Escrita autobiográfica

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Não me lembro bem quando comecei a dançar,mas minha mãe dançava muito dentro de casa. Era começar uma música nos programas de tevê de domingo que ela se levantava e dançava, um pouco como se via, um pouco como criava. Essa é uma lembrança forte dos momentos que passava com a minha mãe. Minha avó paterna, com quem tive convivência mais próxima, era forrozeira. Não tive muitas oportunidades de vê-la dançando, mas muito confabulei por meio de suas histórias. Ela teria conhecido meu avô no forró, ocasião em que rompeu seu compromisso com outro rapazote, se lançando em uma jornada novelesca que deu origem a minha família. Meu pai sempre gostou de dançar, mas restringia esse gosto aos momentos ditos adequados, como festas de família. Em algum momento minha mãe tomou a iniciativa de me matricular em aulas de dança. Jazz para ser mais específica. Não me lembro naquele momento se eu escolhi a modalidade, ou era o que tinha disponível, uma vez que a cidadela em que morava não comportava turmas de dança com mais de cinco alunos. Sei que formei uma ideia de que ballet clássico era lento demais, em desalinho a minha personalidade, afirmação refutada com veemência pelo meu segundo e mais emblemático mestre Toninho. Ele era um homem, casado e com filhos, branco, magro alto e de cabelos escuros, que não me amedrontava. Queria saber por onde anda Toninho. Toninho com formação clássica, mas apto a diversos outros ritmos, viu em mim um potencial que o levou a ensinar-me as técnicas clássicas infiltradas entre os passos de jazz. Levei muitos anos para entender Toninho. Tive oportunidade de, a partir de seus conhecimentos, ter uma iniciação nas danças de salão, que treinavamos onde dava, em qualquer sala de academia vazia que abrissem para nós. Foi a primeira relação mestre discípulo que me lembro de viver, de um respeito e troca incríveis. Caminhei muito sob o sol pela cidade atrás da dança que infelizmente não estava assim tão disponível, e que em dado momento pareceu completamente indisponível. Toninho havia se mudado. Não havia espaço para suas propostas na cidade. Hoje compreendo os esforços que ele fazia naquela época para viver do que amava. E de repente não havia mais espaço para estudar dança. Logo se formou um grupo embalado pela moda do forró universitário, ao qual logo me juntei. Do tipo efêmero? Sim. Mas ainda assim um respiro. Até aí já estava com 16 anos, planejando minha mudança para ingressar na graduação em uma cidade maior onde poderia estudar (também) a dança. E assim o fiz. No dia do meu aniversário de 18 anos eu estava me matriculando no curso de design na UNESP em Bauru. Estava sozinha? Não, estava livre. Só não sabia ainda quanto custava a liberdade.


Minha vó não escrevia senão o próprio nome, que só no papel era seu. Dona Leopoldina. Apenas os viajantes que lhe traziam mercadoria para revender e recebiam seus cheques a identificavam assim. Leopoldina. Minha vó não escrevia, mas fazia conta. A calculadora era só pra confirmar os descontos que aqueles senhores arbitrariamente lhe ofereciam para ficar com uma peça a mais. Mas ela mesmo, nem precisava. O cheiro do quartinho das roupas eu ainda sinto quando visto aquelas peças que herdei, etiquetadas com CRM dos fabricantes até o final do século passado. Eu via pequenos rascunhos com números a caneta por toda parte. Parecia algo como uma sinalização. Papéis sujos da terra roxa, colados com durex como um código que só ela mesmo entendia. Meu pai não só escrevia como desenhava. Ele adorava fazer esboços e esquemas lógicos, por que apesar de ter frequentado até a quarta série, se gabava por suas altas habilidades, em especial com os números, Curiosamente minha mãe também fazia seus traçados. Às vezes rabiscava um croqui ou outro para costura. Mas todos esses traços se perdiam entre os movimentos frenéticos do dia, se tornando um plano de fundo muito distante da realidade que moldou nossa história. Para mim, o desenho se tornou o principal instrumento de manutenção da sanidade em um contexto afetivamente muito árido. Desenhava, enlouquecidamente e sem fazer conta, no verso das notas que eram dispensadas como rascunho da loja do meu pai. Me lembro de buscar as folhas cujas impressões eram pálidas, para que o conteúdo não se emaranhassem aos traços do outro lado. Mas de certa forma eu gostava das particularidades de cada folha fina impressa em tinta cinza azulada. Por vezes desenhava nas áreas de respiro entre um endereço e a descrição de um amortecedor dianteiro. Não havia apego. os desenhos eram descartados tão logo eram concluídos. Me lembro das palmeiras palavras, ainda na pré-escola: bola bolo lobo Seguidos de um longo PARABÉNS, gravado, por sua vez, pelas mãos da professora. O texto era restrito à escola. Os livros em casa tinham o mesmo status dos cigarros do meu pai; eram vistos vez ou outra, mas não se usavam dentro de casa. A palavra escrita transpôs o contexto escolar junto com o meu desassossego. Era comum meninas ganharem de presente diários com chave para registrar suas memórias. Ali a escrita passou a dividir espaço (e páginas) com os desenhos contando parcialidades das minhas vivências pré adolescente.


Uma das primeiras coisas que fiz quando cheguei na cidade foi procurar uma escola de dança. Ainda não sabia que elas não me cabiam. Os preços eram muito altos e meus pais me forneciam o mínimo para subsistência. Comecei a sentir ali que a dança talvez não fosse mesmo para qualquer um. Me lembro como se fosse hoje, a recusa do meu pai em me pagar aulas de dança, pois: até aqui paguei por todas as coisas que você quis aprender agora é por sua conta. No primeiro ano da faculdade eu consegui um estágio que me possibilitava pagar por aulas, mas me impossibilitava fazê-las. O estágio foi muito importante como pontapé inicial em minha carreira profissional. A gerente do setor de projetos, Márcia era uma mulher forte, muito inteligente, e que me ensinou muito sobre conduta profissional. Me lembro bem de como ela era firme diante de um time de homens encarregados, porém sem esconder sua vulnerabilidade e questões enquanto mãe. Porém, inviabilizava a dança. Entre as oito horas e meia diárias de estágio, e as quatro horas de faculdade de segunda a sábado, me sobrava apenas a madrugada, horário em que não haviam aulas disponíveis. Frustrada, mas sem tempo para lamentar, segui este primeiro ano esgotada, dançando apenas no tapete de um videogame ultrapassado que meus irmãos dispensaram. No segundo ano abandonei o estágio e consegui uma bolsa na faculdade. A remuneração era inferior, mas pelo menos me possibilitava fazer aulas. E fiz todas que pude. Ali percebi um primeiro incômodo em relação às escolas de dança: o espetáculo como finalidade maior das aulas. Em dado momento as práticas davam lugar aos ensaios, e tudo se tornava muito repetitivo e enfadonho. Foi nesta época que conheci meu marido. Sua mãe, artista plástica, atriz e bailaora, viria a se tornar uma das minhas maiores referências nas artes. Ela estava, junto com uma professora de dança, produzindo um espetáculo, e, conhecendo meu histórico com dança, me convidou para participar como bailarina. Por sua via pude ter contato com novos estilos como flamenco e sapateado, porém mais importante que isso, pude trabalhar ativamente em uma produção. Dentro das minhas limitações, ainda no comecinho da minha formação acadêmica, criei o cenário deste espetáculo. Bom? Não. Teve seus méritos, mas era ainda bastante amador. Foi meu primeiro projeto dentro das artes cênicas. Além disso, muito a acompanhei nas produções do Teatro para cegos Santa Luzia1, grupo que ela dirigiu por vinte anos⁶, carregando e montando cenário, fazendo sonoplastia, manipulando bonecos, distribuindo lanche. Enfim, fazendo o que era preciso.

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DA SILVA, Rosa R. P. No palco: com os deficientes visuais. Canal 6, 2013


Por mais triste e pesado que pudesse ter sido meu dia, recheado de ofensas, abusos, e decepções, meus registros em sua grande maioria refletem um olhar otimista. A realidade já era pesada suficiente. Era como se eu pudesse re-configurar aquela realidade a partir dos escritos. As colagens tinham um espaço especial nas minhas tardes vazias. Como eu amo a sensação tátil da tesoura cortando uma página de revista. Passava as tardes assim, caçando figuras até a hora do toque de recolher, em que cada picote tina que ser resgatado rapidamente antes que minha mãe chegasse do trabalho. Ela não me repreenderia pela atividade, mas qualquer sobra de papel rendia umas boas broncas. Me lembro do tapete estampado, e da dificuldade de retirar os pequeníssimos recortes que surgiam dos contornos rebuscados. As brincadeiras começam a apontar para futuros

ofícios, como é comum na nossa

organização econômica. Os textos na escola renderam indicações para carreira jornalística, segundo o professor de redação. Os desenhos para o ramo das artes segundo a psicóloga da escola. Os elogios chegavam, o prazer se esvaía. << Salve dança!, por que dança, afinal, nem é profissão: logo ela é só minha.>> Críticas positivas geravam uma pressão insuportável, as negativas, uma insegurança paralisante. Tudo isso em meio a coleta de sucata para bricolagem, que me rendiam hostilidades de colegas nos corredores da escola. No ensino médio encontrei no guia de profissões uma opção que refletia um pouco desse tudo que eu queria ser. Um pouco artista, um pouco comunicadora, um pouco inventora. Desenhista Industrial. O nome não fazia bem jus a descrição (apesar de eu atuar há anos na indústria). Me dei conta que existia um profissional por trás de cada coisa com a qual convivemos, e que contitui de forma material a nossa realidade. Achei mágico. Comecei a ter que explicar para as pessoas aquilo que por determinação própria eu iria fazer da vida, em um tempo em que a profissão ainda era pouco conhecida. Meu pai me queria administradora. Mal sabia ele o quanto a minha profissão se aproximaria da função. Mas estava decidida: iria desenhar brinquedos. Foi o tema que guiou meus trabalhos em grande parte das disciplinas até o TCC. Ver as crianças se divertirem me parecia um bom propósito. Curiosamente, uma das minhas disciplinas preferidas na faculdade era filosofia. O professor indicou um dos livro que reconfigurou meus conceitos sobre a vida: O olhar da Mente, de Oliver Sacks1 (2010). Nele Oliver Sacks conta vários casos de pacientes com problemas de visão, que põe em cheque nossas noções do que é real. Considero essa referência importante porque pela primeira vez eu estava colocando minhas certezas em cheque.

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SACKS, Oliver. O olhar da mente. Editora Companhia das Letras, 2010.


Já formada e empregada tinha finalmente estabilidade e tempo para me dedicar a dança, e o fiz. Tive o privilégio de aprender uns meses com Doris, filha de Ruth Nham, responsável pela primeira escola da cidade, Homenageada com o prêmio “Anna Pavlova” como uma das cinco melhores bailarinas do Brasil. Gostava muito de ouvir suas histórias, mas também sentia muito pela desvalorização de uma carreira tão bonita, haja vista a extinção da escola de sua mãe após sua aposentadoria devido a falta de recursos da família. Me formei em Ballet clássico, e segui me envolvendo com a produção dos eventos da escola, criando inclusive os cartazes dos eventos anuais. Uma das condições para a graduação no ballet era desenvolver um workshop, que me levou a minha primeira pesquisa teórica no campo. Meu trabalho foi pautado em Martha Graam. Estava encantada com suas teorias sobre respirações e espirais, que viriam me encontrar futuramente na formação como instrutora de Yoga. Na época segui estudando outros estilos de dança como dança do ventre em diversos workshops e breaking na Casa do Hip Hop, onde me deparei com outra realidade dançada (mas igualmente pouco remunerada). Porém, como trabalhava paralelamente na indústria, um ambiente majoritariamente masculino, evitava tornar pública essa minha vivência na dança. Neguei diversas propostas profissionais na dança, até porque, além da exposição, pagava-se muito mal. Me lembro quando comprei itens de dança do ventre de uma menina que se queixou de oito anos de investimento na dança sem retorno (além das aulas, os figurinos são caríssimos). Dancei uma vez no especial de Natal da Xuxa, sob justificativa de estar anônima. Fui a cor violeta do arco íris, número em que entrava fazendo movimentos de ballet exibindo uma linha fita de cetim, que segundo o produtor Fly deveria aparecer mais que eu. Ali pude acompanhar de perto uma grande produção, bem como a baixa remuneração. As coisas começaram a mudar quando engravidei. Na verdade, pouco antes eu já estava em uma crise e existencial, embalada por leituras de Jung, que me levou a fazer uma viagem solo para Imbassaí, no “Encontro de Danças do Mundo”. Sem saber, viajei grávida de 10 dias. Foi uma viagem muito maluca, de transformações profundas, que me abriu para um outro nível de consciência. Ali conheci grandes mestres da dança como Maria Esperança, Elsa e Gusztàv Balàzs, Rana Gorgani e Rosangela Silvestre. Voltei com um outro olhar sobre mim mesma. As atenções que eu sempre dediquei ao exterior, se voltaram para mim e meu filho. Tive que aprender a dizer alguns nãos. E as pessoas não gostam muito disso. Assim, fui me isolando de certa maneira, como a lagarta em um casulo durante o puerpério. Não havia outra opção. Minha cabeça sofria com lapsos de memória. Na época eu havia acabado de ingressar no doutorado , dava aulas na faculdade, em uma escola de dança e em uma ong, além dos projetos de design industrial que nunca pararam. Precisei parar com tudo que não fosse essencial, e passei a estudar dança apenas nas ferias.


No segundo ano da faculdade conheci meu marido. Um entre os professores mais respeitados da faculdade, meu sogro, José Carlos Plácido, foi o primeiro designer professor Titular do país, e fundou o segundo curso lato sensu em design no Brasil2. Seu sucesso na carreira acadêmica inspirou meu marido João, hoje professor na Universidade Federal de Uberlândia. Meu foco era no mercado. Trabalhei na indústria por cinco anos depois da faculdade, construindo uma carreira como designer de produtos. Iniciei como designer de produtos para paisagismo, que me levou a participar de feiras e exposições como a Casa Cor. Segui fazendo cursos que complementavam minha formação, como gerenciamento de projeto, auditor ISO 9001 e Coolhunter. Esse último foi um curso muito importante. Era uma proposta nova na época, do Senac SP, com currículo ainda frágil, porém que me colocou em contato com certo professor que me introduziu a uma das minhas grandes referências: Carl Jung3. O professor era um especialista em Jung, e me deixava extremamente entusiasmada durante suas falas. Apesar de parecer um pouco fora de contexto neste momento, este contato com Jung foi o fio que me levou a assumir meu caráter artístico. Comecei em dado momento a sentir muita falta do ambiente acadêmico, onde os assuntos eram outros, distintos da vida trivial. Incentivada pelo meu sogro ingressei no curso de mestrado em Design da Unesp de Bauru. No mestrado tratei de objetos cotidianos que são adotados pelas crianças para uso lúdico, e parte da pesquisa aconteceu dentro de uma sala de aula de ensino infantil. Comecei a refletir sobre as dificuldades que os professores encontram diante da falta de recursos institucionais, e como meus conhecimentos em design poderiam contribuir em sua atuação. Me aproximei de temas como Design Thinking4, Design Estratégico5 e Gestão em design6, que aproximam o design de campos mais distantes da produção industrial e digital, e que são base da minha atual investigação.

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DA SILVA, José Carlos Plácido. A pós-graduação em Design no interior paulista–o Programa de Pós-graduação da UNESP–campus de Bauru. Estudos em Design, v. 22, n. 3, p. 13-36, 2014. 3 JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos. HarperCollins Brasil, 2016. 4 SILVA, Mauricio et al. Design Thinking. Inovação em, 2012. 5 DE MELLO FREIRE, Karine; UNISINOS, PPG Design. Design estratégico: origens e desdobramentos. Blucher Design Proceedings, v. 1, n. 4, p. 2815-2829, 2014. 6 DE FREITAS MARTINS, Rosane Fonseca; MERINO, Eugenio Andrés Diaz. A gestão de design como estratégia organizacional. Eduel, 2016.


No mais, dançava só. Comecei a participar de experiencias mais holísticas relacionadas a dança. Nesta época, a partir da indicação de uma facilitadora, comecei a ler Mulheres que correm com lobos, de Clarissa Pinkola Estés2. O devorei. Enquanto lia sobre la Chorona, me senti inundada por aquele rio poluído, de toda produção que fora interrompida pelas auto sabotagens. Textos escondidos, desenhos descartados, músicas nunca cantadas, e claro, a dança nunca exposta. Claro que eu dançava nos espetáculos, mas me recusava a convidar pessoas de fora daquele ambiente para me verem dançar. Ali decidi que isso precisava mudar. Abri um instagram (não via sentido em ter um até então), e comecei a compartilhar alguns estudos de acrobáticos que estava fazendo na época. Também havia prometido parar de dizer não para convites nas artes. E qual não foi minha surpresa quando uma amiga se ofereceu para vir treinar lira comigo. Em poucas semanas éramos dez. Assim, no meu quarto, começou um projeto que chamamos de Movimento Volitans. Volitans é o nome latim do peixe voador. Ele salta da água e plaina por metros, como se acessasse uma nova realidade. Éramos mulheres adultas, trabalhadoras, em corpos diversos. Perfil improvável para acrobatas, e grande inspiração para o nome. Ao final de um ano apresentamos “Volitans, 1o ato”. Ali eu produzi tudo. Aluguei o teatro, contratei luz e som, costurei os figurinos, editei as músicas, criei as coreografias, convidei outros artistas, desenvolvi os panfletos de programa, cenário, gestei a equipe, atuei, tudo. Eu não tinha ideia da dimensão do que eu estava fazendo. Todo o processo foi praticamente espontâneo. Talvez pela minha hiperatividade, talvez por ter crescido ajudando em uma família que amava produzir festas nos seus mínimos detalhes. Fizemos apresentação única, de 1 hora, em um teatro pequeno, apenas para convidados, já que era a primeira vez no palco para todas as participantes. Foi sensacional. Pessoas ficaram até o fim, assistindo em pé, devido a inúmeros penetras que apareceram. Fomos questionadas por fim por que não cobramos ingresso. A dona da única escola de circo da cidade me reverenciou pelo espetáculo e se ofereceu para me ajudar a participar de editais. Eu nunca tinha pensado em editais. Uma vez tentamos enviar um projeto na escola que trabalhava, mas era um edital fantasma, e frustradas, acabamos não insistindo na ideia. A Tatiana estava plantando ali uma semente que culminaria no presente trabalho sobre alternativas para viabilização da dança. Naquele evento os astros se alinharam de forma que eu pude, com pouca ajuda, produzir todo um espetáculo, com baixíssimo custo, bancado por pessoas ansiosas pela estreia na cena. Mas eu já havia assistido esse filme, e sabia que esse tipo de anseio não se sustenta. 2

ESTÉS, Clarissa Pinkola; BARCELOS, Waldeia. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. 1994.


Um fato interessante é que a dança nunca saiu da minha visão. Em 2017 me questionei se conseguiria ingressar em uma faculdade de dança a está altura. Prestei ENEM, sem pretensões, e fui aprovada na Universidade Federal de Viçosa. Estava em Bauru, com meu filho de dois anos, tinha um casamento, e um trabalho estável, o que frente aos meus princípios, me impossibilitava viver esse tipo de aventura. Uma veterana do curso me procurou, para propor uma dinâmica enquanto caloura. Diante da minha recusa ela ainda insistiu (fofa) se haveria algo que poderiam fazer para que eu fosse para Viçosa. Curiosamente na semana da matricula eu recebi um amigo, professor de física da UFV que me faria uma visita em que falavamos sobre a minha Tese de Doutorado. Contei a história para ele e ele disse: estou indo, vamos? Disse não. Mas concebi platonicamente uma realidade em que, nesse momento eu já estaria formada em Dança, trabalhando como coreógrafa em musicais no Rio de Janeiro. Não me doeu. Foi muito bom me sentir multiplicada em outros universos. Defendi a Tese com todos os transtornos que vieram junto com a pandemia, dentro do prazo, por que a vida atribulada me exigia uma organização impecável. Em pouco tempo surgiu a oportunidade de estarmos em Uberlândia, para fazer cumprir os objetivos profissionais do meu marido, e ali senti que poderia dar mais um passo em direção a dança. A pesquisa de mestrado que desenvolvo hoje talvez seja uma maneira que encontrei de imprimir no mundo minha história com a dança, que tanto reneguei, ou talvez uma forma de retribuir o muito que ela já me ofereceu.


No doutorado eu estava criando estratégias de design para serem utilizadas por professores da escola pública na criação de recursos pedagógicos auxiliares. Findo o doutorado chegando a Uberlândia, tive a oportunidade de fazer a disciplina de dança e tecnologia com o professor Ricardo Alvarenga, da graduação em dança. Ali me questionei se eu seria mais uma dançarina ou uma pesquisadora no campo da dança. Por fim me questionei se essa resposta mudaria alguma coisa. Enfim, entendi que a graduação não atenderia aos meus anseios, mas talvez o mestrado sim. E por que não seguir minha linha de pesquisa, porém agora me aproximando mais do ponto de vista do campo de cá? Busco entender como a dança poderia receber ferramentas do design estratégico para solucionar questões de viabilidade, tornando o trabalho na área mais produtivo e menos desgastante. Percebi que meu maior desafio é me fazer ser entendida. Mas na boa? Nenhuma novidade até aqui.


Lido com números na gestão, com desenho criativo no design, com a escrita na pesquisa, e tudo gerou uma profissional confusa mas curiosamente peculiar. Eu sempre criei em silêncio. A arte me deslocava do coletivo, e me permitia recriar uma realidade em que eu era inatingível. A experiência sempre tinha que ser boa, confortável, de prazer. Eu não danço o cotidiano. Eu danço no mesmo lugar que as estrelas. Não as de Hollywood, as do céu mesmo. Aquelas que carregam percepções, mistérios, interpretações, leituras diferentes, que se esgueiram entre as nuvens, que surgem quando bem entendem, mas que fisicamente são bolas de fogo. Eu não danço bolas de fogo. Eu danço estrelas. Escrevo estrelas, Desenho estrelas. (Quando posso)


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