HISTÓRIAS DA RUA DA BAHIA E DA CANTINA DO LUCAS
Brenda Silveira Luiz Otávio Horta
HISTÓRIAS DA RUA DA BAHIA E DA CANTINA DO LUCAS organização Brenda Silveira editor-colaborador Jeferson de Andrade co-editores Geraldo Magalhães Brenda Silveira pesquisa iconográfica Rua da Bahia Elder Mourão editoração André Vasconcelos edição Realizar Cine Vídeo & Idéias Ltda.
© Brenda Silveira / Luiz Otávio Horta direitos desta edição: Realizar Cine Vídeo & Idéias Ltda. organização: Brenda Silveira concepção do projeto gráfico e revisão: Elder Mourão foto da capa: Alessandro Carvalho arte-final da capa: André Vasconcelos estagiária-pesquisadora: Maria Júlia Gomes Andrade reprodução do acervo fotográfico do Museu Histórico Abílio Barreto: Alessandro Carvalho S587
Silveira, Brenda Trilhas urbanas: histórias da Rua da Bahia e da Cantina do Lucas / Brenda Silveira e Luiz Otávio Horta. – Belo Horizonte: Realizar Cine, Teatro, Vídeo & Idéias Ltda, 2002. 222 p. : Il. Ilustrado com fotos. 1. Belo Horizonte – Rua da Bahia – Descrição – História. 2. Cantina do Lucas – Histórias – Depoimentos. I. Horta, Luiz Otávio. II. Título. CDD: 981.511 CDU: 93 (815.11)
Bibliotecária responsável: Maria Aparecida Costa Duarte CRB 6 / 1047 edição Realizar Cine Vídeo & Idéias Ltda Rua Espírito Santo, 2006/203 – Lourdes 30130-032 – Belo Horizonte – MG
Apresentação
1 Rua da Bahia: um endereço histórico 11
2 Cantina do Lucas: um bar bem cultural 119
APRESENTAÇÃO Na construção deste livro-reportagem tentamos redesenhar com palavras, os traços, o frescor, o encanto, os hábitos, os costumes, a lógica de uma cidade que se foi alterando pela evolução natural de uma sociedade em desenvolvimento. Um trabalho complexo no qual vezes sem conta surpreendi-me tentando reconstruir seus monumentos demolidos, revisitar seus mortos, desnudar o passado daqueles que escreveram cada capítulo da história desta generosa, acolhedora e persistente Rua da Bahia. E, de seu fruto mais carnudo: a resistente, quarentona - hoje Bem Cultural - Cantina do Lucas. Por isso mesmo, não seria pretensão abarcar nas páginas que se seguem todas as linhas de fatos que teceram e tecem a trama centenária deste vigoroso cenário cultural e histórico da capital mineira. Para tanto seriam necessários talvez mais cem livros, cem mãos, cem vezes, cem páginas. Isso porque se Belo Horizonte tem útero, este é a Rua da Bahia: território livre de preconceitos - província e metrópole. Com sua capacidade inata para harmonizar os contrários, talvez aí o grande segredo, a Rua da Bahia tornou-se arena perfeita para a gênese criativa de lúcidos e bêbados, medíocres e geniais, moralistas e imorais, ilustres e anônimos, anjos do bem e do mal, seres da mais pura ambiência boêmia, filhos de uma mesma mãe. Se a história de Belo Horizonte se confunde com as histórias de seus cafés, bares, restaurantes e cantinas, a história da Rua da Bahia foi e é em grande parte moldada na Cantina do Lucas, referência comportamental incontestável para algumas gerações. Para recompor parte da trajetória de suas pessoas e fatos, embarcamos na aventura de reportar o “espírito” da Rua da Bahia através de informações historiográficas, iconográficas e de episódios relatados por personagens vivas ou fixadas na memória escrita daqueles que já não estão aqui, em crônicas literárias da mais prazerosa leitura. Também fundamental nesta trilha de desfazer o presente para refazer o passado foi a parceria madura, competente e vigilante de um de seus protagonistas: o jornalista e cineasta Geraldo Magalhães, como o foram a dedicação e sensibilidade dos repórteres Jeferson de Andrade, Luiz Otávio Madureira Horta e Elder Mourão, da pesquisadora-estagiária Maria Júlia Gomes Andrade e do olhar criativo da André Vasconcelos. Sem falar, é claro, de inúmeras pessoas que, generosamente, nos forneceram dados, documentos, informações e depoimentos. Em 09 de dezembro de 1997 a Cantina do Lucas foi tombada pelo Departamento de Memória e Patrimônio Cultural da Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte como Bem cultural no reconhecimento cabal de sua importância. A cristalização desse sentimento foi genuinamente expressa por um de seus fiéis freqüentadores – o teatrólogo Helvécio Guimarães – que declarou: “deveriam tombar a alma da Cantina do Lucas.” Brenda Silveira Organizadora
AGRADECIMENTOS Arildo Ferreira Hostalácio / Dinorah Maria do Carmo / Durval Ângelo / Edmar Roque / Família Antônio Correa Dolabella / Flávio de Lemos Carsalade / Geraldo Magalhães / Lorelei Simil Schneider / Luis Góes / Luiz de Mello Alvarenga Neto / Marco Antônio Marinho Vale / Márcia Machado / Marcílio Antônio Palhares Horta / Paulo Vilara / Rebecca Ferrari / Regina Vasconcelos / Rogério Cardoso / Simone Natália Fernandes / Soraya Dutra / Thaís Velloso Cougo Pimentel a todos que nos concederam seus depoimentos, histórias e emoções Arquivo Público Mineiro / Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais-BDMG / Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico-IEPHA / Museu Histórico Abílio Barreto / Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais / UAI Grupo Cultural.
1 Rua da Bahia: um endere莽o hist贸rico Brenda Silveira
para Carol, Camila e Sofia
em homenagem a Lテ好IA AVELAR
"A cultura, no amplo conceito antropológico, é o elemento identificador das sociedades humanas e engloba tanto a linguagem na qual o povo se comunica, conta suas histórias e faz seus poemas, como a forma como prepara seus alimentos, suas crenças, sua religião, o saber e o saber fazer as coisas, seu direito. Os instrumentos de trabalho, as armas e as técnicas agrícolas são resultado da cultura de um povo, tanto quanto suas lendas, adornos e canções." (Souza Filho, Carlos Frederico - Mares de. Bens Culturais e proteção jurídica. Porto Alegre, EU / Porto Alegre.140p.p.9)
Percorremos a RUA DA BAHIA na tentativa de recuperar em fragmentos da sua história a memória de seus vários cenários. Reconhecemos não uma única Rua da Bahia evoluindo linearmente ao longo do trajeto. Ao contrário, nos defrontamos com várias Ruas da Bahia, sendo construídas e transformadas a um só tempo. Uma Rua multifacetada, cujas imagens históricas, em sua maioria, são retalhadas, recortadas, devastadas no acelerado e, em alguns casos, estúpido processo de especulação imobiliária e evolução urbana. Regras de uma dinâmica que, em nome de uma tal modernidade, não se detêm em preservar seus ícones arquitetônicos – templos de sua referência histórica – e negligencia sua identidade cultural e sua memória afetiva. Encontramos uma Rua que, em menos de quatro décadas, passa de um simples traçado no solo a lugar indispensável na bucólica vida social do início do século passado. Mais adiante desdenhará seus sobrados e edificações belle-époque em favor de modernos arranha-céus. O que podemos ver, a partir de então, é sua rápida transfiguração em aflito e desconfortável corredor para passagem de modernos veículos de transporte e de apressados, amedrontados metropolitanos transeuntes. Imagem contemporânea que nem de longe nos remete à origem de sua essência vigorosa e fundamental na construção do caráter cultural da cidade. Uma Rua cujo sentimento de seu povo já subestimou a Avenida Afonso Pena. Rua que se subia e descia lentamente de bonde, revelando aos curiosos passageiros a intimidade dos sobrados particulares. Arborizada que era, uma Rua perfumada pelo frescor das magnólias e damas da noite. Parlatório onde muitos falavam mal de outros. Onde tantos privilegiados dançavam nos saudosos bailes do Clube Belo Horizonte, do Minas Tênis Clube ou se juntavam aos populares na democrática “batalha real” no carnaval de rua da primeira metade do século XX. Rua que se tornava imensa para acolher a aglomeração popular defronte ao Cine Odeon. Que tramava ao “pé do ouvido” para receber a elite política nos banquetes do Grande Hotel. Rua que era adoçada pelas balas da Confeitaria Suíça. Cenário para a inspiração poética e romântica de seus primeiros literatos nas mesas de tradicionais cafés e que era apimentada pelo menos ingênua e falsamente ignorada zona do meretrício. Arena boêmia de incontáveis notívagos, intelectuais, artistas. Ribalta para a juventude politizada e rebelde dos anos 60 – desafio permanente à ditadura militar nas inúmeras mesas de seus não menos numerosos bares. Uma Rua na qual foram rascunhados os primeiros traços da personalidade de toda a população que nascia, crescia e firmaria esta Belo Horizonte como uma das mais importantes capitais do país. Por isso tudo caminhamos atentos e, como se fosse possível, voltamos no tempo para esquadrinhar esse fantástico universo, ainda presente no nosso cotidiano: Rua Da Bahia. A latente e promissora Bahia dos empreendedores do início do século XX, da Estação de Trens, das pensões de estudantes, do comércio popular. A bucólica Bahia dos poetas, dos literatos, do Bar do Ponto. A elegante Bahia das senhoras da alta sociedade, dos cafés, das confeitarias, da charutaria Flor de Minas. A elitista Bahia dos políticos, do Grande Hotel. A irreverente Bahia dos artistas, dos estudantes, dos jornalistas, dos cinemas, dos teatros. A culta Bahia da livraria Francisco Alves, da Academia Mineira de Letras. A Bahia do dedo de prosa na Farmácia Abreu. A alegre Bahia do Clube Belo Horizonte, das “missas dançantes” no Minas Tênis Clube, do carnaval popular, da Banda Mole. A proibitiva Bahia das prostitutas e de seus cafetões.
A próspera Bahia dos estabelecimentos comerciais e bancos. A contestadora Bahia dos jovens rebeldes dos anos 60. A boêmia Bahia do Estrela, da Elite, do Trianon, da Gruta Metrópole, do Lua Nova, do Albamar, da Lanchonete Nacional e de todos os bares que fizeram tecer sonhos, delírios, ideais e seduções Bahia afora. A histórica e provinciana Bahia dos bondes e trólebus. A metropolitana Bahia do edifício Maletta, do trânsito alucinado, dos pivetes, das correrias do dia-a-dia, das tentativas de recuperação do seu passado. A Bahia da Cantina do Lucas. A eterna Bahia do Lucas. Uma Rua que de tantas revela-se particularmente única e permite múltiplos olhares, transformando-se na Bahia de Abílio Barreto, Moacyr Andrade, Pedro Nava, Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Rubião, Cyro dos Anjos, Fernando Brant, Fernando Sabino, Rômulo Paes, Affonso Romano de Sant’Anna, Petrônio Bax, José Bento Teixeira de Salles, Cyro Siqueira, Fernando Gabeira, Cordélia Fontainha Seta e de todos aqueles que se dispuseram a tentar desvendar sua quase indecifrável personalidade, escritores e protagonistas de suas inesgotáveis histórias. Peçamos permissão ao tempo e caminhemos a pé, de bonde, de automóvel, nas letras de seus cronistas, por essa cidade que nasce provinciana, concentrando seus primeiros movimentos em uma Rua principal. Surge pretensiosa, suscitando polêmica, críticas e curiosidades. Uma cidade e uma Rua cujo olhar histórico registrado tende a refratar sua narrativa aos focos de acontecimentos elitistas e subjugar sua face popular. Estamos entre os anos de 1894 e 1895. Vemos no coração do Estado de Minas Gerais, onde antes havia um lugarejo de nome Curral del Rey, uma cidade em construção. Uma ousadia do pacato povo mineiro após calorosa discussão envolvendo a transferência da capital de Ouro preto para outro local, o sonho mudancista que marcou a Nova República. De estudos e pesquisas elaborados por uma comissão construtora nomeada, surge, do traçado do engenheiro responsável Aarão Reis a planta de uma cidade, em formato xadrez, com quarteirões medindo 120m x 120m. A partir de então o local se transforma em um verdadeiro canteiro de obras, e passa a ser conhecido como Cidade de Minas, até o ano de 1901. Canteiro de obras com a primeira Estação de Trens ao fundo. (Acervo da Família Antônio Correa Dolabella–AFACD)
Esta ganha o apelido, dado por seus imigrantes e visitantes, de “poeirópolis”, devido à nuvem de poeira que cobre o lugar, resultante da intensa movimentação para a implementação da infra-estrutura. No início do século XX, a prefeitura de uma cidade semiconstruída, chega a instalar um serviço regular de irrigação. Providencialmente executado por um bonde com a função de molhar as ruas de chão batido, esta iniciativa é aplaudida pelos habitantes e imprensa local. “Ora, até que enfim! Devido às imprecações nossas contra essa maldita poeira que nos sufoca e nos muda a cor da roupa, a “Prefeitura Divina” apiedou-se de nós esta noite, mandando-nos um pouco de chuva.” (Folha de Minas. 1918. In: Bello Horizonte: bilhete postal Coleção Otávio Dias Filho. Belo Horizonte: Centro de Estudos Históricos e Culturais Fundação João Pinheiro, 1997. Coleção Centenário. 204 p. p.80) Desapropriações, demolições, demarcação de terrenos, captação e canalização de águas, essa é a rotina agitada dos pioneiros que vêm atraídos pelas facilidades que o governo lhes oferece para trabalharem e habitarem a nova capital de Minas. Como não poderia deixar de ser, todo esse burburinho da construção acaba se transportando dos braços operários para o meio intelectual da época que efervesce em apimentados debates sobre o assunto. Especialmente com relação ao nome a ser oficializado, “Bello Horizonte”, escolhido pelo Governador João Pinheiro. Até mesmo Machado de Assis, um dos maiores expoentes da literatura e da imprensa nacional, revela sua opinião e, com fina ironia, o seu desagrado quanto à denominação da capital mineira, em crônica publicada no jornal Gazeta de Notícias, em janeiro de 1894. “Sabe-se que Minas já escolheu o território de sua capital cuja descrição Olavo Bilac está fazendo na Gazeta. Chama-se Belo Horizonte. Eu se fosse Minas, mudava-lhe a denominação. Parece antes uma exclamação que um nome.” (Mário Casasanta. 1898. 1963. Machado. Belo Horizonte. In: Folha de Minas. 10 de março 1948. p.4) Como que ignorando a contrariedade de Machado de Assis e as discussões em torno de sua instalação, as obras seguem em ritmo frenético. Um ano depois, em 1895, já existe um ramal ferroviário responsável pela ligação com a localidade de General Carneiro. O entroncamento destes trilhos com as linhas da Central do Brasil permite o transporte de todo o material pesado das obras da capital. Neste ramal está planejada a edificação da Estação de Trens considerada, deste então, pórtico de entrada da cidade, e no seu entorno a construção da Praça da Estação. Nos arredores desta estação que está por vir, nasce a Rua da Bahia, predestinada por seu idealizador à objetiva missão de servir como principal via entre a Estação Ferroviária e o Poder Público centrado na Praça da Liberdade, epicentro das atividades de Belo Horizonte. Mesmo antes da inauguração, percebemos que a Rua da Bahia já se estabelece como incontestável corredor entre aqueles dois importantes vetores de ocupação urbana, possibilitando à “Mariquinhas” – uma pequena e charmosa locomotiva – o escoamento do material de edificação do Palácio, das Secretarias e do primeiro prédio destinado à Imprensa Oficial, que viriam a compor o histórico conjunto arquitetônico da Praça da Liberdade. Se no papel seu destino está traçado, no cotidiano a Rua da Bahia supera e até mesmo subverte tal incumbência: mais que passagem obrigatória, torna-se indispensável à vida da cidade. Revela sua misteriosa e inequívoca vocação como centro criador e propagador dos hábitos e costumes de uma nova sociedade que surge no centro do estado de Minas Gerais. Motivo para a percepção aguçada de seus primeiros intelectuais, escritores, poetas e artistas, é cantada e decantada como o próprio mundo, onde tudo acontece.
“A vida é descer a Rua da Bahia que tinha dois ou três quarteirões de cidade grande, de prazer (...) Era a vida. Mas a Rua da Bahia, com seus dois quarteirões comerciais era a rua. Sem a vastidão da Avenida, onde a alma provinciana ainda não se acomodava, contentando-se de admirá-la. A Rua da Bahia era naquele trecho o lado feérico dos habitantes, a fantasia, a inquietação. Quem desejasse um cigarro de fumo fresco ou a extravagância de um charuto, ia para lá. Quem desejasse um bilhete de loteria, ia para lá. Quem sentisse um súbito desejo de sorvete, uma tentação de chope, um alvoroço de empadinha quente, um arrepio de moça bonita, um abismo de mulher casada, uma nostalgia de livro francês, ia tudo para lá. Todos iam para a Rua da Bahia. Todos subiam ou desciam disfarçando a ansiedade na esperança de um olhar, um encontro, uma aventura, um pecado, o mundo.” (CAMPOS, Paulo Mendes. Subir e descer Bahia. In: ANDRADE, Carlos Drummond de (org.) Brasil, terra & alma. Rio de Janeiro: editora do Autor. 1967) Inaugurada em 1897, apenas em 1901 a nova capital adota oficialmente o nome que não agrada Machado de Assis, Bello Horizonte. Passa então a receber visitantes ilustres: a curiosidade de alguns acaba por se transformar em franco deslumbramento e, de outros, em puro desalento. Início da construção da estação ferroviária da Central, vendo-se os engenheiros. (Acervo Museu Histórico Abílio Barreto – AMHAB)
Estamos na primeira Estação de Trens e vemos aportar o escritor, teatrólogo e jornalista Arthur Azevedo. Após sua estada em Belo Horizonte, publica no jornal O Paiz, em novembro de 1901, um exultante artigo citando a Rua da Bahia como uma das principais artérias da cidade. “... Metemo-nos em dois carros e atravessamos a principal artéria da cidade, em demanda da casa do coronel Martins, situada quase no ponto extremo. Nessa primeira visão rápida, fugaz, Belo Horizonte me deu uma bela impressão de opulência e grandeza. Nem uma rua: tudo avenidas. Nem uma habitação modesta: tudo palácios, palacetes ou casas assobradadas, de aparência nobre, sacrificando ao jardim boa parte do terreno... A casa em que reside o coronel Martins, no extremo da rua da Bahia, é propriedade do Dr. Pádua Rezende, que mandou construíla para seu uso...” (Cópia do microfilme do original do “O Paiz”, de 22 de novembro 1901. Revista do Arquivo Público Mineiro, ano XXXIII – 1982)
Olavo Bilac, junta-se à opinião de Arthur Azevedo, e descreve Belo Horizonte de forma encantadora: “... criou-se, como por milagre, no meio de um rude sertão, uma bela cidade moderna, com avenidas imensas, com palácios formosos, com admiráveis parques! Pelas ruas largas e arborizadas, rolam bondes elétricos: lâmpadas elétricas fulguram entre os prédios elegantes e higiênicos; motores elétricos põem em ação, nas fábricas, as grandes máquinas cujo ron-rom contínuo entoa os hinos do trabalho e da paz.” (BILAC, Olavo. 1903. In: Bello Horizonte: bilhete postal. 204 p. p.40) Já para Monteiro Lobato, a capital não causava tanto furor: “... extrema escassez de gente pelas ruas larguíssimas, a cidade semiconstruída, quase que apenas desenhada a tijolo no chão.” (LOBATO, Monteiro. 1937. In: Bello Horizonte: bilhete postal 204 p. p.20) “As avenidas e ruas, apenas traçada, tinham quarteirões inteiros sem uma única construção. Em alguns, uma casa aqui outra acolá, exceto a Rua da Bahia, entre Avenida Afonso Pena e o Grande Hotel, já toda construída e onde andava a gente elegante da terra, discutindo política e falando mal dos outros.” (Augusto de Lima Júnior. In Estado de Minas. 15 de agosto 1963) Quando da inauguração da cidade, vemos instalados o comércio e os serviços necessários à infra-estrutura urbana, como o imponente Grande Hotel, construído no cruzamento de Bahia com Paraopebas (transformada em Av. Augusto de Lima no ano de 1936). O hotel abre suas portas antes mesmo da decretação oficial de “Bello Horizonte” como capital do Estado. Nessa época a população é de cerca de seis mil habitantes, composta principalmente por funcionários públicos e proletários mineiros, paulistas, baianos e portugueses. “O inaugurado era pouco mais que um acampamento, com algumas edificações de certa imponência, como o palácio e as repartições, muitas casas, ruas e avenidas traçadas, lojas, templos. Era habitada por operários dedicados às construções, funcionários, engenheiros, comerciantes e também desocupados, andando nas ruas empoeiradas ou enlameadas, entre andaimes e largos espaços vazios. De acordo com os rígidos costumes da época, apesar de tudo, os homens de condição não deixavam a gravata, a camisa de seda, as botas, como as mulheres que prosseguiam com seus vestidos compridos e caprichados. Andava-se em animais, raras bicicletas e mais raras carruagens, com tração animal. As linhas de bonde são do início do século atual (XX): começam a ser instaladas em 1901, inauguram-se em setembro de 1902.” (IGLÉSIAS, Francisco. s.d., p.12. In: Bello Horizonte: bilhete postal. 204 p. p.18) Trecho da Rua da Bahia e bonde. (AMHAB)
Ao contrário da maioria das ruas e avenidas, a Rua da Bahia não é apenas um traçado no solo e já possui um considerável número de construções particulares: residenciais e comerciais. Predominam as de apenas um pavimento e alguns sobrados familiares que eventualmente funcionam como pensões para estudantes e funcionários públicos. No cenário ainda áspero das primeiras décadas do século, a movimentação elegante ocorre neste trecho da Rua da Bahia – entre Augusto de Lima e Afonso Pena. Na outra ponta, desde 1895, a grande influência da Estação de Trens fortalece o comércio e as atividades sociais populares, vitalizados por uma camada social de baixa renda, freqüentadora dos primeiros quarteirões da Rua. Neste local encontramos a partir de 1906 uma grande construção da indústria têxtil, a “Companhia Industrial de Belo Horizonte” (atualmente o galpão desativado do 104 Tecidos). No ano de 1912, a cidade já conta com 40 mil habitantes, e esta fábrica, a primeira a ser instalada na nova capital, contabiliza 500 empregados, a maioria mulheres e crianças. O intenso movimento na região é especialmente provocado pelas funcionárias. Nas horas de entrada e saída, fugazes admiradores e enamorados mobilizam os arredores na pretensa tentativa de uma aproximação junto às mocinhas operárias. Tudo isso acontece num belo palco, que conhecemos até hoje como PRAÇA DA ESTAÇÃO, cujo nome oficial é Praça Rui Barbosa, e teve aquela denominação consagrada pela população, que desde os primórdios utiliza o espaço para grandes concentrações culturais e políticas. Uma vocação confirmada nos tempos atuais, reforçada pela restauração dos prédios da Escola de Engenharia da UFMG e da Serraria Souza Pinto, construções que datam do início das obras da cidade, transformados em centros de eventos culturais no final dos anos 90.
Comício da Aliança Liberal na Praça Rui Barbosa. (AMHAB)
“Em 1895, a região já tinha movimento pois estavam assentados os trilhos de um ramal ferroviário trazendo todo o material necessário à edificação da nova capital mineira. Essa pequena ferrovia ligava a Praça da Estação até o localidade de General Carneiro onde havia o entroncamento com as linhas da Central do Brasil. Nesse local existiu uma maravilhosa estação construída em forma triangular, luxuosa e com uma torres característica. Esse prédio foi criminosamente demolido há poucos anos atrás, devido à insensibilidade ou falta de esclarecimento dos dirigentes ferroviários da época... Em maio de 1895, o engenheiro Aarão Reis, responsável pela planta de Belo Horizonte, previa a construção da estação ferroviária como um pórtico de entrada da cidade... O projeto da estação de autoria do arquiteto José de Magalhães teve também a colaboração de Edgard Nascentes Coelho e José Verdussen, que ainda
participaram de outras importantes edificações da capital como o Palácio da Liberdade. Um ano após a inauguração de Belo Horizonte, ou seja, em 1898, essa que seria nossa primeira estação ferroviária ganharia um relógio público instalado em sua torre dominante de toda a paisagem. Apesar de sua beleza e características mostrou-se a estação insuficiente ou inadequada para as novas necessidades surgidas. Um melhoramento posterior na região foi o calçamento com paralelepípedos da área da Praça da Estação. Os jardins datam de 1904 e, mais tarde, a construção de um coreto foi necessária para a realização de retretas muito prestigiadas por toda a população local...” (Artur Vítor Iannini. In: Jornal de Casa. 12 a 18 de abril 1987) Em volta da Estação de Trens, cujo primeiro prédio é instalado em 21 de agosto de 1898, vemos prosperar um comércio próprio que dá suporte a toda vida latente no local, zona de ocupação urbana fundamental na área próxima também à Avenida do Comércio (hoje Santos Dumont).
Praça Rui Barbosa. (AMHAB)
Supostamente apequenada pelo glamour que os quarteirões acima da Afonso Pena despertam no imaginário da população, vemos esta ponta da Rua desenvolvendo-se a passos largos, com importantes empreendimentos e áreas de lazer popular. “Há o Hotel Internacional, a Pensão Farnese. No andar térreo do Internacional e nas suas imediações há um pequeno conjunto de estabelecimentos comerciais e de serviços: a “Empresa Progresso”, com serviços de mensageiros, transportes e despachos; a “Confeitaria Americana”; a “Farmácia e Drogaria Comércio”; a “Empresa Minerva”, papelaria e tipografia, duas firmas de bilhar e uma loja de loterias. No número 354, está a oficina de mármores e ladrilhos de “José Scarlatelli e Filhos” e no número 508 a “Mecânica de Minas”, oficina de fundição, fundada em 1903, de Victor Purri (hoje o nome do edifício do Cine Regina, situado mais ou menos no mesmo local). Estes dois estabelecimentos, junto com a oficina de cerâmica de João Pinheiro, que em 1912 já não existe, foram pioneiros na construção da cidade, localizando-se na Rua da Bahia, estrategicamente perto da estação ferroviária... Na verdade, a rua nesse trecho não oferece muitas opções comerciais, mas não podemos nos esquecer que estamos muito perto da Caetés e da av. do Comércio (Santos Dumont). Se quisermos ir a uma loja de secos e molhados, açougue, ou simplesmente fazer compras não precisaremos ir muito longe.” (Projeto Rua da Bahia Viva. 56 p. p.6.7). Durante a semana, nos afazeres do dia, a Rua da Bahia favorece aos operários, estudantes, visitantes e moradores que por ela transitam apressadamente. À noite a cena é
diferente e nos defrontamos com casais e famílias inteiras que desfrutam calmamente dos belos jardins da Praça da Estação, inaugurados na primavera de 1904. Aos domingos o ambiente torna-se ainda mais despojado, quando as retretas (audições de bandas de música em praça pública) executadas pelas bandas da polícia, atraem grande número de pessoas ao local. Ainda no início dos anos 20, nos surpreendemos com uma grande modificação no ambiente da Estação de Trens, que tem o seu primeiro prédio totalmente demolido para a construção de um novo, sob alegação oficial de que este último já não suporta a demanda atual. Em 1922 é inaugurada a nova Estação, iniciando-se, assim, uma inquieta onda de significativas transformações que marcam a história da Rua da Bahia. “Em 1920, iniciou-se a demolição da Estação da Central do Brasil, pois consideravam-na antiquada e não condizente com o progresso da cidade. Nesse mesmo ano foi inaugurada, no lado oposto, a estação da Estrada de Ferro Oeste de Minas, na rua Sapucaí. O acontecimento se deu por ocasião da visita dos reis da Bélgica, com grandes festejos populares e ampla cobertura da imprensa da capital. Ainda em 1920, começaram os trabalhos para se projetar uma nova estação ferroviária para a Central do Brasil. O arquiteto Luiz Oliviére optou por um prédio de linhas neoclássicas dominando a praça mas sem abafá-la. De elegantes linhas a construção possui colunas e arcos suaves e leves formando um conjunto agradável e de grande beleza plástica. Essa estação foi construída pelo empreiteiro Antônio Gonçalves Gravatá, sendo inaugurada em 11 de novembro de 1922 pelo Presidente do Estado, Raul Soares. Foi considerado, então, o mais belo edifício ferroviário da América do Sul, pois em seu interior há vitrais, pisos e colunas em mármore, portões e guarda copos em artística serralheria e fino acabamento... É interessante recordar os grandes comícios e concentrações populares realizados no passado, na Praça da Estação, com a presença de presidentes, autoridades, políticos e artistas. Com a vinda de Rui Barbosa a praça teve sua denominação alterada em homenagem a esse ilustre visitante.” (Artur Vítor Iannini. In: Jornal de Casa, 12 a 18 de abril 1987) Em outubro de 1920, a visita dos reis belgas como que prenuncia uma nova época. Para receber os nobres visitantes, a cidade passa por uma série de obras: serviço de calçamento e recuperação de vias, melhoramento da iluminação pública, reforma e pintura de prédios públicos e novos jardins para a Praça da Liberdade. Nova estação de trens. (AFACD)
Nos anos 30, quando o transporte férreo ainda domina, além do transporte de cargas, a Estação aglutina trabalhadores, moradores e visitantes que utilizam os trens para sua locomoção. O local monopoliza a movimentação dos que chegam ou partem, fazendo da plataforma um autêntico palco do encontro social. Um lugar para reparar nos outros, ver e ser visto. Abrimos o Minas Gerais, no ano de 1932. Assinada sob o pseudônimo de Antônio Crispim, vemos estampada a crônica “Os que partem” de Carlos Drummond de Andrade, que nos remete a uma típica cena de época. “Na estação, encontraram-se os dois cortejos. Um era do moço mineiro que ia para a Europa, sem chapéu. Outro, do moço americano que regressava aos Estados Unidos, com capote. Os dois grupos eram afetuosos, e melancólicos. Dizem que partir é sempre melancólico, e eu concordo, para quem fica... Daí os abraços silenciosos e um pouco graves de ontem à tarde na estação. A gente sabe que elas voltam, mas há tantas baldeações e tantas francesas nesse mundo.” (Antônio Crispim. Minas Gerais, 31 de maio 1932. p.15. In: Revista do Arquivo Público Mineiro. Francisco de Assis Andrade. 1984) Olhando ao redor recolhemos imagens de uma Estação valorizada por belas edificações. Trata-se do conjunto arquitetônico formado pela Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (atualmente Centro Cultural UFMG), pela SERRARIA SOUZA PINTO e pelo viaduto de Santa Tereza. Todo este conjunto foi tombado pelo IEPHA – Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico – nos anos 80. Além da riqueza de sua arquitetura, a Serraria Souza Pinto engrandece a região com atividades essenciais à cidade, oferecendo aos moradores e empreendedores do início do século XX, serviços básicos à estruturação deste espaço urbano que começa a surgir. “O prédio da SERRARIA SOUZA PINTO está localizado ao lado do viaduto de Santa Tereza, integrando o conjunto ambiental e arquitetônico da Praça Rui Barbosa (ou da Estação, como é mais conhecida). Foi um dos primeiros prédios a serem erguidos na cidade, fundado por Augusto Souza Pinto e Antônio Garcia de Paiva, sendo pioneiro no ramo. Funcionavam no local seções de carpintaria, pedreira, transformadores, serraria e um motor a vapor, como descrevia o “Almanack Guia de Bello Horizonte” publicado em 1913. Seu nome original era Serraria Garcia de Paiva Pinto.” (Silvéria Fonseca. In: Diário de Minas, 6 de novembro 1987)
Ao fundo Serraria Souza Pinto. (AFACD)
O prédio onde hoje funciona o CENTRO CULTURAL UFMG nos remete ao período da instalação da cidade.
“Emergindo do século passado, esse edifício foi construído em estilo neoclássico, com elementos ecléticos, para abrigar o HOTEL ANTUNES. Diante do seu porte e dimensões foi adquirido pelo Governo do Estado para ali alojar o 2º Batalhão da Brigada Policial, de 1906 a 1911. Um ano depois, o edifício passou a sediar a Escola Livre de Engenharia (UFMG), até esta ser transferida para um novo prédio construído nas imediações. No local, foi mantido apenas o Instituto de Eletrotécnica que, em 1981, foi transferido também, deixando o prédio desativado... Em 1984 o IEPHA (Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico) efetuou o tombamento do edifício – situado na esquina da Av. Santos Dumont e Bahia – que a partir de 1989 passou a abrigar o Centro Cultural UFMG”. (Calendário Cultural Rua da Bahia. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Maio 1995)
À direita Centro Cultural UFMG, localizado na Av. do Comércio (hoje Av. Santos Dumont.) (AFACD)
Simbolizando toda a pretensão de modernidade que a cidade ostentava em seu discurso oficial, o VIADUTO DE SANTA TEREZA é considerado uma das grandes empreitadas da cidade no século XX. Sua construção tem início em fevereiro de 1928, e a inauguração se dá em setembro de 1929, com o nome oficial de “Arthur Bernardes.” Traz em seu projeto um ousado arco parabólico, que chegou a consumir 700 metros cúbicos de concreto. Este arco foi motivo de alucinadas recordações nas letras de compositores e poetas. Construção do Viaduto Santa Tereza. (AFACD)
Viaduto Santa Tereza. (AFACD)
Fernando Sabino, na primeira edição de “Encontro Marcado” estimava a altura dos arcos em 50 metros, para na segunda edição do mesmo livro reduzi-la a 30 metros. Mesmo assim, não chega perto da altura real calculada em 14 metros, medindo-se do ponto mais alto ao nível dos trilhos. Pedro Nava, literato da geração anterior à de Sabino chega a declarar que “sua altura é vertiginosa.” “O viaduto reconduzia Carlos Drummond de Andrade da Rua da Bahia fervilhante e moderna, para a Minas do interior. O viaduto era a travessia necessária para sair daquela irremediável Belo Horizonte de classe média e ascender ao solo sagrado. Talvez por isso, o poeta arriscara a louca escalada dos arcos, rito de passagem, risco penitencial.” (Calendário Cultural Rua da Bahia. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Outubro 1995) Além da construção de um novo prédio para a Estação de Trens, outras alterações são feitas naquele que seria o cartão-postal da cidade. Em 1924 a Praça é reformada pelo arquiteto Magno de Carvalho. Em 15 de julho de 1930 inaugura-se o Monumento da Terra Mineira, com a presença do Presidente do Estado, Antônio Carlos. Em 1931 os jardins apresentam magníficos contornos valorizados pelas roseiras e hortênsias em todo seu esplendor, justificando o título de “Cidade Jardim”. Finalmente em 1936 a Praça ganha a fonte luminosa “Independência”, que funciona aos domingos. Até então as transformações na Praça são de caráter paisagístico. A partir da década de 50, quando novos meios de transporte são introduzidos, especialmente os trólebus e automóveis, a Estação de Trens vai aos poucos perdendo sua importância. Nos anos 60 ocorre a maior adulteração no projeto original da Praça. “A maior intervenção ocorre na década de 60, quando da abertura da outra pista da Avenida dos Andradas, na qual é subtraída uma faixa de quinze metros nos dois módulos da praça. Nesta época também são retiradas de seus canteiros seis peças escultóricas (dois leões e um conjunto de esculturas representando as quatro estações do ano). Boa parte dos espaços tradicionalmente destinados ao lazer na região foram perdendo o charme e cedendo lugar aos estacionamentos e pistas de trânsito.” (Calendário Cultural Rua da Bahia. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Janeiro 1996) Todas essas alterações nos fazem recuar nesta viagem. Se do município nascido sob a guarda do poder público surgem duas cidades quase antagônicas – a oficial projetada e engessada por Aarão Reis para abrigar duzentos mil habitantes; cuja população é basicamente de funcionários públicos, estudantes e comerciantes; e a marginal que se esparrama no sentido leste-oeste, desordenadamente, além dos limites da Av. Sanitária, atualmente Av. Contorno,
formada por uma legião de trabalhadores da construção civil, proletários e imigrantes estrangeiros – não falta à população desta província aspirante à metrópole o modo poético de seu tempo. “Era ainda no tempo dos fícus, de uma Belo Horizonte de dois andares, de ruas vastas e perfumadas a magnólias, de cidadãos funcionários públicos, estudantes e os quase sempre esquecidos cidadãos operários. Tempo de uns rapazes cheios de idéias, de projetos, de desejos e de vida, que gastavam suas horas em discussões literárias regadas a cerveja ou café e água entre as mesas redondas de mármore de certos cafés da capital (...) Casas de café não faltaram àquela jovem capital dos anos dez e vinte. Afinal uma cidade que se queria moderna e cosmopolitana, como estampavam as plantas e discursos dos responsáveis pela construção, não poderia dispensar a presença desse tipo de casa comercial, vista por muitos homens da época como verdadeiro símbolo de refinamento e civilização.” (SILVEIRA, Anny Jackeline Torres. O sonho de uma petite Paris: os cafés no cotidiano da capital. In: DUTRA, Eliana de Freitas (org). BH: horizontes históricos. Belo Horizonte: C/ARTE, 1996) Perfilada por charmosos pontos de encontro, esta capital oferece, nos seus cafés e confeitarias em profusão, concentrados mais acima na Rua da Bahia, a cena ideal para os modernistas escreverem suas primeiras crônicas. A partir deste gênero literário, não é difícil perceber que as três décadas iniciais são as de maior charme para a Rua da Bahia. De acordo com Abílio Barreto, no início a Av. Liberdade, atual João Pinheiro, chegou a dividir as atenções da população com a Rua da Bahia. Somente após a inauguração do Teatro Soucasaux (grafia mantida, exceto nas citações, como na edição de Bello Horizonte: bilhete postal), esta tornou-se absoluta na preferência dos acontecimentos sociais da capital mineira. Nada parece escapar ao olhar atento desses “moços da Rua da Bahia.” Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade, Moacyr Andrade e Abílio Barreto: quem mais poderia nos levar por essa viagem pela Rua onde tudo começa no Ponto, acontece no Ponto, sobe a Bahia a partir do BAR DO PONTO? Instalado em 1907, no andar térreo do Hotel Globo, depois Hotel Palácio – na esquina de Bahia com Afonso Pena – numa edificação de 1895 originalmente construída para ser Congresso Provisório, que depois passou a ser utilizada para fins comerciais, este não é apenas mais um café da cidade.
No andar térreo do prédio à direita ficava o Bar do Ponto. (Acervo do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de MG – IEPHA)
Neste local, em frente ao ponto final dos bondes que desde 1902 circulam pela cidade, no entroncamento onde hoje vemos o Mercado das Flores, o Othon Palace Hotel e o Edifício Sulacap, não há apenas um bar de rapazes recostados ao balcão mirando os tornozelos das mocinhas que passam, que as saias godês deixam transparecer; menos um reduto daqueles que, dissimulados, tomam cachaça em xícaras de café para não ofender a família mineira. É toda uma região que reúne o comércio emergente da época. Acontece aqui a vida diurna da elite social da nova capital de Minas, um lugar onde “agita-se o sangue arterial da urbs”, segundo o cronista Abílio Barreto. A excitação do lugar prolonga-se até o Grande Hotel (onde atualmente está localizado o edifício Maletta) na esquina de Bahia com Paraopeba. “Nessas memórias, muito se há de encontrar de referências aos rapazes do Bar do Ponto, a funcionários parados no Bar do Ponto, a senhoras e donzelas pervagando no Bar do Ponto. Dá má impressão. Parece que esses rapazes, burocratas, damas e mocinhas viviam dentro dum botequim. Nada disto, tetrarca. Chamava-se Bar do Ponto o rond-point formado pelo cruzamento de Afonso Pena e Bahia, que era onde desaguava também a ladeira de Tupis. Todo o primeiro quarteirão dessas ruas era caudatário da estação de bondes – o ponto – que ficava em cima da ribanceira do Parque Municipal e de um café chamado o Bar do Ponto. Esse nome estendeu-se às circunvizinhanças e era assim que o Seu Arthur Haas morava no Bar do Ponto e que nele ficavam a confeitaria do suíço Carlos Norder, a residência das Avelatto, a do Seu Avelino Fernandes, a da D. Lulu Fonseca, o Par-Royal, a Casa Decat, o Clube Belo Horizonte, o cinema Odeon, a Joalheria Diamantina, a Delegacia Fiscal, os Correios e Telégrafos. Era o centro da cidade, seu trecho obrigatório e todo mundo parava, passava, conversava, atravessava, esperava, desesperava, amava, demorava, vivia no Bar do Ponto.” (NAVA, Pedro. In: Rua da Bahia / Organizadores Luiz Henrique Horta e Nísia Maria Duarte Werneck – Belo Horizonte: UFMG, 1990, reimpr. 1996. 52 p.p.8) E sobre o Bar? “Pelo café que lhe ficava em frente (ao Ponto), escancarado para a via pública. Só entravam senhores. Logo à frente, à esquerda, um armário quiosque de metal brunido como ouro vivo, aquecido por forninho inferior e em cujas prateleiras estavam sempre quentes os bolinhos de carne, os pastéis, as empadinhas de galinha. Era o fino do fino e custavam respectivamente tostão, tostão, duzentão... A especial e mais demorada, das cervejadas ostensivas ou da cachacinha pudicamente tomada em xícaras, para não escandalizar a Família Mineira passando na rua... No terço central do café, a clientela do dito, da conversa de negócio ou de ócio e a gritaria da turma do futebol. Torcedores e jogadores do Atlético, do América, do Yale do Palestra; veteranos do Dezessete de Dezembro, do Sport Clube ou dos times do campeonato de 1904... Na fila da frente, os mirones que apreciavam o movimento, a passagem das moças. O café chamado Bar do Ponto, estava para Belo Horizonte como a Brahma para o Rio. Servia de referência. No Bar do Ponto. Em frente ao Bar do Ponto. Na esquina do Bar do Ponto.” (NAVA, Pedro. In: Rua da Bahia. 52 p. p.44. 45) A ebulição do Bar do Ponto é aquecida pelos BONDES quando sobem ou descem Bahia. Mesmo no ritmo lento do início do século, levam e trazem sonhos, consumam hábitos na forma de namorar da juventude. Como o bonde do “Santa Maria”, que transporta as alunas externas do colégio de mesmo nome, aguçando o desejo dos moços e moças da época. “Se na década de 20, a Rua da Bahia ainda concentra o comércio elegante da cidade e as atividades culturais, era, como já transpareceu nesse texto, o espaço preferido pela mocidade que naqueles tempos tinha hábitos bem diferentes, principalmente para namorar. Um deles era ficar nas imediações do “Bar do Ponto” para ver o “Bonde Santa Maria” passar. Esse era um bonde especial que recolhia, pela manhã, as alunas externas do Colégio Santa Maria e à tarde as reconduzia aos lares. Do “Bar do Ponto” os rapazes só viam os rostos de perfil baixados sobre os livros, ansiosos por um olhar furtivo que escapasse à visão
fiscalizadora das irmãs de caridade. Não perdiam a hora do bonde, todos os dias, à manhã e à tarde. Desse modo é que o “Bonde Santa Maria” ficou conhecido, segundo Moacyr Andrade, como “base da família.” (Crônicas de Moacyr Andrade publicadas no Estado de Minas sob o pseudônimo de José Clemente. “O Bonde Santa Maria” – “Base da Família” (E.M. 30.10.1973). In: Projeto Rua da Bahia Viva. 56 p. p. 14)
Interior do Bar do Ponto. (AIEPHA)
Os bondes foram palco e personagem na Rua da Bahia desde a inauguração da primeira linha, em 1902. Deles muitas lembranças se guardam. Desde aquelas mais eufóricas e românticas até as mais trágicas.
R. da Bahia com Av. Afonso Pena. 07 de set. 1902. Comemoração da Independência, da inauguração do serviço de bondes e a posse de Francisco Sales. (AMHBA)
“O primeiro bonde conduzido pela senhora do engenheiro construtor e por ele, fez a volta pela Rua Pernambuco e desceu Bahia, por entre palmas, entusiásticas manifestações de júbilo da população.” (WERNECK, Celso. Reminiscências do Coletor. Belo Horizonte. s.d., p.35) Os acidentes eram comuns e faziam parte do cotidiano dos condutores e passageiros. O primeiro do qual se tem notícia, aconteceu menos de dois anos após a implantação do sistema.
“...Em 19 de fevereiro de 1904, registra-se, pela primeira vez um grave deslizamento de bonde na rua da Bahia, fato, mais tarde, comum nesses serviços. O carro nº 4 deslizou, sem que se conseguisse parálo, da rua Timbiras até a parte baixa da rua da Bahia...” (PENNA, Octávio. História Cronológica de Belo Horizonte (1897/1930). Belo Horizonte: Santa Maria, 1950, p.83) Os românticos bondes circularam na Rua da Bahia até 1958, quando já conviviam com os serviços de auto-ônibus (surgido em 1923), com automóveis e com a expectativa de implementação dos trólebus. O jornal Folha de Minas, em 11 de setembro de 1958, noticiava: “A partir de hoje os bondes não mais passarão pela Rua da Bahia.” Nesta época já teriam sido realizados estudos para modernização do transporte coletivo da cidade que crescia a passos largos. “... Dando continuidade à melhoria dos transportes, técnicos paulistas foram contratados para a elaboração de um diagnóstico sobre o sistema. A pequena capacidade de investimentos dos proprietários de coletivos foi ressaltada e a solução foi a escolha dos trólebus como principal modalidade de transporte na capital. Os bondes, ônibus e lotações seriam sistemas complementares. Nesse novo plano, haveria as primeiras linhas para os bairros Serra e Santo Antônio, além de uma linha na Av. Afonso Pena. Nessa primeira etapa seriam adquiridos 16 ônibus elétricos e a Companhia Paulista de Materiais Elétricos ficaria responsável pela implantação da estrutura... Iniciaram-se as obras necessárias com a retirada dos trilhos de bonde da rua da Bahia, que foram desviados para a rua Pernambuco, quebrando-se, assim, a “tradição da Capital”, em nome do progresso e da melhoria dos transportes públicos.” (OMNIBUS: Uma história dos transportes coletivos em Belo Horizonte. Fundação João Pinheiro. 1996. Coleção Centenário. p. 178. 179) Deixemos um pouco o Bar do Ponto e os bondes. Atravessemos a Bahia, no ano de 1899, nas imediações de Goiás, no terreno que se estende até a Afonso Pena, onde havia nos primórdios da construção da cidade um imenso galpão de marcenaria e carpintaria. Chama a atenção uma adaptação desta rústica edificação: o TEATRO SOUCASAUX, praticamente pioneiro da vocação cultural da Rua da Bahia, uma iniciativa de Francisco Soucasaux, um dos empreiteiros que participou da construção da cidade. Construtor, animador cultural e um dos maiores entusiastas da nova capital, Soucasaux era também fotógrafo e editou, em 1902, os primeiros cartões-postais de Belo Horizonte. O Soucasaux, provavelmente, abrigou a primeira sessão de cinema da cidade em 1905, realizada por um empresário ambulante de nome José Barucci. Trazendo o recém-inventado aparelho mirógrafo de Goudeau, Barucci teria promovido em corrida temporada – de 11 de março a 02 de maio – o primeiro contato dos belo-horizontinos com o advento do cinema. Neste mesmo local, posteriormente, é erguido o Teatro Municipal, transformado, algumas décadas depois, pela iniciativa privada, em Cine Metrópole. No início dos anos 80, após ser comprado por um grande grupo financeiro, este prédio histórico foi literalmente colocado abaixo, destruído, sob protestos da população e da classe artística. “Foi adaptando o galpão de madeira que já existia entre Afonso Pena e Goiás que Francisco Soucasaux construiu seu teatro, inaugurado em 20.12.1899. o teatro ficava no fundo de um jardim, onde havia um coreto, na qual as bandas de música do Batalhão da Brigada Policial e a “Lira Mineira” realizavam retretas às quintas-feiras e aos domingos e onde a mocidade fazia um dos seus primeiros footings. O Soucasaux tinha uma programação intensa de saraus, encenações teatrais e retretas, nele exibiram-se até companhias estrangeiras. Falar do Soucasaux é falar também das origens do Teatro Municipal que foi inaugurado quase no mesmo local a 21 de outubro de 1909, pois Francisco Soucasaux já tinha o projeto e autorização da Prefeitura para construir o Teatrato Municipal. Sua morte em Portugal, no ano de 1904, deixara seus planos apenas no papel e a cidade sem um teatro.” (Projeto Rua da Bahia Viva. 56 p. p.8)
Em 1906 vem a demolição do Soucasaux e no mesmo ano o lançamento da pedra fundamental do Teatro Municipal. Após o fechamento do Soucasaux, do outro lado da rua, assumindo provisoriamente as funções de teatro, é inaugurado o Teatrinho Paris, um empreendimento do Sr. Henrique Loureiro, proprietário do Restaurante Acre Moderno. O Sr. Loureiro optou por adaptar uma área do seu estabelecimento, quase na esquina da Av. Afonso Pena, para a atividade cultural, funcionando bravamente até 1910, quando o vemos transformado em Cinema Paris. No mesmo lugar será construído um dos mais belos prédios da Rua da Bahia, onde passará a funcionar o Clube Belo Horizonte, no piso superior, e o Cine Odeon, no andar térreo – redutos da elite da cidade.
Concerto de Bandolins, harpa e canto no Teatro Soucasaux. (AMHAB)
Em 1908, entre a demolição do Teatro Soucasaux e a inauguração do Teatro Municipal, a Rua da Bahia consolida o seu talento cultural e, a 28 de fevereiro, é inaugurada na Confeitaria Maciel, sua primeira sala de cinema, o Cinematographo Maciel, para em seguida, do outro lado da rua, ver um concorrente de peso se estabelecer, o Cinematographo Colosso. “... Quanto a Belo Horizonte, ainda em 1908, a 28 de fevereiro, na Confeitaria Maciel, de Carlos Maciel (rua da Bahia, esquina com Goitacazes, 2º andar) era aberto o “Cinematographo Maciel” com aparelho aperfeiçoadíssimo do sistema Pathé. Vinte dias mais tarde, num prédio defronte, no restaurante Colosso, dos italianos Francisco Allevato e DomenicoDa Pieve, começava a funcionar o “Cinematographo Colosso”. Poucos dias mais, O “Maciel” passava a ser “Cinematographo Familiar” com uma novidade: um piano elétrico. Assim, entre janeiro e maio de 1908, Belo Horizonte ganhava, embora em locais improvisados, três cinematógrafos...” (Crônica de Geraldo Fonseca. “A Última Sessão de Cinema.” In: Jornal de Casa. 18 a 24 de janeiro 1987. p. 15) Estamos em maio de 1909 e já se vê sendo erguido um lindo prédio, em estilo neoclássico, com fachada trabalhada e interior luxuoso. A obra é de responsabilidade do construtor José Verdussen, realizada por iniciativa do Presidente do Estado de Minas Gerais, Francisco Salles. Neste mesmo ano nasce este que será – por mais de quatro décadas – um dos mais elegantes pontos culturais da cidade, o TEATRO MUNICIPAL. “Em 21 de outubro de 1909 foi o teatro solenemente aberto com a apresentação da peça “Magda”, pela Companhia de Nina Sanzi. A festa de inauguração teve a presença do presidente Wenceslau Braz e do prefeito Benjamin Brandão. Profusamente iluminado, recebeu o prédio seus primeiros convidados trajados com o rigor que se exigia para as solenidades. Inicialmente, falou o Dr. Nelson de Sena, entregando o teatro à capital, representando a prefeitura da cidade. Outras personalidades se fizeram
ouvir e, posteriormente assinaram a ata de inauguração, como o prefeito, deputados, senadores, intelectuais e convidados. O povo presente era distraído pela Banda de Música, sob a regência do maestro Francisco Flôres, executando peças da ocasião.” (Artur Vitor Iannini. In: Jornal de Casa. 20 a 26 de setembro 1987)
Teatro Municipal. (AMHAB)
O olhar histórico de Artur Vítor Iannini nos leva aos detalhes do Teatro Municipal, que encanta tanto pela fachada quanto pelo suntuoso interior, com poltronas forradas de veludo vermelho, assim como as numerosas cortinas interiores. No forro da platéia é instalado um painel especialmente pintado por Godi, em Bruxelas. Neste, uma alegoria representa a República desfraldando a Bandeira Nacional, tendo ao fundo os emblemas das artes, letras, indústria e comércio. Nas sessões, o requinte é complementado quando no grande salão de entrada “serve-se aos presentes bebidas finas importadas da Europa e deliciosos sequilhos”. O Teatro Municipal vai se estabelecer por algumas décadas como um dos locais de encontro da gente culta e elegante da nova capital mineira, registrando fatos políticos marcantes. Um destes é o célebre discurso sobre o petróleo brasileiro proferido por Monteiro Lobato em 1937, diante de uma casa superlotada. Não nos esqueçamos, contudo, de visitar um pouco mais acima, numa das esquinas mais famosas da cidade, o memorável GRANDE HOTEL, símbolo incontestável do conservadorismo mineiro. A cidade nem bem havia abandonado os ares de lugarejo e, já em outubro de 1896, na esquina de Rua da Bahia com Paraopebas, é assentada a pedra fundamental de um prédio que seria lembrado tanto pela beleza quanto por sua agitada história, que registra um grande incêndio, hóspedes ilustres, banquetes e inesquecíveis bailes de carnaval. Embora não tenha sido o primeiro, o Grande Hotel passa a ser, a partir de sua inauguração, em julho de 1897, o principal ponto de encontro para políticos e célebres visitantes que se reúnem no bar do andar térreo. Local das mais requintadas recepções, saraus literários e festas da melhor sociedade belo-horizontina. Tal como os desocupados mirones que ficam do outro lado da rua – na Farmácia Abreu – para ver e comentar os acontecimentos do dia, buscamos espiar pelo relato de Abílio Barreto trechos da festa de inauguração deste histórico referencial da cidade.
Grande Hotel (AIEPHA)
“A 6 de agosto, consoante havia anunciado Azevedo Júnior, humoristicamente em sua crônica, festejava-se a inauguração do Grande Hotel, propriedade do Sr. Coronel Manuel Lopes de Figueiredo, e tendo como gerente o perfeito maitre d’hotel, que era o Sr. Guilherme Leite da Cunha. A pedra fundamental daquele prédio fora assentada a 17 de outubro de 1896. A cerimônia da benção inaugural do prédio realizou-se às 8 horas da manhã, oficiando o Padre Francisco Dias Martins e servindo de paraninfo o Dr. Francisco Bicalho, achando-se presentes mais a senhorita Maria Lídia Bicalho, o Dr. Luís Silva e senhora, além de outros convidados. Finda a cerimônia, o proprietário e o gerente do hotel mandaram servir café e chocolate aos presentes, enquanto estes esperavam o lauto almoço que lhes foi servido às 10:30hs, durante o qual foram erguidos brindes congratulatórios. O Grande Hotel compunha-se, então de 52 quartos e vastas salas para refeições e para festas. Custara 125:000$000 e fora construído pelos Srs. José Bençon e Rodolfo Bovo. A decoração interna impressionava bem e o mobiliário luxuoso fora comprado nas oficinas do Sr. Moreira Santos, do Rio de Janeiro.” (BARRETO, Abílio. Belo Horizonte: memória histórica e descritiva. 2 ed. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, 1996, v. 1: História antiga; v.2 História média) Por mais de meio século o Grande Hotel foi considerado o melhor de Belo Horizonte. Um incêndio de grandes proporções atingiu praticamente todo o prédio, ainda em 1908, sendo este totalmente reformado ou até mesmo reconstruído – como consideram alguns historiadores – e reinaugurado em 1909, acrescentando-lhe um andar, o que o deixa agora com três andares. No final dos anos 50 o hotel é demolido para dar lugar a um “moderno” empreendimento imobiliário, o Edifício Arcângelo Maletta, que congrega em uma mesma edificação apartamentos residenciais, salas comerciais, lojas e uma grande novidade: a primeira escada rolante de Minas Gerais. Uma mudança significativa, capaz de alterar o comportamento social da época. Antes de avançarmos no tempo desta que pode ser uma das esquinas mais importantes da Rua da Bahia e de Belo Horizonte, vamos adentrar o Grande Hotel e conhecer um pouco de sua frenética vida social. “Terminou em 1 de abril de 1909, a reconstrução do Grande Hotel incendiado em 5 de novembro de 1908. O prédio foi bento pelo Vigário de São José, seguindo-se um almoço íntimo comemorativo da nova fase do estabelecimento onde se hospedaram figuras ilustre e onde teriam lugar acontecimentos interessando a Capital de Minas e o próprio País. Tendo sido revogado o banimento da família imperial, ilustres príncipes do decaído regime vieram a Minas, em 1921. Parece que em 19 de janeiro, chegaram a Belo Horizonte suas Altezas Reais e Imperiais, os Príncipes Conde D’Eu e D. Pedro, sendo recebidos na estação por considerável massa popular. Suas Altezas hospedaram-se no Grande Hotel... Era então
proprietário da hospedaria o Sr. Figueiredo. Também o conhecido médico Cícero Ferreira, era um dos proprietários do Hotel... Os senhores Senador Antônio Carlos e Dr. Alfredo Sá, candidatos respectivamente a Presidente e Vice-Presidente do Estado, para o quatriênio 1926-1930, foram homenageados pelo P.R.M. com um banquete no Grande Hotel, no dia 23 de janeiro de 1923. À sobremesa falou o Senador Bueno Brandão, seguindo com a palavra Dr. Antônio Carlos que leu sua plataforma de governo. Houve depois brindes em honra aos Presidentes Melo Viana e Artur Bernardes... Amigos e admiradores do Dr. Raul Soares de Moura ofereceram-lhe em 15 de novembro, um banquete no Grande Hotel a que compareceram o representante do Presidente do Estado e outras ilustres personalidades. Dr. Raul Soares seria o indicado pelo partido situacionista para suceder ao Sr. Artur Bernardes na Presidência do Estado...” (MOURÃO, Paulo Kruger Corrêa. História de Belo Horizonte de 1897 a 1930. Belo Horizonte, 1970) Poderíamos nos ater a centenas de histórias oficiais ou que se tornaram folclóricas nas dependências do célebre Grande Hotel. Histórias bruscamente alteradas, quando após ser adquirido por Arcângelo Maletta, e posteriormente transferido para as mãos de novos proprietários, é demolido, e no final dos anos cinqüenta dá lugar à construção de um magnífico conjunto arquitetônico. Erguido em 1961, o conhecido “Maletta”, inaugura também um novo capítulo desta esquina da cidade.
Sacada do Grande Hotel (AMHAB)
Do outro lado da Rua, está a FARMÁCIA ABREU que, assim como o Grande Hotel, estabeleceu-se nesta até a metade do século passado. Única neste ramo comercial, mesmo antes da inauguração da capital, a farmácia do Sr. Lopes de Abreu torna-se o lugar onde se reúnem os membros da Comissão Construtora e as personalidades locais. Em sua visita a Belo Horizonte, em 1901, Arthur Azevedo comenta sobre a Farmácia Abreu: “... um dos pontos obrigatórios de palestra na cidade”, deixando gravada sua importância na memória histórica da Rua da Bahia. Ainda na esquina da Rua da Bahia com Augusto de Lima é inaugurada a 23 de abril de 1918 uma das primeiras escolas técnicas de comércio e datilografia de Belo Horizonte, o tradicional COLÉGIO MINAS GERAIS. Este ainda funciona na edificação original que, após ter seu prédio tombado pelo Patrimônio Histórico, foi restaurado e sofreu reformas internas. A portaria do Colégio, inicialmente instalada na Rua da Bahia foi, em 1965, transferida para o número 104 da Av. Augusto de Lima. As reformulações do Colégio Minas Gerais se deram também no âmbito pedagógico quando são incorporados cursos de magistério e contabilidade, processamento de dados, curso de suplência e curso técnico em transações imobiliárias. A história do Colégio Minas Gerais se confunde com a própria história da cidade, guardando em
sua memória episódios inesquecíveis como, por exemplo, quando a turma de formandos de 1946 teve como seu paraninfo o ex-presidente Juscelino Kubitscheck de Oliveira.
Colégio Minas Gerais (AIEPHA)
Neste cruzamento nos deparamos com uma curiosa construção: é o CONSELHO DELIBERATIVO. Um prédio diferente dos demais, em estilo neogótico, inaugurado em 1914, com torres que parecem perfurar o azul do céu da cidade e vitrais característicos que invadem de cor o seu interior. Esta importante e simbólica edificação abrigou a primeira Câmara Municipal, a sede da Associação Brasileira de Escritores – Seção Minas Gerais e, nos anos 40 serviu à população como Biblioteca Pública. Em seus porões, por muitos anos, funcionou a Rádio Mineira, primeira estação de rádio de Belo Horizonte, sob o prefixo P.R.C.-7, cujo orgulho é de ter sido a primeira no Brasil a apresentar um programa de rádio-teatro. Transformado em Museu de Mineralogia, passa por um período de decadência em sua estrutura física. No final dos anos 90, após reformas e restaurações é reaberto ao público, agora nas funções de Centro Cultural com salas de leitura, auditório, biblioteca e até um bar-café. O contraponto estabelecido pelo Maletta, do outro lado da Rua, forma uma das imagens mais significativas entre o “velho e o novo”, na história e memória da cidade.
Conselho Deliberativo com jardins e calçada (AIEPHA)
Para muitos historiadores, estes dois quarteirões entre Afonso Pena – do Bar do Ponto – e Paraopebas – do Grande Hotel -, compreenderam a gênese da vida comercial, boêmia e intelectual de Belo Horizonte.
Cine Odeon. In: O Fim das Coisas. Belo Horizonte: PBH, 1995 p.ilust. (Acervo Luis Goes – ALG)
Mesmo no final dos anos 50, quando o comércio passa a se transferir para outras áreas emergentes da cidade, este trecho da Rua resiste como centro da boemia intelectual mineira. Passeando pela Rua da Bahia, ao longo de suas primeiras décadas, subindo ou descendo, encontramos nossos melhores e mais elegantes estabelecimentos comerciais. Lojas com artigos importados para senhoras, alfaiatarias, casa lotérica, bancos, óticas, confeitarias e cafés, livrarias e as grandes novidades do mundo das diversões, particularmente no cinema. Especialmente no CINE ODEON, que se qualifica como sendo, senão a melhor sala, a que – de acordo com a memória urbana – deixou nostálgica uma elite social, seus principais freqüentadores do início do século. Nas imediações do Parc Royal, da Casa Decat, da charutaria Flor de Minas, fazendo parede com a loja de Giácomo Alluoto e com uma das alas de janelas do Hotel Globo, o Cinema Odeon nos encanta. Emoldurado por uma das mais belas edificações da rua, em estilo belleépoque, está assentado no andar térreo do prédio, onde nos altos reina absoluto o Clube Belo Horizonte. Como é hábito de toda a gente da capital estamos diante do Odeon, vendo quem passa, quem entra. Quem aguarda para o início da sessão. Pedro Nava nos acompanha neste passeio: “... A edificação bem estilo belle-époque, das mais elegantes daquele trecho, era pintada dum pardo claro, realçado pelas saliências e ornatos da fachada, passados também a óleo – mas creme. O cinema tinha cinco portas. Ficavam abertos, na hora dos espetáculos, apenas os gradis da do centro (entrada) e da extremidade direita (saída). Os outros, sempre trancados, eram tapados do lado da rua pelos enormes cartazes com uma cena do filme que estava sendo levado, seu título, o nome dos astros em garrafais e mais a especificação do número de suas partes. Todas essas portas eram guarnecidas por bandeirolas de serralheria prateada semelhantes às das três sacadas de cima, do salão de baile do Clube Belo Horizonte. O preço era pila-e-cem (1$100 réis) e pagava-se numa bilheteria toda de metal amarelo, brunido que nem
ouro. Seu portãozinho da esquerda, invariavelmente fechado. Do da direita, recebendo as entradas pessoalmente, ficava um dos proprietários da casa de diversões, o próprio Agenor Gomes Nogueira, bem penteado, bem vestido, bem barbeado, tratando com urbanidade e cumprimentos os senhores, as senhoras e senhoritas que entravam e com uma altura olímpica e desconfiada a multidão de rapazes e estudantes. Sua presença tornava impossível qualquer tentativa de carona. (...) Ao fundo da sala de espera, fonte rústica luminosa, com tanque cheio de peixinhos vermelhos. Duas escadas de grades prateadas levavam a uma sacada de orquestra e às duas portas que davam para os balcões. Era o suco da uva. A sala de espera estava cheia. Olhávamos e éramos olhados. Estávamos no trinque dos almofadinhas da época. Chapéu enterrado até às orelhas, colarinhos altos com gravatas borboleta ou longas e se perdendo, estas, depois de parábola ousada, no alto colete de doze casas de que a inferior nunca era abotoada. Paletós cintadíssimos e compridos, atochados de enchimentos nos ombros e nos peitos. Calças largas em cima e apertadíssimas embaixo (a medida da boca era tomada pelos alfaiates, freguês sem sapato – do alto do tornozelo ao calcanhar: só o necessário para o pé passar estendido). Polainas. Calçado ponta de agulha. Flor no peito, como os outros moços e como eles quase todo o lenço para fora do bolso alto do paletó. Acabou a primeira sessão. Esvaziada a sala de projeções, abriam-se batentes de púrpura da cortina de veludo das duas portas que lhe davam acesso. Campainhas tinindo, entrava o pessoal da segunda.” (NAVA, Pedro. In: Rua da Bahia. 52 p. p.37.38) Se no seu interior o Odeon deslumbra os freqüentadores e se estabelece como um dos principais cinemas da cidade, firmando-se como catalisador dos eventos sociais do seu tempo, é também do lado de fora, nas suas imediações, testemunha de acontecimentos inusitados protagonizados por estudantes e populares. “O Odeon foi o principal (cinema) e fez furor no seu tempo. Era o centro elegante, onde as melhores famílias se reuniam para assistir aos filmes e os estudantes boêmios ficavam à porta, à espera da saída, para gozar a contemplação das beldades da época. Ali se desenrolaram igualmente, fatos importantes da nossa vida social e política, dando uma vibração estranha a uma cidade nova que começava a adquirir suas características próprias.” (HORTA, Jair Rebelo. Diversões, Teatros e Cinemas. In: Revista Social Trabalhista. Belo Horizonte, número 59, 12 de dezembro 1947. p.349.356) Os fatos importantes aos quais o escritor se refere aconteceram em 1922 e 1927, todos relacionados à movimentação gerada pelo cinema nos seus arredores. O primeiro, originado pela revolta de estudantes e populares, devido à alta nos preços dos ingressos. Estes invadem e depredam o cinema e ainda incendeiam alguns bondes. Em 1927, um confronto violento envolve a polícia e populares, tendo como causa a proibição de aglomeração nas proximidades do cinema. O Cine Odeon, inaugurado em fevereiro de 1912, pelo Sr. José Poni, fica na Rua da Bahia até o final da década de 20. Seu fechamento causou tristeza, deixou saudades e uma clara certeza de marca de época. Sentimentos de uma geração inteira, expressos no poema “O fim das coisas” de Carlos Drummond de Andrade: Fechado o Cinema Odeon, na Rua da Bahia. Fechado para sempre. Não é possível, minha mocidade fecha com ele um pouco. Não amadureci ainda bastante para aceitar a morte das coisas que minhas coisas são, sendo de outrem, e até aplaudi-la, quando for o caso, (Amadurecerei um dia?) Não aceito, por enquanto, o Cinema Glória, maior, mais americano, mais isso-e-aquilo.
Quero é o derrotado Cinema Odeon, o miúdo, fora-de-moda Cinema Odeon. A espera na sala de espera. A matinê Com Buck Jones, tombos, tiros, tramas. A primeira sessão e a segunda sessão da noite. A divina orquestra, mesmo não divina, costumeira. O jornal da Fox. William S. Hart. As meninas-de-família na platéia. A impossível (sonhada) bolinação, pobre sátiro em potencial. Exijo em nome da lei ou fora da lei que se reabram as portas e volte o passado musical, waldemarpissilândico, sublime agora que para sempre submerge em funeral de sombras neste primeiro lutulento de janeiro de 1928. Em 1926, o CLUBE BELO HORIZONTE, um dos primeiros da cidade, lança a pedra fundamental de sua nova sede à Rua da Bahia esquina com Álvares Cabral. Surgido de um tímido Clube das Violetas, que crescera e tivera de oficializar-se como instituição social, o Clube Belo Horizonte é inaugurado no início do século XX.
Palacete onde funcionou o Clube das Violetas. (AIEPHA)
Mais tarde, passa a funcionar nos altos do sobrado onde ficava o Odeon, na Rua da Bahia, desdobrando a elegância do lugar. Com seus recitais, “horas dançantes” e memoráveis bailes de carnaval, desperta os sonhos da jovem e romântica elite, depois transformada em nomes e sobrenomes de tradição. Ainda conduzidos por Pedro Nava, passearemos por este Clube, de acesso restrito à “fina-flor” da sociedade local.
“...Logo no corredorzinho de entrada o Paulo mostrou porta à esquerda. Essa é a sala de leitura. Era alegre, empapelada de cinzento-claro com frisos brancos, larga mesa central redonda, com todas as revistas e jornais fornecidos à leitura dos sócios. Estes e aquelas eram presos em longas varas de madeira – dobradiça na extremidade e cadeadinho na outra, para as folhas não desaparecerem. Sofá, poltronas, cadeiras de palhinha. Nas paredes, retratos dos presidentes e beneméritos do fino grêmio. Numa bela moldura e confirmando a filiação ao Clube das Violetas, fotografia de uma diretoria do mesmo entre cujos membros se destacava a figura, ainda muito moça, mas de maiores bigodes, do meu amigo Dr. Afonso Pena Júnior. Desta sala passamos à da frente, a dos bailes, com mobiliário preto torneado e muito belleépoque, sofás e cadeiras ao longo das paredes. Duas jardineiras com altos espelhos se defrontavam – uma em cada parede lateral. No canto direito de quem entrava, um estrado para a orquestra, onde se viam as estantes das partituras e fechado, um belo Pleyel espelhante e negro. Peanhas nas paredes para jarros de metal prateado, mais faiscantes sobre o fundo musgo. Como era dia comum, o salão estava servindo para a concentração cerebrina dos jogadores de xadrez. Havia quatro mesas, mas só uma ocupada por dois homens silenciosos que ora olhavam agudamente para o tabuleiro e as pedras, ora um ao outro e então, com rancor... Prudentemente recuamos para a galeria onde nosso guia mostrou porta próxima ao salão. Abriu mas não entrou e nem nos deixou entrar. Aqui ficam o toalete e a privada das moças. É hábito ninguém penetrar aqui nem usar a banca sacrossanta. O bidê então! Nem se fale... Cada sócio considera isso, por parte do outro, um desrespeito às senhoras e moças da própria família... “Após percorrer outras dependências do Clube, ao final o nosso passeio termina de forma bastante agradável.” ... Saímos para admirar do lado dependência com toucador de grande espelho – destinada para o retoque do toalete dos cavalheiros e mais a entrada da copa-cozinha. No centro das peças descritas por último, era o bufê e abancamos a um canto, enquanto o Paulo parlamentava com o garçom e ordenava três botelhas geladíssimas. Tinindo, amigo. Uma Antártica e duas Brahmas.” (NAVA, Pedro. In: Rua da Bahia. 52 p. p.33.35) Instalado na nova sede, em 1929 o Clube Belo Horizonte passa a denominar-se “Jockey Club de Belo Horizonte”, onde funcionou em seus porões o não menos lendário CINE GUARANI. Antes mesmo do fechamento do Cine Odeon e da transferência do Clube Belo Horizonte para novas instalações, Belo Horizonte passa por uma profunda crise econômica entre os anos de 1914 a 1918, em decorrência da Primeira Guerra Mundial. Como conseqüência da grave recessão e das dificuldades de importação do material de construção, as obras na cidade são praticamente paralisadas. Há relatos de que à época grande parte das residências, casas comerciais e outros estabelecimentos encontravam-se fechados. No início da década de 20, com a retomada do comércio e expansão da indústria, bancos, rede hospitalar e de ensino, a capital de Minas volta a receber um número cada vez maior de estudantes e trabalhadores. Nesse contexto, um expressivo evento no destacado centro comercial da Rua da Bahia marca uma série de mudanças. A inauguração, em 1921, do PARC ROYAL, com seus artigos importados e luxuosos, revigora as atividades comerciais e de lazer da Rua da Bahia. Juntando-se ao Teatro Municipal, localizado do outro lado da Rua, o Parc Royal reforça este quadrilátero da elegância belohorizontina onde, desde os anos 10, boa parte dos estabelecimentos comerciais sofisticados da cidade estão concentrados. O edifício do Parc Royal é uma das poucas construções remanescentes na Rua da Bahia, cuja beleza está, praticamente, sufocada pelos prédios modernos de grande porte. No período que vai desde a inauguração até a primeira década do século XX, a ocupação urbana da Rua da Bahia é caracterizada basicamente por construções de um pavimento.
Encontramos ali apenas alguns sobrados, com os andares superiores sendo utilizados para residências familiares e o andar térreo com predominância de serviços e comércio.
Edifício Parc Royal, quando da inauguração. (AIEPHA)
Parc Royal hoje. (AIEPHA)
“Temos a Casa London, a Gallot e outras lojas de moda, magazines e alfaiatarias. A casa Ômega – relógios e jóias, a papelaria e tipografia Gibraltar, alguns escritórios e firmas, uma agência de automóveis, a redação do jornal “A Capital” de Celso D’Ávila, o bem instalado atelier fotográfico de Olindo Belém, a leiteria Flora e a “Excelsior”, fábrica de balas e bombons. Dessa breve descrição pode-se destacar a “Livraria Alves” e um pouco acima a “Confeitaria High-Life”, locais freqüentados “pela rapaziada chic da capital.” (Projeto Rua da Bahia Viva. 56 p. p.11) E mais: Giácomo, Charutaria Flor de Minas – onde o Presidente Antônio Carlos comprava seus charutos -, Confeitaria Suíça, Confeitaria Celeste e Farmácia Americana. Nos primeiros anos da capital, além da Livraria Alves o, CAFÉ ESTRELA, que fica instalado no número 1004, logo abaixo da Livraria Francisco Alves, torna-se o ponto de aglutinação da intelectualidade. Juntamente com o Bar do Ponto, o Estrela dá à Rua da Bahia o status de reduto da boemia inteligente, representada por um grupo conhecido como “os rapazes da Rua da Bahia.” É a geração dos “Modernistas”, que traz como referências nomes como o de Pedro Nava, Cyro dos Anjos, Emílio Moura e Carlos Drummond de Andrade. Composta por jornalistas, escritores, poetas, políticos, artistas, advogados e estudantes, esta boemia tem seu ápice nos anos 40 e 50, e seu itinerário etílico nos faz passar por bares antológicos como a Elite, Trianon, Lanchonete Nacional, Gruta Metrópole. Boemia que a partir dos anos 60 vai se encurralando, se resguarda nos bares e inferninhos do Maletta e, desde 1962, sobrevive nos pequenos salões da Cantina do Lucas. Antes de passarmos a este mundo boêmio, submerso nas mesas dos bares, voltemos à paisagem urbana e comercial da Rua da Bahia. No final dos anos 30, significativas transformações ocorrem pela determinação do prefeito Otacílio Negrão de Lima (1935-37), que manda retirar o ponto final dos bondes da região, em frente ao Bar do Ponto, e instalá-los, assim como os abrigos, na Praça Sete. Em 1937 o Bar do Ponto é fechado, o Cine Odeon já não existe, o Teatro Municipal não resiste e declina. Toda a movimentação comercial que antes havia no entorno, vai perdendo sua importância. Em 1959 é demolido o prédio que abrigava o Bar do Ponto e outros estabelecimentos comerciais. No seu lugar é construído um luxuoso edifício de 22 andares: o Othon Palace Hotel. Se não fora visível, concreta a sua profunda transformação, seria impossível imaginar que esta cidade, nascida de um lugarejo, em menos de 30 anos passaria a abrigar bem mais do que os duzentos mil habitantes previstos por seus planejadores. Este rápido crescimento acabou por descentralizar as atividades e, lamentavelmente, transfigurar em quase sua totalidade o histórico cenário arquitetônico de Belo Horizonte. Mesmo assim, tais transformações não roubaram da Rua da Bahia sua essência de abrigo para acontecimentos das mais variadas vertentes. Desde a tradicional fé católica, simbolicamente demarcada pelas torres da Basílica de Lourdes, aos mais desvairados desatinos da juventude intelectual e boêmia, nos bares, inferninhos e salões de prostituição, a Rua da Bahia é mesmo “o mundo”. Localizada na esquina de Bahia com Aimorés, em 1902 a BASÍLICA DE LOURDES era apenas uma capela (demolida em 1982). Em 1916, lançou-se, ao lado desta capela, a pedra fundamental para a construção da Igreja de Lourdes, inaugurada definitivamente em 14 de outubro de 1923. Além do aspecto religioso, a Basílica de Lourdes é um raro exemplo de preservação de uma edificação de grande valor arquitetônico, e um ícone para a alta sociedade mineira, onde se realizam cerimônias religiosas, principalmente casamentos, que reúnem importantes nomes da política e do empresariado.
“A obra foi conduzida por Antônio Gonçalves Gravatá, com base no projeto do Missionário Claretiano Echarri, que se apoiara na planta de uma igreja de Córdoba (Argentina). Manuel Ferreira Tunes havia modificado aquelas plantas, acrescentando-lhes o cruzeiro e as duas naves. A torre da igreja só foi construída anos depois, entre 1929 e 1930. De acordo com o próprio Gravatá, em entrevista de 1929, a Basílica é toda em estilo gótico puríssimo.” (Calendário Cultural Rua da Bahia. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Abril 1995)
Basílica de Lourdes com capela. (AMHAB)
Situado à Rua da Bahia esquina com Bernardo Guimarães em um moderno edifício, pelo menos à época de sua inauguração, em 1974, contrastando com a arquitetura neogótica da Basílica de Lourdes, a sede do BDMG-Banco do Desenvolvimento de Minas Gerais, tornou-se referência cultural na Rua quando, em 1988, inaugurou um anexo para abrigar do BDMGCultural. O prédio principal está localizado no terreno onde havia uma antiga construção que funcionava como sede da Secretaria de Administração. Durante os trabalhos de construção foram encontradas, enterradas no solo, várias armas brancas como facas, garruchas e revólveres de pequeno porte, o que levou a equipe de obras a conjeturar que nesta edificação tenha funcionado também uma delegacia de polícia. O prédio do anexo do BDMG-Cultural, também situa-se num terreno anteriormente ocupado por uma antiga casa em cuja fachada encontravase a inscrição “São Vicente de Paula”, o que leva a crer tratar-se de algum abrigo pertencente às obras de caridade daquela instituição.
Local da futura sede do BDMG. (Acervo Banco do Desenvolvimento de Minas Gerais-ABDMG)
Vista panorâmica do prédio do BDMG. (ABDMG)
Em 1916, quando era lançada a pedra fundamental da Igreja de Lourdes, as irmãs da congregação espanhola “Filhas de Jesus” iniciavam as atividades do primeiro colégio da Rua da Bahia: o COLÉGIO IMACULADA CONCEIÇÃO. Após 86 anos, o Colégio Imaculada ainda funciona no prédio de número 1534, cuja construção original permanece praticamente intacta e foi considerada bastante arrojada para sua época. Nas suas primeiras décadas o Imaculada funcionou também como internato e, até o início dos anos 70, só aceitava moças. Em 1949 a Revda. Madre Superiora da Congregação Maria Concepcion Valentin adquiriu uma bela casa, na Rua da Bahia 1764. Esta histórica construção que data dos primórdios da cidade e pertencia ao Sr. Carneiro Rezende, foi transformada em um jardim de infância, com o nome de Jardim Azul do Imaculada. Em 1951, o espaço foi ampliado quando a congregação adquiriu a casa vizinha que pertencia à família Melo Franco. Em 1954 foi incorporado o terreno da esquina com a Rua Gonçalves Dias, de propriedade do Sr. Peny Orsini e, finalmente em 1967 foram adquiridas mais duas casas que pertenciam ao Dr. João e Márcio Carneiro de Rezende. Em 1977 todos esses prédios foram demolidos dando lugar à uma moderna construção com projeto arquitetônico de Wadi Simão. Atualmente o Colégio Imaculada e o Jardim Azul somam cerca de 1500 alunos. Ao lado do Colégio Imaculada Conceição, na Rua da Bahia 1466, na antiga mansão da família Borges da Costa, está sediada, desde 1987, a ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS. Esta construção, clássico da vila romana, data, provavelmente, da década de vinte, sendo considerada um marco de sua época. O solar foi comprado pelo Governo do Estado, que através do decreto 25.993 de 30 de junho de 1986, resolveu desapropriá-lo. Neste mesmo ato, o Governo desapropriou o terreno lateral, onde havia outra antiga construção. No lugar, foi construído um anexo, de arquitetura moderna em concreto e lâminas de vidro verde. O professor Artur Vítor Iannini, presenciou a despedida dos moradores do palacete e nos descreve a riqueza de seu interior: “A casa impressiona pelo que ainda representa em termos artísticos: sua fachada de grandes proporções é valorizada por um portão e gradis muito trabalhados. Uma graciosa escada nos leva à entrada principal, cujas portas rebuscadas chamam a atenção de todos os visitantes que iniciam uma verdadeira viagem ao passado. A sala de entrada ou vestíbulo obedece ao estilo romano... Em seguida surge a sala principal ou salão nobre, de impressionantes proporções. Uma monumental escadaria foi construída em madeira
valiosa, não havendo pregos ou encaixes. Ainda nesse mesmo aposento tem-se um magnífico vitral de aproximadamente seis metros de altura com motivos “Art Nouveau.” Outro vitral possui menos largura, embora atinja os dois andares da casa. Convém salientar que todos os lustres, de valor incalculável, foram deixados como doação da família Borges da Costa à Academia Mineira de Letras...” (Artur Vitor Iannini. In: Jornal de Casa. 1987) Ainda nestas imediações encontramos no mapa cultural da Rua da Bahia importantes referências como o Colégio Dom Cabral e o Teatro do NET-Núcleo de Estudos Teatrais – que funciona num antigo casarão, do início do século passado, na esquina de Bahia com Timbiras. Recentemente restaurado, este prédio abriga em seus porões, diversos estabelecimentos comerciais, dentre eles o Café Cultura. Na casa da Associação Mineira de Imprensa também encontramos o Teatro AMI e, logo abaixo e de construção recente o Teatro da Cidade. Um pouco mais acima, o Instituto Cultural Brasil Estados Unidos tem sede desde 1969, em um prédio projetado pelo arquiteto Sylvio de Vasconcellos. Em estilo moderno foi construído para abrigar salas do curso de inglês. Em 1993, seu auditório foi transformado em teatro e o hall em galeria de arte. Descendo a Rua da Bahia encontramos um importante e popular espaço público de lazer e entretenimento, ali estabelecido desde a inauguração de Belo Horizonte: o PARQUE MUNICIPAL. No coração da cidade, com uma área originalmente calculada em 570 mil m2, este vasto espaço verde que resguardava a antiga casa da chácara do Sapo, residência do engenheiro chefe da comissão construtora, foi bastante reduzido ao longo do tempo. “No projeto do Parque Municipal, de autoria do paisagista francês Paul Villon, integrante da Comissão Construtora, estavam previstos e aprovados pelo governo do Estado alguns equipamentos que, por economia, não foram construídos: um cassino, um restaurante, um observatório meteorológico, uma ponte artística e um belo portão de entrada” (In: Bello Horizonte: bilhete postal. 204 p. p.27)
Ponte rústica do parque. (AMHAB)
De acordo com o projeto de Paul Villon, uma represa foi construída por volta de 1897. O parque ganhou pontes rústicas – bastante usadas à época – e belos jardins, oferecendo aos visitantes aprazíveis recantos de lazer. Na década de 30, a paisagem foi enriquecida por uma coleção de aves e animais da fauna mineira, que eram expostos ao público. “No matinal domingo do parque à Glaziou, pares adolescentes transitavam pela pontezinha de troncos fingidos, que, em airoso arco, os depunha na ilha dos Amores, pequena demais para caber tanto amor. Remava-se no lago das Garças, bebia-se chope no quiosque, e, com as pequenas do subúrbio, o
estudante se ressarcia do carinho que lhe negavam as emproadas moças do palacete.” (ANJOS, Cyro dos. 1979. In: Bello Horizonte: bilhete postal. 204 p.p.111) Mas descer a Rua da Bahia, não significava apenas ingênuos e pitorescos passeios no parque. Descer era também um passeio proibitivo para muitos, especialmente após certa hora da noite. “... A partir das dez e meia da noite. Dessa hora em diante, descer era fazê-lo para os cabarés, os lupanares – para a zona prostibular da cidade, em suma. Nessa hora, notava-se como que um branle-bas no Clube Belo Horizonte, onde encerravam-se as rodas de jogo, esvaziava a sala de leitura, passava o último cafezinho, as luzes iam se apagando; no Trianon, onde vários habitués pediam suas notas, arrastavam as cadeiras, levantavam-se e davam até amanhã aos que ficavam... Acontecia o mesmo no Bar do Ponto, no Fioravanti, no Estrela. Formavam-se grupos e todos tomavam a mesma direção, em Afonso Pena, sob o fícus, até virarem em Espírito Santo, Rio de Janeiro ou São Paulo que eram os caudais que desaguavam no quadrilátero da zona. Esse compreendia tudo que ficava entre Bahia, Caetés, Curitiba e Oiapoque, vasta área de doze quarteirões de casas... Assim, esse trecho da cidade ficava numa depressão. Para nele chegar era preciso marchar rampas abaixo e daí o significado especial de “descer” dado pelos belo-horizontinos à ação de ir à zona...” (NAVA, Pedro. Beira-Mar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p.54)
Batalha Real. (AMHAB)
O Carnaval também fez tradição na cidade em seus primeiros cinqüenta anos de existência, com uma marca registrada: as famosas “marchinhas”, de caráter regional compostas por músicos mineiros, com destaque para Rômulo Paes e Gervásio Horta. Durante o dia havia a “Batalha Real” na rua, onde as pessoas dançavam e lançavam serpentinas, confetes e lançaperfumes. Havia também o “Corso” que era o desfile de grupos fantasiados em carros abertos, na Av. Afonso Pena. Nos clubes, os bailes aconteciam à noite. A Rua da Bahia ficou memorizada nesta marcinha carnavalesca de Rômulo Paes e Gervásio Horta: “Eh, eh, Maria/ está na hora de ir pra Rua da Bahia/ Ai, seu moço/ Saudades do meu Colosso/ A bóia era dois mil reis/ E o Grande Hotel dos coronéis/ As águas já rolaram/ Na Rua da Bahia/ Mais do que em Três Marias/ Ai que bom um chope no Trianon/ Carnaval não havia ciúme/ Na batalha de lança-perfume/ Eh, eh Maria/ Está na hora de ir pra Rua da Bahia.”
Radialista, poeta, grande apaixonado pela Rua, Rômulo Paes recebem como homenagem um monumento na Rua da Bahia com Av. Álvares Cabral, onde há a inscrição de uma célebre frase de sua autoria: “A vida é esta: subir Bahia e descer Floresta.” Com o passar dos anos, o carnaval de Belo Horizonte foi se transformando e ficou, praticamente, confinado aos bailes dos clubes. Em 1975, surge a REPÚBLICA INDEPENDENTE DA BANDA MOLE, que reinaugura o carnaval popular na cidade com o lema “Pernas pro ar que ninguém é de ferro.” Inicialmente o grupo fazia sua concentração na Rua Grão Mogol reunindo, com muito humor membros de blocos caricatos e homens vestidos de mulher. Nos anos 80, a Rua da Bahia passa a ser o itinerário dos desfiles da Banda Mole, reunindo verdadeiras multidões no trajeto daquela Rua esquina com Goiás até a Rua Fernandes Tourinho, na Savassi. Atualmente, além dos desfiles da Banda Mole, a Rua da Bahia assiste a Passeata do Orgulho Gay, realizada anualmente por grupos de homossexuais, seguindo uma tendência que acontece em várias cidades do mundo, na mesma época do ano. Na década de 30, Belo Horizonte começa a ensaiar passos de cidade grande. Em 1935 ganha seu primeiro “arranha-céu”, com 10 andares, e estabelece novas referências culturais e de lazer. Uma delas é o MINAS TÊNIS CLUBE, inaugurado em 1937, na esquina de Rua da Bahia com Antônio Aleixo, no terreno originalmente destinado ao Zoológico de Belo Horizonte. Esta tradicional sede social é um importante exemplar da arquitetura art deco. O projeto do arquiteto Raphaelo Berti guarda em seus salões a memória das famosas “missas dançantes.” Estes bailes, assim chamados por serem realizados aos domingos, logo após a missa das 10h, eram freqüentados por jovens da alta sociedade local, que dançavam valsas e tangos. À noite, após o footing na Praça da Liberdade, voltavam ao Clube para dançar.
Cerimônia de inauguração do Minas Tênis Clube. (AMHAB)
Em seus quase 70 anos de existência, com mais duas sedes na cidade, o Minas Tênis Clube continua promovendo junto aos seus associados atividades culturais e esportivas, destacando-se em várias modalidades no Brasil e no exterior. Dois quarteirões abaixo, entre as Ruas Tomás Gonzaga e Alvarenga Peixoto, em frente ao prédio inicialmente destinado à Fundação Oswaldo Cruz, hoje Biblioteca Pública Estadual Luíz de Bessa, instala-se o histórico COLÉGIO METODISTA IZABELA HENDRIX, fundado em outubro de 1904, por Miss Martha Watts, que representava o Concílio Missionário de Senhoras da Igreja Metodista do Sul dos Estados Unidos.
"Em 1930, por 600 contos de réis, a então Reitora Miss Leila Putman adquiriu um quarteirão inteiro, localizado na Rua da Bahia, nas proximidades da Praça da Liberdade, para onde a escola seria transferida, assim que os prédios fossem construídos. Uma missionária americana, Miss Mary Sue Brown, foi responsável pelo projeto arquitetônico dos novos prédios que começaram a surgir na rua que logo se tomaria famosa. As plantas foram elaboradas de acordo com os dispositivos do Conselho Nacional de Construções Escolares dos Estados Unidos e do Departamento de Ensino do Brasil. Seguia, assim, o modelo americano de construção escolar com as devidas adaptações para o Brasil.” (Calendário Cultural Rua da Bahia. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Junho 1995) A construção do Izabela Hendrix foi feita sob a supervisão do engenheiro Alfredo Santiago, também responsável pela edificação do Cine Brasil. O estilo art deco, de linhas puras e simplificadas bem se harmoniza com os vizinhos Minas Tênis Clube, na mesma Rua, e o Palácio do Bispo, do outro lado da Praça da Liberdade. Após algumas reformas nos anos 80, o projeto original foi modificado e o Colégio, com cursos de ensino superior, passa a denominar-se Instituto Metodista Izabela Hendrix. O auditório também sofreu reformas e, atualmente, dá nome a um teatro com moderna aparelhagem técnica e infra-estrutura, que permite a realização de eventos culturais. Nestas cercanias encontramos, na Rua da Bahia com Gonçalves Dias, atrás do prédio da Secretaria de Finanças, este que seria o edifício destinado à Imprensa Oficial. Entretanto, durante sua construção (1895-97) a planta sofreu adaptações para abrigar a Secretaria de Polícia. Depois desta destinação primordial, o local foi seguidamente ocupado por entidades diversas: Externato do Ginásio Mineiro, Arquivo Público Mineiro e Anexo da Secretaria de Finanças. Provavelmente demolido na década de 50, deu lugar a uma típica edificação moderna, onde atualmente está instalado o anexo da Biblioteca Pública Estadual. No final da década de 30, a transferência dos bondes para a Praça Sete transforma a região do extinto Bar do Ponto e alguns estabelecimentos das proximidades em uma área de pouco interesse aos olhos do público, especialmente da "elite social." O Teatro Municipal reflete a imagem desoladora da decadência do local e recebe o fatídico apelido de "pardieiro." Em 1939, apesar da tentativa de recuperação do prédio, as obras iniciadas são estancadas diante do projeto de um grande teatro no Parque Municipal. Dois anos depois o prédio do Teatro Municipal é transferido para o grupo empresarial Cine Moderno, que deu prosseguimento às obras e o reinaugurou, agora na atividade cinematográfica, com o nome de CINE METRÓPOLE. Esta iniciativa refaz a movimentação do lugar, comprovando a predestinação de centro aglutinador cultural, que a Rua da Bahia demonstra desde os primórdios até os tempos atuais. Especialmente após Juscelino Kubitscheck assumir o comando político da capital, os anos 40 revelam-se agitados e promissores, promovendo determinantes mudanças em Belo Horizonte. Apesar disso, podemos ainda encontrar uma Rua da Bahia aconchegante, preservando em sua faceta mais provinciana, palacetes e sobrados, importantes símbolos da expressão arquitetônica do início do século XX. Alguns, já nesta época transformados em pensões para estudantes, especialmente nos quarteirões abaixo da Av. Afonso Pena. “... Prefiro lembrar apenas como eras acolhedora nos anos 40. O Grande Hotel; o bar de esquina onde, com Rodrigo Mello Franco de Andrade e Milton Campos, tomávamos nosso chope; a rua da Bahia com suas pequenas lojas, cafés e leiterias e depois o Parque Municipal. Mas o tempo passou...” (NIEMEYER, Oscar. In: SILVA, Newton e D’AGUIAR, Antônio Augusto. Belo Horizonte, a cidade revelada. Belo Horizonte: Fundação Odebrecht. 1989)
(ALG) Desmanche do Cine Metrópole (ALG)
Após intensa e assustadora transformação arquitetônica, a partir dos anos 40 o passar do tempo deixou seu rastro de renovação e modernidade na Rua da Bahia. Intensificado nos anos 50, o “processo de verticalização” trouxe uma grande descaracterização, marcada pelo constante surgimento de edifícios. Nesta época, paralelo ao início da decadência do comércio chic, encontramos fortemente instalado na Rua um verdadeiro centro da mais pura boemia. Com bares, lugares e personagens antológicos, estes espaços tornam-se fundamentais na criação da identidade e na construção cultural do povo belo-horizontino que, no caldeirão das evoluções, mescla conservação e transformação, de forma radical.
Av. Afonso Pena com Rua da Bahia. (AMHAB)
Um exemplo destas transformações é a construção dos edifícios Sulacap e Sulamérica, projeto de Roberto Capello, inaugurados entre os anos de 1946 e 1947. Genuínos representantes da onda modernista que varreu os casarões e verticalizou a vida e os negócios na Rua da Bahia,
estes foram construídos no lugar onde havia o deslumbrante prédio dos Correios, cuja inauguração se deu em 07 de setembro de 1906.
Antigo prédio dos Correios. (AIEPHA)
Hall do antigo prédio dos Correios. (AMHAB)
"O prédio ocupado pelo antigo Correio era uma linda edificação que ficava dentro do triângulo formado por Bahia, Tamoios e, à frente, pela avenida Afonso Pena. Era róseo, de arestas pintadas de branco, alternando largos janelões com elegantes janelas finas. Tinha porão habitável, dois pisos e seu maior requinte estava no vestíbulo cuja altura era dos seus dois andares juntos... Era grande como praça pública e servia para encontros de toda a sorte, inclusive os de amor." (NAVA, Pedro. 1985. ln: Bello Horizonte: bilhete postal. 204 p. p. 117) Apesar da rápida evolução, e de sua caracterização como cidade contemporânea, Belo Horizonte resguarda, nos hábitos e costumes de sua população, a tradição das cidades coloniais. A cachaça e a cerveja têm lugar garantido nas mesas dos bares e restaurantes. Mais que pontos de encontro, referenciais sociais incontestáveis para o povo desta capital com jeito de província. "Estou pensando, é claro, na cidade ainda provinciana que era Belo Horizonte até os anos 40, quando o prefeito Juscelino Kubitscheck a sacudiu com manifestações culturais inéditas, semeou edifícios revolucionários na beira da Pampulha e plantou o teatro Municipal que ficou se arrastando como um esqueleto na verdura do Parque. Naquela altura as linhas aéreas começaram a funcionar e encurtaram a
distância do Rio, antes só alcançado por meio de viagens trabalhosas e empoeiradas, de trem ou de automóveis ainda lerdos nas estradas de terra... Na rua principal (da Bahia) cortada pela avenida (Afonso Pena), o menino sofre a penosa decepção do sorvete que se revela de um insólito intragável. E foi ali mesmo que o escritor cumprira a fase mais crepitante de sua formação intelectual. nas livrarias, nas confeitarias e bares, convivendo com um grupo de amigos mais ou menos da mesma idade, cujo modo de praticar o humor, alinhar a frase, ver e comentar o mundo forma a aura meio vaga e nem sempre homogênea a que me referi (...) Como acontece na província,fez parte da formação deles algum atraso no gosto, misturado ao interesse ativo pela novidade... " (CÂNDIDO, Antônio. Drummond prosador: singularidade do traço. In: Revista do Brasil. Rio de Janeiro: Secretaria de Ciência e Cultura. Ano I, n. Q 2,1984.) Consumida com prazer nos restaurantes, bares e botecos da cidade, vem de muito longe a relação dos mineiros com a cachaça. Pode-se dizer que ela começou a ser produzida em Minas Gerais logo no início da ocupação do território, mesmo tendo seus engenhos proibidos pela Coroa Portuguesa. Já a cerveja, teria sido trazida pelos italianos, que além de fabricá-la, eram proprietários dos melhores botequins. A palavra bar só foi usada no início do século, com a inauguração do Bar do Ponto. "A cerveja chegou a Belo Horizonte com os imigrantes italianos e alemães. Em 1897, antes do encerramento dos seus trabalhos, a Comissão Construtora ofereceu a quantos, funcionários e trabalhadores, haviam labutado nas obras da nova Capital uma churrascada de carne de boi, regada a cerveja, trazida do Rio em trem da Central do Brasil. A primeira que aqui se fabricou foi a do italiano Carlo Fomaciari, que para cá viera com a família, instalando-se numa velha casa do extinto Curral del Rei, junto da Matriz da Boa Viagem, a produto agradava e, passado pouco tempo, inauguravam Fornaciari e irmãos, numa nova casa da rua Sergipe, ao lado da mesma matriz, a cervejaria Renânia, depois muito ampliada, com o nome de cervejaria Polar, no mesmo local hoje ocupado por sua sucessora, a Antárctica Mineira. Ainda não terminado o século XIX havia no centro da cidade já bem povoada, restaurantes, confeitarias, casas de bebidas, cafés e inúmeros botequins, sendo bem animada a vida boêmia." (FRIEIRO, Eduardo. Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros. Belo Horizonte: UFMG,1966. In: Dossiê de Tombamento da Cantina do Lucas. 170 p. p.8) A vida na capital aconteceu e acontece entre as mesas de seus bares e restaurantes e nas suas esquinas, sem qualquer exagera, poucas para tantos botequins. Quem bem descreve esta típica característica é o historiador Eduardo Frieira, cujo olhar sensível e objetivo resume: "O bar é o segundo lar do mineiro. .. "... Ia-se ao Cine Metrópole e, depois, bebia-se na Elite, no Trianon (das empadas inesquecíveis) e, tempos depois, quebrando a rua Goitacazes, na Churrascaria Camponesa, dos pães-de-queijo imperiais. E havia a boemia, a tempo era tão farto e íntimo que sabíamos os nomes dos grandes beberrões, suas façanhas, valentias, casos com a polícia, mulheres e hospitais. Boemia era cultura..." (Dossiê de Tombamento da Cantina do Lucas. 1 70 p. p. 1 7) Que o digam os freqüentadores da GRUTA METRÓPOLE, instalada no número 1052 da Rua da Bahia. Reduto da tradição boêmia desde os anos 40, o bar representou um “sossego” para as pessoas, já que era convencionado por seus fregueses a não permanência de mulheres no seu interior.
Ponto de encontro de “jornalistas, professores, advogados e contadores, empreiteiros, corretores, bicheiros, contrabandistas e trambiqueiros, estudantes, funcionários e políticos. Enfim, a mais admirável mixórdia humana que o álcool soube produzir”, nas palavras de José Bento Teixeira de Salles, um de seus mais assíduos clientes, que, praticamente todos os dias, "batia ponto" por lá. "Até um padre, certo sábado de carnaval, lá apareceu e tomou um porre sagrado de fazer inveja a Noé bíblico", afirma José Bento, autor do respeitado "Regulamento da Gruta", uma bem humorada criação de boêmio, eternizada no registro oral daqueles que por ali passaram. Antes da Gruta Metrópole, outros tradicionais bares na história da Rua da Bahia são pinçados pela memória do jornalista José Bento Teixeira de Salles, que dá sua versão para a vocação boêmia da rua. "A Rua da Bahia tornou-se um centro da tradicional boemia desde o início, com o Bar do Ponto e o Estrêla, que era freqüentado pelo grupo modernista. Nos anos 40 essa tradição foi mantida pela concentração de jornais nos arredores da Rua e pela proximidade com a Faculdade de Direito. Lembro-me bem da Elite, com artigo feminino, porque antes de se tornar um bar era uma casa de chá "grã-fina", e precursora na presença de mulheres nestes lugares." Ele mesmo conheceu sua esposa lá. O costume da época era ver as moças que iam à matinê do Metrópole passarem em frente ao Trianon onde, diga-se de passagem, comia-se a mais adorável e indescritível empadinha da cidade, para depois esperar por elas na Elite. Na esquina de Bahia com Goiás havia também a Celeste, uma lanchonete que servia cerveja e o bar Pólo Norte que não fechava nunca. Mas para José Bento, a Gruta Metrópole foi sem dúvida a mais importante referência daquela geração pontuada por nomes como Oito Lara Resende, Hélio Pellegrino, Murilo Rubião. Talvez pela cerveja rigorosamente bem gelada, pelo pastel deliciosamente inconfundível, pela vocação botequineira do seu dono, Jeferson Pinto, português essencialmente mal-educado, mas com um coração maior que o mundo, ou mesmo pela confusão geral que reinava em seu interior, acolhendo a tudo e a todos, "na mais santa paz de Deus."
Na Gruta Metrópole quase tudo era permitido, entre homens, é claro. Discutia-se futebol, política, economia, literatura. Lá podia-se ir do céu ao inferno em apenas alguns minutos, principalmente quando a necessidade cervejeira dirigia algum freqüentador ao invariavelmente imundo mictório. Mas nada tirava o charme daquele bar que, ao contrário, reinou por décadas inteiras entre os mais renomados lugares de Beagá. "Um capítulo inesquecível na vida boêmia da cidade", sentencia José Bento Teixeira de Salles. Contemporâneo de José Bento, o pintor Petrônio Bax, discípulo de Guignard, guarda muitas outras lembranças de uma Rua da Bahia que o tempo já se encarregou de apagar do cotidiano dos moradores da Belo Horizonte do século XXI. Bax recorda-se do Hotel Globo, onde morou com os pais, na sua mudança de Divinópolis para a capital mineira. Guarda ainda o recibo da temporada de hospedagem no hotel. Mais adiante refaz, lentamente, os passos de sua história na Rua da Bahia. Rabisca em uma folha de papel os pontos mapeados na sua memória, e desenha o itinerário etílico da rapaziada da década de 50 para se fixar em um personagem, inesquecível para ele, e certamente para muitos, protagonista de histórias bem humoradas, no interior ou nos arredores dos bares da Rua da Bahia: "Havia um sujeito muito feio. parecido com o Amigo-da-onça, que só andava de temo de linho branco e forrava com um lenço. oportunamente guardado em um dos bolsos da calça, os bancos dos botequins. Este sujeito, do qual não me recordo o nome, e acho que poucos sabem, era o representante da Antarctica em Minas Gerais. Engraçado, bem-humorado e extremamente espirituoso, era assim o Doca Doido. Há duas histórias memoráveis envolvendo o Doca. A primeira, aconteceu em uma viagem de trem que ele fazia para Divinópolis, quando um padre assentou-se ao seu lado. Doca Doido cumprimentou o sacerdote chamando-o por "Colega." O padre surpreendeu-se e perguntou: O senhor também é sacerdote? Ele respondeu: Não. Mas o senhor não é representante de Deus? Eu sou representante da Antarctica em Minas Gerais. " De outra, Doca Doido, dono de um dos poucos automóveis que circulavam pela cidade, viu-se em apuros quando o seu carro estragou, na Rua da Bahia, paralisando o trânsito local. Entenda-se por isso, fechando a pista para um automóvel que vinha bem atrás dele. O sujeito do carro atravancado pelo de Doca Doido pôs-se impacientemente a buzinar. Doca saltou do automóvel e indagou sob o olhar atento da platéia: "... O senhor sabe consertar o meu automóvel?" O rapaz respondeu que não. Então Doca trancou seu carro e disse: "O senhor por favor, fique aí buzinando que eu vou buscar conserto." E assim se fez. Bax sorri ao contar estas histórias e só transforma sua fisionomia ao lembrar que Doca Doido afirmara que morreria em pé, ao lado de um balcão de bar e teve um final de vida não tão feliz, provavelmente portador de um câncer que o teria matado ainda jovem. Petrônio Bax, consagrado pintor que retrata em sua obra figuras religiosas postadas no fundo do mar, é tido como um dos maiores coloristas do país. Dono de um inigualável azul que recobre suas telas, confessa que nunca foi amante de bebidas geladas. Por isso mesmo, freqüentava a Gruta Metrópole muito mais para "jogar conversa fora" do que pela cerveja, tão idolatrada pelos companheiros de bar e mesa como Wander Piroli, Marcelo Coimbra Tavares, João Viana de Oliveira, José Bento, Cyro Siqueira e Dídimo de Paiva. Nos tempos de juventude, especialmente a partir de 1944, quando passou a estudar pintura com Guignard, até 1951, a via sacra pela Rua da Bahia era para ele um ritual quase que diário. Desses passos recorda-se especialmente do Giácomo, da Charutaria Flôr de Minas, da engraxataria, da Casa da Lente. O caminho etílico incluía a Elite velha, o Estrêla, o Trianon (principalmente pelo bolinho de miolo e pela empadinha) e Gruta Metrópole. Gostava também da Camponesa, na Bahia com Goitacazes, e na volta para casa, invariavelmente, dava "uma
passadinha" na Bosch, onde saboreava o famoso sanduíche de pernil com pão quentinho. O bar do Grande Hotel não fazia parte de seus costumes, apesar de, no final da década de 40, ter feito uma exposição por lá. "Era um bar conservador", indiscutivelmente um lugar pouco apropriado para estudantes e artistas. Sobre o Maletta, Bax fala pouco. Lembra-se da Cantina do Lucas, onde ia mais pelo vinho e pela comida. Escolhia seus pratos sempre bem orientado por "Seu Olympio", famoso garçom do restaurante, carinhosamente chamado por ele e por muitos outros, de "Tio Olympio", e critica: "O grande defeito do Maletta é que lá não tem um banheiro que preste." As histórias da boemia intelectual da Rua da Bahia, nas décadas de 40 e 50, não são contadas apenas pelo olhar masculino graças à memória de uma mulher, certamente tão peculiar quanto a própria Rua. Histórias que se misturam à sua biografia. Uma fiel representante do espírito deste universo excêntrico, inovador e, sobretudo, desafiador de seu tempo. Cordélia Fontainha Seta, nascida em 1929 na cidade de Juiz de Fora, mudou-se para Belo Horizonte, com os pais Romolo Leonello Seta e Amélia Fontainha em 1933. Por mais de duas décadas morou no último andar do edifício Teixeira da Rocha, um prédio ainda hoje localizado no nº 1295 da Rua da Bahia. Pioneira em diversas atividades intelectuais iniciadas aos 11 anos de idade, quando começou a escrever para a revista infantil "Era uma Vez", foi também um modelo da vanguarda feminina, extrapolando comportamentos da época que só eram permitidos aos homens. Aos 16 anos de idade, quando poucas mulheres fumavam, comprou seu primeiro cigarro na Charutaria Flôr de Minas. Dirigia o automóvel do pai, freqüentava bares e restaurantes e viajava sozinha. Da Rua da Bahia, na qual teve fantásticas experiências, tem saudades "mas sem melancolia." No extinto Teatro Municipal assistiu apresentações de Aurora e Carmem Miranda e lamenta o fim deste importante símbolo da cultura mineira. Conheceu o Bar do Ponto e o Hotel Globo. Consumiu as famosas empadinhas do Trianon onde se misturava intelectualidade e alta sociedade. Freqüentadora da Elite, compareceu à inauguração do Cine Metrópole e era freqüentadora do Guarani, no subsolo do Clube Belo Horizonte, onde ia aos bailes de carnaval. Nas mesas do bar do Grande Hotel conheceu inúmeras personalidades. Com Murilo Rubião compartilhava amizade e discussões literárias em noitadas no Lua Nova, no andar térreo do Maletta. Só não ia à Gruta Metrópole que, segundo ela, era um local de "bêbados metidos a intelectuais." Essa postura de mulher precursora, de fala enfática e sincera, chega mesmo a demolir opiniões unânimes, como quando se refere ao famoso garçom da Cantina do Lucas "Seu Olympio": "Não sei o que as pessoas vêem neste garçom, um espanhol chato e mal educado, só porque ele é velho?" A participação de Cordélia nos acontecimentos da Rua da Bahia, definida por ela como um dia -a -dia tão rico e extraordinário, inclui uma história inusitada, quando se torna, quase por acaso, corretora de imóveis do Maletta. De férias em Beagá, pouco antes da inauguração do edifício, propõe a Alair Couto, responsável pela incorporação e vendas dos imóveis do Maletta, a coordenação dos negócios. Proposta aceita, Cordélia monta o stand na esquina da Rua da Bahia com Av. Augusto de Lima, local originalmente ocupado pelo bar do Grande Hotel que tantas vezes freqüentou e, onde por cerca de três meses vendeu as primeiras unidades do edifício. Outro lugar insólito na Rua da Bahia foi a Frutaria do Costa, que ficava instalada perto do Maletta. Lá, pela frente, o seu proprietário, vendia frutas frescas expostas em bancas. Atrás
da "muralha" de caixas de madeira que transportavam as frutas, este dividia com o bar do Grande Hotel o privilégio de servir, clandestinamente, doses legítimas de Old Parr aos seus apreciadores. "O que não faltava era poesia. em Belo Horizonte naquele tempo. E que mania de dançar! Chá dançante. matinê dançante, até missa dançante no Minas, aos domingos, depois da missa das 10. Ou nas Gafieiras - como naquela de saudosa memória, nos altos do bar Tip-Top... Naquele tempo. Quem freqüentava restaurante ou tomava taxi, tinha registrados em sua ficha bancária estes hábitos perdulários... Havia também o Costa, com sua casa de frutas se espraiando pela porta e o bar escondido entre caixotes... Às vezes, cruzando calmamente a rua, transeunte como outro qualquer, com seu sorriso de simpatia irresistível, o prefeito Juscelino - a Prefeitura era ali perto naquele tempo, e se não me engano ainda é. Tempo da Pampulha, do Niemeyer, da arquitetura moderna. Brasília nasceu ali." (SABINO. Fernando. Lugares Comuns. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional! Ministério da Educação e Saúde. 1962. In: Dossiê de Tombamento da Cantina do Lucas. 170 p. p. 12) Também nesta Rua encontramos o CAFÉ BAHIA, o primeiro bar 24 horas de Belo Horizonte do qual se tem notícia. Não fechava nunca as portas, mesmo porque não as tinha. Apenas na Sexta-feira da Paixão o seu proprietário encomendava a um marceneiro algumas tábuas, que eram pregadas nas entradas do estabelecimento para serem retiradas no dia seguinte, Sábado de aleluia. Os próximos 364 dias teriam as portas permanentemente abertas, até a Sexta-feira Santa do ano seguinte. O seu proprietário era João Inácio dos Santos. O Café Bahia foi inaugurado em 21 de outubro de 1935 e, fechou as suas portas em 1970, quando o prédio em que funcionava foi adquirido por um estabelecimento bancário e demolido. Transferiu-se para a Rua Tupis, esquina com Rua São Paulo onde ainda funciona sob o comando de Ronaldo, um dos filhos de João Inácio já falecido. O Café Bahia comercializava as melhores cachaças da época, como Caldas Velhas, Monte Negro, Cinco Estrelas, Nova Estrela, Nova Quino, além de atender os menos exigentes com a popular Palha Roxa. Em 1951 acontece em Belo Horizonte um importante movimento cultural capitaneado por três amantes do cinema: a criação do CENTRO DE ESTUDOS CINEMATOGRÁFICOSCEC - que, além de editar, nas décadas de 50 e 60 uma Revista de Cinema de repercussão internacional, arrebanhou uma enorme quantidade de artistas, escritores, jornalistas e cinéfilos, contribuindo para a formação cultural de várias gerações. Esse cineclube fundado por Cyro Siqueira, Jacques do Prado Brandão e Fritz Teixeira de Salles (irmão do jornalista José Bento Teixeira de Salles), embora tivesse a intenção de discutir cinema, acabou formando e exportando para o restante do país incontáveis críticos e diretores, consolidando-se como um importante agente da vida intelectual de Belo Horizonte e do Brasil. Os anos cinqüenta representam um momento de grande efervescência cultural na cidade, promovido por uma nova geração: um grupo de jovens intelectuais apaixonados pela arte cinematográfica. Em seus cinqüenta anos de existência, comemorados em 2001, apesar dos inúmeros e crônicos problemas financeiros pelos quais passou, o CEC só paralisou suas atividades entre os anos de 1968 a 1979, exato período do recrudescimento da ditadura militar no país. Apesar deste vácuo registrado na história da entidade, o mais importante é que o espírito desta nunca deixou de existir. Sem sede para as apresentações dos filmes de arte, cursos ou discussões apimentadas, a turma do CEC se encontrava quase que diariamente nos salões da Cantina do Lucas, fazendo do lugar uma espécie de point dos cinéfilos belo horizontinos. As sessões de cinema do CEC eram um acontecimento, freqüentadas por intelectuais de grande prestígio. Embora não tivesse endereço fixo, e sua sede tenha se estabelecido também
fora dos domínios da Rua da Bahia. (na Rua Curitiba), onde em 1952 funcionou no prédio do Clube Belo Horizonte, nos altos do Cine Guarani, a "alma" do CEC, dita bem o perfil de uma geração que começava a surgir e que seria, por pelo menos duas décadas, uma fiel representante dos costumes e valores de uma época bastante peculiar na vida da capital mineira. Ronaldo Brandão é quem nos narra um pouco da emoção de ser "cequiano": "Mal se podia esperar pelos sábados à noite no CEC. Rua Curitiba, segundo andar do cine ArtPalácio, por uma escada estreita chegava-se a uma sala acanhada., ao templo. Era ali o CEC. Logo à entrada a improvisada cabine de projeção (um único projetor, de 16 mm), a tela em frente, dois armários contendo livros e papéis, no meio da sala espalhavam-se velhas cadeiras de pau, herança de algum cinema desalojado. Mas era o querido, incrível CEC, onde se via e se aprendia de tudo... As retrospectivas iam do cinema alemão ao russo e soviético, até mesmo escandinavo, e por que não uma mostra de inéditos de Buster Keaton à disposição." (COUf1NHO, Mário Alves e GOMES, Paulo Augusto (organizadores) Presença do CEC - 50 anos de cinema em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Crisálida. 2001. 256 p. p. 29. 30) O mesmo Ronaldo Brandão, jornalista e crítico de cinema, que chegou ao CEC em 1956, e tornou-se seu presidente em 1968 (quando este teve suas portas fechadas pela ditadura militar), também comandou o CINEMA NOVO, inaugurado no Festival de Cinema de Belo Horizonte, em 18 de dezembro de 1968, e que por cerca de quatro anos funcionou na Rua da Bahia, mais exatamente na Galeria San Remo, numa sala projetada pelo arquiteto Álvaro Hardy, o Veveco. Este cinema, uma vanguardista sala de filmes alternativos, a primeira profissional, neste segmento, que se tem notícia no país, como que assumiu durante sua existência as funções do recém-lacrado CEC. Ali eram exibidos filmes de arte. Antes das sessões, o próprio Ronaldo Brandão fazia a apresentação da película do dia e ao final comandava fantásticos, e porque não dizer, cinematográficos debates, que tinham continuidade certa nas mesas da Cantina do Lucas, reduto de cinéfilos. "Nos anos 60, a metropolização de Belo Horizonte avança. As transformações ocorridas na cidade sepultaram, definitivamente, os hábitos e referências do início do século. Os grandes fícus da Avenida Afonso Pena foram cortados para dar lugar ao asfalto, aos ônibus e automóveis... Nessa época. a atividade cineclubista viveu sua fase mais intensa. A exibição dos clássicos do cinema e produções alternativas, aliada a discussões e reflexões. surgiram como contraponto à massificação e acomodação instaladas com os aparelhos de tv. Havia estreita ligação entre os cineastas de Belo Horizonte e a atividade cineclubista... Dois cineclubes se destacaram na época: o Centro de Estudos Cinematográficos (CEC), fundado em 1951, e o Cine Clube Belo Horizonte (CCBH) que seguia orientação católica... O sucesso dos cineclubes levou a Imprensa Oficial a instalar equipamentos de cinema em seu teatro e, também, à criação do Cinema Novo, na galeria do Edifício San Remo, na Rua da Bahia. Estas duas salas eram especializadas em filmes de arte. "(BRAGA, Ataides, et alli. O fim das coisas: as salas de cinema de Belo Horizonte. Belo Horizonte: PBH / SMC / CRA V. 1995. 1n: Dossiê de Tombamento da Cantina do Lucas. 170 p. p. 36. 37) O sucesso do "Cineminha" Novo era tão grande que chegou a incomodar o monopólio comercial do doutor Luciano, detentor de quase todo o circuito de exibição da cidade, provocando uma forte reação, a ponto de comandar junto às distribuidoras um boicote na cessão de fitas. Esta providência surtiu o efeito desejado. Impossibilitados de manter uma programação de alto nível, os organizadores do Cinema foram obrigados a recorrer a películas comerciais de segunda categoria, esvaziando dessa forma sua platéia e seus objetivos iniciais. Em 1954, foi inaugurado pela UFMG um prédio na Rua Gonçalves Dias 1581, quase esquina com Bahia, para sediar o DIRETÓRIO CENTRAL DOS ESTUDANTES-DCE. Este lugar, tombado pelo Patrimônio Histórico, além de se tornar referência por suas atividades
culturais com memoráveis shows e palestras políticas, transformou-se em um importante centro de resistência à ditadura militar que viria a se instalar no país a partir do golpe de 64. Na década de 80 o prédio do DCE passa por uma séria crise de manutenção e chega ao abandono. No início dos anos 90 a empresa Liberdade Produções, com uma ousada proposta, assume a reforma do edifício e recupera não só sua estrutura física, como também seu objetivo inicial de funcionar como complexo cultural. Em agosto de 1992 o Belas Artes Liberdade passa a abrigar três salas de cinema, bar, livraria, lojas, um pequeno palco para shows, oficina para restauro de livros e um espaço alternativo para galeria de arte. O Cine Belas Artes, como é conhecido, é atualmente o cinema de maior importância no entorno da Rua da Bahia. Além da conquista de estar há dez anos com as portas abertas, apresentando ao público uma programação selecionada com projetos diferenciados de filmes de arte e de curta metragem, mantém viva a tradição dos "cinemas de rua" na cidade. Nas comemorações dos dez anos do Belas Artes, foi exposto um painel com fotos de históricos e importantes "cinemas de rua" de Belo Horizonte. "Nascido Cine Belas Artes Liberdade, em 1992, rebatizado como Espaço Unibanco Belas Artes, nosso "Belas" continua com seus dois propósitos de origem: responsabilidade e regozijo. Responsabilidade porque, ciente de ocupar um prédio listado para tombamento e de enorme importância no imaginário de gerações de belo-horizontinos. sentimo-nos no dever de preservá-lo da forma mais harmônica que a arquitetura exige, sem o bisturi que o mercado impõe. Ao mesmo tempo buscamos oferecer serviços de qualidade compatível com sua grandeza histórica. Regozijo porque temos a impressão de sucesso da empreitada. Isso nos é dito pelo público que, todos os dias. contínua e generosamente nos freqüenta e nos diz da alegria de fazer parte da vida cultural de nossa cidade: cinema. shows, encadernação de livros, livraria, souvenirs; isso é o BELAS." (Depoimento de Pedro Olivotto, diretor do Espaço Unibanco Belas Artes) A transição para a década de 60 é caracterizada por significativas alterações sociais, especialmente as de comportamento. É a passagem de um tempo romântico e até mesmo ingênuo para um período de contestações e rompimentos com a cultura dominante. Tempo dos Beatles e da pílula anticoncepcional. Em todo o mundo, os principais setores da vida social e humana sofrem essas transformações, concentradas em um movimento que ganhou o nome de contracultura, No Brasil estes movimentos sociais são intensificados principalmente através dos CPCs-Centros Populares de Cultura, que ligados à UNE-União Nacional dos Estudantes, surgem no Rio de Janeiro, em 1961. e se espalham pelo país. Estes centros tinham como base de formação jovens intelectuais empenhados em destinar sua atuação à conscientização política e à resistência, se engajando totalmente nos procedimentos gerados pelo movimento estudantil. "Os anos 60 foram marcados por uma intensa efervescência cultural, tanto no plano internacional quanto no nacional. Após a Segunda Guerra Mundial, a euforia dos anos dourados que marcaram a década de 50, vem à tona uma geração de jovens que se posiciona criticamente frete à hegemonia política, social e cultural. buscando soluções alternativas para resolver os problemas gerados pelas contradições da modernidade. Esses jovens questionaram os discursos totalitários, o comunismo e a massificação das sociedades industriais, as guerras imperialistas, a explosão econômica dos países periféricos, a repressão política e comportamental. Manifestaram o seu protesto através dos movimentos de contestação que explodiram em vários pontos do planeta: da Primavera de Praga às barricadas de Paris, do festival de Woodstock às passeatas estudantis do Rio de Janeiro. Lançaram o movimento da contracultura em oposição à cultura dominante, carregando a bandeira de paz e amor, que proclamava a integração com a natureza e considerava as reivindicações das minorias. Seguiram as idéias da libertação política e sexual propostas por Marcuse, embarcaram nas viagens psicodélicas do poeta Tímothy Leary, perceberam que habitavam a aldeia global de McLuhan,foram envolvidos pela magia contagiante da música dos Beatles, participaram dos happpenings de Jean Jacques Lebel e olharam com ironia os objetos
de consumo nas imagens de Andy Warhol..." (RIBEIRO, Man1ia Andrés. Neovanguardas: Belo Horizonte -anos 60. Belo Horizonte: C/ ARTE, 1997. In: Dossiê de Tombamento da Cantina do Lucas. 170 p. p. 24. 25) Em meados de 60, a América Latina é assolada por uma onda de Golpes Militares que impõem governos ditadores. No Brasil, o golpe se dá, oficialmente, em 31 de março de 1964, instalando um regime de repressão e horror. . "... De uma hora para outra, o discurso progressista e revolucionário ficava emudecido pelo alarido conservador, pela voz da Ordem, da Moralidade, da Pátria, da Família, das Tradições-mais-carasao-nosso-povo. Surpresa e perplexidade tomavam conta de intelectuais e militantes... Nessa situação, a dinâmica da produção cultural não poderia ser avaliada senão em confronto com as questões de ordem propriamente política colocadas pelos movimentos sociais... Na área teatral a peça Liberdade, Liberdade realizada pelo teatro de Arena, reunindo uma antologia de textos do pensamento político-liberal do ocidente, reafirmava, com grande sucesso de bilheteria, o prestígio da voz eloqüente e engajada. No cinema, o filme Opinião Pública de Arnaldo Jabor ia às ruas, numa forma que fazia lembrar o cinemaverdade... Dois movimentos talvez tenham conduzido com especial significação a linha evolutiva do processo cultural nesse período: O Cinema Novo e o Tropicalismo. O primeiro assumindo um papel de frente no campo da rfj1exão política e estética, expressaria deforma radical as ambigüidades que dilaceravam a prática política do intelectual em nossa história recente. O segundo, catalisando as inquietações e impasses da situação pós-64, iria fazê-las explodir num movimento de renovação da canção que arrombaria a festa, abrindo novas possibilidades criativas para a produção intelectual..." (HOILANDA, Heloisa Buarque e GONÇALVES. Marcos Augusto. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo: Brasiliense. 1985. 1n: Dossiê de Tombamento da Cantina do Lucas. 170 p. p. 21) Em Belo Horizonte, especialmente após 68, o clima de terror imposto pelo golpe de 64 não é diferente e chegou a gerar fatos tão absurdos quanto anedóticos. Tem-se notícia de que um delegado provinciano mandou prender o figurinista francês Pierre Cardin, por atentado ao pudor, por este ter sido o criador da minissaia. Em seu despacho hilário, este teria registrado a seguinte frase: "Prendam este infame, pois ninguém vai levantar a saia da mulher mineira." Jovens, intelectuais de esquerda, artistas, estudantes, enfim todos que se opõem à ditadura militar são empurrados aos guetos ou à clandestinidade. Para se protegerem, alguns se enfurnam em abrigos, outros se mudam para o campo, assumem novas identidades e adotam codinomes. Surge uma nova geração, cujo templo sagrado é erguido exatamente no mesmo local onde, antagonicamente, imperou até 1957 o Grande Hotel, símbolo do conservadorismo mineiro: o edifício Arcângelo Maletta.
O edifício Arcângelo Maletta. (foto: Alessandro Carvalho)
"No início dos anos 60 estava surgindo em Belo Horizonte uma geração de interesses muito diversificados, voltada para a poesia, a ficção e também para as artes plásticas e a música. Havia uma inquietação muito grande que se somava à própria inquietação nacional. Era um período de muita discussão ideológica, de acirramento político das idéias.As pessoas iam se definindo, tomando posições diante da opressão crescente. A arte passou a ser participante voltada para temas críticos e populares." (RIBEIRO. Man1ia Andrés. Neovanguardas: Belo Horizonte - anos 60. Belo Horizonte: C/ ARTE.1997. ln: Dossiê de Tombamento da Cantina do Lucas. 170 p. p. 22) Inaugurado em 1961, o Maletta, monumental bloco arquitetônico com salas, apartamentos e lojas comerciais, tornou-se abrigo da rapaziada dos anos 60, para quem o centro da cidade já não era mais o mesmo da boemia romântica das gerações anteriores. Havia um novo olhar. "Criados por decreto governamental ou por alguma jogada de marketing empresarial, muitos espaços culturais só existem no papel. Verdadeiramente. não funcionam. Desajeitados. quando tentam se mexer, em geral promovem uma cultura pifia e quase sempre mumificada, porque elitizada e / ou guetizada (seja lá que gueto for, erudito ou moderninho). Pois bem, tive a sorte de freqüentar o centro da cidade de Belo Horizonte durante toda a década de 60, e o que vivenciei foi um Centro Cultural com letras maiúsculas, tudo acontecendo de maneira natural, espontânea, dinâmica e, sobretudo, plural. Aquilo ali era um fervedouro, um caldo substancioso feito com ingredientes saborosos de cultura, arte, comportamento e conversação inteligente. Tudo temperado com sonhos de avanço político - que o Golpe Militar de 64 veio dissipar, decepar. Fotografo. Na praça Raul Soares, muitos bares e restaurantes e o cine Candelária, que em 1966 iluminou sua tela com um espetacular Festival de Filmes Franceses, de Godard, Trulfaut, Rivette, Allio e Varda. Na rua Curitiba, encravado entre Tupinambás e Carijós. havia o cine Art Palácio, onde era possível ver, por exemplo, filmes de Antonioni, John Ford e Nicholas Ray. Subindo a Afonso Pena pelo lado esquerdo, três cinemas. Arte (entre Caetés e São Paulo), Brasil (na Praça Sete) e Acaiaca (na galeria do edifício de mesmo nome). Ainda na praça Sete, mas do outro lado da avenida, lá no último andar do prédio, o cineclube do Banco da Lavoura era uma opção nos sábados à tarde. Bancas de jornais, livrarias e cafés faziam da praça Sete local quase obrigatório de paragem e bate-papos. Na parte de baixo da rua da Bahia, entre Tupinambás e Carijós, o cine Regina era bastante freqüentado por associados do Centro de Estudos Cinematográficos / CEC, entre eles. (o saudoso) Ricardo Gomes Leite. Tiago Veloso, Fernando Brant, Paulo Augusto Gomes, Mário Alves Coutinho e Ronaldo de Noronha, Sérvulo Siqueira, todos presentes em uma sessão histórica, a de Les Parapluies de Cherbourg / Os Guarda-chuvas do Amor. de Jacques Demy. {O caso: os "cequianos" estávamos sentados nas duas primeiras filas: do meio para trás, 15 ou 20 desavisados gatos pingados. Como o filme é todo cantado, incluídos os diálogos, aos dez minutos de exibição a platéia às nossas costas começou a ficar incomodada, mexendo-se, conversando alto, reclamando. Não suportando a heresia. Tiago Veloso levantou-se, virou-se para a turba e, com o pouco que ainda lhe restava de calma e educação, enérgico e gesticulante, disse em alto e bom som: "Olha aqui: o filme é assim do começo ao fim. Quem não estiver gostando, é melhor sair agora. Ou cale-se para sempre!." A debandada foi geral. E o nosso riso também}. Na esquina de Bahia com Goiás. próximo à antiga sede dos Diários Associados, o cine Metrópole era uma presença marcante - hoje, sua ausência acusa, depõe contra a mentalidade tacanha daqueles que. em nome do "progresso", destroem coisas belas e erguem outras horríveis. Na avenida Amazonas, com uma simpática galeria que nos levava à rua Curitiba, o edifício Levy foi (olhando agora para trás) um fenômeno poético-musical: em andares diferentes, moravam ninguém menos do que Wagner Tiso, Milton Nascimento, Marilton, Márcio, Lã e Telo Borges. Na Curitiba com Tamoios, o cineclube da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG exibia filmes e organizava debates quentíssimos, bastante politizados. O bar Tirol, na Curitiba, quase esquina de Amazonas, era sempre um refúgio aprazível para os militantes sedentos e esfomeados. Rua Tupis: entre Amazonas e São Paulo, moravam Toninho Horta e Beto Guedes; na esquina de São Paulo, o
macarrão do Strombolli salvava a pátria estomacal daqueles muitos com pouco dinheiro nos bolsos; mas o quarteirão mais freqüentado da Tupis era o delimitado por São Paulo e Rio de Janeiro, com muitos bares e restaurantes de um lado e o cine Tupi – depois, cine Jacques e, atualmente, Shopping Cidade - do outro. Virando à direita na Rio de Janeiro e ultrapassando Goitacazes, lá estava o cine Palladium, com suas aguardadas pré-estréias às dez e meia da manhã de todos os domingos (The Chase / Caçada Humana, de Arthur Penn, com atuações brilhantes de Marlon Brando e Robert Redford, foi uma das melhores). Quase em frente, o Saloon, um bar com muitas histórias para contar. Mais abaixo, o Cine-Teatro Imprensa Oficial (hoje, Clara Nunes) onde às 20 horas, em todos os sábados - até dezembro de 1968, quando a decretação do Ato Institucional nº 5 fez com que o cineclube cerrasse suas portas por onze anos -. o lendário CEC fazia suas concorridíssimas sessões de cinema. Depois dos filmes, íamos todos para o Maletta, capítulo à parte na efervescência do centro da cidade na década de 60. Filmo. Em tom sépia, a fotografia já começa a ficar difusa em minha mente, mas, em flashback, com uma grande angular e em movimento de travellíng, ainda dá para ver: à direita e à esquerda da entrada da avenida Augusto de Lima, respectivamente, os bares Pelicano e Jangadeiro; entro na galeria e, logo à esquerda, está a Cantina do Lucas; um pouco à frente, o Lua Nova; lá no fundo, passando pelos elevadores da ala residencial (naquela época, o trânsito das pessoas era liberado a todos os cantos do prédio), o Oxalá, onde havia sempre um violonista de mão-cheia mostrando sua arte - Marilton Borges, Hugo Luís e Milton Nascimento tocaram lá, despretensiosamente, assim como quem não quer nada; subo a rampa e vou para a sobreloja, caminho pelo corredor em direção à rua da Bahia, atinjo a sacada, dobro à direita, abro a pesada porta do Berimbau e sons musicais ao vivo preenchem de imediato todo o meu corpo, avanço no escuro e, depois de alguns segundos, minhas retinas juvenis reconhecem Wagner Tiso ao piano, Paulinho Braga à bateria e um magérrimo Bituca (tá bom: Milton Nascimento) ao contrabaixo numa outra noite, os músicos poderiam ser Aécio Flávio, Valtinho, Maurício Scarpellí e Celinho Piston, ou Helvius Vilela, Paschoal Meirelles, Paulinho Horta e Nivaldo Omellas. Um privilégio inesquecível que a vida me concedeu. Mais que um depoimento, isto aqui é um emocionado agradecimento. P.S. - Sobrevivo. Contornando o Maletta e subindo a rua da Bahia, não posso deixar de referenciar o cine Guarani, instalado na parte de baixo do antigo Clube Belo Horizonte; o Cinema Novo, com projetor em 16mm, que Ronaldo Brandão conseguiu manter aberto por menos tempo do que ele e todos nós desejávamos; e o Albamar, bar e restaurante que, se eu pudesse, mudaria postumamente seu nome para Ponto de Fuga: adolescente que jamais perdia uma passeata - muitas delas começavam em frente à Faculdade de Direito da UFMG, na Álvares Cabral com João Pinheiro -, várias vezes entrei ali correndo,fugindo da polícia (na verdade, um pouco antes da porta eu sempre diminuía a velocidade e me empertigava, para aos olhos dos outros freqüentadores parecer um sujeito "normal"). Gostava de me sentar logo à entrada, em sofás de couro verde que formavam uma pequena ágora contemporânea. Menino, naqueles anos de coturno, baioneta e chumbo, era ali que tomava o meu guaraná e sonhava com um tempo melhor. Hoje, continuo acreditando que um outro mundo é possível. E necessário." (Depoimento escrito do jornalista e roteirista Paulo Vilara. Abril de 2002) Essa geração que lutou e acreditava em "um mundo melhor" determinou profundas transformações na história de Belo Horizonte e na formação do caráter social da cidade. Uma geração que sonhou, pegou em armas, fez poesia e desafiou o seu tempo com novas formas de pensar e principalmente, de viver. "Os sonhos não envelhecem" é mais que o título dado for Márcia Borges, em seu livro de subtítulo "Histórias do Clube da Esquina." É uma sensível e detalhada reconstituição e reafirmação dos valores e ideais que nortearam a vida de milhares de centenas de jovens, hoje cinqüentões ou sessentões.
Escada rolante do Maletta. (foto: Alessandro Carvalho)
"...0 Maletta era o reduto dos notívagos e boêmios de Beagá. Ali funcionavam espalhados pelos corredores do térreo e da sobreloja, dezenas de bares, restaurantes e inferninhos. Durante o dia apresentava um movimento comercial recatado. Digno de suas livrarias e escritórios de representação. lojas de armarinho. Um de seus blocos era residencial, com entrada à parte. À noite porém, as galerias do edifício eram invadidas por hordas e clãs de artistas, músicos, jornalistas, prostitutas e bêbados de vários escalões que ocupavam todas as mesas disponíveis no local. Quem pisava no Maletta depois das seis da tarde tinha uma reputação a zelar, ou a perder, mais freqüentemente... A Cantina do Lucas era o barrestaurante dos cinéfilos, assim como o bar Lua Nova era o ponto do pessoal de jornal, os amantes da boa música iam para a sobre loja, território das boates Oxalá, Sagarana, Berimbau...Belo Horizonte tinha uma característica muito marcante nessa época: seus edifícios eram conhecidos pelo nome próprio, como em New York. Não se precisava dizer, por exemplo, avenida Amazonas nº 718, mas simplesmente "o Levy. " Assim o Mariana, o Guimarães, o Acaiaca, o Dantês, o Nazaré, o Paraopeba, o Helena Passig, o Lavourinha, o Amazônia, o Maletta, o Balança, o São João, o Sulacap, o Cesário Alvim(...) Na verdade, grande parte da vida cultural da cidade girava em torno do Maletta e do CEC, e portanto provincianamente todos se conheciam ou acabavam se conhecendo nesses lugares." (BORGES, Márcio. Os sonhos não envelhecem: Histórias do Clube da Esquina. São Paulo. Geração Editorial. 1996. In: Dossiê de Tombamento da Cantina do Lucas. 170 p. p. 15) Humberto Werneck também narra com brilhantismo parte da história dessa geração que, praticamente gravitava em torno do centro da cidade e do Maletta, de seus bares, livrarias, inferninhos e garçonnières. "... Foi de fato um tempo de sacudidelas nos costumes belohorizontinos, acelerados em 1961, com a inauguração do Conjunto Arcângelo Maletta, na esquina onde existira o Grande Hotel. Uma revolução na verdade: num só edifício, se juntaram bares, restaurantes, inferninhos. para não falar nas garçonnieres ao alcance de um elevador. Podia-se começar pelo chope matinal do Pelicano - palco de altas discussões da geração Suplemento, retratada no romance Os Novos de Luiz Vilela - na calçada da avenida Augusto de Lima. Em seguida passar ao almoço na Trattoria di Saatore (depois Cantina do Lucas). E, no final da tarde, caminhar alguns metros até o happy hour do Lua Nova. Lua Nava dizia -se também, por ser a base etílica do escritor José Nava, irmão mais moço do memorialista Pedro... À noite o Maletta se multiplicava em cantos escuros, na sobreloja ou nos fundos do corredor, dos quais escorria música ao vivo..." (WERNECK, Humberto. O desatino da rapaziada: jornalistas e escritores em Minas Gerais. São Paulo.
Companhia das Letras. 1992. 1n: Dossiê de Tombamento da Cantina do Lucas. 170 p. p.14) A história de Belo Horizonte, uma capital que chega ao século XXI com pouco mais de cem anos, tem sua memória escrita e demarcada pelo espírito boêmio de suas vanguardas, nas mesas dos bares. Muitos que já fecharam suas portas, embora permaneçam vivos na memória de seus habitués. Outros que surgem quase que diariamente, pontuando épocas, comportamentos, imortalizando lugares. Talvez seja impossível imaginar Beagá sem o Maletta, e este, sem seus bares, restaurantes e inferninhos. Seria hoje mais um bloco de concreto que a onda modernista conseguiu projetar e edificar. Um corpo sem vida. Ao contrário disso, o edifício projetado por Oswaldo Santa Cruz, com capacidade para a circulação de aproximadamente quinze mil pessoas por dia, é uma fervilhante cidade em andares. Em seus quase 70 mil m2 estavam previstos um supermercado, salões sociais, terraços, varandas e playground. Cerca de 145 lojas, mais centenas de salas comerciais e apartamentos, inclusive aqueles de quarto e sala que funcionavam como "garçonnieres" (para ardentes e clandestinos encontros amorosos). O Maletta, à época de sua inauguração, trazia uma estrutura com modernos equipamentos como elevadores e escada rolante, a primeira de Minas Gerais. Visitada por curiosos de todas as partes, era comum a cena de grupos excursionistas nas imediações do edifício, que vinham do interior especialmente para conhecer essa maravilhosa novidade dos tempos modernos. As certidões de baixa do Maletta foram fornecidas parcialmente. A aprovação do projeto é de 1957, e os primeiros alvarás são de 1959 e 1961. “... A arquitetura e a construção do Edifício Arcângelo Maletta teve o objetivo de criar em Belo Horizonte um centro capaz de abarcar uma infinita gama de serviços - comerciais, lúdicos, sociais e particulares além de área residencial. Para suportar toda essa pretensão utilitária o Maletta possui um espaço monumental, contando com o Edifício Dona Genoveva de Souza, antigo Malettinha. Esta monumentalidade já estava expressa no slogan apresentado no início das obras desse edifício que deveria ser UMA OUTRA CIDADE DENTRO DE BELO HORlZONTE(...) O ambiente de movimento e liberdade do Maletta fez surgir nos anos 60 uma boemia vibrante que se mesclava à violência, alegria, discussão, intelectualidade, solidão e magia." (SILVA, Carla Nunes da.. Arcângelo Maletta: sob as sombras da arte boêmia. Belo Horizonte; UFMG / FAFICH (mimeo). I 995. In: Dossiê de Tombamento da Cantina do Lucas. 170 p. p. 44)
Salões superior e inferior da Cantina do Lucas (Acervo Cantina do Lucas – ACL)
Desde 1962, a CANTINA DO LUCAS, um legítimo e resistente bar-restaurante, representante remanescente desta época vibrante da Rua da Bahia, está encravada nas lojas 18 e 19 do piso térreo do Maletta (e ainda utiliza parte do hall para dispor suas mesas), praticamente no mesmo lugar onde funcionava o bar do Grande Hotel. Este piso tinha o apelido de “purgatório”, enquanto que o andar superior, onde estavam localizadas as boates era conhecido como “inferninho”.
Com o nome original de Chopplândia transformou-se no memorial da boemia mineira, e mais que isso, um importante ícone da resistência à ditadura militar. Em 09 de dezembro 1997 A Cantina do Lucas foi tombada pelo Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte como “Bem Cultural”. Na parte interna do Lucas, formada por duas lojas retangulares encontramos até hoje algumas de suas principais características. Na loja 19, onde normalmente aconteciam os encontros formais e reservados a parede é revestida por típicos azulejos decorados nas cores azul e branco. Outra marca são as grades em ferro trabalhado, originais em verde-escuro, colocadas nas portas de entrada das lojas. As inconfundíveis garrafas dispostas em prateleiras no teto e as paredes revestidas em madeira escura da loja 19 (também original, porém
restaurada) dão ao lugar um estilo próprio e marcante. A capacidade total é de 128 pessoas assentadas, nas duas lojas. Na área externa há ainda 11 mesas. A Cantina do Lucas tem cerca de 30 funcionários. Alguns, especialmente os da cozinha, trabalharam mais de duas décadas na casa, como as cozinheiras Orlandina Gomes Rosa, que se aposentou após 25 anos de serviços prestados na Cantina, assim como Tercina Pinheiro e Maria de Lourdes dos Anjos. O Lucas, como muitos a chamam é, ainda hoje, 40 anos após a sua inauguração, a "alma" do Maletta. Símbolo dos pontos de encontro da capital mineira, soube resguardar a tradicional qualidade de seus serviços e da cozinha, e manter a fidelidade dos seus antigos freqüentadores: "A história do Lucas se confunde com as estórias e casos de uma infinidade de pessoas que resistiram, construíram e reconstruíram o País inúmeras vezes, nas mesas do velho bar", nas palavras do diretor teatral e ator Helvécio Guimarães. "No início, as apertadas lojas 18 e 19 do térreo do edifício Maletta eram apenas uma cantina italiana. Fundada em abril de 1962, a Chopp1ândia pertencia ao empresário Salvattori Di Mondi. Alguns anos mais tarde, passou para as mãos dos irmãos Humberto e Cuido. Em seguida, a cantina passou a se chamar Trattoria de Saatore. Somente com a entrada do velho Lucas a cantina recebeu o nome que iria se imortalizar na história de Belo Horizonte: Cantina do Lucas. Rapidamente o restaurante-bar caiu no gosto de estudantes e intelectuais. principalmente pela mesa farta... Se as mesas do Lucas falassem, com certeza contariam a história do cineasta Schubert Magalhães, inveterado fumante de Continental sem filtro, que partiu para o outro mundo sentado ali, no setor direito, na década de 80... Naqueles tempos de chumbo, quando o DOPS fazia suas investidas no Maletta, Seu Olympio escondia os procurados no sótão do bar. E se alguém perguntasse que estranhos barulhos eram aqueles vindos de lá, a história que saía era a de um velho gambá cachaceiro que mora no sótão. " (ANDRADE, Renato. Peça de resistência imortal. Pampulha. 14 a 20 setembro 1996. 1n: Dossiê de Tombamento da Cantina do Lucas. 170 p. p. 29)
Edmar e Maria Roque e as filhas Eleonor, Ana Luíza e Eliza. (ACL)
Antes mesmo de se tornar proprietário da Cantina do Lucas, até então um comerciante inexperiente, Edmar Roque confessa que já era seu freqüentador. À época dono de uma lanchonete nas imediações do Maletta, Edmar conta que a Cantina do Lucas era, desde o início, a grande estrela daquele centro boêmio que começava a se formar na Rua da Bahia, que além dos inferninhos e bares do Maletta, ainda abrigava, na calçada, o Bar Pelicano. Atraído pela oportunidade comercial e pela afinidade com a clientela, em 1983 assume o comando da casa, passando a ser seu quarto proprietário. Uma das principais características "do Lucas", na
opinião de Edmar é que o restaurante sempre teve sua própria identidade, nunca se fazendo a "cara do dono", como é costume neste segmento de negócios." O Lucas foi e é, naturalmente superior a tudo, mesmo às mudanças de seus donos. E, principalmente o lugar que, em qualquer ponto do país é reconhecido como "a cara de Belo Horizonte. " Prova disso é o tradicional cardápio que, embora tenha sido aprimorado ao longo dos anos e até mesmo se adequado aos novos hábitos alimentares, não sofreu grandes transformações. Neste ano em que comemora quatro décadas de existência e em sua busca pelo equilíbrio entre a tradição e o novo, a Cantina lança uma novidade com ingrediente mineiro: o Filet ao Molho de Jabuticaba. Um dos ícones do Lucas é a sua cozinha e, a memória de seus habitués traz boas lembranças. As sugestões da casa incluem os tradicionais pratos: Filet a Parmegiana, Surprise, Peixe ao Comodoro, Talharim a Parisiense, Tornedor ao Chef, Lombo a Moda, Raviole a Moda, Lasanha de Frango e Filet a Olympio. Os quatro primeiros são os campeões de venda. O cardápio do Lucas é lembrado tanto pela generosidade ou “fartura”, quanto pelo preço sempre acessível aos bolsos não tão fartos assim. A vereadora Jô Moraes, conta com um sorriso nos lábios, que nos tempos difíceis de pós-clandestinidade ia ao Lucas com uma turma de amigas e pedia o bem reputado “Parisiense”, que solidariamente era consumido “a palito.” A história do Lucas é também uma história de inúmeros e incontáveis personagens. Famosos ou anônimos, quase todos foram espectadores e protagonistas de cenas e fatos curiosos. Pessoas de todas as vertentes que se espremiam em seus democráticos salões para beber, conversar e, principalmente, se solidarizar com o desejo comum de liberdade de expressão. Uma lista com mais de 300 nomes dos principais habitués da Cantina foi produzida pelo jornalista Geraldo Elíseo "Pica-Pau." Nas páginas do próximo capítulo selecionamos alguns desses personagens e histórias que ficaram imortalizadas nas mesas do Lucas.
O jornaleiro “Sapo” ou “Tostão”. (ACL)
Particularmente a história da Cantina do Lucas produziu dois personagens tão inesquecíveis quanto especiais: O jornaleiro conhecido como Tostão e "Seu Olympio." O mais conhecido deles, o garçom "Seu Olympio" figura histórica e folclórica, cidadão honorário de Belo Horizonte, atende às mesas do setor direito da loja 18, e foi homenageado pelo proprietário da Cantina com um prato no variado e generoso cardápio, com o famoso "Filet à Olympio." "... O Olympio é muito cheiroso. É feito com arroz de açafrão, pedacinhos de carne, ovo, molho, batata palha e brócolis. Sai demais, eu acho, por causa do paladar, do feitio dele... Ele é bonito e gostoso!" (Depoimento concedido pela cozinheira Tercina Pinheiro. em 20 de setembro de 1996. 1n: Dossiê de
Tombamento da Cantina do Lucas. 170 p. p. 49) José do Carmo, Sapo ou Tostão, talvez seja um dos personagens, além de "Seu Olympio", mais lembrado pelos freqüentadores do Lucas. Durante 28 anos foi um jornaleiro que, alguns dizem, não sabia ler, não gostava do apelido que lhe deram - Sapo, tinha voz grave e um modo peculiar de gritar as manchetes dos jornais, supostamente ditadas a ele pelos companheiros de trabalho. Os olhos esbugalhados, uma grande cabeça firmada no corpo franzino e uma descomunal simpatia que vendia jornais no circuito Maletta/ Praça Raul Soares. Dizia que era no Lucas que fazia sua maior féria. Por diversas vezes foi "cobaia" das brincadeiras dos fregueses do bar que lhe diziam manchetes inverídicas e que rapidamente eram anunciadas por ele. Sapo morreu tragicamente, aos 43 anos, em uma briga com um mendigo. Vítima de assalto na madrugada quando retornava para casa, no aglomerado da Cabana do Pai Tomás. "JORNALEIRO CAI E MORRE EM BRIGA COM MENDIGO Esta trágica manchete, ele, o jornaleiro José do Carmo, nosso querido Sapo (ou Tostão como preferia) não pôde gritar. Ele que, com sua voz possante, entusiasmada, às vezes agressiva, usando e abusando de todos os seus tons de ventríloquo, cantou e decantou, pelas noites e madrugadas boêmias de Belo Horizonte incontestáveis manchetes de jornais por quase 30 anos! Foram 28 anos de trabalho que o consagraram o melhor e mais comunicativo jornaleiro de Beagá. Notícias que não eram proferidas por Sapo perdiam o charme. Ele informava em primeira mão as notícias quentes (e quentinhas) saídas das Oficinas da praça Raul Soares (Diário de Minas. onde começou) e da Rua Goiás (Diários Associados onde continuou e focou até morrer). O jornaleiro Tostão fazia da Cantina do Lucas e de outros bares da Avenida Augusto de Lima, bem no centro boêmio de Belo Horizonte, palco para sua atuação, pois José do Canno - seu nome de batismo e registro na cidade de Perdigão / MG - era um ator. Ele vivia, interpretava e até improvisava manchetes, para irritação de nosso também inesquecível General, o jornalista Celius Aulicus... Aliás ele sempre ficava feliz ao sentir que todas as atenções se voltavam para ele, quando, com seu vozeirão, fazia calar a maior "zoeira" reinante no Lucas, seu bar preferido para fazer seu negócio; vender jornal. Quando Tostão entrava era uma hora solene e carinhosa para os habitués do bar: ouvir suas manchetes. Atleticano "doente", ele caprichava quando seu time ganhava. "(Artigo de Dinorah Carmo. In: Dossiê de Tombamento da Cantina do Lucas. 1 70 p. p. 154) Ao contrário de Sapo (ou Tostão), que deixou saudades ainda jovem, "Seu Olympio" ou "Tio Olympio", é uma das marcas registradas que a Cantina do Lucas preserva até os dias de hoje. Nascido na cidade de Santos, litoral de São Paulo, filho de espanhóis, comunista de carteirinha, Olympio Pérez Munhoz é mais que um monumento vivo do Lucas. É mesmo um capítulo especial na história da Cantina e da vida boêmia de Belo Horizonte. "A boemia e os amores de Belo Horizonte passam pela Rua da Bahia. Na Cantina do Lucas eu já testemunhei vários amores nascerem e acabei me tomando padrinho de vários casamentos. A Rua da Bahia pra mim é boemia e Rômulo Paes, de quem era amigo e a quem servi várias vezes na Cantina do Lucas. "(Depoimento de Seu Olympio. Calendário Cultural Rua da Bahia. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Setembro 1994) O sintético depoimento de "Seu Olympio" revela um pouco das histórias que ele participou e presenciou ao longo de todos os 40 anos de existência do Restaurante. Residente em Belo Horizonte desde 1958, trabalha no Lucas desde a sua inauguração. Mais que um garçom querido dos clientes, tornou-se amigo, companheiro e protetor de grande parte deles. Referência na noite belo-horizontina "Seu Olympio" chegou a ser condecorado com o título de Cidadão Honorário.
O garçom “Seu Olympio” Perez Munhoz. (ACL)
Fervoroso defensor do comunismo, foi um importante aliado dos jovens idealistas da década de 60 que lutaram contra a ditadura, escondendo por diversas vezes vários deles, nos banheiros ou em qualquer lugar do Restaurante que fosse possível, quando eram procurados pelos agentes do governo militar. Chegou a fazer uma viagem a Cuba, presente dos habitués da Cantina, e comemorou solenemente a morte do ditador espanhol Generalíssimo Franco. A Cantina do Lucas, seus personagens, freqüentadores e suas histórias já foram tema para um premiado roteiro de filme: A Hora do Bar, escrito pela jornalista Dinorah do Carmo em 1974 que, entretanto, nunca chegou a filmá-lo. O argumento para este roteiro tem como epígrafe texto de W.H. Auden, que bem pode ser usado como explicação para o sucesso do Lucas: "quando o processo histórico se interrompe, quando a ansiedade se associa ao horror e a liberdade ao tédio, a hora é boa para se abrir um bar." Tentativas de explicação para este sucesso é que não faltam: Dizem alguns que o Lucas só se estabeleceu com força e aglutinou em suas mesas intelectuais de todas as facetas, devido a uma livraria, A Casa do Livro, que foi inaugurada bem em frente e atraiu para lá este tipo de fregueses. Na análise do atual proprietário, Edmar Roque, foram vários os fatores que fizeram do Lucas um memorial na história boêmia da cidade. A sua instalação no Maletta, à época uma das grandes novidades arquitetônicas, o momento político e social e, porque não?, a própria vocação do lugar que antes já havia abrigado o bar do Grande Hotel. A qualidade da comida e dos serviços podem ter sido fatores decisivos na fidelidade da freguesia ao longo desses 40 anos. O que é constatado no depoimento que a jornalista Mari
Stella Tristão concedeu à equipe de elaboração do dossiê de tombamento da Cantina. “O Maletta continua o mesmo, procurado por vários tipos de boêmios, namorados, intelectuais. E se alguns freqüentadores se foram, outros novos chegam, no rodízio dos tempos, com o bom serviço de sempre. A Cantina do Lucas foi e continua sendo um ponto de encontro do que há de mais conceituado a nível de cultura e boemia de Belo Horizonte... Os freqüentadores de hoje são continuadores de ontem, com a mesma assiduidade. Por sua existência ao longo de um tempo considerável e sua presença constante na vida da cidade: seu passado, presente e porque não dizer, futuro, sou pelo tombamento da Cantina do Lucas, como patrimônio cultural de Belo Horizonte.” (In: Dossiê de Tombamento da Cantina do Lucas. 170 p.p.52. 53)
Reunião oficializa tombamento da Cantina. O presidente Luiz Soares Dulci, entre Fernando Brant e Flávio Carsalade. (ACL)
Em 1991, quando a Cantina do Lucas comemorava seus 30 anos de existência, um grupo de jornalistas, intelectuais, artistas e empresários, considerando a importância histórica da Rua da Bahia e o risco de depredação desse patrimônio vivo da cidade, deu a largada para a elaboração de um projeto de revitalização da Rua, com o nome de RUA DA BAHIA VIVA. Esta proposta não previa apenas a restauração de monumentos ou prédios históricos, mas um conjunto de ações que devolvessem à Rua a movimentação cultural que esta apresentou desde o início da construção da cidade. Políticas de ocupação, recuperação de equipamentos e espaços públicos, segurança, lazer e entretenimento que, absorvendo o ritmo frenético da cidade, agora metropolitana, não deixassem seu passado adormecido no imaginário popular ou confinado a lugares remanescentes, como a própria Cantina do Lucas e poucos edifícios históricos. A Prefeitura Municipal de Belo Horizonte integrou-se ao Projeto e elaborou um detalhado levantamento histórico e técnico da Rua. Infelizmente, em dez anos de existência do Projeto Rua da Bahia Viva, pouco foi feito. Por cerca de dois anos foram produzidos folhetos com o nome de "Calendário Cultural", que traziam a programação cultural da Rua e, no verso informações sobre um lugar ou personagem da Rua da Bahia. A recente restauração do Viaduto Santa Tereza também pode ser contabilizada como parte deste projeto. Para dar prosseguimento ao projeto um grupo de pessoas, a maioria formadores do conselho consultivo do projeto Rua da Bahia Viva fundou o INSTITUTO RUBHI, com o objetivo de transformá-lo em uma ferramenta de preservação permanente da Rua. "Rubhi é uma abreviatura de Rua da Bahia" explica a sócia fundadora do Instituto, a atriz Lorelei Schneider, que participou de todo o processo de discussão e formação do Conselho Consultivo da Rua da Bahia e do Instituto Rubhi.
"A Prefeitura de Belo Horizonte oficializou a Rua da Bahia como o Eixo Cultural da cidade através da Lei 7620/98. com o objetivo de sistematizar e formatar os projetos para a região e estabelecer as condições para que as ações e intervenções na Rua da Bahia pudessem ser efetivadas. Foi criado o Conselho Consultivo do Eixo Cultural Rua da Bahia Viva, composto por órgãos do Poder Público Municipal e entidades da sociedade civil para a gestão e o acompanhamento das ações necessárias. Em fevereiro de 1999, o Conselho Consultivo do Eixo Cultural Rua da Bahia foi instalado. Muito foi pensado em termos de ações concretas e o Conselho funcionou relativamente bem. A partir do ano 2000 o Conselho não foi mais convocado. No entanto, alguns conselheiros quiseram continuar se reunindo para discutir e colaborar com o assunto. São eles: Osvaldo Marco Alves. representante do Centro de Cultura de Belo Horizonte / Secretaria Municipal de Cultura; Magdalena Rodrigues. representante das entidades culturais / SATED-MG Marina Eugênia Mazzoni. representante da BELOTUR e ainda Lorelei Schneider, do Grupo Executivo do Conselho. Essas pessoas se reuniram durante todo o ano de 2000 na tentativa de contribuir para a real implantação do projeto. Dessas reuniões surgiu a idéia de se criar uma organização não governamental com a estrutura de uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) que tivesse como objetivo promover o Eixo Cultural Rua da Bahia. Com a adesão de Márcio Lana, que no Conselho representava a Federação do Comércio de MG, foi fundado em 2001 o Instituto Rubhi, uma organização pela preservação do patrimônio cultural que tem como meta prioritária a real efetivação do Eixo Cultural Rua da Bahia. (Depoimento de Lorelei Schneider. Setembro de 2002) Dentro do espírito do Projeto Rua da Bahia Viva uma equipe de trabalho, do Departamento de Patrimônio da Secretaria Municipal de Cultura, coordenada por Lídia Avelar Estanislau, elabora uma proposta de tombamento da Cantina do Lucas, como Bem Cultural de Belo Horizonte. A idéia inicial de tombamento, partiu da vereadora Neusinha Santos. Lídia Avelar e seu grupo produzem um criterioso estudo que culmina em um aprofundado dossiê sobre a Cantina. Este dossiê, mereceu irrestrito apoio de Arnaldo Godoy, então Secretário Municipal de Cultura. Toda a documentação, finalmente, resulta em um processo que acaba por registrar a Cantina do Lucas no Livro do Tombo Histórico do Município. Lídia Avelar, considerada a maior entusiasta do tombamento da Cantina do Lucas, faleceu pouco depois de ver o êxito de sua proposta. O tombamento "do Lucas" é inédito e curiosamente precedente à legislação da época, que ainda não tinha incorporado o conceito de Bem Cultural Imaterial, explica o arquiteto Flávio Carsalade, presidente do IEPHA. A notificação, assinada por Luiz Soares Dulci, Presidente do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte ao Sr. Antônio Edmar Roque, proprietário da Cantina do Lucas, formalizando a inscrição da Cantina do Lucas no Livro do Tombo Histórico diz que: "... o bem cultural protegido, a ser inscrito no Livro do Tombo Histórico, passa a constituir patrimônio Cultural do Município, pelos substratos físicos que lhe dão ambiência, relativos ao lugar, mobiliário e características culturais, sem prejuízo das relações comerciais estabelecidas entre a empresa Chopplândia Lida, e os proprietários das lojas onde esta se situa, esclarecendo, todavia que, quaisquer intervenções no bem cultural, devem ser previamente submetidas à apreciação do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município. "(Trecho da carta de notificação a Edmar Roque, proprietário da Cantina do Lucas)
“Seu Olympio”, Edmar Roque, Lídia Avelar e Arnaldo Godoy. (ACL)
Placa comemorativa do tombamento. (ACL)
Este ato, resultado de incessantes esforços para a preservação da memória de Belo Horizonte, que tem na Rua da Bahia e na Cantina do Lucas, senão o mais importante, mas o maior centro aglutinador da história da cidade, talvez signifique o início de uma nova onda. Não mais a da destruição desatinada, mas a da preservação lúcida e consciente da identidade do povo desta metrópole brasileira.
2 Cantina do Lucas: um bar bem cultural Luiz Otรกvio Horta Brenda Silveira
O SÍMBOLO DE UMA ÉPOCA Naqueles anos assustadores e alucinados entre 1968 e 1980, quando prevalecia no país o chumbo repressor e a política era considerada pecado capital, existiam em Belo Horizonte apenas dois locais onde as pessoas que questionavam o regime militar podiam se encontrar, sem maiores riscos - os eventuais sempre existiam - de repressão ostensiva e onde podiam trocar idéias e idealizar contra-revoluções, algumas até viáveis mas a maioria nada mais que um conjunto de contra-sensos poéticos e fantasiosos: eram a Cantina do Lucas ou lugar nenhum. Para ali se dirigiam à noite não só contestadores de plantão, mas também escritores e artistas, teatrólogos e músicos, beberrões contumazes e bebedores amadores. Formavam uma confraria coesa, cujo elo condutor de conversas sempre foi a contestação e a criatividade. Não só de política vivia o Lucas; ali também foram alicerçadas as bases do trabalho de muitos cineastas, jornalistas, poetas e gente de teatro. Do berreiro das mesas ecoaram certamente muitas besteiras engraçadas, mas também idéias que determinaram a vida e o sucesso profissional de muitos de seus freqüentadores. "Te vejo à noite, no Lucas." Esta expressão equivalia a mais que um convite para encontros; significava uma senha de cunho quase conspiratório. Na Cantina, fervilhavam as mais brilhantes e desencontradas formulações sobre tudo que se relacionasse com comportamentos existenciais, cultura ou política. Eram confabulações a meia-voz ou em berreiro altissonante, às vezes hilariantes mas geralmente pontuadas por uma indisfarçável dose de ironia e em muitas ocasiões de ostensivo desencanto e desespero. O Brasil era um beco sem saída. O Lucas, um subterrâneo onde se escavavam alternativas sérias ou malucas em busca de uma luz no fim do túnel. A chama era pujante, porém inofensiva. Quanto ao túnel, naqueles tempos deveria ter ainda uns bons milhares de quilômetros ainda a serem perfurados. A inteligência de Belo Horizonte ali se concentrava, sem padrões rígidos de posturas intelectuais. O comunista bebericava com o alienado, grupos de gays inteligentes compartilhavam mesas com machões de esquerda, falsas virgens confabulavam com lésbicas assumidas. O poeta versejava, o escritor pensava livros (dois romances têm ali sua paisagem, de Sérgio Sant'Ana e Luís Gonzaga Vieira); os ícones da cultura ou pontificavam ou riam complacentes do aventureirismo inovador dos jovens amadores. Alguns fígados heróicos resistiram; outros, nem tanto. Por curiosa coincidência, esta pujança aos poucos se diluiu, com o fim da ditadura - ou o inevitável envelhecimento dos antigos protagonistas, que buscaram outros rumos ou outros bares. A Cantina, porém, permanece como referência para as novas gerações - e também para alguns remanescentes das mais velhas, que ali periodicamente retornam, como uma espécie de sócios remidos ou fundadores. Como se pode averiguar em seus depoimentos, o Lucas foi o apogeu de um ciclo. Um símbolo definitivamente esculpido em incontáveis corações, com o cinzel delicado da saudade. Luiz Otávio Horta
OLYMPIO, ANJO ANARQUISTA Se o Lucas sempre foi um reduto de pessoas, digamos, pouco convencionais em termos de tudo o que se refere a comportamentos tradicionais, pudesse imaginar que aquele lugar não explodiu, em incontáveis circunstâncias, apenas pela intervenção silenciosa e respeitada de seu anjo protetor, o garçom Olympio Perez Munhoz. Um anjo que, como parte integrante daquela paisagem multifacetada, incorporava alguns requisitos bem pouco angelicais. Era um anarcocomunista contestador de tudo (às vezes até de si próprio), engolia dezenas de doses de cachaça noite adentro, disfarçadamente, enquanto servia os fregueses e nunca foi complacente com nenhum tipo de chato. Detestava a burrice e protegia esquerdistas falastrões e guerrilheiros clandestinos. Aceitava bêbados, desde que fossem intelectualmente respeitáveis. Hoje aposentado, volta e meia retorna à Cantina. Apenas olha, lembra, esboça um sorriso pleno de doçura e saudade e logo sai, um pouco claudicante, sob o peso de seus 83 anos. Na época da ditadura, a turma da esquerda freqüentava em peso a Cantina e os agentes do DOPS logo começaram a ir lá, sistematicamente, à noite, fazer espionagem. Julgavam-se anônimos. "Mas eu fazia a contra-espionagem", lembra "Seu Olympio". Filho de espanhóis (o que talvez explique o seu anarcogene), veio para Belo Horizonte em 1955, depois de ter trabalhado no Cassino Atlântico, do Rio. Foi assíduo freqüentador da roleta e do bacará e nesta atividade chegou a amealhar respeitável capital. Como bom jogador, perdeu tudo. Olympio, antes de ancorar definitivamente sua vida ao Lucas, teve respeitável trajetória como garçom. Conheceu Santos Dumont, o Pai da Aviação e com ele conversava muito. Serviu drinques a Flores da Cunha, Benjamim Vargas e Cordeiro de Farias. E rememora curiosidades inéditas: “Sabia que o pai das cantoras Linda e Dircinha Batista era ventríloquo?”
Sempre detestou direitistas e militares e nunca deixou de cultuar Luis Carlos Prestes, Fidel Castro e Che Guevara. Com um botton do Partidão na lapela, serviu o ex-gorvernador Eduardo Azeredo, no Palácio da Liberdade. Cidadão Honorário de Belo Horizonte, comenta que esta honraria, concedida pela Câmara Municipal, foi um episódio apenas protocolar. “Oficializaram, em sessão plenária, uma coisa que eu sempre fui, desde que aqui cheguei.” Olympio, antes de pendurar definitivamente as chuteiras – ou mais propriamente, em seu caso, as bandejas, copos e garrafas – dizia que gostaria de viver o suficiente para ver o Brasil se transformar em um verdadeiro país socialista. “Seria o homem mais feliz do mundo se pudesse, aqui na Cantina, reunir um bando de generais fardados e servi-los, com a maior cerimônia
cínica, pratos com nomes que para eles, quando mandavam, equivaliam a palavrões ideológicos.” E enumera as iguarias com que contemplaria os militares: “... primeiro, uma salada russa, em homenagem aos soviéticos. Depois, um apetitoso strogonoff, para lembrar que, se a URSS acabou, os comunistas continuam vivos; e para os mais reacionários, um apetitoso filé a cubana, em honra de nosso Fidel.”
Márcio Santiago e o jornal comemorativo dos 80 anos do “Seu Olympio” ao lado de dona Helena Greco. (ACL)
Há poucos meses, sua mulher faleceu. Vive com o filho, médico-psiquiatra. Mas nunca estará sozinho, pois sua imagem está sempre presente na memória dos milhares de amigos a quem ofereceu não apenas bebidas, mas sobretudo carinho, amizade e uma saudade que vai além do bar e sempre palpitará em todos que conheceram este autêntico mestre da ironia, inteligência e fraternidade.
“Seu Olympio” e o filho Fábio Munhoz. (ACL)
TESTEMUNHA DOS TEMPOS HERÓICOS Um local que teve a inédita característica de aglutinar, durante anos, todas as vertentes da produção artística e cultural de Belo Horizonte, influenciando dezenas de pessoas, em termos de vivências humanísticas e sobretudo políticas. Assim o arquiteto Álvaro Mariano Hardy, o Veveco, qualifica a Cantina do Lucas e não tem rigores ao ir mais longe, em sua mais ampla e ousada definição: "O Maletta e a Cantina, sob certos aspectos, foram os grandes templos da cultura de minha geração", diz ele, entre orgulhoso e saudoso de uma época perdida no tempo mas não na memória, naquele espaço que reunia todas as forças criativas da cidade, entre cineastas, escritores, jornalistas, músicos e sobretudo curiosos e boêmios. "Para mim e meus contemporâneos, o Lucas representou o mesmo que o Bar do Ponto significava para o pessoal dos anos 20,como Pedro Nava e Carlos Drummond de Andrade. Nós ali compartilhávamos o mesmo espaço, distribuindo sonhos, criatividade e sobretudo muita rebeldia. Era uma espontânea ação cultural, marcada pelo posicionamento crítico e militante contra tudo que estivesse estabelecido, especialmente, após 1964, a ditadura militar." "Em determinadas cidades, acontecem fatos históricos que obtêm significativa ressonância em certos locais e tudo que ocorreu no Brasil, nos últimos 40 anos, repercutiu de maneira peculiar e insólita na Cantina do Lucas", lembra Veveco, que foi uma espécie de predecessor deste bar, com sua livraria 'Casa do Livro', que ficava exatamente onde hoje funciona a Livraria Eldorado. "Aquela livraria, na verdade, antecedeu o Lucas, que antes era Chopplândia e só lá por 1961 viria a ter o atual nome. Meu sócio era o Ângelo Prazeres, o Gilú. O edifício Maletta ainda estava em construção e nossa livraria já funcionava, uma coisa modesta, em loja pequena e que de bens imóveis só tinha mesmo as prateleiras. Mas o negócio marcou época porque muita gente que freqüentava o local passou, por tabela, a tomar suas cervejas no Lucas, que ficava em frente. Posso garantir, sem falsa modéstia, que os primeiros fregueses da Cantina, com lastros mais intelectualizados, partiram de nossa livraria." "No começo, O Lucas era um reduto da colônia italiana, já que seus primeiros proprietários eram os irmãos Guido e Humberto Cerri. Eles caçavam codornas e outras aves na região de Lagoa Seca, onde hoje fica o BH Shopping e as preparavam lá. Era uma fantástica comilança de caças, com muito vinho quente e também não faltavam deliciosas sangrias. Acho que vem daquela época a tradição, típica do Lucas, de servir refeições com porções generosas, ao ponto de um prato, pelo menos naqueles dias, ser suficiente até para quatro pessoas. Depois. os Cerri venderam o estabelecimento, que virou Trattoria de Saatore, nome do novo dono. Este, por sua vez, o negociou com o velho mestre Lucas, que transferiu-lhe o nome e consagrou definitivamente o ponto." Ele tem uma comparação feliz, sobre a importância da Cantina do Lucas para a sua geração: "É uma espécie de nossa caixa preta, que contem as mais belas idéias e fantasias, assim como esperanças e frustrações. É um transparente símbolo dos anos 60 c 70, contendo tudo que este período apresentou de onírico e trágico. No Maletta, especialmente no Lucas, presenciou-se o despertar de grandes talentos da vida artística e cultural de Minas e hoje com projeção nacional e internacional. Um de seus freqüentadores era Milton Nascimento, assim como Toninho Horta e o resto do pessoal do Clube da Esquina. Isto sem citar os apaixonados pelo cinema, como os diretores Carlos Prates Corrêa e Shubert Magalhães (que, por sinal, morreu gloriosamente, de enfarte em uma de suas mesas, sobre um prato de Peixe ao Comodoro), jornalistas como Ronaldo Brandão e Flávio Márcio, escritores da estirpe de Murilo Rubião e
Fritz Teixeira de Salles, uma infinidade de nomes, que fica difícil lembrar. Mas não importa. Afinal, é preferível ter memória fraca que padecer de uma imperdoável amnésia." Mas Veveco Hardy, como todos os antigos freqüentadores da Cantina do Lucas, em seus primórdios heróicos, concorda que falar deste bar equivale a reverenciar sua mais tradicional e lendária figura, o garçom "'Seu Olympio Munhoz". "Desde que comecei a bebericar por ali, nunca vi 'Seu Olympio' perder o bom humor. É uma personagem fantástica, com incrível capacidade de memorizar os costumes e manias de cada freguês e nunca demonstrar qualquer sinal de cansaço, mesmo quando sai do bar às quatro horas da manhã. Quando recebeu o título de Cidadão Honorário de Belo Horizonte, até ironizou a homenagem, dizendo que "cidadão honorário eu já me sinto há muitos anos. Agora, fui oficializado." Comunista por ideal e anarquista por consangüinidade - Olympio tem ascendência espanhola - apresenta também seu lado romântico, se diz um eterno apaixonado pela Lua e que a noite lhe faz muito bem. A única vez que perdeu a compostura com um freguês foi quando um sujeito teve a ousadia de falar bem do regime ditatorial do generalíssimo Francisco Franco, na Espanha. Olympio subiu nas tamancas e o temerário mas imprudente franquista foi obrigado a se retirar." Álvaro Hardy apenas lamenta que a atomização da cidade, vitimada por uma expansão desordenada, tenha influído nas modificações que o tempo tornou inevitáveis na Cantina do Lucas. "Vivemos um sonho febril, naqueles tempos. Não sei se aquilo vai se repetir. Afinal, isto não depende de nós, que cumprimos nossa parte. Resta saber o que pensam e fazem os novos freqüentadores." Mas completa, nostálgico e irônico: "Certamente, não serão muito diferentes em inteligência e rebeldia, mas com a roupagem de um novo conceito de revolta, tão a gosto desta tal modernidade. "
Jussara, Álvaro Hardy – o Veveco -, Ana Demichelli e José Maurício. (ACL)
CANTINA DO LUCAS - A RIBALTA DO TEATRO MINEIRO O teatrólogo Jota O'Ângelo, freqüentador histórico da Cantina do Lucas, sempre que terminava um espetáculo na época de ouro do bar, para ele se dirigia em companhia de grupos elétricos de atores, amigos e expectadores, tanto para comemorar o sucesso da apresentação como para conversar sobre detalhes da peça - que tinham produzido ou assistido - ou apenas espairecer entre risos e cervejas, que em muitas ocasiões derivavam para gargalhadas e destilados. "Era como se fosse uma continuação do que havíamos feito ou observado e não foram poucas as vezes em que o desempenho descompromissado do pessoal, na cantina, podia até mesmo ser considerado como um complemento daquilo que havia acontecido no palco. Houve noites em que nem sabíamos mais se éramos protagonistas ou platéia, tamanha a integração, alegria e saudável berreiro que a todos envolvia e encantava." Para O'Ângelo, ali estava um centro de convergência de inteligência e criatividade único na cidade que, à época, contava somente com poucas outras alternativas para congregar artistas e intelectuais na noite, o Stage Ooor, no Teatro Marília, e a Gruta Metrópole, "que infelizmente era um boteco de boêmios inteligentes porém sonolentos, que iam dormir antes da madrugada." "Depois do golpe militar de 64, parece que o Lucas se transformou em um refúgio natural para todas as pessoas privilegiadas por um mínimo de talento, inteligência mas sobretudo rebeldia", lembrando que, no bar, havia sempre uma mistura frenética de artistas e contestadores, fossem em teatro, literatura ou cinema e também nas organizações esquerdistas que defendiam a luta armada e entre um gole e outro articulavam já o que viria a ser o mais dramático e romântico fracasso de uma geração. "Foi, sem dúvida, um importantíssimo foco de resistência cultural e política aos desmandos, que começavam a brotar em todo o país contra a ditadura. Gerou heróis em ambas as facções: na intelectualidade, não foram poucos os que sucumbiram no desespero do álcool e das drogas. Na política, muitos morreram com o dedo no gatilho, em câmaras de tortura ou ficaram definitiva ou parcialmente aleijados psicologicamente, após uma tenebrosa odisséia ideológica que durou até a redemocratização." D'Ângelo observa que uma das características daquelas pessoas, "que faziam do Lucas quem sabe o seu único lar", era a convivência fraterna entre gente das mais variadas características pessoais e profissionais. "Éramos um coletivo solidário. As conversas sobre teatro podiam ser intercaladas com comentários sobre a repressão, o aparecimento de alguém ou sumiço de vários, os confrontos com a censura no Rio e São Paulo e o fechamento progressivo que se verificava em Belo Horizonte, no campo cultural. Havia medo, mas também havia riso." "Acho que até mesmo em nossa atividade teatral o Lucas desempenhou um papel de extrema importância, já que, muitas vezes, encerrados os ensaios de alguma peça, vínhamos bebericar e não foram raros os episódios envolvendo atores e atrizes que me levaram a modificar seu desempenho no palco, para a peça que pretendíamos encenar. Havia no Lucas uma espécie de ensaio complementar, sem regras ou comandos. Predominavam as súbitas boas idéias e o improviso descompromissado. E foram estas engraçadas experiências motivo de alterações e improvisos no trabalho que estávamos executando." E completa: "O Lucas, para mim, mais que um bar, chegou a ser também palco, bastidor e platéia.” Se hoje o panorama é outro, D’Ângelo o atribui à inevitável mudança dos tempos e à saudável sucessão de gerações. “Tudo se esvai e isto é positivo. Não se estratificam momentos. Mas isto não impede que os cultivemos para sempre, no palco da saudade e da lembrança.”
O TEMPO ENGOLIU O ENCANTO O tempo tudo absorve e transforma, e nem mesmo o encanto dos bares escapa à sua fluência inflexível, que substitui referências, altera Ícones e transforma o que ontem era fascinante em algo hoje corriqueiro e, em muitas circunstâncias - e sob alguns olhares - até mesmo em fenômeno prosaico e mesmo vulgar. Processo semelhante aconteceu com a Cantina do Lucas, na visão do teatrólogo Helvécio Guimarães, freqüentador histórico daquelas plagas desde a sua fundação, há 40 anos, e que ali permaneceu como uma espécie de sócio honorário e remido até início da década de 1980, "quando tudo mudou, principalmente nós e nossos sonhos, já que nada escapa à maturidade e ao envelhecimento." Para Helvécio, os tempos de ouro da Cantina são hoje referências de uma saudade "daquele bar que era simultaneamente um foco irradiado r de novos talentos, no teatro e literatura, mas também um aprazível centro fornecedor de deliciosas figuras femininas. De ambas ofertas desfrutei, com a cabeça, o corpo e algumas poucas vezes com o coração. " "O Lucas era uma espécie de centro forjador de talentos e não foram poucas as. idéias revolucionárias que ali vi emergir, principalmente enquanto homem de teatro e de cultura." Lembra que foi em uma daquelas mesas que, pela primeira vez, ainda nos anos 60, discutiu-se a possibilidade e a necessidade do pessoal de teatro, atores, produtores e diretores, criarem uma entidade que congregasse a categoria. "Ali nasceu a idéia da criação de uma associação, que 1 ° anos depois viria a se transformar em nosso sindicato, por volta de 1975. Foi uma proposta corporativista, essencial para todos, que hoje é uma realidade." Helvécio Guimarães lamenta não ter a capacidade de rebuscar fatos determinantes de seus anos no Lucas por um motivo simples e inquestionável: ele confessa que, talvez por uma questão de excessiva longevidade, "ainda bem que já não tenho memória. Ela se diluiu não só pela idade, mas também, quem sabe, pelas bebericagens contumazes e históricas das quais não me arrependo nem um pouquinho." Mas tece elogios ao jornalista e homem de teatro Ronaldo Brandão, que, na Cantina, deu início a um processo transformador da dramaturgia em Minas: "ali, ele pensou e organizou a produção da peça 'Baal', uma autêntica revolução em forma e conteúdo." Uma curiosidade que sempre lhe chamou a atenção é o fato de a Cantina nunca, em nenhuma época, ter sido um centro de referência musical. "Os músicos que ali compareciam, como Túlio Silva e Marilton Borges, estavam mais preocupados em conversar e beber que propriamente conversar sobre suas especialidades. Música mesmo acontecia era na sobreloja do prédio, no Berimbau e Oxalá, aqueles inferninhos celestiais. " Helvécio, ocasionalmente, ainda vai à Cantina, mesmo sabendo que "ali tudo mudou, como se alterou a vida." É radical quanto às presenças ditas ‘intelectuais' da atualidade: "... não as levo muito a sério. Mas, para dizer a verdade, já passei da idade de levar a sério muitas coisas." Quando ali adentra, inevitavelmente vem-lhe à memória uma pancadaria que protagonizou, com um jornalista. "Tínhamos sido presos juntos, durante a ditadura. Lembreilhe o fato e ele negou e me agrediu. Tive que convencê-lo do fato na base da porrada." O derradeiro símbolo do Lucas, avalia Helvécio Guimarães, é o poeta Macário, "... que ali parece grudado há 40 anos, escrevendo poemas malucos em guardanapos de papel. Em tempos de computadores e e-mails, é a figura mais romântica dali. Merece uma estátua. Mas será que, após tanta persistência, não teria já se transformado em uma? Talvez sim. Nós é que não notamos.”
A GOTA D’ÁGUA O Maletta e a Cantina do Lucas representam na história de Belo Horizonte não apenas um lugar de grandes encontros. Desencontros também fazem parte da pauta deste universo que, por muitos anos, congregou e congrega a boa nata da boemia da cidade. O ator carioca Jonas Bloch, que, por dez anos, residiu e trabalhou na capital mineira, viveu e sofreu neste palco urbano, experiências tão prazerosas quanto um dissabor fatal, capaz de levá-lo definitivamente para outro mercado profissional.
Jota D’Ângelo, Edmar Roque, Helvécio Guimarães e Ronaldor. (ACL)
No final dos anos cinqüenta, cursando Belas Artes e o curso de Teatro na Fundação Brasileira de Teatro, além de estar em plena atividade artística em TV na capital carioca, Jonas Bloch resolveu vir tentar a vida em Beagá, onde tinha parentes. Uma briga com seu padrasto foi o motivo principal dessa decisão. Aqui, chegou a trabalhar em um escritório de arquitetura de um primo, e concluiu na UFMG a faculdade de Belas Artes. Por acaso, viu um anúncio de bolsa de estudos para o Teatro Universitário. Fez o concurso e passou. A turma do TU acabou se transformando em um Grupo de Teatro Experimental, com montagens de vanguarda. Um tempo dos mais vigorosos da produção cênica mineira, na opinião de Bloch. No início dos anos 60, após o golpe militar e tendo como exemplo o chamado "teatro engajado" de grandes centros como Rio de Janeiro e São Paulo, Jonas Bloch e Jota D'Ângelo escreveram e montaram um dos maiores sucessos do teatro mineiro e brasileiro de todos os tempos: "Oh! Oh! Oh! Minas Gerais." Nesta época Jonas Bloch era dono de uma loja de móveis e decorações, na rua Rio de Janeiro, 922. Era lá o ponto de encontro dos artistas, ao final do expediente. À noite o grupo ia para o Maletta discutir novos projetos. É neste momento também que Jonas tem seu primeiro contragosto em Belo Horizonte e as duas lembranças marcantes do Maletta e da Cantina do Lucas. "Oh! Oh! Oh! Minas Gerais" revelou-se um enorme sucesso de público e crítica em todo o Brasil, com 22 críticas publicadas na imprensa nacional, das quais apenas duas desfavoráveis. Para sua surpresa, exatamente estas foram as escolhidas por jornalistas mineiros para serem divulgadas na imprensa local. Este episódio não foi suficiente para demover Jonas Bloch e seu grupo de uma nova e ousada empreitada. Com a monumental bilheteria de "Oh! Oh! Oh! Minas Gerais", o Grupo de Teatro Experimental tomou importantes decisões: comprar para sua sede duas salas no edifício Maletta e montar um espetáculo nos moldes de uma superprodução. Esta nova montagem, praticamente, consumiu todo o provimento de caixa da
companhia. Um projeto arrojado, com cenários e figurinos artesanais bastante sofisticados. Na data prevista, por um problema técnico, o espetáculo não estreou. Mesmo assim, no dia seguinte Jonas Bloch viu estampada, em um jornal local, uma crítica acachapante ao seu novo espetáculo. À noite no habitual encontro com colegas na Cantina do Lucas, Jonas Bloch, ainda imbuído do sentimento de revolta, depara-se com o grupo de jornalistas que, parecia estar de plantão para desqualificá-lo profissionalmente, motivo para uma grande discussão que quase chega aos socos e pontapés. Motivo também, para que o autor decida definitivamente, em 1969, encerrar sua carreira no meio artístico local e desviar sua rota profissional para os palcos de São Paulo.
O OLHAR DESLUMBRADO DO MENINO O primeiro olhar do menino Mário Lúcio Brandão sobre a frenética paisagem das noites alucinadas da Cantina do Lucas ocorreu em fins da década de 60 e princípios de 70, quando, ainda na faixa dos 15 anos, começou a freqüentar o local movido por uma instigante e irreprimível curiosidade. Ele confessa que ficou deslumbrado desde o início, com as conversas estrondosas, o berreiro reboante, os risos descontrolados e palavrões espontâneos misturados a citações filosóficas, além dos slogans políticos sendo abafados sem maiores reverências por gritinhos de bichas histéricas. "A fama do lugar me atraiu e, com alguns amigos mais ousados, logo o tomei de assalto, tímido e ressabiado, a princípio. Mas logo me acostumei com o ambiente, que, naquela época, já era o grande ponto noturno da cidade, freqüentado por uma fauna diversificada, onde o intelectual consagrado sentava-se na mesma mesa com um curioso anônimo e cineastas expunham seus roteiros de filmes inexeqüíveis a futuros guerrilheiros urbanos, que sem dúvida os deviam considerar como o máximo de tudo que fosse politicamente incorreto. Mas o que mais me marcou, naquele tempo, foi o berreiro incessante, que se originava não só de discussões sofisticadas, mas principalmente de um porre coletivo espontâneo e divertido." "O entusiasmo era contagiante e, para um rapazola adolescente, era uma surpresa e uma glorificação ver mulheres tomando cerveja, mostrando as pernas, xingando em voz alta e esculhambando tudo, desde o governo militar repressivo até o namorado infiel", continua o cineasta, que já produziu 3 longas metragens - "O grande Mentecapto" e "Tiradentes", de Oswaldo Massaini e "Brasília, a última utopia", uma coletânea de episódios assinados por vários diretores. "Havia uma maravilhosa fluidez, mais etílica que propriamente intelectual, apesar de ali estarem sempre presentes grandes escritores e poetas, filósofos e jornalistas. Mas para mim, garoto ainda, a suprema maravilha foi descobrir que as mulheres não eram apenas aqueles seres inacessíveis, de saias compridas e prendas domésticas, com que eu estava acostumado a conviver, em família. As do Lucas tinham talento e desenvoltura. Algumas, como mais tarde tive o prazer de constatar, eram até acessíveis demais e não levavam as roupas muito a sério. Pelo contrário, delas se desfaziam com deliciosa prodigalidade." Mário Lúcio logo compreendeu que freqüentar o Lucas, habitualmente, equivalia a obter uma senha de valor inestimável e imprescindível, para se ter acesso "não só às conversas sobre o que se considerava 'temas elevados', mas também às mulheres modernas, independentes, audazes e irreverentes mas sobretudo muito bonitas." Isto dentro de um panorama ornado por figuras "antológicas", como o jornalista e diretor de Teatro, Ronaldo Brandão, "o indefectível Olympio, autor e ao mesmo tempo personagem de si mesmo", o "falso tímido Murilo Rubião, que guardava uma prolixidade incrível, escondida sob uma máscara de discrição defensiva", e sobretudo o pessoal do cinema, como o falecido cineasta Shubert Magalhães, "que conversava como se expusesse argumentos de filmes e agia como se estivesse sendo filmado." "Não foi ali que tomei o meu primeiro porre, mas sem dúvida muitos foram acrescentados naquelas madrugadas eletrizantes", continua, "geralmente regados por aquela comida que permanece até hoje deliciosa, principalmente os pratos que Olympio chamava de comunistas, como o Filé a Cubana e a Salada Russa." Para Mário Lúcio, são poucos os locais, em Belo Horizonte, que mantinham "tanto falatório inteligente e agitação criativa, em uma época de medo ou covarde conformismo." Hoje, como diretor geral do programa 'Cine Magazine', que vai ao ar há cinco anos pela TV Minas e presidente da Associação Mineira de Cineastas, Mário
Lúcio apenas ocasionalmente vai à Cantina do Lucas, "em parte por falta de tempo, mas também porque não cultivo nostalgias. Mas sempre que lá apareço inevitavelmente reencontro um garoto de 15 anos, tímido, copo na mão e tentando aparentar uma idade que não tinha. Tenho saudade daquele meu olhar desaparecido, mas as imagens delirantes que ali gravou estão definitivamente inscritas em mim. E em minha vida."
UMA FEBRE DE CINEMA A primeira pulsação de criatividade e contestação do cinema brasileiro, com uma pujança anárquica, inédita e ousada - e também muitas vezes desesperada - aconteceu na década de 60, na Cantina do Lucas, "e os resultados daquele movimento ainda são palpáveis, seja no trabalho de alguns cineastas remanescentes ou mesmo na influência que suas experiências provocaram nos filmes nacionais que surgiram poucos anos depois." Quem garante isso é o cineasta Geraldo Veloso, histórico freqüentador do local naqueles tempos, e que ali não perdeu "uma só discussão, um só roteiro impossível idealizado, um só palavrão contra os milicos e também nenhuma besteira, entre as milhares fartamente berradas após o milionésimo copo emborcado por futuros diretores, críticos ou simples cinéfilos apaixonados." Veloso ressalta que o bar era uma espécie de "vulcão pujante de idéias" relacionadas com filmes vistos, feitos ou apenas sonhados. "Dali brotaram os germes dos primeiros filmes mineiros, como 'O Milagre de Lourdes', de Carlos Prates Corrêa, e sobretudo a fértil e curiosíssima produção dos curtas de 1966, que concorreram ao Festival JB-Mesbla de Cinema Amador." Deste evento participaram, entre outros, Shubert Magalhães, Neville d'Almeida e Márcio Borges. "Eram obras carentes de técnica, em 16mm, com seus autores colocando pela primeira vez o olho em um visor de câmera, mas efusiantes de idéias malucas, personalíssimas e muitas delas geniais em termos de compreensão do cinema, que impressionaram paulistas e cariocas." "Foi no Lucas que começou o chamado 'udigrudi' nacional, versão tupiniquim do cinema underground, que estava em moda. Se no Rio, no cine Paissandu, o pessoal assistia, aqui a gente fazia", continua Veloso, que também acredita que Minas - e o Lucas, por conseqüência, foi o berço do filme contestatório brasileiro. "Ali sentávamos, enchíamos a cara, falávamos de cinema e trocávamos idéias impossíveis e namoradas bem possíveis. Éramos os aventureiros da vida e da noite, em um tempo em que Belo Horizonte ainda dormitava no conforto moral do provincianismo. Foi uma febre cinematográfica inexplicável. Na cidade, só se pensava cinema, Marcinho Borges queria ser cineasta, assim como um tal de Bituca, contrabaixista do bar Berimbau - que ficava na sobreloja - e cujo verdadeiro nome era Milton Nascimento. Ambos deixaram os filmes pela música. Azar do cinema." Saía-se das sessões do CEC, na Imprensa Oficial, e ia-se comentar os filmes no Lucas, "entre as inteligentíssimas palhaçadas pré-tropicalistas de Ronaldo Brandão e a seriedade européia de Maurício Gomes Leite." Dali, surgiram não poucas experiências, como os curtas "Ocorrência Policial", de Tatá Madureira Horta, "Esparta", de Miltom Gontijo e vários outros. "Era contestação em cima de esculhambação, desrespeito e ironia afiada e mordaz contra qualquer tipo de alicerce moral ou político; em síntese, um maravilhoso achincalhe criativo", ressalta Geral do Veloso que, no Rio, montou diversas destas "peças inesquecíveis, que deveriam constar de qualquer museu relacionado com a história do cinema nacional. Foram mais que filmes; foram desafios." Veloso lembra que aquela "inesquecível baderna existencial e cultural" não se restringia às idéias e à cultura, mas também atingia os comportamentos. "Vejam só o caso do Neville. Ele namorava Maria Clara, filha do psicanalista Hélio Pellegrino. De dia, mãozinha dada e cineminha inocente. De madrugada, transformava-se em um Romeu afoito e vanguardista, subia a sacada da casa da moça e ia transar com ela sem a menor cerimônia. Era assim com todos. À luz do sol, bons rapazes. Ao luar, tremendos devassos contestadores e beberrões barulhentos, além, é claro, de serem também notórios comunistas sem partido ou militância, pelo menos explícita. Isto incomodava os órgãos de repressão, que apenas nos vigiavam.
Felizmente, beber, transar e falar contra tudo e todos ainda não era crime contra a Lei de Segurança Nacional." Arremata, aliviado: "sorte nossa." Geraldo Veloso acha que fenômeno semelhante, em Belo Horizonte, talvez possa se repetir. "Depende da circunstância histórica. Mas, com personagens semelhantes, acho que será impossível. Hoje, até os mais ardentes revolucionários, na área cultural ou qualquer outro setor, são tediosamente bem-educados. E bem-comportados."
HERÓIS MORTOS E ENGRAÇADÍSSIMOS PALHAÇOS O jovem Amilcar Martins, em meados da década de 60, flutuava em um autêntico caldeirão efervescente de cultura, bebida e política que a cada noite borbulhava na Cantina do Lucas, tendo como tempero permanente cineastas, gente de teatro, estudantes contestadores, revolucionários potenciais ou apenas românticos, mas todos com uma característica comum: eram incrivelmente barulhentos, alegres e, mesmo na extrema severidade das teorizações estéticas e confabulações - ou mesmo conspirações eventuais - sempre engraçados. "A ditadura estava em seus primórdios e a repressão fazia suas primeiras vítimas, especialmente entre intelectuais e sindicalistas. Mas não deixava de ser divertido presenciar aquela resistência anárquica nas mesas do bar, destruindo o governo militar a cada copo. Se para cada porre correspondesse uma revolução, sem dúvida seríamos hoje um país socialista. Um pouco caótico, sem dúvida, mas certamente bastante divertido." Amilcar revela que, naquela época, convergiam para o Lucas especialmente militantes do movimento estudantil, escritores, artistas plásticos, membros do Partido Comunista e o pessoal do cinema e do teatro. "Eu era ligado aos dois últimos grupos, pois fazia teatro, um pouco de tudo nesta atividade, desde ator até auxiliar de produção e mesmo iluminador de espetáculos. Tinha uma tarefa estratégica, que era unir o movimento estudantil à turma mais politizada do meio teatral, cujo protagonista principal era o Jota D'Ângelo. Assim, as noites serviam tanto para conspirações como para debates sobre peças. Muitas vezes misturava mos as bolas. O barulho era incrível e não podia deixar de ser, já que havia personagens do quilate de um Flávio Márcio, Ronaldo Brandão, Paulo Augusto e o grupo de João Etienne. Uma mistura eclética e imprevisível, com idéias brilhantes servindo de tira-gosto das bebidas." "Quanto à ideologia, não havia escapatória: ou se era contra ou a favor dos milicos e quem os apoiava não tinha a coragem suficiente para fazê-lo abertamente. Mas é preciso frisar que havia mais diversão e teorização artística que propriamente articulações conseqüentes para a prática política. João Etienne preferia falar sobre o seu 'teatro em família' que a respeito dos desmandos do fascismo. E Flávio Márcio se preocupava mais com Marilyn Monroe que com o arrocho salarial. Ronaldo Brandão, sempre elétrico, era ao mesmo tempo autor e personagem de si próprio. Mas tudo era fantasticamente inteligente, debochado, irreverente e corajoso. Até mesmo deliciosamente irresponsável. O Lucas era uma ilha de liberdade, um núcleo de pujança criativa e um foco de resistência aos dias negros que já se anunciavam." Ele freqüentava a Cantina com vários amigos, inclusive seu irmão Roberto, "que naquela época era menor de idade e por isto os garçons não lhe serviam bebida. Eu pedia a cerveja para mim e ele a bebericava clandestinamente", afirma Amilcar, sem qualquer referência ao irmãozinho de antigamente, que hoje é nada menos que Roberto Martins, presidente da Fundação Instituto de Pesquisas (Fipe), de São Paulo. "Naquele território livre, muita informação política preciosa foi compartilhada, muitas prisões evitadas e muitos foragidos encontraram orientação para obter refúgio. O Lucas, por isto, era uma área minada e todos penavam uma indisfarçável paranóia por uma repressão palpitante. Quando estranhos apareciam, a linguagem tornava-se cifrada. E isto era fundamental, especialmente no processo de integração entre os estudantes e a classe teatral politizada." "Naqueles tempos obscuros, partidos políticos ou sindicatos pouco valiam como instrumento de aglutinação. Estavam desmantelados. Em Belo Horizonte, pelo menos, o bar os substituiu, especialmente a Cantina do Lucas, que se transformou em um centro de
convergência até em proporção nacional, onde circulavam idéias e não faltava uma constante contestação aos rumos que o Brasil ia tomando. Ali se tomaram muitas decisões que repercutiram na vida de pessoas e mesmo na política nacional. De lá saíram, muitos heróis, vivos ou mortos. Mas também alguns engraçadíssimos palhaços." Amilcar considera, porém, que seria difícil recriar hoje aquele ambiente saudoso, "pois as coisas acontecem na história e não costumam voltar no tempo. Tenho uma lembrança nostálgica e carinhosa daquela ebulição e dela sinto falta. Lembro-me sempre dos amigos mortos e dos que se transformaram em rascunhos de si próprios, devido à ditadura. Mas resta o consolo de saber que participei de um período fundamental na trajetória política e cultural de minha cidade. O Lucas nunca será o mesmo. Mas nunca acabará."
O RISO E A LÁGRIMA O repórter Geraldo Elísio - que por este pomposo nome deve ser identificado apenas por seu pai e mãe, já que é universalmente conhecido como PicaPau - sempre foi um especialista em produzir notícias, muitas delas vibrantes e repercussivas, como o comprova sua brilhante carreira em diversos jornais mineiros. Mas fora da reportagem política, também teve o seu dia de caça e isto ocorreu na Cantina do Lucas, que freqüenta há décadas, como boêmia seco de olhar perscrutante, ligado ao inédito e ao exótico, atributo que pode muito bem qualificá-la como um sagaz enciclopedista de todos os absurdos reais ocorridos naquele espaço, especialmente na era cinzenta dos anos de chumbo, onde ali conviviam o real e o possível, ao lado do onírico, o trágico e o exótico. Estava o Pica-Pau às turras, sabe-se lá por qual motivo, com o tonitroante jornaleiro Tostão, "talvez por negar-lhe uma gorjeta, ou quem sabe por causa de uma bebedeira dele mais acentuada", tenta ele lembrar-se daquilo que chama de "uma briguinha sem motivos ou conseqüências sérias." O jornalista sequer pensou duas vezes no incidente e logo o esqueceu, o que pareceu não acontecer com a outra parte berradeira, que continuava a freqüentar as madrugadas da Cantina, arautear suas manchetes mas sem sequer depositar o olhar esgazeado em qualquer mesa onde por acaso estivesse empoleirado o Pica-Pau. Este, chegou até a considerar a situação engraçada, sem levá-la a sério. Mas Tostão permanecia emburrado, noites a fio. Se mancheteava oralmente o bar e era pago com a compra do jornal ou gargalhadas pelo título gritado, real ou inventado, nem se dignava a aproximar-se de onde estava o jornalista. Mas o fricote durou pouco. Certa noite, estava Pica-Pau com sua namorada, a também jornalista Magda Lenard, jantando na Cantina. Tostão viu os dois e não titubeou. Pediu silêncio a dezenas de presentes pois iria soltar uma notícia especial, que logo veio reverberando na acústica do local, a plenos pulmões ( e que pulmões...): 'Geraldo e Magda presos em Nova Lima por tráfico de maconha!.' O riso foi geral, a mesa dos pombinhos virou o centro das atenções, mas pouca gente ficou sabendo que o fato era real, apesar dos personagens serem diferentes. A polícia havia, realmente, detido em Nova Lima dois traficantes perigosos. E por estranha coincidência, seus nomes eram Geraldo e Magda. Na capa do jornal, estava a foto dos dois verdadeiros protagonistas do fato, tentando esconder o rosto. "Eles estão com vergonha", acrescentava Tostão, jomalisticamente vingativo, mostrando o jornal em todas as mesas e indicando, de soslaio, o lugar onde estavam os infelizes homônimos dos criminosos.
Geraldo Elísio – o Pica-Pau (ACL)
" O Lucas daqueles tempos, se era um lugar onde se concentrava a inteligência, também guardava um espaço muito especial para o riso", diz Geraldo Elísio, que se lembra da época sobretudo pela curiosa setorização temporal da variada gama de seus freqüentadores. "Havia os diaristas, como o poeta Macário, que afirmava que era realista porque não respeitava a realidade. Fazia versos com tudo e todos, inclusive com uma menina incauta que uma noite lá apareceu e cometeu a imprudência de comentar, na mesa onde estava o bardo, que usava um sutiã tipo 'meia-taça'. Foi o que bastou para Macário rascunhar uns versos em um guardanapo e entregá-los à moça: 'Meia-taça/em você/me embriaga." Mas os diaristas eram raros. Havia o grupo que ali chegava às 18h e permanecia até as 20h, "formado por bancários, empregados do comércio e escritório em fim de expediente", diz Pica-Pau. "Era gente pacata, sem maiores estardalhaços. Mas, a partir desse horário, ocorria uma metamorfose e o Lucas transformava-se aos poucos em um antro de revolucionários radicais, muitos deles tão virulentos que viraram folclore." Ele recorda o caso de um jovem rico, esquerdista até a medula, estudante de Direito que vivia em BH com uma mesada milionária do pai latifundiário. Certa vez, em uma discussão, brincaram com ele dizendo que, após a revolução socialista no Brasil, as fazendas de seu pai seriam todas desapropriadas. O moço parou de falar, bebericou seu uísque em silêncio mas logo retrucou, eufórico com a solução que encontrara: 'Fuzilem o velho, mas podem deixar que das fazendas eu cuido...' Histórias pululam na memória do repórter Geraldo Elísio. Uma delas leva lá o seu timbre panfletário. "Em uma noite de bar cheio, um sujeito completamente embriagado lá entrou, incomodando a todos e percorrendo mesa a mesa, dando palpites e interrompendo conversas. A situação chegou a tal ponto que ficou insustentável. Chamou-se o garçom Dedé, que, com sua tradicional gentileza, carrancuda quando necessário, levou a figura para fora, ameaçando chamar a polícia caso não fosse embora. O cara permaneceu alguns minutos agarrado à grade externa da varanda e, de súbito, gritou: 'Afinal, isto aqui não é um bar de artistas e intelectuais? Boteco que chama a polícia para bêbado não tem moral de ser chamado como tal. Aqui não tem intelectual nenhum, só dedo duro...' Foi o que bastou para que todos os freqüentadores fizessem, em um lapso, um exame de consciência coletivo. Dispensaram a polícia e confraternizaram-se amigavelmente com o ruidoso pinguço", acrescenta Pica-Pau. Havia ainda, segundo Pica-Pau, uma sutil divisão das mesas internas. "Perto das portas, geralmente ficavam os escritores, como Fritz Teixeira de Salles, geralmente acompanhado do poeta Pau linho Assunção. Murilo Rubião só se sentava próximo à parede. Tinha também a turma dos existencialistas; estes, quando chegavam em bando, estavam na mais irreprimível alegria e trocavam gargalhadas na entrada do Maletta. Mas bastava colocar o pé na Cantina para assumirem instantaneamente uma expressão de angústia existencial profunda, que cultivavam até no último grau da bebedeira." Ao lado do cômico e do lírico, não faltou a Geraldo Elísio a experiência trágica na Cantina do Lucas. "Uma noite, vi, em uma mesa, um senhor solitário, em frente ao Peixe a Comodoro que havia pedido. O homem não comia, apenas chorava e as lágrimas se derramavam dentro do prato. Fiquei preocupado e penalizado. Fui até ele e perguntei se precisava de alguma coisa, se estaria passando mal. O homem levantou o olhar, olhou-me nos olhos e então vi quem era: Martim Francisco, o famoso técnico de futebol, que treinou o Atlético, vários times mineiros e até o Fluminense, do Rio. Ele retribuiu com um sorriso triste e apenas respondeu: 'meu amigo, obrigado por me reconhecer. Só isto me faz feliz'. Era ele, o famoso inventor do sistema 4/2/4, o criador do futebol alegre, que pouco tempo depois pagaria o preço do alcoolismo agudo morrendo de cirrose hepática."
Geraldo Pica-Pau Elísio termina: " Hoje ainda freqüento o Lucas e sinto a mudança dos tempos, das pessoas e da vida. Quem aqui foi protagonista está virando personagem. Muitos já se foram, em breve iremos nós. É o ciclo das coisas."
O CAMINHO DE SANTIAGO O jovem estudante e hoje advogado Márcio Santiago freqüentava o Edifício Maletta desde o final da década de 60, verificando sistematicamente, todas as noites, os mistérios e imprevistos oferecidos pelos incontáveis botequins e inferninhos de sua sobreloja, ali colhendo inesperadas surpresas, alguns agrados, ocasionais desenganos mas sempre muita alegria e excitação, como convinha a um universitário desinibido. Mas sentia a nostalgia de um recanto mais aconchegante e foi na Cantina do Lucas que, conforme confessa, veio a conhecer "o verdadeiro bar." Isto por volta de 1970, no auge da ditadura, que em Belo Horizonte também coincidiu com o apogeu de históricas bebedeiras, irreverências, desatinos e sobretudo contestações. Chegou ali para ficar. Como ficou e ainda está.
“Seu Olympio”, entre velhos e novos amigos, na festa dos seus 80 anos. (ACL)
O que mais o cativou, no início, foi a envolvência daquele ambiente boêmio, que já acolhia a muitos de seus colegas da Faculdade de Direito e alguns dissidentes do restaurante Albamar, ambos logo acima, pela Rua da Bahia, tradicionais núcleos prolíficos na produção de poetas bissextos, contistas promissores, comunistas bem humorados, bichas enrustidas, beberrões inveterados mas especialmente adversários ferrenhos do governo militar. Na época, ainda não praticavam o tiro ao alvo contra os guardiões da segurança nacional, mas apenas manifestavam seu inconformismo com os rumos da nação através de espalhafatosas passeatas que paralisavam a cidade. Muitos deles morreram na bala ou na tortura. Outros, mais tarde, alguns com indeléveis cicatrizes em alma e corpo - ajudaram a fundar o PT. Santiago atravessou décadas na Cantina do Lucas e guarda na memória e na saudade a fase que qualifica como "clássica e heróica" do local, que consistiu no período mais severo dos anos de exceção. "Ficar à noite bebendo, junto aos amigos e mesmo cercado por espiões disfarçados ou ostensivos, já constituía um alívio para muita gente. Era uma ebulição que atingia a todos, desde intelectuais até militantes à véspera da clandestinidade, todos sempre sob a proteção enérgica mas carinhosa do anjo da guarda de plantão, que era o velho Olympio."Este, segundo Santiago, era radical não só em sua paixão anárquica pela esquerda e seu ódio a qualquer tipo de fascismo; se um freguês o irritasse ou desagradasse, ai dele. Seria sistematicamente servido de cerveja quente, salgados frios, resmungos alternados a palavrões ou um silêncio agressivo respondendo a qualquer pedido. "Seu Olympio, uma cerveja, por
favor"- disse um destes infelizes, certa noite. "Sinto, mas estamos em falta", respondeu o velho com o maior cinismo, enquanto conduzia uma bandeja com várias delas e os outros freqüentadores emborcavam seus bem-servidos copos, sob o olhar estupefato e sedento da vítima. Mas podia também ser sutilmente grosseiro, como, ao responder a um desses clientes indesejados, que lhe indagou se 'sua lingüiça' (a servida pela casa) 'está boa?', apenas respondeu: 'Sou casado há vários anos e minha mulher nunca reclamou...' Outra história refere-se a um freguês insuportavelmente chato, que fazia até mesmo os garçons desaparecerem quando chegava. Um dia, quando apareceu, todos se esconderam e sobrou para Olympio o difícil encargo de atendê-lo. O sujeito foi logo perguntando: 'O que você tem que possa sair bem rápido?'. Olympio retrucou: 'quando você chega, os garçons...' Episódios hilários não faltam na coleção de humor de Márcio Santiago, um deles envolvendo seu amigo, o também advogado Cretildo Crepaldi, quando ainda ali freqüentava, com sua mania de ficar sempre só, lendo toneladas de jornais. "Uma madrugada, Crepaldi estava absorto na leitura, para variar, camuflado entre um monte de páginas abertas. Havia um gay, que trabalhava no teatro da Imprensa Oficial, freguês habitual da Cantina, que decidiu cometer uma peraltice. Pé ante pé, levantou-se e, sem ser visto, ateou fogo ao jornal do Crepaldi, que ficou apavorado com as chamas mas não reagiu. Mas só por alguns momentos. Não se sabe como, conseguiu, na cozinha, uma garrafa de álcool. Quando a bichola se distraiu, ou foi ao banheiro, derramou cuidadosamente o líquido desde sua mesa até debaixo da que era ocupada pelo risonho incendiário. Este logo voltou e Crepaldi acendeu o rastilho. A coisa ficou feia, pois as chamas foram imediatas e perigosas, com risco evidente de se propagarem. A bicha ficou histérica, gritando apavorada, em falsete e estridência: "todo mundo está vendo, se eu morrer, foi o assassino Crepaldi que me matou...' O incêndio poderia alastrar-se, com conseqüências imprevisíveis, caso não surgissem bombeiros improvisados emergenciais, que o apagaram com baldes de água. E tudo voltou à santa paz." Hoje, Márcio Santiago continua freqüentando o Lucas, mas sem tanta assiduidade e com companhias diferentes, quando não prefere ali comparecer sozinho. "Deve ser a idade", lamenta. Mas reconhece que a Cantina "foi uma marca definitiva em minha vida, um relicário de belos sonhos e também o túmulo de algumas decepções. Mas não reclamo, só festejo. E brindo a ambos."
UM SAUDOSO REFÚGIO ENLOUQUECIDO O escritor e jornalista Carlos Herculano Lopes foi, em meados da década de 1970, mais que um assíduo freqüentador da Cantina do Lucas; pode mesmo ser considerado como parte integrante de um grupo de escritores, artistas, jornalistas e contestadores em geral que elegeram o local como uma espécie de refúgio' onde se podia - com as precauções devidas, já que todo o cuidado era pouco, naqueles tempos de escuridão - trocar idéias que, se expostas com menos parcimônia e em um tom mais espalhafatoso, sem dúvida resultaria em imediata prisão, já que àquela época vivia-se o ápice dos anos de chumbo da ditadura militar. "Foi o pior período, quando as pessoas, se apareciam hoje, poderiam sumir amanhã. Bastava um telefonema anônimo de um dedo-duro de plantão, ou um cabelo mais longo ou barba por fazer, para configurar qualquer um como um terrorista perigoso." Neste sentido, assegura Herculano, o Lucas pode ser considerado como "um autêntico centro de resistência aos militares e seu obscurantismo, naqueles tempos nada saudosos. Resistíamos na bravata, nas análises contundentes, nos protestos silenciosos e nos porres nem tão silenciosos assim. Mas resistíamos, e bravamente "Lembro-me bem de uma noite, onde entornávamos litros de cerveja, entre conversas ou mais amenas, sobre literatura, ou um pouco mais melindrosas, se abordavam qualquer tema relacionado com política, fosse nacional ou internacional. Eu estava em uma mesa com vários amigos, entre eles o poeta Antônio Barreto, Javert Monteiro e outras pessoas de que não me lembro mais, já que a rotatividade no local era intensa e multiforme. Fui embora mais cedo. No dia seguinte, fiquei sabendo que agentes do DOPS chegaram tão logo eu saíra e prenderam todos, desde poetas até curiosos, sem distinção de credo ou culpas formadas ou potenciais. A polícia simplesmente cercou o bar e engaiolou quem julgava suspeito. Só o Jornal do Brasil, no dia seguinte, deu a notícia. As publicações domésticas mantiveram silêncio." Para Carlos Herculano, a Cantina do Lucas era um bar visado, e com razão, pois ali se encontravam todos que, de forma disfarçada, ostensiva ou clandestina, combatiam a seu modo o governo militar. "Não só o bar, como todo o edifício Maletta, onde, além de intelectuais, não faltavam militantes de organizações ilegais, travestis aos montes, homossexuais bandeirosos ou velados. Para as cabeças más pensantes da época, o local constituía uma espécie de sucursal do inferno, devido à diversidade de posturas existenciais e à incrível democracia de todos, onde qualquer tipo humano era aceito sem restrições. Na verdade, esta má fama era um pouco improcedente. Durante o dia, o condomínio era extremamente familiar. Mas bastava anoitecer para que as inevitáveis aves noturnas aparecessem, em busca de seus poleiros. E no Lucas havia poleiro para todos, desde a bicha louca e o comunista ortodoxo até o trotskista cabeludo e o poeta de vanguarda." Ele confessa que ali travou os primeiros conhecimentos com pessoas que viriam a exercer considerável influência em seu ofício de escritor, como os poetas Adão Ventura. Fritz Teixeira de Salles e Paulinho Assumpção. "Lá também conheci o mestre Murilo Rubião e o filósofo Moacir Laterza, cada qual bebericando e se embriagando a seu modo peculiar, o primeiro com a máxima discrição, o outro com a maior extroversão. Confesso que muito de minha formação autodidata, como escritor, teve origem nas mesas do Lucas, foi embasada em suas férteis conversas e pontuada pela contemplação de seus incríveis personagens. " Quanto aos personagens, Carlos Herculano indica os antológicos: "O poeta Macário era um deles. Quase sempre sozinho em uma mesa, escrevia dezenas de poemas em guardanapos e
os distribuía entre os freqüentadores. Alguns eram incompreensíveis e absurdos, mas às vezes ele acertava e produzia alguma coisa ao menos legível, pois seus versos, para se tornarem compreensíveis, exigiriam uma concentração e um esforço intelectual que a balbúrdia do ambiente nunca permitia. Era um sujeito muito inteligente, altamente mordaz e não incomodava ninguém pelo menos literariamente. Havia também o Elói, sobrinho do poeta Emílio Moura e em tudo a antítese do tio, pois enchia a cara com a maior naturalidade e cantava até a sombra das mulheres. O cinema tinha os seus ícones, como Harley Carneiro e Shubert Magalhães, sempre pontificando teorias e discutindo roteiros de filmes imaginários, todos geniais, mas jamais realizados." Carlos Herculano, hoje, quase não vai à Cantina, "por uma questão de falta de tempo e dificuldade operacional ", já que, quando a freqüentava com maior assiduidade, trabalhava no jornal "Estado de Minas", que funcionava perto, na rua Goiás. "Mas soube que tudo ali agora está um pouco padronizado, como era de se esperar, pois o tempo passa e com ele se sucedem as gerações. Mas a idade de ouro do Lucas, sem qualquer dúvida, ocorreu naqueles dias turbulentos. Muita gente morreu, incontáveis antigos incendiários viraram bombeiros conformados mas a saudade daquela fauna estará sempre presente. Mesmo com tanto medo, algum sangue e constante ansiedade, foram tempos de certa forma saudosos, pelas inteligências em confronto, os talentos que emergiam e uma alegria cínica que beirava o desespero. Mas valeu. Foi bom e não me esqueço.”
O MAIO MINEIRO DE 1968 Tudo convergia para o Maletta nos anos sombrios da ditadura militar e, naquele espaço único de rebeldia, a Cantina do Lucas era o centro que absorvia contestadores, intelectuais, artistas, deslumbrados, fanfarrões e - faça-lhes justiça - personagens únicos que sobressaíam por sua incrível peculiaridade, com intransferível charme, mistério e graça. "Vivíamos em uma estupenda Babilônia, onde se entrelaçavam o vulgar e o sofisticado, o futuro guerrilheiro com o próximo cirrótico, o escritor de renome com um certo mercadologista literário, que viria a ficar famoso nacionalmente por seus livros indigestos mas bem divulgados. No Lucas, tudo era possível. E o impossível também a cada noite ali podia se concretizar", recorda Ronaldo Brandão, jornalista e profissional bem sucedido em teatro e cinema, um dos mais antigos freqüentadores do local. Ele vai mais longe, em sua definição da Cantina, enquanto (em um bar longe dali) brada aos céus, copo na mão e olhar perdido na saudade e na distância: - "O Lucas foi, para a minha geração, o nosso Maio de 1968 e assim sempre será lembrado. "
Márcio Lima, Ronaldo Brandão e Edmar Roque. (ACL)
"É como um relógio parado no céu", continua Ronaldo, lembrando-se dos tempos "explosivos, engraçados, trágicos e felizes" em que começou a freqüentar a Cantina do Lucas, em seus primórdios, no início da década de 60. "Ali a inteligência fervilhava e o combustível era o pessoal do cinema, teatro e jornal. Os nomes atravessam a memória, mas só de enunciá-los vêm a saudade e a certeza de que um bar assim não existe mais no mundo. Eram Flávio Márcio e Chanina, Olívio Tavares de Araújo e Márcio Sampaio, Jota D'Ângelo e Ezequiel Neves, uns poucos entre uma plêiade de pessoas fantásticas." Mas salienta que, não fosse epidemia cinéfila que então grassava em Belo Horizonte, aquela "gênese diária de loucura e criatividade" talvez tivesse menos pujança. "A turma do Centro de Estudos Cinematográficos (CEC), onde fui presidente e imperei com competência e galhardia, injetou inteligência e desbunde naquelas mesas. Os novos escritores, como Sérgio Sant'Ana e Luís Vilela, idem. O Lucas era o coração intelectual da cidade, às vezes genial, outras bisonho. Mas único, em qualquer circunstância", completa. Os personagens folclóricos eram abundantes, a tal ponto, segundo Ronaldo, de o garçom Olympio ser obrigado a anunciar certa noite, em alta voz, que "rapaz de salto alto, calça vermelha e brinco escandaloso aqui não entra." E houve ainda o caso, incrivelmente verídico, da falecida socialite Many Catão, devidamente acompanhada por sua cachorrinha Pipoca. Estavam ambas em uma mesa com Ronaldo e outros alegres comparsas quando, quase ao raiar do dia,
ela resolveu ir embora, sem um centavo na bolsa. Pouco se importou com o detalhe e tomou um táxi, para rumar à Serra, onde morava - talvez simbolicamente, perto do antigo hospital psiquiátrico Santa Clara. Lá chegando, com a maior naturalidade, despediu-se do motorista e sem pagá-lo dirigiu-se para casa, deixando Pipoca no carro. O motorista, além de nada receber, ainda reclamou: 'Madame, o que faço com esta cachorra?'. Many não titubeou e respondeu, histérica: 'Que audácia! Cachorra coisa nenhuma. Mais respeito. Seu nome é Pipoca. Ela nasceu na Grécia e estudou na França!'. E se foi, sem dar as costas. Minutos depois, Pipoca chegava em casa, depois de ser expulsa do táxi pelo motorista, furioso e com o taxímetro ainda ligado. "Na Belo Horizonte daquele tempo, os pólos irradiadores de cultura eram o teatro Marília, com seu bar Stage Door e o teatro da Imprensa Oficial, onde eram exibidos os filmes do CEC. Quando acabavam as sessões e os espetáculos, era para o Lucas que todos iam", continua Ronaldo Brandão. Ali que se concentrava o foco de resistência e militância intelectual, nos tenebrosos dias do general Médici. Para Ronaldo, foi também o paraíso dos gays e lésbicas, que não eram molestados, "o que favorecia inclusive as bichas e sapatões enrustidos, temerosos de se assumirem." A droga, hoje inocente, era a maconha, que não prevalecia. "Éramos uma confraria de bebuns, entusiasmados e inofensivos", destaca. Hoje, porém, tudo é diferente para Ronaldo Brandão. "Não se vê mais intransigentes, rebeldes ou contestadores que mereçam esta qualificação. O mundo se perdeu na contemporaneidade. Está chato. E a cada dia mais medíocre."
NOTURNO ALUCINADO DO MALETTA O poeta e artista plástico Ricardo Teixeira de Salles também teve a sua época de fascinação pela Cantina do Lucas, tanto como um bar eclético, fundamental para a sobrevivência de pessoas inteligentes em uma época hermética (1969-1975), como também porque lá - e nas imediações - encontrou motivo e alento para exercer sua poesia. E o fez com talento e galhardia, ao escrever o "Noturno do Edifício Maletta", uma visão onírica e alucinada dos freqüentadores daquelas plagas nos anos 60 e 70, quando bêbados subitamente se transformavam em personagens e alguns destes automaticamente em mitos, desaparecendo subitamente e sem aviso prévio ou apenas enlouquecendo com a maior dignidade e merecendo dos companheiros muito respeito por seus delírios, alguns sábios, a maioria inextricáveis, mas sempre ouvidos sem qualquer interrupção dos interlocutores. Seria o caso dos poemas de Macário, os porres e as gagas disenterias intelectuais de Henry Corrêa de Araújo, os roteiros impossíveis de Shubert Magalhães ou os devaneios metafísicos de um gay idoso e solitário, que ocupava sempre uma mesa atulhada de livros e - diziam algumas testemunhas de seu clã costumava recitar trechos do Ec1esiastes em plenos bacanais. Em seu longo poema em prosa, Ricardo dá uma visão simbólica daqueles tempos frenéticos: "Os melhores risos noturnos foram sucateados e vendidos no mercado dos depautérios. As estrelas do céu da Cantina do Lucas dançam inutilmente para acalentar os desesperados que, nas entranhas do Maletta, regidos por 'Seu Olympio', já não dizem coisa com coisa. Sem nenhum ideal, a noite infensa atira-se do alto da madrugada sobre a sombra mais triste, entrevista da Rua da Bahia." Não falta, no belo texto, a lembrança do desaparecido (falecido? perdido?) Barão, triste figura vitimada na infância por uma meningite que lhe tirou o senso, mas não o humor e a serenidade. Falava absurdos com extrema seriedade e considerava, os às vezes inevitáveis risos como uma espécie de aplausos. Tinha uma mãe com quem não se dava bem e suas relações eram marcadas por odienta e recíproca falsa cordialidade: "A mãe zureta, o filho alcoólatra, procuram nas reentrâncias do dia um mísero olhar de complacência. Acasos e coincidências, a constante ida à farmácia, à casa lotérica e à padaria se sucedem como trágicas peripécias que eles expõem, diuturnamente, no hall de entrada dos olhares tumulares ou maldosos." "Mãe e filho nunca se encaram, desprazerosos, evitando expor aos vizinhos os ressentimentos e espinhos que eles cultivam entre si. Mas olham com despudor nos olhos de quem usa os mesmos elevadores - o suplicante olhar humilde - como se todos no Maletta fossem seus presumíveis mestres ou senhores." O poeta se lembra de uma melancólica figura obesa, que encharcava-se de bebida antes de subir para urrar nas madrugadas, em seu apartamento solitário: "... Sua vida é arrastada pelos tremores da sofreguidão sexual, guardada entre inexoráveis paredes de solidão... Assim, as paredes do Maletta permanecem impassíveis aos sons das gélidas lamúrias que reverberam no edifício e penetram noite adentro. O estranho, enorme e frustro gordo do nono andar grita. Mas os deuses não abrandam a infame e desvairada dor que ele sente no infinito de suas desgrenhadas desesperanças." E não tem clemência com o falecido professor purista, que tentava inutilmente despejar regras críticas aos poetas e escritores de vanguarda: "O crítico, que ninguém no Maletta tolera, fez mais uma firula com as normas cultas... e
sela a sorte daqueles que se esvaem em escrituras profundas ou rasos poemas... O crítico só não sabe o significado do que foi escrito, sublinhado pela raiva de seus vizinhos, nas paredes ressentidas do Não." Há também a referência ao vizinho e bem comportado bar Lua Nova, que abrigava a fauna da cultura oficial e distinta: "A que horas o Lua Nova irá liberar os bêbados obtusos, para a festa geral dos absurdos?" O poema termina com uma espécie de boas-vindas aos novos freqüentadores: "Eles chegam sem perceber a urgência da vida... Eles chegam geralmente afoitos... trazendo nas bagagens fartas provisões de esperanças, ilusões e as forças resplandecentes da certeza de que irão conquistar o dia e a hora... Chegam e encontram a pedra do amor rachada pela história do semelhante inacessível, verso sem reverso, e se esgotam amarfanhados nos caminhos do tempo, que pulsa noturno no edifício Maletta."
O BOM REVISIONISTA GILÚ O jornalista Ângelo Prazeres, o Gilú, bem que poderia ser qualificado como um competente 'revisionista' da história oficial e oficiosa da Cantina do Lucas, já que, como testemunha viva de suas origens, apresenta uma versão incontestável para os fatos reais que levaram à criação deste bar, já incrustado no presente e no passado de Belo Horizonte - e, quem sabe, destinado a cintilar sem ofuscações pelo menos em seu futuro imediato. Ele garante, do alto de sua autoridade de boêmio maturado por décadas de experiências na noite, que a Cantina não obteve seu tão decantado fausto de maneira espontânea mas, na verdade, derivou de um estabelecimento que hoje existe apenas em forma de um tímido sucedâneo, que é a atual livraria Eldorado, que fica exatamente em frente ao Lucas. Foi lá, em anos remotos do início da década de 1960, que tudo começou, garante Ângelo Gilú. "No começo, não havia Lucas e nem Maletta, cujo prédio ainda estava em construção, mas as galerias do andar térreo já funcionavam. Foi ali, logo na entrada do edifício, que o arquiteto Álvaro Hardy, o Veveco, com minha modesta colaboração como sócio, abrimos a Casa do Livro, que logo se transformou em ponto de encontro obrigatório para escritores, artistas, jornalistas e intelectuais pseudos ou reais, que lá se aglutinavam para comprar livros ou apenas observá-los, decorar as orelhas e depois destilar seu significado superficial em conversas noturnas no bar que existia em frente, a Chopplândia. O traço comum daquela fauna era a paixão não só pela literatura, mas principalmente pela cerveja e o ponto rapidamente se transformou em local obrigatório de encontro. Como o espaço era restrito, o jeito foi a turma se aboletar nas mesas do boteco que ficava em frente. Logo, mudou de nome e virou Cantina do Lucas, mas freqüentado, cumpre frisar, pelo pessoal da Casa do Livro." Ele observa que foram aqueles rapazes e moças, infensos ao moralismo tradicional, que inauguraram em Belo Horizonte, "uma cidade ainda modorrenta", o irresistível território "das nossas mais saborosas lendas boêmias, políticas e artísticas, uma inesperada bomba de efeito imediato naquela geração e com estilhaços retardados que se fazem sentir até hoje, respeitadas as evidentes alterações na qualidade dos freqüentadores do local." A partir de então, sublinha Gilú, nada seria como antes na capital, "cidadezinha jovem e silenciosa, onde a vida era uma gangorra de minúsculas realizações provincianas, onde ou você subia Bahia ou descia Floresta, melancólico percurso de rebeldias contidas." "Mas foi em uma tarde friorenta (fazia frio em BH, naquele tempo), no final de maio, que um rapazola chamado Veveco Hardy convidou seus amigos para uma boca-livre, na inauguração de um bar chamado Chopplândia, no andar térreo de um imenso e horroroso edifício ainda em construção, no centro da cidade. Hoje, virou Cantina do Lucas, histórico reduto de insubordinação, ebulição intelectual e resistência ao obscurantismo que nos anoiteceu em 1964. O jovem arquiteto - nem o era ainda, já que não havia se formado - e eu, já um contador de histórias, sem o saber abrimos o gargalo repressor do desbunde alegre de nossa e das futuras gerações. Nem sonhávamos com os novos tempos que ali nasciam, já que éramos mais novos (muito), e deliciosamente festivos e insensatos." Ângelo recorda-se de que, naquela histórica bebericagem fraternal, após um certo número de copos emborcados - talvez em uma premonição etílica ele e Veveco começaram e entoar um espontâneo refrão, aleatório e profético: 'Aqui no futuro retumbarão hinos...' E de fato retumbaram ao longo dos anos seguintes, de imediato escuros e insondáveis, quando a Cantina do Lucas transformou-se em um autêntico baluarte, pacífico, naturalmente, contra a maré repressiva derivada dos sucessivos governos militares. Ele cita aquela era dolorosa com
um certo humor, esquecendo-se das prisões, desaparecimentos, exílios e torturas para sublinhar que outra grande tragédia do período era o fato de que "as moças não podiam dar para os namorados e os namorados não podiam comer as moças." Mas Ângelo Gilú Prazeres descarta qualquer possibilidade de retornar à ativa na área de boemia. E faz, ele próprio, o seu sereno epitáfio: "O amigo de Veveco, também precursor do Lucas, está agora decadente, não vai mais a festas. Ele nunca dá as caras."
VERSEJAR E BEBER ATÉ MORRER O poeta Macário, que sempre assinou Micítaus do Issás, quando indagado desde que época freqüenta a Cantina do Lucas, invariavelmente responde, sem disfarçar sua surpresa perante a ignorância crassa do interlocutor : "Ora, venho aqui desde que sonhei este bar. Não me lembro quando, mas o sonho ainda não acabou." E, para confirmar a veracidade de sua sábia alucinação, logo rascunha um poema em um guardanapo, após ser servido de cerveja pelo velho Olympio : "Olympio serve sem ser serviçal/Pede como pedisse para si! Serve como se estivesse / Sendo servido." Olympio, paciente, sorri agradecido, mas pede ao bardo para não exagerar. Macário está inscrito na paisagem "luqueana" como Olympio e os dois talvez sejam os mais significativos símbolos dos tempos heróicos da Cantina, nas décadas de 60 e 70. Chega, senta-se, pede a primeira das incontáveis cervejas que engolirá na noite e logo começa a rascunhar. Versos brotam, alguns compreensíveis, a maioria nem tanto. Muitos razoavelmente rimados, outros com pés mais que quebrados: destroçados. Como este: "Um dia a solidão entrou/No meu quarto e disse/ - Vou morar aqui. /Precisava dizer isto na mesa de um bar?" O poeta se irrita quando dizem que só destila poemetos sem sentido. "Sei também falar de amor", reage Macário. E tenta prová-lo, de improviso (haja guardanapo): "Trepei no meu amor/ Para ver o pé de rosa passar/ O pé de rosa não passou/ E eu continuei trepando." Mas não é apenas de versos intempestivos que vive o poeta Macário. Também já teve amores e é famoso o caso de uma freqüentadora que por ele se apaixonou. Ambos bebiam juntos, ele mais preocupado com rimas que com ela; ela mais ligada à bebida que a seus poemas. Madrugada alta, o poeta desertava, refugiando-se na pensão onde morava, lá pelas bandas da Lagoinha. Não foram poucas as vezes em que a moça, já bêbada de álcool e saudade, tomava freneticamente um táxi, ia até a porta do quarto do poeta e gritava, em paixão embriagada, lancinante e tonitroante: "Macário, meu amor... Me come, Macário ... Me come..." Faz versos de improviso, ao rompante da primeira emoção ou ao som de qualquer palavra. Saem coisas do tipo: "Se era para acabar, pra que foi eterno?" Ou, quando a melancolia ou o ressentimento o invadem, já soltou versos que soam como um epitáfio suicida: "Se alguém fizesse comigo / O que tenho feito/ Eu o estrangularia." Passam os anos e o poeta permanece. Hoje, nem tão assíduo como antes, mas apenas às noites de segundas e quintas. A poesia de Macário nem sempre é agressiva ou crítica. Às vezes. terna. "Gosto da chuva porque ela não deixa ninguém perceber que estou chorando." Ou filosófica: "A vida não tem lógica, mas o viver tem." Certa noite, indagado por um freqüentador esporádico, qual a razão de escrever apenas em mesa de bar, Macário apenas fuzilou o sujeito com os olhos, pediu outra cerveja e outro guardanapo e retrucou, entregando-lhe um poema: "Por que gosta de escrever/ Em mesa de bar?/Para ser/E estar." Está e, conforme garante, estará sempre na Cantina do Lucas, "até que os poemas sequem ou o fígado exploda." E arremata, com outros versos, para variar: “Um dia fui ao Lucas / Fazer não sei o quê / E estou fazendo / Até hoje.” Alguns de seus amigos dizem que a sorte de quem vai ao Lucas, quando Macário ali está, é que ele apenas escreve. Imagine se declamasse... Macário a eles responde, em versos
desdenhosos: “Duas coisas sei fazer /Versejar e beber / Isto não vou esquecer / Até morrer.”
UM MÚSICO EM UM BAR SEM MÚSICA
O músico tecladista Túlio Silva é um velho conhecido de todos os que, altas madrugadas, costumam ir à Cantina do Lucas para encerrar com um brinde final suas noitadas, pois há décadas é presença constante no local, apesar de lá ter tocado poucas vezes, sempre em ocasiões especiais ou em alguma circunstância aleatória. Ele confessa que, ali, "não existe propriamente um ambiente para música, pois as pessoas que vêm ao Lucas geralmente estão mais interessadas em conversar, se divertir, namorar, beber ou jantar. A noite da Cantina é bem mais adequada para outras espécies de sons, não exatamente aqueles que costumo extrair de meu teclado."
Túlio Silva e Danilo Sampaio. (ACL)
Mas, se não vai à Cantina como profissional, isto não o impede de ali estar sempre como freguês e amigo de todos, desde o proprietário Edmar Roque até os garçons. "Conheci todos os que por lá passaram, fosse de maneira fugaz ou mais constante, como é o caso do Olympio, que desfila a sua fleuma conduzindo a bandeja entre as mesas e as pessoas há 40 anos." E todas as noites, quase sempre no mesmo lugar, no patamar superior do restaurante, ele faz sua última refeição, após ter dedilhado canções românticas durante longas horas, em outros estabelecimentos espalhados pela cidade, o que vem fazendo há pelo menos meio século. "A maior marca do Lucas é que pouca coisa mudou desde a abertura, no começo da década de 60, a não ser muitos fregueses, que lá deixaram de ir uns por vontade própria, outros por não se adaptarem e muitos pelo simples fato de que não podem voltar apenas porque já morreram", brinca o músico, não sem uma ponta de saudade. "Na Cantina, fiz e perdi muitos grandes amigos, as mais variadas personalidades, desde intelectuais de prestígio, como o cineasta Shubert Magalhães, até o engraçado jornaleiro Tostão, uma das mais possantes vozes que já ouvi. Quando gritava uma manchete nos corredores do edifício Maletta - ou se o fazia buscando intencionalmente um eco, e para isto bastava berrar na porta do Lucas sem dúvida devia ser ouvido até mesmo na sede do jornal onde trabalhava, que era o 'Jornal de Minas', lá pelas bandas da avenida Francisco Sales." Ele revela que nunca pensou, ao longo de todos estes anos, em propor uma apresentação ocasional ou sistemática de seu talento na Cantina, "pois está óbvio que a casa não comporta este tipo de entretenimento. O Lucas existe é para se comer, beber, tomar um pilequinho ou
pilecão, conforme o gosto ou a competência do freguês, para flertar e trocar idéias. Ainda mais, com aquela constante zoeira das pessoas, tanto faria se eu mantivesse meu órgão ligado ou desligado, ou tocasse uma peça de Gershwin ou o Hino Nacional. Ninguém notaria a mínima diferença. A não ser, é óbvio, se dedilhasse os acordes da Internacional Comunista. Aí, sim: seria aplaudido de pé." Túlio tem uma afeição especial por "Seu Olympio", "um homem muito mais inteligente que muita gente pode supor e que só se abre com uns poucos privilegiados, mas mesmo assim só quando o deseja. Ninguém arranca uma confidência dele sem consentimento. Olympio sabe se envolver afetivamente com as pessoas, da mesma maneira como tem um delicado talento para mantê-las a uma distância segura, especialmente quando o sujeito é um chato de galocha. " "Sempre fui um homem da noite e é nela que, com minha música, ganho o pão de cada dia", brinca ele. "Conheci incontáveis casas noturnas ao longo de minha vida profissional. Muitas nem existem mais, outras persistem, algumas desaparecem e renascem. Mas o Lucas até agora não demonstrou qualquer sinal de exaustão. Está sempre pujante de entusiasmo e alegria. E com uma comida que, desde a década de 60 até agora, continua tão maravilhosa que parece estar sendo preparada pelo mesmo cozinheiro. É um lugar que o tempo parece não afetar. Igualzinho à serenidade irônica do Olympio."
VIRGEM APLAUDIDA NA CANTINA DO LUCAS Nos idos dos anos 70, uma bonita e simpática moça, assídua freqüentadora da Cantina do Lucas já há bastante tempo, lá pelas altas madrugadas, com o bar atulhado de freqüentadores - todos já devidamente entusiasmados ou pelas conversas ou pela bebida (talvez por ambos os fatores) - subitamente levanta-se da mesa onde se encontrava com amigos, pede silêncio, sobe em uma cadeira e, em meio à expectativa geral, faz a súbita e inesperada proclamação: "Quero comunicar que sou a única virgem desta Cantina..."
“Seu Olympio” e Dinorah do Carmo. (ACL)
Os aplausos foram retumbantes, entre gritos, assovios, vivas, parabéns, perguntas como 'como você conseguiu isto?' ou 'prove agora que é verdade mesmo', mas a ousada anunciante virtuosa, sequer se vexou. A todos agradeceu e voltou a seu lugar, como se nada tivesse acontecido. O episódio foi comentado durante as próximas noites mas aos poucos caiu no esquecimento, tanto mais porque sua protagonista era uma presença tradicional naquelas paragens, amiga de todos e por todos admirada e respeitada, como pessoa humana e jornalista talentosa. Qual não foi a surpresa, algumas semanas depois, quando a mesma moça (desta vez, porém, com um brilho diferente nos olhos, sem dúvida de irreprimível alívio ou felicidade), também em alta madrugada, repetiu a atitude, voltou a solicitar silêncio, puxou outra cadeira, nela subiu e anunciou, em tom triunfante: "Tenho o prazer de informar que já não sou mais virgem." As palmas ensurdeceram o ambiente e – dizem as testemunhas do fato, que têm boa memória - chegaram até a despertar muitos moradores pacatos do condomínio, mescladas a alegres congratulações e indagações mais indiscretas, do tipo 'qual foi o felizardo?', 'valeu a pena?' e piadinhas semelhantes. A autora de tão inédita proeza foi a jornalista Dinorah do Carmo, conhecida de toda a imprensa mineira por seu vasto currículo e evidente competência, que a levaram à presidência do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais (SJPMG), na gestão que se encerrou junho de 2002. Dinorah conta que freqüenta o Lucas desde 1969, quando ainda era estudante de Jornalismo e se entusiasmou com "aquele lugar lindo, cheio de gente bonita e em fantástica efervescência." Diz que, com o tempo, lá fez vários amigos e praticamente em todas as noites tornou-se presença constante, pois ali foi "onde realmente baixei minha barraca." E desde então repete com freqüência esta operação pois, conforme garante, "lá entro sozinha a qualquer hora
do dia, da noite ou da madrugada, sem receio de alguma abordagem desagradável." "A gente discutia tudo na Cantina do Lucas, desde literatura, cinema e teatro até política, às vezes aos murmúrios, naqueles tempos de repressão. E cheguei a fazer uma espécie de mapeamento sociológico do local, onde havia três sessões. Das seis da tarde até 8h30m, a clientela era formada por executivos, que praticavam o que hoje se apelidou de 'happy hour', mas naqueles tempos a gente chamava simplesmente de 'fim de tarde'. Depois, era a vez dos chamados 'faficheiros', gente da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG ( Fafich), e eu estava entre eles, pois ainda estudava Jornalismo. Em seguida, chegavam os jornalistas já famosos, ao fim do expediente nas redações dos jornais que funcionavam ali perto, como 'Estado de Minas' e 'Diário da Tarde', na rua Goiás, e 'Diário de Minas', na praça Raul Soares. Os intelectuais, em sua maioria, vinham em seguida." E prossegue: "Eu circulava por todos os grupos, fossem jornalistas, arquitetos, sociólogos, cineastas ou apenas beberrões inteligentes e inofensivos. Freqüentava a Cantina até com fanatismo mas nada bebia pois me considero uma autêntica boêmia seca, não por virtude, apenas porque meu organismo nunca suportou álcool, nem um copo de cerveja. De 1970 até 1982, acho que foram poucas as noites em que lá não estive, um maravilhoso lugar onde colecionei namorados e foi com um deles, o Carlinhos, que conheci no Lucas, que me casei." Dinorah do Carmo ressalta que bares como o Lucas, Lua Nova e Stage Door eram muito procurados, naquela época, porque neles não faltavam aconchego, inteligência, alegria e muito compartilhamento das angústias de todos, derivadas da intensa repressão política. Mas destaca que, de todos, o Lucas era "o elemento catalisador." "Aprendi muita coisa interessante e definitiva nas mesas do Lucas. com sua clientela diversificada. versátil e curiosa. Era gente que sonhava com um Brasil diferente. Estão todos vivos e palpitantes em minha memória, apesar de muitos já terem morrido um deles, o cineasta Shubert Magalhães. faleceu lá dentro, em uma das mesas, enquanto comia um prato de Peixe ao Comodoro, fulminado por um enfarte. Lá freqüentavam os escritores Murilo Rubião e Fritz Teixeira de Salles, os jornalistas Cretildo Crepaldi e Nirlando Beirão, os arquitetos Marcelo Vaz e Ricardo Lana, os irmãos Marinês e Geraldo Castro Álvares, entre dezenas de outras pessoas maravilhosas, uma riquíssima fauna humana." Em 1988, nas comemorações dos 25 anos de criação da cantina, Dinorah foi eleita a 'Musa do Lucas', por unanimidade estridente de todos os convidados. E certa noite transformou -se em falsa e engraçada notícia de um jornal inexistente, já que o jornaleiro Tostão, com sua voz tonitroante que reboava nas madrugadas, certamente instruído por algum amigo brincalhão, anunciou aos berros no bar lotado: "Dona Dinorah, perseguida pelo DOPS, foge com o cachorro de Priscila Freire." Dinorah termina com uma delicada declaração de ternura à Cantina do Lucas: "Este é um bar que fala de perto ao meu coração, minha vivência, meu passado... "
A MAGIA DO BERÇO CULTURAL DE BELO HORIZONTE Chegamos à portaria comercial do Edifício Maletta. São vários elevadores e apenas um deles nos leva à sede do SATED - Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Minas Gerais. Somos recebidos afetuosamente por Magdalena Rodrigues. Atriz, presidente do Sated há quase dez anos, no início de sua gestão o Sindicato dos Artistas, passou por inúmeros reveses. Crises institucionais e financeiras, herdadas da antiga diretoria. O processo de recuperação da credibilidade e até mesmo da estrutura físico-financeira do Sated foi lento. Encabeçado por Magdalena pode se considerar vitorioso. "A vida cultural de Belo Horizonte tem seu berço na Rua da Bahia. É de grande simbolismo para nós estarmos instalados aqui no Maletta, foi aqui que conseguimos reerguer o nosso Sindicato. Talvez só o Maletta pudesse nos oferecer essa possibilidade." Para Magdalena Rodrigues o Maletta é mais que um edifício. "O Maletta é mágico", pelo menos para os artistas, que desde a sua inauguração encontraram neste lugar um espaço onde pudessem expor seus conceitos, seus espíritos, sua Arte. "A história do Maletta tem tudo a ver com a história dos artistas mineiros. Com todos os artistas, sejam eles músicos, pintores, escultores, atores, diretores, bailarinos e cineastas. Aqui todos se encontravam e se encontram. Até mesmo aqueles que não eram ou não são artistas e têm alma de artista. Boêmios puros." Mais que o Maletta, Magdalena pontua a Cantina do Lucas: "O Lucas era e é uma credencial para os artistas. O sentimento que guardo é o de que só nos sentíamos rigorosamente artistas depois que fizéssemos parte do metiê da Cantina do Lucas. É como se o Lucas fizesse parte do circuito cênico da Rua da Bahia, faz parte da nossa história afetiva." Toda a importância do Lucas como verdadeiro abrigo da classe artística não teria seu valor, na opinião de Magdalena, sem duas presenças obrigatórias. A de "Seu Olympio", que de acordo com a presidente do Sated, "sempre segurou o bastão dos artistas", e a de Edmar Roque, proprietário da Cantina e "um dos maiores apoiadores da cultura em Belo Horizonte." E conclui, emocionada, afirmando que "o Maletta e o Lucas são capítulos fundamentais na história de Belo Horizonte. "
A CANTINA DO LUCAS NÃO DESAPARECERÁ NUNCA É impossível falar de boemia em Belo Horizonte sem mencionar a Cantina do Lucas. Até porque esta se consagrou com os nomes que por ali passaram como: Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Murilo Rubião, Geraldo Magalhães, Roberto Drummond, Lygia Fagundes Telles, Clarice Linspector, Affonso Romano de Sant'Anna, João Etienne, Paulo Autran, Tônia Carreiro, Ivan Ângelo, Fernando Gabeira e outros. Alguns ainda podem ser vistos em alguma mesa cativa, até recentemente atendida por "Seu Olympio", a verdadeira personificação do lugar.
Dinorah do Carmo, João Etienne, Renato Sampaio, Regina Reis e Jota D’Ângelo. (ACL)
Antigos freqüentadores, como o professor Moacir Laterza, consideram a Cantina o "território livre de todos os notívagos, de todos os amantes da noite." Para ele, o Lucas significou o "último reduto em meio ao autoritarismo vigente", no final da década de 60 e início dos 70, principalmente, quando permaneceu como um templo de debates e discussões políticas, onde a ditadura foi várias vezes "derrubada." Entretanto, nem só de política viviam as rodas de conversas. A efervescência cultural da época, fez da cantina o anfiteatro das grandes discussões em torno da música - de Tom Jobim aos Stones - do cinema novo de Glauber à Nouvelle Vague de Godard, da arquitetura de Niemeyer, do existencialismo de Sartre, da literatura Beat americana, da Pop Art de Andy Warhol e David Hockney, passando pelo futebol de Pelé e Garrincha rumo ao bi e ao tri, ou simplesmente expondo as angústias, alegrias e tristezas do cotidiano de cada um.
Palhano Júnior, Maristela Tristão, Edmar Roque, Romilda Leão e Chanina. (ACL)
Durante todos esses anos a Cantina solidificou suas características originais, sem perder o charme e a fama peculiares. "Eu me lembro, que a partir das dezoito horas, o cafezinho dava lugar à cerveja e os homens de negócios iam sendo substituídos por gente mais descontraída. Ou seja, a medida que a noite avançava, o perfil dos freqüentadores também ia mudando. Os casais iam embora mais cedo, deixando os atores, escritores, cineastas, pintores, jornalistas, músicos e outros artistas, que normalmente permaneciam até o fechamento do bar."
Os habitués Pedro Paulo Cava, Arnaldo Godoy e Flávio Carsalade. (ACL)
O OLHO DO FURACÃO Se os anos 60 e 70 foram inesquecíveis para o sociólogo Heraldo Dutra, nem por isso deixaram de ser devastadores em sua vida, pela intensidade e, sobretudo, a imprevisibilidade das emoções que palpitavam - e, no caso de Belo Horizonte, se centralizavam - na Cantina do Lucas. "Lá ficava o centro de tudo e neste centro palpitou o maior dilema de minha vida." Era um desafio que a todos se apresentava: ou se aderia aos apelos da luta armada contra a ditadura militar ou a ela se combatia através de instrumentos mais prosaicos e menos perigosos, como as idéias e os protestos silenciosos. "Nunca tive vocação para a violência explícita. Incontáveis amigos meus a ela aderiram e foram mortalmente vitimados por seu romantismo excessivo." "Os grupos radicais faziam dali o seu ponto, antes da coisa pegar fogo para valer", conta Heraldo, atribuindo às conversas que manteve com alguns intelectuais e mesmo esquerdistas menos afoitos "a sorte de não ter pegado em armas e ser agora um esquecido nome sobre um epitáfio. Coisa muito heróica, convenhamos, mas nada agradável." Ele recorda que na Cantina, todas as noites, a ebulição intelectual era generalizada e contagiante, envolvendo escritores, jornalistas, estudantes, artistas plásticos, diretores de teatro, "quase diretores de cinema" e anônimos em geral, sempre trocando idéias, mudando o país e a cultura e salvando o mundo na medida de suas alucinações e potencialidades intelectuais. "Era, para mim, como a cabeça de um polvo que estendesse os seus tentáculos por Belo Horizonte inteira. Havia outros pontos, como o Bucheco. onde Marília Abreu seduziu Fernando Gabeira; o Le Mocó, de Luci Panicalli e Luiz Carlos Figueiredo, fechado pela ditadura e que virou peça de Ronaldo Brandão - 'Ascensão e Queda do Le Mocó' - além de inúmeros outros locais em voga, como o Jangadeiro, o Sagarana e o Three Glasses, onde as simpáticas putinhas, todas, sem exceção, usavam o perfume 'Toque de Amor', da Avon. Era vendido por uma delas, risonha e de seios fartos que sempre insistiam em pular fora dos generosos decotes. Mas se todos participavam deste périplo incendiário e maluco, o abrigo final era sempre a Cantina do Lucas." Heraldo lembra-se até dos cheiros característicos de alguns freqüentadores da Cantina. "Eram odores especiais, como o 'Vetivier' de Ezequiel Neves, o 'Rastro', de Thais Moretzson, o 'Habit Rouge' de Aurélio Prazeres e o sensual 'Fracas', que anunciava, de longe, a presença de Valéria Pena. E também o indefectível bafinho de cachaça que sempre emanava de 'Seu Olympio', ícone dos garçons e apaixonado por Fidel Castro." A Cantina, para Heraldo, foi a grande escola. "Foi lá que caí fora do marxismo revolucionário e inconseqüente. Ali aprendi, sofrendo, chorando, amando e rindo, que a liberdade é o bem mais importante da vida e que as ditaduras, sejam elas de direita ou esquerda, são sempre iguais."
UMA FESTA INTERMINÁVEL Belo Horizonte é uma cidade plural. Nela, o conhecimento e as criações brotam de todos os lados, configurando a síntese entre a memória dos antepassados e as novas idéias do presente. E para a maioria dos belo-horizontinos, esse fenômeno também se dá no altar. Não no do estilo neogótico da igreja de Lourdes, mas no estilo "boêmio" das garrafas penduradas no teto da Cantina do Lucas, o templo maior dos freqüentadores da noite. A história do Lucas se confunde com as "histórias" e os "casos" de uma infinidade de pessoas, como as do cineasta Harley Carneiro. Assíduo freqüentador das noites da Cantina, conta que quando chegou a Belo Horizonte ainda no final de década de 50, conheceu a tradicional família mineira, acostumada a ver os bares fecharem às 10 horas da noite. "Os bares que surgiram no princípio da década de 60 no Maletta, causaram uma verdadeira revolução nos costumes da época." Segundo Harley, naqueles anos não existiam lugares no centro de Belo Horizonte, que ficassem abertos até de madrugada. A maioria fechava no máximo às 23 horas. Entretanto, com a chegada do Maletta e conseqüentemente do Lucas, isso mudou. "Na Cantina, os fregueses eram servidos noite a dentro, inclusive mulheres, numa época de costumes ainda um tanto rígidos. Eram aquelas que costumavam quebrar tabus e iam discutir política ou bater papo com os amigos" conta o cineasta. Parafraseando o escritor Ernest Hemingway, nesta época o Lucas era uma festa interminável. E se as mesas servidas por "Seu Olympio" falassem - testemunhas que são de quase 40 anos de acontecimentos - lembrariam do saudoso Schubert Magalhães, fumante inveterado de cigarros sem filtro que deixou este mundo em pleno Lucas na década de 80; do poeta Macário, que distribuía versos pelas mesas; do colunista social José Maurício Vidal Gomes, "O Anjo Rebelde"; das discussões homéricas comandadas por José Nava, que começavam no Lua Nova e terminavam na Cantina; do "Sapo" anunciando as manchetes dos jornais; e até mesmo do lendário Dan Mitrioni, que infiltrou-se no Lucas nos tempos da ditadura a fim de descobrir "subversivos" e que acabou sendo morto mais tarde pelos "subversivos" Tupamaros uruguaios. Assim, independentemente das testemunhas, o fundamental na história do Lucas não é só descobrir o que realmente se passou, mas sim tentar compreender como as diferentes versões se produzem e se explicam. Versões que por sua vez, devem ser vistas contextualmente como signos a serem devidamente interpretados e reinterpretados. Dessa forma, cada detalhe explicitado pode ter um conteúdo extremamente rico e revelador.
PAIXÃO PELA BRAHMA PROVOCA EXÍLIO O confronto mercadológico entre as cervejarias Brahma e Antártica há muito acontece em todo o Brasil, mas não resultou ainda em qualquer acidente de relevância, com exceção, é óbvio, de um que ocorreu na Cantina do Lucas. Ali, a disputa entre as duas marcas pela preferência dos bebedores nacionais atingiu seu ápice há alguns anos atrás, tendo como protagonista principal o advogado e ex-jornalista Cretildo Crepaldi, brahmista convicto e inveterado, e inimigo visceral de qualquer outro tipo de cerveja no chope, dizem, ele é mais liberal e faz de vez em quando algumas concessões, concordando em engolir algo que não tenha no rótulo o logotipo indefectível de sua amada Brahma. Mesmo assim - repete-se aqui testemunhos de terceiros, que exigiram anonimato absoluto - após o primeiro gole inevitavelmente sentencia, entre caretas de desprezo: "É mijo de égua, mas o que se há de fazer... ?" Crepaldi, além de sectário etílico, é também um assumido sistemático, que não abre mão de suas incontáveis manias e não admite que as contestem. E não sem razão, pois as executa na mais completa solidão, a ninguém incomodando e, no máximo, despertando uma aguda curiosidade em quem as presencia. Afinal, cada doido com sua doidice e cada bebedor com suas paixões alcóolicas peculiares. Ele, porém, em suas periódicas vagagens noturnas, sempre teve suas rotas características. Começa impreterivelmente por volta das 18 horas, no Pelicano, onde se reúne com o tradicional pessoal jurídico que ali possui mesa cativa há séculos. Lá, beberica e joga conversa fora até que o último comparsa às altas horas se despeça. Começa, então, a saga pessoal do advogado cervejeiro, que de pessoa sociável e falante, como por um passe de mágica transforma-se em uma espécie de Dom Casmurro solitário, que carrega pilhas de jornais que lerá sozinho, sem admitir a presença de qualquer conhecido ou desconhecido intrometido. E coitado do incauto que atrever-se a sentar em sua mesa, em outro bar qualquer. Será recebido com um silêncio carrancudo ou resmungos malcriados, que afastam qualquer possibilidade de aproximação. Sempre foi assim a figura, mesmo no tempo em que freqüentava o Lucas, o que há anos não faz mais. Saibamos porquê. Há provavelmente uma década, o ritual alcóolico de Crepaldi resumia-se ao mapa do Maletta; cerveja com os amigos advogados no Pelicano até por volta da meia noite e, em seguida, rumo direto para a Cantina do Lucas. Ali, tinha até mesa reservada - a última à esquerda de quem entra, perto da cozinha. Lá sentava-se com seus variados jornais e começava o ritual de toda noite: lia todos, da primeira à última página, com pausa apenas pra bebericar sua cerveja Brahma. Sim, porque mesmo que o Lucas fosse um estabelecimento onde a Antártica tinha exclusividade no fornecimento, ele desfrutava de um raro privilégio: os garçons, solidários, iam periodicamente a qualquer bar por perto e compravam-lhe as garrafas de Brahma. O dono do Lucas, Edmar Roque, sacudia os ombros e admitia aquela singularidade. Até que uma noite, por azar ou coincidência, o representante da Antártica foi ao Lucas jantar e notou o ritual que beneficiava aquele cliente preferencial, ainda mais com uma marca concorrente e que desafiava a exclusividade comercial de sua bebida. De início, achou o episódio engraçado e até pilheriou com Edmar a respeito de tão curioso personagem. Mas, voltando dias depois, verificou que não era um caso esporádico, mas sim um hábito incorporado. E cobrou uma providência imediata; afinal, o Lucas se interessava ou não em continuar recebendo mercadoria de sua empresa? Para que isto ocorresse, era preciso colocar um ponto final naquela desafiante leitura regada a Brahma. Minal, se algum funcionário supe-
rior presenciasse aquele escândalo, sobraria para ele. E o ultimato foi transmitido a Crepaldi. A cerveja concorrente não poderia mais entrar na Cantina, mesmo não ameaçando o predomínio da outra. Ainda mais para um cliente só. O bebedor circunspecto e solitário, ao receber a advertência, nada disse. Apenas recolheu os jornais, emborcou o derradeiro copo de cerveja e saiu do Lucas para nunca mais voltar. Exilou-se definitivamente no Pelicano, com incursões esparsas de madrugada em outros bares do condomínio, onde Brahma e Antártica ainda desfrutam de uma certa convivência pacífica. Há quem diga que, altas horas da noite, quando sai do Pelicano à procura de outro boteco, ainda carregando vários quilos de jornais, o advogado Crepaldi às vezes passa em frente à Cantina do Lucas. Nunca mais dirigiu-lhe um olhar.
UM DESEJO CLANDESTINO Ela chega apressada. Está atrasada mais ou menos quinze minutos. Pede desculpas, cumprimenta algumas pessoas sentadas às mesas. Um casal de amigos. Um encontro inesperado, efusivo. Relembram com alegria o baile de carnaval do Partido Comunista. Passamos ao salão de cima. Senta-se, remexe a bolsa para ver se tem a quantia suficiente para um "cuba libre." Uma funcionária de saída a reconhece. O garçom. O pedido. Calmamente iniciamos a nossa conversa. Uma simples cena de uma mulher e sua chegada para um compromisso marcado em um bar. Simples assim foi o nosso encontro com esta paraibana , Maria do Socorro Moraes histórica militante do Partido Comunista do Brasil - e atualmente vereadora Jô Moraes , em março de 2002, em uma das mesas da Cantina do Lucas. Há trinta anos atrás, em 1972, quando chegou clandestina a Belo Horizonte, perseguida pela ditadura militar da época, esta cena seria impensável na rotina de Jô Moraes. Ao contrário, a recomendação primeira que recebeu dos companheiros de partido era a de exatamente evitar transitar e marcar pontos de encontro na região das esquinas de Augusto de Lima com Bahia, nas proximidades do edifício Maletta e da Cantina do Lucas. Isso porque a polícia sabia que a Cantina era conhecida como ponto de concentração de intelectuais e militantes da esquerda e por isso mesmo devia ser evitada. O máximo que Jô Moraes se permitia era a Av. Assis Chateubriand. Essa proibição fez surgir na esquerda clandestina um grande desejo de freqüentar o Lucas, já que a idéia que permeava o imaginário dessas pessoas era a de que a Cantina do Lucas se colocava como o "Quartier Latin" de Belo Horizonte - "um espaço onde nós poderíamos dividir as angústias mas também dividir a vontade de mudar o mundo." Ainda no período da clandestinidade, a imagem que chegava até esses militantes proibidos, era a de que o Lucas funcionava como o espaço onde todas as teses eram discutidas, todas as revoluções eram marcadas. Essa visão de que o Lucas era um lugar democrático, que representantes de todas as tribos estavam lá, e que brigavam, discutiam e se abraçavam no final, saindo juntos olhando para um lado e para o outro para ver se não estavam sendo perseguidos ,era muito marcante para a geração que se via obrigada a ocultar sua face e subestimar suas necessidades pessoais. Espaço de concentração da esquerda, contar a história do Lucas - na opinião de Jô Moraes - é contar a história de um espaço onde as angústias e os sonhos humanos se encontravam e se realizavam. "O Lucas não é um bar, é um espaço de construção humana." Mesmo que a polícia soubesse que as pessoas estavam e se encontravam na Cantina do Lucas, esta era paradoxalmente, um esconderijo para muitos. "Concretamente - O Lucas - é um símbolo, assim como "O Pasquim" e "O Opinião", que eram jornais que registravam preocupações de uma época. Escapatórias, pontes onde, cotidianamente, se fazia a ligação entre a clandestinidade e o mundo real que acontecia na ditadura. "O Lucas é também a expressão disso" afirma Jô Moraes que registra e resume o sentimento que ficava do Lucas proibido para os que viviam na clandestinidade: "O Lucas desejo, dos que não podiam chegar até ele." A relação da história com a Cantina do Lucas é desvendada por Jô Moraes. "A abrangência dele para Belo Horizonte é muito maior do que a de um simples bar tradicional. O Lucas cumpre esse papel fundamental dos lugares de construções humanas, tão necessários nas grandes cidades." Ao final da clandestinidade, em meados de 1980, quando pôde freqüentar - com cuidado - a Cantina do Lucas, Jô Moraes detectou em seus sentimentos, mais que um desejo, uma certa
dose de preconceito. "A esquerda que viveu a clandestinidade viveu uma rotina de disciplina rígida, e que trazia a imagem de que o Lucas era o espaço da chamada "esquerda festiva", que sofreu mas que não estava querendo muito compromisso. Eram ou pessoas que estavam iniciando seu processo político ou que tinham vivido traumas e estavam abandonando a militância. A minha relação com o Lucas teve que superar este preconceito. Teve que ser construída."
À esquerda, Rubinho do Vale, à direita Jô Moraes. (ACL)
Um espaço que Jô Moraes define como “espaço onde as pessoas fazem uma terapia de grupo, onde eu percebi que podiam não ser as pessoas que naquele momento estavam envolvidas em processos mais complicados mas que compartilhavam da mesma vontade de mudar as coisas." Esse "namoro" com o Lucas, se deu pelas mãos de freqüentadores históricos e também pela necessidade de trazer pessoas de fora de Belo Horizonte, para um lugar que fosse simbolicamente importante. A partir de um certo momento, O Lucas passa a ser um local absolutamente terapêutico para Jô Moraes. Ela conta que em 1983, foi ao Lucas acompanhada por oito companheiras do Movimento de Mulheres, para comer um "parisiense" a palito. "Porque era o único local que essa democracia de acesso era possível, em que não havia preconceito, era fundamental. Um espaço de tamanha liberdade, no qual você, com pouco dinheiro, podia pedir um 'parisiense' para comer a palito, sem constrangimentos." Essas experiências foram absorvidas por Jô Moraes de forma positiva. Ela compara sua relação com a Cantina com um casamento: "Eu comecei a vir para o Lucas porque eu estava carente afetivamente e o Lucas me seduziu por sua dinâmica própria. Aqui é um lugar onde você vai encontrar todas as pessoas. É o lugar mais plural dessa cidade, sem dúvida nenhuma. Tanto que no aniversário de Marx (Carl Marx), há 3 anos atrás, escolhemos três lugares: a portaria da FIAT, a portaria da MANESMANN e o LUCAS. Para nós o Lucas simboliza o marco da intelectualidade humana que quer mudar as coisas. Simbolicamente para nós, do PC do B, essa escolha representou as duas bases de mudança: o proletariado e a intelectualidade." E sintetiza: "O Lucas desmontou a rigidez mantendo a coerência." A Cantina do Lucas, além da importância na vida política de Jô Moraes, tem relevância em sua vida pessoal: "O Lucas é um lugar de encontrar amigos. Aqui é um lugar onde encontro pessoas que cotidianamente eu não tenho na minha vida.” E sobre os amores no Lucas? “Aqui era um espaço de encontro. Um espaço alcovieiro.”
O OCASO DE UM SONHO Um bar que, nos anos de chumbo, transformou-se em um refúgio para pessoas que desejavam exercer, no mínimo, o seu direito de pensar livremente, mas que, mesmo ali, só o podiam expressar-se através de precavidos sussurros; onde a presença de agentes do DOPS, ostensiva ou velada, era democraticamente aceita, mas dificilmente suportada; e que abrigava uma fauna humana rica em espécimes brilhantes ou insuportáveis, o escritor ouvindo com paciência as fabulações do neurótico, o homossexual concordando, sem entender, com os delírios do comunista embriagado, a moça solitária vomitando com a maior dignidade e limpando a boca com a ponta da toalha, sem tirar os olhos da página que lia. Esta é uma das imagens da Cantina do Lucas que tornou-se um símbolo referencial para o jornalista Arnaldo Viana, que a freqüentou durante os anos em que o estabelecimento talvez tenha vivido o seu tempo mais expressivo - ou mais apavorante - durante a fase mais radical da ditadura militar, entre 1969 e 1980. "Às vezes parecia um circo, outras mais se assemelhava a um manicômio. Mas, em qualquer circunstância ou situação, tudo que acontecia no Lucas era diferente. As pessoas que lá compareciam o faziam com uma espécie de fervor. Afinal, naqueles dias soturnos, não havia na cidade outras escolhas. Lá, ao menos, podíamos falar e trocar idéias oficialmente proibidas. Ou melhor: podíamos murmurar e dialogar em certas ocasiões apenas com os olhos", lembra Arnaldo. E ele tem também uma explicação para o que considera "o ocaso do Lucas", que teria ocorrido em consonância com a democratização do país: "Quando você não precisou mais se disfarçar, ou fantasiar todas as suas idéias e sentimentos com máscaras e signos, acho que o Lucas talvez tenha perdido a sua razão de ser. Deixamos de ser clandestinos para virar cidadãos. Foi ótimo. Mas perdeu-se parte do encanto." "Naquela paisagem lírica e engraçada, havia um maestro que a tudo comandava, sem elevar a voz e sem nunca ter a sua autoridade questionada. Era 'Seu Olympio', que possuía um incrível faro rastreador para identificar assumidos ou disfarçados dedos-duros. Bastava um meneio de cabeça, um piscar de olhos, um leve toque no ombro, para saber-se que, em mesas próximas ou distantes, o inimigo ou nos vigiava ou averiguava a presença de prováveis desafetos do regime. Vivíamos com medo, que se alterava em irresponsabilidade na exata proporção em que as garrafas se avolumavam e o riso soltava-se. Era, sem dúvida, um tempo de ditadura. Mas, no Lucas, não chegava a ser tão dura assim." Ele compara o local a uma "frenética torre de Babel regada a cerveja, onde o esquisito era comum e estranho mesmo era a mesmice." E acentua que, em várias ocasiões presenciou e compartilhou episódios onde formulava-se fantásticas conspirações revolucionárias que, em geral, "resultavam apenas em maravilhosas orgias", conseqüência natural de um bar que sempre apresentou à época "muitas opções mas pouco espaço prático, para freqüentadores geralmente bem pensantes. Na parte de baixo, tramava-se contra o governo, a moral e os bons costumes. No piso superior, ficavam os bem comportados. Mas estas mutações camaleônicas não importunavam ninguém. A fronteira entre os dois ambientes era franqueada e você podia ser revolucionário ou devasso embaixo. Minutos depois, tornava-se um careta inofensivo em cima." E os personagens reais não eram escassos, como o comunista Rashid, pró-Partidão, o trotskista Albênzio, que só faltava ostentar na testa a sigla MR8, o 'general' Célius Áulicus, sempre surdo para tudo que lhe fosse inconveniente, o sempre gargalhante Vladimir Luz, entre inúmeros outros. Isto sem contar os poetas, como Antônio Barreto, que nas mesas do Lucas destilou, antes de publicá-las em romance, muitas das alucinações que sofreu e cultivou a partir
de suas aventuras no deserto iraquiano. "O que não faltavam eram jornalistas, esquerdistas de todos os matizes, escritores e poetas. Formávamos uma família, acalentados pelo colo materno da Cantina." Arnaldo Viana termina: "Durante quase uma década, suportamos a ditadura por trás da inexpugnável barricada de garrafas, copos e palavras. Quando ela terminou, parte de nós teve o mesmo destino. Creio que, desde então, nunca o Lucas se recuperou. Digo mesmo que murchou como uma bola furada. Já não precisávamos nos proteger em suas mesas. Hoje, é raro encontrar naquela paisagem algum remanescente daqueles tempos heróicos. Também esvaíram-se, desaparecendo com suas fantasias. Parece quem, com a abertura política, por ela também fugiram aqueles que tanto a trabalharam em sonho. E este sonho acabou. Nunca mais voltei lá."
O LADO PERVERSO DE UM QUASE SANTO Aos 19 anos, em 1980, servindo o exército, membro do Grupo de Jovens da Igreja Católica, da Legião de Maria e da Sociedade São Vicente de Paula, Carlos Nunes - hoje um dos atores de maior sucesso do teatro em Minas Gerais - se considerava um "quase santo." Filho de uma família genuinamente católica do Serro, pequena cidade do interior de Minas Gerais, famosa por sua produção de queijos, Carlinhos Nunes veio para Belo Horizonte a fim de se dedicar ao seu talento artístico. Começou a estudar teatro na Fundação Clóvis Salgado. Ingênuo, como qualquer garoto interiorano ainda se assustava com o comportamento das pessoas da cidade grande. Mesmo sendo quase que da mesma idade da Cantina do Lucas, sua primeira sensação ao ouvir falar do Lucas foi de medo explícito. "A Cantina do Lucas me assustava muito pelas coisas que me contavam de lá, de pessoas que faziam o que bem queriam, eu passei a acreditar que a Cantina do Lucas fosse o lugar mais perverso do mundo. Além do mais eu sabia que era um reduto de intelectuais e eu nunca fui um intelectual, então a minha primeira reação quando me chamaram para ir ao Lucas foi de medo e apreensão. Eu cheguei a pensar: o que eu vou conversar com essas pessoas?" Este sentimento foi superado timidamente. Levado à Cantina, pela primeira vez pelas mãos do diretor de teatro Wilson Oliveira, na época seu colega de curso, Carlos Nunes conta que viveu uma das experiências mais marcantes de sua vida pessoal e profissional. "É tão importante para mim falar de uma coisa que me marcou na vida, a minha primeira ida à Can tina. Quando cheguei lá encontrei pessoas que eram verdadeiros deuses para mim. Mitos do teatro mineiro como Helvécio Guimarães (diretor e ator), Wilma Henriques (atriz) e Magda Lenard (crítica de teatro)." Num primeiro momento a Cantina do Lucas representava para este jovem estudante um lugar de "paquera." "As coisas aconteciam na Cantina." Mesmo assim Carlinhos não perdeu o medo do Lucas rapidamente' foi um processo de criação de intimidade. Uma intimidade tão grande que se repete quase todos os dias quando a cortina se fecha e Carlinhos Nunes tira do rosto seu último resquício de maquiagem. "Quando os amigos me chamam para sair a gente nem precisa dizer aonde vai. Vamos sempre direto para a Cantina do Lucas." Curiosamente Carlos Nunes confessa que, até pelo receio que tinha com relação às pessoas, foi primeiramente seduzido pela comida da Cantina do Lucas. Especialmente pelo famoso "Parisiense." Revela também que na época de escola morava longe e não gostava de chegar em casa tarde. Então nunca virou a noite na Cantina. Uma frustração de juventude. Hoje em dia se sente completamente à vontade. É amigo de todos os funcionários e nunca entra sem cumprimentar pelo menos quatro ou cinco mesas. Nos anos 90, já um "quase balzaquiano" Carlinhos, com novos interesses, mudou o seu olhar sobre o lugar. "A Cantina passou a ser o local onde eu arrumava trabalho. Havia sempre alguém precisando de um ator para um elenco novo ou substituição em uma peça. Como eu era tímido, tinha que ir à Cantina para encontrar com as pessoas e conseguir trabalho. As pessoas saiam do trabalho e iam para lá." Além das conversas ao pé do ouvido, havia um mural onde ficavam afixadas propostas de trabalho." A Cantina do Lucas, em tempos de rara profissionalização no meio teatral, funcionava como escritório, se é que podemos dizer assim. "Para você ter uma idéia a primeira reunião da peça PASOLINI, foi feita lá, assim como a primeira leitura do texto." Representante de uma geração que conheceu o Lucas a partir de suas
duas Ăşltimas dĂŠcadas, Carlos Nunes resume: "A Cantina do Lucas estĂĄ presente em muitas fases importantes da minha vida, e faz parte do meu amadurecimento pessoal e profissional. Espero daqui a vinte anos poder estar falando dela novamente."
DO CONSERVADOR AO LIBERTÁRIO Embora tenha morado em Belo Horizonte durante a infância, dos quatro aos seis anos de idade, no bairro de Santa Tereza, o ex-prefeito Patrus Ananias passou boa parte desta em Bocaiúva, cidade em que nasceu, no interior de Minas Gerais, e que faz questão de frisar, é também a cidade de Hebert de Souza, o Betinho. Sua vinda definitiva para BH se deu em 1972. Em 67, curto período em que retomou à capital, teve seu primeiro contato consciente com a Rua da Bahia e o edifício Maletta.
Patrus Ananias e Plínio de Arruda Sampaio. (ACL)
Há 30 anos atrás se transferiu para cá, quando passou a cursar Direito na UFMG, cuja faculdade ficava bem próxima ao Maletta e quando "descobriu" a Cantina do Lucas. Sobretudo nos últimos anos de faculdade quando passou a estudar à noite, para trabalhar durante o dia na secretaria de Educação, o que facilitou, ainda mais o seu acesso ao Lucas, que, na sua vivência revelava-se "um espaço muito instigante, eclético, onde se encontrava estudantes, artistas e intelectuais das mais diversas áreas: música, literatura, artes plásticas e aqueles que carinhosamente nós chamávamos de doidos mansos, com modos mais próprios de resistência. Isso tudo dentro de um espírito libertário, o que naquele espaço era muito comum na luta contra a repressão e o obscurantismo." Nesta época Patrus assegura já estar definido com relação à sua consciência e formação política, participando ativamente do movimento estudantil, na luta contra a ditadura militar e em movimentos comunitários. Da Cantina do Lucas Patrus guarda "duas boas lembranças" que ele mesmo classifica como especiais: "uma acadêmica e outra informal." A primeira está ligada à memória do extraordinário jurista, defensor incansável dos direitos humanos, com destacada atuação como defensor de presos políticos, professor Heleno Fragoso, do Rio de Janeiro, que veio à Belo Horizonte proferir uma conferência aos estudantes de Direito a convite do Centro Acadêmico Afonso Pena, do qual Patrus era vice-presidente, em 1976, pleno período de ditadura militar. Após uma belíssima palestra, na qual abordava questões ligadas a tortura e defendia a volta do habeas corpus, o fim do AI-5, da lei de Segurança Nacional, o professor Heleno Fragoso foi
convidado por vários professores renomados, especialmente da área de Direito Penal, para jantar. Mas declinou deste convite para acompanhar os estudantes à Cantina do Lucas. Quase em estado de graça, Patrus Ananias e mais de vinte estudantes, se assentaram no salão interno do Lucas e passaram toda a noite, até quase amanhecer ouvindo as lições de vida, os sonhos e de questões jurídicas do Mestre, que Patrus Ananias define como um "homem digno que não se rendeu à subserviência aos poderosos e não se transformou em arrogante com os humildes." Este homem, notório modelo de vida fixado na memória de Patrus em "uma noite inesquecível", passou suas horas em Belo Horizonte, numa mesa do Lucas, preocupado em apoiar a luta de resistência política e reconstrução da democracia, daqueles jovens estudantes. A segunda lembrança está ligada a um histórico e popular personagem da Cantina do Lucas: o jornaleiro Tostão. "Era um rapaz muito pobre e que tinha uma voz poderosíssima. Nos anos 70, quando tinham uns jornais alternativos como o "Opinião", "Movimento", "Em tempo" e aqui em Belo Horizonte tinha uma experiência muito interessante do 'jornal dos bairros", Tostão um dia teve problemas com os poderosos, pois como não sabia ler, as pessoas cantavam para ele a manchete do jornal. Ele entrou pelo Maletta e pela Rua da Bahia gritando: Ditadura criminosa, crime de sangue da ditadura militar." Vítima de uma franca brincadeira de algum militante de esquerda, Tostão nesse dia foi preso e logo libertado a pedido dos freqüentadores da Cantina do Lucas. Como espaço de encontro a Cantina do Lucas foi e é muito importante, especialmente no contexto do Edifício Maletta que, na opinião de Patrus, teve um papel fundamental na mudança de pensamento, de mentalidade e de comportamento em Belo Horizonte. "Durante muito tempo Belo Horizonte foi vista de uma maneira um pouco preconceituosa, uma cidade conservadora, que guardava aquela imagem da tradicional Familia Mineira" . Na verdade Belo Horizonte sempre marcou sua vocação libertária e cultural, que nos anos 20 era como se fosse uma pequena Viena. Vejamos por exemplo a geração da virada do século passado que reúne Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade, Juscelino Kubtscheck, Milton Campos, Gustavo Capanema, Pedro Aleixo, José Maria Alkimin, João Alfonsus, Abigar Renault, Aníbal Machado, e a geração seguinte, que foi a geração do encontro marcado: Hélio Pellegrino, Murilo Rubião, Francisco Iglésias, Etienne, Otto Lara Resende, Guinard e muitos outros." Para Patrus Belo Horizonte também foi uma cidade libertária no lado social, já que desde o princípio viveu uma tensão entre o espaço dos ricos e dos pobres. Basta observar que Belo Horizonte tem favelas históricas em plena zona sul, como a favela do Cafezal. O fato da demolição do Grande Hotel, símbolo do poder e do conservadorismo e a construção do Maletta no mesmo lugar faz do edifício um representante "do encontro de Belo Horizonte consigo mesma. O Maletta cumpriu um papel de mudanças inclusive no comportamento sexual, tornando-se um ponto de encontro de pessoas em seus apartamentos pequenos, nos inferninhos."
CASA DOS MINEIROS UNIVERSAIS Se a música mineira deve muito ao Clube da Esquina, também tem um débito todo especial e carinhoso com a Cantina do Lucas e suas antigas imediações boêmias e poéticas, que irradiavam emoções na década de 1960, especialmente na sobreloja do edifício Maletta, onde funcionavam as boates Oxalá e Berimbau. Era naquele conjunto barulhento e aparentemente dissonante que já se ensaiavam, ainda de maneira tímida e improvisada, os acordes que definiriam a vida de muitos compositores e cantores, assim como, no Lucas, germinavam talentos que viriam a marcar decisivamente a literatura, o teatro e o cinema em Minas e no Brasil. "Naquela época, o Lucas não estava só", lembra o compositor e letrista Fernando Brant. "Bastava subir a escada rolante - que, por sinal, jamais rolava à noite - para encontrar lá em cima um crioulo de poucas palavras mas de cativante voz, que arranhava um contrabaixo nas madrugadas, no Berimbau, para ganhar alguns trocados. Era conhecido como Bituca, apelido de Milton Nascimento. Foi por ali que a música mineira também começou a se harmonizar. " Era entre melodias e poesias, muita cerveja e incontáveis e estridentes combates teóricos que a juventude encontrava aconchego na Cantina, nos anos sombrios da ditadura militar. "Tudo o que acontecia na cidade, na área cultural, fosse um livro ou um filme, tinha que ser debatido nas madrugadas do Lucas." Estudantes, jornalistas, futuros cineastas e escritores em formação, ali se acotovelavam, compartilhando hálitos alcoólicos e idéias revolucionárias. "Naquele Maletta dos primeiros tempos, o que não faltava era genialidade, real ou presumida. Ali tive acesso a filmes nunca realizados, romances prontos nas cabeças dos autores mas que jamais receberam sequer a primeira palavra. Houve, porém, muitos que tiveram seus sonhos concretizados, fosse no som, no verso ou no palco. No Lucas, cheguei a conhecer projetos de livros, peças e filmes absolutamente magistrais. Pena que seus autores talvez hoje sequer se lembrem deles."
Edmar Roque, José Francisco – o Guará – e Tavinho Moura. (ACL)
Brant recorda que, naqueles tempos, Belo Horizonte se abria para a modernidade, "ainda que fosse moda reclamar com furiosa veemência da clausura proporcionada pelo cerco das montanhas. Mas o curioso é que quem mais o atacava nunca pensou em deixá-las." Quem por aqui permaneceu, segundo o compositor, além de verificar que a suposta e inexorável pressão montanhosa fosse mais uma figura de retórica que propriamente uma realidade, desfrutou de
uma recompensa especial. "Descobrimos que a montanha é boa para se subir pois, chegando ao seu topo, conseguimos melhor contemplar e compreender o Brasil e o mundo."
Ao fundo, Chanina na festa de seus 70 anos. (ACL)
"Lá se vão quarenta anos, mas o Lucas continua a ser um bar atemporal, em termos de qualidade de comida, da bebida sempre confiável e da atenção e carinho de quem nos serve. É um refúgio para quem gosta da noite e de uma conversa inteligente. Diria mais: é o bar de todos os mineiros, estejam eles na província ou em qualquer outro ponto do planeta. Um lugar de aconchego, para os mineiros universais."
"QUEM VIVEU ,VIVEU. QUEM NÃO VIVEU, VIVESSE" O jornalista José Maurício Vidal Gomes pode ser considerado, com muita honra e justiça, como uma espécie de memória ambulante da Cantina do Lucas, já que a freqüentou com fidelíssima assiduidade, desde sua abertura, nos idos dos anos 60, e continua a fazê-lo agora mais esporadicamente pois, no final das contas, como ele próprio assegura, "ninguém é de ferro." Suas lembranças dos tempos heróicos contrastam com o panorama verificado naquele bar nos dias atuais, onde o perfil dos freqüentadores sofreu mudanças proporcionais às transformações ocorridas ao longo do tempo, na cidade e no mundo. Para ele, assim como para grande parte de seus companheiros de bar e geração, a Cantina do Lucas está indelevelmente inscrita na história da intelectualidade e da boemia em Belo Horizonte, nos últimos quarenta anos. Lembra-se com nostalgia da autêntica "aristocracia intelectual" que a freqüentava, compartilhando as mesmas mesas com guerrilheiros urbanos, poetas, vagabundos, bêbados fascinantes ou repelentes, em síntese, uma fauna humana peculiar, de vigor único e que se transformou em marca definitiva de muitas vidas, mas especialmente a vida noturna da capital. "Não existe um bairro, uma cidade, que não tenha o seu ponto de referência na vida noturna, social e intelectual" - diz José Maurício - "e muito menos Belo Horizonte. Aqui tivemos o Bar do Ponto, de Drummond, Pedro Aleixo e Miltom Campos, a Dona Olímpia, de Pedro Nava, Ferreira de Carvalho e Bié Prata. São nomes que estão em nossa história, alegre ou triste, imortalizada por gerações após gerações", ele prossegue, destacando que Belo Horizonte, "cidade riquíssima em personagens", talvez tenha tido na Cantina do Lucas sua fase mais brilhante, na segunda metade do século passado. E lembra-se daquele esplendor: "A vida ainda era uma alegria só, despreocupada, e a única sombra de nossos avós e pais, conservadores, era um tal de João Goulart e uma tal de reforma agrária. Nas mesas do Lucas, celebridades nativas estraçalhavam um Talharim a Parisiense ou um Peixe ao Comodoro. Os assuntos corriam entre James Joyce e Herman Hesse, Sartre e Steinbeck, também não desprezando Marx e Engels ou Shopenhauer e Truman Capote." Mas lamenta que o passar dos anos tenha provocado uma certa reviravolta naquele burburinho intelectual. "Convivíamos com uma geração bilionária de talentos, que parecem afastados pelos 'raps' e 'hip hops' da vida, hoje condenada à mediocridade que, como uma funesta teia de aranha, envolveu aquele futuro de ontem, que é o nosso hoje, transformando as pessoas em um rebanho de vacas de presépio, que aprendem apenas a balançar as cabeças." Para José Maurício, a Cantina do Lucas, naquele tempo, era semelhante a "um Vesúvio que incendiava os Herculanos e Pompéias nas mesas incandescentes, que fervilhavam nas vozes de Monso Romano de Sant'Anna, Ivan Ângelo, Fernando Gabeira, Jonas e RacheI Bloch. Isto sem esquecermo-nos de Jota D'Ângelo e Meméia, João Etienne Filho e Murilo Rubião; as artes plásticas estavam presentes com Inimá de Paula, Degois e Chanina e o jornalismo sempre lá esteve com Ronaldo Brandão e Flávio Márcio, Marco Antônio Menezes, Roberto Drumond e Geraldo Magalhães, além de inúmeros outros." Mas não se esquece dos ausentes, que não identifica por serem tantos, mas que "estão na memória dos tempos mineiros, neste país das Minas Gerais." Na memória e principalmente na saudade, continua José Maurício, referindo-se especialmente às vítimas da ditadura militar. "Muitos amigos sofreram tortura, como Inês Etienne; já Galeno seqüestrou um avião para Cuba e Beto foi fuzilado. 'Seu Olympio', quando pressentia que a situação estava ficando pesada, devido à presença disfarçada de espiões do
Dops, caminhava tranqüilamente entre as mesas, apenas murmurando a senha: '... Hoje não temos nem Salada Russa nem Filé a Cubana...' Enquanto isto, o introdutor da tortura no Brasil, o norte-americano Dan Mitrione, agente da CIA, conversava com os cinéfilos mineiros, bebericando o seu uísque, depois de assistir a uma sessão de filmes de arte no Cinema Novo, que ficava na galeria San Remo, na Rua da Bahia. Mitrione sentava-se sempre com um cão pastor alemão a seus pés e sabia de cor a tonalidade de vermelho que cada um dos freqüentadores do bar ostentava. Muitos deles pagaram com o próprio sangue, por suas convicções." E quanto a nomes? José Maurício os guarda com nitidez, tanto na memória como na ponta da língua. "O Lucas era o verdadeiro templo da aristocracia intelectual de Belo Horizonte, de todos os segmentos e todas as artes. Lá estiveram os mestres do teatro brasileiro, como Paulo Autran, Tônia Carrero e Adolfo Celi. E também não deixaram de ir Stanislaw Ponte Preta, Paschoal Carlos Magno, Bibi Ferreira e Grande Otelo, além de Mário Lago e Napoleão Muniz Freire. Eva Todor freqüentava a Cantina quando vinha a BH. E some-se Dercy Gonçalves, Carlos Heitor Cony, Jorge Ben, hoje Benjor, Pelé e Paulo Mendes Campos. Da prata da casa, pode-se incluir os políticos Israelzinho Pinheiro e Raul Bernardo Nelson de Senna, os escritores Murilo Rubião e Fritz Teixeira de Salles, os poetas Paulinho Assunção e Antônio Barreto, entre incontáveis outros mais." Mas, para o jornalista, memória viva da Cantina do Lucas, o que realmente colaborou para transformar o estabelecimento em uma lenda, no panorama boêmio e intelectual da cidade, foi o garçom Olympio Munhoz. "Irônico e de poucas, mas corretas e ferinas palavras, Olympio era o protetor dos 'luqueanos', seu pai e conselheiro, rigoroso para os excessos de todos e destilando sabedoria em uma alma que bem mereceria um poema de Pablo Neruda. Na década de 40, como crupiê de jogo nos cassinos de São Paulo, conheceu Benjamim Vargas, os Matarazzo, Flores da Cunha, Carmem Miranda e a família Penteado. Também foi a última pessoa a conversar com o Pai da Aviação, Santos Dumont, antes deste cometer suicídio. Já é presença eternizada pelo Guiness Book of Records, como o garçom que por mais tempo exerceu a ainda exerce a profissão, exatamente 76 anos. Ele começou a trabalhar no ramo aos seis anos de idade, como boy. Em dezembro de 2001 ,completou 82 anos. E sempre afirma, com serenidade: "Vivi minha vida como quis e estou vivo, vivendo cada minuto. Quero morrer trabalhando; se puder, dentro da Cantina do Lucas ." E José Maurício completa, definindo o Lucas em seu auge, nos anos 60 e 70: "Quem viveu, viveu. Quem não viveu, vivesse."
CANTINA DO LUCAS – UM BAR NA HISTÓRIA Ao caminhar pela Rua da Bahia, entro no edifício Maletta e chego até a Cantina do Lucas. Revisito o passado. Aproxima-se o horário das alegres moças descerem e desfilarem lascívia, saindo para a noite de boemia e prostituição. Não há música nesta noite, apenas alaridos de vozes e gritos noturnos que suplicam fim para tanta solidão. Ouve-se, nítido, retumbante, a voz do Tostão, do Sapo, o arauto de notícias infelizes. Afinal, vivemos uma ditadura militar e as manchetes dos jornais nunca são alvissareiras. Reboa pelo Maletta. Ministro da Justiça proíbe circulação do romance Zero de Ignácio de Loyola Brandão A censura alcançava o livro, após passar por jornais, revistas, teatro, cinema. Certamente, é o primeiro de uma lista. Sozinho, num canto de mesa, bebo os primeiros copos da noite e cresce no peito a indignação. Num guardanapo, rabisco meias palavras contra o Ministro, contra a censura, contra os militares. Nunca poderia imaginar que os borrões bêbados de um guardanapo da Cantina do Lucas pudessem figurar na história do país. Nessa mesma noite, ainda telefonei para São Paulo e comuniquei a Ignácio que em Minas Gerais haveria de se providenciar um Manifesto de Intelectuais contra a censura. No dia seguinte, algumas reuniões e o clima de revolta se espalhou entre os escritores mineiros. Logo, a adesão de toda a intelectualidade brasileira. Circulava em segredo a primeira versão do Manifesto quando a censura atingiu Rubem Fonseca e José Louzeiro. A redação do Manifesto se alterou, após encontro de escritores mineiros e cariocas. Mais abrangente, buscavase a adesão de todas as áreas criativas. Atingimos 1046 assinaturas. Alguns fatos relevantes para registro. Quem colaborou decididamente para a confecção do primeiro texto do Manifesto, após o rascunho elaborado na mesa da Cantina do Lucas, foi o escritor e crítico literário Fábio Lucas. A sua assinatura não consta no Manifesto, porque ele acabava de voltar do exílio e optou por não se expor às forças repressoras da ditadura militar. No Rio de Janeiro, os que primeiro aderiram ao Manifesto e se empenharam pelo êxito do documento, foram os escritores Rubem Fonseca, João Antônio, José Louzeiro, Carlos Eduardo Novais e Cícero Sandroni. Posteriormente, Rubem Fonseca viajou até Belo Horizonte para organizar a estratégia de divulgação do Manifesto, após a sua entrega oficial em Brasília ao Ministro Armando Falcão. Trabalhava pelo documento, assim como Louzeiro, quando a censura os abateu. Suas assinaturas também não constam do Manifesto. Foi na residência do escritor Murilo Rubião, em Belo Horizonte, com a presença de Rubem Fonseca, Fábio Lucas, Luiz Fernando Emediato que preparamos a divulgação do Manifesto para toda a imprensa, simultaneamente. A Comissão escalada para a entrega do documento ao Ministro da Justiça em Brasília foi de Lygia Fagundes Telles, Nélida Pinon, Hélio Silva e o autor destas notas. Olho, nesta nova noite de verão, para as paredes da Cantina do Lucas. Observo as garrafas de vinho pendidas do teto, passa o Filé a Parmegiana fumegante nas mãos do novo garçom. Os alaridos já são outros. As mulheres se ausentaram da noite, estão longe do Maletta. Afinal, alguns anos vivi distante de Belo Horizonte, alguns anos bebi em outros bares que não a Cantina do Lucas. Dos quatro membros daquela comissão de 25 de janeiro de 1977, creio que só eu fui molestado pelos homens do SNI, do Dops e afins. Quando se disfarçaram de estudantes, com
aquelas indefectíveis caras de policiais, pretensamente querendo apoiar o Manifesto, o então diretor-secretário do Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais, Washington Mello, forneceu as pistas certas para que não me encontrassem. Mas me atrapalharam a vida em outras circunstâncias e em março daquele ano, mudava-me para o Rio de Janeiro. O acaso me levou para trabalhar no jornal O Pasquim, que fez a sua história num sistemático combate à ditadura militar. A polícia repressora procurou o Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais porque quem apoiou o Manifesto desde a primeira hora, foi o jornalista Dídimo de Paiva, na época, o presidente do Sindicato. O seu nome está inclusive entre as primeiras assinaturas. Por este apoio, foi combinado que o Sindicato ficaria como depositário da cópia do documento e das assinaturas. Onde estarão? Guardei os originais do primeiro texto do Manifesto e respectivas assinaturas. Cópia também do release, aliás o próprio texto do Manifesto, e dos nomes escolhidos para acompanhar o release. Alguns deles: Antônio Cândido, Oscar Niemeyer, Sérgio Buarque de Hollanda, Jorge Amado, Osman Lins, Mário Quintana, Antônio Calado, Luiz Arrobas Martins, Otto Maria Carpeaux, Antônio Houaiss, Chico Buarque de Hollanda, Antônio Carlos Jobim, Dias Gomes, Nelson Pereira dos Santos, Carlos Scliar, Lauro César Muniz, Ivan Lessa, Nelson Wemeck Sodré, João Antônio, Sábato Magaldi, Ítalo Rossi, Moacyr Scliar, Alfredo Ceschiatti, Mário Lago, Audálio Dantas, Alberto Dines, Heloneida Studart, Paulinho da Viola, Aldir Blanc, Ruth Escobar, José Wilker, Carlos Nejar, Oswaldo França Jr., Wander Piroli, Luiz Fernando Emediato, Carlos Vereza, Susana Vieira, Luís Carlos Maciel, Flávio Rangel, Benito Barreto, Roberto Drumond, João Felício dos Santos, Carlos Eduardo Novaes, Carlos Heitor Cony, Antônio Torres, João das Neves, Milton Nascimento, Mário Garcia de Paiva, Egberto Gismonti, João Bosco, Sidney Miller, Luiz Gonzaga Jr., Sérgio Ricardo, Jards Macalé, Danilo Caymmi, Zuenir Ventura. Josué Guimarães, João Ubaldo Ribeiro, Victor Giudice. Hermínio Bello de Carvalho, Domingos Pellegrini Jr.. Villas Boas Corrêa. Ricardo Ramos. Sílvio Back. Cícero Sandroni, Sebastião Nery, Décio Almeida Prado, Ênio Silveira. Rubem Braga e Murilo Rubião.
O fato do primeiro rascunho do Manifesto dos Intelectuais de 1977 ter sido rabiscado numa mesa da Cantina do Lucas constitui-se revelação inédita ao grande público. O Manifesto teve repercussão internacional. Foi notícia de primeira página em nossos principais jornais e matéria das revistas semanais. Pela primeira vez, o Ministro da Justiça. Armando Falcão, usou a televisão para um pronunciamento oficial sobre a censura em resposta ao Manifesto. Era a ditadura militar pela primeira vez tentando se justificar sobre seus atos censórios. O fato é que, a partir deste Manifesto, coincidência ou não, abrandou-se a censura em jornais e revistas. E o país redemocratizou-se. Enquanto a Cantina do Lucas é um Bar na História. E que faz a história de nossas vidas.
Jeferson de Andrade