Ciência e Tecnologia A no Brasil
Outubro 2004-n 04
FAPESP
FIBRA AMAZÔNICA NA INDÚSTRIA A VIDA EM RISCO NA METRÓPOLE CONFLAGRADA
Terras
à vista
uom os programas ae Tinanciamento aos setores do turismo, agronegócios, indústria, comércio e serviços, o Banco do Brasil contribui para o fortalecimento dos negócios de micro e pequenos empreendedores e para o desenvolvimento do País.
SÓ tem a ganhar.
O tempo todo com^
voce
A IMAGEM DO MÊS
Depois de passar três anos no espaço em busca de partículas solares, a cápsula da sonda Gênesis espatifou-se ao retornar à Terra, no deserto de Utah, nos Estados Unidos, devido a uma falha do pára-quedas. Mas nem tudo se perdeu: técnicos da Nasa conseguiram recuperar uma parte da carga.
PESaUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 3
www.revistapesquisa.fapesp.br
42
CAPA
A descoberta de novos planetas acirra disputa entre astrofísicos para encontrar mundos à semelhança da Terra
14
ENTREVISTA
Jorge Wagensberg, diretor do Museu da Ciência de Barcelona, defende uma museologia interativa capaz de emocionar o público 4 ■ OUTUBRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 104
REPORTAGENS POLÍTICA CIENTÍFICA ETECNOLÓGICA
26
INDUSTRIA
30
INOVAÇÃO
Debate promovido pelo Instituto Uniemp reafirma o papel central das empresas na geração de tecnologia
Fórum vai reestruturar a política nacional de biotecnologia para tornar mais competitivas as empresas
Rede integra dados de coleções de plantas, animais e microorganismos de São Paulo e do exterior
28
U4 FOMENTO
DESENVOLVIMENTO
Pesquisadores da Unicamp criam índice para avaliar bem-estar econômico e coesão social do país
FAPESP fecha 2003 com recuperação financeira acima do previsto
REPORTAGENS
CIÊNCIA
50
FíSICA
TECNOLOGIA
70
Fibras secas da planta curauá ganham uso em acabamento de carros, roupas e até medicamentos
54
76
aUIMICA
Uma mesma mutação pode causar três doenças neurológicas que afetam os movimentos
56
GENOMICA
BOTÂNICA
Cerrado compartilha mais da metade de suas árvores com a Mata Atlântica e a Amazônia
62
Exibição e tese resgatam do esquecimento as mulheres artistas do século 19 ao Modernismo
Uü COMUNICAÇÃO VISUAL
Método identifica seqüências com funções em meio às áreas desérticas do DNA
60
ARTES PLÁSTICAS
NOVOS MATERIAIS
Incursões de físicos em outras áreas ajudam a resolver problemas na genética, na medicina e na economia
GENÉTICA
88
MEDICINA
Pós-doutorado sobre antropologia é feito na forma de página da Internet Técnica utiliza bromélias e liquens para medir a poluição do ar em São Paulo
80
NUTRIÇÃO
Crianças descobrem os alimentos mais saudáveis com incentivo de jogo educativo
06 SEGURANÇA Sistema de reconhecimento identifica placas de veículos e as compara com banco de dados
SEÇÕES A IMAGEM DOMES
3
CARTAS
6
CARTA DO EDITOR
9
MEMÓRIA
10
ESTRATÉGIAS
20
LABORATÓRIO
38
SCIELO NOTÍCIAS
64
LINHA DE PRODUÇÃO
66
LIVROS
93
CLASSIFICADOS
95
FICÇÃO
96
HUMANIDADES
84 Nitrato de prata mostra-se eficaz para evitar o acúmulo de líquido entre as membranas pulmonares
SOCIOLOGIA
Estudos mostram como a violência molda o cotidiano em cortiços e bairros periféricos de São Paulo
Capa e ilustração: Hélio de Almeida
PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 5
CARTAS cartas@fapesp.br
CARLOSVOGT PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOn ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANNWEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÉ ARANA VARELA, MARCOS MACARL NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, RICARDO RENZO BRENTANI,VAHAN AGOPYAN, VOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO E DIRETOR PRESIDENTE (INTERINO) JOSÉ FERNANDO PEREZ DIRETOR CIENTÍFICO
Prêmio Gostaríamos de parabenizar Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto pelo Prêmio sobre Biodiversidade da Mata Atlântica e desejar-lhes sempre muito sucesso.
PESOUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES OOS SANTOS (COORDEUAMRCIENTiFICM, EDGAR DUTRA ZANOTTO, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, JOSÉ FERNANDO PEREZ, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO.WALTERCOLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN
EQUIPE DO INVENTáRIO FLORESTAL
Instituto Florestal São Paulo, SP Vocês fazem excelente jornalismo científico e merecem o destaque.
EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÍUCIA), CARLOS HAAG (HMAUIOAtES), CLAUDIA IZIQUE (POlIIICAClT), HEITOR SHIMIZU (VERSÃOOHI«E), MARCOS DE OLIVEIRA (IEC«OLOCI«) EDITORES ESPECIAIS FABRiCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA EDITORES ASSISTENTES OINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS OIAGRAMAÇÂO JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAYUMl OKUYAMA FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOVAYAN COLABORADORES ANA MARIA FERRAZ, BRAZ, CAROL LEFÈVRE, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), IVANA ARRUDA LEITE, JOANA MONTELEONE, LAURABEATRIZ, LEDA BALBINO, MARCELO HONÓRIO (ON-LINE), MARCELO LEITE, MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, NEGREIROS, RENATA SARAIVA, SABRINA DURAN, SAMUEL ANTENOR, SIMONE MATTEOS, SlRIO J. B. CANÇADO,THIAGO ROMERO (ON-LINE) ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-mail: fapesp@teletarget.com.br APOIO DE MARKETING SINGULAR ARQUITETURA DE MlDIA slngular@sing.com.br
CéSAR ADES
Instituto de Psicologia/USP São Paulo, SP O trabalho que vocês fazem para a ciência brasileira não tem preço. CARLOS MENCK
Instituto de Ciências Biomédicas/ USP São Paulo, SP Parabéns pelo prêmio da SOS Mata Atiântica e da Conservação Internacional. Mantenham o ótimo trabalho que já nos acostumamos a ler. IB/USP São Paulo, SP
PRÉ-IMPRESSÃO GRAPHBOX-CARAN IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA DISTRIBUIÇÃO DINAP CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMX (ALESSANDRA MACHADO) TEL: (11) 3865-4949 atendimento@lmx.com.br GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP
FAPESP RUA PIO XI, N" 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SAO PAULO - SP TEL. (11) 3838-4000 - FAX: (11) 3838^181 http://www.revistapesquisa.fapesp.br cartas@fapesp.br NÚMEROS ATRASADOS
Vocês realmente merecem o prêmio. MARCOS BUCKERIDGE
Instituto de Botânica São Paulo, SP Parabéns pelo prêmio de reportagem. THOMAS LEWINSOHN
Unicamp Campinas, SP
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Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP t PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO
FUNDAÇÃO DE AMPARO A PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO ETURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
6 • OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
ROBERTO GOMES DE SOUZA BERLINCK
Instituto de Química de São Carios/USP São Carlos, SP
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impUcações para a sociedade. Todavia, ele se engana quando afirma "ser uma visão romântica" o fato de a biodiversidade nacional poder ser considerada base de novos remédios. Levantamentos realizados em 1996 e em 2003 por pesquisadores do National Câncer Institute no periódico Annual Reports of Medicinal Chemistry, e publicados no periódico Journal of Natural Products, revelaram que mais de 60% dos fármacos no mercado são ou produtos naturais, ou derivados de produtos naturais, ou ainda baseados em produtos naturais, tal como o captopril e a cimetidina, mencionados pelo pesquisador em sua entrevista. Tendo esta visão em mente, existem vários grupos de pesquisa no Brasil empenhados não em desenvolver fármacos, mas em descobrir substâncias que possam eventualmente vir a ser modelos para o desenvolvimento de fármacos.
Gilberto De Nucci Bastante interessante a entrevista com o professor Gilberto De Nucci (edição n" 103), que levanta muitos pontos importantes sobre a questão a respeito da pesquisa e desenvolvimento de fármacos no Brasil e suas
Cumprimento-os pela formidável entrevista concedida pelo farmacologista Gilberto De Nucci, sobretudo pelo seu caráter iconoclástico. Embora com posições políticas por demais simpáticas ao mercado, o entrevistado foi desmitificador quanto à autoridade científica dos médicos nos seus diagnósticos e também quanto à eficácia e à cultura de ingestão de remédios. PAULO JONAS DE LIMA PIVA,
Itapira, SP Com referência à entrevista do professor Gilberto De Nucci, gostaria de esclarecer que, no mundo todo, os medicamentos só chegam ao consumidor após rigorosas avaliações sobre sua eficácia e segurança - incluindo estudos pré-clínicos e clínicos e análises farmacotécnicas - realizadas pelos órgãos reguladores internacionais. Somente depois desse processo
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Ciência e Tecnologia 9 no Brasil
Pesquisa ■i
tetizar a visão da indústria farmacêuexaustivo de avaliação é concedido o tica, cito outra afirmação do prof De registro de um medicamento e autoriNucci à Pesquisa FAPESP:"... o fato é zada a sua comercialização. Os medique existem medicamentos bons, que camentos disponíveis no Brasil são ajudam a medicina a avançar. Aliás, a os mesmos aprovados e disponíveis medicina só progride com medicaem todo o mundo. No Brasil, o regismento. O resto não conta muito". tro de um medicamento tem de ser aprovado pela CIRO MORTELLA Câmara Técnica Federação de MedicamenBrasileira EMPRESA QUE APOIA da Indústria tos (Cateme) da A PESQUISA BRASILEIRA Farmacêutica Agência NacioSão Paulo, SP nal de Vigüáncia Sanitária. A CaCorreções teme é composta por especialiso oxido nitas em ciências troso (N2O) é farmacêuticas, mais conhecido médicos renopor gás hilarianmados, pesquite e não o dióxisadores, profesdo de nitrogênio sores titulares das (NO2), como foi principais faculpublicado na redades de mediportagem "A dercina. Em alguns rota da dor" (edicasos, consulTropiNet.org ção n" 103). tores externos também são conNo texto "Fovocados para go contra fogo" analisar a quali(edição n" 103), por um erro de edidade e a eficácia dos medicamentos. ção, onde se lê "Os ateadores levam Como o professor De Nucci afirma nada menos do que 100 minutos na entrevista, em todo o mundo "os para incendiar o 1 m de sua linha..." laboratórios têm de informar o resulleia-se "Os ateadores levam nada metado de todas as suas pesquisas, sejam nos do que 100 minutos para incenfavoráveis ou não ao seu produto, ao diar os 1000 m de sua linha..." como órgão regulatório, que, então, decide havia sido escrito corretamente pelo autorizar a venda do medicamento jornalista Marcelo Leite. ou não". Há uma grande diferença entre o debate de caráter científico Na nota "Método identifica hepaque o professor De Nucci introduz e totoxinas" (edição n° 102), a legenda a generalização grosseira de que a correta é "Microcytis sp. no microscómaioria dos medicamentos não tem pio: contaminação fatal" e não "Mivalor para a prática médica. A questão crocistinas". Microcistina é a toxina e é outra. Como ele diz: "É difícil apliMicrocystis é a cianobactéria que procar os métodos usados em laboratóduz esta toxina. rio na prática da medicina". O mundo teria um grave problema de saúde pública se realmente dois terços dos Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181 medicamentos disponíveis no merou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, cado não funcionassem ou atuassem CEP 05468-901. As cartas poderão ser meramente como placebo. Para sinresumidas por motivo de espaço e clareza.
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NOVARTIS
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Site da revista No endereço eletrônico www.revlstapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos d Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.
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CARTA DO EDITOR
Entre celebrar e narrar A ntes de comentar o cardápio ZA desta edição, aliás, a meu ver Â. A. saboroso e suculento o suficiente a ponto de satisfazer paladares exigentes, gostaria de compartilhar com os leitores nossa alegria por mais uma vitória de profissionais da equipe da revista: Pesquisa FAPESP conquistou no mês de setembro os dois primeiros lugares do Prêmio de Reportagem sobre a Biodiversidade da Mata Atlântica, na categoria mídia impressa, concedido pela Aliança para Conservação da Mata Atlântica. Não foi a primeira vez que a revista se saiu bem neste prêmio: nos dois anos anteriores, ela também assegurou sua presença entre os veículos nacionais de comunicação que, na avaliação dessa ONG, Zorzetto e Fioravanti: publicaram as melhores reportagens sobre Mata Atlântica no período. Mas desta vez a revista foi mais longe e, com duas reportagens inscritas, garantiu, digamos assim, nada menos que o ouro e a prata da competição - feito que comemoramos abertamente, sem falsa modéstia e sem nos investirmos de um falso ar blasé. A reportagem que mereceu o primeiro prêmio foi A floresta renasce, de Carlos Fioravanti, Ricardo Zorzetto e Marcello Ferroni, publicada na edição n° 91, de setembro de 2003.0 primeiro é editor de ciência desta revista desde 1999, o segundo é editor assistente da mesma área desde 2002 e o terceiro, ligado atualmente à editora Globo, é nosso colaborador eventual. Enriquecido por um grande mapa encartado na revista, sob o título O verde em São Paulo - viabilizado por trabalho dos coordenadores do Programa Biota-FAPESP, em especial Carlos Alfredo Joly -, o texto mostrava que a vegetação natural paulista recuperara 3,8% do espaço perdido nas últimas décadas porque, embora o Cerrado estivesse quase acabando, a Mata Atlântica voltara a crescer. O segundo prêmio foi para a curiosíssima reportagem As teias da inteligência, de Ricardo Zorzetto, publicada na edição n° 93, de novembro de 2003, que mostrou como a capacidade de memorizar informações permite a esses pequenos animais aprimorar seus hábitos instintivos de caça. Fioravanti, sobre quem já falei em outras ocasiões, é, aos 43 anos, profissional maduro e, insisto, um dos melhores profissionais do país em atuação no jornalismo científico. Seu prêmio lhe dará o direito de acompanhar entre 17 e 25 de novembro, em Bangcoc, Tailândia, depois de uma passagem de alguns dias por Londres, o 3° Congresso Mundial da Natureza, um dos maiores eventos internacionais de conservação ambiental. Zorzetto, aos 29 anos, é um jovem muito talentoso, que cava
as informações até a exaustão para apresentá-las de forma irrepreensível em textos bem elaborados, elegantes, harmoniosos. Seu prêmio lhe valeu um cheque de R$ 4 mil. Brindar ao sucesso deles foi um prazer. Mas vamos a alguns comentários sobre a edição. Na reportagem de capa, o editor especial Marcos Pivetta traça, a partir da página 42, um 1 vasto e fascinante panorama sobre J a busca por planetas mais parecidos com a Terra em torno de estrelas semelhantes ao Sol, que astrônomos vêm empreendendo há vários anos e que, finalmente, em agosto, começou a se mostrar bem-sucedida: três planetas com massas entre 14 e 18 vezes a da Terra foram anunciados por equipes de pesquisadores da Europa e dos Estados Unidos, que vêm disprêmios putando essa corrida, na qual, aliás, há uma discreta participação brasileira. É leitura fascinante. Ainda no campo da ciência vale destaque a reportagem assinada por Fioravanti sobre os avanços das aplicações da física matemática em campos tão diversos como a propagação de células tumorais ou, melhor ainda, a melhor maneira de um presidente de uma empresa liderar sua equipe. Estranho? É bom conferir a partir da página 30. Nos domínios da tecnologia, a editora assistente Dinorah Ereno detalha a partir da página 70 a versatilidade de usos da fibra do curauá, que, submetida a processos inovadores, vem se mostrando adequada para compor de revestimento de carros a tecidos sofisticados. Registre-se que o curauá é uma planta amazônica da mesma família do abacaxi, utilizada secularmente pelos índios na fabricação de cordas, redes de dormir e linhas de pesca. Em humanidades, publicamos uma reportagem do editor especial Fabrício Marques sobre pesquisa que, entrando no âmago da vida cotidiana em cortiços e bairros da periferia de São Paulo, revela, a partir da página 84, como a violência a condiciona e como ela se tornou símbolo da verdadeira destituição dos direitos civis e sociais dos moradores dessas áreas. Para finalizar, um presente da revista para os leitores: A homenagem, um belo conto de Ivana Arruda Leite, em que explora com sensibilidade as contradições da alma de um velho professor, entre o júbilo e o medo, entre a vaidade e a insegurança. É o primeiro da seção de ficção da revista, cujo propósito é refletir, no modo literário, sobre os mais diversos aspectos da atividade de pesquisa. Boa leitura! MARILUCE MOURA
- DIRETORA DE REDAçãO
PESaUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 9
MEMóRIA
A história de uma marca Como Gurgel conseguiu fabricar carros totalmente brasileiros NELDSON MARCOLIN
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Dez mil dólares no bolso, uma mente ferviüiante e alguns sócios. Com essas ferramentas, em 1958 João Augusto Conrado do Amaral Gurgel demitiu-se da Ford do Brasil, um gigante da indústria automobilística, e começou a colocar de pé um projeto concebido quando ainda era estudante da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo: fazer carros
brasileiros. Contra todos os prognósticos, ele conseguiu. Por mais de 30 anos atropelou as dificuldades e criou automóveis nacionais, com soluções originais (algumas delas geraram patentes). A holding comandada por ele chegou a ser avaliada, em 1989, em quase R$ 200 milhões, em números de hoje, de acordo com estimativa registrada em Gurgel, um sonho forjado em fibra (Labortexto
Primeiro desenho de carro: objeto de desejo desde criança
10 • OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
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Amaral Gurgel (á direita) com um amigo na praia, em 1944, modelando carro na areia: vontade de ter seus próprios veículos
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Testando o modelo conversível do X-12 (acima), na década de 1970, e o primeiro mlnicarro produzido por ele, nos anos 1960 (ao lado)
Editorial, 160 páginas), livro do jornalista Lélis Caldeira lançado este ano. Até que vieram os tempos ruins e Gurgel começou, lentamente, a perder todas as lutas em que se metia. A última e mais significativa delas o derrubou definitivamente: em 1997 descobriu-se que ele sofria do mal de Alzheimer. A doença destrói as células do cérebro e leva o paciente a perder progressivamente a capacidade intelectual e apresentar níveis de habilidade semelhantes aos de recém-nascidos -
a pessoa se torna incapaz de andar, alimentar-se sozinha, reconhecer familiares e até de falar. O fato de a enfermidade ter acometido Gurgel, hoje com 78 anos, parece ser um fim excessivamente trágico para a brilhante trajetória de um empreendedor. Mas não é assim que os usuários
Esboço do Xef: Gurgel desenhava excepcionalmente bem
desses veículos vêem o desfecho dessa história ainda hoje é comum ver utilitários da Gurgel rodando pelo país e reunindo admiradores desses carros em clubes e associações. Natural de Franca, interior de São Paulo, Amaral Gurgel formou-se em engenharia
mecânica-eletricista. No trabalho de conclusão de curso surpreendeu o professor ao apresentar o Tião,"o primeiro automóvel genuinamente brasileiro". O projeto provocou risos e o estudante ouviu a frase do professor, jamais esquecida: "No Brasil, carro não se faz, se compra". Algum tempo depois de formado, Gurgel foi para os Estados Unidos estagiar na General Motors Truck and Coach, em Pontiac, e na Buick Motor, em Flint, cidades de Michigan. Nos Estados Unidos ele conheceu a tecnologia de plástico duro e voltou ao Brasil, depois de quatro anos, já pensando em adotá-la no futuro. Depois de trabalhar algum tempo
Esquete de transmissão com variação contínua: patente no final da década de 1960
PESaUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 11
nas filiais brasileiras da General Motors e da Ford, Gurgel decidiu que era hora de cuidar de seus próprios negócios, em 1958. Foi quando juntou os US$ 10 mil, arrumou sócios e criou a Moplast, que produzia luminosos de plástico para empresas. Com o lucro do plástico ele fabricava karts de competição. Anos depois, em 1964, Gurgel saiu da Moplast e criou a Macan Veículos, uma concessionária da Volkwagen que permitiu a ele continuar fazendo karts e inventar uma novidade, carros para crianças. Eram mini-Mustangs e mini-Karmann Ghias, com motores de 3 cavalos. escalada de Gurgel continuava. O próximo passo foi convencer a Volksv\?agen a lhe ceder o chassi (estrutura na qual se encaixam o motor e a carroceria do carro) para ele fabricar seus próprios carros. Naquele ano, em 1964, a Volks encomendou a ele um carro para apresentar no Salão do Automóvel - foi a deixa para Gurgel criar o Ipanema, um buggy montado sobre a plataforma do Seda Volkswagen, de motor traseiro com carroceria em Fiberglass Reinforced Plastic (FRP). O veículo foi um sucesso, mas ele não conseguiu dinheiro para a produção em série. "O setor de carros era quase um hobby naqueles anos no Brasil", conta Lélis Caldeira. Em 1969 chegou o momento de dar o salto maior. Com US$ 50 mil, o engenheiro fundou a Gurgel Indústria e Comércio de Veículos Ltda., em São Paulo, e passou a
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rAtinris ttOMMDAS
produzir quatro unidades por mês do Ipanema. Nessa mesma época, Gurgel desenvolveu o sistema plasteel, uma resistente estrutura formada por camadas de FRP, que envolvia a uma armação de tubos de aço quadrada. Esse chassi, tipo monobloco, mostrou ser muito resistente e permitiu abandonar o uso de plataformas de Fusca e construir utilitários para "todo terreno" (a expressão surgiu com os carros Gurgel). Nos anos 1970 Gurgel entrou firme no mercado de jipes e teve muito sucesso: seus veículos tinham uma imagem jovem e esportiva, baixo consumo de combustível e manutenção barata. Em 1973 ele adquiriu um terreno em Rio Claro, São Paulo, para instalar sua fábrica. Também começou
12 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESOUISA FAPESP 104
a fabricar outro jipe, o Xavante. No ano seguinte, a empresa apresentou o Itaipu, um pioneiro carro elétrico de uso urbano, para duas pessoas, que usava baterias recarregáveis em qualquer tomada de luz de 220 volts. Nos anos seguintes foram fabricados vários outros modelos de jipes, vendidos para o Exército e Aeronáutica.
Um deles, o X-12, recebeu encomendas das Forças Armadas de vários países. Houve época em que 25% da produção era destinada à exportação. "O X-12 era táxi na Bolívia, carro para deserto no Oriente Médio e veículo para turismo no Caribe", diz Caldeira. Depois de toda experiência, Gurgel estava pronto para lançar um carro
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X-12 circulando em rua de São Paulo: carros continuam rodando por todo o país
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Publicidade de kart (na página ao lado) e caminhão com encomendas para o Exército brasileiro: jipes da Gurgel sempre tiveram boa aceitação no Brasil e no exterior
genuinamente nacional, incluindo o motor, até então fornecido pela Volkswagen. Em 1985 ele apresentou à Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) a idéia do Carro Econômico Nacional (Cena) e recebeu financiamento para desenvolvimento e fabricação de protótipos e da cabeça de série para
2 mil unidades por ano. Também foi aprovada a lei que reduziria significativamente os impostos para carros de pequeno porte e baixa cilindrada. Em 1986 o Fusca deixou de ser fabricado - um excelente momento para o lançamento do Cena, feito oficialmente em 1987. Em razão de disputa
judicial com a família de Ayrton Senna, o nome do carro mudou.
V
irou BR-800, BR de Brasil e 800 de cilindradas em motor de dois cilindros horizontais contrapostos. Em dezembro de 1989 foi entregue a milésima unidade do BR-800, mas em 1990 as coisas começaram a degringolar. O incentivo ao carro popular se estendeu aos veículos com motor de até mil cilindradas (1.0) e a Fiat lançou o Uno Mille, com o preço semelhante ao do BR-800, mas melhor desempenho e espaço. Ao mesmo tempo que precisava de empréstimos para tocar novos projetos, Gurgel adquiriu um terreno no Ceará para instalação de uma fábrica no Nordeste. Ele contava com o apoio expresso dos governos cearense, paulista e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Esses apoios não se concretizaram e Gurgel,
depois de fabricar mais de 40 mil carros, endividado, foi obrigado a pedir concordata preventiva em 1993. "O mal de Alzheimer foi diagnosticado em 1997, mas vários sintomas que pensávamos ser uma depressão 'pós-falência' já eram da doença", conta Maria Cristina do Amaral Gurgel, filha do meio de Gurgel e Carolina. Paradoxalmente, uma briga judicial dá a dimensão do valor que o trabalho do engenheiro, inventor e industrial tem ainda hoje. Este ano, a família deve acionar o empresário Paulo Emílio Freire Lemos, que está vendendo máquinas agrícolas com a marca Gurgel no interior de São Paulo. Como o prazo de validade no Instituto Nacional de Propriedade Industrial havia expirado em 2003, ele a registrou em seu nome. A atitude do empresário, mesmo que possa ser considerada moralmente condenável, como diz Cristina, indica que a credibihdade de Gurgel para vender carros e máquinas continua intacta.
PESaUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 13
ENTREVISTA: JORGE WAGENSBERG
Na pele do Para o diretor do inovador IVIuseu da Ciência de Barcelona é essencial despertar a emoção científica sem abrir mão da realidade SlMONE MATEOS
té OS macacos se enganam. Diante deles está uma floresta completa, com árvores gigantes, cipós, epííitas, peixes, tartarugas, tudo banhado por uma chuva torrencial tropical e os sons e a umidade da Amazônia, mais especificamente, da selva localizada nas imediações de Santarém. O que os símios desconhecem é que estão, em verdade, na Espanha. A mágica de oferecer um viveiro de 600 metros quadrados com um pedaço da Floresta Amazônica é uma das muitas que oferece o Museu da Ciência de Barcelona, inaugurado em setembro. "Para despertar a curiosidade científica, um museu tem que emocionar. Seduzir o visitante para os mistérios da realidade é a melhor forma de fazer com que ele queira entender a realidade", explica o físico e diretor da instituição, Jorge Wagensberg. Há 12 anos à frente do museu, Wagensberg é o idealizador de um novo padrão de museologia que tem adeptos inclusive no Brasil, onde assessora algumas instituições segundo os seus preceitos: o protagonista do museu é o objeto real, complementado 14 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
por experimentos. "É preciso colocar o visitante na pele do cientista em sua busca pela compreensão dos fenômenos que envolvem aqueles objetos. Para despertar essa emoção científica não se pode abrir mão da realidade", diz o físico, autor, entre outros, de um livro de aforismos filosófíco-científicos que vendeu mais de 35 mil exemplares, um hit mesmo entre os europeus. Os projetos de museu de ciência aos quais ele assessora no Brasil são o da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, o da prefeitura de Piracicaba, e do Parque de Ciência e Tecnologia da Universidade de São Paulo (USP). A projeção internacional de Wagensberg vem mesmo de suas inovadoras concepções museológicas. Para falar delas, já esteve como conferencista convidado em nada menos que 26 países, incluindo toda a Europa, os Estados Unidos, a Rússia, o Japão, a índia, três nações africanas e seis sul-americanas. Nesta entrevista, ele fala sobre a essência de sua museologia e explica por que a divulgação da ciência e do método científico é essencial para a democracia.
■ O que diferencia sua concepção de um museu da ciência dos outros modelos que existem pelo mundo? — Um museu da ciência não é feito para ensinar, informar ou formar pessoas - embora nada disso esteja proibido. Ele é feito para emocionar, para apresentar a realidade e algumas fatias do conhecimento que o homem acumulou sobre ela, de forma tão bela e sugestiva que desperte a irresistível vontade de compreendê-la melhor. É feito para levar as pessoas a se apropriarem do método científico, estimulando o questionamento e a observação da realidade, as perguntas e a busca de respostas por meio da experimentação, do diálogo com a natureza. Por isso é essencial que um museu da ciência se baseie em objetos reais, que apresente a realidade, e não só simulacros frios que representam apenas as parcelas de realidade já estudadas pela ciência. O essencial de um museu é a conversa. Os objetos têm de conversar entre si, com os módulos que representam fenômenos e com os visitantes. Os primeiros museus da ciência exibiam objetos em vitrines, de interesse sobretudo para cientistas. Vinte metros de todo ti-
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po de borboletas podem ser úteis para um cientista, mas não dizem nada ao cidadão comum. No início do século 20 os museus incorporaram fenômenos às suas exposições. Foi um avanço, mas virou um vício, com módulos nos quais a interatividade se resume a apertar um botão para acionar um experimento previamente preparado. O visitante não participa da observação direta da natureza, da formulação das perguntas, que é a parte mais importante da ciência. É preciso aumentar a interferência e o grau de liberdade do visitante, apresentando uma seleção de objetos reais e fenômenos que conversem entre si, criando uma interatividade mental muito mais rica que só apertar botões. ■ £ fl isso que você se refere quando diz que o museu tem uma linguagem própria, diferente de todas as outras? — É um erro basear exposições em textos, desenhos, figuras, vídeos ou computadores para explicar conhecimentos científicos, colocando os objetos reais como meras ilustrações. Esses elementos podem complementar os objetos reais, mas jamais substituí-los. É mais cômodo ler um livro, ver um vídeo ou PESQUISA FAPESP 104 • OUTUBRO DE 2004 ■ 15
usar o computador sentado em casa do que em pé num museu. A linguagem do museu tem que se basear em objetos e fenômenos reais e seu discurso se constrói a partir da seleção inteligente desses elementos, de maneira que conversem entre si e se auto-expliquem. Outra forma de estabelecer essa conversa entre objetos é o que poderíamos chamar de metáfora museográfica. Foi a solução que encontrei, por exemplo, para apresentar o DNA. A tradicional escultura da dupla hélice é um belo recurso, mas não explica a essência do DNA. A idéia me ocorreu quando eu visitava o Deutsch Museum de Munique. Lá vi umas pianolas antigas, que não fiincionam com um intérprete, mas com um cilindro cheio de pinos ou fitas perfuradas que contêm a informação que o aparelho transforma em música. É uma metáfora perfeita do DNA. Os cilindros e papéis, em si, não querem dizer nada. São só uma instrução escrita num código que em vez de ter quatro letras, como o genético, tem só duas: reentrâncias e saliências ou buracos e não-buracos. É um código que só adquire sentido quando é decifrado pelo instrumento especialmente desenhado para isso. A pianola transforma o código dos cilindros em notas como o ribossomo transforma as letras do DNA em proteínas, base dos seres vivos. Isso dá uma idéia clara do DNA e, certamente, estimula a vontade de saber mais a respeito. Claro que esse tipo de museografia exige muita criatividade, exige que o museólogo seja também um pouco artista, cientista, inventor, pedagogo, ator, um showman. Esses talentos podem não existir numa só pessoa, mas podem ser reunidos. Fazer um bom museu é parecido com montar uma boa equipe para fazer um filme. É a arte de combinar talentos. ■ O que quer dizer quando diz que para transmitir ciência é preciso usar os mesmos estímulos que motivam o cientista? — Muitos museus da ciência optam pelo recurso do espetáculo, tipo Disneylândia. Eu acho que o melhor estímulo para aproximar um cidadão da ciência é o mesmo que leva o cientista a produzi-la. A primeira coisa que um museólogo deve buscar para fazer uma exposição é descobrir o que emociona o cientista que pesquisa aquilo, o que o motiva a formular as perguntas e de16 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
pois como aplica o método científico para tentar respondê-las. Essa é a matéria-prima básica das exposições, e não as conclusões científicas. O problema é que os cientistas não confessam suas emoções, ao contrário, esforçam-se para escondê-las em nome da objetividade. Pega mal que as publiquem e eles até fazem truques de redigir seus resultados em ordem inversa para que isso não apareça. Isso é um problema para o museólogo se tenta fazer museologia a partir dos papers científicos. Descobrir as emoções que motivam o cientista é essencial. É preciso convidar o cientista para jantar, beber e até dançar, até que se lhe escape a confissão. Um bom museólogo é também um sedutor. ■ Você também costuma dizer que o bom o museólogo tem de ver as coisas in loco... — Isso é essencial para fazer um museu que seja realidade concentrada e que seduza para o prazer de desvendá-la. Por exemplo, no novo museu dedicamos 80 metros quadrados a uma só peça de âmbar, de 1 centímetro, que descobrimos na República Dominicana durante as viagens para a exposição sobre os galeões naufragados. É uma peça única, sobre a qual existem hoje 14 papers científicos publicados. Temos orgulho de tê-la trazido do mundo do suvenir turístico para o da pesquisa científica. Também é um exemplo de colaboração: obtive-a de um amigo mineiro que estava fazendo o museu do âmbar, em troca de assessoria para o projeto. A peça leva seu nome: Jorge Caridad. Nós a levamos a São Paulo para ser analisada por especialistas em formigas, como o Roberto Brandão, diretor do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo. É a única peça no mundo que tem, além de formigas adultas, seus ovos. Estes em geral estão dentro do formigueiro, onde a resina dificilmente chega. O que estavam fazendo as formigas com aqueles ovos fora do formigueiro 20 milhões de anos atrás? Trabalhamos essa questão no museu apresentando Jorge Caridad ao lado de outras peças de âmbar e dezenas de experimentos que ajudam o visitante a extrair a informação que a peça contém. Ele pode comparar a peça com outras, descobrir que alguns dos últimos movimentos dos insetos podem ser desvendados se a peça for atravessada por determinadas luzes que evidenciam as turbulên-
cias registradas na resina enquanto endurecia... E pode também emocionarse pela beleza do âmbar, de uma cena congelada por 20 milhões de anos. É convidado a observar a realidade facilitada por nós, mas com a possibilidade de descobrir coisas que nem os cientistas perceberam ainda porque o que oferecemos é a peça real. É a grande vantagem de trabalhar com objetos reais e não com reproduções. O objeto real continua contendo a verdade, enquanto uma simulação só contém o pedaço da verdade que você já descobriu. Sobre a simulação não cabe nenhuma investigação posterior, sobre a peça real sempre há espaço para uma descoberta original. Por isso um bom museu contribui para a investigação científica. mSea ciência busca a objetividade, como pode ser tão essencial que um museu da ciência pegue o público pela emoção? — Não há contradição nisso. O método científico serve para tratar uma idéia, mas não ajuda ninguém a ter idéias. Serve para buscar respostas, não para formular as perguntas, que é o mais essencial. A emoção serve para ter idéias, para querer fazer ciência ou para querer aprender a fazer, e isso não é contraditório com a objetividade e a racionalidade. Um dos maiores defeitos dos museus de ciência é mostrar resultados, mas não o método empregado para obtê-los. Omitem a emoção que leva a fazer perguntas e o método objetivo, inteligível e dialético que o cientista usa para buscar as respostas. Num museu da ciência é bonito explicar o erro, a dúvida, é bonito explicar que o que faz um cientista a maior parte do tempo é equivocar-se e que isso não é vergonhoso, que a ciência só avança porque não há empecilho em mudar uma verdade por outra. Museus que mostram apenas "o cientificamente provado", como verdades eternas, criam uma imagem falsa da ciência. No nosso novo museu são muitas as ocasiões em que apresentamos várias interpretações. Às vezes, dizemos que os dados disponíveis não são suficientes para apresentar uma alternativa conclusiva e convidamos o visitante a formular sua hipótese. Há um caso de uma tumba com milhares de anos, na qual temos dois indivíduos, um assassinado e o outro com marcas de uma ferida, mas que sobreviveu a ela. São
poucos os dados e faremos um concurso de narrações que expliquem o que ocorreu. Só serão aceitas as compatíveis com os dados disponíveis, mas há muitas possibilidades. É um convite a se colocar na pele do cientista. Depois de formular a hipótese pode-se avançar sobre quais seriam as formas de buscar comprová-la. ■ Esses princípios podem ser aplicados a museus fora do âmbito científico? — Museus de história, arqueologia, etnologia também são museus de ciência, nos quais se podem aplicar plenamente esses princípios, que os tornam interessantes para o público em geral, sem deixar de sê-lo para os cientistas. No âmbito dos museus de arte, a Tate Galery, de Londres, está fazendo uma experiência inovadora, que tem alguma relação com o que falávamos. Estão organizando as pinturas de outra forma, já não por anos ou por autores, nacionalidades, culturas, mas por temas. Estão sendo muito criticados por
■ Não é contraditório dizer que um museu é essencial para transmitir o conhecimento e o método científicos, mas que não é sua função ensinar? — É uma questão de prioridades. O que um museu faz melhor é prover estímulos. Seu objetivo central não pode ser ensinar porque isso requer tempo. Uma visita dura três horas enquanto um programa escolar tem 50 ou 60 horas. Um museu não pode substituir um livro ou um curso. Mas o que pode oferecer é a etapa mais importante do processo cognitivo: é o princípio, fazer a pessoa querer aprender, motivar. A função do museu é fornecer estímulos a favor do conhecimento científico e da opinião científica. Isso não é contraditório com ensinar, mas é só o princípio disso. Os museus de ciência desenhados para ensinar se convertem em más escolas e estas dificilmente estimulam a vontade de aprender. ■ Por que você critica o fato de os museus da ciência serem parecidos se afinal as leis da ciência são as mesmas? — Esta é a questão do global e do local. As leis de Newrton são as mesmas em qualquer lugar, mas como num museu as leis da natureza se expressam através de objetos e fenômenos reais e estes são quase infinitos não há por que usarmos
as mesmas peças e fenômenos para explicar estas leis. Nápoles é um bom exemplo do problema. É uma cidade com uma personalidade enorme. Tem o Vesúvio, Pompéia, uma das paisagens mediterrâneas mais maravilhosas, um dos museus botânicos mais antigos do mundo. Nápoles, que quer dizer neópolis, a Nova York da Antigüidade, tem em seu subsolo pedaços de civilizações importantíssimas, como a grega, o Império Romano e outras. Por que um museu da ciência de uma cidade assim deveria copiar qualquer outro? A originalidade deveria começar na escolha do tema. Nenhum museu do mundo pode tratar a cismologia e a vulcanologia como um que está ao lado de um vulcão que a cada 2 mil anos provoca catástrofes lendárias, como a de Pompéia. Na boca do Vesúvio há um instituto de geologia incrível. Por exemplo, se poderia transmitir o ruído das tripas do Vesúvio em tempo real para as salas do museu. Que emoção poderia ser melhor para despertar a curiosidade para com vulcanologia, a geologia ou a história de Pompéia? Seria até uma maneira de valorizar a pesquisa científica que se faz lá, o que é outro aspecto importante de um museu. Um museu da ciência é uma janela perfeita para mostrar o que estão pesquisando os cientistas locais. Isso é bom para que o entorno valorize e se orgulhe do que é seu e para que o forasteiro tenha a oportuPESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 17
nidade de ver o lugar aonde chega e suas originalidades sob o olhar da ciência. Lamento que os napolitanos estejam mais propensos a fazer um museu que seja um clone dos norte-americanos e estou tentando coíivencê-los do contrário. Mas, infelizmente, existe a tendência de copiar os museus de sucesso. É mais fácil: entre criar e não criar, entre montar uma equipe competente e criativa e comprar tudo pronto, costuma prevalecer a lei do menor esforço. É uma péssima idéia. ■ Como são os projetos de museus da ciência que você está assessorando no Brasil? — São muito interessantes, o contrário desses museus-clones. Em Piracicaba, por exemplo, há um projeto de um museu num prédio que foi uma antiga usina de açúcar. Sugeri que eles fizessem o museu aproveitando o tema. Com a desculpa de explicar o processamento do açúcar pode-se explicar boa parte da ciência universal. Aparece o tema da transformação da energia em matéria viva e o tema da energia em si, das máquinas e da evolução da tecnologia, aparecem temas sociais e humanos como a escravidão, o progresso social e econômico, a importância do açúcar na história local e do Brasil, o problema ecológico, como a deflorestamento da Mata Atlântica para plantar cana. É um exemplo muito rico. Abre margem para abordar desde temas locais até os mais universais, e tudo isso num ambiente inimaginável de edifícios antigos refinadamente renovados, ao lado de um rio, numa cidade jovem e com pique, perto de São Paulo. Acho que também é um caso que está muito bem levado. Aliás, os projetos que conheço de museus da ciência em curso no Brasil usam museologia bastante avançada. O de Campinas, por exemplo, é um projeto da Unicamp levado por jovens cientistas com idéias muito claras e modernas. Há outros dois em São Paulo, ambiciosos... No geral, os cientistas brasileiros são mais criativos e mais abertos às inovações que a média. uAs crianças são o principal público-alvo de um museu da ciência? — Um bom museu da ciência deve estar dirigido a todos os públicos. Um mesmo módulo pode conter estímulos para crianças, adultos e até cientistas. 18 • OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
Isso é impossível de conseguir num livro ou num filme, pois suas linguagens têm idade. Mas num museu é perfeitamente possível porque sua palavra básica se constitui de realidade concentrada de objetos e fenômenos reais. É como perguntar se a selva amazônica é para crianças ou para adultos. Por que a selva interessa tanto a uma criança como a um adulto? Porque na selva há suficientes objetos, suficientes fenômenos e estímulos para que cada um encontre o seu. Isso não quer dizer que as crianças não sejam um público especialmente querido do museu e que não possa haver sessões especiais dirigidas a elas. É desejável que a metade da audiência de um museu seja de grupos escolares. Um bom museu contém estímulos para qualquer idade. ■ Mas algumas exposições, como a sua sobre a Aids, tocam temas muito sensíveis para o público infantil... — A exposição sobre a Aids tinha analogias difíceis para uma criança entender, como a que compara o vírus ao símbolo da raiz cúbica de B, que busca infiltrar-se num poema famoso para reproduzir-se. Como símbolo, o vírus é logo detectado. Então, ele se traduz em letras (a raiz cúbica de B) e passa despercebido em alguns lugares, reproduzindo-se numa edição inteira. O poema é uma célula do corpo humano. É a idéia de que o vírus se mete no meio do genoma para usar a maquinaria de reprodução da célula para se multiplicar. Para isso, porém, tem de se traduzir na linguagem celular, passando de RNA para DNA. Alguns médicos usaram depois essa analogia para se comunicar com seus pacientes, mas para uma criança pequena pode ser uma metáfora sofisticada. Mas havia outras, como uma fortaleza defendida por soldados e atacada constantemente por bárbaros, que podiam ser entendidas até por crianças pequenas. As janelas, portas e buracos eram a boca, as feridas. Mostramos a estratégia de atacar o sistema de segurança do castelo, corrompendo seus membros para que deixem passar os vírus, como ocorre com as células imunes infectadas que já não funcionam. Também buscamos transmitir as regras de autoproteção. Fizemos um jogo no qual o visitante podia simular seu comportamento e descobrir o nível de risco. Havia um tabuleiro com os seis
líquidos corpóreos - saliva, lágrima, suor, sêmen, secreção vaginal e sangue infectados de um lado e não-infectados de outro. Cada líquido desses contém concentrações diferentes de vírus, oferecendo riscos diferentes de contágio, já que pequenas quantidades de vírus podem ser eliminadas pelo sistema imune. Qualquer comportamento de risco consiste em cruzar os líquidos. Então o visitante podia, com privacidade, testar qualquer combinação e verificar a probabilidade de infectar-se. Mostrávamos que o risco de contaminação com talheres ou beijos é praticamente nulo. Com lâmina de barbear é pequeno, porém mais significativo, com sexo muito mais, enquanto numa transfiisão de sangue o contágio é quase certo. Todas as idades jogavam e, entre os adultos e adolescentes, muitos mudavam de fisionomia, com cara de alívio ou preocupação. Acho que teve especial importância para os adolescentes porque são grupo de risco e contestadores por excelência das normas estabelecidas. Uma pessoa se relaciona de forma muito diferente com uma regra que descobriu, do que com uma que lhe foi imposta. Um estudo, que foi feito telefonando depois para a casa de gente que tinha vindo à exposição, mostrou que atingimos nosso maior objetivo, que é tornar o tema assunto de conversa em casa. No caso da Aids, isso acontecia em 100% dos casos. Mesmo em famílias onde falar em sexo ou Aids era tabu, a criança ou o adolescente levantava o tema na primeira oportunidade. Só por isso, acho que a exposição valeu a pena. Talvez até tenhamos salvado vidas. ■ Por que você costuma dizer que os museus da ciência são instrumentos vitais da democracia? — Porque a ciência é a forma de conhecimento que mais influi em nossa vida cotidiana e, ao mesmo tempo, é a que menos interessa aos cidadãos, sobre a qual se sentem menos aptos a opinar. É uma contradição. É vital que as pessoas estejam bem informadas e capazes de ter opinião sobre questões científicas, como as pesquisas com células-tronco, energia nuclear, clonagem. As pessoas se envergonham de não conhecer Beethoven ou de não ter lido Dom Quixote, mas chegam a se gabar de não ter nem idéia do que é física. É um equívoco. A ciência é a forma de
béticos, havia sido proibido, por problemas éticos, de trabalhar com embriões humanos na Espanha. Ele transferiu todo o seu laboratório para Singapura. Fizemos então no museu um grande debate com Soria, religiosos e outros conservadores. Há poucos meses, promulgou-se uma nova lei que permitirá a Soria voltar à Espanha para pesquisar com embriões. Este é apenas um exemplo, já debatemos um sem-fim de questões: só entre 2000 e 2001 foram 45 palestras, 34 seminários e 18 cursos. Com as instalações do novo museu, que conta com três auditórios grandes (para 300, 180 e 100 pessoas) e oito pequenos (para 30 a 80 pessoas), essas atividades irão se intensificar. Também estamos propondo atividades conjuntas com outros museus de países da Europa. Creio que os museus da ciência serão as catedrais do futuro, onde as pessoas se reunirão para conversar. conhecimento desenhada para ser muito mais universal que o conhecimento artístico. E não se trata só de informação, nem só de ciência. A intimidade com o método científico desenvolve a capacidade crítica, de questionar, de fazer perguntas e buscar respostas, o que torna as pessoas mais capazes de tomar decisões maduras, de opinar de forma consciente sobre qualquer questão da pauta nacional. O método científico é intrinsecamente antidogmático, sua lógica é a inversa das ditaduras. É uma vacina contra o autoritarismo. Por isso é tão essencial um espaço que crie estímulos a favor do conhecimento e do método científico. ■ Difícil imaginar que um museu possa conseguir tudo isso só com exposições estimulantes... — Minha concepção de museu não é apenas de um espaço para exposições temporárias e permanentes. Metade do espaço de um museu da ciência deve ser destinado a cursos, conferências, debates, encontros, seminários. Um museu deve ser como uma universidade de ciências, não para cientistas e especialistas, mas para cidadãos comuns. Isso é essencial porque o museu tem uma credibilidade única. Não é a mesma coisa discutir a ética da clonagem de embriões humanos para pesquisar tratamentos para diabete e Alzheimer dentro dos muros da universidade, numa
instituição religiosa, num laboratório farmacêutico ou num museu da ciência. O museu é visto como um espaço neutro, um espaço do cidadão comum. Se o Greenpeace fizer um congresso sobre aquecimento global, poucos cientistas irão e dificilmente alguém do Greenpeace estará presente em um debate na universidade. Já no museu conseguimos mais de uma vez reunir ambos, ao lado de representantes da administração pública para discutir o tema. E as exposições ajudam a criar o ambiente para esse debate, para atrair gente para ele. Nosso museu contribuiu de forma importante para formar opinião científica em várias ocasiões. Em 20 anos realizamos mais de 4 mil dias de discussões científicas, algumas das quais com a participação de prêmios Nobel. Um desses debates foi sobre as pesquisas com células embrionárias, que usam os embriões congelados em clínicas. Bernard Soria, um catedrático espanhol que trabalhava com embriões e já tinha conseguido curar ratos dia-
■ Você costuma dizer que beleza, arte e emoção são essenciais num museu da ciência. Não é contraditório com a objetividade científica? — A feiúra da maioria dos museus da ciência sempre me chocou. Eu acredito, e estou publicando um artigo sobre isso, que beleza e inteligência têm muito em comum e que a beleza predispõe para a inteligência. Tanto o conceito de beleza como o de inteligibilidade relacionam-se com captar uma ordem, um padrão de repetição e não repetição, separar ruído da informação relevante, essência de matizes... Portanto, o que se pode transmitir bem via inteligibilidade pode-se transmitir melhor somando-se beleza. A emoção que a beleza desperta - a beleza da selva amazônica, de certos insetos, fósseis ou formações rochosas, por exemplo - predispõe a querer compreender. No novo Museu de Ciência de Barcelona a beleza será elemento onipresente. Muitos artistas foram convidados para fazer obras. Não obras livres, mas em consonância com o discurso do museu. Acho que uma característica comum a todas as épocas esplêndidas da história da humanidade, como o Renascimento ou a Viena dos anos 1920, é justamente a promiscuidade entre cientistas e artistas, quando o belo e o inteligível tinham uma mútua curiosidade um pelo outro. • PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 19
I POLíTICA
CIENTIFICA E TECNOLóGICA
ESTRATéGIAS
MUNDO
Rússia diz sim ao Protocolo de Kyoto o governo da Rússia finalmente aprovou a adesão do país ao Protocolo de Kyoto, depois de três anos de evasivas e rodeios do presidente Vladimir Putin sobre o assunto. Mas a decisão ainda tem de ser aprovada pelo Parlamento do país. E, lá, também se acumulam resistências ao acordo firmado em 1997, que exige dos países industrializados o compromisso de até 2012 reduzir as emissões de gases do efeito-estufa para níveis 5% inferiores aos de 1990. Uma boa parcela de políticos e empresários da Rússia sustenta que a adoção do protocolo é incompatível com as metas de crescimento do país. Os industriais dizem que só conseguirão poluir menos caso reduzam o nível de produção. Também há
■ Satélites matam a sede dos refugiados Os cerca de 180 mil sudaneses refugiados no deserto do Chade contam, literalmente, com uma ajuda dos céus para saciar a sede. O Alto Comissariado da ONU para Refugiados recorreu a um sistema de dados obtidos por satélite para localizar fontes subterrâneas de água em pleno deserto do Saara. Os mapas cobrem uma área de 22.500 quilômetros quadrados em torno dos campos de Oure Cassoni, Touloum e Iridimi. Lá, concentram-se legiões de sudaneses que fugiram do estado de Darfur, tangidos pela vio-
lência dos conflitos entre governo e rebeldes. Com a base de dados, os escavadores de poços têm obtido sucesso em suas buscas, poupando tempo e dinheiro. O comissariado tem assistência do consórcio Unosat, ligado à Agência Es-
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resistência do setor petrolífero, que teme uma queda do consumo de combustíveis. A adesão da Rússia é crucial para o protocolo sair do papel. Até agora, 124 países ratificaram o acordo, o que corresponde a 44% das emissões da fatia industrializada do planeta. É preciso alcançar o patamar dos 55% para o tratado entrar em vigor. Como a Rússia responde por 17,5% das emissões, sua adesão definirá a sorte do acordo. O assunto será discutido no Parlamento logo no início de 2005 e, se houver aprovação, entrará em vigor 90 dias mais tarde. "Será um debate difícil", disse o primeiro-ministro da Rússia, Mikhail Fradkov. O assunto é tabu até entre os cientistas russos. Numa recente
pacial Européia, e da empresa Radar Technologies France (RTF). A tecnologia utiliza imagens fornecidas por satéUtes como o Landsat, ERS e JERS-1, além de fotos da Missão Topográfica por Radar, da Nasa. O cruzamento de da-
reunião de pesquisadores em Moscou, David King, conselheiro científico do governo britânico, foi voz isolada a favor do protocolo. Convidado para participar de um workshop sobre efeito estufa na Academia Russa de Ciências, King descobriu que caíra numa jogo de cartas marcadas. Um dos organizadores, Yuri Izrael, ex-diretor do Instituto de Ecologia e Clima Global, ligado ao presidente Vladimir Putin, convocou uma coleção de críticos do acordo de Kyoto para falar no encontro. Numa manobra de última hora, foi chamado até mesmo o meteorologista Richard Lindzen, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, em Cambridge, guru dos céticos do aquecimento global. •
dos detecta em detalhes a topografia e as principais estruturas geológicas. "A região tem água, mas falta uma política de manejo", diz Alain Gachet, da empresa RTF. {European Space Agency, 7 de setembro) •
■ Pesquisa regional avança no Chile o Comitê Nacional de Ciência e Tecnologia do ChUe vai investir US$ 9,5 mühões até o início de 2005 na criação de quatro institutos científicos sediados nas regiões menos desenvolvidas do país. Cada centro produzirá pesquisas vinculadas a potencialidades econômicas locais. O primeiro da série será o Consórcio de Pesquisa em Nutrição, Aumentos, Tecnologia e Sustentabilidade da Aquicultura, na Região dos Lagos, sul do país. A diretora da instituição, Ana Farias, espera transformar o lugar num centro internacional de criação de salmão, além de ter planos de introduzir novas espécies. Ao norte, em Antofagasta, onde está a metade das jazidas do país, será erguido o Centro para Pesquisa Científica em Indústria de Mineração. Os outros dois institutos serão o Centro de Genômica Nutricional para Agricultura e Aquicultura e o Centro de Ecossistemas da Patagônia, ambos no sul. {Sci.Dev.Net, 24 de agosto) •
■ Templo egípcio da divulgação científica o Egito está erguendo a Cidade da Ciência e Tecnologia, um complexo de 146 mil metros quadrados próximo às pirâmides de Gizé e a apenas 30 minutos da cidade do Cairo. O centro vai apresentar ex-
posições interativas dedicadas tanto às ciências básicas, como a física, a química e a biologia, quanto às aplicadas, incluindo-se a biotecnologia e a tecnologia espacial. Também haverá espaço para exibições de tecnologia industrial, num
esforço para estimular a colaboração entre a iniciativa privada e os pesquisadores. De acordo com Adel Abbas, do comitê científico do projeto, o objetivo é promover a ciência entre os egípcios e também engajar outras organizações
do mundo árabe. O governo do país vai fornecer US$ 7 milhões para a iniciativa. Outros US$ 40 milhões virão de parcerias com empresas. O complexo deve abrir no ano que vem. {Sei Dev.Net, 10 de setembro) •
Nesta ilha se improvisa o improviso e a dedicação são os dínamos que movimentam a ciência em Cuba, mais de uma década após a perda do apoio econômico da extinta União Soviética. O físico Ernesto Altshuler, que trabalha com supercondutores, não se rende à escassez de recursos. Nas suas simulações para reproduzir avalanches de vórtices, recorre a ervilhas no lugar das partículas. Pena que insetos às vezes devorem o experimento. Na ilha comandada há 45 anos por Fidel Castro, faltam computadores, softwares, equipamentos e chances de publicar trabalhos. Mas, apesar das condições adversas. Cuba investe proporcionalmente mais em ciência e tecnologia do que os vizinhos latino-americanos, à exceção do Brasil, indicam estatísticas da Network on Science and Technology Indicators. Tais investimentos produziram gerações de pesquisadores brilhantes, que
alimentam o orgulho nacional, sobretudo nesses anos de adversidade. "O importante é preservar os recursos humanos, que o dinheiro virá depois", diz Sérgio Pastrana, da Academia Cubana de Ciências. Osvaldo de Melo e Maria Sánchez, marido e mulher, dirigem a Faculdade de Física de Havana. Sem instalações para trabalhar, limitam-se a produzir simulações em computador. Cada professor da faculdade recebe US$ 23
por mês. A ciência sobrevive graças ao "jeitinho" cubano, como mostra a botânica Rosalina Berazain. Ela dispõe de uma riqueza inigualável de espécies botânicas, mas não tem como realizar anáUses moleculares. A saída foi entrar em acordo com o Jardim Botânico de Berlim. Ela fornece espécies raras, eles devolvem a análise pronta. Assim caminha a ciência na ilha. {American Scientist, 12 de setembro) •
PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 21
ESTRATéGIAS
MUNDO
O combustível das algas
Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para cienweb@tt-ieste.fapesp.br
www.neuroscience.org.br O site do Laboratório de Neurociências do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo apresenta suas pesquisas e traz informações sobre moléstias.
Um projeto de fabricação de biocombustível a partir de algas microscópicas em Moçambique, concebido em conjunto por estudantes e cientistas, venceu um concurso promovido pela indústria biotecnológica da Holanda. Os organizadores do concurso, liderados pelo Centro Kluyver de Genômica e Fermentação Industrial, vão agora levantar fundos para implementar a proposta. O concurso, denominado Imagine, buscava encontrar soluções científicas práticas para problemas enfrentados por países em desenvolvimento. Os temas foram levantados por cientistas. Numa segunda etapa, adolescentes foram convidados a criar planos de negócios para cada um dos projetos. Venceram os alunos do Liceu Baarnsch, de Roterdã, responsáveis pelo projeto do biocombustível. Os organizadores estimam que cerca de US$ 150 mil sejam necessários para começar a tirar o projeto do papel. "O governo holandês deverá injetar verba, mas por enquanto estamos fazendo a ponte com
empresas privadas", disse a porta-voz do Centro Kluyver, Marije Blomjous. {SciDev. Net, 2 de setembro) •
■ Seis meses de embargo, e só Teve um ponto final a polêmica sobre o acesso a pesquisas subvencionadas pelos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH). Em decisão recente, os NIH determinaram que tais estudos deveriam ter consulta livre na PubMed Central, que reúne publicações científicas, seis meses após serem editados em revistas. A idéia havia sido proposta por um comitê do Congresso norte-americano, mas foi bombardeada por editoras e sociedades científicas, sob o argumento de que levaria diversas publicações à falência. Após várias reuniões de conciliação, o diretor dos NIH, Elias Zerhouni, considerou seis meses um prazo "bastante razoável" para que os estudos estejam disponíveis sem o leitor ter de pagar. {Science, 7 de setembro) •
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www.amphibiaweb.org/ Patrocinado pela Universidade da Califórnia, Berkeley, o site traz dados sobre a taxonomia, o comportamento e a conservação de mais de mil espécies de anfíbios.
www.math.nyu.e(lu/~crorres/Archimedes/contents.html O site reúne as contribuições do grego Arquimedes (287 a 212 a.C.) à matemática, à física e à engenharia.
ESTRATéGIAS
BRASIL Lançamento no Rio de Janeiro
Prazer em conhecer, o livro que reúne 26 das melhores entrevistas publicadas na revista Pesquisa FAPESP, foi lançado no Rio de Janeiro no dia 14 de setembro. Jornalistas, professores, estudantes e diretores de universidades fluminenses compareceram à livraria Argumento, no bairro do Leblon. Leandro Konder, professor titular do Departamento de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), um dos personagens do livro, esteve presente ao lançamento e autografou exemplares ao lado da jornalista Penha Rocha, a
■ Busca inteligente de informações Pesquisadores e gestores poderão contar, a partir de outubro, com o apoio do FAPESP.Indica (www.fapesp.br/indicadores), serviço de consulta de indicadores de ciência, tecnologia e inovação, que seleciona e sistematiza fontes já existentes. O serviço se divide em três áreas. A primeira é a Indica.Org, banco com informações sobre instituições que produzem estatísticas e documentos técnicos. Há links para mais de 2,3 mil organizações, 1,2 mil delas de outros países. A segunda área é a Indica.Bib, que contém registros das principais publicações, documentos e serviços on-line, editados por entidades nacionais e internacionais. Oferece links para 700 fontes, entre estatísticas socio-
Onde encontrar ■ FNAC: São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Campinas ■ Livraria Cultura: São Paulo e Porto Alegre www.livcultura.com.br ■ Livraria da Vila: São Paulo ■ Livraria Belas Artes: São Paulo ■ Livraria Letras e Expressões: Rio de Janeiro ■ Livraria Argumento: Rio de Janeiro
Prazer em, conhecer Leandro Konder autografou exemplares do livro autora da entrevista. "Fiquei muito feliz por ter sido um dos escolhidos a figurar nessa obra", disse o professor Leandro Konder. •
econômicas, enquetes e pesquisas amostrais, manuais e documentos de apoio. A terceira área é a Indica.Tab, com acesso a tabulações relativas a indicadores de ciência, tecnologia e inovação para o Estado de São Paulo, Brasil, além
■ Livraria Civilização Brasileira: Salvador
As entrevistas de Pesquisa nmr
■ Livrarias Siciliano: somente pelo www.slciliano.com.br ■ Livraria Patão: Mogi das Cruzes
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■ Distribuidora Unesp: Rio de Janeiro/(21) 2252-6834/ 3852-5067/2507-5141 '-kVBlP
■ Outras cidades, pedidos pelo telefone (11) 3875-0154
DÜEMC
de comparações internacionais. São 650 gráficos sobre temas como recursos financeiros e humanos disponíveis em pesquisa e desenvolvimento, produção científica, empresas inovadoras e interação universidade-empresa. "Há da-
dos confiáveis, mas faltava um tratamento inteligente e uma sistematização das informações", afirma Regina Gusmão, coordenadora do projeto de indicadores de ciência, tecnologia e inovação da FAPESP .
Histórias de sucesso o livro Novos caminhos em pesquisa empresarial reúne 58 reportagens publicadas em Pesquisa FAPESP sobre resultados de projetos do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE), criado em 1997 para financiar projetos desenvolvidos dentro de empresas com, no máximo, cem funcionários. O lançamento marca outro feito: a
Novos caminhos
Reportagens reunidas
formatura da primeira turma do PIPE Empreendedor, curso de gestão com os participantes do programa. "0 livro trata de um caminho para o desenvolvimento socioeconômico brasileiro, que passa pela inovação tecnológica e pelas pequenas empresas de base tecnológica", escreveu 0 presidente da FAPESP, Carlos Vogt. •
PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 23
Desembarque no arquipélago ■ A ciência da boa vizinhança Três centenas de pesquisadores do Brasil e da Argentina vão reunir-se em Buenos Aires, entre os dias 1° e 4 de novembro, para compartiliiar experiências e discutir colaborações. Organizada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e sua irmã portenha Asociación Argentina para ei Progreso de Ias Ciências (AAPC), a reunião "Ciência, tecnologia e sociedade - Política científica, tecnológica e de inovação no Mercosul" abordará 14 temas, das ciências espaciais à sociologia, das políticas de inovação à ética, da biotecnologia à nanotecnologia. "Queremos que seja o pontapé inicial para uma profianda integração entre os países", disse Alberto Baldi, presidente da AAPC. O presidente da SBPC também recorreu a metáforas futebolísticas. "Se quiserem formar um time para competir na ciência, tanto o Brasil quanto a Argentina teriam uns oito jogadores. Mas se somamos oito com oito podemos ter uma seleção", afirmou Ennio Candotti. A primeira colaboração entre pesquisadores argentinos e
Vinte e quatro grupos de pesquisa vão receber ajuda de R$ 400 mil do governo federal para concluir seus projetos no Arquipélago de São Pedro e São Paulo, conjunto de penedos encravado no coração do Atlântico, a mil quilômetros da costa do Nordeste. Os pesquisadores, entre biólogos, oceanógrafos e geólogos, iniciaram o tra-
brasileiros data de 1905. Nos últimos tempos, a integração vem recebendo estímulos, como o Programa BrasileiroArgentino de Cooperação em Ciência e Tecnologia, que envolve solicitações de empréstimos de US$ 50 milhões a organismos internacionais e contempla áreas como a genômica, a proteômica e a competitividade agroindustrial. •
24 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
balho por sua conta e risco, pegando carona nas viagens regulares que a Marinha faz ao arquipélago. Agora o esforço será articulado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que dará o suporte à conclusão dos trabalhos e, no ano que vem, lançará um edital público para selecionar uma nova
■ Cooperação premiada o projeto CFR-Ch@in, que estuda a resistência e durabilidade de componentes metálicos utilizados pela indústria petrolífera em perfurações off-shore, foi o ganhador do Prêmio Iberoeka 2004, iniciativa de cooperação multilateral vinculada ao Programa
safra de pesquisas. "As rochas têm origem geológica e ecossistema peculiares e estão encravadas em rotas de peixes migratórios, como o atum", diz Verônica Borges, do CNPq. Desprovidas de vegetação, as ilhas são habitadas por dois tipos de ave, os atobás e as viuvinhas, que se alimentam de peixes, crustáceos e algas. A origem vulcâ-
Iberoamericano de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento (Cyted). Resultado da parceria entre empresas e instituições do Brasil e da Espanha, o projeto envolve as brasileiras Aços Villares e Brasil Amarras e as espanholas Vicinay Cadenas, Sidenor I-l-D, Universidade do País Basco e Fundação Labein. O prêmio será entregue no dia 20 de outubro, durante o Fórum Iberoeka, em Lisboa, em Portugal. O objetivo do Prêmio é promover a cooperação empresarial entre países ibero-americanos nas áreas de inovação e desenvolvimento tecnológico. A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), agência de fomento do Ministério da Ciência e Tecnologia, é o órgão gestor do programa no Brasil e articulou os participantes do projeto CFR-Ch@ain. •
nica e os tremores sísmicos freqüentes que atingem o arquipélago são um prato cheio para os geólogos. Não é de hoje que o ambiente atrai a curiosidade de pesquisadores. Em 1832, Charles Darwin desembarcou nos penedos, coletou espécies de insetos e aranhas, material orgânico e fragmentos de pedra, e retornou ao navio Beagle, em sua grande viagem. •
■ Combustível para o agronegócio o desenvolvimento de tecnologia aphcada ao agronegócio ganha estímulo de uma iniciativa do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). A Rede Brasil de Tecnologia, braço do MCT criado para in-
centivar a substituição de importações por produtos de tecnologia nacional, começou a cadastrar empresas e instituições de pesquisa interessadas em desenvolver equipamentos, materiais e serviços ligados à cadeia produtiva do agronegócio. Uma consulta inicial identificou 80 parceiros potenciais. Entre eles, 44 interessaram-se expressamente em desenvolver os produtos indicados pela Embrapa, como brincos transmissores para rastreamento de gado, colheitadeiras de grãos adaptadas a pequenas propriedades, máquinas descascadoras e equipamentos de ressonância nuclear magnética capazes de avaliar a qualidade de produtos. O programa tem financiamento de R$ 1,8 milhão do CT-Agro, fiindo setorial do agronegócio. Agora a Rede selecionará as empresas que vão desenvolver os produtos. •
Cada projeto, um portal
A Incubadora de Conteúdos Digitais, um dos projetos do Programa Tecnologia da Informação no Desenvolvimento da Internet Avançada (Tidia), da FAPESP, está oferecendo a pesquisadores ferramentas amigáveis para a construção de sites e portais destinados a projetos de pesquisa, teses acadêmicas, softwares e livros. O ambiente virtual batizado de Plonetarium permite desenvolver sistemas de gerenciamento de conteúdo adaptáveis às necessidades de projetos que envolvam colaborações a distância e a publicação de textos on-line. O Plonetarium é um software disponível sob licença pública, nos mesmos moldes do sistema operacional Linux. "A idéia é promover a publicação de trabalhos que possam
ser compartilhados por outros usuários, ou seja, que tenham um caráter de software livre", explica Imre Simon, pesquisador do Instituto de Matemática da Universidade de São Paulo (USP) e membro da Comissão de Coordenação do Tidia. Nesse ambiente, o usuário tem acesso a ferramentas para a redação, edição e publicação de conteúdo sem a necessidade de conhecimento avançado de tecnologia, recursos ou linguagem da Internet. Os modelos de sites servirão de ponto de partida para a publicação de projetos. Os interessados em desenvolver os conteúdos digitais deverão enviar propostas para análise da comissão técnica do programa no endereço virtual http:// incubadora.fapesp.br. •
PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 25
POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA INDUSTRIA
Começo promissor Fómm de Competitividade vai estruturar política nacional de biotecnologia
O governo federal instalou, no dia 14 de setembro, o Fórum de Competitividade da Cadeia de Biotecnologia, uma das áreas consideradas prioritárias na política industrial e de comércio exterior, anunciada em maio último. O fórum, criado pelos ministérios do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) e da Ciência e Tecnologia (MCT), vai reunir setores público e privado, além de universidades e institutos de pesquisa, para estruturar a política nacional de biotecnologia que permita consolidar uma indústria competitiva com projeção internacional. A nova política deverá ter como foco os estudos de genes e proteínas, cujos avanços prometem consolidar as inovações que dominarão o mercado dentro de alguns anos, na expectativa do governo federal. A cerimônia de instalação do fórum reuniu mais de 70 pesquisadores no MDIC. "A maioria dos presentes estava acostumada a freqüentar o MCT. O fato de a reunião ter sido no MDIC foi emblemático: sinaliza que a área de biotecnologia abre oportunidades de negócios para o país", comentou José Fernando Perez, diretor científico da FAPESP, que participou do encontro. A notável expansão das pesquisas biotecnológicas no país nos últimos anos e o vigor do ainda pequeno parque bioindustrial nacional motivaram a instalação do fórum. Em 2001 estavam em operação no Brasil 354 empresas de biotecnologia - mais da metade de pequeno porte -, com faturamento estimado entre R$ 5,4 bilhões e R$ 9 bilhões, de acordo com levantamento 26 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESOUISA FAPESP 104
da Fundação Biominas. Juntas, essas empresas geravam um total de 27.825 postos de trabalho. Na área de pesquisa, o Brasil é o segundo maior contribuinte de seqüências de genes humanos em bancos de dados internacionais, e a pesquisa avança rapidamente na identificação de genes responsáveis por doenças que comprometem a produção de laranja, cana-de-açúcar, produtos de peso na pauta de exportação brasileira. Também está em curso a análise funcional de genes, com o objetivo de aumentar a produtividade da indústria de papel e celulose e a produção bovina. "O Brasil é um dos países que estão na ponta da biotecnologia, mas a nossa capacidade na geração de benefícios na área econômica e na geração de empregos ainda está muito limitada", afirmou o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, durante a instalação do fórum. O fórum tem uma meta ambiciosa. "Queremos criar condições para que o país esteja entre os cinco líderes mundiais na área de biotecnologia nos próximos anos", resumiu Cylon Gonçalves, secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do MCT. O fórum vai avaliar, como ele disse, os "três pilares" de sustentação do futuro sistema nacional de biotecnologia: a disponibilidade de recursos humanos, as necessidades de investimentos públicos e privados e os marcos regulatórios que permitirão implementar a produção industrial. Esses temas serão debatidos em três grupos de trabalho, constituídos na instalação do fórum. Gonçalves coordenará o grupo de recursos humanos e infra-estrutura, e o secretário de Tecno-
logia de Informação do MDIC, Roberto Jaguaribe, coordenará o grupo responsável pelos marcos regulatórios. A primeira reunião está agendada para novembro. A expectativa é definir os rumos e perspectivas da biotecnologia no país ao final do primeiro ano de trabalho. A definição dos marcos regulatórios é considerada estratégica para atrair investimentos e interesses privados. "É preciso gerar demanda porque oferta sempre soubemos oferecer. Para tanto, o país precisa adotar regras claras e amigáveis, compatíveis com as de outros países", explica Gonçalves. A aprovação da Lei de Biossegurança pelo Congresso Nacional, ele exemplifica, pode ajudar a consolidar e expandir as pesquisas com organismos geneticamente modificados (OGMs), já que agilizará o seu licenciamento e autorizará a comercialização de transgênicos. O texto do projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados foi considerado inibidor de investimentos e deve soft^er modificações no Senado. Neste caso, volta à Câmara para nova votação. Acesso à biodiversidade - Outro ponto fundamental para a criação de um ambiente regulatório favorável à participação privada é a definição de uma legislação de acesso ao patrimônio genético que regulará a produção de fitoterápicos e de produtos naturais. A biodiversidade nacional atualmente está protegida por uma medida provisória, editada em 2001, que dificulta - até quase o limite da proibição - a coleta de ativos naturais para fins de pesquisa ou de exploração comercial. No final do ano passado, uma resolução do Mi-
Fermentador do Instituto Butantan: biotecnologia amplia a produção nacional de novas vacinas
mistério do Meio Ambiente flexibilizou o acesso de pesquisadores aos recursos naturais enquanto o governo federal prepara um substitutivo ao projeto de lei de acesso aos recursos genéticos que está tramitando na Câmara dos Deputados. "Precisamos de um marco legal para a indústria de biotecnologia no país", observa Gonçalves. Na avaliação do ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos, o financiamento é um dos pontos mais delicados na estruturação do sistema, porque o perfil das empresas de biotecnologia envolve altos custos e risco. Essa característica, segundo Perez, coloca os empreendimentos na dependência do capital de risco e exige uma série de ações governamentais que substituam o angel investor, um investidor independente que aposta no sucesso do empreendimento tecnológico. Campos adiantou que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) deverá apresentar, em 90 dias, um modelo de financiamento para o setor envolvendo recursos dos fiandos setoriais e linhas de financiamento do próprio banco. "O BNDES deve buscar uma forma criativa e inovadora de fomentar o setor de biotecnologia, não com instrumentos tradicionais que não se adaptam a esse tipo de demanda, mas participando do risco compartilhado", observou Perez. "Essa é uma área que responde às características geoeconômicas do país e em que o Brasil tem potencial comprovado de competência. Pode gerar excelentes oportunidades de negócios, desde que sejam criados mecanismos de financiamento inovadores." • PESaUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 • 27
I POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA DESENVOLVIMENTO
O DNA do Brasil Pesquisadores da Unicamp criam índice para avaliar evolução socioeconômica
Um grupo de pesquisadores do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (Nepp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), construiu um índice para avaliar o bem-estar econômico, competitividade, proteção e coesão social no país, além de questões relacionadas à educação e saúde e ao desenvolvimento socioambiental. Esse índice, batizado de IDNA Brasil, amplia o índice de Desenvolvimento Humano (IDH) criado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), para incorporar dimensões da vida econômica, cultural e da sociabilidade do nosso país, segundo Pedro Luiz Barros Silva, coordenador do Nepp. Além dos níveis de mortalidade infantil e escolarização medidos pelo IDH, os indicadores dos IDNA Brasil contabilizam, por exemplo, o percentual de mortes por homicídio entre homens com idade entre 15 e 24 anos - atualmente na faixa de 385 por 100 mil habitantes - ou o desempenho dos alunos no Programa Internacional para Avaliação dos Estudantes (Pisa), coordenado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que analisa a capacidade dos alunos para analisar, raciocinar e refletir sobre seus conhecimentos e experiências. O Pisa atribuiu ao Brasil uma média de 396 pontos e o último lugar entre os 40 países avaliados. Os 24 indicadores que formam o IDNA Brasil foram selecionados a partir de quatro critérios: são de domínio público e fácil acesso; são produzidos de forma contínua e sustentável; sua metodologia de coleta é aceita pela comunidade científica; e permitem a comparação com outros países. 28 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESOUISA FAPESP 104
O índice foi testado num exercício de comparação com indicadores semelhantes da Espanha {veja gráfico), país que há 25 anos apresentava níveis de desenvolvimento econômico e social análogos aos do Brasil. Nesta comparação, algumas dimensões do IDNA ficaram prejudicadas, como foi o caso do indicador de instalações adequadas de esgoto sanitário, já que na Espanha, como nos demais países da União Européia, os serviços de saneamento atendem 100% da população ou algo muito próximo disso. O indicador de homicídios de jovens também ficou comprometido a ponto de produzir uma imagem invertida no gráfico: a Espanha, com 1,4 morte por 100 mil, ganha longe das estatísticas brasileiras, que apontam um coeficiente de mortalidade por homicídio nesta faixa etária 275 vezes maior. Brasil do futuro - O primeiro exercício de aplicação do novo índice ocorreu em Campos do Jordão, entre os dias 18 e 19 de setembro, quando 35 especialistas de diferentes áreas do conhecimento, empresários, ativistas de movimentos sociais, religiosos e artistas reuniram-se por iniciativa do Instituto DNA Brasil. Nesse encontro eles foram convidados a criar um cenário desejável e realista para o país daqui a 25 anos. Participaram do trabalho o presidente da FAPESP, Carlos Vogt; a geneticista Mayana Zatz; o empresário Horácio Lafer Piva; a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva; o embaixador Jório Dauster; o líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stedile, e a monja budista Coen Sensei, entre outros. Para idealizar o Brasil do futuro, eles utilizaram como parâmetro o IDNA Brasil e o perfil atual da realidade brasileira formada
Dimensões da realidade nacional o polígono representa o estágio do Brasil atual e o círculo, os indicadores da Espanha Renda per capita Justiça tributária^^^^^^Taxa de ocupação formal Adolescentes com filhos (%
Remuneração homem/mulher
Desigualdade de renda
Remuneração negro/branco
Homicídio íiomens 15 - 24 anos
Participação das exportações Participação dos produtos de média/alta tecnologia nas exportações
Financiamento público atenção à saúde (%) Financiamento atenção à saúde per capita
Esgoto sanitário adequado
Cobertura previdenciária a partir de 65 anos
Destinação adequada do lixo
Imortalidade acidentes cardiovasculares - Mulheres
Esgoto tratado
Mortalidade acidentes cardiovasculares - Homens
Taxa de escolaridade do ensino médio
Mortalidade infantil '^^^^Ê^^^K^^^ÊB^^^^ Concluintes do ensino médio na idade esperada Anos potenciais de vida perdidos - Mulheres^^^^^^^^^l^esultado Pisa educação Anos potenciais de vida perdidos - Homens
DIMENSÕES: Bem-estar econômico
Competitividade econômica
por esse conjunto de indicadores. Projetado para o futuro, o índice formou uma espécie de baliza que permitiu mensurar quão distante o país está das metas por eles fixadas. O resultado foi 46,8%. Ou seja, numa escala de zero a cem, o país está 53,2% distante das metas estabelecidas. "O IDNA permite a comparação do Brasil consigo mesmo ao longo do tempo", explica Geraldo Di Giovanni, pesquisador do Nepp e assessor da presidência da FAPESP, que, junto com Barros Silva, Geraldo Biasoto Júnior e José Norberto Dachs, idealizou o índice. Assim, cotejando realidade e desejo realista, constatou-se, por exemplo, que no próximo quarto de século o Brasil terá que reduzir à metade os níveis de desigualdade entre pobres e ricos, triplicar a renda per capita e ampliar a taxa de es-
Condições socioambientais
Educação
Saúde
colarização do ensino médio dos atuais 33,3% para 84% para atingir os patamares desejáveis de bem-estar econômico e educação propostos pelos participantes do encontro em Campos do Jordão. O segundo exercício do IDNA foi realizado com a coordenação nacional dos movimentos sociais, num encontro na Central Ünica dos Trabalhadores (CUT). Os dados estão sendo tabulados. Desigualdade de renda - Apesar da heterogeneidade do grupo que se reuniu em Campos do Jordão, os resultados das projeções realizadas a partir do IDNA foram coerentes: os indicadores de desigualdade na distribuição de renda medida pelo índice de Gini e pela razão 20/20, que indica quantas vezes a renda dos 20% mais ricos é maior que a dos 20% mais pobres - e a renda per capita
Proteção social básica
Coesão social
- corrigida pela paridade de poder de compra - foram o principal foco de preocupação dos que participaram no cenário que projetaram para o desenvolvimento. No quesito desigualdade de renda, o Brasil hoje só perde para Costa do Marfim e Suazilândia. E ainda registra renda per capita três vezes inferior à da Espanha. "É clara a percepção de que é preciso distribuir renda para crescer", observou o coordenador do Nepp. Essa coerência ficou ainda mais clara quando eles estabeleceram metas no indicador de justiça tributária, que mede a participação dos impostos sobre a renda e a propriedade no conjunto das receitas públicas, diretas e indiretas, e que no Brasil chega a 20% da carga tributária. "A meta fixada pelo grupo foi de 45%, superior à da OCDE", observou Barros Silva. • PESaUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 29
IPOLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA
Correção de rota Debate promovido pelo Instituto Uniemp destaca papel central das empresas na geração de novas tecnologias
CLAUDIA IZIQUE
30 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
O debate sobre políticas de estímulo à inovação no país convergiu para um consenso: o de que as empresas têm papel central na geração de novas tecnologias. Até o final da década de 1990, as políticas de ciência e tecnologia consideravam a universidade e os institutos de pesquisa como pólos geradores da inovação a ser transferida para as empresas. Esse modelo produziu raros resultados positivos, como no caso da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que desenvolveu e repassou para a Telebrás e Xtal a tecnologia de fibras ópticas. Para a grande maioria dos setores produtivos, no entanto, essa política traduziu-se num equívoco que custou caro ao país: o baixo investimento das empresas em pesquisa e desenvolvimento (P&D) comprometeu a competitividade do produto nacional, ainda que a pesquisa acadêmica tenha ganho impulso. "O erro na estratégia brasileira foi ignorar a necessidade de a empresa ter papel central na inovação", diz Carlos Henrique de Brito Cruz, reitor da Unicamp, sublinhando que a contribuição
da universidade é essencial na formação de pessoal e no avanço do conhecimento fundamental, "sem o que é impossível criar inovação". Foco deslocado - O consenso sobre o papel preponderante das empresas no desenvolvimento de novas tecnologias ficou claro no seminário promovido pelo Instituto Uniemp "Fórum permanente das relações universidade e empresas", no dia 2 de setembro, que reuniu empresários, pesquisadores, especialistas e representantes dos setores de ciência e tecnologia dos governos federal e estadual. E consolidou-se ante a pressão por competitividade exigida pelo aumento das exportações, num cenário de estabilidade econômica e de aceleração do desenvolvimento. Durante o seminário, realizado em São Paulo, foi lançada a revista Uniemp Inovação, que reúne uma coletânea de artigos de empresários, jornalistas e especialistas no assunto. A mudança do foco da inovação da universidade para a empresa começou em 1999, ganhou força em 2001, na P Conferência Nacional de
Ciência e Tecnologia, e promete materializar-se com a Lei de Inovação, que aguarda votação no Senado. O projeto cria facilidades para a contratação de pesquisadores, agiliza o licenciamento de produtos e flexibiliza a draconiana Lei de Licitação (n° 8.666) para permitir que o Estado assuma o papel de cliente estratégico das empresas na encomenda de tecnologias. Corrigida a rota, há ainda um enorme atraso a ser vencido, observa o reitor da Unicamp, que há dez anos acompanha a evolução dos indicadores de inovação no país. Ele exemplifica: menos de 29 mil cientistas brasileiros trabalhavam em empresas, em 200 L Na Coréia, no mesmo período, esse número chegava a 94 mil e nos Estados Unidos superava os 800 mil. Os indicadores de propriedade intelectual refletem a ausência dos pesquisadores nas empresas e o baixo investimento em P&D: 120 patentes depositadas por empresas brasileiras ante 3.500 de empresas coreanas. "Entre 1990 e 2001, os campeões de depósito de patentes no país foram a Petrobras e a Unicamp, que é o maior patenteador de São Paulo. Nos Estados Unidos, as universidades só aparecem depois do 22° lugar no ranking de patentes", sublinhou Brito. Dispostos a recuperar o tempo perdido, os empresários depositam expectativa na aprovação da Lei de Inovação, desde que ela permita desencadear políticas oficiais de incentivo a investimentos em pesquisa. Consideram que a falta de apoio público foi um dos principais fatores de inibição da expansão da P&D nas empresas, ainda que não o único: nesse período, que come-
çou com a abertura da economia em 1991, as empresas adiaram investimentos para lutar pela sobrevivência, como justificou Hermann Wever, presidente do Conselho Administrativo da Siemens e membro do Conselho Superior da FAPESR "Nos anos 1990 a área científica fez progressos, mas a inovação não acompanhou, e a responsabilidade ficou com o setor", reconheceu. A o pleito pelo apoio do gover/% no não faltaram argumentos: /^m as pequenas empresas não ^^^^^ geram caixa para P&D e ^£^ ^^^ as grandes e médias têm faturamento médio abaixo de US$ 100 milhões, valor considerado por especialistas como parâmetro para os investimentos em inovação, segundo Walter Cirülo, presidente da Rhodia e do Uniemp. "Entre as 500 maiores empresas nacionais classificadas pela revista Exame, menos de 300 têm faturamento deste porte", disse. A expectativa dos empresários é que os incentivos governamentais se traduzam em políticas de encomenda tecnológica, isenções fiscais e reforço à pesquisa. Essa modalidade de incentivo público foi responsável pelo espetacular avanço tecnológico de países como os Estados Unidos. Ali, dos US$ 65 bilhões anualmente investidos em P&D, US$ 25 bilhões vão para empresas na forma de encomendas tecnológicas, lembrou Brito. "Esse valor representa 15% do dispêndio total feito pelas empresas em P&D", afirmou. Na Inglaterra, o Estado investe US$ 1,5 bilhão em pesquisa e desenvolvimento empresarial, ou 9% do total gasto pelas empresas com ino-
vações. Na França o aporte governamental é de US$ 1,6 bilhão, 11% do orçamento do país em novas tecnologias; e na Alemanha chega a US$ 2 bilhões, ou 9% do dispêndio empresarial. Novas tecnologias - No Brasil, a Lei de Inovação representará um primeiro passo na direção do desenvolvimento de novas tecnologias, admitiram os participantes do seminário do Uniemp. Aprovada pelo Congresso, a lei indicará os princípios gerais da política nacional de inovação. Mas é na sua posterior regulamentação que ficarão efetivamente definidas as medidas de incentivos que o governo federal pretende adotar para estimular a geração de novas tecnologias no país. "O ideal seria que a lei fosse à sanção presidencial junto com o decreto de regulamentação para que as novas regras pudessem valer a partir de 2005", observou Ozires Silva, presidente da empresa de biotecnologia Pelenova e membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia. Alguns temem que as medidas previstas na nova legislação não sejam suficientes. Flávio Grynzpan, diretor do PESaUISA FAPESP 104 • OUTUBRO DE 2004 ■ 31
departamento de competitividade da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), acha que as empresas brasileiras têm de ter isonomia no plano internacional. "Nosso crédito é mais caro e os juros mais altos", justificou. Uma saída seria adotar as políticas de incentivo previstas em acordo da Organização Mundial do Comércio (OMC), que permitem subsidiar atividades de pesquisa e desenvolvimento industriais desde que não ultrapassem 75% do custo do projeto. Entre os empresários prevalece o otimismo. Wever acredita que a política industrial e de comércio exterior do governo federal é "um pano de fundo favorável à inovação". "A escolha dos quatro setores prioritários (semicondutores, fármacos, softwares e bens de capital) poderia ter sido mais feliz. Faltou biotecnologia (ver reportagem na página 26). Mas, pela primeira vez, as coisas podem acontecer." "É impossível exigir das empresas que invistam em projetos de longa duração e de risco. Não há estrutura no setor produtivo", reconheceu Francelino Grando, secretário de Política de Informática e Tecnológica do Ministério da Ciência e Tecnologia, acenando com a disposição do governo de dar incentivos. Advertiu, no entanto, sobre a necessidade de criar entre as empresas uma cultura de inovação. "É preciso convencer a empresa da importância estratégica do que ela faz. E não será colocando um doutor em cada indústria ou um cientista em cada padaria." Deixou claro que a definição da ação do governo está na política de cluster, ou de arranjos produtivos locais, para promover sinergia entre agentes econômicos com o apoio de agências de fomento governamentais. O governo paulista também aposta no modelo de cluster para alavancar novas tecnologias. "Mas é preciso superar a falta de recursos e de parceiros de risco", afirmou Fernando Dias Menezes de Almeida, secretário adjunto de Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo. E adiantou que o Estado estuda a criação de um fundo para reduzir os custos dos investimentos em P&D para as empresas. "O objetivo é dinamizar a relação entre empresas e o sistema de pesquisa." • 32 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
Mais espaço para a tecnologia A FAPESP vai coordenar os estudos de implantação de quatro parques tecnológicos no Estado de São Paulo. Os recursos para o projeto, no valor de R$ 2,5 milhões, serão repassados pela Secretaria de Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo por meio de convênio a ser assinado nos próximos dias. "A FAPESP já faz essa ligação entre laboratórios de pesquisa e fábrica e entre a academia e as empresas", justificou o governador Geraldo Alckmin. Alckmin participou da formatura do curso de capacitação de empresários do PIPE Ele anunciou a decisão do governo de criar os parques tecnológicos no dia 29 de setembro durante a cedos Campos, com parceria do Insrimônia de formatura de 60 empretituto Tecnológico de Aeronáutica sários que participaram do curso de (ITA) e do Centro Técnico Aeroescapacitação do Programa Inovação pacial (CTA), estará voltado para a Tecnológica em Pequenas Empreindústria aeroespacial; e o quarto, sas (PIPE), na sede da Fundação. em São Carlos, também em parceA propósito, os empresários agoria com a USP, reunirá empresas ra apresentarão seus planos de nede biotecnologia. gócios à Financiadora de Estudos e "O nosso objetivo é atrair granProjetos (Finep), que, em São Paudes empresas", afirmou o secretário de Ciência e Tecnologia, João Carlo, apoiará 40 projetos com recursos do Programa de Apoio à Pequilos de Souza Meirelles. A expectatisa em Empresas (Pappe). va é que, além de concentrar a proOs parques tecnológicos serão dução de empresas de tecnologia, os distribuídos em quatro municípios parques induzam um "novo procese seguirão "vocações regionais", coso de valorização urbana", de acormo explicou o governador. O prido com o secretário. As quatro áreas meiro, na Grande São Paulo, será já estão identificadas, ainda que não implantado em parceria com a Unidefinidas. "Essa é uma engenharia versidade de São Paulo (USP), Instique passa pela modelagem técnica, tuto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) científica e empresarial." e Instituto de Pesquisas Energéticas e Os estudos de viabilidade, que Nucleares (Ipen), e terá como foco a serão coordenados por João Steinanobiotecnologia. O segundo, em ner, diretor do Instituto de Estudos Campinas, contará com a parceria Avançados da USP, devem estar conda Universidade Estadual de Camcluídos em 2005. "O gerenciamento pinas (Unicamp) e concentrará emdo projeto será feito na forma de presas da área de tecnologia da inprojeto da FAPESP", detalha Carlos formação. O terceiro, em São José Vogt, presidente da Fundação.
I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
ECOLOGIA
Arca de Noé digital Rede integra dados de plantas, animais e microorganismos de coleções paulistas e do exterior
uando encontrou aquele arbusto de meio metro de altura, folhas verdeescuras largas e flores amarelas, a botânica Giselda Durigan ficou surpresa. Jamais vira aquela espécie em seis anos de expedições pelos 1,3 mil hectares de Cerrado da Estação Ecológica de Assis, na região oeste do Estado de São Paulo. Após procurar registros dessa planta em herbários, Giselda descobria que havia reencontrado a douradinha-falsa, considerada provavelmente extinta no estado - observada pela última vez cerca de 30 anos antes em Pedregulho, em São Paulo. Típica de áreas abertas em que o Cerrado se confiande com pastagens, a douradinha-falsa se esconde entre gramíneas: expõe apenas suas folhas espessas e uma vez por ano, de novembro a dezembro, os cachos de flores amarelas. Qualquer biólogo que pretendesse estudar uma planta, um animal ou um microorganismo - nem sempre resultando na identificação de uma espécie nova - tinha até agora de seguir esse mesmo percurso, com muitas horas de caminhadas, ou peregrinar pelas coleções dos institutos de pesquisa. Não precisa mais ser assim. Desde o começo deste mês, as características físicas, a classificação biológica e a área de ocorrência, imagens e estudos de referência de milhares de espécies de animais, fungos, bactérias e plantas brasileiras, como a douradinha, estão na In ternet, a poucos cliques de qualquer um, reunidos no splinkcria. org.br (sem o www). Esse é o endereço
do Species Link, uma portentosa rede de informações que integra bases de dados nacionais e internacionais, desenvolvida pelo Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria). Primeiro inventário digital da biodiversidade paulista e de parte da brasileira, o Species Link integra no momento 38 coleções científicas (24 paulistas e 14 internacionais) de plantas, animais e microorganismos de diferentes grupos taxonômicos, mantidas por oito instituições de ensino e pesquisa no país. Essa rede, ainda em fase de teste, abriga informações sobre 350 mil registros, como é chamada a coleta de uma espécie no campo. Desse total, que deve dobrar de tamanho até o final de 2005, à medida que mais dados forem digitalizados, quase 50 mil registros provêm do Sistema de Informação do Programa BiotaFAPESP (SinBiota), responsável pelo levantamento da biodiversidade e dos
Douradinha-falsa: reencontro 30 anos depois
recursos naturais paulistas. Essa rede deve crescer ainda mais ao incorporar dados de coleções-chave de outros estados, como as do Herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, que há mais de um século vem documentando a diversidade biológica dos ecossistemas brasileiros. Piranhas - Essa espécie de arca de Noé digital não vai substituir as coleções com as próprias amostras de animais e plantas, ainda essenciais para estudos comparativos mais detalhados, mas facilitará bastante o trabalho científico. Percorrendo as bases de dados reunidas nessa rede, um biólogo poderá descobrir em minutos, por exemplo, quantas piranhas foram registradas nas coleções científicas do Estado de São Paulo. De um dos gêneros mais comuns, Serrasalmus, há 843 registros. "O valor do Species Link é inestimável do ponto de vista científico, por reunir em um único endereço da Internet informações cujo acesso, de outro modo, seria quase impossível", comenta Vanderlei Perez Canhos, diretor presidente do Cria e coordenador do Species Link. Com essa rede, as instituições científicas do Brasil se colocam no mesmo grupo das de outros países, que contam com artifícios semelhantes há pelo menos cinco anos. O Species Link também abre caminho para o país participar de um projeto mais amplo, o Infra-Estrutura Global de Informação sobre Biodiversidade (GBIF, na sigla em inglês), voltado à construção de uma estrutura compartilhada de dados sobre a biodiversidade do planeta. • PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 33
I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
FOMENTO
Meta superada FAPESP fecha o ano de 2003 com recuperação financeira acima do previsto MARIA DA GRAçA MASCARENHAS
O ano de 2003, que começou para a FAPESP quase como um prosseguimento das medidas de austeridade iniciadas no ano anterior, terminou com a colheita dos primeiros doces frutos das decisões amargas adotadas. Depois de adequar o seu financiamento à pesquisa científica e tecnológica à crise cambial verificada ao longo de 2002 e, simultaneamente, ajustar o atendimento à demanda crescente por bolsas e auxílios à sua capacidade financeira, a agência paulista de fomento fechou o exercício com uma disponibilidade de R$ 602 milhões, 9,5% acima do que havia sido estabelecido como meta pelo seu Conselho Superior. 34 ■ OUTUBRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 104
Essa recuperação é indispensável para assegurar, com tranqüilidade, a continuidade do fomento à pesquisa científica e tecnológica no Estado de São Paulo, na medida em que as receitas patrimoniais da Fundação sempre foram um complemento importante ao repasse do Tesouro estadual. Em 2003, as transferências do Tesouro somaram R$ 320,7 milhões, enquanto as outras receitas (especialmente as patrimoniais) atingiram R$ 144,44 milhões. Isso permitiu à FAPESP retomar gradativamente as compras no exterior, suspensas em 2002, exceto em casos indispensáveis para evitar prejuízo à pesquisa, chegando a autorizar importações de bens e serviços para projetos já aprovados e
com vigência até 2007. Possibilitou também que fossem desembolsados, no ano, R$ 354,8 milhões no fomento à pesquisa, 22,1% menos que o gasto no exercício anterior, como mostra o Relatório de Atividades 2003 da instituição, que está sendo lançado. "A crise cambial que levou a FAPESP a tomar uma série de medidas restritivas permitiu também que a Fundação formulasse um novo programa de gestão, objetivando, de um lado, recompor, em níveis ampliados, a sua capacidade patrimonial líquida e, de outro, manter todos os seus programas, fortalecendo-os ou mesmo ampliando-os em alguns casos", diz o presidente da FAPESP, Carlos Vogt. Com isso, acrescenta
ele, foram tomadas medidas cuja expressão instrumental passou a ser feita por meio de portarias para regulamentar os procedimentos. "Cumpriu-se com o atendimento de todas as demandas depositadas na FAPESP e constituíram-se as condições objetivas de atendimento de novos programas." A informatização - Mas 2003 foi também um ano de ordenamento administrativo da Fundação, de forma a tornar mais ágil e eficiente o atendimento ao pesquisador. Foi iniciada a informatização de sua gestão de programas e processos, com o desenvolvimento do Sistema de Apoio à Gestão do Fomento, em parceria com o PESaUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 35
Qo^
o: a. w
Resumo da evolução dos recursos desembolsados pela FAPESP
2002
Variação 301-centual
2003
Número de projetos (1'
Desembolsos (em R$) (2)
Número de projetos '1'
Desembolsos (em R$) (2)
Crescimento do número de projetos (em %)
^ Bolsas regulares
4.108
153.155.937
3.838
135.876.020
-6,57
-11,28 ^
^ Auxílios reg. ^3>
3.141
197.648.045
2.944
146.033.605
-6,27
-26,11
763
104.668.919
684
72.891.824
-10,35
-30,36
8.012
455.472.901
7.466
354.801.450
-6,81
-22,10
Linhas de fomento
Programas especiais/ inovação tecnológica <^'
Crescimento dos desembolsos (em %)
,
i (^ Total
'^* o total de pedidos aprovados inclui somente concessões iniciais. ^^* O total de recursos desembolsados inclui pagamentos e devoluções do exercicio corrente. '^' O total de pedidos aprovados inclui somente concessões iniciais. ''^ Inclui auxílios e bolsas.
Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (César). Já no segundo semestre de 2004 foram iniciados os testes do sistema, que começará a funcionar em janeiro de 2005. A partir dessa data, a entrada na FAPESP dos processos de solicitação de bolsas e auxílios se fará de forma eletrônica, assim como todo o seu acompanhamento (pareceres de assessores, solicitações de alterações de prazos e de uso de recursos etc). "O processo de informatização encontra-se hoje em fase avançada de desenvolvimento, devendo a Fundação começar a operar efetivamente de forma eletrônica a partir do início do próximo ano, tanto para os procedimentos internos como para todos aqueles ligados à atividade-fim da Fundação", afirma Carlos Vogt. Segundo ele, a informatização resultará em maior agilidade, maior flexibilidade e maior visibilidade de todos esses procedimentos, em benefício da comunidade científica. Ainda para melhorar a troca de informações e a comunicação com o pesquisador foi feita, em 2003, a reformulação do site da Fundação e criado o serviço on-line Converse com a FAPESP, 36 • OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
* Diferenças mínimas de reais devem-se ao arredondamento de centavos.
que direciona as dúvidas do pesquisador para o setor competente dentro da instituição, respondendo-as por e-maü em um prazo médio de 48 horas. Foi criada ainda a agência eletrônica de notícias de ciência e tecnologia. Agência FAPESP, que atualmente envia boletins diários para cerca de 28 mil pessoas em todo o país e recebe 8 mil visitantes diários em seu site. No ano 2003, a FAPESP aprovou 7.466 novos projetos de pesquisa, sendo 3.838 novas bolsas, 2.944 novos auxílios regulares e 684 novas bolsas e auxílios ligados aos programas especiais e aos programas de inovação tecnológica (veja quadro acima). No total, às bolsas (as novas e as concessões de anos anteriores ainda vigentes) foram destinados no ano R$ 135,87 milhões, que correspondem a 38,3% do total de R$ 354,8 milhões desembolsados pela FAPESP. Aos auxílios regulares foram destinados R$ 146 milhões ou 41,2% dos gastos da FAPESP com a sua atividade-fim - e aos programas especiais e programas de inovação tecnoló-
gica, juntos, foram direcionados R$ 72,9 milhões, ou 20,5% do total. No Gráfico da página seguinte é possível visualizar a participação percentual do desembolso da FAPESP por linha de fomento, em 2003 e numa série histórica iniciada em 1996. É importante verificar, por exemplo, que o desembolso com bolsas, no exercício passado, em que pese o maior rigor na seleção e na aprovação de solicitações e a queda de 11,3% nos gastos em relação a 2002, foi um dos mais altos dos últimos oito anos, praticamente empatando com os de 2000, que chegaram a 38,4%. O alto comprometimento dos recursos de fomento com bolsas tem como causa o aumento, na última década, da demanda por essa modalidade de apoio, que vinha em parte sendo acompanhada pelo aumento no número de concessões por parte da FAPESP. Se tomarmos o ano de 1994 como referência, as solicitações de bolsas passaram de 2.256 para 8.081, em 2003, correspondendo a um crescimento de 258%. No mesmo período, o número de bolsas aprovadas cresceu 199%: passou de 1.282, em 1994, para 3.838 no ano passado. Ressalte-se que em 2000 - antes de implantar
Participação percentual dos investimentos realizados em bolsas e auxílios, no período de 1996 a 2003 2,53
33,38
■^. ^■■^H
28,86 ^^^^m
17,42
^ ' '^ ^^^^B
H H ^
■ 11,83
1
34,76 33,47
32,32
fl^H
mÊÊÊ 30,63
^H^p ^^
1997
1998
1999
9,93
41,18
MM.
35,44
33,63
38,30
2000
2001
2002
2003
È 1996
Bolsas regulares
a sua política de maior rigor na avaliação de novas solicitações de bolsas e efetuar a análise comparativa das propostas - as aprovações haviam chegado a 5.213 bolsas, correspondendo a um aumento, em relação às novas concessões feitas em 1994, da ordem de 306%. "O maior rigor na avaliação das solicitações de bolsas reflete a competição por esses recursos", diz o diretor científico da FAPESP, José Fernando Perez. Para ele, o crescimento da demanda qualificada foi muito grande e a Fundação não consegue atendê-la, apesar de direcionar 38,3% do seu desembolso para bolsas - ou seja, para formação de recursos humanos. "O sistema de pesquisa do estado tem uma capacidade instalada para formar mais gente e não está fazendo. Isso deveria ser objeto de reflexão por parte das agências federais." Doutorado e pós-doutorado - Cabe salientar a importância dada pela FAPESP à iniciação científica - foram 1.846 novos projetos aprovados em 2003, de um total de 3.838 novas bolsas - e ao doutorado e pós-doutorado. Ao primeiro, por meio tanto das bolsas de dou-
Auxílios regulares
Programas especiais ^
Inovação tecnológica |
torado quanto das de doutorado direto, foram destinados R$ 78,8 milhões, de um total de R$ 135,9 milhões desembolsados com bolsas, o que corresponde a 58%. Com o pós-doutorado foram gastos R$ 28,8 milhões ou 21,3%. Juntas, as duas modalidades receberam 79,3% de todo o desembolso com bolsas regulares. As áreas do conhecimento que receberam maior volume de recursos no ano passado - tanto totais quanto na modalidade bolsa - foram saúde, biologia e engenharia, como vem acontecendo nos últimos anos. A participação dos auxílios regulares, incluindo os projetos temáticos, nos gastos de fomento da FAPESP no ano permaneceu acima dos 40%. Mesmo assim houve uma redução de recursos da ordem de 26,1% em relação a 2002. Para os programas especiais e os programas de inovação tecnológica a redução de recursos foi da ordem de 30,4%. Com os programas especiais e os de inovação tecnológica foram gastos, respectivamente, R$ 29,4 milhões e R$ 43,4 milhões. Dentre os programas especiais, os maiores valores foram destinados ao programa Apoio a Jovens Pesquisado-
res em Centros Emergentes (ou simplesmente Jovens Pesquisadores) - que visa formar novas lideranças de pesquisa, fixar jovens doutores no estado e diversificar os centros de pesquisa - e ao programa Apoio à Rede ANSP Academin Network at São Paulo, rede responsável por ligar as redes de computadores acadêmicas e dos institutos e centros de pesquisa científica e tecnológica de São Paulo entre si e com o Brasil e o exterior. Já entre os programas de inovação tecnológica, os maiores desembolsos foram para o Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) que financia a pesquisa em empresas paulistas com até cem empregados - e para o programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), que financia dez centros de excelência no estado. Para Carlos Vogt, o acompanhamento que o Relatório faz das atividades desenvolvidas pela FAPESP mostra que os rumos seguidos pela Fundação estão corretos e apontam para um papel que vai se mostrando cada vez mais sólido e importante no apoio ao sistema de produção cultural, científica e tecnológica do Estado de São Paulo e do país. • PESaUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 37
-fA^,,.
■ CIÊNCIA
SÓ os pequenos sobrevivem cjV*^í,rf^t^í^,^M^^'itt-^feí*áJ,^ ^
Os bacalhaus capturados em algumas regiões do Ártico estão 30% menores do que os que eram encontrados há 60 anos. Se hoje os adultos dessa espécie {Gadus morhua) têm em média 65 centímetros de comprimento, na década de 1940 costumavam atingir 95 centímetros. Para alguns biólogos, o que se passa com esse peixe é um
■ Vacina contra Aíds decepciona Malogrou em testes clínicos a tentativa de aplicar uma combinação de duas vacinas experimentais contra a Aids, chamadas de DNA.HIVA e MVA. HIVA. Essa combinação, acreditavam pesquisadores das universidades de Nairóbi, Quênia, e de Oxford, na Inglaterra, ativaria uma resposta do sistema imunológico contra o vírus. Mas testes preliminares feitos com 205 voluntários no Quênia, em Uganda e no Reino Unido mostraram que essa estratégia foi eficaz em apenas um quarto dos casos - resultado bem abaixo do mínimo de 60% exigido para uma vacina ser considerada bem-sucedida [SciDev.Net). Andrew McMichael, diretor da Unidade de Imunologia Humana do Conselho de Pesquisa Médica Britânico, admi-
exemplo das conseqüências da exploração excessiva dos recursos marinhos. Ulf Dieckmann, do Instituto de Sistemas de Análises Aplicadas, da Áustria, acredita que a pesca comercial esteja exercendo uma pressão evolutiva sobre o bacalhau e outras espécies de peixes. Para ele, a captura excessiva dos exemplares maiores, que procria-
vam mais e de modo mais eficiente, fez com que sobrevivessem apenas os peixes menores, que se reproduzem menos e mais lentamente. "Essas mudanças ainda são ignoradas nos debates sobre o gerenciamento de recursos marinhos", comentou Dieckmann no Euroscience Open Fórum, o primeiro encontro científico multi-
Bacalhau na rede: pesca eliminou os exemplares maiores e agora persegue filhotes como este
tiu que os resultados desapontaram. O projeto Iniciativa para a Vacina contra a Aids do Quênia, que dois anos
atrás havia classificado a vacina como "a melhor esperança que temos para pôr fim ao ciclo de novas infecções pelo
HIV", cancelou a realização de novos testes clínicos, após investimentos estimados em US$ 80 milhões. •
■ Luz sobre a fotossíntese
Nas folhas, a reação que sustenta o planeta: eficácia de 95%
38 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESOUISA FAPESP 104
Sai da sombra mais uma parte do fenômeno que permite a plantas e bactérias converter a luz solar em energia e sustenta a vida no planeta - a fotossíntese. Em um trabalho conjunto, pubUcado na Nature, pesquisadores da Inglaterra, dos Estados Unidos e da Holanda descobriram como atuam as três estruturas essenciais à transformação do gás
disciplinar europeu, realizado em setembro em Estocolmo, na Suécia (Hnancial Times). Segundo ele, será difícil reverter tal situação, embora essa avaliação não seja unânime. Outros especialistas duvidam que esse tipo de alteração possa ocorrer em tão pouco tempo. Mas estudando outra espécie de peixe, David Conover, da Universidade do Estado de Nova York, Estados Unidos, demonstrou que a pesca seletiva dos exemplares maiores provoca um impacto genético sobre a população em apenas quatro gerações. •
carbônico e da água em açúcares e oxigênio. Segundo um dos coordenadores desse estudo, Neil Hunter, da Universidade de Shefííeld, Inglaterra, esta é a primeira vez que se vê, por meio de um microscópio de força atômica, como trabalham em conjunto os componentes envolvidos na fotossíntese, já conhecidos individualmente. Sabia-se que a luz é coletada por estruturas em forma de antena - conjuntos de proteínas chamados LHl e LH2 (do inglês light harvesting complex ou complexo de captação de luz) - e então enviada para um centro de reação, que a converte em energia química. Estudando a membrana de uma linhagem selvagem da bactéria Rhodobacter sphaeroides, a equipe de Hunter descobriu que grupos de 10 a 20 moléculas de LH2 captam a luz e a
passam entre si até que um deles faça contato com um LHl. A energia então circula por esse LHl ou passa para outro LHl até chegar a um centro de reação. Quando a luz é escassa, os complexos de captação de luz se unem de maneira engenhosa e captam o máximo possível de energia. Se um complexo LH1 capta luz enquanto o centro de reação mais próximo está ocupado, a energia luminosa é transferida para os LHl adjacentes, até que seja encontrado um centro de reação livre para recebê-la. O mecanismo é mais complexo e eficiente do que inicialmente suposto, com uma eficácia superior a 95%. •
■ Proteína do peso altera fertilidade A leptina ganhou mais importância. Além de participar da regulação do apetite e do peso, indicando ao cérebro quando o organismo tem pouca energia estocada e é hora de comer de novo, essa proteína atua no sistema reprodutor feminino e está associada a problemas como perda de massa óssea em atletas, distúrbios alimentares e infertilidade, de acordo com uma pesquisa realizada no Centro Médico Diaconisa Beth Israel e no Hospital Geral Massachusetts, ambos dos Estados Unidos. Com a redução drástica da gordura corporal após dieta severa, exercício ou distúrbio alimentar -, o organismo entra em desequilíbrio energético e a menstruação pára, os ovários deixam de funcionar e os níveis de hormônios sexuais caem vertiginosamente. Publicada no New England Journal ofMedicine de 2 de setembro, essa descoberta interessa em especial a três grupos de mulheres com baixos índices de gordu-
A língua do papagaio A ave que imita a voz humana utiliza a língua ao modular os sons que emite, à semelhança dos seres humanos, propõem Gabriel Beckers, Brian Nelson e Roderick Suthers, da Universidade de Indiana, Estados Unidos, em um estudo publicado na Current Biology. Sabia-se que tanto os seres humanos quanto os papagaios e periquitos utilizavam as pregas vocais na produção dos sons. Mas até agora acreditava-se que a habilidade de utilizar os movimentos da língua na modulação dos sons fosse exclusividade da espécie humana. A equipe de Indiana constatou agora
ra corporal: as extremamente magras com problemas de infertilidade, as atletas competitivas e bailarinas cuja silhueta esguia as expõe a risco de osteoporose, e as vítimas de distúrbios alimentares como anorexia. Nesse estudo, atletas com 40% a menos de gordura que mulheres comuns foram tratadas com leptina. Produzida no tecido adiposo e secretada na corrente sangüínea em níveis proporcionais à quantidade de energia armazenada, essa proteína chega ao cérebro e informa o estoque de energia disponível - e desse modo regula o metabohsmo, a reprodução e a manutenção dos ossos. Os resultados do tratamento surpreenderam: os níveis de hormônios sexuais subiram, os ovários voltaram a funcionar e a menstruação se regularizou. •
que a ave estudada, o periquito-do-pantanal ou caturrita [Myiopsitta monachus), é capaz de movimentar a língua e promover variações vocais de diversas freqüências e ampUtudes, formando a base para os sons das vogais, mesma característica da fala humana. •
A caturrita: movimentos da língua explicam a habilidade de imitar a voz humana
PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 39
LABORATóRIO
BRASIL
Água com protozoanos em São Paulo Alguns mananciais paulistas estão contaminados com protozoários. Uma análise feita em 28 pontos de 16 bacias e subbacias hidrográficas do estado, correspondendo a uma área de 121.876 quilômetros quadrados habitada por mais de 30 milhões de pessoas, detectou dois parasitas que podem causar diarréia, náusea, vômito, eólicas e mal-estar gástrico. Em 27% das 278 amostras coletadas, foi encontrada a Giardia lamhlia e em 2,5%, o Cryptosporidium parvum, que pode causar a morte de pessoas com imunidade baixa, como portadores de HIV, transplan-
■ Mais um problema das cidades Antes restrita às áreas rurais, a leishmaniose visceral, que causa perda de peso, febre e aumento do baço e do fígado, pode ter chegado aos centros urbanos. Ao menos é o caso de Natal, capital do Rio Grande do Norte, cujas áreas de ocupação recente e sem infi-a-estrutura constituem um ambiente propício para a disseminação do Lutzomyia longipalpis, mosquito que transmite o Leishmania chagasi, protozoário causador da doença. Uma equipe da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, coordenada por Selma lerônimo, colheu informações sobre 1.106 pessoas de 216 famílias das vizinhanças endêmicas de Natal
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Giardia: em quase um terço das amostras coletadas
tados, idosos e crianças. Segundo a farmacêutica que coordenou esse levantamento, Elayse Hachich, gerente do setor de microbiologia e parasitologia da
e identificou quatro grupos de contaminação por L. chagasi. Do total pesquisado, 135 indivíduos apresentavam um quadro de leishmaniose atual ou anterior ao estudo, 390 tinham defesa espontânea contra o protozoário, 21 a possibilidade de desenvolver a
Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), esses dados podem ajudar as empresas de captação, tratamento e distribuição de água a otimiza-
doença e, por fim, 560 não assinalavam nenhum tipo de contaminação, embora vivessem em áreas endêmicas. "Neste grupo pode haver tanto pessoas não infectadas quanto infectadas que perderam a resposta celular aos antígenos do L. ciiagasi", explica Selma, uma das autoras do estudo publicado no Scandinavian Journal of Infectious Diseases. Para ela, essa classificação pode ser útil para determinar as áreas de maior risco de infecção. •
■ Reposição hormonal no Brasil
Teste de leishmaniose
40 • OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
A Sociedade Brasileira do Climatério (Sobrac) apresentou no final de agosto uma análise dos principais estudos feitos até agora sobre reposi-
rem o tratamento. "A filtra ção é a forma mais efetiva para a remoção desses para sitas, que são resistentes ao cloro", diz a autora do estu-^B do, publicado no WaterSei-' ence and Tedinology em conjunto com pesquisadores^B da Faculdade de Saúde Pú-' blica da Universidade de São Paulo (USP). O estudo verificou que locais com altas concentrações de Giardia também continham altos índices dos chamados coliformes fecais, as bactérias presentes nas fezes. "Isso demonstra que os esgotos foram a origem desse protozoário nos locais conta- ;, minados", afirma Elayse. «^H
ção hormonal, o ultimamente controvertido consumo de hormônios sexuais que deixam de ser produzidos pelas mulheres por volta dos 50 anos, quando começa a menopausa. O documento Terapêutica hormonal da peri e pós-menopausa conclui que essa abordagem é eficaz e segura apenas para combater os sintomas da menopausa, como as súbitas ondas de calor, a insônia e a irritabilidade. O estudo de 32 páginas traz algumas recomendações sobre o melhor momento para iniciar esse tipo de tratamento, sua duração e dosagem. A Sobrac sugere que a reposição de hormônios comece assim que surgem os primeiros sinais da menopausa - quando a menstruação se torna irregular, desde
7718000 7720000
538000
7722000 UTMN
7724000 7726000 548000
que a mulher não apresente risco de desenvolver câncer de mama ou doenças cardiovasculares - e continuar enquanto houver benefícios. A Sobrac se propõe a desfazer as dúvidas originadas por duas pesquisas do projeto Women's Health Initiative (WHI), dos Estados Unidos. Feitos com 30 mil voluntárias, esses estudos foram interrompidos ao mostrar que os riscos superavam os benefícios, embora se investigasse a terapia hormonal como forma de prevenir doenças cardiovasculares e mentais, algo hoje contra-indicado. •
■ Outra forma de estudar o relevo Uma técnica empregada normalmente para prospecção mineral - a aerogamaespectometria, capaz de detectar os raios gama emitidos por alguns elementos químicos a uma profundidade de até 30 a 45 centímetros do solo - foi usada pela primeira vez no Brasil para estudar as transformações do relevo. Uma equipe da Universidade de São Paulo coordenada pelo geofísico Eder Molina, com a colaboração do geógrafo Jurandyr Ross, examinou uma área de cerca de 900 quilôme-
UTME
tros quadrados na região de Morro do Ferro e Passa Tempo, no sul de Minas Gerais, analisando as variações na concentração de potássio, elemento químico abundante na crosta terrestre. As informações colhidas por um avião a 200 quilômetros por hora e
Duas visões de Passa Tempo: vales no plano superior e a concentração de potássio no inferior
100 metros de altura indicaram que, de modo geral, esses terrenos inclinados são modificados essencialmente pela água através do intemperismo - a alteração química e física das rochas sem remoção de material -, e não somente pela erosão mecâni-
ca. Os pesquisadores observam que nas áreas de inclinações mais acentuadas atua mais fortemente a erosão e deixa expostas rochas ricas em feldspato potássico e biotita, nas quais normalmente o potássio se abriga. "Nessas áreas, a erosão mecânica e química causa uma intensa perda de solo, o que em pouco tempo as tornará estéreis e impróprias para a agricultura", comenta o geógrafo Henrique Dal Pozzo, integrante da equipe e autor principal do estudo com esses resultados, publicado na revista Ciência e Natura. "Já nos vales e planícies, que apresentam uma elevada concentração de potássio, os sedimentos depositam-se rapidamente e contribuem para o assoreamento dos leitos dos rios e para a ocorrência de enchentes." •
A esclita de quem fala elado fe Crianças que trocam o r pelo / ao falar podem apresentar problemas de alfabetização. Um estudo publicado nos Arquivos de Neuropsiquiatria demonstra essa relação entre fala e escrita ao constatar mais erros em ditados e redações de crianças de 9 anos que, três anos antes, apresentavam aquisição e uso incompletos dos fonemas em sua fala espontânea, cometendo trocas e omissões. "Se ao usar ora criança diz porta e parede, mas peto paia preto, apresenta aquisição fonológica incompleta", explica o fonoaudiólogo Márcio Perrini França, um dos autores do trabalho realizado na Universidade Federal do Rio Gran-
Sons e letras trocados
de do Sul. Em um grupo de 236 crianças de 6 anos de uma escola particular de Porto Alegre, havia 20 crianças com domínio incompleto da fala. Três anos depois, embora nenhuma alteração tenha sido cons-
tatada na fala espontânea dessas crianças, 15 delas cometeram 1,5 erro de troca em pares de fonema, como s-z,f-v, t-de c-g, em um ditado ante 0,5 de um grupo controle de 56 crianças. Na produção de um texto com base em uma figura, o primeiro grupo escreveu em média 78,8 palavras e o segundo, 90,9. O estudo constatou que o grupo com domínio incompleto da fala aos 6 anos usou em média 3,7 anos de chupeta diante de 2,5 anos dos controles, mostrando uma possível associação com os atrasos na aquisição fonológica, já que a presença desse objeto na boca interfere na articulação dos sons da fala.
PESaUISA FAPESP 104 • OUTUBRO DE 2004 ■ 41
CAPA ASTROFÍSICA
Outras estrelas,
outros mundos Novos planetas fora do sistema solar acirram a disputa entre europeus e americanos pela primazia de achar mais Terras - e os brasileiros não estão fora dessa corrida
MARCOS PIVETTA
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No dia 6 de outubro de 1995, o mundo soube que havia mundos em que o Sol não era o astro-rei. Num congresso em Florença, os astrônomos suíços Michel Mayor e Didier Queloz, do Observatório de Genebra, anunciaram a descoberta do primeiro planeta fora do sistema solar em torno de uma estrela semelhante ao Sol, vencendo uma silenciosa disputa com colegas norte-americanos. "Todos podem agora olhar para o céu à noite, ver as estrelas e dizer: 'Há planetas lá fora'", afirmou Mayor. Não havia imagens do companheiro celeste que circulava a estrela Pégaso 51, distante cerca de 40 anos-luz (9,5 trilhões de quilômetros é o equivalente métrico a um ano-luz). Havia, sim, evidências indiretas da presença de um objeto cujo campo gravitacional provocava uma sutil e periódica alteração no movimento da estrela com nome do cavalo alado e que, a cada 4,2 dias, dava uma volta completa em seu sol. Ali havia um planeta. Em muitos aspectos, mas não em todos, o novo mundo lembrava o maior planeta solar, Júpiter, cuja massa é 318 vezes maior que a da Terra. Sem superfície sólida, desprovido de água, era gasoso e gigante, com cerca de metade do peso jupiteriano. Porém, ao contrário de Júpiter, que está muito longe do Sol, estava quase colado à sua estrela. Para usar o jargão dos astrofísicos, era um Júpiter quente, com temperaturas em sua superfície da ordem de 1.000°C
^^BL. Representação artística do planeta recém-descoberto em torno da estrela 55 Cancri: menor, do tamanho de Netuno, e talvez rochoso
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Desenho do mundo encontrado ao redor da estrela Gliese 436, mais fria que o Sol: astro com massa 21 vezes maior do que a da Terra
Duas diferentes visões artísticas de planetas extra-solares gigantes e gasosos: céu de estrelas emoldura um dos mundos (acima) e uma lua faz companhia ao outro, com seu sol ao fundo
(o Júpiter original é gélido). Enfim, o companheiro da estrela Pégaso 51 era um lugar proibitivo para qualquer forma de vida. Nos últimos nove anos, com pequenas variações, todo planeta descoberto ao redor de estrelas parecidas com o Sol - e foram cerca de 130 - era uma variação sobre o mesmo tema. Uma cópia, mais ou menos fiel, do primeiro mundo desvendado pela dupla helvética: uma bola gigante de gás, dezenas ou centenas de vezes maior do que a Terra. Um mundo tipo Júpiter, quente ou não, de acordo com a distância que o separava de seu sol. No final de agosto, a monotonia de só encontrar pesos-pesados em torno das estrelas finalmente chegou ao fim: três mundos menores, distantes entre 40 e 50 anos-luz, foram localizados com o auxílio de telescópios baseados na Terra. Começou a era dos pesosmédios. Novamente capitaneados por Mayor e Queloz, os europeus foram os primeiros a dar a boa nova. No dia 25 daquele mês anunciaram a localização de um planeta com 14 vezes a massa da Terra - de massa, portanto, similar ao de Urano - nos arredores de uma estrela semelhante ao Sol, a Mu Arae, localizada na constelação de Altar. Com o senso de marketing típico dos cientistas norte-americanos, e talvez algum exagero, os astrônomos do Velho Mundo disseram que o companheiro da Mu Arae poderia ser uma Super-Terra, termo que caiu no gosto da imprensa. Para ser uma Terra, o planeta teria de ser um peso-leve, menor ainda. Mesmo assim, o peso-médio nos calcanhares da Mu Arae agradou à platéia e jogou os oponentes dos suíços contra as cordas. Menos de uma semana mais tarde, no dia 31 de agosto, duas equipes independentes de pesquisadores dos Estados Unidos contragolpearam: apresentaram dois planetas de porte semelhante ao recém-descoberto pelos colegas (e rivais) do outro lado do Atlântico. Pela grandeza de suas massas, os mundos foram comparados a Netuno, que é 17 vezes mais pesado do que a Terra. O grupo chefiado por Barbara McArthur, da Universidade do Texas, localizou um corpo celeste com 18 vezes a massa da Terra em órbita de Cancri 55, estrela pare-
cida com o Sol e pertencente à constelação de Câncer. Três mundos gigantes e gasosos já haviam sido detectados ao redor de Cancri 55 e a chegada de um quarto irmão, menor, fez da estrela a detentora do maior sistema planetário extra-solar conhecido. O time liderado por Geoffrey Marcy e Paul Butler - astrofísicos, respectivamente, da Universidade da Califórnia em Berkeley e do Instituto Carnegie de Washington - encontrou um planeta com massa 21 vezes maior do que a da Terra em torno de uma pequena e fria estrela da constelação de Leão, a Gliese 436. "Esses mundos do tamanho de Netuno provam que lá fora não há apenas planetas gasosos gigantes", comenta Marcy, principal concorrente dos europeus na caça por outras Terras. "Começamos a observar planetas cada vez menores." A lém do talhe semelhante, os i^L três planetas têm outro dado L^^ em comum: estão muito / ^ próximos de suas estrelas, ^L ^^^ mais do que Mercúrio, o primeiro mundo de nosso sistema, está do Sol. Seu período orbital, o tempo necessário para dar uma volta em torno de sua estrela, é menor do que dez dias, um indicativo de que devem ser planetas muito quentes. A Terra, como se sabe, demora 365 dias, um ano, para completar uma órbita ao redor do Sol. Mercúrio, 88 dias. Por que a localização de uma Super-Terra e dois Netunos anima tanto os astrofísicos? Não foi só uma questão de massa e tamanho, mas também da possível constituição física dos astros recém-descobertos. Eles acreditam que essa trinca de novos planetas sejam os primeiros a ostentar uma característica ainda mais importante: podem ser sólidos, totalmente ou ao menos parcialmente sólidos. "O planeta em órbita da estrela Mu Arae representa a primeira descoberta de um mundo rochoso mais parecido com a Terra", diz o astrônomo português Nuno Santos, do Observatório de Lisboa, que faz parte da equipe européia. "Até agora não sabíamos se os planetas rochosos eram ou não freqüentes. Agora sabemos que devem ser. Demos o primeiro passo para encontrar uma verdadeira Terra." Santos é o grande responsável pelo achado europeu e assina em primeiro lugar, na frente de seus colegas mais famosos, o artigo científico sobre a Super-Terra.
Os planetas descobertos pelos norte-americanos também podem ser fundamentalmente rochosos, ou, no caso do mundo em torno da fria estrela Gliese 436, talvez uma mistura de pedra e gelo. Não se pode, contudo, descartar por completo a hipótese de que os três novos planetas ainda sejam majoritariamente gasosos. Como seus primos maiores, os Júpiteres extra-solares. De qualquer forma, os pesquisadores estão otimistas quanto às perspectivas de localizar em breve um planeta como o nosso e, quem sabe, sinais de vida complexa. "Essas descobertas mostram que estamos no caminho de encontrar a primeira Terra extra-solar", afirma Barbara McArthur. "Se a tecnologia continuar progredindo, quem sabe possamos atingir tal objetivo em poucos anos." Em nosso sistema, Mercúrio, Vênus, Terra e Marte - os quatro primei-
ros planetas - são rochosos. Os mundos mais afastados do Sol - Júpiter, Saturno, Urano e Netuno - são essencialmente gasosos, sem superfície sólida, com rochas apenas em seu núcleo. Mais longínquo dos planetas solares, o pequeno e denso Plutão é um caso à parte em termos de sua composição. Como um cometa, é feito essencialmente de gelo. Quase todos os 130 planetas extra-solares conhecidos, inclusive os três de massa mediada, foram descobertos da mesma maneira: pelo emprego da técnica de velocidade radial, que mede o efeito exercido pelo campo gravitacional de um ou mais planetas sobre a movimentação de seu sol. É uma forma indireta de produzir evidências de
Ilustração do método do trânsito, forma alternativa de achar planetas: passagem do astro em frente à sua estrela provoca microeclipse detectável por telescópios
que há um objeto celeste em órbita de uma estrela. A lógica por trás de tal procedimento é de fácil compreensão. A presença de um planeta, ou qualquer outro objeto celeste, produz periodicamente uma ínfima variação na velocidade de deslocamento da estrela. Em outras palavras, na posição de seu sol. Ê como se a companhia do planeta fizesse a estrela dançar, indo, de tempos em tempos, para a frente e para trás. Quanto maior for a massa de um planeta, e mais perto ele estiver de seu sol, maior será o passo do bale espacial executado pela estrela. Medindo essa perturbação num sol, os astrofísicos podem inferir a massa mínima (mas não a máxima) e a órbita do planeta que o circunda. Objetos com massas jupiterianas provocam alterações na velocidade radial de seu sol da ordem de dezenas ou centenas de metros por segundo. Mundos do tipo Ne-
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tuno fazem a sua estrela dançar alguns metros. "A perturbação da Terra sobre a velocidade radial do Sol é da ordem de 13 centímetros por segundo", afirma Sylvio Ferraz-Mello, coordenador do grupo de dinâmica de sistemas planetários do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (lAG-USP). Um nada. A s alterações na velocidade i^L radial são calculadas a par/gai^L tir de dados obtidos por ã ^L um equipamento chama^L JÊLm do espectrógrafo (ou espectrômetro), que, como o nome indica, espalha a luz da estrela nas freqüências e comprimento de ondas que a constituem. Dessa forma, empregando os conceitos do chamado efeito Doppler, os astrofísicos têm uma idéia da influência causada na órbita de uma estrela pela presença de um planeta nas redondezas. Quando a estrela dança para perto de seu observador, a luz medida se torna mais azul. Se ocorre o inverso, predominam os tons vermelhos. O sucesso do emprego do método da velocidade radial para encontrar planetas depende do acesso a um espectrógrafo de última geração. A equipe européia, por exemplo, encontrou evidências de sua SuperTerra com auxílio do Harps, um espectrógrafo capaz de medir variações na velocidade radial de objetos celestes da ordem de 1 metro por segundo. Tido como o mais poderoso instrumento de seu tipo, o Harps foi instalado no final do ano passado num telescópio de 3,6 me46 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
tros do ESO (European Southern Observatory), em La Silla, no norte do Chile. As equipes norte-americanas acharam seus Netunos também com a ajuda de potentes espectrógrafos. Hoje ainda não há meio capaz de detectar mundos como a Terra ao redor de outras estrelas. A técnica da velocidade radial favorece a descoberta de planetas com grandes massas e/ou que estejam bem próximos a seus sóis. Mas a limitação deve ser superada em breve. A disseminação do método do trânsito planetário, forma alternativa de encontrar mundos que não apresenta o mesmo viés da velocidade radial, é uma das apostas para os próximos anos. A abordagem consiste em monitorar o brilho de uma estrela, a partir de um ponto fixo de observação, em busca de diminuições periódicas em sua intensidade. Essa redução, uma pequena zona de
Representação artística de possível planeta em torno da estrela CoKu Jau 4: tamanho de Júpiter e aparência de Saturno
sombra, pode ser causada pela passagem de um objeto celeste de certo porte - talvez um planeta - entre a estrela e o observador. A passagem é o trânsito, que, em termos práticos, provoca um microeclipse na estrela, detectável apenas por meio de telescópios sensíveis. "O método do trânsito é especialmente poderoso se usado em conjunto com a técnica da velocidade radial", afirma o espanhol Roi Alonso, do Instituto de Astrofísica de Canárias. "Com ele, podemos estimar com maior precisão a massa de um planeta e ter, pela primeira vez, uma noção do seu tamanho e, por conseqüência, de sua densidade." Em agosto passado, trabalhando com as duas técnicas e dados de uma pequena rede de satélites, Alonso descobriu um planeta gigante, do tipo Júpiter. O astrofísico brasileiro Cláudio Melo, que trabalha com os europeus no ob-
Imagem da estrela AL) Mie, com o brilho removido: irregularidades no disco de poeira indicam planetas ainda não identificados ao redor do astro
servatório ESO, no Chile, também participou recentemente da detecção de um novo mundo por essa dupla abordagem. Ajudou a localizar um Júpiter quente quase colado à estrela OGLETR-111. Apesar da descoberta, Melo diz que não foi fácil chegar ao resultado. Observaram 4 mil estrelas numa região do espaço, encontraram 40 estrelas com diminuições de brilho suspeitas e conseguiram confirmar, com o emprego da velocidade radial, apenas um planeta. "O método do trânsito se presta mais para fornecer candidatos a planetas, que, num segundo momento, têm de ser ratificados ou não por outras técnicas", pondera Melo. Há quase um consenso na comunidade científica de que o método do trânsito encontrará em breve planetas bem menores do que os atuais Júpiteres ou Netunos extra-solares: os primeiros candidatos a serem uma Ter-
ra. Projetos nesse sentido estão em curso e vão ganhar o espaço na segunda metade desta década.
M
ais uma vez, os europeus estão na frente dos norte-americanos. Em junho de 2006 será lançado um pequeno satélite francês, de 670 quilos, o Corot, que, durante três anos, permanecerá em órbita polar e circular em torno da Terra. Sua missão será procurar, usando o método do trânsito, planetas em torno de milhares de estrelas próximas e estudar abalos sísmicos numa dezena de outras. Era para ser um projeto apenas do CNES (a agência espacial fi-ancesa), mas faltaram verbas e a empreitada foi aberta para outros países. Áustria, Espanha, Alemanha, Bélgica e a ESA (a agência espacial européia)
tornaram-se sócios do projeto. O Brasil também encontrou espaço na missão Corot e se tornou parceiro da iniciativa. A estação terrestre do hemisfério Sul que receberá dados do satélite fica em Natal (a do hemisfério Norte se situa na Espanha). Sua montagem está a cargo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). "Sem a estação brasileira, o Corot conseguiria observar e enviar dados de 40 mil estrelas", afirma Eduardo Janot Pacheco, do lAG-USP, coordenador da participação brasileira na missão. "Com a nossa estação, esse número aumentará para 60 mil." Em razão da parceria, o país já enviou à França engenheiros de software para trabalhar em programas do satélite e terá a chance de participar de estudos científicos que talvez levem à descoberta do primeiro planeta do tamanho da Terra A Nasa entrará diretamente na corrida por uma Terra extra-solar no final de 2007, com o lançamento do satélite Kepler, que usará também o método do trânsito para caçar seus mundos. Sabese que planetas rochosos, de tamanho semelhante ao da Terra, existem. Até já se encontraram alguns. Só que em torno de um tipo de astro inóspito para fomentar a vida: pulsares, também chamados estrelas de nêutrons. Pulsares são estrelas densas, de alta rotação, que emitem pulsos de radiação. São estrelas mortas. Em 1991, quatro anos antes do anúncio bombástico de Mayor e Queloz sobre a observação de um planeta em torno de uma estrela similar ao Sol, Alexander Wolszczan, da Universidade PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 47
Estadual da Pensilvânia, descobriu três planetas - dois com massa similar à da Terra e um terceiro com o peso da Lua - ao redor de um pulsar localizado na constelação de Virgem, o PSR B1257+12. Esses foram, a rigor, os primeiros planetas encontrados em outra estrela que não o Sol. O achado é quase ignorado porque, como os astrofísicos sabem, a vizinhança de pulsares não é apta a suportar mundos com vida. No fundo, o grande interesse é por estrelas como o Sol, de brilho médio, que, segundo projeções, talvez possam abrigar milhares ou milhões de planetas de clima ameno como a Terra. Historicamente, o homem enfrenta dificuldades para encontrar planetas. A começar pela própria natureza desse objeto celeste, que não favorece a sua localização no espaço. Com exceção de um breve período em sua juventude, planetas não emitem luz própria, característica que dificulta a sua visualização direta. Logicamente, um planeta pode ser iluminado pela luz de estrelas próximas, como acontece com alguns mundos do sistema solar, às vezes visíveis até a olho nu. Mas, como regra geral, os planetas extra-solares são ofuscados pelo brilho das estrelas. Tornam-se objetos ocultos até para os mais avançados telescópios ópticos. Por ora, são mundos longínquos e sem face. A única cara que exibem é a que os desenhistas lhes emprestam nas "representações artísticas" destinadas a divulgar uma descoberta para o grande público. Ainda assim, os cientistas não desistem de tentar flagrar de forma direta os mundos descobertos nos últimos nove anos. No mês passado, por exemplo, pesquisadores do observatório ESO divulgaram o que pode ser a primeira imagem de um planeta extra-solar {veja foto nesta página): o ponto menor, em vermelho, seria um planeta com cinco vezes a massa de Júpiter. A seu lado está uma estrela da constelação de Hidra, a 2M1207, a esfera maior e de brilho mais claro. Esse tipo anúncio, nem de longe o primeiro do gênero, ainda é visto com ceticismo pela comunidade acadê48 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
mica. Os astrofísicos acreditam que só será possível "tirar fotos" confiáveis de planetas extra-solares na próxima década, quando entrarem em operação dispositivos com novas técnicas, como a interferometria, capazes de produzir esse tipo de imagem. Mesmo os úhimos planetas do sistema solar, nossos vizinhos celestes, foram descobertos aos poucos, lentamente. No início do século 17, Galileo Galilei tomouse o primeiro homem a esquadrinhar o céu por meio das lentes de um telescópio. Com a ajuda desse artefato, o astrônomo e matemático toscano, cuja defesa do heliocentrismo lhe valeria
Ponto vermelho ao da estrela 2I\/11207: talvez a primeira imagem de um planeta extra-solar uma condenação no tribunal da Santa Inquisição, fez inúmeras observações inéditas. Mostrou o pouco brilho das estrelas da Via-Láctea, avistou manchas no Sol, divisou crateras na Lua, encontrou luas em Júpiter, distinguiu as fases de Vênus. Planetas, não achou nenhum. Dessa forma, até o final do século 18, a humanidade contabilizava, fora a Terra, cinco mundos, todos em órbita do Sol e ocasionalmente visíveis a olho nu: Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno. Oficialmente, esses planetas não têm descobridores. Seu registro se confunde com a história da civilização.
Novos mundos só foram identificados mais de um século depois de Galileo, à medida que os telescópios se tornaram mais potentes. E a um ritmo de um planeta por século. Urano foi descoberto em 1781; Netuno, em 1846; e Plutão, em 1930. Além de alimentar a esperança de localizar novas Terras em torno de outras estrelas, a descoberta de mais de uma centena de Júpiteres extra-solares, e de certo modo até dos três novíssimos mundos de tamanho médio, desafia a teoria mais aceita sobre o nascimento de planetas, formulada a partir da configuração do sistema solar. Esses novos mundos parecem estar fora do lugar. A maioria situa-se absurdamente próxima de seu sol e exibe órbita elíptica, não-circular. Tudo diferente dos planetas gasosos e gigantes do sistema solar, que se encontram longe do Sol e apresentam órbitas circulares. A aparente incoerência levou o astrofísico inglês Martin Beer, da Universidade de Leicester, a propor recentemente, num artigo científico, que o sistema solar pode ser um lugar "especial", não-típico, do Universo. Se essa idéia, polêmica, estiver certa, não haveria outras Terras lá fora. "Pensar que todos os planetas se formam basicamente da mesma maneira pode ser um erro", especula o britânico. "Pode haver mais de um mecanismo que origine esses objetos." De acordo com o modelo mais aceito, planetas se formam a partir de um pequeno núcleo sólido, uma esfera de rocha e/ou gelo, de uns 10 quilômetros de diâmetro, chamada planetesimal. Núcleos rochosos situados a enormes distâncias de sua estrela conseguem, por meio de sua força gravitacional, atrair em torno de si grandes quantidades de gás proveniente dos setores frios de um vasto disco de matéria existente nos arredores de seu sol. Dessa maneira, distantes da estrela, formamse sempre planetas gigantes e gasosos, como Júpiter e Saturno. "Quase todo o Universo é composto de hidrogênio e hélio em temperaturas muito baixas", comenta o astrofísico Gustavo Mello, do Observatório do Valongo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Já os planetesimais mais próximos de
sua estrela, ainda segundo o modelo, são capazes de originar apenas planetas rochosos. Muito quentes, não conseguem atrair, tampouco manter, um envoltório de gás em seu entorno por muito tempo. Resultado: dão origem a corpos menores e mais densos, como Mercúrio, Vênus, Terra e Marte (o longínquo Plutão é um caso à parte). "A formação de um planeta é uma corrida contra o tempo", diz Gustavo Mello. "O material que o origina, resíduos do processo de nascimento das estrelas, pode se dissipar facilmente." Portanto, a teoria dominante não serve aparentemente para explicar a localização de quase todos os mundos extra-solares conhecidos - a menos que esses planetas tenham surgido pelo processo convencional em outro ponto do espaço, mais longe de sua estrela, e migrado para sua posição atual. Ou pode ser que os sistemas extra-solares conhecidos simplesmente não sejam representativos da maior parte dos mundos existentes ao redor de estrelas. Hoje os métodos de detecção favorecem a observação de planetas grandes que estejam perto de seu sol. Isso pode ter causado uma idéia distorcida do perfil dos mundos presentes "lá fora". O próprio Beer não descarta essa possibilidade, advogada de forma mais acentuada pelo astrofísico português Nuno Santos, o descobridor da Super-Terra. "Ainda é cedo para defender mudanças na teoria", pondera o pesquisador do Observatório de Lisboa. "Suspeitamos que os mundos encontrados até agora sejam uma pequena parte dos planetas existentes. E a maioria deles deve ser semelhante aos do sistema solar." Honrando as suas origens de além-mar. Santos define o que move um caçador de planetas. "No fundo, o que estamos a fazer é dar novos mundos ao Universo, tal como os portugueses deram novos mundos ao mundo no século 16. O ser humano gosta de explorar, e é isso que estamos a fazer", filosofa. •
Nenhum planeta extra-solar conhecido parece a pequena Terra, três lembram Netuno e 120, Júpiter
I CIÊNCIA
FíSICA
Mentes ^
versáteis
Físicos ajudam a resolver problemas na genética^ na medicina e na liderança de equipes
CARLOS FIORAVANTI
A matemática na fábrica: estratégias de liderança determinadas a partir do apoio ou da rejeição do grupo
P
ara os físicos, não existem fronteiras que delimitem o espaço em que devem atuar. Não satisfeitos em explorar as entranhas dos átomos e os astros mais distantes do céu, começaram a ocupar outros territórios e a resolver problemas em genética, biologia e medicina - mais recentemente, também na economia e na administração de empresas. São incursões com estilo: em busca das regras simples que expliquem os fenômenos da natureza, eles não hesitam em deixar de lado detalhes que os especialistas de outras áreas consideram preciosos. E, dotados de uma notável capacidade de abstração, examinam fenômenos distintos - a propagação de tumores ou a flutuação do preço das ações nas bolsas de valores - a partir das mesmas técnicas matemáticas usadas em uma área da física, a mecânica estatística, para explicar as 50 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
chamadas transições de fase, a exemplo da transformação da água em gelo. No dia 8 de setembro, um encontro realizado no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) em homenagem aos 60 anos de José Fernando Perez, diretor científico da FAPESP e pesquisador na área de física matemática, deixou evidente essa versatilidade, com demonstrações de que os físicos também entendem de genes, de câncer ou de bolsas de valores. Nos últimos 20 anos, o próprio Perez aplicou os métodos da física matemática para criar modelos que explicavam fenômenos como a flutuação de populações de moscas ou a capacidade de alguns materiais de tornarem-se magnéticos de modo espontâneo. "Nenhum fenômeno da natureza", diz ele, "pode a priori ser excluído como objeto de estudo da física, que do ponto de vista epistemológico é uma
ciência arrogante. A física avoca a si o direito de estudar qualquer fenômeno natural". No ano passado, Perez aproveitou o final de um debate sobre os 50 anos da descoberta da estrutura da molécula de DNA para, com certo humor, lançar uma provocação: "A moderna biologia deve cada vez mais ser percebida como um capítulo da física". A imagem do DNA - O desejo de intervir em outras áreas começou há pouco mais de 60 anos, quando o físico austríaco Erwin Schrõedinger publicou o livro What Is Life?, aplicando conceitos da física para entender a surpreendente estabilidade da informação genética. Schrõedinger também lançou a idéia de que os cromossomos de cada célula poderiam conter mensagens codificadas - era o código genético, mais tarde confirmado experimentalmente pelos biólogos. Foi outro físico, Francis
Crick, falecido em julho, que interpretou a imagem de raios X do DNA, para a qual a própria autora, a bióloga Rosalind Franklin, olhava sem sem imaginar que era a prova final da estrutura helicoidal da molécula responsável pela transmissão das características hereditárias entre os seres vivos. De lá para cá, só cresceu a integração dos físicos com especialistas de outras áreas. "Além de empregar os princípios da física para compreender melhor a biologia, queremos, no sentido inverso, usar a biologia para entender a física", diz o físico José Nelson Onuchic, co-diretor do Centro de Física Biológica Teórica (CTBP, na sigla em inglês), criado em 2002 na Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), nos Estados Unidos, com um financiamento de US$ 10,5 milhões da Fundação Nacional de Ciência (NSF). Físicos e químicos do CTBP, trabalhando com
grupos experimentais, conseguiram demonstrar os princípios de enovelamento, agregação e reconhecimento de proteínas, já empregados no desenho de fármacos, e do funcionamento de canais de cálcio das células, com aplicações potenciais na regulação dos batimentos cardíacos. Líder isolado - Mas quem não sabe o que é uma hamiltoniana ou um modelo de Ising, termos típicos no jargão dos físicos, pode ficar tranqüilo: cada vez mais os físicos procuram aprender a linguagem de outras áreas e tornar suas conclusões mais claras - ainda que seja um processo lento. Um dos palestrantes do encontro do dia 8, o físico português João Amaro de Matos passou dez anos estudando psicologia social, teoria econômica e sociologia, depois de se formar em física na USP e em administração de empresas pela Fundação
Getúlio Vargas de São Paulo. Foi como professor da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa que chegou a um modelo matemático que sugere como deve agir um presidente de uma empresa, um professor ou, de modo geral, alguém que cuida de muitas pessoas, a partir do apoio ou da rejeição que receber do grupo. De acordo com esse modelo, elaborado em conjunto com o economista Luis Almeida Costa, também de Lisboa, um presidente ou professor do tipo durão que se sinta isolado e sem apoio do grupo deve manter suas propostas na surdina e se comunicar apenas com os responsáveis pelos grupos de trabalho, até que as atitudes contrárias comecem a se diluir em meio à adesão crescente. Se contar com apoio de pelo menos uma parte do grupo, o melhor a fazer é fortalecer as equipes e incentivar a troca de idéias. "Esse modelo vai mostrar. PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 51
para cada situação, como controlar as interações entre as pessoas, de modo que todos sigam a atitude do líder do grupo", comenta Matos, que foi aluno de mestrado e doutorado de Perez e morou no Brasil dos 14 aos 28 - hoje ele tem 43 anos. O presidente da empresa ou o professor diante dos alunos, à medida que consigam mudar a atitude do grupo e ganhem adesões, comportam-se como os cristais que se formam na água prestes a se transformar em gelo e são capazes de atrair rapidamente outras moléculas de água e constituir cristais cada vez maiores, até toda a água congelar, a 0°C. Publicada em 2002 no Computational and Mathematical Organization Theory, essa teoria explicou as estratégias inspiradas apenas na intuição e no empirismo, sem uma equação sequer. Um exemplo analisado pela equipe de Lisboa é a Divisão de Engenharia Aeroespacial da General Electric, tomada anos atrás por um turbulento processo de reformulação: em menos de dois anos, entraram e saíram três presidentes, até que um quarto conseguiu estabelecer os canais de comunicação mais adequados, eliminou os conflitos internos e retomou o caminho dos lucros. Matos aplica o conceito de contágio de atitude para embasar também os mecanismos de sutis variações de preços nas bolsas de valores, regidas, de acordo com uma área relativamente nova, a econofísica, pelo comportamento de imitação: cada investidor compra ou vende ações de acordo com a tendência do momento, para evitar riscos e se manter no grupo a que pertence. "No mercado financeiro", diz ele, "poucos sabem o que realmente estão fazendo". Interações em rede e hierarquias explicam também como, no interior do corpo humano, as enzimas se organizam e os tumores se espalham. Em busca de uma forma de diferenciar células normais das tumorais que facilite o tratamento médico, uma equipe do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP e outra do Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o 52 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
Câncer examinaram o comportamento de 376 genes de 99 amostras de tecidos de pessoas normais e de portadores de câncer do aparelho digestivo, normalmente diagnosticado já em estágio avançado. Num primeiro ensaio, realizado no início do ano passado, um computador do IME funcionou três semanas sem parar em uma análise exaustiva para identificar pequenos grupos de genes que revelassem a distinção entre as células. Com base nos resultados desse teste, os pesquisadores desenvolveram mé-
Um presidente de empresa ou um professor do tipo durão que se sinta isolado deve manter suas propostas na surdina, até que as atitudes contrárias comecem a se diluir
todos alternativos de busca, mais realistas do ponto de vista computacional, sem comprometer a eficácia na identificação de grupos de genes que poderiam funcionar como classificadores, capazes de diferenciar uma célula normal de uma alterada. Biochip - "É muito fácil gerar classificadores", comenta o físico Eduardo Jordão Neves, coordenador da equipe do IME, que também apresentou seus resultados mais recentes no encontro do dia 8 na USP. "Difícil é encontrar aqueles realmente importantes, que possam ser extrapolados e empregados em outras situações." A carreira científica de Jordão Neves iniciou-se com sua tese de mestrado, orientada por Perez, com importantes contribuições ao estudo matemático de modelos sobre materiais magnéticos. Analisando as informações geradas por lâminas de vidro que revelam a
atuação mais ou menos intensa de cada gene - os biochips -, os pesquisadores identificaram 41 duplas e 37 trios de genes que podem atuar juntos, mas de modo inverso: nas células normais, um deles pode ser produzido a mais e o outro ou os dois outros a menos, enquanto nos tumores ocorre o contrário. "A maneira de analisar dados gerados por biochips requer um forte conhecimento de matemática e de estatística que nós, médicos, não temos", diz o médico Luiz Fernando Lima Reis, chefe do grupo do Ludwig e co-autor desse estudo, publicado em fevereiro na revista Câncer Research. Segundo ele, esse trabalho ajudou a criar classificadores moleculares para identificação precoce de outros tipos de tumores de cabeça e pescoço, prevendo quais indivíduos devem receber um tipo ou outro de tratamento. Tapete vermelho - Algo mudou. Os físicos, que antes tinham o hábito de entrar aonde não eram chamados, agora são convidados e valorizados, numa época em que biólogos moleculares, geneticistas, biólogos em geral e médicos se vêem diante de um volume indescritível de informações. Há dez anos se estudava um gene por vez, mas hoje um conjunto de biochips analisa a ação de 10 mil genes a um só tempo. Em março de 1999, ao discursar na celebração do centenário da Sociedade Americana de Física (APS, na sigla em inglês), o médico norte-americano Harold Varmus, então diretor dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos, destacou o valor dos métodos de trabalho e dos equipamentos criados pelos físicos, como a radiografia, a tomografia, a ultra-sonografia, a ressonância magnética e a microscopia eletrônica, que colocaram a pesquisa biomédica em outro patamar. Em seguida, Varmus lembrou que foi um físico matemático, Warren Weaver, quem primeiro usou o termo biologia molecular em 1932, sob o argumento de que, já naquela época, "a distinção entre física e química e mesmo matemática de um lado e biologia de outro seria tão ilusória quanto infeliz". Por fim, talvez para não deixar o ego dos físicos inflar demais, o diretor
A transformação da água em gelo: modelo para entender outros fenômenos da natureza
dos NIH comentou que a luta contra as doenças depende também das energias de especialistas de outras áreas, como engenharia, ciências da computação, psicologia, sociologia e antropologia. Evidentemente, a rapidez e a relevância dos resultados são proporcionais à capacidade de interação entre os especialistas das mais diversas áreas, possibilitada por uma linguagem comum. "Meu grupo se dispôs a entender um pouco mais de matemática, do mesmo modo que a equipe de Jordão Neves estudou biologia com mais atenção", conta Reis, do Ludwig. "Ambos cedemos e hoje não falamos mais 100% grego uns para os outros." No Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP, José Fernando Fontanari avançou mais facilmente em uma de suas linhas de trabalho, sobre os modelos matemáticos que tentam explicar o surgimento e a organização dos primeiros seres vivos, quando se aliou a um biólogo teórico, Eõrs Szathmáry, do Collegium Budapest, na Hungria. Na Faculdade de Medicina da USP Eduardo Massad, que se graduou em medicina e em física, coordena um grupo com outros físicos e médicos para prever as possibilidades de disseminação de doenças como a febre amarela
ou a dengue, por meio de equações que levam em conta variáveis como a taxa de transmissão dos agentes causadores e o número de pessoas que o mosquito transmissor pode picar em um dia. Limites - Os físicos sabem: suas propostas só serão realmente entendidas quando embaladas nos referenciais teóricos conhecidos pelos especialistas de outras áreas. "Não adianta chegar com modelos prontos e publicar os resultados apenas nas revistas de física", comenta Matos. Eles também sabem que devem tomar cuidado ao aplicar os modelos matemáticos à realidade. Formulações mais realistas abdicam do gelo, formado apenas por moléculas de água, para se inspirarem em materiais sem estruturas definidas, como o vidro, constituído por elementos diferentes entre si, cada um interagindo com outro de modo próprio. De qualquer maneira, fica claro que a competência em lidar com estruturas matemáticas que descrevem sistemas complexos pode se espraiar do ferromagnetismo para ambientes tão diversos quanto a bolsa de valores ou um biochip. Mesmo assim, nem sempre os físicos são capazes de expressar em fórmu-
las a complexidade da natureza. Em uma célula, a rede de interações entre as moléculas é absurdamente emaranhada. As ciências humanas também carregam a imprevisibilidade, já que as pessoas podem mudar de comportamento movidas pela própria vontade, diferentemente de um átomo. O físico Christof Koch e o biólogo Gilles Laurent, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, Estados Unidos, em um artigo publicado na Nature em 1999, indicaram uma diferença básica entre o cérebro e grandes sistemas físicos como as galáxias: "O cérebro tem uma função, que é proteger o indivíduo (ou sua pele) em seu ambiente e assegurar a continuidade de seu genoma". Já os aglomerados de estrelas teriam apenas uma brute existence - puramente física. Mas os físicos acreditam que ainda podem ir muito além, como afirmou o norte-americano Robert Laughlin em uma conferência em San Diego em 2000, dois anos depois de ter ganho o Nobel de Física: mais do que serem meros coadjuvantes e simplesmente fazer cálculos, os físicos é que devem dizer o que é realmente importante em cada área da ciência. Schrõedinger, com o What Is Life em mãos, estaria de pleno acordo. • PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 • 53
■ CIÊNCIA
GENÉTICA
Uma mutação, três doenças A mesma alteração num gene pode causar distintas patologias nos neurônios que controlam os movimentos
j stabelecer a ligação de uma I mutação com um proble, ma clínico já não é fácil. ; Mais difícil ainda é provar ' a conexão de uma alteração genética com mais de uma patologia. Num trabalho publicado em setembro na edição eletrônica da revista American Journal ofHuman Genetics, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) mostram que uma mutação no gene VAP-B, presente no cromossomo humano 20, pode causar três tipos distintos de doenças degenerativas nos neurônios motores: atrofia espinhal progressiva tardia, esclerose lateral amiotrófica (ELA) e uma das formas atípicas de esclerose lateral amiotrófica, a ELAS. A disfunção no gene foi encontrada em 34 indivíduos, pertencentes a sete famílias: 16 pessoas tinham atrofia espinhal, 15 apresentavam ELAS e 3 manifestavam a forma clássica de ELA. "Ainda não sabemos por que a mutação provoca diferentes patologias", afirma a geneticista Mayana Zatz, coordenadora das pesquisas que levaram ao artigo científico e do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. "É possível que outros genes tenham uma ação protetora ou agravanVAP-B", diz Agnes Nishimura, aluna de doutorado e principal autora do artigo. As três enfermidades são parecidas e, em certos aspectos, se confundem. A semelhança talvez se deva à descoberta de que a mutação no gene VAP-B pode ser a causa das anomalias. De forma genérica, são classificadas debaixo do grande guarda-chuva das chamadas doen54 ■ OUTUBRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 104
ças dos neurônios motores. São lesões que afetam as células do cérebro e/ou da medula espinhal especializadas em enviar impulsos elétricos para os músculos. Estes contraem ou relaxam a partir de comandos transmitidos pelos neurônios motores superiores (cérebro) e inferiores (medula espinhal). Se esse grupo de células se degenera, como acontece em maior ou menor escala nas três doenças, os músculos se tornam fracos e rígidos. Neurônios e músculos não conversam mais. De acordo com a localização e a velocidade de progressão da lesão, os pacientes perdem a capacidade de movimentar partes do corpo. Com o tempo, têm de recorrer a cadeiras de rodas e a camas especiais, além de requerer a companhia constante de alguém para auxiliá-los. Perto do fim da vida, alguns podem também percfer o domínio da voz e da capacidade de mastigar alimentos. A dificuldade de respirar sem a ajuda de aparelho é, em geral, a causa da morte. Os sentidos do tato, olfato, visão, paladar e audição não costumam ser afetados pelas doenças. A capacidade intelectual também é preservada. O físico inglês Stephen Hawking, que sofre de uma forma atípica de ELA, é a melhor prova disso. Na forma tradicional de ELA, a mais comum das três doenças, as lesões afetam células nervosas do cérebro e da medula espinhal, e as dores e as restrições de movimentos tendem a se generalizar pelo corpo do doente. De dois a cincos anos é o tempo máximo de vida do paciente após o aparecimento dos primeiros sintomas, em geral após os 40 anos de idade. Cerca de 90% dos casos clássicos de ELA não são hereditários. Os outros 10% são familiares, co-
mo os que foram alvo do trabalho dos pesquisadores brasileiros: podem passar dos pais para os filhos. Além da mutação agora encontrada no VAP-B, alterações em outros três genes estão aparentemente ligados à doença. Embora igualmente fatal como a ELA clássica, a forma atípica de esclerose lateral amiotrófica estudada na USP, a ELAS, se desenvolve de maneira bem mais lenta. "Os pacientes convivem com a doença por décadas", diz o biólogo Miguel Mitne-Neto, outro autor do estudo que encontrou a mutação no gene VAP-B. A atrofia espinhal progressiva tardia é resultado exclusivamente de lesões nos neurônios motores responsáveis pela inervação dos músculos. A forma infantil é relativamente comum. A tardia, muito rara. Os sintomas aparecem por volta dos 50 anos e a evolução é vagarosa. Como a ELAS, a atrofia espinhal é hereditária. Ancestral português - Encontrar a alteração genética foi um trabalho de dois anos. Os pesquisadores fizeram exames clínicos e de DNA em dezenas de pessoas das sete famílias com membros afetados pelas doenças, que se encontravam espalhadas pelos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Distrito Federal e São Paulo. Alguns pacientes tro de Estudos do Genoma Humano, conhecido por realizar trabalhos com síndromes degenerativas. "Vi no jornal São Paulo", comenta Lecy Gonçalves de Souza, 62 anos, moradora de Niterói, Rio de Janeiro, que há quase três décadas tem ELAS. Outros indivíduos foram visitados em suas casas. Os cientis-
tas também tentaram reconstituir a árvore genealógica de cada um dos clãs e ainda estabelecer sua eventual relação de parentesco. Apesar de não ter sido possível provar a ligação biológica entre todas as famílias, a história desses indivíduos parece apontar para a existência de um ancestral comum, de origem portuguesa, que viveu em território mineiro há mais de um século. "Nossas informações indicam que, ao longo de oito gerações, essas famílias tiveram 1.300 pessoas sadias e mais de 200 casos de doenças neurodegenerativas", comenta Mayana. O gene VAP-B controla a produção de uma proteína homônima envolvida no transporte de substâncias no interior das células. Se alvo de uma mutação, deve induzir à síntese de formas anormais da proteína. A equipe da USP suspeita que as versões alteradas da VAP-B podem se acumular dentro das células, como se fossem micronódulos, e levar à morte de neurônios motores. A idéia ainda é uma hipótese, mas é amparada por experimentos feitos com tecido humano e de camundongos por Paul Skehel, da Universidade de Edimburgo, Escócia, colaborador da equipe da USP. Além do homem, o gene está presente em outros organismos, como moscas, roedores e leveduras. Essa particularidade deve auxiliar na busca por mais dados sobre os mecanismos biológicos que provocam os distúrbios neuromuscula-
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fazer camundongos transgênicos que funcionem como modelo das doenças", diz Agnes. Pesquisadores da Universidade da Califórnia em Los Angeles, que colaboram com os brasileiros, querem fazer o mesmo com a mosca-da-fruta {Drosophila melanogaster). •
Centro de Estudos do Genoma Humano MODALIDADE
Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) COORDENADORA IVIAYANA ZATZ
- USP
INVESTIMENTO
R$ 1.000.000,00 por ano
'%%.l
CIÊNCIA
GENÔMICA
Desertos férteis Método identifica seqüências funcionais de DNA em meio às imensidões desprovidas de genes MARCELO LEITE
arcelo de Aguiar Nóbrega é filho do Recife e adotou a Califórnia para viver, mas mantém distância das ondas e da praia. Sua paixão são os desertos de genes, bem entendido. Após três anos de garimpo naquele um terço do genoma humano em cujas areias se acreditava não haver nem sombra de genes e que por isso foi durante anos injustamente glosado como DNA lixo, o pesquisador do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, nos Estados Unidos, começa a colher resultados de alto quilate: não só as dunas genômicas estão cheias de oásis, na forma de seqüências de DNA com funções ainda pouco conhecidas, como o brasileiro está na vanguarda dos métodos para rnapeá-los. Os achados já estão rendendo ao pernambucano de 32 anos artigos e reportagens em publicações de alto impacto, como Science cNature. O primeiro veio na forma de um pequeno relato na Science de 17 de outubro do ano passado, sob o título "Varredura dos desertos gêriicos humanos em busca de amplificadores de longa distância". O
próximo manuscrito já foi aceito por uma revista de primeira linha, mas ainda se encontra sem data definida de publicação. Por ora, os novos resultados só foram apresentados em encontros científicos, como o 50° Congresso Brasileiro de Genética, realizado em Florianópolis de 7 a 10 de setembro. Entre um e outro, a pesquisa do laboratório de Edward Rubin, onde Nóbrega trabalha, foi objeto de notícias na própria Science, em junho, e na Nature Reviews Genetics, em dezembro do ano passado. As descobertas do grupo são tão intrigantes quanto o termo enhancers ou amplificadores, em uma tradução aproximada. Enhancers são seqüências de DNA que modulam a expressão de genes na célula, favorecendo a produção das proteínas por eles especificadas. Supunha-se até agora que esse gênero de elemento regulador ficasse sempre na vizinhança dos genes propriamente ditos, ou seja, dos seus módulos ditos codificantes (os éxons, que especificam tipo e ordem dos aminoácidós que vão compor a proteína correspondente), ou ao menos dos não-codificantes (íntrons). O trabalho de genômica comparativa da equipe de Rubin e Nóbrega tem mostrado, porém, que esses moduladores podem estar, paradoxalmente, a centenas de milhares de pares de bases
daquilo que modulam - no meio dos desertos gênicos. "Para usar uma metáfora, imagine que os elementos regulatórios de um gene sejam equivalentes ao interruptor de uma lâmpada", explicou Nóbrega durante o curso que deu no congresso de Florianópolis, que lotou o salão Flores do resorf Costão do Santinho. "Normalmente você pensaria que o interruptor da lâmpada do seu quarto está no quarto, não é? O que a gente mostrou agora é que é possível que esse interruptor esteja na garagem de uma casa no quarteirão vizinho." Nóbrega estudou medicina na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde entrou aos 16 anos, depois de alfabetizar-se aos 4. "Minha mãe pôs os filhos cedo na escola para se livrar da gente", conta. Numa família em que todos são engenheiros, até seu irmão gêmeo, ele foi o único a aventurar-se na medicina e na pesquisa. Começou como estagiário num laboratório da UFPE, pesquisando fisiologia (hipertensão) por três anos, com Ana Maria Cabral, e antes mesmo de se formar foi para o laboratório de Allen Cowley na Universidade de Wisconsin, em Milwaukee, nos Estados Unidos, pois queria "ser exposto a pesquisa ainda mais séria". Para isso interrompeu o es-
tudo formal por seis meses, no meio, mas depois voltou ao Recife para terminar o curso de medicina. Em 1995, aos 23, já era aceito para o doutorado em Wisconsin. Com o Projeto Genoma Humano perto da conclusão, largou a hipertensão e se bandeou para estudar biologia molecular com Howard Jacob, que Wisconsin havia acabado de tirar de Harvard a peso de ouro. Terminado o doutorado, procurou um laboratório que trabalhasse com genes e doenças e foi bater à porta de Eddy Rubin. Apesar de certa incompatibilidade no estilo de vida - o chefe é fanático por surfe e fala com os pupilos de olho num serviço californiano on-line sobre o swell ou intensidade das ondas -, Nóbrega aceitou no ato uma missão que parecia fadada ao fracasso, três anos atrás: iniciar uma linha de genômica comparativa para esquadrinhar os desertos. Quando fala de desertos gênicos, Nóbrega se refere àqueles 25% a 30% do genoma humano que compõem regiões intergênicas com mais de 500 mil pares de bases (ou kb, a medida padrão da genômica). Essas regiões intergênicas haviam sido qualificadas como desertos e incluídas com vários tipos de seqüências repetitivas no DNA lixo, assim chamado porque não participa di-
retamente do que se considerava a função por excelência do DNA, especificar aminoácidos. O valor do DNA lixo ficou ainda mais saliente quando o alinhamento das seqüências dos genomas do homem e do camundongo revelou entre os desertos gênicos centenas de trechos com pelo menos 200 pares de bases idênticos, ou quase. Esse trabalho de busca em massa de seqüências não-codificantes ultraconservadas foi publicado em 28 de maio deste ano na Science por David Haussler, da Universidade da Califórnia em Santa Cruz (UCSC), Estados Unidos, mas uma das primeiras havia sido descoberta pelo time de Rubin. Já se sabe que há cerca de 1.250.000 regiões evolutivamente conservadas com extensão de pelo menos cem pares de bases e 70% de coincidência entre os genomas do homem e do camundongo, 80% delas em regiões não-codificantes (não-éxons) e 58% no espaço intergênico (não-éxon e não-íntron). O fato de essas seqüências de DNA encontrarem-se tão conservadas após mais de 70 milhões de anos de divergên-
cia evolutiva entre primatas e roedores faz supor que elas tenham, sim, alguma função. O problema era descobrir qual. Foi essa a incumbência que Nóbrega aceitou de Rubin, quando se mudou de Wisconsin para a Califórnia. Uma das especialidades do laboratório de Rubin no Lawrence Berkeley é a criação de camundongos geneticamente modificados, e Nóbrega tirou partido disso. Ali se injetam 500 óvulos de roedor por dia com DNA, o que redunda numa média diária de 15 a 20 animais com modificação genética bem-sucedida. O grupo escolheu nove seqüências desérticas para testar, a fim de descobrir se tinham alguma função desconhecida. Todas elas estavam presentes em regiões genômicas áridas que flanqueavam um gene importante no desenvolvimento embrionário, o DACH, que tem 430 kb de extensão e, como vizinhos, desertos de 1.330 kb e 830 kb. O teste propriamente dito consistiu em confeccionar camundongos com uma cópia de cada uma dessas seqüências acoplada a um gene de bactéria que, se ativado, faz a célula toda que o ativou ficar tingida de azul. Examinando os fetos dos roedores transgênicos, Nóbrega observou que sete das nove seqüências escolhidas participavam de algum modo do dePESaUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 57
senvolvimento embrionário, pois vários órgãos e estruturas - como partes do sistema nervoso, olhos e medula espinhal, exatamente tecidos em que o gene DACH costuma estar ativo - ficaram azuis. Segundo o pesquisador pernambucano, as lições desse trabalho - publicado na Science em outubro de 2003 - foram duas: "Uma, que desertos gênicos não contêm genes, mas podem conter seqüências que são críticas para ftinções de genes na vizinhança; e, duas, que elementos reguladores de genes podem estar a distâncias incríveis do mesmo, muito maiores do que antes imaginado". Sete áreas desérticas com função comprovada, porém, são quase nada diante de mais de 1 milhão de seqüências ultraconservadas entre humanos e camundongos. Partindo da pressuposição de que a maioria talvez não tivesse função importante, ou seja, seria mesmo algum tipo de lixo, o grupo saiu em busca de um filtro capaz de discriminar aqueles trechos com maior probabilidade de desempenhar alguma função. O passo seguinte foi dado com a ajuda de um parente vertebrado ainda mais distante do homem, um peixe, mais precisamente um tipo de baiacu venerado na culinária japonesa, Fugu rubripes, do qual nos separamos 450 milhões de
anos atrás. Seu genoma acabava de ser publicado. Em lugar de compartilharmos mais de 1 milhão de seqüências, com o baiacu, partilhamos apenas 40 mil regiões conservadas, 56% em éxons e só 36% em espaços intergênicos. Para Nóbrega, isso significa que essas seqüências provavelmente estão envolvidas no que há de mais básico no plano corporal de todos os vertebrados, não importa se terrestre, alado ou aquático. Se forem alteradas por uma mutação, provavelmente tornam inviável o indivíduo mutado. Isso acarreta a imediata remoção daquela variante do pool genético, permitindo assim a conservação daqueles trechos cruciais de DNA, mesmo fora de genes, por quase meio bilhão de anos. Em suma, estavam de posse de um provável excelente guia para descartar desertos conservados de menor interesse sugeridos em profusão pela simples comparação homem/camundongo. Mas antes era preciso provar que seqüências mantidas por 70 milhões de anos eram de fato menos essenciais que as de 450 milhões de anos.
Foram esses os experimentos apresentados por Nóbrega em seu curso no Congresso Brasileiro de Genética, há um mês, cujos resultados devem ser publicados em breve numa revista de primeira linha. Um total de 15 seqüências desérticas conservadas do camundongo para o homem, mas não desde o baiacu, foram objeto de testes com camundongos, e apenas uma delas revelou função - uma proporção muito menor do que as 7 do total de 9 vizinhas ao gene DACH. "Os outros 14 trechos?" pergunta o brasileiro. "Não temos idéia do que sejam e de que atividade tenham, se é que têm alguma." O grupo do Lawrence Berkeley decidiu ir além, pois não estava excluída a possibilidade de que a ausência de atividade das seqüências escolhidas fosse um artefato do desenho experimental, ou seja, do tipo de função que o método empregado com o gene DACH tinha capacidade de revelar. Para isso Nóbrega recorreu ao que chama de ensaio força-bruta: pura e simplesmente remover algumas dessas seqüências do genoma de camundongos, para ver o que acontecia. Força bruta mesmo: arrancaram logo dois desertos inteiros, um com 1,5 milhão de bases, outro com 800 mil, só para
ver o estrago e assim descobrir possíveis funções. Nada aconteceu. "Arquitetamos as maiores deleções já feitas em camundongos", contou Nóbrega em seu curso. "Surpreendentemente, não só os camundongos com as deleções que fizemos foram viáveis como eles cresceram, se reproduziram e não desenvolveram nenhuma anormalidade aparente. Ou seja, parece que o que arrancamos eqüivale, de fato, a um pedaço do genoma menos importante, ou no mínimo menos crítico, do que outros." Nem mesmo algum tipo de instabilidade cromossômica foi observado, embora num dos casos tenham sido deletados quase 10% do cromossomo do animal. Não foi à toa que o trabalho, mesmo antes de publicado, chamou a atenção da Science. Na reportagem publicada em 11 de junho, o geneticista Jim Hudson, da empresa Open Biosystems, do Alabama, nos Estados Unidos, declarou sua incredulidade: "Nocautear dois megabases e não obter efeito é notável". Mais cético ainda se disse Arend Sidow, da Universidade Stanford: "Não pode ser verdade". Ambos afirmaram à revista norte-americana que provavelmente as regiões deletadas cumprem funções que os testes não foram capazes de detectar.
Nóbrega não descarta tal hipótese, mas afirma que o resultado não é assim tão absurdo, à luz de descobertas recentes sobre a ocorrência em seres humanos normais de deleções espontâneas e acréscimos enormes de DNA, também, da ordem de 100 mil a 2 milhões de bases. "Tudo começa a se encaixar e a fazer sentido", diz. Os trabalhos foram publicados por Jonathan Sebat e colaboradores na Science de 23 de julho, e por John lafrate e colegas na Nature Genetics do mês passado. Aparentemente, essas alterações estão associadas com a variação fenotípica entre indivíduos, ou seja, representam uma fonte antes insuspeitada - mais uma do que os geneticistas chamam de poUmorfismos. "Começa uma nova corrida para ver quem consegue - de forma mais completa, rápida e barata - escanear o maior número possível de genomas à procura dessas variações de grande escala", resume Nóbrega. "Para minha sorte, eu já vinha pensando nisso há algum tempo e, assim, comecei a correr antes dos outros." O pesquisador brasileiro diz que sua próxima meta é
combinar a genômica comparativa com a engenharia genética para desenhar um mapa de variações naturais na arquitetura do genoma, por meio de deleções de grande escala, e do seu impacto na biologia e fisiopatogenia dos organismos. "Todo o genoma agora é alvo para buscar seqüências funcionais." Esse trabalho já está dando frutos surpreendentes para o entendimento da complexidade do genoma. Primeiro, descobre-se que há vários oásis em meio aos desertos gênicos. Depois, que nem tudo que parece oásis é oásis de fato, quer dizer, alguns desertos são tão desertos que podem produzir miragens - quando o pesquisador se limita a comparar cromossomos humanos com os de camundongos. A força bruta que Nóbrega empregou com os roedores, pelo menos, já lhe permitiu extrair deles uma solução parcial para a questão posta por seu chefe na Science, será o genoma uma novela descartável, da qual se podem arrancar cem páginas sem problema, ou será como uma obra de Ernest Hemingway, em que o enredo se desfaz se uma única página se perder? Resposta à brasileira: "Parece mesmo que o genoma é uma novela da Globo, e não um Código da Vincf. • PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 59
■ CIÊNCIA
BOTÂNICA
Plantas que migram Cerrado compartilha mais da metade de suas espécies de árvores com a Mata Atlântica e a Floresta Amazônica
ão pense mais que a sucupira-preta (Bowdichia virgilioides), uma árvore de casca grossa cheia de fendas, flores brancas ou roxas e até 20 metros de altura, é uma espécie típica do Cerrado, por mais que seja abundante nesse tipo de vegetação da região central do Brasil. A sucupira-preta apenas está lá, assim como a maioria das outras espécies de árvores e arbustos do Cerrado. Apenas 41% das árvores encontradas nessa vegetação, marcada por campos de gramíneas e árvores de pequeno e médio portes, com troncos tortuosos recobertos de corque já ocupou cerca de 2 milhões de quilômetros quadrados, ou quase 25% do território nacional, compartilha as demais espécies de árvores com outros dois ecossistemas vizinhos, a Mata Atlântica e a Floresta Amazônica, de acordo com um estudo coordenado por Raimundo Paulo Barros Henriques, da Universidade de Brasília (UnB), realizado em conjunto com especialistas da Embrapa-Cerrados, uma das divisões da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Nesse trabalho, publicado na Revista Brasileira de Botâtiica, Henriques avaliou as espécies de árvores e arbustos de 12 localidades do Cerrado stricto sensii - sua forma mais característica -, situadas em áreas tão distintas quan-
Chapada dos Guimarães: alterações do clima nos últimos 60 mil anos explicam existência de 171 espécies em comum com vegetações vizinhas
to Pedra Caída, no Maranhão; chapada dos Guimarães, em Mato Grosso; Araxá, em Minas Gerais; e Botucatu, em São Paulo. Das 290 espécies de árvores identificadas, apenas 119 eram exclusivas do Cerrado. As demais 171 ocori'em também na Mata Atlântica, t^uc se estende a leste, ou na Floresta Amazônica, ao norte - na realidade, 130 fazem parle tanto da flora do Cerrado c]uanto da vegetação atlântica, 4 estão no (berrado e na Amazônia e 37 aparecem nessas três Formações florestais. or que algumas dessas espécies se encontram em ambientes tão distintos como o Cerrado, quente e seco, ou a Floresta Amazônica, com umidade elevadíssima? Possivelmente foi uma migração muito lenta, decorrente de variações do clima durante milhares de anos. Estudos sobre a dispersão de grãos de pólen e de esporos indicam que nos últimos 60 mil anos o clima na
região do atual Cxn-rado alternou perío-" dos mais secos e quentes com oiUros mais úmidos c frios. Assim é prcnável que o aumento da umidade tenha criado o ambiente propício para a disseminação de espécies como a copaiba (Copíiifcríi /íí/l!^'^■l/{)(•//;), dr\'ore de até 33 metros encontrada também na Mata Atlântica, ou como a canela-parda (Ncctaiulrn cuspidata) e o caiá-mirim {Sporididí lutai), que da mesma forma vi\'em
porção de espécies de árvores e arbustos da Floresta Amazônica diminui de modo progressiw contorme aumenta a distância entre a área estudada e a Amazônia, lá o número de espécies da Mata Atlântica encontradas no Cx-rrado cresce com a distância até atingir um máximo a cerca de 600 quilômetros da fronseguida, diminui. Outra conclusão do estudo é que a variedade de espécies comhadas entre o Cerrado e a
is áreas em que o 'mais elevatio, a cei'ca de 800 a mil metros de altitude. Ao menos três fatores aiudam a entender por que a variedade de espécies encontradas no C'errado e na Mata Atlântica (130) é tão maior que a de espécies que ocorrem no Cerrado e na Amazônia (4). A vegetação amazônica pro\a\elmcnte é mais sensível ao clima mais seco e friii do C^errado que as plantas das florestas prciximas ao Atlântici). O solo pobre em nutrientes também é desfavorável ao crescimento da vegetação da Floresta Amazônica. Além disso, as ár\ores e os arbustos da Mata Atlântica são mais resistentes que iis tia C]errado. Fsse estudo pode auxiliar na pi'eser\ação das espécies mais ameaçadas. "Parte da biodi\-ersidade da Mata da, ainda existe Henriques. "Issc
do , comenta
desse ecossistei PESQUISA FAPESP IC
rUBR0DE2004 ■ 61
CIÊNCIA MEDICINA
o
^^^'éo sal Nitrato de prata funciona contra o acúmulo de líquido entre as membranas pulmonares RICARDO ZORZETTO
Todo dia nosso organismo produz uma quantidade equivalente a uma colher de sopa de um líquido incolor, liberado entre as pleuras, duas finíssimas membranas que revestem o tórax internamente. Como o óleo que lubrifica a dobradiça de uma porta, esse fluido facilita o deslizar de uma pleura sobre a outra - uma envolve os pulmões e a outra, a parede interna do peito - durante a respiração. Mas em alguns casos esse líquido se acumula entre as pleuras e torna quase impossível o movimento dos pulmões. É o que se observa, por exemplo, com portadores de câncer de pulmão ou de mama em estágio avançado. Por motivos não muito claros, nesses casos o volume de líquido entre as pleuras pode aumentar até 150 vezes e chegar a 3 litros, tomando boa parte do espaço antes ocupado pelos pulmões. Conseqüência: a capacidade respiratória diminui, a oxigenação do sangue cai e surge um desconforto intenso. A sensação, dizem, é de estar se afogando em pleno ar. Chamado pelos médicos de derrame pleural, esse acúmulo de líquido entre as pleuras atinge 1 milhão de pessoas nos Estados Unidos e possivelmente um número equivalente por aqui. Quando o derrame pleural ocorre repetidas vezes, em geral os médicos optam por eliminar o ínfimo espaço entre as pleuras, que normalmente não ultrapassa 10 centésimos de milímetro. O procedimento é simples. Depois de drenar o fluido, os médicos injetam entre essas membranas um composto capaz de causar uma in62 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
flamação aguda. Essa inflamação acelera a produção de um tecido fibroso rico em colágeno, que faz uma pleura grudar à outra. Como uma pleura adere a outra, elimina-se a possibilidade de novos acúmulos de líquido, poupandose a pessoa tratada de mais desconforto. Curiosamente, a extinção desse espaço não prejudica a respiração. Após quase uma década de busca, a equipe do pneumologista Francisco Vargas, do Instituto do Coração (Incor) da Universidade de São Paulo (USP), acredita poder finalmente oferecer uma alternativa que facüita a realização desse procedimento, conhecido como pleurodese, em ambulatórios ou hospitais sem recursos sofisticados. Experimentos com coelhos, ratos e seres humanos estão permitindo ao grupo liderado por Vargas reabilitar o uso na pleurodese do nitrato de prata, sal corrosivo que fiinciona como antisséptico. Esse composto era utüizado para provocar a inflamação que elimina o espaço entre as pleuras - foi adotado na primeira pleurodese de que se tem notícia, em 1901. Mas há 20 anos se verificou que o nitrato - até então aplicado em concentrações que variavam de 1% a 10% - provocava muita dor e exigia internação prolongada. Nessa época, os médicos passaram a aplicar o antibiótico tetraciclina, considerado como primeira opção para realizar a pleurodese até poucos anos atrás, quando foi retirado do mercado. Assim, uma das poucas alternativas para a realização da pleurodese era o uso de uma mistura de água e talco - o
mesmo que era usado para evitar assaduras de bebês. Adotado desde 1931, o talco atualmente é aplicado para fazer a pleurodese em 90% dos casos de reincidência de derrame pleural. Mas há problemas: até dez em cada cem pessoas que recebem injeção de talco para produzir a pleurodese podem apresentar complicações, entre as quais a síndrome do desconforto respiratório agudo, que causa o fechamento dos alvéolos pulmonares e mata em metade dos casos. O talco pode ainda se acumular no fígado e no cérebro, gerando inflamações crônicas. Por essa razão, ainda hoje se procura um composto tão eficaz quanto o talco, mas com menos efeitos indesejáveis. Persistência - Vargas, um dos médicos à procura de alternativas ao uso do talco, não aceitou pacificamente o descarte do nitrato de prata, que é barato, eficaz e de fácil manipulação. "Pensei que talvez o nitrato não fosse impróprio para a realização da pleurodese, mas que a concentração utilizada não fosse a mais adequada", diz ele. Sua persistência lhe permitiu chegar aos resultados atuais, reunidos no livro Derrame pleural, editado por Vargas, Lisete Teixeira e Evaldo Marchi. Os experimentos demonstraram a eficácia e a segurança da solução de nitrato de prata em concentrações de apenas 0,5% ou 20 vezes menor que as utilizadas anteriormente. Hoje a equipe do Incor aplica 20 müilitros de uma solução de nitrato de prata a 0,5% para realizar a pleurodese em pacientes com
derrame pleural maligno, decorrente dos casos avançados de câncer. As pessoas tratadas desse modo raramente sentem dor e, quando a sentem, não é intensa, segundo os pesquisadores. A maioria pode apresentar febre moderada, de cerca de 38°C, até três dias depois do tratamento. Os resultados de um estudo desse grupo publicado na revista Lung no final de 2003 apontavam perspectivas animadoras: o nitrato de prata pode ser eficiente em concentrações ainda menores, com menos efeitos colaterais. Em um teste com 120 coelhos, a equipe do Incor demonstrou que esse sal é eficaz mesmo à concentração de 0,3%. Se deu certo em coelhos, é possível que funcione em seres humanos, com efeitos colaterais quase nulos, que poderiam evitar a internação durante o tratamento, como já está acontecendo. "Mais de 50 pacientes tratados no Incor completaram a pleurodese em ambulaO PROJETO Avaliação temporal da matriz extracelular na pleurodese experimental MODALIDADE
Linha Regular de Auxílio à Pesquisa COORDENADOR FRANCISCO VARGAS
- Incor (USP)
INVESTIMENTO
R$ 136.791,49 (FAPESP)
tório", diz Lisete. A expectativa dos médicos é de que nesses casos as pessoas retornem ao hospital apenas para acompanhar o tratamento. Doses fracionadas - Os pesquisadores do Incor, que até agora não encontraram nenhuma desvantagem nessa nova abordagem, começam a compreender em detalhes como o nitrato de prata atua no organismo depois de injetado entre as pleuras. Em um trabalho publicado em junho na revista Chest, a equipe de Vargas constatou que tanto o talco como o nitrato de prata provocam uma inflamação aguda nas primeiras 48 horas após a pleurodese, que não se restringe ao espaço entre as pleuras. Como a área revestida por essas membranas é grande - cerca de 2 metros quadrados -, as partículas de talco e as moléculas do nitrato passam para a corrente sangüínea após as seis primeiras horas do tratamento e se distribuem pelo corpo - uma provável explicação para a febre. "É possível que o nitrato seja eliminado mais rapidamente do organismo", diz Marchi. Se for verdade, a inflamação causada pelo nitrato deve desaparecer mais rapidamente que a provocada pelo talco. Os dados preliminares de um estudo em andamento sugerem que, se a dose de nitrato for fracionada - em três aplicações na concentração de 0,1%, em vez de uma única aplicação a 0,3% -, a inflamação se restringe ao espaço pleural e não se dissemina pelo organismo, como acontece com o talco mesmo em dosagens mais baixas. •
Biblioteca de Revistas Científicas disponível na Internet www.scielo.org
Saúde Pública
Informação desorientada Estudo de autoria de Márcia de Freitas Lenzi e Lea Camillo Coura, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, "Prevenção da dengue: a informação em foco", analisou o conteúdo informativo do material produzido pelas campanhas de esclarecimento da doença, focando a atenção nos folhetos distribuídos pelos órgãos oficiais em 2002 nas ruas da capital fluminense. O Rio, naquele ano, viveu uma grande epidemia de dengue, com um número expressivo de casos de febre hemorrágica. A análise da Fiocruz seguiu o princípio de que o material informativo em uma campanha de saúde pública tem grande relevância no esclarecimento da população sobre a doença e sua prevenção. "Entretanto, a relação entre conhecer e agir não é direta. O indivíduo não é orientado exclusivamente pela lógica da escolha racional resultante de informações sobre comportamentos adequados que promoverão sua saúde", acreditam as pesquisadoras. "Seu agir é fruto de suas concepções, crenças e valores." Segundo elas, a circulação de informação de má qualidade pode levar à inação ou a ações ineficazes. "Em 2002, por exemplo, a campanha conseguiu a atenção e adesão da população, amedrontada com a velocidade do surgimento de casos graves e óbitos", ressaltam. "Mas, apesar do grande investimento, a população ainda mostrava ter muitas dúvidas sobre a doença e se sentia despreparada para enfrentar a epidemia." O estudo constatou que a desinformação foi percebida em todas as classes sociais, tornando ainda mais evidente a necessidade de reflexão sobre a qualidade do trabalho de esclarecimento realizado. "Apesar da grande ênfase dada ao assunto pela mídia, a avalanche de informações sobre diferentes tipos de cuidados com criadouros do mosquito e a falta de precisão sobre os condicionantes e sintomas da dengue clássica e hemorrágica dificultaram a orientação da população", analisam as pesquisadoras. REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE MEDICINA TROPICAL - VOL. 37 - N° 4 - UBERABA - JUL./AGO. 2004
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S003786822004000400011 &lng=pt&nrni=iso&tlng=pt
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■ Linguagem
Desenvolvimento infantil o estudo "Diagnóstico de crianças com alterações específicas de linguagem por meio de escala de desenvolvimento", realizado na Universidade do Sagrado Coração, em Bauru, interior de São Paulo, verificou o desempenho de crianças com alterações específicas do desenvolvimento da linguagem (AEDL), em comparação com o de crianças normais. Um dos objetivos principais do trabalho foi averiguar se os problemas de linguagem podem interferir na avaliação do desenvolvimento infantil. Foram selecionadas 25 crianças, de 3 a 6 anos, com o diagnóstico de AEDL (grupo estudado GE) e 50 crianças normais da mesma faixa etária (grupo controle - GC). Segundo o levantamento, as crianças do GC apresentaram desempenho satisfatório e melhor que as crianças do GE, em todos os campos da escala. "O problema de AEDL deve ser identificado precocemente, pois tais alterações podem interferir nos aspectos sociais e escolares da criança", alertam os pesquisadores. A pesquisa fez uso de tabelas que permitiram obter um "quociente de desenvolvimento" (QD) de cada indivíduo. No que se refere às crianças com AEDL, a porcentagem mediana do QD geral foi 79%. Com esses dados em mãos, um dos desafios clínicos agora, concluiu o estudo, é criar procedimentos que possam diagnosticar o mais precocemente possível alterações do desenvolvimento, com o intuito de estabelecer intervenções mais bem direcionadas. ARQUIVOS DE NEURO-PSIQUIATRIA SãO PAULO
- VOL. 62 - N° 3A -
- SET. 2004
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004282X2004000400015&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
■ Computação
Desempenho agrícola Desenvolver um sistema computacional para aquisição automática de variáveis que serão utilizadas na avaliação de diversos componentes instalados em máquinas agrícolas. Esse foi o objetivo do trabalho "Programa computacional para aquisição de dados para avaliação de máquinas agrícolas", de Ricardo Garcia, Daniel de Queiroz, Olímpio Miyagaki e Francisco Pinto, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais. "A aquisição de dados para a avaliação é um
dos principais problemas enfrentados por engenheiros e pesquisadores responsáveis pela realização de testes de máquinas agrícolas, devido à alta complexidade desses equipamentos", justificam os autores. O sistema de computador, que foi implementado a partir do programa LabVIEW versão 6i da National Instruments, desenvolveu rotinas de coleta de dados virtuais para os seguintes tipos de sensores: célula de carga, torquímetro, sensor de rotação tipo sensor indutivo e sensor de velocidade tipo radar. O LabVIEW é um ambiente baseado em programação gráfica que utiliza terminologia, ícones e idéias familiares a técnicos, cientistas e engenheiros. "O sistema se mostrou eficiente conseguindo eliminar os erros tradicionais gerados pela coleta de dados convencional, como anotações incorretas em planilhas e perda de dados", segundo os autores no artigo. REVISTA BRASILEIRA DE ENGENHARIA AGRíCOLA E AMBIENTAL - voL. 7 - N° 2 - CAMPINA GRANDE - MAIO/
AGO. 2003 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141543662003000200032&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
■ Eleições
A "emocionalização" da política o artigo "Campanhas eleitorais em sociedades midiáticas: articulando e revisando conceitos" busca, por meio de um processo de revisão e articulação de conceitos, explicitar como os novos modos do fazer política estão relacionados com alterações profundas que extrapolam o campo da política, afetando a totalidade da sociedade. Segundo o estudo, o uso intensivo de pesquisas e do marketing-, a centralidade dos meios de massa, a profissionalização dos participantes, a personalização e o uso de apelo publicitário sedutor-emotivo emergem como as principais características das campanhas eleitorais modernas. "A 'emocionalização' da comunicação política televisiva, que se dá por meio do uso de técnicas advindas da propaganda comercial, constitui sério risco ao sistema democrático, em que os atores deveriam se pautar por critérios eminentemente racionais na escolha, sustentação e implantação de governos, governantes e políticas públicas", alerta o autor do estudo, Pedro José Floriano Ribeiro, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ribeiro demonstra que as campanhas eleitorais modernizadas representam apenas a cristalização, no campo político, de uma transformação que, ao se alastrar por inúmeras esferas do cotidiano, já transformou as sociedades contemporâneas mais complexas em "sociedades midiáticas". "Mais do
que uma invenção de políticos oportunistas, marketeiros ou especialistas em pesquisas, as novas feições das campanhas eleitorais estão inseridas nesta estrutura midiática que constrange, limita e incentiva", acredita. Ribeiro conclui, na contramão daqueles que enxergam as campanhas modernizadas como obras de políticos "apolíticos" e publicitários oportunistas, que os novos modos do agir político representam apenas a ponta de um iceberg que possui em sua base transformações de ordem social, política e tecnológica muito mais profundas. REVISTA DE SOCIOLOGIA POLíTICA
- N° 22 - CURITIBA -
JUN. 2004 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010444782004000100004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
■ Ciberespaço
Revolução antropológica A interatividade propiciada pelas tecnologias digitais no ciberespaço, resultante das descobertas científicas da ciência da computação, parece, sem nenhuma sombra de dúvida, desencadear uma revolução tecnológica sem precedentes na história das relações humanas. Com essa afirmação inicial, o artigo "Ciberespaço e rituais: tecnologia, antropologia e criatividade", de Diana Maria Domingues, professora da Universidade de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, propõe que as novas tecnologias interativas, inversamente do que se poderia pensar, nos fazem retornar a formas de comunicação próximas a rituais tribais e religiosos. "Mais do que tecnológica, a revolução trazida pelo computador deve ser tomada como uma revolução antropológica, e precisamos pensar em que medida seus atributos técnicos desencadeiam novas relações entre os humanos e o ambiente", acredita a pesquisadora. O estudo analisa diferentes tipos e níveis de interatividade propostos em dois recentes projetos artísticos relacionados à herança cultural de rituais. Segundo Diana, na medida em que a interação aumenta se atingem processos de conhecimento de mundo expandidos pelas novas tecnologias. O artigo mostra que as informações nos são devolvidas em níveis diferentes de interatividade. "É cada vez mais evidente que a condição humana, a partir das tecnologias que nos conectam a computadores e redes, está modificando o contexto social por maneiras de viver que utilizam o ciberespaço, a arquitetura de computadores, suas interfaces e redes", garante. As tecnologias, segundo Diana, se instalam no cotidiano da era digital, em lugar de afastarem os seres humanos dos valores do passado. HORIZONTES ANTROPOLóGICOS - VOL. TO ALEGRE - IAN./IUN. 2004
10 - N° 21 - POR-
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010471832004000100008&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 65
ITECNOLOGIA
LINHA
DE
PRODUçãO
MUNDO
Joelho eletrônico evita tropeços Um joelho artificial com controle hidráulico e pneumático acionado por um microprocessador, capaz de responder à força e à velocidade impostas pelo usuário. Essa é a mais nova prótese lançada no mercado britânico. Produzido pela empresa inglesa Blatchford, o joelho de compostos de fibra de carbono tem grande resistência, é leve e se adapta facilmente a terrenos irregulares. É possível programá-lo por meio de um controle remoto, tarefa executada pelo próprio usuário onde ele estiver, facilitando atividades como subir degraus, rampas, acelerar ou diminuir o passo. Um detalhe torna a prótese especialmente útil: uma pro-
■ Algas reduzem gases poluentes As algas podem ser o futuro da energia limpa. Ao menos é assim que pensa o ex-estudante de pós-doutorado em engenharia química Isaac Berzin. Fundador da GreenFuel Technologies, empresa baseada na cidade de Cambridge, nos Estados Unidos, ele aposta com vigor numa idéia: a de que o apetite das algas por toxinas e sua incrível eficiência são aliados poderosos para a transformação de emissões tóxicas em energia renovável. Pesquisas de laboratório em sua companhia já provaram que algas unicelulares consomem dióxido de carbono
gramação destinada a impedir tropeços. Assim, novos usuários da prótese ou portadores de extrema dificuldade para se movimentar ganham aos poucos a confiança necessária para usar o aparelho. Essa facilidade favorece a função dos músculos que sustentam a perna mecânica, melhorando também as articulações. Os testes mostram que, com o passar do tempo, o usuário se adapta bem à prótese e passa a caminhar de forma natural. O joelho tem sensores e controles eletrônicos que reagem aos movimentos do corpo quando o dono pisa nos variados tipos de superfície, reproduzindo a cadência normal da passada. {Lonãon Press Service) •
Controle remoto facilita subir degraus e rampas
(CO2) ou oxido de nitrogênio (NOx) (gases poluentes presentes na atmosfera) e transformam-se numa biomassa reutilizável. Assim, sempre que ocorre a fotossíntese, as algas consomem o CO2 e aimientam de volume enquanto absorvem os poluentes. Ao final do processo, o próprio ca-
66 • OUTUBRO DE 2004 ■ PESOUISA FAPESP 104
lor da usina ajuda a secar a sopa de algas e transformá-la num tipo de carvão sólido, que pode ser reciclado e usado como combustível no lugar do gás natural, petróleo ou do próprio carvão. Segundo Berzin, seu sistema reduz da atmosfera até 90% do NOx e 45% do CO2, um dos
maiores causadores do efeito estufa. Ele instalou seus biorreatores no telhado de um dos prédios do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), que possui um programa de co-geração de energia elétrica para o campus. {MIT News) •
■ Hora marcada com relógio atômico Os relógios mais precisos do mundo são os atômicos, que funcionam com base na pulsação natural do césio (também existem aparelhos que funcionam com cálcio e rubídio) que, dessa forma, é desprovido de qualquer radiação nociva. Mas eles ainda são
BRASIL Novo teste para câncer de próstata
muito grandes, do tamanho de um videocassete, e não podem ser usados no pulso ou em equipamentos portáteis, além de consumirem muita energia. A corrida tecnológica em busca dos pequenos relógios atômicos levou os pesquisadores do Instituto Nacional de Normas e Tecnologia (Nist, na sigla em inglês) a desenvolver um minúsculo mecanismo para esses aparelhos, do tamanho de um chip de computador ou de um grão de arroz (1,5 milímetro de largura por 4 milímetros de altura). Com esse equipamento, o relógio atômico portátil só vai atrasar ou ganhar um segundo apenas a cada 300 anos. O diminuto aparelho é comparável em dimensões e estabilidade aos osciladores de cristal de quartzo, usados em pequenos aparelhos eletrônicos ou marcadores de pulso. As aphcações do novo relógio vão das telecomunicações à navegação, em aparelhos de comunicação sem fio, em receptores de sinais de localização via satélite e em veículos comerciais e militares. O equipamento consome pouca energia, que pode ser suprida por uma pequena pilha. •
■ Nanotubos nas telas de televisão Nanotubos de carbono, transparentes e condutores de eletricidade, são a novidade que pode ameaçar o reinado dos atuais materiais usados em displays (telas) de vídeo, equipamentos de comunicação óptica e outros aparelhos eletrônicos. Os novos materiais são formados de filmes ultrafinos e foram desenvolvidos pela Universidade da Flórida, nos Estados Unidos. Eles são superiores em transparência na área infravermelha do espectro eletromagnético. Essa característica é uma qualidade que, de acordo com os pesquisadores, pode torná-los essenciais para aplicações militares, como despistar equipamentos de vigilância noturna de um inimigo. O protótipo sugere que o material será útil também em placas protetoras de veículos espaciais, porque é capaz de refletir luz infravermelha ou calor quando a nave recebe a energia do Sol. Os novos filmes poderão compor telas flexíveis para vários tipos de uso porque não são quebradiças como as atuais de computador e de TV. •
Tela com resultados da análise genética: exame auxiliar
Uma nova técnica de análise molecular oferece aos urologistas uma precisão de até 80% de acerto no diagnóstico do câncer de próstata pelo sangue e 97% de acurácia (proximidade entre o valor obtido de forma experimental e o valor verdadeiro), considerando a avaliação do sangue e da biópsia. Desenvolvida pelo chefe do Laboratório de Genética Molecular da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Luiz Goulart, em parceria com médicos e pós-doutorandos, a análise utiliza quatro genes encontrados no DNA humano que se alteram quando há câncer. "Um desses genes só se manifesta em processos tumorais. Com relação aos outros três, se eles estão extremamente alterados, há garantia de que existe um processo tumoral", explica Goulart. O exame pode ser feito com o sangue ou com o material extraído na biópsia. O toque retal e o exame sorológico - que avalia
os níveis de antígeno prostático específico (PSA) - são os procedimentos comuns no diagnóstico do câncer de próstata. Eles podem indicar alterações no órgão, mas nem sempre esclarecem se o problema é um câncer (severo ou letárgico), uma infecção (prostatite) ou uma inflamação. "Quando o paciente apresenta o PSA em níveis alterados, é necessário fazer uma biópsia", diz o biólogo. Com a análise molecular, a biópsia será indicada somente para casos de câncer. A nova técnica não substitui o toque retal, o exame sorológico e nem a biópsia. "Trata-se de um exame que vai auxiliar no diagnóstico." A patente da técnica foi depositada em 2003 e pertence à UFU, ao laboratório BioGenetics e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), que financiaram a pesquisa. O teste já está sendo utilizado por cerca de 20 laboratórios de anáHses clínicas. •
PESaUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 67
Célula a combustível mais potente
■ Diagnóstico mais simples e preciso Para detectar infecções parasitárias, os médicos recomendam três amostras de fezes, coletadas em dias alternados e processadas separadamente pelos laboratórios, procedimento nem sempre seguido pelos pacientes. Para simplificar a coleta e o diagnóstico, a empresa Immunoassay lançou em fevereiro deste ano o kit TF-Test, que processa as três amostras em uma única etapa. O produto é composto por três tubos coletores que, quando entregues ao laboratório, são encaixados em um recipiente destinado a filtrar e centrifugar o material para análise. Em apenas sete meses já foram vendidas cerca de 200 mil unidades do produto. A Immunoassay desenvolveu o kit de diagnóstico em um projeto financiado pela FAPESP dentro do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) (veja reportagem na edição n° 81). •
Já está funcionando de forma definitiva a célula a combustível de maior potência totalmente desenvolvida no Brasil. O equipamento foi projetado e produzido pela empresa Electrocell, que está incubada no Centro Incubador de Empresas Tecnológicas (Cietec) instalado no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), na Cidade Universitária, em São Paulo. Com capacidade de produzir 30 quilowatts (kW) de energia elétrica, ela pode suprir um prédio comercial de três andares. O equipamento é dotado de placas que transformam quimicamente o hidrogênio, acondicionado em cilindros, em eletricidade, de forma silenciosa, deixando como resíduo apenas água limpa e quente. A célula foi financiada pela Eletropaulo, empresa distribuidora de energia elétrica em São Paulo, ao custo de R$ 1,7 milhão [veja reportagem completa em Pesquisa FAPESP n" 92). Inicialmente o equipamento vai fornecer energia para alguns andares do prédio do Ipen. A inauguração da nova célula (a empresa já havia produzido protótipos menores com finandamen-
■ Centro de software livre em Brasília Desenvolver soluções e difundir padrões abertos de tecnologia com base, inicialmente, nos softwares Linux e Open Office são os objetivos do recém-criado Centro de Difusão de Tecnologia e Conheci-
68 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
No Cietec, célula da Electrocell: energia com hidrogênio
mSm íi to do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas, PIPE, da FAPESP) contou com a presença do ministro da Ciência e Tecnologia (MCT), Eduardo Campos. Na ocasião (em 29 de agosto), o ministro assinou uma portaria que restabelece o Programa Brasileiro de Sistemas Célula a Combustível (Procac), criado em novembro de 2002, mas que ainda
mento (CDTC), que terá sede em Brasília. A iniciativa é uma parceria do governo federal, por meio do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI), órgão ligado à Casa Civil da Presidência da República, e da empresa IBM. O centro vai incentivar a utilização de softwares livres por
~ 'IP não havia decolado. O programa terá R$ 4,5 milhões para área de recursos humanos e R$ 3,5 milhões para projetos de desenvolvimento tecnológico, equipamentos e manutenção. O Procac tem a coordenação do secretário de Política de Informática e Tecnologia, Francelino Orando, do MCT, e já possui uma rede de 17 instituições de pesquisa. •
meio da capacitação de técnicos, profissionais de suporte e usuários dos sistemas da administração pública. A primeira tarefa será capacitar cerca de 700 funcionários ligados aos Núcleos de Tecnologia de Educação, programa que dá suporte a escolas públicas e secretarias estaduais de educação. •
■ Em breve, óleo vegetal nos motores No início de 2005, veículos com motores a diesel deverão trafegar com 2% de biodiesel no tanque. A medida, que deverá ser anunciada em novembro, vai evitar que o país gaste cerca de US$ 150 milhões por ano com a importação de fração equivalente de diesel de petróleo. Com a implantação do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (Probiodiesel), será incentivada a adoção de tecnologias desenvolvidas no país para a produção de combustível a partir de óleo vegetal obtido de soja, mamona, babaçu, dendê, pequi, milho, amendoim, entre outros. Assim, a produção e a venda do biodiesel deverão ser descentralizadas. Para incrementar ainda mais esse desenvolvimento foi firmado acordo de cooperação técnico-científica, em agosto, entre secretários de ciência e tecnologia e presidentes de fundações de amparo à pesquisa de 21 estados e os ministérios da Ciência e Tecnologia, Minas e Energia e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). •
Patentes novações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: nuplitec@fapesp.br
■ Ração dosada em intervalos regulares
Alimentação programada para rãs criadas em cativeiro
■ Comedouro para rãs durante engorda Equipamento desenvolvido no Departamento de Produção e Exploração Animal da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu tem como objetivo otimizar a alimentação das rãs produzidas em cativeiro durante o ciclo chamado de recria (processo de engorda dos animais). O comedouro consiste basicamente de uma peça única, confeccionada em material resistente e impermeável (fibra de vidro ou plástico). Pode ser utilizado tanto em baias inundadas (piso totalmente coberto pela água) como em instalações semi-secas, que possuem uma área para trânsito e alimentação e outra alagada em forma de piscinas. De base suspensa por 4 pés de altura regulável, serve também como
abrigo para os animais, o que ajuda a reduzir o estresse provocado pelo manejo diário. Rampas laterais possibilitam o acesso dos imagos recém-metamorfoseados (fase em que deixaram de ser girinos) aos alimentos. Nessa fase, que ocorre aos 3 meses, os animais precisam de alimentos que apresentem algum tipo de movimento. O artifício usado para treinar as rãs a ingerir a ração granulada consiste em colocá-la dentro do comedouro com larvas de moscas. As características da construção ajudam a manter a qualidade da ração e evitam a deposição de resíduos, o que pode comprometer a saúde dos animais. Título: Comedoum/Abrígo para rãs em recria Inventor: Cláudio Ângelo Agostinho e Samuel Lopes Lima Titularidade: Unesp/FAPESP
AMmentador automático de, ração para rãs, criado n Unesp, consiste de um re servatório acoplado a um mecanismo eletromecânico para dosar o alimento, liberado em intervalos preestabelecidos e distribuído para o interior das baias inundadas com água onde ficam os animais. Fabricado em material impermeável (metal, fibra de vidro ou plástico), o reservatório possui uma saída em forma de funil. A liberação dos grânulos de ração é feita por um motor de baixa rotação, ajustado na base do reservatório, acionado por um temporizador. O tamanho do reservatório dependerá da capacidade de alojamento de cada baia. O equipamento, que pode ser utilizado também em tanques de criação de peixes, permite dar a dosagem correta de ração diária para os animais, em intervalos predeterminados. Dessa forma, não há desperdício e reduzse a mão-de-obra, já que o tratador necessita apenas abastecer o reservatório para ração e programar as quantidades e os intervalos necessários. Título: Dispensador automático de ração para rãs Inventor: Cláudio Ângelo Agostinho, Samuel Lopes Lima, José Vicente Fortes e Manuel Álvaro Guimarães Titularidade: Unesp/FAPESP,
Biodiesel de soja PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 69
TECNOLOGIA
NOVOS MATERIAIS
llDrâpara
toda obra
Folhas secas de curauá têm amplo USO/ de peças para carros até roupas e medicamentos DiNORAH ERENO
A fibra seca do curauá, uma planta amazônica da Í^L mesma família do abacaxi, lembra o sisal na apa^^^ rência. Mas a semelhança pára por aí. Muito ã ^ macia ao tato, tem como principal caracterís^L ^^^ tica uma grande resistência mecânica que lhe dá, mesmo com uma espessura reduzida, capacidade de suportar tensões elevadas. Essa propriedade faz dela uma substituta natural da fibra de vidro. Quando misturada a outros materiais que têm como base o polipropileno, como sobras de cobertores e carpetes descartados pela indústria têxtil, transforma-se em um compósito já utilizado pela indústria automobilística. "Alguns carros que estão nas ruas, como o Fox e o Polo, da Volkswagen, já usam o novo material no teto, na parte interna das portas e na tampa do compartimento de bagagens", diz o professor Alcides Lopes Leão, da Faculdade de Ciências Agronômicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu, que estuda as aplicações da planta há oito anos. O interesse pelo curauá (Ananas erectifolius) originou-se da observação do uso desse material pelos índios na fabricação de cordas, redes de dormir e linhas de pesca, produtos que atestam as qualidades de resistência e de leveza. Os novos compósitos resultantes da fibra vegetal resumem-se, por enquanto, a poucos itens, porque a matéria-prima disponível ainda não dá conta da demanda. "Só para atender à Volkswagen seriam necessárias 100 toneladas por dia de fibra. Hoje a produção é de 10 toneladas por mês", calcula Lopes. Para levar as fibras do curauá até o mercado, a Unesp formalizou uma parceria com a empresa Pematec-Triangel, de São Bernardo do Campo, que fabrica as peças estruturais em forma de compósito. A parceria teve início em 2000, quando a empresa foi procurada pela Volkswagen para desenvolver peças com novas fibras. O interesse das montadoras é cada vez mais substituir algumas peças para que deixem de 70 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
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ser um problema ambiental no final da vida útil de um carro, quando ele é desmontado, além de diminuir o peso e tornar mais leve o veículo. Inicialmente a Pematec começou a pesquisar a juta, que era bastante utilizada na Europa para aplicações desse tipo. Mas, em uma visita à Alemanha, GUson Romanato, diretor da empresa, recebeu indicações dos próprios alemães de que existia no Brasil uma fibra vegetal melhor do que a juta. De volta, o empresário procurou referências sobre fibras e chegou a Lopes Leão, que já possuía alguns trabalhos publicados sobre o assunto. Em um deles, o professor testou várias fibras, nativas e importadas, para comparação das propriedades mecânicas de cada uma. O curauá mostrou ser imbatível no quesito resistência quando comparado com bucha, banana, bagaço de cana-de-açúcar, hemp (maconha), rami, sisal, juta, malva e madeira. O outro era um projeto de pesquisa financiado pela FAPESP, dentro do Programa Parceria para Inovação Tecnológica (PITE), coordenado por Lopes Leão, que tinha como tema a produção de compósitos à base de fibras vegetais, como o curauá, para utilização na indústria automobilística. Na época, a empresa parceira nesse projeto, a Toro, de Diadema, depois de enfrentar sérios problemas financeiros, abandonou seus planos de investir no desenvolvimento dos compósitos. O convênio entre a Unesp e a Toro foi encerrado e a Pematec entrou na empreitada para produzir peças de acordo com a proposta feita pela montadora. Inicialmente, o projeto desenvolvido pela universidade para a empresa indicava o Vale do Ribeira como um dos possíveis locais para o cultivo da planta, mas ainda faltavam estudos que avaliassem sua adaptação à região. A Pematec comprou então uma fazenda em Santarém, no Pará, e começou a incentivar os agricultores para aumentar a plantação. "Quando chegamos lá existiam 150 a 200 famílias envolvidas com o plantio, mas acreditamos que até o final de 2005 serão 400 famílias", diz Romanato. A fazenda é considerada como um seguro de fornecimento. "Se faltar fibras ou em época de chuvas que dificultem a secagem, utilizamos as fibras da nossa plantação." Desde julho 72 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
deste ano começou a funcionar, ainda experimentalmente, uma fábrica de processamento da fibra em Santarém. Por enquanto são 50 funcionários, gerenciados por Gilmar Lazarini, ex-aluno da Unesp. Lá, as fibras vegetais, de cerca de 1,20 metro de comprimento, são picotadas em pedaços de 5 a 7 centímetros e misturadas na proporção de 50% com fibras têxteis de polipropileno. Peças injetadas - Depois da formação do compósito são feitas as mantas, encaminhadas para a sede da empresa, em São Bernardo, onde são fabricadas as peças de plástico por um processo chamado de termoformagem. Colocada em um molde, a manta é aquecida para ganhar a forma final e resfriada nesse mesmo ambiente. Outra técnica é a moldagem por injeção. A fibra moída, misturada ao plástico granulado, passa por um processo chamado extrusão.
em que os dois materiais são sintetizados. Depois a mistura passa para uma máquina injetora, para moldagem da peça. Várias resinas plásticas foram testadas desde 1995 para serem utilizadas com essa finalidade, entre elas o polipropileno, polietileno de alta e baixa densidade e outras. O processo por injeção permite substituir parcialmente as resinas plásticas. A General Motors do Brasil, por exemplo, tem um contrato de pesquisas com a Unesp para desenvolver peças injetadas reforçadas com fibras naturais. Um terceiro processo, que ainda não está em uso por falta de matéria-prima, é o BMC (sigla de Bulk Molding Compound), já testado na universidade. Por esse processo, a fibra é usada pura, sem polipropileno, picada em pequenos grãos para a fabricação de peças externas de veículos. São grades e pára-choques fabricados com uma matriz epóxi ou poliéster (resinas
indústria, poderia viabilizar economicamente sua extração. A meta da Pematec de processar 100 toneladas por dia de fibra indica uma grande quantidade de resíduo no fim do processo. Para evitar um futuro problema ambiental, a Unesp desenvolveu um projeto que utiliza a própria energia embutida na mucilagem para produzir biogás que faz funcionar as máquinas destinadas à secagem das fibras. Outra aplicação potencial para esse resíduo, que também está sendo estudado na universidade, é na alimentação do gado. "Pela sua alta carga protéica e vitaminas, percebemos que é possível usá-lo como enriquecimento de ração animal", diz Lopes Leão.
Planta do curauá: folhas fibrosas e fruto menor que o abacaxi. Acima, peça de compósito usado no teto de carros
sintéticas), em substituição à fibra de vidro usada atualmente, material de difícil descarte e reciclagem. A flexibilidade e a maciez da fibra amazônica também levaram os pesquisadores a pensar em usá-la como matéria-prima para confeccionar roupas. Dessa forma, conforme o tamanho da fibra, elas podem ser usadas tanto pela indústria têxtil como na moldagem por injeção. Nas Filipinas, as fibras do abacaxi, extraídas das folhas e descartadas pela indústria do suco, são transformadas, por exemplo, em finas batas, usadas em cerimônias de casamento. A falta de máquinas com tecnologia apropriada para formar os fios fez com que a Unesp recorresse ao Instituto de Fibras Naturais de Poznan, na Polônia, entidade que desde 1994 mantém parceria com a universidade. Nada menos que 500 quilos de fibras foram levados até a cidade polonesa na bagagem de Lo-
pes Leão. A mistura do curauá com poliéster e lã, em tramas abertas e fechadas, resultou em blusas, saias, malhas, meias e até cortinas. Para ter certeza de que a fibra não causaria alergia em contato com a pele, foram realizados vários testes com sensores acoplados ao corpo de voluntários, durante vários períodos do dia e da noite, para avaliar inclusive o descanso das pessoas durante o sono. A versatilidade da planta aponta ainda para a exploração da bromelina, uma enzima utilizada na produção de medicamentos que auxiliam nos processos digestivos, como os antiácidos, na indústria alimentícia para amaciar a carne e na produção de biscoitos e de ovos desidratados, além de também ser útil no tratamento de couros. A bromelina é encontrada principalmente no abacaxi. Mas a quantidade produzida ainda é pequena em relação às necessidades de mercado, o que a torna um produto de alto valor comercial. O estudo da atividade da enzima em plantas de curauá apontou que, embora as folhas apresentem atividade significativamente menor que os frutos (que se parecem com minúsculos abacaxis), o grande volume de polpa verde (mucilagem) retirado para chegar até as fibras, e dispensado pela
Cultivo no Sudeste - Para suprir todas as possibilidades de uso do curauá, é preciso ampliar a produção e provavelmente cultivá-lo fora da Amazônia, principalmente no Sudeste, mais perto do mercado consumidor. Como parte do projeto desenvolvido para a Pematec, a Unesp estuda desde o ano 2000 a adaptação das plantas ao clima e solo da região. Várias mudas foram trazidas do Pará e plantadas no campus de Lajeado e em uma fazenda da Unesp em São Manuel, cidade próxima de Botucatu. As mudas eram de duas variedades: roxa e branca. "Achamos que para a região de São Paulo a roxa se adapta melhor ao clima", diz Lopes Leão. O plantio já atravessou três invernos, o último com temperaturas de 3,5°C abaixo de zero. E a planta agüentou sem problemas. Assim, o temor de que não se adaptasse ao Sudeste não se confirmou. "Sabemos que ela não morre facilmente, é resistente, não tem pragas e responde bem à adubação." A multiplicação das mudas é feita por clonagem das gemas, que brotam na região entre a base da planta e a folha. As gemas vão para um meio de cultura com a textura de uma gelatina em que se encontram todos os sais minerais, macro e micronutrientes de que a planta precisa, além de vitaminas e fito-hormônios (reguladores do crescimento vegetal). De uma única gema é possível formar outras quatro em 45 dias, período de cada subcultivo. Essas quatro resultam em 16 e assim sucessivamente, em progressão geométrica. "De uma única planta matriz que consigo extrair dez gemas, eu posso obter mais de 10 mü PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 73
plantas idênticas em apenas quatro subcultivos", diz o professor Isaac Stringueta Machado, da área de biotecnologia ambiental da Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp, que também participa do projeto. Dois a três meses depois, as primeiras plantas são encaminhadas à estufa e daí a quatro meses já estão com cerca de 20 centímetros, prontas para ser plantadas no campo. Depois é só esperar durante um ano, período necessário para que as folhas atinjam cerca de 1,20 metro, fase ideal para ser feita a primeira colheita. Seis meses depois, quando as folhas já estão novamente com o mesmo comprimento, nova colheita é realizada. São cerca de quatro nessa seqüência, até recomeçar o ciclo de plantio, que pode ser feito tanto com os filhotes produzidos pela planta-mãe como pelo transplante dos clones. A segunda opção é mais interessante porque, além da redução de tempo e espaço na multiplicação, há dois outros aspectos positivos na micropropagação in vitro ressaltados pelo pesquisador. Um deles é a limpeza clonal. Como o clone é feito a partir de uma porção jovem da planta (meristemas) que ainda não tem os vasos condutores definidos (xilema e floema), qualquer fitopatógeno, bactéria ou fiingo que ela tenha pode ser eliminado. O outro é a fidelidade genética, que permite cópias exatas das plantas selecionadas pela melhor adaptação às condições de campo da região Sudeste. "Temos observado que as plantas clonadas têm um potencial de multiplicação no campo maior que a silvestre. A indução que damos com esses reguladores de crescimento fica de alguma maneira registrada na memória (genótipo) da planta, porque elas continuam se multiplicando numa taxa superior à verificada no plantio convencional", diz Machado. Na avaliação de Lopes Leão, o aumento da produção para dar conta da demanda da indústria automobilística passa pela clonagem. "Por isso estamos montando na Unesp estrutura de reprodução de 5 a 8 milhões de plantas ao ano para atender a crescente demanda de mudas de curauá, que serão transportadas de caminhão para o Pará, prontas para ser colocadas no campo." 74 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
O potencial do curauá tem chamado a atenção dos europeus, que já fizeram propostas ao grupo de pesquisa de levar mudas para o Ceilão, a Malásia e a Indonésia. Para que a fibra amazônica não tenha o mesmo destino da bor-
(
OS PROJETOS
Produção de compósitos à base de fibras naturais para u tilização na indústria automobilísi ica MODALIDADE
Programa Parceria para Inovação Tecnológica (PITE)
1
Produção di? compósitos reforçados c•om fibras de eu rauá MODALIDADE
Fundo Verde-Amarelo - MCT/Finep COORDENADOR
COORDENADOR ALCIDES LOPES LEàO
racha da seringueira, que no final do século 19 e nas primeiras décadas do 20 foi a maior fonte de renda para o Brasil, quando colônias britânicas na Ásia passaram a cultivar a planta com sucesso e fizeram as exportações brasileiras
- Unesp
INVESTIMENTO
R$ 728.350,00 (Toro) e R$ 145.750,00 (FAPESP)
ALCIDES LOPES LEãO
- Unesp
INVESTIMENTO
R$ 799.616,00 (R$ 371.600,00 Finep e R$ 428.016,00 - Pematec)
caírem drasticamente, a receita de Lopes Leão é investir em tecnologia para o produto brasileiro estar sempre à frente dos competidores. Além da reconhecida competência da equipe da Unesp, da qual também participam pesquisadores da Faculdade de Ciências Agronômicas, o trabalho com curauá é, na verdade, fruto de um grupo de trabalho multidisciplinar, que conta ainda com Elisabete FroUini, do Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP), e Luiz Mattoso, da Embrapa Instrumentação Agropecuária, também de São Carlos. Na Embrapa, por exemplo, são feitos os ensaios para avaliar a interação da fibra com o plástico. No IQSC são testadas as matrizes dos compósitos. "Nosso trabalho tem que ser altamente técnico porque a indústria é muito exigente", diz Lopes Leão. "Sabemos como as peças se comportam tanto se forem usadas na Sibé-
ria, a uma temperatura de menos 50°C, como no calor de Teresina, no Piauí." Para viabilizar o projeto em todas as suas etapas, que começa pelo estudo da planta no campo, sua adaptação à região Sudeste, a clonagem e o transporte de mudas, além de passar pelas aplicações da fibra na indústria automobilística, fechando o ciclo com o aproveitamento dos resíduos, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), por meio do Fundo Verde-Amarelo, programa de estímulo à interação universidade e empresa para apoio à inovação, assinou em 2002 um convênio com a Pematec e a Unesp, no valor aproximado de R$ 800 mil a fundo perdido, válido por dois anos. A parte da Finep, metade do valor total, foi utilizada com bolsistas, equipamentos e testes. O convênio termina em dezembro, mas será renovado por mais um ano. A Pematec, que contribui com a outra metade do orçamento total do
projeto, pode deduzir seu investimento como incentivo à pesquisa. Na atual fase, o grupo de pesquisa começa a repensar alguns conceitos adotados no início do projeto. Um deles diz respeito ao número de plantas cultivadas por hectare. Eram 10 mil no começo do estudo e atualmente são 60 mü por hectare. O outro é o aproveitamento da bromelina, considerada antes apenas um subproduto. Hoje a enzima, cujo valor no mercado supera o da fibra, é considerada um co-produto na exploração do curauá. Sem contar que os pesquisadores agora sabem que ela pode ser cultivada em qualquer lugar do Estado de São Paulo e é uma cultura rentável. Atualmente o quilo seco custa até R$ 3, enquanto há dois anos valia R$ 1. Mas a mudança mais visível está na utilização de todos os recursos que a planta oferece tanto para a indústria automobilística como para a farmacêutica e a têxtil. • PESQUISA FAPESP 104 • OUTUBRO DE 2004 ■ 75
■ TECNOLOGIA
QUíMICA
Estação
verde
Bromélias e liquens são usados para detectar a presença de metais no ar poluído de São Paulo
Uma bromélia que mais se parece com um tufo de grama e um líquen de uma espécie tolerante à poluição têm sido utilizados de forma sistemática, nos dois últimos anos, para detectar a presença de metais pesados no ar da cidade de São Paulo e de três municípios da região do Grande ABC. Assim, esses pequenos e frágeis seres estão servindo de base de dados num estudo realizado por pesquisadores do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). O objetivo deles é traçar um mapa das fontes de poluição por metais e compará-las com o perfil de industrialização e urbanização da região monitorada. Entre os locais pesquisados está o Parque do Ibirapuera, na capital, área cortada por túneis e onde há intenso tráfego de veículos. Lá foi registrada de forma mais acentuada a presença dos elementos químicos zinco e cobre, presentes na queima de óleos lubrificantes. Altas concentrações de arsênio, bário, zinco e antimônio, encontradas nas amostras de Santo André, no Grande ABC, e em Santana, na Zona Norte da capital, parecem estar associadas também a fontes veiculares, inclusive veículos a diesel (bário e antimônio). Apesar de Santo André ser uma região industrial, a área de coleta também está submetida à alta densidade de tráfego. Já o cobalto foi encontrado em quantidade muito maior do que a média de outros pontos, em amostras no bairro de São Miguel Paulista, região em que estão ins76 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESOUISA FAPESP 104
taladas algumas indústrias metalúrgicas. No Parque Dom Pedro, no centro da cidade, onde o tráfego é bastante intenso, foi encontrado principalmente zinco, geralmente associado a emissões de veículos por desgaste de componentes do motor e dos pneus. "A monitoração reflete a atividade urbana e industrial mais fortemente presente na região", diz Mitiko Saiki, do Laboratório de Análise por Ativação Neutrônica, do Ipen, e coordenadora da pesquisa financiada pela FAPESP. Para esse trabalho, a equipe de pesquisadores selecionou dez das 23 estações medidoras da qualidade do ar da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), da Secretaria de Estado do Meio Ambiente, para fazer as medições: Santana, Parque Dom Pedro, Ibirapuera, Congonhas, Cerqueira César, Pinheiros, São Miguel Paulista, Santo André, São Caetano do Sul e Mauá. Técnica auxiliar - Estudos com bromélias e liquens, chamados de bioindicadores vegetais, para avaliar o impacto da poluição ambiental começaram a ser realizados nas primeiras décadas do século passado e, desde então, várias pesquisas foram feitas, principalmente na Europa. Nos últimos anos. Argentina, Chile, México e Jamaica também desenvolveram projetos e publicaram trabalhos a respeito do tema. No entanto, a avaliação dos impactos da contaminação do ar com plantas não substitui os métodos físico-químicos para determinar os níveis de poluição. Os bioindicadores vegetais
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funcionam como um instrumento adicional, que tem como vantagens a possibilidade de medir várias substâncias presentes em grandes áreas e a utilização em diversos lugares simultaneamente. É um método até certo ponto barato, pela utilização de plantas e liquens, mas o resultado é obtido por meio de análise das amostras feita em reatores nucleares de instituições credenciadas para o uso desses equipamentos. A disposição para esse tipo de experimento com bromélias começou durante uma temporada que a pesquisadora Ana Maria Gradano Figueiredo, do Ipen, passou em Kingston, na Jamaica, como consultora de um projeto na área de análise por ativação com nêutrons, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Como Mitiko já estava pesquisando os liquens, elas decidiram trabalhar de forma sistemática na coleta de informações que levassem a mapear a poluição do ar por metais. Pó e nêutrons - Para identificar e quantificar os elementos químicos, as amostras das plantas são pulverizadas em um reator nuclear e bombardeadas com um fluxo de nêutrons. Dessa forma, são produzidos isótopos radioativos dos elementos químicos que se quer determinar. A técnica apresenta como vantagens o fato de detectar cerca de 20 elementos químicos com apenas a análise de uma pequena quantidade de amostra. Além disso, é um método bastante preciso e sensível, que permite detectar concentrações pequenas de metais, da ordem de partes por bilhão (ppb). Para o biomonitoramento com a Tillandsia usneoides, bromélia conhecida popularmente como barba-debode e utilizada em arranjos florais, foi preciso coletar as plantas em locais não poluídos e levá-las até a área a ser monitorada. As bromélias foram retiradas de dentro de uma mata afastada de indústrias e rodovias, situada em uma propriedade particular de Mogi das Cruzes, cidade a 63 quilômetros de São Paulo. 78 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
arvore e n
A T. usneoides já é utilizada há algum tempo em outras regiões tropicais como bioindicadora de poluição atmosférica em função das suas características morfológicas e fisiológicas. Como não tem raízes, ela apresenta toda a superfície foliar recoberta por estruturas denominadas escamas, cuja principal função é absorver água e sais minerais da atmosfera. Dessa forma, a planta pode acumular poluentes presentes no ambiente. As amostras colhidas em Mogi das Cruzes foram colocadas penduradas a cerca de 1 metro do chão em um suporte adaptado para girar com o vento, de forma a garantir um contato homogêneo com os poluentes do ar. Depois de dois meses de exposição, as amostras de bromélias foram levadas para análise e substituídas por novas, garantindo, dessa forma, um monitoramento contínuo dos pontos escolhidos por um período de 24 meses.
ção de elementos indicando os níveis de poluição. Segundo Mitiko, períodos de chuva ou de seca não influenciaram a medição feita com liquens porque o crescimento desse organismo vegetal é bastante lento, de cerca de 0,5 a 3 milímetros por ano. Para efeito de comparação, foram coletadas amostras de C. texana de áreas não poluídas, localizadas em quatro pontos do Parque Estadual Intervales, uma reser<'a de Mata Atlântica a 270 quilômetros de São Paulo.
Já o biomonitoramento com o líquen Canoparmelia texana espécie escolhida por ser encontrada em muitas cidades brasileiras, exceto as litorâneas - é feito no próprio local onde se encontram as árvores em que eles nascem e crescem. Os liquens são organismos simbióticos compostos de um fungo e uma ou mais algas. Essa associação forma um talo comum, sem raízes, que para crescer depende principalmente dos nutrientes minerais presentes na atmosfera. Como a C. texana é mais abundante em ambientes poluídos do que nos limpos, isso a caracteriza como uma espécie indicadora da poluição. Quando seus competidores desaparecem do ambiente, ela encontra um hábitat desocupado e, devido à sua alta tolerância à poluição, ocupa grandes extensões de troncos de árvores, como pode ser observado nos parques, praças e campos universitários de grandes cidades. No Brasil há 2.800 espécies de liquens já listadas, mas não existem dados para o mapeamento da distribui-
No reator nuclear, as amostras são bombardeadas com fluxo de nêutrons
O líquen é retirado da árvore com uma faca de titânio, para não haver contaminação do material, e levado ao microscópio para separar a planta da casca da árvore e de outros materiais. O hquen é um mundo microscópico, composto de insetos, teias de aranha e musgo. Para que essa tarefa fosse realizada sempre dentro dos mesmos paO PROJETO Utilização de plantas bloindicadoras acumuladoras de metais para monitoramento biológico da poluição urbana de São Paulo MODALIDADE Linha Regular de Auxílio a Pesquisa COORDENADORA MITIKO SAIKI
- Ipen
INVESTIMENTO R$ 35.628,00 e US$ 11.815,00 (FAPESP)
drões, ela fez um curso no Instituto de Botânica da Secretaria de Estado do Meio Ambiente. Depois as amostras foram limpas em água purificada e secas pelo processo de liofilização (desidratação realizada a baixas temperaturas) durante 16 horas. Coleta ampliada - As bromélias, retiradas das estações de monitoramento a cada dois meses, foram levadas para o laboratório e secas em uma estufa a 40°C. Depois de secas, as amostras das plantas foram moídas e colocadas em saquinhos plásticos limpos. As embalagens, contendo entre 150 e 200 miligramas de material, foram então colocadas no reator atômico para serem irradiadas e analisadas. As pesquisas contaram ainda com a participação de bolsistas do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq) e de pesquisadores do Instituto de Botânica. Embora o projeto já tenha sido encerrado, os estudos prosseguem. Na atual fase, os pontos de coleta estão sendo ampliados para chegar às 23 estações de monitoramento da Cetesb. Na realidade, essas medições complementam o controle feito pela agência ambiental paulista, que utiliza outros parâmetros, como dióxido de enxofre (SO2), partículas inaláveis, dióxido de nitrogênio (NO2), monóxido de carbono (CO) e ozônio (O3), para medir a poluição do ar. Os resultados obtidos pela equipe do Ipen já atraíram o interesse de empresas de consultoria ambiental. Uma delas, instalada no Rio de Janeiro, pretende utilizar as plantas e os liquens bioindicadores para medir o impacto causado por uma estação de tratamento de efluentes líquidos industriais sobre a saúde dos moradores das redondezas. Os dados coletados no estudo também serão apresentados em outubro, no Ipen, durante um workshop que reunirá pesquisadores da América Latina, promovido pela Agência Internacional de Energia Atômica e pelo instituto. • PESaUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 79
ITECNOLOGIA NUTRIÇÃO
Escolhas
conscientes Crianças descobrem os alimentos mais saudáveis com incentivo de jogo educativo
Crianças com idades entre 7 e 10 anos, estudantes de escolas localizadas no bairro paulistano de Vila Mariana, foram expostas durante um ano letivo a ações educativas, com a utilização de jogos e um conto infantil, para aprender a se alimentar corretamente e, dessa maneira, prevenir doenças na idade adulta. "Ao final, observamos mudanças pequenas, porém, consistentes", avalia o coordenador da pesquisa, professor José Augusto Carrazedo Taddei, do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). "Houve diminuição do consumo de guloseimas, pequeno aumento na atividade física e redução na obesidade", diz. Um dos primeiros resultados concretos do estudo é um jogo educativo, chamado Prato Feito, previsto para ser lançado comercialmente até o final do ano pela empresa Pais & Filhos, de Aparecida do Taboado, em Mato Grosso do Sul. A disputa para chegar ao final do tabuleiro envolve 40 cartas de perguntas. Em uma delas a criança tem como tarefa escolher a melhor opção para substituir o jantar por um lanche. Entre as alternativas encontram-se: leite com café e pão com margarina, suco de fi^uta e 80 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
sanduíche de peito de frango, pipoca e refrigerante dietético e dois pedaços de pizza de calabresa. Em outra pergunta, a resposta correta indica o leite como o alimento que deve ser ingerido três vezes por dia, em média, para um crescimento com "ossos fortes". Sem anemia - Não faltam também perguntas sobre qual o alimento que melhora o aproveitamento de ferro nas refeições ou quais os sintomas que uma criança com anemia pode apresentar. "Na primeira edição do jogo serão fabricadas 3 mil unidades, das quais 150 ficarão com a Unifesp, que se encarregaO PROJETO Redução dos riscos de morrer e adoecer na maturidade Projeto RRAIVIIVI MODALIDADE Linha Regular de Auxílio à Pesquisa COORDENADOR JOSé AUGUSTO CARRAZEDO TADDEI
Unifesp INVESTIMENTO R$ 38.108,00 (FAPESP)
-
rá de distribuí-las gratuitamente a instituições interessadas no caráter educativo do Prato Feito", diz Fabrício Lalucci Pereira de Souza, diretor da empresa. A idéia de criar um jogo comercial surgiu em decorrência dos resultados obtidos na pesquisa, feita com cerca de 2.500 alunos do ensino fundamental da rede estadual. O projeto, financiado pela FAPESP, abrangeu oito escolas, todas no mesmo bairro, para facilitar o deslocamento dos pesquisadores. Um sorteio definiu as quatro escolas onde seriam feitas as intervenções educativas com os alunos. As outras quatro ficaram como grupo controle, para comparação dos resultados obtidos. A pesquisa começou com avaliações antropométricas (peso e estatura) de todas as crianças, tanto do grupo de intervenção como de controle. A coleta de dados incluiu a distribuição de questionários aos pais, compostos de 38 perguntas que abordavam hábitos alimentares e de atividade física da criança, além da condição socioeconômica familiar. Para a segunda fase, a equipe de pesquisa desenvolveu quatro jogos educativos, que depois serviram de base para o jogo comercial. O da memória, por exemplo, tratou do tema de alimentos equivalentes, segundo sua função e va-
projeto também provocou nos alunos um maior interesse pelas aulas de educação física. Uma mudança significativa observada diz respeito ao comportamento dos professores, que também se sentiram motivados a aumentar o nível de atividade física.
lor nutritivo. Já o da pirâmide permitiu a exploração das diversas possibilidades para compor uma dieta balanceada. O conto educativo também apresentou conceitos relacionados à dieta balanceada e a hábitos alimentares saudáveis. Coube aos professores das escolas cuidar das atividades propostas durante os horários de aula. Foram 15 horas de atividade por semestre, durante um ano. Para isso eles receberam treinamento, que consistiu em um curso de extensão universitária com 40 horas de duração. "O treinamento teve como objetivo transmitir conhecimentos que resultem em atitudes e práticas voltadas para a dimi-
nuição do consumo de sal, de gordura saturada e de carboidratos simples (doces, por exemplo), além de promover aumento da atividade física", diz Taddei. No final da pesquisa foram repetidos os procedimentos de avaliação da primeira fase, para poder fazer uma análise comparativa e a estatística dos resultados alcançados com a intervenção educativa dirigida para os professores e, por tabela, aos alunos. Os resultados que ficaram evidentes foram a diminuição do consumo excessivo de doces e salgadinhos industrializados, prática definida pelos pesquisadores como mais de duas porções consumidas em quatro ou mais dias da semana, nos grupos de alunos que foram expostos às ações educativas. O
Obesidade e televisão - O outro dado importante apareceu ainda no início da pesquisa. A avaliação de peso apontou que 10,5% dos estudantes participantes do projeto eram obesos, porcentual que representa mais do que o dobro dos 4,5% registrados entre as crianças brasileiras na tiltima pesquisa nacional de alimentação e nutri^ ção, feita em 1989. Seijf 3 gundo os pesquisadores, esse resultado é compatível com o aumento da obesidade observado entre os escolares do país nos últimos anos. O número de horas que a criança passa assistindo à televisão também mostrou ser um fator que contribui para o excesso de peso, principalmente se esse período ultrapassar quatro horas por dia. O problema está dentro de um processo de transição nutricional, segundo Taddei. As crianças estão consumindo mais sal, açúcares e gorduras, com redução do consumo de carboidratos complexos (frutas, legumes e cereais integrais, por exemplo), situação que aponta para uma epidemia de obesidade e doenças associadas. As facilidades da vida moderna, com a conseqüente redução da atividade física cotidiana, contribuem para agravar esse quadro. "A meta da educação nutricional desenvolvida no ambiente escolar é instruir crianças e adolescentes sobre os princípios gerais de nutrição, orientando comportamentos específicos para que estes se tornem aptos a fazer escolhas conscientes ao longo de suas vidas", diz Taddei. O que mostra, mais uma vez, que a escola é o local adequado para promover o desenvolvimento de hábitos saudáveis. • PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 81
■TECNOLOGIA
SEGURANÇA
Vigilante eletrônico Empresa desenvolve sistema que identifica placas de veículos e compara com banco de dados SAMUEL ANTENOR
O aumento do número de automóveis em circulação e a crescente preocupação com a segurança foram os dois temas que incentivaram a empresa Tecnima Imagem e Automação, de São José dos Campos, em São Paulo, a desenvolver um sistema de reconhecimento de veículos por meio do registro de fotos digitais da placa do veículo e a comparação com um banco de dados predeterminado. Esse sistema que leva o nome de Estação de Videocaptura em Acesso (EVA) poderá ser usado na entrada de condomínios - para ajudar na identificação dos moradores - ou na rua, sob o patrocínio dos departamentos de trânsito que precisam reconhecer veículos roubados ou que tenham pendências de impostos como licenciamento e Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA). 82 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
Dotado de um software e de pequenas câmeras de vídeo, o EVA informa automaticamente a origem e a situação dos veículos ao confrontar as imagens captadas com bancos de dados formados por um condomínio ou um órgão público. O sistema registra, a partir da imagem gerada pela câmera digital, os dígitos da placa quando o veículo passa por um sensor, do tipo infravermelho ou laço indutivo (enterrado no solo). A câmera tem uma saída de vídeo, que transfere, por um cabo, as imagens a um computador. Com a imagem digitalizada, o programa identifica a placa do veículo e faz a comparação com as informações arquivadas. O reconhecimento é feito em um tempo menor que meio segundo. Existem poucos programas no mundo que utilizam os mesmos princípios de identificação do EVA. "Ele é mais veloz e completo que os sistemas disponí-
veis no mercado porque armazena a imagem em um banco de dados, com informações sobre o local, data e hora, podendo, no caso de condomínios, monitorar até duas entradas independentes, simultaneamente, a um custo muitas vezes menor", diz Júlio Augusto Leitão Machado, diretor da Tecnima. Para ele, o controle de acesso mais utilizado atualmente, baseado em cartões de identificação, não é o mais eficiente, porque os cartões podem ser perdidos, trocados, esquecidos ou falsificados. Além de não utilizar cartões magnéticos, o EVA também não depende de antenas para transmissão de dados, o que reduz seu custo. "Além da economia, o EVA significa conforto e segurança para o usuário, que pode ser identificado mesmo com o carro em movimento", diz Pedro Carlos Gonçalves, sócio e diretor da empresa. "Além da vantagem de a imagem
ficar armazenada, a qualquer momento novos usuários podem ser incluídos", explica. Outra garantia do sistema é fornecer a imagem dos motoristas autorizados a conduzir o veículo identificado. No caso de condutores sem autorização, os funcionários podem bloquear a passagem do carro. Na primeira vez em que o veículo autorizado é detectado pela estação sua imagem é registrada e, todas as vezes que ele passar novamente, a foto aparece instantaneamente. A capacidade de armazenamento de imagens do sistema é limitada apenas pela memória disponível do computador. O banco de dados pode ficar nesse mesmo equipamento ou ser acessado de um outro computador via rede. Olho eletrônico - A câmera utilizada para condomínios também pode ser usada em vias públicas, detectando veículos em movimento para verificar se roubados ou com irregularidades como licença ou IPVA vencido e multas pendentes. Essa possibilidade ficou perceptível depois do início do desenvolvimento da tecnologia em um projeto financiado pelo Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) da FAPESR Outro caso de aplicação possível está nas cidades onde existem rodízios de veículos. "Atualmente esse serviço é dependente de pessoas que monitoram as vias. Além de o profissional não ter condições de verificar todos os carros, é desumano mantê-lo em vias de grande tráfego com alto índice de poluição", avalia Gonçalves, lembrando que as câ-
meras hoje em operação nas cidades fotografam apenas os veículos em velocidade acima do permitido. "Se o veículo passar por uma câmera, dentro da velocidade permitida, não será registrado, mesmo que esteja proibido de circular naquele dia ou horário." A s autoridades au estaduais e municipais são clientes potenciais desse tipo de tecnologia porque a possibilidade de elevação da arrecadação do IPVA a partir do monitoramento é considerável. Machado lembra ainda que as blitz de trânsito, que param veículos aleatoriamente, poderiam, com o uso do sistema, melhorar seu desempenho na detecção de automóveis com problemas, já que o equipamento pode ser transportado e montado em operações de trânsito específicas. "Seria algo como a câmera registrar o veículo em
A"
O PROJETO Sistema de videoauditoria para o controle de veículos em estacionamentos através de suas imagens MODALIDADE Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) COORDENADOR JúLIO AUGUSTO LEITãO MACHADO
Tecnima INVESTIMENTO
R$ 168.893,10 e R$ 3.935,00 (FAPESP)
-
um ponto e, em um ponto seguinte, ser feita a checagem pelos profissionais. Funcionaria como um filtro, pois apenas os veículos pré-selecionados seriam realmente parados, melhorando, inclusive, a fluência dos veículos em trânsito", avalia o diretor. Assim, os riscos da operação para os policiais diminuiria porque seria possível organizar o aparato de segurança para a abordagem de um veículo suspeito. Testes e implantação - O sistema foi testado durante um ano com imagens em movimento obtidas, em condições que ainda não eram ideais, num condomínio e em um estacionamento em São Paulo, além de uma avenida em São José dos Campos. O resultado foi de mais de 70% de acerto na identificação das placas. De acordo com Machado, para uma instalação bem-feita em local com pista e iluminação adequadas, o índice de acerto apresenta variação de 80% a 95%. Dessa forma, a primeira operação comercial está em funcionamento no Rio de Janeiro, em uma unidade da empresa Texaco. "Estamos negociando com um grande fabricante de sistemas de pedágio, a fim de aplicar o EVA em um local onde os carros são obrigados a parar, criando uma situação ideal para a captura da imagem." A intenção da Tecnima agora é fazer parcerias com empresas que possam completar a integração com os sistemas de dados disponíveis, como o Cadastro Nacional de Veículos Roubados (CNVR) ou os dados do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). • PESQUISA FAPESP 104 • OUTUBRO DE 2004 ■ 83
HUMANIDADES SOCIOLOGIA
Onde mora
O perigo Estudos mostram como a violência condiciona o cotidiano nos cortiços e em bairros da periferia de São Paulo FABRíCIO MARQUES
Teóricos sustentam que o Brasil inventou uma democracia de pé quebrado, ao mesmo tempo avançada nos direitos políticos, com eleições regulares e competição entre partidos, e castradora de direitos sociais e civis, como atestam os índices de desemprego e de trabalho precário, o espectro da violência e a falta de moradia. Com essa tese no horizonte, estudantes de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo saíram a campo para conhecer e colher depoimentos de brasileiros que vivem abaixo da linha da cidadania. Visitaram adensamentos urbanos no Jardim Ângela, conflagrada fronteira sul da capital paulista. Conversaram com moradores de cortiços da região central de São Paulo. Coordenada por Lúcio Kowarick, professor-titular do Departamento de Ciência Política, a pesquisa Viver em risco: moradia, desemprego e violência urbana na Grande São Paulo não apenas corroborou a idéia inicial, mas propôs outras hipóteses. Por exemplo, a de que a violência tornou-se uma contingência com força para também estruturar a vida dos habitantes das periferias. O medo da violência delimita o horário em que as pessoas saem à rua e impõe um código de comportamento no qual o silêncio é regra de sobrevivência (melhor fazer de conta que não se vê nada). E provoca até mesmo um ruído na lógica tradicional dos fluxos migratórios dentro do espaço urbano. "Pode-se colocar a idéia de que, antes, as pessoas migravam por melhores condições de vida ou trabalho. Embora esse processo ainda seja fiin84 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
Cortiço de São Paulo: apesar de insalubre, permite que os moradores vivam perto dos empregos
damental, começa a haver migração também para escapar da violência", diz Kowarick, que coordenou e orientou oito estudantes de graduação e pósgraduação, todos bolsistas de iniciação científica ou de mestrado. Temores - Talvez a contribuição mais expressiva da pesquisa seja o registro cristalino das vozes da periferia, a revelação de sonhos e temores de seus habitantes em meio a um ambiente precário e vulnerável. Surgem exemplos como o da lavadeira Marli, de 42 anos, baiana de Itabuna, que mora numa casa inacabada no loteamento Três Marias, Jardim Ângela, com três filhas
adolescentes e dois netos pequenos. A casa tem uma escada para um piso superior que nunca foi construído e provavelmente jamais será. A obra foi feita aos poucos pelo marido de Marli, o pedreiro José, e seu filho, Paulo. Ambos foram assassinados a tiros no dia 31 de dezembro de 1997, numa festa de passagem do ano na casa de vizinhos. Dois homens entraram na festa e começaram a fazer provocações. Pai e filho reagiram e foram mortos. O desalento e o medo da violência levaram a família, agora sem a âncora masculina, a fiigir dali. Mudaram-se primeiro para uma casa no bairro vizinho do Capão Redondo, depois foram tentar a sorte na
cidade de Formiga, Minas Gerais. Em 2000 voltaram para o chão que lhes pertencia. A família vive dos R$ 275 de salário de Marli, uma vez que as filhas estão desempregadas. Marli acorda às quatro e meia da manhã e às cinco cumpre uma caminhada de vinte minutos ladeira acima até o ponto de ônibus. Demora duas horas de ônibus para chegar à empresa. Larga às 17 horas e só consegue chegar em casa às oito da noite. "O que mata a gente não é tanto o trabalho, é a viagem", diz. Seu sonho é terminar a casa, mas ela acha que jamais vai conseguir. "É um sonho, porque a realidade é outra", ela diz. "O salário do José era bem maior que o meu PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 85
e ele não precisava pagar para ninguém construir. Ele mesmo fazia. Mas pelo menos eu consegui uma casa e não é numa favela. Pela casa, valeu a pena. Pelo resto, não", resume. A pesar da origem irregular, i^L pois está situado na área deL^k proteção dos mananciais g ^L da Represa Guarapiran^L JILi ga, o loteamento Três Marias hoje é abastecido por água, iluminação e pavimentação feita em mutirão pelos próprios moradores. Com o advento da telefonia celular, dispõe até de um articulado serviço de entregas em domicílio, que vai da pizza à feijoada, do botijão de gás aos remédios. Os moradores ergueram um muro ao redor das casas, na esperança vã de que contivesse a violência. Embora não se tenha notícia de assassinatos recentes, roubos são corriqueiros. O lugar foi escolhido para a pesquisa porque representa um tipo de periferia já consolidado e ocupado por autoconstruções - mecanismo responsável pela expansão das fronteiras da metrópole desde os anos 1940, no qual os moradores compram um lote a prestação e erguem, com as próprias mãos, a casa própria. Perto dali, o Jardim Silvano, formado mais recentemente, mostrou uma realidade mais crua aos pesquisadores. A localidade, igualmente tomada por casas recém-construídas, recebia a proteção de um traficante, conhecido como Boy, que vendia drogas na porta de sua padaria. Uma espécie de herói local, Boy era respeitado pelos habitantes por espantar outros bandidos e, supostamente, evitar o recrutamento de jovens da região para o crime organizado, embora aceitasse a adesão dos insistentes. Fez discurso no campo de futebol: "Não vou influenciar o filho de ninguém. Se eu puder aconselhar para não entrar, vou falar. Agora, entra quem quer". Boy acabou expulso do ponto de drogas por um traficante rival, um certo Bronx, do vizinho Jardim Nakamura. Uma gangue do próprio bairro aproveitou o terreno livre e passou a usar as ruas do lugar como desmanche de automóveis a céu aberto. Como no loteamento Três Marias, por perto também ocorre "desova de cadáveres". É nesse pano de ftindo, onde a polícia só costuma aparecer para recolher 86 • OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
cadáveres, que despontam alguns dos mais fortes relatos etnográficos da pesquisa. Como o do paraibano Antônio, de 33 anos, dono de um bar que dizia confiar em todo mundo, mas, depois que seu estabelecimento foi assaltado, só sai à rua acompanhado por um segurança. "Fiquei cabreiro", diz. Antônio foi tomado por uma paranóia corriqueira na periferia - e tão macabra quanto a própria violência. Desconfiado da autoria do crime, passou a temer que os bandidos previssem sua desconfiança e voltassem para matá-lo. O caso do porteiro Ronaldo, de 29 anos, casado, pai de dois filhos, também é paradigmático. Ele chegou ao bairro ftigindo da violência da favela Pantanal, em Diadema, onde perdeu um irmão, e hoje faz planos de se mudar para o interior, já que seus dois meninos não podem sair à rua à noite. "Houve tiroteio na padaria do Boy e morreu uma menina que ia fazer 10 anos", diz. Gangue - O medo e a vulnerabilidade transparecem nos relatos e produzem situações como a do eletricista Zaqueu, de 40 anos, que usou o próprio telefone para denunciar anonimamente a gangue que desmanchava carros na frente de sua casa - mas se arrependeu de "transgredir" a lei do silêncio quando descobriu que a polícia registrara a origem do telefonema. Seu relato: — Eu liguei para a polícia e falei: tem um carro na rua em cima do meu estabelecimento, os caras estão desmontando. Eu estava orgulhoso, cidadão denunciando, de repente o telefone toca, era o capitão: "Oh, é o senhor Zaqueu? Mandei meus policiais e eles não estão encontrando o carro". Aí eu pensei: como é que eles descobriram meu O PROJETO Viver em risco: moradia, desemprego e violência urbana na Grande São Paulo MODALIDADE Linha Regular de Auxílio à Pesquisa COORDENADOR LúCIO KOWARICK Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
INVESnMENTO R$ 28.285,12 (FAPESP)
telefone? E se o bandido também gravou meu telefone nessa conversa? E se o safado viu minha cara na janela? E se a polícia tá com o moleque? Eu não estou perdido? Aí eu pensei, bom, de agora em diante eu não tenho mais esse telefone e vendi a linha. E falei para minha mulher: quando aparecer outro telefone eu compro, e também não faço isso mais. Eu fico preso, faço de conta que não estou vendo nada. Os pesquisadores foram instruídos a ter cautela no trabalho de campo. Sempre andavam em duplas e à luz do dia e só ligavam o gravador depois de já haverem captado a essência da percepção e das vivências da violência. "O resultado é um fio narrativo que mostra a perseverança daqueles que, numa situação de vulnerabilidade, procuram a dignidade como forma de existência", diz o professor Lúcio Kowarick. "A expressão mais evidente da falência dos direitos civis está no número de assassinatos perpetrados pela polícia e pelos bandidos em todas as grandes aglomerações do país. Isso, para não falar nas humilhações, extorsões, espancamentos e roubos que não fazem parte das estatísticas oficiais, pois as pessoas deixam de relatar por descrença nas instituições e por medo de represálias." No capítulo sobre os cortiços, a vulnerabilidade tem outras faces, como a promiscuidade, a vida em ambientes claustrofóbicos e degradados, a falta de segurança. Mas oferece a vantagem, destacada por seus moradores, de estar no Centro, próximo das chances de trabalho e de opções de lazer. "No Centro, tudo é mais fácil: cinema, condução, para trabalhar é melhor. É claro que custa mais caro, mas, se você morar longe, você tem condução e tem sempre que almoçar na rua", diz Almi, de 36 anos, que já viveu em 13 endereços diferentes no Centro paulistano, entre cortiços e minúsculos apartamentos. Hoje mora num imóvel na rua João Teodoro, bairro do Pari, em companhia de dezenas de famílias. Negro, abandonado pelos pais no Paraná, foi criado em orfanato até os 16 anos. Com 20 anos, mudou-se para São Paulo para tentar encontrar os pais. Trabalhou em loja de departamentos, foi vendedor de livros. Em 1993 abriu um armazém na cidade de Guarulhos. "Aluguei uma casinha e comecei o negócio nos fundos. Tive a infelicidade de os ladrões entrarem lá."
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Cadáver abandonado no Jardim Angela: terror molda o comportamento de seus habitantes
Para escapar da violência, optou por voltar para o Centro e ser "andarilho no trabalho e itinerante no aluguel", como é definido na pesquisa. Desde 2000 está na Pensão da Dolores, na rua João Teodoro. Paga R$ 135 para ocupar um cubículo de 4,5 metros quadrados, com um anexo usado como cozinha, mas sem pia. "Visitei vários lugares e achei que aqui era o melhor. Tapei as goteiras e consertei a fiação", diz. A baiana Denise, viúva há seis anos, mora com quatro filhos e uma sobrinha no mesmo cortiço da rua João Teodoro. Está ali faz 12 anos. Contabiliza os prós e os contras. "Tem rato aqui. Tem no porão. Quando começa a chover, aí é que vem bastante. Quando chove entope o esgoto", ela diz. Também se queixa dos assaltos e invasões. "De uns dois anos para cá está uma bagunça. Acho que eles saem da delegacia, da prisão, da Febem. Antigamente, não tinha isso de entrar aqui." Em compensação, o Centro tem escola, os cortiços não exigem fiador e o trabalho de suas filhas é próximo. "Se o emprego é aqui, melhor ficar aqui."
A pesquisa retoma vários fios da meada que teceram a carreira e a produção acadêmica do professor Lúcio Kov^rarick. Em 1975 publicou Capitalismo e marginalidade na América Latina, sua tese de doutorado, e, cinco anos após, o livro A espoliação urbana, que já estabelecia relações entre a exploração do trabalho e os níveis de exclusão na metrópole. A ntes, em 1976, coordenou com I^L Vinícius Caldeira Brant o L^^ livro São Paulo, crescimenÊ ^ to e pobreza, produção co^L ^^^ letiva de pesquisadores do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), feita por encomenda da Arquidiocese de São Paulo. A tese central do livro, segundo a qual o crescimento econômico não era incompatível com o aumento das desigualdades sociais, mas antes era capaz de amplificá-las, converteu a obra num clássico dos anos 1970 e criou problemas políticos - a sede do Cebrap sofreu um atentado atribuído a grupos paramilitares. A história dos cortiços, ele já havia
visitado no artigo "Cem anos de promiscuidade: o cortiço na cidade de São Paulo", em parceria com Clara Ant. Sua tese de livre-docência, convertida no livro Trabalho e vadiagem, aborda a formação do mercado de trabalho em São Paulo entre 1880 e 1920. As entrevistas realizadas pela pesquisa Viver em risco serviram de apoio ao documentário Três Marias, de Tomás Resende. O trabalho acrescenta novos elementos a esse caleidoscópio ao sugerir que não só a qualidade de vida mas a própria vida nas periferias continua extremamente comprometida pela pobreza e pela espoliação urbana, embora o problema já não seja tanto a falta de água, de luz, pavimentação ou coleta de lixo. As carências residem na distância do local de trabalho, na falta de segurança, numa urbanização marcada pela precariedade, pelo desemprego ou o trabalho instável. "O símbolo da destituição dos direitos civis e sociais é a violência, que põe em xeque, a todo momento, a integridade física e mental de milhares de brasileiros", avisa o pesquisador. • PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 87
I HUMANIDADES
ARTES PLÁSTICAS
Cor de rosa-choque Mostra na Pinacoteca e tese trazem à luz as mulheres artistas
RENATA SARAIVA
Uma artista talentosa a causar escândalo na sociedade burguesa após tornar-se amante de seu mestre, homem casado, e dele engravidar duas vezes. Outra a apresentar ao júri de um importante concurso de escultura um parecer positivo de Rodin sobre sua obra, que perdera a competição. Histórias como essas se confundiriam facilmente com situações vividas por Camille Claudel ou outra artista parisiense de seu tempo. Fazem parte, porém, de um agitado cenário artístico situado bem longe de Paris no mesmo período: o Rio de Janeiro. Essas histórias aconteceram com Abigail de Andrade e Julieta de França, duas das mulheres cujas trajetórias estão narradas na tese de doutorado Profissão artista: pintoras e escultoras brasileiras entre 1884 e 1922, defendida por Ana Paula Simioni, após pesquisa financiada pela FAPESP. O assunto foi levado às bancas universitárias da Universidade de São Paulo (USP) no início de agosto, poucos dias antes de a Pinacoteca do Estado de São Paulo inaugurar a mostra Mulheres pintoras - a casa e o mundo, na qual obras de algumas das mulheres citadas na tese podem ser vistas. As histórias de Abigail e Julieta surgiram de uma intensa pesquisa feita nos dicionários artísticos brasileiros e em catálogos e documen88 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
tos da Academia Imperial de Belas-Artes, que, com o advento da República, transformou-se em Escola Nacional de Belas-Artes. "Minha curiosidade sobre o assunto foi decorrente da observação de que, a despeito de os dois maiores nomes das artes plásticas do Modernismo serem femininos (Tarsila do Amaral e Anita Malfatti), não se ouve falar de pintoras mulheres anteriores a elas", explica Ana Paula. "Comecei a indagar se essas modernistas teriam vindo do nada", continua. Academia Imperial - Em uma pesquisa preliminar nos principais dicionários artísticos, Ana Paula encontrou 91 nomes de mulheres que atuaram como artistas plásticas entre 1840 e 1922. Quando passou a estudar os catálogos das exposições da Academia Imperial, no intuito de focar seu trabalho na mais importante instituição artística do Império, o número subiu para 212, apenas entre os anos de 1844 e 1922. De fato, as modernistas não tinham vindo do nada. O que a nova cifi-a mostrou, também, é que muitas mulheres
No ateliê, tela de Berthe Worms: mulheres se impuseram como artistas
artes - o que não as impedia de inscrever seus trabalhos nas exposições anuais, daí um número tão grande de participantes da ala feminina desde 1844.
Tela de Abigail de Andrade, também chamada de No ateliê: família apagou marcas da pintora
foram excluídas dos registros históricos (os dicionários). Daí, possivelmente, pouco ou nada ter se ouvido de outros nomes femininos antes de Tarsila e Anita. "Na medida em que o foco da pesquisa passou a ser a Academia, uma série de recortes se impôs sobre o assunto", conta Ana Paula. Por exemplo, o conhecimento do trabalho dessas artistas teve de se limitar às modalidades aceitas pela instituição - a pintura e a escultura. Também se estabeleceu um recorte geográfico, uma vez que a maior parte das artistas que expuseram na Academia Imperial era proveniente do Rio de Janeiro e de São Paulo. Conforme a pesquisa avançou, Ana Paula percebeu que seria impossível dissociar a história das artistas brasileiras do final do Império e início da República da história da educação feminina. Se por um lado as meninas eram treinadas para as prendas do lar nas instituições do ensino formal, por outro foram proibidas, até a proclamação da República, de se matricular em escolas de belas-
Modelo vivo - A proibição ocorria em razão do uso do modelo vivo nas disciplinas das belas-artes, herança da tradição francesa, a mesma que legara ao Rio de Janeiro a própria constituição da Academia Imperial. Essencial para o aprendizado das artes acadêmicas, o modelo vivo era considerado abusivo para a educação e a moral das moçoilas. O que levou, então, tantas mulheres a exporem na Academia Imperial, se essa lhes foi interditada até o final do Império? Ana Paula mostra que diversos outros espaços permitiram o aprendizado das artes pelas mulheres, apesar de tantos fatores contra seu desenvolvimento criador - as atribuições domésticas, o distanciamento oficial dos estudos. "Um espaço importante foi o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro", observa a pesquisadora. "Desde 1881 as mulheres puderam se matricular no Liceu, onde não havia o uso de modelo vivo" conta. "O perfil da instituição, porém, era menos ligado às belas-artes e mais voltado à atividade artesã elas aprendiam a datilografar, por exemplo." Também os ateliês particulares fizeram muito sucesso no Rio de Janeiro. O mais famoso. PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 89
Sessão do Conselho de Estado, obra de Georgina Albuquerque, de 1922
dos irmãos Rodolfo e Henrique Bernardelli, rendeu boas cifras aos proprietários, multiplicando também a notoriedade deles, principalmente a de Rodolfo, que foi diretor da Academia Imperial.
cesto de compra. Sua participação no Salão Imperial foi comentada por Gonzaga Duque, importante crítico de arte da época, que não poupou elogios: "Ela é uma artista mesmo, direi uma grande artista que se deve esperar". Gonzaga, pertencente ao grupo dos que consideravam amadoras as artistas mulheres em geral, via em Abigail uma verdadeira profissional: "Fez da pintura sua profissão, não como outras, que, acercadas dos mesmos cuidados paternais, aprendem unicamente a artezinha colegial".
Muitas artistas da época aprenderam seu ofício no ambiente familiar, com pais, outros parentes, maridos e amantes. Abigail de Andrade, primeira protagonista dessa história, foi uma delas. Por sua causa o estudo desenvolvido por Ana Paula tem o marco inicial em 1884 Mestre particular - Um escândalo para a e não nos anos 1840, época sobre a qual a época, porém, fez com que a história de Abipesquisadora já tinha alguns indícios. "Em gail fosse apagada por sua própria família. A 1884 foi realizada a última mostra do Impéartista tornou-se amante de Ângelo Agostirio - nos anos seguintes, devido à crise vivida ni, importante artista e ilustrador, seu mestre pelo regime, não havia particular. O romance dinheiro para a realizacom o homem casado O PROJETO ção de salões de arte", gerou uma filha, Anconta a pesquisadora. gelina Agostini. O casal Profissão artista: pintoras e escultoras brasileiras Pois naquele ano, chegou a fugir para entre 1884 e 1922 Abigail de Andrade, oriParis, onde surgiu a ginária de Vassouras, no segunda gravidez. O MODALIDADE interior do Rio de Janeibebê morreu, porém, Bolsa de Doutorado (FAPESP) ro, foi a única mulher a um pouco antes de a COORDENADOR receber medalha de oumãe também sucumSéRGIO MiCEU-FFLCH/USP ro por quatro telas no bir. "A história causou Salão Imperial, ao lado tamanho escândalo no BOLSISTA de três pintores. Entre Rio de Janeiro que a ANA PAULA SIMIONI FFLCH/USP as telas, Meu ateliê e Um própria família tratou 90 • OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
de não deixar para a posteridade as marcas de Abigail", comenta Ana Paula. Outra alternativa para o aprendizado das artes era viajar a Paris e freqüentar a Academie Julien, um dos principais pólos de artes, que recebia inúmeras estudantes estrangeiras. Foi lá que Julieta de França estudou, assim como no Instituto Rodin. Sua história também caiu no esquecimento, dessa vez não por um motivo amoroso, mas político. A pós viver cinco anos em Paris, Juj^L lieta voltou ao Rio de Janeiro, em / ^^ 1907, e inscreveu-se em um con/—^k curso para um Monumento à / m Repúljlica. Não venceu, mas também não se convenceu da não validade de sua obra. Retornou a Paris e apresentou o trabalho a diversos artistas, tendo obtido pareceres positivos de diversos deles, inclusive de Auguste Rodin. Com os atestados em mãos, bateu de novo nas portas da Academia de Belas-Artes, então chefiada por Rodolfo Bernardelli, o mesmo que rechaçara sua obra. Curiosamente, Julieta desapareceu dos circuitos artísticos cariocas, provavelmente por ter desafiado, com sua chancela parisiense, um dos artistas mais poderosos da República. Outro caso interessante foi o de Georgina Albuquerque, a mulher que marca o final do período escolhido por Ana Paula. Em 1922, ela foi a primeira artista a apresentar uma
tela no gênero pintura de história, o mais nobre do academicismo, ainda que nesse período o gênero já estivesse em desuso. Não só o gênero, mas também o conteúdo chamaram a atenção. Trata-se de uma cena em que a Princesa Leopoldina chefia uma reunião do Conselho do Estado, em homenagem ao centenário da Independência. "Embora essa obra tenha sido apresentada em um período já de declínio do academicismo, ainda assim Georgina ganhou notoriedade por produzir uma cena histórica", comenta Ana Paula. A análise das diversas circunstâncias educacionais e as narrativas sobre algumas artistas - vale lembrar ainda Berthe Worms e Nicolina Vaz de Assis - fazem da tese de Ana Paula um curioso caminho para a compreensão de como as mulheres artistas, consideradas amadoras no Império, tiveram de ser aceitas por suas atividades profissionais com o tempo. "Muitas delas se sustentaram e sustentaram suas famílias por meio da arte, principalmente no Rio de Janeiro", conta a pesquisadora. "Com a tese, espero ter demonstrado que, entre os escritos de Félix Ferreira, assentados em uma tradição, por sinal internacional, de estereotipar a produção feminina como tipicamente amadora, e a publicação de Paranóia e mistificação, onde Monteiro Lobato escrutinava a obra de Anita Malfatti como a de uma profissional, muita coisa já havia mudado no campo artístico", encerra. •
Manhã de sol, de Georgina de Albuquerque (á esq.), e Auto-retrato, de Berthe Worms
PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 91
I HUMANIDADES
COMUNICAÇÃO VISUAL
O corpo como ficção Pós-doutorado sobre antropologia corporal é feito na forma de site JOANA MONTELEONE
A primeira página do site Opus /% Corpus (www.opuscorpus. /^^ incubadora.fapesp.br), cuÊ ^ jo desenvolvimento con^L ^^ tou com o apoio da FAPESP, abre com a imagem de um ovo rodeado por cabelos dourados. Com um clique no mouse você quebra a casca do ovo e o homem renascentista aparece em sua plenitude. "Eu queria começar com um óvulo humano", diz Stéphane Malysse, pesquisador que fez do site o seu pós-doutoramento em multimeios e artes no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "No final achei que um ovo de galinha num ninho de cabelo humano loiro iria despertar mais curiosidade. Ao mesmo tempo, seria uma metáfora da visão do corpo como ficção cultural." A idéia de fazer um pós-doutoramento cujo resultado seria veiculado 92 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 104
num site incentivou Malysse a ir mais longe, cruzando referências bibliográficas com a própria pesquisa, procurando sons e imagens para passar sua idéia. "Com a Internet ficou fácil escrever com imagens", diz o pesquisador. Como todo o trabalho é baseado numa antropologia visual do corpo, o resultado é uma colagem caleidoscópica de textos, sons e imagens. Para montar esse quebra-cabeça visual, Malysse utilizou os conceitos do filósofo francês Gaston Bachelard. "O amor é a primeira hipótese científica para explicar a reprodução objetiva do fogo e, antes de ser o filho da madeira, o O PROJETO wviiw.corpus.com: banco de conhecimento sobre o corpo MODALIDADE Bolsa de Pós-doutoramento SUPERVISOR ETIENNE SAMAIN - Instituto de Artes/Unicamp
BOLSISTA STéPHANE MALYSSE
de Artes/Unicamp
- Instituto
fogo é o filho do homem", escreve Bachelard num trecho utilizado na seção "fogo" do site. "Entrando no Opus Corpus aparece o Mundo Corpus, o mundo visto como uma multidão dos trópicos do corpo, como a proliferação das representações antropológicas do corpo." O contato de Malysse com a antropologia visual e corporal começou em seu país de origem, a França, onde estudou a higiene corporal da classe média em Paris. "Foi aí que entendi que a antropologia do corpo e a antropologia visual estavam intimamente ligadas, pois o corpo era vivido como uma imagem, como uma projeção." Esse foi o ponto de partida para que ele começasse a recolher imagens, textos e referências sobre o assunto. Já no Brasil, Malysse estudou a cultura das academias no Rio de Janeiro. E o resultado desses anos de pesquisa é o site Opus Corpus. "A relação entre corpo, arte e ciência é infinita. Matéria-prima da arte ao longo dos séculos, o corpo nunca deixou de ser reinventado pelas artes. Do lado das ciências humanas, o corpo se tornou também um foco privilegiado para estudar as diferenças culturais", conclui o pesquisador. •
LIVROS
Missionários de uma utopia nacional-popular:
m^m
o terceiro olho:
os intelectuais e o Departamento de Cultura de São Paulo
ensaios de cinema e vídeo (Mário Peixoto, Glauber Rocha e Júlio Bressane)
Roberto Barbato Jr. Annablutne/FAPESP 216 páginas/R$25,00
Francisco Elinaldo Teixeira Perspectiva/FAPESP 161 páginas / R$ 23,00
Esse estudo recupera uma das mais ambiciosas gestões culturais da cidade de São Paulo, entre 1935 e 1938, quando o Departamento de Cultura foi dirigido por Mário de Andrade. Foi uma iniciativa corajosa e pioneira que pretendia colocar em prática antigos ideais do movimento modernista na construção da nacionalidade brasileira e na ampliação do acesso dos excluídos aos bens culturais. Annablume (11) 212-6764 www.annablume.com.br
IVIatéria e consciência:
Indo na contramão da dinheirama gasta nas grandes produções norte-americanas, o livro de Francisco Teixeira reúne três exemplos de como a falta de dinheiro e os obstáculos materiais não foram empecilho para que Mário Peixoto, Glauber Rocha e Júlio Bressane pudessem realizar grandes obras. Segundo o autor, eles são prova da potente vontade estética desses criadores que foram além da "arte culinária". Editora Perspectiva (11) 3885-8338 www.editoraperspectiva.com.br
uma introdução contemporânea à filosofia da mente
Biotecnologia e meio ambiente
Paul Churchiand Unesp 287 páginas / R$ 36,00
Aluízio Borém UFV / Editora Folha de Viçosa 425 páginas / R$ 25,00
O autor defende, em linguagem acessível, que alguns dos grandes dilemas filosóficos só serão resolvidos em acordo com o progresso empírico da ciência cognitiva. Para ele, nesse contexto, será fundamental a análise de como se dará o desenvolvimento da inteligência artificial, a neurociência e a etologia. Churchiand também dá a sua visão sobre o dualismo, o materialismo e sobre o funcionamento da mente.
O autor preconiza que o receio da sociedade brasileira sobre os produtos da biotecnologia não passa de mera falta de informação. E é isso a que se propõe esse estudo que discute a fundo a relação, ainda pouco explorada, entre biotecnologia e ambiente. Segundo ele, é impossível a conservação e a sustentação da biodiversidade sem o auxílio da biotecnologia.
Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br
UFV / Editora Folha de Viçosa (31) 3899-1163 www.borem@ufv.br
Cacos de infância:
Aids: prevenção porta a porta
teatro da solidão compartilhada
Construindo histórias de prevenção ao HIV/Aids no programa saúde da família da cidade de São Paulo
IVlarina Marcondes IVlachado Annablume/FAPESP 130 páginas / R$ 23,00
^«fii^aeiílS Iíj;m-nçi.p-«.,-m
IVlaria Eugênia Lemos Fernandes, isamara Gouveia, entre outros ^^•%^> Hucitec •"-—~ J 221 páginas / R$ 30,00
•SSE^5:L'5S:3S
Um estudo dos mais intrigantes e curiosos: a autora, diretora de teatro, descreve como foi todo o processo de criação de uma peça, batizada como "teatro de câmara". Cacos de infância, que foi apresentada apenas quatro vezes em 2000, com duração de meia hora. O princípio era justamente o da efemeridade da poesia, a labuta para criar e ver o tempo levar como uma "bagagem de areia". O resultado é fascinante de ler.
O projeto divulgado nesse livro (também disponível em uma versão em inglês) pretende trazer uma importante contribuição sobre as formas de conter o avanço da epidemia da Aids por meio da democratização dos processos de disseminação de informações ao púbHco. São vários artigos escritos por especialistas.
Annablume (11) 212-6764 www.annablume.com.br
Editora Hucitec (11) 3060-9273 w/ww.hucitec.com.br PESOUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 93
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CLASSIFICADOS
Pesquisa Ciência e Tecnologia % no Brasil
I Simpósio Internacional de Ciências Integradas Unaerp Campus Guarujá
24 a 26 de novembro 2004
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"MEIO AMBIENTE SUSTENTÁVEL"
Envio de trabalhos até 29/10/2004
Inscrições abertas Informações [13)3398-1076 simposio@unaerp.br http://sici2004.unaerp.br
UNABtP Campus Guanili
Av. Dom Pedro I, 3.300 - Praia da Enseada CEP 11.4400Ü3 - Guarujá - SP
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L N L 5 Laboratório Nacional de Luz Síncrotron Operado pela ABTLuS para o Ministério da Ciência e Tecnologia / CNPq
POSIÇÕES DE PESQUISADORES E PÓS-DOUTORES O Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) está expandindo o quadro de pesquisadores. As pessoas com as qualificações descritas a seguir estão convidadas a envirem currículo para consideração para posição de pesquisadores da instituição e para pesquisadores visitantes: PESQUISADORES (código RSCR-SYN) com experiência em nível de pós-doutorado em uma das seguintes áreas: radiação síncrotron, especialmente em espalhamento e/ou espectroscopia de raios-X, espectroscopia de ultravioleta e física/química de superfícies. Cientistas e engenheiros interessados no desenvolvimento de dispositivos de inserção, instrumentação em luz síncrotron, microfabricação e fontes de luz síncrotron. CANDIDATOS A PÓS-DOUTORADO (código PDOC-SYN) com experiência em pesquisas com luz síncrotron, assim como candidatos sem experiência na área, mas com currículo excepcional, que queiram atuar nas áreas acima citadas. PESQUISADORES (código RSCR-BIO) com experiência em nível de pós-doutorado em uma das seguintes áreas: ressonância magnética nuclear de proteínas e peptídeos, desenho racional de medicamentos, química de proteínas, modelagem molecular, cristalografia e biologia molecular CANDIDATOS A PÓS-DOUTORADO (código PDOC-BIO) nas áreas acima citadas. O Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), localizado em Campinas, Estado de São Paulo, oferece ambiente científico intelectual estimulante e instalações de alto nível. Espera-se candidatos com números expressivos em pesquisa científica e/ou tecnológica. A data-limite para envio de currículo é 30 de novembro de 2004.0 código da vaga pretendida deve ser mencionado no currículo e no envelope com a documentação a ser enviada ao LNLS. Envie currículo, lista de publicações e o nome de três referências para: Diretor-GeraldoLNLS Caixa Postai 6192, CEP 13084-971, Campinas, SP E-mail: research@lnis.br
PESQUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 • 95
A homenagem IVANA ARRUDA LEITE
De terno e gravata olhei-me no espelho. O modelo devia estar completamente fora de moda, mas achei desnecessário comprar outro. Era a primeira vez, e provavelmente a última, que eu receberia uma homenagem na vida. Observava os fios de cabelos brancos que surgiam nas têmporas, os olhos cercados por rugas que se abriam em afluentes pela face toda, o nariz que me emprestava um ar de ave de rapina. Nunca tive nariz tão faminto. Minha boca, que sempre me pareceu o melhor de mim, tornou-se uma boca torta. Tenho um ar de paspalho quando dou risada. Excedo o que se chama homem de baixa estatura, mas não alcanço os altos. Médio. Ao cubo ou ao quadrado, sempre médio. A barriga sim, esta se avantaja pelo hábito de trabalhar sentado dezessete horas por dia. Saí de casa com bastante antecedência. Sempre tive obsessão por pontualidade. Antes de ir a qualquer lugar faço o cálculo minucioso de tudo que pode me acontecer no caminho, escolho duas ou três possibilidades, somo o tempo gasto com cada uma, diminuo da hora que devo chegar, acrescento dez minutos por precaução e, de posse de todos estes dados, vejo a hora que devo sair. Mas esta mania, longe de ser algo que me honre perante as pessoas, incomoda-as profundamente. Eu sempre já estou quando elas ainda não chegaram. Eu me sentia ridículo sentado no carro estacionado em frente ao lugar marcado para a homenagem. Os portões nem estavam abertos. E se alguém me reconhecesse? Aquele não é o homenageado? É sim, está ali há horas, até já tirou um cochilo. Não, não é assim que se comporta um homenageado. As pessoas jamais prestariam homenagem a quem estivesse tão ansioso por ela. Liguei o carro e fui esperar no quarteirão de baixo. Talvez tudo seja um terrível engano. Nunca fui uma pessoa brilhante. Apenas cumpri a vida com empenho e dedicação. Não sou dos tais que têm estrela na testa. Por isso a sensação de estar no lugar errado. Jamais alguém se apaixonou por mim. Depois de fumar o terceiro cigarro, liguei o carro e voltei ao lugar marcado para a homenagem. Na rua não havia mais onde estacionar. Talvez houvesse uma vaga reservada ao homenageado, mas como fazer? Perguntar onde é a vaga do homenageado? E se eles me dissessem: meu senhor, a vaga do homenageado é só para o homenageado. O que eu diria? Eu sou o homenageado? Resolvi ir até o estacionamento da esquina. A vergonha e o medo de ser visto faziam com que eu me afundasse no assento do carro. O homem do estacionamento falava, falava, sem que eu ouvisse uma palavra. Que estranha língua falava aquele homem? Qual a ordem que me dava? O que eu fiz para merecer tamanha repreensão de um guardador de veículos? Tudo tão difícil, tão complicado. — O senhor pode descer que eu levo o carro lá pra dentro. Por que ele falava comigo daquela maneira? Eu sou o homenageado! 96 • OUTUBRO DE 2004 ■ PESOUISA FAPESP 104
Saí triste do carro e coloquei no bolso o tíquete que me foi entregue. Não, não é assim que os homenageados se comportam. Sempre tive inveja dos que agem no mundo como se estivessem na própria casa. Eu, ao contrário, vivo sob constante ameaça, gargalhada prestes a explodir. Na faculdade posso ser visto no café, na sala de reuniões, sempre concordando com todos, sorrindo meu sorriso torto, mas isto me custa um enorme sacrifício. Chego a ter pesadelos. Um grupo de alunos me pendura numa árvore e me deixa lá, exposto, até que chega um bando de gaviões e começam a me devorar, sempre pela garganta. Atravessei a rua e entrei no saguão pela porta principal. Minha roupa me parecia ridícula. Um pano preto e malcheiroso cobrindo a pele e um pênis murcho, listrado de vermelho, dormindo no meu peito. A gargalhada explodiria a qualquer momento, eu tinha certeza. Misturei-me à multidão e caminhei pelo corredor lateral. No palco, uma imensa toalha de renda escondia o cadafalso. No centro, a minha cadeira, maior de todas. Ao lado, mais modesta, a do verdugo. Como provar-lhes minha inocência? Sobre a mesa, muitas garrafas de água. Quem teria tanta sede? Os organizadores do evento andavam de um lado para o outro, acendiam luzes, testavam microfones. O que fazer? Perguntar-lhes qual o lugar do homenageado? Eles me diriam que o lugar do homenageado estava reservado ao homenageado. Como provar-lhes que eu era o próprio? Talvez me pedissem carteira de identidade, eu estaria com ela no bolso? Talvez a identidade não fosse suficiente e eles me pedissem alguma outra prova: grafológica, datiloscópica, psicológica. Subi vacilante a escada e atravessei o palco em direção a um grupo de garotas que estava na outra ponta. Cumprimentei-as timidamente. Minha voz era inaudível, tenho certeza. Eu estava completamente oco por dentro. Um professor oco com um zumbido no ouvido. Fiz com a cabeça um gesto concordando não sei com quê e, pedindo licença não sei a quem, voltei à escada por onde havia subido. Minha boca devia estar mais torta que nunca. Me sentindo cada vez menor naquela roupa imensa, saí do salão e caminhei até o estacionamento. Com as mãos suadas e trêmulas procurei desesperado o tíquete do estacionamento.
IVANA ARRUDA LEITE, escritora e socióloga, é autora dos livros Falo de mulher e Eu te darei o céu. PESaUISA FAPESP 104 ■ OUTUBRO DE 2004 ■ 97
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A gente quer saber até onde você vai por petróleo.
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Prêmio Petrobras de Tecnologia
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A Petrobras sempre foi reconhecida por seu pioneirismo e pelo desenvolvifnento da mais aita tecnologia. Agora chegou a sua vez. Em parceria com o CNPq. .8 Petrobras está realizando o Prêmio Petrobras de Tecnologia um prêmio que busca o aprimoramento tecnológico e a descoberta de novos talentos nas universidades. Participe, além do grande prêmio, você pode ter o seu projeto reconhecido pelo maior centro de pesquisas da América Latina, o Centro de Pesquisas da Petrobras.
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As categorias. Gás \ Exploração í Recuperação de Petróleo ; Produção ., Refino e Petroquímica Transporte de Petróleo e Derivados Produtos Energia ;" Segurança Operacional e ' Preservação Ambiental .j
Inscrições de 24 de setembro/2004 a 23 de março/2005 Acesse o regulamento pelo site www.petrobras.com.br
PETROBRAS o DESAFIO E A NOSSA ENERGIA
Ministério de Minas e Energia
TropiNef.org
A conexão entre as dosnças tropicais e seus pesquisadores. Se você faz parte da comunidade médica e científica e tem interesse em compartilhar experiências e informações sobre as doenças tropicais, já existe um espaço virtual que pode transformar esta conexão em mais um passo para solucionar o problema. TropiNet™ é uma rede que pode conectar pesquisadores de todo Brasil envolvidos com o tema. Uma proposta de responsabilidade social da Novartis que valoriza o trabalho de profissionais como você. Acesse o site v/ww.tropinet.org
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NOVARTIS