecânica quântica. Einstein foi além. Disse que a luz não só interage com a matéria como se propaga na forma de pacotes de energia, características quânticas inerente à natureza da luz. A teoria estabelecida até então era de que a luz se comportava como uma onda eletromagnética. Einstein usou a idéia de Planck sobre os quanta para explicar o efeito fotoelétrico, que consistia em arrancar elétrons de uma placa de metal quando se incidia um tipo de luz particular sobre ela. “É um fenômeno trivial hoje, usado em qualquer célula fotoelétrica”, lembrou Covolan, pesquisador do Grupo de Neurofísica do Instituto de Física da Unicamp. O segundo artigo de 1905, de maio, foi sobre o fenômeno chamado movimento browniano, observado pelo botânico inglês Robert Brown em 1827. Einstein desenvolveu nesse artigo equações que permitiam a determinação do número de Avogadro, fundamental para teorias que indicavam a existência dos átomos. Coube a Einstein desenvolver equações que demonstraram, de fato, a existência do átomo. “Esse estudo foi extremamente interessante porque conseguiu dar evidências adicionais de que a matéria é constituída de átomos”, explicou. O terceiro artigo, de junho, é o mais famoso porque trata da teoria da relatividade restrita (ou especial). “Ainda hoje é difícil aceitar que o transcurso do tempo dependa do estado de movimento de alguém”, disse. “Temos um sentimento de que tempo, assim como espaço, é algo absoluto, como dizia o conceito criado por Isaac Newton.” No entanto Einstein mostrou que tanto tempo quanto espaço são grandezas relativas – dependendo do estado de movimento do observador, o tempo pode passar mais devagar ou mais rápido. O último trabalho que publicou naquele ano, em setembro, traz a expressão E = mc² (energia é igual à massa vezes velocidade da luz ao quadrado), que mostra a equivalência entre energia e matéria: matéria pode se transformar em energia e energia em matéria. Impacto na neurociência Covolan relacionou esses trabalhos com aspectos ligados à física médica e à neurociência. Físico médico é aquele que faz uma interface entre física e medicina em algumas áreas, como radioterapia, medicina nuclear, radiologia, radiodiagnóstico e ressonância magnética – todas elas lidam com partículas subatômicas. “O campo de conhecimento que trata do tema é a física quântica e a teoria da relatividade.” A descoberta do efeito fotoelétrico, por exemplo, tem hoje aplicações na radioterapia. “A radioterapia usada contra tumores funciona quase essencialmente com base nesse efeito”, disse. O tratamento consiste em provocar a morte das células cancerígenas e evitar o desenvolvimento do tumor.

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Técnicas modernas que permitem fazer imagens do interior do corpo se baseiam em conceitos da física quântica e da teoria da relatividade

Os trabalhos de Einstein também levaram ao desenvolvimento de técnicas de neuroimagem. Existem equipamentos que fazem imagens funcionais do cérebro, que permitem ver as regiões que estão ativas quando se executa alguma função. É possível fazer isso por meio de aparelho de ressonância magnética, de tomografia por emissão de pósitrons e magnetoencefalografia. Os três equipamentos são diferentes do ponto de vista de seu funcionamento físico. “Mas em todos eles está embutido muito de física quântica e de teoria da relatividade, porque tratam de partículas subatômicas”, lembrou Covolan. Uma aplicação importante que está sendo investigada é tentar ver como as partes do cérebro se comunicam por meio de imagens por tensor de difusão, capazes de mostrar o direcionamento das fibras nervosas do cérebro. Já há técnicas para fazer imagens que mostram as

fibras nervosas graças ao conhecimento que se tem do movimento browniano das partículas – movimento de difusão que as partículas fazem quando estão em meio líquido. As moléculas de água também fazem isso, mas, quando estão dentro de fibras nervosas, elas se difundem em uma direção preferencial – a da fibra. Essa técnica permite ver os feixes de fibras nervosas e como eles conectam diferentes regiões do cérebro. “Seria muito bom se o neurocirurgião soubesse como as coisas estão organizadas dentro da cabeça do paciente antes de operar.” Covolan contou, por fim, sobre a tomografia óptica funcional, algo também recente, que se baseia no conceito de fótons. “A idéia é que podemos fazer difundir luz laser dentro da cabeça das pessoas; a luz atravessa a calota craniana, passa por dentro do cérebro e é coletada um pouco mais adiante”, explicou. Essa luz pode ser analisada, dando informações do que acontece naquela região do cérebro. A potência do laser usado é baixíssima e não causa problemas. Para chegar a isso se usa uma teoria de simulação com computador para a qual o conceito de fóton é fundamental. “É mais um exemplo de um conceito teórico e revolucionário que pode ser usado de modo prático”, concluiu.

GARY STEIGMAN

emergiram em 1998, contrariando as evidências sobre a possível expansão contínua do Universo, acumuladas nos 30 anos anteriores. “Pensavase que a velocidade de expansão do Universo se reduzisse, em movimento desacelerado. Mas as evidências contrariaram as previsões e mostraram um Universo em expansão acelerada”, comentou Rosenfeld. Steigman abriu a palestra mostrando justamente a capa da revista Science de 18 de dezembro de 1998 que apresentava o trabalho sobre o Universo em aceleração como o grande salto científico daquele ano. “À medida que o Universo se expande, torna-se mais frio, mais diluído e as ondas eletromagnéticas, mais longas”, contou Steigman, apoiado principalmente nos trabalhos de Albert Einstein. A teoria da gravitação de Einstein, conhecida como relatividade geral, generaliza a teoria de gravitação proposta pelo físico inglês Isaac Newton. Para ambos, a gravidade era “a força que determina a história e o futuro do Universo, além de manter a Terra na órbita ao redor do Sol”, lembrou Steigman.

Norte-americano mostrou que a desestruturação completa de galáxias é um possível destino do Universo

O Universo pode ter um final melancólico, tornando-se mais escuro e solitário, ou mais dramático, com a desestruturação de átomos, estrelas e galáxias, entre outras possibilidades apresentadas pelo físico norte-americano Gary Steigman no dia 16 de novembro ao longo da palestra intitulada “O mistério do Universo em aceleração”. Ao apresentar Steigman, pesquisador da Universidade Estadual de Ohio, Estados Unidos, que ajudou a elucidar a formação de elementos químicos mais leves como hidrogênio e hélio logo após o surgimento do Universo, o físico e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Rogério Rosenfeld lembrou: “Nossas concepções do Universo mudam com o tempo, em conseqüência de novos instrumentos e de novas teorias”. As últimas grandes descobertas sobre o que Rosenfeld chamou de “comportamento inesperado” do Universo

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• Ricardo Zorzetto

Expansão acelerada Einstein pensou inicialmente que o Universo seria estático, sem nenhuma expansão. Para obter um Universo estático, o cientista alemão introduziu em suas equações a chamada

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constante cosmológica. Mais tarde, com a descoberta da expansão do Universo, considerou um erro a introdução da constante cosmológica. No entanto, justamente essa constante é que poderia explicar a expansão acelerada do Universo. Ou seja, Einstein estava certo. A energia do vácuo, uma variável apresentada pela mecânica quântica, uma vertente da física que emergia no início do século, também apontava para a aceleração do Universo. “Para a mecânica quântica”, disse Steigman, “o vácuo não é vazio, mas o estado da matéria com menor energia”. Steigman olhou também para o passado do Universo, formado há cerca de 14 bilhões de anos e hoje com aproximadamente 1 bilhão de galáxias, cada uma com centenas de bilhões de estrelas. Em seguida, explorou detidamente o significado das expansões desaceleradas ou aceleradas do Universo. “Se a expansão desacelera, a gravidade é força atrativa”, disse. “Quanto maior a densidade (dos objetos), mais forte é a gravidade. E quanto mais rápida a expansão, maior a separação.” Ele apresentou dois cenários possíveis, ambos para daqui a dezenas de bilhões de anos. No primeiro, a expansão é que pode ganhar, como resultado da densidade menor. No segundo, a gravidade é que ganha, reduzindo a taxa de separação entre as galáxias, e o Universo pára de expandir. “A expansão do Universo pode desacelerar sob influência da gravidade.”

tes, mais próximos; quanto mais tênues, mais distantes.” Os padrões de luminosidade mais usados são as supernovas, raras explosões de estrelas que podem ser mais brilhantes que toda uma galáxia. Em março de 1997, depois de anos observando e comparando a mesma região do céu, os físicos encontraram a supernova, a SN 1994D, afastando-se tenuamente, “como uma luz na estrada”, comparou Steigman. Seu comportamento só poderia ser explicado por meio da expansão acelerada do Universo. “Com a expansão do Universo, as galáxias desaparecerão do campo de visão e o Universo será mais frio, mais escuro e mais vazio, um lugar muito solitário”, sintetizou Steigman. “Se a taxa de expansão aumentar com o tempo, os átomos, as estrelas e as galáxias vão se separar violentamente.” Neste caso a Terra explode, o Sol se desfaz, tudo se desfaz; restariam apenas partículas subatômicas dispersas, sem qualquer coesão ou energia: é o Big Rip (literalmente, Grande Rasgo). O que acontecerá? “Só o tempo dirá”, disse Steigman. “Mas será o fim, não outro começo.”

Nossas concepções do Universo mudam com o tempo, em conseqüência de novos instrumentos e de novas teorias

Energia escura Nos últimos anos os físicos acrescentaram outro elemento para prever o futuro do Universo: a energia escura, um fluido ainda pouco conhecido, mas abundante no Universo. “Combinando constante cosmológica, energia do vácuo e a energia escura, as galáxias podem se separar ainda mais rapidamente”, comentou Steigman. Em uma série de gráficos ele examinou as diversas possibilidades. Outra, a de expansão desacelerada, implica um Universo mais denso, além de mais jovem que os hoje estimados 14 bilhões de anos. Aplicada isoladamente, a constante cosmológica aponta para um Universo em expansão acelerada e também mais velho que os 14 bilhões de anos. Mais recentemente os físicos começaram a trabalhar também com a radiação de fundo, que representa sutis flutuações na temperatura do Universo. Steigman contou que os físicos medem as distâncias entre galáxias e inferem sobre a expansão do Universo por meio do brilho dos objetos celestes. “Quanto mais brilhan-

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• Carlos Fioravanti

Gary Steigman: Universo em constante mudança

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Crianças um pouco mais velhas já buscam respostas mais elaboradas. “A cada ano você fica mais velho?”, indagou Piaget. Resposta da criança: “Não, eu fico mais novo”. Outra pergunta: “Quando você for moço, qual será a idade da sua irmã?”. A resposta: “Igual à minha”. “Um dia vocês vão ter a mesma idade ou não chegarão nunca a isso?”. Resposta: “Eu vou ficar maior que ela porque os homens são maiores do que as mulheres, aí eu vou ser mais velho”. Segundo Lino de Macedo, a referência da criança sobre o tempo é o tamanho, o crescimento em estatura. Como ainda é pequena, não tem a percepção do envelhecimento. “As crianças acham que os cachorros não envelhecem. Eles morrem, ficam doentes, mas não envelhecem. Também acham que as árvores não têm idade. Por quê? Porque elas não crescem mais”, exemplifica. A noção dos efeitos da passagem do tempo vai sendo construída e, na préadolescência, as respostas já se assemelham às dos adultos. Piaget perguntou: “Quem é mais velho: você ou sua mãe?”. Resposta: “Minha mãe”. “E quando você for um homem?”, indagou. “Ah, é sempre a mesma diferença”, disse a criança. “Então não é verdade que todos os homens velhos têm a mesma idade?”. Resposta: “Isso depende de quando eles tiverem nascido, há velhos de 50, 60...”. O professor observou: “Considerem que isso foi na década de 1940. Hoje nós diríamos: há velhos de 80, 90, 100 anos”. Crianças de até 2 anos de idade não têm memória – falta-lhes a linguagem para fazer os registros. Nessa fase, observa o professor, o tempo da criança é o tempo das ações. “As crianças têm ações, ações sensório-motoras, ações simbólicas. O problema da criança é como coordenar movimentos, a sucessão, a duração, a simultaneidade, como ordenar os acontecimentos”, disse. “O tempo da criança é o tempo do presente. Ela não conhece o passado, não conhece o futuro e não precisa deles. Ela precisa do

LINO DE MACEDO Gênio da física inspirou estudos de Piaget sobre o tempo para as crianças, diz professor da USP

Ovo ou galinha Macedo deu início à palestra relembrando as palavras finais de Piaget no seu livro: “O tempo relativista de Einstein expressa um princípio válido da formação do tempo físico e psicológico desde a gênese do tempo nas crianças de tenra idade”. O professor propôs a discussão de problemas sobre a questão do tempo na perspectiva das crianças estudados por Piaget. “Perguntaram para Piaget quem nasceu antes: o ovo ou a galinha? Sabe o que ele respondeu? O pintinho. Não foi a galinha porque a galinha dependia do ovo. Não foi o ovo porque o ovo dependia da galinha. Foi o pintinho. Quando nasce uma criança é o mundo que recomeça. Nesse sentido, somos filhos de uma criança, não pais. Antes de nós, vieram as crianças. As crianças nasceram antes e portanto são mais velhas do que nós, caso se pense como referência o ponto de partida. Nós morremos. As crianças são eternas”, afirmou o professor. Piaget testou a percepção infantil para uma série de perguntas sobre o tempo, a distância e a velocidade e concluiu que tais conceitos não estão presentes na mente da criança, mas exigem uma construção. A criança de 2 a 6 anos, por exemplo, faz sua avaliação com base no momento presente. Depois começa a levar em conta outros fatores, como o ponto de partida. Só mais tarde vai dominar esses conceitos. “Piaget perguntou a uma criança pequena: ‘Sua mãe nasceu antes ou depois de você?’. Ela respondeu: ‘Não me lembro mais’. Claro que ela não pode se lembrar. A mãe nasceu tanto tempo depois, não é?”, afirmou Macedo.

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Como os conceitos de tempo, distância e velocidade desenvolvem-se em nível psicológico? Essa questão foi proposta em 1928 por Albert Einstein a Jean Piaget (1896-1980), quando o pai da relatividade presidia cursos de filosofia e psicologia em Davos, na Suíça, e o jovem psicólogo suíço, já então conhecido por suas pesquisas no campo da inteligência e do desenvolvimento infantil, amadurecia temas científicos para investigar. A provocação de Einstein inspiraria 15 anos mais tarde uma das obras mais conhecidas de Piaget, A noção de tempo na criança, em que o pesquisador explora os significados do tempo e como as crianças os compreendem. Esse pano de fundo inspirou a palestra “Piaget, Einstein e a noção de tempo na criança”, proferida por Lino de Macedo, professor de psicologia do desenvolvimento do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), na manhã do dia 22 de novembro.

Macedo: crianças até 2 anos não têm memória

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presente, da presença. É um tempo ocupado, denso, pleno, descontínuo, porque a criança dorme, se cansa, a mãe vai lá e tira ela da brincadeira, daquela magia, daquela felicidade, daquela ocupação, aquilo que é puro prazer e alegria. Esse tempo vivido como presente tem essas qualidades: pleno, descontínuo, finito, não refém de um passado ou de um futuro”, afirma o professor. O conceito é bem diferente do chamado tempo operatório, que é o tempo das crianças mais velhas e dos adultos. “O tempo torna-se reversível enquanto forma, porque presente, passado e futuro são recortes relativos e variáveis de uma mesma coisa”, explicou. Lino de Macedo encerrou sua palestra falando de Einstein. Lembrou que o físico criticava a educação precoce – o tempo futuro que rouba o tempo presente das crianças. “Estamos fazendo isso com nossos alunos”, disse o professor. “O estresse infantil hoje é terrível. As crianças não têm tempo para ser crianças, porque somos comprometidos, no melhor dos sentidos, com uma educação precoce, para o bem delas daqui a 20, 30 anos. E o bem delas aqui, agora?

Os métodos competitivos de ensino encarnam esse tempo do resultado premente, o tempo do deadline, o tempo do ‘cheguei antes’, do ‘ganhei mais’, do ‘faturei’”, disse o professor da USP. O gênio da física, afirma Macedo, criticava o tempo externo dominando o tempo interno. “Aquele tempo externo que, pelo medo, pela força, pela violência, pela autoridade artificial ou pela ameaça conseguia as coisas”, definiu. “Quando a gente entra na exposição Einstein, quem nos recebe não é a imagem de um Prêmio Nobel ou do maior cientista do século XX. O que vemos é um homem rindo, andando de bicicleta, juvenil. Aprender tem a ver com felicidade, com satisfação. A questão do conhecimento como alegria e felicidade, a questão da paz como um direito humano e como uma necessidade humana para criar, para inventar, para experimentar, para descobrir, isso só é possível se pudermos não ser apenas reféns do futuro e do passado”, concluiu.

CARMEN PRADO

êxito: tratava-se da conseqüência dos choques das moléculas do fluido com as partículas de pólen, uma evidência experimental da existência dos átomos. Mas por que se levou tanto tempo para descrever um simples movimento? “Na mecânica clássica, bem conhecida já, antes de Einstein, o conceito de velocidade instantânea é fundamental para descrever os movimentos”, disse Carmen. “Ocorre que não existe velocidade instantânea no movimento browniano. Não dá para descrever sua trajetória com as técnicas, as teorias e a matemática que fizeram o sucesso da mecânica clássica e que permitiram e permitem até hoje descrever quase todos os outros movimentos a nossa volta, do movimento de um trem à órbita dos planetas, que são contínuos, e tem uma velocidade bem definida.” Einstein, observa a professora, percebeu isso: viu que o conceitochave para a descrição desse tipo de movimento eram as flutuações da posição e criou uma equação específica para isso, unindo conceitos de estatística com argumentos de mecânica. A trajetória de um movimento browniano é um exemplo real Carmen: conceitos ligados de um tipo de curva

Movimento browniano, fractais e caos têm tudo a ver, embora cada um desses conceitos da física pareça desconectado e de difícil entendimento para leigos. O primeiro conceito vem do início do século XIX. Os fractais só aparecem com esse nome em meados da década de 1970. E a teoria do caos passou a receber atenção maior apenas no final do século XX. “O tempo da ciência não é um tempo com passado, presente e futuro muito bem definidos porque, para que as idéias floresçam, ou assumam um significado, precisam estar num contexto, e este muda, mudando a percepção que temos delas”, disse a pesquisadora Carmen Pimentel Prado, professora do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), durante a palestra “Movimento browniano, caos e fractais”, no dia 22 de novembro. A palestra tentou mostrar que os três conceitos estão ligados, e entendê-los não é tão difícil assim. Albert Einstein descreveu o movimento browniano em um dos quatro famosos artigos de 1905. Antes dele, outros cientistas já haviam tentado explicar o movimento incessante de partículas em meio líquido (no caso, grãos de pólen), observadas no microscópio pelo botânico escocês Robert Brown em 1827. Quase 80 anos depois, Einstein teve

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Física da USP relaciona movimento browniano, fractais e a teoria do caos

• Fabrício Marques

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UNIVERSIDADE DE ROCHESTER

Exemplo de fractal

que já tinha sido proposto por matemáticos bem antes de Einstein, uma curva sem tangentes em nenhum ponto (tangente é uma linha reta que toca num único ponto de uma curva). “Ou seja, a trajetória de um movimento browniano é o que hoje chamamos de fractal, algo que se pensava existir apenas na imaginação criativa de alguns matemáticos, mas que para surpresa de muitos está presente na natureza.” O nome fractal só foi criado em 1975 pelo francês Benoît Mandelbrot, para descrever curvas com esse tipo de propriedade. Fractal vem do grego fractus, que significa quebrado, fracionado, representa uma curva contínua, mas inteiramente quebrada. É nada mais do que um objeto geométrico, como um cubo, um cone, um paralelepípedo, um losango, mas com uma dimensão fracionária. Carmen mostrou o que isso significa e como essa dimensão pode ser calculada. Sistemas dinâmicos A professora explicou ainda durante a palestra como é gerado o belo conjunto de Mandelbrot, que está ligado tanto com a idéia de fractal como com a arte. “Para fazer essas figuras bonitas, que encontramos hoje aos montes na internet, temos de imaginar cores e pensar não só nas equações, mas nas atividades visuais”, contou. “Os astrônomos fazem isso muitas vezes quando colorem as figuras e imagens interplanetárias e os biólogos também, quando põem corantes diferentes nas células que fotografam.” O conjunto de Mandelbrot é um dos fractais mais famosos e estudados, porque é uma das primeiras obras de arte geradas por computador, e Mandelbrot popularizou várias idéias suas em cima desse conjunto (ver imagem acima). Esse trabalho do cientista francês contém a idéia central do conceito de fractal, e reflete

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a dificuldade conceitual que estava por trás da descrição do movimento browniano. A pesquisadora explicou rapidamente ainda o que a teoria do caos tem a ver com os fractais. “Foram as descobertas da teoria do caos que trouxeram à baila e deram importância ao conceito de fractal de novo, no final do século XX”, disse. Normalmente, usamos a palavra caos como sinônimo de bagunça. Em física, o termo tem um significado bem preciso. Um sistema caótico não é tão desorganizado assim. “Existem várias causas para a imprevisibilidade, caos é o nome de uma delas. Sistemas caóticos são sistemas dinâmicos que têm uma regra de evolução temporal bem definida e ainda assim se tornam imprevisíveis com o tempo.” Na verdade, foi preciso esperar o final do século XX para que essas relações da matemática e da física, com a arte, viessem à tona, porque muitos desses estudos só podem ser feitos com computador – são inalcançáveis com o cálculo à mão. “Foi preciso o desenvolvimento da computação, de um conjunto de técnicas de simulação, para que fosse possível um acúmulo de dados, de observações, que permitissem desenvolver essas teorias.” Os sistemas caóticos estão relacionados com processos não-lineares. Muitos desses processos já haviam sido objetos de pesquisa, por exemplo, de economistas, de biólogos e de várias outras áreas diferentes da física. “A física talvez tenha sido a última área da ciência a realmente se debruçar sobre o problema do caos, da irregularidade e não-linearidade das coisas”, observou Carmen. “Existe uma forma de representar todos os movimentos em um diagrama, e quando um movimento caótico é representado dessa forma a figura que se forma é um fractal.”

• Fabrício Marques

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GEORGE MATSAS Físico da Unesp conta que foram as equações de Einstein que permitiram supor a existência de buracos negros

MARCIA MINILLO

Pouco depois de ter completado 76 anos, Albert Einstein morreu em 18 de abril de 1955 em Princeton, nos Estados Unidos. Deixou o mundo possivelmente duvidando da existência de um dos objetos celestes mais fascinantes e misteriosos hoje conhecidos pela astrofísica: os buracos negros. Ironicamente, a presença de corpos extremamente densos e compactos, dotados de um campo gravitacional descomunal capaz de atrair toda a matéria ao seu redor, inclusive a luz, estava codificada na teoria da relatividade geral, formulada por Einstein em 1915. “Tanto quanto eu saiba, Einstein morreu não acreditando que buracos negros existiriam na natureza”, disse George Matsas, professor do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (Unesp), na palestra do dia 23 de novembro intitulada “Buracos negros: rompendo os limites da ficção”, mesmo nome do livro que escreveu ao lado de Daniel Vanzella, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) de São Carlos. Ao que tudo indica, o gênio, nesse caso, estava errado. Embora não haja ainda provas diretas da existência

Matsas: “A ciência moderna superou a ficção”

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de buracos negros, surgiram, a partir dos anos 1960, evidências observacionais consistentes de que esses grandes sugadouros de matéria não são apenas frutos de cálculos matemáticos ou da imaginação de físicos. “Hoje é impossível falar em astrofísica sem considerar a existência dos buracos negros. A ciência moderna superou a ficção e isso é maravilhoso.” Matsas deu uma pequena aula sobre buracos negros. Explicou o que eles são, como se formam e qual a influência que exercem sobre corpos vizinhos no Cosmos. Como o nome indica, buracos negros não emitem luz e não podem ser vistos de forma direta. Sua presença é inferida pelas perturbações que sua enorme força gravitacional provoca na vizinhança. O físico tranqüilizou a platéia. Disse que não há risco de se produzir um buraco negro no Sistema Solar – a massa do Sol não permite que, ao morrer, ele vire um buraco negro – ou na Terra devido a algum acidente. “Experimentos realizados em aceleradores de partículas como o Large Hadron Collider (LHC), do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern), em Genebra, não têm condições de criar buracos negros capazes de destruir a Terra. Aliás é muito improvável que venham a ser criados buracos negros no LHC.” Tipicamente os buracos negros se formam a partir da morte de estrelas com massas enormes. O que faz uma estrela se manter estável é o equilíbrio entre duas forças opostas: uma que exerce pressão de dentro para fora do astro (o processo de fusão nuclear a partir da qual há geração da luz que vemos) e outra de sentido contrário (a gravidade). Quando acaba o combustível que sustenta a fusão nuclear, basicamente o hidrogênio e outros elementos leves, a força gravitacional passa a prevalecer. “A estrela então começa a colapsar”, afirmou. Em estrelas grandes com massas de umas dez vezes a do Sol ou mais, o resultado desse desequilíbrio provoca uma enorme explosão denominada supernova. O evento cataclísmico expele grande parte da massa da estrela. Se a estrela tiver umas 30 vezes a massa do Sol, após a explosão, a fração restante de matéria se concentra numa região de densidade infinita, com um descomunal campo gravitacional, onde, de acordo com a relatividade de Einstein, a curvatura do espaço-tempo é infinita (ou seja, a noção de tempo e espaço não existe mais). Essa região é denominada singularidade. É o coração do buraco negro. A circunferência que determina os limites do buraco negro recebe o nome de horizonte de eventos. Qualquer tipo de matéria ou energia que entre no horizonte de eventos, como um barco que cai num redemoinho, é sugado pelo buraco negro. “As mesmas equações de Einstein que usamos para garantir o funcionamento do GPS são empregadas para estudar o interior dos buracos negros”, comentou Matsas. A primeira evidência científica mais confiável da presença de buracos negros no Universo data de 1964 (e até hoje é estudada). Nesse ano, os astrofísicos começaram a observar

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NASA/CXC/A.HOBARD

Ciclo de Palestras

Dezembro Dia 6 sábado | 15h Quando Einstein falhou: a luta contra os moinhos de vento quântico Yurij Castelfranchi, físico e pesquisador da unicamp

uma estrela gigante, de 30 massas solares, da constelação de Cisne, que parecia orbitar em torno do nada, ou melhor, de uma fonte de raios X invisível a olho nu. A melhor explicação para a formação desse aparente sistema binário é a presença de um buraco negro, o Cygnus-X1, com massa equivalente a dez sóis, na vizinhança da estrela. Acredita-se que o buraco negro esteja engolindo paulatinamente a massa da estrela e crie, fora de seus limites, mas em torno de si, um disco de acréscimo de matéria. Uma das assinaturas físicas desse processo é a emissão de raios X ainda antes de a matéria ser engolida pelo buraco negro. Com o auxílio de potentes equipamentos enviados ao espaço pelo homem, como o telescópio Hubble (que opera no espectro da luz visível) e sobretudo o Observatório de Raios X Chandra, lançado pela Nasa em 1999, os astrofísicos passaram a contar com meios mais eficazes de observar indiretamente os efeitos causados (provavelmente) pela presença desses sugadores de matéria em algumas regiões do Universo. Hoje os astrofísicos afirmam que há vários tipos de buraco negro, inclusive no centro de muitas galáxias, como a nossa Via Láctea. “Uma parte significativa da matéria de uma galáxia, talvez até 1%, está na forma de um buraco negro”, disse Matsas. Há muitos mistérios ainda em torno desses objetos invisíveis que sugam matéria. Em 1974, o famoso físico inglês Stephen Hawking propôs que os buracos negros emitem uma forma de radiação que pode levar à sua evaporação. Essa teoria, ainda não comprovada, é hoje conhecida como efeito Hawking. Alguns pesquisadores acreditam que o estudo dos buracos negros levará a uma melhor compreensão das relações entre o espaço e o tempo e possa ser importante para formular a teoria da gravitação quântica, que fundiria os preceitos da mêcanica quântica com a relatividade geral de Einstein. “Os buracos negros podem ser a porta de entrada para compreender a gravitação quântica”, disse Matsas.

Ilustração de buraco negro: matéria sugada

Os gostos e desgostos de Einstein Cássio Leite Vieira, físico e jornalista (RJ) Dia 7 domingo | 11h Einstein e a matéria Luiz Davidovich, físico e professor da ufrj Dia 13 sábado | 15h Espaço e tempo no cinema Rubens Machado Jr., professor da usp O tempo na história Edgar de Decca, professor da unicamp Dia 14 domingo | 11h Einstein, o cientista e o filósofo Michel Paty, diretor de pesquisa emérito no Centre National de la Recherche Scientifique, França

Participe Todos são bem-vindos Entrada gratuita

• Marcos Pivetta

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EVOLUÇÃO

Aos pés dos

dinossauros Carlos Fioravanti

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agartos pouco maiores que a unha do polegar, coletados em 16 estados do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste, mostram que o território brasileiro abriga espécies ainda vivas de animais cujos antepassados conviveram com os dinossauros. Também sugerem que a diversidade biológica do país pode ser bem maior do que o imaginado e que as análises genéticas podem revirar o conhecimento que parecia difícil de ser contestado. Os zoólogos e os geneticistas não imaginavam que chegariam a tanto estudando cinco espécies de lagartos do gênero Coleodactylus trazidas da Amazônia, da Caatinga, do Cerrado e da Mata Atlântica. À primeira vista as cinco espécies são parecidas entre si, mas geneticamente são diferentes. Análises de DNA realizadas na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos, revelaram diferenças mesmo dentro de uma só espécie e indicaram que os primeiros representantes do gênero Coleodactylus teriam surgido há 72 milhões de anos. Esse resultado remete a uma época muito mais longínqua que estimativas anteriores, que chegavam a, no máximo, 2 milhões de anos. “Os grandes dinossauros devem ter esmagado centenas de Coleodactylus”, diz o zoólogo da USP Miguel Trefaut Rodrigues. Ele assina com Silvia Geurgas, da USP, e Craig Moritz, de Berkeley, um artigo recente na Molecular Phylogenetics and Evolution com esses resultados. Os Coleodactylus, que formam o

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grupo dos menores lagartos do mundo, com quatro centímetros da cabeça à cauda, sobreviveram nas florestas até seus descendentes, trilhões de gerações depois, chegarem aos dias de hoje provavelmente sem modificações corporais nos últimos 40 milhões de anos. “O tempo de origem e diferenciação das espécies a que chegamos joga por terra tudo o que sabíamos sobre os Coleodactylus”, reconhece Rodrigues. A classificação que até agora servia sem problemas havia sido proposta há 40 anos pelo zoólogo da USP Paulo Vanzolini com base em características morfológicas. Para Vanzolini, Coleodactylus meridionalis, encontrada hoje na Mata Atlântica e na Caatinga, seria uma espécie-irmã (muito próxima) de C. septentrionalis, achada nas savanas de Roraima, da Venezuela, do Suriname e da Guiana. Como essas duas espécies viviam muito longe entre si, separadas pela Floresta Amazônica, que abriga-

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O PROJETO Sistemática e evolução da herpetofauna neotropical

MODALIDADE

Projeto Temático COORDENADOR

MIGUEL TREFAUT RODRIGUES – USP INVESTIMENTO

R$ 900.191,26

Em sentido horário: C. amazonicus, C. meridionalis e Coleodactylus septentrionalis, em tamanho real

ria uma espécie mais recente, C. amazonicus, Vanzolini imaginou que uma floresta contínua poderia ter ocupado toda a região por onde hoje se espalham Amazônia, Cerrado, Caatinga e Mata Atlântica. As populações de uma espécie ancestral de Coleodactylus teriam se espalhado por essa floresta gigantesca e se diversificado à medida que a vegetação se fragmentasse, em resposta a variações cíclicas de temperatura. As análises genéticas confirmaram que a espécie Coleodactylus amazonicus realmente é diferente das outras – tão diferente a ponto de constituir uma linhagem evolutiva praticamente independente das demais espécies de Coleodactylus, que teria tomado forma logo após o surgimento do grupo, há cerca de 70 milhões de anos, na mesma época em que outros gêneros dessa família de lagartos da América do Sul e da América Central começaram a se ramificar. A partir daí, porém, a história é outra. Geneticamente, C. meridionalis, da Mata Atlântica e de áreas florestais da Caatinga, é mais próxima de C. brachystoma, do Cerrado, do que de C. septentrionalis, das savanas amazônicas. Em termos mais abrangentes, espécies mais próximas geograficamente – e não

FOTOS GABRIEL SKUK SUGLIANO/UFAL E MIGUEL TREFAUT RODRIGUES/USP

Pequenos lagartos contemporâneos dos grandes répteis se escondem nas florestas brasileiras

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EMBRAPA

Cerrado do rio Preto, afluente do São Francisco: margens podem abrigar espécies distintas de lagartos

as mais parecidas morfologicamente – são também as mais aparentadas. O parentesco entre esses lagartos deve se embaralhar mais à medida que os biólogos associem cada espécie com as peculiaridades geográficas dos ambientes em que vivem. As cinco espécies devem se tornar ao menos 17. “Não existe uma espécie única para toda a Amazônia ou para toda a Mata Atlântica ou para todo o Cerrado”, assegura Silvia. “Para a Amazônia, vou sugerir cinco, porque os dados moleculares indicam que se trata de entidades evolutivas separadas, que não cruzam mais.” Os estudos moleculares indicam que a maioria das espécies teria distribuição geográfica muito mais restrita, embora mais de uma possa eventualmente compartilhar o mesmo território. Uma hipótese a ser testada com os Coleodactylus é se os rios funcionariam como barreiras para diferenciação de espécies. Anos atrás, Kátia Pellegrino, hoje na Universidade Federal de São Paulo, Rodrigues e outros biólogos mostraram a validade dessa idéia

com uma espécie de lagartixa da Mata Atlântica, a Gymnodactylus darwinii. As populações dessa espécie encontradas ao norte e ao sul do rio Doce, que drena áreas de Minas Gerais e do Espírito Santo, antes consideradas próximas, não se mostraram mais tão próximas, uma tem 38 e outra 40 cromossomos. Um rio, várias espécies - Rodrigues,

com sua equipe, verificou há mais tempo que o São Francisco isolou populações e favoreceu o surgimento de novas espécies, já que nas areias quentes das margens direita e esquerda, separadas por não mais de 300 metros no norte da Bahia, vivem lagartos com sutis diferenças entre si. São as chamadas espéciesirmãs, que tinham se isolado e passado por uma história evolutiva própria, só agora esclarecida. Comparando trechos do DNA de dez populações de lagartos do gênero Eurolophosaurus, José Carlos Passoni, Maria Lúcia Benozzati e Rodrigues, todos da USP, mostraram este ano na Molecular Phylogenetics and Evolution que esses animais também

devem ter aparecido há mais tempo do que imaginavam, embora a origem deles não recue tanto quanto à dos Coleodactylus. De acordo com as análises genéticas, uma das espécies, a Eurolophosaurus divaricatus, um lagarto de 25 centímetros de comprimento que vive na margem esquerda do São Francisco, teria surgido há 5,5 milhões de anos. Os habitantes da margem oposta seriam mais recentes, o E. nanuzae com 3,5 milhões de anos e o E. amathites com pelo menos 1,5 milhão de anos. Mesmo assim, a origem estimada desses lagartos é mais remota do que os modestos 15 mil anos antes calculados com base em dados geomorfológicos. Teria sido nessa época que o rio, à medida que o relevo se modificava, teria desviado seu curso do interior para o mar. As lagoas internas em cujas margens os lagartos tomavam sol podem ter se desfeito ou o rio incorporado parte da margem esquerda ao seguir para leste e não mais para oeste. Os biólogos esperam que um dia as histórias do rio e dos lagartos possam coincidir. ■ PESQUISA FAPESP 154

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ECOLOGIA

A floresta

inesperada

Mais rica em biodiversidade, a Mata Atlântica é mais pobre do que a Amazônia em nitrogênio

FOTOS EDUARDO CESAR

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iólogos e agrônomos concluíram que a Mata Atlântica – ao menos a do litoral norte paulista – deve apresentar um modo diferente, talvez único e por enquanto desconhecido de captar, aproveitar e liberar nutrientes que lhe permitem crescer e se manter. Os solos das matas que cobrem as encostas de Ubatuba e de São Luís do Paraitinga são mais rasos e ainda mais pobres que os da Amazônia em nitrogênio, nutriente essencial às plantas, tanto quanto água e luz. Ainda não há meio de explicar como uma floresta tão pobre em nitrogênio pode ser mais exuberante que a Amazônia em variedade de espécies de plantas e animais. Esse trabalho, iniciado em 2003, mostrou que a floresta mais próxima das maiores cidades do país ainda é muito pouco conhecida, em contraste com a Amazônia, que começou a ser examinada há pelo menos quatro séculos com os naturalistas europeus. “Saber mais da Amazônia do que da Mata Atlântica, muito mais próxima de nós, é inquietante”, observa Luiz Antonio Martinelli, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e um dos coordenadores do grupo que reúne especialistas em solo, plantas e atmosfera, dispostos a construir uma visão ampla e integrada da floresta atlântica brasileira. Os botânicos foram os primeiros a perceber que o nitrogênio na Mata Atlântica não seria tão abundante quanto na Amazônia. Como base de todo o trabalho, quase 15 estudantes e auxiliares de pesquisa percorreram as 14 áreas de estudo – cada área mede um hectare (10 mil metros quadrados) de mata com a vegetação mais preservada possível em três faixas de altitude (5 a 50 metros, 50 a 500 e 500 a 1.200) nos municípios de Ubatuba e São Luís do Paraitinga. Coordenados por Simone Vieira, engenheira agrônoma da USP, e Luciana Alves, bióloga do Instituto de Botânica, eles tinham de encontrar e marcar com uma pequena placa metálica todas as árvores, mesmo as ainda em crescimento, com pelo menos 4,8 centímetros de diâmetro. No total, 28 mil árvores. Os botânicos verificaram que as representantes da família botânica das leguminosas como o jatobá, o pau-ferro e o jacarandá não eram tão abundantes por ali quanto na Amazônia. As árvores da família das leguminosas são importantes para toda a floresta porque, mais do que outras espécies, captam nitrogênio da atmosfera por Litoral norte meio da associação das raízes com grupos paulista: de bactérias do gênero Rhizobium. Inicialfloresta de 35 mente o utilizam para elas próprias e demilhões de anos

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pois o distribuem para outras plantas, quando as folhas caem e o nitrogênio se espalha no solo e nos rios. Enquanto os botânicos examinavam as plantas, Luiz Felippe Salemi e Juliano Daniel Groppo colhiam água da chuva. Depois a examinaram em Piracicaba nos aparelhos do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), sob a orientação de Martinelli, e encontraram muito pouco nitrogênio na água da chuva e dos rios, no solo e nas folhas das árvores. “Pensamos que os equipamentos estivessem errados”, conta Martinelli. Aos poucos concluíram que a Mata Atlântica deveria funcionar de modo totalmente diferente do que haviam pensado, talvez com metade do já pouco nitrogênio encontrado na Amazônia, embora mais do que nas florestas temperadas européias, bastante modestas em biodiversidade se comparadas com as da América. Martinelli ainda não sabe se a escassez de nitrogênio seria uma das razões para o fato de a Mata Atlântica ser uma das florestas mais antigas do mundo, com cerca de 35 milhões de anos, ou se a Mata Atlântica viveu tanto porque sempre contou com pouco nitrogênio. Ele acredita que comparações com um ambiente natural bem diferente, o Cerrado, cujas plantas se adaptaram à escassez de nutrientes e de água, poderiam ajudar a explicar como a floresta tropical litorânea abriga uma riqueza biológica, medida pela diversidade de espécies de animais e plantas, se consideradas as epífitas como orquídeas e bromélias, até três vezes maior por metro quadrado que a da Floresta Amazônica, muito mais rica em nitrogênio.

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O PROJETO Composição florística, estrutura e funcionamento da floresta ombrófila densa dos núcleos Picinguaba e Santa Virgínia do Parque Serra do Mar

MODALIDADE

Projeto Temático – Programa Biota FAPESP COORDENADORES

CARLOS ALFREDO JOLY (Unicamp) e LUIZ ANTONIO MARTINELLI (Cena-USP) INVESTIMENTO

R$ 2.576.067,24 (FAPESP)

folhas que caem sobre o solo – sem esperar o valioso nutriente misturar-se à terra e formar a espessa camada de material orgânico do solo das matas altas, onde o nitrogênio circula mais lentamente. Nas matas mais próximas da praia a quantidade de chuva corresponde à metade da que cai nas matas no alto da serra, imersas em neblina pelo menos 200 dias por ano. Nas altitudes mais elevadas as árvores são mais encorpadas, além de apresentarem uma densidade maior que nas matas baixas. “Não dá mais para dizer que a Mata Atlântica, indistintamente, funciona de um jeito ou de outro”, afirma Joly. Simone Vieira e Luciana Alves também estimaram a biomassa – a quantidade de carbono armazenado

principalmente nas árvores, palmeiras e samambaias – da Mata Atlântica. Reuniram informações sobre o diâmetro, a altura e a densidade da madeira de quase 30 mil árvores e concluíram que a biomassa da vegetação da Mata Atlântica pode variar de 80 toneladas de carbono por hectare nas florestas mais próximas do mar a 120 toneladas nas matas da encosta e do topo da serra. “É uma quantidade de carbono muito maior do que a que esperávamos”, afirma Simone. Essa biomassa sugere que a Mata Atlântica tem uma capacidade elevada de armazenar carbono orgânico, ainda que por mecanismos ainda misteriosos, porque a quantidade de nitrogênio que recebe não deveria levar a árvores tão encorpadas. A estimativa de biomassa indicou que cada hectare de Mata Atlântica desmatado implica a emissão de pelo menos 100 toneladas de carbono, semelhante à faixa mínima de emissão da Amazônia (a queima de um hectare de Floresta Amazônica, dependendo da densidade e da composição, implica a emissão de 100 a 200 toneladas de carbono). “Demoramos cinco séculos para conhecer a biomassa, um dado básico sobre a Mata Atlântica”, reconhece Martinelli. Sua indignação mistura-se com o prazer de terem encontrado um ser gigantesco tão próximo que permanecia tão desconhecido e certamente guarda muitas outras surpresas. ■

Carlos Fioravanti

Árvores com pressa – Ao menos agora

estão claros os contrastes não só entre as maiores florestas do Brasil como também no interior da própria Mata Atlântica. As matas de altitude mais baixas crescem e vivem – funcionam – de modo diferente que as de altitudes mais elevadas, como se fossem organismos distintos. Os solos das matas de 5 a 50 metros de altitude são rasos (não passam de 30 centímetros) e ainda mais pobres em nutrientes que os dos terrenos de 800 a 1.200 metros. De acordo com os resultados obtidos até agora, nas matas baixas as plantas parecem ter pressa e absorvem nitrogênio diretamente das PESQUISA FAPESP 154

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

Notícias ■

Educação

tendência das pacientes em perceber e relatar a dor mais relacionada às características sensorial-discriminativas. Além disso, apresentaram dados relativos à importância do papel da família e do profissional de saúde no manejo da dor. Percebeu-se a necessidade de estimular a percepção e a expressão das pacientes em relação à dor, abarcando sua multidimensionalidade, e que o manejo da dor deve ser realizado levando-se em conta a tríade equipe de saúde, paciente e família, em face da complexidade do fenômeno.

Professores leitores falhos O trabalho “O perfil dos professores leitores das séries iniciais e a prática de leitura em sala de aula”, de Tristana Nascimento Barros, da Universidade Comunitária Regional de Chapecó, e Erissandra Gomes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, investigou os hábitos e o comportamento dos professores de 1ª a 4ª série do ensino fundamental perante a leitura e a prática de leitura em sala de aula. O estudo foi observacional, transversal, com a participação de 30 professores de 1ª a 4ª séries, do ensino fundamental, de escolas públicas. Através de um questionário com 15 questões do tipo aberta e fechada, foram colhidas informações sobre os hábitos e atitudes dos professores ante o aprendizado da leitura. Dos 30 professores estudados houve diferença estatisticamente significativa entre os comportamentos, sendo que o comportamento pouco favorável foi o mais prevalente entre os professores. A grande maioria dos professores não desenvolveu uma relação afetiva com a leitura na infância e não tem o hábito de leitura, tão necessário para formar pequenos leitores em bons leitores.

Reumatologia

Aspectos da dor O objetivo do estudo “Avaliação de aspectos quantitativos e qualitativos da dor na fibromialgia”, de Simone Saltareli, Débora Fernanda Amaral Pedrosa, Priscilla Hortense, Fátima Aparecida Emm Faleiros Sousa, da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), foi avaliar a percepção da dor na fibromialgia por meio de técnica metodológica quantitativa e qualitativa. Foram avaliadas 30 pacientes mediante entrevista apreciada por meio de análise de conteúdo temática e do Instrumento de Descritores de Dor. A análise de conteúdo resultou na construção de categorias de análise referentes às percepções de diagnóstico, motivações, doença, sentimentos, pensamentos e repercussões na qualidade de vida. Já o Instrumento de Descritores de Dor revelou que os descritores de maior atribuição na caracterização da dor foram: incômoda, que espalha, latejante, desconfortável e persistente. Os de menor atribuição foram: desgraçada, demoníaca, maldita, aterrorizante e assustadora. Os dois instrumentos mostraram

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Psicopatologia

Freud e a cocaína

REPRODUÇÃO

Revista Cefac – v. 10 – nº 3 – São Paulo – 2008

Revista Brasileira de Reumatologia – v. 48 – nº 3 – São Paulo – maio/jun. 2008

O objetivo do artigo “O episódio de Freud com a cocaína: o médico e o monstro”, de Decio Gurfinkel, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é uma avaliação dos possíveis “restos” que o episódio de Freud com a cocaína deixou para a criação da psicanálise, realizada através do reexame retrospectivo, crítico e analítico desse episódio. O resultado da avaliação do autor pôs em destaque quatro elementos: o surgimento de um Freud psiquiatra e farmacologista e o progressivo abandono desta via; o surgimento da adicção como objeto de investigação; o modelo da auto-administração como método de pesquisa; e a crença e abandono subseqüente de um projeto de “cura mágica”. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental – v. 11 – nº 3 – São Paulo – set. 2008

Economia

Evasão fiscal O trabalho “Imposto de importação e evasão fiscal: uma investigação do caso brasileiro”, de Maria da Conceição Sampaio de Sousa, Maria Eduarda Tannuri-Pianto, Carlos Antônio Silva dos Santos, da Universidade de Brasília, men-

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sura o impacto das alíquotas do imposto de importação sobre a evasão fiscal nas importações brasileiras oriundas dos Estados Unidos. Os resultados obtidos permitem concluir que as alíquotas tarifárias influenciam a evasão sob suas diferentes formas: subfaturamento e classificação incorreta de mercadorias. Estes resultados corroboram o modelo básico de evasão proposto por Allingham (1972) e se insere no debate sobre a relação entre a magnitude das alíquotas e o potencial para evasão. Os resultados mostram ainda a existência de não linearidades na relação entre alíquotas e evasão. Nos vários modelos testados, esse efeito cresce com a magnitude das tarifas, sugerindo que maiores alíquotas aumentam o custo de oportunidade da tributação e geram maiores incentivos para a sonegação. Por fim, com respeito à relação entre o nível de complexidade da estrutura tributária e a evasão, o artigo sugere que uma maior diferenciação entre alíquotas dificulta a administração tarifária e pode levar à evasão.

triados” caracterizam como uma circulação esse movimento migratório: é o “rodar” de que falam os jogadores, atribuindo a essa noção um valor positivo de propiciar experiência. Essa circulação dá-se em zonas protegidas, onde um nacionalismo banal é constantemente ativado. Mesmo depois da obtenção da cidadania legal continuam sendo vistos e percebendo-se como estrangeiros; a nacionalização tem assim um propósito estratégico. De acordo com a autora, eles cruzam fronteiras geográficas sem ingressar em países, pois suas fronteiras são os clubes e não os países.

Revista Brasileira de Economia – v. 62 – nº 1 – Rio de Janeiro – jan./mar. 2008

O uso do solo nem sempre dá lugar a um novo sistema ecológico sustentável, seja de lavouras, seja de pastagens. Com isso, solos utilizados intensamente e de forma inadequada são levados à degradação. Nesse sentido, o trabalho “Uso de lodo de esgoto na reestruturação de solo degradado”, de Fabiana da Silva de Campos e Marlene Cristina Alves, da Universidade Estadual Paulista, teve como objetivo estudar a influência do lodo de esgoto na recuperação de propriedades físicas de um latossolo vermelho degradado, cultivado há 2,5 anos com eucalipto (Eucalyptus citriodora Hook) e braquiária (Brachiaria decumbens) no município de Selvíria (MS). O delineamento experimental utilizado foi em blocos casualizados com seis tratamentos e quatro repetições. Os tratamentos foram: (1) vegetação de Cerrado; (2) solo exposto sem tratamento para recuperação; (3) solo cultivado com eucalipto e braquiária sem uso do lodo de esgoto e adubação mineral; (4) solo cultivado com eucalipto e braquiária com adubação mineral; (5) solo cultivado com eucalipto e braquiária com uso de 30 Mg ha-1 de lodo de esgoto; e (6) solo cultivado com eucalipto e braquiária com uso de 60 Mg ha-1 de lodo de esgoto. Nas camadas do solo de 0,00-0,05; 0,05-0,10; 0,10-0,20; e 0,20-0,30 m, foram estudadas as propriedades físicas do solo: macroporosidade, microporosidade; porosidade; e densidade do solo. Na braquiária foram avaliadas as matérias verde e seca e, no eucalipto, a altura média de planta e o diâmetro à altura do peito. Concluiu-se que o solo estudado está sendo recuperado por meio dos tratamentos estabelecidos. Dentre eles, destacam-se os tratamentos com a utilização do lodo, que influenciaram as propriedades físicas do solo, proporcionaram mais rendimentos de matérias verde e seca da braquiária e promoveram maior crescimento das plantas de eucalipto. O crescimento vegetal, a densidade do solo, a porosidade total e a macroporosidade foram os melhores indicadores da recuperação do solo.

Horizontes Antropológicos – v. 14 – nº 30 – Porto Alegre – jul./dez. 2008

Lodo de esgoto

Antropologia

Jogadores no exterior

Revista Brasileira de Ciência do Solo – v. 32 – nº 4 – Viçosa – jul./ago. 2008 REPRODUÇÃO

Entre os milhões de brasileiros que atualmente residem no exterior, cerca de 5 mil são jogadores de futebol atuando em instituições reconhecidas, os clubes de futebol. O artigo “Rodar: a circulação dos jogadores de futebol brasileiros no exterior”, de Carmen Rial, da Universidade Federal de Santa Catarina, aborda em uma perspectiva antropológica os processos migratórios desses jogadores brasileiros com carreiras de sucesso no sistema futebolístico contemporâneo, buscando compreender as características dessa circulação mundial particular de pessoas e de dinheiro: de todas as “exportações” e de todas as emigrações brasileiras ora em curso, a de jogadores de futebol é a que apresenta maior impacto simbólico, tanto aqui como lá. A autora aborda os projetos, consumos e estilos de vida desses jogadores a partir dos dados de etnografia realizada na Espanha (Sevilha) e na Holanda (Eindhoven), e da interlocução com mais de 40 jogadores brasileiros vivendo ou tendo vivido em países no exterior, em contatos realizados no Canadá (Toronto), Holanda (Almelo, Groningen, Alkmaar, Roterdã, Amsterdã), Japão (Tóquio), França (Lyon, Le Mans, Nancy, Lille), Mônaco, Bélgica (Charleroi) e também no Brasil (Fortaleza, Salvador, Belém). Explora as intersecções com idade, origem social e religião, constatando a forte presença de caçulas entre os jogadores (o caçulismo), a proveniência majoritária de camadas sociais subalternas e a adesão predominante a cultos evangélicos. Constata também uma crescente juvenilização desse fluxo emigratório. E conclui que a constante troca de instituição de trabalho (“clube” ou “clube global”), de países e o grande número de “repa-

Ciência do solo

> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão disponíveis no site de Pesquisa FAPESP, www.revistapesquisa.fapesp.br

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LINHA DE PRODUÇÃO MUNDO

> Luz para a África Um projeto de energia elétrica que tem como fonte os raios solares foi instalado na cidade de Mbita, às margens do lago Vitória, no Quênia, pela tradicional fabricante de 90

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lâmpadas Osram em parceria com a organização não-governamental Osienala. Na região, onde vivem cerca de 30 milhões de pessoas, é comum o uso de querosene para produzir luz. Dois modelos de lâmpadas econômicas, O-Lamp Basic e O-Lamp

ser trocada por outra carregada. Rádios e telefones celulares também podem ser ligados ao dispositivo. O 2 em 1 é uma luminária composta por uma lâmpada econômica e um LED (diodo emissor de luz), além de uma bateria, que também pode ser recarregada ou trocada.

> Pílula inteligente O tratamento de disfunções do aparelho digestivo, como colite, doença de Crohn e câncer de cólon, poderá se tornar muito mais efetivo graças a um novo dispositivo recém-anunciado pela Philips. Trata-se da pílula inteligente iPill, uma cápsula (do tamanho de um comprimido convencional) dotada de uma minicâmera, projetada para ser engolida e passar naturalmente pelo sistema digestivo. Lá dentro, ela fará a liberação do medicamento de forma controlada por meio de uma bomba comandada por um microprocessador. A iPill determina a sua exata localização medindo a acidez do ambiente digestivo, já que diferentes áreas do estômago e do intestino têm perfis de pH distintos. Além disso, ela é capaz de medir a temperatura local e transmitir os dados para uma unidade receptora externa. Além de tornar os tratamentos mais eficientes, os pesquisadores da Philips acreditam que a pílula-câmera ajudará no desenvolvimento de novos medicamentos.

Cápsula com minicâmera carrega medicamento

PHILIPS

MERCADO NANOTECNOLÓGICO

Produtos com nanotecnologia vão atingir o patamar de US$ 3,1 trilhões em 2015. Em 2007, os produtos nano, que têm o tamanho ou são formados por estruturas moleculares com área máxima de 100 nanômetros (1 nanômetro é equivalente a 1 milímetro dividido por 1 milhão de vezes), renderam US$ 88 bilhões no mundo. Os valores foram apresentados no 4º Congresso Internacional de Nanotecnologia, a Nanotec, realizado em São Paulo , em novembro, por Josh Wolfe, sócio da Lux Research, consultoria especializada em nanotecnologia com sede em Nova York. Ele disse que no mercado internacional já são mais de 500 Pilares de silício com 50 nanômetros de altura produtos que possuem nanopartículas. Mas, segundo ele, muitas das tecnologias demoram para se firmar no mercado. Ele citou o exemplo de 2 em 1, robustos e à prova plásticos com nanoestruturas para torná-los mais resistentes e d’água, foram criados até com melhor aparência. “Eles demoraram, desde as primeiras para atender à comunidade descobertas, até 17 anos para chegar ao mercado.” A Lux Reseafricana, que tem na arch é associada à Lux Capital, empresa de capital de risco com pesca e nos seus 175 mil investimento em empresas nascentes de nanotecnologia, como pescadores o ponto a Cambrios, de materiais nanoestruturados para equipamentos forte da economia. eletrônicos, a Nanosys, que desenvolve plataformas nanotecO primeiro modelo opera nológicas para indústrias de energia, semicondutores, defesa em combinação com e biotecnologia, e a Cerulean, farmacêutica com produtos em uma bateria externa, desenvolvimento em oncologia e doenças auto-imunes. que depois de usada pode

N.C.CADY, G.A.BATT E DENNIS KUNKEL/UNIVERSIDADE DE CORNELL/NSF

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> Leveza e resistência Usando a nanotecnologia, a Yamaha conseguiu criar um material mais leve e resistente para os cascos dos jet skis que ela fabrica com o nome comercial de Waverunner. Na nova fórmula da fibra batizada de NanoXcel, o carbonato de cálcio, material que faz a ligação entre a resina e a fibra de vidro usadas na composição do casco da embarcação, foi substituído por argila. O novo compósito utiliza uma carga de argila nanoparticulada sobreposta em camadas por milhares de vezes, resultando numa superfície muito mais espessa e forte. Além disso, o novo material permite que o casco fique ultraleve e mais resistente. O resultado é um material 25% mais leve, levando a um melhor desempenho do motor, com maior aceleração e menor gasto

> Fungo promissor Nas folhas do olmo, uma árvore nativa da Patagônia, cresce um fungo que libera hidrocarbonetos semelhantes aos encontrados na gasolina e no diesel, de origem fóssil. A descoberta de que o fungo Gliocladium roseum produz naturalmente cerca de

55 hidrocarbonetos voláteis foi feita pelo professor Gary Strobel, da Universidade de Montana, nos Estados Unidos, especialista em fitopatologia, que o recolheu em uma de suas viagens em busca de microorganismos. Em laboratório, foi colocado em diferentes meios de cultura, entre os quais a celulose, para que proliferasse. Foi quando

o fungo liberou os gases, provavelmente como forma de defesa. Strobel acredita que essa reação seja uma maneira de impedir o crescimento ao seu redor de outros organismos concorrentes. Na universidade, a descoberta foi batizada de micodiesel – o termo “mico”, originado da palavra grega mýkes, significa fungo. LAURABEATRIZ

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CONCRETO ANTIPOLUIÇÃO

A prefeitura de Hengelo, uma pequena cidade no leste da Holanda, começará a testar no início de 2009 um novo tipo de pavimento capaz de reduzir a poluição gerada pelo escapamento dos automóveis. O segredo está no concreto usado na fabricação dos paralelepípedos, que contará com uma camada superficial contendo um aditivo de dióxido de titânio. Esse material tem propriedades fotocatalíticas e é capaz de Tratamento no piso de ruas reduz gases emitidos por carros converter as partículas de óxido de nitrogênio (NOx) exaladas pelos de combustível. Pela veículos em nitratos inofensivos à saúde a partir da ação da luz solar. Em seguida, a chuva se encarregaria de manter os aplicação da tecnologia paralelepípedos limpos. A novidade foi desenvolvida por pesinédita no mercado de veículos aquáticos, quisadores da Universidade de Twente. Para atestar a efetia empresa recebeu o Prêmio vidade da tecnologia, metade de uma rua do município será de Inovação 2008 pavimentada com os paralelepípedos antipoluição e a outra conferido pelo JEC Group, com o pavimento convencional. Testes comparativos a serem organização internacional feitos na via comprovarão a eficácia da invenção. Os resultados da indústria de compósitos. serão divulgados em meados do próximo ano.

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LINHA DE PRODUÇÃO BRASIL

RÓTULO MOLECULAR

A batalha contra a falsificação de produtos deve ganhar um novo aliado. Pesquisadores da empresa gaúcha Noddtech, abrigada na Incubadora Empresarial e Tecnológica do Centro de Biotecnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), desenvolveram e estão prontos para colocar no mercado um marcador de segurança criado com moléculas orgânicas luminescentes capazes Plástico não exposto à luz negra (esquerda). Iluminado, as cores aparecem de indicar a origem de determinado material pela cor que ele emite sob luz ultravioleta, a popular luz negra. Se um plástico qualquer for marcado com > Simulador os pilotos e o avião são esse rótulo molecular, que contém partículas nanométricas na academia submetidos ao aumento e por isso é chamado de nanorrótulo, a embalagem fabricada da força gravitacional em a partir dele pode ser rastreada durante todo o seu ciclo de Um simulador que reproduz até cinco vezes em relação vida, inclusive após o descarte. “Essa é uma tecnologia inéa força do manche da ao vôo reto nivelado. dita no Brasil para este tipo de aplicação”, garante o químico aeronave T-27 Tucano, da “O simulador serve de Ricardo Vinícius Bof de Oliveira, diretor da empresa e um dos Embraer, foi desenvolvido instrução para cadetes do inventores do marcador. “As notas do euro contam com uma na Faculdade de Medicina quarto ano e para os pilotos, de Ribeirão Preto (FMRP), tecnologia similar, mas a nossa inovação atua como um rótulo que podem usá-lo para molecular e se liga ao material durante o processamento conda Universidade de São Paulo. treinamento e para melhorar vencional.” Os nanorrótulos da Noddtech empregam moléculas O equipamento está instalado a condição física que terão que suportar em vôo luminescentes da classe das benzazolas – usadas para fazer a marcação de microorganismos em ensaios imunoflorescentes durante as apresentações”, – com grupos reativos capazes de se ligar quimicamente ao diz o educador físico Thiago substrato que está sendo “certificado” sob condições normais Augusto Rochetti Bezerra, de processamento e produção. Essas moléculas são, em sua pesquisador da FMRP. maioria, incolores sob luz normal, mas apresentam intensa O equipamento será usado emissão colorida quando sobre elas incide a luz negra. Elas também para medir foram desenvolvidas a partir de compostos estudados pelo Laa força de cada piloto e, boratório de Novos Materiais Orgânicos do Instituto de Química se for o caso, indicar um treinamento individualizado da UFRGS. Os nanorrótulos já foram testados, com sucesso, com o objetivo de para marcação de tecidos (algodão e poliéster), plásticos (náilon, polipropileno e PVC, entre outros) e proteínas (albumina, diminuir os riscos de lesões pectina e amido). Atualmente está em fase de desenvolvimento musculares. “Fizemos a marcação e certificação de combustíveis e biocombustíveis. a validação do equipamento “Acreditamos que a marcação luminescente possa inibir a na própria AFA e falsificação e adulteração de combustíveis, porque com uma depositamos uma patente”, simples lâmpada negra é possível verificar a procedência e a diz o professor Antônio qualidade do produto. A marca de gasolina A, por exemplo, na Academia da Força Aérea Carlos Shimano, que, para a poderia ter uma cor azul e a B, vermelha”, explica Oliveira. (AFA) em Pirassununga, sede pesquisa, teve financiamento Os materiais marcados (ou certificados) não têm diferenças da Esquadrilha da Fumaça, da FAPESP por meio de um significativas em suas propriedades em relação aos não marque utiliza esse tipo de avião. Auxílio Regular a Projeto cados, porque a quantidade de nanorrótulos utilizados é baixa, Durante as acrobacias de Pesquisa, no valor de de cerca de uma parte por milhão. aéreas com essas aeronaves, R$ 24.740,00 e US$ 700,00. 92

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> Água doce para

substituindo os térmicos por vários aspectos, como custo, manutenção mais barata e espaço físico”, diz o professor Kepler Borges França, coordenador do projeto e responsável pelo Labdes. O sal que sobra no processo é recolhido para descarte ou aproveitamento posterior, por exemplo, em tanques de criação de peixes.

MARCOS COLOMBO/PUCRS

A cidade de São João do Cariri, no semi-árido da Paraíba, foi escolhida para o desenvolvimento de um projeto de dessalinização de água salobra que tem como objetivo fornecer água doce ou potável para comunidades carentes. Para isso, pesquisadores do Laboratório de Referência em Dessalinização (Labdes) da Universidade Federal de Campina Grande desenvolveram uma membrana cerâmica porosa que pode substituir as importadas empregadas atualmente nos processos de osmose inversa, um dos métodos usados para retirar o sal da água. A técnica consiste em pressurizar a água salobra retirada de poços da região, fazendo com que ela circule na superfície de membranas que praticamente só deixam passar a água pura. Nos processos térmicos, como evaporação ou compressão de vapor, a extração do sal é feita pela geração de calor. “Os sistemas de dessalinização com membranas vêm

ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ

o semi-árido

> Genética gaúcha Uma linha de equipamentos que aumentam as amostras de DNA, chamados de termocicladores, foi desenvolvida pela empresa gaúcha Tone Derm, fabricante de equipamentos para medicina, em parceria com a Universidade de

Caxias do Sul e com apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). O termociclador tem várias aplicações na genética, que abarcam desde a caracterização molecular, o diagnóstico de doenças até pesquisas com clonagem e transgênicos. A oscilação de temperatura no equipamento possibilita que uma cópia de DNA seja aumentada em milhões de cópias, facilitando a análise do material. A empresa colocou no mercado três modelos de termocicladores: o Tonegen Palm, o Standard e o Block. Os dois primeiros trabalham com a mesma técnica, mas enquanto o Palm é totalmente digital o Standard é uma versão compacta e possui alguns sistemas manuais. O Block destina-se ao processo de incubação das amostras, digestão de proteínas e reações enzimáticas, que antecede a utilização do termociclador. Um banho seco, em que não há necessidade de imergir as amostras na água, substitui o banho-maria nessa versão. O investimento total para a fabricação da linha Tonegen foi de cerca de R$ 1 milhão.

O RATEIO DA ENERGIA SOLAR

Painel solar: preço diluído

Entre 2012 e 2013, a energia solar poderá ter preços equivalentes à energia elétrica convencional. O alto preço dos equipamentos é hoje um impedimento para a expansão dos painéis fotovoltaicos normalmente instalados no teto das casas. Um estudo coordenado pelo professor Ricardo Ruther, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), fez a simulação de um programa de energia solar para o país e tomou como modelo a cidade de Fortaleza, no Ceará. O trabalho levou em conta preços de equipamentos e impostos e o rateio, por meio de um imposto tarifário, que será diluído entre os consumidores finais. O programa é baseado no modelo alemão em que todos os consumidores rateiam os custos da instalação dos painéis fotovoltaicos. No caso do Brasil, Ruther propõe a exclusão do rateio dos consumidores de baixa renda. De acordo com o estudo, cada unidade consumidora de Fortaleza pagaria na fatura mais R$ 0,28 por mês para o primeiro ano do programa, subindo para R$ 1,51 por mês no décimo ano. A partir daí, o custo declinaria. Assim seriam gerados 166.200 MWh adicionais ao ano, o que equivale a uma contribuição anual de 0,23% no suprimento residencial. Ao fim de dez anos, o programa contribuiria com 1,6% de eletricidade para a cidade. PESQUISA FAPESP 154

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AGRICULTURA

Aproveitamento total

Novas técnicas transformam palha da cana em bioóleo, carvão siderúrgico, carbeto de silício e, no futuro, etanol | Dinorah Ereno

A

fuligem que sobe ao céu durante a queima da palha da cana-de-açúcar no campo durante a colheita e pousa no chão em forma de finos flocos escuros carrega em sua composição cerca de 70 produtos químicos, prejudiciais ao ambiente pela liberação de gases que contribuem para o efeito estufa e causam sérios problemas respiratórios para a população exposta. Enquanto essa prática não é definitivamente banida da cultura canavieira, vários grupos de pesquisa dedicam-se a estudar fins mais nobres para esse material que tem grande potencial para geração de energia elétrica, produção de biocombustível e fabricação de produtos como bioplásticos, carvão para siderúrgicas e até cimento. As possibilidades de aproveitamento do palhiço de cana, material que fica no campo após a colheita composto por folhas verdes, pontas do vegetal, palha e restos do caule, apontam para várias aplicações no setor produtivo. Uma das linhas de pesquisa, conduzida no Departamento de Engenharia de Materiais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), resultou na obtenção do carbeto de silício, um versátil material sintético, a partir da sílica da palha da cana. A inovação na escolha da matéria-prima e do processo utilizado para produção do carbeto de silício resultou em um pedido de patente pela universidade. Propriedades como excelente resistência ao desgaste, ao choque térmico e ao ataque de ácidos permitem o emprego desse material, que também é semicondutor, em abrasivos, na indústria de refratários, blindagem de aeronaves, microeletrônica e outras aplicações. A descoberta

surgiu como desdobramento de um projeto para a fabricação do carbeto de silício da palha de arroz, desenvolvido anteriormente pelo mesmo grupo de pesquisa. “Quando fizemos a análise química do resíduo da palha de cana queimada, vimos que também era uma fonte rica em sílica”, explica a professora Ruth Kiminami, coordenadora do projeto. A sílica foi então misturada a uma fonte de carbono como grafite e colocada em um forno especial com atmosfera controlada, sem oxigênio, para a formação do carbeto de silício. O material é obtido pela reação de redução carbotérmica, que ocorre em alta temperatura. “Em cerca de quatro a cinco horas, conseguimos produzir partículas bem finas de carbeto de silício, em torno de 1 a 5 micrômetros, utilizadas em aplicações mais avançadas”, diz Ruth. O método usado atualmente em escala industrial emprega uma mistura da sílica com carbono. O composto, após ser colocado em um forno elétrico com temperatura superior a 2.400°C durante 32 a 40 horas, resulta em blocos de silício que precisam ser processados mecanicamente por britagem e moagem. “O processo que usamos dispensa as etapas adicionais de britagem e moagem, que encarecem o custo do produto”, ressalta. Em outra pesquisa, a palha de cana picada, colocada em um circuito fechado movido a alta temperatura, resulta no final do processo em três produtos com aplicações em áreas distintas – um bioóleo com potencial de Resíduos utilização na indúscom grande tria química, um potencial fino pó de carvão ficam no vegetal que pode campo após ser empregado na a colheita

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WANDERLEY DOS SANTOS E MARCOS BUCKERIDGE

Imagens em microscopia eletrônica do desenvolvimento das folhas da cana-de-açúcar

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Carvão siderúrgico feito de produtos obtidos da palha

produção siderúrgica e um gás com alto poder calorífico, composto de monóxido de carbono, metano e hidrogênio, indicado tanto para alimentar o próprio reator como para geração de energia elétrica. O processo de termoconversão utilizado é chamado de pirólise rápida. “É uma quebra molecular feita com alta temperatura em poucos segundos”, explica o professor Luis Augusto Barbosa Cortez, da Faculdade de Engenharia Agrícola da Universidade Estadual de Campinas

>

(Unicamp), coordenador do projeto. Iniciado há dez anos, o projeto resultou na empresa Bioware, incubada no Centro de Tecnologia da universidade com apoio da FAPESP como parte do programa Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe). Para obter um elevado rendimento de bioóleo, os pesquisadores utilizam a técnica chamada de leito fluidizado borbulhante, que resulta da combinação de ar e areia e temperaturas médias em torno de 550ºC. Na porta de

OS PROJETOS 1. Biocombustível obtido do óleo pirolítico da palha da cana: avaliação técnico-econômica e ambiental do seu uso

MODALIDADE

2. Obtenção de bioóleo via pirólise rápida de resíduos agrícolas para uso como combustível e materiais MODALIDADE

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa

Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe)

COORDENADOR

LUIS AUGUSTO BARBOSA CORTEZ Unicamp INVESTIMENTO

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EDGARDO OLIVARES GOMEZ - Bioware INVESTIMENTO

R$ 35.056,65 (FAPESP)

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COORDENADOR

R$ 67.733,61 (FAPESP)

entrada ou leito do reator é colocado carvão vegetal para dar início ao processo de aquecimento. Quando a temperatura chega a 600ºC, a areia é colocada no reator e soprada para formar o leito fluidizado, onde a biomassa seca picada é colocada para ser degradada e transformada em produtos como o bioóleo, de coloração escura e bastante viscoso, que pode ser empregado como insumo químico, combustível em turbinas e caldeiras, substituto do fenol petroquímico em resinas e aditivo na formulação de concreto celular para construção civil. “Misturado ao pó de carvão obtido no processo apresenta características como alta resistência mecânica, com 75% de carbono, e baixo teor de vapores voláteis, no máximo 25%, necessárias para a utilização na fabricação de aço”, diz o pesquisador Rodrigo Jordan, que participa do projeto com uma bolsa de pós-doutorado. O vapor utilizado para produção de bioóleo, depois de passar por um processo de lavagem, resulta em uma água ácida, que pode ser aplicada tanto como bioestimulante para crescimento de plantas como bioinseticida na cultura do feijão. Os gases liberados no processo de pirólise podem ser utili-

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Poder calorífico - Embora ainda não se

saiba exatamente o potencial de geração da energia contida no palhiço, porque não existem pesquisas agronômicas apontando a quantidade ideal de palha que deve ser deixada no campo depois da colheita, um estudo coordenado pelo professor Nilson Augusto Villa Nova, do Departamento de Ciências Exatas da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo, em Piracicaba, mostra que é possível manter uma hidrelétrica igual à de Itaipu, em Foz de Iguaçu, funcionando durante o período de estiagem de maio a outubro apenas com a energia da biomassa do palhiço e do bagaço. “O palhiço, que atualmente é um problema ambiental por causa da queima no campo, tem excelente potencial de energia elétrica devido ao seu alto poder calorífico”, diz Villa Nova. “Como não podemos tirar todo o palhiço do campo porque temos de manter a qualidade agronômica do solo, a nossa proposta é retirar cerca de 50% desse material para fins energéticos”, diz o professor Tomaz Caetano Cannavan Rípoli, do Departamento de Engenharia Rural da Esalq, que há 18 anos pesquisa esse material, suas

Forragem animal Palha picada é usada como substrato para semear grãos e produzir, em poucos dias, alimento volumoso para gado, suínos e aves

Integrar a cana-de-açúcar e a pecuária em pequenas propriedades rurais utilizando a palha que hoje é queimada durante a colheita é a proposta de José Luiz Guimarães de Souza, professor aposentado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu, e do economista José Abílio Silveira Cosentino. Utilizando uma técnica chamada de forragem verde hidropônica, ou FVH, um processo de produção sem uso do solo, é possível colher em pouco tempo, e com baixa necessidade de água, um volume considerável de alimento de qualidade para animais a partir da palha da cana como substrato. Em cima de uma lona preta coloca-se a palha picada, semeada com vários tipos de grãos, como milho, soja, trigo, feijão-guandu, aveia, milheto e sorgo. “A cada 18 ou 20 dias dá para colher, por exemplo, 25 quilos de FVH de milho por metro quadrado”, diz Souza. A FHV de milho ou de qualquer outro grão plantado é colhida como um tapete constituído pela palha, pelas sementes que germinaram e suas respectivas folhas e raízes, e também pelas sementes que não germinaram, para ser usada em substituição ao capim na dieta do animal. “A quantidade colhida é a mesma que um animal adulto, uma vaca ou um boi no período de engorda, necessita receber por dia, complementada por um concentrado composto de milho, farelo de soja, farelo de trigo e sal mineral”, diz o pesquisador. O objetivo da utilização da técnica é produzir grande quantidade de massa vegetal, de boa qualidade e em curto espaço de tempo. O único cuidado é molhar o canteiro de acordo com a necessidade, como em uma horta convencional. Pelos cálculos do

pesquisador, confirmados com estudos em campo, com 25 metros quadrados é possível produzir alimento para um boi o ano inteiro, bastando plantar e colher um metro quadrado por dia. Em Holambra II, no muncípio de Avaré, no interior paulista, um proprietário rural que criava gado da raça santa-gertrudes manteve 18 canteiros de 60 metros quadrados cada um, durante dois anos. “Ele colhia um canteiro por dia e tratava de 60 a 80 cabeças”, relata Souza. Todo o processo foi acompanhado com coleta de dados e pesagem de animais. O mesmo método pode ser aplicado para alimentar suínos e aves. Para pequenas propriedades onde se planta apenas cana, a proposta é utilizar também a palha em vários tipos de produtos feitos artesanalmente, como cachepôs para vasos, revestimento de garrafas, chapéus, vasos, placas e outros. Dessa forma, a palha cumpriria uma função social, gerando renda, em vez de ser queimada no campo. Várias formulações já foram testadas pelos pesquisadores em parceria com um artesão, inclusive com tingimento do material, e resultaram em produtos que podem ser fabricados sem muita dificuldade.

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zados para alimentar caldeiras ou no próprio processo de combustão do reator, portanto tudo se aproveita da palha. A planta piloto tem capacidade para processar 200 quilos de palha por hora, transformados em 80 quilos de óleo e 50 quilos de carvão. Cortez, que há mais de uma década estuda outros usos para a cana além do açúcar e álcool, coordena, entre outros projetos, uma pesquisa sobre a agroindústria canavieira do estado de São Paulo, dentro do Programa de Pesquisa em Políticas Públicas da FAPESP, em parceria com a Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (Apta). “Hoje, dentro do sistema de produção utilizado, a eficiência da cana está em torno de 28%”, diz. O cálculo é feito com base na energia contida na cana dividida em partes iguais entre açúcar, bagaço e palha, ou seja, um terço para cada uma delas. “Usando o sistema de pirólise para aproveitamento da palha, acredito que essa porcentagem poderá ficar entre 50% e 60%.”

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que daria para suprir a demanda de Itaipu no período de seca”, diz Villa Nova. Oito usinas paulistas, entre as quais estão a Equipav, a Quatá, a Cosan, a Rafard e a Santa Elisa, já estão misturando bagaço com palhiço para cogeração de energia nas caldeiras. “A tendência hoje é a colheita integral”, diz Rípoli. Em vez de colher a cana e deixar a palha no solo, para posteriormente ser transportada para a usina, tudo é levado junto para estações de pré-limpeza, onde é feita a separação do material. “É a solução mais barata para recolher o palhiço, porque trabalha com uma colheitadeira com o sistema de limpeza desligado ou em menor rotação”, ressalta. O processo está funcionando em escala comercial, mas ainda experimentalmente. Isso porque ainda não se sabe direito qual a proporção de palhiço e bagaço que deve ser usada nas caldeiras durante a safra para não interferir na eficiência do processo. “Não tenho dúvida de que daqui a 15 anos não vai ter mais usina de açúcar, e sim usina de energia”, diz Rípoli. Uma outra perspectiva futura para o uso da palha é a produção de etanol, que ganhou um impulso recentemente com o lançamento do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen). “Vamos usar fungos que degradam a palha e o bagaço para produzir açúcares fermentáveis a partir da parede celular”, diz o professor Marcos Buckeridge, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) e um dos coordenadores do programa. Parece simples, mas os mecanismos para entender como se dá essa degradação celular passam primeiro pelo conhecimento do genoma da cana. “Encontramos 469 genes relacionados ao metabolismo da parede celular da cana”, relata. Nesse amplo estudo entram até variáveis relacionadas a mudanças climáticas, com alto nível de gás carbônico na atmosfera. “Nesse cenário haverá mudanças na composição da parede celular e precisamos ficar atentos a isso porque, dependendo da enzima utilizada, poderá ocorrer alterações no processo de obtenção do etanol.” ■

FABRÍCIO MAZOCCO/AGÊNCIA INOVAÇÃO UFSCAR

Carbeto de silício produzido a partir da sílica da palha de cana

características e como manejá-lo. Os outros 50% ficariam no campo para melhorar as propriedades físicoquímicas do solo, ou seja, auxiliar na relação carbono-nitrogênio, aumentar o teor de matéria orgânica, melhorar a atividade da microbiota do solo e protegê-lo contra o impacto das gotas de chuva, que causam erosão. O trabalho, intitulado O futuro do palhiço da cana-de-açúcar como grande fonte de energia elétrica no Brasil, apresentado em uma conferência internacional de engenharia da agricultura em 2007, indica que, devido às possíveis restrições hídricas das principais bacias hidrográficas por conta das mudanças climáticas, a utilização da biomassa deverá ser a principal fonte de energia renovável. Por esse estudo e todos 98

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os outros projetos em que esteve envolvido durante 52 anos de carreira, Villa Nova foi contemplado na categoria Vida e Obra do Prêmio Fundação Bunge 2008. Os cálculos para efeito de demonstração do potencial de geração de eletricidade pela queima do palhiço durante os 200 dias de safra foram feitos com 100 toneladas de cana por hora, mas uma usina pode moer 500, 1.000 e até 1.200 toneladas por hora. Energia na seca - O resultado da equa-

ção apontou para 76.800 megawatt/ hora(MW/h) por safra. “Considerando que a produção anual de cana-de-açúcar no Brasil é da ordem de 386 milhões de toneladas por safra, a expectativa energética anual com a biomassa ficaria em torno de 122.800.000 MW/h por ano, o

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MEDICINA

Pulmões mais limpos leito, pode se movimentar mais precocemente e até ir para casa com ele, reduzindo o tempo e o custo de hospitalização”, afirma o cirurgião Alfio José Tincani, um dos inventores do dispositivo, juntamente com o colega e também cirurgião Gilson Barreto. A idéia inicial dos médicos era utilizar a tecnologia em atendimentos hospitalares, mas um estudo feito com 22 pacientes vítimas de traumas no tórax e que tiveram de ser atendidos por serviços de emergência fora de hospitais mostrou que a válvula também é muito eficaz nessas situações. O estudo faz parte da dissertação de mestrado do médico Alexandre Garcia de Lima, que trabalhava no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) de Campinas, defendida em fevereiro de 2006. O maior desafio, segundo os pesquisadores, encontrado durante o desenvolvimento do dispositivo foi conseguir projetar uma válvula ideal que impedisse a entrada de ar para dentro do tórax e, ao mesmo tempo, não ficasse “colada”, o que tornaria impossível a saída de ar ou líquidos da cavidade torácica. “Os materiais utilizados tiveram que ser

Drenos e válvulas inovadores trazem conforto ao paciente ALFIO TINCANI/UNICAMP

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raumas no tórax respondem por cerca de 25% das mortes de vítimas de traumatismos em geral, e a drenagem torácica, ou seja, a retirada de líquidos ou gases dessa cavidade, é um dos procedimentos cirúrgicos mais freqüentes em casos de acidentes de trânsito e com armas de fogo. Para melhorar o atendimento e a recuperação desses pacientes, médicos da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) criaram um dispositivo para drenagem torácica que representa uma mudança importante em relação ao método convencional, criado há mais de cem anos. O novo sistema foi licenciado em outubro para a empresa paulista Kolplast, especializada na fabricação de produtos médico-hospitalares, e deve entrar no mercado no final do primeiro semestre de 2009. A drenagem convencional é realizada através de um tubo inserido entre a pleura e a cavidade torácica, que é conectado a uma mangueirinha de borracha até um frasco de plástico ou vidro com água dentro, conhecido como selo d’água. Um dos inconvenientes desse sistema é o peso do frasco, com capacidade para 500 a 1.000 mililitros, que dificulta a mobilidade e o transporte de pacientes em casos de emergência. No sistema criado na Unicamp, o mesmo tubo é inserido na cavidade torácica e conectado ao dispositivo, um dreno de acrílico em forma de funil com cinco centímetros de diâmetro e dez de comprimento, que contém uma pequena válvula unidirecional para que o ar ou o líquido possa ser expulso da cavidade. A mangueira e o frasco de drenagem são eliminados e este último é substituído por uma bolsa coletora. “É um sistema bem menor que pode ser encoberto pela roupa do paciente. A vantagem é que a pessoa não fica restrita ao

modificados muitas vezes até encontrarmos o ideal”, afirma Tincani. A tecnologia recebeu menção honrosa no Prêmio Governador do Estado de São Paulo, em 1992, quando foi desenvolvida. “Naquela ocasião, depositamos uma patente do dispositivo, mas não conseguimos um parceiro que se interessasse em produzi-lo em escala comercial”, explica o pesquisador. “No início de 2008, quando a patente estava para expirar, procurei a Unicamp e tentamos, mais uma vez, encontrar uma empresa interessada na tecnologia. A Kolplast soube da existência do equipamento por meio da divulgação da dissertação de mestrado e acabou nos procurando.” Segundo Giancarlo Ciola, executivo da Agência de Inovação da Unicamp (Inova), responsável pelo licenciamento, o dispositivo encontra-se em fase de aprovação na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para, em seguida, ser colocado no mercado. O produto, que ainda não tem preço definido, também poderá ser exportado. “Pretendemos exportar o produto e, para isso, vamos apresentálo à comunidade médica em três feiras que serão realizadas no próximo ano nos Estados Unidos, na Alemanha e nos Emirados Árabes”, diz Nívea Fittipaldi, diretora comercial da Kolplast. ■

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WIKIMEDIA COMMONS

Unicamp licencia novo equipamento para drenagem torácica

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> ENERGIA

Resíduos

úteis Marcos de Oliveira

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ão produzir qualquer tipo de resíduo ou poluente é o principal atributo em favor do hidrogênio como combustível para gerar energia elétrica. Ele faz funcionar as células a combustível, equipamentos que extraem os elétrons desse gás para produzir eletricidade sem danos ambientais. O problema é que o hidrogênio (H2) não existe, de forma isolada, na natureza, ele está sempre ligado a outras substâncias como a água (H2O). Uma das alternativas, embalada por uma preocupação ambiental, é o reúso da água com produção de energia renovável, utilizando esgotos e efluentes industriais como demonstrou um grupo de pesquisadores da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da Universidade de São Paulo (USP). Eles ganharam o 5º Prêmio Mercosul de Ciência e Tecnologia, edição 2008, na categoria Integração. A premiação pela pesquisa “Produção de bio-hidrogênio a partir de águas residuárias para ser utilizado como fonte alternativa de energia” teve também a autoria dos pesquisadores da Universidade de La Republica, do Uruguai. O tema do prêmio foi Biocombustível e teve apoio, entre outras entidades, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Um dos coordenadores do trabalho é o professor Marcelo Zaiat, do Departamento de Hidraúlica e Saneamento da EESC. Ele diz que o projeto valoriza os esgotos e as águas residuárias industriais, considerados também um tipo de

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Esgotos e efluentes industriais fornecem matéria-prima para produção de hidrogênio e eletricidade

biomassa, ao transformar rejeitos em meios de produção de energia. Esse é um processo trabalhoso, mas se mostra barato e ambientalmente favorável, com característica de processo sustentável, em relação ao processo mais comum para extrair hidrogênio da água, chamado de eletrólise, não indicado de forma ampla porque gasta eletricidade para gerar mais eletricidade, sem ganhos significativos. Somente usinas hidrelétricas, durante a noite, quando a demanda cai, ou em épocas do ano com muita chuva, têm condições ideais de fazer esse processo com baixo custo. O avanço tecnológico das células a combustível na década de 1990, atualmente produzidas e comercializadas por poucas empresas, ainda de forma experimental, como geradores de energia elétrica estacionários e utilizadas em protótipos automotivos, propiciou a corrida pela procura de meios para obter esse combustível. O grupo de Zaiat desenvolveu um método para produzir hidrogênio em um reator de fluxo contínuo, constantemente alimentado com rejeitos que seriam, muitas vezes, descartados sem tratamento em rios e lagoas. No sistema, bactérias anaeróbicas do gênero Clostridium, que não precisam de oxigênio para viver, aderem a partículas de polietileno dentro do reator. Conforme parâmetros de tempo de permanência da matéria-prima no sistema, acidez e outros medidas, ocorre a fermentação do material orgânico presente nas águas e a conseqüente liberação em borbulhas de hidrogênio (H2), dióxido de carbo-

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OS PROJETOS 1. Produção de hidrogênio em reator anaeróbio de leito fixo 2. Desenvolvimento de sistemas combinados de tratamento de águas residuárias visando a remoção de poluentes e a recuperação de energia e de produtos dos ciclos de carbono, nitrogênio e enxofre

MODALIDADE

1. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa 2. Projeto Temático COORDENADORES

1. MARCELO ZAIAT – USP 2. EUGÊNIO FORESTI – USP INVESTIMENTO

1. R$ 60.829,64 e US$ 27.770,92 (FAPESP) 2. 896.854,66 e US$ 239.417,81 (FAPESP)

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no, o CO2, e ácido sulfídrico (H2S). Na cabeça do reator, fechado de forma hermética, é possível instalar um sistema que capta os gases para posterior separação. A próxima meta é a produção do hidrogênio no reator em escala piloto, porque até o momento apenas reatores em escala de laboratório foram operados. Isso pode ser viabilizado em 2010, em uma estação piloto prevista para ser instalada no campus 2 da universidade em São Carlos e alimentada com esgoto sanitário em uma sala ao lado da rede de esgoto do prédio da engenharia ambiental. O gás obtido poderá, por exemplo, ser utilizado pelo grupo do professor Ernesto Gonzalez, do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da USP, que estuda sistemas para células a combustível.

sulfídrico. No caso do H2S, que é um problema para as células a combustível, ele pode ser removido da corrente gasosa por meio de reatores contendo bactérias que consomem esse material. Esse trabalho é conduzido por um grupo do Departamento de Engenharia Química da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), coordenado pelo professor Edson Luiz Silva. No caso do metano e do CO2, eles podem servir em processos físico-químicos para gerar mais hidrogênio e o gás de síntese, produto que pode ser transformado em gasolina e metanol, por exemplo. “Para transformar os gases em combustíveis líquidos é preciso adicionar catalisadores (substâncias que promovem a reação química) específicos”, diz a professora Elisabete Moreira Assaf, do IQSC, que coordena as pesquisas com os gases restantes da produção de hidrogênio a partir de efluentes. Ela também integra a Rede de Produção de Hidrogênio do Programa Nacional de Células a Combustível do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT). Zaiat já contabilizou 220 artigos científicos sobre o assunto desde 1996, quando foi publicado o primeiro texto, em que a equipe coordenada pelo professor Yoshiyuki Ueno, do Instituto de Pesquisas Técnicas Kajima, no Ja-

do grupo da EESC foi realizado com água sintética produzida em laboratório com sacarose adicionada para caracterização do sistema. Zaiat também já testou o sistema com efluentes de uma fábrica de refrigerantes e com esgoto doméstico. “Na água residuária de fábrica de refrigerantes existe muito açúcar, o que facilita a produção de hidrogênio. No caso do esgoto o potencial não é muito alto, mas o seu uso se justifica dentro de um aspecto de sustentabilidade porque é uma energia aproveitável que deixará de ser desperdiçada”, diz. Ele começa a pesquisar também a extração de hidrogênio da vinhaça, um resíduo da indústria sucroalcooleira. “Existe um bom potencial ali.” A quantidade de hidrogênio extraído foi mais bem quantificada no experimento com a sacarose da indústria de refrigerantes. Cada grama de açúcar rendeu 47 miligramas (ou 0,047 grama) de gás. Zaiat diz que essa quantidade é favorável ao processo porque os carros, por exemplo, gastariam muito pouco hidrogênio para se locomover. Em dados extraídos da literatura científica, os números variam de 1 a 10 gramas de hidrogênio por quilômetro rodado no caso dos automóveis movidos a células a combustível. Além do hidrogênio purificado e recuperado no reator anaeróbio, outros estudos do mesmo grupo aproveitam os outros gases como o CO2 e o ácido

> Artigos científicos 1. LEITE, J.A.C.; FERNANDES, B.S.; POZZI, E.; BARBOZA, M.; ZAIAT, M. Application of an anaerobic packed-bed bioreactor for the production of hydrogen and organic acids. International Journal of Hydrogen Energy. v. 33, p. 579-586. nov 2008

MIGUEL BOYAYAN

Sem desperdício - O primeiro estudo

pão, demonstrou em laboratório ser possível extrair hidrogênio de resíduos de água industrial por bactérias anaeróbias. “Depois os experimentos vieram crescendo ano a ano”, diz Zaiat. Em 2000 foram cinco, em 2001 dez e neste ano já são 220. “A maioria dos trabalhos ainda é na escala laboratorial, mas as perspectivas futuras são muito boas porque os processos gastam o mínimo de energia, com baixa potência. Existem até sistemas em que as águas entram no reator por meio da gravidade sem precisar de eletricidade”, diz Zaiat. Ele realizou a primeira parte da pesquisa com um Auxilio Regular a Projeto de Pesquisa, financiado pela FAPESP, e participa de um projeto temático coordenado pelo professor Eugênio Foresti, que também abriga a pesquisa da professora Elisabete, além de pesquisadores da UFSCar e da Escola de Engenharia Mauá (EEM), da cidade de São Caetano do Sul. ■

Esgoto e águas residuárias industriais: biomassa com valor agregado

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HUMANIDADES HISTÓRIA

Domingos cativo cativou a Bahia Vida de africano alforriado é retrato do Brasil escravagista

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m seu O navio negreiro (1869), Castro Alves (1847-1871), irado, inquire Deus sobre os africanos cativos: “Quem são estes desgraçados?”. O próprio poeta, porém, só consegue dar uma resposta vaga: “São filhos do deserto onde a terra esposa a luz, onde vive em campo aberto a tribo dos homens nus”. A generalização da figura do escravo ainda permanece forte entre nós. Daí a importância de Domingos Sodré: um sacerdote africano (Companhia das Letras, 446 páginas., R$ 58), do historiador baiano João José Reis, que, a partir da trajetória de um indivíduo, faz um painel amplo do cotidiano dos “antes simples, fortes, bravos, hoje míseros escravos”, como os definia o poeta. “As biografias de africanos e seus descendentes permitem perceber, de maneira mais humana, o movimento da história e é possível fazer dessas histórias pessoais uma estratégia de entender o processo que constituiu o mundo moderno e, em especial, as sociedades plantadas na escravidão que dele brotaram”, diz Reis. “Embora não tivesse projeto de rebeldia coletiva, Domingos trabalhou pela liberdade individual de escravos por meio do controle da vontade de seus senhores. Sua religião foi, assim, um instrumento de resistência”, analisa. Um ex-escravo dono de escravos, sua desenvoltura social (e religiosa, pois, adepto do candomblé, também foi católico fervoroso) revela as sutilezas necessárias à relação delicada entre cativos, libertos e senhores. “Ele aprendeu a negociar posições e relações dentro e fora da comunidade africana. Era um mediador cultural, um perfeito ladino.” Nascido por volta de 1797, em Lagos, na Nigéria, ponto de tráfico transatlântico de escravos, chegou à Bahia, cativo, em 1815, indo trabalhar no engenho do coronel Francisco Sodré Pereira, em Santo Amaro, região do Recôncavo, palco de várias revoltas escravas. Em 1835, ao mesmo tempo que morria seu senhor, a Bahia branca se apavorava com a Revolta dos Malês, feita por africanos nagôs como Domingos. Alforriado pelo filho do coronel, que vivia amancebado com várias negras, o ex-cativo, esperto, foi batizado e tomou o sobrenome da família a que pertencera. Casou-se, comprou escravos, fez dinheiro e, em 1862, aos 70 anos, foi preso, acusado de receber, por suas adivinhações e “feitiçarias”, objetos

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MERCADO NO PORTO DA BAHIA, C. 1887, OTTO KARL SCHÖNWALD/REPRODUÇÃO DO LIVRO O NEGRO NA FOTOGRAFIA BRASILEIRADO SÉCULO XIX


“Candomblé seria uma forma de amansar senhores e ajudar escravos” roubados por escravos a seus senhores. Escapou da pena de deportação, a que estavam sujeitos os “adeptos do candomblé”, forma generalizada que autoridades chamavam qualquer religião africana. Em 1887, aos 90 anos, morreu, sob as bênçãos da Igreja. Na sua casa, na sala, encontraram-se imagens de santos católicos. Já no quarto havia uma profusão de orixás africanos. “Ele se movia entre o candomblé e o catolicismo, sem embaraços, embora com cuidado para não misturar santo com orixá. Nisso não diferiu de muitos outros africanos, seus contemporâneos.”

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e “vida de negro é difícil”, como fala Caymmi, vida de africano liberto era ainda pior. “Trazidos à força como escravos, uma vez alforriados, africanos como Domingos viravam estrangeiros, sem mesmo os direitos aos libertos nascidos no país.” A Constituição imperial não lhes permitia ter vida política, leis restringiam a liberdade de circulação entre as províncias (eram obrigados a portar passaportes, mesmo ao lado de seus “amos”) e havia restrições até para andarem pelas ruas à noite. Tampouco podiam participar de vários ramos do comércio (daí muitos deles investirem em escravos). Quando permitidos a trabalhar, eram submetidos a uma verdadeira perseguição fiscal que visava dificultar-lhes a vida e pressioná-los a desistir de viver na Bahia e retornarem “espontaneamente” para a África. “Assim, apesar das belas palavras das cartas de alforria, esses africanos ‘livres’ tinham sua vida cotidiana limitada. Não sem razão, buscavam proteção de seus ex-senhores, agora tratados como ‘patronos’ e a quem ‘deviam’ lealdade a ponto de tomar para si o nome familiar desses.” Mesmo suas moradias alugadas, miseráveis, eram estigmatizadas pela imprensa como sendo “quilombos”, um entendimento contemporâneo de que se tratava de um espaço de resistência africana à concepção burguesa de organização e civilização, em moldes europeus, então em voga entre os ilustrados

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da Bahia. A “civilidade” igualmente se via comprometida por meio das “perniciosas idéias” presentes no candomblé e que levariam a “práticas perniciosas”. “Era um pensamento que, sem deixar de ser uma defesa do sistema social, privilegiava a defesa de um modo de vida civilizado. Era comum na Bahia da época a opinião de que candomblé e escravidão não faziam boa mistura: havia a preocupação de que a religião se transformasse numa organização, num ‘clubio’ capaz de promover a revolta escrava”, observa Reis. Domingos, alcunhado pela comunidade de “papai”, deveria ser um babalaô, acredita o pesquisador, que em iorubá significa “pai do segredo”. Havia outra agravante para as autoridades: era comum gente da elite branca usar serviços de sacerdotes africanos como Domingos. “Mesmo não professando regularmente a religião africana, muitos brancos acreditavam na força mística e nos poderes curadores e divinatórios dos sacerdotes. Alguns brancos chegaram a integrar terreiros como ogãs e médiuns e houve mesmo mãe-de-santo branca”, conta Reis. “Este é um negócio assaz grave, que lhe deve merecer séria atenção pela infiltração de idéias tão perniciosas na população”, afirmava um relatório policial da época. Definida por viajantes estrangeiros como a “metrópole negra”, Salvador era fonte de preocupação para a elite branca, que chegou cogitar o projeto de pagar para trazer imigrantes para, com isso, tentar diminuir a diferença étnica e “branquear” a capital. As várias revoltas escravas só vieram acirrar esses pavores. Foi nessa atmosfera que Domingos foi alforriado, o que, nota Reis, revela a sua habilidade em ganhar a confiança de seu senhor. “Para isso não bastava a lealdade. Era preciso ser esperto e demonstrar certas habilidades, como a capacidade de entender e se apropriar da cultura senhorial para manipulá-la em busca de maior espaço de respiração e ascensão aos melhores postos sob o cativeiro.” Ou, ainda, conseguir exercer seu sacerdócio africano sem

cair vítima da repressão. Afinal, apesar de a Constituição de 1824 oficializar o catolicismo como religião oficial, havia espaço para “todas as outras”. “Se a letra da lei não definia que religião seria tolerada, o espírito da lei protegia apenas os europeus não-católicos. As práticas religiosas africanas existiam num limbo jurídico, pois não eram consideradas religião pelas autoridades e, assim, passíveis de serem toleradas”, nota o autor. Logo, rotular os sacerdotes africanos de “feiticeiros”, promotores de superstições e “malefícios”, embora isso não tivesse efeito legal positivo, era um discurso de desqualificação social, cultural e étnica. Isso se refletia na “proibição” aos batuques, vistos como ante-sala para a revolta escrava, embora houvesse vozes discordantes que viam nessas manifestações uma válvula de escape importante numa sociedade permeada pela presença do escravo em todos os seus espaços, dando brecha para o que Reis chama de “negociação da tolerância”.

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ara os africanos, o candomblé era uma forma de resistência, observa o pesquisador, uma forma de, por meio de recursos rituais, “amansar senhores”. Há o caso da escrava acusada de tentar envenenar a família senhorial ao misturar ao café uma mistura de búzio (de grande função ritual) ralado. “Domingos prometia aos cativos trabalhar no sentido de lhes conseguir a liberdade, ou pelo menos aliviá-los da escravidão, amansando senhores com fórmulas medicinais, abrandando-lhes também o sentimento para que favorecessem seus escravos em demanda por alforrias”, avalia Reis. Afinal, não raro senhores barganhavam os valores da liberdade de seus cativos usando os mais variados argumentos racionais, econômicos e sociais. Em sua pesquisa sobre Domingos, o historiador se deparou com a pouco conhecida instituição das juntas de alforria na Bahia. “Era uma caixa de poupança, da qual cada membro retirava, num sistema rotativo, uma soma a ser investida na

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FOTÓGRAFO NÃO IDENTIFICADO/REPRODUÇÃO DO LIVRO O NEGRO NA FOTOGRAFIA BRASILEIRADO SÉCULO XIX

sua alforria, mas tinha outros fins estritamente lucrativos. O sacador continuava a pagar para saldar o principal, mais juros, que podiam chegar a 20%”, revela Reis. Não se tratava, portanto, de filantropia ou solidariedade coletiva.

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mesmo podia ser observado na compra de escravos por ex-escravos, como Domingos. Até a primeira metade do século XIX era o investimento que proporcionava o maior retorno para o pequeno investidor urbano. “Depois da proibição do tráfico, em 1850, o investimento nesse setor foi aos poucos reduzido aos grandes Carregadores na Bahia negociantes por causa do aumento do preço da mão-de-obra cativa. Ocorreu, assim, uma maior concentranar como um banco de crédito, onde ção da propriedade em escravos.” Na clientes podiam guardar economias por segunda metade do século, os pequesegurança ou para ganhar juros. “Eles podiam até ser gente remediada como nos investidores passaram a aplicar seus capitais em imóveis e viver de aluguéis Domingos ou mesmo pobres e escravos, e não dos escravos. A relação custo-beque aplicavam o pecúlio tendo em vista nefício, entretanto, não era favorável e a sua alforria. Dessa forma, as Caixas não se ganhava tanto dinheiro como se tornaram rivais das juntas e podem no tempo do investimento em cativos. mesmo tê-las sufocado”, nota o pesquiA conclusão é terrível. “O tráfico transador. Com isso perdeu-se também um satlântico, um dos aspectos mais cruéis fator cultural importante. “Na lei dos da escravidão, havia permitido um repretos, a palavra do africano valia, e asgime mais distributivo da propriedade sim se faziam, oralmente, os negócios da junta. Havia interesse dos africanos escravista, que beneficiava inclusive que os dois universos legais se mantiex-escravos escravistas”, dos quais Domingos foi um exemplo. “Sua trajetória vessem separados, porque isso impedia não foi isenta de deslizes morais. Para asque os senhores metessem o nariz.” O cenderem individualmente, deixarem a mecanismo igualmente incluía a condicondição de escravos e uma vez libertos ção de sacerdote de Domingos. “Como se estabelecerem no mundo dos livres, sacerdote, ele estava bem treinado em nele sobreviverem e prosperarem, muinegociações complicadas no campo do tos africanos tiveram de pisar sobre uns sagrado, que devem ter contribuído a ao mesmo tempo que, como no caso da reproduzi-las no terreno secular. O jogo juntas, davam a mão aos outros.” divinatório e ‘feitiçaria’ tinham algo do Pouco antes de morrer, Domingos procedimento judicial, inclusive uma depositou dinheiro na Caixa Econômoralidade estranha para os leigos.” mica da Cidade da Bahia: 1 conto de Assim, candomblé, justiça dos réis, em nome da esposa, Maria Delbrancos, juntas e alforrias andavam juntas. “Ele se destacou da maioria fina. A instituição financeira privada fora fundada em 1834 para funciodos africanos de sua época em diversas

medidas, ao mesmo tempo que foi representativo de muitos deles. Ele com certeza fez parte de uma elite de libertos que gozavam de algum prestígio no Brasil oitocentista.” O que lhe permitiu manter seu panteão devocional ritualmente separado. A presença, em sua casa, de santos e orixás foi vista pelas autoridades como prova da suposta falsidade de seu catolicismo de “fachada”. “Não misturar santo e orixá revela que, em vez de sincretista, ele tinha com ambas as religiões uma relação de complementaridade. Embora não concorde com Nina Rodrigues, quando ele escreveu que ‘as crenças e práticas’ dos africanos em ‘nada se modificaram’ em contato com o catolicismo, concordo que eles concebiam orixás e santos como distintos.” Para o pesquisador, não houve, de fato, a conversão do africano ao catolicismo, mas incorporação de dois sistemas religiosos à complexa religiosidade africana. “Assim, ser devoto de candomblé não era rejeitar o catolicismo, mas o modelo de catolicismo que gente como Nina tinha em mente.” ■

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LITERATURA

ร batata mesmo?

Estudo analisa linguagem das peรงas de Nelson Rodrigues | Gonรงalo Junior

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REPRODUÇÃO/AE

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ão foram poucas as vezes em que o dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues (19121980) afirmou que seu teatro e ele mesmo não seriam como se tornaram se não tivesse sofrido “na carne e na alma, se não tivesse chorado até a última lágrima de paixão” o assassinato de seu irmão Roberto Rodrigues – morto em 1929 na redação do jornal da família. Dizia isso para justificar a intensa dramaticidade de suas tragédias, que transportou para o universo popular do Rio de Janeiro e, desse modo, revolucionou o teatro brasileiro. Essa abordagem, no entanto, não teria a abrangência que conseguiu se ele não tivesse se inspirado na oralidade das ruas para construir seus diálogos cheios de gírias e alguns palavrões – uma forma de expressar que feriu tanto os puristas quanto os moralistas e lhe rendeu insultos públicos de pornógrafo. Mais de cinco décadas depois, porém, uma discussão parece pertinente: as peças de Nelson correm o risco de se desgastar em sua maior virtude, a inovação da linguagem, uma vez que, no decorrer de gerações, expressões e gírias tendem a ser abandonadas e esquecidas? Com absoluta convicção, a pesquisadora Wilma Terezinha Liberato Gerab acredita que não. Autora do doutorado O discurso como ele é... nas tragédias cariocas de Nelson Rodrigues,

orientado por Marli Quadros Leite e defendido na USP, ela avalia que a palavra desgaste não é a adequada para discutir o assunto. “O que ocorre é a evolução natural da língua.” Segundo ela, a linguagem coloquial que Nelson utilizava para suas personagens mostrava que o dramaturgo não possuía uma visão purista da linguagem. “Os diálogos das tragédias cariocas mostram personagens que se relacionam com a linguagem efetivamente praticada e não a idealizada.” A inovação, ou a modernidade, da linguagem do autor, afirma Wilma, tem base em algo mais que o simples aproveitamento de características estilísticogramaticais da linguagem comum ou popular. O discurso das personagens dessas tragédias cariocas, prossegue ela, foi considerado inovador para a época porque não se baseou apenas na utilização de um vocabulário típico da linguagem praticada correntemente, mas também no aproveitamento de estratégias discursivas, conversacionais e dos recursos gramaticais dos diálogos reais. “Em outros termos, podemos afirmar que o autor construiu seus diálogos baseando-se na imitação/representação do discurso que ocasiona os enunciados na realidade discursiva, tendo como base a conversação natural.” Um exemplo do uso de uma estratégia discursiva, em uma situação real que também foi muito utilizada nos

diálogos rodrigueanos, cita a pesquisadora em entrevista à Pesquisa FAPESP, aconteceu na eleição para prefeito da cidade de São Paulo de 2008. “Presenciamos na campanha televisiva da então candidata Marta Suplicy o uso da metalinguagem, que consiste em enunciar algo, sem, no entanto, afirmá-lo explicitamente.” O locutor da campanha pergunta ao telespectador: “Vocês sabem se Kassab é casado ou solteiro?”. Há nesse enunciado, diz ela, a insinuação de homossexualidade do candidato. “Isso representa uma estratégia discursiva amplamente utilizada pelas personagens rodrigueanas, que falam sem se comprometer com o que foi dito, conferindo aos diálogos desse dramaturgo verossimilhança com os produzidos em interações naturais.” Em sua tese, esse aspecto aparece precisamente no diálogo no gênero discursivo do teatro, especificamente nas tragédias cariocas de Nelson, cuja linguagem é analisada na tentativa de compreender como se processa a produção de sentido nos textos. A autora enfatiza como o autor resolve o problema de transformar a conversação natural em conversação literária, levando em conta tanto o perfil sociolingüístico das personagens quanto, principalmente, os problemas interacionais. Para isso, Wilma analisou as peças A falecida, Perdoame por me traíres, Os sete gatinhos, Boca de Ouro, O beijo no asfalto, Otto Lara

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Resende ou Bonitinha, mas ordinária, Toda nudez será castigada e A serpente. “Minha pesquisa enfatizou os diálogos de Nelson Rodrigues, que soam como se fossem, de fato, criados no momento da interação. Esses diálogos são recriações de conversações naturais, produzidos em interações espontâneas.” Nas tragédias cariocas, concluiu, há diálogos repletos de incompletude sintática acompanhada de completude semântica discursiva. Na sua opinião, isso é próprio de conversações espontâneas. “As personagens conversam entre si com diálogos concisos, carregados de elipses, subentendidos, metamensagens e pressupostos, o que recria a agilidade dos diálogos naturais.” Wilma ressalta que esse discurso ágil e conciso não era comum no teatro brasileiro antes de Nelson, já que as personagens tendiam a travar diálogos mais artificiais, porque os autores, muitas vezes, idealizavam falas rebuscadas, que, tendencialmente, se aproximariam mais da modalidade escrita e menos da modalidade da fala.

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linguagem rodrigueana, portanto, era diferente da que se praticava. “É senso comum que isso se deve à utilização de vocabulário típico da linguagem praticada correntemente e, também, à estrutura gramatical corrente, caracterizada pelo emprego de estruturas que podem apresentar desvios gramaticais. Wilma lembra que o dramaturgo começou a escrever teatro em um Brasil acostumado a assistir a peças que, de maneira geral, eram feitas com a finalidade de divertir a platéia. Assim, se não eram comédias, eram dramas de autores estrangeiros, traduzidos para o português com uma linguagem empolada, desconectada da realidade lingüística. “Sua linguagem (de Nelson) se tornou inovadora porque ele construiu não somente sobre a representação da língua correntemente praticada, em termos de léxico e sintaxe, mas também sobre a imitação do discurso que ocasiona os enunciados praticados.” Significa, afirma Wilma, que o maior trabalho do autor recaiu na representação de estratégias discursivas e que o léxico e a sintaxe resultam desse trabalho. “Tal uso criativo da linguagem faz com que Nelson Rodrigues seja

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considerado inovador, porque, em sua época, o teatro, assim como a literatura em geral, era considerado como parâmetro da ‘boa’ linguagem. Não havia, portanto, por parte dos leitores, da crítica e da platéia, em geral, expectativa de encontrar nos livros e no teatro o uso lingüístico dos falantes da época, mas, sim, a expectativa de encontrar uma linguagem conforme a tradição gramatical. Wilma estuda o efeito de sentido de naturalidade que a linguagem teatral de Nelson Rodrigues cria, com diálogos ágeis e dinâmicos, que representam o discurso vivo.

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estilo de linguagem nas peças de Nelson não foi algo que ele estabeleceu de imediato. A autora observa que as peças que antecederam as tragédias cariocas – A mulher sem pecado, Vestido de noiva, Valsa nº 6, Viúva, porém honesta, Anti-Nelson Rodrigues, Álbum de família, Anjo negro, Dorotéia e Senhora dos afogados – retratavam personagens imersas em situações complexas e distantes da realidade, portanto elas conversavam entre si utilizando um discurso que tendia a ser mais elaborado. “A fase seguinte, das tragédias cariocas, iniciada pela peça A falecida, inseriu as personagens, pessoas comuns, em uma realidade próxima ao cotidiano carioca. O dramaturgo não se limitou a copiar a vida real, mas recriou a ‘vida como ela é...’, daí suas personagens utilizarem discursos mais rápidos e ágeis.” O fato de Nelson Rodrigues ter começado a trabalhar muito cedo no jornal paterno A Manhã o influenciou em seu trabalho de dramaturgo. O corriqueiro da vida era transformado por ele em histórias criativas. “Naquela época, o jornalismo tendia para a subjetividade da notícia. Desse modo, Nelson criava suas histórias sobre fatos simples da vida, sem focalizar apenas o compromisso com a verdade propriamente dita. Essa vivência jornalística, associada aos acontecimentos trágicos de sua vida, como, por exemplo, o assassinato de seu irmão Roberto, foi influência determinante para sua obra. Ele, com sua experiência de falante da língua portuguesa, intuía ao elaborar o discurso utilizado para cada personagem, produzindo diálogos que passavam a idéia de naturalidade da fala es-

pontânea. O discurso das personagens, de maneira geral, conseqüentemente, mostra uma fala distensa, com uso de gírias, expressões populares, ditados e alguns poucos palavrões.” Outro estudioso de Nelson Rodrigues, Adriano de Paula Rabelo, também não concorda que as peças do dramaturgo venham a perder a virtude da revolução da linguagem. Isso porque nelas a linguagem do cotidiano é recriada esteticamente. “A língua que se desgasta é a que falamos aqui, fora da literatura, no nosso cotidiano. Também não falamos mais como as personagens de Machado de Assis, mas a linguagem utilizada por elas está vivíssima e muito expressiva em suas histórias. Nenhum de nós, cidadãos urbanos do Brasil – e certamente nem mesmo algum habitante do sertão mineiro de hoje –, fala como as personagens de Guimarães Rosa, mas quanta virtude lingüística em suas obras.” Por outro lado, afirma Rabelo, Nelson tinha tamanho sentimento íntimo da língua brasileira que muitas gírias e coloquialismos utilizados por ele em suas peças, contos, romances e crônicas se incorporaram à língua atual e estão vivíssimos em nossa linguagem cotidiana. “Mesmo a parte que envelheceu de suas gírias e coloquialismos é perfeitamente compreensível, por fazer parte da memória lingüística inclusive das gerações mais jovens.” Isso se dá, exemplifica ele, com expressões como “é batata”, “carambolas”, “papagaio” (exclamações), “uma pinóia”, “é o golpe”, “ih, meu filho”, “sossega, leão”, “gaita”, “erva” (dinheiro), “chispa”. Rabelo se debruçou sobre o teatro do dramaturgo brasileiro na tese Formas do trágico moderno nas obras teatrais de Eugene O’Neill e de Nelson Rodrigues, orientada por João Roberto Gomes de Faria, defendida na USP no ano passado. Para ele, os estudos sobre o teatro de Nelson sem dúvida enfocam muito mais os temas que a linguagem utilizada pelo autor. “É uma grande lacuna que está por ser preenchida por trabalhos de maior fôlego por parte da crítica literária. A linguagem de Nelson Rodrigues, não somente nos diálogos de suas peças, mas também nos outros gêneros em que escreveu, é tão importante quanto os temas por ele abordados. Estes ganharam sempre

grande destaque por causa de seu conteúdo polêmico, dos posicionamentos políticos assumidos pelo autor na conjuntura dos anos 1960 e 1970 e pela persona pública que ele mesmo construiu para si. A linguagem de Nelson em suas obras, porém, é indissociável da própria temática de seus textos.” Quanto à importância da linguagem empregada nos diálogos das peças de Nelson no processo de modernização do teatro brasileiro, Rabelo diz que é evidente que esse é um dos aspectos fundamentais da verdadeira revolução promovida por ele no teatro nacional. “Antes do sucesso de suas primeiras peças, a cena brasileira era dominada, em suas vertentes mais populares, pelo vaudeville, peça feita exclusivamente para provocar a gargalhada fácil na platéia, e pelo teatro de revista, com seus painéis plenos de musicalidade e humor também fáceis e superficiais.” Em sua vertente mais elitizada, havia certo “teatro sério”, voltado para encenações dos clássicos do teatro estrangeiro. “Não somente a linguagem brasileira era desvalorizada nesse teatro como havia nele muitos atores portugueses, e a dicção portuguesa era considerada a mais adequada em nossos palcos.”

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elson tinha consciência de que pretendia trazer inovações ao teatro ao trocar a linguagem rebuscada da representação pela forma de falar viva do dia-a-dia? Rabelo acredita num meio-termo entre algo consciente e algo instintivo. No início dos anos 1940, lembra o pesquisador, Nelson era um talento literário latente à espera de um direcionamento. “Talvez sua grande vocação fosse para romancista. Ele não somente era um leitor voracíssimo de toda sorte de romances – de escritores eternos como Dostoiévski e Flaubert à subliteratura de folhetinistas como Ponson du Terrail e Eugène Sue –, como era talhado para as profundas análises psicológicas.” No entanto, acrescenta ele, a vida o levou a empenhar mais suas potencialidades como dramaturgo. “Isso porque, num de seus períodos de penúria econômica, Nelson passou pela entrada de um teatro onde se aglomerava uma grande quantidade de pessoas para assistir a uma peça. Ele, então, pensou que poderia ganhar dinheiro escrevendo para o teatro.” ■

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.. .. RESENHA

Em busca da imagem perdida Livro do sociólogo José de Souza Martins resgata a estética das sombras

JOSÉ DE SOUZA MARTINS

Carlos Haag

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ivemos a ilusão otimista de uma história de contínuo progresso e nos esquecemos, muitas vezes, de olhar para trás e perceber a realidade das ruínas, palavra que, sintomaticamente, nos causa, em geral, uma sensação incômoda. Em “Une Charogne”, de As flores do mal, Baudelaire foi direto ao nos alertar desse falso futuro feliz: “Então, querida, dize à carne que se arruína,/ Ao verme que te beija o rosto,/ Que eu preservarei a forma e a substância divina/ De meu amor já decomposto!”. Com um forte conceitual social e sociológico, o novo livro de fotografias de José de Souza Martins, lançado agora pela Edusp, traz, na sua capa, despojada, a imagem ideal do que se propõe essa belíssima reunião de fotografias do sociólogo e fotógrafo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Sobre um fundo branco vê-se, envolto em névoas, o “portal do tempo”, imagem capturada por Souza Martins na Vila de Paranapiacaba. O autor, na introdução ao definir seu livro, vai igualmente direto ao ponto: “... é um livro de imagens recolhidas nos trajetos da decadência, nas emoções da finitude do que um dia pareceu inacabável e irreversível, nos monturos do muito”. De imediato, torna-se evidente a sua visão, sábia, de ver a fotografia como um meio de compreensão imaginária da sociedade, o que nos leva a abrir mão da ilusão de que o meio é um documento socialmente realista e objetivo. Aqui, trata-se de diálogos, conversas entre imagem e espectador, entre fotógrafo e objeto, entre passado e presente, entre sombras e luzes, entre silêncio e falas que colocam em xeque o positivismo otimista do capitalismo brasileiro triunfante. José de Souza Martins vai em busca dos vestígios de uma era de esplendor industrial e nos mostra as ruínas que dela restaram. Isso, é claro, não significa que

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se trata de imagens de “coisas mortas”. Longe disso. Em cada imagem pulsa o sentimento da vida e o trabalho braçal que ali existiu e se extinguiu: “... pessoas invisíveis nos cenários vazios que me pediam a palavra”. São crônicas imagéticas às quais o sociólogo acrescentou textos seus em partes muito particulares. “As crônicas que acompanham estas fotografias nasceram no próprio instante em que fotografava, textos quase sempre no formato final. Como se o fotografar fosse bem mais do que mera artesania de produção da imagem. Os objetos não se propunham como puros objetos. Propunham-se também como fala potencial da coisa carente de múltiplas interpretações, negando-se ao fechamento interpretativo da leitura linear para propor-se no aberto do dramático de tudo que perece.” São imagens da Vila de Paranapiacaba decadente, da desativação da Fábrica de Linhas Pavão e a Cerâmica São Caetano, “ancião” arquitetônico que foi demolido após 90 anos.

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.. .. LIVROS

O olho e o microscópio Luiz Henrique Lopes dos Santos Nau Editora 208 páginas, R$ 30,00

O livro discute o pensamento de um dos maiores nomes da lógica, o filósofo alemão Gottlob Frege (1849-1925). Trabalhando na fronteira entre a filosofia e a matemática, Frege foi o principal criador da lógica matemática moderna, sendo considerado, ao lado de Aristóteles, o maior lógico de todos os tempos. O título do livro se refere a uma analogia do filósofo: como o olho, a linguagem natural paga o preço da imprecisão; como o microscópio, a linguagem artificial da lógica compensa suas limitações por sua acuidade.

Yara Frateschi Editora Unicamp 176 páginas, R$ 30,00

A filósofa política Yara Frateschi, neste seu novo estudo recém-lançado, faz uma comparação de fôlego: Aristóteles e Hobbes. Num vaivém entre os dois pensadores, Yara não só nos faz compreender bem o que é fundamental entre ambos, como também delineia os principais temas da política hobbesiana. Em vez de começar pelo pacto e daí deduzir as conseqüências, vai muito mais longe. Ou melhor, recua até chegar às fontes últimas da filosofia de Hobbes.

Nau Editora (21) 3546-2838 www.naueditora.com.br

Editora da Unicamp (19) 3521-7718 www.editora.unicamp.com.br

Dos escombros de Pagu: um recorte biográfico de Patrícia Galvão

Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea

Tereza Freire Editora Senac 200 páginas, R$ 30,00

Através deste livro podemos conhecer um pouco da trajetória de uma jovem e promissora escritora. Tereza Freire nos reconta a vida de Pagu desde sua conversão ao comunismo e a combativa militância em nome desse ideal às sucessivas decepções que o partido lhe causou, além de apontar as torturas físicas e psicológicas que sofrera por vivenciar o fim de um sonho ao qual se entregou durante dez anos. Editora Senac (11) 2187-4450 www.editorasenacsp.com.br

Humanidade sem raças? Sérgio D. J. Pena Publifolha 72 páginas, R$ 12,90

FOTOS EDUARDO CESAR

A física da política: Hobbes contra Aristóteles

Márcia Lígia Guidin, Lúcia Granja, Francine Weiss Ricieri (orgs.) Editora Unesp 332 páginas, R$ 36,00

Em homenagem ao centenário da morte de Machado de Assis, este livro pretende ser mais que uma reunião de diversos ensaios sobre o escritor. Os artigos buscam explorar os diálogos plurais implicados na obra machadiana e discutem as relações estabelecidas no âmbito de sua produção, contemplando as múltiplas referências nela envolvidas, seja em relação a escritores específicos, seja na construção de paradigmas. Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

A fábrica do antigo Luiz Marques (org.) Editora Unicamp 408 páginas, R$ 90,00

Não existem “raças” humanas. Elas são produto da nossa imaginação cultural, um conceito empregado não só para estudar populações, mas também para criar esquemas classificatórios que parecem justificar a dominação de alguns grupos por outros.

O livro reúne 18 ensaios de diversos historiadores sobre a noção de tradição clássica. Atentos ao caráter problemático desse referencial, os organizadores se norteiam pelo comum entre a Antiguidade e os artistas da Renascença, o teatro do século XVII e a oratória brasileira do século XVIII.

Publifolha (11) 3224-2186 www.publifolha.com.br

Editora Unicamp (19) 3521-7718 www.editora.unicamp.br

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... FICÇÃO

A lâmpada

Chico Lopes

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a contaminación característica de las dos innovaciones, de acuerdo con el ingeniero de materiales Marcondes, gerente de desarrollo de nuevos productos de la compañía, es su acción bactericida y fungicida. La petroquímica prevé que, dentro de tres años, cerca ingreso será fruto de las investigaciones en nanotecnología. “Con el uso de ese nuevo ramo del conocimiento, estamos agregando valor a nuestros productos”, dice Marcondes. Se perguntada por Cido Curiango (que fazia questão de chamar pelo verdadeiro nome: Aparecido Claudino), dona Raulina, mãe adotiva, mais dois filhos naturais, balançava a cabeça e dizia: “Sei lá, no meio do mundo, sumido...” – e a seguir contava que fora assim, de repente, nada de ir mais à escola, o ano abandonado, pé na rua, umas poucas reaparições em casa e, por fim, invisível. Não suspeitava que, de vez em quando, os olhos do moleque paravam ali, à sua janela, e olhavam para dentro, ansiosos, avaliadores. Numa noite ele até chegara a entrar e apanhar, silencioso, um pouco de comida na cozinha. Subira no telhado e ali ficara comendo, lambendo os dedos com o arroz e abobrinha que só ela fazia tão bem. Depois, era voltar para a busca de vala, bueiro, sucata de carro, para dormir. Aplicava toda a sua perícia em não fazer ruído para descer. Não podia arriscar-se a ser ouvido e chamado de volta – precisava de outra vida, assanhado pela noite desde pequenino – dona Raulina o salvara, uma vez, de jogar-se, extasiado, contra os faróis de um carro. Aos treze anos se fizera adepto das ruas, da cidade ilimitada, que gostava de percorrer sozinho – sua associação aos grupos era fugaz, não se deixava seduzir por rotinas, esquivando-se sempre para mais para frente, para os horizontes de néon e grandes prédios escuros além dos quais reinava um horizonte ainda mais escuro. Morrer? Caíra de uma altura de três metros ao não encontrar uma escada no fim de uma laje molhada, na fuga de uns tiros, e não quebrara nada; roubara pedra para vender a preço seu e não fora eliminado, resistira em ziguezague a balas que lhe zuniam no pé da orelha, a cortes

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de canivete, curados com mertiolate e band-aids pegos em passagens velozes por farmácias; fazia parceiros ocasionais para entrar em casas, postos, restaurantes e, na hora de dormir, sempre um ninho imprevisto, não revelado a ninguém. Ria ao parar diante de algum bar onde, em televisão, rolassem as aventuras do Pica-Pau: sim, com ele ninguém podia, do nada surgia a banana de dinamite, o charuto explosivo, o canhão, vôo incontrolável, bico ativo, travessura, punição, revide. Coçava os bagos, contente, e aplaudia. Mas achava que andava sendo muito notado, que ultimamente dera para cruzar com mais viaturas em marcha lenta, que as esquinas lhe davam, de abrupto, tipos para os quais precisava baixar a cabeça. Por isso encompridara a sua fuga, se embrenhara em distâncias novas e inóspitas, bairros cujos nomes só Deus sabia, ruas após ruas de bares, supermercados, salões de forró, de bilhar, terrenos baldios com fundações surgindo. A suspeita de que o acertariam, de que um cano de revólver ou um porrete o acordaria numa dessas manhãs o fazia dormir pouco, mal, pensando muito, engolindo bebida roubada para se aturdir. Estivera numa fila de putos que, pelo desempenho, receberiam duzentos reais, no salão de um cabeleireiro que, possuído por três, com o quarto brigara, e este – grandão de pouco rir – não gostara e o estrangulara com o fio do secador, jurando caixão para quem contasse. No dia seguinte, nos jornais, ele vira a fotografia do assassinado, tipo conhecido, lera as manchetes, cabisbaixo. Assim, de esconderijo a esconderijo, fora parar num terreno com um barracão sobre brite para o qual só voltava à noite. E havia ali uma espécie de cabine da qual podia ver tudo ao redor. Vigiava, dormia. Parecia seguro, ao menos por uns tempos. O que o atraía era uma janela bem em frente, num pequeno prédio baixo e pichado em todas as direções. Era uma escola, o que fora uma escola, a julgar pela ruína de um playground com um brinquedo giratório de patos de madeira quebrados. Do letreiro no muro só haviam sobrado algumas letras que nada formavam, sujas de excrementos.

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MARCOS GARUTI

Todo começo de noite, uma mulher aparecia – baixinha, de óculos, pasta sob o braço, chegando da rua devagar, abria um portão quebrado, com um rangido nada discreto, olhando para todos os lados; depois entrava e acendia uma lâmpada. A sala não era muito espaçosa e, pela janela de pequenos retângulos de vidro só uns poucos intactos, ele a via com a nitidez permitida pelos sessenta watts. Ela erguia-se um pouco para acendê-la, girando com suavidade o pino do soquete, fazendo a luz, animando-se a arrumar carteiras. A seguir, risos e vozes, e um grupo, jovens, adultos, mesmo três idosos, passava devagar pelo portão aberto. Via todos juntos, talvez oito pessoas, com a parcialidade que seus olhos não iam vencer, movendo-se lá dentro, na sala, e a mulher diante de um quadro-negro, explicando pontos iniciais do alfabeto. A voz, que no início lhe parecera muito aguda, acalmava-o, ele estendia as pernas, punha as mãos sobre a barriga, descansava, ouvia. A música daquelas sílabas, a lição repetida, coisas que já sabia, mas era delicioso de novo saber, lhe dava vontade de anotar. No dia seguinte, ao passar por uma papelaria com promoção de cadernos, não teve dificuldade em apanhar um deles e duas canetas e enfiar sob a camisa, com um assovio. Esperou pela noite. A lembrança do fio do secador dando voltas naquele pescoço e fazendo emergir uma língua daquela boca que gritava, da advertência do grandão, das notícias do jornal – que tiveram continuidade com a captura de dois dos três da fila – o deixavam lépido e alarmado, ninguém na rua ia surpreendê-lo, um vão de fuga em cada palmo do visível. Noites, noites a fio anotando, gostando de sua letra, de sabê-la ainda bonita, arredondada, e assim, devagar, a expectativa da chegada da mulher, de sua entrada cautelosa, a lâmpada acesa, os alunos se acomodando, deixava-o orgulhoso, como se vivesse uma situação de luxo, de prazer, sem ser visto. Era tudo quanto precisava. Achava o bairro particularmente escuro, mas a janela iluminada como que o sorvia, não podia olhar senão para lá. Sentia o gesto da lâmpada segura por aquela mão delicada, o pino do soquete girado, como algo voluptuoso e feliz. Era o que lhe permitia

desfrutar, à distância, de um mundo tranqüilo, embalado por uma voz que tecia com vogais e consoantes objetos, alusões, rostos, nenhum lhe parecendo hostil. E, numa noite em que dormira depois de ter ocupado muitas páginas do caderno, despertou com a tranqüilidade toda varada por zunidos, sirenes, gritos, sons de coisas se espatifando. Olhou para a janela e pensou, não sem gratidão a algo obscuro, que ao menos a mulher e seus alunos não estavam na escola, na hora morta, em meio ao tumulto. Na manhã seguinte, foi simples entrar – o ermo era completo – e ver o que restara do que já eram restos de janelas e portas – cacos sobre um tanque, um banheiro em cujo chão era impensável pisar. Entrou na sala, viu a lâmpada quebrada, estilhaços pendurados no soquete. Lembrou-se de imediato de um supermercado, por onde passava diariamente, e do ponto não distante do caixa onde se testavam lâmpadas compradas. Rumou para lá e, quando a mulher retornou à noite, prostrada, balançando a cabeça, ao entrar, acendeu-a, com ele sorrindo do outro lado, caderno em punho, olhos atentos. Deteve-se nesse bairro, não pretende continuar na fuga para o horizonte de breu e pedrarias, acha que encontrou algo vagamente semelhante a uma casa. Todos os dias, não há mais nada a esperar senão pela hora em que, depois que se acomodou no observatório, a mulher chega, abre o portão rangente, olha para os lados, ciente dos perigos e espreitas e, caminhando entre escombros, abre a sala e acende a lâmpada. Ele incumbiu-se de trocá-la a cada vez que for quebrada, para que a luz e a calma o inundem, para que aquela voz lhe cante o que terá que anotar. Nunca o verão talvez, ela e o grupo que a ouve, mas ele estará lá, a postos, sua nuca sob a mira de algo, mas seus olhos presos à janela, à claridade que, mesmo entre ruínas, se difunde. Chico Lopes é jornalista e escritor, autor dos livros Nós de sombras e Dobras da noite. PESQUISA FAPESP 154

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