Pesquisa FAPESP abril de 2012
abril de 2012 . www.revistapesquisa.fapesp.br
Antártida
Cientistas propõem mudanças na gestão da pesquisa quando a estação for reconstruída FLORESTAS OCULTAS
Árvores da Amazônia cresciam no Espírito Santo há 7 mil anos DOENÇAS MENTAIS
Modelo matemático diferencia tipos de psicose INDICADOR SOCIAL
Aumento de renda não diminui desigualdade Entrevista alberto dines
Um observador engajado
n.194
Conforto na cabine Embraer e universidades criam laboratório para estudar melhor o bem-estar no avião
fotolab
Delicadas predadoras No calor tórrido e seco da serra do Cabral, em Minas Gerais, o delgado talo com translúcidas flores lilases desponta da areia branca. A visão é poética, mas Philcoxia minensis recorre a truques para sobreviver. Um deles é manter as folhas enterradas, protegidas do sol, que mesmo assim chega suficiente para a fotossíntese. O segundo, comprovado pelo ecólogo Rafael Oliveira e seu aluno Caio Pereira, é atrair vermes subterrâneos que viram suplemento alimentar num solo pobre. A digestão fica por conta das fosfatases Se você tiver uma imagem relacionada a pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.
secretadas pelas glândulas, vistas ao microscópio eletrônico de varredura na foto à esquerda.
Foto enviada por Rafael Oliveira Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) PESQUISA FAPESP 194 | 3
abril 2012
n.
194
Política científica e tecnológica 32 Gestão
Depois da tragédia na estação, pesquisadores brasileiros discutem como produzir uma ciência mais competitiva na Antártida
38 Investimentos 18 CAPA Embraer se associa a universidades para melhorar o conforto dentro de aviões Foto da capa Cabine do Centro de Engenharia de Conforto da Poli/USP, São Paulo
Cientistas e empresários protestam contra corte de 23% no orçamento federal de ciência e tecnologia
42 História da FAPESP X
62 Diagnóstico por computador
Abordagem matemática evidencia as diferenças entre os discursos de quem tem mania ou esquizofrenia
65 Obituário
Ciência perde Aziz Ab’Saber, Cesar Ades e Júlio Cesar Voltarelli
68 Evolução do Universo
Novo modelo ajuda a explicar como surgiram esses colossos que habitam o centro das galáxias
Como a pesquisa de universidades paulistas contribui para os estudos de gênero no país
tecnologia
ciÊncia
72 Comunicações por laser
Foto Eduardo Cesar
70 Previsão do tempo
Softwares e sistema de geossensores para captar e analisar dados meteorológicos
ilustração daniel das neves
entrevista 24 Alberto Dines A contribuição para a imprensa por um dos mais respeitáveis mestres do jornalismo brasileiro
seçÕes 3 Fotolab 6 Cartas 7 Carta da editora 8 On-line 9 Wiki 10 Dados e projetos 11 Boas práticas 12 Estratégias 14 Tecnociência 90 Memória 92 Resenhas 94 Arte 96 Conto 98 Classificados 4 | abril DE 2012
46 Paisagens em transformação
Mata atlântica do Espírito Santo guarda resquícios da floresta amazônica de 7,8 mil anos atrás
52 Vida no semiárido
Único mamífero instalado nas dunas do rio São Francisco, rabo-de-facho se agrupa para viver
54 Doenças neurodegenerativas
Bloqueio de sinal químico emitido pela versão saudável do príon pode originar terapia contra Alzheimer e tumor cerebral
58 Entrevista: Joshua Brickman e Jennifer Nichols
Especialistas falam das dificuldades de controlar o processo de diferenciação das células-tronco embrionárias humanas
Nanofibras ópticas são concebidas na Unicamp para transmissão de informações via ondas luminosas
74 Restauração dentária
Pinos odontológicos com nanopartículas que emitem luz e facilitam o reparo do dente
humanidades 76 Indicadores
Mesmo com a queda dos índices de desigualdade, país mantém mazelas sociais
82 Flechas e lanças pré-históricas
Interior paulista tem projéteis de pedra de até 10 mil anos com estilo diferente das abundantes lâminas do Sul
86 Crítica
Paixão por Shakespeare influenciou diretamente os romances de Machado de Assis
18
Antropologia
arqueologia
Astrofísica
Biologia celular
32 38
Bioquímica
clima
Comportamento
computação
Cosmologia
Ecologia
economia
68
Engenharia
Fisiologia
gênero
genética
46
geologia
inovação
literatura
Medicina
nanotecnologia
Neurociência
52
72
oceanografia
76
odontologia
óptica
Psicologia
Psiquiatria
química
Sociologia
teatro
86
Zoologia
PESQUISA FAPESP 194 | 5
fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo
cartas cartas@fapesp.br
Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, Horácio Lafer Piva, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, Maria José Soares Mendes Giannini, José de Souza Martins, José Tadeu Jorge, Luiz Gonzaga Belluzzo, Sedi Hirano, Suely Vilela Sampaio, Vahan Agopyan, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo
Química
Parabéns pelo suplemento especial da Pesquisa FAPESP de fevereiro (“Rolou a maior química”, edição 192). Todas as reportagens estão sensacionais! Realmente apreciei muito o apanhado de tópicos escolhidos. Deu gosto de ler. Fernando Heering Bartoloni Universidade Federal do ABC Santo André, SP
issn 1519-8774
Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Cylon Gonçalves da Silva, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, João Furtado, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto Parra, Luís Augusto Barbosa Cortez, Luis Fernandez Lopez, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Sérgio Queiroz, Wagner do Amaral, Walter Colli
Revista
Não sou assinante da Pesquisa FAPESP porque não quero perder o prazer de comentar a revista com meu jornaleiro da esquina todo dia 15. Pérola de Carvalho São Paulo, SP
Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos Diretora de redação Mariluce Moura editor chefe Neldson Marcolin Editores executivos Carlos Haag (Humanidades), Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Maria Guimarães (Edição on-line), Ricardo Zorzetto (Ciência) editores especiais Carlos Fioravanti, Marcos Pivetta Editores assistentes Dinorah Ereno, Isis Nóbile Diniz (Edição on-line) revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro editora de arte Laura Daviña ARTE Ana Paula Campos, Maria Cecilia Felli fotógrafos Eduardo Cesar, Leo Ramos Colaboradores Ana Lima, André Serradas (Banco de imagens), Azeite de Leos, Catarina Bessell, Daniel Bueno, Daniel das Neves, Denilson Cordeiro, Drüm, Evanildo da Silveira, João Marcos Coelho, Larissa Ribeiro, Paulo Cavalcanti, Salvador Nogueira, Tiago Cirillo
É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização
Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar (11) 3087-4212 mpiliadis@fapesp.br Para assinar (11) 3038-1434 fapesp@acsolucoes.com.br
Tiragem 38.500 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap
GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo
6 | abril DE 2012
Supertelescópio
Na nota “A corrida para construir o supertelescópio” (edição 190) afirma-se que: “Dois projetos norte-americanos, o Thirty Meter Telescope (TMT) e o Giant Magellan Telescope (GMT), disputam apoio do National Science Foundation (NFS), mas a agência alertou que não conseguirá financiar ambos antes de 2020. Com isso, é provável que o concorrente European Extremely Large Telescope (E-ELT) fique pronto anos antes”. Gostaria de esclarecer: 1) os projetos GMT e TMT são apoiados por consórcios internacionais liderados por instituições norte-americanas que estão disputando apoio do NSF; 2) sem esse apoio vários parceiros do TMT (como Canadá, Japão, Índia e China) hesitam em concretizar a adesão negociada até aqui. Portanto o projeto tem dificuldades de iniciar; 3) o ESO (European Southern Observatory) havia programado o anúncio do início da construção para dezembro passado. Em janeiro o diretor-geral acusou o Brasil de estar atrasando o seu início... que não aconteceu até o momento; 4) enquanto isso, somos informados pela diretora do GMT (Wendy Freedman) que o telescópio de 24 metros está em fase de construção e acelerando
o ritmo. O primeiro espelho (de um total de sete medindo oito metros de diâmetro cada um) está em fase final de polimento. O segundo está sendo fundido e o vidro do terceiro já está sendo comprado. No dia 23 de março de 2012 foi lançada a pedra fundamental em Cerro Las Campanas, no Chile. Entre os membros do consórcio GMT estão, até agora, o Carnegie Observatory, várias universidades americanas, Austrália e Coreia do Sul. João E. Steiner IAG/USP
Correções Na reportagem “Formas brasileiras de toxoplasmose” (edição 193) onde se lê “cistos contidos nas fezes de gatos” leia-se “oocistos contidos nas fezes de gatos”. Diferentemente do informado na nota “Exercício contra enfisema” (edição 193), apenas pesquisadores brasileiros integram o grupo que fez o estudo citado no texto. O enfisema atinge 15% da população geral com mais de 40 anos, e não dos tabagistas.
Evolução dos universitários formados por área do conhecimento 1.200.000 1.000.000 800.000 600.000
Ciências sociais • Humanidades • Engenharia e tecnologia • Ciências médicas • Ciências naturais e exatas • Ciências agrícolas •
400.000 200.000 0 1990
1992
1994
1996
1998
2000
2002
2004
2006
2008
fonte Elaborado com base em dados obtidos pela RICYT (www.ricyt.org.br)
O quadro da página 84 da reportagem “O que você não quer ser quando crescer” (edição 192) foi publicado com as posições de ciências agrícolas e ciências sociais invertidas. O quadro correto é o acima.
Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
carta da editora
De aviões, paixões e enamoramento Mariluce Moura Diretora de Redação
O
laboratório de conforto inaugurado neste mês de abril na Escola Politécnica da USP tornou-se tema de capa desta edição de Pesquisa FAPESP por algumas boas razões. Entre elas, elejo como a mais relevante o fato de o laboratório resultar de cooperação exemplar da Embraer com três universidades – firmemente apoiada pela FAPESP e pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). E está longe de ser gratuito, aqui, o uso do adjetivo exemplar, que em outros contextos soaria excessivo ou antipático. Arrisco-me a empregá-lo porque fica muito claro na bela reportagem sobre o projeto “Conforto de cabine”, elaborada pelo editor-chefe da revista, Neldson Marcolin, quantas lições sobre produção de novos conhecimentos, agregação de tecnologia e geração de inovações pode trazer uma bem estruturada parceria universidade/empresa. Cabines de aeronaves mais confortáveis, lembremos, constituem um objetivo perseguido por todas as grandes companhias de aviação no atual estágio de desenvolvimento da indústria aeronáutica, até por razões elementares de saúde de passageiros e tripulantes, particularmente em longas jornadas. E agora a brasileira Embraer, terceira maior fabricante mundial de jatos comerciais, dispõe de um laboratório como poucos no mundo para avançar nos vários itens que compõem esse conforto. E dentro da universidade. Vale a pena conhecer essa história (página 18). Chamo a atenção também para a reportagem sobre a pesquisa brasileira na Antártida (página 32), do editor de política, Fabrício Marques, que perscruta as ambições da ciência nacional no continente gelado e as estratégias necessárias para que o trabalho dos pesquisadores ganhe ali mais fôlego e relevância, após um longo período em que objetivos de produção de conhecimento estiveram entretecidos a objetivos militares. É possível que o recente incêndio na Estação Comandante Ferraz, embora lamentável por todas as perdas, principalmente as de duas vidas, torne-se um divisor de águas neste sentido. Na editoria de ciência destaco três textos: o que trata da intrigante presença de árvores típi-
cas da floresta amazônica a 2.400 quilômetros de suas bordas, dentro de uma reserva de mata atlântica no Espírito Santo, e com fortes indícios de que exemplares dessas espécies já ali se encontravam há 7,8 mil anos (página 46); um segundo que aborda avanços no conhecimento da proteína príon, incluindo as primeiras evidências experimentais de que interromper a interação entre ela e o oligômero beta-amiloide pode conter a progressão do mal de Alzheimer e a morte dos neurônios (página 54); e um terceiro sobre uma proposta de diagnóstico auxiliar da mania e da esquizofrenia a partir de padrões da fala, matematicamente determinados (página 62). A primeira e a terceira dessas reportagens são do editor especial Carlos Fioravanti e a segunda é do editor de ciência, Ricardo Zorzetto. Mas é tempo de esclarecer as razões do título desta carta. Quanto aos aviões, está justificado. Vamos então às paixões e ao enamoramento. As palavras me vieram a propósito de duas admiráveis personagens com as quais tive a sorte rara de lidar simultaneamente nesta edição: o jornalista Alberto Dines (na entrevista pingue-pongue, página 24) e o cientista Luiz Hildebrando Pereira da Silva (via seu recém-lançado Crônicas subversivas de um cientista, objeto de resenha, página 93). A indagação que me provocaram estes dois homens, com 80 anos, o primeiro, e 83, o segundo, finos mestres com suas lições de tempo e seus testemunhos de que a vida, para ser grande, há que ser inventada sempre em novos projetos, sem que se mire o fim antes que ele aconteça, foi qual a natureza da relação que eles mantêm com seus objetos de trabalho e estudo. Paixão? Mas a paixão, em sua natureza tempestuosa, não cria sempre um risco de engolfamento do outro até a sua desaparição? O objeto de estudo talvez se ofereça mais ao desvendamento se a aproximação se dá por movimentos cheios de delicadeza e cuidados. E nesse caso, a relação de quem produz tanto, com enorme prazer, seria uma espécie de enamoramento por aquilo que faz? Sugiro a leitura da entrevista de Dines e não só da resenha, mas do belíssimo livro de Hildebrando, para ampliar a pergunta. PESQUISA FAPESP 194 | 7
Nas redes
w w w. r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r
@Jacqueline Bexiga_ Vocês não têm
foto Van Robin / flickr
on-line
ideia de como está perfeita a edição de março da Pesquisa FAPESP!
Podcast
já falo há tempos. A quantidade de hormônio na água que o povo bebe é absurda!! (Levedura luminescente) Maria Juliana Caliman_ que perda irreparável!!!!! Vai Ab’Saber, junto com o também insubstituível Cesar Ades, com a certeza de que deixaram grande colaboração para a ciência!!! @Leonardo Sokolnik_ A edição
Exclusivo no site x As ostras acumulam no organismo compostos químicos, orgânicos e agentes causadores de doenças em pessoas, como vírus, bactérias e protozoários. Publicado na Ecotoxicology and Environmental Safety, um estudo avalia os impactos de diferentes graus de poluição no cultivo da ostra-do-pacífico (Crassostrea gigas) em Florianópolis, Santa Catarina, responsável por 95% da produção do molusco no Brasil. As ostras provenientes de locais de criação não têm contaminação preocupante. Situações críticas foram detectadas em ambientes poluídos, não usados como locais de criação.
Fapesp deste mês comprova o que
deste mês da @PesquisaFapesp está excelente! O que as bactérias
x Uma série de experimentos feitos por uma equipe internacional indica que o medicamento exenatida-4, usado para tratar o diabetes tipo 2, parece deter e até reverter o avanço da doença de Alzheimer. Segundo artigo no Journal of Clinical Investigation, a medicação tem efeito protetor sobre os neurônios, células cerebrais responsáveis pelo transporte e pelo armazenamento de informações, em geral danificadas no Alzheimer. Em camundongos, a exenatida reverteu os danos no cérebro e melhorou a memória. Resultados semelhantes estão sendo observados nos experimentos ainda em andamento com macacos cinomolgos.
do nosso intestino têm a ver com o ganho de peso? Leia e descubra. (Conexões viscerais) Fabiana Vilaça_ Mais uma vez, biologia e física se misturam (ou se completam)!!!!!! Bom dia para você que é muitooooo curioso(a) como eu... Tenho a necessidade de entender de onde viemos e para onde vamos!!!!!! (Minúsculos, mas de peso) Cristina Azevedo_ Parece menos antropocêntrico e bem razoável... (Minúsculos, mas de peso)
Assista ao vídeo:
Vídeo do mês Augusto Damineli explica os mistérios do apagão periódico da estrela gigante Eta Carinae http://www.youtube.com/user/PesquisaFAPESP
8 | abril DE 2012
Para ler o código ao lado faça o download do leitor de QR CODE no seu smartphonE
Ostras: consumo mais seguro quando cozidas
Obesidade e diabetes têm relação com os tipos de bactérias presentes no intestino
@Lincoln Delgado_ A Pesquisa
WiKi
o que é, o que é? Telas 3D sem óculos
Pergunte aos pesquisadores Por que as formigas não morrem quando postas em forno de micro-ondas?
ilustração daniel bueno
Melissa V. Queiroz [via facebook]
Emico Okuno Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP)
Carlos Navas Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IBUSP)
As micro-ondas são
De um ponto de vista
ondas eletromagnéticas
ecológico e fisiológico,
com frequência muito
a sobrevivência das
alta. Elas causam
formigas durante o
vibração nas moléculas
aquecimento da comida
de água, e é isso que
também é plausível,
aquece a comida. Se
embora não
o prato estiver seco,
necessariamente
sua temperatura não
porque tenham pouca
se altera. Da mesma
água no corpo. Nativas
maneira, se as formigas
de ambientes quentes,
tiverem pouca água em
as formigas tropicais
seu corpo, podem sair
toleram temperaturas
incólumes. Já um ser
do corpo de até 45 graus
humano não se sairia
Celsius. Outra arma é o
tão bem quanto esses
comportamento,
insetos dentro de um
que lhes permite evitar
forno de micro-ondas
os locais de maior risco.
superdimensionado: a
Elas têm eficientes
água que compõe 70%
sensores de
do seu corpo aqueceria.
temperatura e se
Micro-ondas de baixa
afastam de locais muito
intensidade, porém,
quentes. Como a
estão por toda a parte,
temperatura dentro do
oriundas da telefonia
forno de micro-ondas
celular, mas não há
nunca é uniforme
comprovação de que
(daí o prato giratório),
causem problemas para
andar depressa pode
a população humana.
ser a salvação.
Mande sua pergunta para o e-mail wikirevistapesquisa@fapesp.br, pelo facebook ou pelo twitter @PesquisaFapesp
As fotografias tridimensionais são feitas com duas imagens de uma mesma cena tiradas de ângulos (paralaxes) ligeiramente diferentes. A imagem obtida à direita é chamada de R (right, direita em inglês) e à esquerda, L (left). O estereoscópio, objeto feito com lentes ou espelhos, dirige o olho direito para ver apenas a imagem R e o esquerdo, a L. Assim, o cérebro funde as duas imagens produzindo a sensação de 3D. Esse mesmo princípio se aplica aos vídeos em três dimensões, como os dois tipos de telas autoestereoscópicas que geram 3D sem a necessidade do uso de óculos especiais. No sistema “barreira de paralaxe”, usado em games e laptops, as imagens R e L são cortadas em estreitas colunas verticais de pixels e dispostas alternadamente na tela. À frente delas há uma máscara de linhas claras e escuras (a barreira de paralaxe). A linha escura da barreira de paralaxe esconde a imagem L do olho direito e a R, do esquerdo, de maneira que cada olho recebe apenas a imagem destinada a ele. No sistema “tela lenticular”, usado em televisões, as imagens R e L também estão cortadas em colunas verticais de pixels e dispostas alternadamente. Mas, no lugar da barreira de paralaxe, há lentes cilíndricas que projetam as imagens das colunas de pixels R e L em diferentes direções (ver infográfico). Principalmente nesse caso há alguns problemas como a posição do espectador. Dependendo de onde estiver, pode enxergar as imagens R e L simultaneamente ou até invertidas. José Henrique Vuolo, Universidade de São Paulo (USP)
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PESQUISA FAPESP 194 | 9
Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados entre fevereiro e março de 2012
temáticos x Diversidade, ecologia e potencial biotecnológico da bacteriofauna simbionte associada a insetos Pesquisador responsável: Fernando Luís Consoli Instituição: Esalq/USP Processo: 2011/50877-0 Vigência: 01/03/2012 a 28/02/2015
x Os mecanismos moleculares do olfato Pesquisadora responsável: Bettina Malnic Instituição: IQ/USP Processo: 2011/51604-8 Vigência: 01/02/2012 a 31/01/2017 x Dinâmica de sistemas de muitos corpos III Pesquisador responsável: Mahir Saleh Hussein Instituição: IEA/USP Processo: 2011/18998-2 Vigência: 01/02/2012 a 31/01/2016 x Prevenção na esquizofrenia e no transtorno bipolar da neurociência à comunidade: uma plataforma multifásica, multimodal e translacional para investigação e intervenção (FAPESP-MCT/CNPq-Pronex-2011) Pesquisador responsável: Rodrigo Affonseca Bressan Instituição: EPM/Unifesp Processo: 2011/50740-5 Vigência: 01/02/2012 a 31/01/2016 x Micobactérias e seus elementos extracromossômicos: caracterização
molecular e aplicações biotecnológicas Pesquisadora responsável: Sylvia Luisa Pincherle Cardoso Leão Instituição: EPM/Unifesp Processo: 2011/18326-4 Vigência: 01/03/2012 a 28/02/2015
x Brasil, 25 anos de democracia balanço crítico: políticas públicas, instituições, sociedade civil e cultura política (1988/2013) (FAPESP-MCT/ CNPq-Pronex-2011) Pesquisador responsável: José Álvaro Moisés Instituição: FFLCH/USP Processo: 2011/50771-8 Vigência: 01/02/2012 a 31/01/2016 x Metabolismo intermediário e composição corporal em condições clínicas especiais: pesquisas empregando isótopos estáveis (não radioativos) em humanos. (FAPESP-MCT/CNPq-Pronex-2011) Pesquisador responsável: Eduardo Ferriolli Instituição: FMRP/USP Processo: 2011/50768-7 Vigência: 01/02/2012 a 31/1/2016
Processo: 2011/08575-7 Vigência: 01/03/2012 a 28/02/2015
x Efeito da fagocitose de células apoptóticas por células dendríticas na diferenciação de células TH17: função de PGE2 Pesquisadora responsável: Alexandra Ivo de Medeiros Instituição: FCF Araraquara/Unesp Processo: 2011/17611-7 Vigência: 01/03/2012 a 29/02/2016 x As transferências culturais na imprensa na passagem do século XIX ao XX – Brasil e França Pesquisadora responsável: Valéria dos Santos Guimarães Instituição: FCL Assis/Unesp Processo: 2010/19123-7 Vigência: 01/03/2012 a 28/02/2014 x Aprendizado de máquina utilizando modelos inspirados pela natureza Pesquisador responsável: Fabrício Aparecido Breve Instituição: IGCE Rio Claro/Unesp Processo: 2011/17396-9 Vigência: 01/03/2012 a 29/02/2016
JOVEM PESQUISADOR x Papel da modulação dopaminérgica no núcleo lateral da amígdala sobre a resposta condicionada de esquiva Pesquisadora responsável: Raquel Chacon Ruiz Martinez Instituição: FM/USP
x Via colinérgica anti-inflamatória: o papel da neuroimunomodulação no controle da resposta Inflamatória Pesquisador responsável: Alexandre Kanashiro Instituição: FMRP/USP Processo: 2011/20343-4 Vigência: 01/03/2012 a 28/02/2014
x Estudo do padrão migratório, efetor e regulador dos linfócitos T autorreativos, previamente transduzidos com GFP, nas doenças desmielinizantes experimentais Pesquisador responsável: Alessandro dos Santos Farias Instituição: IB/Unicamp Processo: 2011/18728-5 Vigência: 01/03/2012 a 29/02/2016 x Oxidação do ácido úrico pela enzima mieloperoxidase em processos inflamatórios e as implicações sobre o sistema cardiovascular Pesquisadora responsável: Flavia Carla Meotti Instituição: IQ/USP Processo: 2011/18106-4 Vigência: 01/03/2012 a 29/02/2016 x Aprendizado semissupervisionado dinâmico e ativo baseado em redes complexas Pesquisador responsável: Marcos Gonçalves Quiles Instituição: ICT/Unifesp Processo: 2011/18496-7 Vigência: 01/03/2012 a 29/02/2016 x Desenvolvimento de um sistema computacional para a simulação da interação da radiação ionizante com o material genético humano Pesquisador responsável: Mario Antonio Bernal Rodriguez Instituição: IF/Unicamp Processo: 2011/51594-2 Vigência: 01/03/2012 a 29/02/2016
Volume e visibilidade
Trabalhos indexados das 10 universidades brasileiras com maior volume de produção Nº de artigos ESI 2001-2011
Nº de citações
Citações/artigo
USP
53.700
416.204
7,75
Unicamp
20.076
145.370
7,24
Unesp
17.889
93.587
5,23
UFRJ
17.862
127.030
7,11
UFRGS
13.798
100.194
7,26
UFMG
11.864
82.383
6,94
Unifesp
9.489
72.148
7,60
UFSC
6.412
39.164
6,11
UFPR
6.261
33.550
5,36
UFSCar
6.024
37.219
6,18
Fonte: Essential Science Indicators, Thomson Reuters
10 | abril DE 2012
daniel bueno
Universidade
Boas práticas Um documento lançado pelo Committee on Publication Ethics (Cope), com sede no Reino Unido, estabeleceu diretrizes para estimular a cooperação entre instituições de pesquisa e revistas científicas na investigação de casos de má conduta e também na promoção de boas práticas entre cientistas e editores (quadro abaixo). O Cope é um fórum de revistas científicas que congrega mais de 7 mil membros em vários países em todos os campos do conhecimento. As revistas das principais editoras, como a Elsevier, a Springer e a Palgrave Macmillan, seguem suas recomendações. “As instituições e as revistas têm deveres no combate às más condutas”, diz Elizabeth Wagner, presidente do Cope. “É importante que se comuniquem e colaborem de forma eficaz”, afirma. A ideia corrobora o Código de boas práticas científicas lançado pela FAPESP em 2011, segundo o qual a responsabilidade principal pela integridade é das instituições, mas
os periódicos são corresponsáveis, nos limites de sua atuação. No caso das revistas, recomenda-se que tenham políticas claras para tratar casos suspeitos e estejam prontas a responder às indagações de instituições e outras organizações encarregadas de promover investigações. Já as instituições devem encorajar seus pesquisadores a informar às revistas se forem descobertos erros em trabalhos publicados. Também devem oferecer treinamento sobre boas práticas em seus programas de educação em integridade científica. Embora tenha se debruçado sobre regras para investigar suspeitas, o documento enfatiza que as tarefas de educar os pesquisadores, de promover boas práticas e de criar estratégias de prevenção são igualmente importantes. “Idealmente, as políticas de revistas e de instituições devem cobrir todos esses aspectos”, ressalta o documento. O texto reconhece
daniel bueno
Parcerias contra má conduta
que outros atores, principalmente as agências financiadoras, têm um papel importante na promoção da integridade científica e devem ser informados sobre casos de má conduta relacionados a projetos que patrocinaram. “Esperamos que as diretrizes ajudem os financiadores a desenvolver suas políticas acerca de integridade científica, em colaboração com pesquisadores e editores.”
Cooperação necessária
As responsabilidades das instituições de pesquisa e das revistas na promoção da integridade científica As instituições de pesquisa devem:
As revistas científicas devem:
1. Manter um escritório de integridade da pesquisa, ou ao menos
1. Divulgar os contatos de seu editor-chefe, que deve
um funcionário incumbido de promover boas práticas, e divulgar
funcionar como ponto de referência relacionado à
seus contatos com destaque.
integridade das pesquisas e da publicação.
2. Informar as revistas sobre casos de má conduta que afetem a
2. Informar as instituições sobre suspeitas de má conduta
confiabilidade de trabalhos publicados.
contra seus pesquisadores e fornecer evidências que
3. Responder às revistas se elas pedirem informações sobre
deem lastro a tais suspeitas.
assuntos como conflito de interesses, autoria suspeita ou erros,
3. Cooperar com as investigações e responder às questões
entre outros.
das instituições sobre alegações de má conduta.
4. Investigar alegações sobre má conduta científica ou práticas
4. Estar preparadas para fazer correções ou retirarem
inaceitáveis levantadas pelas revistas.
artigos científicos ante evidências de má conduta.
5. Ter políticas de apoio a boas práticas científicas e instâncias
5. Manter políticas para responder às instituições e outras
encarregadas de investigar casos suspeitos.
organizações que investigam a integridade de pesquisas.
PESQUISA FAPESP 194 | 11
Estratégias Cooperação na área da saúde
1
Conselho internacional
Harald zur Hausen, Nobel de Medicina, um dos conselheiros do Hospital A.C. Camargo
A FAPESP e o laboratório
para a saúde pública
Glaxo SmithKline-Brasil
no Brasil, incluindo
(GSK) lançaram
sua aplicação no
chamada de propostas
desenvolvimento de
de pesquisas no âmbito
novos medicamentos,
de um acordo de
também poderão
cooperação assinado
ser objeto dos projetos.
em 28 de fevereiro pelas
Estão aptos a
instituições. O acordo
apresentar projetos,
prevê um aporte de até
até o dia 14 de maio,
US$ 600 mil, com valor
os pesquisadores
máximo para cada
vinculados a instituições
projeto aprovado
de ensino superior
limitado a US$ 200 mil,
e de pesquisa,
divididos em partes
públicas e privadas,
iguais por GSK e FAPESP,
no estado de São Paulo.
para apoio a pesquisas
A colaboração entre a
na área da saúde
FAPESP e a GSK Brasil
O Centro Internacional
Genética do Max-Planck-
de Pesquisa do Hospital
-Institut, na Alemanha,
A. C. Camargo (Cipe) criou
e Martin Raff, da McGill
desenvolvidas no estado
integra o projeto “Trust
um conselho científico
University, no Canadá,
de São Paulo. As áreas
in Science”, iniciativa
internacional para avaliar
e da University College
prioritárias incluem
internacional da Glaxo
as pesquisas realizadas
London, no Reino Unido.
temas como doenças
SmithKline que prevê
pela instituição. O comitê
A criação do conselho
respiratórias, metabólicas,
investimentos de
é composto por cientistas
foi uma das últimas
infecciosas, inflamatórias
R$ 3 milhões em
de cinco países, entre os
iniciativas de Ricardo
e imunologia, além de
acordos de cooperação
quais o virologista alemão
Brentani, que morreu em
doenças tropicais e
subsequentes com
Harald zur Hausen,
novembro de 2011, e era
negligenciadas e das
a FAPESP e também
professor da Universidade
presidente da Fundação
chamadas doenças raras,
com o Conselho Nacional
de Heidelberg, que
Antônio Prudente, que
que afetam um pequeno
de Desenvolvimento
recebeu o Prêmio Nobel
mantém o Hospital A. C.
número de pessoas e
Científico e Tecnológico
de Medicina por ter
Camargo, e diretor-
cujas características
(CNPq). Mais
identificado a relação
-presidente do Conselho
são pouco conhecidas.
informações em www.
do papilomavírus (HPV)
Técnico-Administrativo
Outros temas relevantes
fapesp.br/acordos/gsk.
com o câncer. Os outros
(CTA) da FAPESP. De
cientistas são António
acordo com Fernando
Coutinho, que dirigiu
Soares, coordenador de
o Instituto Pasteur,
pesquisa do hospital,
em Paris, Curtis Harris,
o primeiro parecer virá
diretor do National
nos próximos três meses.
Cancer Institute dos
“O comitê apresentará
Estados Unidos, Alan
um relatório trazendo
Ashworth, professor
possíveis novas
do Breakthrough Breast
diretrizes”, disse.
Cancer Research Centre
A instituição é
do Reino Unido, Kai
responsável por mais
Simons, do Instituto de
de 60% da pesquisa
Biologia Molecular e
do câncer no país.
12 | abril DE 2012
Divulgação científica na Amazônia Desde setembro de 2011, a cada primeiro dia do mês, o jornal paraense O Liberal traz uma carga extrapreciosa em todos os seus aproximadamente 40 mil exemplares diários (que aos domingos sobem para mais de 70 mil): a revista de divulgação científica Amazônia Viva, resultado da persistência de um biólogo, Inocêncio Gorayeb, mais o trabalho de um jovem jornalista, Felipe Melo, a acolhida do grupo editorial Maiorama e o patrocínio da Vale. Recheada
Macacos não voam mais
fotos 1. Prolineserver / wikicommons 2. eduardo cesar 3. Eric Bajart / Wikicommons ilustraçãO daniel bueno
O encarte da revista em O Liberal fez com que ela pudesse chegar aos leitores sem nenhum desembolso adicional ao preço já normalmente pago pelo próprio jornal. O exemplo deve conquistar seguidores.
com belíssimas fotos e texto acessível ao público leigo em ciência, a revista de 68 páginas, em formato maior que o padrão hoje usual e impressa em papel LWC, mais barato que o cuchê, constitui uma agradável surpresa no panorama do jornalismo científico brasileiro. A rigor, ela é a tradução de um sonho de 20 anos de Gorayeb, pesquisador do Museu Paraense Emilio Goeldi, que por muito tempo perseguiu possíveis patrocinadores para sua ideia. Amazônia Viva: agradável surpresa no jornalismo científico brasileiro
Companhias aéreas
a transportar animais
cederam a uma
para pesquisa.
campanha de entidades
Tipu Aziz, professor
de defesa dos animais e
de neurocirurgia na
deixaram de transportar
Universidade de Oxford,
os macacos que
Reino Unido, acredita
abastecem a pesquisa de
que o bloqueio ao
laboratórios dos Estados
transporte de animais
Unidos e da Europa.
não terá o efeito
O professor e pesquisador
pesquisadores com
Segundo a revista
desejado. “Minha
Edgar Dutra Zanotto,
pelo menos 20 anos de
Nature, a companhia
intuição é que mais
do Departamento de
carreira. Foi concedido
China Southern Airlines
e mais cientistas irão
Engenharia de Materiais
pelo conjunto das
foi uma das últimas
para outros países para
da Universidade Federal
pesquisas desenvolvidas
a capitular às pressões
fazer pesquisas com
de São Carlos (UFSCar),
no Laboratório de
da organização Peta
primatas”, diz ele,
foi escolhido para receber
Materiais Vítreos
e deixou de transportar
que usa macacos
o Prêmio George W.
(LaMaV) da UFSCar
80 primatas para
para estudar a doença
Morey, oferecido pela
nas três últimas
o aeroporto de Los
de Parkinson.
American Ceramic Society
décadas”, contou Zanotto
(ACerS). A homenagem
à Agência FAPESP.
animais Michael Hsu diz
reconhece as pesquisas
O pesquisador fundou
que os ativistas estão
mais relevantes no campo
o LaMaV em janeiro
azedando o seu negócio
da ciência e tecnologia
de 1977 e ainda hoje
– ele mantém uma
do vidro e, pela primeira
coordena o laboratório.
colônia de macacos em
vez, é concedida a um
Durante esse
Xangai e depende dos
pesquisador latino-
período, dedicou-se
voos para transportá-los
-americano. No rol de
principalmente a estudar
para clientes norte-
homenageados também
o processo de
-americanos. Outras
está Charles Kuen Kao,
cristalização controlada
companhias aéreas,
vencedor do Prêmio
dos vidros e suas
como a Lufthansa,
Nobel por seu trabalho
propriedades e trabalhou
a British Airways
com transmissão da
no desenvolvimento
e a Virgin Atlantic,
luz em fibras ópticas.
de novos materiais
“É um prêmio para
vitrocerâmicos.
Angeles. O criador de
há tempos se recusam
2
Homenagem inédita
Macaco cinomolgo, um dos primatas transportados para os Estados Unidos e Europa
3
PESQUISA FAPESP 194 | 13
Tecnociência Múltiplos sensores para registrar neurônios tentaram adaptar, sem
brasileiro Lucas Santos,
sucesso, essa tecnologia
da Universidade Wake
para os experimentos
Forest, nos Estados Unidos,
com primatas”, diz
desenvolveu um
Santos. Inovações no
microdispositivo que
desenho do dispositivo
permite registrar, ao
e nos circuitos permitiram
mesmo tempo e com
reduzir a espessura das
menos danos, a atividade
cânulas e aumentar
de neurônios no córtex e
o número de eletrodos,
no subcórtex de macacos.
deixando o aparelho com
É um conjunto de cânulas
qualidade similar à dos
com eletrodos múltiplos
usados em roedores.
que identificam os disparos
Cada cânula contém de
elétricos dos neurônios em
quatro a seis conjuntos
testes comportamentais.
1
Vale do São Francisco: apenas uma das áreas indicadas para cultivo de uvas na região
Oásis de uvas no Nordeste Estudo feito por
entre julho e setembro.
pesquisadores da
O território com bom
Embrapa Semiárido,
potencial para cultivo
de eletrodos muito finos,
de Petrolina (PE), e da
de uvas para fabricação
Santos desenvolveu
com sensibilidade para
Embrapa Uva e Vinho,
de vinho é um pouco
o aparelho quando estava
identificar os disparos
de Bento Gonçalves (RS),
diferente e engloba
na Universidade Brown
de um único neurônio,
mapeou as áreas do
Bahia, Pernambuco,
e o testou em colaboração
que possibilitam verificar
Nordeste que apresentam
Paraíba, Alagoas e
com pesquisadores da
como os de uma região
clima mais favorável
Sergipe e o sudoeste do
Wake Forest (Journal of
mais superficial, como
ao cultivo irrigado de uva
Maranhão. Os autores
Neuroscience Methods,
o córtex, comunicam
destinada para consumo
recomendam que,
abril de 2012). O dispositivo
com os de áreas mais
in natura e para
nessas áreas, a poda
resulta da evolução de uma
profundas, o subcórtex.
elaboração de vinhos
das uvas destinadas
tecnologia criada nos anos
“Ainda não se conhece
(Revista Brasileira de
à fabricação de vinho
1980 para estudos com
como regiões corticais
Engenharia Agrícola e
seja feita entre maio e
roedores. “Vários grupos
e subcorticais do cérebro
Ambiental, abril de 2012).
junho. Uma das grandes
dos macacos interagem
Segundo o levantamento,
preocupações de
durante a execução
praticamente não há
quem cultiva parreiras
de uma tarefa”, conta.
restrição térmica para
para vinho em zonas
a produção de uvas
semiáridas é evitar áreas
de mesa, comestíveis,
de clima excessivamente
na região. As zonas com
quente, que geram uvas
maior aptidão para
com teor de açúcar
plantio de uvas para
exageradamente elevado
consumo in natura
e, consequentemente,
abrangem o oeste
uma bebida com muito
dos estados da Bahia,
álcool e pouca acidez.
Pernambuco e Paraíba
Além de usar dados
e a quase totalidade
climáticos do Nordeste,
do Rio Grande do Norte,
o estudo adotou como
Ceará, Piauí e Maranhão.
modelos de uvas
Nessas zonas, os autores
adaptadas à região as
recomendam que
cepas Itália e Sugraone
a poda desse tipo de
(ambas de mesa) e
videira seja realizada
a Syrah (para vinho).
“Essa inovação será útil para estudos sobre Parkinson e o uso de neuropróteses.”
Registro da atividade de quatro neurônios feito com o novo dispositivo multieletrodos
2
14 | abril DE 2012
fotos 1. Otávio Nogueira /Wikimedia Commons 2. Lucas Santos / Universidade Wake Forest 3. Eduardo Cesar ilustraçãO daniel bueno
O neurocientista
O “suor” do pinhão-manso A necessidade de aferir
financiamento da
de forma científica o
FAPESP. Cada lisímetro
consumo de água do
é composto por um
pinhão-manso, planta com
tanque instalado no solo
frutos de alto potencial
sobre um sistema de
para produção de
pesagem. Dentro de cada
biodiesel, levou
tanque são colocadas
pesquisadores da Escola
25 toneladas de terra
Superior de Agricultura
e apenas uma planta
Luiz de Queiroz (Esalq)
de pinhão-manso.
da Universidade de São
A variação de massa
Paulo (USP) em Piracicaba,
no sistema de pesagem
no interior paulista, a
determina a transpiração.
planejar e construir seis
3
Parceria entre empresa e universidades mineiras gera software para avaliar painéis de carros
Análise da luminosidade A iluminação de um
painéis obtidas em um
painel de automóvel
laboratório da empresa,
“Queremos verificar
não pode ser muito
fez parte do mestrado
lisímetros de pesagem,
qual o consumo de água
forte ou fraca e
do engenheiro Alexandre
equipamentos que
do pinhão-manso”, diz
deve proporcionar
Faria, do Centro de
medem a evaporação
Danilton. “Para isso,
harmonia de cores e
Engenharia da Fiat, e
do solo e a transpiração
vamos estudar a planta
homogeneidade. Para
contou com a orientação
das plantas, a chamada
com dois tipos de
avaliar esses itens com
dos professores Arnaldo
evapotranspiração.
irrigação, gotejamento
metodologia científica,
Araújo, da UFMG, e
Sob a coordenação do
e pivô central, além da
pesquisadores das
David Menotti, da Ufop.
professor Marcos Folegatti,
condição de não irrigação.
universidades federais
“O sistema funciona
o doutorando Danilton
É um acompanhamento
de Minas Gerais (UFMG),
como uma rede neural
Flumignan construiu os
que deverá durar cerca
de Ouro Preto (Ufop)
humana em que o
lisímetros com
de oito anos”, diz.
e da Fiat Automóveis,
software aprende com
em Betim (MG),
informações de um
desenvolveram um
banco de dados”, diz
software que já está
Alexandre. “Desenvolvemos
ajudando os engenheiros
representações
da empresa na análise
matemáticas para cada
de painéis entregues
região de um painel”,
pelos fornecedores a
afirma David. O estudo
partir de especificações
foi publicado na revista
técnicas do fabricante
científica Expert Systems
do carro. O software,
With Applications,
que analisa fotos dos
em março de 2012.
O avanço da asma em crianças e adolescentes Na década passada, a prevalência de asma no Brasil cresceu entre crianças de 0 a 9 anos e também entre adolescentes de 10 a 19 anos, sobretudo entre os meninos e os moradores de áreas rurais (Revista de Saúde Pública, abril de 2012). A conclusão é de um trabalho de pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), do Rio Grande do Sul, que analisou dados sobre
a doença produzidos em três anos distintos pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Em 1998, a prevalência de asma entre as crianças brasileiras foi de 7,7%; em 2003 atingiu 8,1%; em 2008 alcançou 8,5%. O incremento anual foi da ordem de 1%. O maior aumento anual ocorreu nas regiões Sudeste e Norte (1,4%). Entre os adolescentes, a prevalência da doença foi de 4,4% em 1998,
5% em 2003 e 5,5% em 2008. O aumento anual foi de 2,2%. No Nordeste, o índice foi ainda maior (3,5%). Os autores do estudo levantam algumas hipóteses para explicar o avanço da asma, como a ampliação dos serviços de atenção básica, o aumento do número de equipes de saúde da família e, na zona rural, uma maior exposição a pesticidas e agrotóxicos.
PESQUISA FAPESP 194 | 15
Droga nacional contra câncer Desenvolvido pela
presidente da Recepta.
Recepta Biopharma,
“A atribuição foi baseada
o anticorpo monoclonal
na análise dos resultados
RebmAb 100 recebeu
obtidos em nosso
da Food and Drug
primeiro teste clínico
Administration (FDA),
de fase 2, que tratou de
dos Estados Unidos, a
pacientes com tumor
designação de droga
de ovário resistente
órfã para tratar câncer
à quimioterapia.”
de ovário. O status foi
A designação de droga
concedido no dia 9 de
órfã não equivale à
março e é dado para
aprovação do anticorpo
drogas que tenham
para uso clínico, mas
demonstrado potencial
lhe concede alguns
eficácia no combate a
benefícios, como maior
doenças com incidência
agilidade no processo de
relativamente baixa
aprovação e necessidade
Do tamanho de uma pomba e negro
e de menor interesse
de menos pacientes no
como um corvo, com penas levemente
comercial. “É a primeira
teste clínico de fase 3.
iridescentes, característica que devia
vez que um produto
Também dá direito
desenvolvido por uma
a um tempo maior de
empresa brasileira
exclusividade sobre a
obtém essa designação”,
eventual comercialização
diz José Fernando Perez,
da droga.
1
Ilustração do Microraptor: penas negras e iridescentes para atrair a atenção de parceiros
O brilho da ave-dinossauro
chamar a atenção de exemplares do Painel da SRB Energy: vácuo, isolamento de calor e acionamento de turbina
sexo oposto. Assim era o Microraptor, um gênero de ave-dinossauro que viveu há cerca de 120 milhões de anos no nordeste da China, segundo reconstituição feita a partir da análise de um fóssil (Science, 9 de março). A disposição e o formato longo e estreito das organelas que contêm o pigmento melanina, os melanossomos, encontrados na plumagem do animal extinto, indicam que suas penas eram escuras e brilhantes. “A iridescência é muito difundida nas aves modernas e é frequentemente usada para se mostrar”, diz o biólogo Matt Shawkey, da Universidade de Akron (EUA), um dos autores do trabalho.
2
Energia solar para climas frios No teto de um dos prédios do Aeroporto Internacional de Genebra, na Suíça, foram instalados 300 painéis térmicos solares produzidos pela espanhola SRB Energy, empresa formada a partir de uma patente licenciada da Organização Europeia de Pesquisa Nuclear (Cern). O equipamento absorve os raios solares e o calor é usado para acionar turbinas e
16 | abril DE 2012
gerar energia elétrica ou fazer funcionar equipamentos para aquecer ou resfriar o ambiente. O inventor é o pesquisador italiano Cristoforo Benvenuti, que trabalha desde os anos 1970 no Cern com tecnologias de produção de vácuo utilizadas nos aceleradores de partículas, inclusive no maior de todos, o Large Hadron Collider (LHC). O sistema de ultravácuo
utilizado nos painéis permite um alto isolamento do calor dentro dos tubos e câmaras do coletor. O pesquisador também desenvolveu coberturas de filmes ultrafinos que complementam o isolamento e a baixíssima perda de calor. A tecnologia é indicada para climas mais frios e menos ensolarados em relação aos painéis fotovoltaicos comuns.
Imagens da carga elétrica
Metrô faz bem à saúde e ao bolso dos paulistanos
Imagens da distribuição
Expandir a rede de metrô
às paralisações.
de elétrons dentro
de cidades como São
A taxa de poluentes no
de uma molécula foram
Paulo pode até sair
ar quase dobrou quando
obtidas de forma
barato. Basta incluir nos
os trens pararam e
pioneira por
cálculos os benefícios
as mortes por problemas
pesquisadores do Centro
que esse tipo de
cardiorrespiratórios
de Pesquisa da IBM
transporte traz para
aumentaram entre 10%
em Zurique, na Suíça.
a saúde. Um grupo
e 14%. Houve oito óbitos
Utilizando um tipo
coordenado pelos
a mais atribuídos
especial de microscópio
pesquisadores Paulo
à poluição na greve de
Saldiva, da Universidade
2003 e seis na de 2006.
de São Paulo, e Simone
Essas mortes equivalem,
Miraglia, da Universidade
respectivamente,
Federal de São Paulo,
a uma perda diária
analisou o impacto do
em produtividade
metrô sobre a qualidade
de US$ 51 milhões e
do ar na capital paulista
US$ 36 milhões (Journal
de força atômica
3
que funciona a baixas
Desenho da distribuição de elétrons na naftalocianina: elo de formação de átomos e moléculas
temperaturas e no
de dispositivos para
vácuo, os pesquisadores
energia solar, estocagem
liderados por Fabian
de energia elétrica
Mohn e Gerhard Meyer
ou aparelhos de
demonstraram ser
computação em escala
possível medir a carga
molecular. Entender a
e a economia gerada
of Environmental
elétrica da molécula
carga elétrica da
na área da saúde pela
Management, junho
de naftalocianina, que
molécula pode auxiliar
redução nos níveis
2012). “Apesar dos
tem sido utilizada em
os pesquisadores na
de poluição. Para isso,
custos elevados de
estudos de transistores
tarefa de compreender
compararam as taxas de
construção e operação,
moleculares também
como elas se comportam
poluentes atmosféricos
os benefícios da
pela IBM. A nova técnica,
em cada ambiente
durante duas greves de
expansão do metrô
além de prover
e estudar o elo
funcionários do metrô
superam os gastos
conhecimento em
de formação entre
– uma em 2003 e outra
quando se levam em
física de nanoescala,
átomos e moléculas
em 2006 – com os níveis
conta valores ambientais
pode ser útil para
(Nature Nanotechnology,
medidos em dias úteis
e sociais”, escrevem
o desenvolvimento
26 de fevereiro).
anteriores e posteriores
os autores.
fotos 1. Jason Brougham/University of Texas 2. CERN 3. ibm ilustraçãO daniel bueno
Transmissão wireless com neutrinos Está comprovado.
metros de rocha para
nas telecomunicações.
É possível usar neutrinos,
chegar ao detector,
O uso dos neutrinos
as partículas atômicas
100 metros abaixo da
para comunicação com
mais evasivas do
superfície (http://arxiv.
submarinos ou outros
Universo, para transmitir
org/pdf/1203.2847v1.
planetas foi proposto
informações através de
pdf). Essa forma de
em 1977. Mas serão
grandes barreiras físicas.
comunicação desperta
necessários imensos
Um grupo de quase
o interesse porque essas
avanços tecnológicos
100 físicos usou um
partículas, sem carga
para que a estratégia
acelerador de partículas
elétrica e quase sem
se torne útil. Por ora, é
do Fermilab, nos Estados
massa, praticamente
necessário um acelerador
Unidos, para codificar
não interagem com
de partículas e um
em um feixe de neutrinos
o restante da matéria.
detector de centenas
os dados enviados para
Por isso atravessam
de toneladas. No teste,
um detector a 1.035
barreiras impenetráveis
foram gastas duas
quilômetros dali.
para as ondas
horas para transmitir
No trajeto, os neutrinos
eletromagnéticas como
os bits codificando
atravessaram 240
as de rádio, usadas
a palavra “neutrino”.
PESQUISA FAPESP 194 | 17
capa pressão
psicofisiologia
iluminação
Vibroacústica
microclima
eduardo cesar
ergonomia
18 | abril DE 2012
Bem-estar
no ar Embraer se associa a universidades para melhorar o conforto dentro de aviões texto
Engenharia
Fisiologia
Neldson Marcolin
Fotos
A
Comportamento
Eduardo Cesar
viões com espaços muito reduzidos, ruído e vibrações em excesso, temperatura e iluminação desagradáveis, qualidade do ar precária e poucas opções de entretenimento transformam qualquer viagem em uma experiência estressante mesmo quando não há turbulência e em voos de curta duração. Em jornadas mais longas, o conforto ou a falta dele faz toda a diferença para quem precisa chegar ao seu destino pronto para trabalhar, fazer turismo ou encarar outro trecho de viagem. As companhias de aviação sabem que para tornar mais agradável o período confinado na cabine é preciso melhorar as condições do ambiente e fazer diagnósticos e estudos detalhados de cada um dos problemas. O resultado mais visível desse esforço no Brasil para aperfeiçoar as novas gerações de aviões foi a inauguração, em abril, do Centro de Engenharia de Conforto (CEC), fruto de um projeto da Embraer em associação com as universidades de São Paulo (USP), Federal de Santa Catarina (UFSC) e Federal de São Carlos (UFSCar), com apoio da FAPESP e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). O laboratório de conforto, como é conhecido, tem cerca de 300 metros quadrados e reproduz uma sala de embarque com finger (passarela que dá acesso ao avião) montado na Escola Politécnica da USP, em São Paulo, no Laboratório de Engenharia Térmica e Ambiental (Lete). A parte principal da estrutura representa a cabine de um jato modelo 170 ou 190,
Medicina
Psicologia
Psiquiatria
PESQUISA FAPESP 194 | 19
1
com 30 assentos, instalada dentro de uma câmara de pressão que reproduz as condições de voo. É único no Brasil e um dos poucos no mundo, semelhante ao do Institute for Building Physics, parte do Fraunhofer Institutes, perto de Munique, na Alemanha. “Faremos ensaios integrados dentro dele para verificar como os parâmetros da pressão do ar na cabine, de ruído, vibração, ergonomia, temperatura e iluminação influenciam na percepção de conforto do passageiro”, explica Jurandir Itizo Yanagihara, coordenador do Lete e do projeto “Conforto de cabine”. “O objetivo é melhorar o interior das aeronaves e proporcionar níveis superiores de bem-estar aos passageiros”, diz Jorge Ramos, diretor de Desenvolvimento Tecnológico da Embraer. A comodidade a bordo transformou-se numa das prioridades das companhias aéreas há alguns anos. No início da aviação comercial o importante era o avião não cair – e as aeronaves não primavam pelo conforto. Depois o interesse voltou-se para a economia. Nos últimos 10 anos outros atributos se tornaram relevantes. O conforto passou a ser reconhecido como um diferencial no mercado de aviação civil e hoje agrega competitividade ao setor. A Embraer, a terceira maior fabricante de jatos comerciais do mundo, com uma receita líquida de US$ 5,8 bilhões em 2011, não poderia deixar de investir nesse aspecto. A Airbus (receita líquida de US$ 140,5 bilhões) e a Boeing (US$ 68 bilhões) vêm na frente. “Todas as grandes companhias do setor estão olhando para o mesmo lugar, dentro das particularidades de cada segmento”, lembra Jorge Ramos. “Pesquisa com passageiros de voos de diversas aeronaves no Brasil feita em 2009 pela UFSCar com a Agência Nacional de Aviação Civil indicou que as principais reclamações relativas à cabine foram espaço pessoal, apoios para pés e braços, inclinação da poltrona, ruído, vibrações e espaço do bagageiro”, diz André Gasparotti, gerente responsável pelo projeto na empresa. 20 | abril DE 2012
1. Pesquisadores operam simuladores de voo, parte integrante do projeto 2. Visão externa da câmara de pressão que compõe o laboratório de conforto 3. Turbina de um jato 170 da Embraer: maior fonte de ruído dos aviões
Comodidade a bordo transformou-se em prioridade das companhias aéreas nos últimos 10 anos
E
mbora só agora o novo laboratório esteja completamente pronto, os pesquisadores das três universidades já vinham colaborando com a Embraer há vários anos sobre esses itens apontados na pesquisa da UFSCar e também sobre outros, talvez até mais importantes. Jurandir Yanagihara, da USP, por exemplo, trabalhou em parceria com a empresa em 2003 e 2004 no desenvolvimento de um modelo computacional do sistema respiratório para estudar o efeito da descompressão no corpo humano em grandes altitudes. “O sucesso desse software aliado a outro projeto sobre previsão de estresse térmico utilizando um modelo do sistema térmico humano ajudou a aprofundar a cooperação com a Embraer, resultando no atual projeto”, conta o coordenador. Membros daquela equipe, como Mauricio Silva Ferreira, professor da Poli/USP, também participam do “Conforto de cabine”.
2
Quando a companhia decidiu formatar um grande projeto sobre conforto, as equipes da USP, UFSCar e UFSC foram consultadas, aceitaram participar da parceria multidisciplinar e distribuíram entre si as tarefas de pesquisa – em linhas gerais, pressão de cabine, ergonomia, vibroacústica e ambiente térmico – de acordo com as especialidades de cada grupo. Embraer e USP, por meio de Yanagihara, solicitaram então financiamento à FAPESP no âmbito do Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), concedido em 2008. Posteriormente, fizeram o mesmo com a Finep (ver os valores na ficha da página 23).
altitude de cabine de até 8 mil pés (2,4 mil metros) acima do nível do mar. Como os aviões podem chegar facilmente a mais de 40 mil pés (12,1 mil metros), o ar dentro da cabine é pressurizado. O modelo feito pela equipe de Yanagihara leva em conta a troca de gases que ocorre na orelha média (a parte interior, que se liga ao labirinto) e permite prever a que taxas de variação de altitude (pressão) dentro da cabine o passageiro sente ou não desconforto. “Há um trabalho experimental que está sendo feito nessa área por nós, que deve mudar alguns desses parâmetros”, diz o pesquisador da Poli. Os modelos usados ainda hoje na indústria aeronáutica datam de 1937, 1958 e 1967 e são conservadores. “Nos nossos estudos, ainda em curso, achamos limiares muito diferentes do que se encontra na literatura científica.”
30 é o total de poltronas dentro da cabine que simula o interior do avião
Estudos isolados
embraer
Na primeira fase do projeto os diversos fatores que compõem o conforto do avião foram estudados de forma isolada. Na segunda fase, que começa em maio, o novo laboratório com a cabine dentro da câmara de pressão – chamada de mock-up – será usado para ensaios integrando todos os subprojetos para chegar a parâmetros melhores que os atuais. Um bom exemplo disso é o modelo para avaliação do conforto de pressão. Hoje sabe-se que, para a segurança dos passageiros, as aeronaves civis em operação mantêm uma
O
3
s trabalhos sobre vibração e ruído dentro da aeronave, normalmente feitos de modo separados, foram realizados de forma associada. O pesquisador responsável pelo subprojeto de vibroacústica é Samir Gerges, um engenheiro aeronáutico egípcio naturalizado brasileiro, professor da UFSC. Gerges é um dos mais antigos colaboradores da Embraer. Antes mesmo da privatização da empresa já dava cursos e consultoria para funcionários da empresa. A participação no projeto “Conforto de cabine” com a USP e a UFSCar é uma continuidade de suas pesquisas, que visam diminuir o ruído até o nível aceitável para o passageiro. “Reduzir excessivamente o barulho e as vibrações não é algo recomendável até do ponto de vista da segurança”, diz. “As pessoas têm de perceber que estão num ambiente diferente da cama de casa.” A equipe liderada por Gerges trabalha para quantificar a situação real de ruído e vibrações na cabine e elabora um modelo computacional de predição. Com essa ferramenta será possível conseguir resultados mais rápidos e baratos para evitar ruídos e vibrações desconfortáveis. O modelo pode ser usado para fazer modificações no projeto de futuras cabines e indicar novos materiais e dispositivos que atenuem o problema. As maiores fontes de barulho está nas turbinas, no fluxo de ar pela fuselagem e nos sistemas de ar-condicionado, hidráulico e pneumático. O subprojeto relacionado à ergonomia partiu, como os outros, de um modelo conceitual. Para entender quais eram os principais problemas, a equipe de Nilton Menegon, do departamento de engenharia de produção do Centro de Ciências Exatas e de Tecnologia da UFSCar, fez entrevistas em 36 aeroportos brasileiros. Foi montado um questionário para analisar o que os pesquisadores chamam de pré-voo, com questões sobre o grau de conforto dentro do avião, respondido por 377 passageiros. “Se eles têm problemas antes de PESQUISA FAPESP 194 | 21
embarcar, como overbooking ou muito tempo em filas, isso acaba por influenciar na sensação de conforto que será sentida na aeronave”, explica Menegon. Numa segunda etapa foram realizadas mais 291 entrevistas durante o voo para se saber, entre outras coisas, qual o grau de dificuldade da realização de atividades dentro da cabine, como ler, escrever, interagir com os comissários, alimentar-se, repousar e ir ao banheiro.
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s pesquisadores também observaram como os passageiros agiam – primeiro fazendo anotações digitais e depois filmando. “O objetivo foi estabelecer um curso de atividades realizadas durante as fases de embarque, cruzeiro e desembarque, identificar a distribuição dessas atividades ao longo do voo, além de quantificar todas essas ações”, explica Marina Greghi, da equipe de Menegon, uma psicóloga especializada em ergonomia que se doutorou este ano com uma tese sobre conforto de passageiros em aviões. “As observações sistemáticas também visaram identificar os comportamentos visíveis dos passageiros como gestos, posturas, ações sobre os dispositivos e comunicações, por exemplo.” O material de filmagem foi armazenado em um site para ser visto pelos passageiros que aceitaram participar do processo de reconstituição dos dados, que consistiu em uma entrevista por telefone ou via internet para aprofundar as análises contrapondo-se a visão do pesquisador à do passageiro. Com todo esse material foi possível criar um banco de imagens e estatísticas e desenvolver um software para análise das atividades das pessoas em ambiente restrito a partir do registro e análise postural baseada em um protocolo de observação. Com o software é possível reconstruir, de modo digital, as ações do passageiro e com essas informações gerar o que os pesquisadores chamam de envelopes de posturas, que ajudam a determinar a área e o volume ocupado pela pessoa ao realizar as atividades. “Os envelopes podem ser utilizados no projeto para análise do espaço na cabine e da ação de seus ocupantes, de forma a identificar se é possível ou não fazer determinada atividade naquele local”, diz Marina. Batizado de Ilios Pose, o software em questão gerou uma patente. Nilton Menegon conta que o próximo passo será dado no mock-up do laboratório de conforto, onde haverá repetição dos procedimentos realizados, agora em ambiente controlado e integrado aos outros subprojetos. Cereja do bolo
O mesmo ocorrerá com todos os subprojetos. Os estudos relacionados à psicofisiologia permitirão esclarecer a relação entre a percepção de bem-estar mental e fisiológico do passageiro e 22 | abril DE 2012
Para uma viagem agradável iluminação As luzes coloridas têm de fato o poder de reduzir a tensão ou de proporcionar relaxamento? Os pesquisadores querem verificar se as convenções que constam da literatura científica são reais e, se comprovadas, sugerir cores que possam ser utilizadas no avião Cores quentes são as mais próximas do vermelho. São psicologicamente dinâmicas e estimulantes e sugerem vitalidade e movimento. Podem ser usadas, por exemplo, no momento da refeição Cores frias são as mais próximas do azul. Consideradas tranquilizantes e suaves, aparentemente, seriam ideais para o momento de repouso, pós-alimentação e nos períodos de decolagem e pouso
microclima A meta é fazer cada passageiro ter uma sensação térmica próxima do ideal, sem afetar o vizinho. Para isso será preciso que cada lugar ocupado tenha opções variadas que atendam bem ao passageiro. No laboratório de conforto serão testadas poltronas aquecidas ou ventiladas, diferentes opções de insuflamento de ar e uma nova geometria de difusores
Jato da Embraer: cabine do laboratório é igual às dos modelos 170 e 190 (abaixo)
biente. Na segunda fase os experimentos serão feitos também no mock-up para ver o que poderá ser aproveitado na melhora do conforto.
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ergonomia A sensação de conforto na cabine está diretamente ligada às atividades que são possíveis desenvolver dentro dela. Situações como acesso à poltrona, reclinação do encosto, leitura, posições do suporte para uso de notebook e refeições e passagem ao sanitário serão estudadas
psicofisiologia Aqui o objetivo é obter métricas subjetivas e objetivas de avaliação de conforto. Busca-se definir quais tipos de percepção visual e ambiental resultam na sensação de bem-estar e como alterar o desenho do interior da cabine do avião de acordo com esses parâmetros
vibroacústica O objetivo do estudo é a caracterização
Os dados usados até hoje sobre
e propagação de ruído e vibrações
os efeitos da variação de pressão
em sistemas e materiais de aeronaves.
na orelha na altitude são antigos.
Também está prevista a construção
A equipe do projeto fez levantamentos
de modelos de predição de conforto
experimentais e criou um novo
para ruído e vibrações
modelo para avaliar esses efeitos
O Projeto Conforto de cabine: desenvolvimento e análise integrada de critérios de conforto n° 2006/52570-1 modalidade Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) Coordenador Jurandir Itizo Yanagihara Poli/USP
embraer
pressão
investimento R$ 3,2 milhões (FAPESP) e R$ 4,5 milhões (Embraer) R$ 4,3 milhões (Finep) e R$ 2,9 milhões (Embraer)
o desconforto na cabine, explica Renato Ramos, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e professor do programa de pós-graduação em psicologia da saúde da Universidade Metodista de São Paulo. Entreter-se com uma atividade mental pode diminuir a sensação de desconforto e afetar até mesmo a experiência de passagem do tempo durante a viagem e medir objetivamente este efeito é um dos objetivos do projeto. “É como se o passageiro estivesse tão entretido com um livro que chegasse ao final da viagem e dissesse, ‘Nem vi o tempo passar’”, diz o pesquisador. Uma parte do projeto foi realizada com voluntários utilizando realidade virtual para avaliação do grau de envolvimento do indivíduo com determinada tarefa. Nos testes já realizados, ele é monitorado, por exemplo, com relação à frequência cardíaca e a forma como ele explora visualmente o am-
o subprojeto microclima o passageiro deverá ter opções para buscar a melhor sensação térmica dentro da cabine. Os dispositivos individualizados de insuflamento de ar, que hoje estão acima da poltrona, deverão ser multiplicados e mais bem controlados, mas sem afetar quem estiver ao lado. Também as poltronas poderão ter sistemas de resfriamento ou aquecimento interno. Na primeira parte dos estudos, realizados pela equipe de Arlindo Tribess, professor da Poli/USP, foram utilizados manequins com sensores de temperatura e fluxo de calor. Um modelo do sistema térmico humano integrado ao software de mecânica dos fluidos computacionais permitirá realizar previsões da reação do corpo humano ante mudanças do ambiente térmico sem a necessidade de testes com pessoas. Segundo Mauricio Silva Ferreira, da Poli/ USP, que desenvolveu a ferramenta, a iniciativa é inédita no mundo. O controle da iluminação na cabine será investigado para se conhecer a real influência da cor no conforto. “Há relatos na literatura científica indicando que a luz quente, próxima do vermelho, seria adequada para atividades como alimentar-se, enquanto a luz fria teria um efeito relaxante, bom para repousar”, diz Yanagihara. Só será possível saber se as luzes coloridas realmente funcionam depois dos ensaios no mock-up. “Se houver comprovação dessa hipótese, poderemos até sugerir novas cores dependendo das atividades dentro da cabine.” A cereja do bolo do projeto está na repetição dos estudos descritos acima a serem realizados no laboratório de conforto. Desta vez os testes ocorrerão de modo integrado com cerca de mil voluntários nos ensaios que começam em maio. O requisito é ser saudável, já ter viajado de avião pelo menos uma vez e ser morador de São Paulo ou região. Para se inscrever basta acessar www. lete.poli.usp.br/confortodecabine. Um piloto, representado por um pesquisador, dará as boas-vindas e instruções, como ocorre na realidade, e será contratado um comissário de bordo para trabalhar na cabine. Em três momentos durante o voo simulado os voluntários/passageiros farão avaliações sobre o conforto local. A construção do laboratório foi necessária por não ser possível fazer as experiências usando os aviões da Embraer. “Uma aeronave real já traria as restrições de seu próprio projeto, o custo seria muito alto e a disponibilidade limitada”, diz André Gasparotti. É provável que a nova geração de jatos já traga alterações na cabine que tornem cada vez mais agradável a experiência de voar. n PESQUISA FAPESP 194 | 23
entrevista Alberto dines
Lições de jornalismo Mariluce Moura e Carlos Eduardo Lins da Silva
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do jornalismo ou sua capacidade de investigação jornalística na recriação de trajetos obscuros de grandes personagens, foram objeto de palestras no seminário organizado pela FAPESP (ver www. agencia.fapesp.br). E o próprio Dines fala um pouco de tudo isso na entrevista a seguir, concedida a Pesquisa FAPESP. Uma versão mais completa está no site da revista (www.revistapesquisa.fapesp. br), que, a propósito, também disponibiliza uma entrevista inédita concedida a Mariluce Moura em 2005, para uma tese de doutorado. Nosso propósito aqui é explorar sua contribuição para o conhecimento teórico e a experimentação prática do jornalismo. Comecemos pelos Cadernos de Jornalismo que você organizou na época do Jornal do Brasil. Sim, em 1965. Àquela altura eu já tinha 10 anos de profissão e dois anos de experiência acadêmica, porque começara a lecionar na PUC em 1963. Tinha um certo enfoque, não digo teórico, mas de reflexão. Quando a PUC me convidou, constatei que tinha experiência em várias atividades jornalísticas e aceitei – trabalhara em matutino e vespertino, que eram dois jornalismos diferentes naquela época, trabalhara em rádio, cinema, que era o sonho, tinha feito uma experiência em televisão, enfim, eu tinha experiência em várias plataformas, como se diria hoje, e achava que devia tentar sistematizar tudo isso. Intuitivamente saquei ali que a disciplina que gostaria de lecionar era jornalismo comparado. Você então inventou a disciplina de jornalismo comparado no Brasil, em 1963. Que eu saiba, não existia. A ideia vinha do direito comparado. A partir da comparação você consegue
leo ramos
A
lberto Dines, um dos mais respeitados e polêmicos jornalistas brasileiros, fez 80 anos no domingo de Carnaval, 19 de fevereiro. Comemorou a data num almoço íntimo com a mulher, a também jornalista Norma Couri. Mas comemoração tão discreta para um mestre de várias gerações de profissionais da mídia, em atividade desde o começo da década de 1950, era mesmo resultado só da dispersão que varre o país inteiro no Carnaval. Passado o período, modorrento ou feérico, a depender do ponto de visão, as homenagens a Dines se multiplicaram, das festas aos densos debates, incluindo o seminário realizado pela FAPESP em 22 de março, “Conhecimento científico do jornalismo no Brasil: a contribuição de Alberto Dines”. Considerável contribuição, diga-se logo. Dos Cadernos de Jornalismo e Comunicação editados pelo Jornal do Brasil nas décadas de 1960 e 1970, ao clássico O papel do jornal, livro de 1974, do exame acurado a que submeteu os veículos de comunicação brasileiros na coluna Jornal dos jornais da Folha de S. Paulo, na segunda metade dos anos 1970, ao contemporâneo Observatório da Imprensa, iniciado no final dos anos 1990, Dines tem feito e ao mesmo tempo pensado com rigor o jornalismo brasileiro, quase ininterruptamente, há seis décadas. Isso em paralelo a toda a sua experiência em organizar redações, de par com a capacidade de inventar veículos. E, claro, nos breves intervalos, escrever livros soberbos como Morte no paraíso, de 1981, e Vínculos do fogo, de 1992, biografias de Stefan Zweig e de Antônio José da Silva, o Judeu, respectivamente. Todas essas realizações que revelam o espírito pioneiro de Dines, seu pendor para criar conhecimento novo capaz de iluminar a prática
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estabelecer diferenças e paradigmas. O fato é que a experiência do Jornal dos jornais é, de certa forma, consequente desse primeiro curso. Mas entre a PUC e o lançamento do primeiro caderno de jornalismo, houve uma experiência que considero um corte epistemológico em minha vida profissional, em todos os sentidos: fui fazer um curso de extensão de três meses na Universidade Columbia, em Nova York. em setembro de 1964. Associada a um organismo que já não existe mais, o World Press Institute, a Columbia convidava editores de jornais de um continente e montava o programa de um curso especial. O meu era para editores de jornais latino-americanos. Coisa ótima! Maravilhosa! Foi meu primeiro curso numa universidade. Com professores ótimos, grandes profissionais. Tenho até hoje todas as apostilas e mais as anotações que fazia já pensando no Jornal do Brasil. Além do curso em si e da camaradagem decorrente, uma coisa interessante era que podíamos escolher, em grupos de três, jornais para fazer uma visita prolongada. Então, me juntei com um argentino de Córdoba, Jorge Remonda, cuja família era proprietária de um jornal muito bom de lá, La Voz del Interior, e Uribe, cujo primeiro nome já não recordo, membro de uma das famílias importantes da Colômbia, e ligado ao jornal hoje mais importante de Bogotá. Fizemos uma patota – havia recursos para se deslocar – e escolhemos ir para a costa do Pacífico. Estivemos no Los Angeles Times. Depois seguimos de carro até Seattle. Aí fomos de avião até Nova York e lá nos separamos. Eu queria ver o New York Times, claro, e um jornal para mim importantíssimo, então, o New York Herald Tribune. Naquela época era independente e fascinante. Um jornal-revista. Eu perseguia muito isso, porque a minha formação inicial foi em revista. A Visão, depois Manchete, Fatos & Fotos... Enquanto em jornal passara pela Última Hora, Diário da Noite etc. E estava pensando numa forma simbiótica juntando jornal e revista. Ou seja, um jornal bem escrito, bem acabado, daí o fascínio pelo
Herald Tribune, inclusive por seu modus faciendi, o de jornal feito durante uma reunião inteira, ao longo do dia, por uma equipe de grandes jornalistas de texto, de fotografia e de design também. E você voltou dos Estados Unidos para o Jornal do Brasil inspirado tanto pelo New York Times quanto pelo Herald. No New York Times, um jornal clássico, eu chamaria mesmo de ortodoxo, vi uma coisa que me marcou: na redação antiga, ainda ali perto da Broadway, rua 43, havia um jornal mural enorme feito pela redação que se chamava Winners and Sinners. Vencedores e pecadores. Trazia comentários sobre uma matéria, broncas, piadas e gozação, tudo. Eu queria fazer
“Se tenho algum mérito no Jornal do Brasil, foi o da organização da redação do jornal”
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um negócio assim. Não podia ser mural, de que gosto muito. Inclusive, quando fui militante no movimento sionista socialista fiz um cursinho de jornais murais. Mas no JB antigo não dava, a redação era dividida em salas, então pensei em algo parecido, mas em outro formato. Você tinha entrado no JB, em 1962. Depois da PUC e dos Estados Unidos, voltava ao jornal com novos poderes e uma visão bastante aberta. Eu tinha entrado em 8 de janeiro de 1962. Não tinha cargo definido. O nome no expediente só começou a aparecer depois de 1964. Disseram que precisava fazer um expediente, concordei e sugeri que eu fosse editor-chefe, porque tinha organizado a
redação em editorias, o que não era usual. Em inglês, eu seria o managing editor. E se tenho algum mérito no JB, foi o da organização da redação do jornal. Acho que herdei de meu pai certo pendor para a organização. Na Rússia ainda, ele tinha feito um curso de secretariado antes da Primeira Guerra, que, no fundo, era de pequena administração. Então, vendo-o trabalhar, fui aprendendo. Ele desde cedo se ligara às grandes organizações judaicas internacionais de amparo à imigração. Havia grandes filantropos judeus e o século XX foi marcado por grandes movimentos de massa por causa das guerras, dos pogroms, da inflação depois, nos anos 20... E essas organizações precisavam de gente que falasse várias línguas e tivesse capacidade organizacional. Havia que tirar o judeu da cidadezinha onde vivia de esmola e dar a ele uma profissão manual que lhe permitisse se transformar. Eu não entendia bem qual era a finalidade do trabalho de meu pai. Mas sempre havia pastas em sua mesa muito organizada, e isso eu absorvi. Você fala de seu pai já no Brasil. Sim. Teve um intervalo em que ele trabalhou no comércio em Curitiba, logo depois foi para o Rio, contratado, e ficou 25 anos numa grande organização que seria precursora do hospital Albert Einstein. O fato é que acho que fui um bom organizador de redações, com a preocupação de criar editorias definidas. Que editorias você tinha naquele primeiro momento? Política, editoria de geral... Política àquela altura estava praticamente confinada em Brasília. Tínhamos no Rio um colaborador, Heráclito Sales, que era colunista, e os repórteres de cidade que cobriam a Assembleia. Criamos uma editoria de economia, que até então não existia. Os jornais reproduziam o que recebiam das bolsas de Nova York, Chicago e Rio, o que chegava das bolsas de mercadorias. Quando havia uma decisão do governo, ia para a página de Brasília. Começamos também a ter uma preocupação com comentários, em suma, começamos a planejar o jornal.
Essa primeira reunião era pela manhã? Não, de tarde. Os jornais começavam a funcionar muito tarde porque todo mundo tinha dois empregos, eu inclusive. De manhã, trabalhava na Manchete, naquela ocasião na Fatos & Fotos, depois almoçava e ia para o Jornal do Brasil. Durante muitos anos trabalhei em dois empregos, como todos os jornalistas. Depois é que se criou, e nós estimulamos muito isso, o tempo integral, o repórter de sete horas, não de cinco. Depois de criadas as editorias, uma nova metodologia de trabalho, passamos a ter duas reuniões por dia. Aliás, uma das primeiras editorias que criei também foi a de pesquisa. O jornal não arquivava sequer suas fotografias. Não tinha nem dicionários. Propus que criássemos uma biblioteca básica, com livros de referência e que arquivássemos os negativos. Fomos comprando livros, formando uma base de dados – não tinha internet –, tudo em pastas e criamos o departamento de pesquisa. Com isso, o repórter, antes de ir fazer a matéria, consultava dados no departamento de pesquisa.Isso se tornou uma praxe. Em 1965 tomei a decisão de fazer do departamento um produtor de conteúdos, como diríamos hoje.
sora, pioneira, ela era aquela bagunça dos Associados. Quando a Globo entrou no ar, com parceria da Time-Life, pensei, “agora realmente vamos ter um concorrente”. Botei televisão na redação e começamos a trabalhar de olho no inimigo. Voltemos aos cadernos de jornalismo? Ao voltar dos Estados Unidos, uma questão era como fazer algo parecido com o mural. A direção do JB não estava muito interessada em meu sonho. Não vetou, mas disse, “Dines, invente alguma coisa e faça”. Comecei a perturbar várias pessoas com isso, e Gabeira, que dirigia o departamento de pesquisa, um think tank, digamos, foi a primeira. Ele e o Murilo Felisberto, mineiros ambos,
circulação interna, distribuição para as agências de propaganda e para os amigos. Mais tarde fizemos um acordo com uma rede de livrarias, a Entrelivros, que começou também a vender. Tudo isso um tanto à revelia da direção. Enfim, colou e fizemos não sei quantas edições, na base de quatro ou cinco por ano. Deveria ser bimestral, mas nunca conseguimos cumprir essa periodicidade. Eu estimulava muito um editor de esportes, pessoa simples e jornalista de primeira, Oldemário Touguinhó [1934-2003], a escrever para o caderno. Ele era tão jornalista que fechava sua página, ia jantar, tomar uma cerveja, e não conseguia ir dormir sem passar no jornal para vê-lo rodar. E, muitas vezes, descobria um erro. Era uma figura de uma grandeza incrível, que morreu prematuramente. Ele ia cobrir a Copa e se tivesse alguma coisa diferente, como aconteceu no México, em 1970, com a revolta dos estudantes, mandava matéria. E depois escreveu sobre isso nos cadernos. Era o que queríamos.
“Em 1965 tomei a decisão de fazer do departamento de pesquisa um produtor de conteúdos”
E isso foi de fato uma inovação no jornalismo brasileiro. Sim, até porque contratamos um time extraordinário de jornalistas: Fernando Gabeira, Murilo Felisberto, Moacyr Japiassu, mais tarde o Raul Ryff, que tinha sido secretário do [presidente] Jânio [Quadros], em suma, grandes jornalistas, jovens e mais velhos, para redigirem matérias redondas, usadas para dar reforço aos fatos do dia. E assinamos serviços – naquela época já existiam agências que preparavam e forneciam material de background para jornais. O JB autorizava essa despesa porque era para melhorar o conteúdo do jornal, estávamos muito preo cupados com a qualidade da informação. E quando a TV Globo começou, em 1965, fiz um memorando de umas 10 laudas para todas as editorias e chefias informando o que tínhamos que fazer a partir desse momento em que passávamos a ter um concorrente. Porque a TV Tupi, precur-
adoravam conversar sobre jornalismo. Aliás, no livro de discursos de Gabriel García Márquez, uma obra-prima que já saiu em português [Eu não vim fazer um discurso, Record, 2011], ele conta como em sua geração as pessoas trabalhavam loucamente numa redação e, de madrugada, saíam para falar de jornal no botequim ou no restaurante. Aqui também tínhamos nossos especialistas nisso. Em suma, falei para Gabeira que, como editor de pesquisa, ele ficaria encarregado dos cadernos. A empresa JB tinha uma gráfica pequena para fazer formulários e laudas e eu consegui com o gerente da gráfica a impressão dos cadernos, com tiragem pequena, papel um pouquinho melhor, capa de cartão colorida. Era para
Enquanto você liderava esse processo, na verdade o jornal se transformava numa referência, num modelo, para o país inteiro. O título, Jornal do Brasil, ajudou muito nesse sentido. E o Rio de Janeiro, como capital que fora, era uma cidade com vocação nacional. O caráter do carioca transbordava para o Brasil. Se assimilava bem com São Paulo, mais sisuda, com o mineiro, mais calado, com o nordestino, enfim, o jornal conseguia essa síntese. E uma outra coisa muito importante foi o desenvolvimento de uma fabulosa rede de correspondentes e de sucursais grandes. A rede de sucursais do JB era um investimento com retorno. Trazia muita influência política para o jornal e retorno financeiro, porque o time de publicidade de cada sucursal era muito bom.
Mas, além disso, Dines, eu diria que a influência do modelo JB se dava também pelos estágios de profissionais de outras praças no Rio. De fato, incentivávamos muito isso e o fazíamos isso porque eu tinha percebiPESQUISA FAPESP 194 | 27
do como era visitar o New York Times, por exemplo. Tínhamos que funcionar como uma escola. Algo dessa época que acho muito importante e de que pouco se tem falado é que criamos uma agência distribuidora de material jornalístico, a AJB [Agência Jornal do Brasil]. O único antecessor nacional desse serviço era a Agência Meridional, do [jornalista Assis] Chateaubriand. Como eu tinha preocupações, vamos chamar, sociais, a receita relativa a cada matéria publicada por outro jornal era dividida por três: o repórter, a agência e o jornal. Você estava estabelecendo um modelo de copyright. Era um modelo de cooperativa que remontava a meu passado de militante do movimento sionista socialista. E com esses jornais colaborávamos de todas as formas. Sempre que podia, eu fazia uma palestra para a redação. Ou seja, se o jornal em si já era um modelo, porque a revolução gráfica do JB foi a mais influente que já houve no país, desenvolvemos um excelente sistema de irradiação. A reforma, sob a liderança de Odylo Costa, Filho, foi em 1956. O Brito queria neutralizá-la e no dia em que assumi ele me disse, “eu quero um outro jornal”. Respondi que não ia fazer isso, ao contrário, que bastava consertar algumas coisas.
A nossa impressão era de que você reservava um carinho especial para o B em seu trabalho de editor-chefe. E era verdade. O B foi criado na reforma do Odylo e sua intenção era aproveitar as sobras do dia seguinte. Porque o jornal fotografava muito, tinha muitas fotos boas que não dava pra aproveitar na edição quente, normal. Por exemplo, aquela famosa foto do Jânio Quadros com os pés enviesados feita por Erno Schneider, um grande fotógrafo gaúcho. Que Pesquisa FAPESP, aliás, republicou exatamente há um ano, na edição 182. A foto saiu no B dois dias depois do acon tecimento [encontro dos presidentes Jâ nio Quadros e Arturo Frondizi, da Ar-
“Os Cadernos eram para circulação interna, para os amigos e agências de propaganda”
Brito é o... Manuel Francisco do Nascimento Brito, genro da condessa Pereira Carneiro. A condessa tinha uma única filha do primeiro casamento, Leda. Como casou tarde com o conde Pereira Carneiro, não tiveram filhos. E a Leda casou-se com um rapaz jovem, bonitão, carioca, cujo sonho de ser diplomata não conseguiu realizar, mas ele fez coisas importantes. Como empresário, bancou a reforma da rádio JB, por exemplo, e para isso convocou excelentes pessoas, em especial Reynaldo Jardim, uma figura extraordinária. Infelizmente morreu no ano passado [1º de fevereiro de 2011]. Poeta ótimo, um idealista mesmo, era um criador permanente. Foi ele quem inventou o Caderno B. 28 | abril DE 2012
gentina, na ponte de Uruguaiana, em 21 de abril de 1961. Houve um barulho atrás do presidente brasileiro, enquanto ele caminhava para o encontro, o que o fez voltar-se para trás, segundo Schneider]. Em geral era isso, reaproveitamento da notícia quente. E o B saía quatro dias por semana, enquanto o jornal só não circulava nas segundas, o que se dava com todo matutino então. Estendi a circulação do B para aos outros dias, sendo que sábado era o B literário, com mais material de literatura e resenhas. Fui aos pouquinhos retirando-o da condição de depósito de reciclados e levando-o a ter produção própria, grandes entrevistas etc. E isso marcou o JB como um jornal de ideias. Nós tínhamos uma coleção
de críticos fantástica e fazíamos uma famosa tabela, com todos eles votando. Isso abria o jornal para debates. Tínhamos críticos de teatro, de artes plásticas. O jornal cobria a cultura e com isso brilhava. Você ficou no JB até 1973. Enfrentou problemas dramáticos após o AI-5. E aí, Dines, em termos da sua produção intelectual no jornalismo, você ficou um tempo entre 1974 e 1975 esperando que algo acontecesse. Então viriam a Folha de S. Paulo e o Jornal dos jornais. Quando fui demitido do JB, fecharam-se as portas mesmo. Pessoas que haviam me convidado seis meses antes me disseram, “não posso mais, o governo não quer você”. Armando Nogueira, grande amigo pessoal, me disse, “não posso lhe contratar agora. Se você viajar, depois quando voltar vamos ver”. A Editora Abril me convidara para um alto cargo de chefia em São Paulo, mas não manteve o convite. Roberto Civita era meu amigo e vinha me dizendo, “passe um período fora numa universidade, pensando. Escreva um livro”. Eu lhe disse que já estava escrevendo o livro, O papel do jornal, e ir para fora não seria má ideia. Logo em seguida, veio o convite da Columbia. Tenho certeza de que foi ele quem articulou isso, ainda que o negasse, porque veio o convite do Tinker Institute e eu, evidentemente, aceitei. Fiquei lá entre 1974 e 1975. E nesse período saiu O papel do jornal? Não, ele saiu em março ou abril de 1974. Eu comecei a escrevê-lo duas semanas depois de ser demitido. No último número dos cadernos, que não saiu, o artigo grande era meu, com o título “A crise do papel e o papel do jornal”. Infelizmente não o guardei. E foi em função dele que escrevi o livro. Porque a crise do papel era uma realidade, os jornais queriam cortar páginas, queriam cortar serviços, estavam com o mesmo instinto suicida que manifestam hoje. Já vi essa história de a mídia impressa querer se suicidar quando descobre que tem um concorrente. Naquele momento o concorrente era a televisão.
E hoje o impulso suicida resulta da presença da internet? É claro. Se você pegar o livro, cujo texto é praticamente o mesmo do artigo, o que estou dizendo lá é, “nós precisamos de jornais melhores, não piores. De jornais até mais caros”, o leitor inteligente vai querer até pagar um pouco mais pelo papel, que era caro por causa da crise do petróleo, para ter um bom jornal. O livro foi um sucesso no meio do silêncio da sociedade brasileira de então... Foi. Não havia muitos livros sobre jornalismo, o Danton Jobim tinha publicado Espírito do jornalismo, em 1960, mas não havia muitos livros mais. Nosso clássico de estudos ainda era a História da imprensa no Brasil, de Nelson Werneck Sodré, de 1966. Só. E alguns livros traduzidos, com publicação financiada pela embaixada americana, sobre jornalismo em geral. Então, quando vi que havia um cerco contra minha permanência na profissão, pensei em deixar ao menos um relato das minhas ideias, das minhas experiências e do que o Jornal do Brasil fez em vários momentos. Foi com esse espírito que elaborei O papel do jornal.
Em que você trabalhou neste período? Eu morava na rua 119, num hotel que a Columbia tinha para professores pertinho do campus. E eu tinha tarefas, seminários, mas sempre entendia que não tinha nada a ensinar lá, e sim a aprender. Para alunos que tivessem interesse, podia contar como era a imprensa na América Latina, sobretudo as relações entre governo e imprensa. Tanto que o tema das duas conferências que devia fazer, uma em cada semestre letivo, foi a relação entre governo e imprensa no Brasil. E foi aí que eu mergulhei na história da imprensa. Eu não tinha levado o Werneck e a biblioteca de Columbia não tinha o livro, então pedi ao Otto Lara e ele me mandou um exemplar. Os alunos
conteúdo e gostaria que prometesse que a Folha seria o primeiro veículo que iria procurar ao voltar ao Brasil. Fiz isso. Frias fez a proposta de que eu dirigisse a sucursal e escrevesse um artigo político. Eu escrevera muito pouco em meu período no Jornal do Brasil. Quando tinha uma ideia, eu passava pra redação. Acho que essa é a função de um maestro. Mas Frias acendeu em mim a vontade de escrever e aproveitamos isso para fazer da dois a página de opinião que o jornal não tinha. Ruy Lopes, de Brasília, no alto da página, eu no meio e, embaixo, os colunistas se revezavam. Cláudio Abramo, que era craque para desenhar, fez isso, dei uns palpites e a coisa funcionou. Também falei para Frias que, sem que ele me pagasse nada além do que acabáramos de acertar, eu queria escrever no segundo caderno, às segundas, quando se tinha o pior jornal da semana. Ele perguntou o quê e eu lhe expliquei que queria comentar o trabalho dos jornais e dos outros meios. Ele disse que eu só iria arranjar inimigos.
“Eu comecei a escrever O papel do jornal duas semanas depois de ser demitido do Jornal do Brasil”
Como sua segunda estada em Nova York se refletiu no que você fez depois? Foi extraordinária a influência do momento que vivi lá. Porque era 1974, pós Watergate, e a imprensa estava se discutindo intensamente. Todo o conceito de media watching, media criticism, estava nas discussões do dia a dia. Teve o exemplo de um procurador de Justiça que acompanhou o caso Watergate, fez parte das investigações e depois, findo o trabalho, o vendeu numa série de artigos para jornal. Daí começou a ser discutido o que veio a ser conhecido como checkbook journalism, no qual se paga pelo depoimento de alguém, ainda que tenha sido público o seu trabalho. Isso virou um debate ético e, para mim, foi um choque positivo essa discussão [ver www.cjr.org/essay/checkbook_journalism_revisited.php, por exemplo].
eram jornalistas e estudantes da escola de jornalismo. O curso era em nível de pós-graduação e bem intensivo. Na reunião de professores eu anotava tudo, foi um aprendizado extraordinário. E lá começa a surgir de novo sua vontade de fazer um mural. Os Estados Unidos parecem lhe provocar isso. Foi mais ou menos isso. Em março de 1975, acho, Cláudio Abramo foi a Nova York para almoçar comigo. Ele estava já com autorização do [Octavio] Frias para fazer uma reforma. Disse-me, “acho que você nunca leu a Folha” – e era verdade. Ninguém lia a Folha. Era um jornal tremendamente ruim. Ele me disse que queriam fazer um jornal com um bom
E tinha razão! Claro! Os arranjei inclusive na Folha. Frias e Cláudio trabalhavam muito juntos e foram eles que decidiram publicar a primeira coluna que mandei na página seis do primeiro caderno, e no domingo. Hoje é o lugar do ombudsman.
Daí você pegou o tempo da distensão lenta, gradual e segura, palavra de ordem do governo Geisel. O meu primeiro artigo no Jornal dos jornais foi “A distensão é para todos”. E realmente arrumei grandes inimigos. Elio Gaspari e Veja e, depois, na própria Folha, onde fiquei até 1980 e fui demitido por telefone pelo diretor de redação, Boris Casoy. Eu tinha escrito um artigo acusando formalmente Paulo Maluf de ser o responsável pela repressão da greve do ABC. O artigo não foi publicado. No dia seguinte, escrevi outro, com a mesma embocadura. Ele também não publicou. Aí publiquei um desses artigos em O Pasquim, que eu estava ajudando naquela fase difícil. Tinha proposto a Jaguar e a Ziraldo fazer uma página chamada Jornal da cesta. Essa página tinha uma fraPESQUISA FAPESP 194 | 29
sezinha que atribui a Shakespeare, em português, dizendo, “o mais importante da história do jornalismo não é o que sai nos jornais, mas o que vai para a cesta”. E publiquei um dos artigos rejeitados, com a paginação que eu tinha na Folha. O Boris disse que se sentiu agredido e me demitiu. Há pouco tempo fiz uma conferência para Cremilda Medina listando todas as demissões e censuras que sofri. Fiz até uma estatística. E quantas foram? Até 2008 ou 2009 dava uma grande demissão ou violência por ano, se não me engano. A primeira foi obra de Chateau briand. Ele me demitiu em plena democracia brasileira, em 1960, quando eu dirigia o Diário da Noite. Estava muito contente com a minha atuação, tanto que me mandou a Londres para eu passar alguns dias na redação do Daily Mirror, jornal de cujo jeitão gostava muito. Ainda assim me demitiu. Por quê? Em um dia de janeiro de 1961, tinha sido sequestrado o Santa Maria, um famoso navio português de passageiros, num ato de protesto contra a ditadura salazarista. Chateubriand determinara que os Diários Associados não dessem uma linha a respeito disso. Ele era muito ligado a Salazar. E eu desobedeci. Falei, “não posso”. Eu estava com fotografias de dentro do Santa Maria e um tabloide vive de fotografias, de coisas assim. Então demos e eu fui demitido no dia seguinte. Não por ele diretamente, que já estava tetraplégico. Quem me demitiu, muito elegante e carinhosamente até, foi João Calmon, seu braço direito, que depois seria senador. Ele me disse, “oh, Dines, o velho não gostou, você foi fundo”. E continuou, “mas estou sabendo que você já fez alguma coisa para o Bloch e vai facilmente arranjar outro emprego”. Era verdade. Uma semana antes, por causa de um parentesco de casamento, Adolpho Bloch me pedira socorro. Ele tinha lançado o número um de Fatos & Fotos, uma edição toda dedicada a Juscelino Kubitschek, que passara a faixa presidencial ao Jânio Quadros, e não sabia o
que faria para a segunda edição. O fato é que Adolpho me pediu para dar um jeito pelo menos no número dois e tentei fazer o tal jornal-revista, em preto e branco, de uma rodada só. Não tinha capa, ou melhor, a capa era já no próprio papel da revista. Preto e branco, lindo! Rotogravura preta com todos os macetes gráficos que eu não podia fazer no Diário da Noite porque não tinha possibilidade técnica. Levei o pessoal que trabalhava comigo e fizemos uma revista muito bonita, por onde passou muita gente: Paulo Henrique Amorim, Itamar de Freitas, uma garotada muito boa. Ao sair da Folha, o que você fez? Peguei o dinheiro e apliquei, era um bom
não aceitava nenhuma relação com a direção da editora, escolhia quem ia contratar e tal. Quando fui contratado pela Abril, a Veja decidiu que eu poderia fazer o que quisesse no resto da Abril, mas não lá. Desenvolvi um trabalho interessante sob o ponto de vista institucional e até de formação. Criamos os cursos de jornalismo que hoje todas as empresas jornalísticas têm. Estabelecemos o aproveitamento dos melhores alunos e, depois, o aproveitamento dos outros numa função que se chamava de carteiro, o sujeito que ia ler as cartas da redação. A Editora Abril recebia centenas de cartas por dia e ninguém lia, só a Veja às vezes pegava as suas. Trabalhei de 1982 até 1988. Nesse meio tempo, Morte no paraíso já tinha sido lançado e eu pensei que gostaria de escrever outra biografia. Tinha na manga outra personagem, Antônio José da Silva. Já pesquisara alguma coisa, mas concluíra que tinha que ir para Portugal para fazer algo à altura do que pretendia. Me candidatei a uma bolsa de estudos da Fundação Vitae e fui aprovado. Eu e a Norma tivemos até que nos casar para deixar todos os trastes aqui num apartamento comprado. Precisávamos da soma de nossas rendas para isso. Foi um casamento muito divertido, com meus filhos presentes. Ela estava no JB, que a tornou correspondente do jornal em Lisboa. Então fomos, alugamos um apartamentinho ótimo e foram, talvez, os melhores anos da minha vida, com a consciência de que o eram. Primeiro, porque Lisboa é encantadora. É o Rio de Janeiro antigo. Foi o primeiro ano em que fiquei, rigorosamente, sem pensar em jornal. Apenas lia jornal. Quando ia terminar o período da bolsa, vi que não podia ir embora. O material era de uma riqueza impressionante e eu chegava em casa vibrando. Naquele momento exato, a Editora Abril perguntou se eu não gostaria de ficar em Portugal mais tempo, porque, agora sim, eles queriam lançar revistas adultas. Passei a ganhar um salário razoável, tinha carro e foi ótimo. Duro porque de manhã até depois do almoço eu ficava na Torre do Tombo trabalhando, debruçado, lendo, anotando. À tarde ia para a editora e, à noite, escrevia ou lia em casa. Lancei
“Os jornais estavam com o mesmo instinto suicida que hoje manifestam em relação à internet”
30 | abril DE 2012
momento do mercado de ações. Decidi que ia realizar um sonho no qual já estava envolvido: a biografia do Stefan Zweig. Estávamos em 1980 e o livro tinha que sair em 1981, centenário do nascimento dele. Mergulhei nisso, a única exceção que eu abri foi para O Pasquim. Gostaria que você falasse um pouco de sua ida para Portugal e, por último, da construção de novos instrumentos para refletir sobre o jornalismo, ou seja, o Labjor e o Observatório da Imprensa. Fui para a Abril, como vice-diretor editorial, e tive um período muito bom e, ao mesmo tempo, muito ruim. Por quê? Por causa do espírito mafioso que sempre esteve na redação da Veja. Ela se fechava, e
o primeiro volume do livro em 1992, comecei a coletar material para o segundo volume e, em 1995, quis voltar. Fernando Henrique Cardoso tinha sido eleito, o Brasil estava vibrando e eu não queria ser um imigrante como fora o meu pai. Em 1992, numa viagem para me tratar aqui de um problema de saúde, comecei a ver o estado em que estava a imprensa brasileira: um horror, o triunfalismo pela derrubada de Fernando Collor de Mello, aquela mania dos brindes... Pensei que seria muito bom fazer um centro de estudos e Luiz Schwarcz sugeriu que eu falasse com o reitor da Unicamp, Carlos Vogt. Já sabia que a Unicamp, em determinado momento, quisera ter um curso de pós-graduação de jornalismo, porque o então reitor, Paulo Renato de Souza, pedira uma proposta nesse sentido a Cláudio Abramo e ele me propusera trabalharmos juntos no projeto. Mas Cláudio morreu e a coisa não prosseguiu. Escrevi a Vogt dizendo que talvez pudéssemos fazer uma coisa precursora. Ele respondeu que estava indo a Paris e poderia passar em Lisboa. Eu o hospedei num hotel maravilhoso na Rua das Janelas Verdes, comemos muito bem, passamos, enfim, um grande fim de semana. E aí surgiu a ideia do Labjor, Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo.
nome. Naquela época, tinha sido criado em Paris o Observatoire de la Presse. Eles vieram com a ideia de nomearmos assim o centro português. Achei excelente. Então, o nome Observatório da Imprensa surgiu nessa entidade portuguesa da qual eu sou fundador. E como chama a entidade portuguesa? Observatório da Imprensa. Eles criaram. Num determinado momento, falei ao Vogt que tínhamos criado o Labjor para falar com a sociedade, que não adiantaria ficarmos só na academia discutindo. A sociedade precisaria dizer se esse jornalismo que lhe está sendo oferecido é o que ela precisa. Ele achou o raciocínio perfeito e começamos a pensar no que
“No jornalismo têm que surgir coisas novas porque o Brasil culturalmente merece e precisa”
Vocês então foram parceiros na criação do laboratório. Vogt já ia deixar a reitoria e disse que ia entrar no projeto porque gostava muito e achava que podia dar uma boa contribuição. Deu muita força, a mim e ao José Marques de Melo, que no princípio estava no projeto, depois nos separamos por razões que nada têm a ver com Labjor. De qualquer forma, começamos a elaborar as bases acadêmicas do centro. Por coincidência, nessa época em que eu estava muito entre São Paulo e Lisboa jovens amigos meus, bons jornalistas portugueses, me procuraram para discutir a criação de um centro de estudos de jornalismo em Lisboa. Falei-lhes do projeto brasileiro, eles gostaram, pensamos em fazer dois centros irmãos, com intercâmbio. Mas apareceu aquele orgulho português de não copiar os brasileiros e eles resolveram inventar um
fazer. Revista custa caro, tentamos ciclos de palestras, mas não deu certo. Aí um dos companheiros mais novos, Mauro Malin, propôs fazermos alguma coisa com internet. Vogt pensou que talvez se pudesse fazer no Instituto Uniemp, que dispunha de equipamentos, e eu propus que então lançássemos a ideia do Observatório. Pedi autorização aos colegas portugueses. Depois é que lembramos da doutrina de Werner Heisenberg, na física quântica, que ao observar um fenômeno você interfere no fenômeno. Pensei, “aqui tem um negócio! Vamos observar a imprensa e, ao fazê-lo, o observado se sentirá observado e mudará seu comportamento”. A coisa começou a se desenvolver e vi que não dava para eu fazer o Labjor em Campinas
e o Observatório em São Paulo. Ficamos com o Observatório ligado no Instituto Uniemp, que era presidido por Vogt. Graças a ele, inclusive, o comitê gestor da internet examinou nosso projeto, informou que queria mesmo que a internet do Brasil tivesse função social e daí veio nosso primeiro financiamento, uma quantia mínima. Era quinzenal, até que Caio Túlio propôs que nos hospedássemos no Uol. Ele não pagava nada, mas ficamos aninhados num portal grande e isso nos colocou logo num outro patamar. O trabalho cresceu, venceu fronteiras, já fomos estudados em outros países da América Latina, porque eles têm modelos acadêmicos matemá ticos de avaliação da mídia, enquanto o que nós estamos fazendo é jornalismo sobre jornalismo. Qual é sua avaliação geral do jornalismo brasileiro hoje? O jornalismo brasileiro tem uma vitalidade extraordinária e seduz justamente por essa vitalidade. Mas está cada vez mais perdendo qualidade, se degradando por dentro, o que não impede de gerar, de repente, coisas extraordinárias. Eu me comovi por conta da matéria que Mírian Leitão fez do Rubens Paiva. É uma profissional consagrada, trabalha das 5 da manhã até umas 11 da noite, fazendo mil coisas, e ainda encontrou tempo de fazer aquilo que a consciência dela exige. Porque, grávida, foi torturada também. Disse que ia fazer e fez. Uma coisa bonita, boa, impactante e arrasadora. Então, o jornalismo brasileiro é capaz de fazer essas coisas. No encontro entre reflexão da academia e do jornalismo em seu próprio hábitat, você vê a possibilidade de criação de novos veículos? Aí entra o que os americanos chamam de wisdom thinking. Tenho esperanças de que isso ocorra. Eu acho que nós precisamos de um big bang, assim paft! Têm que surgir coisas novas porque o Brasil merece culturalmente e o Brasil precisa. O Brasil não vai dar o passo adiante para o mundo se dentro dele ele não estiver bem comunicado, com profundidade. E diariamente. n PESQUISA FAPESP 194 | 31
política c&T _ g estão
Corrida sobre o gelo
Depois da tragédia na estação, pesquisadores brasileiros discutem como produzir uma ciência mais competitiva na Antártida Fabrício Marques
A
reconstrução da Estação Comandante Ferraz, a base de pesquisa brasileira na Antártida destruída pelo fogo na madrugada do dia 25 de fevereiro, deverá ter início apenas daqui a dois anos, para ser concluída por volta de 2016. Mas a tragédia, que matou dois militares e foi deflagrada por um incêndio em geradores de energia, teve pelo menos um efeito imediato: reacendeu o debate sobre as ambições da ciência brasileira no continente gelado e as estratégias necessárias para que o trabalho dos pesquisadores do país ganhe mais relevância. Há consenso entre os cientistas de que a estação deveria ser reconstruída de modo a aumentar sua segurança mas também a garantir suporte especial aos pesquisadores – até então, a complexa e cara logística para abastecer a estação e transportar pessoas, a cargo da Marinha, por vezes deixava os objetivos científicos em segundo plano. 32 abril DE 2012
Também há uma percepção em comum de que o modelo vigente de financiamento à pesquisa sobre a Antártida, com editais do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) que patrocinam projetos por dois anos, merece ser aperfeiçoado, garantindo recursos de longo prazo principalmente para programas que coletem e forneçam dados para a pesquisa sobre as mudanças climáticas. A influência da Antártida no clima do Brasil compara-se à da Amazônia, mas ainda é pouco conhecida. “As mudanças climáticas são o grande tema de pesquisa na Antártida e permeiam disciplinas como a glaciologia, a meteorologia ou a biologia”, diz Antonio Carlos Rocha-Campos, professor aposentado do Instituto de Geociências da USP e coordenador do Centro de Pesquisas Antárticas da universidade. Com uma superfície de 13,6 milhões de quilômetros quadrados quase integralmente coberta por geleiras, o continente é o mais alto,
A Estação Comandante Ferraz em dezembro de 2006: 60 módulos formavam uma vila
clima
foto rosalinda montone
geologia
mais frio, mais seco e com ventos médios mais fortes do planeta. Um novo modelo de gestão da pesquisa na Antártida também é desejável, afirma o glaciólogo Jefferson Cardia Simões, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o primeiro brasileiro a atingir o polo Sul geográfico por terra numa expedição científica, em 2004. “Não se trata apenas de ter uma nova estação, mas de reconstruí-la pensando em várias frentes”, diz Simões, que enumera algumas delas: a cooperação com outros países, capaz de compartilhar custos e elevar a qualidade da pesquisa, o apoio a acampamentos e expedições em outras regiões do continente e a racionalização do trabalho dos pesquisadores. “A comunidade científica tem de assumir as decisões de gestão sobre a estação e a pesquisa na Antártida. Hoje há uma competição entre a logística, a cargo da Marinha, e a ciência, a cargo dos pesquisadores. E, no dia a dia, as
prioridades se perdem por excesso de demanda”, afirma o pesquisador. O contingente de brasileiros envolvidos na pesquisa antártica tem aumentado. Com isso, a pressão para que todos passem temporadas no continente, com todo o custo e a logística envolvidos nisso, é cada vez mais intensa. “Mas não é possível que todos queiram ir a campo todos os anos. Há um tempo de coletar dados e outro de analisá-los. E há pesquisas que podem ser feitas sem precisar ir à Antártida, utilizando dados obtidos lá”, diz o glaciólogo. De fato, um gargalo histórico do Programa Antártico Brasileiro (Proantar) diz respeito à oportunidade de visitar a estação. Estima-se que pelo menos 250 pesquisadores brasileiros estejam envolvidos atualmente em projetos de pesquisa sobre o continente gelado. A estação é capaz de abrigar cerca de 20% desse contingente. E nem sempre é possível aproveitar todo o potencial da base. Em 2009, a Marinha incorporou um navio polar a seu trabalho
oceanografia
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um lugar no navio e na estação
A chance de viajar nos dois navios da Marinha e de passar uma temporada na estação costuma ser reservada a projetos contemplados em editais periódicos do CNPq e, mais recentemente, dos dois Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT) dedicados à pesquisa antártica. Um deles trabalha com o papel da massa de gelo no sistema climático e estuda as variações do clima na Antártida e suas relações com o Brasil. O outro está voltado mais à questão do impacto da atividade humana no ambiente antártico. “A seleção dos projetos é rigorosa e temos avançado no sentido de formar redes em vez de estimular o trabalho isolado de pesquisadores”, diz Jefferson Simões. 34 abril DE 2012
Formação de redes de pesquisa substituiu trabalho isolado dos brasileiros no continente Há uma queixa recorrente de que faltam linhas de investimento para projetos de longo prazo. “O fato de um dos grupos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) não ter sido selecionado no último edital do CNPq fez com que interrompêssemos uma série histórica de dados meteorológicos na estação, por falta de quem as coletasse”, diz o oceanógrafo Ronald Buss de Souza, responsável do programa antártico do Inpe. Ilana Wainer, professora do Instituto Oceanográfico da USP, ressalta a importância de financiar a coleta de dados capazes de fertilizar pesquisas de grupos que precisam de informações sobre o continente – sem necessariamente ir até lá todo verão. “Nunca estivemos tão bem de financiamento como agora. Mas, para
la afirma, porém, que o Brasil não precisa investir sozinho. Cita o exemplo do recém-criado Southern Ocean Observing System (SOOS), rede multidisciplinar que busca fazer observações do oceano Antártico capazes de abastecer linhas de pesquisa sobre as mudanças climáticas, o aumento do nível do mar e o impacto do aquecimento global sobre os ecossistemas marinhos. “Ele não é realizável por um só país”, diz. Ilana lembra que os estudos sobre processos climáticos em escala local estão na fronteira do conhecimento e que os modelos computacionais têm dificuldade de simular os processos de interação entre o clima na Antártida e no hemisfério Sul. Num exemplo de pesquisa que pode ajudar a abastecer esses modelos, o grupo de Ilana, em associação com pesquisadores do Rio de Janeiro e da França, chegou à conclusão de que o aumento do buraco na camada de ozônio sobre a Antártida, nos anos 1980, gerou mudança no regime dos ventos no continente gelado com fôlego para alterar a temperatura da superfície do mar na Bahia. “Constatamos uma relação de causa e efeito entre a diminuição dos corais e o aumento do buraco de ozônio. O buraco aumentou a diferença de temperatura entre a Antártida e os trópicos, intensificou o vento, e houve decréscimo de corais na Bahia. Apesar de o buraco ter diminuído, não é certo que a situação dos corais tenha melhorado. Os efeitos do aquecimento global podem ter compensado, apesar de os ventos terem voltado ao normal.”
ilustração sobre imagem da nasa drüm fotos 1. chris danals/nsf 2. gaelen marsden 3. nipr 4. abr 5. instituto antártico 6. agadez
E
Pesquisadores da USP fazem coleta perto da estação: 40% das pesquisas afetadas
na região, o Almirante Maximiano, mas em 2011 ele trabalhou praticamente sozinho, pois o Ary Rongel, navio oceanográfico que dá apoio à estação, estava avariado. Quem consegue espaço na estação também enfrenta incertezas. “Já fiquei uma semana sem poder sair, por falta de condição climática para fazer coletas”, diz Rosalinda Montone, professora do Instituto Oceanográfico da USP, cujo grupo perdeu no incêndio boa parte do material que havia coletado neste verão. “Vamos recuperar pouca coisa”, afirma ela, que pesquisa poluentes orgânicos no ambiente marinho.
armando hadano/inpe
garantir o monitoramento das variáveis do clima, é preciso mais do que projetos com apenas dois anos de duração. Seria importante ter financiamento contínuo”, afirma Ilana, cujo trabalho sobre a modelagem do clima na Antártida depende, em grande medida, de dados sobre o oceano Austral e a variação na extensão do mar congelado. No seu caso, a dependência maior é da disponibilidade dos dois navios da Marinha, importantes para a coleta de dados sobre o oceano. O incêndio na estação e a utilização dos navios para resolver problemas logísticos deverão comprometer um dos projetos em que Ilana está engajada, o Paleoantar, que previa a obtenção de amostras de gelo para tentar entender os chamados pulsos de degelo, possíveis gatilhos para variações climáticas.
Estações de pesquisa na Antártida e seus países
amundsen-scott
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mc murdo
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syowa
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comandante ferraz
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n estação permanente n estação sazonal n estação fechada n estação proposta
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A inauguração da estação brasileira, em 1984: pesquisadores viajavam a convite da Marinha
36 abril DE 2012
Cooperação internacional é uma das alternativas para manter os brasileiros trabalhando na Antártida
Estação Comandante Ferraz garantia fácil acesso para os dois navios brasileiros – não por acaso, vários outros países instalaram bases naquela região. Fica numa baía ampla, com praias largas, o que favorece a logística e reduz custos, mas era capaz de dar apoio a um conjunto restrito de pesquisas, por exemplo, no campo da biologia marinha, o mais comprometido pelo incêndio. Composta por mais de 60 módulos interligados, foi crescendo ao longo do tempo até assumir as feições de uma vila à beira-mar. No inverno, um número menor de pesquisadores permanecia na base. Nessa fase, o acesso não era mais feito pelos navios – que só vão ao continente entre outubro e abril –, mas por aviões da FAB. “O local é ideal também porque tem dois lagos que são fonte de água”, diz Rosalinda Montone, da USP, que esteve na Antártida 17 vezes. A tragédia interrompeu 40% das pesquisas brasileiras na Antártida – sinal de que a presença científica do país no continente já não dependia exclusivamente da estrutura gerenciada pela Marinha. De um lado, módulos de coleta de dados si-
tuados a uma distância entre 300 metros e 1 quilômetro da base incendiada foram poupados. De outro, vinha avançando o número de pesquisas que não eram realizadas na estação. A viagem de Jefferson Cardia Simões ao polo Sul geográfico, no final de 2004, onde colheu testemunhos (cilindros) de gelo, dependeu de um esquema logístico que envolveu viagens em aviões chilenos e o aluguel de trator polar em parceria com outros pesquisadores – ao largo do esquema da Marinha. Em janeiro, uma equipe liderada por Heitor Evangelista, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e Jefferson Simões instalou o Criosfera I, primeiro módulo científico brasileiro no interior do continente antártico para obtenção de dados climáticos, localizado 2,5 mil quilômetros ao sul da estação. Expedição em 1982
A história do financiamento à pesquisa brasileira na Antártida teve várias fases. O Brasil aderiu em 1975 ao Tratado da Antártida, que destina o continente a atividades pacíficas, em especial a pesquisa científica, e realizou sua primeira expedição até lá em 1982. Com o advento do Proantar e a inauguração em 1984 da Estação Comandante Ferraz, era a própria Marinha, por meio da Comissão Interministerial de Recursos do Mar (CIRM), quem convidava pesquisadores a trabalhar na região. “O programa de pesquisa era feito sob a demanda do CIRM, que convidava instituições e também buscava induzir pesquisas em determinadas áreas”, lembra Ronald Buss de Souza. É dessa época que instituições como o Inpe, os institutos Oceanográfico e de Geociências da USP incorporaram-se ao esforço de pesquisa – o navio oceanográfico Comandante W. Besnard, da USP, fez seis viagens à Antártida nos anos 1980, servindo de apoio aos pesquisadores juntamente com o Barão de Tefé, da Marinha. O segundo momen-
fabio melo fontes
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os últimos dois anos Rocha-Campos, da USP, também apelou à cooperação internacional para levar adiante suas pesquisas. Ele conta com a retaguarda de uma base argentina – aproveitando que sua pesquisa é feita em parceria com o Instituto Antártico Argentino. “Já coletamos as amostras de rocha na ilha Rei George, não muito distante da estação brasileira em outras ocasiões. Para a pesquisa avançar, é preciso visitar outros lugares”, diz o professor. Um grupo de pesquisadores sob sua liderança identificou recentemente uma estrutura glacial fundamental para esclarecer a história paleoclimática da Antártida durante o período Mioceno (há cerca de 15 milhões de anos). A estrutura – denominada pavimento de clastos glacial – comprova ter havido um período de expansão do manto de gelo da Antártida Ocidental. Rocha-Campos articula-se com outros pesquisadores brasileiros para obter financiamento a fim de que o Brasil participe do programa Antarctic Drilling (Andrill), consórcio internacional que vem realizando sondagens geológicas na margem continental antártica. “Se conseguirmos recursos para participar, estaremos no mainstream da pesquisa geológica na Antártida”, afirma. Situada na ilha do Rei George, na parte mais quente do continente antártico, a
foto maria rosa pedreiro/ufpr
to do Proantar veio em 1991, quando a Marinha resolveu desincumbir-se de fomentar pesquisas e ateve-se apenas à logística das viagens e da base. O CNPq passou a cuidar das pesquisas. “Já existia massa crítica para disputar editais e o CNPq passou a avaliar os projetos por critérios de produtividade científica”, afirma Souza. Não foi um período fácil. “A noiva era bonita mas veio sem dote”, diz o professor Rocha-Campos. Os recursos do CNPq eram limitados e causou alívio, num terceiro momento, o ingresso do Ministério do Meio Ambiente no Proantar – por determinação de um protocolo assinado pelo Brasil, as pesquisas passaram a ser monitoradas para reduzir seu impacto ambiental.
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o quarto momento, esse mais recente, o CNPq passou a lançar editais para selecionar projetos e dois dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, redes virtuais de excelência mantidas pelo CNPq e pelas fundações estaduais de amparo à pesquisa, foram criados para se dedicar a pesquisas na Antártida. Ao longo do tempo, novos grupos de pesquisa foram organizados, com destaque principalmente para o Rio Grande do Sul. “Ao contrário do que ocorria nos anos 1980, quando os cientistas faziam concessões em suas linhas de investigação para incluir a Antártida, hoje já há uma geração de cientistas dedicada à pesquisa no continente, e essa massa crítica pressiona por mais recursos e oportunidade de realizar seus estudos”, diz Jefferson Simões. Os países que mais investem em pesquisa antártica são os Estados Unidos, o Reino Unido, o Japão e a Alemanha. “Formam o primeiro pelotão de pesquisa, alguns com estações em diferentes pontos da Antártida e navios quebra-gelos capazes de atingi-las”, diz Jef-ferson Simões. Num segundo pelotão vêm países como a China e a Índia, que multiplicaram seus investimentos na região recentemente, além da França, da Noruega e da Rússia. O Brasil, com o crescimento dos grupos de pesquisa nos últimos anos, estaria num terceiro pelotão, com ambições de ascender ao segundo. “Estamos melhores do que Argentina e Chile, nossos vizinhos da América do Sul que têm presença mais antiga e ostensiva no continente”, diz o professor Rocha-Campos.
A estação em chamas: duas pessoas mortas e reconstrução prevista para 2016
Financiamento de longo prazo para coleta de dados pode fertilizar pesquisas sobre mudanças climáticas
Para Ronald Buss de Souza, do Inpe, já passou o tempo de o Brasil criar um instituto de pesquisas antárticas, como os que existem em vários países com bases na região. Ele também considera que a liderança da Marinha é um calcanhar de aquiles do Proantar. “Os países desenvolvidos criaram institutos de pesquisa antártica de caráter civil, que administram estações e navios de pesquisa. No Brasil, e também em países que têm interesses territoriais na Antártida como Chile e Argentina, são os militares que administram as bases”, afirma. “O chefe da estação brasileira sempre foi um oficial da Marinha. O pesquisador trabalhando
na Antártida tem de pedir autorização ao oficial para trabalhar fora da estação – se ele não permitir, nada acontece. O oficial só vai recusar se tiver um motivo. Mas ele pode criar embaraços para não ter de acompanhar o pesquisador numa missão espinhosa”, explica. Ele reclama que o Brasil não compreendeu a importância da Antártida. “Nossa pesquisa sobre clima focalizou a influência da Amazônia, mas 60% do nosso território está mais sujeito à influência da Antártida”, diz. No curto prazo, o desafio é garantir a manutenção das pesquisas enquanto uma nova estação não é construída. Manter um dos navios brasileiros docado próximo à estação durante o verão é uma das alternativas para dar suporte aos pesquisadores. “O aluguel de um terceiro navio também está sendo cogitado”, diz Rosalinda Montone. Procurar colaborações que permitam o uso de estações de outros países é outra opção. Uma concorrência internacional definirá o formato da nova estação. Ela deve partir do desenho da Estação Juan Carlos, da Espanha, que não tem módulos contíguos, impedindo a propagação de fogo. O projeto, disse o comandante da Marinha Júlio Soares de Moura Neto, levará em conta as sugestões dos pesquisadores. “A razão de estarmos na Antártida é a pesquisa. A participação dos pesquisadores é extremamente bem-vinda”, disse Moura Neto, segundo a Agência Brasil. n pESQUISA FAPESP 194 37
_ i nvestimentos
Esforço descontínuo Cientistas e empresários protestam contra corte de 23% no orçamento federal
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íderes da comunidade científica e do setor empresarial deflagraram mobilização para pressionar o governo a rever o corte de 23% do orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) anunciado em janeiro. Um manifesto publicado no jornal Folha de S. Paulo no dia 21 de março criticou o segundo ano consecutivo de cortes nos recursos do ministério, que dessa vez perdeu R$ 1,5 bilhão dos R$ 6,7 bilhões aprovados pelo Congresso, e mostrou o impacto que a redução terá sobre o esforço de inovação das empresas e o desenvolvimento do país. “Os repetidos cortes e contingenciamentos de recursos destinados à pesquisa científica e à inovação são incompatíveis com os recentes compromissos do governo para manter o status conquistado pelo Brasil, hoje dono da sexta maior economia do mundo e reconhecido como uma nação de liderança global”, afirmou o manifesto, assinado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), as federações das indústrias dos estados de São Paulo (Fiesp), do Rio de Janeiro (Firjan), do Paraná (Fiep), da Bahia (Fieb) e, de Minas Gerais (MG), a Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras (Anpei), a Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores (Anprotec), além da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Academia Brasileira de Ciências (ABC). “Em países vencedores no campo da inovação, o investimento é fruto de aportes relevantes tanto do setor privado quanto do público. O Brasil necessita de uma alta taxa 38
_ abril DE 2012
de inovação para melhorar seus índices sociais e intensificar seu desenvolvimento científico e tecnológico”, esclareceu o documento. O manifesto foi a forma encontrada pelas entidades para abrir canais de negociação com o governo. A SBPC, por exemplo, já havia feito pedidos de audiência ao Palácio do Planalto para discutir os cortes, sem contudo obter resposta. Em fevereiro, a Sociedade Brasileira de Física (SBF) e a SBPC lançaram notas criticando o corte, que repercutiram na comunidade científica e no exterior – a revista Nature publicou reportagem sobre o assunto –, mas não provocaram reações do governo. No dia seguinte à publicação do manifesto, porém, os ministros da Ciência, Tecnologia e Inovação, Marco Antonio Raupp, e da Educação, Aloizio Mercadante, convocaram uma entrevista coletiva para responder às críticas. “Fomos provocados positivamente, pelos colegas da comunidade científica e empresarial, sobre recursos para ciência e tecnologia”, disse Raupp, que refutou os cálculos feitos pelas entidades. Segundo ele, há investimentos do governo em inovação que não são contabilizados no orçamento do MCTI, como a carteira de investimentos da Finep [Financiadora de Estudos e Projetos, agência de fomento vinculada ao ministério], que deverá investir mais R$ 6 bilhões, graças a recursos repassados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Os ministros aproveitaram para cobrar dos empresários mais investimentos em inovação. “Grande desafio é a participação das empresas, do mundo empresarial em geral, investindo em
ilustração larissa ribeiro
de ciência e tecnologia
inovação
dois anos de desaceleração Evolução do orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação – em bilhões de reais de 2012 7,7 (valores atualizados pelo IGPM/FGV)
5,3
Fonte mcti / sbpc
4,4
2,6
2,8
2000
2002
5,2
3,2
2004
2006
2008
2010
2012
ciência e tecnologia. Isso é característica dos países que estão crescendo nessa área, todos eles, onde os investimentos das empresas são bem maiores que os de governo”, observou Raupp. Em 2010, o país investiu pouco menos de 1,16% do PIB em pesquisa e desenvolvimento (P&D) – a participação do setor privado está em 0,55% e a do governo, em 0,61%, segundo dados do MCTI. A meta do governo de ampliar o investimento para 2% do PIB depende, de fato, de um maior envolvimento do setor privado – que em países
como a Alemanha responde por até dois terços do total dos investimentos. É certo, contudo, que os cortes no orçamento federal tornam a meta mais distante. “O PIB aumentou 3% no ano passado. Como houve corte no orçamento, o porcentual de investimento pelo PIB certamente vai cair em relação a 2010”, diz Helena Nader, presidente da SBPC. Os recursos aumentaram no segundo mandato do governo Lula, com um progressivo desbloqueio de dinheiro dos fundos setoriais, fontes fundamentais de financiamento à ciência no país. Em 2010, o chamado “contingenciamento” de recursos chegou a zero, com a execução integral do orçamento – e havia a promessa de que isso se manteria. “A instabilidade é um dos piores venenos para o desenvolvimento de um sistema de ciência e tecnologia”, observa Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. “O presidente Lula havia prometido em 2003 levar o dispêndio em P&D para 2% do PIB ao final do primeiro mandato. Em 2006, o dispêndio estava em 1,01%, abaixo do valor de 2001. Em 2007, o plano federal para CT&I reduziu a meta, anunciando que em 2010 o dispêndio chegaria a 1,5%. pESQUISA FAPESP 194
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A ciência como antídoto para a crise estados unidos
índia
coreia do sul
chile
Lei aprovada no final de 2011 garantiu pequenos aumentos no orçamento das principais agências de pesquisa dos Estados Unidos. A Nasa, por exemplo, terá um aumento de 3,1% em relação ao ano passado
Orçamento científico, que vinha crescendo 25% ao ano, reduzirá ritmo em 2012. O aumento médio será de 13%, ainda superando a inflação de 7% ao ano. A pesquisa em saúde será a mais aquinhoada, com aumento de 17,9%
Recursos para pesquisa e desenvolvimento serão 5,17% maiores que em 2011. Programa espacial do país, que prevê lançamento de um satélite em 2017 e de um foguete em 2021, foi reforçado
Crescimento do orçamento de ciência e tecnologia é de 3,5% neste ano. Enquanto projetos de pesquisa e bolsas terão aumento de 13,7%, programas de inovação terão redução de 9,4% em relação a 2011
china
alemanha
japão
espanha
Investimentos em ciência e tecnologia vão crescer 12,4% em relação a 2011. Ciência básica e tecnologia agrícola serão as áreas mais beneficiadas, com um crescimento, respectivamente, de 26% e de 53%
Aumento de 10% no orçamento de educação e ciência de 2012 foi aprovado em julho de 2011, com destaque para a pesquisa em energia, clima, saúde e comunicação
Investimentos em ciência e tecnologia do governo japonês deverão crescer 0,6% neste ano em relação a 2011, com ênfase para pesquisas sobre prevenção de desastres naturais
Quase 40 mil pesquisadores participaram de um protesto nas ruas de Madri contra a redução nos recursos para programas de pesquisa – a queda chegou a 34% em 2012
O site do MCTI informa para 2010 1,16% do PIB”, diz Brito Cruz. O físico Luiz Davidovich, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e diretor da Academia Brasileira de Ciências, diz que, embora seja cedo para fazer uma análise profunda e correta, o que aparenta estar acontecendo é uma descontinuidade política. “O corte do ano passado, que parecia ser excepcional, se repete agora. O que se vê hoje vai na direção oposta do que se viu no governo passado”, diz Davidovich, um dos articuladores do manifesto. “Parece haver inconsistência de política de ciência e tecnologia. O governo vai mandar 100 mil jovens para fazer estágios no exterior, no programa Ciência Sem Fronteiras. Mas não está preparando terreno para que eles voltem. Não adianta mandar para o exterior sem reforçar o sistema no Brasil”, afirma.
O
corte de 2011, que chegou a R$ 1,7 bilhão, atingiu o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Desacelerou as atividades de instituições como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que perdeu R$ 430 milhões, e a Finep, segundo os líderes da comunidade científica. “Os investimentos de que o país precisa não estão acontecendo”, diz Helena Nader. “O que o CNPq está fazendo em matéria
40
_ abril DE 2012
“O governo vai mandar 100 mil jovens para o exterior, mas não prepara o terreno para que eles voltem”, diz Davidovich
de grandes editais? O edital universal recebeu demanda qualificada de projetos de pesquisadores, mas não pode atender a todos por causa do corte. Quando encontro com pequenos empresários, a queixa é a mesma em relação à Finep. E o efeito é cumulativo. Quando o governo federal corta, sinaliza para os estados que não é tão importante assim. Não é prioridade”, diz Helena Nader, que aponta um descompasso entre o que o governo prega e o que pratica. “Acredito muito na presidente Dilma, na sua sinceridade. Mas não é possível que alguém com o seu discurso, de quem acredita no potencial
da ciência e da tecnologia no desenvolvimento do país, faça um corte desse tamanho”, afirma. A SBPC e a ABC conseguiram, no ano passado, convencer o governo a incluir entre os megadesafios do país para os próximos cinco anos o desenvolvimento da ciência, tecnologia e inovação. “Me senti orgulhosa, como presidente da SBPC, de ter participado dessa mobilização, mas, na hora de cortar o orçamento, as despesas com a ciência, tecnologia e inovação são vistas como gastos, não como investimento no futuro.” Para Luiz Davidovich, já é mensurável um prejuízo na colaboração entre empresas e universidade. “O Fundo Verde e Amarelo, por exemplo, não teve novos projetos”, afirma, referindo-se a uma fonte de financiamento gerenciada pela Finep, concebida para formar parcerias e promover sinergias entre os setores público e privado dentro do sistema nacional de inovação. O setor empresarial refuta a ideia de que não tem procurado se esforçar para inovar. Rodrigo Loures, presidente do Conselho de Inovação e Competitividade da Fiesp, diz que o avanço, embora discreto, do número de empresas inovadoras registrado na mais recente Pesquisa de Inovação Tecnológica (Pintec) do IBGE deveu-se muito mais ao dinamismo das próprias empresas do que a ações do governo. “Há uma relação direta entre a postura de governos
Fonte Nature. SciDev.Net, PHL
A estratégia de outros países para seus orçamentos
corda. “Parte do governo federal cobra das empresas aumento do dispêndio em P&D, enquanto outra mantém o câmbio, os custos trabalhistas e o peso fiscal em níveis que tornam o ambiente brasileiro hostil ao investimento empresarial em P&D”, afirma.
N
e a participação de empresários em investimentos em tecnologia, como já foi demonstrado por estudos econômicos. Toda vez que os governos valorizam a ciência, tecnologia e inovação há uma resposta positiva tanto da universidade quanto do setor privado. Fazendo corte no orçamento, o governo mostra que não prioriza a ciência, tecnologia e inovação enquanto estratégia de desenvolvimento nacional. Isso é extremamente preocupante”, afirma Loures. Segundo ele, já se nota uma redução de procura por programas da Finep. “Há ceticismo e desestímulo no meio empresarial em relação às políticas públicas. Elas costumam servir para criar massa crítica, construir um momentum, fazer a economia crescer e estimular o entusiasmo com o empreendedorismo. Isso
tudo fica comprometido com um corte de recursos.” Loures diz que, apesar do avanço nos investimentos no segundo mandato do governo Lula, os investimentos do governo nunca chegaram a ser vultosos. “Houve esforço a partir de 2008, com três anos de avanço contínuo. Não quer dizer que isso mudou a agenda do governo”, diz. O Conselho de Ciência e Tecnologia, que reúne ministros e é comandado pelo presidente da República, reuniu-se poucas vezes nos últimos anos. “É inegável que Lula colocou a inovação em seu discurso. Mas isso não chegou a alcançar o Ministério da Fazenda. Pode ter havido melhoras, mas não numa intensidade capaz de deter o ritmo da desindustrialização do país”, afirma Loures. Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, con-
PACTI 2007-2010: Investimento aquém do prometido O Plano de Ação de Ciência, Tecnologia e Inovação – Pacti 2007-2010 propôs elevar o dispêndio total em P&D do Brasil a 1,5% do PIB em 2010, mas só chegou a 1,16%. O crescimento realizado foi de 31% do previsto. A maior frustração da meta se deu no dispêndio federal, com somente 25% da meta cumprida, enquanto o maior desempenho coube aos estados, com 71% da meta cumprida
2006
Meta Pacti 2007-2010
Dispêndio P&D (% PIB)
Variação (pp)
Total
1,01
Público
0,50
Federal Estadual Privado
Realizado em 2010
Cumprimento da meta (%)
Dispêndio P&D (% PIB)
Variação (pp)
0,49
1,50
0,16
1,16
0,35
0,85
0,12
0,61
31%
0,36
0,28
0,64
0,07
0,43
25%
0,14
0,07
0,21
0,05
0,19
71%
0,51
0,14
0,65
0,04
0,55
29%
Dispêndio P&D (% PIB)
31%
aldo Dantas, secretário-executivo da Anpei, afirma que os cortes poderão comprometer o esforço para transformar a indústria brasileira, cujos produtos são de baixa e média tecnologia, para um perfil de média-alta tecnologia. “As empresas não conseguem apostar sozinhas em inovação de alto risco. Para isso, o apoio do governo é fundamental. As empresas começavam a colocar em seu portfólio projetos para editais de subvenção. São as subvenções para parcerias com universidades que fomentam as inovações de fronteira. E é esse tipo de parceria que está sendo prejudicado”, diz Dantas. “Com o corte, o governo sinaliza que o Brasil não quer trabalhar com alto risco, ao contrário do que fazem países como a Alemanha e a Coreia”, afirma. A atitude em relação ao financiamento da ciência em outros países, mesmo aqueles especialmente atingidos pela crise internacional, ajuda a alimentar a indignação da comunidade científica. “A China, por exemplo, anunciou um aumento significativo nos recursos para ciência básica no mesmo evento em que comunicou à nação que o crescimento deste ano será o menor dos últimos tempos”, diz Helena Nader. “Enquanto isso, o Brasil corta mais de um quinto dos recursos do MCTI”, afirma a presidente da SBPC. O presidente da Sociedade Brasileira de Física, Celso de Melo, diz que não há justificativa técnica e científica que autorize um corte de mais de 20%. “O sentimento da comunidade científica é de perplexidade e indignação. Estamos no caminho oposto ao dos países que deram certo.” Segundo Melo, a reversão de expectativas pode comprometer as estratégias de crescimento da ciência brasileira. “Temos recebido a demanda de pesquisadores de outros países, e mesmo de brasileiros radicados no exterior, querendo trabalhar aqui. Num quadro de corte, não seremos capazes de atrair talentos. A ciência precisa de continuidade para prosperar”, afirma. n Fabrício Marques pESQUISA FAPESP 194
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_ h istória da fapesp x {
Relações delicadas Como a pesquisa de universidades paulistas contribui para os estudos de gênero no país
42 abril DE 2012
O
espaço conquistado pelas mulheres e a consequente teia de relações que elas se habilitaram a estabelecer foram abordados por pesquisadores do estado de São Paulo cujo trabalho recebeu financiamento da FAPESP ao longo dos 50 anos de trajetória da Fundação. Se a preocupação dos estudos feitos nos anos 1960 e 1970 referiu-se principalmente à condição feminina, materializada nos efeitos da violência doméstica e nas assimetrias do mercado de trabalho, o referencial expandiu-se nas décadas seguintes para abarcar as relações de gênero, os vínculos estabelecidos entre homens e mulheres (e também no interior das duas categorias) em camadas diversas da condição humana. Em 1963, a socióloga Eva Alterman Blay, pioneira em estudos sobre a mulher no Brasil e referência do movimento feminista, recebeu uma bolsa da FAPESP para fazer seu mestrado sobre a condição da mulher no trabalho doméstico, domiciliar e na indústria. Ela havia se graduado e fora convidada para trabalhar como instrutora voluntária, sem remuneração, no departamento de ciências sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. “Eu tinha sido uma boa aluna e os professores me convidaram para trabalhar como professora e pesquisadora. Mas como não havia vaga, o trabalho era sem remuneração”, relembra. Azis Simão e Ruy Coelho, dois de seus professores, sentiam-se desconfortáveis com a situação e sugeriram que ela pedisse uma bolsa para a recém-criada Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Eva apresentou seu projeto, para realizar estudos sobre a mulher trabalhadora, e foi chamada para conversar com o então diretor científico da FAPESP, o geneticista Warwick Kerr.
Manifestação contra o machismo e pelos direitos das mulheres em Brasília, em 2011
Antropologia
agência brasil
gênero
“Ele me tratou muito bem, e deve ter gostado do projeto, porque a bolsa foi concedida. Mas parecia ter dificuldade em compreender por que eu queria estudar a condição da mulher. Expliquei que faltavam dados sobre a mulher, que a sociedade era dividida entre homens e mulheres, entre adultos e crianças, e que cada categoria desperta o interesse da sociologia. Ele fazia perguntas de forma muito bem-humorada e em nenhum momento me senti constrangida. Mas como ninguém fazia esses estudos naquela época, ele, assim como muita gente, tinha dificuldade de compreender a importância desse tema”, recorda-se Eva Blay, que cita a colega Heleieth Saffioti (1934-2010) como outro exemplo de pesquisadora interessada no tema naquela mesma época. “O livro da Simone de Beauvoir havia circulado no Brasil nos anos 1950, mas não teve a repercussão que hoje se diz”, recorda-se a professora, que sentiu um forte impacto sobre o tema depois de ler uma versão em francês do livro da feminista
Betty Friedan (1921-2006), La femme mystifiée. “Me lembro de ler o livro enquanto amamentava meu filho em 1964 e concluir que era aquilo que eu queria estudar”, afirma. A bolsa de mestrado rendeu uma dissertação sobre o Ginásio Industrial Feminino em São Paulo, apresentada em 1969. Mesmo antes de concluí-la, já orientava na pós-graduação. Nessa época, ofereceu uma disciplina na pós-graduação da sociologia sobre a questão da mulher. “Ninguém se inscreveu”, diz. Ela recebeu outra bolsa da FAPESP para fazer o doutorado, concluído em 1973, sobre o espaço das mulheres na indústria paulista. “Foi uma dificuldade tremenda obter os dados, porque até aquela época o IBGE não distinguia homens e mulheres nos censos industriais. Só queria saber quem era o chefe da família, deduzindo a priori que era o homem, mesmo que não fosse. O tema era ignorado.” Um dos achados de sua pesquisa foi mostrar que as mulheres com trabalho qualificado na indústria paulista eram
Sociologia
pESQUISA FAPESP 194 43
Mesmo com formação superior, mulheres cumpriam tarefas subalternas na indústria claramente subaproveitadas. “O salário era pouco maior do que a metade do dos homens. Mesmo sendo formadas em medicina ou em química, recebiam tarefas subalternas na indústria, como traduzir manuais, ou trabalhar em funções de secretariado”, lembra. O ineditismo de sua pesquisa e o avanço do feminismo nos Estados Unidos e na Europa chamaram atenção para o tema e geraram uma série de convites para palestras. “A princípio, alguns sindicatos reagiram mal aos resultados de minha pesquisa. Recebi uma carta do sindicato dos químicos dizendo que eu estava ferindo a imagem da categoria. Outros reclamavam da crítica ao salário mais baixo das mulheres. Eu dava exemplos: se a mulher ganha 50 e o homem 70, alguém está ficando com os 20 de diferença. Aí eles entendiam e a resistência diminuiu”, diz Eva Blay, que criou, nos anos 1980, o Núcleo de Estudos da Mulher e das Relações Sociais de Gênero (Nemge) da USP e se tornou uma referência do feminismo – inclusive como senadora da República, entre 1992 e 1994, quando assumiu a vaga de Fernando Henrique Cardoso, nomeado ministro das Relações Exteriores e da Fazenda. Logo depois de Eva Blay, outros pesquisadores envolveram-se com 44 abril DE 2012
a questão da mulher no mercado de trabalho, caso, por exemplo, da socióloga Cristina Bruschini (1943-2012), que em 1977 concluiu mestrado na USP sobre mulheres em profissões de nível superior, com bolsa da FAPESP, e aprofundaria o tema em diversos artigos e livros, e ao longo de sua carreira de pesquisadora da Fundação Carlos Chagas.
S
e os estudos brasileiros sobre a condição feminina sofreram influência da produção acadêmica norte-americana e europeia, uma de suas vertentes, a pesquisa sobre a violência contra a mulher, desenvolveu-se de forma particular no Brasil – impulsionada por uma realidade trágica. Um dos marcos foi o livro Morte em família (Grall, 1983), da antropóloga Mariza Corrêa, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sobre homicídios e tentativas de homicídios cometidos em Campinas entre 1952 e 1972 e as representações jurídicas dos papéis sexuais: a Justiça avaliava mais o papel do homem e da mulher do que o crime em si. “No fundo, o que se julgava era se a vítima era boa esposa ou não ou se o marido assassino era um bom provedor do lar”, diz a antropóloga Guita Grin Debert, professora da Unicamp. Até os anos 1970 era corriqueiro na Justiça
josé amarante / agência brasil
brasileira o argumento da “legítima defesa da honra” para absolver maridos que matavam esposas. “Quando cheguei a Campinas, em 1970, ocorria o julgamento de um rumoroso caso do promotor que matou a esposa adúltera e acabou absolvido. ‘Campinas lavou a sua honra’, foi a manchete do jornal”, disse Mariza Corrêa em entrevista ao Jornal da Unicamp, em 2004, referindo-se ao assassinato da mãe da atriz Maitê Proença, morta pelo marido. O assassinato da socialite Ângela Diniz em 1976 pelo namorado Doca Street foi um ponto de inflexão – o assassino foi absolvido num primeiro julgamento, que acabou anulado, mas condenado no segundo. O advento das delegacias da mulher foi uma resposta à mobilização do movimento feminista, mas também pode ser visto como um dos efeitos da pesquisa sobre a violência contra a mulher aplicada a políticas públicas. Já na segunda metade dos anos 1970, tomou corpo uma mudança no enfoque teórico dos estudos sobre a condição feminina, marcado por uma nova nomenclatura: a pesquisa sobre as relações de gênero. “A partir de certo momento, ficou claro que a condição da mulher não existe de forma isolada como tema de pesquisa: o que existe é uma relação social, uma relação entre homens e mulheres”, explica Eva Blay. “Constatou-se que a ideia de mulher focalizada pela pesquisa até então era restrita. Dizia respeito a mulheres brancas, heterossexuais e em idade reprodutiva. Crianças e mulheres idosas, mulheres negras e homossexuais não se enxergavam nos estudos da mulher”, diz Guita Debert. “A ideia se centra mais em como as diferenças são produzidas, colocando em xeque a universalidade da dominação masculina”, afirma. A produção do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, criado na Unicamp em 1986, é exemplar da complexidade desse novo enfoque teórico. Os estudos feitos pelo núcleo abrangem preocupações como a relação entre as características masculinas e femininas e as convenções sobre o corpo, as intervenções médicas como cirurgias plásticas rejuvenescedoras ou operações de mudança de sexo, a produção artística e científica de homens e mulheres, a sociabilidade dos homossexuais que envelhecem, o mercado sexual e a pornografia, entre outros. Um projeto temático financiado pela FAPESP entre 2004 e 2009 ajudou a consolidar vários
eixos de pesquisa do grupo. “O projeto foi o mais importante do núcleo, no sentido de costurar e aglutinar interesses e objetos de pesquisa que vinham sendo desenvolvidos desde sua formação”, diz Maria Conceição da Costa, professora do departamento de política científica e tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp, atual coordenadora do Núcleo Pagu – seu campo de estudos é a interface entre gênero e ciência.
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victor soares / agência brasil
uita Debert, que já coordenou o Núcleo Pagu, dedica-se, entre outros tópicos, ao estudo da sexualidade na velhice, com foco nas cirurgias estéticas utilizadas para camuflar os efeitos do envelhecimento. Uma de suas contribuições consistiu em mostrar que as cirurgias estéticas não ampliam as potencialidades do corpo, como imagina o senso comum. “Ao contrário, restringem tais potencialidades porque representam uma aversão às diferenças. As pessoas sabem que não vão se transformar numa Gisele Bündchen, o que querem é apagar características que fogem à normalidade e serem aceitas”, afirma a professora, que é membro da Coordenação de Ciências Humanas e Sociais da FAPESP. No caso das cirurgias usadas para remover marcas da passagem do tempo, a situação é ainda mais complexa. “A gerontologia enfatiza a ideia de que é preciso envelhecer com qualidade de vida, de que sexo não
tem idade, mas o que as cirurgias fazem é tentar driblar a natureza. Não existe uma estética da velhice para norteá-la”, afirma a pesquisadora, que atualmente se debruça também sobre um projeto de políticas públicas para idosos envolvendo sexualidade, gênero e violência. Adriana Piscitelli, pesquisadora e também ex-coordenadora do Núcleo Pagu,
Trabalho na indústria do sexo na Europa muitas vezes é estratégia temporária para viabilizar o projeto migratório
Ativistas defendem direitos femininos na Constituinte, em 1986 (alto), e mulher trabalhadora no Ceará: da pesquisa às políticas públicas
estudou a transnacionalização dos mercados do sexo, mergulhando no universo do turismo sexual em Fortaleza. Ela acompanhou as trajetórias de brasileiras que migraram para a Itália, convidadas por turistas estrangeiros, e deixaram o mercado do sexo ao casar com eles, e também de brasileiras que se dirigiram à Espanha para trabalhar, oferecendo serviços sexuais. Os resultados de sua pesquisa questionam as leituras que consideram todos esses deslocamentos como tráfico de mulheres com fins de exploração sexual. A migração de brasileiras para trabalhar na indústria do sexo europeia tem a ver com a busca de oportunidades econômicas e sociais, como é comum em fluxos migratórios. Segundo Adriana, o trabalho na indústria do sexo é, muitas vezes, uma estratégia temporária para viabilizar o projeto migratório, que pode envolver a intenção de casar e formar família. “Encontrei numerosos casos de mulheres que saíram da indústria do sexo para se casar, permanecendo na Europa. E não são casamentos de fachada”, afirmou. Na Espanha, observou que as brasileiras encaixavam-se num ranking de procura dos empresários da indústria do sexo, que privilegiava as profissionais vindas do Leste Europeu, e diluía as brasileiras na categoria de prostitutas latino-americanas – ainda que fossem mais valorizadas no mercado sexual que outra categoria, as africanas. Os estudos de gênero no Brasil sofisticaram-se nos últimos anos. Para ter uma ideia da diversidade, entre os projetos atualmente apoiados pela FAPESP há pesquisas sobre os cuidados com a saúde com homens e mulheres residentes na capital paulista (Faculdade de Saúde Pública da USP), o papel social das arquitetas (Universidade Mackenzie), a divisão de tarefas entre homens e mulheres numa cooperativa de catadores de papel (Faculdade de Educação da Unicamp) ou dificuldades de acesso à Justiça para as mulheres (Faculdade de Direito da USP em Ribeirão Preto). “As principais universidades do país têm grupos dedicados às pesquisas de gênero”, diz Eva Blay. “O avanço foi extraordinário: não há legislação sobre saúde, educação, violência que não leve em consideração as relações de gênero. Há um intercâmbio entre o que a universidade produz e a formulação de políticas públicas”, afirma a professora. n Fabrício Marques pESQUISA FAPESP 194 45
CIÊNCIA _ P AISAGENS EM TRANSFORMAÇÃO
A milenar Amazônia capixaba Mata atlântica do Espírito Santo guarda resquícios da floresta amazônica de 7,8 mil anos atrás TEXTO
Carlos Fioravanti
FOTOS
Eduardo Cesar, de Linhares
Lagoa do macuco, na reserva de Sooretama: ex-manguezal
46 ABRIL DE 2012
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om um tronco avermelhado de quase 2 metros de diâmetro e 25 metros de altura, com uma casca que lembra escamas de peixe, a jueirana-vermelha ou Parkia pendula é uma das espécies de árvores típicas da floresta amazônica que começaram a ser encontradas em uma reserva de mata atlântica em Linhares, norte do Espírito Santo, a 2.400 quilômetros das bordas da atual floresta amazônica, há 30 anos. No entanto, até hoje ninguém sabe muito bem por que elas estão aqui. Agora, para deixar ainda mais emocionante a dúvida, especialistas de São Paulo, com base em análises de solo e de pólen retirados dos sedimentos do fundo de uma lagoa, estão literalmente desenterrando as paisagens do passado e mostrando que as espécies amazônicas já viviam nesta região há pelo menos 7,8 mil anos. Esse levantamento está indicando que espécies se mantiveram ou desapareceram como resultado das variações de clima e de solo ao longo de milhares de anos. Além disso, sugere possíveis interações entre ambientes hoje distantes e isolados, como a floresta litorânea e a Amazônia, e, de modo mais amplo, indica a tendência das transformações, a resistência ou a fragilidade das diversas formas de vegetação nativa do país, em resposta às variações de clima. “As matas fechadas, se não houver interferência humana nem mudanças climáticas intensas, tendem a avançar sobre as áreas abertas, ocupadas pelos campos”, diz Luiz Carlos Pessenda, pesquisador do Centro de Energia Nuclear da Agricultura (Cena) da Universidade
ECOLOGIA
de São Paulo (USP) em Piracicaba, que coordena os levantamentos que estão refazendo a floresta submersa do norte do Espírito Santo. Nos últimos 20 anos, Pessenda, físico de formação, fez cerca de 200 furos pelas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste em busca de pólen em sedimentos terrestres e lacustres e em amostras de solo, antes de concluir que as áreas abertas tendem a escassear, seguindo a tendência dos últimos 4 mil anos. Talvez não aqui em Linhares, ele suspeitou, ao percorrer essas matas pela primeira vez, há quatro anos, e ver os campos nativos – cerca de 20 áreas circulares com uma vegetação rasteira e raras árvores, que crescem em solo bastante arenoso e resistem em meio à mata fechada. “Há 8 mil anos havia ilhas de floresta amazônica aqui, onde o clima não mudou muito, ou então a floresta amazônica chegava até aqui.” Com base nos dados obtidos até agora, Pessenda, com sua equipe do Cena, concluiu que o clima no norte do Espírito Santo deve ter se mantido relativamente estável nos últimos 15 mil anos. Desse modo, a área, a composição e a estrutura das matas devem ter se mantido com poucas alterações, enquanto em outras regiões do país as florestas encolhiam ou desapareciam, em resposta a variações climáticas intensas. Esse contraste sugere que as matas capixabas podem ter sido refúgios biológicos, preservando espécies de plantas e de animais que podem ter se extinguido em outros lugares ou mesmo servindo como espaço para a formação de novas espécies,
à medida que se separavam de outras. O arquipélago de Fernando de Noronha, onde ele também fez levantamentos de campo, pode ter sido outro lugar sem grandes mudanças na vegetação, mas com claros registros do avanço da linha de costa. “Onde é manguezal, a 200 metros da praia”, diz ele, “já foi praia, há aproximadamente 5 mil anos.” A possibilidade de ter sido um refúgio com florestas há milhares de anos, se confirmada por outros estudos, poderá ampliar o valor biológico dessas matas que há meio século seguiam contínuas até o sul da Bahia e ganharam o nome de hileia baiana, em razão da semelhança com a Amazônia. As florestas encolheram bastante, em razão da expansão das cidades e do desenvolvimento econômico – Linhares já foi um pujante centro de produção de móveis, com madeiras retiradas das matas nativas. Mas restou uma respeitável área de 45 mil hectares – metade preservada como área pública federal, a reserva biológica de Sooretama, e outra metade pela mineradora Vale – cercada de fazendas de café e mamão. “A biodiversidade salvou a floresta dessa região”, diz o engenheiro florestal Gilberto Terra Ribeiro Alves, coordenador de pesquisa da Reserva Natural Vale (RNV). A mineradora começou a formar a reserva em 1955 comprando fazendas com matas nativas. De acordo com o plano inicial, as árvores seriam cortadas em regime de exploração seletiva e a madeira aproveitada para construir dormentes para a ferrovia Vitória–Minas, que transporta minério de ferro do Quadrilátero Ferrífero até o porto de Vitória.
PESQUISA FAPESP 194 47
Seria necessário, porém, adaptar os métodos de produção e as máquinas de corte para cada árvore que chegasse da mata. E, por fim, foi mais simples e mais barato fazer dormentes com eucaliptos plantados na região. A reserva da Vale ganhou outro destino e se tornou uma área de preservação da mata atlântica peculiar dessa região, a chamada floresta de tabuleiro, mantendo atualmente cerca de 100 projetos próprios, principalmente nas áreas de silvicultura de espécies não tradicionais e restauração florestal. É também um espaço para pesquisas em botânica e ecologia. Segundo Alves, a reserva abriga hoje cerca de 60 projetos de pesquisa em andamento, executados por equipes de 17 instituições nacionais e oito estrangeiras, além de um herbário com quase 4 mil espécies e coleções de sementes, madeira e frutos que tem se mostrado valioso para completar a identificação de espécies coletadas na mata. Siqueira, o curador do herbário, nasceu em Linhares, mas nunca tinha entrado em uma floresta até começar a trabalhar na reserva, em 1995. No início, morria de medo de andar por ali. “Quando entrava na mata, o pelo do braço arrepiava, o coração disparava”, ele conta. “Aos poucos vi que a floresta não era tão amedrontadora quanto parecia.” De lá para cá, ele coletou 800 plantas da mata para reforçar o herbário e tem sido bastante requisitado para trabalhar na identificação das espécies ao lado de botânicos veteranos como José Rubens Pirani, da USP. Pirani visitou a reserva em fevereiro de 2011 para ver in loco a
Buso, Alves e Siqueira, diante de uma monumental Parkia pendula, ampliada ao lado
FOTOS A.A. BUSO JR. / CENA-USP
Polens de árvores de mata atlântica e Amazônia retirados do sedimento do fundo da lagoa: Rinorea (esquerda), Glycydendron (abaixo, esq.), Apeiba-Hydrogaster e Simarouba
Spiranthera atlantica, uma espécie nova e a primeira ocorrência na mata atlântica de um gênero de árvore antes encontrada apenas na Amazônia e no cerrado, da qual Siqueira já tinha lhe enviado material para identificação. Um levantamento preliminar indicou que cerca de 800 espécies de árvores e palmeiras – as mais abundantes são típicas de mata atlântica – se espalham pela reserva da Vale, incluindo algumas só encontradas nestas matas, como duas espécies de ipês. Em uma contagem de campo recém-concluída, uma equipe da Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, encontrou 142 espécies de árvores que ocorrem também na Amazônia – e algumas delas também na caatinga e no cerrado. “As espécies de outros ecossistemas não são as mais importantes, em número de indivíduos, mas apresentam uma alta diversidade”, diz o engenheiro florestal Sebastião Venâncio Martins, professor da UFV e coordenador dos estudos de campo nas florestas de Linhares. Além disso, espécies como a Parkia ajudam a formar o dossel, a parte mais alta da floresta. Para Martins, a maior concentração de espécies amazônicas nos trechos mais preservados e distantes das bordas da floresta da reserva, verificada na pesquisa de doutorado de Luiz Fernando Magnago, que ele orienta, reforça a necessidade de preservação de grandes áreas de florestas nativas nesta região do Espírito Santo.
48 ABRIL DE 2012
A pergunta que persiste na mente de quem vê estas matas: por que essas espécies de árvores amazônicas estão aqui? “Pode ter havido uma conexão entre a Amazônia e a mata atlântica, talvez por meio das matas próximas aos rios”, diz o biólogo Antonio Álvaro Buso Junior, que trabalha com Pessenda no Cena. “Quando? Talvez há 10 ou 20 milhões de anos. Ou mais recente, há 50 ou 100 anos. A conexão pode ter sido feita por meio das matas ciliares e foi desfeita com o desmatamento.” Pirani concorda: “Vários estudos paleobotânicos têm demonstrado que, em uma época de clima mais úmido e quente, havia cordões de mata e manchas de mata úmida onde hoje é caatinga e cerrado”. Para Martins, além de prováveis ligações remotas entre tipos de vegetação hoje bastante diferenciadas, mas que antes deviam formar um tapete verde contínuo, essa floresta apresenta solo arenoso, relevo plano e um clima marcado por chuvas constantes semelhantes à Amazônia. Essas semelhanças ajudam a explicar a sobrevivência de espécies comuns nas matas nativas da Região Norte do país. DO FUNDO DE UM LAGO
Equilibrando-se em barcos infláveis, Álvaro e Paulo Eduardo de Oliveira, pesquisador da Universidade São Francisco com experiência nessa área, recolheram amostras de sedimentos de até dois metros de profundidade do fundo da lagoa do Macuco, que se espalha com cerca de um quilômetro de largura e três metros de profundidade, na reserva de Sooretama. De volta ao Cena, Álvaro identificou pólen de 234 gêneros ou famílias de árvores, arbustos, ervas, samambaias e plantas aquáticas (cada grão de pólen mede de 20 a 60 micrômetros). “A identificação por pólen permite a identificação taxonômica com segurança apenas até o nível de gênero”, argumenta. A maioria dos gêneros reconhecidos representava espécies de árvores típicas de mata atlântica, alguns, como o gênero Hydrogaster, exclusivos das matas de tabuleiro do sul da Bahia e norte do Espírito Santo. Outros gêneros são encontrados na Amazônica e na mata atlântica, como Glycydendron, Rinorea e Senefeldera. “Por que acham que vieram de lá para cá?”, indaga Domingos Folli, botânico que antecedeu Siqueira no herbário, com a autoridade de quem fez 6.800 coletas. “Podem ter ido daqui para lá.” Pode ter ocorrido, claro, um fluxo de mão dupla. As sementes das árvores podem ter sido transportadas pelo vento, pela chuva, pelos rios ou pelos animais que circulavam nas áreas de comunicação entre florestas antes possivelmente conectadas e, elas próprias, muito mais amplas. Ainda hoje vivem por aqui onças e outras raridades, como o gavião-real e mutuns. Uma das 380 espécies de aves já identificadas que vivem
Um dia, em meio à floresta, uma surpresa: um papagaio cantando a música da Xuxa
nessas matas, o tropeiro ou cricrió (Lipaugus vociferans), é típica da Amazônia. Lá e aqui, dificilmente é visto por ter uma plumagem que se confunde com a vegetação, mas é um dos primeiros pássaros que se põe a cantar, como se estivesse dando um alarme, ao ver pessoas pela mata. Um dia, andando pela mata, Álvaro ouviu algo ainda mais raro: papagaios cantando Ilariê-ê-ê-ê; a música da Xuxa! Ele não acreditou, mas depois soube que um bando de papagaios criados em casas tinham sido soltos ali havia poucos dias e ainda exibiam o repertório dos tempos de cativeiro. PESQUISA FAPESP 194 49
CLIMA ÚMIDO E QUENTE
CERRADOS / CAMPOS
CLIMA SECO
FLORESTA
Rondônia, Amazonas e Mato Grosso Pontos de coleta: 30 Distância: 1.250 km
Nordeste Pontos de coleta de plantas, sedimentos, solos e turfas: 36* Distância entre os pontos extremos da coleta: 1.500 km
São Paulo e Minas Gerais Pontos de coleta: 27 Distância: 650 km
Norte do Espírito Santo Pontos de coleta: 9 Distância: 20 km * Um único ponto de coleta indica mudança ambiental local (alcance de dezenas de quilômetros), que pode passar ao contexto regional (centenas ou milhares de quilômetros) em associação com os resultados obtidos nos outros pontos na região de estudo
15 A 9,5 MIL ANOS ATRÁS
9,5 A 4 MIL ANOS ATRÁS
4 MIL ANOS ATÉ O PRESENTE
As florestas predominam no Nordeste e Norte, sob provável clima quente e úmido. Os campos e cerrados se expandem no Sudeste, sob clima seco ou menos quente e úmido
Favorecidos pela expansão do clima seco, os campos e cerrados avançam no Norte e Nordeste
O predomínio do clima úmido favorece a expansão das florestas sobre os campos e cerrados
RESQUÍCIOS DO MAR
No material colhido no fundo da lagoa, Álvaro encontrou pólen dos três gêneros de árvores típicas de manguezais, indicando que há cerca de 8 mil anos um denso manguezal deve ter ocupado as margens da lagoa e dos rios que a abastecem. As análises de carbono 14, sob o cuidado de Pessenda, reiteraram essa conclusão. “Esta área já foi estuário e a água do mar deve ter chegado até aqui há no mínimo 8 mil anos”, diz Álvaro do alto do barranco da lagoa, a quase 30 metros de altura. Esqueletos calcificados de algas e esponjas marinhas retirados do fundo da lagoa – bem maiores que os grãos de pólen, com até meio milímetro de diâmetro – reforçam a conclusão de que há 10 mil anos a água dos rios próximos deve ter ser misturada com a do mar, hoje a 23 quilômetros de distância. “Os manguezais, que hoje vemos apenas ao norte, na divisa com a Bahia, devem ter desaparecido antes da ocupação humana, quando o nível do mar recuou”, diz Pessenda. Em colaboração com Marcelo Cohen, especialista em evolução de paleomanguezais da Universidade Federal do Pará, o grupo do Cena pretende conhecer os limites geográficos e as possíveis causas do desaparecimento dessa vegetação. Em um estudo anterior, Pessenda concluiu que há cerca de 40 mil anos uma floresta ocupava 50 ABRIL DE 2012
as áreas atualmente cobertas pelos manguezais na ilha do Cardoso, litoral sul paulista, porque a linha de costa estava a cerca de 100 quilômetros de onde está hoje. Por volta de 6 mil anos atrás, o mar no litoral capixaba devia estar cerca de quatro metros acima do que está hoje, concluiu o geólogo Paulo Giannini, com sua equipe do Instituto de Geociências da USP. Sua conclusão se apoia em análises de fósseis de moluscos gastrópodes chamados vermetídeos (Petaloconchus varians), que formam colônias sobre rochas acompanhando a linha da água. Giannini tem um pé em Linhares. “Há uns dois anos, Pessenda me pediu, ‘Paulo, descobre por que os campos nativos estão lá’”, diz ele. “A vegetação não é só resultado do clima; temos de ver também a influência do substrato, por exemplo, se há milhares de anos existiram lagos na região, que depois foram assoreados, conformando as áreas em que cresceram grupos específicos de plantas.” Os campos das matas do norte capixaba são áreas circulares, de 100 a 500 metros de diâmetro, que lembram uma área de pouso de naves espaciais. Podem ser diferentes entre si. Em um deles a camada de areia ocupa quase um metro antes de chegar a uma camada preta e compacta rica em metais e matéria orgânica, em outra a areia chega a quase dois metros de profundidade.
FONTE LUIZ PESSENDA/CENA-USP
O PROJETO Estudos paleoambientais interdisciplinares na costa do Espírito Santo – nº 11/00995-7 MODALIDADE Projeto Temático COORDENADOR Luiz Carlos Ruiz Pessenda – Cena/USP INVESTIMENTO R$ 1.027.868,62 (FAPESP)
INFOGRÁFICO TIAGO CIRILLO
O vaivém dos campos e florestas
Sobre esse solo pobre em nutrientes crescem espécies distintas de gramíneas, mais rasteiras em um campo, mais altas em outro, às vezes com árvores isoladas, semelhante às formas mais abertas de cerrado. Em um dos campos, alojada em uma árvore isolada, exibe-se uma orquídea de flores brancas, a Sobralia liliastrum, comum nas matas da Chapada Diamantina, sul da Bahia, e já vista nas matas da serra dos Carajás, no Pará. Os especialistas acreditam que as árvores da floresta que cerca os campos, adaptadas a um solo mais fértil, dificilmente poderiam sobreviver neste espaço pobre em nutrientes, que, além disso, permanece coberto por uma camada de água de 10 a 15 centímetros durante a época de chuvas. Uma vegetação de altura intermediária ocupa as áreas mais próximas da floresta, mas ainda ninguém arrisca dizer se os campos estão avançando sobre as matas, se estão recuando ou se simplesmente há uma oscilação anual, de acordo com a estação seca ou chuvosa. “Se o clima sazonal se mantiver”, diz Pessenda, “provavelmente as árvores de terra firme que se encontram no entorno dos campos não vão se atrever a colonizar o terreno alheio, que frequentemente se encontra encharcado. Não é o seu ambiente!”
Siqueira suspeita que os campos estejam encolhendo – e já viu muitos desaparecerem, por causa da areia fácil de ser retirada e por muitos anos bastante usada na construção de casas e prédios. “Se não houver grandes intervenções”, diz Martins, de Viçosa, “a tendência é se manterem, por causa do tipo de solo, que bloqueia o avanço das espécies florestais”. Pessenda acredita que os campos devem estar na mesma área “há pelo menos 15 mil anos”. Em 20 anos de trabalho de campo, o que mais ele tem visto são florestas comendo os campos. Foi assim em Humaitá, no sul do estado do Amazonas, que Pessenda acompanhou durante cinco anos. Nos primeiros anos ele deixava um barbante estendido marcando os limites da mata com os campos. Ao voltar, no ano seguinte, custava a encontrar o barbante, engolido pela floresta, que Campos tinha avançado um ou dois metros cercados sobre os campos (ver mapa). pela floresta Pessenda conta que teve de fazer e um bloco uma cirurgia no ombro por causa do da camada compacta esforço exigido para fazer os furos sob a areia: (os estudantes hoje o ajudam, claro), resistência mas nem pensa em parar. “Estamos indo para o sul da Bahia, em busca de sinais de manguezais e campos e matas antigas”, anuncia, enquanto planeja as próximas viagens e a ampliação do laboratório de 240 para 400 metros quadrados (eram 90 em 1990). Esse campo de estudo também está se mostrando bastante Brasil afora, fértil, e equipes do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, entre outras, quando ninguém estão refazendo paisagens de mimexe, as florestas lhares de anos atrás – e imaginando como vão se transformar daqui para estão avançando a frente – com base em análises de solo e pólen. sobre as áreas Outra indicação dos bons ventos desse campo de pesquisa: o navio de campos oceanográfico alemão Maria Merian partiu do porto de Recife em 11 de fevereiro para coletar sedimentos da foz dos rios Parnaíba e Amazonas e da costa da Guiana Francesa. Outro objetivo é reconstituir a evolução do clima da região amazônica nos últimos 2 mil anos. “Neste momento [início de março] estamos na desembocadura do rio Amazonas e já coletamos testemunhos sedimentares de excelente qualidade, além de amostras da coluna de água, e pudemos mapear o delta subaquático do rio Amazonas com uma resolução espacial simplesmente impressionante”, relata o geólogo Cristiano Chiessi, da USP, um dos pesquisadores brasileiros, diretamente do navio. “Nosso destino final é Bridgetown, Barbados, aonde devemos chegar em 11 de março.” n PESQUISA FAPESP 194 51
_ v ida no semiárido
Único mamífero instalado nas dunas do rio São Francisco, rabo-de-facho se agrupa para viver Maria Guimarães
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fotos josé wellington dos santos / ufba
Estratégias sertanejas
a caatinga junto às margens baianas do rio São Francisco o observador atento verá buracos com cerca de 15 centímetros de largura abrigados debaixo de folhas espinhudas. Um ícone do sertão, essas bromélias, as macambiras, formam bancos impenetráveis e caracterizavam o ambiente inóspito do cangaço, uma paisagem que podia se tornar proteção aos que conseguissem chamá-la de lar. É exatamente o caso ainda hoje para sertanejos de estatura muito mais diminuta, os rabos-de-facho, roedores que só vivem naquela região. O biólogo José Wellington dos Santos enfrentou os espinhos e a temperatura, que pode variar entre 15 graus Celsius (°C) à noite e 43°C no meio do dia, para entender como vivem esses pequenos mamíferos. Percebeu que famílias reunidas em boas tocas são a chave do sucesso. “E uma boa toca é protegida por vegetação espinhosa”, define o pesquisador, atualmente pós-doutorando na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ele começou a estudar o rabo-de-facho (Trinomys yonenagae) ainda durante a graduação na própria UFBA, logo depois que a espécie foi descrita em 1995, classificada sob o gênero Proechimys, e continuou ao longo do mestrado na Universidade de São Paulo e do doutorado na Universidade da Califórnia em Berkeley, concluído em 2010. O primeiro artigo resultante da tese foi publicado no ano passado no Journal of Mammalogy e descreve o primeiro caso observado de grupos sociais em roedores do gênero Trinomys, muito comum nas florestas brasileiras. O Trinomys da caatinga tem um jeito bem diferente dos parentes, um pouco mais parecidos com ratos comuns. Com suas grandes patas traseiras, quando está com pressa o rabo-de-facho se locomove aos saltos quase como um canguru. E basta um chicoteio da longa cauda, com um tufo de pelos na ponta, para mudar a direção no meio do pulo e escapar de predadores pela agilidade. E são muitos os que os veem como refeição: gatos-do-mato, corujas, cobras, teiús e cachorros-do-mato são alguns dos que visitam as dunas especialmente em busca desse pitéu que, sem a cauda, mede por volta de 16 centímetros. A cauda é mais comprida do que o corpo, as enormes orelhas parecem fora de proporção e as patas dianteiras são bem mais curtas. Em conjunto, uma aparência típica de mamíferos que habitam desertos em outras partes do mundo. Mas, sem
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1. Filhote de rabo-de-facho: pés grandes e cauda longa 2. Dunas do rio São Francisco, com mais vegetação nos vales 3. Dóceis, animais se acostumam ao manuseio dos pesquisadores 4. Macambira protege entrada de toca
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as adaptações fisiológicas que permitem a outros roedores viver em zonas áridas, Santos verificou que o rabo-de-facho precisa de estratégia para sobreviver. Comunidades solidárias
Próximo à vila baiana de Ibiraba, parte do município de Barra, na margem esquerda do São Francisco, o biólogo capturou, marcou e soltou mais de 400 animais durante o doutorado. O estudo revelou que em 75% das tocas estudadas vive mais de um adulto. Alguns deles usaram temporariamente transmissores de rádio presos a coleiras, que permitiram mapear os movimentos dos animais dentro das tocas subterrâneas. Esse método mostrou que machos e fêmeas que compartilham uma toca de fato usam praticamente o mesmo espaço dentro dela, deixando claro que funcionam como um casal unido, em vez de repartir o território. Essa vida em grupos, que podem chegar a oito adultos, além dos filhotes,
é rara em roedores silvestres, que não costumam se adaptar bem à situação típica de uma república de estudantes humanos, onde espaço e comida (e talvez parceiros sexuais) são bens coletivos. Mas nas dunas, onde um mamífero não pode sobreviver sem uma toca úmida para se esconder das temperaturas tórridas do dia e frias da noite, cavar em conjunto é uma boa estratégia. “Quando um deles começa a cavar, eles entram num frenesi de escavação”, conta Santos, que estima em mais de 15 metros a extensão de alguns sistemas de túneis. Ele descobriu também que os rabos-de-facho podem visitar colônias vizinhas e contribuir para a produção de filhotes, e a cada ano alguns se mudam para grupos onde encontrem companheiros menos aparentados. Essas tocas acabam abrigando também outros animais, como pequenos lagartos, aranhas e grilos, o que torna os rabos-de-facho importantes na manutenção do ecossistema. Os roedores também afetam
a distribuição dos araçás-de-boi, arbustos da família das goiabas cujas sementes são seu alimento predileto. Em sua tese, Santos verificou que os rabos-de-facho vivem onde há abundância dessas plantas, mas não sabe quanto disso se deve à própria ação dos animais. “Eles enterram algumas sementes perto da entrada da toca, mas ainda não estudamos quantas recuperam depois”, conta. O fato é que algumas sementes germinam, aumentando por ali a densidade dessas plantas, que somam cerca de 40% da vegetação dessa zona de dunas. “A ação dos rabos-de-facho pode ter contribuído para aumentar a vegetação, fixar a areia das dunas e criar microclimas para outros animais”, sugere, indicando áreas de pesquisa ainda em aberto. Para ele, reconhecer a heterogeneidade da paisagem também é importante para planejar a conservação desse bioma: um vale pode abrigar um patrimônio genético bem diferente de outro, com os topos das dunas funcionando como barreiras parciais. Um aspecto curioso da caatinga é que os padrões climáticos são imprevisíveis. As chuvas chegam entre novembro e abril, mas não todos os anos. Essa irregularidade impede, do ponto de vista evolutivo, que os organismos que vivem ali concentrem funções essenciais, como a reprodução, apenas em períodos mais propícios. “Assim como acontece em animais de mata atlântica, as fêmeas de rabo-de-facho estão reprodutivamente ativas o ano todo”, explica Santos. Mas os filhotes só sobrevivem na época das chuvas, quando os araçás-de-boi explodem em frutos. O biólogo resume: “Num ambiente caótico, a estratégia é não ter estratégia”. n Artigo científico
SANTOS, J.W.A. & LACEY, E.A. Burrow sharing in the desert-adapted torch-tail spiny rat, Trinomys yonenagae. Journal of Mammalogy. v. 92, n. 1, p. 3-11. 2011. pESQUISA FAPESP 194
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_ D oenças neurodegenerativas
Comunicação interrompida Bloqueio de sinal químico emitido pela versão saudável do príon pode originar terapia contra Alzheimer e tumor cerebral Ricardo Zorzetto
O
s biólogos celulares Marco Prado e Glaucia Hajj passaram a tarde de 13 de março último em uma sala escura de um palazzo gótico à margem do Grande Canal, a via de transporte mais agitada de Veneza. No Instituto Vêneto de Ciências, Letras e Artes eles ouviram por quase três horas pesquisadores estrangeiros discorrerem sobre seus trabalhos recentes associando a origem da doença de Alzheimer à interação entre o oligômero beta-amiloide, um aglomerado de fragmentos de proteína tóxico para as células cerebrais, e o príon celular, uma proteína naturalmente produzida pelo organismo que desempenha uma ação protetora no sistema nervoso central. Marco e Glaucia não se surpreenderam com o que viram. Os pesquisadores brasileiros e seus colaboradores em São Paulo e no Rio de Janeiro haviam demonstrado nos últimos anos que o príon celular (PrPC) é fundamental para o desenvolvimento saudável e a sobrevivência dos neurônios. No ano passado o grupo comprovou que o beta-amiloide impede o funcionamento adequado do PrPC, fenômeno que parece ser comum nos estágios iniciais do Alzheimer, antes que as células comecem a degradar e morrer. 54
_ abril DE 2012
Como ocorre com alguma frequência, nenhum palestrante se lembrou de mencionar as pesquisas brasileiras. Ao fim das apresentações, Marco concluiu: “Estão vendo agora o que observamos anos atrás. Em algum momento devem perceber que estão reinventando a roda”. E decidiu não se manifestar para não atrair a atenção dos grupos que atuam em instituições de pesquisa maiores e com mais experiência em Alzheimer. “Nesse caso me pareceu melhor agir como mineiro e comer pelas beiradas”, comentou o pesquisador dias depois, já de volta ao Canadá, onde dirige um laboratório na Universidade de Western Ontario. Marco e seus colegas brasileiros têm boas razões para evitar exposição no momento. Ele e a bioquímica Vilma Martins, do Hospital A. C. Camargo, em São Paulo, aguardam para os próximos meses a publicação de dois artigos importantes sobre o papel do príon celular em doenças cerebrais. Um deles representa um passo à frente das ideias discutidas em Veneza. Nesse trabalho, sobre o qual Vilma e Marco só falam sem dar detalhes, eles apresentam evidências de que interferir na comunicação entre o beta-amiloide e o PrPC pode evitar os efeitos tóxicos causados pelo oligômero, que se forma nos estágios iniciais do Alzheimer.
Belo e agressivo: astrócito, célula cerebral que se reproduz descontroladamente no glioblastoma
Biologia celular
RICCARDO CASSIANI-INGONI / SCIENCE PHOTO LIBRARY
Bioquímica
Em estudos publicados no Journal of Biological Chemistry e no Faseb Journal, eles haviam demonstrado que a sinalização celular intermediada pelo PrPC envolve a participação de outras proteínas da membrana com papel importante no Alzheimer. Os pesquisadores brasileiros foram os primeiros a investigar as proteínas que, assim como o beta-amiloide, também se ligam ao PrPC – em especial, a stress inducible protein-1 ou STI-1. Vilma estuda essa proteína desde os anos 1990, quando começou a trabalhar com o oncologista Ricardo Brentani, e foi a primeira a produzir sua versão sintética. No início deste ano, ela e Marco obtiveram nos Estados Unidos a patente provisória para utilizá-la como um neuroprotetor. Em experimentos feitos nesses 15 anos, Vilma e sua equipe demonstraram que a STI-1 é uma companheira quase inseparável do príon celular. Produzida por outra célula cerebral – o astrócito –, ela viaja no meio extracelular até a superfície do neurônio, onde adere à proteína príon celular e dispara comandos químicos que favorecem a sobrevivência da célula. Vilma tenta agora usá-la para bloquear o efeito tóxico do beta-amiloide.
Reunidos aos de outros grupos, esses resultados geram uma compreensão mais completa e complexa de como se instalam e evoluem as doenças neurodegenerativas associadas ao mau funcionamento da proteína príon celular. O grupo brasileiro acredita que o PrPC atua como um gerenciador de informações fora da célula. Moléculas do meio extracelular, como o beta-amiloide ou a STI-1, conectam-se ao PrPC formando um complexo que desliza pela membrana da célula como uma balsa e interage com outras proteínas da superfície do neurônio: os receptores celulares, responsáveis por fazer a informação do meio externo alcançar o interior da célula. Dependendo de quem se associa ao PrPC, os efeitos podem ser protetores ou tóxicos. Apresentada há cinco anos pelos brasileiros, essa visão abre também caminho para a busca de novas estratégias de combater doenças como o Alzheimer e as encefalopatias espongiformes – entre elas, o mal da vaca louca e sua versão humana, as diferentes formas da doença de Creutzfeldt-Jakob, causadas por uma versão deformada do PrPC. Sob a coordenação de Rafael Linden, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Vilma, Marco, Iván Izquierdo, da Pontifícia Universidade
Neurociência
pESQUISA FAPESP 194
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Soluções possíveis Pesquisadores tentam interromper comunicação mediada pelo príon celular glioblastoma
o que ocorre Produção de STI-1 estimula
Astrócito
proliferação celular
STI-1
ALZHEIMER
Príon celular
o que ocorre Beta-amiloide adere ao
Príon celular
príon celular
degeneração
beta-amiloide
e bloqueia a sinalização protetora
Católica do Rio Grande do Sul, e Ricardo Brentani, que era presidente da fundação mantenedora do A. C. Camargo e diretor-presidente da FAPESP quando morreu em novembro passado, fizeram a mais ampla revisão do papel da proteína príon celular. No trabalho, publicado em 2008 na Physiological Reviews, eles sugerem que a morte dos neurônios nas doenças causadas por príons não se deve só ao efeito tóxico do PrPC deformado. Ela também se daria pela perda da proteção proporcionada pelo príon celular. O que se imaginou para essas enfermidades, sugerem os brasileiros, parece ser aplicável aos estágios iniciais do Alzheimer. O elo entre as doenças causadas por príons e a enfermidade que apaga a memória é que, em ambos os casos, a sinalização do PrPC está truncada.Mas por razões diferentes. No primeiro caso, por um defeito no próprio PrPC. No segundo, por sua ação ser bloqueada pelo beta-amiloide. “Não estamos afirmando que a toxicidade não mata a célula”, diz Vilma. “Acreditamos que, além desse processo, a célula morre também porque o príon celular deixa de protegê-la.” O funcionamento adequado do príon celular é essencial para manter os neu56
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Neurônio
rônios vivos. Na última década,Vilma, Marco, Brentani, Rafael e outros pesquisadores brasileiros acumularam diversas evidências de que, no cérebro, ele desencadeia reações químicas que protegem as células da morte programada e estimulam o desenvolvimento de neuritos, as ramificações que conectam os neurônios entre si. Além disso, o príon celular é fundamental para a formação da memória (ver Pesquisa FAPESP no 148). envelhecimento
Mas os efeitos benéficos só são observados no organismo saudável. À medida que envelhece, o corpo passa a processar de modo anormal uma proteína que atravessa a membrana dos neurônios, a proteína precursora do amiloide. O resultado é o acúmulo de fragmentos (peptídeos) que aderem uns aos outros e formam pequenos aglomerados, os oligômeros beta-amiloides. Em 2009 o grupo de Stephen Strittmatter, da Universidade Yale, Estados Unidos, um dos palestrantes em Veneza, demonstrou que esses aglomerados se ligam ao príon celular. Essa descoberta causou grande impacto por estabelecer uma conexão inesperada entre as doen-
ças causadas por príons, assustadoras, mas raras em seres humanos, e o Alzheimer, a enfermidade neurodegenerativa mais comum em idosos. Apresentado na Nature, o trabalho deu novo fôlego a laboratórios da Europa e dos Estados Unidos que investigavam a ação infecciosa dos príons e ficaram à míngua depois da crise econômica de 2008. Mas não respondia algo importante: o que acontece depois que o beta-amiloide se liga ao príon celular? Em testes em cooperação com Fernanda De Felice e Sergio Ferreira, pesquisadores da UFRJ que estudam as origens
O Projeto Mecanismos associados à função da proteína príon e seu ligante STI-1/Hop: abordagens terapêuticas – nº 2009/14027-2 modalidade Projeto Temático Coordenadora Vilma Regina Martins – Hospital A.C. Camargo investimento R$ 1.700.557,50 (FAPESP)
Tratamento proposto Usar peptídeo derivado da STI-1, que se liga ao príon
Astrócito
celular, sem acionar a multiplicação dos astrócitos
Príon celular
STI-1
Peptídeo
Tratamento proposto Usar molécula que
beta-amiloide
compete com o
Príon celular
beta-amiloide para impedir que se conecte
Neurônio
ao príon celular
do Alzheimer, as equipes de Marco e Vilma encontraram a resposta. O beta-amiloide corrompe a transmissão de informações que vêm de fora para dentro do neurônio. Ao aderir ao PrPC, o beta-amiloide impede que ele seja tragado pelo neurônio, em um mergulho temporário que orienta a célula a se ramificar. Fabiana Caetano, Flavio Beraldo e Glaucia mos1 Neurônios saudáveis, tram em 2011 no Jourcom sinapses nal of Neurochemistry preservadas que, sem o mergulho, os efeitos protetores 2 Neurônios afetados pelo podem desaparecer. fotos 1. e 2. glaucia hajj/hospital a.c.camargo infográfico tiago cirillo
beta-amiloide (em vermelho)
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A constatação de que o beta-amiloide trava o PrPC no exterior da membrana reforçou a hipótese de que, no Alzheimer, sobretudo nos estágios iniciais, o efeito tóxico dos oligômeros é antecedido pela alteração de funcionamento do príon celular. Outros trabalhos apoiam essa ideia. Em artigo a ser publicado em julho na revista Prion, Nigel Hooper, da Universidade Leeds, Inglaterra, outro dos que estavam em Veneza, afirma ter detectado níveis mais baixos de PrPC no cérebro de pessoas com Alzheimer – mas apenas nos casos de Alzheimer espontâneo, de origem não hereditária. 2
“A perda ou corrupção de função não é o único fator, mas é importante”, explica Vilma. Recentemente ela e Marco iniciaram um estudo para ver a eficácia da STI-1 em inibir a adesão do beta-amiloide ao príon celular em animais. Eles pretendem tratar camundongos geneticamente alterados para apresentar sintomas do Alzheimer e verificar se é possível conter o avanço da doença. Vilma também explora a interação entre a STI-1 e o príon celular para tentar combater outra enfermidade grave do sistema nervoso central: o glioblastoma. Esse tumor cerebral agressivo, que leva à morte em meses, resulta da proliferação descontrolada de células derivadas dos astrócitos, que nutrem os neurônios e defendem o sistema nervoso central contra microrganismos invasores. Os astrócitos lançam no meio extracelular essa proteína acionadora do príon, que age tanto sobre os neurônios quanto sobre os próprios astrócitos. Enquanto promove diferenciação nos neurônios e a autorrenovação de células precursoras neuronais, observada por Tiago Santos, do A.C. Camargo, e Marilene Lopes, da Universidade de São Paulo, a STI-1 bloqueia a reprodução dos astrócitos no cérebro saudável. No laboratório do bioquímico Vivaldo Moura Neto na UFRJ, o médico Rafael Erlich observou que células de glioblastoma também secretam STI-1. Nesse caso, porém, a proteína dispara a proliferação das células tumorais. A estratégia imaginada pelo grupo é bloquear a atividade do príon celular, sem o qual a célula não prolifera, por meio de uma competição química. Desta vez, porém, sem usar a STI-1, que está na origem do problema. Para contornar essa dificuldade, eles optaram por usar um fragmento sintético dessa proteína que adere ao PrPC sem o ativar. Patenteado por Vilma quando trabalhava no Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, o peptídeo já passou por um teste com camundongos com glioblastoma humano. Os resultados são promissores. O peptídeo retardou o crescimento do tumor e preservou a capacidade cognitiva dos animais, alterada nas fases avançadas da doença. Por ora, no entanto, não é possível prever se essas estratégias permitirão chegar a um medicamento. “O que funciona com animais”, lembra Vilma, “nem sempre produz os mesmos efeitos nas pessoas”. n pESQUISA FAPESP 194
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“Sem os estudos com as células de animais não saberíamos por onde começar o trabalho com as células humanas” — Jennifer Nichols
“Não é uma única célula que perpetua a pluripotência. Isso é obtido por um mix complexo de células” — Joshua Brickman
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_ E NTREVISTA: JOSHUA BRICKMAN E JENNIFER NICHOLS
O enigma da pluripotência
Biologia celular
Especialistas falam das dificuldades de controlar o processo de diferenciação das células-tronco embrionárias humanas Marcos Pivetta e Ricardo Zorzetto
genética
fotos eduardo cesar
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s células-tronco, capazes de originar diferentes tecidos do organismo, conquistaram o interesse dos cientistas e da população por representarem uma promessa de tratamento para problemas de saúde ainda sem uma terapia satisfatória. Testes conduzidos em diferentes países nos últimos anos confirmam a versatilidade dessas células – em especial, das células-tronco embrionárias (CTEs), extraídas do embrião dias após sua formação – e contribuem para o surgimento de uma onda de otimismo que, por ora, ainda parece exagerado. Quanto mais se estudam essas células, mais se descobre que ainda há muito a avançar antes de usá-las em novas terapias. “Teria receio de injetar células-tronco embrionárias em meu corpo e mais receio ainda de usar as células-tronco de pluripotência induzida (iPS), sobre as quais pairam muitas questões sem resposta”, diz Joshua Brickman, do Centro de Medicina Regenerativa da Universidade de Edimburgo, na Escócia. “Temos de continuar os estudos”, afirma ele. Brickman esteve no Brasil em março cuidando dos acertos da quarta edição do curso “Embryonic stem cells as a model system for embryonic development”, que deverá ocorrer em 2013 no Centro de Estudos do Genoma Humano da USP.
Com uma parte teórica e outra prática, o curso reúne as maiores autoridades do mundo no estudo de células-tronco com pesquisadores em início de carreira durante três semanas. Brickman e Jennifer Nichols, pesquisadora do Centro de Estudos sobre Células-tronco da Universidade Cambridge, Inglaterra, o desenvolveram sete anos atrás para treinar jovens pesquisadores da América Latina. Itinerante em suas primeiras edições, o curso já foi ministrado no Chile, no México e no Brasil. Agora Brickman e Jennifer pretendem estabelecer uma base permanente em um desses países. A seguir, leia os principais trechos da entrevista em que falaram à Pesquisa FAPESP sobre o curso e sobre as questões em aberto a respeito do funcionamento das CTEs. Por que não sabemos como manter a pluripotência das CTEs no laboratório? Joshua - A pluripotência é uma definição baseada nas funções das células. Nós não sabemos realmente o que ela é. Meu laboratório trabalha com a questão da pluripotência versus totipotência. Sabemos que algumas células do embrião vão originar todo tipo de célula. O problema é que não sabemos quais células exibem essa propriedade até fazermos um experimento. Agora temos pESQUISA FAPESP 194
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marcadores de CTEs. Mas, mesmo com eles, não podemos ter certeza de que as células que pegamos são CTEs. A população de CTEs é, portanto, heterogênea? Joshua - Foi descoberto algo interessante recentemente. Você pega uma placa de Petri com CTEs, escolhe uma célula, testa-a para plutipotência e descobre que ela não faz algo. Não pode se tornar um embrião. Então, você clona essa célula in vitro e obtém outra população de células heterogêneas. De novo, você pega uma célula dessa nova população e descobre que ela pode gerar linhagens embrionárias. A heterogeneidade de uma população de células parece ser importante para que haja CTEs pluripotentes. Não é uma única célula que perpetua a pluripotência. Isso é obtido por um mix complexo de células. A coisa interessante sobre os mamíferos é que você pega uma população de células do embrião em estágio bem inicial e, se corta as células ao meio, consegue dois embriões normais. As células são muito reguladoras. Elas podem regenerar as células que necessitam ter a seu lado no embrião, regenerar esse nicho. Num certo sentido, fazemos
“Acho que as áreas em que vamos usar as CTEs são aquelas em que hoje já há protocolos com células adultas, como leucemias e diabetes”, diz Joshua
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um miniexperimento evolutivo quando selecionamos uma célula que pode gerar uma linhagem de células embrionárias. Jennifer - Discutimos essa questão com pessoas que trabalham com pluripotência. Elas dizem que as CTEs precisam ser homogêneas, têm de estar todas na mesma condição. O sonho seria que todas as células da população de CTEs fossem pluripotentes e se pudesse pegar qualquer uma delas. Mas não concordamos com essa visão. Joshua - Ainda prevalece a mentalidade de que há uma receita de bolo com a qual se criariam CTEs totalmente iguais, que poderiam se transformar em todos os tecidos. Não há só um tipo de CTEs, mas sim múltiplos. As pessoas que estudam a natureza das CTEs já sabem disso, mas muita gente que está, por exemplo, tentando usar CTEs para produzir células beta do pâncreas para fabricar insulina não sabe. Jennifer - As CTEs são um modelo de desenvolvimento dos mamíferos. Achamos que os biólogos que melhor entendem as CTEs são os evolucionistas. Se você não entende o desenvolvimento do embrião, não consegue pensar de maneira correta. Muitos dos experimentos com CTEs são feitos com células de ratos ou camundongos. Por que é mais difícil trabalhar com CTEs humanas? Jennifer - Porque a embriologia delas é distinta. As células humanas estão num estágio mais avançado de desenvolvimento que as de camundongo e, por isso, não conseguimos explorar suas potencialidades. Voltamos à questão do desenvolvimento. Quando as primeiras CTEs humanas foram obtidas em laboratório, percebeu-se que precisavam de condições diferentes. Eram mais difíceis de cultivar do que as de camundongos. Na verdade, elas eram um tecido diferente. A expressão de marcadores era diferente. Hoje sabemos que as CTEs humanas estão mais próximas das chamadas células-tronco do epiblasto [que vão gerar a pele e o tecido nervoso] derivadas após a implantação do embrião nos camundongos. As CTEs humanas estão no estágio denominado primed pluripotency (não diferenciadas, mas encaminhadas para esse processo), enquanto as CTEs de camundongos estão no de pluripotência naïve (mais imatura). Joshua – Provavelmente é uma questão de tempo até termos CTEs humanas com
as quais poderemos trabalhar como fazemos com as de camundongos. Jennifer - Há muito trabalho sendo feito. Mas, no caso das CTEs humanas, é possível que não se consiga nunca deixá-las no mesmo estágio das CTEs de camundongo. Joshua - Não sabemos se isso é possível. Ainda precisamos fazer experimentos. Houve tentativas de fazer isso, mas tiveram um sucesso limitado. Seria o caso de a pesquisa se concentrar mais em CTEs humanas e menos nas de camundongos? Jennifer - Sem os estudos com as células de animais não saberíamos nem por onde começar o trabalho com as células humanas. Não saberíamos que seria possível obter todas essas linhagens num meio de cultura. Joshua - Para fazer genética de verdade, é preciso ter células humanas como as dos camundongos, capazes de serem manipuladas. As células dos camundongos podem sofrer alterações genéticas específicas e gerar linhagens celulares, a partir das quais são obtidas múltiplas gerações com essas alterações. Esses experimentos são vitais. Podemos modificar uma célula de camundongo. Você pode transformar CTEs de camundongos em células do epiblasto, que são muito mais próximas das CTEs humanas. Essa abordagem pode ser muito produtiva. Não dá para manipular dessa forma as CTEs humanas. É preciso trabalhar tanto com as CTEs humanas como as de camundongos. Não sabemos de onde virá a inovação. Vocês acreditam que a imprensa e os próprios cientistas criaram expectativas exageradas sobre as possibilidades terapêuticas das CTEs, mais ou menos como ocorreu com a questão do sequenciamento do genoma humano? Joshua - É preciso fazer uma distinção. Temos terapias baseadas no transplante de células-tronco [adultas, extraídas da medula dos ossos] há 30 anos. Mas eu concordo que houve um exagero. Os cientistas são os responsáveis por promover uma expectativa realista sobre as pesquisas. Mas muitos estão mais preocupados em conseguir atenção da imprensa e financiamento para suas pesquisas com base em promessas. No Reino Unido há uma linha de financiamento no Conselho de Pesquisa Médica que, inicialmente, estimulava testes clínicos cinco anos depois
University of Wisconsin / Madison
da pesquisa básica. Isso é irreal e também ocorre em outras áreas. Mas há esperança em alguns lugares. Um inglês, Peter Coffey, está usando CTEs para tratar degeneração macular. Isso é muito excitante. Mas vamos curar Parkinson ou distrofia muscular amanhã? De jeito nenhum. Temos de ser realistas. Esses são objetivos para 20 ou 30 anos. E pode ser que toda a pesquisa com CTEs não leve a nenhuma terapia celular. Mas talvez possamos identificar fatores que as células produzem e que podem ser usados para estimular o reparo endógeno do organismo, algo muito mais excitante. Acho que as áreas em que vamos usar CTEs são aquelas em que hoje já se têm protocolos usando células adultas, como leucemia ou diabetes do tipo 1 [transplantes de células do pâncreas de cadáveres]. Isso não vai acontecer amanhã. Talvez daqui a 5 ou 10 anos. Não vamos curar todas as doenças com CTEs. E as pesquisas com células-tronco de pluripotência induzida (iPS)? Joshua - Cinco ou seis anos atrás, muita gente pulou da pesquisa com CTEs para iPS. Hoje vejo que eles estão fazendo as mesmas perguntas que eu. Eles apenas mudaram o modelo de estudo. As iPS não são a mesma coisa que as CTEs. São feitas muitas mudanças nas células adultas para que virem iPS, para que regridam a esse estágio. Quando células diferenciadas a partir de iPs são colocadas em modelos animais, há uma chance maior de gerar tumores. Não vamos esquecer que o câncer é uma transformação e as iPS são células geneticamente transformadas. As CTEs podem ter um fenótipo similar ao de um câncer, mas são geneticamente normais. Uma célula iPS não é mais geneticamente normal, foi transformada. Teria receio de injetar células-tronco embrionárias em meu corpo e mais receio ainda de usar as iPS, sobre as quais pairam muitas questões sem resposta Por isso é importante não parar as pesquisas com CTEs só porque as células iPS estão disponíveis. Jennifer - Voltamos à questão de como diferenciar as CTEs humanas. As iPS não são tão boas quanto se gostaria que fossem. Mas acho que representam uma linha de pesquisa fantástica. Por que vocês gostariam de estabelecer uma base permanente do curso sobre CTEs no Brasil?
CTEs humanas: mais difíceis de manipular do que as células de camundongos
Joshua - Eu e Jennifer fazemos esse curso, baseado nos moldes do que é dado em Cold Spring Harbor [nos Estados Unidos], há sete anos, sempre em lugares diferentes. Mas agora temos interesse em criar uma base permanente. Assim, seria mais fácil administrá-lo. Para trazer os pesquisadores de fora, precisamos de estrutura e investimento. São Paulo tem os recursos, as instalações e as pessoas para fazer isso. Só se pode fazer o curso num lugar onde há pesquisa, pois é uma relação de mão dupla. A pesquisa ajuda o curso e o curso ajuda a pesquisa. Não há muitos lugares assim. Jennifer - As pessoas temem que, se montarem uma estrutura para o curso e as coisas derem errado, não saberão lidar com isso. Digo o seguinte: sim, as coisas dão errado. Mas você vai lá e conserta. As coisas não são tão complicadas assim. Além de nós dois, que iremos visitar o lugar do curso ao menos a cada dois anos, vamos trazer outras pessoas. E poderemos ser contatados a qualquer momento pelos alunos. Joshua - Tivemos uma reunião com alunos da professora Mayana Zatz, do
Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, e o nível de entusiasmo é impressionante. Na Europa, não se vê isso. Não se pode esquecer que, além do Brasil, alunos da América Latina e da Europa vão participar do curso. Esses alunos acabam criando uma rede de colaboração internacional, visitam-se mutuamente e serão os chefes de departamento nas universidades daqui a algum tempo. Vamos treinar não apenas alunos de doutorado, mas também jovens professores. O que vocês ensinam no curso? A diferenciar CTEs? Jennifer - Essa é uma parte pequena do curso. O mais importante é que os alunos estabeleçam conexões, que eles saibam o que é possível fazer. Claro que tentamos ensinar coisas práticas. Mas eles não se tornarão perfeitos nessas tarefas. Eles irão fazer as coisas, algo dará errado, mas eles podem contar com seus contatos do curso para resolver os problemas. Gostamos de imaginar que ensinamos os alunos a pensar criticamente. Eles são alvo de bullying nosso, do Josh. n pESQUISA FAPESP 194
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As linguagens da psicose Abordagem matemática evidencia as diferenças entre os discursos de quem tem mania ou esquizofrenia
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ara os psiquiatras e para a maioria das pessoas, é relativamente fácil diferenciar uma pessoa com psicose de quem não apresentou nenhum distúrbio mental já diagnosticado: as do primeiro grupo relatam delírios e alucinações e por vezes se apresentam como messias que vão salvar o mundo. Porém, diferenciar os dois tipos de psicose – mania e esquizofrenia – já não é tão simples e exige um bocado de experiência pessoal, conhecimento e intuição dos especialistas. Uma abordagem matemática desenvolvida no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) talvez facilite essa diferenciação, fundamental para estabelecer os tratamentos mais adequados para cada enfermidade, ao avaliar de modo quantitativo as diferenças nas estruturas de linguagem verbal adotadas por quem tem mania ou esquizofrenia. A estratégia de análise – com base na teoria dos grafos, que representou as palavras como pontos e a sequência entre elas nas frases por setas – indicou que as pessoas com mania são muito mais prolixas e repetitivas do que as com esquizofrenia, geralmente lacônicas e centradas em um único assunto, sem deixar o pensamento viajar. “A recorrência é uma marca do discurso do paciente com mania, que conta três ou quatro vezes a mesma coisa, enquanto aquele com esquizofrenia fala objetivamente o que tem para falar, sem se desviar, e tem um discurso po-
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bre em sentidos”, diz a psiquiatra Natália Mota, pesquisadora do instituto. “Em cada grupo”, diz Sidarta Ribeiro, diretor do instituto, “o número de palavras, a estrutura da linguagem e outros indicadores são completamente distintos”. Eles acreditam que conseguiram dar os primeiros passos rumo a uma forma objetiva de diferenciar as duas formas de psicose, do mesmo modo que um hemograma é usado para atestar uma doença infecciosa, desde que os próximos testes, com uma amostra maior de participantes, reforcem a consistência dessa abordagem e os médicos consintam em trabalhar com um assistente desse tipo. Os testes comparativos descritos em um artigo recém-publicado na revista PLoS One indicaram que essa nova abordagem proporciona taxas de acerto da ordem de 93% no diagnóstico, enquanto as escalas psicométricas hoje em uso, com base em questionários de avaliação de sintomas, chegam a apenas 67%. “São métodos complementares”, diz Natália. “As escalas psicométricas e a experiência dos médicos continuam indispensáveis.” “O resultado é bastante simples, mesmo para quem não entende matemática”, diz o físico Mauro Copelli, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que participou desse trabalho. O discurso das pessoas com mania se mostra como um emaranhado de pontos e linhas, enquanto o das com esquizofrenia se apresenta como uma reta, com poucos pontos. A teoria dos grafos, que levou a
fonte ice foto léo ramos
Como o estudo foi feito: os entrevistados relatavam um sonho (acima) e a entrevistadora convertia as palavras mais importantes em pontos e as frases em setas (ao lado) para examinar a estrutura da linguagem (ver resultados na página seguinte)
esses diagramas, tem sido usada há séculos para examinar as trajetórias pelas quais um viajante poderia visitar todas as cidades de uma região, por exemplo. Mais recentemente, tem servido para otimizar o tráfego aéreo, considerando os aeroportos como um conjunto de pontos ou nós conectados entre si por meio dos aviões. “Na primeira vez que rodei o programa de grafos, as diferenças de linguagem saltaram aos olhos”, conta Natália. Em 2007, ao terminar o curso de medicina e começar a residência médica em psiquiatria no hospital da UFRN, Natália notava que muitos diagnósticos diferenciais de mania e de esquizofrenia dependiam da experiência pessoal e de julgamentos subjetivos dos médicos – os que trabalhavam mais com pacientes com esquizofrenia tendiam a encontrar mais casos de esquizofrenia e menos de mania – e muitas vezes não havia consenso. Já se sabia que as pessoas com mania falam mais e se desviam do tópico central muito mais facilmente que as com esquizofrenia, mas isso lhe pareceu genérico demais. Em um congresso científico em 2008 em Fortaleza ela conversou com Copelli, que já colaborava com Ribeiro e a incentivou a trabalhar com grafos. No início ela resistiu, por causa da pouca familiaridade com matemática, mas logo depois a nova teoria lhe pareceu simples e prática. Para levar o trabalho adiante, ela gravou e, com a ajuda de Nathália Lemos e Ana Cardina Pieretti, transcreveu as entrevistas com 24 pessoas
Neurociência
Psiquiatria
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Resultado: as pessoas com esquizofrenia apresentaram um discurso mais conciso e as com mania, mais prolixo (os pontos azuis se referem ao tema central, sonho recente, e os vermelhos a qualquer outro assunto)
(oito com mania, oito com esquizofrenia e oito sem qualquer distúrbio mental diagnosticado), a quem pedia para relatar um sonho; qualquer comentário fora desse tema era considerado um voo da imaginação, bastante comum entre as pessoas com mania. “Já na transcrição, os relatos dos pacientes com mania eram claramente maiores que os com esquizofrenia”, diz. Em seguida, ela eliminou elementos menos importantes como artigos e preposições, dividiu a frase em sujeito, verbo e objetos, representados por pontos ou nós, enquanto a sequência entre elas na frase era representada por setas, unindo dois nós, e assinalou as que não se referiam ao tema central do relato, ou seja, o sonho recente que ela pedira para os entrevistados contarem, e marcavam um desvio do pensamento, comum entre as pessoas com mania. Um programa específico para grafos baixado de graça na internet indicava as características relevantes para análise – ou atributos – e representava as principais diferenças de discurso entre os participantes, como quantidades de nós, extensão e densidade das conexões entre os pontos, recorrência, prolixidade (ou logorreia) e desvio do tópico central. “É supersimples”, assegura Natália. Nas validações e análises dos resultados, ela contou também com a colaboração de 64
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A prolixidade das pessoas com mania resulta de um discurso que volta sempre ao mesmo tópico
Osame Kinouchi, da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, e Guillermo Cecchi, do Centro de Biologia Computacional da IBM, Estados Unidos. Resultado: as pessoas com mania obtiveram uma pontuação maior que as com esquizofrenia em quase todos os itens avaliados. “A logorreia típica de pacientes com mania não resulta só do excesso de palavras, mas de um discurso que volta sempre ao mesmo tópico, em comparação com o grupo com esquizofrenia”, ela observou. Curiosamente, os participantes do grupo-controle, sem distúrbio mental diagnosticado, apresentaram estruturas discursivas de dois tipos, ora redundantes como os partici-
pantes com mania, ora enxutas como os com esquizofrenia, refletindo as diferenças entre suas personalidades ou a motivação para, naquele momento, falar mais ou menos. “A patologia define o discurso, não é nenhuma novidade”, diz ela. “Os psiquiatras são treinados para reconhecer essas diferenças, mas dificilmente poderão dizer que a recorrência de um paciente com mania está 28% menor, por mais experientes que sejam.” “O ambiente interdisciplinar do instituto foi essencial para realizar esse estudo, porque eu estava todo dia trocando ideias com gente de outras áreas. Nivaldo Vasconcelos, um engenheiro de computação, me ajudou muito”, diz ela. O Instituto do Cérebro, em funcionamento desde 2007, conta atualmente com 13 professores, 22 estudantes de graduação e 42 de pós, 8 pós-doutorandos e 30 técnicos. “Vencidas as dificuldades iniciais, conseguimos formar um grupo de pesquisadores jovens e talentosos”, comemora Ribeiro. “A casa em que estamos agora tem um jardim amplo, e muitas noites ficamos lá até as duas, três da manhã, falando sobre ciência e tomando chimarrão.” n Carlos Fioravanti Artigo científico MOTA, N.B. et al. Speech graphs provide a quantitative measure of thought disorder in psychosis. PLoS ONE (no prelo).
_ o bituário
Perdas na ciência
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arço foi um mês de perdas para a ciência brasileira. Três renomados pesquisado res da Universidade de São Paulo (USP) morreram. O especialista em comportamento animal Cesar Ades, professor do Instituto de Psicologia, faleceu no dia 14 em decorrência de atropelamento sofrido na cidade de São Paulo. O geógrafo Aziz Ab’Saber, ex-presidente da So ciedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), morreu em casa no dia 16. O imunolo
gista Júlio Cesar Voltarelli, um dos pioneiros das pesquisas com células-tronco no país, fale ceu no dia 21 em Blumenau (SC), após ter re cebido um transplante de fígado. Em nome do Conselho Superior da FAPESP, e em seu nome pessoal, o presidente da Fundação, Celso Lafer, expressou os sinceros sentimentos pelo faleci mento dos três pesquisadores e destacou a con tribuição que deram para o desenvolvimento da ciência no país.
Olhar amplo sobre o território
francisco emolo / jornal da usp
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asci no entremeio de um mar de morros”, escreveu Aziz Nacib Ab’Saber, em um poe ma de adolescência, prenunciando, sem saber, uma trajetória profissional que fez dele um dos mais respeitados especialistas em geo grafia física do Brasil. Poucos andaram tanto por todo o país, observando as paisagens, as pessoas e o modo de vida, quanto ele, em épocas em que as estradas eram precárias e os instrumentos de trabalho, rudimentares, quando comparados com os de hoje. De 1944, recém-formado em história e geo grafia pela Universidade de São Paulo, a 1965, “tentei conhecer o Brasil, pois não tinha di nheiro para viagens mais longas e não havia auxílio de nenhum tipo”, contou o filho de libaneses, nascido em 1924 em São Luís do Paraitinga, interior Custei muito a usar meus conhecimentos paulista, em uma longa entrevis científicos como instrumento de pressão política ta publicada no livro Cientistas do Brasil, editado pela SBPC, que ele em favor de posturas melhores para o meu país presidiu, muito depois, de 1993 a 1995. “Como eu não tinha máquina fotográfica, aprendi a desenhar as paisagens que via.” Como resultado das análises das paisagens Ab’Saber adaptou para a realidade brasileira a brasileiras, Ab’Saber, que morreu aos 87 anos, chamada teoria dos refúgios, proposta pelo zoó aprimorou o mapa dos chamados domínios mor logo Paulo Vanzolini e formulada conceitual foclimáticos do Brasil elaborado inicialmente mente pelo alemão Jürgen Haffer em 1969, para pelo geógrafo Aroldo de Azevedo, professor da explicar o recuo e expansão de florestas de acor USP de quem foi assistente. Já como professor, do com as variações do clima. Durante pelo me pESQUISA FAPESP 194
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nos três décadas essa abordagem representou a visão mais aceita para explicar vários fenômenos biológicos na porção sul do continente america no, incluindo o Brasil. Seus trabalhos atraíram o interesse também de geólogos e biólogos, que normalmente resistem a reconhecer o que os geógrafos fazem. “Confesso que custei muito a usar meus co nhecimentos científicos como instrumento de pressão política em favor de posturas melhores para o meu país e sua gente”, ele reconheceu. Mesmo aposentado da USP, não deixou de par ticipar de debates públicos e de opinar sobre os dilemas da biodiversidade e da preservação ambiental como o Código Florestal. Era um dos poucos acadêmicos a opor-se publicamente à vi são consensual da origem antropocêntrica das mudanças climáticas. n
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ndiferente ao calor intenso do verão de Ale xandria, cidade do norte do Egito, à beira do Mediterrâneo, um garoto de 13 anos observa os movimentos delicados de uma aranha em uma teia construída entre as folhas de um arbusto. Curioso, ele captura um gafanhoto e o coloca na teia, em seguida puxa o caderno e anota em detalhes o que a aranha faz com o inseto que se torna sua refeição. Nascia naquela tarde a paixão do quase adolescente Cesar Ades pelo estudo do comportamento animal ou etologia. Ades, que faleceu em 14 de março, aos 69 anos, se mudou com a família do Cairo para São Paulo aos 13 anos. Pouco depois, em 1960, começou a estudar psicologia na Universidade de São Paulo (USP) e assim que possível mer gulhou no estudo da psicologia dos animais. Como professor, pesquisador e coordenador do laboratório de etologia do Instituto de Psi cologia da USP, desenvolveu estudos pioneiros e se tornou uma das grandes autoridades na cionais nessa área. Por meio de experimentos em laboratório, Ades mostrou que as aranhas são capazes de aprender e aperfeiçoar instintos básicos como os ligados à caça e à construção da teia, vistos geralmente como uma habilidade inata e inal terável. “Certamente, os instintos funcionam como uma espécie de pré-programação da men te”, ele afirmou ao editor de ciência de Pesquisa FAPESP, Ricardo Zorzetto, em uma reportagem publicada em novembro de 2004. Em março 66
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de 2003 a revista publi cara uma reportagem so bre a forma de comunica ção própria dos macacos muriquis, que Ades e sua equipe haviam caracterizado, e em janeiro de 2006 apresentou Sofia, uma cachorra vira-lata dotada de uma notável capacidade de aprendi zagem, como diferenciar frases simples e usar teclas para se comunicar com as pessoas, cujo treinamento Ades havia acompanhado. Ades foi vice-diretor e diretor do Instituto de Psicologia, assumiu uma série de outras funções administrativas na universidade, como a direção do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP) até fevereiro deste ano, mas não tinha soleni dade e tratava com cordialidade e simpatia os colegas e os funcionários com quem convivia. Era atencioso também com os estudantes, com quem aparece sorrindo em muitas fotos. “Ele me convenceu de que ideias eram mais impor tantes do que títulos”, observou Eduardo Bessa, um de seus ex-estudantes na disciplina de pós -graduação sobre comportamento animal, agora professor na Universidade do Estado de Mato Grosso e também especialista em etologia, em seu blog, tão logo soube de sua morte. Ades caminhava na avenida Paulista quando foi atropelado no dia 8 de março e levado para o Hospital das Clínicas da USP. Passou por várias cirurgias, mas seu estado era grave e ele faleceu seis dias depois. Deixou duas filhas. n
marcos santos / usp imagens
O delicado observador dos animais
Os instintos funcionam como uma espécie de pré-programação da mente
Coragem a serviço das células-tronco
eduardo cesar
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usadia e determinação eram traços mar cantes da personalidade do imunologista Júlio Cesar Voltarelli, professor titular do Departamento de Clínica Médica da Facul dade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da Universidade de São Paulo (USP), que faleceu, aos 63 anos, no dia 21 de março. Um dos pionei ros dos estudos com células-tronco no Brasil, Voltarelli obteve resultados promissores em experimentos clínicos, com seres humanos, que testaram o uso desse tipo de célula para tratar doenças autoimunes, como esclerose múltipla e lúpus, e diabetes do tipo 1. “Voltarelli foi pioneiro ao mostrar a possi bilidade do uso de transplantes autólogos (do próprio paciente) de células-tronco como uma forma de realizar o tratamento de uma doença imunológica, procedimento que pode ser aper feiçoado e aplicado em um grande número de situações. Ele teve a coragem de resolver todos os aspectos, que são complicados, para reali zar um teste com humanos”, disse à Agência FAPESP Marco Antônio Zago, pró-reitor de Pesquisa da USP e coor denador do Centro de Te rapia Celular da FMRP, um dos Centros de Pes O imunologista foi pioneiro ao mostrar a quisa, Inovação e Difu possibilidade do uso de transplantes autólogos são (Cepid) financiados pela FAPESP, onde Vol (do próprio paciente) de células-tronco tarelli era um dos princi pais pesquisadores. “Ele deixa um legado cientí fico muito importante”, diz Mayana Zatz, coorde nadora de outro Cepid, o O imunologista tinha diabetes e hepatite C. Centro de Estudos do Genoma Humano. Formado em medicina pela FMRP-USP em Essa segunda condição lhe causou sérios pro 1972, o imunologista fez residência, mestrado blemas hepáticos, que o obrigaram a recorrer e doutorado nessa mesma faculdade. Realizou a um transplante de fígado. O procedimento também três pós-doutorados nos Estados Uni foi realizado no dia 6 de março no Hospital dos, na Universidade da Califórnia em San Fran Santa Isabel de Blumenau, cidade do interior cisco (1985-86), no Fred Hutchinson Cancer Re de Santa Catarina, onde a fila para obter o search Center em Seattle (1987-88) e no Scripps órgão era menor do que em São Paulo. Ainda Research Institute em San Diego (1999-2000). internado na instituição de saúde, não resistiu Apesar do currículo invejável e da capacidade de e morreu depois de 15 dias. Era casado com a liderança, sabia ouvir opiniões contrárias. “Em endocrinologista Ângela Leal, professora do momento algum se colocava como superior e ar departamento de medicina da Universidade gumentava e aceitava contra-argumentações de Federal de São Carlos (UFSCar), que também terceiros com a maior desenvoltura”, escreveu participava de suas pesquisas. O casal teve duas em seu blog pessoal o endocrinologista Carlos filhas. O enterro foi em Cedral, cidade paulista Eduardo Barra Couri, pesquisador da FMRP que da região de São José do Rio Preto e terra natal do pesquisador. n participava dos trabalhos de Voltarelli. pESQUISA FAPESP 194
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O nascimento dos superburacos negros Novo modelo ajuda a explicar como surgiram esses colossos que habitam o centro das galáxias Salvador Nogueira
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raticamente toda galáxia abriga, em seu coração, um gigantesco buraco negro, com milhões a bilhões de vezes a massa do Sol. Nenhum objeto astrofísico conhecido pode originar uma aberração dessas, de forma que o segredo de sua origem se perde na aurora do Universo. Agora um novo modelo concebido por pesquisadores brasileiros pode ajudar a explicar o aparecimento e a evolução de criaturas tão importantes quanto misteriosas do zoológico cósmico. Não é difícil fabricar um buraco negro qualquer. Toda estrela com massa suficientemente elevada, ao esgotar seu combustível, implode sob seu próprio peso e se torna um. Trata-se de um objeto cuja gravidade é tão intensa que nada pode escapar de sua superfície, nem a luz. Acontece que as estrelas de maior massa conhecidas hoje têm cerca de 150 vezes a massa do Sol. Antes de virar um buraco negro, estrelas desse tipo – as gigantes azuis – explodem na forma de supernova e perdem boa parte de sua massa original. Na melhor das hipóteses, sobra um buraco negro com algumas dezenas de massas solares. Como chegar aos milhões de sóis dos buracos negros no centro das galáxias? Para os astrofísicos Eduardo dos Santos Pereira e Oswaldo Miranda, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em São José dos Campos, no interior paulista, circunstâncias especiais no passado cósmico teriam permitido o
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surgimento desses colossos. Em primeiro lugar, nos primórdios o Universo possibilitava a formação de estrelas bem maiores do que as de hoje. Essas estrelas de massa muito elevada seriam perfeitamente capazes de gerar as sementes dos atuais glutões galácticos, que, em bilhões de anos, aumentariam de massa engolindo objetos que caíssem em seu crescente campo gravitacional. Esse processo conhecido como acreção já era mais ou menos visto como consenso entre os astrofísicos. Contudo, ele sempre foi usado com alguma arbitrariedade. “A questão do crescimento dos buracos por acreção sempre foi tratada de forma meio ad hoc”, diz Miranda. “Os pesquisadores determinam uma taxa de acreção de massa e a ajustam para atingir a massa que os buracos negros teriam de ter no presente.” O grande salto do trabalho, publicado no final de 2011, foi demonstrar que é possível explicar o surgimento dos buracos negros de massa muito elevada a partir da taxa de formação estelar cósmica – um número que descreve quantas estrelas nascem, em média, a cada momento da vida do Universo. “Muita gente procurava esse vínculo que encontramos”, afirma Miranda. Uma questão intrigante acerca dos superburacos negros é a relação deles com a formação das galáxias que habitam. Seriam eles as sementes em torno das quais as estrelas se agrupam? Ou a formação das galáxias induziria o surgimento do buraco negro no centro?
O início Uma explosão origina o espaço e o tempo
Big
A matéria A energia inicial resfria e os componentes da matéria se agrupam
A primeira geração Halos de matéria escura dragam a matéria comum, que gera as estrelas
O fim de um ciclo Esgota o combustível das primeiras estrelas, que entram em colapso e explodem, ejetando parte de sua massa
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A semente das galáxias O que resta das estrelas é comprimido pela gravidade e origina um buraco negro, que atrai a matéria ao redor
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Os superburacos negros Consumindo os restos de estrelas, os buracos negros atingem a massa de milhões de sóis
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infográfico Tiago cirillo ilustração drüm
COEVOLUÇÃO
Aparentemente, a resposta é uma coevolução dos dois fenômenos, motivada por um terceiro elemento: a matéria escura. Halos dessa misteriosa componente – ela responde pela maior parte da matéria do Universo e só interage com as partículas convencionais por meio da força gravitacional – induziriam o surgimento de estrelas gigantescas no início do Cosmo e, mais tarde, aglomerariam a matéria circundante em seu interior, fornecendo os “tijolos” para a construção das galáxias. Nesse contexto, os buracos negros antecederiam a formação das galáxias, mas ambos evoluiriam sob influência da matéria escura. O novo trabalho também indica que o crescimento dos buracos negros gigantes no centro das galáxias pode se dar de forma paulatina nos 13,5 bilhões de anos que se sucederam ao surgimento das primeiras estrelas. A maioria dos modelos anteriores sugeria a necessidade de um crescimento hiperacelerado, que
bil
h (p ões re se de nt e) ano s
não casava bem com o que se entendia dos mecanismos de acreção envolvidos. Outra consequência importante é que, estabelecida a relação entre a taxa de formação estelar e o crescimento dos buracos negros gigantes, foi possível estimar o comportamento desses buracos negros no passado remoto. Essas previsões podem vir a ser confirmadas pela próxima geração de telescópios, como o James Webb, projetado pela Nasa para substituir o Hubble na próxima década. “O modelo explica os observáveis, desde que os buracos negros sementes tenham mil massas solares. Esse é o problema”, avalia João Steiner, astrônomo da Universidade de São Paulo. Para ele, não está claro que o Universo primordial, mesmo com condições favoráveis ao surgimento de estrelas maiores, possa ter gerado buracos negros dessa magnitude. Estrelas maiores podem ter surgido no passado distante em consequência da composição mais simples do Universo primordial. Logo após o Big Bang,
quando as primeiras estrelas teriam se formado, os únicos elementos químicos disponíveis seriam o hidrogênio e o hélio. Átomos mais pesados – como oxigênio e carbono, essenciais à vida – só surgiriam mais tarde, depois que os primeiros astros começassem a explodir em supernovas. Com menos elementos pesados, que fragmentam as nuvens de gás reduzindo a chance de formar objetos de massa elevada, estrelas muito maiores que as atuais podem ter existido. Mas seriam tão maiores assim? “Há uma esperança de que a resposta esteja aí”, diz Steiner. “Mas talvez seja só um desejo dos pesquisadores. Por que não se formam estrelas muito massivas, por exemplo, na Pequena Nuvem de Magalhães? Lá há uma metalicidade [presença de elementos pesados] quase primordial.” Para Miranda, na falta de exemplos observáveis, é preciso se apoiar em criações teóricas. “Simulações computacionais”, diz, “mostram que estrelas de 500 a mil massas solares seriam comuns no Universo primordial”. n pESQUISA FAPESP 194 69
_ P revisão do tempo
tecnologia
Conexões climáticas e ambientais Softwares e sistema de geossensores para captar e analisar dados meteorológicos Evanildo da Silveira
Sensores de umidade e temperatura no alto da mata atlântica 70 abril DE 2012
fotos inpe/microsoft research
D
ois projetos de pesquisa na área de meteorologia, financiados pelo Instituto Microsoft Research-FAPESP de Pesquisas em Tecnologia da Informação (TI), trazem novos dados e a possibilidade de entendimento sobre o microclima local, a interação entre florestas e atmosfera e as consequências das mudanças climáticas para a agricultura. Em um dos trabalhos, os pesquisadores estão desenvolvendo geossensores que serão espalhados na floresta amazônica, formando uma rede sem fio para captar e transmitir dados ambientais localizados, como temperatura e umidade, por exemplo, de uma fatia tridimensional do ambiente. A outra pesquisa criou softwares e modelos matemáticos para analisar e prever o clima em regiões específicas. O segundo projeto, conhecido como Agrodatamine, tem como objetivo compreender a correlação entre os vários parâmetros de análise de clima e agricultura e aperfeiçoar modelos agroclimáticos, avaliando e cruzando grandes volumes de dados – da ordem de terabytes – colhidos por sensores instalados no solo, radares meteorológicos e satélites. “A nossa meta é criar modelos e algoritmos matemáticos que permitam identificar tendências e estabelecer correlações nesses grandes volumes de dados para ajudar os agrometeorologistas a fazer previsões mais precisas e tomar decisões rápidas”, explica Agma Juci Machado Traina, professora do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (ICMC-USP) em São Carlos, coordenadora do trabalho.
De acordo com ela, com o avanço da tecnologia de coleta de dados climáticos, a produção de informações é muito maior que a capacidade existente de analisá-las. Por isso é necessário desenvolver novas técnicas computacionais para explorar esse volume de dados e produzir conhecimento para a agrometeorologia. “Nosso projeto se baseia na premissa de que a procura de associações e de exceções sobre os dados meteorológicos pode auxiliar a encontrar correlações e identificar comportamentos sazonais e extremos, permitindo melhor interpretação dos fenômenos climáticos associados”, diz. teoria dos fractais
Os Projetos 1 Agrodatamine: desenvolvimento de métodos e técnicas de mineração de dados para apoiar pesquisa em mudanças climáticas, com ênfase em agrometeorologia nº 2009/53153-3 2 Desenvolvimento e aplicação de rede de geossensores para monitoramento ambiental nº 2009/53154-0 modalidade 1 e 2 Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Coordenadores 1 Agma Juci Machado Traina - USP 2 Celso Von Randow - Inpe investimento 1 R$ 178.631,48 (FAPESP) 2 R$ 216.957,00 (FAPESP)
A análise de variações do comportamento dos dados ao longo do tempo também utiliza a teoria dos fractais, apresentada pelo matemático francês Benoit Mandelbrot, na década de 1970, que serve para medir ou classificar situações complexas que não estão baseadas na geometria tradicional. No projeto Agrodatamine, a teoria apoia o mapeamento da distribuição de grandes volumes de dados. Também ajudará na identificação de padrões temporais, principalmente quando o interesse está no monitoramento de múltiplas séries, como a análise integrada da evolução do comportamento de medidas de chuva e temperaturas mínima e máxima num determinado período. Entre os resultados do trabalho estão três ferramentas computacionais. Uma delas é o SatImagExplorer, um software que é abastecido com imagens de satélite. A partir delas, o programa possibilita medir e analisar o que aconteceu com a região monitorada no período em que as imagens foram coletadas. O ClimFractal Analyzer é outro software que serve para análises dinâmicas, baseadas na teoria dos fractais, em dados do clima de estações meteorológicas reais ou gerados por modelos climáticos. A terceira ferramenta, um programa chamado TerrainViewer, possibilita apresentar e manipular modelos tridimensionais de relevo por meio de dados de altimetria e imagens obtidas por sensoriamento remoto, com diferentes resoluções espaciais. “Todas essas informações podem ser utilizadas para apoio aos especialistas em agrometeorologia e climatologia, tornando possível realizar análises de modo mais rápido e preciso”, diz Agma. As pesquisas foram realizadas em parceria com a Embrapa Informática Agropecuária, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e as universidades federais de São Carlos e do ABC. O desenvolvimento e a instalação de redes de geossensores para monitoramento ambiental na floresta amazônica são o objetivo do outro projeto, coordenado pelo meteorologista Celso Von Randow, do Inpe. “Nosso trabalho poderá
contribuir para a melhor compreensão de como a floresta interage com a atmosfera e como ela influencia o microclima e, de outro lado, como o microclima afeta a floresta e o ecossistema. O projeto busca desenvolver ferramentas computacionais de mineração e análise de dados ambientais, além de estudos de transmissão de informações em redes sem fio. Na área de ciências ambientais, a meta é o entendimento de aspectos do microclima da floresta. Para colocar em prática esses objetivos, os pesquisadores montaram no Parque Estadual da Serra do Mar, próximo a São Luís do Paraitinga (SP), uma rede de geos sensores – pequenas caixas, com uma placa eletrônica de coleta de dados e antena, em que são acoplados sensores. No experimento foram usados quatro em cada caixa, três de temperatura e um de umidade. “Eles foram desenvolvidos na Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos, parceira no projeto”, conta Randow. “Agora estamos desenvolvendo no Inpe similares nacionais, mas de cerâmica, mais resistentes que os existentes no mercado.” Para o projeto-piloto foram fincadas na mata atlântica seis torres, uma central e cinco em volta dela, com altura de 10 metros superior à copa das árvores. Esses postes são interligados por cabos, que funcionam como varais para pendurar algumas das caixas. Outras foram colocadas em árvores, com as mais baixas a um metro do solo e as demais em alturas variáveis até o dossel da mata. No total, foram instaladas 52 caixas, o que somou 208 sensores, cobrindo uma área de 10 mil metros quadrados. “As placas gravam os dados e transmitem de uma para outra, em rede sem fio”, explica Randow. “Com isso é possível praticamente fazer uma fotografia tridimensional das condições ambientais da área, mostrando como varia, por exemplo, a temperatura ou umidade do ar de um ponto para outro e de uma altura para outra.” Uma tecnologia para economizar as baterias dos geossensores foi outra inovação desenvolvida durante o projeto. Eles ficam desligados e só “acordam” de minuto em minuto para ver se há algum contato com os notebooks dos pesquisadores, que de tempos em tempos vão colher os dados armazenados nas placas. “Agora a ideia é instalar um projeto-piloto numa área maior, de um quilômetro quadrado, na floresta amazônica”, revela Randow. “Nesse experimento vamos testar os sensores que estamos desenvolvendo.” n Artigo científico GONÇALVES, R.R. et al. Analysis of NDVI time series using cross-correlation and forecasting methods for monitoring sugar cane fields in Brazil. International Journal of Remote Sensing. v. 33, n. 15, p. 4.653-72. 2012. pESQUISA FAPESP 194 71
_ C omunicações por laser
Pequenas soluções Nanofibras ópticas são concebidas na Unicamp para transmissão de informações via ondas luminosas Marcos de Oliveira
A
tendência das tecnologias da informação é a constante miniaturização. A evolução aponta, dentre outros caminhos, para circuitos totalmente ópticos em que os chips possam se comunicar apenas com as ondas luminosas dos lasers. Dentre os candidatos a fazer parte dessas futuras conexões estão as micro e nanofibras ópticas que deixariam para trás os elétrons dos circuitos eletrônicos atuais dos computadores. São dispositivos que estão em estudo desde 2009 no Laboratório de Fibras Especiais (LaFE) do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Os primeiros resultados já começaram a aparecer e se enquadram dentro da nanofotônica, uma nova área que abrange a transmissão de informações por ondas luminosas em equipamentos de tamanho microscópico muito menores que os atuais. “Seriam as comunicações de luz para luz em que circuitos nanométricos fariam o processamento e transmissão de dados”, diz o professor Cristiano Monteiro de Barros Cordeiro, coordenador do LaFE. O laboratório faz parte do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (CePOF) de Campinas financiado pela FAPESP dentro do programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), coordenado pelo professor Hugo Fragnito. O que eles estão estudando no IFGW, que faz parte também do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Fotônica de Comunicações Ópticas (Fotonicom), são dispositivos que possuem cerca de 10 centímetros de comprimento e de 10 mícrons (1 mícron equivale a 1 milésimo de 1 milímetro) a 200 nanômetros (1 nanômetro é igual a 1 milímetro dividido por 1 milhão) de diâmetro. A dimensão deles é até 500 vezes
72
_ abril DE 2012
menor que o diâmetro de um fio de cabelo. As fibras comerciais que estão instaladas nas grandes cidades e em cabos submarinos, por exemplo, para possibilitar o funcionamento da internet e da telefonia, possuem 8 mícrons de diâmetro no seu interior, por onde passa a luz, e uma casca de sílica (também chamado de vidro) com 125 mícrons de diâmetro, além de muitos quilômetros de comprimento. Entre as vantagens operacionais das novas fibras estão o menor consumo de energia, com menos aquecimento do sistema, e capacidade de transmissão de dados maior que os circuitos eletrônicos atuais. As outras vantagens dessas fibras diminutas são a finura e a boa flexibilidade que as capacitam para integrar um sistema óptico completo dentro de um computador. A grande curiosidade é que algumas delas com diâmetro de 1 mícron são menores que o comprimento de onda dos feixes de laser típicos, de 1,5 mícron, usados nas comunicações ópticas. Então, parte da luz fica do lado de fora da parede da fibra, mas a onda luminosa continua a acompanhar o comprimento do dispositivo. Ao mexer a fibra de um lado para o outro, a luz continua a segui-la. “Se essa parte de luz que fica para fora pode ajudar ou atrapalhar a interconexão óptica futura ainda é uma questão aberta em todos os grupos mundiais que estudam essas fibras”, diz o professor Cristiano. Entre esses grupos estão a Universidade de Southampton, no Reino Unido, e a OFS Laboratories, ligada à empresa Furukawa. Essas micro e nanofibras também estão em estudo com a perspectiva de uso em sensores, na detecção de gases, no sensoriamento químico e biológico. Um exemplo seria detectar água poluída com a bactéria Escherichia coli. “É possível dar a essas fibras a função de detectar a presença da bactéria
O Projeto 1 Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (CePOF) de Campinas – nº 2005/51689-2 2 Fotônica para comunicações ópticas INCT – nº 2008/57857-2 modalidade 1 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) 2 Projeto Temático Coordenador 1 e 2 Hugo Fragnito – Unicamp investimento 1 R$ 1 milhão por ano para todo o CePOF (FAPESP) 2 R$ 1.021.698,99 e US$ 1.027.935,95 (FAPESP e CNPq)
1 2
3
1. Filtro óptico: anel formado por uma microfibra de 3 mícrons de diâmetro 2. Equipamento usado para produzir as micro e nanofibras na Unicamp
fotos 1. marcelo gouveia/lafe-unicamp 2. e 3.claudecir biazoli/lafe-unicamp
3. Experimento com bactérias estacionadas sobre uma microfibra
por meio de uma alteração na transmissão da luz e a consequente identificação do microrganismo”, diz Cristiano. Sua equipe, num experimento produzido nos laboratórios do IFGW, manipulou bactérias e leveduras em meio líquido. Eles conseguiram selecionar ou fazer estacionar sobre uma microfibra de 500 nanômetros de diâmetro um grupo de bactérias. Esse tipo de experimento poderia ser útil em estudos sobre anticorpos dessa espécie de microrganismo. Outra funcionalidade sensorial dessas fibras já se transformou em um depósito de patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) no final de 2011. O grupo conseguiu produzir uma fibra com 50 vezes mais sensibilidade à tração mecânica que as destinadas para uso na
construção civil. Elas são coladas ao longo de estruturas como pontes para medir, com a alteração na luz, a deformação da estrutura com a passagem de um caminhão, por exemplo. Estritamente no campo das comunicações ópticas, os pesquisadores conseguiram criar um filtro óptico na forma de um anel com uma fibra de 3 mícrons de diâmetro que deixa passar apenas um comprimento de onda. A produção em laboratório desses dispositivos com características próprias é feita com o aquecimento e puxamento (uma espécie de esticamento das fibras comerciais). “É como esquentar uma linha de pesca e puxar de cada lado de forma controlada até atingir a espessura nanométrica”, explica Cristiano. n pESQUISA FAPESP 194
_ 73
_ R estauração dentária {
Brilho reparador Pinos odontológicos com nanopartículas emitem luz e facilitam a recuperação do dente
U
m pino odontológico translúcido e feito de fibra de vidro já está no mercado. Ele diminui o tempo, de 5 minutos para no máximo 30 segundos, da cura (endurecimento) de resinas e cimentos usados na restauração e obturação dentárias. O novo produto é resultado de uma parceria entre o Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP, e a empresa Angelus, de Londrina (PR). A mesma parceria resultou numa embalagem inteligente, antimicrobiana, para os mesmos pinos. O conhecimento que tornou possível o desenvolvimento desse novo produto odontológico foi gerado durante a tese de doutorado do pesquisador Valdemir dos Santos, orientado pelo professor Elson Longo, coordenador do CMDMC, que está instalado no Instituto de Química do campus de Araraquara da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Durante sua pesquisa, Santos sintetizou de forma inovadora com o uso de micro-ondas o molibdato de cálcio, a partir do cloreto de cálcio e do molibdato de sódio, que tem propriedades fotoluminescentes. “Quando sofrem a incidência de luz azul [por uma lâmpada ou led em uma espécie de bastão usado pelo dentista] de comprimento de onda de 460 a 490 nanômetros, as partículas desse material existentes no pino fotoluminescem, ou seja, emitem luz, funcionando de maneira semelhante a um led”, explica Longo.
74 abril DE 2012
“É ele que faz a cura do cimento ou resina usada no tratamento dentário.” Pinos de uma maneira geral são usados há bastante tempo em endodontia, especialidade que previne e cura as enfermidades na polpa dental, como as cáries. O tratamento consiste em remover o tecido infectado, substituindo-o por material obturador (cimento ou resina). Quando o dente, após a remoção da parte doente, fica muito fragilizado, a solução é usar pinos para deixá-lo firme. Há vários tipos no mercado. Os mais usados são feitos de metal (zircônio, aço inoxidável ou titânio). Mas eles apresentam algumas desvantagens, como propriedades mecânicas diferentes da estrutura do dente, o que causa alterações significativas no seu comportamento mecânico. Também estão sujeitos à corrosão e oxidação, além de transmitir calor. Mais recentemente começaram a surgir os pinos não metálicos, feitos de carbono ou fibra de vidro. Eles proporcionam um comportamento mais semelhante à estrutura dental, com compatibilidade entre as propriedades mecânicas encontradas no dente, diminuindo os riscos de falha ou fraturas na sua raiz. Além disso, eles são mais aderentes e têm elasticidade muito próxima à da dentina, tecido que forma o corpo do dente e é recoberto pelo esmalte. Os pinos não metálicos também têm maior resistência à corrosão e são facilmente removidos. Os que foram desenvolvidos pela Angelus são compostos de 80% de fibra de vidro e 20% de resina epóxi, dopada com nanopartículas
O Projeto Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC) – nº 98/14324-0 modalidade Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) Coordenador Elson Longo – Unesp investimento R$ 1 milhão por ano para todos os projetos do CMDMC (FAPESP)
Rapidez no processo Vantagem Em 30 segundos o cimento resinoso está totalmente endurecido. No método tradicional, a duração é de 5 minutos
O pino de fibra de vidro com molibdato de cálcio é inserido no dente
É aplicada uma luz azul atravês do pino
Em seguida, o dentista coloca o cimento resinoso (epóxi)
Nanopartículas Parede do pino
infográfico Tiago cirillo
Dente a ser reconstruído
Dente com pino
de molibdato de cálcio. Eles têm cerca de 2 centímetros de comprimento e 1,4 milímetro de diâmetro em sua parte mais espessa. “Mesmo com uma estrutura rígida e compacta, como os pinos de fibra de vidro são translúcidos, há a passagem de 12% da luz incidente, quantidade suficiente para a polimerização dos materiais”, explica Longo. “O processo de endurecimento é mais rápido porque, diferentemente do que ocorre com pinos opacos, a luz vai até regiões mais fundas do dente, às quais não chegaria sem este canal de transmissão. Isso torna o produto um veículo importante para que o dentista tenha certeza de que seu trabalho foi finalizado com sucesso.” Além dos pinos fotoluminescentes, que geraram uma patente, a parceria entre a Angelus e o professor Longo, que começou há oito anos, quando ele lecionava na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), rendeu outro produto inovador, a embalagem inteligente. Em formato de um pequeno tubo, com cinco centímetros de comprimento, ela é feita de 98,5% de polipropileno e 1,5%
Quando a luz azul incide nas paredes do pino, as nanopartículas ficam luminescentes e ajudam a solidificar o cimento
As partículas de molibdato e de prata se concentram em pontos aleatórios e atraem as bactérias
de agentes antimicrobianos. Longo explica que bactérias e fungos necessitam de molibdênio para o seu metabolismo. “Esse elemento faz parte do mecanismo catalítico das enzimas, processo fundamental para a digestão dos alimentos que consomem, desempenhando um papel fundamental na metalobioquímica [nome que se dá ao metabolismo dos seres que consomem metais] desses microrganismos”, diz. “Por isso, eles irão buscá-lo em qualquer lugar para sua sobrevivência.” Essa característica foi usada contra os microrganismos. Para isso, os pesquisadores utilizaram nanopartículas de molibdato de sódio e de molibdato de cálcio e de prata, misturadas ao polipropileno ainda fundido. Quando esse plástico é injetado num molde e se solidifica, formando a embalagem, as partículas dos molibdatos e da prata se concentram em alguns pontos aleatórios que atraem as bactérias e fungos. Na verdade, é uma armadilha. “Os molibdatos, além de atraírem os microrganismos, direcionam a emissão da luz do material para um comprimento de onda específico, que ativa o complexo à base de prata e elimina os fungos e as bactérias”, explica Longo. “Por isso a embalagem é considerada inteligente.” Segundo o gerente de pesquisa e desenvolvimento da Angelus, Cesar Bellinati, a embalagem não é vendida separadamente. “Serve apenas para embalar os pinos fotoluminescentes”, diz. “É um diferencial do nosso produto.” Desde o lançamento, em 2010, a empresa já vendeu 25 mil conjuntos de cinco pinos, acondicionados no tubo inteligente, o que rendeu cerca de US$ 1 milhão em faturamento. Fundada em 1994, a Angelus é hoje uma das líderes da América Latina no mercado de pinos e outros produtos para odontologia. Segundo Bellinati, com 65 funcionários e R$ 12 milhões de faturamento no ano passado, a empresa busca soluções em odontologia com base científica e tecnológica. “Por isso temos um estreito relacionamento com o setor acadêmico, técnico e científico”, diz. n Evanildo da Silveira Artigo científico Longo, V.M.; Cavalcante, L.S.; Paris, E.C. et al. Hierarchical assembly of camoo4 nanooctahedrons and their photoluminescence properties. Journal of Physical Chemistry C. v. 115, n. 13, p. 5.207-19, abr. 2011. pESQUISA FAPESP 194 75
humanidades _ i ndicadores
A ilusão da igualdade Mesmo com a queda dos índices de desigualdade, país mantém mazelas sociais
D
iversas pesquisas têm mostrado que a desigualdade econômica de renda corrente (proveniente de salários, pensões, juros) tem se reduzido sistematicamente no Brasil desde o início da décaca passada. Pesquisadores estimam que, se mantivermos o ritmo observado recentemente, em 2030 atingiremos o nível de desigualdade econômica semelhante ao de alguns países desenvolvidos, como o Canadá, onde há pouca diferença de renda entre os cidadãos e um altíssimo padrão de bem-estar social. Não é fácil, porém, visualizar esse “Canadá de médio prazo” da janela do carro. “Apesar dessa queda, ainda estamos entre os 12 países mais desiguais do mundo, onde 1% dos brasileiros se apropriam da mesma renda que os 50% mais pobres e os 10% mais ricos têm 40% da renda”, explica o economista Claudio Dedecca, professor titular do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Os indicadores obtidos pela pesquisa A desigualdade socioeconômica no Brasil, financiada pelo Conselho Nacional de De76 abril DE 2012
senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento Superior (Capes), e coordenada pelo economista, cujo desenvolvimento metodológico tem sido incorporado em outros projetos realizados em equipe com os professores Walter Belik e Rosana Baeninger, da Unicamp, apontam para a necessidade de uma abordagem multidimensional das desigualdades na sociedade brasileira que não leve apenas a renda em consideração. “Não se pode negar o declínio da desigualdade da distribuição da renda na última década e de como essa recomposição resultou num recuo da pobreza de natureza monetária”, diz o economista. “Mas é preciso falar de desigualdades em lugar de desigualdade. A baixa renda é apenas um dos riscos sociais a que se encontra exposta a população pobre. Temos que analisar ainda o acesso dessa população aos bens e serviços públicos como educação, saúde, terra, trabalho, alimentação, transporte, saneamento, água e habitação. A pobreza é uma situação de fragilidade socioeconômica de natureza multidimensional”, observa
Flávio Veloso / Opção Brasil Imagens
Carlos Haag
economia
Parabólicas se misturam à miséria na favela do Morro Dona Marta, Rio de Janeiro pESQUISA FAPESP 194 77
saneamento
“Algumas modalidades de bens e serviços podem ser acessadas via renda monetária ao menos para uma parcela da população, com maior poder aquisitivo. Mesmo assim, alguns destes bens ou serviços não são passíveis de individualização no seu fornecimento, como saneamento e transporte público. Para os segmentos mais pobres da população, eles necessitam ser fornecidos gratuitamente ou de modo subsidiado”, pondera Dedecca. Ou seja, desigualdade não é sinônimo apenas de falta de renda, mas de acesso à cidadania e serviços públicos que, no caso dos mais pobres, dependem da ação do Estado. “Assim, mesmo que os programas de transferência de renda tenham tirado 1,3 milhão de pessoas da miséria, os indicadores multidimensionais revelam a permanência de uma elevada vulnerabilidade de inserção no mercado e de acesso aos serviços públicos básicos”, diz. Em 2009, 3,2 milhões de famílias estavam nessa situação, boa parte não enquadrada nos critérios dos programas do Estado. A política social brasileira vem conhecendo uma ampliação de escopo e cobertura, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Durante o período de instabilidade e crise econômica do país, a política social avançou em termos de cobertura, porém impondo uma baixa qualidade dos serviços prestados. A partir de 2003 a política social ganhou maior centralidade nas estratégias dos governos, que ampliaram os 78 abril DE 2012
Indicador de precariedade socioeconômica Os dados nos mapas, em porcentual ou em reais, mostram a variação na
Rendimento bruto do trabalho per capita* (R$)
situação socioeconômica das famílias
*Pagamento do trabalhador excluídos 13º salário, adicional de férias ou horas extras
em extrema pobreza ocorrida entre 2003 e 2009 por região e o valor médio nacional. A linha de extrema pobreza é definida em R$ 70,00 de renda familiar per capita. É possível
16,3
2003
observar que, apesar do otimismo dos índices baseados na renda corrente, a precariedade socieconômica dos
14,8
pobres teve poucas variações e apenas algumas são positivas. A desigualdade no cotidiano permanece alta
investimentos para elevar a qualidade das ações e dos programas. “A retomada do crescimento com geração de empregos formais e com uma política de valorização do salário mínimo fortaleceu os mecanismos de distribuição de renda, favorecendo as políticas sociais”, diz Dedecca. De início, a queda da desigualdade se deu com o empobrecimento dos mais ricos ao mesmo tempo que os mais pobres foram protegidos pela revalorização do salário mínimo. “Não se quer queda da desigualdade à custa dos ricos, mas aproximar os pobres aos padrões mais altos de renda.” A partir de 2008 as novas condições do crescimento econômico, caracterizadas pela redução da desigualdade de renda corrente e da pobreza de natureza monetária, fizeram-se graças à valorização das políticas sociais e de trabalho e
2009
A tecnologia adentra os lares mais simples da favela carioca
Pascal Deloche / Godong / Opção Brasil Imagens
Dedecca. “Não basta combater a pobreza monetária: temos que reduzir os riscos socioeconômicos da população em miséria extrema. Os dados da pesquisa indicam que esse grupo ainda sofre com uma elevada vulnerabilidade no acesso ao mercado de trabalho e aos bens e serviços públicos e sociais. A redução desses riscos sociais, que é o objetivo real do crescimento, foi pequena, e os elementos de desigualdade de 2003 continuam presentes hoje”, explica. “Se a população pobre aumentou seu poder de compra, continua alijada do acesso aos bens sociais. De que adianta ter renda canadense sem ter saúde, educação, habitação e saneamento de qualidade mínima? Os resultados obtidos pela nossa pesquisa mostram a manutenção de uma elevada desigualdade para a maioria dos indicadores”, fala o pesquisador. “A experiência dos países desenvolvidos mostra que fortalecer a renda reduz a pobreza, mas não a desigualdade”, concorda a economista Celia Kerstenetzky, da Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenadora da pesquisa O Estado do bem-estar social no Brasil em perspectiva comparada. “Os Estados com melhor padrão de bem-estar social optaram por um nível de consumo digno, mas com políticas sociais amplas, universais e de qualidade elevada.”
das famílias pobres Rendimento bruto do trabalho per capita (R$) 2003
2009
17 15,7
15,4 14,9
18
14,1 17,6
16,1
13,5
17,2
“Será preciso manter as taxas de crescimento elevadas por muito tempo para se aumentar os gastos com os programas de renda do governo. É a ‘teoria do bolo’: os avanços sociais são subordinados ao crescimento econômico”, avalia Salm. Dedecca concorda que, ao atingir a cobertura da população-alvo, os novos avanços da política de combate à pobreza passaram a depender de aumentos dos benefícios e do escopo dos programas. Fatores que, com certeza, exigem um gasto maior que o PIB e em muito superior ao orçamento do governo. “Mas não podemos ficar presos ao crescimento e ao fator renda, mas encontrar instrumentos que reduzam a desigualdade com inserção produtiva e acesso a bens públicos com qualidade”, pondera o pesquisador. inserção
Taxa de desemprego (%) 2003
2009
24,6 13,2
23,4 16,8
34,1
29,7 30,7
média 19
21
média 19,8
23
19,1
renda, que implicou uma relação menos desequilibrada dessas com a política econômica, modificando, mesmo que Desigualdade ainda de modo incipiente, os parâmenão é sinônimo tros adotados por técnicos e especialistas em orçamentos públicos. “Para isso, só de falta de aumentamos muito os gastos federais com transferências de renda, que hoje renda, mas de representam 9% do PIB. Mas não se viu uma eficácia distributiva em função disacesso a bens so. A melhoria na distribuição de renda públicos sociais pouco teve a ver com o Bolsa Família, por mais que o programa alivie a vida das pessoas em pobreza extrema”, observa o economista Claudio Salm, da UFRJ, autor do livro Políticas sociais em tempo de crise (Editora Brasília, 1990). “O mais importante nesse processo foi o aumento das oportunidades de trabalho, com mais e melhores empregos criados a partir do crescimento econômico”, argumenta.
Há quem discorde. “O acesso a bens públicos contribui para o bem-estar das pessoas, mas é inegável que a variável para atacar a desigualdade é a renda”, acredita o economista Sergei Dillon Soares, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), autor da pesquisa Erradicar a pobreza extrema (Texto para Discussão Ipea, 2011). “Depois de ‘dar os pobres aos mercados’ como consumidores está na hora de dar ‘os mercados aos pobres’ como trabalhadores. Isto é, tratá-los como protagonistas de sua história e menos como receptores de dinheiro público”, analisa Marcelo Neri. “Precisamos de um ‘choque de capitalismo’ para os pobres. A pergunta da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) é simples: “Quanto dinheiro você tem no bolso?”. É a soma da renda do trabalho, do que o aposentado da família ganha de pensão, do valor recebido dos programas sociais. Para o cidadão comum, é isso o que importa: o conforto que ele leva para a casa da família. E você nota que o bolso do pobre cresceu mais, proporcionalmente, que o do rico”, afirma. Os indicadores da pesquisa feita pela equipe de Dedecca pedem mais cautela e menos pressa. “Programas de renda sempre existirão no país. Levará um tempo razoável para que essa população consiga retornar sozinha ao mercado de trabalho.” O fosso existente de renda das famílias pobres em relação à média do total de famílias é significativo. As primeiras auferem um rendimento médio per capita correspondente a menos de 4% do valor médio. Em relação aos rendimentos das políticas públicas, as famílias pobres recebem um valor correspondente a 1,4% daquele observado para a média do total das famílias Assim, a inserção produtiva, vista como “porta de saída” dos programas de transferência de renda, é complexa e limitada. “Além disso, os indicadores mostram que a inserção não é a solução para a fragilidade social e é de difícil consecução: um de cada quatro membros das famílias pobres está desempregado, e os que trabalham vivem na informalidade”, adverte pESQUISA FAPESP 194 79
Dedecca. Sem vínculo formal, caem as chances de rendimentos adequados, de acesso a crédito, serviços bancários ou proteção social mínima. As diferenças regionais não atenuam as dificuldades. Segundo a pesquisa, a densidade da pobreza não tem relação direta com o grau de desenvolvimento econômico: os estados da Bahia e São Paulo, que possuem um notável contraste industrial, são responsáveis por um quarto das famílias na miséria. Até o “bônus demográfico” (ver “Brasil em transição demográfica”, na edição 192 de Pesquisa FAPESP), a queda da fecundidade geral no país que possibilitaria maior oferta de emprego, não ocorrerá se a desigualdade se mantiver. “As famílias são menores, mas há problemas na sua composição: os pobres têm ‘taxas de dependência’ elevadas: a proporção de familiares em idade inativa é muito superior à média brasileira, o que diminui a chance de inserção produtiva”, conta Dedecca. Além disso, há um índice alto de chefias femininas e de negros nesses estratos. Com a discriminação, de gênero ou raça, caem ainda mais as chances de inserção. Para as mulheres, isso se reflete no tempo gasto com a organização das famílias, gerando dupla jornada e informalidade. informalidade
Informalidade, aliás, que em geral se converte em desigualdade, em todos os gêneros e raças. A exclusão da formalidade do mercado implica necessariamente a exclusão da proteção social derivada dele. Fator que pode influenciar outro indicador: a elevada taxa de mortalidades perinatal nos segmentos pobres, em muito superior à média do país e em crescimento: de 2003 a 2009, os índices subiram de 25,57 mortes por mil nascidos para 36,90 mortes por mil nascidos. A falta de acesso à Previdência tem números muito altos para qualquer programa social dar conta: mais de 9,5 milhões de famílias sem nenhuma proteção. Existem indicadores positivos, mas com ressalvas, como o aumento da escolarização de crianças entre 4 e 16 anos, próximo da média nacional, indicando a universalização da educação da nova geração. Ao mesmo tempo, cresceu o indicador de defasagem escolar, prova de que a universalização aconteceu, mas sem qualidade. Mesmo o fator mais celebrado, o aumento da renda vem com atenuantes. O poder de compra dos pobres cresceu, mas não os fez mais saudáveis. Há índices crescentes de má nutrição e de obesidade. Nesse caso, há mais dinheiro para alimentação, mas a dieta é pobre e com muito carboidrato. “Os pobres são influenciados pelas propagandas e comem mal. Esses dados apontam problemas futuros de saúde”, alerta Dedecca. A área rural, muito penalizada nos indicadores, ao menos nesse leva vantagem ao produzir para consumo próprio o que permite acesso a alimentos de maior valor nutritivo. 80 abril DE 2012
Taxa de Informalidade (%) 2003
2009
90,8 96,1
88,5
87,4
75,3 76,4
média 91,4
94,8 56,7
média 82,3
71,9
89,1
Incidência do ensino médio (%) 2003
2009
1,9
5,7 0,4
3,8 média 1,4
2 10
3
11,2
média 4,9
7,2
3,8
Defasagem escolar (6 a 14 anos)* (%) 2003
82,7 78,1
74,2 71,8
79,1
61,5 77,4
média 78,5
*Diferença entre o tempo de estudo recomendado em função da idade da criança e o atingido pela mesma
2009
66
média 70,5
72,7
81,6
Incidência do trabalho infantil (%) 2003
2009
1
2,4
3,4
1,7
0,4
2,9 1,5
média 2,7
3,3
1,6
média 1,9
3,3
Léo ramos
Exemplo de produção para consumo próprio: horta comunitária feita em Embu, São Paulo
Proporção de famílias sem acesso à energia elétrica (%)
2003
2009
7,4
10,5 5,8
16,5 10,9 média 11,9
0,9 3,8
0,4
média 4,3
2,3
7,4
Proporção de famílias sem água encanada (%) 2003
2009
40,7 50,2
34,6 34
21,8
8,7 11,6
média 36,2
11,9
3,9
média 22,7
6,8
Essa vantagem levou o governo federal a estimular essa produção como forma de inserir o meio rural no mercado. “Não rejeito a ideia, mas segundo os índices é uma tarefa quase inviável diante da ausência de demanda e das precárias condições de mercado. Essa prática atenua a pobreza rural, mas é insuficiente para melhorar os indicadores sociais tão desfavoráveis”, diz o pesquisador. O que é ruim nas metrópoles é pior nas áreas rurais. “O Brasil se vê erroneamente como sociedade urbana. Temos mais de 30 milhões de pessoas na área rural”, diz Dedecca. “Mesmo com transferência de renda, é muito complexa a ação das políticas públicas e o acesso aos bens sociais nessas regiões”. Em habitação, perdem rurais e metropolitanos, ainda que alguns números sejam animadores: as casas pobres, hoje, têm paredes e telhados na média nacional, assim como indicadores positivos de banheiro por habitação e moradores por dormitório. “O problema é a localização das casas, em geral em regiões sem acesso a esgoto, pavimentação ou água encanada. Eles também estão abaixo da média na coleta de lixo, no uso de combustível adequado para cozinhar, na posse de geladeiras para conservação dos alimentos.” As moradias são construídas sem orientação técnica, aumentando situações de risco, já potencializadas pela localização em áreas perigosas como encostas de morros. Um dado de habitação surpreende: a proximidade dos índices de famílias pobres e famílias da média nacional vivendo mais de quatro anos no mesmo município. “Isso indica que a migração não é um fator determinante de desigualdade”, analisa. Todos esses fatores questionam a entusiasmada visibilidade pública dada à questão da queda da desigualdade durante a década passada. “Ainda assim, a evolução recente das desigualdades no país, mesmo que não tenha produzido os resultados positivos esperados, mostra, pela primeira vez, uma fase de crescimento com capacidade distributiva”, lembra Dedecca. “A reprodução da relação entre crescimento e distribuição com uma maior qualificação das políticas públicas poderá se traduzir em resultados socioeconômicos mais expressivos, com a possibilidade de uma transformação social que se traduza em redução das desigualdades com maior justiça social e constituição de um efetivo Estado republicano, onde a cidadania seja um bem comum a toda a sociedade.” Daí, sim, será possível ver o Canadá. n pESQUISA FAPESP 194 81
_ F lechas e lanças pré-históricas
Pontas de um passado remoto t P r o jé
e is d e
R io c l
, filados culos a , V Pedún a tr a da le o na form tímetr 1,7 cen té a com to primen de com
82
_ abril DE 2012
a ro
Projéteis de pedra do interior paulista de até 10 mil anos apresentam estilo diferente dos artefatos pré-históricos encontrados no Sul Marcos Pivetta
arqueologia
A
s pontas líticas de flecha ou de lança oriundas da Pré-história nacional estão concentradas na porção do território brasileiro que se estende do Rio Grande do Sul até a região de Rio Claro, no interior paulista. Independentemente de seu local de origem e de terem sido confeccionados cerca de 500 anos atrás, pouco antes da chegada do conquistador europeu, ou há longínquos 10 milênios, todos os projéteis de pedra resgatados nessa vasta área costumam ser rotulados como pertencentes à tradição Umbu, uma cultura arqueológica associada a antigos caçadores-coletores. No entanto, um estudo comparativo das características morfológicas (físicas) de mais de mil pontas provenientes dos três estados do Sul e de São Paulo rechaça essa classificação, considerada simplista demais, e fornece indícios de que os projéteis encontrados no interior paulista são diferentes dos resgatados na parte mais meridional do país.
P o nt as do
su l d
léo ramos
Artefa tos de caça têm h astes meno e bifu res rcada s num estilo rabo d e peix e
o pa ís
A maioria das pontas achadas nos arredores de Rio Claro, onde existe grande quantidade desses artefatos no interior paulista, tem o pedúnculo — cabo ou haste situada no lado oposto ao da superfície cortante — maior e mais afilado, com contornos similares aos da letra V, do que o das encontradas no Sul, especialmente no Rio Grande do Sul. Os projéteis da porção austral do país tendem a apresentar essa parte com um formato bifurcado, semelhante a um pequeno rabo de peixe. Em São Paulo não há pontas desse tipo. “A função das pontas em ambas as regiões era a mesma, eram uma arma de caça”, afirma a arqueóloga Mercedes Okumura, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (Mae-Usp), autora do estudo, que contou com uma bolsa de pós-doutorado do CNPq no início de suas pesquisas e hoje recebe apoio da FAPESP. “No entanto acreditamos que as formas do pedúnculo podem ser interpretadas como marcadores culturais, relacionados a grupos ou tribos distintas.” Se o design das pontas de pedra do Sul era diferente do das de São Paulo, é possível que os habitantes das duas áreas também não fossem exatamente iguais pelo menos do ponto de vista cultural. Os artefatos dos antigos caçadores-coletores do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina até poderiam ser rotulados como exemplares da tradição Umbu, mas o mesmo não se pode dizer dos projéteis encontrados no interior paulista, segundo a arqueóloga. Eles podem ter pertencido a um grupo com hábitos e tecnologia lítica distintos dos da tradição Umbu, dominante na ponta meridional do Brasil. “As pontas são um artefato complexo, que contêm informações sobre quem as fez”, diz o arqueólogo Astolfo Araujo, também do Mae-USP, que participa dos estudos de Mercedes. “Sua construção demanda muitas etapas e um longo processo de transmissão cultural. Aprender a fazer uma ponta demora anos.” De acordo com dados de Mercedes, o corpo das pontas do Sul e de São Paulo apresenta tamanho semelhante. Em média, tem entre 2,5 e 3 centímetros. Essa medida leva em conta apenas a parte perfurante do projétil, sem incluir as dimensões do pendúculo. A diferença mesmo entre as pontas das duas regiões aparece quando se olha a forma e as dimensões do pedúnculo. Nas do Sul, a haste que serve de base para o lado cortante do artefato tende a medir entre 0,9 e 1,1 centímetro. Nas de São Paulo, apresenta quase o dobro de tamanho pESQUISA FAPESP 194
_ 83
médio, por volta de 1,7 centímetro — e nunca é bifurcada, quase sempre é afilada. Além de estudar pontas da coleção Plynio Ayrosa do Mae, Mercedes visitou o acervo de outras nove universidades e também de colecionadores particulares do Sul e de São Paulo durante o ano passado para realizar o trabalho. Graduada em biologia e com experiência na análise dos traços anatômicos de crânios e ossos da Pré-história nacional, a pesquisadora adaptou métodos estatísticos, quantitativos, já comumente empregados em estudos de evolução humana, em seu trabalho com os projéteis de pedra. “Como há poucos esqueletos humanos antigos encontrados no Sul e em São Paulo, resolvi estudar arfetados formais que esses povos faziam, como as pontas de pedra”, explica Mercedes. Munida de um paquímetro, instrumento utilizado para aferir com precisão pequenas distâncias, registrou as dimensões de 1.102 pontas. Foram medidos 131 projéteis de São Paulo, 170 do Paraná, 258 de Santa Catarina e 543 do Rio Grande do Sul. Os artefatos analisados provinham de 10 zonas com sítios arqueológicos: cinco em terras
gaúchas (Maquiné, Santo Antônio, Caí, Ivoti e Taquari), três catarinenses (Taió, Urussanga e Santa Rosa), uma paranaense (Reserva) e uma paulista (Rio Claro). Quatro medidas
Em seu primeiro trabalho com o conjunto de pontas, cujos resultados já foram apresentados em congressos e serão relatados num artigo a ser submetido a uma revista científica, a arqueóloga comparou especificamente quatro medidas: o comprimento da lâmina, o tamanho do pedúnculo, a largura do pescoço (região em que termina a parte cortante e começa o cabo) e a espessura da flecha na altura da metade de seu corpo. De posse desses dados, ela usou métodos estatísticos e programas de computador para comparar as medidas e averiguar se elas poderiam ser associadas a apenas uma mesma cultura material, à tradição Umbu, ou a mais de uma forma de produzir projéteis. É uma
Abrigo na região gaúcha de Caí: estado sulino concentra boa parte das pontas da tradição Umbu
estratégia semelhante à dos arqueólogos que quantificam o tamanho e a forma de um crânio para tentar inferir os traços físicos ou até a etnia do dono da antiga ossada, se era, por exemplo, um africano ou um tipo mais asiático. Das quatro medidas escolhidas, somente o tamanho do pedúnculo apresentou discrepâncias estatisticamente relevantes. Em seis das nove áreas da Região Sul havia predominância de cabinhos bifurcados. Rio Claro, onde esses artefatos eram confeccionados a partir de silexito e em menor escala de quartzo, se mostrou um caso à parte, com suas pontas afiladas. “Não se pode dizer que os projéteis do Sul sejam todos iguais, mas eles certamente formam um grupo distinto dos de Rio Claro”, afirma Mercedes. As pontas do interior paulista costumam ser classificadas como sendo da fase Rio Claro, que, segundo alguns autores contemporâneos, seria um sotaque regional no âmbito da língua-mãe, uma manifestação local dentro da tradição Umbu. Mercedes e Araujo suspeitam que as pontas de São Paulo sejam mais do que isso. Elas pertenceriam a um outro idioma lítico, a uma tradição própria, tendo sido talvez lapidadas por um grupo culturalmente distinto dos antigos habitantes do Sul. Os arqueólogos da USP consideram pouco provável que apenas uma tradição cultural tenha se mantido por tanto tempo (cerca de 10 mil anos) numa faixa de terra tão longa como a que vai do Sul até o interior paulista (do Chuí até Rio Claro são 1.800 quilômetros). “Pode ter havido duas populações de caçadores-coletores distintas, uma na parte meridional do país e outra aqui”, comenta Araujo. “Ou a de São Paulo pode ser culturalmente derivada da do Sul, onde há um grande número de projéteis.”
O Projeto Métodos estatísticos aplicados à questão da caracterização de indústrias líticas paleoíndias: estudos de caso no Sudeste e Sul do Brasil
Coordenador Astolfo Araujo – MAE-USP investimento R$ 153.974,88 (FAPESP)
84
_ abril DE 2012
adriana Schmidt Dias
modalidade Bolsa Regular de Pós-doutorado
Lança, dardo ou flecha As pontas líticas podem ser usadas em três tipos de arma de caça dardo
lança
infográfico azeite de leos
flecha
As análises feitas por Mercedes
do Brasil meridional. Foram feitas entre
As de tamanho médio seriam as
Okumura em mais de mil pontas líticas
1.500 e 4.000 anos atrás. Os novos
pontas de dardo, que deveriam ser
da Pré-história nacional levantam
dados podem indicar que, dentro das
arremessadas com um lançador
outra questão interessante, além das
Américas, a tecnologia de fazer flechas
denominado atl-atl. Elas não podiam
diferenças de estilo entre os artefatos
pode ter se desenvolvido primeiro
ser demasiadamente grandes, pois
confeccionados no Sul e em São Paulo.
na porção meridional do continente
uma dimensão maior reduziria seu
Alguns pequenos projéteis do Rio
e mais tarde na setentrional.
alcance. As menores e mais leves
Grande do Sul, com idade de cerca de
As pontas de pedra costumam ser
seriam as pontas de flecha. Por serem
10 mil anos, têm tamanho compatível
divididas em três categorias em função
arremessadas com um arco feito de
para ser considerados pontas de flecha.
basicamente de seu tamanho e peso.
madeira, podiam atingir uma boa
“Esse resultado foi surpreendente”,
As maiores e mais pesadas seriam as de
distância e produzir grande estrago. “Há
afirma a arqueóloga. As flechas líticas
pontas de lança, cujo porte avantajado
um consenso de que primeiro surgiram
mais antigas encontradas nos Estados
seria de grande valia para o caçador
as pontas de lança, depois os dardos e,
Unidos são bem mais novas do que as
ferir uma presa a curta distância.
por último, as flechas”, diz Mercedes.
Para o arqueólogo Tom Miller, professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) que estudou as pontas líticas do interior paulista na década de 1970, a hipótese de que os projéteis de Rio Claro pertençam a uma cultura distinta da presente no Sul faz sentido. “A tentativa de classificar o material de Rio Claro como Umbu foi um engano desde o começo”, afirma Miller. “As formas distintas de pedúnculo podem representar uma diferença de estilo ou de encabamento (de colocar um cabo num artefato).” Ele no entanto acredita que as tradições culturais não podem ser definidas somente a partir do estudo de um tipo de artefato, como as pontas encontradas numa região, mas sim por meio de análises mais complexas, que levem também em conta a tecnologia e as estratégias de adaptação adotadas pelos antigos povos de uma área.
O argentino Marcelo Cardillo, arqueó logo da Universidade de Buenos Aires, que também realiza análises semelhantes às da pesquisadora da USP com projéteis líticos da Patagônia e da região de Puna, segue uma linha de raciocínio não muito diferente da de Miller. Embora reconheça não ser um especialista em arqueologia brasileira, argumenta que a análise estatística das medições feitas nas pontas do Sul e de São Paulo tornam as conclusões de Mercedes plausíveis. “É bastante possível que o estilo ou o desenho dos projéteis apresentem variações ao longo do tempo e do espaço”, afirma Cardillo, um crítico do próprio conceito de tradição. “Isso pode ocorrer por causas muito distintas, relacionadas, por exemplo, a fatores ambientais ou a processos aleatórios, como deriva cultural, ou à disponibilidade de diferentes materiais num lugar ou época.”
Objetos cunhados pela mão do homem, a chamada cultura material, contam algo sobre quem os confeccionou, especialmente quando são o único ou o principal vestígio arqueológico associado a um povo ou sociedade desaparecida. Essa situação não ocorre apenas no Sul do país e em São Paulo. Nos Estados Unidos, a famosa cultura Clovis, que teria surgido há cerca de 13 mil anos e foi considerada durante muito tempo como a mais antiga das Américas (hoje essa hipótese é bastante contestada), é conhecida fundamentalmente por meio das pontas de pedra resgatadas em localidades do estado do Novo México. Esqueletos humanos associados à cultura Clovis nunca foram encontrados. Nem por isso a importância dessa antiga ocupação deixou de ser reconhecida, com suas pontas alongadas, que, em alguns casos, lembram uma fina taça de champanhe de ponta-cabeça. n pESQUISA FAPESP 194
_ 85
86 abril DE 2012
_ c rítica {
Dilemas do mouro de Matacavalos Paixão por Shakespeare influenciou diretamente os romances de Machado de Assis ilustração
E
Paulo Cavalcanti
m seu O 18 de brumário de Luís Bonaparte, Marx, citando a observação de Hegel de que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem duas vezes, completou: “Esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Marx não frequentou a estante de Machado de Assis, no Cosme Velho, mas foi com esse espírito que Machado de Assis revisitou as visões do humano de Shakespeare. “As muitas referências machadianas ao bardo não eram meros ornamentos, mas aprofundavam revelações sobre os personagens. Como em Dom Casmurro, onde elementos da tragédia Otelo, invertidos, revelam a farsa da versão carioca do ‘mouro’, Bentinho, perdido em meio à sociedade patriarcal do século XIX”, explica Adriana Teles, autora do pós-doutorado A presença de Otelo em Dom Casmurro: a problemática do trágico em Machado de Assis, com apoio da FAPESP. Assim, apesar de Otelo servir de argumento para Dom Casmurro, o romance machadiano não tem o teor trágico da peça. Marx estava certo: a segunda vez é como farsa. “Para Machado, subverter o trágico era mostrar a cara real da sociedade moderna, onde conflitos humanos se pautam por regras de sobrevivência e o comportamento social é mediado pela conveniência. Esse é um mundo que não comporta mais as questões de honra e caráter das tragédias shakespearianas”,
observa Adriana. O dramaturgo inglês foi a grande influência literária do “bruxo”, ao longo de toda a sua vida, como ele mesmo confessou em vários escritos: “Não se comenta Shakespeare, admira-se”; ou, “quando não houver império britânico ou república norte-americana, haverá Shakespeare; quando não se falar inglês, falar-se-á Shakespeare”. Especialistas já rastrearam mais de 200 citações do bardo (a pesquisa de Adriana revelou outras mais), de 1859, quando era um aprendiz de crítico com 20 anos, até 1908, ano de seu último romance, Memorial de Aires, e de sua morte. Logo, poucos quiseram ler Dom Casmurro como um “pastiche” de Otelo, apesar das pistas “descuidadas” deixadas pelo narrador. A “traição” do modelo é importante para entender o tema real do livro, que, aliás, não é a traição. Mas durante seis décadas, entre 1900 e 1960, quando a feminista americana Helen Caldwell desmascarou num ensaio (O Otelo brasileiro de Machado de Assis) a falta de confiabilidade e os ardis do narrador do romance, nenhum crítico brasileiro ou estrangeiro colocou em xeque as alegações de Bentinho sobre Capitu. Até hoje, com poucas exceções, continuam os esforços para “provar” a traição. “Que, aliás, nunca esteve no centro das preocupações machadianas. O livro é uma análise sutil dos fantasmas masculinos no âmbito do patriarcalismo, em que Machado ironiza os pendores românticos e trágico-patéticos da cultura brasileira, em verdade
literatura
teatro
pESQUISA FAPESP 194 87
permeada por um espírito antitrágico”, afirma a crítica literária Kathrin Rosenfield, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autora da pesquisa A ironia de Machado em Dom Casmurro (2007). Esse “distanciamento” entre discurso e realidade “renasce” como farsa. “Bentinho quer para si um drama trágico e com grandeza, como uma tragédia shakespeariana, mas sua atitude fraca só evidencia o abismo entre o trágico de Otelo e o dramalhão que ele encena”, concorda Adriana. Para a pesquisadora, essa subversão não afasta Machado de Shakespeare, mas os aproxima. “O caráter de ruptura com parâmetros instituídos orienta a criação de ambos. Shakespeare quebra as unidades de tempo, espaço e ação. Machado inverte a tragédia, incorpora o drama ao romance e, assim, mescla os gêneros, à semelhança do inglês, reforçando que o trágico tem cores cômicas”, analisa a pesquisadora. Otelo não hesita. Bentinho titubeia o tempo todo, é influenciado por tudo e por todos ao seu redor, tem arroubos melodramáticos e pueris, mas não tem coragem de levar seus planos adiante desde menino.
88 abril DE 2012
faz nada. O romance mostra um herói ridicularizado pela própria referência que faz ao trágico, incapaz de separar a distância entre seu universo civil-burguês da tragédia do mouro”, diz a pesquisadora. Assim, o aproveitamento que Machado faz de Shakespeare é irônico e a intertextualidade se afirma pela negação, pela analogia e contraste com a trajetória de Otelo. Apesar de sua admiração pelo bardo, o “bruxo” retoma sua tragédia para subverter o que a sustenta. “O que se vê é o homem burguês carioca do século XIX, distante da grandiosidade heroica, recluso em uma existência amena e banal, satisfeito com sua capacidade de se esconder ou camuflar conflitos e sem vontade ou ímpeto de ação.” Incapaz da violência de Otelo, apesar de motivado pelo que vê no palco, não assassina Capitu, mas opta pela morte “apropriada” ao bom-tom de Contraste O herói de Machado carece de aspirações sua classe social, exilando-a na Europa. e ações, o que esvazia o caráter trágico de “Ao contrário da peça, em que a versua existência. “Quando ele vai ao teatro dade vem à tona, isso não acontece no e assiste a Otelo, vemos o contraste en- romance. Os personagens já estão mortre a vontade do herói de Shakespeare e tos e Bentinho tem ao final apenas a sua a falta dela no brasileiro. Bento deixa o verdade. Por não ter uma revelação, coteatro querendo matar e morrer, mas não mo Otelo, acredita que agiu como deveria. Machado coloca o narrador numa posição quase ridícula de afirmar o caráter trágico de uma existência que não consegue ser tráOtelo explode gica”, analisa Adriana. Seu o mundo em drama é ser parte de uma em que todos busca da verdade, modernidade são privados da verdade e levados a pensar que esta é mas Bentinho fruto de leituras parciais de fatos potencialmente ambínão tem a guos. “Ele se recolhe e não vontade de se confronta a não ser em sua intimidade e num espaencontrá-la ço que domina. Bento passa a conviver com seu conflito sempre em acomodação. Ao invés da suspensão do conflito em um confronto apaixonado, ele convive com ele de forma calculada e com sangue-frio, que permite a ele ignorar as cartas da esposa e desejar a morte do filho por lepra. A dialética da dúvida permanece.” Para a pesquisadora, Otelo explode o mundo em busca da verdade, enquanto Bentinho não tem a vontade de encontrá-la. Só resolve contar os fatos quando todos estão mortos e ele finalmente aprendeu a conviver com o que o oprime. Dominado pela mãe, que fez a promessa de pô-lo no seminário, fantasia encontrar o imperador na rua para pedir que interceda por ele junto à matriarca. É a moça quem age e o faz agir, imaginando meios reais de driblar a mãe, o que suscita o narrador a soprar no ouvido do leitor comparações com a pérfida Lady Macbeth. Percebe “amar” Capitu quando ouve, atrás da porta, comentários de José Dias. O casamento, enfim, acontece, mas apenas após uma demorada espera pela aprovação familiar. “Coerente com essa personalidade, Bentinho, mais tarde, corroído pelo ciúme, mostra-se incapaz de uma ação apaixonada. Não é um Otelo, extremado, mas um ser contido, larvar. Suas atitudes são violentas apenas na intenção, que guarda para si”, nota Adriana.
“Mantendo a aparência civil-burguesa, o público acanhado da época, encarnado em Dom Casmurro, suprime a verdade, seja qual ela for, asfixiando a alma e a ação nos fantasmas nebulosos do ressentimento. Os contemporâneos de Machado não desconhecem os conflitos, mas evitam identificá-los. O narrador machadiano é ambíguo ao subverter a cordialidade e compactuar com ela, ao mesmo tempo que analisa e ironiza, com total discrição, a misoginia patriarcal”, observa Kathrin. “Dom Casmurro resume um Bento, o narrador, longo relacionamento entre monta o cenário, Machado e Shakespeare, o ápice de um movimento em que ensaia o texto, os romances machadianos iniciais da retidão feminina e do mas a ação caráter moral cedem espaço às narrativas de protagonisnão acontece tas masculinos questionáveis em seus padrões ambivalentes de percepção ética”, avalia o sociólogo José Luiz Passos, professor da Universidade da Califórnia e autor de Machado de Assis: romance com pessoas (Edusp, inglês, que deformavam seu conteúdo, 2007). “O romance é o ápice dessa rela- adequando-o ao bom-tom neoclássico, ção do escritor com a literatura inglesa, apesar dos esforços do ator João Caetano uma relação incomum, para a época, com em conferir uma ‘violência’ vital às vera produção europeia. O resultado foi uma sões ‘diluídas’ de obras como Otelo”, fala maior ênfase no desenvolvimento psicoló- João Roberto Faria, professor titular de gico do personagem e nas emoções morais literatura brasileira da Universidade de dos narradores, traço que diferenciou sua São Paulo (USP). “Apenas naquele ano, em obra das demais tendências entranhadas que passou pelo Brasil a companhia italiana ficção brasileira”, observa. na de Ernesto Rossi, é que o escritor teve acesso mais direto ao universo do bardo.” “Shakespeare está sendo uma revelação realismo “Para Machado, os princípios burgueses para muita gente”, escreveu Machado, típicos do romance romântico não refle- deixando claro que se incluía nesse grupo tiam o processo social brasileiro. Em ter- e experimentara a grande diferença entre mos de realismo, esses dilemas já estavam ler e ver uma peça encenada. presentes há anos no teatro, muito à frente “Não é à toa que Bentinho confessa do romance nos anos 1871, em sua ânsia que, até ir ao teatro para assistir a Otede representar uma realidade racional”, lo, nunca vira a peça antes. Assistir à avalia Passos. Vale lembrar que a educa- tragédia o abala a ponto de tirá-lo de si, ção estética de Machado se deu em sua revelando o potencial do trágico como participação como crítico de teatro en- encenação. É um notável aproveitamento tre 1855 e 1865. “Falar do engano foi um do teatro dentro do romance, movimenponto importante como o teatro realista tando um gênero dentro de outro”, nota e o romance machadiano lidaram com a Adriana. As ações, a partir de então, dequestão da representação da ação huma- correm diretamente do teatro. Mesmo a na”, considera Passos. visão do desfecho de Otelo não altera o “Mas, até 1871, Machado e o resto do sentimento de Bentinho, que continua na país só tiveram conhecimento de Shakes- incoerência de suas conclusões. A ponpeare por meio da leitura e da represen- to de ele lamentar o fim de Desdêmona, tação de versões francesas das peças do mas perguntar: “Que faria o público se
ela deveras fosse culpada, tão culpada quanto Capitu?”. Ou seja, se a mulher de Otelo o tivesse mesmo traído, os espectadores ainda apreciariam o espetáculo? “Isso o faz desistir de matar Capitu, porque sua morte seria ‘justa’ e a justiça não é um ‘espetáculo trágico’ como ele deseja encenar. Pensa então em se matar”, fala a pesquisadora. A ideia de um cenário montado é levada ao extremo, com cuidado de retirar do “palco” tudo o que pudesse banalizar um efeito final grandioso: antes de se “matar”, Bentinho recolhe um livro de Plutarco e se mostra preocupado em como os jornais iriam descrever a cor de suas calças. “Ele se esforça em criar uma situação à altura de um herói trágico, mas a banalidade cotidiana reduz tudo ao ridículo. Ele monta o cenário, ensaia o texto, mas a ação não acontece. A tragédia em Dom Casmurro fica restrita ao palco, à encenação a que ele assiste. Ela reflete os sentimentos intensos do personagem, mas, na realidade, não há espaço para ação, pelo menos não no mundo desse personagem machadiano”, nota Adriana. “Ser e parecer, dialética fundamental em Machado, é, no fundo, a dialética entre ser e representar, entre rosto e máscara, entre autenticidade e dissimulação”, analisa Faria. Eis a questão. n Carlos Haag pESQUISA FAPESP 194 89
memória
Meu caro senhor Correspondência entre Darwin e Fritz Müller ajudou a consolidar a teoria da evolução Neldson Marcolin
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O
ano de 1864 foi especial para Charles Darwin. Sob fogo cruzado de grande parte da comunidade científica de seu país e do exterior, o cientista britânico viu serem publicados um livro e um artigo científico que atacavam suas ideias sobre evolução: Exame do livro do senhor Darwin sobre a origem das espécies, do fisiologista francês Pierre Flourens, e Sobre a teoria darwinista da criação, do anatomista suíço Albert Kölliker. A origem das espécies fora lançado em 1859 e tivera todos os seus 1.250 exemplares esgotados em um dia. A controvérsia sobre o tema transformou-se num grande debate científico internacional e ultrapassou rapidamente as fronteiras da academia. Para sorte do evolucionista, também em 1864 surgiu em Leipzig, Alemanha, outra obra abordando a teoria da evolução, cujo título não deixava dúvidas para qual lado pendia: Para Darwin (Für Darwin, no original). Seu autor era Fritz Müller (1822-1897), naturalista que vivia na então cidade de Desterro (atual Florianópolis), em Santa Catarina, e dava aulas no liceu provincial. 90 | abril DE 2012
O livro de Müller chegou às mãos de Darwin em 1865. Sua mulher, Emma, conhecedora do idioma alemão, leu para o marido já fazendo a tradução. Darwin ficou profundamente admirado com o trabalho. Ao contrário da imensa maioria dos que opinavam sobre A origem das espécies, o naturalista radicado no Brasil o fazia com propriedade, apresentando exemplos zoológicos descritos em detalhes que corroboravam a teoria da evolução, sem se deter em questões filosóficas e religiosas. “O livro foi muito importante para Darwin não só pelo apoio, mas também porque ajudou a consolidar a teoria darwinista na comunidade científica da época”, diz o biólogo e médico legista Luiz Roberto Fontes, coautor da tradução de Für Darwin (editora da UFSC, 2009) para o português com Stefano Hagen, professor da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de São Paulo. Ambos fazem parte do projeto Nosso Fritz Müller, de recuperação da memória do cientista alemão que viveu 45 anos em Santa Catarina, até sua morte. O naturalista havia chegado ao Brasil em 1852, aos 30 anos, com a mulher, uma filha
Larva náuplio de crustáceo estudada por Müller, uma das provas biológicas da evolução
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Microscópio original do naturalista, enviado pelo amigo Max Schultze
fotos 1. Desenho de Fritz Müller 2. Projeto Nosso Fritz Müller 3, 4 e 5. Luiz Roberto Fontes
e um dos irmãos para a Colônia Blumenau, em Santa Catarina. No começo trabalhava como simples colono, manejando a enxada e o machado, apesar dos dois títulos acadêmicos que possuía, como biólogo e médico. Foi em 1861, quando já estava em Desterro, que seu amigo Max Schultze lhe enviou a tradução alemã de A origem das espécies. Schultze o mantinha atualizado sobre os debates científicos na Europa e despachava anualmente para o Brasil livros e algum material para pesquisa, como um microscópio pedido por ele. Encantado com as ideias do inglês, Müller trabalhou sistematicamente no estudo de várias espécies, em especial crustáceos, e encontrou provas inequívocas do acerto darwinista. Nos anos seguintes ele reuniu suas observações e experimentos em uma monografia que, em homenagem ao inglês, chamou de Para Darwin. Em seguida o enviou para Schultze, que mandou publicar. O trabalho de Müller fez com que Darwin estabelecesse uma correspondência, colaboração e amizade
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“Não lhe surpreende frequentemente que a História Natural tem se tornado extremamente interessante pelos pontos de vista que nós ambos sustentamos? Isto me ocorre com frequência quando leio o seu trabalho” — Charles Darwin, 20.9.1865
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“Com toda certeza! Desde que li seu livro (...) muitos dos fatos que outrora eu via indiferentemente tornaram-se excepcionalmente notáveis. Outros, que antes pareciam insignificantes (...), adquiriram um elevado significado e, assim, toda a face da natureza foi alterada” 4
Livro de Müller traduzido para o inglês a pedido do cientista inglês (esq.) e o original em alemão
— Fritz Müller, 5.11.1865
que duraram até sua morte, em 1882, com cerca de 60 cartas trocadas de lado a lado. Em 1869 Darwin bancou do próprio bolso a tradução do livro para o inglês e a publicação de mil exemplares, com o título Fatos e argumentos a favor de Darwin. Até a sexta edição de A origem das espécies (1872), considerada a definitiva, havia 12 citações sobre os estudos de Müller. “Também ocorreu de Darwin considerar algumas cartas do naturalista alemão tão informativas que sugeria sua publicação como artigo científico em revistas especializadas”, conta Stefano Hagen. Fritz Müller teve uma extensa vida científica produtiva no Brasil (ver Pesquisa FAPESP nº 105) e publicou
cerca de 260 artigos, a maioria no exterior. Desde 2010, Fontes e Hagen colaboram com o Instituto Martius-Staden, de São Paulo, para maior divulgação da história e da obra de Müller. Foi montada uma exposição que percorreu 16 instituições diferentes pelo Brasil e será levada ao Centro Brasileiro da Universidade de Tübingen, na Alemanha, entre maio e julho. Como neste ano comemoram-se os 190 anos de nascimento do naturalista, o instituto transformou o catálogo da exposição no e-book bilíngue Fritz Müller – O príncipe dos observadores, a forma como Darwin referia-se ao amigo alemão naturalizado brasileiro. O e-book pode ser acessado em www. martiusstaden.org.br. PESQUISA FAPESP 194 | 91
resenhas
Roland Barthes: um cético moderno Olgária Matos
92 | abril DE 2012
fotos eduardo cesar
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oland Barthes - Uma biografia o que Barthes, neste livro, afastaintelectual, de Leda Tenório -se das injunções dogmáticas e de da Motta, inscreve Barthes suas prescrições. O desejo do Neuna grande tradição das “morais do tro é: “Suspensão das ordens, leis, grande século”, para logo apresentácominações, arrogâncias, terroris-lo na figura mais universal do filómos, ameaças, exigências, querersofo. Pois, se nos cortesãos de Luís cingir”. Nem ativa nem passiva, a XIV, La Rochefoucauld detectava indiferença barthesiana, mostra em cada vício a máscara da virtude, Leda T. da Motta, é distância com é por romper com a lógica do inconrespeito ao narcisismo da imagem trovertido em que o ser é e o não ser que se quer oferecer ao Outro, a não é. Neste sentido Leda Tenório que Barthes prefere o retiro que da Motta escreve: “A Barthes essas subtrai ao olhar, suspendendo as práticas de desmonte do logos que Roland Barthes – exigências da socialização. A indiestabiliza coisas instáveis sugerem Uma biografia intelectual ferença é aqui tédio com respeito Tenório da Motta todo um pautário que, passando pe- Leda ao status quo do conformismo, é Iluminuras / FAPESP los drogados baudelairianos postos 288 páginas, R$ 47 defesa contra o “acertar o passo” em beatitude, pela lucidez da hipergeneralizado. consciência de Monsieur Teste e pelos heróis Da poética à literatura, de Rimbaud a Cadistanciados de Brecht, vai da crise de Gide à mus, da semiologia ao estruturalismo, do marpostura zen”. (p. 52) xismo à indústria cultural, do mito à astroloDesfazendo a oposição binária e o princípio gia, o Neutro barthesiano é a indiferença que de identidade, a autora mostra de que maneira reúne a deriva suave à delicadeza, o discreto em Barthes a dúvida não é o “pensamento do à nuance. E, como o punctum fotográfico, o negativo” das sínteses hegelianas, porque não Neutro é o pungente que se opõe ao studium, se trata de contradição, mas do Neutro. Neutro, ao “estudado” para “comover”. Acompanhando observa Leda Tenório da Motta, não é Doxa, o os sentidos do Neutro, Leda nos mostra que, discurso dos lugares-comuns e dos estereótipos nesse “cético moderno”, à independência do da cultura contemporânea, que, ao gosto dos juízo é também “direito ao cansaço” “no meio críticos da mídia, define sem definir, dizendo “o do caminho desta vida”, momento disruptivo, gosto é o gosto” ou “Racine é Racine”. Neutro, punctum final da preparação do romance do diversamente, é “ne-uter”, nem um nem outro, último curso de Barthes no Collège de France, de um romance que não será escrito: “Nessas e um e outro. Reavendo a tradição do ceticismo antigo e de condições”, conclui Leda Tenório da Motta, Pirro, entre a tensão dos opostos e sua conciliação, “como poderia o poeta definir a literatura sea epoché é a “suspensão do juízo”, é o direito de não como o grau zero da escritura […], a forma calar-se. O que explica, observa Leda T. da Motta, do escritor sem literatura?” (p. 270) “em plano prático ou de neutralização ética, seu Com extremo rigor e máxima liberdade, Leda famoso silêncio em relação ao regime maoista; sua Tenório da Motta faz ver no Neutro barthesiano decisão de não julgar o Japão moderno e tecnoló- a metafísica da impermanência, a lei do efêmero, gico, em seu O império dos signos, para só ficar nos a vanidade das coisas e a grandeza do instante. minimalismos da cultura nipônica ancestral; sua Instante da “vita nova”, ou “a morte do autor”, escapada para o Marrocos logo depois dos acon- a vita nova é a morte do autor. tecimentos de maio de 1968, cuja cultura partisan Matos é professora titular do Departamento de Filosofia o aborrece.” Nem ativa nem passiva, a apathia Olgária da Universidade de São Paulo e professora visitante do curso de não é desafeto, mas sobrietas e delicadeza. Com Filosofia da Universidade Federal de São Paulo.
Memórias de um cientista subversivo Mariluce Moura
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odas as agruras a que o prosos olhos. A colina do gene CRO. A cesso político brasileiro subcolina de Harvey Eisen, Pereira da meteu ciência e cientistas no Silva e François Jacob. Control of país, no período da ditadura inauthe Repressor and Others. Uma bela gurada em 1964, ganham cor e vicolina!” (p. 217) bração extraordinárias no recémNeste livro que inclui duas obras já -lançado Crônicas subversivas de publicadas, O fio da meada e Crônicas um cientista, de Luiz Hildebrando de nossa época, o talento narrativo Pereira da Silva. Mas, em paralelo, do cientista, atuante aos 83 anos, se também ganham uma transcrição revela em toda a sua força também literária poderosa a avassaladora nos textos que trazem à cena retalhos emoção e o prazer que podem irpreciosos da história do Brasil vista romper de uma descoberta científidesde o campo da esquerda militanca a que se chega após longo tempo te, e do Partido Comunista (PCB) em Crônicas subversivas de um cientista de buscas extenuantes, mesmo teparticular. Seja do exílio europeu, Luiz Hildebrando diosas. E nesse exato instante fica seja de dentro do navio Raul Soares, Pereira da Silva muito longe a identidade de cienonde ele e tantos ficaram presos após Editora Vieira & Lent tista no exílio para impor-se a do o golpe de 1964, Hildebrando apre477 páginas, R$ 68,00 cientista apaixonado em qualquer senta ao leitor personagens grandiolatitude. “Tarde da noite, quando terminamos e sos e outros um tanto ridículos, cenas hilárias, traincubamos tudo aquilo na estufa, estávamos es- tadas com penetrante ironia, e outras dolorosas, gotados. E, no entanto, bem gostaríamos de po- perpassadas por infinita tristeza. É assim que ele der ficar lá, ao lado, esperando o resultado. Mas conta, por exemplo, a última recepção a Roberto é contra as regras da ética. Os cientistas devem Morena, militante comunista em perpétua peregrimostrar-se frios e indiferentes. Toda demons- nação. “Vejo sair do avião primeiro os turistas e os tração afetiva por seu trabalho ou por sua obra homens de negócios, depois Benedito Cerqueira, é malvista. Assim fomos dormir segundo as nor- seu camarada na FSM, que o traz nas mãos. Ele me mas da profissão.” O que ele narra é o parto do passa Morena e eu o tomo em meus braços com gene CRO (Control of Regulator and Others). “No ternura. Ele não pesa muito. Apenas um quilinho. dia seguinte, cedinho, depois de uma noite mal Um quilinho de cinzas.” (p. 282) dormida, chegamos ao laboratório. Diretamente Chama atenção a capacidade de Hildebrando à estufa. Tiramos as placas todas do interior e as de fugir a toda tentação maniqueísta e, por isso, depositamos sobre a bancada. É o grande mo- poder flagrar, de repente, no olhar de um polítimento. Um suor frio nos escorre das têmporas co como o ex-governador paulista Adhemar de (...).” Nesse mesmo diapasão ele segue contando Barros, naturalmente um adversário, um lampejo o nascimento, a comemoração com champanhe de pura dignidade e determinação, e não se furno Instituto Pausteur, em Paris, os comentários tar a revelá-lo. E impõe-se por fim ao meu olhar abobados de pais recentes, o registro do recém- o quanto é povoado quase que só por homens o -nascido. (p. 241) universo por ele narrado. É um código masculiAlgumas páginas antes, numa outra crônica, no da amizade que apreendemos quando ele diz: Hildebrando já se referira a esse filho dileto de “No momento da despedida, o fiscal de rendas me seu trabalho científico que é dado à luz depois estendeu a mão, que apertei com cordialidade. de ele e outros companheiros de jornada pinga- Ao balançar a minha, com uma pressão em que rem “milhares de gotas”, esfregarem “milhares eu reconhecia ternura de um novo companheiro, de placas” e contarem “milhões de buraquinhos”. ele me disse: (...) se eu for preso outra vez não “Um dia... Uma nova bela colina se revelou a nos- será mais por corrupção... Será por subversão!” PESQUISA FAPESP 194 | 93
Arte
A novíssima música brasileira Dois mecanismos de incentivo fiscal viabilizam a gravação e circulação dos sons do nosso tempo João Marcos Coelho
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m geral, os mecanismos de incentivos fiscais induzem à proposição de projetos grandiosos, nos quais as empresas patrocinadoras estão mais de olho na mídia do que propriamente na qualidade artística do que viabilizam. E fazem questão de escolher seus projetos porque, segundo seu raciocínio pragmático, deslocar suas verbas de isenção fiscal para o fundo do Ministério da Cultura é abrir mão de qualquer dividendo institucional. É assim aqui, mas é assim também no mundo inteiro, onde mecenas despejam milhões de dólares em bibliotecas e centros culturais... desde que levem seus nomes e sobrenomes. Mas de vez em quando o Estado acerta. Em ao menos dois casos específicos, a ideia de abrir inscrições para projetos de pequena monta, avaliados por comitês especializados (traduza-se: profissionais), está provocando um fato inimaginável: a música novíssima contemporânea brasileira encontrou aí seus canais de divulgação. Sim, é aquela música atual que, por hermetismo, experimentação e completa refração às leis de mercado, acaba permanecendo ou nos limites do mundo acadêmico, ou então nas estantes dos criadores. O milagre aconteceu basicamente por causa de dois mecanismos de incentivos inovadores: o Proac, sistema de incentivos do governo do estado via Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo que funciona mos moldes da Lei Rouanet federal: abate do ICMS devido das empresas – só que, como os valores são baixos, amplia-se o leque das empresas e torna-se mais fácil a caça ao patrocinador, normalmente feita pelo próprio compositor e/ou músicos. De outro lado, uma fórmula ainda melhor é praticada pelo sistema profissionalíssimo da Petrobras, onde o rigor de seleção é maior e os projetos viabilizam-se financeiramente no momento de sua aprovação. Em 94 | abril DE 2012
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ambos os casos, os projetos dificilmente ultrapassam a casa dos R$ 200.000,00. Por isso têm endereço certo: os próprios artistas/produtores, que enxugam ao máximo seus orçamentos porque querem mais que tudo viabilizá-los. Os otimistas andam falando em avalanche de CDs com músicas novíssimas de jovens compositores paulistas e/ou aqui radicados, de todo o Brasil. Os realistas aplaudem porque finalmente temos acesso a gravações dignas de obras dos compositores jovens, na faixa dos 30, 40 anos. Melhor raio X da música experimental brasileira atual não poderia existir. Dois notáveis exemplos
Dois exemplos notáveis dessa safra de lançamentos deste início de 2012 destacam-se porque são gravações de intérpretes e utilizam o mesmo mecanismo de incentivo fiscal, o do Proac. É um sinal claro de que os músicos de cabeça
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1. Partitura de Leonardo Martinelli – Ayahuasca
fotos divulgação
2. Livreto do álbum duplo Música plural. Intérprete: Percorso Ensemble, regido por Ricardo Bologna
Nota Os três CDs citados podem ser comprados na Loja Clássicos (www.lojaclassicos.com.br). O álbum duplo Música plural é gratuitamente distribuído pela loja. Cobra-se apenas o frete
mais aberta – infelizmente ainda raridade no meio musical brasileiro – assumem uma postura de vanguarda e dedicam-se com talento e afinco à música novíssima. É o caso da excelente pianista Lidia Bazarian, que começou na música contemporânea ainda em Belo Horizonte, no grupo Novo Horizonte, e agora atua na Camerata Aberta, único grupo permanente dedicado às músicas de hoje no país. Pois ela acaba de lançar o CD Imaginário, em que interpreta obras para piano-solo de Silvio Ferraz, Marisa Rezende, Rogério Costa, Marcos Branda Lacerda, Gustavo Penha, Valéria Bonafé e Tatiana Catanzaro. Os três últimos, entre os 20 e 35 anos, são novíssimos compositores, que ou estudaram, ou foram influenciados pelos quatro primeiros, hoje na casa dos 50, 60 anos. E que música é essa? Certamente muito longe das tendências pós-modernas norte-americanas, está bem mais próxima da experimentação mais radical à europeia, numa pesquisa original de timbres, texturas, gestos e sonoridades. O mesmo halo se sente no maravilhoso CD de violino-solo da italiana Simona Cavuoto, aqui radicada há sete anos. Simona integra a Osesp e também a Camerata Aberta. Um violino na metrópole combina obras para violino-solo de Willy Corrêa de Oliveira, hoje com 73 anos, e uma espécie de decano da música nova, e de compositores hoje na casa dos 40 anos, como Marcus Siqueira, Marcus Alessi Bittencourt, Rodrigo Lima e Maurício de Bonis. Se não há uma afinidade estética declarada entre eles, ao menos todos se deixaram influenciar pela magnífica escrita de Willy, certamente tão talentoso do ponto de vista verbal quanto compondo. “O violino mais canta – quanto mais esteja só” é uma frase-chave que Willy dispara poeticamente na abertura de seu texto. E, de certo modo, é o mote das obras díspares do CD, porque a aura romântica e virtuosa está tão emprenhada no DNA do violino que é praticamente impossível fugir de seus encantos históricos ao compor. Surpreende, por exemplo, Simona confessar que “os brasileiros são muito abertos à produção musi-
cal contemporânea. Sinto-me mais lúcida e conectada com a atualidade do mundo estando aqui”. Ou seja, nós, brasileiros, que consideramos duríssima a luta pela afirmação e divulgação da música nova, deveríamos dar uma olhadela nos quintais alheios, lamentar menos – e trabalhar mais. Olhem as idades dos compositores deste CD: Marcus Siqueira e Marcus Alessi Bittencout têm 37 anos; Rodrigo Lima, 35, e Mauricio de Bonis também ainda não chegou aos 40. Todos lidam com técnicas expandidas. E criam obras que Gilberto Mendes chama, com razão, de pós-neue musik (o neue musik refere-se à ortodoxia vanguardista europeia do pós-guerra, liderada por Stockhausen, Pousseur, Boulez e Berio, nos cursos de Darmstadt, Alemanha). Além dos CDs, há também apoios a projetos mais distendidos ao longo do tempo. Como o “Móbile: processos musicais interativos” (ver Pesquisa FAPESP nº 190), projeto temático apoiado pela FAPESP que começou em 2009 e terminará em 2013. Idealizado por Fernando Iazzetta, da USP, em 22 de março foi realizado seu segundo concerto por internet rápida, integrando o Festival Sonorities de Belfast, na Irlanda do Norte, onde o concerto foi o evento de abertura de um festival internacional de música contemporânea – e também de qualquer lugar do planeta, via streaming pela internet no site www.eca.usp.br/mobile. A amostragem mais abrangente
O panorama mais diversificado e representativo da novíssima música contemporânea brasileira, entretanto, está no álbum duplo Música plural. Ele foi produzido em 2009 por um grupo de jovens compositores, todos na casa dos 30 anos: Felipe Lara, Bruno Ruviaro, Tatiana Catanzaro, Thiago Cury, Fernando Rederer, Alexandre Schubert, José Orlando Alves, Januibe Tejera, Marcus Siqueira, Leonardo Martinelli, Arthur Rinaldi, Matheus Bitondi, Guilherme Nascimento, Sérgio Roberto de Oliveira e Neder Nassaro. Eles utilizaram o mecanismo de incentivo fiscal da Petrobras. Sua riqueza advém justamente do fato de que não há consenso estético hoje em dia. Daí o acertado adjetivo “plural” do título. Lá estão desde Felipe Lara, por exemplo, compositor que já venceu nos EUA e Europa, e também Leonardo Martinelli, um compositor ativista, que também exerce o jornalismo e dá aulas na universidade. Tatiana Catanzaro estudou com bolsas da FAPESP e Capes no Brasil e na França, e trabalha hoje em Paris com um dos mais qualificados grupos europeus dedicados à música contemporânea, o Ensemble Itinéraire. Ao todo, 15 obras, todas compostas na primeira década do século XXI. Juntas, compõem um significativo caleidoscópio da diversidade da criação contemporânea brasileira. n PESQUISA FAPESP 194 | 95
conto
Filosofia [minirromance-deformação]
Denilson Cordeiro
Ao Paulo Arantes “É preciso muito mais, para perder o medo de rir da filosofia, de si mesmo e do mundo – é preciso também aprender a rir através da filosofia.” [Bento Prado Jr., Por que rir da filosofia?]
Geral
— Professor, por que em filosofia o aluno está sempre errado? — Não é bem assim. — Tá vendo, errei de novo!
Patrística
O menino de sete anos chegou da escola e foi logo perguntando pra mãe: — Mãe, o que é fé? A mãe, emocionada, pediu ao filho que se sentasse e começou muito calmamente a tentar dar uma ideia do que era, na sua modesta concepção, a fé. Falou de Deus, da Criação, da Bíblia e da condição dos homens na Terra. Depois de muito explicar e não sabendo mais que rumo dar à conversa, intrigada, a mãe quis saber do filho o motivo da pergunta. Ele, entre displicente e enfadado, disparou: — Ah, é porque um menino lá na escola me chamou de “fé da puta”.
Ética
— Tem que comer mesmo, nós que somos fortes temos que comer, ainda mais nesta hora do dia, minha mãe sempre dizia isto. Não adianta ficar com essas coisas de regime. Não é que se deva exagerar, comer sem limite, mas ficar sem comer também não dá. O importante é que o 37 esteja funcionando, hein?! Sabe, com 20 ou 30 anos eu também era galinho, você já foi, ele já foi. Agora a gente sabe tratar uma mulher, porque você sabe que a mulher vai onde o homem quiser, não é? Pra ter um casamento de uns 20 ou 30 anos, precisa tratar bem a mulher, fazer uns carinhos, fazer ela gozar. Tem que saber ir devagar, saber segurar, porque aí é aquela maravilha. A molecada faz que nem galo, eu já fui galinho, tudo muito rápido e sem aproveitar, hoje são outros quinhentos.
Política
(a partir de uma fábula afegã)
É noite e um homem está procurando alguma coisa sob a luz de um poste de iluminação pública. Um outro passa e pergunta: — O que faz aqui? — Procuro minhas chaves. O outro começa a ajudá-lo. Passado algum tempo de busca infrutífera, pergunta: — Mas você tem certeza de que as perdeu aqui? — Não, eu as perdi lá adiante. — E por que procura aqui? — Porque aqui tem luz, lá não. 96 | abril DE 2012
Educação
— Acordou certa manhã sem a mínima vontade de ir à escola. Queria continuar a leitura iniciada na noite anterior e deixar-se levar pelo encantamento do mundo criado pelo escritor. Não teve como convencer sua mãe que, envolvida com a preocupação de educá-lo, não poderia ter olhos para seus desejos cujo princípio para ela era o de estarem de antemão errados ou, quando muito, coalhados por uma imperfeição congênita, daí o trabalho corretor da escola. Naquele dia, teria sido melhor ficar em casa, mas até hoje sua mãe acha o contrário. Ela não suportaria ter sido diferente. E ele?
Iniciação
Estética
à maneira de Julio Cortázar
Do pincel sobre a tela, sai um traço que acaba de compor uma imagem, contorna o canto, passa por um ponto, medra pelo meio da mesa, corre pelo chão, ladeia os ladrilhos, pende pela porta, avança pelo átrio, cai e corre pelo corredor, escoa escada afora, ganha a gota suspensa na torneira do tanque, joga-se no jardim com as sementes secas, fixa uma flor, retoma a rota, meticulosa move-se pelo meio-fio. Já na rua, toma um táxi, cruza com um caminhão, deixa-se disfarçar na carroceria, cai no colo de uma criança até tomar pelos trilhos o caminho do cais. Persegue a proa. Distrai-se redesenhando um rosto até aportar no píer. Margeia a quina, salta num contêiner, arrisca-se sobre uma carga e, estrangeira, segue serra acima. Avança no labirinto da cidade até encontrar o movimento de uma mulher, alcança-a pela costura da calça e chega ao fio do seu olhar no momento exato em que ele se concentra no traço do artista que acaba de compor uma imagem.
ilustração catarina bessell
Lógica
— Um cárcere pode ser maior do que o mundo. Emparedado pelas exigências de normalidade, o desajustado, mesmo percebendo que a sua loucura é o resultado da tensão entre as exigências do mundo do consenso e aquelas da ordem do seu desejo, não encontra ressonância para suas palavras senão lá onde vê reforçado ainda mais o seu confinamento. Poderia ser outra a história de um homem comum?
— Um estudante de filosofia está diante de um telefone público e, embora entre eles não haja nenhum parentesco, espera que, de algum modo, lhe devolvam as certezas. Sabe que não será fácil, mas a impossibilidade de interrogar indefinidamente o mundo o faz ter forças para suportar o frio da dúvida. Visto de longe, com roupas normalmente impróprias, o estudante de filosofia poderia responder sobre a necessidade do imperativo categórico na estrutura da razão prática, mas com o telefone soando, nunca sabe o que fazer. Atender ou não? Que dizer? Será um pedido de socorro? Blefe? O caminhão em alta velocidade o distrai. O jornaleiro desconfia se tratar de um protestante, um pregador na iminência do sermão. Embora sejam só hipóteses, é provável que o ônibus chegue primeiro. São três horas e o vento dos carros traz um forte cheiro de combustível queimado, um pedinte passa pelo estudante e não pede nada, tampouco o olha, só abaixa-se, pega uma bituca e continua seu caminho. O suor escorre pela camisa preta fechada até o colarinho, o paletó causa um desconforto suportável, a calça de tergal assa um pouco a perna. O sujeito imprime ao objeto, para o bem e para o mal, suas idiossincrasias, pensa. Não há verdade que tenha chegado ao objeto e que não tenha antes passado por um tipo de fé na lucidez. O guarda de trânsito não pode entender a persistência do estudante de filosofia, como se algum dia se desse ao trabalho de se perguntar por tanto. Quem pensa que o estudante sofre está certo, mas deixa de estar se imagina que alguém deve surgir em seu socorro. Afinal, quem seria capaz de afirmar que esta é a parada certa para o ônibus que deveria levar o estudante de filosofia para o seu destino? Denilson Cordeiro é professor de filosofia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
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98 | abril DE 2012
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