A Contemporaneidade do Teatro de Rua

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A Contemporaneidade do Teatro de Rua: Potências Musicais da Cena no Espaço Urbano Jussara Trindade Moreira



JUSSARA TRINDADE MOREIRA

A CONTEMPORANEIDADE DO TEATRO DE RUA: POTÊNCIAS MUSICAIS DA CENA NO ESPAÇO URBANO


Realização NEPAA (Núcleo de Estudo das Performances Afro-Ameríndias)/UNIRIO Seleção das fotos e eventos Zeca Ligiéro Organização dos materiais e textos Aressa Rios, Denise Zenícola e Zeca Ligiéro Colaboração Ausonia Bernardes Revisão Aressa Rios Digitalização Katiuscia Dantas e Sérgio Loureiro Capa Marcelo Asth Projeto Gráfico, Diagramação e Editoração Phábrica de Produções Direção de arte Alecsander Coelho e Paulo Ciola Diagramação Jéssica Teles, Marcelo Macedo, Mariana Büll, Rodrigo Alves

NEPAA 15 ANOS 2013

Revista comemorativa

Rios, Aressa; Zenícola, Denise e Ligiéro, Zeca

Rio de Janeiro: NEPAA-UNIRIO e Aldeia Cultural Casa Viva, 2013

ISBN 978-85-66716-01-6

No de paginas: 128

1. Performance Afro-Ameríndia

2. Estudos da Performance

Contatos: (5521) 25423162 CDD490 CDU89(477)


JUSSARA TRINDADE MOREIRA

A CONTEMPORANEIDADE DO TEATRO DE RUA: POTÊNCIAS MUSICAIS DA CENA NO ESPAÇO URBANO



SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ............................................................................................. 07 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 15

CAPÍTULO 1 – MOUSIKÉ ................................................................................ 29 1.1 O conceito de mousiké ............................................................................... 36 1.2 Platão e a música ...................................................................................... 40 1.3 A mousiké no teatro grego ........................................................................ 45 1.4 Mauro-Lauro-Paulo, o Homem-Banda ....................................................... 48 1.5 O espetáculo ............................................................................................. 50 1.6 O brinquedo e a ferramenta ...................................................................... 55 1.7 O clown/o palhaço ..................................................................................... 58 1.8 O ator/performer ....................................................................................... 62 1.9 O corpo do performer como princípio da mousiké ..................................... 64 1.10 A dramaturgia musical de O Homem-Banda ............................................ 66 1.11 O espaço da cidade como lugar de trabalho ............................................ 68

CAPÍTULO 2 – ESCUTA ................................................................................... 73 2.1 Imagem ..................................................................................................... 79 2.2 Imagem sonora ......................................................................................... 85 2.3 Sinestesia .................................................................................................. 92 2.4 A musicalidade do espetáculo ................................................................... 97 2.5 Ser TÃO ser: narrativas da outra margem ................................................... 102 2.6 Prólogo: uma melodia, muitas histórias ...................................................... 105 2.7 Migrantes e canções ................................................................................... 108 2.8 O contraponto cênico-musical do prólogo de Ser TÃO ser ........................... 113 2.9 A nostalgia do lar ....................................................................................... 117 2.10 A música, antes da história: a imagem sonora da solidão ......................... 119 2.11 Territórios sonoros ................................................................................... 125

CAPÍTULO 3 – PAISAGEM SONORA ................................................................ 129 3.1 Conceito de paisagem sonora ..................................................................... 133


3.2 A cidade polifônica ................................................................................... 138 3.3 O teatro de rua e a musicalidade na cidade ............................................... 142 3.4 O teatro de rua e a praça ........................................................................... 148 3.5 Tá Na Rua: Oficinas-espetáculos ................................................................. 154 3.6 O Tá Na Rua no Largo da Carioca ............................................................... 156 3.7 As oficinas teatrais do Tá Na Rua .............................................................. 158 3.8 A oficina de “despressurização” ................................................................. 160 3.9 Uma dramaturgia musical .......................................................................... 163 3.10 A tipologia das músicas ........................................................................... 167 3.10.1 O compasso binário simples: a marcha militar ..................................... 169 3.10.2 A marchinha carnavalesca .................................................................... 173 3.10.3 O choro brasileiro ................................................................................. 175 3.11 A praça sonora do Tá Na Rua ................................................................... 177

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 179 GLOSSÁRIO DE TERMOS MUSICAIS ............................................................... 186 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ................................................................. 193 REFERÊNCIAS ................................................................................................. 195


Apresentação

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sta tese, que venho desenvolvendo desde 2008, é fruto de minhas reflexões sobre as relações existentes entre dois campos da arte – o teatro e a música – a partir de uma abordagem que procura elucidar as suas questões na cena contemporânea, tendo como eixo central a musicalidade da cena teatral de rua. Os primórdios dessas indagações datam de 1998, quando conheci o Grupo Tá Na Rua, do Rio de Janeiro, através de suas oficinas de formação de atores. O contato com a maneira de seus integrantes ensinarem a arte do teatro, ancorada principalmente numa técnica singular de improvisação coletiva a partir de estímulos musicais, provocou em mim um profundo interesse pela metodologia de trabalho do grupo, uma vez que possuo uma formação musical anterior como educadora musical e musicoterapeuta. Passei a manter contato pessoal e profissional com o diretor Amir Haddad e os integrantes desse grupo, participando intensamente de várias atividades desenvolvidas pelo coletivo nos anos seguintes, tais como a produção de eventos artísticos, o exercício de funções técnico-artísticas (preparação vocal do elenco e pesquisa sonoro-musical de espetáculos1, participação em desfiles de escolas de samba) e, principalmente, de atividades pedagógicas na esfera teatral, como a Oficina de Musicalidade do Ator, que ministrei por vários anos na sede do grupo, a Casa do Tá Na Rua. A experiência desse contato intenso com Amir Haddad e os atores, obtida nos primeiros anos de meu ingresso no mundo teatral, levou-me a identificar a musicalidade do ator como um campo prático-reflexivo de grande importância para os estudos da teatralidade. Desenvolvi, mais tarde, uma pesquisa acadêmica2 intitulada A pedagogia teatral do grupo Tá Na Rua, sobre os procedimentos de ensino encontrados no espaço de formação atorial do coletivo, denominado por Amir Haddad como “Oficina de Despressurização”. O estudo terminou por revelar o papel determinante que as músicas - no sentido mais usual do termo “música” – desempenham nessas oficinas teatrais, pois, nesses encontros, os participantes relacionavam-se ativamente com diferentes gêneros musicais, aprendendo a materializar corporalmente a trajetória dos discursos sonoros, atribuindo-lhes um sentido dramático e construindo, a partir da percepção auditiva, imagens cênicas3 de forte teatralidade. Outro aspecto decorrente das observações de campo (realizadas a partir das oficinas e espetáculos do TNR) é que, nestes contextos, verifica-se uma verdadeira inversão dos usos mais comuns da música no teatro, por fazê-la extrapolar uma função usual de apoio para a cena e tornar-se, ela própria, o principal elemento condutor dos processos de criação cênica (MOREIRA, 2007), o que dava indícios de que o tipo de processo construtivo da cena, ali desenvolvido, aproximava-se à ideia de uma dramaturgia eminentemente musical, em que a música era originalmente fundida à dimensão cênica. 1 Cabaré Tá Na Rua – Salve a Lapa! (2001), São Jorge contra os invasores da Lua (2002) e Dar não dói, o que dói é resistir (2005). 2

Dissertação de Mestrado em Teatro, desenvolvida entre 2005 e 2007 na UNIRIO.

3 Utilizarei o termo imagem cênica para referir-me à cena teatral propriamente dita; daquilo que é, simplesmente, visto durante uma improvisação ou espetáculo teatral e que traduz uma ação, uma ideia, uma narrativa, configurando-se visualmente para o espectador por meio dos corpos dos atores no espaço.

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Por ocasião da defesa da dissertação, a Banca Examinadora incentivou-me a prosseguir os estudos iniciados no mestrado e aprofundar o tema em direção à elaboração de uma tese doutoral com ênfase nos aspectos sonoro-musicais da cena, considerados igualmente promissores para o teatro nos campos pedagógico, técnico-artístico e teórico. No ano seguinte, agora sob a orientação do Prof. Dr. José da Costa Filho, dei início à presente pesquisa que estabelece, portanto, uma continuidade com a anterior. Por essa razão, no decorrer do presente trabalho tomarei a liberdade de recuperar, principalmente por meio de citações, alguns dos elementos e noções propostas por mim naquele primeiro estudo que, entretanto, podem se tornar necessários para a contextualização e o esclarecimento de aspectos investigados posteriormente. Depois do lançamento do livro e o DVD Tá Na Rua: teatro sem arquitetura, dramaturgia sem literatura, ator sem papel4 em 2008, mesmo ano em que teve início o meu curso de doutorado, tive o privilégio de acompanhar Amir Haddad numa série de lançamentos do livro e palestras, proferidas pelo diretor durante alguns dos mais importantes eventos teatrais5 do país realizados no segundo semestre de 2008 e parte de 2009.

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A intensa participação no processo de pesquisa e elaboração do livro e do DVD; o estreitamento do contato pessoal com Amir Haddad durante as viagens, aprofundado pelas longas conversas travadas em aeroportos e hotéis; as relações estabelecidas com entidades e profissionais de arte de diversas regiões do país, com suas visões particulares de mundo e de teatro; a possibilidade de assistir a uma grande quantidade de espetáculos teatrais das mais diversas tendências e trocar impressões com diretores, atores e atrizes integrantes desses grupos; enfim, a experiência em seu conjunto foi incrivelmente produtiva para mim, do ponto de vista da aquisição de um conhecimento vivencial sobre a complexa e multifacetada realidade teatral do país que, sem dúvida, contribuiu decisivamente para o alargamento de minha visão sobre as relações existentes entre o teatro e a sociedade brasileira e, principalmente, consolidou o desejo de articular à pesquisa de doutorado as novas informações adquiridas em função daquelas experiências, aprofundando os meus estudos teatrais a partir de uma concepção mais abrangente. Cabe ressaltar, ainda, que as questões essencialmente metodológicas das oficinas teatrais, enfatizadas naquela dissertação, foram redirecionadas para uma reflexão de natureza mais teórico-conceitual. Esta passagem, entretanto, não se deu abruptamente ou apenas pela via intelectual, constituindo antes a consequência do amadurecimento de um processo de elaboração teórica que diz respeito à minha participação no grupo de pesquisa (CNPq) “Formas e Efeitos, Fronteiras e Passagens na Linguagem Teatral”, formado por integrantes da linha de pesquisa “Poéticas da Cena e do Texto Teatral” à qual este estudo se vincula, e às novas perspectivas resultantes do contato com temas ligados à subjetividade e à política na cena contemporânea. Concomitantemente a esse fato, deu-se ainda a minha inserção nas discussões e transformações que há alguns anos 4 Produções artísticas resultantes de minha participação no Projeto Memória Tá Na Rua, contemplado pelo Edital Público “Patrimônio/Humanidade” do Programa Petrobrás Cultural, e cujo objetivo era fazer um registro histórico dos 25 anos de existência que o grupo completara em 2005. 5 Festival Internacional de Teatro de Brasília CENA CONTEMPORÂNEA (ago/08); XV Porto Alegre Em Cena (set/08); Abertura do Auto do Círio de Nazareth – Belém (out/08); Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia (out/08); XI Festival Recife do Teatro Nacional (nov/08); VI Festival América do Sul – Corumbá (abr/09); II Encontro Matraca de Teatro de Rua do Maranhão (out/09).


Apresentação

vêm se dando no âmbito do teatro de rua em nosso país, fato que merece, aqui, um breve comentário à guisa de contextualização. O sucesso do Projeto Memória Tá Na Rua gerou frutos inesperados, de modo que o início de 2009 trouxe-me a oportunidade de “mergulhar” num empreendimento teatral bastante importante dentro do universo do teatro de rua: o XIV Encontro Nacional de Teatro de Rua de Angra dos Reis, mais antigo evento dessa modalidade no país. Uma grande quantidade de materiais de divulgação de grupos teatrais, companhias circenses e performers interessados em participar da seleção (DVDs de espetáculos, fotos, clippings, textos, entre outros) chegaram às minhas mãos, vindos de todas as partes do Brasil6. Para fazer a curadoria do evento, foram necessárias várias semanas de cuidadosa análise desses documentos, além das reuniões com a equipe de produção que enfrentava imprevistos de toda ordem, e com os profissionais da CULTUAR – Fundação de Cultura de Angra dos Reis - envolvidos direta ou indiretamente no evento. Até o final dessa seleção, tive acesso privilegiado a 83 espetáculos teatrais de rua, 42 performances e 57 propostas de oficinas e workshops, trabalhos esses que representavam o sonho de cada artista e de cada grupo concretizado em papel, acetato e outras alquimias tecnológicas, mesclado ao desejo de compartilhar seus saberes com outros companheiros “de estrada”. O Encontro aconteceu em maio de 2009 e incluiu, além dos espetáculos, várias atividades através das quais pude conhecer muitos artistas e suas diferentes proposições éticas e estéticas, e debatê-las com os demais fazedores teatrais de rua ali presentes. Foi esse o meu “batismo de fogo” dentro da RBTR – Rede Brasileira de Teatro de Rua77, na qual ingressara havia pouco tempo. De importância capital para a pesquisa, e também decorrente desse evento em Angra, foi a proposta e criação do Núcleo de Pesquisadores de Teatro de Rua, grupo virtual do qual sou, desde então, a moderadora. Estas experiências deram-me a oportunidade de participar posteriormente de vários outros eventos ligados a esta modalidade, os quais enriqueceram e deram sustentação a novas possibilidades de investigação no campo da musicalidade, não apenas quanto à formação do ator como também do espetáculo teatral, sobretudo aquele realizado em espaços abertos. Todos os fatos contidos no relato acima tiveram grande influência no processo de amadurecimento e transformação de meu Pré-Projeto de Tese8. Isto se deu, basicamente, devido ao contato frequente e intenso com a produção teatral de uma parte significativa do país, proporcionado por viagens e participações em eventos de teatro de rua, ocasiões essas que propiciaram uma considerável ampliação de minhas referências em relação ao teatro brasileiro atual e, principalmente, quanto à modalidade específica do teatro de rua, que até então se limitava ao próprio grupo Tá Na Rua. Este constituía a minha principal referência 6 Recebi propostas de Cuiabá, Goiânia, Brasília, Aracaju, São Luís, Salvador, Juazeiro do Norte, Ananindeua, Belém, Porto Alegre, Curitiba, Florianópolis, Criciúma, Uberlândia, Betim, Belo Horizonte, Embú das Artes, Santo André, Santos, Presidente Prudente, Jacareí, Campinas, Atibaia, São Caetano do Sul, Sertãozinho, Araraquara, São José do Rio Preto, Pirassununga, São Paulo, Cabo Frio, Angra dos Reis, Rio de Janeiro e Buenos Aires. 7 Desde 2004, praticantes de teatro de rua vêm se organizando politicamente em todas as regiões do país, por meio de redes virtuais e encontros presenciais periódicos onde são discutidos os aspectos éticos e estéticos desta modalidade teatral. Em 2007 é criada a Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR) e, em 2009, o Núcleo de Pesquisadores de Teatro de Rua, duas redes virtuais nacionais que têm garantido um espaço de troca de saberes e de discussão política entre esses artistas, grupos de rua e companhias circenses. 8 Imagem sonora: um estudo sobre as relações entre música e imagem cênica na pedagogia teatral do Grupo Tá Na Rua, Pré-Projeto de Tese aprovado no Concurso Doutorado/2008 (UNIRIO).

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teatral quanto aos modos de criação, produção e formação do ator. Porém, nos eventos dos quais participei desde o início da elaboração do projeto de pesquisa, pude conhecer e à vezes conviver com outros coletivos e artistas de rua das mais diversas tendências que, a despeito de suas diferenças éticas e estéticas, compartilhavam daqueles espaços de troca, movidos pela genuína paixão de descobrir novos caminhos para a sua teatralidade. Foi nesse contexto que vislumbrei a percepção - das práticas e do pensamento éticoestético do teatro de rua - como um terreno privilegiado de produção de singularidades, fértil não apenas ao nível de seus saberes técnico-artísticos, mas principalmente, na proposta implícita de abertura dos canais de sensibilidade do ator a novos modos de estar no mundo, de encontrar seu espaço singular no mundo. Isto se explicitava principalmente nos espetáculos, que sob este novo ponto de vista podiam ser capazes de transformar os espaços públicos onde se realizavam num verdadeiro território de luta, ainda que revestida do humor mais escancarado! Nesse sentido, esses espetáculos extrapolavam as delimitações de um teatro mais facilmente categorizável como “popular”, para fazer parte do rol de um teatro de rupturas que caracteriza a cena na contemporaneidade. E, nesse contexto, a música desempenhava papel primordial ao promover relações polifônicas entre a cena e o imaginário do espectador, propondo associações de diversas (e às vezes, contraditórias) naturezas, criando múltiplas significações e ressignificações. Isso tudo oferecia, portanto, possibilidades inéditas de questionamento das convenções teatrais eurocêntricas, o que poderia contribuir para redimensionar as discussões éticas e estéticas sobre o teatro brasileiro atual.

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Continuei participando de eventos teatrais de rua e aprofundando reflexões acerca desta modalidade no país, o que me levou a organizar e publicar o livro Teatro de Rua no Brasil: a primeira década do Terceiro Milênio9 em 2010. Nesse mesmo ano, tive a oportunidade de abordar as questões do teatro realizado em espaços abertos com estudantes de graduação em teatro, em meu estágio de docência na UNIRIO. Estimulada por meu orientador, ministrei aulas sobre o teatro de rua como parte da disciplina “Teatro Brasileiro Moderno”10, onde foram discutidos textos de vários autores sobre a modalidade e assuntos correlatos11, e realizados debates sobre espetáculos de rua de distintas vertentes. Para isto foi utilizado, como material didático de apoio, vídeos de espetáculos teatrais de rua de meu acervo particular12, construído ao longo dos anos anteriores durante aqueles eventos teatrais dos quais participei e dos quais fiz o registro audiovisual, além de anotações de campo, entrevistas e análises de espetáculos. No final de 2010, participei da proposta de criação do Grupo de Trabalho “Artes Cênicas na Rua” junto à Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE). Uma vez aprovado, no ano seguinte o GT realizou o seu primeiro encontro 9

Em co-autoria com Licko Turle, pesquisador teatral e ex-integrante do grupo Tá Na Rua.

10 Nessa ocasião, fui responsável por uma Unidade Programática da disciplina, intitulada “Teatro de Rua: teatralidade, musicalidade, subjetividade”. 11 Ana Carneiro (2005); André Carreira (2008); Narciso Telles (2005); Jussara Trindade (2007); José da Costa (2009); Félix Guattari e Suely Rolnik (2010). 12 Espetáculos dos seguintes grupos teatrais de rua: Tá Na Rua (RJ); Buraco d’Oráculo (SP); De Pernas Pro Ar (RS); Grande Companhia Brasileira de Mystérios e Novidades (RJ); Falos & Stercus (RS); Erro Grupo (SC); Tribo de Atuadores Ói Nois Aqui Travêis (RS); Grupo Galpão (MG); Grupo Teatral Imbuaça (SE); Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo (SP); Teatro de Operações (RJ); Oigalê (RS); Grupo Experimental Vivarte (AC); Brava Companhia (SP); Cervantes do Brasil (CE); Pombas Urbanas (SP); Trupe Olho da Rua (SP), dentre outros.


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durante a VI Reunião Científica da ABRACE na UFRGS, Porto Alegre. Todos estes fatos, ocorridos durante o meu curso de doutorado, influenciaram decisivamente na redefinição de meu objeto inicial de pesquisa que se ampliou, do trabalho pedagógico-musical de um grupo teatral de rua em particular, para uma discussão sobre as potências musicais da cena contemporânea no espaço urbano. Para finalizar, creio que devo dedicar algumas palavras também à minha experiência como musicista e educadora musical, sem a qual não teria sido possível pensar numa pesquisa desta natureza. Meu contato com a música se deu através do ingresso em um estabelecimento oficial de ensino, como aluna de piano clássico. Após vários anos de estudos intensos, optei por não seguir a carreira de pianista uma vez que o trabalho prolongado com o instrumento, realizado a partir de metodologias conservadoras, fizera dessa prática musical um sofrimento físico maior que o prazer da música. Somente depois, como psicomotricista, pude compreender que as dores que a prática pianística causava em meu corpo eram somente consequência de um estudo convencional, mecânico e repetitivo, que desconecta completamente a música da pessoa, em nome da “grande arte” dos “grandes mestres” da música ocidental. Anos depois tornei-me musicoterapeuta e educadora musical, campos profissionais correlatos onde pude aplicar técnicas psicomotoras na prevenção e correção de vícios posturais ligados à prática instrumental. Desenvolvi, também, procedimentos de conscientização corporal voltados para estudantes e profissionais de música13, que surpreendentemente ainda hoje padecem dos resquícios de uma concepção musical mecanicista, que prioriza as técnicas de execução instrumental em detrimento do ser humano em sua totalidade. É importante ressaltar que estas experiências integradas de música e corpo se deram concomitantemente a atividades teatrais, que há algum tempo constituíam um novo campo de interesse para mim. Como foi dito no início, a minha inserção no teatro deu-se através das oficinas de formação de atores denominadas “Musicalidade do ator”, que ministrei por alguns anos na Casa do Tá Na Rua, sede desse grupo de teatro de rua. Assim, quando mais tarde trabalhei na preparação cênica14 de estudantes do Curso Técnico de Música da Escola de Música Villa-Lobos, confirmou-se a percepção de que, assim como existe uma “musicalidade do ator”, existe também uma “teatralidade do músico” – qualidade ignorada pela educação musical tradicional - que se tornou o tema e objeto preferencial de minhas aulas nessa instituição até minha saída, em 2011. Concluo esta apresentação constatando, então, que a presente pesquisa é o desdobramento natural de um longo trajeto artístico, pessoal e profissional, vivenciado entre musicalidade, corporeidade e teatralidade.

13 Isto se deu principalmente no âmbito da Escola de Música Villa-Lobos, estabelecimento de ensino de música que é subordinado à Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, onde atuei como professora das disciplinas “Música e Movimento” (para os alunos do Curso Técnico) e “Práticas Dramatúrgicas” (voltada para os alunos de Canto Lírico). 14 Um dos projetos por mim desenvolvidos nessa instituição foi o de montagem de musicais com os alunos do Curso Técnico. O fantasma da Ópera, em 2009, foi a primeira experiência realizada nesse sentido. A seguinte, Bar Alvorada (sobre a obra de Cartola), teve início em 2010, mas não foi finalizada.

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Introdução

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paradigma histórico mais arraigado no teatro ocidental é o que localiza as suas origens na primitiva Grécia, com o ditirambo. Sua historiografia o define como cortejos festivos que se deslocavam pelos campos da Península Ática, nos quais os participantes dançavam e cantavam em louvor ao deus Dioniso, acompanhados por instrumentos musicais, usando vestimentas rituais e fazendo oferendas com alimentos e vinho em prol da abundância das colheitas e da fertilidade (BERTHOLD, 2001). Muitas vezes descrita como canto ditirâmbico, essa manifestação teatral primitiva não deixa dúvidas quanto à sua natureza essencialmente musical, o que já levou, inclusive, pesquisadores de história da música a estudá-los sob outra perspectiva. O musicólogo Théodore Reinach (1860-1928), por exemplo, em sua célebre obra A música grega (2011), escrita em 1923, a respeito dos antigos cantos com que os gregos da Antiguidade celebravam seus deuses, afirma que Dos cantos religiosos, dois se tornaram os mais comuns: o ditirambo e o peônio (sendo esse nome aplicado também ao ritmo 3/2). O ditirambo era o canto entoado em homenagem a Dioniso. Tendo provindo de festas populares, foi adotado a partir do século VI a.C. por poetas já consagrados. Quanto ao peônio, prevalecia em certas festividades, como a das Panatenaicas, em honra a Palas Atena, sendo, no entanto, igualmente dedicado a Apolo (REINACH, 2011, p. 27) Contudo, ao eleger como elemento identificador da arte teatral o componente visual contido no espetáculo – do ponto de vista de um espectador que estaria observando a passagem dos celebrantes – o teatro tende a atribuir o universo das sonoridades da cena ao campo específico da música. Se, originalmente, era a música o fator responsável pela própria organização do espetáculo, atribuindo-lhe sentido, conduzindo a ação dos artistas e o conteúdo da narrativa, aos poucos passa a ser considerada como um elemento acessório da cena, secundário em relação àquilo que é percebido por meio visual. A música, por sua vez, também se afasta gradativamente dessa origem comum e, abrindo mão de sua natureza corpórea e espetacular, ganha status de arte imaterial que se realiza apenas ao nível da sensibilidade auditiva. A corporeidade torna-se o território privilegiado da dança - uma dentre as várias especificidades artísticas que o pensamento ocidental demarca, com grande precisão, ao longo do tempo. O decurso da história ocidental a partir da modernidade pós-renascentista levou a uma cada vez maior segmentação da arte em campos artísticos especializados – teatro, música, dança, pintura, escultura etc – afastando definitivamente a possibilidade de um pensamento global sobre a arte, até que o esgotamento dessa visão cartesiana de mundo levasse ao questionamento de seus fundamentos. Friedrich Nietzsche (1844-1900), por exemplo, atribuiu grande importância à música no teatro. Em sua primeira obra, publicada ainda em 1872, O nascimento da tragédia (2007)1 , 1 Cujo título continuava, sugestivamente, com... a partir do espírito da música (título original, escrito em 1871, cujo Prefácio foi dedicado ao compositor Richard Wagner).

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o filósofo reconhece a existência de duas expressões fundamentais na tragédia grega: aquela, não figurada, dionisíaca, da música e do coro onde, segundo ele, estaria contida a própria significação dessa antiga arte; e a apolínea, do figurador plástico da cena. Sua hipótese é que, do entrelaçamento entre esses dois impulsos artísticos, simbolizados pelas figuras divinas de Dioniso e Apolo, teria sido gerada a tragédia ática. Segundo o pensador alemão, em sua origem esta nada mais era senão o coro, que estabelecia com o público uma relação completamente diversa da de um grupo de espectadores com o espetáculo, tal como conhecemos hoje. O coro dionisíaco, em sua perambulação, reunia uma multidão em festa. Nietzsche observa que a condição preparatória do ato mesmo de “poetar”, seria o artista alcançar um certo estado de ânimo musical (NIETZSCHE, 2007, pág. 41). Ele estava convencido de que, para se chegar às expressões mais apolíneas da arte (as artes figurativas, a tragédia e, portanto, o teatro), foi preciso, antes, entrar em contato com aquelas mais dionisícas – segundo ele, ligadas primordialmente à música.

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Na passagem do século XIX para o XX inicia-se uma nova fase para o teatro ocidental, em que este é ressignificado pelas experimentações inovadoras de artistaspesquisadores. Busca-se, de diversos modos, religar aquelas expressões sensíveis do homem que se encontravam separadas em compartimentos estanques do conhecimento. Desde então, o teatro vem buscando referências extra-teatrais no intuito de compreender a si próprio. Um exemplo disso é o das pesquisas sobre o corpo do artista cênico, desenvolvidas a partir das investigações pioneiras de expoentes do teatro (Constantin Stanislavski, Vsévolod Meyerhold), da música (Émile Jacques-Dalcroze) e da dança (Rudolf Von Laban), que corroboram a ideia de que a ação física oferece um caminho fácil de acesso ao universo interior do ator, levando, consequentemente, a uma melhor interpretação cênica devido ao “senso de verdade” de que esta se imbui (OLIVEIRA, 2000). Hoje, o reconhecimento da ideia de que as técnicas corporais oferecem um caminho indubitável para o desenvolvimento da teatralidade se concretiza na presença, dentro dos currículos das escolas de teatro, de disciplinas que têm na consciência do corpo do ator o seu principal eixo pedagógico. A partir de uma concepção mais global do ser, é possível supor então que o desenvolvimento da consciência musical do ator pode constituir, também, um caminho para a teatralidade, uma vez que tem origem na mesma instância e mesmo lugar de desenvolvimento – o corpo humano, em relação ao meio e ao outro. Infelizmente, tamanho potencial tem-se limitado aos recursos vocais do ator. Uma tradição teatral excessivamente textocêntrica e declamatória levou a um direcionamento das inúmeras possibilidades sonoro-musicais do ator para a voz falada e o canto. Quanto à musicalidade da cena propriamente dita, em geral parece “escapar aos poderes do encenador” (ROUBINE, 1998). Entretanto, essa concepção não é mais suficiente para sustentar as exigências expressivo-musicais do teatro na atualidade. Hoje, a arte vive um momento de diluição de suas fronteiras: dança-teatro; teatro musical; performance; teatro físico, são exemplos das artes do espetáculo que, na contemporaneidade, tentam dar conta dessa reaproximação em que musicalidade, corporeidade e teatralidade tornam-se novamente qualidades inseparáveis. Assim, conceber o teatro como música e música como teatro apresenta-se como um desafio


Introdução

que implica na tentativa de inversão de um tipo de pensamento linear e exclusivo em direção a outro, não-linear e inclusivo, cuja natureza polifônica permite a coexistência simultânea de diferentes elementos. Torna-se necessário ampliar o conceito de “música”, entendida como arte isolada, em direção à noção de “musicalidade” – qualidade amplificada das potencialidades sonoromusicais do ator e da cena, para além dos rígidos limites técnicos de uma formação musical nos moldes convencionais. De certo modo, isso já vem acontecendo há tempos: hoje, fazem parte corriqueira do vocabulário teatral termos que, em essência, são originários do universo musical: tempo-ritmo; ritmo (do ator, de cena); partitura (de movimentos); polifonia; atorcompositor etc. Acredito que a tentativa de transpor as barreiras – conceituais e técnicas – construídas historicamente entre teatro e música pode contribuir para a compreensão dos novos patamares de criação que se delineiam no horizonte do teatro. O caminho percorrido até aqui conduz à hipótese de que, no contexto do teatro, é possível pensar a música como fenômeno teatral. Para isto é necessário, contudo, entender a “música” como musicalidade e não apenas como “arte dos sons”. Contudo, a impossibilidade de abarcar, neste estudo, todo o fenômeno teatral da atualidade sob a perspectiva da musicalidade levou necessariamente a um recorte conceitual, de modo que a tese se volta apenas para o chamado “teatro de rua”, cuja noção, de acordo com o pesquisador teatral André Carreira, “englobaria todos os espetáculos ao ar livre fora de um espaço teatral convencional, apropriado temporariamente para o acontecimento teatral e, permeável a um público acidental” (CARREIRA, 2005, p. 35). Um panorama da cena teatral brasileira da atualidade mostra que a música é um fator fundamental ao teatro realizado em espaços abertos, não convencionais, como se dá no caso do teatro de rua. Em sua grande maioria, as companhias e grupos brasileiros que atuam nessa modalidade utilizam intensamente o universo sonoro/ musical: como ferramenta metodológica para o desenvolvimento de qualidades essenciais ao ator (principalmente o ritmo, a expressividade do corpo e a potencialidade da voz cantada); alguns lançam mão de recursos de sonoplastia, a fim de enriquecer e acrescentar humor aos seus espetáculos; outros, ainda, investem em experiências cênicas em que a música desempenha uma função narrativa, informando o espectador sobre os fatos da história contada e a psicologia de seus personagens através de canções, geralmente executadas ao vivo pelos próprios atores. Na maior parte dos espetáculos, esses “modos de usar” não aparecem isoladamente, porém mesclados e utilizados de acordo com a necessidade da cena, evidenciando a criatividade dos coletivos nesse campo. São muitos os exemplos da transbordante musicalidade dos espetáculos teatrais de rua, em nosso país. O Grupo Galpão (MG) desenvolveu, com um esmerado preparo técnico-musical de seus integrantes e a execução de peças vocais e instrumentais ao vivo, espetáculos ontológicos como Romeu e Julieta e Um Molière imaginário; já o grupo Tá Na Rua (RJ), embora parta de uma concepção praticamente oposta à anterior sobre a questão do treinamento técnico-musical do ator, tem na música o ponto de partida para as improvisações dos atores e a sustentação dramatúrgica

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A CONTEMPORANEIDADE DO TEATRO DE RUA: POTÊNCIAS MUSICAIS DA CENA NO ESPAÇO URBANO

de espetáculos como Cabaré Tá Na Rua: Salve a Lapa! ou Dar não dói, o que dói é resistir! Em Famiglia Milan e o Gran Circo Guaraná com Rolha, o Circo Nosotros (SP) mostra-nos que num espetáculo circense a música funciona como apoio para a ação cênica. É literalmente sobre ela que os atores atuam durante um “número”; a fluência e a precisão dos movimentos, o equilíbrio entre impulsos e apoios, a intensidade de um gesto, a velocidade de um deslocamento, tudo depende da relação que os atores estabelecem com essa partner, a música. Há grupos como o Imbuaça (SE) e o Oigalê (RS), cuja vinculação ética e estética a um registro eminentemente regional é perceptível no trabalho musical voltado para a exploração de sonoridades e ritmos (nordestinos, no primeiro caso e gaúchos, no segundo) colocados em cena como signos sonoros da nossa mais autêntica cultura popular, como se dá respectivamente em Teatro chamado Cordel e Deus e o Diabo na Terra de Miséria. Mas há também os que adotam, sem nenhum prejuízo de sua “brasilidade”, a estética musical do hard rock - como faz magistralmente a Brava Companhia (SP) em A brava - com direito aos gemidos lancinantes da guitarra elétrica para pôr em cena “distorções” de outra natureza; outros, ainda, investem na pesquisa de timbres sonoros acústicos, como a Grande Companhia Brasileira de Mysterios e Novidades (RJ), que obtém poderosos efeitos cênicos resultantes de suas experimentações com instrumentos musicais oriundos de diversas culturas e vocalizações profundamente viscerais, capazes de arremessar o espectador-ouvinte a outro plano espaço-temporal, fazendo-o mergulhar no universo mítico de Cíclopes.

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A música pode exercer funções e assumir significados bastante diferentes para cada coletivo de teatro de rua e em cada espetáculo, da utilização como simples recurso de apoio à produção da lógica cênica em jogo. Mas, sejam quais forem as suas atribuições, no contexto teatral de rua a música sempre estará investida de um caráter de ligação entre palavra, movimento e imagem ou ainda, como sugere a musicóloga Lia Tomás, como forma de organização do pensamento que articula mito e lógos (TOMÁS, 2002), criando uma trama de sons que dialoga com a cena e amplifica sentidos entre o espetáculo, o espectador e a cidade. A música conecta atores e público na mesma “frequência”, na mesma “sintonia” - termos do universo musical que dão a dimensão do fenômeno sonoro quando colocado a serviço da arte e da comunicação entre os seres humanos - principalmente no espaço público da rua onde as pessoas que assistem não estão condicionadas por convenções prévias, como se dá no teatro de sala. “O espectador da rua está mais livre ante as regras da cena e se comporta com maior autonomia que o espectador da sala pois está menos submetido a condicionamentos sociais”, verifica Carreira em Teatro de rua (Brasil e Argentina nos anos 1980): uma paixão no asfalto (CARREIRA, 2007, p.47). A música representa, no contexto da rua, um fator a mais de liberdade para esse espectador uma vez que ele é frequentemente convidado a estabelecer uma relação ativa com o espetáculo – quando canta junto com os atores, acompanha um ritmo com palmas, movimenta-se etc – situação essa que é dificultada pelos limites físicos e restrições sociais da sala teatral, porém é favorecida no espaço aberto da rua. E, mesmo que o espectador se afaste fisicamente, colocando-se fora do campo de visão do espetáculo, as sonoridades da cena o acompanharão até uma


Introdução

grande distância, “segurando” ainda a sua atenção. Apesar da riqueza dos múltiplos universos da música presentes no teatro de rua, a terminologia teatral convencional não tem sido muito generosa com a música “de cena”: sonoplastia, trilha sonora (termos emprestados do rádio e do cinema) ou o mais genérico direção musical não revelam a natureza e a complexidade do pensamento que a tarefa exige. Elaborar a ambientação sonora de um espetáculo, criar um tema musical para um personagem, improvisar um verso ou melodia, cantar, tocar um instrumento ou dançar em cena é, antes de tudo, retornar à antiga mousiké e à magia da arte - anterior à histórica cisão entre as artes - e transitar entre sons, palavras e ações. É, também, permitir que um texto literário, quando utilizado, “fale” através de outras sintaxes e outras semânticas, rítmicas e melódicas, e infiltre, por entre as palavras soadas, imagens sonoras que as ampliem ou revelem como contraditórias. A musicalidade de um espetáculo é também uma poética; mas, uma poética que nasce antes de tudo, de uma escuta cênica em que se fundem as linguagens visual e sonora. Esta tese tem como objeto a poética cênico-musical do teatro de rua. Por meio de exemplos pontuais, recolhidos a partir de espetáculos aos quais assisti durante o meu curso de doutorado, estudarei os seus processos construtivos – considerados, aqui, como dramatúrgico-musicais – os quais possibilitam vislumbrar uma poética teatral própria ao teatro de rua pelo viés, ou seja, pela escuta da sua musicalidade. Trata-se, portanto, de uma abordagem duplamente marginal. Em primeiro lugar, porque pretende encontrar as comprovações de sua hipótese no âmbito de uma modalidade teatral – o teatro de rua - que apenas recentemente vem conquistando alguns espaços de legitimidade entre as modalidades já consagradas nesse campo artístico2. A produção acadêmica de dissertações e teses sobre o tema é ainda bastante incipiente3, e as obras escritas pelos próprios teatristas de rua revelam em geral uma preocupação mais voltada para o registro e documentação histórica, do que teóricoconceitual. Esta situação lacunar já foi observada por pesquisadores brasileiros que vêm buscando modificar esse panorama (CARREIRA, 2005; LEMES, 2010; TURLE, 2011; TEIXEIRA, 2012) por meio de estudos voltados para temas mais específicos, tais como a preparação corporal do ator de rua, as relações do teatro de rua com o espaço público urbano e com a comunidade, dentre outros temas relevantes. A essas considerações anteriores é preciso acrescentar, ainda, que a falta de uma produção acadêmica mais consistente acaba contribuindo para perpetuar concepções simplistas do teatro de rua, favorecendo a multiplicação de produções artísticas que tendem a repetir de forma quase estereotipada (inclusive por parte de grupos jovens, vinculados ou não a universidades) a tradicional temática cômico-popular4, sem 2 Nos últimos anos, surgiram novos cursos e linhas de pesquisa em pós-graduação na área, foi criado o GT Artes Cênicas na Rua na Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas e, no final de 2011, foi implantado na UNIRIO o Projeto Teatro do Oprimido e Teatro de Rua: novos campos nos Estudos da Performance, com apoio da FAPERJ. 3 A pesquisa que realizei durante a elaboração do livro Teatro de Rua no Brasil: a primeira década do Terceiro Milênio (2010) revelou que, de 1983 até 2009, foram escritos apenas 21 trabalhos acadêmicos que abordavam temas ligados ao teatro de rua. Desse ano até a defesa desta tese, tal número cresceu um pouco. 4 A predominância de farsas em eventos teatrais de rua já foi observada pela pesquisadora teatral Rosyane Trotta, durante debate crítico realizado no Circuito Boa Praça, no Rio de Janeiro em 2011. E, no XV Encontro Nacional de Teatro de Rua de Angra dos Reis, ocorrido recentemente (novembro/2011), dentre os doze espetáculos apresentados na Ilha Grande,

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arriscarem outras linguagens teatrais mais inovadoras no espaço da rua. Dentro desse quadro, a proposta de um “teatro de invasão” pelo diretor André Carreira, constitui uma exceção que vem influenciando, nos últimos anos, a produção de grupos teatrais de rua 5 de várias regiões do país. Por muito tempo, esta modalidade constituiu um elemento estranho ao ambiente acadêmico, que praticamente desconhecia a sua potência e importância. Hoje, com o desenvolvimento do teatro de rua no país e a sua crescente inserção nos currículos dos cursos oficiais, essa situação começa a se modificar. Mas, advém daí um novo problema: pelas condições particulares que moldaram o seu desenvolvimento no país, a aprendizagem do teatro de rua ainda se dá predominantemente dentro do próprio grupo, através de um “modelo periférico” de formação do ator (CARREIRA, 2006), e não dentro dos espaços oficiais de ensino. Como, hoje, apenas uma minoria desses teatristas atua como artista-docente em escolas e universidades, dentro do ambiente acadêmico o teatro de rua enfrenta, antes de tudo, o desafio de construir as suas próprias referências uma vez que as já instituídas dificilmente atendem às exigências colocadas pelo espaço que lhe é inerente. Tal dificuldade tende, felizmente, a se dissipar com as novas abordagens e pesquisas que vêm tentando compreender a teatralidade em relação ao espaço público aberto da rua (KOSOVSKI, 2001; CARDOSO, 2005; TELLES & CARNEIRO, 2005; CARREIRA, 2007; TURLE, 2011).

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Em segundo lugar, a escolha de uma abordagem musical é também marginal porque o termo “teatro” encontra-se historicamente associado à idéia de visão6, e o desenvolvimento dessa arte enquanto objeto de estudos analíticos frequentemente deixou, à sua margem, outras vias pelas quais o fenômeno teatral pode também ser apreendido e investigado. O caminho que interessa a este estudo é o sonoro-musical, ou seja, o da audição e da escuta – dimensão sensorial que aborda, mas também transcende, o fenômeno estritamente acústico que acontece dentro do aparelho sensorial do sujeito individual, para abranger esferas mais amplas do humano, inscritas também no social, no cultural, no urbano e no contemporâneo. Trabalharei com dois níveis de compreensão: de um lado, a questão de fundo, que gira em torno da musicalidade enquanto fenômeno teatral, o que leva a um questionamento, subjacente em todo o texto, da recepção exclusivamente visual do espetáculo de teatro; de outro, a problemática ligada a princípios e noções musicais presentes no teatro de rua, que pode ser explicitada como uma tentativa de decifrar o seu dispositivo sonoro-musical, espaço esse desconhecido da maioria dos estudos teatrais voltados - ou não - para esta modalidade7. seis continham temática nordestina, embora apenas um destes coletivos fosse oriundo da região nordeste: o Grupo Sinos, de Teresina (PI), que apresentou Dona Flor e seu único futuro marido; além disso, apenas dois não seguiram uma dramaturgia cômico-popular: o Coletivo Teatro da Margem (MG), com A saga no Sertão da Farinha Podre, e o Buraco d’Oráculo (SP), com Ser TÃO ser: narrativas da outra margem. 5 Erro Grupo (Florianópolis-SC); Teatro que Roda (Goiânia-GO); Coletivo Teatro da Margem (Uberlândia-MG); Teatro de Operações (Rio de Janeiro-RJ). 6

Segundo Pavis, theatron é a “palavra grega que designa o lugar de onde se vê o espetáculo” (PAVIS, 2003, p. 409).

7 Dignos de nota são os estudos teatrais realizados por Ernani de Castro Maletta (A formação do ator para uma atuação polifônica: princípios e práticas, 2005), Jacyan Castilho de Oliveira (O ritmo musical da cena teatral: a dinâmica do espetáculo de teatro, 2008) e Jussara Fernandino (Música e cena: uma proposta de delineamento da musicalidade no teatro, 2008).


Introdução

O fio condutor do texto é a abordagem estética, que articula noções da linguagem musical às obras teatrais investigadas. O estudo dos trabalhos selecionados – MauroLauro-Paulo, o Homem-Banda (Cia Um Pé de Dois – RS), Ser TÃO ser: narrativas da outra margem (Buraco d’Oráculo – SP) e Tá Na Rua: oficinas-espetáculos (Tá Na Rua – RJ) - funcionará como ferramenta teórica na tentativa de compreender a musicalidade do teatro de rua. Por intermédio da obra artística concreta será possível, então, revelar uma estética própria ao teatro de rua; no caso, uma estética sonoro-musical que, por sua vez, supõe o desenvolvimento de uma escuta cênica, uma escuta poética. O teatro de rua tem aspectos e exigências cuja singularidade cria um universo espaço-temporal diferente daquele a que a sociedade ocidental moderna e contemporânea acostumou-nos a compreender predominantemente como “o” teatro – o qual, não obstante, provê as referências ainda determinantes nesse campo. Em que pesem as extraordinárias inovações trazidas pelos grandes expoentes do século XX, sobretudo quanto à quebra das fronteiras do espaço cênico, a lógica do teatro de sala, ainda prioritária, acaba impondo a sua própria estética, levando grande parte dos artistas de rua a adotarem, ainda, para todo e qualquer espaço cênico, os princípios do palco à italiana, mesmo que o espetáculo se realize numa sala em arena, numa praça a céu aberto ou ao longo de um percurso pelas ruas da cidade. Assim, é comum encontrar, em espetáculos de rua, indícios dessa hegemonia estética que ultrapassa os limites do palco: a frontalidade da cena, o excesso de texto literário dialogado, o uso de técnicas de canto lírico na preparação vocal do ator, a presença da quarta-parede a separar atores e público, cenários naturalistas, para citar apenas alguns. Por isso, o estudo pretende trazer à tona algumas reflexões, ligadas basicamente aos conceitos de ator, recepção e espaço cênico, que dizem respeito ao teatro em seu escopo mais primário - tal como explicita a célebre definição apresentada por Peter Brook em O teatro e seu espaço (1970): “Posso escolher qualquer espaço vazio e considerá-lo um palco nu. Um homem atravessa este espaço vazio enquanto outro o observa, e isso é o suficiente para criar uma ação cênica”. Desse ponto de vista, o teatro enquanto tal refere-se essencialmente ao ator (aquele que age), ao receptor (aquele que observa) e ao espaço cênico (o lócus do acontecimento cênico). Cada um desses conceitos teatrais fundamentais irá se relacionar com noções teóricas originárias do universo musical – respectivamente, mousiké, escuta e paisagem sonora – escolhidas como matrizes conceituais para orientar a discussão e comprovar a hipótese de pesquisa. Nesse percurso, encontraram-se alguns desafios de ordem metodológica. Em primeiro lugar, surgiu o problema de como esclarecer conceitos/noções musicais fundamentais para o público de teatro não familiarizado com essa linguagem, de modo a não simplificar em demasia as questões técnico-musicais aí envolvidas, ou cair no extremo oposto, ou seja, o de escrever uma tese de teatro inteligível apenas para leitores com formação musical acadêmica. A ideia de elaborar um capítulo introdutório que abarcasse o universo conceitual musical presente na pesquisa logo se tornou inapropriada, pois fugiria à proposição de abordar o espetáculo de rua a partir de uma concepção simultaneamente cênica e musical. Era preciso buscar uma forma transversal de escrita, que perpassasse noções musicais pelo conteúdo teatral, esclarecendo nesse trajeto aspectos inerentes a ambas as linguagens, mas sem perder a conexão entre elas.

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A CONTEMPORANEIDADE DO TEATRO DE RUA: POTÊNCIAS MUSICAIS DA CENA NO ESPAÇO URBANO

Duas táticas foram adotadas nesse sentido: a de se inserir no final do trabalho um “Glossário de Termos Musicais”, para com isso evitar um uso excessivo de notas de rodapé em certas passagens da tese onde é necessário intensificar as referências a termos musicais; e outra, de abordar as questões musicais básicas diretamente em relação aos aspectos teatrais privilegiados em cada capítulo, a saber: o conceito de mousiké como fundamentação teórica para discutir a musicalidade do ator; o de escuta para sensibilizar a percepção da musicalidade do espetáculo; e o de paisagem sonora, como meio de penetrar na polimorfa e polissêmica musicalidade da rua. A opção por essa estrutura em blocos temáticos revelou a possibilidade de captar e amplificar (utilizando-se, aqui, uma terminologia das audiocomunicações) as nuanças sonoras menos óbvias, os espaços musicais pouco explorados, os fluxos sonoros quase imperceptíveis, a audibilidade de um universo sonoro-musical cuja nitidez nos escapa, contornos fugidios de um objeto intangível cujos feixes vibracionais afetam de vários modos o fenômeno teatral, sobretudo num espaço cênico – o da rua - atravessado por múltiplas interferências. A tarefa exigiu, portanto, a conformação de um marco teórico proveniente dos dois campos artísticos e também de outras áreas científicas. Optei pela apresentação, na parte introdutória de cada um dos capítulos da tese, de um detalhamento das principais referências teóricas ali utilizadas; cabe destacar, contudo, aquelas dentre as quais me parecem ter sido especialmente significativas para o desenvolvimento do trabalho como um todo, quanto aos temas fundamentais da pesquisa – teatro, música, musicalidade no teatro e teatro de rua. No campo do teatro, consultei frequentemente o Dicionário de Teatro (2003) de Patrice Pavis, como importante obra de referência aos estudos teatrais da atualidade, utilizando-o em alguns momentos, inclusive, como ponto de partida para propor uma discussão sobre a audiovisibilidade do espetáculo teatral.

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Quanto ao tema da musicalidade no teatro, foram de extrema valia os estudos de Béatrice Picon-Vallin sobre a obra de Vsevolod Meyerhold, presentes principalmente em A música no jogo do ator meyerholdiano (1989) e A arte do teatro: entre tradição e vanguarda: Meyerhold e a cena contemporânea (2006), assim como as reflexões de Bertolt Brecht sobre a música-gestus, presentes em seu livro Teatro dialético (1967). Outro trabalho que merece ser mencionado é A dramaturgia musical de Ésquilo: investigações sobre composição, realização e recepção de ficções ausiovisuais (2008), obra de envergadura por meio da qual Marcus Mota procede um verdadeiro desvelamento das dimensões performática e dramatúrgico-musical do espetáculo, tidas por ele como pressupostos para a compreensão das obras daquele dramaturgo. Embora voltadas para obras da antiga tragédia grega, as investigações desse estudioso brasileiro oferecem uma importante referência para o delineamento da recepção audiovisual do espetáculo teatral da atualidade. Vários textos de André Carreira, especialmente o seu livro Teatro de Rua (Brasil e Argentina nos anos 1980): uma paixão no asfalto (2007), representaram um suporte teórico essencial para direcionar e iluminar as discussões teatrais na perspectiva da especificidade da modalidade teatral de rua. Por meio das reflexões desse pesquisador, foi possível enfrentar a tentação de tecer generalizações a respeito de uma suposta


Introdução

musicalidade “no teatro”, uma vez que os espetáculos aqui analisados se inserem no universo singular do teatro de rua. No campo da música, recorri à obra O som e o sentido: uma outra história das músicas (1989), de José Miguel Wisnik, em alguns dos momentos mais cruciais da pesquisa, onde uma contextualização histórico-sociológica da música se apresentava como pressuposto indispensável à compreensão de determinados aspectos das encenações analisadas. A concepção abrangente desse autor sobre a música no ocidente também facilitou o entendimento do teatro como um fenômeno inscrito no social e no urbano. Já as inspiradoras obras O ouvido pensante (1991) e A afinação do mundo (2001), do compositor canadense Raymond Murray Schafer, além de oferecerem um dos conceitos musicais “chave” da pesquisa - paisagem sonora – significaram também um importante apoio no desafio de adentrar o universo sonoro no qual o espetáculo de rua está imerso e com o qual constrói, frequentemente, o sentido da cena. Cabe mencionar, aqui, a minha participação como aluna-ouvinte da disciplina “Musicologia” oferecida aos alunos do Programa de Pós-Graduação em Música do CLA/UNIRIO e ministrada pela Profª Drª Martha Tupinambá de Ulhôa8 durante o segundo semestre de 2010. Nessa ocasião, tive acesso a vários autores nas áreas de etnomusicologia (BLACKING, 1995; NATTIEZ, 2004; STEFANI, 2007) e musicologia (KERMAN, 1990; DUARTE, 2002; ULHÔA, 2003), cujas pesquisas constituíram um aporte teórico essencial para a análise musical dos espetáculos teatrais aqui enfocados. Duas obras, oriundas de outros campos do conhecimento, foram de importância capital nesta pesquisa. A primeira delas é Fenomenologia da percepção, do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), para quem a noção de fenomenologia “é a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é, e sem nenhuma deferência à sua gênese psicológica e às explicações causais que o cientista, o historiador ou o sociólogo dela possam fornecer” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 1-2). Utilizei esse pressuposto do filósofo francês como justificativa para fazer, da percepção audiovisual das obras teatrais a serem analisadas, “relatos do espaço, do tempo, do mundo vividos” por mim no momento mesmo da recepção dos mesmos. A adesão a este “estilo” de estudo para investigar o teatro de rua significa que, antes de qualquer esforço analítico-racional, parti da experiência vivida concretamente com e por meio dos espetáculos aos quais assisti. Foi pelo universo sensorial – e mais especificamente, o da sensorialidade auditiva - que tentei encontrar um estatuto científico para o teatro de rua, embora tenha obedecido ao imperativo de alguns procedimentos analíticos, como o “corte epistemológico” e a “dissecação” de certos trechos dos espetáculos, de uma frase musical, de um objeto sonoro. Mas, evitei fazer uso de um pensamento excessivamente “anatomicista” (MANDRESSI, 1999), buscando sempre que possível recorrer ao universo técnico-artístico para indicar um modo de proceder que “enquadra” temporária e provisoriamente um aspecto do fenômeno sonoro: um fragmento, uma dinâmica específica, um “ponto de escuta”, um “foco” ou mesmo um “zoom sonoro” (como propõe Marcus Mota) sem ter que separálo do conjunto sonoro ao qual pertence. 8

Professora que integrou, também, a Banca Examinadora no meu Exame de Qualificação, realizado em 14/09/2010.

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A CONTEMPORANEIDADE DO TEATRO DE RUA: POTÊNCIAS MUSICAIS DA CENA NO ESPAÇO URBANO

Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 3). Esse pressuposto fenomenológico, expresso nas palavras de Merleau-Ponty, contribuiu para a adoção de uma postura de escuta polifônica, capaz de dar prioridade a processos, movimentos, dinâmicas, fluxos, deslocamentos, acentuações, relações, correlações, articulações, conexões, entrelaçamentos, dissonâncias e consonâncias, termos que traduzem a natureza essencialmente viva e fluídica da matéria sonora, em lugar de uma análise semiológica “clássica”, voltada para o estudo de elementos musicais “retirados” do seu habitat natural, no caso desta tese, os espetáculos mencionados. Uma segunda obra se mostrou particularmente importante para a pesquisa, além daquelas referências ligadas mais diretamente ao teatro e à música: o livro Alegorias urbanas: o passado como subterfúgio (2006), da turismóloga brasileira Susana Gastal que, além de fornecer à pesquisa um conceito muito interessante para se pensar o teatro de rua na perspectiva da pós-modernidade – a praça – também confirmou a pertinência de se adotar, neste estudo, uma metodologia semiótica “pós-saussureana” – no dizer da autora – ao propor o estudo de um fenômeno a partir de matrizes conceituais fundamentais, tidas como “textos significantes” que se abrem à multiplicidade de sentidos aí implicados. A partir dessa referência é que foram selecionados, para a presente tese, os conceitos musicais de mousiké, escuta e paisagem sonora como matrizes “significantes” para discutir a musicalidade – do ator, do espetáculo, da cena teatral em espaço aberto – e vislumbrar as potências musicais do teatro de rua.

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O trabalho de campo envolveu uma coleta de dados audiovisuais realizada em diferentes momentos, principalmente por meio de filmagens de espetáculos teatrais de rua apresentados durante vários eventos teatrais dos quais participei e entrevistas com integrantes dos grupos, realizadas nessas ocasiões. Nesse sentido, foram muito pertinentes os métodos de “etnografia de rua” e “etnografia sonora”9, pela proposição da escuta sensibilizada das imagens sonoras da cidade, através da qual é possível buscar um caminho interessante de interpretação do fenômeno teatral em espaços abertos. Do vasto material audiovisual coletado desde o início da pesquisa, foram selecionados aqueles trabalhos teatrais que, pelas relações que estabeleceram com a linguagem musical, deram maior sustentação empírica às reflexões que eu pretendia desenvolver teoricamente. As consultas posteriores ao material audiovisual permitiram que gradativamente fossem se revelando distintas camadas de significação, favorecendo a construção epistemológica da musicalidade daqueles espetáculos a partir de sua textura sonora, carregada de sentidos, e não apenas de suas músicas, consideradas como unidades isoladas colocadas “dentro” da obra teatral. Mais ainda, o processo mostrou que a investigação da musicalidade no teatro não pode prescindir de instrumentos metodológicos próprios, se pretender superar uma concepção cartesiana de arte, isto 9 Métodos que vêm sendo desenvolvidos atualmente no âmbito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul pela equipe de pesquisadores do Banco de Imagens e Efeitos Visuais (BIEV), projeto ligado ao Departamento de Antropologia Social dessa instituição; os mesmos serão comentados no Capítulo 2.


Introdução

é, uma concepção definida por campos delimitados e por relações estritamente causais entre as partes de cada obra, pensadas de forma estática. Parece apresentar-se, aqui, um amplo campo de investigação que escapa, porém, aos limites deste estudo. No que se refere à descrição propriamente dita dos espetáculos teatrais, adotei as proposições metodológicas de Clifford Geertz (1978) no sentido de buscar uma interpretação densa dos mesmos, ou seja, procurei transformar a musicalidade desses espetáculos, inicialmente apenas descrita, em “um acontecimento com significado”, capaz de transcender o tempo do presente da cena para possibilitar estudos posteriores. Foi a partir dessas fontes de pesquisa e procedimentos metodológicos que pretendi alcançar o principal objetivo desta tese: demonstrar teoricamente o papel fundamental que a música desempenha na cena contemporânea, tendo o teatro de rua como o lócus privilegiado da pesquisa. A tese está estruturada em três capítulos. No primeiro, é abordada a questão da musicalidade do ator por meio de uma performance teatral - Mauro-Lauro-Paulo, o Homem-Banda - criada por um artista de rua. As discussões são acionadas por uma matriz conceitual fundamental – mousiké - a qual irá iniciar e conduzir uma reflexão em torno da audiovisibilidade do espetáculo, no intuito de demonstrar que corporeidade, teatralidade e musicalidade são esferas indissociáveis numa encenação criada a partir da bagagem musical do artista. O segundo capítulo é dedicado ao estudo da musicalidade da cena, a partir do espetáculo Ser TÃO ser: narrativas da outra margem, do grupo paulistano de teatro de rua Buraco d’Oráculo. Inicio questionando a noção de recepção enquanto processo estritamente visual, para propor a escuta cênica como um modo de ampliar os canais relacionais entre cena e público. O conceito musical “chave” empregado para desenvolver este raciocínio - imagem sonora – permite-nos vislumbrar a complexa rede de relações que se estabelecem entre espetáculo e espectador-ouvinte, a partir de uma escuta cênica. No terceiro e último capítulo, apresento uma discussão sobre a musicalidade da cidade, apoiando-me numa série de experiências teatrais desenvolvidas no centro da cidade do Rio de Janeiro pelo Grupo Tá Na Rua. Paisagem sonora é, aqui, a matriz conceitual utilizada para articular os sons do espetáculo ao ambiente, também sonoro, da cidade.

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Capítulo 1 - Mousiké

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Capítulo 1 - Mousiké

O Homem Banda - Por: Andy Marshall

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esta seção da tese, serão analisados aspectos performáticos de uma apresentação teatral de rua - Mauro-Lauro-Paulo, o Homem-Banda1 - em que habilidades musicais são especialmente exigidas do performer2. Neste espetáculo, o alto nível de exigência no âmbito especificamente musical pulveriza as fronteiras entre o ator/performer e o músico. É possível definir com exatidão qual a arte que o mesmo conhece e pratica? É, ele, “ator” ou “músico”? E, se é possível delimitar cada uma dessas áreas, onde termina uma e inicia a outra? Em que medida o espaço para o qual essa apresentação foi criada - ou seja, o da rua - interfere ou determina essa condição limítrofe? Tais questões serão desenvolvidas por meio da matriz conceitual mousiké – presente na dimensão audiovisual deste espetáculo teatral de rua onde a musicalidade do ator é o principal recurso expressivo, uma vez que se trata de um espetáculo solo. A referência ao antigo conceito grego de mousiké é utilizada como argumento teórico fundamental para responder às questões acima, problematizando a classificação acadêmica que divide a arte em artes espaciais ou visuais (arquitetura, escultura, pintura); artes temporais ou da audição (música, poesia e prosa) e artes do movimento (dança, teatro e cinema) (CAZNOK, 2008), com o objetivo de mostrar que as fronteiras que distanciam e atribuem funções delimitadas a cada uma daquelas expressões artísticas, são, no fundo, fruto de um pensamento teórico, técnico e analítico alheio à criação e à vivência artísticas. Como resultado dessa investigação, espera-se que a ideia de mousiké 1

Criação e produção da Cia Um Pé de Dois, de Porto Alegre (RS).

2 De acordo com Patrice Pavis, “o performer é aquele que fala e age em seu próprio nome (enquanto artista e pessoa) e como tal se dirige ao público, ao passo que o ator representa sua personagem e finge não saber que é apenas um ator de teatro. O performer realiza uma encenação de seu próprio eu, o ator faz o papel de outro” (PAVIS, 2003, p.284-285).

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possa ser compreendida como o pressuposto de atuação do performer/artista de rua. Convencionalmente, a música é tida como um dos diversos elementos de uma leitura semiológica do teatro - assim como a iluminação, o cenário, a maquiagem. A discussão que aqui inicia tem o intuito de ampliar a concepção, aí implícita, de que a música constitui um elemento “acessório” do espetáculo que, ou é acrescido à ação teatral (como trilha sonora, sonoplastia etc), ou é colocado em cena para interrompêla, como nos explica Tadeusz Kowzan: No que concerne à música aplicada ao espetáculo, sua função semiológica é quase sempre indubitável. Problemas específicos e muito difíceis colocam-se no caso em que ela é o ponto de partida de um espetáculo (ópera, balé). No caso em que ela é acrescentada ao espetáculo, seu papel é o de sublinhar, de ampliar, de desenvolver, às vezes de desmentir os signos dos outros sistemas, ou de substituí-los (KOWZAN, 1988, p.114). Coerentemente com esta concepção da música “aplicada” ao espetáculo, figura a do músico como o agente dessa “aplicação”. Ainda que sejam frequentes os espetáculos em que atores e músicos atuam nitidamente separados, confinados às suas respectivas técnicas expressivas, a abundância de situações em que a musicalidade do artista cênico na contemporaneidade é amplamente solicitada, evidencia que hoje não é mais possível manter essa clássica separação – nem no campo prático, nem no teórico – como condição única da música “no” teatro, particularmente em relação ao teatro de rua, cujas referências estéticas são repletas de musicalidade, seja esta popular, urbana “de massa” ou erudita3.

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Contudo, é possível perceber a existência de um paradoxo acerca da música no teatro de rua. Se, por um lado, esta é quase que onipresente, tanto como recurso de treinamento do ator dentro dos grupos quanto no de criação artística, por outro é desconsiderado enquanto elemento propriamente teatral. Um amplo espectro de possibilidades de compreensão e uso da música, dentro desse contexto, parece permanecer restrito à dimensão mais prática e imediata do fazer musical: tocar um instrumento, cantar ou dançar. Presente em menor ou maior grau, praticamente em todas as proposições teatrais de grupos, companhias e artistas de rua brasileiros investigados na primeira etapa deste estudo (tanto no aspecto pedagógico da formação do ator quanto no dos processos de concepção e construção do espetáculo), a música raramente recebe um tratamento teórico-conceitual mais aprofundado por parte de seus usuários mais diretos, os fazedores teatrais. De um modo geral, dá-se o mesmo no âmbito da produção científica, mesmo quando voltada para o teatro convencional de sala: os temas musicais mais aproximados que encontramos são, principalmente, os que abordam as questões técnicas ligadas à

3 Um caso exemplar é o do grupo Tá Na Rua, que em seus espetáculos de rua faz uso abundante de trechos de peças musicais de um repertório erudito, como a Abertura da ópera Carmen (Bizet), a Valsa do Danúbio (Strauss), entre diversas outras obras.


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voz do ator4 (fala articulada ou canto), ou à noção de tempo-ritmo5, de acordo com as reflexões de Constantin Stanislavski. Destacam-se, no campo da investigação rítmica no teatro, as importantes contribuições acadêmicas de Ana Dias (2000)6 e Jacyan Oliveira (2008)7 e, no de formação do ator, as de Ernani Maletta (2005)8 e Jussara Fernandino (2008)9, sendo esta última pesquisa particularmente importante para a presente tese uma vez que a sua autora buscou, nas poéticas teatrais dos maiores encenadoresreformadores do século XX, elementos musicais que possibilitassem o delineamento da noção de musicalidade, num contexto de interação música-teatro. Na esfera da dança - área das artes cênicas que estabelece notória relação com a música -, encontramos o corpo como o objeto privilegiado das reflexões teóricas. O corpo e seus discursos, a relação deste com o espaço e o tempo, a subjetividade, a expressividade, o corpo na sociedade e na história, a dimensão política do corpo, são alguns dos temas que encontramos com maior frequência como foco de interesse de seus pesquisadores, em detrimento dos aspectos musicais que, não obstante, lhe são indissociáveis. Assim, o estudo da “música no teatro” parece ainda estar circunscrito ao âmbito quase que exclusivo dos teóricos da música, principalmente, daqueles que elegem a ópera como objeto de pesquisa. Parto do princípio de que há uma diferença fundamental entre pensar a música como elemento estritamente técnico e externo ao teatro, e pensar a música - quando no âmbito do teatro - como fenômeno intrinsecamente teatral. O modo de pensamento inerente ao primeiro caso implica numa visão do teatro onde coexistem duas linguagens artísticas completamente estanques, capazes de tecer entre si inúmeras possibilidades relacionais, das menos às mais distantes10 que, não obstante, oculta ainda uma concepção cartesiana de arte. Talvez isso explique o paradoxo da música “no teatro”: embora onipresente, a música não é “vista” (com o perdão do jogo de palavras) enquanto objeto de investigação teórico-conceitual por parte dos pesquisadores teatrais – de sala ou de rua -, uma vez que não a consideram um objeto “teatral”, mas “musical” e, portanto, da alçada exclusiva dos profissionais desta última. O resultado mais visível desse modo de conceber a música se dá na segmentação profissional de um projeto teatral – na contratação de músicos, dançarinos, de regente e diretor musical, por exemplo, para a preparação do elenco e subsequente realização de um espetáculo – onde os discursos artísticos frequentemente não encontram 4 FORTUNA, M.A. A performance da oralidade teatral. São Paulo: Annablume, 2000; GAYOTTO, L.H. Voz: partitura da ação. São Paulo: Summus, 2002; ALEIXO, F. Corporeidade da voz: voz do ator. Campinas: Komedi, 2007. 5

BONFITTO, M. O ator-compositor: as ações físicas como eixo. São Paulo: Perspectiva, 2007.

6 Dias, A. A musicalidade do ator em ação: a experiência do tempo-ritmo. Dissertação de Mestrado em Teatro. UNIRIO, 2000. 7 OLIVEIRA, J. C. O ritmo musical da cena teatral: a dinâmica do espetáculo de teatro. Tese de Doutorado em Teatro. UFBA, 2008. 8 MALETTA, Ernani C. A formação do ator para uma atuação polifônica: princípios e práticas. Tese de Doutorado em Educação. UFMG, 2005. 9 FERNANDINO, J. R. Música e cena: uma proposta de delineamento da musicalidade no teatro. Dissertação de Mestrado em Artes. UFMG, 2008. 10 Associação, oposição, complementaridade, cruzamento, diálogo, polifonia, antagonismo, paralelismo, contradição, espelhamento, duplicidade, entrelaçamento, interpenetração, interação etc.

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pontos comuns em meio às diferenças conceituais, metodológicas e técnicas, levando a divergências muitas vezes inconciliáveis durante a prática cotidiana dos ensaios. O que proponho, aqui, é pensar a música não como “música no teatro” (expressão que apresenta uma separação nítida entre as duas artes e a absorção de uma delas na outra), mas pensar essa relação de modo radicalmente diferente, em que a música é teatro, tal como foi concebida em seu berço comum, a Grécia Antiga. Assim vista, a música na esfera teatral pode ser pensada, analisada e inclusive fruída, enquanto objeto teatral e não, exclusivamente, musical. Caminhar em direção a esse horizonte parece ser ainda uma tarefa quase impossível, dadas as circunstâncias que engendraram tanto a música quanto o teatro no ocidente, levando a uma dissociação aparentemente insolúvel. É preciso levar em conta, por exemplo, a dificuldade de se escapar das armadilhas impostas pela linguagem verbal escrita, que tende a restaurar inadvertidamente a mesma forma de pensamento; assim, no percurso teórico deste estudo muitas vezes as palavras “música” e “teatro” aparecem inevitavelmente separadas, no sentido de se referirem a campos artísticos singulares, estruturados por suas próprias linguagens, formas e procedimentos.

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Algumas estratégias, contudo, podem ajudar-nos a, pelo menos, esboçar uma tentativa de abrandamento dos limites rígidos entre essas duas esferas construídas historicamente pela sociedade ocidental. Pela íntima relação que estabelece com o corpo e o movimento humano – principalmente em função do elemento impulsionador ritmo –, a música esteve presente nas indagações de importantes pesquisadores de teatro e dança ao longo do século XX, como Stanislavski, Meyerhold, Dalcroze, Laban, entre outros que muito contribuíram para a compreensão das artes cênicas como manifestações humanas em que o teatral, o musical e o corporal não podem ser vistos como entidades estanques. As obras desses autores e seus discípulos continuam sendo, em larga medida, as principais fontes de consulta sobre o assunto. Porém, à medida que avançamos na contemporaneidade, faz-se necessário um maior aprofundamento das questões sonoro-musicais na esfera específica do teatro, uma vez que a “música”, compreendido como arte isolada, parece não dar conta do universo sonoro em que a cena da atualidade se encontra. Por essa razão o estudo procurará, antes de tudo, alargar o conceito em direção à noção de musicalidade, lugar onde aquelas três dimensões do humano se encontram, interpenetram e geram a teatralidade presente nas proposições estéticas do artista de rua Mauro Bruzza, a partir do seu espetáculo-solo Mauro-Lauro-Paulo, o Homem-Banda, o qual será aqui enfocado e analisado. Recorri à pesquisa realizada por Jussara Fernandino (2008), que investiga a interação música-teatro a partir do mapeamento da musicalidade no universo cênico, tendo como ponto de partida as estéticas referenciais dos expoentes do teatro do século XX - segundo ela, Stanislavski, Meyerhold, Artaud, Brecht, Decroux, Grotowski, Brook, Barba e Wilson - em busca de uma pedagogia cênico-musical voltada especificamente para a musicalidade no teatro e a musicalidade do ator. Como resultado da pesquisa, a autora descobre que “em todas as poéticas [por ela estudadas], no próprio processo de formação exigido pelas inovações de cada pensamento estético, atividades musicais eram vivenciadas e aplicadas em meio à


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sua função teatral” (FERNANDINO, 2008, p. 138), evidenciando assim o significativo potencial que a integração música-teatro representou no contexto da renovação teatral iniciada por Stanislavski já na passagem do século XIX para o XX. Além disso, a análise dessas distintas poéticas revela que, em suas trajetórias, seus propositores fundaram suas próprias escolas e métodos, onde o emprego de princípios musicais representava uma estratégia fundamental na formação de um novo ator. Verificou-se a presença de elementos e procedimentos musicais nos processos de preparação do ator, tanto em estéticas que proporcionam a formação musical tradicional e prévia ao ator (solfejo, rítmica, canto, teoria musical), quanto às que optam pela pesquisa e atividades empíricas dentro do universo sonoro (FERNANDINO, 2008, p. 136). A autora constata, nesse trabalho, que a bagagem musical adquirida pelo ator torna-se um mecanismo de aprimoramento da representação, tanto nas estéticas que privilegiam o texto, quanto naquelas mais voltadas para a investigação e processos de criação teatral. Contudo, ela pondera que “apesar desse termo [musicalidade] constar vez por outra na literatura teatral ou na prática e discurso dos artistas, não foi encontrada no âmbito da pesquisa uma explicitação efetiva desse conceito” (FERNANDINO, 2008, p. 14), decidindo-se por não propor um conceito, mas delimitar o estudo à investigação dos processos de “rastreamento, identificação e mapeamento” dos elementos da musicalidade presentes no teatro. Creio, porém, que uma definição de musicalidade (ainda que provisória), seja necessária para adentrarmos na esfera musical quando esta diz respeito ao ator, ao espetáculo e à rua, isto é, no contexto interacional teatro-música aqui abordado. Deste modo, será trilhado um percurso conceitual que possibilite uma possível aproximação ao mesmo. Para isto, optei por abordar primeiramente o antigo conceito de mousiké – o qual admitia a coexistência de campos do conhecimento e da cultura que ainda, hoje, são muitas vezes compreendidos como instâncias separadas.

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1.1 O conceito de Mousiké

A

s raízes etimológicas do termo grego mousiké revelam que este se referia a um conjunto de atividades integradas numa mesma manifestação, a qual podia incluir a música propriamente dita, a poesia e a dança: mousiké, adjetivo de mousikós, tinha estreita relação com as mousas (musas), deusas que, acreditava-se, inspiravam o conhecimento e a criatividade aos homens. Aos poucos esse significado foise transformando, até chegar à nossa ideia atual, mais restrita, de “música” enquanto linguagem dos sons. Em Música e Filosofia: estética musical (2005), Lia Tomás nos mostra como, ao longo da história no ocidente, foram atribuídos à música diferentes significados e níveis de importância, de modo que as suas funções, os conceitos que a envolvem e o papel que desempenha na sociedade passaram por várias transformações.

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Assim, por exemplo, se na Idade Média “uma bela melodia deveria levar a uma fruição transcendente, supra-sensível, a um encontro com o divino, pois o conceito de beleza estava associado a Deus, à sabedoria eterna” (TOMÁS, 2005, p.4), no Renascimento a música grega da Antiguidade foi reinterpretada pelos humanistas e, na Modernidade dos séculos XVII e XVIII, toda discussão sobre a música perpassou os temas da natureza, razão e progresso, o momento atual – desde a década de 1960 – se define como o da conquista de um novo olhar sobre a música, com o advento de manifestações híbridas cujas propostas ultrapassam o conhecimento técnico de diversas áreas envolvidas. Instalações, eventos e espetáculos multimídia questionam pressupostos teóricos e estéticos pautados numa concepção autônoma e absoluta das obras de arte, desligada de quaisquer outros aspectos além daqueles que elege como “seus”. A condição múltipla da música na contemporaneidade obriga-nos, assim, a uma revisão histórica que inevitavelmente conduz até os seus primórdios na Grécia Antiga, pois nesse contexto, adentrar no universo da “música” incluía estudar poesia, dança e praticar ginástica, além de refletir sobre os seus vínculos com a matemática, a medicina, a psicologia, a ética, a religião, a filosofia e a vida social, constituindo uma verdadeira teia de relações, que apenas a complexidade da situação atual nos permite vislumbrar. Segundo Lia Tomás, a música na sociedade grega exercia um papel de importância capital, pois suas conexões com outros campos do saber ultrapassam em muito o sentido comum do que se entende por música, isto é, como um fenômeno audível que pode ser percebido sensorialmente” (TOMÁS, 2005, p.13).


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Esse entendimento multiforme do termo mousikê na civilização grega se deve à associação religiosa com as musas11. De acordo com a mitologia grega12, quando Zeus derrota Cronos, e todo o poder do universo cai em poder dos Olímpicos, decide engendrar os seres que irão cantar para sempre a sua vitória. O deus supremo escolhe Mnemósine como parceira (a Memória, uma titânia, filha do Céu e da Terra). Amada durante nove noites por Júpiter, ela dá à luz nove deusas, as Musas: Euterpe, Calíope, Clio, Talia, Melpômene, Terpsícore, Érato, Urânia e Polímnia. Euterpe era a musa que presidia a música, tendo inventado a flauta e outros instrumentos de sopro; Calíope, musa da eloqüência e da poesia épica, é a quem os poetas se dirigiam, buscando inspiração. Os gregos fizeram dela a mais sábia das musas13 e mãe de Orfeu, inspirador do orfismo. Da pátria original, a Trácia, o culto às musas estendeu-se para a Beócia. Em Delfos, eram veneradas no templo de Apolo, de quem eram seguidoras (o que as diferencia do orfismo, cujo deus protetor era Dioniso e suas seguidoras, as bacantes). Na história é Hesíodo14, aedo15 que viveu na Beócia, quem as nomeia individualmente. Além da arte, as musas também presidiam ao pensamento sob todas as suas formas: eloquência, persuasão, sabedoria, história, matemática, astronomia. Os poetas as invocavam para que lhes inspirassem a verdade. Por isso, foram consideradas deusas protetoras da educação (e, por extensão, da poesia e da cultura em geral). Havia santuários em sua honra, em várias cidades, uma vez que as musas faziam parte do panteão “oficial”, ao qual o culto de Dioniso veio se contrapor no século VI a.C., com o estímulo dos tiranos que pretendiam enfraquecer a antiga aristocracia grega (supostamente descendente daqueles deuses). Assim, durante esse período houve na Península Ática uma expansão de cultos populares ou estrangeiros. Dessa forma, o de Dioniso, originário da Trácia, passou a ser o núcleo da religiosidade órfica16. Os órficos acreditavam na imortalidade da alma e na metempsicose, ou seja, a transmigração da alma através de vários corpos, a fim de efetivar sua purificação. A alma aspiraria, por sua própria natureza, a retornar a sua pátria celeste, às estrelas; mas, para se libertar do ciclo das reencarnações, o 11 O termo oposto (amousos, “não-musical”) referia-se a pessoas ignorantes e incultas; além do seu sentido mais convencional, mousiké era também utilizado como sinônimo de filosofia; a palavra que lhe dá origem, mousa, associa-se ao verbo manthanein, “aprender”, verbo do qual se origina “matemática” (TOMÁS, 2005, p. 13). 12 Enciclopédia MITOLOGIA, vol. 2. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1973. 13 São as outras musas, com as respectivas áreas que protegiam: Clio (história); Tália (comédia); Melpômene (tragédia); Terpsícore (dança); Érato (poesia lírica e erótica); Polímnia (oratória e hinos ditirâmbicos); Urânia (astronomia e ciências exatas em geral) 14 Primeiro aedo de que se tem registro, o pastor e agricultor Hesíodo deixou, escritas e “assinadas”, no século VIII a.C., as suas obras Teogonia e Os trabalhos e os dias, um relato da origem dos deuses gregos, segundo ele inspirado pelas musas. Essa genealogia é considerada um primeiro pensamento racional, causal, sobre o mundo. Diferentemente de Homero, que exalta a areté (virtude do guerreiro), a qualidade moral exaltada por Hesíodo é a justiça, fazendo uma passagem para o pensamento filosófico que iria despontar no século VI a.C. (Os pensadores, 1991). 15 Os aedos eram poetas-músicos-cantores que, desde séculos antes de Homero, freqüentavam a corte micênica. Eram famosos pelas métricas que criavam, entre elas o verso preferencial da poesia épica, o hexâmetro datílico (seis pés de quatro tempos) (REINACH, 2011). 16 O orfismo (termo originado de Orfeu, quem primeiro recebeu a revelação dos mistérios de Dioniso, confiados aos iniciados sob a forma de poemas musicais) era uma religião essencialmente esotérica (Os pensadores, 1991).

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homem necessitava da ajuda de Dioniso, deus libertador que completava a libertação preparada pelas práticas catárticas (Os pensadores, 1991, p. XVII). Para os órficos, libertar a alma do corpo significava o caminho da salvação, o que simbolicamente foi imortalizado no mito de Eurídice, a alma prisioneira que Orfeu tenta, inutilmente, trazer de volta do mundo dos mortos. Na efetivação do êxtase órfico, a música representava um recurso indispensável. Além de ser um meio de preservação e difusão dos conteúdos doutrinários, a música seria um fator propiciador “das disposições da alma”, permitindo a exaltação, a embriaguez, a ruptura dos limites, o arroubo e a libertação orgiástica dos ritos dionisíacos. Dinoniso era um deus libertador, que conduzia a alma para além do “cárcere provisório” do cotidiano, fazendo a alma experimentar o que estaria para além, numa visão do extracotidiano. Em função desse conteúdo de certo modo “transgressor”, a religiosidade órfica se difundiu amplamente nas camadas populares da sociedade grega. A musicologia17 atribui ao filósofo Pitágoras de Samos, que viveu na Jônia em cerca de 580-497 a.C., a primeira tentativa de teorização da música que, inclusive, sustentou as reflexões musicais surgidas em períodos históricos subsequentes, da Idade Média ao século XX. A inovação trazida por esse pensador é que ele transformou o sentido da “via de salvação” proposta pelo orfismo: no lugar de Dioniso, colocou a Matemática.

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Pitágoras fundou, em Crotona, uma confraria científico-religiosa onde criou um sistema global de doutrinas transmitidas oralmente, cuja finalidade era a de descobrir a harmonia universal que preside o cosmo e traçar, de acordo com ela, as regras da vida e do governo das cidades. Na doutrina pitagórica, a purificação da alma resulta não do êxtase e dos rituais, mas do trabalho intelectual através do qual se atinge a harmonia – o equilíbrio que a natureza numérica das coisas possui - o que representa um tipo de laicização do orfismo. A concepção de Pitágoras levou-o à descoberta de que o som produzido por uma corda em vibração varia de acordo com a sua extensão. Por meio de experimentos com o monocórdio18, o filósofo-músico descobriu as relações entre certos intervalos sonoros e os respectivos comprimentos de uma corda vibrante. Para obter um intervalo de oitava em relação ao som básico emitido pela corda, esta deveria ser pressionada exatamente no seu ponto médio; para o de 5ª, no ponto que corresponde a 2/3 de seu comprimento. A partir desse procedimento simples, Pitágoras obteve variados intervalos sonoros a partir de diferentes proporções, descrevendo assim o fenômeno acústico da série harmônica19. 17 A musicologia é o estudo da música em suas perspectivas históricas, antropológicas, filosóficas e sociológicas, ou seja, analisa as questões musicais tendo em vista referências externas a ela. 18 Instrumento musical de uma única corda, fixada entre dois cavaletes sobre uma caixa de ressonância, a partir do qual podem ser obtidas diferentes alturas conforme a corda é tocada solta ou pressionada em diferentes pontos de sua extensão (GOLDEMBERG e ZUMPANO, s.d.). 19 Em Física, a série harmônica corresponde ao conjunto de ondas formado por uma frequência fundamental e todos os múltiplos da mesma. Cada som (ou nota, ou altura de frequência) dos instrumentos musicais é constituído, na verdade, por uma soma de sons que formam a série harmônica. Destes, o mais grave é chamado primeiro harmônico ou fundamental (f) e é a mais facilmente perceptível. Os demais harmônicos, secundários, contribuem em outros aspectos do som, principalmente o timbre (GOLDEMBERG e ZUMPANO, s.d.).


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Descobrindo um princípio matemático na música, o filósofo inaugura um pensamento científico-racional no campo, até então inescrutável, do mito arcaico. O pensamento pitagórico evoluiu e expandiu-se, influenciando todo o desenvolvimento da ciência e da filosofia gregas, e levando a todos os setores da cultura o ideal de salvação do homem e da polis através da proporção e da medida. Considera-se, com base nesses dados históricos, que Platão seja herdeiro da tradição órfico-pitagórica, berço comum das ideias religiosas, filosóficas e científicas posteriores. No Fragmento 11, Filolau - o principal filósofo pitagórico da segunda metade do século V – permite-nos entrever o duplo aspecto, filosófico-científico e religioso, que atravessa toda a doutrina: Mas pode-se ver a natureza do número e sua potência em atividade, não só nas (coisas) sobrenaturais e divinas, mas ainda em todos os atos e palavras humanos, em qualquer parte, em todas as produções técnicas e na música (Os pensadores. Os présocráticos, 1991, p.151). Os pitagóricos buscam na Matemática os princípios que os auxiliem a compreender as forças impenetráveis e encontram na acústica20 a comprovação de que nada existe em qualidade; em essência, tudo se explicaria pelas suas quantidades. É a ideia do número como medida de perfeição que há em todas as coisas do universo. Lia Tomás observa que, para os pitagóricos, “os números eram entendidos como uma realidade independente e, por isso, eram responsáveis tanto pela harmonia, o princípio que governa a estrutura do mundo, como também simbolizavam as qualidades morais e outras abstrações” (TOMÁS, 2005, p.15). Verifica-se, desse modo, a presença do pitagorismo na base do pensamento científico ocidental moderno, com a sua tendência a privilegiar os aspectos quantitativos, na investigação de seus objetos. O ponto nodal que liga a música à matemática está no pressuposto de que toda qualidade provém de uma quantidade – o qual se origina num fenômeno acústico, comprovado por Pitágoras. Ou seja, a tese do filósofo se fundamenta na música. Para o filósofo Nietzsche, os pitagóricos são os precursores de um pensamento “quantitativo” e vão encontrar, na música (mais precisamente, na acústica), essa comprovação: A música, com efeito, é o melhor exemplo do que queriam dizer os pitagóricos. A música, como tal, só existe em nossos nervos e em nosso cérebro; fora de nós ou em si mesma (no sentido de Locke), compõe-se somente de relações numéricas quanto ao ritmo, se se trata de sua quantidade, e quanto à tonalidade, se se trata de sua qualidade, conforme se considere o elemento harmônico ou o elemento rítmico. No mesmo sentido, poder-se-ia exprimir o ser do universo, do qual a música é, pelo menos em certo sentido, a imagem, exclusivamente com o auxílio de números [...] Trata-se de encontrar fórmulas matemáticas para as forças absolutamente impenetráveis. Nossa ciência é, nesse sentido, pitagórica (NIETZSCHE, 1991, p.28). 20 Até então inexistente, a Acústica é hoje a área da Física que se ocupa com o estudo do som (ondas sonoras) enquanto fenômeno físico.

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1.2 Platão e a música

O

s comentários e alusões do filósofo Platão (427-347 a.C.) à música, dispersos por vários dos seus célebres diálogos (República, Fédon, Górgias, Fedro, Leis, Timeu) revelam que a sua opinião a respeito dessa arte oscila entre dois extremos: ou a condena radicalmente, ou a considera uma suprema forma de beleza. De um modo geral, a concepção negativa sobre a música corrobora a postura “desqualificatória” que a classe aristocrática grega (da qual Platão fazia parte) mantinha em relação aos trabalhos manuais, considerados inferiores dentro da sociedade ateniense. Ela está presente, por exemplo, no diálogo Górgias, em que a música aparece diretamente associada com o conceito de techné, ou seja, “é considerada apenas como uma técnica, uma habilidade manual que requer uma destreza” (TOMÁS, 2005). Já na República21, por intermédio de Sócrates, conversa com Glauco sobre a educação musical, detalhando quais os aspectos dessa arte seriam mais adequados para a formação do cidadão grego. Cabe, entretanto, a ressalva de que Platão confere tal prerrogativa à música cantada - entendida por ele como um composto indissociável de “palavras, harmonia e ritmo” – e não à música instrumental, tida como inferior (sobretudo aquela executada em instrumentos considerados não-apolíneos, como a flauta e o aulos). Eis o trecho do diálogo X (Livro III) que ilustra essa concepção hierárquica:

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“Sócrates – Creio que você, pelo menos, deve estar em condições de falar sobre este primeiro ponto, isto é, de dizer que uma melodia se compõe de três elementos: palavra, harmonia e ritmo. Glauco – Quanto a isso, certamente que sim. Sócrates – Mas entre o canto e a simples recitação não há diferença alguma, com relação ao fato de que ambas devem ser expressas nas formas e nos modos que acabamos de precisar. Glauco – É verdade. Sócrates – E a harmonia e o ritmo devem corresponder às palavras. Glauco – Como não! Sócrates – Dizíamos, porém, que lamentos e gemidos não devem fazer parte dos discursos. Glauco – Sem dúvida alguma”. (PLATÃO, 2007, p. 102)

21 PLATÃO. A República. Obra Completa, Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, vol. 4 e 5, 2ª edição. São Paulo: Editora Escala, 2007.


Capítulo 1 - Mousiké

Mais à frente, depois de discorrer sobre as harmonias, elogiando as “enérgicas” (dóricas, ligadas à coragem do guerreiro) e as “voluntárias” (frígias, associadas à temperança do homem justo), e condenando as “moles e em voga nos festins” como a jônica e a lídia, a argumentação de Platão prossegue nos seguintes termos:

“Glauco – As harmonias que você me convida a reservar são exatamente aquelas duas de que falávamos antes. Sócrates – Então em nossos cantos e melodias não necessitaríamos dos instrumentos de muitas cordas e ricos em harmoni. Glauco - Acho que não. Sócrates - Então, não nos interessaria encorajar os artesãos que fabricam trígonos, petidas, nem outros instrumentos com muitas cordas e muitas harmonias. Glauco - Evidente que não. Sócrates - E os que fabricam flautas, bem como os tocadores de flauta, seriam aceitos em nosso Estado? Não seria este talvez o instrumento mais rico, e além disso os instrumentos que modulam todas as harmonias não seriam imitações da flauta? Glauco - É claro que é assim. Sócrates - Assim, para a cidade restariam a lira e o alaúde, ao passo que para os pastores nos campos, a gaita de fole. Glauco - Parece que é quanto se infere de nosso discurso. Sócrates - De resto, não nos portaríamos de maneira estranha se preferíssemos Apolo e seus instrumentos a Mársias e suas invenções. Glauco - Por Zeus! Não me parece mesmo. Sócrates - Pelo cão! Quase sem nos darmos conta disso, livramos o Estado da moleza de que falávamos há pouco! Glauco -Fazendo isso, agimos de maneira sábia”. (PLATÃO, 2007, p.103-104)

Em Platão existe, portanto, uma dicotomia entre o ato de tocar um instrumento e o de cantar/poetar. No primeiro caso, o domínio da técnica instrumental pelo artista não se coaduna com as questões ético-educativas pretendidas por Platão para o Estado ideal uma vez que, enquanto trabalho manual, pertence à ordem da techné e como tal não deve ser tomado como modelo de cidadania; antes, a sua prioridade é a interpretação individual, que não passa por aqueles propósitos gerais e coletivos. Com base no exposto acima, é possível supor que no plano da política, o posicionamento do filósofo de oposição à música instrumental guarda uma ressonância com a eclosão dessas práticas dentro das competições artísticas públicas que, sob os auspícios de

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Dioniso, vinham desde o século VI sendo disseminadas entre as camadas populares do povo, constituindo, portanto, uma possível ameaça ao equilíbrio e à “harmonia” grega (nos termos de sua aristocracia, bem entendido). Já a música cantada, em sua estreita associação às palavras, reafirmava o valor social inquestionável que o poder verbal de persuasão nelas contido (fruto do pensamento racional, atributo dos nobres), desfrutava dentro da sociedade ateniense. A esse respeito, comenta Wisnik em O som e o sentido: O transe dionisíaco, que é representado pelo aulos (a flauta popular), é condenado, ao que tudo indica, como música rítmica a serviço de uma sacralidade dionisíaca (música vista implicitamente como dissolvente, identificada com a voz dos não-cidadãos, das “minoridades” – mulheres, escravos e grupos camponeses alijados do controle do estado – sendo atribuídos aos escravos os ritmos considerados não-harmônicos). Ao lado disso, a música coloca-se a serviço da palavra: o significante musical puro, que não articula significações, força dionisíaca latente, é regulado por um código de uso que faz com que ele se subordine ao significado apolíneo. A ruptura entre uma música cívica e outra dionisíaca, atestada tanto pel’A República como pela Política de Aristóteles, será definitiva para o desenvolvimento cindido da música na tradição ocidental: ela prenuncia, e já promove, a separação entre a música das alturas (considerada equilibrada, harmoniosa, versão sublimada da energia sonora purgada de ruído e oferecida ao discurso, à linguagem, à razão) e a música rítmica (música do pulso, ruidosa e turbulenta, oferecida ao transe) (WISNIK, 1989, p.95).

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Em uma passagem da República, por intermédio de Sócrates, Platão condena os músicos que, ao construírem uma teoria musical, privilegiam a experiência sensorial do “ouvir”, em detrimento dos aspectos filosófico-matemáticos que a concepção grega de música implica. Segundo Tomás, ao relacionar a “música audível” com o fenômeno sonoro e a “música inaudível” com o pensamento conceitual, o filósofo se reaproxima das antigas concepções de Pitágoras e inaugura duas vertentes complementares para a música, coerentes com o seu ideário: na primeira, enquanto instrumento educativo, o propósito da música “audível” alcança o seu sentido mais elevado quando as melodias e harmonias “corretas”22 são ouvidas, propiciando ao jovem nobre o equilíbrio emocional adequado à sua condição de liderança na sociedade; na segunda, enquanto conceito filosófico, a música “inaudível” torna-se um instrumento do pensamento e do conhecimento, pois a harmonia representa, para cultura grega, a união de elementos conflitantes convivendo num todo organizado, ou seja, a ordem reinante no universo. A harmonia (mais inclinada para a metafísica) e a música (mais voltada para o fenômeno concreto e audível) apresentam significados bem diferentes e o papel desempenhado pelo som nesses dois campos torna-se distinto. No caso da harmonia, os intervalos e as escalas musicais são apenas demonstrações práticas da concepção de ordem e equilíbrio, e a sonoridade é completamente irrelevante; já para a música, como um composto de melodia, poesia e dança, o som torna-se essencial (TOMÁS, 2005, p.18). 22 Dóricas e frigias, por exemplo.


Capítulo 1 - Mousiké

Quanto ao aspecto da “música audível” e do “ouvir”, acima mencionados, ainda é importante lembrar que, para a sociedade grega arcaica, cada modo musical presente em sua cultura - jônico, dórico, eólio, lídio e frígio, além de outros derivados (PAZ, 1994) - era considerado portador e eliciador de um determinado estado de alma. Por isso, alguns eram considerados “bons” e outros, “maus”, provavelmente em função de motivações ideológicas relacionadas às diferentes regiões de onde provinham. Segundo Nasser (1997), os princípios musicais éticos e estéticos são tratados por Platão principalmente na República e nas Leis. A música deveria exaltar as boas qualidades no indivíduo, suscitando o significado de ordem, dignidade, capacidade de decisão, equilíbrio, simplicidade e temperança. As formas de expressão rítmicas, melódicas e poéticas eram determinadas por normas que conduzissem o indivíduo a adquirir os conceitos de concordância e proporção e, assim, ao equilíbrio da alma, função maior da música. O Estado grego regulamentava que todos deveriam ter educação musical, até a idade de trinta anos. Em Atenas, Tebas e Esparta todos os cidadãos livres deveriam participar de atividades corais. Esta prática era muito difundida, pois o canto era o meio através do qual os eventos históricos e grandes feitos eram contados às novas gerações. A relação entre música e política, vigente na época de Platão, fica explícita, por exemplo, no fato de que a palavra nómos (norma) designava tanto uma melodia tradicional quanto uma lei moral, social e política do Estado grego. As melodias tradicionais eram compostas por unidades estruturais (nómoi) que, segundo a historiografia da música ocidental, teriam se originado em culturas orientais ainda mais antigas e representavam a força dinâmica da música. A doutrina do ethos23, da qual Platão era defensor, postulava que a ordenação, diferenciação e equilíbrio entre os componentes rítmicos, melódicos e poéticos das melodias constituíam um fator determinante na sociedade, pela ação da música sobre os estados de espírito dos indivíduos. Esses efeitos poderiam ocorrer de maneiras distintas: induzindo à ação (ethos praktikón); manifestando a força e o ânimo (ethikón); provocando a fraqueza moral (ethos malakón ou threnôdes); produzindo um estado de inconsciência, associado aos ritos dionisíacos e ao êxtase (ethos enthousiastikón). Assim, a música tem o poder de agir e modificar a conduta do indivíduo, fortalecendo a sua ação ou, ao contrário, enfraquecendo-o. Por isso, a doutrina é considerada o paradigma da República de Platão, refletindo o espírito da polis clássica ideal (NASSER, 1997, p. 243). Essa concepção se relacionava, ainda, com as qualidades timbrísticas dos instrumentos. Por exemplo, a cítara era considerada o meio ideal para expressar o ethos dos hinos litúrgicos, dedicados a Apolo, por veicular um caráter ético viril, grave e majestoso. Em função disso, foi este o instrumento escolhido por Platão para permanecer na República, ao lado da lira. Associada ao ethos da cítara está a melodia dórica, considerada a verdadeiramente helênica: austera, firme, capaz de enfrentar desafios. 23 Ethos é, na antiga cultura grega, um valor de identidade social. Significa o modo de ser, o caráter, o comportamento do homem, dando assim origem à palavra ética. Na doutrina, o ethos está relacionado ao conjunto de hábitos e ações que visavam o bem comum da comunidade; por isso era dada muita importância aos ethos dos modos, instrumentos e timbres musicais, pois deles dependia o bom funcionamento da sociedade.

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A CONTEMPORANEIDADE DO TEATRO DE RUA: POTÊNCIAS MUSICAIS DA CENA NO ESPAÇO URBANO

Posteriormente, a questão do hedonismo na música, ou seja, do prazer imediato proporcionado pela escuta, é introduzida na filosofia grega por meio da obra Política, de seu discípulo Aristóteles (384-322 a.C.). A partir desse tema, são novamente discutidos quais seriam os verdadeiros propósitos dos estudos musicais na educação, agora considerados como mais adequados para o entretenimento e o relaxamento após o estudo. Seguidor da doutrina do ethos tal como seu mestre, Aristóteles também associa certas qualidades morais, de nobreza, ao ato de avaliar uma obra pela sua escuta. Por isso, na sua proposta de educação o ensino musical enfatiza também a escuta e não a prática instrumental. Julgar adequadamente é uma prerrogativa de nobreza, e o conhecimento musical é apenas um exercício dessa capacidade de julgamento. Assim, a inclusão da música na educação, por Aristóteles, se justifica pelos pressupostos filosóficos e morais que, nela, subjazem.

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Capítulo 1 - Mousiké

1.3 A mousiké no teatro grego

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despeito das implicações sociais e políticas que a música oferecia aos filósofos clássicos, no mesmo período (século V a.C. principalmente) o teatro grego florescia em Atenas, homenageando Palas Atena nas Panatenéias e logo depois Dioniso, nas Grandes Dionisíacas. Nestes grandes festivais públicos, a música representava uma função essencial, por meio principalmente do coro. A historiógrafa Margot Berthold explica-nos que “os componentes dramáticos da tragédia arcaica eram um prólogo que explicava a história prévia, o cântico de entrada do coro, o relato dos mensageiros na trágica virada do destino e o lamento das vítimas” (BERTHOLD, 2001, p.107). Ésquilo, o primeiro grande poeta trágico da Antiguidade grega (seguem-no, depois, Sófocles e Eurípedes) obedecia a essa estrutura básica, antepondo ao coro dois atores e mais tarde, três. A vida religiosa, intelectual e artística da cidade-Estado de Atenas tinha, como ponto culminante, as Grandes Dionisíacas. Ali, os mais renomados tragediógrafos apresentavam e competiam com suas respectivas tetralogias: três tragédias e uma peça satírica concludente. O caráter ritualístico que impregnava o evento não impedia a intensa participação do público – formado por sacerdotes de Dioniso, autoridades, convidados especiais, juízes, coregas24, autores, jovens, mulheres e escravos (desde que acompanhados por seus senhores) – com salvas de palmas, batidas de pés e assovios. Para fins deste estudo, Berthold nos dá duas importa ntes informações a respeito da cena trágica no anfiteatro grego: primeiro, que “a condição necessária para essa experiência comunitária era a magnífica acústica do teatro ao ar livre da Antiguidade”. E, em segundo, que “o plano visual era menos importante do que a moldura humana para os sofrimentos do herói: o coro, que participava dos acontecimentos como comentador, informante, conselheiro, e observador” (BERTHOLD, 2001, p.114). Não obstante, é provável que a atividade coral seja o que menos se conhece do antigo teatro grego uma vez que, na perspectiva do pensamento científico de períodos posteriores, o material sonoro ao qual aquela atividade estava associada, perdera-se inevitavelmente; além disso, uma concepção cartesiana da arte impediu por muito tempo que a musicalidade da cena pudesse ser vislumbrada sob a dimensão da mousiké. A respeito da mousiké, quando situada no contexto mais específico do teatro grego, o pesquisador Marcus Mota afirma, em sua obra A dramaturgia musical de Ésquilo, que Pode-se tomar a mousiké como pressuposto da multivariada produção poética helênica (épica, lírica, coral e drama). Dessa maneira, é essa produção multivariada que se constitui em referência primária para a compreensão da tradição da mousiké e de suas modalidades (MOTA, 2008, p.24). 24 Corega era o cidadão, indicado pelo arconte (mais alto oficial do Estado), para financiar um espetáculo, cobrindo todos os seus custos.

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Assim vista, na concepção desse autor a mousiké é “a integração de multitarefas em uma situação de representação”, ou seja, refere-se não somente à obra artística em si, mas à própria performance dessa obra dentro de um conjunto global de atividades. Partindo da constatação da performance teatral como “um evento único, específico e intrinsecamente vinculado à ocasião de sua execução”, Mota nos chama a atenção para a existência do que ele identifica como fator performance, até recentemente excluído das análises sobre a mousiké. Em um tipo de estudo convencional do teatro grego, a música vinha sendo tratada sem referência à tradição da mousiké, o que restringia toda a musicalidade do espetáculo aos seus dados sonoros, sem o devido tratamento estético-audiovisual. Como consequência, segundo esse autor a ausência de partitura escrita foi muitas vezes interpretada como pura e simples ausência de musicalidade. Nietzsche, em seus escritos da juventude, já lamentava esse fato: “Afirmo nomeadamente que o Ésquilo e o Sófocles que nos são conhecidos, o são somente como poetas de texto, como libretistas; isso quer dizer que eles nos são justamente desconhecidos” (NIETZSCHE, 2005, p.49). E, mais adiante, complementa esse pensamento: “Somos incompetentes diante de uma tragédia grega, porque o seu efeito capital repousava em boa parte em um elemento que foi perdido para nós, na música” (NIETZSCH, 2005, p.65).

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Mota critica a tendência dos pesquisadores, também na área de música, em dissociar a competência dramática da musical. Em sua opinião, estes habitualmente se preocupam mais com a materialidade sonora dos instrumentos musicais gregos (lira, cítara, aulos, harpa e percussão) e de seus executores. Além disso, argumenta que as conhecidas descrições das estruturas teatrais aristotélicas (baseadas em epirremas, estásimos e outras) corroboram a ênfase descritiva formalizadora dos teóricos que interpretam a mousiké sem referência à sua realização performativa. Separando-se a performance da composição, adverte Mota, “a análise fica restrita ao inventário de formas [musicais] desvinculadas da atividade de sua representação” (MOTA, 2008), circunscrevendo o objeto observado a uma metódica e restrita explicação, fornecida de antemão. São também alvo de sua crítica, as análises em que a atividade coral é interpretada em sua função de dividir os atos do espetáculo, situando-a às margens da representação propriamente dita e atribuindo a ela um caráter de “interrupção” na continuidade do espetáculo - o que leva à concepção, também equivocada, de uma performance sem mousiké. Mota propõe, para as pesquisas sobre o drama grego, um tipo de estudo que leve em conta a dimensão performático-musical dos atores em cena, situando tanto a atividade de representação quanto a recepção do espetáculo. Nesse sentido, o estudioso apoia a sua argumentação colocando a cultura musical grega “como pressuposto compositivorealizacional para a qual se dirige a diversidade de práticas da poesia grega”. Neste caso, é pela diferenciação das modalidades do canto que se dá a investigação do espetáculo enquanto dramaturgia musical, no qual o dramaturgo grego “age sobre as distintas soluções que a tradição músico-poética oferece para a realização de suas obras, assim como toma dessas soluções a configuração mesma da realização de suas obras teatrais” (MOTA, 2008, p. 29). O drama reelabora, em si, as questões músico-poéticas da tradição grega, onde o jogo entre padrões melódicos do canto definem a marcação audiovisual do


Capítulo 1 - Mousiké

espetáculo. Em outras palavras, o espetáculo é a própria exibição de sua audiovisualidade. As considerações desse teórico do antigo drama grego são, sem dúvida, fundamentais para esta tese. Além de fornecer preciosas indicações de caminhos a seguir na análise dos espetáculos, também oferecem um espelhamento da situação que, no campo da pesquisa em música, parece curiosamente se igualar à do teatro. Ou seja, revela a precariedade de referências teóricas, tanto no teatro quanto na música, que realizem uma leitura espetacular sob a perspectiva da mousiké, ou seja, dos parâmetros da própria cultura que engendrou tais obras. Discorrendo sobre os problemas por ele detectados na bibliografia disponível sobre o drama grego, o autor nos informa que também, para muitos teóricos da música, a visão sobre o espetáculo ainda permanece atrelada a concepções abstratas que não correspondem às necessidades da realidade atual. A urgência de superar tais paradigmas não está colocada, portanto, apenas para um setor em particular da arte, mas para todos. O tratamento do espetáculo de teatro de rua em sua dimensão performática, tanto no sentido atorial quanto no musical, como nos propõe Mota para os estudos da dramaturgia musical grega, é o horizonte para o qual se dirigem as análises do espetáculo-solo abordado na seção seguinte deste capítulo. Nestas criações teatrais de rua, a musicalidade do ator impõe-se não somente enquanto elemento expressivo chave, mas também, como o principal eixo de articulação entre o teatro de rua e o teatro contemporâneo, com as suas cada vez maiores exigências de um “ator polifônico”25 (MALETTA, 2005), capaz de interagir com a simultaneidade de diferentes linguagens estéticas, além do discurso verbal. Tendo em vista o que foi comentado até o momento, apresento a sugestão de compreendermos, nesta tese, a musicalidade do ator como a extensa gama de aspectos presentes no ofício atorial que, embora possam ser atribuídos à esfera da música, encontram-se tão entranhados na atuação que, de certo modo, parecem diluir-se em favor de uma recepção estritamente visual do que é apresentado. Proponho, então, agregar sob esta denominação tanto habilidades musicais mais explícitas, tais como afinação vocal, execução de instrumentos musicais, coordenação rítmico-motora etc, quanto o domínio técnico de aspectos musicais menos óbvios, como o ritmo da cena, a percepção do ambiente sonoro que envolve o espetáculo, a entonação da voz do personagem, a criação de uma “partitura de movimentos” e outras maneiras pelas quais a música pode se manifestar no trabalho do ator.

25 Na definição de Maletta, “o ator polifônico é aquele que, tendo incorporado os conceitos fundamentais das diversas linguagens artísticas (literatura, música, artes corporais, artes plásticas, além das teorias e gramáticas da atuação), é capaz de, conscientemente, se apropriar deles, construindo um discurso polifônico através do contraponto entre os múltiplos discursos provenientes dessas linguagens” (MALETTA, 2005, p. 53).

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A CONTEMPORANEIDADE DO TEATRO DE RUA: POTÊNCIAS MUSICAIS DA CENA NO ESPAÇO URBANO

1.4 MAURO-LAURO-PAULO, O HOMEMBANDA

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espetáculo de rua selecionado como ponto de partida para o desenvolvimento da tese apresenta boas oportunidades de análise da musicalidade do ator/ performer no teatro de rua, dentro do contexto da mousiké. Trata-se de um espetáculo-solo em que a música se apresenta como eixo central, sendo o próprio ator em cena o agente dessa produção musical “ao vivo”; além disso, é um evento cênico que tem, como seu lugar teatral, o espaço público da rua. Mas há aspectos significativos também em outras esferas. Em O Homem-Banda, por exemplo, o seu criador trabalha dentro da tradição teatral de rua em sua face mais “primitiva” e artesanal, a ponto de nos evocar imediatamente o artista de feira medieval em pleno exercício de seu ofício.

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Outro aspecto que chama a atenção é quanto à relação, presente no espetáculo, entre o corpo humano e a máquina. Nele, o homem está no centro do espetáculo e domina a máquina – a “parafernália”, como o artista nomeou a estrutura de instrumentos musicais que é presa em seu corpo – fazendo-a soar, para o deleite dos espectadores. A máquina passa a fazer parte do seu corpo, e é este, inteiro e em movimento, o que a aciona enquanto o performer se desloca pelo espaço, arrastando consigo uma multidão em festa. A destreza do Homem-Banda26 em sua capacidade de tocar instrumentos, cantar e dançar simultaneamente, mostra ao público a magia e a potência que aparecem, ali, como atributos naturais do homem. Estas questões são perpassadas por aquelas que dizem respeito principalmente ao enquadramento musical, propiciando à performance a possibilidade de “capturar”, de modo particularmente eficiente, a atenção de um espectador-ouvinte ocasional como o da rua. Ao discorrer sobre a natureza da convocação do público no teatro de rua, o pesquisador e diretor teatral André Carreira (2007) comenta que este “presencia o espetáculo porque se encontra casualmente com este acontecimento”, o que confere à encenação teatral de rua um caráter fundamentalmente acidental, ainda que nem todos os espetáculos de rua se enquadrem ipsis literis nesta situação. E, argumenta, O fundamental não é delimitar se houve ou não prévia convocação de público, mas identificar se o espaço da representação é permeável o suficiente para permitir o acesso do público acidental. E se o espectador acidental tem possibilidade de assistir à representação em condições de igualdade com o espectador convocado [...] A presença do público acidental impregna o espetáculo de circunstâncias que são particulares da rua (CARREIRA, 2007, p. 50). 26 O nome do personagem será, doravante, grafado apenas como HB; o titulo do espetáculo, por extenso.


Capítulo 1 - Mousiké

Levando-se em conta que um espetáculo na rua está permanentemente disputando a atenção do espectador com outros estímulos, próprios do espaço público, a música possui um inquestionável potencial para atrair espectadores, no momento da apresentação. É o que fazem muitos grupos de teatro de rua, por meio de seus cortejos “de abertura”, geralmente ricos em movimento, cores e canções. Nessa perspectiva, a sonoridade que se destaca sobre a paisagem sonora usual de uma cidade – tanto mais intensa e caótica quanto mais central e movimentada - é um poderoso elemento de convocação de público. Muitas vezes, antes de ver que algo além das rotinas da rua está acontecendo e decidir ir ver o que se passa, o espectador em potencial já é “pego” a distância pelos sons que o espetáculo coloca no espaço.

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1.5 O espetáculo

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Homem-Banda foi apresentado em 09/12/2011 na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, durante o X Encontro Internacional de Palhaços Anjos do Picadeiro. Devido à natureza e importância que esse local da cidade, escolhido pelo próprio ator, adquire para a apresentação, cabem inicialmente algumas informações a seu respeito.

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A Central do Brasil compreende hoje a região do entorno da estação de trens da antiga Estação Central do Brasil. Localiza-se no limite do Centro com o bairro da Gamboa, junto à Avenida Presidente Vargas, uma das principais da cidade. Construída durante o II Império (1858), a Central do Brasil era então a estação inicial da Estrada de Ferro D. Pedro II, sistema que se estendia até Minas Gerais e São Paulo. Ao longo do século XX, o transporte ferroviário de longa distância perdeu importância, e foram gradativamente sendo instalados no seu entorno diversos outros terminais voltados para o transporte urbano de passageiros. Atualmente, o complexo compreende: a Estação Central da SuperVia, para a qual convergem as composições das diversas linhas de trens suburbanos da Região Metropolitana do Rio de Janeiro; a Estação Central do Metrô do Rio de Janeiro e; o Terminal Intermunicipal Américo Fontenelle, um dos principais terminais de ônibus urbanos municipais e intermunicipais da cidade e Região Metropolitana. O uso diversificado faz dessa área da cidade um importante ponto de cruzamento entre regiões, por onde circulam em média, 450 mil pessoas/dia e 9 milhões de pessoas/mês27. No dia da apresentação havia, como em qualquer dia comum na vida da cidade, milhares de pessoas andando apressadas pela estação, sobretudo aquelas que saíam dos terminais de ônibus e trens, em direção ao Metrô. Era um dia nublado e o calor intenso dava sinais de que cairia chuva a qualquer momento. A apresentação estava marcada para 12:00h. Andei por toda a estação sem avistar sinal do espetáculo. No balcão de informações avisaram-me que se encontravam algumas pessoas da organização do evento na entrada do prédio. Ao me dirigir para lá, avistei um pequeno grupo de artistas na calçada, fora dos portões da Central, do qual fazia parte o ator Mauro Bruzza, criador do HB. Alguns pingos finos começavam a cair, e fui alertada de que haveria um pequeno atraso, pois devido à chuva havia dúvidas sobre o local da apresentação. Entrei para comprar uma sombrinha e quando voltei o performer já estava terminando de montar a sua “parafernália musical”, nome com o qual batizou o seu equipamento musical. Ele resolve iniciar com uma “entrada”, passando primeiro pelo saguão principal da estação para chamar a atenção dos seus usuários. Depois de uma perambulação pelo espaço externo, como que para terminar os ajustes da pesada estrutura no corpo e 27 Dados colhidos em 25/03/2012 no site da SuperVia, empresa privada que administra hoje a Central do Brasil. www.supervia.com.br


Capítulo 1 - Mousiké

testá-la em movimento, Mauro adentra o prédio da Central do Brasil com passos largos e decididos, e só começa a música quando já está num dos corredores, despertando a curiosidade dos transeuntes. O procedimento de chegada, próprio da cultura popular, alcança sucesso total. É impossível ignorar o som produzido pelo HB; por onde ele passa imediatamente se forma uma roda compacta; a maior parte dos espectadores o segue quando ele parte do saguão, depois de anunciar o espetáculo convidando a todos para irem assisti-lo na parte externa. Mauro não usa microfone ou outro meio tecnológico de amplificação da voz, mas consegue obter a atenção de todos quando se dirige à roda. Nesses momentos, toma o cuidado de estar sempre girando ao redor do próprio eixo, evitando a frontalização, buscando também um contato visual e verbal dirigido diretamente às pessoas à sua volta. No trajeto de volta à área aberta da Central, encontro dificuldade para filmar a ação, devido à grande quantidade de pessoas que o seguem pelos corredores. Lá fora, sob a copa das árvores que protegem tanto do sol quanto da chuva fina que se inicia, Mauro consegue formar de novo uma grande roda composta por artistas participantes do Encontro, populares (adultos e crianças) que se encontram em trânsito, vendedores ambulantes e alguns moradores de rua. Chamam a atenção, no contexto do público de rua, uma mulher cujo comportamento exageradamente participativo, falante, o aspecto sujo e desalinhado demonstram que provavelmente é doente mental ou alcoólatra; e também um grupo de quatro meninos, provavelmente irmãos devido à semelhança física e que, de mãos dadas numa fileira organizada, se destacam pelo vivo interesse e atenção, além da atitude respeitosa para com o ator, a quem chamam de “tio”. Estão “encantados” pela performance do HB e acompanham o ator em seus movimentos e canto, tentando imitá-lo com discrição. Em meio a risos, olhares de cumplicidade, cantos e palmas o ator se desdobra, magnetizando a todos com a sua destreza e musicalidade. São várias músicas, que ele toca e canta com o acompanhamento dos instrumentos. Em alguns momentos essa execução individual dá lugar a um tipo de jogo sonoro interativo com a plateia, do qual todos participam alegremente. Como um regente que orienta os músicos/cantores/ coral, Mauro rege com o corpo, a expressão do rosto, a voz, os braços, obtendo do coro improvisado efeitos surpreendentemente bem coordenados, rítmicos. A apresentação inclui números musicais que integram dança, música e canto, num tipo de performance que poderia ser qualificada como “multidimensional” (FRIGERIO, 1992). Mauro inicia deixando a parafernália no centro da roda, correndo à sua volta, simulando uma entrada “de surpresa” como se adentrasse num picadeiro, onde o círculo é formado pelos próprios espectadores e seus corpos, a cortina de trás da qual ele “surge” em cena. Rege a ovação da plateia, criando uma disputa de intensidade entre dois lados opostos; faz pose para fotos junto ao banner do evento, que foi pendurado em uma árvore. Repentinamente, corre e abraça alguém da plateia e depois a mendiga, que parece não acreditar de tanta alegria! Dá as boas-vindas ao público, já aproveitando o tema “Anjos do Picadeiro” para iniciar um novo jogo de regência com os espectadores, que para não errar tornam-se ouvintes ainda mais atentos. Inicia um coro de palmas com a plateia, e começa a cantar a canção de abertura

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A CONTEMPORANEIDADE DO TEATRO DE RUA: POTÊNCIAS MUSICAIS DA CENA NO ESPAÇO URBANO

do espetáculo acompanhando-se ao acordeon. O ator já inicia o trabalho em um nível alto de intensidade; enquanto toca, gira ininterruptamente ao redor do próprio eixo e se desloca pelo espaço da roda. Do ponto de vista musical, a canção é muito simples: durante alguns compassos, acompanha a pulsação das palmas fazendo soar apenas um acorde. Em seguida, inicia uma sequência de acordes enquanto cantarola uma melodia usando apenas as sílabas “lê lê lê”, numa espécie de gromelô musical. O procedimento, recorrente nas músicas infantis, é praticamente um jogo de musicalização para aprendizes de música. Aqui, torna-se um potente recurso cênico para manter a atenção da roda e atrair os curiosos que ainda não se aproximaram. Assim, uma metodologia eminentemente musical transforma-se em ação cênica, a partir do momento em que o ator-músico se propõe a explorar o potencial de teatralidade nela contido. Além disso, a cada procedimento performático o artista confirma as palavras do palhaço e pesquisador teatral Ricardo Puccetti: o diálogo do palhaço com as pessoas do público, nas suas mais diversas possibilidades, é fundamental para que o espetáculo possa acontecer em sua plenitude. Quando o palhaço atua, o público deixa de ser apenas aquele que vê; ele participa e é parte integrante do que acontece em cena (PUCCETTI, 2008, p. 112). Ao encerrar a Abertura, o performer ajoelha e, enquanto coloca a traquitana do HB nas costas, anuncia, em tom de apresentador de circo: “Senhoras e Senhores, Mauro-Lauro-Paulo, o Homem-Banda!”. E, com um acorde aqui, uma percussão ali, vai fazendo a sonoplastia de sua própria apresentação. Explica como o personagem surgiu, fala dos instrumentos que formam a banda (são vinte ao todo). Ainda nessa posição, começa a cantar:

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“O Homem-Banda aqui chegou; veio fazer o seu show; e agora que começou”... (executa um longo trêmolo28 no acordeon, sobre notas de um acorde em V729) “Uou, uou, uou” – ensina o “dificílimo” refrão ao público, enquanto finaliza essa primeira estrofe com uma cadência perfeita. Além da letra banal, o ritmo é de um rock brasileiro, típico da Jovem Guarda que, se era uma inovação no Brasil dos anos de 1960, hoje é tido como “brega”. O refrão muda cada vez que é repetido, tornando-se também um jogo de “pergunta-e-resposta”30 musical entre artista e público. Quando inicia a segunda estrofe, em lugar do canto Mauro coloca em cena os apitos; seus sons engraçados intensificam a comicidade da apresentação pela referência à sonoplastia de desenhos animados que povoam a imaginação das crianças e a memória dos adultos. O ator explora esse tipo de sonoridade “de animação”, colorindo 28 Tipo de ornamento que consiste em alternar rapidamente as notas de um acorde, dividido em dois blocos. No caso do HB, o trêmolo é executado pela mão direita nas teclas do acordeon. 29 V7 é o chamado acorde da “dominante”, encontrado no quinto grau da escala onde se insere a peça, e que “atrai” a música para a “tônica” (ou tom fundamental), dando-lhe um sentido de tensão e a seguir, repouso. 30 Neste jogo musical, a “pergunta” é o acorde de V7 e a “resposta”, o de I, numa cadência harmônica perfeita.


Capítulo 1 - Mousiké

a música com uma linguagem sonora que é parte integrante do imaginário do público, suscitando um tipo de associação “semântica”, conforme propõe Jean-Jacques Nattiez em suas investigações sobre as significações musicais (NATTIEZ, 2004). O etnomusicólogo francês afirma que “não existe peça ou obra musical que não se ofereça à percepção sem um cotejo de remissões extrínsecas, de remissões ao mundo” (NATTIEZ, 2004, p. 7), o que significa dizer, aplicando a premissa desse autor ao espetáculo teatral de rua, que boa parte daquilo que está sendo aqui designado como “musicalidade do ator” repousa sobre a habilidade do artista em explorar a semântica musical, oferecendo ao público uma grande variedade de estímulos sonoro-musicais que possibilitam associações das mais diversas naturezas, “significações afetivas, emotivas, imagéticas, referenciais, ideológicas etc” (NATTIEZ, 2004, p. 7) no dizer de Nattiez, enriquecendo pelo recurso musical as camadas de significação do espetáculo. Além disso, o ator realiza nesse momento a sonoplastia da própria música que executa, colocando em cena um discurso musical “irônico” sobre o discurso musical “oficial”. Aqui, ele usa um acompanhamento melódico ao acordeon em que o acorde básico que sustenta a melodia é arpejado31 no teclado do instrumento. Assim, as notas do acorde passam a ser o acompanhamento da melodia criada pelos apitos e buzinas. O ator-músico toca, solicitando a participação de todos, “regendo” o coro de participantes com gestos de cabeça, expressão do rosto, mãos. Cria-se uma situação em que o espetáculo é realizado por todos os presentes, desfazendo completamente a separação público/ator e promovendo, pelo uso de uma musicalidade coletivizada, um rompimento das fronteiras estabelecidas entre espetáculo e plateia. Evidencia-se, assim, a música como elemento construtor de uma teatralidade, vivida coletivamente. Os movimentos corporais exigidos pelos objetos sonoros (apitos e buzinas) também acrescentam comicidade à cena. No conjunto, a movimentação do HB se parece com a de um antigo brinquedo de corda. São passinhos curtos e “secos”, ritmados. Ele caminha em círculos, ou ziguezagueando ininterruptamente pelo espaço interno da roda, uma vez que não pode parar, pois ao imobilizar-se a música necessariamente também para. Aqui, portanto, a música não é, nem de longe, “trilha sonora” para o espetáculo; também não é o elemento que dá origem à cena, como ocorre em outras propostas cênico-musicais que serão abordadas mais à frente da pesquisa; em HomemBanda, a música é a própria cena teatral, onde se concretiza a ideia de mousiké como princípio fundador do espetáculo. Num dado momento, o performer intercala acordes “secos” em staccato, às palmas dos espectadores, criando uma trama rítmica coesa. Sobre toda essa estrutura ele canta a melodia da canção. Ao andar pelo espaço, o HB cria uma base rítmica binária a três vozes, com o bumbo, a caixa e os pratos duplos. Esse tipo de construção rítmica, além de revelar o exímio músico e instrumentista, também mostra a preocupação do artista em deixar “espaços” dentro da própria estrutura da música para a participação do público. Este procedimento é algo que praticamente inexiste dentro de um espetáculo rigorosamente “musical”, exceto naqueles shows em que são inseridos, artificialmente, momentos específicos para atender a esse propósito – a interação do artista com a plateia. 31 Arpeggio significa “à maneira de harpa”. Num acorde “arpejado”, as notas são acionadas uma após outra, iniciando pela mais grave, sem interrupção.

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No Gran Finale de alguns números o ator executa um equilíbrio sobre um pé enquanto tremula o outro no ar, produzindo a sonoridade e uma imagem cênica de tensão e suspense, tirando proveito da dramaticidade do som do chocalho de guizos enquanto executa um demorado acorde em V7 no acordeon. Finaliza solenemente, com um acorde fundamental acompanhado pelos chocalhos e o prato, percutidos várias vezes seguidas, num recurso típico das bandas de rock. O “ponto final” musical, precedido pelo “apitolino”, se dá por uma batida “seca” no bumbo com um poderoso chute no ar. O efeito dessa gestualidade sonora é ao mesmo tempo de grande comicidade e teatralidade. Há uma teatralização consciente da música, o que reafirma Mauro Bruzza como performer, e não apenas como um “músico” no sentido estrito, pois ele não apenas toca, canta e dança, mas teatraliza a música por meio do corpo e dos recursos técnicos da própria música. Na canção de despedida, faz uma revisão de todos os ritmos apresentados – marchinha, valsa, rock’n roll – num accelerando32 que atinge o ápice numa gestualidade corporal mais próxima a um “ataque epilético” devido aos tremores intensos. Na apoteose, uma chuva de confetes explode sobre o público.

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32 Termo italiano que indica um aumento gradual da velocidade.


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1.6 O brinquedo e a ferramenta

A

influência do avô, que mantinha uma oficina de carpintaria em casa, foi determinante para a vocação “construtora” de Mauro Bruzza. Com grande prazer, ele conta uma história de infância que deixa muito clara a profundidade da relação que criou com o seu instrumento musical, a “banda”: ainda menino, pediu aos pais, como presente de Natal... um martelo! Esse fato particular mostra que, assim como esse instrumento de trabalho manual – uma ferramenta – foi considerado pela criança não um “objeto de trabalho” mas, um brinquedo, também o equipamento de trabalho do artista é um brinquedo, no sentido mais amplo do termo. A “parafernália” é o produto de um cuidadoso processo de bricolage (LÉVI-STRAUSS, 1989) que percorre todo o modo de organização do personagem HB, estendendo-se tanto aos objetos físicos que o constituem, quanto aos sonoros. O autor de O pensamento selvagem discute, nessa obra, a existência de dois modos diferentes de pensamento científico pelos quais a natureza se deixaria abordar pelo homem: o primeiro, mais ajustado à percepção e à imaginação, seria responsável pela emergência de uma “ciência do concreto”; o outro, mais distanciado da intuição sensível, teria no pensamento racional a sua sustentação e por isso, foi por muito tempo considerado o único a merecer o status de verdadeiramente “científico”. Strauss adverte, contudo, que aquela ciência “primeira” e “mítica” é o substrato da civilização ocidental, e os seus resultados foram por ela assegurados, milhares de anos antes do pensamento científico moderno. A bricolage, prática construtiva própria da “ciência do concreto”, tem na figura do bricoleur a imagem daquele que, em nossos dias, “trabalha com as mãos, utilizando meios indiretos se comparados com os do artista”, e cuja “expressão [é] auxiliada por um repertório cuja composição é heteróclita” (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 32). Desse modo, o bricoleur executa um trabalho usando meios próprios, singulares, estranhos aos procedimentos e às normas técnicas reconhecidas. Assim como se dá no caso do bricoleur, o modo de construção da “parafernália” musical do Homem-Banda se dá pela aglutinação de elementos heteróclitos (brinquedos, instrumentos musicais, objetos do cotidiano), recolhidos praticamente ao acaso, de acordo com “as oportunidades que se apresentaram para renovar e enriquecer o estoque”. Cada um desses objetos tem uma história, e esse repertório de histórias particulares é guardada com carinho na memória do artista, que eventualmente as insere no espetáculo durante uma narração. Por exemplo, que eram brinquedos da enteada (“ela tinha muitos brinquedinhos sonoros, apitos e outras coisas, e eu peguei estes”); da companheira (a gaita, que “ela já não tocava mais”); ou da avó (um velho cabide de paletó, usado como suporte para os vários apitos e a gaita de boca). Há também as histórias de outros objetos sonoros que já foram descartados pelo

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desgaste ou necessidade de inovar o naipe de timbres33 da sua “orquestra”. Assim, o processo da bricolage está presente também na dinâmica do próprio espetáculo, que se constrói sobre um conjunto indeterminado de elementos a serem narrados e poetizados pelo artista diante de seu público, no momento mesmo da apresentação. Esses detalhes do processo construtivo mostram que o conjunto de objetos que compõem a “banda” não está definido de antemão por um projeto. Como o bricoleur se define apenas por sua instrumentalidade, o artista Mauro Bruzza faz e refaz o seu inventário, dialogando ininterruptamente com ele e não parando jamais de coletar materiais que possam significar uma ampliação das possibilidades musicais do personagem e do espetáculo. Daí o uso frequente do termo “gambiarra”34 pelo ator ao referir-se aos recursos utilizados na montagem da “banda”, o que imprime ao seu personagem preferencial o caráter de improviso e não-acabamento permanentes. Merece ser também mencionado aqui, um importante aspecto que diz respeito à pesquisa de timbres, dentro do trabalho de construção do personagem. Embora sempre o mesmo, o HB está também sempre em transformação. E o critério determinante dessas mudanças é o sonoro-musical. Por exemplo, ao criar chocalhos com moedas pequenas ou grandes para obter sons agudos e graves, o artista precisa de latinhas cuja forma e dimensões permitam a eficácia de seu uso em ação, isto é, que possam ser adaptadas confortavelmente ao corpo, mas que principalmente soem bem, proporcionando efeitos sonoros interessantes durante a performance.

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Assim, os materiais selecionados não são detalhes a serem “acrescidos” ao conjunto de um personagem que foi anteriormente elaborado; ao contrário; o HB é o resultado de uma pesquisa de som, mais precisamente no campo dos timbres. Trata-se, portanto, de uma bricolagem realizada com materiais sonoros, antes de quaisquer outros, cujo resultado em cena é também, pode-se dizer, uma bricolagem sonora. A estética visual do HB, configurada a partir dos diversos instrumentos musicais e dos elementos de ligação/sustentação utilizados na composição do personagem, é secundária em relação à sonoridade produzida por esses mesmos elementos; o que não significa que o personagem não resulte numa figura extremamente interessante também de se ver. É bela a imagem que o Homem-Banda oferece aos nossos olhos. Mas ela se torna teatro apenas quando está em ação – que, no caso, é primordialmente ação musical. A fim de se obter uma ideia mais precisa da organização e funcionamento da “banda” do HB, passo à descrição detalhada dos seus elementos componentes, onde cada um se localiza no corpo do performer e o modo pelo qual é acionado em cena: Tornozelo direito: chocalho de latinha com lágrimas de Nossa Senhora (soa quando é dado um passo de intensidade média ou forte); Tornozelo esquerdo: elástico com guizos (soa a cada passo, mesmo se o impacto no solo for suave); 33 Timbre é o parâmetro do som responsável pela sua qualidade singular, que nos permite o reconhecimento imediato de diferentes estímulos sonoros (instrumentos musicais, a voz etc). O fenômeno físico que proporciona este efeito é o espectro da onda sonora que cada corpo vibratório produz. 34 Termo que designa, no âmbito da cenografia teatral, um suporte de luzes e refletores que é colocado acima da ribalta. Como gíria, significa um dispositivo provisório utilizado como resolução de um problema técnico, para a qual são usados materiais simples, que estejam “ao alcance da mão”.


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Joelhos (atrás, nas articulações): duas cornetas (uma de sonoridade mais grave e outra, mais aguda) que soam com a flexão pronunciada do joelho correspondente; Costas (toda a estrutura fica apoiada nos ombros): bumbo invertido (a baqueta que percute a superfície inferior do instrumento é acionada por um forte movimento de extensão da perna para frente – com uma “pisada” no chão ou mesmo um “chute” no ar com o pé direito); Acima da cabeça, sobre o ombro esquerdo (sustentados pelo suporte metálico): pratos duplos, prato solto e pandeirola35 de brinquedo (o acoplamento dos pratos duplos, a percussão da caixa-de-guerra e o chacoalhar das platinelas36 da pandeirola são provocados pelo ao mesmo movimento de “pisada” ou “chute” da perna esquerda); também acima da cabeça, sobre o ombro direito (presos à mesma estrutura): conjunto formado pela baqueta que aciona o prato solto e um funil atirador de confetes (ambos são acionados pelo movimento de elevação súbita do cotovelo direito, flexionado); Sobre o ombro direito: uma corneta, maior que as primeiras, soa ao ser pressionada pela flexão lateral da cabeça contra o ombro; À frente do rosto: um antigo cabide de madeira, que era do avô do artista, é o suporte para os apitos (“comum”, “ventania”, “pato”, “apitolino”, “kazuo”)37 e a gaita de boca que possuem, cada um, a sua “personalidade” timbrística própria. O conjunto de sopros termina com uma antiga campainha de bicicleta; Acordeon: o performer utiliza as duas mãos ao tocar o instrumento, mas eventualmente usa apenas uma, enquanto gesticula com a outra para comunicar-se com o público. A estrutura completa ainda inclui um sistema que permite ao ator beber água mesmo em ação (garrafinha d’água com longo canudo de plástico que fica posicionado perto da boca) e um funil que, acionado por um forte sopro em um tubo a ele acoplado, produz uma alegre explosão de confetes no final da apresentação.

35 Pandeiro sem pele. 36 Chapinhas redondas de metal que fazem parte da estrutura do pandeiro ou pandeirola. Ao se entrechocarem durante a movimentação do instrumento, produzem uma sonoridade característica. 37 As denominações de cada apito se referem aos timbres que os caracterizam. “Apitolino” é uma referência a Patolino, personagem da famosa série de desenhos animados Looney Tunes, dos estúdios Warner Bros.

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1.7 O clown/o palhaço

O

pesquisador Mário Bolognesi comenta, em sua obra Palhaços (2003), que o circo – tal como conhecemos hoje - “propôs o corpo como princípio espetacular, vindo assim ao encontro da tão almejada valorização do eu”, aspecto integrante do ideal romântico que está na base da ética e da estética circense desde o século XIX. Desse modo, ressalta o autor, o espetáculo “expôs e valorizou as sutilezas da anatomia humana, quer seja pela via do sublime quer pela do grotesco” (BOLOGNESI, 2003, p. 44). No circo, os limites do corpo “sublime” são desafiados em provas de ordem física onde o desempenho do artista não pertence ao terreno do ilusório ou da ficção; o público acompanha o suspense e o temor do erro (o qual pode significar, aqui, um grave acidente) que, espera-se, alcançará o desfecho com o alívio de uma salva de palmas. Mas, a descontração somente é completada com a entrada dos palhaços – o corpo “grotesco” - em cena. A tensão e o riso constituem, então, os dois polos simultaneamente antagônicos e complementares da arte circense. Enquanto o corpo acrobático desafia as limitações biológicas e as leis da natureza - força, destreza, agilidade, em contraponto com as forças da gravidade e do próprio corpo humano -, no extremo oposto o palhaço explora o ridículo das mesmas pretensões, satirizando o sublime e o próprio circo. Para o palhaço, a consciência do próprio corpo representa a quase totalidade do trabalho a ser desenvolvido. Sobre a abrangência dessa questão, explica-nos Puccetti:

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O ‘corpo que brinca’ é o instrumento pelo qual o palhaço vai estabelecer sua conversa com o público, utilizando sua lógica, seu repertório, seus procedimentos técnicos e o jogo. O palhaço não tem psicologismos, sua lógica é física: ele pensa e sente com o corpo. Ele é um ser que tem suas reações afetivas e emotivas todas localizadas em partes precisas de seu corpo, ou seja, sua afetividade e seu pensamento transbordam pelo corpo. O palhaço tem que encontrar uma nova maneira de utilizar o corpo, que não a cotidiana e que trate de diminuir o lapso de tempo entre o impulso físico e a concretização da ação no espaço. Por esse caminho, o palhaço experimenta o ‘não-pensar’ e o ‘agir com o corpo’, o que seria, na verdade, ‘pensar com o corpo’ [...] É um trabalho sutil, onde mais importante do que fazer e atuar, talvez seja perceber onde um ‘jogo’ começa e como ele se conecta ou não com quem está vendo (PUCCETTI, 2008, p. 110). Esse “pensar com o corpo”, dimensão fortemente explorada na arte circense em geral e, sobretudo, na da palhaçaria, é considerado por Mauro Bruzza como o atributo resultante de uma aprendizagem informal do ofício de palhaço, reflexão essa que se explicita em sua arte quando comenta: “Nunca trabalhei o ator, sou mais músico e


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palhaço. E aprendi por tentativa e erro. Oficina, só fiz de palhaço. Eu comecei assim, aprendendo com palhaços. Eles me ensinavam a ser palhaço e eu ensinava música a eles”, revela, ao falar de sua formação artística38. Evidentemente, ele não pertence à estirpe “clássica” dos palhaços de circo, que têm a sua própria hierarquia, baseada na estrutura social de classes, como nos explica Leris Colombaioni39: Os personagens da palhaçaria clássica são quatro: o Branco, os dois Augustos e o Anão. O Branco representa aquele que mais sabe, quase como um juiz. O Augusto, também chamado de Vermelho, representa o povo, aquele que sabe menos. Oriundos da Commedia dell’Arte, o Branco simbolizava o patrão do feudo, e o Vermelho, os camponeses. [...] Então, o Branco é aquele que oferece, que faz favor. E o Vermelho é o povo como o povo sempre foi, de antes até a democracia de hoje. Na relação dos dois Augustos, um controla o outro e o Branco está no meio fazendo o papel de juiz. Como vítima, sempre permanece o Anão, porque ele é o diferente e o diferente está sempre em desvantagem (COLOMBAIONI, 2008, p. 103). A esse respeito, Colombaioni explica que mesmo nos circos, desde as últimas décadas do século XX praticamente não existem mais grupos de palhaços, e o surgimento de artistas que trabalham sozinhos se deve, sobretudo, à falta daquela referência basilar. Desse modo, os “novos palhaços” têm a necessidade de criar estratégias que preencham a falta da estrutura coletiva - que lhes dava amplas possibilidades de crítica social – construindo seus trabalhos, segundo ele, “ora com excessivo uso da gestualidade, se aproximando mais dos mímicos, ora com excessivo uso da fala, se aproximando dos cabaretistas” (COLOMBAIONI, 2008, p.106). Mauro Bruzza dirige há quatro anos uma pequena companhia circense40 em Porto Alegre, e tanto o fato de a mesma não pertencer à estrutura maior de um circo com seu elenco de palhaços, quanto às nuances de seu trabalho-solo com o HB, mostram que a performance do “seu” palhaço adquire contornos próprios, distintos daqueles considerados “clássicos”, sem entretanto incorrer nas distorções descritas acima pelo velho mestre. A começar, pela não adoção de uma figura grotesca como o duplo contrário do corpo perfeito do artista circense; antes, o ridículo que se concretiza no personagem HB é o da profanação da técnica – especialmente a musical. Ele ironiza a imagem do concertista com a sua figura que é simultaneamente clown e também a de um instrumentista erudito. O figurino – calça e camisa social, fraque longo, botinas e chapéu coco – evocam tanto Carlitos quanto um pianista em concerto de gala, ou mesmo o maestro de uma grande orquestra sinfônica. Não há resquícios de caracterização, como maquiagem e uso de postiços, como o emblemático nariz vermelho ou a peruca. É uma figura sem dúvida elegante; parodiando a nobreza dos poderosos em aparência e atitude, o performer cria a antítese do músico virtuose que, na verdade, é. Uma verdade contada como se fosse mentira; brincadeira que se 38 Depoimento dado pelo ator durante a entrevista concedida na véspera da apresentação do espetáculo aqui analisado. 39 Descendente de uma das mais antigas famílias italianas de tradição clownesca, que remonta ao século XVI. 40 Cia “Um pé de dois”, que divide com a companheira Mariana Ferreira, em Porto Alegre, RS.

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fundamenta na “lógica” ilógica do palhaço. Puccetti esclarece da seguinte maneira a função social desempenhada pelo palhaço: E o palhaço existe para servir como um espelho da sociedade onde está inserido, para mostrar a ela o seu ridículo (o dela), para revelar que nada é fixo e imutável, com liberdade absoluta para ridicularizar e criticar, quebrando toda e qualquer forma de rigidez social. Não se trata apenas de ser engraçado, nem teatral. O palhaço tem a importância de um feiticeiro, é aquele que pode pôr o dedo nas feridas de cada comunidade, sempre com o viés da comicidade, arrancando o riso das situações do dia-a-dia e brincando com as possibilidades de ver a vida sob outros ângulos (PUCCETTI, 2008, p. 117). No universo da música “séria”, vigora o pressuposto de que para alcançar um patamar técnico ao menos razoável, o músico deve dedicar-se a uma (e apenas uma) prática instrumental. No máximo, aqueles mais ousados poderão aventurar-se pelas sonoridades de uma mesma família de instrumentos – a das cordas, dos sopros ou das percussões, por exemplo – mas jamais, nessas condições, chegará ao escopo de um grande virtuose. Apenas no campo da música popular contemporânea são permitidas e reconhecidas tais “excentricidades”41.

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Conhecer a técnica de diversos instrumentos já é algo incomum, pela dificuldade que isso representa; tocar mais de um ao mesmo tempo é então uma façanha, um ato que desafia os limites humanos. E foi sobre desafios sobre-humanos que se construiu toda a cultura circense: equilíbrios precários sobre bases insólitas – arames, cordas, bolas, cilindros – saltos acrobáticos no espaço; domesticar e controlar as feras; levantar um peso impossível. Acrobacias, equilibrismos e malabarismos de todo tipo expõem a capacidade de superação que aí se subentende. Mas, também as façanhas menos perigosas deixam evidente o desejo do incomum, a ambição de onipotência do homem, estabelecendo, segundo Bolognesi, uma relação ritualística que encontra eco, em última instância, nas estruturas coletivas de sobrevivência e necessidade de transposição dos percalços do cotidiano. Se o artista falha, ele é aplaudido porque ao menos tentou. Ele ousou, e isso já é o bastante para impulsionar a fantasia coletiva da superação (BOLOGNESI, 2003, p.14). No campo sonoro, somente a tecnologia mais avançada conseguiu realizar para um ser humano sozinho a tarefa de ouvir-se executando vários instrumentos na mesma obra. O processo de mixagem42, tão comum hoje em dia nos estúdios de gravação, encontra no HB o seu antecessor mais primitivo e artesanal. Mas, ele põe em xeque o 41 Como, por exemplo, Hermeto Paschoal e Egberto Gismonti, músicos brasileiros reconhecidos internacionalmente e tidos como exceções pela multiplicidade de instrumentos musicais cujas técnicas de execução dominam. 42 Técnica de armazenagem e combinação de sons que foram produzidos separadamente por distintas fontes sonoras. Durante o processo, os diversos conteúdos sonoros podem ser manipulados eletronicamente, num tratamento estético que incorpora efeitos praticamente impossíveis de serem obtidos numa performance “ao vivo”. O dispositivo utilizado para esta técnica de áudio é conhecido como mixer ou, simplesmente, “mesa de som”.


Capítulo 1 - Mousiké

artificialismo desse processo ao realizar o mesmo, sem perder nesse processo a magia e a poesia do trabalho manual que está na sua base. O bricoleur, aqui, é o substituto “artesanal” do atual técnico de som; e a “parafernália”, o fundamento musical da “mesa de som” do estúdio de áudio, com os seus complexos comandos eletrônicos aos quais poucos têm acesso. Os procedimentos adotados na tarefa do HB operam uma dessacralização da música e do trabalho do músico, colocando ao nível da “brincadeira” inócua as complexas técnicas instrumentais utilizadas pelo ator. Profanando a pompa do mundo da música – erudita ou tecnológica - o HB expõe ao público uma “magia sem mistérios” – nas palavras usuais do encenador Amir Haddad43 - ao alcance do homem comum. Na história do homem e do teatro, o humor e o riso sempre estiveram presentes: “É uma longa tradição que faz do humor e do riso armas contra os poderes e as hierarquias, as pompas e as poses, profanas ou sagradas”, diz André Bueno em A paixão e a paciência (2008), artigo em que discorre sobre essas duas qualidades indispensáveis à arte do palhaço. Em HB, assistimos essas poderosas armas se voltarem contra os fantasmas que assombraram os músicos de todos os tempos – errar, desafinar, perder o ritmo – numa deliciosa vingança que, paradoxalmente, utiliza a própria linguagem da música para satirizar a si mesma.

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43 Amir Haddad é o criador do grupo Tá Na Rua, objeto de investigação no último capítulo desta tese.


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1.8 O ator/performer

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m artigo sobre o espetáculo Homem-Bomba, do Teatro de Anônimo, o pesquisador José da Costa comenta que projetos teatrais e performáticos solos “respondem, frequentemente, a uma necessidade de tomada de posição do ator frente à linguagem teatral e às concepções de teatralidade vigentes” (DA COSTA, 2008, p. 221). Isto é particularmente adequado à postura adotada pelo ator Mauro Bruzza, que não se reconhece como um “ator”, no sentido da tradição dramática naturalista, por nunca ter estudado teatro formalmente ou ter treinado as suas capacidades interpretativas dentro dos parâmetros que são convencionalmente atribuídas ao artista cênico. Também não reconhece o trabalho do HB como “teatro de rua” (expressão que relaciona a um coletivo de trabalho) ou “espetáculo musical”, autodenominando-se apenas como “artista de rua”.

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A dificuldade de inserção num campo estético-artístico definido revela, por sua vez, uma concepção de teatralidade que, embora apoiada em referências como o circo e o artista popular, de rua, não se deixa aprisionar num quadro identitário fixo, podendo abranger toda e qualquer nova influência (inclusive da cultura de massa, da mídia e da informática) à medida que o personagem se desenvolve exigindo novos recursos expressivos. Adotando uma postura estética própria da contemporaneidade ao englobar referências e elementos técnicos tanto “tradicionais” quanto atuais, o ator também está sempre planejando novas possibilidades. Dentre estas constam, por exemplo, a troca do velho bumbo por outro mais novo; a inserção de outras notas musicais por meio de buzinas de diferentes tamanhos; a amplificação do som da voz para facilitar a recepção auditiva pelo público na rua; a aquisição de um loopstation, equipamento eletrônico em pedal que grava um ritmo acionado mecanicamente e permite que outros elementos sonoros sejam acrescentados sobre essa base, “montando” aos poucos um acompanhamento rítmico. O artista gaúcho tem suas próprias razões para não se considerar um “ator”, na acepção convencional do termo. Em primeiro lugar, por não possuir uma formação acadêmica, considera-se um autodidata. Em segundo ele, porque aprendeu o que sabe “fazendo as coisas de que precisava” e exercendo o ofício “na estrada, mesmo”, dentro daquele tipo “periférico” de formação do ator de que fala André Carreira, conforme mencionado no início da tese. Quanto às técnicas cênicas que utiliza, pode-se dizer que as suas referências mais importantes vêm do circo, pois a primeira experiência que viveu como artista de rua iniciou com o convite de dois artistas circenses44 para atuar como músico, tocando bateria em uma tourné com eles pelo Chile e, mais tarde, em outro espetáculo em Porto 44 Hoje, El Pape e El Kote trabalham separados. O primeiro é produtor, diretor e ator da Companhia Circense Los Gusanos, no Chile; o segundo viaja pelo mundo com seus espetáculos solos de rua: Tudo Sobre Rodas, O Único Animal Aqui Sou Eu e Tudo por uma Assinatura.


Capítulo 1 - Mousiké

Alegre; é nesse momento que o ator “descobre” o acordeon, instrumento que “nem conhecia de perto”, mas aprendeu a manusear a fim de realizar o trabalho. Na ocasião, ainda se apresentava com figurino e maquiagem de palhaço, de acordo com os demais integrantes do grupo, embora quase não entrasse em cena. Mais tarde, à medida que foi amadurecendo enquanto performer solo, ele construiu para si esse personagem – o “Homem-Banda”. Na sua primeira versão, os elementos de ligação entre os diversos instrumentos musicais eram ainda mais rudimentares que os de hoje: o bumbo, por exemplo, era preso por um cabo de guarda-chuva, ao qual era acoplada uma baqueta felpuda que rodopiava no ar antes do golpe sonoro, acionado pelo pé direito. Era também usada uma lata de manteiga “Aviação” amassada, presa embaixo do pé esquerdo, além do apito kazú e o acordeon. Quando conheci o artista em 2009, durante o III Encontro de Teatro de Rua do MTR-RS45, a caracterização do personagem estava marcada em seu próprio corpo, pois ele usava cavanhaque e um corte de cabelo exótico. Quando o reencontrei no final de 2011 para entrevistá-lo, essas marcas corporais já não existiam e, por causa disso, não o reconheci imediatamente. Segundo Mauro, hoje o HB não necessita de praticamente nenhuma caracterização. O seu figurino atual se baseia apenas na praticidade de movimentos, na leveza do tecido, na universalidade do contraste preto-branco (entre a camisa e o fraque), e não na ideia de uma estética visual especialmente construída, onde o ator “veste” o personagem. A intenção que se revela, aqui, é a de valorização da performance simultaneamente musical e teatral, do movimento do corpo, da sonoridade que depende dessa liberdade de gestos, da dramaticidade que é possível extrair da música, da relação com o público. Ou seja, quem está em cena é “Mauro-Lauro-Paulo, o Homem-Banda”, mas é também Mauro Bruzza. O personagem batizado com o próprio nome, satirizado, demonstra que, quem está ali no momento mesmo do fato cênico em sua fugacidade, é a pessoa, e não um personagem que o ator “incorporou” momentaneamente para a representação teatral.

45 Movimento de Teatro de Rua do Rio Grande do Sul.

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1.9 O corpo do performer como princípio da mousiké

E

mbora seu trabalho esteja centrado na música, o HB tem, no próprio corpo, o veículo mais poderoso de sua arte. O ator não apenas interpreta a música, mas é o próprio agente de sua criação; ou seja, ele performa a música que produz com o próprio corpo. É através dessa musicalidade corporificada que se estabelece uma relação sensorial e afetiva da obra artística com o espectador-ouvinte.

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A execução musical e instrumental, distribuída por todo o espetáculo, já cria uma espécie de “dramaturgia-coreografia”. Ou seja, o movimento que o corpo do performer desenha no espaço é também o desenho da partitura musical que o instrumento executa e que o espectador, por sua vez, vê e ouve simultaneamente. O corpo, nesta situação singular, é o instrumento musical que soa; não se trata de uma analogia, mas de um fato, pois é do movimento corporal do ator/performer/dançarino que nasce o ritmo e a melodia que se espalham pelo espaço. Evidencia-se que a destreza musical não é o único atributo do ator-músico; dele é exigida também a realização de uma atuação cênica, além da estritamente técnico-instrumental. O conjunto formado pelo corpo do artista em movimento e a sonoridade que este movimento produz com os instrumentos traduz a musicalidade do ator que é colocada em jogo nessa ação cênica, e que configura a “cena” à qual os espectadores assistem. Mas, observe-se que se trata de uma cena ao mesmo tempo vista e ouvida, pois a sua efetivação é intrinsecamente dependente daquele movimento corporal e daquela sonoridade. Em outras palavras, o que é percebido como “cena” é uma construção essencialmente corporal e musical, uma “cena sonora” para a qual o teatro ocidental da atualidade não encontrou, ainda, designação mais adequada que a da antiga mousiké. Ao criar sonoridades expressivas, que descrevem coisas (emoções, ações, situações etc), o ator/performer cria uma dramaturgia sonoro-musical possível somente naquele momento mesmo da ação corporal. Ao executar um trinado no acordeon, exemplificando musicalmente um momento de tensão e suspense no final de uma canção, por exemplo, o ator fica praticamente “no ar” - pois eleva uma das pernas para realizar, com o chocalho de guizos (preso ao tornozelo por um elástico), um acompanhamento percussivo altamente sugestivo. É perceptível, nesse gesto corporal, que o ator não precisaria elevar tanto a perna para executar a percussão com o chocalho de guizos; contudo, ele o faz para dramatizar propositalmente essa passagem musical e o efeito suspensivo que produz no ouvinte. Ele sublinha, com o corpo, a ideia de suspense contida no som do acordeon e do chocalho, soando juntos num longo acorde dissonante. Nesse momento, o corpo do ator está também “em suspenso”, criando uma imagem de perigo, evocando na mente do espectador o instante de imobilidade que antecede a queda, o “parar de respirar”, o “ficar sem fôlego” ou outras imagens sonoras que o circo sabe explorar muito bem, há séculos.


Capítulo 1 - Mousiké

Nos circos tradicionais, de “antigamente”, havia a presença obrigatória de uma banda, munida principalmente de instrumentos de percussão e sopro – a charanga. Além de propiciar um ambiente de alegria, atraindo o público para a lona com o seu vasto repertório de marchinhas e valsas, os músicos davam vida a certos sons, produzidos em momentos específicos do espetáculo, cuja função era o acompanhamento dinâmico da ação. Essa sonoplastia, ritualizada pelo uso no tempo, constitui hoje um verdadeiro inventário de signos sonoros que todos nós reconhecemos. Por exemplo, um rufar de tambor a proporcionar o devido suspense antes de um salto mortal e a finalização sinfônica tradicional ao término dessa ação arriscada, mostrando o seu pleno sucesso (o famoso “Tã-rã!!!”). Os temas musicais mais elaborados eram destinados aos números mais longos, e utilizados com o propósito óbvio de colocar o público “em sintonia” rítmica com o gestual do artista, como seria o caso de uma valsa suave, mais lenta e doce, a delinear os passos da etérea bailarina sobre o fio de arame; ou das marchas militares, metricamente marcadas, para os grandes deslocamentos, acrobacias e outros movimentos onde uma grande energia física fosse exigida. De modo semelhante, após uma cena de suspense como a descrita acima, o artista finaliza com uma ação física de impacto, procedimento esse tipicamente circense. Nesse momento, ele “cai” novamente no ritmo inicial da canção, executada agora num andamento aceleradíssimo (presto). Passinhos curtos passeiam pelo espaço acompanhando cada tempo musical, cada batida das percussões, oferecendo ao espectador a imagem de um boneco de corda ou uma caixinha de música. Nesse momento, o HB é um brinquedo que encanta a todos.

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A CONTEMPORANEIDADE DO TEATRO DE RUA: POTÊNCIAS MUSICAIS DA CENA NO ESPAÇO URBANO

1.10 A dramaturgia musical de HomemBanda

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auro-Lauro-Paulo, o HB é um espetáculo aparentemente simples e ingênuo, que joga diretamente com o público. Mas isso é somente um lado da questão; do outro está a pesquisa de materiais sonoros; a invenção de uma técnica instrumental própria; a elaboração do jogo com o público; o desenvolvimento do gesto significativo; e, sobretudo, a construção dramatúrgicomusical do espetáculo. Do ponto de vista da dramaturgia circense, pode-se traçar um paralelo com os números; em Homem-Banda, cada música é um número que se desenvolve através da qualidade dos movimentos, da expressividade gestual, do uso do espaço cênico, do jogo e principalmente, da narrativa sonora que a própria música cria com seus ritmos, tensões e distensões.

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No espetáculo, o HB é narrador de si mesmo. Como num show musical, ele apresenta verbalmente ao público a próxima canção, ou comenta a anterior, traçando vínculos entre elas e contextualizando a performance de modo a situar o espectadorouvinte no tempo e no espaço da música. À medida que a apresentação decorre, delineiase uma narrativa global onde cada música adquire significação dentro do conjunto. Assim, uma performance que poderia, numa visão restritiva, ser qualificada apenas como “musical”, completa-se com a verbal e vice-versa, garantindo a conexão própria de uma dramaturgia essencialmente musical, nos moldes da mousiké. Por exemplo, antes de iniciar I fell good - grande sucesso do ídolo da black music norte-americana, James Brown – o performer conta parte de sua própria história como artista-solo, destacando o sentimento de solidão que essa condição traz e que no entanto se dilui, no encontro com o público. A narração verbal antes da música propriamente dita já é, em si, um discurso sonoro e musical do fato vivido pelo artista; além de emitir as palavras com uma entonação que acompanha sonoramente os sentimentos aí envolvidos (primeiro a solidão, depois a alegria), simultaneamente é executada uma “sonoplastia” desse relato ao acordeon, por meio de acordes sustentados ou linhas melódicas curtas, alternadas e/ou sobrepostas em contraponto à fala, os quais dialogam com cada nuance emocional do relato. A trajetória da solidão à alegria é descrita musicalmente por uma longa curva ascendente, em que a dinâmica46 vai-se modificando gradualmente de um pianissimo para um fortissimo, cujo crescendo é concomitante a um accelerando que estanca subitamente quando o ator/performer chega ao ápice de sua narração e, em seguida, inicia o canto propriamente dito, expondo musicalmente ao público o auge do entusiasmo ao qual se referira antes. Na perspectiva da mousiké, pode-se observar que o desenvolvimento sonoro46 A dinâmica admite gradações, que variam de molto pianíssimo (ppp) a molto fortíssimo (fff).


Capítulo 1 - Mousiké

musical do espetáculo - agenciado pela mudança de dinâmicas, ritmos e timbres sonoros - acompanha as alterações do movimento corporal, o qual pode transitar da lentidão para a agitação paroxística, como no exemplo acima. Ou, ainda, criar imagens que estimulam o imaginário do espectador47. Trata-se, portanto, do manuseio, proposital e consciente, de procedimentos musicais na construção de uma dramaturgia cênica. O ator acelera, desacelera, paralisa momentaneamente, gesticula, criando e intensificando tensões na plateia a partir da linguagem musical produzida e veiculada pelo corpo, a fim de obter a sua adesão ao clima emocional pretendido. Desse modo, pode-se dizer que diferentes elementos musicais, articulados à atividade performática, operam agenciamentos do afeto no público. Ao tornar audível o conteúdo afetivo da música - contido não apenas nas letras das canções, mas também nas estruturas rítmicas, na organização melódico-harmônica e no estilo de interpretação vocal que privilegia dinâmicas musicais distintas - o performer está também adotando como “seu” um texto do qual se torna o veículo temporário, tal como o ator dramático o faria como intérprete de um personagem, numa peça teatral. Duas diferenças são aqui, porém, essenciais: uma é que o texto interpretado, além de verbal, é também musical, e sua interpretação exige uma habilidade praticamente inexistente para o “ator” no sentido convencional do teatro dramático, dialogado. Para que a atuação se efetive neste tipo de performance é preciso que o ator seja também músico, uma vez que entram em jogo outras exigências, tais como a instrumental e a do canto. A outra é que em nenhum momento Mauro-Lauro-Paulo, o HB, deixa de ser Mauro Bruzza, a pessoa que fala de si mesma nos diversos momentos em que narra, toca, dança e canta, e é esta condição de multiplicidade em cena que faz dele simultaneamente ator, performer e músico.

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47 Como, por exemplo, num momento em que o ator cria com o movimento do corpo a imagem de um brinquedo de corda se deslocando pelo espaço central da roda de espectadores, e a sonoridade dos chocalhos produzida por esse movimento completa a imagem.


A CONTEMPORANEIDADE DO TEATRO DE RUA: POTÊNCIAS MUSICAIS DA CENA NO ESPAÇO URBANO

1.11 O espaço da cidade como lugar de trabalho

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auro Bruzza diz que o HB é, “por excelência, uma figura da rua”. Seu habitat natural é a rua. Ele praticamente não existe em espaços fechados, e muito menos num palco teatral, porque a sua natureza é a de um ser errante, nômade, cujo atributo primário é andar pelo mundo. Por isso foi eleito, como seu espaço preferencial de trabalho, o Brique da Redenção, tradicional feira de artesanato que é realizada desde os anos de 1970 no Parque Farroupilha, localizado em área próxima ao centro da cidade de Porto Alegre, onde reside. De acordo com as proposições apresentadas pelo arquiteto e urbanista Kevin Linch na obra A imagem da cidade (LINCH, 1988), a grande área verde do parque pode ser considerada um cruzamento ou ponto nodal, pois se apresenta como um ponto estratégico, localizado na junção de três regiões da cidade: centro, e os bairros do Bonfim e Cidade Baixa. Tanto pelo seu caráter físico – trata-se de um largo rodeado de outros elementos - assim como a capacidade de condensar em si hábitos da população, o parque48 constitui um elemento urbano que se reveste de grande importância para o habitante da capital gaúcha. Segundo Linch,

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O conceito de cruzamento está relacionado com o de via, pois os cruzamentos são típicas convergências de ruas, fatos do percurso. Estão, semelhantemente, ligados ao conceito de bairro, devido ao seu caráter de núcleo, que, por sua vez, é o foco intensivo, o centro polarizador do bairro (LINCH, 1988, p. 59). A Feira de Artesanato do Bonfim, carinhosamente apelidada como “Brique da Redenção” pelos seus frequentadores, é montada aos domingos, dia em que ali se comercializam produtos de artesanato, antiguidades e alimentos. A área da feira é também é um espaço de lazer por onde transitam muitas pessoas livremente, motivo pelo qual se tornou um local habitual de apresentação de artistas de rua, que ao longo do dia performam, ali, suas habilidades poéticas, musicais, capoeirísticas e acrobáticas. Quando se apresenta neste espaço, Mauro não estabelece um território fixo; não tem um “ponto” como outros artistas de rua locais (o Homem-do-gato49, Zé da Folha50, o conjunto musical Bluegrass, o mini-teatro de bonecos Tieli, dentre outros 48 Em 1997, o Parque Farroupilha foi considerado “Patrimônio Histórico e Cultural de Porto Alegre”. 49 Personagem popular que vende apitos cujo som imita o miado de um gato. Para atrair fregueses, o artista realiza uma performance em que tenta, por vários meios, fazer com que um suposto gato saia de dentro de um saco. O artista interage todo o tempo com o animal, que responde com “miados” – na verdade, o som do apito - entretendo a plateia que reage entre a indignação e o riso. 50 Músico que usa uma folha enrolada entre os lábios, executando com esse inusitado “instrumento de sopro” melodias conhecidas, enquanto faz o seu próprio acompanhamento ao violão e com percussão de tampinhas de garrafa presas aos sapatos.


Capítulo 1 - Mousiké

menos frequentes)51. Ao contrário; ali o HB se apresenta somente em deslocamento: vai caminhando e dançando, enquanto a apresentação se efetiva. Em alguns momentos a atividade exige que permaneça mais estável no espaço, para que possa executar a dramaturgia/coreografia de algumas canções, ou “reger” admiravelmente a audiência em jogos musicais. Mas isso é momentâneo, e logo o HB continua a sua jornada. A importância dessa característica nômade do personagem – e do espetáculo em si – é o fato de que se trata de um aspecto cuja plenitude somente uma performance em espaço aberto permite alcançar. A principal razão disto é que, a musicalidade da performance de Mauro é oposta à estaticidade física de uma execução musical tradicional, em que o músico permanece parado no mesmo lugar, enquanto toca e/ ou canta “de frente” para os ouvintes. Ao se deslocar pelos caminhos do Brique da Redenção, ou pelas ruas da cidade, o ator-músico está propiciando uma experiência perceptiva diferente aos espectadores-ouvintes: a sua presença pode ser detectada pelas pessoas, mesmo antes de ser vista. Além disso, enquanto fonte sonora que se desloca no espaço, a música produzida pelo HB em movimento convida os espectadores-ouvintes a seguirem com ela a sua trajetória. E mais: enquanto a música é ouvida, permanecem ainda atuantes os outros estímulos sonoros do espaço aberto. Estes sons, presentes tanto para o público quanto para o artista, são muitas vezes pontos de partida para as improvisações. O espetáculo não se constrói apenas com a musicalidade criada pelo próprio performer, mas também pelos sons presentes no ambiente sonoro do espaço circundante à cena, como buzinas de automóveis que passam próximos ao espetáculo ou as vozes de pessoas do público. O HB consegue explorar, em suas andanças, o potencial de teatralidade existente numa fonte sonora não estática que convida o espectadorouvinte a seguir com ele essa linha melódica que se desloca pelo espaço, colocando em cena a mobilidade e a multiplicidade sonora da rua. O trabalhar e o brincar, o sério e o lúdico encontram em Mauro-Lauro-Paulo uma relação de total cumplicidade. Obrigação e brincadeira se complementam na relação homem/trabalho, integrando sem conflitos as duas atividades. E isso também se manifesta na declaração do artista de que trabalhar na rua, embora resultante de uma contingência da sua trajetória profissional, foi também uma escolha pela liberdade da rua. Liberdade essa que, avalia, sempre caminhou ao lado da possibilidade de ganhar o próprio sustento. Trabalhar como artista de rua representa, para Mauro Bruzza, a possibilidade de viver com dignidade, realizando algo que lhe dá prazer e liberdade. Durante anos, trabalhou viajando por vários países da Europa, até resolver regressar ao Brasil. Hoje, desenvolve outras atividades artísticas paralelas à da rua, mas a de performer solo continua sendo para ele a mais essencial e querida, pois é a rua o espaço onde se sente mais à vontade para criar e experimentar novos procedimentos cênicos. Por exemplo, o “ritual” de “passar o chapéu”52 no final da apresentação – que o 51 Informação fornecida por Mauro Bruzza, em entrevista concedida à pesquisadora. 52 Procedimento adotado pela maioria dos artistas e grupos de teatro de rua, o “chapéu” é o momento do espetáculo em que é oferecido ao público um ou mais objetos cênicos (pandeiros, sacolas, ou o chapéu) como recipiente para a coleta de doações voluntárias. O seu uso levanta polêmicas mesmo entre os fazedores teatrais; estas, contudo, não serão abordadas neste trabalho uma vez que os aspectos aí implicados – históricos, financeiros, simbólicos - mereceriam um aprofundamento

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ator assume como parte integrante desse trabalho – é realizado de vários modos. A que mais chama a atenção pela originalidade é a utilização de um dispositivo “opcional” (uma haste de arame) onde o seu chapéu é afixado no próprio instrumento (em posição invertida) de modo que o espaço oco destinado à cabeça torna-se um recipiente onde o público pode depositar o pagamento pelo espetáculo, caso deseje fazê-lo. Isso permite ao performer receber dinheiro mesmo estando com as mãos ocupadas em tocar a “banda”, além de tirar proveito da imagem cômica desse estranho e agitado personagem que não para “nem para passar o chapéu”. O artista também comenta a impressão que sente, sempre que se apresenta, de que para o público não há dúvidas de que se trata de um trabalho; que as pessoas, em qualquer lugar e seja qual for a sua condição social, “sabem” que o HB está ali trabalhando, e por isso “deverá ser pago no final”. Alguns espectadores chegam a ficar com o dinheiro na mão, esperando o término da apresentação para colocá-lo no chapéu do artista – coisa que pude constatar durante o espetáculo ao qual assisti. Esse momento é transformado em um “número” a mais dentro da apresentação, do qual o artista se vale para criar novas oportunidades de interação direta com a plateia, seja fazendo uma frase musical “de suspense” quando alguém demora mais para pegar o dinheiro, seja executando um “comentário musical”53 de satisfação ou insatisfação, de acordo com a quantia dada.

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Todavia, esse modo de vida poderia também ainda ser interpretado, além de uma opção pela arte, como uma estratégia criada pelo ator para escapar às condições restritivas impostas ao cidadão no mundo globalizado - estratégia essa que estabelece uma relação próxima ao conceito de “micropolítica”, tal como explicitado na obra Micropolítica: cartografias do desejo (GUATTARI e ROLNIK, 2010). O livro, escrito pela filósofa e psicanalista Suely Rolnik com base nas conferências proferidas por Félix Guattari por ocasião de sua viagem ao Brasil em 1982, apresenta o pensamento deste filósofo sobre as notáveis transformações sociais e econômicas que se delineavam por todo o globo naquele momento, e que segundo ele, desempenhavam papel preponderante no processo de redemocratização da sociedade brasileira, descortinando para este país a possibilidade de articular macro e micropolíticas em direção à “construção de novos contornos da realidade” (GUATTARI e ROLNIK, 2010, p. 10). Contrariamente a uma abordagem da “crise mundial” a partir de explicações de cunho sociológico ou de dados econômicos, Guattari introduz no debate questões até então limitadas à esfera da “alma” e da psique, tais como o desejo, o sentido da existência, as aspirações humanas, aspectos esses comumente considerados como externos aos “grandes” problemas políticos e sociais. Todos vivemos quase que cotidianamente em crise, crise da economia, mas não só da economia material, senão também da economia do desejo que faz com que mal consigamos articular um certo jeito de viver e ele já caduca. Vivemos sempre em defasagem em relação à atualidade de nossas experiências. Somos íntimos desse incessante sucateamento de modos de existência promovido pelo mercado que que iria desviar o foco da pesquisa. 53 Técnica de sonoplastia que consiste na introdução de um pequeno trecho, uma frase melódica conhecida, induzindo o ouvinte a estabelecer uma relação entre esta e o fato “real” em curso.


Capítulo 1 - Mousiké

faz e desfaz mundos: treinamos, dia após dia, nosso jogo de cintura para manter um mínimo de equilíbrio nisso tudo e adquirir agilidade na montagem de territórios (GUATTARI e ROLNIK, 2010, p. 15). Essas discussões iniciavam pela constatação de que se operava em escala internacional a instauração de um novo regime – por ele chamado Capitalismo Mundial Integrado (CMI)54 – no qual será por ele atribuído papel fundamental à subjetividade, ao potencial de criação do desejo, “como principal fonte de extração de mais-valia55, no lugar da força mecânica do trabalhador braçal” (GUATTARI e ROLNIK, 2010, p. 10). No discurso de Guattari, conceitos como identidade e individualidade irão dar lugar ao de singularidade, que ele emprega para problematizar e ampliar questões situadas simultaneamente na esfera do particular e do político, agora na perspectiva de uma “política das relações amorosas”. São adotados por ele os termos subjetividade, para indicar a instância subjetiva aí implicada, e subjetivação (ou produção de subjetividade) como substituto de ideologia, conceito este considerado por ele insuficiente para dar conta da amplitude da nova cultura capitalística e das alternativas em termos de modos de viver e de sentir. Traçando analogias com o mundo industrializado, Guattari irá falar de uma lógica “serializada” de produção da subjetividade nas sociedades capitalísticas, especializada em fabricar os conteúdos que o sujeito acredita serem “seus” – comportamentos, percepções, sensibilidade, imaginação, relações pessoais - na verdade, produtos dessas “linhas de montagem”. Para o filósofo, o que caracteriza os modos de produção capitalísticos56 é que, além de funcionar no registro do monetário e do capital, eles atuam também no âmbito da subjetividade e da cultura, ou seja, “o capital ocupa-se da sujeição econômica, e a cultura, da sujeição subjetiva” (GUATTARI e ROLNIK, 2010, p. 21). À luz das reflexões de Félix Guattari, pode-se dizer que a criação do personagem HB é parte de um processo mais amplo de “invenção de estratégias para a constituição de novos territórios, outros espaços de vida e de afeto, uma busca de saídas para fora dos territórios sem saída” (GUATTARI e ROLNIK, 2010, p. 18), aventura à qual inúmeros artistas se lançam ao buscar a rua como o seu legítimo lugar de trabalho, fugindo da lógica industrial que isola o trabalhador do mundo circundante, mantendo-o confinado em espaços fechados. Assim, o ator Mauro Bruzza exerce conscientemente o seu “direito à cidade” (LEFEBVRE, 2001), vivendo efetivamente como artista de rua, retirando o seu sustento da liberdade que a rua lhe oferece. Mérito obtido por atos de coragem, como os de recusarse a fazer parte das “linhas de montagem” capitalísticas e subverter a lógica da máquina de subjetivação serializada à qual somos todos submetidos cotidianamente, insurgindo-se contra a padronização do desejo que se insinua em todos os campos profissionais - inclusive o artístico - em favor da singularidade da própria existência. 54 Rolnik explica que desde os anos de 1960 o termo já era proposto por Guattari como alternativa ao de “globalização” – o qual, segundo ele, mascarava o sentido essencialmente econômico, capitalista e neoliberal do fenômeno de mundialização que se iniciava. Na nova perspectiva, o capitalismo estende o seu controle a toda atividade humana, inclusive ao inconsciente, ao desejo e ao sonho. 55 Lucro. 56 Por capitalístico, Guattari define o modo de produção capitalista que se estende a países de diferentes orientações econômicas, além daqueles tradicionalmente qualificados como “capitalistas”, incluindo-se aí o “Terceiro Mundo” e as economias do leste europeu.

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Ser Tão Ser - Por: Augusto Paiva

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verbete recepção é definido pelo Dicionário de Teatro de Patrice Pavis (2003) como “interpretação da obra pelo espectador” e “análise dos processos mentais, intelectuais e emotivos da compreensão do espetáculo”, o que implica, nessa atividade, um amplo espectro de possibilidades de confrontação do espectador com o objeto artístico. Mas, ainda que logo a seguir o autor utilize como recurso explicativo uma imagem desse espectador como que imerso “num banho de imagens e sons”, ao desenvolver suas considerações sobre os códigos perceptivos da recepção e, mais particularmente, os de percepção do espaço, a atividade é descrita apenas dentro de um quadro referencial visual: [...] examina-se como o palco ou o dispositivo cênico apresenta a realidade artística; como se utiliza a perspectiva; quais são as possíveis distorções da visão; em que medida o espetáculo está armado em função do ponto de vista dos espectadores (PAVIS, 2003, p.330). A dimensão auditiva do espetáculo - onde o espectador estaria “imerso” e que, exceto para espectadores totalmente surdos, é parte constituinte dessa “realidade artística” não é sequer mencionada, neste trecho de uma importante obra de referência para os estudos teatrais. Além disso, o autor usa como referência espacial prioritária para falar da visualidade do espetáculo, a noção de perspectiva1.

1 Coerente com o princípio de profundidade - construída pelo artifício abstrato do “ponto de fuga” inscrito no painel plano, de fundo, do palco italiano - a perspectiva no teatro é construída a partir do ponto de vista do observador “ideal”, sentado no centro da plateia, a qual se mostrou totalmente pertinente ao nascente teatro burguês; tornou-se, não obstante, insuficiente como referência para o teatro que a partir do século XX tratou de explodir a estrutura convencional do palco (e, junto com ela, a abstração da perspectiva).

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Na Renascença, “a perspectiva baseava-se na ordenação racional do espaço e do tempo como requisito à construção de uma sociedade mais avançada” (HARVEY apud GASTAL, 2006, p.85), em concordância ao sentimento da época de se buscar, no mundo, espaços geométrica e sistematicamente delineados, efetivando no campo das artes visuais a ideia de um observador distanciado da paisagem observada. Desse modo, ao colocar a noção de perspectiva como o centro de sua definição de recepção, Pavis retoma um princípio espacial que contribuiu para corroborar na arte do teatro o paradigma cartesiano. O século XX foi profícuo na demolição das verdades estéticas até então instituídas sobre o teatro no ocidente, e a questão dos códigos de percepção do espaço foi, nesse processo, fundamental para grande parte de artistas-pesquisadores. Para alguns de seus expoentes, como o encenador inglês Peter Brook, que realizou muitas experiências fora dos edifícios teatrais - segundo ele mesmo, “centenas de apresentações nas ruas, em cafés, em hospitais, nas antigas ruínas de Persépolis, em aldeias africanas, em garagens norte-americanas, em barracões, entre os bancos de concreto de parques municipais” (BROOK, 2008, p.4) – o sentido da escuta não apenas representou uma possibilidade a mais de recepção do espetáculo por parte do espectador, mas um verdadeiro ponto de inflexão na própria postura do diretor, como metáfora de aprofundamento das relações intersubjetivas existentes no ofício teatral. Não por acaso, Brook finaliza a sua obra A porta aberta com a seguinte observação: O que o diretor mais precisa desenvolver em seu trabalho é o sentido da escuta. Dia após dia, quando ele interfere, comete erros ou apenas observa o que está ocorrendo na superfície, por dentro deve estar escutando, escutando sempre os movimentos secretos do processo oculto. [...] O teatro é um ofício. O diretor trabalha e escuta. Ele ajuda os atores a trabalhar e escutar (BROOK, 2008, p.102).

76 Defendo aqui a necessidade de ampliarmos os nossos canais perceptivos, aprofundando o entendimento do espetáculo teatral, como propõe Brook, de modo a percebê-lo como uma arte capaz de abranger simultaneamente várias camadas de recepção igualmente importantes, sem que a percepção de uma implique na obliteração de outra. Não se trata, evidentemente, de substituir uma primazia (visual) por outra (auditiva), mas de simplesmente mergulharmos mais fundo na esfera receptiva da obra de arte, para compreendermos melhor os seus “movimentos secretos”. E isto não implica somente uma compreensão metafórica do termo. A escuta sensorial e fenomenológica pode ser entendida, como propõe Brook, enquanto sinônimo de disponibilidade para com o outro e o mundo. Porém, se o “ouvir”, possibilitado pelo aparelho auditivo, cumpre uma função fisiológica, o ato da “escuta” vai além e se converte num meio para a construção de sentido do mundo e da realidade. Numa concepção semiótica da audição, isso significa que, mesmo “ouvindo” perfeitamente do ponto de vista fisiológico, escutamos apenas aquilo que selecionamos, consciente ou inconscientemente, para escutar. Assim como se dá com os demais sentidos do aparelho sensorial, a escuta também é uma construção histórico-cultural e, como tal, condicionada pela época na qual está


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inserida (HARNONCOURT, 1998). Foi preciso que houvesse uma evolução da audição, assim como da visão, para que o ser humano pudesse se adaptar a diferentes contextos de acordo com as suas necessidades de sobrevivência, modificando, nesse processo, aspectos fisiológicos, sociais e psicológicos da escuta (JOURDAN, 1998). Entretanto, se na vida cotidiana o fenômeno da escuta já adquire contornos imprecisos em função das condições vividas concretamente pelo ouvinte, na apreciação artística a questão se problematiza ainda mais, uma vez que o que está em jogo num espetáculo teatral não é a sobrevivência física, mas a inserção do homem numa rede de relações sem as quais a sua sobrevivência como ser social, também é, de certa forma, interrogada. Se o teatro ocidental sofreu grandes modificações do ponto de vista da sua conformação estrutural, passando por diversas formas espaciais e arquitetônicas ao longo de sua história, uma vez que “a demarcação do espaço, como a do tempo foram certamente fundamentais para toda e qualquer configuração social do ser humano” (KOSOVSKI, 2005, p. 9)2, não parece provável que tais mudanças não tenham também operado, em igual medida, influências significativas sobre os processos de recepção por parte do espectador. Diferentes configurações espaciais solicitam pontos de vista - e de escuta também diferenciados: a recepção do espetáculo teatral pelo cidadão da polis no antigo e ruidoso anfiteatro grego não era, certamente, idêntica à do cidadão burguês no moderno edifício teatral, com a sua exigência de “silêncio” para a abertura das cortinas e entrada dos atores no palco. Assim como também não o é para os teatros que desconhecem as convenções das salas fechadas ou, ainda, os que delas saem para se entregarem à aventura da cidade. A necessidade de compreender como se dá a recepção teatral – pelo viés da sua audibilidade - no espaço multifacetado e polifônico da cidade, levou-nos então à busca de referenciais conceituais que digam respeito ao universo sonoro no qual o espetáculo de rua está “imerso” (resgatando-se, aqui, o termo utilizado por Pavis) e do qual retira parte essencial de sua poética. “Escuta” é, aqui, a matriz conceitual que permite dar início a uma reflexão sobre a musicalidade do espetáculo de rua. A partir da postura de “espectador-ouvinte” e de uma recepção que busca privilegiar, temporária e propositalmente, o sentido da audição, serão aqui apresentados aspectos do espetáculo usualmente omitidos numa recepção teatral convencional. Em seguida, a interpretação artística da experiência musical encontrada num espetáculo de rua, ou seja, a musicalidade de Ser TÃO ser: narrativas da outra margem3 – criação coletiva do Buraco d’Oráculo, grupo de teatro de rua de São Paulo - é utilizada como meio de vislumbrar uma estética musical própria desta modalidade teatral, onde importantes aspectos de sua audiovisibilidade podem ser observados e discutidos sob o viés da escuta. 2 Em seu artigo A casa e a barraca, Lidia Kosovski apresenta cinco configurações espaciais que caracterizaram o teatro ocidental em distintos períodos históricos: o anfiteatro grego, o palco múltiplo medieval; o palco elisabetano, o espaço renascentista da tragédia clássica e o palco italiano (KOSOVSKI, 2005, p. 9-10), acrescentando a estes os espaços “de arquiteturas móveis, voláteis e efêmeras, sem fixidez” do teatro do século XX que “reenglobou o espaço físico da cidade como palco” (KOSOVSKI, 2005, p. 11). 3

Respeitou-se, aqui, a grafia proposta pelo grupo.

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O conceito musical chave a ser desenvolvido, aqui, será o de imagem sonora4. O espetáculo que possibilita uma reflexão em que este e o conceito de escuta se articulam, foi selecionado por criar, em cena, sonoridades cujas características musicais remetem o espectador-ouvinte a outros espaços-tempos, distantes do presente da cena. Isto vem a romper a relação usual de causalidade linear entre música e cena e demonstra - a despeito do senso comum vigente sobre a música no teatro como elemento “decorativo” – que o impacto das imagens sonoras produzidas pelos atores contribui para multiplicar, polifonicamente, os sentidos do espetáculo. A recepção audiovisual da encenação oferece, ainda, a oportunidade de verificarmos a construção de uma dramaturgia musical que nasce de um diálogo entre o cidadão e a cidade, tensionado pelas contradições que nascem desse encontro nem sempre pacífico. Ao mesmo tempo, a forte musicalidade presente em Ser TÃO ser estabelece vínculos afetivos fundamentais com o público que o assiste, produzindo subjetividades no coração da cidade.

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4 Originalmente, a noção de imagem sonora se relaciona com um tipo de construção mental pré-conceitual, o que é corroborado por pesquisas no campo da neurologia. As imagens sonoras – ou seja, imagens simbólicas evocadas por sonoridades – formam-se no córtex (superfície e tecido subjacente) onde são identificadas, armazenadas na memória e, eventualmente, enviadas a outros centros cerebrais (ROEDERER, 2002).


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2.1 Imagem

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conceito de imagem tem inspirado reflexões teóricas em diferentes áreas do conhecimento, algumas das quais trazem consigo concepções que contribuem para clarificar o conceito musical chave deste capítulo, imagem sonora.

As imagens são tradicionalmente entendidas de dois modos: em sua vertente representativa, são registrados os aspectos figurativos dos objetos; na não-representativa, a imagem é captada em seus componentes abstratos (cor, luz etc). Quando materializada em suporte bidimensional, a ideia de visualidade recebe “pacificamente” o conceito de imagem; porém, quando é aplicada a suportes tridimensionais – como a cidade, por exemplo – é mais polêmica por envolver outras dimensões (do imaginário e do simbólico), indo além de uma apreensão estritamente fenomenológica (GASTAL, 2006). Essa interpretação sucinta do sentido da imagem pela autora de Alegorias urbanas: o passado como subterfúgio é, aqui, o ponto de partida para a apresentação de outros pensadores que também se debruçaram sobre o tema a partir de reflexões sobre as distintas dimensionalidades do espaço. O filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flüsser (1920-1991) define o termo “imagem” como uma “superfície significativa na qual as ideias se interrelacionam magicamente” (FLÜSSER, 1985, p. 5). Como especialista na arte de fotografar, ele vincula as imagens fotográficas ao esforço humano, abstrato, de traduzir as quatro dimensões da vida cotidiana - o espaço tridimensional, somado ao tempo -, conservando-as nas duas dimensões do plano. Ao decodificar as imagens assim construídas, o processo se completaria no que ele define como imaginação: a “capacidade de criar e decifrar imagens” (FLÜSSER, 1985, p.7). Com Flüsser, encontramos o significado da imagem na síntese entre duas “intencionalidades”: a do emissor e a do receptor. Haveria, entre ambos, um espaço interpretativo em que o olhar estabelece relações significativas, temporais, com a imagem: um tempo circular, que “tende a voltar para contemplar elementos já vistos” e, por isso mesmo, totalmente diferente daquele formado por conexões puramente causais e lineares entre os eventos, uma vez que nesse vagar o olhar retorna para os elementos preferenciais, os quais se tornam para o observador os portadores do significado global da imagem. Seria esse o caráter mágico das imagens: funcionar como uma mediação entre o homem e o mundo, no decurso das sociedades humanas. As considerações de Flüsser estão em consonância com os estudos do filósofo canadense Herbert Marshall McLuhan (1911-1980) para quem, nas culturas audiotáteis, a visão está baseada na homogeneidade, pautando-se não por um ponto de observação exterior à cena ou ao objeto observado como nas culturas letradas, deixando, antes, que o observador seja absorvido plenamente na cena. A visão de um caçador, por exemplo, seria semelhante ao processo de “scanning” de uma imagem, em que todos os elementos da superfície observada são levados em conta embora alguns sejam eleitos

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como preferenciais. Já a cultura letrada urbana supõe uma ênfase visual baseada na continuidade e no nexo sequencial, operando automaticamente “a tradução do sonoro mundo tribal para a linearidade e a visualidade euclidiana” (McLUHAN, 1972, p.101). A cisão entre visão e audição, proporcionada pelo alfabeto fonético, é para ele o fator que instaura a hegemonia da primeira sobre a segunda, transladando o homem “da esfera tribal para a esfera civilizada” (McLUHAN, 1972, p. 52). “Civilização”, diz McLuhan em A galáxia de Gutenberg, é o termo que deve agora ser usado tecnicamente para significar o homem destribalizado, para quem os valores visuais têm prioridade na organização do pensamento e da ação. Não visa a dar qualquer novo significado ou valor à civilização, mas somente especificar-lhe o caráter (McLUHAN, 1972, p. 52).

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Estendendo o seu estudo acerca da cultura “fonética” para a da era eletrônica, o autor argumenta sobre o deslocamento, hoje em curso, da orientação visual para a auditiva ao afirmar que “a nova física é [do] domínio auditivo”, fenômeno que se pode verificar, segundo ele, no renascimento das formas orais de comunicação, sobretudo nas mídias eletrônicas de alcance global. Tal ideia se encontra, de certa forma, em consonância com as de Gastal sobre as transformações visuais que estariam ocorrendo no mundo urbano atual. Para a pesquisadora, na cidade pós-moderna o olhar do citadino volta a ser como “o olho na natureza, com movimentos rápidos de pupila, saltando de objeto em objeto, apto à caça e à detecção do predador não mais entre as folhagens, mas entre o emaranhado de estímulos da cidade” (GASTAL, 2006, p. 177). Com base nas considerações acima, pode-se supor então, que a complexidade do ambiente urbano contemporâneo estaria levando o homem a retomar formas de percepção multidirecional, como as do tato e da escuta, a fim de sobreviver nesse meio ambiente que, com frequência, é sintomaticamente comparado a uma “selva”. Sobre a escrita linear, Flüsser constrói a tese de que esta teria sido criada em decorrência da crescente incapacidade do homem de decifrar as imagens das narrativas mitológicas em sua função original de representar magicamente o mundo - num processo de transcodificação daquele tempo circular do mito noutro, retilíneo - a partir do qual surge a consciência histórica: uma consciência, segundo o filósofo, marcada pela luta da escrita – e dos conceitos - contra aquele caráter mágico da imagem, e cujo apogeu teria ocorrido por volta do segundo milênio a.C. Christoph Wulf, antropólogo alemão citado por Gastal na obra já mencionada, também argumenta a respeito do tempo das narrativas mitológicas como o do primado do ouvir. Na concepção desse pesquisador, na Grécia homérica, por exemplo, o predomínio inicial da cultura oral foi sucedido, na época de Platão, para a visão e a decifração da escritura, simbolizada no célebre mito da caverna. Neste relato, o filósofo grego frisa a importância da visão como meio para o conhecimento da verdade. Segundo Wulf, o novo momento da nascente racionalidade levou a profundas mudanças culturais, baseadas agora no pensamento logocêntrico que se seguiu à difusão da cultura escrita, o qual estabelece relações estreitas com os processos abstratos do ver, mais do que com os do ouvir.


Capítulo 2 - Escuta

O conflito entre imagem e escrita apontado pelo autor se estende por longos períodos históricos e assume distintas feições: em Vida e morte da imagem: uma história do olhar no ocidente, Régis Debray nos fala do poder das imagens, segundo ele uma “astúcia indireta” inventada pelos homens na tentativa vã de superar o trauma inominável da morte, que acompanha a humanidade em suas experiências mais cruciais: Todos os grandes abalos populares na história do Ocidente – das Cruzadas à Revolução [Russa] - apresentam-se como uma espécie de deflagração iconográfica. Revoluções da imagem e pela imagem [...] Em cada época da propaganda social – liturgia, agit-prop ou marketing – [ela] encontra-se traduzindo a ideia abstrata em dado sensível [...] Ora, a imagem é e-moção. Mais do que a ideia, ela põe as multidões em movimento (DEBRAY, 1993, p. 91-92). Flüsser acompanha este autor na ideia de tensão entre imagem e história: A luta da escrita contra a imagem, da consciência histórica contra a consciência mágica caracteriza a História toda. [...] Na Idade Média, assume a forma de luta entre o cristianismo textual e o paganismo imaginístico; na Idade Moderna, luta entre a ciência textual e as ideologias imaginísticas (FLÜSSER, 1985, p.8). Mas, o autor de Filosofia da Caixa Preta observa que tal relacionamento é dialético: imaginação e conceituação, que se negam em sua origem, passam a dialogar e a reforçarse mutuamente: as imagens tornam-se cada vez mais conceituais e os textos, cada vez mais imaginativos. Ambos são, porém, mediações entre o homem e o mundo, e por isso podem também ocultar o que deveriam, em princípio, representar. O homem tornase igualmente incapaz de decifrar – agora, os textos - e reconstituir, através deles, as imagens que representavam. Para conseguir isso, o homem passa a viver em função dos textos, aprofundando-se neles cada vez mais em busca das imagens mágicas primordiais. A contradição interna dos textos teria levado, então, à crise da textolatria cujo auge, no século XIX, revela, na concepção de Flüsser, o naufrágio da história enquanto processo de recodificação das imagens em conceitos. O momento seguinte na relação homem-imagem, profundamente influenciado pelo advento da máquina e dos processos tecnológicos de produção das imagens, seria uma possível estratégia inventada pelo homem moderno para superar a crise dos textos. Contudo, acrescenta, o homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens. Não mais decifra as cenas da imagem como significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado como conjunto de cenas. Tal inversão da função das imagens é [novamente] idolatria (FLÜSSER, 1985, p.8). É a respeito dessa cultura idólatra da imagem que Guy Debord irá se debruçar em A sociedade do espetáculo (1997), obra na qual discute a questão da visualidade e da comunicação visual na cultura ocidental atual. O espetáculo, para Debord, é

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“representação, vivência indireta”. É esta, e não a realidade fenomenológica, o que se torna imediato aos sentidos. Constrói-se socialmente um pseudomundo em que o contato entre as pessoas não se dá pela comunicação direta, sendo mediado sempre pela imagem e pelo imaginário. Adotando o mesmo ponto de vista acerca da “cultura da imagem” na sociedade pós-moderna, Gastal ironiza a questão, constatando ser esse o processo pelo qual o antigo dilema entre o “ser” e o “ter”, em nosso tempo, são suplantados pelo “parecer” como premissa de existência e reconhecimento no mundo. A espetacularização, no sentido levantado por Debord, é o parâmetro hegemônico na constituição da realidade, e é esta a situação que o teatro de rua encontra na cidade contemporânea. Nesse sentido, o pesquisador teatral André Carreira concorda com a crítica à sociedade espetacularizada ao afirmar, em seu livro Teatro de rua: Brasil e Argentina nos anos 1980: uma paixão no asfalto: As ruas de nossas cidades se fazem cada vez mais espaços nos quais as pessoas se mostram como parte de um espetáculo que de tão cotidiano torna-se difícil percebê-lo como tal. Este contexto difuso e polivalente nos impõe necessariamente uma nova reflexão sobre a cidade como espaço teatral se pretendemos delimitar o lugar do fenômeno teatral – particularmente o teatro de rua – na nossa sociedade (CARREIRA, 2007, p. 36).

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O processo descrito por Debord tende, paradoxalmente, a anestesiar a percepção do mundo concreto que se apresenta ao homem na vida cotidiana. Ou seja, o olho urbano, superestimulado pela espetacularização do mundo, torna-se indiferente àquilo que se encontra no registro do habitual e deixa de perceber os objetos mais conhecidos à sua volta. Carreira inaugura uma importante reflexão sobre essa questão ao propor procedimentos para um “teatro de invasão”, sublinhando o potencial do teatro de rua que, por meio da apropriação dos elementos urbanos – marquises, estátuas, janelas e outros -, é capaz de “ressignificar aquilo que é reconhecido e que por isso mesmo já não é quase visível” (CARREIRA, 2008, p. 15) ao homem urbano. Em outro texto, o pesquisador cita e comenta exemplos da teatralidade que compõe as rotinas de uso da rua: O vendedor ambulante e sua prática comercial, o policial de trânsito e seu apito, a velha senhora que leva sua pequena mascote para passear, o morador de rua que ocupa um banco de praça, e até mesmo o mais invisível pedestre que cruza apressado uma rua, estão fabricando o ambiente da rua e produzindo a teatralidade que representa a matriz das intervenções teatrais que têm o espaço aberto da cidade como lugar. Todas as tensões que se manifestam na rua compõem o material que constitui o substrato da cena na silhueta urbana (CARREIRA, 2009, p. 3). É possível observar que todos os exemplos acima contém implicitamente uma dimensão sonora, presente na “prática comercial do vendedor ambulante” que muitas vezes se dá não apenas pela exposição de suas mercadorias, mas também em formas orais de propaganda (falas, cantos, chamamentos) de que esses comerciantes informais lançam mão para atrair a freguesia; nos códigos do apito que são como signos sonoros


Capítulo 2 - Escuta

da autoridade de que o policial de trânsito é investido; no ruído dos veículos que, frequentemente, representam a causa mais imediata da pressa do pedestre ao atravessar a rua; e muitos outros sons, inclusive musicais, cuja presença insufla vida à tessitura do espaço urbano, animando a “imagem da cidade” (LINCH, 1988). A presença indiscutível do sonoro leva à necessidade de inserirmos, dentre os elementos físicos da cidade, aqueles que são da ordem do audível – vozes de pessoas, ruídos do trânsito, propagandas, sirenes, sinos de igrejas – pois todos estes e muitos outros sons constituem a paisagem sonora (SCHAFER, 1991) do ambiente urbano, dimensão esta que assume mais importância à luz dos estudos até aqui apresentados, constituindo a meu ver um dado imprescindível aos estudos de um objeto pluridimensional como a cidade. Finalizando esta exposição inicial, apresento uma outra reflexão de interesse para os estudos do espetáculo de rua, sobretudo em sua vertente contemporânea “de ruptura” (OLIVEIRA, 2010), desenvolvida por Gilles Deleuze sobre a imagem na arte cinematográfica. Em sua obra Cinema 1 (1985) o pensador francês trata do cinema clássico – o da “imagemmovimento” – em que as demais artes (música, efeitos especiais etc) estão a serviço da intenção de criar reações emocionais catárticas (no sentido aristotélico) no público que o assiste. Em Cinema 2 (1990), Deleuze analisa o cinema de arte – o da “imagem-tempo” – em que a arte cinematográfica cria sua própria linguagem, livre, não-convencional. Aqui, as imagens são criadas não para emocionar o espectador, mas para despertar nele um tipo de consciência dilatada, não-linear, como a do sonho. Segundo o filósofo, as imagens-movimento são a base de um tipo de cinema que adota um programa sensório-motor: nele, a ação é privilegiada. Contudo, o desmoronamento desse esquema produziu um deslocamento do conceito de movimento para o de tempo, o que veio a modificar substancialmente o papel do som e da música dentro do contexto cinematográfico. Assim, a participação ativa dos personagens é substituída por uma visão contemplativa e descritiva. A música deixa de ser apenas um elemento de apoio e torna-se atuante, uma vez que é capaz de oferecer ambiências de tempo e espaço ao nível do imaginário do espectador, levando-o a momentos e lugares diversos sem que seja preciso lançar mão de referências espaciais óbvias por meio de diferentes locações e cenários. A imagem-tempo deleuzeana inaugura uma nova forma, disjuntiva, de operar as ligações entre imagem e som. Entrando numa relação “não-racional”, o visual e o sonoro não estariam a serviço da reconstituição de um todo, mas trabalhando na invenção de outras configurações espaço-temporais. Deleuze construiu uma classificação geral das imagens e signos cinematográficos5 para viabilizar uma análise filosófica situada na contracorrente da psicanálise e da linguística. Cada um dos tipos de imagens é vinculado a uma tendência cinematográfica e a um cineasta, embora o autor de Mil Platôs (1985) não tenha proposto relacioná-los a uma suposta “evolução” histórica e tecnológica dessa arte. Ao contrário, o filósofo os relaciona a diferentes regimes de imagens, num raciocínio semelhante ao que Jacques Rancière atribui ao “regime estético das artes” em A partilha do sensível (2005). Nessa obra, Rancière define regime como um tipo específico de ligação entre os 5 Imagens-Movimento: imagem-percepção, imagem-afecção; imagem-pulsão e imagem-ação; Imagens-Tempo: imagem-lembrança, imagem-sonho e imagem-cristal.

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modos de produção das obras artísticas, as formas de visibilidade de suas práticas e os seus modos de conceituação (RANCIÈRE, 2005, p. 28). O autor distingue, na tradição ocidental, três grandes regimes da arte: o regime ético das imagens, onde ainda não há “arte” enquanto tal, mas sim a questão das imagens como divindade; o regime poético ou representativo, onde se estabelece a noção de mímesis que classifica as artes de acordo com uma concepção hierárquica; e o regime estético das artes que desobriga a arte de toda e qualquer hierarquia de temas e gêneros uma vez que, em sua “potência heterogênea”, isto é, em sua singularidade, ela escapa ao controle do próprio artista. Este último é um referencial particularmente interessante para o teatro de rua na contemporaneidade, uma vez que este propõe transcender as clássicas partilhas do espaço social existentes no universo da arte, propiciando o diálogo entre públicos que até recentemente não compartilhavam dos mesmos espaços e, sobretudo, reinventando ou reinterpretando a seu modo as diversas formas de teatralidade que se desenvolveram no espaço público da cidade ao longo da história do ocidente6, concretizando a ideia de temporalidade própria ao regime estético das artes ao promover em cena a “co-presença de temporalidades heterogêneas” (RANCIÈRE, 2005, p. 37).

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A perspectiva deleuzeana da imagem também se torna essencial para o estudo dos processos de criação dramatúrgica no teatro de rua, na medida em que oferece um caminho para o estudo de seus espetáculos a partir de sua produção audiovisual, sem que o visual e o sonoro, aí em jogo, sejam considerados como entidades separadas e estanques, mas como um só corpus estético que estabelece relações com o seu entorno – a cidade – ativando o imaginário do cidadão para propor modos alternativos de produção de subjetividade dentro da “sociedade do espetáculo”. Nessa perspectiva, a produção de imagens sonoras torna-se um poderoso meio de promover um regime complexo de pensamento, principalmente nos espetáculos de rua onde o ambiente urbano, saturado de estímulos visuais e sonoros, já produz de antemão o cruzamento de múltiplas referências espaço-temporais que o espetáculo pode, inclusive, absorver em sua construção dramatúrgica. Com base nessas considerações preliminares, proponho que, no âmbito do teatro de rua, as sonoridades disponíveis à percepção do transeunte que se depara com um espetáculo teatral no espaço da rua sejam também consideradas como elementos urbanos - objetos sonoros - por meio dos quais o contato com a realidade concreta e simbólica do mundo possa ser ativado. Ou seja, na medida em que o espetáculo teatral se apropria dos elementos urbanos físicos – um cortejo, uma roda, uma ação cênica que “invade” o espaço da cidade - acionando nesse mesmo ato uma dimensão sonora, torna-se evidente a necessidade de se levar em consideração a cidade como meio não apenas visual, mas audiovisual de recepção do espetáculo teatral que se realiza no espaço público, pois isso representa uma possibilidade de ampliação dos caminhos perceptivos daqueles que participam (seja como criadores ou, simplesmente, como fruidores) desse acontecimento.

6 Em anexo constante numa obra já citada, Carreira (2007) elabora uma “Breve história do teatro de rua no ocidente”, na qual descreve os contextos urbanos a partir dos quais se construíram as diversas formas estéticas pelas quais passou e se desenvolveu o teatro de rua ocidental, da Idade Média até o momento contemporâneo.


Capítulo 2 - Escuta

2.2 Imagem sonora

O

termo imagem sonora é encontrado, hoje, em reflexões teóricas de pesquisadores que atuam em diversas áreas do conhecimento - tais como a psicoacústica, a musicologia, a musicoterapia e a antropologia – mas deve o seu nascimento a estudos de neurologia voltados para o mapeamento do sistema nervoso e das funções neurais ligadas ao equipamento sensorial e perceptivo do homem. Investigações já comprovadas nessa área mostram que todas as funções cerebrais são baseadas em impulsos elétricos, gerados e transmitidos por neurônios. Cada operação cerebral, mesmo a mais elementar, envolve milhares dessas células extremamente especializadas. E, mesmo os sentimentos “estéticos” – ligados à recepção e apreciação musical, por exemplo – relacionam-se com o processamento neural da informação. É nas interconexões sinápticas e na arquitetura rizomática desse conglomerado de neurônios que estão escondidos os mistérios da consciência, da memória, do pensamento e das emoções. Ou seja, tudo o que podemos considerar como realidade sensível e é percebido corporalmente como calor, frio, cor, som, odor e tudo o mais, é antes de tudo, uma rede intrincada de impulsos elétricos que o nosso cérebro identifica como tais. Toda operação cerebral, como o reconhecimento de um objeto que está sendo visto, a imaginação de um som musical ou um prazer que está sendo sentido, é definida por uma distribuição espacial e temporal da atividade neural bem específica. A ‘representação’ do ambiente [...] ou qualquer imagem mental disso, nada mais é do que o surgimento de uma distribuição de impulsos neurais em certas partes do córtex que, embora incrivelmente complexa, contém padrões que são absolutamente específicos do que está sendo representado ou imaginado (ROEDERER, 2002, p. 32). Assim vista, a imagem sonora, na perspectiva da neurofisiologia da audição, nada mais é senão uma “imagem” mental evocada pela percepção auditiva; uma rede de impulsos neurais cuja atividade se localiza em certas áreas do córtex (superfície e tecido subjacente), formando um padrão observável por meios tecnológicos. Evidentemente, essa imagem mental não possui uma forma figurativa tal como sugerido pelo termo “imagem”. Ela se constitui, antes, por um padrão elétrico cujo movimento pulsante pode, por meio de equipamentos especializados, ser “desenhado” em formas visuais que apresentam graficamente essa atividade neural7. Numa concepção puramente neurológica, antes que a noção de imagem sonora informe algo de propriamente musical, é preciso ter em mente que se trata, antes de 7 A ultrassonografia e o eletrocardiograma são exemplos de algumas “partituras” de imagens sonoras decodificadas como imagens visuais, captadas por equipamentos sensíveis a estímulos sonoros e aplicadas em campos específicos da medicina. A diferença gráfica entre ambas é que enquanto a primeira é registrada sob a forma de manchas em contraste claro-escuro, a segunda descreve uma linha sinuosa cujo desenho fornece a significação de um padrão rítmico legível.

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tudo, de uma analogia - cujo objetivo é aproximar os sentidos da visão e da audição aos mecanismos fisiológicos que levam o ser vivo à percepção do meio ambiente - pois ela é, basicamente, um padrão de impulsos neurais interpretado pelo cérebro como a percepção sensível do visto e ouvido. Em artigo intitulado Imagem Sonora (2006), o musicólogo Geraldo Vespar relaciona o termo “imagem sonora” com o campo da composição multimídia, voltada para a criação de trilhas sonoro-musicais em produções audiovisuais. Articulando conceitos clássicos - como o belo, a poética, a estética – enquanto valores artísticos implícitos também nessa atualíssima arte audiovisual que ele designa como a “arte das imagens sonoro-musicais”, o autor comenta que uma característica marcante dos compositores especialistas nesse campo é a manipulação consciente dos elementos fundamentais da matéria sonora, segundo ele o som e o tempo. Para Vespar, a estética sonoro-musical da composição multimídia pode tanto vincular-se ao curso cotidiano do tempo quanto desvincular-se dele. No primeiro caso, ocorre uma adequação imagem-som; no segundo, um desajuste tal como Gilles Deleuze descreve, respectivamente, nas figuras de imagem-movimento e imagem-tempo presentes em suas já citadas obras Cinema 1 e Cinema 2. Os compositores trabalham as imagens sonoras dentro dessas duas vertentes, utilizando a retórica do discurso musical multimídia para criar variações “eloquentes” de um tema e, sobretudo, penetrar no universo de fronteiras pouco delimitadas da sinestesia visão/audição. [...] esses magos da comunicação intersubjetiva têm se esmerado na elaboração de partituras expressivas, ricas em imagens sonoras interativas, capazes de produzirem ressonância comunicacional e, virtualmente, que possam ser vistas através da visão auditiva de quem as ouve (VESPAR, 2006, p. 77) (grifo meu).

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E, quanto aos efeitos desse contato com uma estética audiovisual, ele comenta mais à frente: A estética sonoro-musical como forma de comunicação presente, sincroniza os sentidos, estabelece interação, faz eliciar imagens, provoca emoções e, subliminarmente, induz o ouvinte a alçar vôos em espaços e dimensões nunca antes por ele imaginados. Poética e estética musical multimídia, vistas através da visão auditiva, têm o poder mágico de desterritorializar sentidos, emoções, significados e estabelecer comunicação intersubjetiva (VESPAR, 2006, p. 80). Vinculando-se a uma concepção semiológica da música, Vespar defende ainda a ideia de que Assim como a interação das palavras constrói redes de significação transitórias na mente de um ouvinte, assim também, a interação de elementos sonoro-musicais (melodia, harmonia, ritmo, timbre, tessitura e forma) constrói redes de significados transitórios na mente e no sistema emocional de um indivíduo (VESPAR, 2006, p. 82).


Capítulo 2 - Escuta

Historicamente, a vertente de composição “visual” da música inicia com a chamada música programática ou descritiva (BENNETT, 1986) que desempenhou papel fundamental nas artes cênicas – teatro, ópera, balé - durante todo o século XIX, prosseguindo com a formulação da proposta de “obra de arte total” (Gesamtkunstwerk) preconizada pelo compositor alemão Richard Wagner, considerados por Vespar como “documentos sonoro-musicais de uma estética musical intercomunicativa, interativa, ambivalente” (VESPAR, 2006, p.81). A sinfonia programática e o poema sinfônico seriam outras formas composicionais do século XIX que seguem a estética audiovisual: narram uma trajetória histórica com imagens e paisagens sonoras8, elaboradas a partir de configurações homofônicas, polifônicas, timbrísticas e rítmicas, criando uma topografia musical reconhecível pelo ouvinte. O maior poder de sedução do discurso dos sons é, para Vespar, a capacidade de criar “personagens sonoro-musicais” que, atuando sobre o centro nevrálgico das emoções - o sistema límbico9 -, despertam sentimentos e sensações no ouvinte. Segundo o pesquisador, a proposição de sentidos por meio de configurações musicais capazes de pontuar, sublinhar e ressaltar emoções é hoje um dos principais objetivos da pesquisa nessa área de composição musical. No campo da Musicoterapia, o estudo da imagem sonora aparece relacionado principalmente às teorizações do pediatra e psicanalista infantil inglês D. W. Winnicott. A partir da concepção freudiana que compreende o indivíduo como uma unidade (um exterior e um interior separados por uma membrana limitadora), cuja consequência é a existência de uma realidade interna em contraposição à realidade do mundo exterior, o psicanalista introduziu o conceito de fenômeno transicional, para designar uma área intermediária de experiência que coloca em questão aquela premissa cartesiana sobre o indivíduo bipartido entre duas realidades, uma corporal e outra mental. Em seu texto de 1951, Objetos transicionais e fenômenos transicionais, publicado na emblemática obra Da Pediatria à Psicanálise: textos selecionados, Winnicott reivindica a existência de uma “terceira parte da vida de um ser humano”, a qual segundo ele não pode ser ignorada e que se constitui, basicamente, em “uma área intermediária entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido”, ou seja, trata-se de [...] uma área intermediária de experimentação, para a qual contribuem tanto a realidade interna quanto a vida externa. Trata-se de uma área que não é disputada, porque nenhuma reivindicação é feita em seu nome, exceto que ela exista como lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa humana de manter as realidade interna e externa separadas, ainda que interrelacionadas (WINNICOTT, 1988, p. 391). O pediatra inglês desenvolve a tese de que o desenvolvimento desses fenômenos transicionais inicia em tenra idade (por volta de 6 meses a 1 ano de vida) a partir 8 O termo paisagem sonora, criado pelo compositor canadense Murray Schafer a partir de pesquisas com o ambiente acústico de diferentes sociedades e épocas históricas, será tratado no Capítulo 3 desta tese 9 Estrutura cerebral que integra o sistema nervoso autônomo e comanda certos comportamentos necessários à sobrevivência dos mamíferos, interferindo no funcionamento visceral e na regulação metabólica de todo o organismo.

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do momento em que o ser humano passa a se relacionar ativamente com os objetos “concretos” do mundo (o bichinho de pano, o chocalho de brinquedo etc). O que interessa particularmente na teoria de Winnicott para esta tese é que, para ele, a música é tão concreta quanto um cobertor ou um bichinho de pelúcia: Por definição, o balbucio de um bebê e o modo como uma criança mais velha entoa um repertório de canções e melodias, enquanto se prepara para dormir, incidem na área intermediária enquanto fenômenos transicionais, juntamente com o uso que é dado a objetos que não fazem parte do corpo do bebê, embora ainda não sejam plenamente reconhecidos como pertencentes à realidade externa (WINNICOTT, 1988, p. 390). Estendendo o termo “música” tanto à música propriamente dita (melodia), quanto ao balbucio e à musicalidade da fala adulta, o estudioso inglês compreende a música não só como um objeto transicional, mas como provavelmente o objeto transicional primário, uma vez que desde muito cedo o bebê reconhece, na voz da mãe, um objeto “que se torna vitalmente importante para seu uso no momento de ir dormir, constituindo uma defesa contra a ansiedade” (WINNICOTT, 1988, p. 393). Mais tarde, mesmo na vida adulta, a música continuará mantendo essa natureza transicional, o que explicaria também sob a ótica dos estudos psicanalíticos de Winnicott o poder interacional que a música representa na vida do ser humano. No âmbito do teatro, entender a musicalidade do espetáculo como fenômeno transicional significa assumir a riqueza – e os riscos - que isso implica, uma vez que por meio de elementos e procedimentos musicais se está estabelecendo um canal de comunicação privilegiado com o “universo interior do sujeito” ou (lançando mão de uma terminologia menos psicanalítica), com modos não intelectuais, não racionais, de pensamento.

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Como objeto de investigação da Antropologia, a noção de imagem sonora está presente, sobretudo, no método de “etnografia sonora” proposto recentemente por Ana Luiza Rocha e Viviane Vedana (2007), para quem as sonoridades não só expressam simbolismos como evocam representações etnográficas, ou seja, fornecem informações sobre a vida social e coletiva de um grupo humano investigado. A metodologia, que vem sendo desenvolvida no âmbito do Departamento de Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, nasceu de estudos anteriores realizados nessa mesma instituição sobre a Antropologia Urbana, vertente inspirada na Escola de Chicago10 que forneceu às pesquisas pioneiras de Cornélia Eckert e Ana Luiza Rocha as bases para a elaboração de uma proposta de “etnografia de rua” (ECKERT e ROCHA, 2003). Segundo as pesquisadoras, este método foi inspirado na figura do flâneur, [...] personagem baudelairiano [que] caminha na cidade: um percurso sem compromisso, sem destino fixo. O estado de alma deste personagem-tipo é de indiferença, mas seus passos traçam uma trajetória, um itinerário que concebe a cidade, o movimento 10 A chamada Escola de Chicago, formada por sociólogos docentes do Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, produziu entre 1915 e 1940 importantes pesquisas voltadas para os fenômenos sociais decorrentes do meio urbano (as grandes metrópoles norte-americanas, principalmente), inaugurando um novo campo de investigação sociológica que privilegia, sobretudo, métodos empíricos.


Capítulo 2 - Escuta

urbano, a massa efêmera, o processo de civilização. Logo, esta não é uma caminhada inocente. A cidade é estrutura e relações sociais, economia e mercado; é política, estética e poesia. A cidade é igualmente tensão, anonimato, indiferença, desprezo, agonia, crise e violência (ECKERT e ROCHA, 2003, p. 1). Através dessa técnica etnográfica, que se constrói pela observação sistemática de uma rua ou ruas e a descrição “dos cenários, dos personagens que conformam a rotina da rua e bairro, dos imprevistos” (ECKERT e ROCHA, 2003, p. 5), buscamse as significações sobre o dia-a-dia da cidade, transformando a paisagem urbana num objeto mais temporal que propriamente espacial, a ser compreendido como “um território fluido e fugaz”, uma “sucessão diacrônica de pontos percorridos” e não como o simples suporte das coisas visíveis. Como forma de apreensão dos objetos sonoros da cidade, o método consiste em [...] caminhadas constantes pelo cenário da vida urbana, através das quais observamos as diversas imagens (visuais e sonoras) evocadas pelos indivíduos que habitam esses lugares. Dessa observação sistemática, escrita e reescrita em diários de campo e descrições etnográficas, se constroem as interpretações sobre o cotidiano do viver urbano (BARROSO et ali, 2009, p.1). Na primeira etapa da etnografia sonora, o pesquisador faz a preparação de roteiros e estratégias de gravação de sonoridades presentes no espaço urbano, dando atenção especial às imagens evocadas por sonoridades – antes de pensá-las conceitualmente uma vez que ele também é habitante da cidade, e assim como os demais habitantes da urbe sua mente é povoada por imagens simbólicas (sons, odores, olhares) que compõem “as formas sensíveis da vida social” (SANSOT apud BARROSO, 2009, p. 2). Durante o trabalho de campo o pesquisador compartilha com os demais personagens urbanos as imagens simbólicas sonoras produzidas pela cidade. O objetivo desse primeiro contato, vivencial e sinestésico do espaço citadino, é questionar posteriormente, a partir daquelas diversas formas expressivas fornecidas pelo equipamento sensorial, possíveis modos de interpretação das sonoridades do fenômeno urbano. Os registros daquelas primeiras impressões auditivas serão analisados mais detidamente, informando possíveis aspectos comunicacionais e simbólicos ali contidos. Tal procedimento metodológico revela que no escopo dessa abordagem etnográfica a imagem sonora é também considerada como uma modalidade de construção mental pré-conceitual, estreitamente vinculada aos centros da emoção, o que é corroborado por pesquisas no campo da neurologia e da psicoacústica, conforme explicado anteriormente11. Lidar com as imagens sonoras na esfera da “etnografia sonora” implica considerar que, quando estas são “fixadas” num suporte para serem ouvidas posteriormente pelo pesquisador, elas deixam de ser um “dado imediato” do 11 Enquanto produto da percepção auditiva, a imagem sonora se forma no córtex cerebral e tecido subjacente, onde é identificada e armazenada na memória para fins de sobrevivência e adaptação ao meio ambiente; somente depois desse processo primário ela é enviada a outros centros neurais, ligados às chamadas “funções superiores” como a do raciocínio lógico-conceitual (ROEDERER, 2002).

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mundo, fazendo, a partir daí, parte de “um conhecimento que se constrói através de desconstruções e novas construções epistemológicas” (SANSOT apud BARROSO, 2009, p. 3), ou seja, neste novo campo de investigação a imagem sonora ouvida em uma gravação, por exemplo, já é fruto de uma interpretação, de uma mediação simbólica. Uma observação a ser feita, ainda, é a de que no contexto da “etnografia sonora”, a sonoridade da cidade não é associada à ideia consagrada pelo senso comum que identifica o som urbano – ruídos dos veículos, motores de todos os tipos, alto-falantes das lojas, gritaria dos vendedores ambulantes - como puro “caos” sonoro, tal como sustenta Murray Schafer em A afinação do mundo (2001). Para este músico-pesquisador, A poluição sonora é hoje um problema mundial. Pode-se dizer que em todo o mundo a paisagem sonora atingiu o ápice da vulgaridade em nosso tempo, e muitos especialistas têm predito a surdez universal como a última consequência desse fenômeno, a menos que a problema venha a ser rapidamente controlado (SCHAFER, 2002, p.17). Ao contrário, na perspectiva da “etnografia de rua” o ambiente sonoro é pensado no sentido de transcender interpretações simplistas, entendendo-o como imagem que “revela associações do sujeito com o meio cósmico e social” (BARROSO et ali, 2009, p.3). O psicólogo e músico Giuliano Obici irá desenvolver a mesma idéia em Condição da Escuta: mídias e territórios sonoros, quando critica “a visão ecológico-jurídicohigienista” de Schafer acerca do ruído urbano e argumenta a favor do desenvolvimento de um novo tipo de escuta uma vez que, segundo ele,

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O surgimento da disciplinarização do espaço parece demonstrar uma falência da própria escuta que, ameaçada, tenta restituir algo como a busca por um paraíso acústico perdido. Por outro lado, por que não pôr os ouvidos nesse mundo de outra forma, pensando quais são suas potências criadoras, ao invés de buscar legislações que funcionem como protetores auriculares legalmente constituídos? (OBICI, 2008, p. 45). Ainda nessa direção, a turismóloga Susana Gastal realiza em obra já citada (2006) uma análise semiótica “pós-saussureana” da cidade, em que esta é interpretada como texto que cria e constrói um sentido próprio, no contexto da pós-modernidade. A pesquisa da autora possibilita, para esta tese, uma produtiva reflexão em torno da sonoridade presente nas metrópoles de hoje (e mesmo nas cidades menores), vista como parte indissolúvel da cidade que pode, também ser “lida” sob as condições da pós-modernidade. É preciso, contudo, relativizar um pouco a questão quando se trata da condição da escuta na cidade, pois sob um outro ponto de vista pode-se argumentar que a musicalidade de um território urbano é também o depositário de uma memória sonora, coletiva e social que tende a se perder na velocidade dos fluxos e na intensidade dos ruídos da cidade pós-moderna, e que o nostálgico “canto do povo de um lugar”12 está povoado de imagens sonoras que vivem na memória de seus habitantes. Resgatar essa musicalidade através 12 Título de uma conhecida canção de Caetano Veloso.


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do espetáculo teatral significa, também, reativar tais imagens sonoras no imaginário do cidadão e, com elas, os seus sentimentos mais profundos de pertencimento - a uma coletividade, a uma “tribo” urbana (MAFFESOLI, 1997), a uma comunidade (“real” ou “virtual”) que compartilha as mesmas ideias e ideais - contribuindo para uma vida urbana menos vulnerável às possíveis influências desagregadoras da cidade contemporânea. Finalmente, é necessário ressaltar que a importância de expor, aqui, um panorama da noção de imagem sonora tal como se apresenta hoje em diferentes áreas de conhecimento, é mostrar que se trata de um conceito musical em si, problemático, uma vez que não se trata apenas de escutar sons. A escuta também é provocada, sensibilizada e, principalmente, construída pelo ouvinte. No contexto do teatro, diferentes “escutas” perpassam a noção de imagem sonora, assumindo direções que podem levar tanto à composição musical propriamente dita, quando, por exemplo, no âmbito estrito da criação musical como “trilha”, quanto inspirar uma concepção audiovisual da cena teatral, que leve em conta inclusive as distintas possibilidades cênicas do universo sonoro-musical circundante ao espetáculo, como é o caso do teatro de rua. A noção de imagem sonora à qual este estudo se vincula estabelece conexões com todas essas vertentes, sobretudo aos estudos de Antropologia Social, aqui mencionados, pois a partir destes é possível estabelecer afinidades entre uma metodologia de “etnografia sonora” e a investigação do espaço urbano por artistas e grupos de rua interessados na exploração do espaço sonoro da cidade, como estratégia de construção de uma dramaturgia sonoro-musical para seus espetáculos. Esse interessante campo de investigação será, porém, legado a um momento posterior uma vez que, pelo potencial artístico que aí se vislumbra, mereceria um aprofundamento maior do que é possível dentro dos limites deste estudo.

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2.3 Sinestesia

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criação da imagem sonora deve-se ao fenômeno, também sensorial, da sinestesia som/imagem. A palavra “sinestesia”, derivada do antigo grego, justapõe a preposição syn (que denota união) ao substantivo aisthesis (sensação). De acordo com o Novo Dicionário “Aurélio” da Língua Portuguesa, o termo se refere à “relação subjetiva, que se estabelece espontaneamente entre uma percepção e outra que pertença ao domínio de um sentido diferente”; ou seja, significa a capacidade de um sentido, estimulado, despertar outro, num cruzamento das sensações. Como exemplifica o teatrólogo Augusto Boal em A estética do oprimido13, a sinestesia “é o diálogo entre os sentidos: a visão de uma pessoa ou coisa pode provocar sensações de medo ou atração; o doce na vitrine faz a boca salivar; a voz amada ao telefone faz-nos vibrar” (BOAL, 2009, p. 60). A interpenetrabilidade exacerbada das percepções em algumas pessoas levou ao entendimento desse fenômeno sensorial, em seus estágios iniciais de estudo, como um transtorno da percepção, nos meios médicos e algumas vertentes da psicologia, como por exemplo a Gestalt14. As pesquisas neurológicas sobre a sinestesia como fenômeno natural e comum a todos aceleraram-se somente nas duas últimas décadas do século XX, com o avanço da tecnologia de mapeamento cerebral por imagens15, levando à constatação de que, embora presente na vida cotidiana, somente em situações especiais a sinestesia se torna plenamente consciente16.

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De acordo com os estudos do linguista Sean Day (DAY apud BRAGANÇA, 2010, p.81), que pesquisou o fenômeno a partir da vida e obra de compositores como Sibelius, Olivier Messiaen, Duke Ellington e outros, a audição é o sentido que mais desperta a sinestesia. O som como estímulo primário pode ser encontrado em diversas combinações sinestésicas como, por exemplo, as de som-movimento, som-sabor, som-temperatura, som-tato, dentre outras menos comuns. A arte está repleta de fenômenos combinatórios dessa natureza: a sinestesia do sensório para o motor, por exemplo, está no cerne da dança. Numa interpretação sinestésica, esta pode ser compreendida como a transposição de um estímulo auditivo (o som da melodia, o ritmo) para os movimentos corporais, ligados à propriocepção 17 . No terreno das artes visuais, alusões sinestésicas são constantes nas descrições de 13 Nessa obra, Boal discute a importância do desenvolvimento sensível para a criação e a fruição teatral. 14 O termo alemão se refere ao processo mental de configurar as formas perceptíveis. O movimento da Gestalt, fundado por Max Wertheimer (1880-1943), irá promover no início do século XX o surgimento da Psicologia da Forma, a qual irá influenciar fortemente as artes visuais, principalmente quando aplicadas à nascente área da propaganda. 15 As tecnologias de ressonância magnética, e tomografia por emissão de prótons, por exemplo. 16 Exceto no caso das pessoas congenitamente sinestetas, que desde muito cedo relatam experiências cotidianas sobre sensações paradoxais, ainda pouco explicadas cientificamente (BASBAUM, 2002). 17 Capacidade de receber e decodificar estímulos oriundos das estruturas do parelho locomotor, como músculos,


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obras famosas. O próprio Artaud, em seu conhecido ensaio A encenação e a metafísica, descreve assim o quadro As filhas de Loth, obra do pintor holandês renascentista Lucas Hugensz van Leyden (1494-1533): [...] seu patético é visível mesmo de longe, impressiona o espírito com uma espécie de harmonia visual fulgurante, ou seja, cuja acuidade age inteira e é apanhada num único olhar. Mesmo antes de poder ver do que se trata, sente-se que ali está acontecendo algo grandioso, e os ouvidos, por assim dizer, emocionam-se ao mesmo tempo que os olhos [...] vemos de repente revelar-se a nossos olhos, numa luz de alucinação, em relevo sobre a noite, alguns detalhes da paisagem: árvores, torre, montanhas, casas, cuja iluminação e cuja aparição permanecerão para sempre ligadas em nosso espírito à ideia desse dilaceramento sonoro [...] (ARTAUD, 2006, p. 31-33). No texto, o encenador utiliza essa obra artística como ponto de partida para falar das “ideias metafísicas” que, segundo ele, apresentam-se ali materializadas: o Devir, a Fatalidade, o Caos, o Maravilhoso. O recurso a uma descrição sinestésica torna-se o meio mais poderoso para fazer chegar ao leitor as suas próprias sensações, levando-o a acompanhar a crítica desenvolvida por ele, a seguir, contra o que designa como “o teatro ocidental de tendências psicológicas”. Provavelmente um sinesteta, Artaud constrói suas teses não pela racionalidade de uma argumentação intelectual, mas por um discurso poético, sinestésico e visceral como ele próprio. Questionando o teatro dramático “que vive sob a ditadura exclusiva da palavra”, Artaud coloca a música como o primeiro dentre os múltiplos aspectos que, segundo ele, darão vida à poesia do teatro: “música, dança, artes plásticas, pantomima, mímica, gesticulação, entonações, arquitetura, iluminação e cenário” (ARTAUD, 2006, p. 38), afirmando a sua irrefutável convicção sobre as potencialidades da música no teatro, que Vsevolod Meyerhold, por sua vez, já assumira duas décadas antes. Na obra A arte do teatro: entre tradição e vanguarda (2006), a pesquisadora teatral Béatrice Picon-Vallin nos informa que a partir de investigações sobre antigas tradições teatrais18 e as habilidades físicas e musicais do ator, o encenador russo desenvolve a tese de uma “leitura musical do drama”, baseada, sobretudo, na “composição plástica e rítmica” da cena, onde a música exerce as seguintes funções primordiais: A música não é, portanto, nem fundo nem ilustração, ela não está ligada a uma emoção pontual dos personagens. Ela é, ao mesmo tempo, cenário sonoro – permitindo à imaginação do espectador precisar, aprofundar as sugestões de lugar fornecidas pelo cenário – e personagem coletivo, na medida em que ela exala o rumor das vozes humanas, o gemido das almas, e sugere a aproximação da morte e o medo místico que ela inspira (PICONVALLIN, 2006, p. 15). tendões, articulações e tecidos internos, essencial para a manutenção do equilíbrio, da postura e do sentido de localização do corpo no espaço, sua posição e orientação. 18 Teatro de feira, o circo, o kabuki japonês, danças e rituais do Pacífico Sul, dentre outras referências utilizadas por Meyerhold no seu método de formação de atores.

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Para esta pesquisadora, o aspecto visual e sonoro do conjunto concebido por Meyerhold introduz no palco a presença da morte, em contraposição ao teatro naturalista, da “vida viva”, de Stanislavski. Ela descreve nos seguintes termos uma cena de A morte de Tintagiles, encenada em 1906: As três criadas da Rainha invisível aparecem juntas no palco, como um amontoado informe de trapos cinzentos e ameaçadores, sibilando suas intenções quase indecifráveis para se apoderarem o mais depressa possível do adolescente Tintagiles, vítima semelhante às dezenas de jovens que apodreciam nas prisões. Um crítico de Tiflis19 nota que certos espectadores sentem os cabelos se arrepiarem de horror (PICON-VALLIN, 2006, p.17). Pela cena assim descrita, verifica-se que Meyerhold cria um tipo de incômodo sinestésico no público, que “sente os cabelos arrepiando de horror” diante das vozes “sibilantes” das personagens. Revela-se aí o uso consciente de um procedimento musical (no caso, o uníssono) usado “ao contrário” (as vozes são sussurradas de forma assimétrica e irregular, propositalmente “desencontrada”), para suscitar estranheza no espectador e aprofundar ao nível fisiológico, pré-conceitual, o entendimento do espetáculo.

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Meyerhold constrói o seu teatro “entre a eternidade do teatro de feira e a atualidade dos tablados construtivistas”, organizando o corpo do ator em operações espaciais que criam, para o espectador, “dispositivos de visão ativa, não fusional, estrangeirizante” (PICON-VALLIN, 2006, p. 34). Tais procedimentos dramatúrgicos, que antecipam em duas décadas o efeito de distanciamento20 preconizado por Bertolt Brecht, são igualmente encontrados nos modos de tratamento musical do espetáculo, como se pode perceber nos exemplos de uso “às avessas” de signos sonoros consagrados pela memória musical no ocidente (como o do uníssono, negado pela emissão vocal caótica, no exemplo citado acima). Em O som e o sentido: uma outra história das músicas, José Wisnik comenta que tanto numa conceituação habitual quanto na teoria da informação, o ruído sonoro é considerado como “interferência na comunicação”, o que faz, dele, “uma categoria mais relacional que natural” (WISNIK, 1989, p. 29). Para o pesquisador, “o ruído é [entendido como] aquele som que desorganiza outro, sinal que bloqueia o canal, ou desmancha a mensagem, ou desloca o código”. Já o som que se apresenta dentro de uma certa periodicidade – na fala ou na música – é compreendido como “organizado” pois propõe ao ouvinte a expectativa de uma ordem subjacente. Assim se desenvolverá a música e a musicalidade de cada cultura e época: compartilhando, socialmente, os códigos sonoros que ordenam o caos oceânico dos ruídos onde o homem está imerso. A construção da música passa, desde as suas práticas mais elementares, por esse princípio ordenador do caos sonoro: 19 Nome russo que a capital da atual Geórgia Oriental (hoje, Tbilisi) manteve até 1936. 20 Brecht chamou de Verfremdung Effect (Efeito V) a sua principal técnica. Segundo Pavis (2003), tal procedimento, quando aplicado no teatro, visa “revelar o artifício da construção dramática ou da personagem”; na obra do dramaturgo alemão a função estética do distanciamento (ou estranhamento) se estende também ao político, buscando a responsabilidade ideológica do espectador.


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Um único som afinado, cantado em uníssono por um grupo humano, tem o poder mágico de evocar uma fundação cósmica: insemina-se coletivamente, no meio dos ruídos do mundo, um princípio ordenador. Sobre uma frequência invisível, trava-se um acordo, antes de qualquer acorde, que projeta não só o fundamento de um cosmos sonoro, mas também do universo social [...] Assim a música se oferece tradicionalmente como o mais intenso modelo utópico da sociedade harmonizada e/ou, ao mesmo tempo, a acabada representação ideológica (simulação interessada) de que ela não tem conflitos (WISNIK, 1989, p. 30). A definição de ruído como desordenação interferente ganha um caráter ainda mais complexo ao adentrar na esfera da arte, tornando-se “um elemento virtualmente criativo, desorganizador de mensagens /códigos cristalizados, e provocador de novas linguagens” (WISNIK, 1989, p. 30). É isso o que propõe Meyerhold ao colocar, em cena, vozes que mais se parecem com “ruídos” do que com palavras articuladas. Longe de apresentar um “acordo sonoro” ou um horizonte ideal de sociedade em harmonia, o que se produz com esse procedimento musical é justamente o oposto, revelando dissonâncias que potencializam a tensão da cena. Dessa forma, Wisnik oferece-nos, por meio de uma reflexão musical baseada no que ele designa como “antropologia do ruído”, um possível caminho na aquisição de instrumentos teórico-metodológicos para a construção e análise de uma escuta cênicomusical do espetáculo. Estudos de semiologia musical, como os do etnomusicólogo Jean-Jacques Nattiez (2004), levam à identificação de uma “sintaxe musical” – um sistema de relações formais entre os elementos constituintes do fenômeno musical que delineiam a sua estrutura (melodia, harmonia, estilos) - e uma “semântica musical” que relaciona as sensações auditivas a outras sensações. Estas últimas, pertencentes a distintas ordens: emoção, imagem, ideologia e outras referências, inclusive sensoriais (tato, visão etc). Para o pesquisador, numa interpretação sinestésica há dois níveis de recepção musical: no primeiro, mais consciente, o ouvinte descreve sensações físicas; no segundo, mais profundo, as sensações são mais ligadas a sentimentos. Mas, em ambas, as relações entre o evento musical e as significações percebidas pelo ouvinte são construídas pelas convenções sociais. Há estudos de musicologia, contudo, que defendem a ideia de que podem ser atribuídas significações mesmo a músicas de sonoridades desconhecidas, cujas convenções não são reconhecidas pelo ouvinte, como no caso em que, por exemplo, se ouve a música de uma outra cultura/época. Investigando a construção de significações musicais a partir dessa outra vertente, Guilherme Bragança desenvolve a hipótese de que significações externas à estrutura musical propriamente dita (a “sintaxe musical”, no dizer de Nattiez) são apreendidas também por associações sinestésicas, entre sensações sonoras e outras, como “visuais (brilhos, cores, claro/escuro), movimentos (direcionais, circulares, estáticos, dinâmicos), densidades (denso, rarefeito), peso (leve, pesado) ou texturas (liso, áspero)” (BRAGANÇA, 2010, p. 82). Para esse pesquisador, um forte indicativo de comprovação de sua hipótese é o uso corrente de uma terminologia repleta de termos oriundos de outros campos sensoriais para descrever o universo sonoro, de difícil apreensão. Termos

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como “textura” (tato), “brilho” (visão), “verticalidade” (propriocepção) e muitos outros, recorrentes na literatura musical, são essencialmente referências sinestésicas. Outros exemplos interessantes de sinestesia nos são dados por um grande nome da música brasileira, Mário de Andrade. Ao comentar a performance musical de um renomado conjunto erudito dos anos de 1930, o famoso crítico exprime com extraordinária clareza verbal a natureza corpórea, táctil e amorosa, além de estritamente audível, que uma obra sonora musical pode veicular: Debussy, de resto, é mesmo um dos músicos que melhor souberam realizar a sensualidade nos sons. Este “Andante”, com as suas polifonias graves e ondulantes que aos poucos se aquecem e atingem o frenesi dum fortíssimo, para depois recaírem exaustas numa paz cheia de ardor, é um trecho de esplêndida sensualidade, um Erotikon da mais sugestiva perfeição (ANDRADE, 1993, p. 11)21 (grifo meu). Ou, ainda, noutra ocasião, sobre o concerto de uma orquestra de cordas: “A execução foi muito regular e extremamente promissora [...] se os primeiros violinos ainda estão um pouco ásperos, e salientes por demais, o resto das cordas já conseguiu uma cor excelente, agradabilíssima” (ANDRADE, 1993, p. 54)22 (grifos meus).

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A interdependência mútua entre imagem e som pode ser considerada como um tipo bastante comum de sinestesia – em que sonoridades evocam imagens na mente do ouvinte - cuja natureza ainda não foi, a meu ver, devidamente abordada no âmbito dos estudos teatrais, provavelmente pela concepção vigente de que o teatro é essencialmente uma arte visual. Contudo, não se pode deixar de admitir a existência de uma importante dimensão sonora no espetáculo teatral, que pouco a pouco começa a ganhar mais espaço à medida que se aprofundam as investigações sobre os procedimentos e proposições estéticas dos grandes encenadores do século XX, que comprovam a presença maciça da linguagem sonoro-musical tanto em seus métodos de formação e aperfeiçoamento do ator, quanto nos processos de construção de seus espetáculos (FERNANDINO, 2008). Por isso, uma apreensão sinestésica do espetáculo teatral, em particular o de teatro de rua, parece ser um caminho através do qual se torna possível transcender os limites bidimensionais de uma recepção estritamente visual (FLÜSSER, 2002) e mergulhar no sentido multidimensional daquilo que se poderia designar como “musicalidade” do espetáculo, uma vez que a percepção do som pelo ser humano se dá por todas as direções, diferentemente da percepção visual que é prioritariamente frontal (e em menor medida, lateral).

21 Diário de S. Paulo, 16 jun. 1933; coluna “Música”, sobre a apresentação de um renomado conjunto da época, o Quarteto Guarnieri. 22 Diário de S. Paulo, 23 set. 1933; coluna “Música”.


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2.4 A musicalidade do espetáculo

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fim de introduzir a questão da musicalidade do espetáculo, recorro novamente aos estudos de Fernandino (2008) que, por meio do mapeamento da musicalidade presente nas poéticas teatrais dos encenadores-renovadores do teatro no século XX, busca delinear o conceito e justificar a elaboração de uma pedagogia teatral de formação do ator voltada especificamente para a musicalidade no teatro. Quanto à musicalidade no âmbito de uma formação teatral, a pesquisa de Fernandino leva à constatação de que nas propostas cênicas desenvolvidas pelos encenadores teatrais por ela investigados – Stanislavski, Meyerhold, Artaud, Brecht, Decroux, Grotowski, Brook, Barba e Wilson -, há uma utilização da música dentro de princípios estéticos específicos, de acordo com os propósitos cênicos de cada um desses encenadores, que valorizam determinados aspectos da linguagem musical. Nesse sentido, a autora destaca como exemplos: [...] o Tempo-ritmo, em Stanislavski; a Leitura Musical do Drama, em Meyerhold; a pesquisa de sonoridades e as Dissonâncias em Artaud; a Música-gestus, em Brecht; o Dinamoritmo, em Decroux; a atuação dos cantos vibratórios nas técnicas performáticas de Grotowski; a sintonização ator-plateia, em Brook, realizada com a utilização dos sons e do silêncio; as conquistas cênicas alcançadas pelo Odin Teatret, por meio dos instrumentos, em Barba; e a ambientação psicoacústica, em Wilson (FERNANDINO, 2008, p. 136). Referindo-se ao primado da partitura musical - “um dos pilares da estruturação da encenação” - que caracterizou o início dessas investigações teatrais, Fernandino observa uma gradual evolução no emprego de procedimentos musicais, em que a rigidez métrica inicial se dilui em direção a uma cada vez maior valorização “da escuta interacional como um dos fatores de percepção e ordenação cênica”. Cabe lembrar que não foi encontrada no âmbito dessa pesquisa uma explicitação efetiva do conceito de musicalidade, “apesar desse termo constar vez por outra na literatura teatral ou na prática e discurso dos artistas” (FERNANDINO, 2008, p. 14). Creio que um ponto de partida, nesse sentido, seria considerar a musicalidade do espetáculo como a materialização, dentro da obra teatral, dos parâmetros sonoros em suas várias possibilidades acústicas – nos elementos presentes nas músicas que constituem uma trilha musical (melodias, ritmos, intensidades etc), na sonoplastia e seus efeitos, nas entonações das vozes cantadas ou faladas – mas, também, naquelas “não-acústicas”, ou seja, no próprio modo de organização do espetáculo, considerando-se os aspectos não audíveis, porém estruturais, que jazem ocultos numa forma musical, nos movimentos corporais do ator, na velocidade e natureza expressiva

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das falas durante um diálogo; enfim, na fórmula de uma “composição plástica e rítmica da cena”, como sintetiza Picon-Vallin ao referir-se à musicalidade da obra teatral de Meyerhold (PICON-VALLIN, 1989). Além desses aspectos, intrínsecos à sintaxe da linguagem musical, podemos considerar a musicalidade do espetáculo também em seus elementos semânticos, pelas ricas correlações que se estabelecem entre aqueles, “internos”, da música (cadências, ritmos, melodias, timbres) e outros, de natureza “externa” (associações sinestésicas, mnemônicas, históricas, afetivas etc). Creio que, desse modo, podemos abranger tanto os aspectos propriamente audíveis quanto os simbólicos/inaudíveis da musicalidade, que um espetáculo de teatro pode oferecer para o espectador-ouvinte. Em A música no jogo do ator meyerholdiano a autora traz até nós a fala do próprio encenador, que nos explica como ele compreendia a música no teatro: Eu trabalho dez vezes mais facilmente com um ator que ama a música. É preciso habituar os atores à música desde a escola. Todos ficam contentes quando se utiliza uma música ‘para a atmosfera’, mas raros são os que compreendem que a música é o melhor organizador do tempo em um espetáculo. O jogo do ator é, para falar de maneira figurada, seu duelo com o tempo. E aqui, a música é sua melhor aliada. Ela pode não ser ouvida, mas deve se fazer sentir. Sonho com um espetáculo ensaiado sobre uma música e representado sem música. Sem ela, e com ela – pois o espetáculo, seus ritmos, serão organizados de acordo com suas leis e cada intérprete a carregará em si (MEYERHOLD apud PICON-VALLIN, 1989, p.1).

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Expressando assim as suas profundas convicções a respeito da importância da música para o ator e para o espetáculo teatral, Meyerhold deixa também muito clara, neste trecho, a natureza dual da música tão precocemente descoberta por Pitágoras: ela carrega em si, ao mesmo tempo, uma dimensão audível, fenomenológica, e outra, inaudível, estruturante. Como pode uma musicalidade “inaudível” ser capaz de organizar o tempo de um espetáculo? Não se trata, aqui, de “música” na sua acepção mais corriqueira – timbres, alturas, melodias – mas de estruturas organizacionais que jazem ocultas na música: relações de impulso e apoio de movimento, variações de dinâmica, ritmo enquanto duração temporal antes da métrica propriamente dita. Aspectos que vivem sob o registro da pulsação, da vibração e da energia, que constituem o fluxo das ondas sonoras. A música enquanto intencionalidade de intensidades, deslocamentos no espaço e no tempo, silêncios, reveladora de estados emocionais pela sua “transmissão puramente musical, dinâmica e rítmica” (GVOZDIEV apud PICON-VALLIN, 1989), como dinâmica que impulsiona e qualifica, molda e anima, insuflando “alma” ao corpo e seus movimentos. Encontramos em Picon-Vallin uma descrição da musicalidade presente nas encenações “clássicas” de Meyerhold - O inspetor geral, A desgraça de ter espírito, A dama das camélias – em que a música “penetra o teatro tanto como material [sonoro] organizado quanto como princípio organizador da ação cênica, do jogo do ator, do


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conjunto da composição meyerholdiana e de um modo de percepção dinâmica do público” (PICON-VALLIN, 1989, p.1). Considerada igualmente fundamental para o ator e para o encenador, a música impregna os modos de criação cênica de Meyerhold e transcende, em toda a sua obra, o senso comum de uma concepção da música de cena como “fundo”. Para ele, além de constituir um importante ponto de apoio para a composição cênica, a música é ainda “a grade de interpretação de uma dramaturgia” que o auxiliará a triunfar sobre o naturalismo23, rompendo com o mundo cotidiano pelos ritmos que coloca em cena. Em suas primeiras experimentações musicais no teatro, como A morte de Tintagiles (1906) e Tristão e Isolda (1909), Meyerhold já revela possuir um senso musical24 apurado, que antecipa a noção de audiovisibilidade do espetáculo ao impregnar de musicalidade todos os processos que envolvem o teatro, da formação do ator à composição cênica de um espetáculo. A tudo, nesse contexto – a relação dos atores com a música, a organização rítmica da cena, a recepção do espectador – ele nomeia genericamente de “música”25, desde o início percebendo-a não como um elemento externo que é “colocado” na cena, mas como parte inerente à própria construção do espetáculo. Essa concepção audiovisual permanecerá por toda a sua carreira. Por exemplo, na montagem de O professor Bubu, de A. Faiko, em 1925, Meyerhold cria um “espetáculolaboratório” em que a música está ininterruptamente presente, em cena. Esta é produzida ao vivo por um pianista de casaca, Lev Arntcham, que executa Liszt e Chopin ao piano de cauda, instalado num dispositivo que reina absoluto, acima do palco. Apesar do virtuosismo exigido pela tarefa, o “maestro da representação” – como este personagem é denominado por V. Fedorov, um dos assistentes de Meyerhold – exibe uma liberdade de expressão impensável para um pianista erudito, pois em lugar de uma execução ipsis literis das peças, sua performance é marcada pelo emprego de trechos específicos de obras que dialogam ativamente com a ação cênica, rompendo portanto com uma ideia da música utilizada como “fundo” para estabelecer com o espetáculo uma relação viva e dinâmica, desempenhando segundo Fedorov o papel de elemento “co-construtor” do mesmo (PICON-VALLIN, 1989). Em O professor Bubu, um outro estímulo sonoro, paradoxal, é colocado no palco: inspirado nas matracas dos teatros orientais que demarcam para os espectadores o início de cada evento teatral, Meyerhold coloca uma “cortina” de bambus suspensos em torno da área de representação, soando a cada entrada e saída dos atores. Curiosamente, no documento fotográfico26 do espetáculo que chegou até nós, o 23 No início do século XX, Meyerhold participa dos círculos simbolistas russos, meio onde a música é cultuada. 24 As capacidades e a vasta cultura musical do encenador são amplamente reconhecidas: além de tocar piano e violino, ele era capaz também de substituir o maestro de seu teatro, quando necessário. Ao seu lado, compositores e intérpretes russos tornaram-se célebres: Gnessin, Prokofiev, Chostakovitch, Chabalin, Oborin, Sofronitski (PICON-VALLIN, 1989). 25 Essa generalização, herança talvez do pensamento positivista de sua época (cuja tendência seria a de nomear os objetos do mundo em categorias estanques, com limites bem definidos), traduz a idéia ainda corrente de “música” estritamente entendida como “arte dos sons”, descartando-se da música sua a dimensão não-audível, ou seja, em seu aspecto de estrutura organizadora tal como o próprio Meyerhold postulava. Por isso é importante ressaltar a musicalidade do espetáculo como o termo que melhor define o objeto de investigação desta tese por ampliar a noção mais restritiva que o termo “música” implica. 26 A fotografia aqui mencionada ilustra o texto intitulado O ator musical: investigando as dimensões do ritmo, da

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dispositivo do piano e seu pianista foram omitidos do enquadre visual, que registrou apenas a cortina de bambus sendo ultrapassada pelos atores, em cena. Isso parece dar indícios de que o responsável pela imagem que perpetuou visualmente essa importante encenação não levou em conta o dispositivo piano-pianista para o contexto global da obra, provavelmente considerando-a restrita aos limites de uma função decorativa e de apoio musical, além de cenográfica. Inadvertidamente, esse documento que registrou apenas os “atores” em detrimento do “músico”, contribuiu para retirar do espetáculo a sua dimensão audiovisual, felizmente recuperada de certa forma por Picon-Vallin. Trazendo essas considerações, até aqui delineadas, para o universo do teatro de rua, cabe comentar que um procedimento semelhante ao acima descrito foi adotado pelo Grupo Galpão, de Belo Horizonte, na montagem de Um Molière imaginário, em 1997 (BRANDÃO, 2003). As diferenças mais perceptíveis aqui, entretanto, são em relação ao trabalho atorial da “pianista” neste espetáculo de rua, na verdade uma atriz do grupo que também é musicista27. Na peça, caracterizada de fada, ela toca um singelo teclado eletrônico de cinco oitavas e não um suntuoso piano de cauda; mas, em diversos momentos do espetáculo, além de executar melodias e comentários musicais, estabelecendo um diálogo sonoro com a cena que se realiza logo abaixo do dispositivo, ela também narra ou comenta diretamente com o público alguma ação que se passa em cena, acentuando o caráter épico do espetáculo. Tal procedimento vincula, assim, o trabalho do grupo tanto às formulações teóricas de Bertolt Brecht sobre o uso da música no Teatro Épico (BRECHT, 1967), enquanto elemento capaz de produzir em cena o efeito de distanciamento, quanto a uma concepção teatral em que a música desempenha papel de elemento co-construtor do espetáculo.

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A fim de fornecer ao leitor um outro exemplo de descrição da musicalidade de um espetáculo, recorro ainda a Picon-Vallin, que explica brilhantemente como Meyerhold consegue obter, na encenação de A dama de espadas em 1935, poderosos efeitos de cena ao fazer a fusão contrapontística entre o musical e o cênico: Apoiada pela luz, a música de Tchaikovski aprofunda as ações cênicas, desnuda as emoções silenciosas dos personagens. Desvela, por exemplo, a cada um dos passos de Liza, que desce a escada do dispositivo enquanto sua amiga Paulina canta, sempre no alto do salão de música, as diversas emoções experimentadas pela jovem. Ou, ainda, faz com que os espectadores escutem as batidas do coração de Hermano, o ruído de sua respiração, no início do terceiro ato em que, sobre a mesma música da introdução, ele sobe na ponta dos pés, com a longa capa arrastando-se atrás, a escada cujo oval caprichoso, ritmado pela ruptura de dois patamares, ocupa toda a cena e enquadra o quarto da velha condessa, embaixo. Ele se imobiliza, estatiza no patamar inferior e depois, à entrada dos violinos, sobre as colcheias, toma a partir para estatizar de novo, no alto, quando escutamos as semicolcheias, perante o retrato da velha, onde cantará em seguida o seu monólogo (PICON-VALLIN, 1989, p.3). pesquisadora teatral Ana Dias, e publicado no nº 10 da Revista Folhetim/Teatro do Pequeno Gesto, em 2001. 27 Fernanda Vianna, no papel de Rainha Mab, a fada dos sonhos.


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A importância de reproduzir, aqui, o longo excerto acima, reside no fato de que a análise de sua autora não apenas descreve um trecho da peça apontando as relações entre as ações realizadas pelos atores e os elementos musicais ali utilizados. Mais que isso, a interpretação poetizada da pesquisadora é desveladora da dimensão dramatúrgica eminentemente audiovisual do espetáculo. Se por um lado Picon-Vallin não ignora a potência das imagens visuais com a sua carga de emoção, como signos da realidade de uma época (a escadaria oval, a longa capa, o retrato da condessa), deixa entrever, também, a intensa potencialização que tais imagens adquirem no confronto com uma musicalidade que com elas dialoga, revelando sutilezas da emoção do personagem e subjetividades, inscritas na cena, que somente os signos de uma linguagem sonorocorporal (a pulsação do coração, a respiração) poderiam proporcionar. Com base nos exemplos acima, pode-se observar que se, por um lado, esses procedimentos se destinam a suscitar no público associações sinestésicas, não cotidianas e criativas, por outro cumprem a função de organizar sonoramente o jogo dos atores, pois a música de cena, assim utilizada, favorece ao ator estar plenamente consciente do laço que existe entre cada movimento, cada frase, e o ritmo, o tempo, a tonalidade do trecho musical.

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2.5 SER TÃO SER: NARRATIVAS DA OUTRA MARGEM

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principal razão pela qual decidi dedicar parte da pesquisa ao espetáculo Ser TÃO ser: narrativas da outra margem foi o fato de que, embora a temática nordestina seja bastante comum no teatro de rua brasileiro, o tratamento dado pelo Buraco d’Oráculo à mesma é de fato, original. A cultura popular, inerente ao tema do espetáculo – o migrante nordestino - não recebeu o tratamento “folclórico” que é frequentemente encontrado em espetáculos de coletivos de outras regiões do país que abordam essa temática tomando de empréstimo textos da literatura de cordel ou outros elementos característicos do nordeste28, nem trabalhou no mesmo sentido dos grupos teatrais oriundos dessa região29 que assumem francamente uma postura ético-estética em defesa dos seus valores culturais. Ao contrário, ainda que tenha surgido de uma pesquisa de campo realizada pelos membros do grupo (alguns destes, descendentes de nordestinos), com migrantes que ao longo das últimas décadas se estabeleceram nos bairros periféricos da capital paulistana, o espetáculo não presentifica o nordeste em suas cores e danças mais festivas; o seu lócus é a cinzenta São Paulo, “o avesso do avesso do avesso” nas palavras do também migrante Caetano Veloso, imortalizadas em sua obra-prima musical, Sampa.

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Os primórdios dessa criação coletiva encontram-se no ano de 2006, quando o grupo foi contemplado pela primeira vez com o Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, com o projeto Circular Cohab’s. Durante um ano e meio, o Buraco passou por dezoito comunidades da cidade apresentando o seu repertório teatral e realizando oficinas30. Nessas comunidades, os seus integrantes entraram em contato com as histórias de seus moradores; de onde vinham, quando e como haviam chegado, o que faziam, descobrindo através desses relatos as transformações pelas quais haviam passado aqueles lugares e sua gente. Surge o desejo de levar para a cena as pessoas que até então apenas assistiam aos espetáculos e de estabelecer com aquelas comunidades uma nova forma de relacionamento. Ao serem contemplados novamente em 2008 pelo Fomento, o grupo focou o trabalho em São Miguel Paulista e Cidade Tiradentes, distritos da região leste de São Paulo, onde iniciou o registro sistemático das histórias das pessoas e dos lugares por meio de entrevistas coletivas. O resultado desse processo foi o espetáculo Ser TÃO ser – narrativas da outra margem, cujo mote, segundo o ator e diretor Adailtom Alves, se 28 Em eventos teatrais de rua, parte significativa dos espetáculos apresenta temática nordestina de linha cômicopopular, mesmo por grupos não originários dessa região. Isto foi verificado por ocasião das coletas de material “de campo”, realizadas em eventos de teatro de rua dos quais participei na condição de pesquisadora-observadora. 29 Imbuaça (SE); Gente de Teatro da Bahia (BA); Grupo Sinos (PI); Movimento de Teatro Popular (MTP-PE), entre outros. 30 Segundo registros do grupo, com o projeto alcançou-se um público de mais de trinta mil pessoas (CADERNO DE TRABALHO, 2011).


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inspirou na célebre frase de Guimarães Rosa: “O sertão está em toda parte”. E, de que “fala” o espetáculo? Este é construído por uma série de narrativas de migrantes brasileiros que chegam, vindos de diferentes regiões (embora o nordeste seja enfatizado), para a grande metrópole paulistana em busca de melhores condições de vida. Estas narrativas, contudo, não definem com clareza as fronteiras entre o real e o ficcional: as partes narradas, sempre na primeira pessoa, referem-se às vezes a fatos reais, vividos pelas pessoas entrevistadas na pesquisa do grupo; às vezes, entretanto, são relatos pessoais dos próprios atores, que generosamente doam ao espetáculo suas próprias experiências, como migrantes que de certa forma, também são31. Elementos da cultura nordestina estão presentes na indumentária dos atores, nos códigos comunicacionais entre os personagens (uso de jargões, gestos), nas cenas que evocam costumes tradicionais; em nenhum momento, porém, é adotado pelos atores o “sotaque” nordestino, procedimento este que evita tipificações de caráter cômico para promover, em contrapartida, um efeito de distanciamento (no sentido brechtiano) e despertar no espectador uma atitude mais reflexiva e crítica acerca da difícil condição do migrante – oriundo do nordeste ou de qualquer região do país - que é levado a abandonar suas raízes “no interior” para buscar a sorte na “cidade grande”. No espetáculo, os deslocamentos espaciais dos atores e das próprias cenas rompem, por sua vez, com a estaticidade que é comumente atribuída ao teatro de rua em função da espacialidade em roda (predominante na vertente tradicional desta modalidade), criando em alguns momentos diferentes situações de intervenção ativa sobre o espaço urbano – procedimento este mais ligado a uma proposta contemporânea e “invasora” de teatro de rua, em que a cena teatral toma repentinamente, “de assalto” a cidade (KOSOVSKI, 2003; CARREIRA, 2008). Estas interferências estão presentes também na ação fragmentada dos atores e nas relações que estes estabelecem com os transeuntes por quem passam, durante a sua perambulação aleatória no prólogo do espetáculo; na “roda de causo” que se forma espontaneamente na calçada, quando uma das atrizes começa a oferecer café feito na hora aos curiosos enquanto lhes conta a sua história, e que é repentinamente desfeita pela marcha desesperada dos personagens que saem em busca de seu destino, sem saber ao certo qual direção seguir (e o público, tão perdido quanto os recém-chegados na Rodoviária da capital, os seguem pela rua ouvindo fragmentos de relatos). Em obra anteriormente mencionada, André Carreira comenta que o teatro de rua é capaz de promover “diferentes planos de atenção dos espectadores”, tanto pelo caráter flutuante e eventual do público na rua, quanto pela a ausência de restrições que o mesmo encontra no espaço aberto da cidade: Na rua, as convenções sociais não são tão rígidas como as de uma sala de espetáculos, e como o cidadão não paga entrada nem tem lugar fixo para assistir à representação de rua, se sente, em todo momento, em liberdade de entrar ou sair do âmbito da representação (CARREIRA, 2007, p. 47). 31 Adailtom Alves é natural de Iguatu (CE); os demais integrantes do grupo atual (Edson Paulo, Lucélia Coelho e Heber Teixeira, o “Johnny John”) são paulistas descendentes de nordestinos. Selma Pavanelli, como mostra o seu nome, descende de italianos radicados no interior do estado de São Paulo.

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A situação de mobilidade própria do espectador que assiste a um espetáculo realizado no espaço público acaba por desenvolver fruições estéticas também diferenciadas, que variam desde a percepção superficial de alguns relances da ação individual dos atores, até a experiência total de acompanhá-los de perto, durante toda a apresentação. Como observa Carreira, Não cabem dúvidas de que as linguagens empregadas na cena tratam de dialogar de forma simultânea com os diferentes níveis de atenção do público. O ponto de vista preferencial onde se localizaria o ‘espectador ideal’ é, no teatro de rua, virtual e não pode ser determinado a priori. [...] O público está, então, potencialmente condenado a um movimento permanente, ainda quando não esteja obrigado a se deslocar para seguir o espetáculo (CARREIRA, 2007, p. 47-48). É o que se verifica em Ser TÃO ser. O mesmo espectador que em determinado instante se encontra, talvez por acaso, num ponto de visão privilegiado em relação a uma cena, logo no momento seguinte é destituído desse privilégio porque a cena se desfez, colocando-o simbolicamente no mesmo desconforto da súbita experiência de desterritorialização pela qual passam os personagens migrantes do espetáculo. Por várias vezes, o público é desafiado a viver junto, com os atores, a errância compulsória que caracterizou grande parte da população brasileira, sobretudo nordestina, durante praticamente toda a história do país. Equilibrando-se entre a tensão e o distensão que os relatos e a ação cênica lhe provocam, o público que acompanha os atores permite-se fazêlo a partir de diferentes pontos - de vista e de escuta - fruindo o espetáculo de diferentes formas: ora mais próximo, ora mais distante, ora “dentro” da própria cena, “jogando” o espetáculo junto com os atores.

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Outro dado que chama a atenção é de ordem sonoro-musical: onde se esperaria encontrar ritmos e canções do cancioneiro popular nordestino, xotes e quadrilhas entoadas com os tradicionais acompanhamentos de zabumba, triângulo, pandeiro e sanfona, ouvese violão, percussões com sucata, rap, paródias de MPB. Essa desobediência aos códigos convencionais também na área da musicalidade indica uma atitude inovadora do grupo frente às questões do popular num espetáculo de rua. Ao mesclar elementos tradicionais com a cultura urbana, Ser TÃO ser transpõe os limites das referências cristalizadas pela tradição e penetra no território menos definido das culturas híbridas (CANCLINI, 2003), aspecto esse que enfatiza o seu caráter de contemporaneidade. Adentrando o âmbito específico da música, será feita a seguir uma descrição nos moldes da etnografia densa proposta por Clifford Geertz (1978), e análise do prólogo criado pelo Buraco d’Oráculo, onde algumas noções musicais fundamentais – escala e música modal, principalmente – serão utilizadas como ferramentas metodológicas para instrumentalizar o leitor de teatro a acompanhar o estudo realizado sobre a musicalidade deste espetáculo de rua. Acredito que tal estratégia, além de estimular uma leitura audiovisual da cena, pode revelar ainda aspectos sonoro-musicais que análises semiológicas do fenômeno teatral dificilmente alcançam, uma vez que em geral são voltadas para um tipo de recepção prioritariamente visual, em detrimento da auditiva.


Capítulo 2 - Escuta

2.6 Prólogo: uma melodia, muitas histórias

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alçadão de Canoas, pleno calor do verão gaúcho. O Buraco d’Oráculo, trupe paulistana, se prepara para a apresentação de Ser TÃO ser: narrativas da outra margem32, espetáculo que integra a programação da III Mostra de Teatro de Rua do MTR-RS33, realizada em janeiro de 2010. Pessoas passam, arrastando sombras pelo calçamento quadriculado, vultos de um sol já cansado do dia quente de trabalho. Alguns diminuem o passo e outros até param momentaneamente perante um estranho aglomerado de objetos aparentemente abandonados sob um poste de luz: um banquinho plástico, dobrável, uma caixa aberta, um frasco de álcool e uma caixa maior, de madeira, que chama a atenção porque do lado de dentro da tampa, aberta como um velho guarda-roupa, fita-nos a figura conhecida de um Roberto Carlos ainda jovem e cabeludo. Apoiada sobre essa caixa, uma bandeja de madeira com várias canequinhas de café, de ágata branca, e um tecido rendado displicente, jogado ao lado. No fundo da caixa há ainda outra fotografia do Rei usando um brinco de pena de ave, capa de um famoso long-play que nos lembra o galã que ele foi um dia, habitando as portas de guarda-roupas, penteadeiras e a imaginação apaixonada de tantas mulheres por este Brasil afora... é quase um altar. Assentados sobre o assoalho da caixa, vários pequenos objetos, testemunhos de uma vida comum; tecidos embolados, papéis... ao lado, no chão, repousa um velho bule de café. Minha lente de observadora flagra o encontro do grupo de atores, que parecem estar combinando algo sobre a apresentação. Eles percebem a minha intrusão. Disfarço, continuo a registrar o entorno, as pessoas, as portas já fechadas de algumas lojas. De repente, os atores se afastam, batendo palmas. É o início do espetáculo, mas... “quanta coisa já aconteceu”, penso eu. Lu Coelho34, atriz da primeira formação do grupo, vem em minha direção com o seu figurino regional: saia rodada, colete de cores delicadas sobre a camisa clara, lenço florido na cabeça e o detalhe sutil de um pano-de-prato no ombro. O andar, já meio arrastado, revela que agora Lu é uma velha senhora. Sem dar muita conversa, ela se agacha e, com a certeza da tarefa que lhe cabe, começa a mexer nos objetos que eu acabara de filmar. Estou bem próxima e me dou conta de que ela começa a fazer café, enquanto a minha câmera passeia ao redor. Procuro os outros atores, mas eles dispersaram pelo espaço e cada um seguiu um caminho particular. O espetáculo, assim pulverizado pela errância dos atores, 32 A grafia do título do espetáculo segue a indicação dada pelo próprio grupo. 33 Movimento de Teatro de Rua do Rio Grande do Sul. 34 Os personagens, que não têm nomes próprios, serão referidos pelos nomes dos próprios atores.

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coloca-me, enquanto espectadora, na condição de ter que optar: que caminho seguir? Então, antes pelo ouvido do que pelo olho, encontro um ator: é Adailtom Alves, que também dirige o espetáculo. Vestido com uma roupa de algodão cru, chinelos e chapéu de vaqueiro nordestino, violão em punho, começa a andar carregando uma estranha mochila retangular nas costas. Ao passar por um grupo de pessoas, cumprimenta-as tocando levemente o chapéu sobre a testa em sinal de boa educação, coisa que o personagem aprendeu provavelmente em terras distantes. Vai caminhando, devagar, enquanto dedilha as cordas do instrumento. Os outros atores também iniciam seus próprios percursos, individualmente, em meio aos transeuntes, carregando mochilas semelhantes. Nenhum deles, porém, manipula algum instrumento musical, como Adailtom. Volto-me para as notas musicais que o violão, agora já transmutado em viola pela magia do teatro, despeja no ar. O ator parece emiti-las sem preocupação, sem compromisso com qualquer forma definida, mas aos poucos elas começam a se agregar, esboçando um desenho no espaço: um som se junta a outro, depois se liberta, retorna, vai ao encontro de outro, tornando concreto o desejo de encontrar companheiros para dançarem, juntos, uma estranha coreografia. Assim, vai nascendo uma melodia:

Exemplo 2

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Agora o imigrante nordestino está caminhando à minha frente e eu o sigo como uma criança encantada pelo flautista de Hamelin35. Nesse momento o Calçadão está ficando vazio, e a sombra dos prédios ocupa, agora, todo o lugar onde antes o sol havia reinado absoluto. A tarde cai, junto com as notas musicais daquela viola. O ator passa por pessoas que ainda caminham, talvez saindo do trabalho. Agora é bem claro que, nesse perambular uma melodia tímida se fez surgir... sonoridade nordestina que me esforço para ouvir, enquanto um amigo puxa conversa desviando momentaneamente a minha atenção. Adailtom estanca; olha à volta como se procurasse alguma coisa e retorna lentamente como se desistisse dessa busca. Faço um giro de 180º e revejo a velha senhora ainda fazendo café a vários metros de distância, já com alguns curiosos à sua volta. Todos os outros atores estão distantes de mim; resolvo então voltar para o violeiro, que repete a mesma frase melódica enquanto se distancia novamente, recomeçando o trajeto do início. Nesse momento percebo que o figurino que ele usa – calças folgadas e uma túnica, ambos de algodão cru - completa a imagem pintada na mochila às suas costas: terra. Terra marrom, rachada, muito rachada. E céu. Marrom e azul-celeste. E a areia alva do tecido. Adailtom, o violeiro, carrega no próprio corpo a terra natal em cores e formas. É a presença indelével de outro lugar, estampada na trama da roupa e da memória. 35 O Flautista de Hamelin é um conto folclórico alemão de origem medieval, recolhido e escrito pelos Irmãos Grimm. Na história, a música tem o poder de encantar os ratos e as crianças da aldeia de Hamelin.


Capítulo 2 - Escuta

Vagueia, parecendo meio perdido, meio pedindo ajuda com o olhar, acompanhando quem passa. Mas quem passa não olha para ele; sua presença é sumariamente ignorada pelos passantes. Não imaginam que, ao repetir esse gesto de descaso, passaram – mesmo que involuntariamente – a fazer parte do espetáculo, como atores de um elenco representando o desdém da população de um grande centro urbano em relação aos miseráveis que nela chegam todos os dias, vindos do interior do país. O imigrante se aproxima de um casal sentado num banco, cumprimenta-o respeitosamente com o chapéu e fala alguma coisa. Os dois, apesar de um pouco surpresos, dão um pouco de atenção à conversa desse peregrino que veio interromper, talvez, uma conversa íntima. Ainda consigo ouvir o seguinte trecho, enquanto me aproximo:

“... A gente escreve a própria história. Quando a história da gente se junta com a do outro, é mais bonito. É uma outra história. Ói, se vocês quiserem, podem se seguir. Porque pra onde eu vou tem mais história, viu? Todo mundo é assim: começa onde nasce. E termina onde escolhe”. E vai embora, deixando o casal sorrindo e se entreolhando. Caminha lentamente de volta ao início da jornada. Vai, parando a cada passo, atento ao trajeto à sua frente, sob uma pirâmide de raios de luz que se infiltraram momentaneamente pelas brechas entre os prédios.

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2.7 Migrantes e canções

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s outros atores-viajantes começam a regressar para o lugar inicial de encontro no espaço do calçadão. Adailtom também se dirige para lá e ao chegar perto daquela senhora “do café”, para e tira a mochila das costas. Esta se transforma num banco onde o ator senta, atraindo o público com placidez de velho sertanejo. Lu convida os que passam com um gesto camarada de mão. Outro peregrino – o ator Johnny John - chega, repetindo palavras que eu já ouvira antes: “Todo mundo é assim: começa onde nasce. E termina onde escolhe”. Logo os outros atores, Edson Paulo e Selma, vêm se unir à trupe. Assim, todos chegam à “cozinha” daquela senhora hospitaleira, tiram suas mochilas das costas fazendo uma grande roda que anseia pelo café, cujo aroma se espalha pelo ar. Cada mochila é um caixote de madeira, um guarda-roupa, um baú, um relicário no qual carregam as histórias de suas vidas: raízes, sonhos, objetos, amores. Surge agora uma canção alegre, que recebe acompanhamento rítmico: uma das mochilas-caixas virou instrumento musical que o ator Johnny John percute com as mãos, sentado sobre ele à moda de um cajón peruano36. Selma também participa, batucando na lateral de sua caixa com uma baqueta. Uma cadência perfeita37 aparece, oferecendo a introdução para Adailtom “puxar” o canto de Cálix Bento, conhecida canção de Milton Nascimento38:

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Introdução: A7 D A7 D A7 D A7 Ó Deus salve o oratório (bis) onde Deus fez a morada, oiá meu Deus... onde Deus fez a morada, oiá! Onde mora o Cálix Bento (bis) E a hóstia consagrada, oiá meu Deus... e a hóstia consagrada, oiá! De Jessé nasceu a vara (bis) Da vara nasceu a flor, oiá meu Deus... da vara nasceu a flor, oiá! E da flor nasceu Maria (bis) 36 O cajón, aumentativo de caja (“caixa” em espanhol), é originário do Peru colonial, quando os escravos africanos utilizavam caixas de madeira como instrumento de percussão em suas manifestações musicais. É considerado hoje, afroperuano e patrimônio cultural dessa nação. 37 Do italiano cadenza (caindo), a cadência marca o fim de uma frase musical no sistema tonal, dando-lhe o sentido de uma pontuação. A cadência perfeita é constituída por dois acordes: o da dominante, seguido da tônica. Na prática, isso significa que o performer utilizou, como introdução ao canto de Cálix Bento, os acordes de LaM (A7, dominante) e ReM (D, tônica) algumas vezes, antes que o grupo começasse a cantar. 38 Inspirada nos cantos da Folia de Reis do interior de Minas Gerais, a versão original da composição aparece no álbum Geraes (1976) do compositor mineiro.


Capítulo 2 - Escuta

De Maria, o Salvador, oiá meu Deus... de Maria o Salvador, oiá! Todos se integram à cantoria, timidamente no início e a seguir, com entusiasmo. É um canto religioso-profano inspirado no repertório das Folias de Reis, testemunha do fervor católico que impregna toda a música “de raiz” do interior do país e particularmente de Minas Gerais, terra de Pena Branca e Xavantinho, dupla sertaneja que o popularizou nos anos de 1970. Ao som da viola, são contados “causos” de migrantes, entremeados de canções populares. A velha senhora (Lu Coelho) conta que, ainda recém-casada, foi para São Paulo. E provoca o público feminino encerrando seu relato com uma variação daquele bordão do início: “Toda mulher é assim, né, fia?” – dirigindo-se a uma espectadora – “Começa onde nasce. E termina onde o marido escolhe... né, fia?” Depois desse momento de aconchego, é chegada a hora da “partida”; os atores repentinamente colocam suas mochilas-casas nas costas e, desfazendo a roda que se formou espontaneamente à sua volta, ganham novamente a rua em passos rápidos, quase corridos. A maior parte do público, surpreendido com a guinada súbita, tenta acompanhar os atores nessa nova e extenuante etapa de sua saga. Mais à frente, forma-se outra roda em torno dos personagens que acabaram de “chegar” à Rodoviária da Grande São Paulo, para ouvir novos relatos verídicos, dos atores ou das pessoas entrevistadas na sua pesquisa de campo. De quadro em quadro, o Buraco d’Oráculo apresenta o processo perverso que caracteriza os grandes agrupamentos urbanos da atualidade: ocupação ilícita de um terreno, a construção de seus abrigos precários, a desocupação forçada e finalmente, a sujeição desses cidadãos desassistidos às manobras do setor imobiliário que, em conluio com os poderes públicos, “soluciona” o problema dessa população oferecendolhe uma moradia “a preços acessíveis” em conjuntos habitacionais de qualidade inferior. Todas as cenas são alimentadas musicalmente por canções populares já conhecidas como Cálix Bento, mas principalmente por composições próprias, cujos nomes traduzem de forma simples e direta a crítica social e a denúncia pretendidas pelo grupo: Rap do Enfrentamento, A luta de um povo humilde, Rap da periferia, Se você quer sua casa própria, Essa casa vai ser minha, Minha casa, Levanta povo. Além desse conteúdo musical inédito, o grupo faz ainda algumas “apropriações”, criando paródias39 e “recriações” a partir de outras obras musicais, como é o caso de Cachaça não é água (Mirabeau Pinheiro, Lúcio de Castro e Héber Lobato), Se essa rua fosse minha (domínio público), A casa (Vinicius de Moraes); Maia e Se o povo soubesse (canções oriundas de movimentos sociais, de autoria coletiva), e alguns gêneros nordestinos tais como Xote dos cabeludos (Luiz Gonzaga e José Clementino), Xote das meninas (Luiz Gonzaga e Zé Dantas) e O cheiro da Carolina (Luiz Gonzaga).

Esse rico repertório40 musical do espetáculo reflete as referências culturais

39 No contexto musical, a paródia é uma técnica que emprega propositalmente elementos reconhecíveis de outras composições dentro de uma obra (por exemplo, usar a música de uma canção, porém alterando-se parcial ou completamente a letra). Oriundo da música renascentista, o procedimento renasceu no século XX e passou a ser amplamente adotado em várias vertentes da música de cena, como ópera, teatro, cinema e televisão. Ao “cruzar” elementos musicais, a paródia cria para o ouvinte uma dupla referência, multiplicando os sentidos da cena. 40 O repertório musical detalhado do espetáculo foi fornecido pelo ator Adailtom Alves durante um período de trocas de e-mails (durante o segundo semestre de 2011) em que o grupo, mediado pelo ator, gentilmente se dispôs a esclarecer as

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dos integrantes do grupo: na infância, todos tiveram a oportunidade, hoje rara, de crescerem em meio a cantigas de roda, presentes em jogos e brincadeiras populares que mantêm preservadas uma estrutura multifacética ao integrarem atividades simultaneamente rítmico-melódicas e corporais, vivenciadas lúdica e coletivamente. São mencionadas, também, influências musicais de teor fortemente tradicional, incluindo-se aí a sonoridade nostálgica das violas sertanejas e as emboladas “de pandeiro”, além dos cantos religiosos católicos. Entre os compositores citados pelos atores, figuram grandes nomes da MPB “de raiz”: Elomar, Xangai, Almir Sater, duplas sertanejas. Outras sonoridades nordestinas, como as de Antônio Nobrega, Mestre Ambrósio, e as que misturam elementos pop ou rock, como Raul Seixas, Belchior e o Movimento Mangue Beat, são também importantes referências musicais para os atores do Buraco d’Oráculo. A adolescência de todos, em São Paulo, foi marcada pela eclosão das chamadas bandas de “rock nacional” dos anos de 1980 e pelo contato, em alguma medida, com estilos mais “pesados”, como o heavy metal e o punk rock.

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Nas cenas em que aparecem, as músicas são quase sempre entoadas em uníssono pelo coletivo, acompanhadas pelo violão de Adailtom e pelas percussões realizadas por outros integrantes, desempenhando no espetáculo uma função de elemento potencializador do efeito de distanciamento brechtiano. Alguns fatores auxiliam-nos a fazer essa afirmação. Verificou-se, por exemplo, o uso predominante de canções – songs, na terminologia de Brecht – que interrompiam a linearidade da ação cênica, evidenciando antes de tudo o caráter não-ilusionista da representação; além disso, por meio das letras dessas canções os atores iam revelando ao público as manobras de opressão e repressão utilizadas pelas figuras de poder ali representadas – a polícia, a mídia, os políticos – para lidar com as comunidades de migrantes quando as mesmas se tornavam indesejáveis, tornando-se “um colaborador ativo na tarefa de desnudar o corpo da ideologia burguesa” (BRECHT, 1967, p. 83). O uso desse tipo de música-gestus, capaz de representar musicalmente os gestos sociais dos personagens envolvidos em cada cena, demonstra que não se tratou, portanto, de colocar em cena atores-cantores interpretando canções, mas de atores narrando uma história por meio das canções. Isso não significa, entretanto, que inexistiu qualquer exigência técnica nesse sentido; ao contrário, para dar conta da tarefa o coletivo manteve um trabalho permanente de preparação41 corporal, rítmica e vocal, paralelo à montagem do espetáculo. Essa instrumentalização técnica, baseada em diferentes dimensões da atuação e compreendida à luz de reflexões fundamentadas em Brecht, permitiu por várias vezes aos atores estarem em cena simultaneamente atuando, cantando e executando movimentos plásticos, numa clara evocação ao conceito de mousiké. Num certo momento do espetáculo, por exemplo, um “policial” adentra a cena anunciando aos demais personagens (os moradores da comunidade de imigrantes, ali representada) minhas dúvidas. 41 Esse trabalho se desenvolveu com o apoio de dois profissionais: Melissa Maranhão (preparadora vocal) e Celso Nascimento (professor de percussão), durante o projeto Narrativas de Trabalho, dentro do qual também estava prevista a qualificação musical dos atores do Buraco d’Oráculo. Elizete Gomes foi a profissional responsável pela preparação corporal.


Capítulo 2 - Escuta

uma ordem oficial de despejo de suas casas. Toda a cena é “musicalizada”, principalmente por meio do procedimento de um canto responsorial entre o policial e os imigrantes, em coro. Enquanto cantam, os atores simulam com o próprio corpo um movimento em uníssono que se contrapõe aos movimentos do antagonista, que usa o próprio “escudo” como instrumento musical. Percutindo ritmicamente a sua “arma” (um cacetete, também utilizado pelo personagem como baqueta) no corpo desse objeto cênico transformado em instrumento percussivo, o ator cria uma base musical sobre a qual todo o conjunto da cena irá se desenvolver.

Rap do Enfrentamento (criação coletiva do Buraco d’Oráculo)

Policial -

Desocupem essa área

Tô cumprindo o meu dever

Proteger o patrimônio

Doa a quem doer

Desocupem essa área

Ou a porrada vai comer.

Povo (ocupantes) - Chega de promessa

Chega de enrolação (2X)

União, Estado e Município

Ninguém dá solução! (2X)

Direito a moradia

Está na Constituição (2X)

Desocupem essa área

Policial -

Ou a porrada vai comer

Tô cumprindo o meu papel

Tô cumprindo o meu dever

Proteger o patrimônio

Doa a quem doer!

Spray, bala de borracha

Gás pra entorpecer

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Desocupem essa área

Ou a porrada vai comer!

Povo (ocupantes) - Aqui só tem família e trabalhador (2X)

Mas tem panela, pau, pedra (2X)

Estabelece-se um cruzamento de múltiplas referências – a imagem de uma figura de poder (o “policial”) em oposição ao “povo”, a letra da canção, o gênero musical que lhe dá a base rítmica (Rap)42 – onde tudo contribui para a construção de uma imagem cênica, visual e sonora dos conflitos sociais existentes nas grandes metrópoles. Porém, ainda que o trabalho musical desenvolvido pelo grupo mostre a importância que a música representa para a sua proposta ético-estética de teatro - fazendo de suas criações e recriações musicais a concretização de um gestus musical imbuído de forte carga política que extrapola a mera “utilização” da música em um espetáculo – é preciso ressaltar, neste ponto, que a musicalidade do espetáculo Ser TÃO ser não se limitou à utilização de exemplos pontuais de “músicas” com finalidade didático-política. O tratamento sonoro-musical dado pelo grupo vai mais além, extrapolando mesmo a musicalidade-gestus que se vincula a uma cena em especial (como a do exemplo descrito acima), mostrando que por meio de procedimentos e elementos musicais é possível agenciar o conteúdo afetivo-existencial do espetáculo. É para essa camada, mais profunda, da musicalidade de Ser TÃO ser, que irão se voltar as reflexões que ora se seguem.

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42 Chegando ao país no final dos anos 80, o Rap (rhyme and poetry) logo se tornou um gênero popular nas periferias das grandes metrópoles brasileiras (sobretudo do sul e sudeste), devido ao conteúdo contundente das letras que oscilavam entre a crítica social e o ataque direto às instituições, sobretudo a polícia, levando a público questões como violência, criminalidade e discriminação racial.


Capítulo 2 - Escuta

2.8 O contraponto cênico-musical do prólogo de Ser TÃO ser

O

universo musical está repleto de analogias entre som e imagem. Desde as primeiras tentativas de registro das melodias litúrgicas pelos padres católicos, a grafia da música europeia representou uma estratégia de transpor, para o espaço plano e bidimensional, a matéria-prima de uma arte que recusa deixar-se aprisionar dentro dos limites do espaço físico. A impermanência da matéria sonora trouxe para os primeiros estudiosos da música ocidental o desafio de apreender o som num suporte fixo e, com isto, assegurar não apenas a expressão artística que produziam mas, além disso, criar um instrumento pedagógico eficaz para a transmissão e manutenção da ideologia cristã através dos cantos bíblicos. Como a escrita musical se desenvolveu na Europa a partir da voz cantada, desde o início desse processo usou-se a imagem de uma “linha” para descrever a sucessão de sons que formam uma melodia. A esse respeito, comenta a pesquisadora musical Yara Caznok: As primeiras tentativas de grafia musical ocidental se deram na Idade Média e estavam restritas à música vocal, único repertório aceito pela Igreja Cristã. Assim, o âmbito de cada tessitura vocal é definido pelo espaço que ocupa numa escala de localizações espaciais imaginárias, que vão desde um plano espacial mais baixo (notas graves) até o mais alto (notas agudas) (CAZNOK, 2008, p. 51). Para a autora, a solução ocidental de grafia dos sons está visceralmente ligada à ideia de espaço. Testemunho disso é o fato de que vários termos correntes no campo musical, cujas significações são percebidas como “naturais” e praticamente inequívocos para um músico de hoje, passaram por um longo processo de assimilação que percorreu toda a Idade Média, até sua incorporação ao vocabulário musical formal que alcança os nossos dias. Os exemplos mais elementares da analogia som/imagem são o da nota musical como “ponto” e o da melodia (sucessão de notas musicais) como “linha” sonora; o mesmo ocorre em relação ao termo “altura”, como sinônimo de frequência (vibrações de um corpo), além dos movimentos musicais de “ascendência” e “descendência” que as notas descrevem no espaço imaginário da pauta musical. Segundo Roy Bennett (1986), a música ocidental mais antiga de que se tem o registro escrito, consiste em uma única “linha” melódica cujas notas não possuem precisão métrica definida uma vez que suas durações estão subordinadas à entoação vocal do texto sagrado:

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[Solo] Be - ne - di - ca - mus Do_______ [Coro] De___ o gra_______ (Abeçoemos o Senhor. Graças a Deus)

mi - no ti - as

No contexto religioso do início do período medieval esse tipo de música sacra, vocal e sem acompanhamento instrumental, tornou-se conhecido como cantochão. As primeiras composições polifônicas – formadas por duas ou mais linhas melódicas – surgem somente a partir do século IX, com o nome de organum. A forma mais antiga deste estilo é a do organum paralelo, onde a voz principal (o cantochão original) é duplicada nota a nota (daí a expressão latina punctus contra punctus que deu origem ao termo contraponto), criando um paralelismo sonoro que se tornou um dos elementos mais marcantes da cultura musical cristã. Mais tarde, o contraponto irá dar lugar a experimentações polifônicas muito mais complexas, capazes de misturar elementos heterogêneos e romper com o paralelismo inicial, das quais o moteto renascentista é o caso mais extremo. Compreender as diversas camadas de musicalidade existente num trecho melódico aparentemente tão singelo, similar a um cantochão medieval, é essencial para penetrarmos no universo cênico-musical do prólogo de Ser tão ser e vislumbrarmos aí a possibilidade de uma construção dramatúrgico-musical.

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Aqui, o termo prólogo (do grego prologos, “discurso que vem antes”)43 será utilizado para descrever a primeira ação cênica de Ser TÃO ser, momento em que se estabelece o primeiro contato da representação com a sua audiência: o público aleatório do calçadão de Canoas num fim de tarde. Este, constituído em sua maioria por comerciantes e vendedores que estão fechando as lojas para irem embora após um dia comum de trabalho, é gradativamente “fisgado” por um fio de música que se insinua por entre os ruídos (vozes, passos, motores) da paisagem urbana. O personagem é presentificado pela música, antes mesmo de ser visto. Esse início sutil, quase imperceptível para muitos uma vez que se trata de um estímulo auditivo produzido por uma fonte sonora móvel e de baixa/média intensidade, possibilita uma leitura do espetáculo de rua sob o ponto de vista da mousiké, uma vez que a ação cênica inicial que inaugura o nexo entre representação e espectador – a perambulação aleatória dos atores pelo espaço - é promovida, sobretudo, por um estímulo sonoromusical: a improvisação de Adailtom, cujas peculiaridades musicais carregam consigo o sentido global do espetáculo.

43 De acordo com Pavis (2003), o prólogo se refere à parte que antecede a peça propriamente dita, na qual um ator dirige-se diretamente ao público para lhe dar boas vindas e anunciar temas importantes. Dentre outras funções do prólogo, figura a de estabelecer um discurso intermediário que garante uma passagem “suave” entre a realidade social da plateia para a ficção e introduz o espectador no jogo teatral.


Capítulo 2 - Escuta

Observa-se, então, que o prólogo de Ser TÃO ser é realizado por meio de uma melodia que soa solitariamente no espaço aberto da cidade, e é entremeada pelas falas declarativas dos personagens: “Todo mundo é assim: começa onde nasce. E termina onde escolhe”. A mesma frase, enunciada individualmente pelos atores ao público durante a sua deambulação, é o anúncio de algo não pertencente ao tempo do evento representado. Encontra-se noutro espaço-tempo, como uma profecia que se dirige ao conjunto humano e não apenas a alguém em particular; a natureza universal desse “todo mundo” que “começa” (nasce) e “termina” (morre) se explicita também nas vozes de todos os atores que, embora separados em suas trajetórias próprias, compartilham da mesma situação/vivência que é anunciada verbalmente aos espectadores. Uma realidade comum a todos – nascer e morrer – é ajustada a cada sujeito em particular: ...E termina onde escolhe: o início é imponderável, mas não o fim. Essa recusa em viver sob a ordem de um destino inexorável e fazer do lugar da morte um ato de decisão mostra uma visão de mundo em que a vida é percebida como um ato voluntário, o que vem a reafirmar a postura ativa adotada por Bertolt Brecht, cujas proposições ético-estéticas podem ser vislumbradas a cada etapa do espetáculo criado pelo Buraco d’Oráculo. Contudo, tal posicionamento diante da realidade não será vivida sem sofrimento; o canto plangente do violão mostra que esta luta se dá não apenas no mundo da realidade objetiva, mas também interna e subjetivamente, à custa de dor. É esse contraponto entre dor e luta – o conteúdo emocional expresso pela música, para em seguida colocarse racionalmente pela fala articulada. Em meio à dor - da perda de referências, da desterritorrialização forçada - se revela a notícia de que “a vida é uma jornada... a gente inicia onde nasce. (Mas) morre onde escolhe”. Nesse momento, o grupo Buraco d’Oráculo

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cumpre a sua grande tarefa oracular: ir a público alertar-nos sobre a existência dessa dupla natureza do homem: ao mesmo tempo um ser coletivo, sujeito às leis universais; e um ser singular, que tenta construir o seu próprio destino. A abertura do espetáculo mostra um modo de construção dramatúrgico-musical que explicita o paradoxo de viver entre o “ser” (algo que simplesmente nasce e morre) e o “TÃO ser” (alguém que delibera sobre o próprio destino). A vida sem ou com arbítrio é a grande questão existencial apresentada pelo “oráculo” Buraco, cujos ecos estão também na máxima shakespeareana Ser ou não ser, eis a questão, parodiada no próprio título do espetáculo. No prólogo, duas articulações sonoras distintas distribuem a inteligibilidade dos eventos cênicos: as linhas da melodia e da fala. Contudo, tanto uma quanto a outra são veículos de contato com o receptor ao mesmo tempo em que constroem uma dramaturgia eminentemente musical, apoiada tanto na sonoridade instrumental quanto na das palavras articuladas. Assim, o contraponto cênico-musical criado nesse momento crucial do espetáculo – as distintas musicalidades da fala e da melodia do violão, articuladas à lenta movimentação dos atores pelo espaço da rua - produz o nexo emocional do público com os acontecimentos que serão doravante apresentados. Nessa improvisação instrumental, o significante musical “puro” do ritmo é sobrepujado pela sonoridade melodicamente fluente das notas musicais, cujo caráter emotivo estabelece uma inequívoca proximidade com a musicalidade “espiritual” da música sacra medieval. A saudade e o sofrimento, emoções sugeridas por meio da musicalidade do Prólogo mantêm aqui, laços estreitos com o desejo de comunicação com Deus proposto pela linha melódica, de rítmica imprecisa, dos cantos litúrgicos cristãos. Como um convite à introspecção e à reflexão, propiciada pela oração e pelos cantos sacros.

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2.9 A nostalgia do lar

D

o ponto de vista da musicalidade da cena quanto à linguagem musical propriamente dita, pode-se dizer que o Buraco d’Oráculo utiliza, no prólogo, um procedimento musical em que a solidão do nordestino é evocada pela execução quase aleatória de sons de uma escala modal - vestígios de um mundo ancestral, cíclico e coletivo que aparecem como que deslocados do mundo atual contemporâneo, linear e individualista -, materializando sonoramente a precariedade do sertanejo em meio ao ambiente urbano, que lhe é inóspito. É ao mesmo tempo um lamento, um chamado e um testemunho desse sentimento de nostalgia do mundo que foi deixado para trás e do espanto de ver-se arremessado repentinamente noutro lugar, na qual o homem não se sente à vontade, pois as convenções aí reinantes ainda lhe são estranhas. A sua música é também um porto seguro, e o homem se agarra a ela como o ator segura o instrumento junto de seu corpo, de seu peito, na única intimidade possível naquele universo de exposição pública e anônima que a cidade traz consigo, deixando à mostra a falta de acolhimento e a fragilidade do ser. É também, um signo dessa busca de afeto, a viola que o ator abraça e acaricia com carinho, devolvendo ao objeto o aconchego de um lar distante, talvez perdido para sempre. Um pouco mais tarde, quando esses seres solitários se encontrarem, é para repartir aquela intimidade perdida; na lembrança de uma cozinha compartilhada por familiares, amigos e vizinhos, a memória como único lugar possível de usufruir do sentimento de pertencimento a uma comunidade, a um coletivo social onde cada um é “Seu” Fulano ou “Dona” Sicrana, e não apenas “um homem” ou “uma mulher” nas ruas da cidade. Mas, esse mundo regido pela dimensão sensorial - o cheiro do café, o calor dos corpos próximos e do fogo aceso, o olhar do outro pertinho, o gesto de dividir o assento para ouvir “mais uma história” - é um mundo entre parênteses, situado noutro tempo e noutro lugar. Então, a música que o anima é assim vivenciada, em ritmo e voz. Há um canto que agora pode ser vivido coletivamente porque todos o conhecem, é parte desse mundo de todos, e cujo significado é também compartilhado por todos. Por meio de Cálix Bento, o Divino Espírito Santo é invocado, em alto e bom som, entrelaçando o homem ao sagrado. Não se trata apenas de entoar uma canção típica dessa festa popular, mas, sobretudo de comungar o significado daquela experiência de perda das raízes. É a vivência do próprio mistério sagrado44 que une o humano e o divino, uma súplica a Deus para que desça em seu raio de luz e faça daquele lugar a Sua morada. É no milagre da esperança, operado pela canção coletiva, que os homens e as mulheres desgarradas de seu universo conhecido encontram energia para enfrentar as dificuldades que os esperam no novo mundo; e é também a força que os atores vão 44 Oriundo do verbo grego mýo (fechar, ocultar), o substantivo mysterium era aplicado a elementos concretos que, embora fechados, poderiam ser abertos (porta, janela, olhos, boca etc). Temos, então, o oculto que pode ser revelado, no sentido adotado pela Igreja Cristã (BECKHÄUSER, 2004).

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buscar para apresentar suas histórias – e não somente as histórias de seus personagens - ao público. As notas musicais soltas de antes se organizam numa mesma canção: melodia, ritmo e harmonia se unificam como num hino de batalha. Por isso talvez, o batuque que a acompanha é executado numa intensidade quase excessiva, que contradiz a delicadeza da viola e das palavras entoadas, sugerindo que a ação sobre o mundo deverá substituir, de agora em diante, o estado nostálgico anterior. Quando se fecham os parênteses - como numa preparação antes da luta, a inspiração profunda antes do salto no abismo - e a imagem da cozinha aconchegante é desfeita repentinamente, o mundo volta a ser aquele da realidade urbana do início; entretanto, todos estão agora mais preparados para os percalços que virão. Não são mais pobres diabos solitários, pois construíram ali uma fortaleza interior. E o espetáculo pode, então, continuar.

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Capítulo 2 - Escuta

2.10 A música, antes da história: a imagem sonora da solidão

E

m seu estado primário, o campo sonoro é fluido e caótico. Enquanto fenômeno físico, o som musical não se diferencia do que se chama comumente de “ruído”. Todo som é vibração: um corpo vibra, e em resultado dessa ação vibratória produz ondas invisíveis que se propagam no espaço, sensibilizam o nosso aparelho auditivo e são identificadas pelo cérebro como “som”. Sob o ponto de vista fisiológicoacústico, a audição nada mais é senão um modo peculiar de percepção da realidade. É apenas pela força das convenções criadas pelo homem que o efeito das ondas sonoras vai além de suas funções essenciais (como as de comunicação e sobrevivência, de que todo ser vivo depende) e se torna música: arte. Ao longo do tempo cada povo elege os seus sons preferenciais, destacando-os do oceano indiferenciado dos sons do universo e fazendo, deles, referências objetivas de seu mundo e modo de vida: nascem desse modo as chamadas “notas musicais”, pontos sonoros de apoio sobre os quais serão construídas as estruturas musicais de cada cultura – as escalas. Segundo Wisnik, As escalas são paradigmas construídos artificialmente pelas culturas, e das quais se impregnam fortemente, ganhando acentos étnicos típicos. Ouvindo certos trechos melódicos, dos quais identificamos não-conscientemente o modo escalar, reconhecemos frequentemente um território, uma paisagem sonora, seja ela nordestina, eslava, japonesa, napolitana, ou outra (WISNIK, 1989, p. 65). Essa construção se efetiva ao longo do tempo, representando o produto cultural resultante de um pensamento e um modo de vida que pertence a toda uma coletividade; são, contudo, os músicos os que lidam mais diretamente com essas estruturas, pois são elas que dão uma primeira forma à matéria informe do campo sonoro e possibilitam criar o que convencionamos chamar de “música”. Foi através do mapeamento e do trabalho de organização e reorganização dos sons, realizado por incontáveis músicos dos mais diversos lugares e tempos, que se desenvolveram e continuarão a se desenvolver as mais diversas expressões musicais. O que vemos acontecer no prólogo de Ser Tão ser poderia ser descrito como uma reedição sintética desse processo milenar, concretizado no jogo musical aparentemente singelo que o ator-músico Adailtom estabelece com o seu instrumento. Isso significa dizer que, na fase inicial de sua improvisação com o violão ele busca intuitivamente pontos sonoros de apoio – notas musicais - em busca de um sentido musical. Por isso, nesse momento são ainda notas avulsas que nascem sem direção, sem intenção, soando apenas, numa vida que se preocupa apenas em ser vivida.

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Aos poucos, encontram uma ou outra companheira com quem parecem se combinar melhor, no desejo de construir as primeiras sílabas de uma fala ainda balbuciante. Um som que se encontra com outro som, afasta-se desse para retornar ao anterior, negociando e renegociando alianças sonoras. Essas alianças se dão por meio da experimentação das notas musicais, dentro do campo agora já delineado de uma escala musical, onde algumas daquelas primeiras notas se fixam, em detrimento de outras que vão sendo descartadas. Quando, em meio a esse processo, a estrutura escalar da melodia finalmente se define, surge uma frase musical elementar de três notas musicais, vacilante, que se repete e repete, exercitando a sua presença no mundo, como uma criança que começa a andar sozinha.

Exemplo 3

Essa brincadeira sonora não se dá, entretanto, sem que uma intensa carga cultural do nordeste venha também à tona, uma vez que o ator que a realiza tem nessa região do país as suas origens45; as estruturas escalares que constituíram historicamente a musicalidade que reconhecemos como nordestina está profundamente enraizada em sua memória, de modo que a improvisação musical, embora livre, já caminha nessa direção, estimulada pelo timbre metálico do violão (que mais parece uma viola caipira devido às cordas de aço e à distorção causada pelo equipamento de amplificação sonora que o ator usa nas apresentações).

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Surge um pequeno discurso musical, primitivo, essencial, sem adornos. Mas é o bastante para definir um rudimento de estrutura sustentadora. Aos poucos, fortalecidas, as notas se alinham em tímidas sequências; depois, dão-se as mãos e ousam novos movimentos, agora com a certeza de poderem se afastar cada vez mais sem se perderem novamente na imensidão do espaço. Uma a uma, notas soltas do início formam motivos melódicos mais definidos, desenhando uma linha sonora cada vez mais nítida. O sentido musical até então apenas esboçado flutua agora no ar, sugerindo uma melodia que mergulha reiteradamente, descrevendo um movimento descendente. A certa altura dessa improvisação cênico-musical de Ser TÃO ser, é possível reconhecer uma escala modal, que une no mesmo gesto sonoro o passado distante de uma Europa mediterrânea e de um Brasil caboclo onde, pela força da evangelização católica e canônica, preservaram-se esses modos musicais, eternizados na sonoridade de seus cantos de fé e conversão. Submersas nas correntes profundas da cultura popular nordestina, estão resquícios de antigas escalas gregas que sobreviveram no canto salmodiado dos missionários jesuítas, constituindo testemunhos de uma ancestralidade marcada pela mistura de culturas, etnias, territórios, vozes, tempos. De acordo com uma importante obra de referência no assunto - As estruturas modais na música folclórica brasileira (1994) - a musicóloga Ermelinda Paz comenta 45 Adailtom Alves é natural de Iguatu, pequeno município do sertão cearense.


Capítulo 2 - Escuta

que, para a grande maioria dos pesquisadores de música brasileira, são as influências ibérica e africana as mais importantes para nossa formação musical (hipótese essa que varia apenas em aspectos adjacentes), e isso significa considerar a longa ocupação árabe na Península Ibérica como parte essencial dessa influência. Leonardo Sá, por exemplo, declara que “o sistema árabe, os processos dessa música, seus efeitos chegaram através da própria integração [de imigrantes] mas, principalmente, dos substratos que havia na cultura portuguesa em função da dominação moura durante quase um milênio e também, através dos negros islamizados” (SÁ apud PAZ, 1994, p. 21). Outros autores citados por Paz apontam, ainda, a presença moura no Brasil através de festas populares como o Auto do Rei dos Mouros e a Cavalhada, além de elementos especificamente musicais como o aboio, que segundo Guilherme Melo, seria uma assimilação das zambras e hudas cantados pelos tropeiros árabes. Para Luís Soler, pesquisador que segundo a autora desenvolveu um minucioso trabalho sobre os poetas-músicos sertanejos, a influência árabe no Brasil deu-se através dos portugueses ainda no início do século XVIII. Muitas coincidências curiosas entre tradições muçulmanas e sertanejas, mesmo no homem do sertão que não prima pela racionalidade árabe [sic]: o lenço cobrindo boca e pescoço das mulheres, a instituição da cabra na vida caseira, o amor ao cavalo – um verdadeiro culto entre os sertanejos – muitos tipos de comida: as coalhadas e requeijões sertanejos, o cuzcuz – o alcuzcuz dos árabes – etc. O canto narrativo, mais recitado do que cantado, é denominado entre os árabes de lingui-lingui: a ‘lengalenga’ da gíria dos cantadores (SOLER apud PAZ, p. 22). É interessante observar que, ao ser consultado a respeito de detalhes musicais acerca desse trecho do espetáculo, confirmou-se a impressão da pesquisadora de que se tratava, de fato, de uma improvisação livre do ator, pois ele demonstrou possuir um conhecimento, sobretudo, empírico das questões musicais ali envolvidas. Por exemplo, ao lhe perguntar que tom e acordes ele utilizava, respondeu-me: Não se trata de acordes, mas de um solo ou dedilhado em que a tônica, que se repete, é a nota D [ré]; e na corda E [mi] solta vou dedilhado outras notas. Eu brinco na escala de G [sol maior]. Mas o baixo tocado é D [ré]. Assim, toco o baixo e fico variando as notas dentro da escala de sol, portanto, a única alteração é na nota F [fá], que sofre um # [sustenido]. Já experimentei outros bordões, mas a melhor sonoridade foi a de ré (informação fornecida pelo ator). Ao transpor para uma partitura convencional esse trecho musical conforme estava registrado em vídeo, ficou evidente que a improvisação não se dava de fato na escala de G (Sol Maior) como pensava o ator, mas sim do uso – totalmente intuitivo - de uma estrutura escalar modal, e não tonal como ele supunha. Em primeiro lugar, em termos rítmicos a grafia da improvisação fez emergir uma

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partitura de sons sem tempos definidos metricamente. Ao contrário; encontramos uma sequência fluida, que prescinde das barras de compasso46 a definir um número exato de tempos e divisões de tempo – característica da pulsão ocidental moderna pela exatidão métrica da linguagem musical, ausente na improvisação instrumental livre do ator. Observou-se, ao contrário, um uso fluido das durações sonoras, tal como era em seus primórdios a música ocidental, ao não se subordinar a um sistema de medição temporal baseado em proporções matemáticas, e sim aos laços viscerais que estabelecia com o texto cantado ou com o pulso das danças populares. Em termos do tratamento propriamente melódico, a reiterada presença do baixo sobre a nota ré, as outras notas musicais utilizadas na improvisação e o movimento claramente descendente que se desenhava como linha melódica mostravam que a escala utilizada pelo ator era, na verdade, pertencente ao campo sonoro de Ré Mixolídio, que contém o mesmo fá# que o ator indicara como principal referência. Este modo escalar, assim como os demais modos gregos47, foi sendo paulatinamente modificado e finalmente suprimido da música ocidental erudita até o seu total desaparecimento com o advento do tonalismo durante o século XVII , sobrevivendo no Novo Mundo graças aos cantos litúrgicos dos missionários cristãos. O uso da nota ré como “bordão” foi a principal pista para a constatação do modo grego na improvisação de Adailton, corroborada também por meio das investigações musicológicas de José Wisnik:

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A circularidade do complexo escala/pulso, na música modal, é fundada assim sobre um ponto de apoio estável que é a tônica. Nas músicas modais, pentatônicas ou outras, é muito frequente o uso de um bordão: uma nota fixa que fica soando no grave, como uma tônica que atravessa a música, se repetindo sem se mover do lugar, enquanto que sobre ela as outras dançam seus movimentos circulares. A música indiana faz questão de marcar o bordão (essa lembrança contínua do chão sobre o qual se dança, o solo firme sob os vôos melódicos) [...] A tônica fixa é um princípio muito geral em toda a música pré-tonal: explícita ou implícita, declarada ou não, pode-se aprender a ouvi-la, pois ela está lá, como a terra, a unidade indivisa, a montanha que não se move, o eixo harmônico contínuo, soando através (ou noutra dimensão) do tempo (WISNIK, 1989, p. 73). Era exatamente o que se passava na improvisação musical do ator, em que o bordão, tal como a presença marcante da terra natal, se instalava firmemente na melodia que flutuava pelo ar. O curioso, aqui, é ser justamente o modo de estruturação dessa antiga escala mixolídia o que produz a “coloração” característica da música nordestina “de raiz”.

46 O sinal, hoje comum, da barra de compasso que divide com exatidão a partitura musical em “partes” de tempo rigorosamente iguais (salvo trechos de exceção devidamente sinalizados), ganhou força de convenção apenas nos séculos XVI e XVII, com o grande desenvolvimento da música instrumental. Jônio (hoje, modo maior); Dórico; Frígio; Lídio; Mixolídio; Eólio (hoje, modo menor); Lócrio (criação teórica). 47 Segundo Bennett, o abuso de ornamentos e notas alteradas (bemóis e sustenidos) pelos compositores no período Barroco levou à perda da identidade dos antigos modos, contribuindo para a fixação do sistema tonal (BENNETT, 1986).


Capítulo 2 - Escuta

Exemplo 4: Prólogo

Dentro do contexto do espetáculo, esse dado musical permitiu trazer para o presente da cena toda a carga sígnica, afetiva, cultural e histórica aí contida, pois o seu uso recorrente na música popular nordestina faz, dessa estrutura sonora arcaica, um elemento profundamente enraizado no imaginário do povo brasileiro. Além disso, parece ter sido este o modo grego que se fixou mais fortemente no país, pois todos os autores estudados por Ermelinda Paz fazem menção à predominância do modo mixolídio na música nordestina brasileira. O exposto acima nos remete à doutrina do ethos, já mencionada no Capítulo 1 desta tese. Para os antigos gregos, a música agregava todos os princípios éticos, estéticos e intelectuais existentes em sua sociedade, e por isso ela constituía um dos principais aspectos da organização política do Estado. Por isso, o termo nomos era utilizado para designar tanto melodias tradicionais, quanto as leis morais, sociais e políticas. No âmbito da música, os nomoi48 eram padrões melódicos dotados de expressividade própria, uma vez que eram entoados em determinadas regiões vocais. Uma vez organizados, deram origem aos modos gregos, tornando-se os portadores dos diversos ethos - efeitos específicos sobre o comportamento humano. Segundo a doutrina, a cítara era o meio ideal para expressar o ethos dos hinos litúrgicos dedicados a Apolo; associado ao ethos deste instrumento (eleito por Platão para a República) está o modo dórico, austero e firme; o modo frígio também possuída caráter moral compatível com os cantos de louvor aos deuses, inclusive nos cultos dionisíacos, onde o aulos era o instrumento preferencial; o modo lídio, plangente, era adequado para os trenos (cantos fúnebres) e lamentos; seu ethos triste, contudo, tornava-o inadequado para o Estado grego, pois segundo a doutrina poderia induzir à preguiça e à embriaguez. O modo mixolídio, formado da mistura dos modos dórico e lídio, teria um caráter emocional próprio para as tragédias, uma vez que o ethos a ele atribuído era patético e doloroso, porém altivo (NASSER, 1997). Os modos jônio e eólio são aqueles cujas estruturas básicas perduraram até os nossos dias, mantendo-se nos atuais modos “maior” e “menor” da música ocidental tonal. Fazendo-se uma leitura musical do prólogo de Ser TÃO ser na perspectiva da doutrina do ethos, é possível observar que o modo mixolídio, presente na improvisação do ator48 Plural de nomos.

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músico, imprime à cena um “clima emocional” em total consonância com a temática essencial do espetáculo. A desterritorialização dos personagens que abandonam seus lares em busca de melhores condições de vida se apresenta como uma experiência dolorosa e até mesmo trágica uma vez que, ao recusar a imposição de um destino cruel, vão inadvertidamente ao seu encontro. Mas nada disso é explícito, pois na verdade o espetáculo mal começou; no entanto, a melodia mixolídia carrega consigo um ethos que soa como um presságio daquilo que virá depois. Assim, ao acompanhar o músico e seus sons, o lugar imaginário e metafórico do sertão nordestino deixa de ser subjetivo e fictício para se tornar extremamente vívido e concreto, na experiência de errar pelo espaço junto ao caminhante solitário. Vivemos com ele a sua solidão, a perda de um ponto de segurança, a busca de solidariedade num outro que, não raro, nos vira o rosto. As notas musicais soltas e quase aleatórias que aos poucos vão construindo a melodia modal, criam poeticamente a imagem sonora do sertanejo solitário na cidade grande, à procura de calor humano. Essa melodia só se define claramente à medida que o personagem consegue reunir, daqui e dali, pedaços espalhados de seu mundo cultural e afetivo. Por meio da música, seu ser também se vai reconstruindo. Dessa forma, homem e música descrevem paralelamente no espaço – o primeiro, sobre a terra; a segunda, pelo ar - o desenho de seus respectivos processos identitários, delineando-se mutuamente num movimento que serpenteia aparentemente sem direção, em busca de um abrigo ou de uma forma sensível. Analogia entre estrutura musical e ação cênica, um contraponto entre música e cena: dramaturgia musical.

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Capítulo 2 - Escuta

2.11 Territórios sonoros

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omo foi dito a pouco, a maneira de articulação entre as notas musicais, com as quais se formam as frases melódicas, é designada “escala”. Dito de outra forma, toda melodia provém de uma determinada escala ou estoque de notas selecionadas culturalmente e que, combinadas, criam o discurso musical. No trecho musical aqui analisado, não há definição de uma nota musical preponderante - uma tônica - que exerça atração para uma resolução final (como na música tonal, cronologicamente mais tardia na história da música ocidental), o que torna perceptível a tendência dessa melodia em descrever reiteradamente um desenho circular de retorno ao mesmo motivo sonoro. Esta é, inclusive, a característica fundamental da música modal: não repousar definitivamente sobre um som, uma derradeira nota musical – ou até mesmo um acorde final estrondoso, como o romantismo propôs - que finaliza um raciocínio, como um ponto final termina a frase falada. Ao contrário: o “raciocínio” da melodia modal parece estar sempre em movimento; não segue uma trajetória retilínea para desembocar previsivelmente num ponto determinado. A melodia modal descreve linhas sonoras sinuosas, espiraladas ou talvez circulares, num jogo sonoro cíclico que inverte a lógica racional linear e induz o ouvinte a penetrar noutra esfera sensível. Em Ser TÃO ser, todas as vezes que o peso da vida na grande metrópole é demais para os personagens e surge uma grande tensão dramática, essa melodia arcaica volta a soar, confortando-os. Misto de tristeza, solidão, errância, desterro, saudade do lar e perda do aconchego, ela também representa um retorno às origens mais remotas, o “estado zero” da alma, de onde é preciso começar – ou recomeçar - tudo. Por isso, quando na cena seguinte “à roda de café” os personagens se mostram perdidos na Rodoviária de São Paulo, ela ressurge; e também depois, quando os abrigos de cada um são derrubados sistematicamente por ordem da prefeitura da cidade. Um canto sem palavras paira sobre os escombros dos barracos derrubados. Ao mesmo tempo tristeza, mas também oceano primordial de onde podem emergir as energias mais profundas de uma alma muito antiga, pré-cristã como a sua música. É daí que aqueles personagens irão retirar o sustento de seu ser. A nostalgia do sertão presentificada em Canoas foi também a do peregrino que trouxe das areias de desertos remotos a experiência da solidão e do nomadismo em busca de outras terras. Uma forte indicação da herança cultural árabe na música nordestina é a presença de melismas que, aqui, escorregam dos dedos do tocador, aparecendo às vezes como simples appoggiaturas; trata-se de um trecho musical que apoia, numa mesma nota-base, quase todas as demais. O cantochão – canto monódico das liturgias cristãs da Idade Média – caracterizava-se pelo uso da “corda de recitação”. Também denominada “dominante salmódica”, era esta uma nota musical sobre a qual eram entoadas as salmodias, com

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o objetivo de se obter um efeito de reforço das principais palavras ou sílabas e, desse modo, proporcionar aos ouvintes a maior inteligibilidade possível do texto bíblico cantado. Com o tempo e a institucionalização do cantochão como forma musical, o uso da dominante salmódica se tornou o elemento mais característico e facilmente reconhecível dessa expressão musical, pois mantém em sua estrutura a presença do bordão arcaico da música modal. É interessante observar que, no trecho improvisado, o ator-músico emprega o mesmo recurso acústico ao utilizar a nota ré como “corda de recitação” (embora execute uma música instrumental e não um cantocal), sendo inclusive essa mesma nota que irá determinar a tonalidade da primeira música tonal apresentada na cena seguinte, Ré maior. Esse procedimento estabelece entre os dois modos utilizados (o modal e o tonal) uma relação de afinidade natural e fluente, sem choque ou ruptura, sugerindo metaforicamente uma passagem, vivida com alegria pelos personagens, ao regressarem simbolicamente para o seu lar. Na verdade, é esse o “baixo” que se repete por toda a improvisação – uma característica do próprio instrumento musical utilizado pelo performer – que o polegar dedilha quase que por automatismo, buscando a mecânica de execução mais fluente e graciosa. Nessa dança dos ornamentos sonoros, instala-se também a presença dos povos nômades que durante séculos migraram da Arábia e do Saara para a Península Ibérica trazendo consigo seus pertences, cantos, fé e saudade, misturando o espírito nostálgico do desejo de regresso, ao ímpeto do viajante aventureiro – impulso de seguir adiante – sentimento contraditório do qual compartilham, provavelmente, os teatristas de rua.

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Depois, ao fazer a roda para o café, o nomadismo musical e espacial do prólogo de Ser TÃO ser encontra um ponto de repouso. A música que vem da viola, de condutora de um movimento contínuo pelo espaço, se transforma agora em ponto de referência estável, apoio sonoro e harmônico para as vozes dos atores que, nesse momento, cantam em uníssono. O lugar de estabilidade criado pela cena “do café na cozinha” faz da viola errante o objeto integrador49 (BENENZON, 1985) do grupo de atores/ personagens. É ele, o instrumento musical ainda antes do café quentinho servido aos convidados, o elemento cênico que estabelece os laços de ligação entre cena e público, num mútuo acordo sonoro. Outras canções serão ainda entoadas pelos atores, desse momento até o final do espetáculo. Outras sonoridades, influências explícitas do mundo contemporâneo que se desdobrarão em novos contrapontos, cenas, cantos. Entretanto, é aquele fragmento melódico inicial o que revela mais fortemente as potências da música no teatro de rua, tanto pela estreita conexão que estabelece com o tema abordado no espetáculo - a migração nordestina para a Grande São Paulo -, quanto pela experiência concreta do sentimento de perda das referências, espaciais e temporais, que a musicalidade de um instrumento executado em espaço aberto pode oferecer ao espectador-ouvinte. Uma melodia muito singela que, não obstante, é detentora de uma sintaxe (longas notas descendentes criando uma textura modal, presença de melismas e ornamentos, 49 Criado pelo musicoterapeuta argentino Rolando Benezon, o termo designa aquele instrumento musical que aglutina ao seu redor os membros de um grupo, convertendo-se temporariamente em seu guia e líder.


Capítulo 2 - Escuta

ritmo pouco marcado) e uma semântica musical (memórias, sentimentos, sinestesias) capazes de levar o espectador-ouvinte a “perder-se”, junto com os atores – ainda que momentaneamente - no universo proposto pelas narrativas musicais de Ser TÃO Ser.

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CapĂ­tulo 3 - Paisagem Sonora

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Capítulo 3 - Paisagem

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Grupo Tá Na Rua - Por: Divulgação

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o debruçar-se sobre a noção de espaço, logo de início Pavis (2003) observa que a tentativa de defini-la é “uma empreitada tão vã quanto desesperada”. Não obstante, encontramos no Dicionário algumas distinções que procuram clarificar cada um dos espaços, segundo ele, abarcados pelas teorias teatrais: 1.espaço dramático; 2.espaço cênico; 3.espaço cenográfico ou teatral, 4.espaço lúdico ou gestual; 5.espaço textual e 6.espaço interior. Poderíamos aproximar o teatro de rua das seguintes definições, pinçadas desse conjunto: 3.O espaço cenográfico/teatral “é o espaço cênico, mais precisamente definido como o espaço em cujo interior situam-se público e atores durante a representação”; 4.O espaço lúdico/gestual “é o espaço criado pelo ator, por sua presença e seus deslocamentos, por sua relação com o grupo, sua disposição no palco”. Não há dúvida de que as definições de Pavis foram elaboradas para o teatro de palco; contudo, há outros modos de conceber o espaço no teatro que permitem estabelecer um diálogo mais frutífero com o objeto desta pesquisa, pois as questões relativas ao espaço teatral que mais interessam, aqui, são aquelas diretamente ligadas ao espaço aberto da rua – campo de investigação que apenas há alguns anos vem recebendo um tratamento teórico consistente por parte de estudiosos brasileiros (KOSOVSKI, 2001; CARDOSO, 2005; LIMA, 2006) e também mais específico, por pesquisadores que são, também, teatristas de rua (CARNEIRO, 1998; TELLES, 2005; CARREIRA, 2007). Até recentemente, as investigações sobre a rua, o ambiente urbano, a cidade e suas múltiplas dinâmicas estavam praticamente restritas aos estudos da sociologia, da arquitetura ou do urbanismo. Contudo, o imperativo de realizar estudos que transcendam a ideia de espetáculo enquanto fenômeno isolado do seu entorno, traz para os pesquisadores teatrais da atualidade a necessidade de penetrar nesse universo maior

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da cidade que, conforme observa Carreira (2005), “porta um quadro de significação prévio à intervenção teatral”. O espaço da cidade pode ser então, compreendido não como simples suporte físico/estrutural do espetáculo, ou seja, como cenário ou “palco”, mas como lugar que, ao ser praticado cenicamente, torna-se também espaço teatral (KOSOVSKI, 2003) cujo relevo oferece função e sentido ao teatro “nômade” da contemporaneidade, em suas “poéticas de auto-exílio” (KOSOVSKI, 2005). E, mais ainda, a cidade se oferece à experiência teatral também como espaço a ser abordado em sua dimensão dramatúrgica, de acordo com a proposta do “teatro de invasão”, que o encenador e pesquisador teatral André de Carreira (2008) vem desenvolvendo há alguns anos no âmbito do teatro de rua. Segundo Scheffler, esse autor identifica diferentes eixos para uma possível leitura dos potenciais dramatúrgicos da cidade: “o histórico, o estético, o funcional, o morfológico, o social e o político”1. A importância dessa proposta de organização semiológica, baseada na hipótese de uma “escrita” urbana (LEFEBVRE, 2001), reside, para esta pesquisa, no fato de que ela pressupõe a cidade como um espaço vivo - atravessado por inúmeras linhas de energia, tensões, fluxos e dinâmicas, categorias fluidas cuja existência se dá basicamente em função de sua mobilidade e interpenetrabilidade, tal como as ondas sonoras que veiculam a música e a musicalidade do espetáculo de rua - e não como o espaço bidimensional de uma planta-baixa ou de uma partitura musical escrita.

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Os exemplos teatrais selecionados como experiências estéticas capazes de dar concretude às questões acima estarão em Tá Na Rua: oficinas-espetáculos. Este trabalho singular do grupo Tá Na Rua, coletivo carioca, traz à tona discussões a respeito da paisagem sonora da cidade, matriz conceitual deste capítulo da tese. A noção, criada pelo compositor canadense Raymond Murray Schafer nos anos de 1970, além de ampliar as possibilidades de recepção dos espetáculos analisados por meio da escuta de elementos musicais fundamentais - sobretudo o ritmo - favorece ainda uma compreensão mais abrangente das sonoridades colocadas em cena, enquanto imagens sonoras que acompanham o homem em sua trajetória ontológica, enriquecendo o caráter dramatúrgicomusical do espetáculo, na perspectiva da mousiké no “hoje” contemporâneo. A questão se coloca ainda mais problemática ao ser estudada no âmbito do teatro de rua, pelas condições peculiares que este instaura na cidade ao possibilitar que diferentes lugares do urbano sejam ressignificados como espaços teatrais quando praticados (CERTEAU, 1994) pelo espetáculo de rua. Neste capítulo, o tema da musicalidade na cidade emerge e adquire importância ao apontar mais um possível caminho para o delineamento de uma estética própria ao teatro de rua, enquanto modalidade teatral que dialoga intensamente com a cidade também por meio de sua musicalidade, colocada em cena por meio do projeto singular do grupo investigado.

1 Anotações de Ismael Scheffler, aluno de André Carreira, feitas em aulas da disciplina “A cidade e o teatro”, do PPGT/UDESC, em 2009 (SCHEFFLER apud CARREIRA et al, 2011, p. 28).


Capítulo 3 - Paisagem

Sonora

3.1 Conceito de paisagem sonora

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urray Schafer toma como pressuposto a noção de paisagem sonora, construída sobre uma pesquisa pioneira – o Projeto Paisagem Sonora Mundial– iniciado nos anos de 1970 e desenvolvido no âmbito da Simon Fraser University, na Colúmbia Britânica2 , para propor um novo modo de sentir e compreender o mundo em que vivemos. Ele defende a tese de que “os indivíduos e as sociedades de diferentes períodos históricos ouviam de modo diferente” (SCHAFER, 2001, p. 213), e a meta do projeto que coordena é averiguar os modos pelos quais ocorreram e ocorrem escutas significativas, em distintas sociedades e épocas. Schafer define “paisagem sonora” - soundscape3 - simplesmente como “ambiente sonoro”, referindo-se tanto a localidades reais quanto a construções abstratas, tais como composições musicais e montagens técnicas. O pesquisador parte do princípio físico, fundamental, de que o som é criado pelos movimentos de um corpo elástico, cujos feixes de ondas propagam-se pelo ar e são percebidos como “som” por um dispositivo sensível (natural, como o ouvido, ou artificial, como a fita magnética de um gravador). No campo da física acústica, quando tais movimentos são periódicos, ou seja, o corpo vibrante não apenas se afasta e volta à mesma posição inicial, mas o faz em intervalos de tempo iguais, considera-se que o som assim produzido é musical (ROEDERER, 2002, p. 38). Som e movimento podem ser considerados, portanto, como fenômenos correlatos que têm, na musicalidade do ator e da cena, amplo campo de criação e investigação. De qualquer forma, o mundo está repleto de sons, considerados “musicais” ou não, cujas concepções mudam conforme a cultura e o período histórico. Nas sociedades pastoris, por exemplo, os sons da natureza predominavam; mais tarde, no nascente ambiente urbano da aldeia medieval, as vozes das pessoas nas ruas e feiras e os ruídos das atividades artesanais vão assumindo cada vez mais o primeiro plano sonoro. Mais tarde, com a Revolução Industrial, os sons mecânicos presentes nas cidades modernas abafam quase que totalmente os sons humanos e naturais. Na obra A afinação do mundo (2001), Schafer dá continuidade a esses estudos sobre a paisagem sonora mundial, iniciada em O ouvido pensante (1991) como parte de um programa de educação musical. Utilizando as noções de figura e fundo, tomadas de empréstimo à percepção visual tal como estudada na psicologia da Gestalt4, o pesquisador explica-nos que nesse âmbito teórico, vinculado à fenomenologia, 2

Uma das maiores províncias do Canadá, situada no extremo oeste do país, cuja capital é Vancouver.

3 Neologismo criado pelo autor, o qual vem sendo traduzido por “paisagem sonora” nos países de língua latina onde seus livros foram publicados. 4 A Gestalt se refere a processos psicológicos de configuração das formas sensíveis; esses estudos, criados na Alemanha por Max Wertheimer (1880-1943) no início do século XX, têm desde então influenciado várias áreas, sobretudo as artes visuais. Baseando-se no axioma de que “o todo é mais que a soma das partes”, a Gestalt busca explicar os processos pelos quais a percepção se organiza diferentemente em cada pessoa, embora a partir de princípios comuns.

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a investigação da percepção visual coloca “a figura [como] o foco de interesse [do observador], e o fundo, [como] o cenário ou contexto” (SCHAFER, 2001, p. 214), enquanto o termo campo indicaria o lugar onde ocorreu a observação. Ele ressalta ainda que, dentro do enquadre teórico da Gestalt, o que é percebido como figura ou como fundo é determinado principalmente pelo campo e pelas relações que o sujeito da observação mantém com o mesmo. Schafer utiliza os termos sinal, marca, som fundamental e paisagem sonora para trabalhar com esses conceitos, aplicados ao campo da pesquisa sonora: a figura corresponderia ao sinal, ou à marca sonora. O fundo corresponde aos sons do ambiente à sua volta – que podem, com frequência, ser sons fundamentais – e o campo, ao lugar onde todos os sons ocorrem, à paisagem sonora [propriamente dita] (SCHAFER, 2001, p. 214). Na terminologia do autor, há uma distinção importante a se fazer entre os sinais e as marcas sonoras. Os sinais sonoros “são sons destacados, ouvidos conscientemente”, mais “figura” que “fundo”. Alguns são, mesmo, criados para sinalizar e orientar uma comunidade: sinos, apitos, buzinas e sirenes, dentre outros, os quais podem inclusive ser organizados segundo códigos bastante elaborados, como é o caso das sirenes de navegação. Já a marca sonora se refere a “um som da comunidade que seja único ou que possua determinadas qualidades que o tornem especialmente significativo ou notado pelo povo daquele lugar” (SCHAFER, 2001, p.27) como, por exemplo, o canto de um ambulante que trabalha há anos no mesmo “ponto” e é conhecido por todos os moradores daquela parte da cidade. O som fundamental, por sua vez, atua como “fundo”, isto é,

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é a âncora ou som básico, e, embora o material [sonoro] possa modular à sua volta, obscurecendo a sua importância, é em referência a esse ponto que tudo o mais assume o seu significado especial. Os sons fundamentais não precisam ser ouvidos conscientemente; eles são entreouvidos (SCHAFER, 2001, p. 26). Para Schafer, o que leva um ouvinte a considerar um som como sinal, marca ou som fundamental está relacionado com os processos de aculturação pelos quais passou, com os hábitos, o estado emocional, atenção e interesse no momento da escuta e, sobretudo, com a relação pessoal que estabelece com o campo; ou seja, se a paisagem sonora circundante lhe é familiar ou estranha. Assim, as noções de figura, fundo e campo fornecem uma estrutura conceitual para organizar a experiência sensível que, embora oriunda dos estudos sobre a psicologia da percepção visual, parecem servir com a mesma eficácia à experiência auditiva. A estas categorias, Schafer inclui ainda a de arquétipos sônicos, relacionados à vida ontológica do homem. Em sua maioria, são sons da natureza, dentre os quais se destaca o da água, como expressa o autor: Todos os caminhos do homem levam à água. Ela é o fundamento


Capítulo 3 - Paisagem

Sonora

da paisagem sonora original e o som que, acima de todos os outros, nos dá o maior prazer, em suas incontáveis transformações [...] O amor pelo oceano tem fontes profundas, e estas estão registradas em uma vasta literatura marítima do Oriente e do Ocidente. Quando a água presencia a história da tribo, os dedos do oceano agarram o épico. A matéria-prima da Odisseia é o oceano (SCHAFER, 2001, p. 35). Além do som das águas em suas distintas manifestações naturais – chuva, riacho, rio, cachoeira, ondas do mar – há outros importantes sons naturais identificados pelo autor como arquétipos sônicos, produzidos pelo vento, pela terra, pelos animais. A cada um o autor atribui uma importância específica: o trovão e o raio, por exemplo, são considerados como algumas das forças mais temíveis da natureza. Os seus sons, de grande intensidade e amplitude de frequência, aterrorizavam os homens na Antiguidade, tornando-se pela mimese sonora um poderoso meio de amedrontar o inimigo nas batalhas com o “entrechocar-se dos escudos e o rufar dos tambores dos tempos primevos”. Os trinados dos pássaros e os zumbidos de insetos figuram, também, entre os sons que conquistaram um lugar especial no imaginário humano, ora associando-os a sentimentos, a ciclos específicos (do dia e da noite, das estações do ano), ora a estados coletivos, à paz ou à guerra. Schafer assinala ainda a existência de alguns objetos criados pelo homem, cujos sons adquiriram com o tempo um caráter francamente arquetípico, como é o caso do sino de igreja. Ele faz uma interessante análise sobre esse artefato milenar, cuja função é ao mesmo tempo religiosa e social, além de claramente territorial, que ele aponta ao afirmar que “no grito do lobo, encontramos um ritual vocal que define a demarcação territorial da alcateia pelo espaço acústico – exatamente do mesmo modo que a trompa de caça demarca a floresta e o sino da igreja, a paróquia” (SCHAFER, 2001, p. 66). De acordo com o autor, a presença formidável dos sinos na comunidade cristã foi assim descrita por Johan Huizinga: Um som se erguia constantemente acima dos ruídos da vida ativa e elevava todas as coisas a uma esfera de ordem e serenidade: o ressoar de todos os sinos. Eles eram para a vida cotidiana os bons espíritos que, nas suas vozes familiares, ora anunciavam o luto ora chamavam para a alegria; ora avisavam do perigo ora convidavam à oração (HUIZINGA apud SCHAFER, 2001, p. 86). Sobre a importância dos sinos no período da colonização do Novo Mundo pelo império cristão, Schafer ainda comenta que para onde quer que os missionários conduzissem a cristandade, os sinos logo os seguiam, demarcando acusticamente a civilização paroquial da selvagem, situada [para] além do alcance dos ouvidos. Os sinos eram um calendário acústico que anunciava festas, nascimentos, mortes, casamentos, incêndios e revoluções (SCHAFER, 2001, p. 87). Após o início da industrialização a paisagem sonora mundial teria passado a

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A CONTEMPORANEIDADE DO TEATRO DE RUA: POTÊNCIAS MUSICAIS DA CENA NO ESPAÇO URBANO

ser dominada por ruidosos motores, cujas “vozes”, a despeito de sua intensidade, transmitem apenas mensagens repetitivas e constantes, formadas por uma única linha sonora contínua e hipnótica que levaria, segundo o compositor, a uma gradual anestesia do sentido auditivo. Essa paisagem sonora lo-fi5, constituída por um som fundamental ininterrupto de baixa frequência – dado pela vibração contínua dos motores -, seria o oposto de uma paisagem sonora hi-fi6, na qual os sons do ambiente se destacam claramente para o ouvinte. O autor de O ouvido pensante explica que, por exemplo, para os seus primeiros usuários o trem emitia um ruído “informativo”, representado pelo “o assobio, o sino, o bufo da máquina, com suas acelerações e desacelerações súbitas ou graduais, o guincho das rodas nos trilhos, o barulho dos vagões, o alarido dos trilhos”. Os sons de cada etapa desse processo mecânico são por ele compreendidos como objetos sonoros7, portadores de diferentes e ricos significados, signos da linguagem sonora de uma época e de um lugar cuja paisagem acústica estaria situada ainda, segundo ele, dentro de um patamar saudável de audibilidade para o homem. Assim exemplificadas, as considerações de Schafer sobre a inteligibilidade dos sons enquanto portadores de significados revelam um pensamento semiótico, ainda que não formalmente explicitado, sobre a paisagem sonora.

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A este potencial de significação contido nos sons como os da antiga e emblemática locomotiva, Schafer contrapõe outros ruídos, sobretudo aqueles produzidos a partir de sistemas energéticos mais avançados, como os motores de combustão interna e a eletricidade, que vieram substituir posteriormente as primeiras máquinas a vapor. Dentre estes sons, tidos como “indesejáveis”, ele destaca os do carro e, principalmente os do avião, não apenas pela alta intensidade sonora que produzem, mas também pela incidência de sons de baixa frequência de que estes meios de transporte são capazes, e que segundo ele são os mais perniciosos à audição. O que chama a atenção, nesse aspecto das investigações de Schafer no âmbito da paisagem sonora atual é que, em que pese nelas uma considerável carga de pessimismo e saudosismo, os ambientes sonoros que ele enfoca com mais rigor – o trânsito urbano e os aeroportos, principalmente – podem ser associados aos “não-lugares” de que fala Marc Augé. Em seu livro Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade (1994), o antropólogo faz uma incursão do sensível pela cidade contemporânea, onde descobre a existência de locais que, embora frequentados por um grande número de pessoas, é marcado pela impessoalidade. Se, por um lado, o lugar é o lócus, no tempo e no espaço, do acúmulo da experiência em forma de história e tradição, a segurança da identidade [...] o depositário 5 Em uma paisagem sonora lo-fi (abreviação de low fidelity, ou baixa fidelidade), os sinais acústicos individuais são obscurecidos em uma população superdensa de sons, tornando a paisagem sonora “embaralhada”. 6 A paisagem sonora hi-fi (abreviação de high fidelity, ou alta fidelidade) é aquela em que figuras sonoras podem ser ouvidas em razão do baixo nível de ruído ambiental. Em outros termos, há contraste entre sons fundamentais e sinais/marcas sonoras. 7 Conceito criado pelo engenheiro mecânico e criador da música concreta Pierre Schaeffer (1910-1995) para designar um determinado som, gravado em fita magnética. Schafer compreende o objeto sonoro como a menor “partícula” de uma paisagem sonora, cujos componentes (ataque, corpo, transientes e queda) podem ser analisados laboratorialmente, a partir de sua forma gráfica.


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da memória, que guarda acontecimentos (o ocorrido), mitos (o dito) e a história (o registro) (AUGÉ apud GASTAL, 2006, p.101). o não-lugar tem caráter oposto: é representado pelos espaços públicos de rápida circulação, como aeroportos, rodoviárias, estações de metrô, e também pelos meios de transporte, hotéis e supermercados, “espaços pelos quais os nômades pós-modernos circulam ou se refugiam”. É possível estabelecer uma conexão entre os “não-lugares” de Augé com os sons “indesejáveis” de Schafer, pois não resta dúvida de que, nestes espaços, predominam os aspectos sonoros que este autor identifica como a paisagem sonora atual das grandes metrópoles, no que estas apresentam de primazia do som fundamental - um fundo sonoro constante, proveniente dos motores que povoam incessantemente o seu espaço – sobre os sinais e marcas sonoras que são, de alguma forma, elementos sonoros depositários da memória e da “identidade” de um lugar. Outro dado que poderia ser considerado, nesse sentido, é o de que mesmo nos não-lugares onde não há veículos transitando - como os amplos espaços interiores dos shopping-centers, dos bancos, supermercados e outros – predominam os sons produzidos por equipamentos eletroeletrônicos, como campainhas de telefones, a voz “feminina” do caixa eletrônico, “música ambiente” e outros estímulos, somados ao excesso de reverberação que se produz nesses ambientes assépticos, onde a textura dos materiais de que são feitos (piso cerâmico, vidro e metal) tende a refletir as ondas sonoras com um mínimo de absorção. Além da espacialidade não-dimensional que esses espaços tendem a evocar visualmente (em função de suas superfícies envidraçadas e espelhadas), os nãolugares parecem também produzir a já mencionada paisagem sonora lo-fi, em que o contraste entre figura-fundo - ou, de acordo com a terminologia de Schafer, entre sinais e sons fundamentais - está totalmente prejudicado. Neste ambiente, feixes aleatórios e múltiplos de ondas sonoras permanecem num estado frenético de entrecruzamento pelo espaço, levando, nesse processo de ricochetear de um lado para o outro sobre as superfícies lisas, à redução ou mesmo impossibilidade de discernimento auditivo, tornando a sua paisagem sonora confusa e “nebulosa”. As noções formuladas por Schafer para organizar e analisar a percepção auditiva das diversas paisagens sonoras apresentam-se como boas ferramentas quando empregadas como elementos para a análise da musicalidade do espetáculo teatral, uma vez que são ainda raras a referências teóricas voltadas sistematicamente para o fenômeno sonoro, que possam ser facilmente articuladas também ao campo teatral. Em geral, tais estudos são realizados por especialistas que os apresentam em linguagem estritamente técnica (como é o caso de pesquisas de acústica, psicoacústica ou mesmo, de música). Nesse sentido, as investigações de Schafer (apesar de serem, muitas vezes, excessivamente panorâmicas), oferecem um caminho interessante para a pesquisa do ambiente sonoro enquanto construção cultural, seja no cotidiano ou como parte de uma experiência estética, como é caso da musicalidade que um espetáculo teatral derrama, no espaço à sua volta.

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3.2 A cidade polifônica A rua nos ensurdece por sua polifônica, polissêmica e insurgente profusão de ruídos: de pregações e de pregoeiros, de cantos ensaiados e improvisados: tantas vezes bêbados, de sirenes e de patrulheiros, de assovios e de cancioneiros, de repentes e de rompantes: individuais e coletivos... A cidade é constituída por incontável número de coros. Em qualquer cidade – e por mais desatentos que sejam os cidadãos a circular, de um destino a outro, sem prestar atenção ao trajeto e aos seus tantos obstáculos – há nas artérias pulsantes que se caracterizam em caminhos de deambulação sinfonias diversas, das mais simples às mais sofisticadas. Novos ouvem melhor que os velhos, cães ouvem melhor que os jovens, artistas da música tendem a ouvir mais intensamente que os cães... Nas grandes cidades, nas megalópoles velhos, jovens, cães e artistas, todos, indistintamente – a partir de diferentes percepções – ouvem uma grande e dissonante sinfonia (MATE, 2011, p. 141).

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“Quem é a musa das ruas?” – pergunta-se o paulista Alexandre Mate, pesquisador de teatro de rua e autor das palavras acima. Tal questão, também formulada a partir de outros eixos temáticos além do artístico, tem ocupado, das primeiras décadas do século XX à atualidade, um lugar considerável entre estudiosos de várias áreas científicas. Contudo, pode-se encontrar, como ponto em comum a conectar diferentes campos do conhecimento, uma concepção de cidade como objeto múltiplo, complexo, polifônico, cujo entendimento só é possível com base em uma abordagem multidisciplinar que inclui geógrafos, como David Harvey; sociólogos, como Michel Maffesoli; filósofos, como Henri Lefebrve; teóricos da comunicação e do turismo, como Susana Gastal; semiólogos, como Roland Barthes; urbanistas, como Kevin Lynch; pensadores da pós-modernidade, como Frederic Jameson e Linda Hutcheon; além de estudiosos da história, como Michel de Certeau, e da antropologia, como Marc Augé. Em que pesem as singularidades de cada área, em suas múltiplas manifestações a cidade vem sendo pensada por esses e muitos outros estudiosos não apenas como espaço e população, mas como uma rede complexa de relações entre indivíduos e grupos; como portadora de um outro que até recentemente lhe seria considerado estranho; como espaço onde o indivíduo é simultaneamente fruto e agente; como espaço social em que diferentes veículos de comunicação exercem uma ação concreta, muitas vezes nefasta em seus efeitos; enfim, como lugar onde a vida é praticada. Não será possível, no escopo deste trabalho, uma explanação detalhada sobre o pensamento de cada um daqueles expoentes; contudo, destacarei das obras de alguns deles, aspectos que têm contribuído para fortalecer e aprofundar estudos sobre o teatro


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de rua, cujo lugar privilegiado de criação e de trabalho é também o espaço da cidade. Kevin Lynch analisa a forma visual três cidades estadunidenses – Boston, Jersey City e Los Angeles – num projeto-piloto publicado em 1960 sob o título de Imagem da cidade (1988), no intuito de investigar a paisagem urbana na perspectiva da imagem mental que, dela, constroem seus próprios cidadãos. Acreditando que essa imagem está impregnada de memórias e significações, o arquiteto norte-americano exorta-nos a considerar a cidade “não algo em si mesmo, mas [como] objeto da percepção dos seus habitantes”, atribuindo grande importância ao ser humano que nela vive: Os elementos móveis de uma cidade, especialmente as pessoas e as suas atividades, são tão importantes como as suas partes físicas e imóveis. Não somos apenas observadores deste espetáculo, mas sim uma parte ativa dele, participando com os outros num mesmo palco. Na maior parte das vezes, a nossa percepção da cidade não é íntegra, mas sim bastante parcial, fragmentária, envolvida noutras referências [porém] todos os sentidos estão envolvidos e a imagem é o composto resultante de todos eles (LINCH, 1988, p. 11-12). Lynch identifica cinco tipos de referências arquitetônicas e espaciais da cidade que participam deste processo de construção imagética: vias, limites, bairros, cruzamentos (pontos nodais) e elementos marcantes (marcos)8. Essa classificação se destina, sobretudo, à tarefa de decifrar o que ele designa como legibilidade da paisagem citadina, isto é, a capacidade da cidade em oferecer símbolos reconhecíveis à compreensão visual daqueles que nela vivem e/ou transitam, os quais possam atuar não só como facilitadores da orientação espacial no ambiente ou para a execução das atividades cotidianas, mas também como referenciais fundamentais para as pessoas que ali vivem, “um organizador de atividade, crença ou conhecimento”. O sociólogo e filósofo marxista Henri Lefebvre também reconhece a existência de uma “escrita” urbana, cuja potência “se inscreve e se prescreve em seus muros, na disposição dos lugares e no seu encadeamento”. Em O direito à cidade (2001), o teórico francês exige para a cidade o mesmo “direito” que é atribuído ao campo, como crítica aos hábitos sociais que, em sua opinião, transformam a natureza em um “gueto do lazer, o lugar da fruição, o refúgio da criatividade”, reivindicando o direito de “viver a cidade como obra de arte”. Ele afirma, com a força do pensamento materialista-dialético que defende: “o futuro da arte não é artístico, mas urbano. Porque o futuro ‘do homem’ não se encontra nem no cosmo, nem no povo, nem na produção, mas sim na sociedade urbana”. Desta forma, Lefebvre sublinha a sua profunda crença de que o direito à cidade manifesta-se como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitála e morar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implícitos no direito à cidade (LEFEBVRE, 2001, p. 105).

Numa importante contribuição aos estudos sobre a cidade, como foi comentado

8

As denominações em parênteses são encontradas em edições mais recentes da mesma obra.

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há pouco o antropólogo Marc Augé denomina não-lugares os espaços pelos quais os habitantes das cidades contemporâneas circulam, como os shopping centers, aeroportos, e outros espaços retóricos onde a comunicação se dá de maneira prescritiva ou impositiva, através de avisos e orientações dados por elementos característicos da “supermodernidade”: o bilhete de metrô ou de avião, o cartão de crédito ou telefônico, os documentos (passaporte, carteira de motorista e identidade), símbolos que permitem o acesso, comprovam a identidade, autorizam deslocamentos impessoais. Em oposição às relações estritamente contratuais que o citadino estabelece com o não-lugar, o lugar “se completa pela fala, a troca alusiva de algumas senhas, na conivência e na intimidade cúmplice dos locutores”. Augé o define como “identitário, relacional e histórico”, defendendo a tese de que a supermodernidade produz o nãolugar, isto é, “um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico” (AUGÉ, 2010, p. 73). Frederic Jameson designa de “pós-moderno” a forma cultural do atual momento do capitalismo, tese que desenvolve principalmente em Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio (2000)9, mas que permeia todo o pensamento de sua obra. Nesta, destacam-se, como pontos básicos, a ideia de que o “pós-moderno” está ancorado objetivamente em alterações econômicas, cuja consequência mais notável é o apagamento das formas sociais pré-capitalistas, e a primazia de aspectos como a visualidade e o imaginário, estendidos a toda cultura e em detrimento do verbal. Essa forma contemporânea de sensibilidade será marcada, segundo Jameson, pela mediação da tecnologia, em especial a da produção de imagens: [...] a cultura da imagem do pós-moderno é pós-perceptual e gira em torno do consumo de imaginários mais do que do consumo material. Então, a análise da cultura da imagem (incluindo seus produtos estéticos) [...] só pode ter sentido se nos levar a repensar a própria ‘imagem’ de forma não-tradicional e não-fenomenológica (JAMESON, 2000, p.161).

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A turismóloga Susana Gastal desenvolve um importante raciocínio sobre a cidade e o urbano: Se a cidade é a materialização do urbano no espaço, essa materialização não se restringe aos elementos fixos: praças, monumentos, igrejas, indústrias, casas, ruas e muitos outros. Em torno e no interior dos fixos, há todo um mundo em movimento, onde circulam pessoas, mercadorias, relações sociais, manifestações culturais, para além do simples trânsito de veículos individuais ou coletivos. Eles constituem os fluxos que, junto com os fixos, formam a cidade (GASTAL, 2006, p. 94). Adotando uma linha de pesquisa “semiótica e pós-moderna” que busca compreender a cidade como uma teia de significados, isto é, como objeto passível de interpretação e semiose, ela apresenta em Alegorias urbanas: o passado como subterfúgio (2006), 9

O livro é o desenvolvimento de um artigo homônimo, publicado em 1984 na New Left Review (Gastal, 2006).


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novos modos de constituição da cidade na contemporaneidade, a partir da ideia da cidade como “texto”10 que pode ser lido na perspectiva da praça, do monumento e do palco – vistos, aqui, como matrizes significantes que se sobrepõem, pelo imaginário, ao seu significado. A partir desse pressuposto, é possível organizar a análise de determinados “textos” que avançam para além da época que os gerou; a autora retira, então, de estudos de especialistas11, os três significantes acima mencionados, como matrizes para organizar a sua própria “leitura” do texto cidade. A praça é considerada pela autora a matriz mais forte, em função de sua reiterada presença nos estudos sobre a cidade, desde a antiga pólis grega; em seguida está o palco, importante legado do período medieval que faz, da aldeia, o espaço do “exercício de olhar e ser olhado”; enfim, o monumento, desde a Renascença sinônimo de ruínas das culturas grega e romana, que agregará em si os ideais da arte e da história (GASTAL, 2006, p. 75). A investigação do ambiente urbano tem sido objeto de preocupação também para pesquisadores teatrais brasileiros interessados no potencial da cidade como lócus da experiência teatral contemporânea, como Lauro Góes, André Carreira, Ricardo Brügger, Narciso Telles, Ana Carneiro, Lidia Kosovski, Evelyn Lima, cujos estudos apresentam algumas das ideias e formulações teóricas de autores mencionados antes. Destaco, nesse sentido, os estudos de André Carreira, diretor e pesquisador teatral que ressalta a necessidade de compreendermos “o processo de transformação da rua como espaço cênico e as implicações socioculturais próprias deste espaço” (CARREIRA, 2007, p. 29) uma vez que, da Idade Média aos nossos dias, as ruas tiveram diferentes usos e “a representação teatral de rua – como parte do repertório de usos – se desenvolveu dialeticamente com as transformações estruturais da cidade e do seu contexto sociocultural” (CARREIRA, 2007, p. 30). O autor ressalta, ainda, que “para estudar o teatro de rua é necessário reconhecer o espaço urbano como âmbito teatral e a rua como um espaço fragmentário multifuncional. Para isso o primeiro passo é analisar o espaço urbano como lugar do espetacular” (CARREIRA, 2005, p. 27). Os princípios – espaciais, estéticos, políticos, sociais, históricos - que definem a cidade apresentam-se hoje como um forte embasamento teórico para os estudos do teatro de rua, propiciando a formação de um pensamento investigativo, sistemático, num campo em que a produção acadêmica é ainda incipiente. Por isso, na seção seguinte tentarei articular alguns dos conceitos apresentados por aqueles teóricos a experiências teatrais concretas, no intuito de demonstrar que a musicalidade do espetáculo de rua é capaz de construir, no imaginário da cidade, paisagens sonoras de profunda significação.

10 Na perspectiva semiótica adotada pela autora, o “texto” é o território onde interagem outros textos, levando à intertextualidade entre este e outros (con)textos (histórico, social, econômico, lingüístico, psicológico etc). 11 A autora cita especificamente David Harvey, Jacques Le Goff, Henri Lefebvre, Giulio Argan e Paul Virilio.

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3.3 O teatro de rua e a musicalidade na cidade

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mbora formuladas há tantas décadas passadas, as noções apresentadas por Kevin Lynch demonstram não terem perdido a sua eficácia e atualidade, pois têm auxiliado novos pesquisadores - como Ismael Scheffler, Paulo Barladin, Vicente Concílio e Zilá Muniz, dentre outros - na elaboração de análises de espetáculos teatrais realizados em espaços abertos (CARREIRA e outros, 2011), o que constitui uma importante inovação dentro do panorama atual da produção acadêmica sobre esse objeto. Scheffler, por exemplo, aplica a classificação dos elementos12 da imagem urbana, criada por Lynch, para fazer uma análise de A breve dança de Romeu e Julieta13, na qual são enfocados aspectos concernentes à sua “dramaturgia do espaço”. Pelo fato de a apresentação ter-se dado numa praça – mais especificamente a Praça Eufrásio Correia, situada no centro de Curitiba (PR) - o autor aborda especialmente os pontos nodais, locais estratégicos de uma cidade através dos quais o observador pode entrar e [que] constituem intensivos focos para os quais e dos quais ele se desloca. Podem ser essencialmente junções, locais de interrupção num transporte, um entrecruzar ou convergir de vias, momentos de mudança de uma estrutura para outra (LYNCH, 1988, p.58).

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No artigo, Sheffler explica que, por serem conexões, esses locais “favorecem a visibilidade e orientação” daqueles que por eles transitam, exigindo destes uma tomada de decisão quanto à direção que deverão seguir. Além disso, tanto pelas suas características físicas quanto pela dimensão cultural implicada em seu uso, supõe-se que os pontos nodais têm a capacidade de organizar, física e simbolicamente, a cidade. As vias que cercam a praça são também consideradas na análise do espaço cênico. A esse respeito, o autor observa que, ao longo da história da cidade, a diminuição do fluxo viário nessa região provocou também uma redução no sentido desse lugar como referência importante para o cidadão curitibano, fato esse que corrobora – agora, sob a ótica do teatro de rua - o que Lynch afirma sobre os sentidos diversos que impregnam tais elementos urbanos. Já Vicente Concílio, em artigo que integra a mesma coletânea, utiliza desse autor a noção de ambiente, para analisar Hygiene14 sob o ponto de vista “dos sentidos que um 12 Vias, limites, bairros, pontos nodais e marcos. 13 O espetáculo, adaptação da peça de William Shakespeare, foi apresentado em 2009, na cidade de Curitiba, pelo TUT – Grupo de Teatro da Universidade Tecnológica Federal do Paraná – e dirigido pelo autor do artigo. 14 O espetáculo aqui descrito estreou em 2005. Foi resultante do projeto “A Residência” do Grupo XIX de Teatro, de São Paulo, o qual previa a ocupação de um edifício abandonado, situado na Vila Maria Zélia, zona leste dessa metrópole.


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determinado objeto, ou no caso, espaço, provocam no seu observador”. O pesquisador articula a noção de ambiente ao marco que, segundo ele, domina cada etapa do espetáculo, iniciando pela antiga igreja da Vila Maria Zélia, “cujo uso vai ganhar novo sentido a partir da cena teatral nele originada”. A análise assevera que a igreja em questão oferece aos espectadores o ambiente – físico e simbólico – aos acontecimentos cênicos no início da apresentação; depois, o mesmo se dá com uma antiga sapataria, situada num edifício quase em ruínas e utilizado cenograficamente como cortiço. Assim, Hygiene “faz uso de um espaço carregado de sentidos, principalmente porque ele exibe as marcas do tempo de forma evidente” (CONCÍLIO, 2011, p. 71) demonstrando por meio de um espetáculo de rua tomado como objeto de investigação, que os sentidos atribuídos aos elementos da cidade variam não apenas com a sua forma e com os materiais que os constituem, mas também conforme a sua história e utilização deles pelas pessoas; ou seja, têm um inesgotável potencial para a ressignificação do espaço urbano, que o teatro de rua pode explorar criativamente. As considerações desses dois novos pesquisadores apresentam uma significativa ampliação dos estudos do teatro de rua, uma vez que este é analisado a partir de uma perspectiva distinta daquelas que, até recentemente, vinham constituindo as temáticas preferenciais de alguns estudiosos desse campo (CARNEIRO, 1998; CARVALHO, 2005; TURLE; 2011), como a cultura popular e a ação política, tomadas nesses estudos como eixos centrais da modalidade. Os trabalhos de Scheffler e Concílio, aqui mencionados, inauguram um novo caminho para o teatro de rua ao analisarem obras teatrais na perspectiva da cidade, tomada como ambiente que se constrói tanto pelas suas estruturas físicas quanto pelos usos que dele fazem os seus habitantes ou, ainda (na interpretação de Schafer acerca dos princípios básicos da Gestalt), como “campo” perceptivo, “gestáltico”, do objeto percebido e analisado. Contudo, tomarei aqui a liberdade de acrescentar, a essas importantes investigações, a dimensão sobre a qual incide o foco primordial desta tese: a dimensão sonora, aí envolvida. Utilizarei, como primeira justificativa, a noção de imaginabilidade proposta por Kevin Lynch para definir “a característica, num objeto físico, de que lhe confere uma alta probabilidade de evocar uma imagem forte em qualquer observador dado” (LYNCH apud CONCÍLIO, 2011, p. 68) (grifo meu), na convicção de que tal qualidade, atribuída por Lynch aos elementos físicos da cidade, pode ser estendida também aos seus elementos sonoros. Ou seja, enquanto atributo também do objeto “som”, a imaginabilidade estabelece uma estreita relação com a noção de imagem sonora. Além de serem também objetos físicos, acústicos, os sinais e marcas sonoras presentes num determinado ambiente apresentam igualmente uma alta probabilidade de evocar uma imagem forte no ouvinte. Seria esse, justamente, o efeito da paisagem sonora e da musicalidade do espetáculo sobre a escuta do espectador-ouvinte: evocar imagens sonoras fortes. Também farei alusão às análises de Concílio com base na noção de “testemunho auditivo” de Schafer, como forma de resgatar eventos sonoros aos quais não presenciamos pessoalmente, mas que podem ser inferidos (pelo menos, em parte) por meio do registro literário de quem “estava lá” no momento mesmo do acontecimento sonoro. Seria essa

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uma estratégia do autor para “driblar” a situação desvantajosa que os pesquisadores enfrentam nesta área, sobretudo ao buscarem embasamento histórico para a análise de fenômenos sonoros uma vez que, segundo ele, “uma paisagem sonora consiste um eventos ouvidos e não em objetos vistos” (SCHAFER, 2001, p. 24). Assim, explica Schafer, embora possamos utilizar modernas técnicas de gravação e análise no estudo das paisagens sonoras contemporâneas, para fundamentar as perspectivas históricas teremos que nos voltar para o relato de testemunhas auditivas da literatura e da mitologia, bem como aos registros antropológicos e históricos [...] Sempre procurei ir diretamente às fontes. Um escritor só é considerado fidedigno quando escreve a respeito de sons diretamente vivenciados e intimamente conhecidos [...] Assim se estabelece a autenticidade da testemunha [e] tais descrições constituem o melhor guia disponível na reconstrução das paisagens sonoras do passado (SCHAFER, 2001, p. 24). É, portanto, também na perspectiva do testemunho auditivo, que recorro ao relato do autor acima mencionado. Concílio inicia assim a sua análise:

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Em Hygiene, o ponto de partida é a igreja da Vila Maria Zélia. Dessa forma, o Grupo XIX fez a opção de tomar um marco importante como origem da cena, e cujo uso vai ganhar novo sentido a partir da cena teatral nele originada. O público já está aguardando o início da peça, normalmente explorando os espaços do pequeno bairro, assombrado pela própria descoberta da calma preciosa da vila. Ouvem-se os sinos, as portas da igreja são abertas. Uma canção é entoada. De dentro da edificação sacra, sai uma figura transtornada, um homem com roupas puídas, que remetem a outra época, e que tira dos bolsos um punhado de terra. Está instaurado o espaço teatral (CONCÍLIO, 2011, p.68-69). Verifica-se que o primeiro signo teatral a ser destacado enquanto ação cênica pelo pesquisador é, eminentemente, sonoro. A audiovisibilidade do espetáculo se coloca à sensibilidade do receptor, o público, desde o momento em que ouvem-se os sinos e simultaneamente as portas da igreja são abertas. Novamente um elemento sonoro é acionado, complementando o sentido daquilo que foi visto antes: uma canção é entoada. Ou seja, a cena que segundo Concílio “instaura o espaço teatral” é criada por uma evidente concomitância entre o auditivo e o visual. Entretanto, diante da imagem literária formada em nossa mente pelas palavras testemunhais do pesquisador, podemos supor algo mais a respeito da musicalidade e da paisagem sonora que o espetáculo instaura na Vila Maria Zélia. Schafer, por exemplo, dedica todo um capítulo do seu livro ao simbolismo do sino: Provavelmente nenhum artefato se espalhou tanto ou teve tantas associações duradouras para o homem quanto o sino. Os sinos se apresentam em uma vasta ordem de tamanho e apresentam incrível


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diversidade de usos. A maior parte deles opera em um de dois caminhos distintos: atuam tanto como força de reunião (centrípeta) quanto de difusão (centrífuga) (SCHAFER, 2001, p. 244). De acordo com o pesquisador, a força centrífuga do sino se aplica a diferentes objetivos práticos, conforme a cultura: expulsar os fantasmas (Roma Antiga), afastar as tempestades (Áustria), manter longe os espíritos do mal (Alemanha), exorcizar as bruxas (pueblos indígenas do Arizona). Como força centrípeta, o sino convoca os fiéis (paróquias cristãs), atrai fregueses (Japão), atrai os homens (Israel, Arábia). Outros sinos apresentam funções específicas, como os guizos das antigas vestimentas dos bobos da corte, bufões e saltimbancos na Idade Média, os sinos de alerta ou de identificação de animais. Já o sino de igreja mantém tanto a função centrípeta quanto a centrífuga, pois em seus primórdios “pagãos” o artefato se destinava a afastar os demônios e, ao mesmo tempo, atrair os ouvidos sagrados das divindades; mais tarde, o monoteísmo cristão limitou-se a usar esse som para suplicar as bênçãos de Deus e exigir a obediência dos fiéis aos seus preceitos e liturgias. A partir de suas investigações com os sinos, Schafer conclui que este som evoca respostas “profundas e misteriosas” na psique, mostrando inclusive uma correspondência visual com a imagem da mandala15, que simboliza a perfeição, a completude e o “todo” em várias culturas orientais. No mundo cristão, o divino era sinalizado pelo sino da igreja: O sinal sonoro mais significativo da comunidade cristã é o sino da igreja. Em um sentido bem verdadeiro, ele define a comunidade, pois a paróquia é um espaço acústico circunscrito por sua abrangência. O sino é um som centrípeto; atrai e une a comunidade num sentido social, do mesmo modo que une homem e Deus (SCHAFER, 2001, p.86).

145 Se, do lado de fora e do alto das torres, o som dos sinos buscava alcançar os confins do território cristão, “o interior da igreja também reverberava com os mais espetaculares eventos acústicos” no intuito de penetrar o território “interior” da alma humana. Nas grandes catedrais onde se entoava o cantochão medieval, por exemplo, produzia-se o mesmo efeito de reverberação que, graças às paredes e piso de pedras, prolonga-se demasiadamente (por seis segundos ou mais). Numa análise psicoacústica, esse efeito sonoro teve consequências simbólicas importantes para o homem daquela época: O som das igrejas normandas e góticas, rodeando o público, fortalece a ligação entre o indivíduo e a comunidade. A perda das altas frequências e a consequente impossibilidade de localizar o som faz com que o fiel se torne parte do mundo dos sons (BLAUKOPF apud SCHAFER, p. 171). Para Schafer, o eco e efeitos de retorno hoje utilizados nas músicas eletrônica e popular recriam, no imaginário do ouvinte ocidental, a multidirecionalidade do som 15 O autor descreve testes, por ele realizados, “nos quais se pedia às pessoas que desenhassem suas impressões sobre os sons que eram tocados para elas em um gravador. O som de sinos de igreja com frequência estimulou desenhos circulares” (SCHAFER, 2001, p. 249).


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produzido por aquelas abóbadas ressoantes das grandes catedrais, presente também nos lugares naturais – cavernas, planícies, topos de montanhas – cujo potencial acústico foi utilizado pelo homem para recriar os seus “ruídos sagrados”16 na intenção de comunicar-se com o divino. “O espetáculo [Hygiene] faz uso de um espaço carregado de sentidos, principalmente porque ele exibe as marcas do tempo” - comenta Concílio – e estas “marcas” se revelam também nas badaladas do sino enquanto arquétipo sônico de uma comunidade onde a igreja foi, um dia, o marco representativo da comunhão entre os seus membros, e nos sons da canção que é entoada, remetendo o espectador aos cantos eclesiásticos que essa mesma igreja perpetuou até nossos dias. O espectador é impactado não apenas pelos elementos visíveis do espaço, mas também pelos elementos sonoros que o invadem com a sua carga semântica. A qualidade audiovisual do espetáculo faz desse espectador, também um espectador-ouvinte. Porém, pelo relato não fica muito clara a natureza especificamente musical daquele canto. É impossível que, na condição de pesquisadora da musicalidade, diante da sucinta informação de que “um canto é entoado” certas questões não venham à mente. Perguntas como: “a canção é entoada em uníssono, a capella, pelos atores que permaneciam ainda dentro da igreja?”; “é uma canção tradicional, de conteúdo religioso, ou foi composta especialmente para a cena?”; “houve algum tipo de acompanhamento instrumental?”

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São, estas, questões que costumam passar ao largo das análises dos espetáculos teatrais, em função da já comentada primazia do visual; contudo, houve aqui uma diferença significativa: aquelas perguntas não puderam ser respondidas, mas puderam ser feitas, uma vez que o fato musical foi registrado pelo testemunho auditivo do pesquisador. A canção foi, no contexto global do espetáculo, um acontecimento cênico essencial para a instauração do fenômeno teatral naquele espaço, e não somente um elemento acessório, ali colocado como recurso de “embelezamento” da cena. Em outras palavras, o que se revela é que parece não ter sido necessário que o pesquisador se alongasse, explicando em pormenores a canção entoada, porque o que está em jogo é a força da imagem sonora que atinge o leitor, assim que as palavras do relato o alcançam; o ambiente sonoro do espetáculo se coloca no momento mesmo da leitura desse testemunho auditivo, mostrando que um simples registro de elementos musicais também contribui para a compreensão de camadas mais profundas de “recepção” – ainda que indireta - de um espetáculo. Podemos, ainda, recorrer às reflexões de José Wisnik que, em obra já citada, estabelece relações detalhadas entre os diversos gêneros eclesiásticos e o desenvolvimento da cidade na Europa. Até o século IX, a forma musical predominante no mundo cristão foi a do cantochão, e somente a partir daí surge a primeira e rudimentar forma polifônica do ocidente, o organum paralelo. Surgem, sucessivamente, novos e mais elaborados tipos de contraponto que apenas no século XIII irá alcançar a sua forma mais complexa: o moteto. Neste, ao contrário da rígida linearidade que caracterizava o cantus firmus das formas musicais anteriores, as vozes se confundem e entrelaçam 16 “Ruído sagrado”, para Schafer, refere-se a sons de grande intensidade produzidos por fenômenos naturais e tidos como deuses pelo homem primitivo. Internalizado, passou a ser associado a estruturas de poder, e utilizado com a finalidade de enfrentamento ou dominação.


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num mosaico sonoro de fragmentos assimétricos, combinados por adição de elementos, contrastando claramente com a fluência retilínea do canto gregoriano do início da Idade Média. Porém, o aspecto mais significativo do moteto é o fato de que se trata de um gênero polifônico popular, cantado fora das igrejas, que abriu decisivamente o caminho para a inovação no campo da música europeia, tanto no texto cantado (com uso de temas amorosos e cotidianos e no emprego de palavras seculares, às vezes em mais de um idioma simultaneamente) quanto no uso dos elementos propriamente musicais (melodias que se entrecruzavam, uso de melismas etc): Juntando sobre um texto latino outro em francês, mesclando ambiências sacras e profanas, o moteto detona o gosto polifônico, e faz da técnica de composição, que já se constitui então numa requintada forma de artesanato escritural, um franco processo de mixagem de vozes, textos, línguas, ritmos e índices sociais. Uma canção popular erótica, uma melodia trovadoresca e um canto gregoriano podem estar fundidos numa mesma peça, onde interessa evidentemente menos a inteligibilidade das partes do que a textura, e onde se experimentam abertamente as novas possibilidades da simultaneidade musical (WISNIK, 1989, p. 112). Para Wisnik, “a grande forma polifônica do período gótico” relaciona-se com o desenvolvimento das cidades. Numa concepção histórico-sociológica da música no ocidente, é possível observar com o autor que o moteto mostra, através de sua arte, uma mudança social que se concretiza no desenvolvimento dos burgos e no questionamento do poder da Igreja, “vazando as restrições eclesiásticas”. O abalo do princípio do cantus firmus (a voz tenor como o alicerce da música polifônica, cristã e erudita) equivale ao abalo do poder clerical sobre o povo, que começa a se organizar social e economicamente nas cidades. As considerações acima confirmam a suposição de Concílio de que cada objeto de um espetáculo é carregado de sentidos “conforme a própria forma e os materiais que constroem esse objeto, como também sua história e utilização” (CONCÍLIO, 2011, p. 68). Pode-se considerar, então, que tal hipótese é válida também para os objetos sonoros, cujas formas, materiais e utilização, na história e no espetáculo, estimulam e ampliam os sentidos a eles atribuídos pelo imaginário do espectador-ouvinte.

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A CONTEMPORANEIDADE DO TEATRO DE RUA: POTÊNCIAS MUSICAIS DA CENA NO ESPAÇO URBANO

3.4 O teatro de rua e a praça

E

m Alegorias Urbanas, Susana Gastal levanta questões sobre a cidade, conceito que nas palavras da autora “se dá aos nossos sentidos como imagem”, e é articulado ao urbano enquanto “imaginário construído e alimentado sobre ela” (GASTAL, 2006, p. 26). Como as discussões levantadas por Gastal se apoiam na moldura teórica elaborada por Frederic Jameson acerca do pós-moderno, é necessário comentar, antes, alguns dos aspectos essenciais por ele abordados uma vez que, para a autora, a pós-modernidade é o contexto mais amplo em que se inscreve o texto cidade. Dentre os fatos históricos que, segundo o estudioso norte-americano, caracterizam o pós-moderno – as convulsões sociais dos anos de 1960, a queda do muro de Berlim, a presença generalizada da tecnologia na vida cotidiana – ele ressalta o advento do que denomina como capitalismo tardio (JAMESON, 2000) ou, ainda, capitalismo hightech17, cuja característica determinante é a simbiose entre capital, tecnologia e cultura (GASTAL, 2006, p. 17). Nesta forma de capitalismo, a questão econômica avança sobre as sociais e culturais, dissolvendo-as no “mercado”. Ou seja,

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A produção de mercadorias é agora um fenômeno cultural, no qual se compram os produtos tanto por sua imagem quanto por seu uso imediato [onde] a propaganda tornou-se uma mediação fundamental entre a cultura e a economia, e se inclui certamente entre as inúmeras formas da produção estética (JAMESON apud GASTAL, p. 33). Lidia Kosovski nos chama a atenção para este efeito do pós-moderno sobre o teatro. No artigo Espaço urbano e performance teatral (2003), a cenógrafa reflete sobre os novos paradigmas que, ao dissolverem as tipologias arquitetônicas do teatro ocidental18, delinearam o espaço cênico contemporâneo, possibilitando a emergência de práticas teatrais cujo “olhar topológico” – além de político e estratégico – irá, a partir dos anos de 1970, redefinir o terreno da cena da atualidade ao levá-lo a ocupar distintos lugares19 da cidade. Dentre essas novas práticas teatrais, a autora destaca as da “cidade assaltada” e da “cidade negociada”. A primeira é associada às formas artísticas em que “o princípio fundador é o do questionamento e subversão da ordem vigente” (KOSOVSKI, 2003, p. 223), em situações cujos exemplos mais representativos estariam, segundo a autora, nas 17 De acordo com Jameson, o capitalismo high-tech é o da chamada globalização dos mercados, o qual é marcado pela impessoalidade das grandes corporações internacionais. 18 Utilizando um critério cronológico, a autora cita as arquiteturas grega, romana, elisabetana, barroca, clássica e italiana. 19 A autora utiliza a diferenciação entre as noções de lugar e espaço, proposta por Michel de Certeau (1994), para quem o primeiro se refere a uma ordem estabelecida e, o segundo, à mobilização dessa mesma ordem por meio de uma prática. Dito de outro modo: enquanto o lugar estabelece, o espaço pratica.


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expressões das vanguardas artísticas europeias, no agit-prop russo, nos happenings e na performance art, e em experiências teatrais pioneiras realizadas no Brasil por Augusto Boal20, César Vieira21 e Amir Haddad22. Já a segunda prática teatral, caracterizada por “ações que traduzem uma política de animação da cidade”, estariam situadas sob a égide de uma atitude mais concessiva e complacente em relação à ordem mercadológica/ capitalística vigente, no que diz respeito à ideia de cultura como mercadoria. Com base nessas colocações, a autora interroga a atual tendência de “oficialização e programação de lugares não convencionais para a cena, organizados como uma imensa rede de teatros, arquitetonicamente informal, volátil, nos grandes centros urbanos” (KOSOVSKI, 2003, p. 223), alertando-nos para a iminente emergência de um paradigma teatral construído sobre o prisma exclusivo do mercado – o da “cidadania do consumo” – a ser, segundo ela, firmemente questionado. A partir da década de 1980, torna-se cada vez mais corriqueiro o uso de galpões, foyers de centros culturais, jardins de museus, parques, ruas, praças como lugares possíveis para as performances teatrais – quando se percebe a presença de políticas públicas em relação ao espaço urbano, políticas que expressam a importância de reivindicação do direito à cidade, numa perspectiva de ampliação da cidadania no uso do patrimônio público e ambiental (KOSOVSKI, 2003, p. 221). O “direito à cidade”, tão brilhantemente defendido por Henri Lefebvre (2001) como um direito “à vida urbana, condição de um humanismo e de uma democracia renovados” – e presente, também, no sonho dos grandes encenadores do século XX que trataram de “explodir” o espaço das salas teatrais convencionais - ao ser interpretado à luz do capitalismo high-tech de nossos dias, torna-se uma justificativa plausível para a transformação do espaço público da cidade em simples mercadoria. Sob o discurso “politicamente correto” das medidas de urbanização, saneamento e revitalização de áreas degradadas da cidade, ocultam-se amiúde ações de “higienização” e exclusão, aplicadas sistematicamente às populações menos favorecidas da sociedade. A cidade – lugar, em princípio, de todos – tende a ser transformada, por meio de estratégias supostamente “avançadas”, num espaço cujos benefícios mais significativos acabam tornando-se inacessíveis à maioria da população, e onde a vida de seus habitantes é regulada não tanto (ou somente) por meio de mecanismos disciplinadores como os analisados por Foucault em Vigiar e Punir: nascimento da prisão (1999), mas principalmente através de mecanismos sutis de produção de uma subjetividade eminentemente capitalística – em que o próprio modo de viver, o desejo e os sonhos do cidadão são submetidos às leis do mercado (GUATTARI, 2010). Trazendo tais questionamentos para o universo do teatro de rua, poderíamos perguntar: Que “teatros” serão contemplados por políticas públicas de apoio ao teatro a ser oferecido gratuitamente à população com base naquele “direito à cidade” e no 20 Com as experiências de Teatro Invisível. 21 Fundador e diretor do Teatro Popular União e Olho Vivo, de São Paulo. 22 Fundador e diretor do Grupo Tá Na Rua, do Rio de Janeiro.

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discurso da cidadania? Que critérios serão utilizados para definir quais e como os espaços da cidade podem ou não ser utilizados pelos artistas de rua? E, principalmente, quem tem esse poder decisório, diante da suposta “acessibilidade irrestrita” que a rua, enquanto espaço público, deveria oferecer ao cidadão? “Como escapar?” – pergunta Kosovski. Em busca de possíveis respostas, torna-se necessário interrogarmos o espaço - seja para conquistá-lo, ocupá-lo e usufruir dele, seja para compreendê-lo, amá-lo, acrescentar-lhe algo - sobretudo quando se trata do espaço da cidade, onde vive e trabalha a maior parte dos fazedores teatrais de rua. É urgente colocar em questão os discursos hegemônicos que valorizam certos ideais contemporâneos como, por exemplo, o “tecnológico”, o “cosmopolita” e mesmo o “público”, pois “viver o espaço é uma construção de sentido que condiciona a sensibilidade e também é condicionada por ela” (GASTAL, 2006, p.81). Isso significa que o sentido físico é dado pela experiência sensível, mas este é também dependente de uma rede de fatores sociais e subjetivos que definem essa experiência. A cidade não constrói sua significação da mera distribuição de objetos materiais – casas, prédios, ruas etc – mas das estruturas significantes de relacionamentos que aí se dão. Daí ser ela o resultado da rede de tessituras entre o que é fixo no espaço e o que flui – “deslocamentos das pessoas, de bens materiais e simbólicos, comportamentos e culturas” (GASTAL, 2006, p. 73).

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Na obra utilizada como referência fundamental deste subcapítulo – Alegorias urbanas – Susana Gastal elabora um pensamento semiótico23 sobre a cidade, na defesa da tese de que é possível organizar a leitura de determinados “textos” a partir de significantes que sobressaíram sobre outros. Destaca-se, no contexto estudado pela autora, a recorrência dos significantes praça, igreja, palco, universidade, monumento e indústria. Dentre estes, destacam-se aqueles eleitos como três matrizes de análise - a praça, o monumento e o palco – a serem utilizados numa abordagem da cidade sob as categorias de espaço, tempo e visualidade, respectivamente. A praça é a matriz significante que a autora escolhe para analisar a construção de sentido na cidade, com base na importância que a praça (enquanto elemento urbano físico) assume na constituição histórica e social do ocidente, ao legar à contemporaneidade um imaginário onde ela é tanto o espaço inerente ao exercício da cidadania (a polis grega), quanto local de trocas de mercadorias, de encontro e de festa (a cidade medieval). Por alimentar nos séculos subsequentes um imaginário urbano materializado tanto nos núcleos urbanos do interior quanto nas grandes metrópoles, para a autora a praça é um “texto” que permanecerá ativo no imaginário pós-moderno, ao [se] procurar reconstituir espaços de festa e de encontro, das trocas de bens materiais e de bens simbólicos com liberalidade de acesso e informalidade de uso [...] Na alma dos shoppings centers metropolitanos, nos halls de entrada de hotéis e edifícios corporativos, nos bares da cidade ou na roda do cafezinho em escolas e escritórios, lá estará a praça (GASTAL, 2006, p. 93). 23 A autora explica a sua adesão a uma vertente semiótica “pós-saussureana”, inaugurada por Roland Barthes, cuja lógica metonímica se realiza não pela busca “compreensiva” do objeto investigado, mas por associações e contiguidades; um texto é estudado em sua relação com outros textos (GASTAL, 2006, p. 44).


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Com base nas reflexões de Gastal, proponho pensar o teatro de rua como uma modalidade teatral cujas práticas reconstituem a praça no imaginário da cidade. Ou, ainda, considerar a ideia de que esta matriz arcaica é acionada no imaginário do cidadão todas as vezes em que um espetáculo de rua lhe é apresentado, independentemente da forma por ele utilizada para ocupar fisicamente o espaço urbano. Seja em roda, performance procissional ou invasão (TELLES, 2008); por meio de poéticas tradicionais ou de ruptura (OLIVEIRA, 2010); compreendido sob a perspectiva do épico (ANDREAZZA, 2008)24, da cultura popular (VIEIRA, 2007) ou do contemporâneo (CARDOSO, 2005; CARREIRA, 2009), o teatro de rua irá propor ao habitante da cidade converter-se em espectadorouvinte ao mergulhar numa dimensão imaginária capaz de fazê-lo transcender os limites usuais do cotidiano e descobrir, nessa experiência, novos modos de reapropriação da cidade. Mas, como pode fazer isso o teatro de rua? Partindo da premissa de que o urbano abrange elementos fixos - praças, monumentos, igrejas, indústrias, casas, ruas etc - ao redor dos quais circulam fluxos de pessoas, mercadorias, relações sociais, manifestações culturais, trânsito de veículos etc, Gastal desenvolve a tese de que, se os fluxos formaram a cidade antes dos fixos (segundo a autora, a sua origem está nos caminhos percorridos pelos nômades que ali acabaram se estabelecendo), hoje eles “correspondem aos deslocamentos do sujeito na própria cidade” (GASTAL, 2006, p. 94), de casa para o trabalho e vice-versa. No momento contemporâneo, esses deslocamentos ganham em velocidade (os meios de transporte tornaram-se mais rápidos), mas também em diversidade – muitas mercadorias dão-se, agora, sob a forma de fluxo (as transações comerciais realizadas por meio virtual, por exemplo). Outros tipos de deslocamentos - de ideias, saberes, crenças, culturas ou bens culturais -, são igualmente submetidos a um aumento de velocidade. Para a autora, o efeito mais notável disso sobre a cidade, constituída originalmente como lugar de fixos de fluxos, será o da sua desmaterialização. A pesquisadora explica do seguinte modo o processo pelo qual o excesso de velocidade dos fluxos leva à desmaterialização da cidade: todos os produtos que circulam na cidade são enraizados em fixos culturais específicos (a comida baiana, a moda europeia etc); a velocidade dos fluxos pelos quais transitam permite, contudo, que esses produtos sejam consumidos longe de seus fixos e “circulem livremente como fluxo, tornando invisível a cultura original”. Esta, desvinculada dos fixos, passa a viver no imaginário das pessoas que o consomem. O paradoxo da pós-modernidade, para Gastal, é que ela aproxima o distante, mas só no imaginário. Os conteúdos que constroem o sentido de um objeto longínquo não vêm junto com ele, pois os fixos (os lugares) aos quais ele está originalmente vinculado lhe são retirados, no processo de mercado “globalizado”. Na vida cotidiana, isso quer dizer que um objeto tradicional, que carrega em seu conteúdo a identidade de um lugar, pode ser consumido em qualquer outro lugar, distante daquelas marcas de origem. Mas a lógica da desterritorialização, marca do capitalismo globalizado, não transfere apenas mercadorias. A hegemonia do fluxo na pós-modernidade atinge também a quem vive na cidade, levando a crescente circulação de pessoas a constituir, segundo Gastal, “um fluxo com características próprias, um 24 Palestra de João Carlos Andreazza, “O Teatro Épico na Rua”, realizada em 25/04/2008 pelo Centro de Pesquisa para o Teatro de Rua Rubens Brito, do Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo (SP).

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verdadeiro nomadismo pós-moderno, a exigir instalações específicas” (GASTAL, 2006, p. 96) - os não-lugares de Marc Augé, por ele descritos como aqueles que são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos de trânsito prolongado onde estão alojados os refugiados do planeta (AUGÉ, 2010, p. 36). Na lógica dos não-lugares, imposta também à praça – em sua origem, um elemento fixo da cidade – os lugares da festa e da sociabilidade, assim como do encontro, tornamse cada vez mais, fluxos: a praça “abandona os espaços públicos de livre acesso, para transitar por espaços privados ou privatizados: shoppings centers, casas noturnas, parques de lazer diversos, postos de gasolina. A praça abandona os lugares, para frequentar, não raro, não-lugares” (GASTAL, 2006, p. 97). A hegemonia dos fluxos parece fragilizar a praça enquanto fixo. Mas, de acordo com Kevin Lynch, são os fixos – a praça, entre eles – que marcam concretamente as cidades como lugares, orientando o traçado do deslocamento dos fluxos que as atravessam. Desenvolvendo um pensamento sobre o teatro de rua que vai ao encontro das reflexões acima, André Carreira afirma que

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o teatro de rua quase sempre transita em zona conflitiva com as instituições burguesas [pois] essa modalidade teatral basicamente rompe com os códigos e hierarquias do uso cotidiano da rua [e] como manifestação não hegemônica, propõe nestas zonas de conflito a busca de situações em que a rua reconquiste ou reforce sua característica de Lugar (Augé), isto é, seja um âmbito de convivência social que supere a superficialidade do universo do consumo, rompendo, ainda que momentaneamente, com a lógica pragmática do sistema de mercado (CARREIRA, 2007, p. 37-38). Enquanto “manifestação do encontro e da festa”, o teatro de rua reforça no imaginário do cidadão a praça como lugar do espetáculo (ainda que este seja apresentado num daqueles “não-lugares”), pois traz a memória ancestral da praça pública tanto como polis (o fórum público) quanto local de troca (de mercadorias) e encontro (de experiências). Caminhando na contramão de um discurso politicamente correto sobre a cidade limpa, higienizada e ordenada, o teatro de rua recoloca o imaginário da praça no coração da cidade ao relembrar que a sua maior importância reside na sua função social e no seu usufruto pelo cidadão, e não numa suposta “boa” imagem urbana de organização e assepsia. A partir das considerações de Gastal, é possível supor que o teatro de rua, ainda que potente em qualquer uma das suas formas de ocupação do espaço, manifesta sua potência máxima quando, além de ocupar os fixos, também se funde aos fluxos da cidade – penetrando em seus movimentos, ritmos, sonoridades -, pois nesse ato de fusão ele possibilita que, pela obra teatral, se dê o casamento entre o imaginário e o real, resgatando para o cidadão o sentido original do espaço público urbano como o lugar do encontro, das trocas e da festa.


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Ainda que submetido à velocidade dos fluxos e à desmateralização dos fixos na cidade, o ser humano possui um substrato subjetivo e ancestral, enraizado no tempo e nos ciclos mais lentos e estáveis da terra e da natureza. É a necessidade de reencontrar esses conteúdos mais antigos que impelem ainda o homem a experiências do lugar, embora ele tenha construído o espaço desmaterializado da pós-modernidade. Por isso, prevê a autora, A praça se manterá tanto como um fixo, em novos espaços públicos como as ruas – ocupadas por caminhantes de fim de semana, adolescentes em skates ou crianças em bicicletas – quanto, ainda, como praças criadas nos shopping centers com a finalidade de incentivar o encontro. Mas, cada vez mais, a praça será um fluxo que se dá onde quer que haja o desejo do estarjuntos para confraternização, trocas de mercadorias ou trocas simbólicas. A praça ainda será central nos projetos de revitalização das cidades, quando surgem as demandas por ressignificação de fixos, cada vez mais abandonados pelos fluxos econômicos, na sua peregrinação em busca de vantagens comerciais [...] A praça sobrevive como demanda das comunidades, porque está solidamente consolidada no imaginário urbano e, como tal, continua a alimentar a cidade (GASTAL, 2006, p.105). Assim, podemos concluir, com Gastal, que “quando as construções de sentido nos encaminham para a desmaterialização de tempo e espaço” (GASTAL, 2006, p. 219), a praça nos mostra que as questões do espaço na cidade podem ser resolvidas pela criatividade das pessoas, ainda mobilizadas pelo imperativo ontológico do estar-juntos. Nesse sentido, uma possível tática para a resolução dos problemas urbanos trazidos pela pós-modernidade pode estar na capacidade de criar praças na cidade - tarefa esta que o teatro de rua já vem cumprindo há muito tempo, desde a sua convivência com os fluxos da cidade medieval - porque esta matriz fala, mais do que nunca, à necessidade do homem de viver em coletividade, quiçá em comunhão, e a praça - assim como a praça - é, por excelência, o lugar do teatro de rua.

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3.5 TÁ NA RUA: OFICINASESPETÁCULOS25

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caráter singular da linguagem teatral desenvolvida pelo grupo Tá Na Rua26, do Rio de Janeiro, levou-me à decisão de optar não por um espetáculo, mas por um conjunto de atividades, ensaios abertos e apresentações realizadas pelo coletivo no Largo da Carioca, no centro da capital fluminense, no período compreendido entre 2008 e 201027. Esta escolha se deve aos seguintes fatores: a) O fato de que este conhecido espaço público da cidade do Rio de Janeiro já foi objeto de estudos de outros pesquisadores teatrais (CARDOSO, 2005; CARVALHO, 2005), constitui uma oportunidade - bastante rara, no âmbito da pesquisa acadêmica sobre o teatro de rua - de estabelecer um diálogo com as reflexões desenvolvidas antes por outros pesquisadores, sobre esta modalidade teatral e a cidade.

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b) O grande número de ensaios e apresentações realizadas durante essa experiência proporciona um panorama de notável cientificidade a uma atividade que se caracteriza justamente pela imprevisibilidade e mutabilidade. Como acontece num lugar atravessado por inúmeras variáveis, o fenômeno teatral de rua tem como pressuposto a ideia de se instalar temporariamente no espaço público no momento mesmo da encenação, situação singular que faz desses momentos privilegiados o cerne do próprio trabalho, uma vez que apenas neles se dão as condições reais da representação teatral na rua. Isto significa que qualquer tipo de ensaio prévio feito dentro de uma sala estará sempre, obrigatoriamente, muito distante da realidade que um grupo encontrará na rua. A possibilidade de realizar um trabalho regular no espaço público da cidade implica, portanto, numa aproximação entre esses dois espaços teatrais – o da sala e o da rua. Cabe ressaltar, entretanto, que esse período de intensificação do treinamento do ator não acarretou para os atores do TNR a perda da espontaneidade ao se familiarizarem com aquele espaço; ao contrário, a profusão de elementos imprevistos possibilitou, a eles, o aprimoramento das suas competências para o jogo teatral na rua, pois o contato mais constante com um espaço público, polifônico e heterogêneo exigia uma grande flexibilidade do grupo para lidar com o novo a cada momento. c) Este período de experimentação, criação e produção artística tinha também um objetivo político de interesse para esta pesquisa. O TNR pretendia promover uma práxis sobre a “sede pública” - noção essa que se disseminava rapidamente naquele momento entre os coletivos teatrais de rua do país , tendo como propositor o seu diretor, Amir Haddad. 25 “Oficina-espetáculo” foi o termo utilizado por Amir Haddad para designar esse tipo de atividade do grupo Tá Na Rua, porque se para o coletivo tratava-se de um trabalho de preparação para os atores e de ensaios, o público que o assistia reconhecia aqueles acontecimentos cênicos como espetáculos 26 O qual será doravante grafado apenas como TNR. 27 As apresentações aconteciam às sextas-feiras, entre 14h e 17h, no anfiteatro localizado dentro da área cercada que hoje é administrada pelo BNDES. Como se localiza em uma passagem entre o Largo da Carioca e as ruas adjacentes, esse espaço apresenta grande circulação de pedestres no horário em que se encontra aberto ao público: trabalhadores dos escritórios do centro da cidade, vendedores ambulantes, transeuntes de todas as idades e conformações sociais, além de moradores de rua.


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Uma vez lançada, a proposta foi amplamente discutida e logo recebeu o apoio de grupos de todo o país, uma vez que o problema atingia a muitos deles. Alguns dos seus integrantes chegaram a fazer pesquisas informais sobre o tema em suas próprias regiões e, através da RBTR, foi feito um mapeamento do circuito de praças adotadas por todo o país como sedes públicas28. Vários grupos dessa rede (que ainda não possuíam uma sede ou que adotavam ainda um esquema doméstico, trabalhando em suas próprias residências) viram, aí, uma possibilidade concreta de construir, ainda que provisoriamente, o seu próprio espaço de criação artística e, ao mesmo tempo, conquistar um novo tipo de relação com a comunidade do entorno. Outros, já sediados em espaços estáveis, perceberam que a adoção de uma “sede pública” lhes traria a oportunidade de desenvolver habilidades técnicas e artísticas diretamente em contato com o público, o que somente um trabalho teatral “de campo” pode proporcionar devido às condições singulares de “abertura ao jogo e à liberdade de ação” (CARREIRA, 2007) que a rua tende a estimular naqueles que dela usufruem. Além disso, a iniciativa propiciava dar início a uma participação mais efetiva na vida da comunidade onde atuavam, dando visibilidade às discussões que travavam entre si sobre as políticas públicas para a arte e o teatro. Em função das “sedes públicas”, os grupos passaram a viver uma experiência concreta de pertencimento aos bairros, participando das atividades desenvolvidas pelas associações de moradores (principalmente em produções culturais locais) e engajando-se em ações sociais e políticas29 mobilizadas pelos líderes comunitários. Foram, estas, as circunstâncias que deram início ao processo de ocupação do Largo da Carioca, no centro do Rio de Janeiro, como a “sede pública” do TNR, assumida pelo grupo como parte significativa de suas atividades teatrais do período, aqui denominadas “oficinas-espetáculos”. Além dos fatores já expostos, acrescente-se o importante fato de que essas oficinasespetáculos trouxeram, para a pesquisa, a possibilidade de confirmar e aprofundar questões sobre a musicalidade do TNR, cuja análise já havia iniciado anteriormente num estudo etnográfico (MOREIRA, 2007). As Oficinas de Despressurização30 oferecidas pelo coletivo na Casa do Tá Na Rua, a sua sede “oficial” no bairro da Lapa, representaram o eixo central de meu primeiro objeto de estudos: a pedagogia teatral desse coletivo. Acompanhar as mesmas, e também novas práticas, e desta vez num lugar muito diferente – o espaço público da rua – daquele observado em uma sala de trabalho “fechada” estabeleceu, assim, uma continuidade com a investigação anterior, iniciada ainda no curso de mestrado.

28 Dentre os que participaram mais ativamente desse processo na cidade do Rio de Janeiro, destacam-se: a Grande Companhia Brasileira de Mysterios e Novidades, o Grupo Off-Sina, a Tropa de Palhaços de Quinta, Grupo Será o Benedito? e o próprio TNR, que assumiram, como suas respectivas sedes públicas, a Praça da Harmonia (na Gamboa, centro), o Largo do Machado (em Laranjeiras, zona sul), o Largo das Neves (em Santa Teresa, centro), a praça Afonso Pena (na Tijuca, zona Norte) e o Largo da Carioca (centro). Desde então, todos estes coletivos mantêm as suas “sedes públicas” em atividade permanente, apesar dos inevitáveis percalços com órgãos administrativos locais. 29 A questão da “sede pública” mobilizou de tal forma a comunidade teatral de rua, que seus efeitos continuam repercutindo. Em 2009, por exemplo, a RBTR obteve a aprovação do edital da FUNARTE - Artes Cênicas na Rua, que contemplava projetos nessa área específica; houve a criação do Programa Federal Praças do Esporte e da Cultura pelo PAC/ Ministério dos Esportes, por meio do qual grupos de todo o país passaram a fazer apresentações nesses espaços, além de outras conquistas mais pontuais. Recentemente (dia 27/03/2012), foi aprovado na Câmara Municipal do Rio de Janeiro o Projeto de Lei nº 931/2011 que “dispõe sobre a apresentação de artistas de rua nos logradouros públicos do Município do Rio de Janeiro”, do vereador Reimont (PT-RJ), como o resultado de uma intensa mobilização dos artistas de rua da cidade, sob a liderança de Amir Haddad. 30 Denominação dada por Amir Haddad às oficinas teatrais do TNR.

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3.6 O Tá Na Rua no Largo da Carioca

O

s primórdios da ocupação do Largo da Carioca como sede pública encontram-se ainda em 2005, no período imediatamente anterior à ida do TNR a Paris para representar o país no “Ano do Brasil na França” com o espetáculo Dar não dói, o que dói é resistir, cujo tema central era o golpe militar de 1964. O espetáculo amadurecera muito desde a sua primeira apresentação no Festival Porto dos Palcos/FATE em 2004, e começava a exigir (para a realização de cenas de multidão, de manifestações políticas e outras) um espaço cênico maior do que o da Casa do Tá Na Rua. O coletivo decidiu, então, retomar no Largo da Carioca o procedimento de “ensaios abertos”, tal como os atores-fundadores haviam experimentado fazer nos primórdios da formação do grupo.

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Compartilhado com a recém-criada RBTR, o sucesso da experiência de 2005 estimulou ricos debates entre os seus integrantes, pois muitos destes lidavam com uma mesma dificuldade: a falta de espaço físico para trabalhar. As questões emergentes poderiam ser sintetizadas numa pergunta: “Quais as condições materiais necessárias pra se produzir um espetáculo na rua?” “É preciso ter uma sede, uma sala, um espaço próprio, para se realizar um bom trabalho”? O pouco êxito dos grupos no enfrentamento do problema gerava, frequentemente, discursos pessimistas que tendiam a colocar o teatro de rua numa deplorável condição de vítima. Se as discussões iniciavam pela temática do espaço físico, logo se estendiam para uma reclamação generalizada e em bandeiras de luta contra os governos (municipais, estaduais, federal), denunciando a falta de apoio e verbas públicas para a cultura, dentre outras. Embora contivessem uma boa dose de razão, o resultado mais frequente dessas argumentações era o de levar grande parte dos fazedores teatrais de rua para uma postura defensiva e pouco produtiva, dificultando o desenvolvimento do teatro de rua. Mediatizada pela figura carismática de Amir Haddad, a discussão logo revelou que sob o discurso da pobreza e da impotência, direcionado para o problema concreto da falta de espaço físico, se ocultava também uma outra dimensão, não-física, mais relacionada com uma concepção tradicional de teatro, em que os critérios de excelência técnico-artística haviam sido definidos há três séculos pelo teatro de palco à italiana. Desta forma, os artistas de rua consideravam a falta de um espaço físico como um fator absolutamente impeditivo, no desenvolvimento de um trabalho artístico que merecesse ser considerado “bom” ou mesmo “razoável” dentro dos parâmetros teatrais convencionais. “Onde” – perguntavam-se eles – “seria possível realizar um trabalho de corpo, com suas técnicas de relaxamento e conscientização, respiração e afinação vocal?” Onde praticar leituras, jogos teatrais e outros procedimentos considerados por eles imprescindíveis ao aprimoramento do ator, à criação, à produção? Tudo isso atrapalhava o desenvolvimento do teatro de rua, porque seus realizadores


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carregavam dentro de si um confronto essencial entre o “dentro” e o “fora”, entre o palco e rua, entre a legitimidade do teatro “oficial” e a marginalidade do teatro de rua, e encontravam dificuldades de superar essa dicotomia – fator gerador de culpas e rivalidade entre os articuladores da RBTR. Em consequência disso, grande parte dos grupos “resolvia” a contradição levando para a rua procedimentos de palco ou, em outras palavras, criando espetáculos de rua a partir de princípios e procedimentos próprios do teatro de sala (texto dialogado, frontalidade, cenário de fundo, quartaparede etc). O resultado dessas tentativas era, em geral, insatisfatório, colocando em xeque a autoestima dos coletivos, que amiúde comparavam as suas produções com as de outros grupos de rua – como o Galpão (MG) e o Ói Nóis Aqui Travêiz (RS), por exemplo – vendo-se sempre como “menores”, diante daquelas referências nacionais de competência artística e sucesso profissional. O trabalho de “remoção das carcaças ideológicas” – na expressão criada e difundida por Amir Haddad - levou os grupos da RBTR a refletirem se a sua escolha pelo teatro de rua era de fato uma opção pela rua, ou significava apenas o resultado de uma falta de opção em relação ao teatro hegemônico. Um dos temas mais recorrentes, na ocasião, era o do lugar do artista de rua, visto em sua condição de cidadão e trabalhador, e cujo trabalho implicava estabelecer relações com a cidade em diversos níveis: estético, político, relacional, histórico... A partir da constatação, por parte dos fazedores teatrais, de que o lugar de criação e trabalho do artista de rua é a rua, e que a cidade é a sua “casa”, o seu “palco” original, vários grupos da RBTR decidiram fazer também a experiência da “sede pública”, entendendo que não bastava mais, a eles, realizarem todas as etapas de criação e montagem de um espetáculo num espaço fechado, para somente depois “irem para rua”, apresentando-o como um produto pronto. A polêmica questão do “teatro de rua versus teatro na rua”, que há anos vem ocupando a atenção desse setor teatral, apresentou-se e foi esclarecida nestes termos, a partir de muitas discussões on-line sobre a noção de “sede pública”, proposta por Amir Haddad. Ficou claro, para esses articuladores, que a especificidade do espaço da rua é determinante para o teatro de rua; entretanto, essa especificidade não se limita à dimensão física do espaço. As relações que o teatro de rua estabelece com o espaço na cidade pós-moderna - enquanto espaço constituído por elementos fixos e atravessado por fluxos, permanentemente tensionado entre diferentes linhas de força - são o ponto de partida para uma possível definição do seu lugar, hoje.

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3.7 As oficinas teatrais do Tá Na Rua

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ara abordar os aspectos musicais desenvolvidos pelo TNR no espaço aberto do Largo da Carioca, é necessário antes apresentar um panorama de suas oficinas teatrais e o que as mesmas representam dentro do pensamento de Amir Haddad e dos atores que constituíram o coletivo ao longo da vida do grupo.

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Desde o seu início, o TNR desenvolve um trabalho pedagógico paralelo às atividades propriamente artísticas. Suas primeiras oficinas teatrais foram realizadas em julho de 1980, no Teatro Garagem, de Brasília, com o nome de Jornadas Teatrais. A atriz Ana Carneiro, integrante da primeira formação que participou deste processo, revela em sua pesquisa de mestrado (CARNEIRO, 1998) que, na ocasião, foram utilizados textos de dramaturgia como ponto de partida para improvisações, realizadas com estímulos musicais, figurinos e variados adereços. Em janeiro de 1981, o grupo passa a desenvolver a atividade regularmente, no teatro da CEU - Casa do Estudante Universitário – no Rio de Janeiro. A partir desse momento, os textos são suprimidos, dando lugar a improvisações totalmente livres. Este fato contribuiu para a inclusão de não-atores no trabalho, uma vez que a sala onde era realizado permanecia com a porta sempre aberta, permitindo o acesso a um público eventual que muitas vezes interrompia o seu trajeto cotidiano dentro da instituição para observar os atores ou até mesmo participar das propostas. Segundo a atriz, foi este tipo de experiência, promovido pela informalidade do ambiente universitário, que possibilitou ao grupo desenvolver um contato horizontal com o público, o qual frequentemente também estava em cena ao lado dos atores, improvisando e discutindo as questões ali suscitadas. Quando, em 1992, o coletivo se transferiu para a atual Casa do Tá Na Rua31, em plena Lapa carioca – bairro tradicional do Rio de Janeiro, dono de notória fama pela boêmia de seus moradores e frequentadores – manteve a prática singular de manter a sua porta permanentemente aberta, dando livre acesso a toda população de transeuntes e curiosos, atraídos pela música das oficinas e o colorido da sala de trabalho. Considerando-se que, no pensamento de Michel Foucault (1988) sobre as relações de poder na sociedade ocidental, a subjetividade do indivíduo inclui uma dimensão de interioridade que se constitui apenas na relação com os outros indivíduos, pode-se dizer que, diferentemente da concepção individualizada do ator virtuose que detém um domínio técnico da representação cênica, as práticas teatrais do TNR estiveram desde o início, profundamente ancoradas na noção de subjetividade, tal como proposta pelo filósofo francês. É importante observar que a horizontalidade das relações interpessoais, decorrente de uma prática aberta a todo tipo de intervenção que surgiu de uma situação concreta As oficinas são realizadas no espaço do piso superior da Casa, que está sediada em um casarão histórico de dois andares situado na Rua Mem de Sá, nº 35. Este foi cedido por comodato ao grupo pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro em 1992, situação esta ainda vigente. 31


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da história do grupo, teve uma consequência essencial do ponto de vista da produção coletiva de subjetividade: o exercício constante com um público participativo, porém transitório, torna-se, por assim dizer, parte natural das atividades do coletivo, levando os integrantes das oficinas a compartilharem permanentemente suas experiências artísticas e reflexões com um outro, totalmente exterior ao grupo de trabalho e, na maior parte das vezes, desconhecedor dos códigos representacionais. Essa estrutura aberta, que se estende das oficinas teatrais aos espetáculos do TNR, promove o rompimento com o padrão teatral clássico que prevê uma separação nítida entre “ensaios” e “apresentação”, e onde a presença do outro está condicionada à estreia, à apresentação pública. Para o teatro convencional de palco, é possível que a subjetividade decorrente do contato entre atores e espectadores só se produza no momento em que o produto do trabalho se manifesta publicamente ao soar o terceiro sinal, porém nas propostas do TNR isso se dá paralelamente à própria construção do espetáculo e não num momento posterior. Trata-se de uma produção de subjetividade interpessoal concomitante ao processo de criação, em que as fronteiras existentes entre o “interior” (os indivíduos que constituem o grupo teatral) e o “exterior” (o meio externo, o espectador) são, desde o início, deliberadamente suprimidas. No trabalho do TNR, esse outro sem o qual a subjetividade não se consuma, está presente desde o início das suas oficinas de preparação de atores, radicalizando-se nos seus “ensaios abertos”32 até o momento do espetáculo propriamente dito. É possível verificar, com base nessa forma de trabalho, que os modos de produção de subjetividade no TNR estão completamente entranhados em todas as suas dimensões: práticas de formação do ator, processos de criação e na produção artística. Além de ser uma proposta alternativa aos modos hegemônicos de produção e criação do teatro, esse modo singular de proceder constitui-se também numa postura ético-política de resistência do grupo, a qual estabelece uma relação profunda com as reflexões sobre os modos de subjetivação investigados no pensamento foucaultiano.

32 Desde 1977, o Grupo de Niterói – que deu origem à primeira formação do TNR, em 1980 – já realizava ensaios abertos ao público estudantil na sala que ocupava no ainda atuante Diretório Central dos Estudantes, na Universidade Federal Fluminense, então conhecido como “DCE da UFF”.

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3.8 A oficina “de despressurização”

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e acordo com o ator e Disk-Jockey Roberto Black33, a denominação “Oficina de Despressurização” teria sido criada por Amir Haddad ainda nos primórdios do grupo TNR. Para o diretor, essas oficinas assemelhavamse a uma câmara de descompressão, cujo efeito modificava o estado interno dos participantes à medida que estes chegavam e começavam a brincar, jogar e improvisar, eliminando gradativamente as pressões sociais internalizadas que traziam do cotidiano. Essa analogia foi incorporada ao dia-a-dia do grupo, e o uso do termo pelos integrantes acabou se tornando parte do seu jargão teatral. Quando o participante de uma oficina “de despressurização” entra no salão de trabalho da Casa do Tá Na Rua, encontra um ambiente rico em estímulos - música, figurinos, adereços, objetos cênicos – com os quais é convidado a interagir livremente. Por todas as paredes há prateleiras e araras repletas de figurinos, adereços, máscaras e outros objetos cênicos. São perucas coloridas, bolsas, chapéus, adereços carnavalescos de cabeça, asas de anjos, mantos, capas, bandeiras de diferentes países, máscaras de couro ou látex, espadas, chicotes de corda, retalhos de tecidos de diversos tamanhos e texturas, saias rodadas, paletós, óculos de sombra, calças coloridas, bastões de comprimentos diferentes, arcos, sombrinhas coloridas, enfim, qualquer material de fácil manuseio que possa constituir um elemento lúdico de jogo.

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Destaca-se, nesse espaço, o gabinete de trabalho do DJ, o “disk-jockey”34 - ator responsável pela condução musical das oficinas, ensaios e espetáculos do TNR. É deste local que serão coordenados por ele os estímulos musicais das oficinas, imprimindo ritmos, propondo imagens sonoras por meio de exemplos musicais, interferindo num clima emocional, estimulando ou interrompendo as improvisações. O DJ organiza a dinâmica de uma oficina, mas por meio da música; é ele o responsável pela condução das ações cênicas dos participantes, propondo dinâmicas corporais diversas por meio das músicas, amplificadas no aparelho de som. Um coordenador35 observa, distanciado, os movimentos dos participantes, incentivando e acompanhando o desenvolvimento da oficina, entrando em cena ou interferindo no decurso de uma improvisação somente quando necessário. Se, por um lado, o DJ é a peça fundamental do trabalho musical de uma oficina “de despressurização”, por outro é o coordenador quem assume a direção na etapa final da oficina – a 33 Ator do TNR, falecido em 2009. 34 O DJ é um integrante do TNR que executa essa função simplesmente por apreciar música ou ser também músico, além de ator. O primeiro DJ do grupo foi o ator Ricardo Pavão, substituído mais tarde por Roberto Black, que permaneceu nessa atividade por muitos anos. Atualmente, Alessandro Perssan é o mais atuante na tarefa, embora outros integrantes atuem eventualmente como DJs, quando necessário. 35 A função de coordenação das oficinas “de despressurização” tem sido realizada ao longo dos anos por diferentes integrantes do TNR e também pelo próprio Amir Haddad.


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“elaboração” verbal - pois é dele a função de estabelecer relações significativas entre o vivido e o compreensível, articulando a dimensão dionisíaca, da experiência, à apolínea, da reflexão intelectual. Assim a oficina propõe, antes de tudo, favorecer um ambiente que envolva os participantes, estimulando-os à participação ativa. Desse ponto de vista, o início de uma oficina do TNR é um trabalho de exploração desse ambiente e dos materiais que ali se encontram. Isto não é explicitado enquanto exercício teatral, mas como uma proposta de contato não-verbal com o espaço cênico, com o outro, com os objetos; um convite à experimentação ampla e lúdica das relações em curso, sempre acompanhadas pela música. Quando realizadas em sua “sede pública”, as oficinas-espetáculos do TNR mantiveram a mesma estrutura acima descrita; nessas ocasiões, parte do material necessário (objetos cênicos, figurinos e adereços) era transportado até o Largo da Carioca pelos próprios atores36 ou por um carro de transporte de cargas, quando os ensaios de Dar não dói, o que dói é resistir se intensificaram, exigindo uma estrutura mais complexa. Igualmente, as atuações do coordenador e do DJ, respectivamente Amir Haddad e Roberto Black, eram exercidas tal como na Casa do Tá Na Rua, com a ressalva de que em cada encontro na sede pública, após um período de tempo inicial “livre”, o trabalho se voltava prioritariamente para a apresentação em Paris. Segundo Licko Turle, pesquisador de teatro de rua que investigou a “dramaturgia carnavalizada” do TNR em sua tese de doutorado (TURLE, 2011), o roteiro de Dar Não Dói...37 foi elaborado a partir de fatos relevantes da vida nacional ocorridos entre os anos de 1964 a 1984, os quais eram transformados em narrativas dramáticas a partir das improvisações dos atores nos ensaios abertos. Os ensaios eram momentos de criação/improvisação intensiva, e não de fixação de cenas já estabelecidas anteriormente. A cada encontro, os mesmos temas geravam improvisações novas, imprevisíveis, num movimento de criação aparentemente desordenado, mas cuja ordem interna ia se desenhando pouco a pouco, tecendo uma verdadeira rede de acontecimentos, tecidos de forma não necessariamente linear ou cronológica (TURLE, 2011, p. 135). Nos ensaios abertos, as improvisações já se davam dentro das cenas, ou levavam à produção de novas cenas sobre os principais temas abordados no espetáculo, tais como a ditadura na América Latina, os movimentos populares, a resistência da classe artística, a censura e a tortura, a “Passeata dos Cem Mil” liderada pela União Nacional dos Estudantes, o início da Abertura política nos anos 80, entre outros eventos históricos. Todos esses fatos eram apresentados a partir das narrações de Amir Haddad e das músicas, teatralizadas pelo jogo dos atores no espaço cênico da praça. O repertório musical do espetáculo, considerado por Amir Haddad como um 36 Cabe lembrar que o escritório do TNR, que se situa próximo ao Largo da Carioca, é o local onde também é depositado o material cênico mais utilizado nessas ocasiões. 37 Escrito inicialmente pelo ator Alexandre Santini, o roteiro básico era constantemente modificado e aperfeiçoado coletivamente, em função das improvisações nos ensaios abertos.

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material fortemente representativo da memória cultural do povo brasileiro, era formado pela produção de artistas, músicos e compositores brasileiros e internacionais como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, João Bosco, Tom Zé, Gonzaguinha, Ivan Lins, Milton Nascimento, João do Vale, Violeta Parra, Pablo Milanez, Mercedez Sosa, Bob Dylan, John Lennon e vários outros, além de hinos (o Hino Nacional Brasileiro, em várias versões, o das Forças Armadas, o do Movimento Internacional Socialista), além de canções de domínio popular, sambas-enredo e outras obras musicais “que iam sendo descobertas pelo grupo num verdadeiro trabalho de arqueologia musical a partir da qual foram sendo ‘desenterrados’ os antigos discos de vinil já esquecidos nas casas de cada um” (TURLE, 2011, p. 136). Alçada, pelo elenco do TNR, à condição de “porta-voz do sentimento e da alma do povo brasileiro”, no espetáculo mencionado a música exercia várias funções: como elemento depositário da memória cultural registrada nos ritmos, melodias e timbres instrumentais; como mensageira e comentarista dos acontecimentos históricos narrados; como homenagem, denúncia ou crítica. Às letras contundentes de compositores aliados ao movimento tropicalista, contrapunham-se exemplos musicais utilizados no período como propaganda do governo ditatorial para difundir no país a sua ideologia pelos meios de comunicação de massa como, por exemplo, a canção-símbolo da “seleção canarinho” na Copa do Mundo de 1970, Pra frente Brasil38.

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38 Música composta e gravada pelo conjunto Os incríveis.


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3.9 Uma dramaturgia musical

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TNR desenvolveu, em sua trajetória, um tipo singular de metodologia teatral em suas oficinas de formação de atores, cuja principal marca é a utilização ininterrupta de músicas de diferentes gêneros e estilos - estímulo a partir do qual os participantes improvisam cenas livremente, sem a orientação prévia do coordenador. Esse processo de criação cênica a partir de músicas diversas se repete também nas atividades do grupo voltadas para o espetáculo propriamente dito, o que ressalta a importância capital que a música representa na vida do coletivo. Do ponto de vista da encenação, no TNR a música é compreendida, não como mais um dentre os vários elementos cênicos, mas como a própria dramaturgia que emerge durante o processo de construção do espetáculo – uma dramaturgia, portanto, essencialmente musical. Surge a questão: o que, na música, concorre para que se realize essa outra possibilidade de criação teatral que não se apoia no texto literário, mas ainda assim mantém uma unidade narrativa que também se afasta das propostas contemporâneas mais radicais de desconstrução do sentido da cena? As observações das oficinas-espetáculos no Largo da Carioca confirmaram as observações anteriores (das oficinas feitas em sala) de que as estruturas musicais colocadas em jogo durante o trabalho - com seus diferentes encadeamentos rítmicomelódicos, suas tensões e repousos – são um fator determinante na conformação mais geral das imagens cênicas criadas e materializadas pelos atores, produzidas num fluxo de improvisações de natureza coletiva, corporal e não-verbalizada que, não obstante, instaura um discurso cênico de natureza narrativa. Uma investigação anterior do repertório musical utilizado pelo TNR revelou que o mesmo é constituído, em sua maioria, por exemplos de gêneros populares, brasileiros ou estrangeiros, e eruditos (estes, em menor escala) cujas estruturas formais se baseiam no sistema musical hegemônico no ocidente desde meados do século XVIII – o sistema tonal. Agora, no presente estudo, o que se buscou foi não apenas identificar os gêneros musicais ali presentes, mas vislumbrar as fissuras que neles se insinuam em suas estruturas rítmicas e melódicas, como linhas de fuga (DELEUZE e GUATTARI, 1995) capazes de fazer, da música, mais que uma partitura a ser reconhecida e obedecida pelo ator ou a trilha sonora para uma cena construída previamente, mas antes, um mapa rizomático capaz de impregnar os sons com sentimentos, lembranças, lugares, acontecimentos, energias, imbuídas de forte carga semântico-musical (lembrando Nattiez) que apontam para infinitas possibilidades para a criação artística no teatro de rua. “Que estranhos devires desencadeiam a música através de suas ‘paisagens melódicas’ e seus ‘personagens rítmicos’ [...]?” – perguntam Deleuze e Guattari, em O que é a filosofia?(1992, p. 220). Para os autores, devir é, simplesmente, tornar-se.

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[...] devir não é imitar algo ou alguém, identificar-se com ele. Tampouco é proporcionar relações formais [...] Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e através das quais nos tornamos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p.64). Os autores encontram, na música, um importante ponto de apoio para as suas reflexões a respeito da arte, da política e do desejo. A natureza paradoxal da música, tal como se revela nas concepções dos autores de Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia – simultaneamente intangível e corpórea, estrutura e fluxo, sacerdotisa de Apolo e seguidora de Dioniso – é o que permite ao presente estudo compreender como se relaciona o TNR com a música em suas oficinas-espetáculos, desafio que implica manter um equilíbrio, ainda que precário, entre o audível e o inaudível, o métrico e o imensurável, “o tempo e o não-tempo” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 49). É nesse sentido ampliado de “música” (ou melhor, seguindo o raciocínio até aqui desenvolvido, de “musicalidade”) que se torna possível encontrar um caminho para entender a proposta dramatúrgicomusical do TNR, pois é em meio às “paisagens” melódicas e rítmicas das músicas que os atores jogam teatralmente no espaço público da cidade, improvisando cenas e criando personagens ou, ainda, de acordo com a terminologia de Deleuze e Guattari, utilizam a música para entrar em devires com os inesgotáveis “personagens” que nelas habitam.

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Os espetáculos do TNR, assim como as oficinas-espetáculos em espaço aberto, sempre iniciam com um prólogo musical. Este procedimento estético-pedagógico adquire importância fundamental na rua, pois se de um lado permite aos atores “aquecerem” (tanto no sentido corporal quanto afetivo), de outro, já numa situação concreta de representação em espaço público aberto, favorece a criação de vínculos entre espectadores e atores, antes mesmo de iniciar a apresentação propriamente dita. Verificou-se, ao longo da pesquisa, que o mesmo é válido para os ensaios abertos. Estimulados pela observação do jogo e da movimentação corporal dos atores, motivados pela audição das músicas em cena, instigados pelo colorido dos figurinos que são colocados à disposição de quem quiser utilizá-los, espectadores dos mais diversos perfis acabam integrando-se espontaneamente à oficina. A recorrência de situações em que transeuntes, vendedores ambulantes, trabalhadores de escritórios e outros espectadores eventuais demonstram o desejo de participar de alguma cena, tomando mesmo essa iniciativa, pôde confirmar muitas vezes a afirmação de Carreira sobre o potencial lúdico do teatro de rua, enquanto espaço de convivência construído em meio aos fluxos ininterruptos da cidade: A rua, como espaço de convivência, permite que o cidadão desfrute de um anonimato que o libera do peso do compromisso pessoal. No espaço aberto e em comunidade, o homem urbano se sente mais capaz de atuar. Este é um comportamento que facilita que na rua exista predisposição para o jogo e a participação (CARREIRA, 2007, p. 38).


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O ambiente de teatralidade e ludicidade instaurado no espaço público da cidade cria uma situação propícia à emergência de associações livres, sinestésicas e mnemônicas que contribuem para esgarçar ainda mais as fronteiras entre o espetáculo e o ambiente à sua volta, ainda que a forma de ocupação do espaço urbano seja a tradicional roda, como no caso do TNR no Largo da Carioca, conforme explica a atriz Ana Carneiro, fundadora do grupo: Nas apresentações de rua, não há preocupação imediata de ocupar planos diferenciados ou utilizar o cenário urbano, integrando-o à representação. Na rua, o que move o grupo [TNR] é a possibilidade de contato direto com o público. E, para isso, nenhum espaço de representação é mais importante e necessário, nesse momento, do que a roda (CARNEIRO, 2005, p. 123). Neste processo, o corpo do performer em ação – seja o do ator ou o do espectador que, num impulso, deixa a sua condição de observador distanciado e “entra na roda” - é o elo que conecta o espetáculo, em sua musicalidade, à cidade. Uma das cenas mais dramáticas de Dar não dói..., por exemplo, consistia na narração e encenação do assassinato de Edson Luís de Lima, estudante atingido por uma “bala perdida” durante uma inexplicável ação realizada pela polícia militar num restaurante universitário no centro do Rio de Janeiro, em 1968. Essa cena - que nos primeiros ensaios abertos apresentava o fato propriamente dito a partir de um “número de plateia” com um voluntário -, com o contínuo trabalho de improvisação dos atores transformou-se numa eloquente analogia entre ficção e realidade, sendo o fato histórico passado (o assassinato do estudante) o “motivo condutor” para estimular uma reflexão sobre a truculência policial no presente. Nos ensaios (e mesmo nas apresentações posteriores), um voluntário do público – designado por Haddad como “um cidadão” – era colocado frente a frente com um ator do TNR – “um PM” – assim caracterizado e armado com um fuzil cenográfico. O primeiro era instigado a fazer um gesto qualquer, banal. Ao fazê-lo, era simplesmente alvejado a sangue-frio, ao som de um tiro (com a sonoplastia de Roberto Black) e caía “morto”, ali mesmo. Irrompia em cena a canção Cálice, de Chico Buarque e Milton nascimento, trazendo com ela uma forte carga emotiva associada tanto à ditadura quanto ao episódio bíblico que narra o sofrimento de Cristo. O “corpo”, já coberto por um tecido preto, era erguido pelos outros atores e seguia em cortejo fúnebre para fora do espaço da roda. O bordão utilizado em 1968 pelos estudantes da UNE naquela ocasião passada era repetido, em coro: “Mataram um estudante! Podia ser seu filho!” O que chama a atenção é que, em todas as ocasiões observadas, tanto nos ensaios abertos da Carioca, quanto nas apresentações realizadas em outros espaços39, havia sempre um voluntário do público que, tão logo Amir Haddad fazia o convite, prontificavase a representar o papel do “morto” durante as diversas etapas da cena, desde o momento 39 Dar não dói... foi apresentado no Largo da Carioca, no pátio do Palácio Gustavo Capanema (sede regional do Ministério da Cultura no RJ), Cinelândia, Praça Tiradentes, Circo Voador, Largo da Lapa, Praça XV, Assembleia Legislativa, nas Lonas Culturais de bairros cariocas (Penha, Campo Grande, Guadalupe, Anchieta, Bangu, Realengo), no Armazém Cinco do Cais do Porto do Rio de Janeiro, e em várias outras cidades como Angra dos Reis, Parati, Resende, São Paulo, Porto Alegre, Fortaleza, Paris.

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do “tiro” e o “velório”, até o veemente discurso de Wladimir Palmeira, líder estudantil representado por um ator. No final da cena, a participação desses espectadores era sempre comentada pelo apresentador e festejada pelos atores, que, dançando, conduziamno alegremente de volta ao público. Às vezes, aparentemente pelo puro prazer do jogo com o espectador, Haddad repetia a cena do “tiro” porque o voluntário “não tinha morrido direito”, aproveitando a situação para brincar com a concepção tradicional de ator cujas ações cênicas são detalhadamente marcadas e, ao mesmo tempo, produzir um efeito de distanciamento da cena, desvelando o jogo teatral ao público. A interação do trabalho do TNR com a paisagem sonora da cidade ocorria, sobretudo, nas cenas em que eram acionados sons que poderiam ser qualificados como sinais sonoros, de acordo com a terminologia proposta por Murray Schafer. Sons de sirenes, alarmes, buzinas estridentes, freadas de carro, helicópteros sobrevoando, explosões, e outros elementos de sonoplastia associados ao caos urbano eram usados frequentemente por Roberto Black, criando momentos impactantes. Esse recurso era particularmente eficiente em alguns momentos dos ensaios abertos de Dar não dói..., nos quais o DJ buscava instaurar, no espaço cênico, um “clima” de confusão e balbúrdia tal como deve ter ocorrido nas ruas do centro do Rio de Janeiro, quando a polícia entrava em cena para reprimir as manifestações de protesto durante o período mais violento do regime militar.

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Em outras improvisações, não diretamente ligadas a esse espetáculo, tais sinais sonoros eram particularmente eficientes quando acionados nos momentos em que emergia algum tipo de tensão urbana em cena, fosse um acidente de trânsito40 ou uma “batida policial” nos pontos de tráfico de drogas. De qualquer modo, esses “arquétipos sônicos” (SCHAFER, 2001), quando acionados, traziam para o presente da cena o sentimento ancestral de medo e ansiedade que um ruído de grande intensidade (assim como o som do trovão e dos raios) é capaz de provocar no imaginário do espectadorouvinte, estimulando a improvisação de cenas muito dinâmicas em que, não raro, adentravam crianças e moradores de rua.

40 Como nos ensaios de um trabalho desenvolvido pelo TNR em 2010 para o Ministério do Trabalho e Emprego, dentro da campanha “Segurança e Saúde do Trabalhador”, o qual foi construído totalmente a partir desses ensaios abertos e apresentado aos operários de grandes indústrias do Rio de Janeiro.


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3.10 A tipologia das músicas

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mobilização corporal no espaço, impulsionada pela sonoridade e os elementos constitutivos do universo musical – ritmos, melodias, cadências harmônicas, acentuações, gêneros, entre outros - faz com que as proposições estéticas do TNR estabeleçam um intenso diálogo com o universo da dança, uma vez que ambos o dançarino e o ator/performer (no caso específico deste grupo) - têm, na musicalidade vivenciada com o próprio corpo, o centro do processo de criação artística. Com o intuito de exemplificar o até aqui exposto, transcrevo a seguir um trecho de minha dissertação, onde é descrito o início de uma das oficinas: São os mambos, o chá-chá-chá, a rumba, gêneros latinos que estimulam o contato, a sensualidade, a mobilização da cintura pélvica e o jogo em dupla; a tarantella italiana que propõe uma maior coletivização, o dançar em roda e as palmas ritmadas; as polcas russas e polonesas e o can-can francês, que exigem grande vigor físico e já proporcionam a produção de imagens cênicas mais elaboradas; os dobrados circenses e a inevitável memória do picadeiro com suas artes milenares; as marchas militares que, como o próprio nome o diz, incentivam o andar marcado, o pisar forte, as formações coletivas em fileiras ou colunas retas, as imagens viris. Já as marchinhas carnavalescas têm o apelo da nossa cultura popular, cuja memória traz, diferentemente das formações retilíneas anteriores, o caminhar em círculo, muitas vezes proporcionando uma primeira imagem totalmente coletivizada do grupo (MOREIRA, 2007, p. 105-106). Depreende-se, desse tipo de abordagem metodológico-musical, que no grupo TNR a musicalidade do ator só se desenvolve corporalmente. Dito de outro modo, musicalidade e corporeidade são, nesse contexto, qualidades intimamente imbricadas, que não podem ser pensadas separadamente e, sim, como um só corpus. Será apresentada, a seguir, uma tentativa de análise de alguns dos elementos musicais que oferecem um possível caminho para a compreensão das relações entre o performer, a música e a cena, durante as improvisações teatrais realizadas pelo TNR em suas oficinas-espetáculos no Largo da Carioca. Em primeiro lugar, será submetido a exame o parâmetro das durações sonoras: o elemento ritmo. A principal razão dessa escolha (de ordem simultaneamente musical e corporal) é que as estruturas rítmicas ocidentais, em função de uma codificação essencialmente matemática e organizada segundo uma lógica de progressão geométrica (onde 1-2-4-816-32-64 constituem valores de referência), oferecem um modelo satisfatório, facilmente compreensível, de analogia com o movimento humano, fundamentalmente bipolar devido ao fato do homem ter-se desenvolvido biologicamente como uma criatura bípede. Isso leva à possibilidade de o movimento básico de locomoção do ser humano - o andar - ser utilizado, aqui, como um padrão fundamental de movimento corporal, sendo facilmente

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reconhecível nas estruturas rítmicas mais elementares e, com o seu desdobramento lógico, também nas mais complexas. Em minha dissertação de mestrado, fiz um breve comentário sobre a elaboração de uma possível tipologia das músicas utilizadas nas Oficinas de Despressurização do TNR, cujo início testemunhei em minhas observações: O ator e DJ Alessandro Perssan vem desenvolvendo, recentemente, uma tipologia das músicas nas Oficinas de Despressurização, a partir do objetivo a ser atingido em cada etapa. Como exemplos da fase exploratória anterior, ele cita valsas, boleros, chorinhos [...] São músicas, segundo Perssan, para “pernas” e “cintura” [...] [que] tornam-se, frequentemente, o ponto de partida para improvisações completamente diferentes, que surgem a cada encontro (MOREIRA, 2007, p. 105). Esse tipo de música, como a sua própria denominação informal o aponta, apresenta como principal característica a capacidade de induzir os participantes à movimentação corporal no espaço. Embora esta indução ocorra de acordo com as nuanças de cada gênero específico, o ponto em comum que se estabelece entre qualquer um destes estímulos está na sua relação intrínseca com a atividade física, com o fazer.

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A exigência corporal dessas músicas “para pernas e cintura” é intensa e estimula os atores (sem que haja a necessidade de orientações verbais prévias por parte de um coordenador) a diversos tipos de experimentações do próprio corpo no espaço físico, com os demais participantes e com os objetos cênicos disponíveis. Na prática, esta é uma constatação bastante óbvia – basta ficarmos na posição de observadores para verificá-la como um fato cotidiano, nas oficinas do TNR – mas, na busca de um maior entendimento da relação música-cena que aí acontece, e que leva inclusive às improvisações coletivas que o grupo desenvolveu ao longo de sua existência, é preciso aprofundar as seguintes questões, na tentativa de respondê-las: como as estruturas musicais (rítmicas, melódicas, harmônicas) podem levar o ator, ou um grupo de atores, a certos movimentos corporais? Poderia a música, por si mesma, constituir um agente detonador de imagens cênicas? Ou, levando essa indagação ainda mais longe: a simples audição de gêneros musicais diversos, como samba, frevo, rock etc induziria, no ator, a criação de personagens e suas respectivas ações/partituras de movimentos, levando-o à cena propriamente dita? Em busca dessas indagações, encontramos pistas positivas na própria estrutura rítmica dos gêneros musicais mais utilizados nos prólogos dos ensaios abertos e espetáculos do TNR – marchas, marchinhas carnavalescas, choros – cuja principal característica, verificada empiricamente, é a capacidade de induzir o ouvinte à movimentação corporal e o deslocamento no espaço. A exigência corporal desses ritmos “para pernas e cintura” – de acordo com a terminologia adotada pelos DJs do grupo - é intensa e estimula atores e nãoatores a diversos tipos de experimentações do próprio corpo no espaço físico, interagindo com os outros participantes, com os objetos cênicos que o grupo deixa à disposição à volta do espaço cênico e com elementos fixos do espaço circundante (postes, calçadas, escadarias, bancos de praça), em movimentos e evoluções que tendem a ocupar todo o espaço cênico.


Capítulo 3 - Paisagem

Sonora

3.10.1 O compasso binário simples: a marcha militar

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m dos gêneros musicais mais utilizados nas oficinas e espetáculos do TNR é o da marcha militar. Há vários exemplos, oriundos da cultura estadunidense, que foram popularizados em nosso país devido ao seu uso corrente em filmes americanos, abundantes nos cinemas e emissoras de televisão. Durante as oficinas-espetáculos realizadas pelo TNR no Largo da Carioca, este gênero musical foi grandemente explorado, pois estabelecia uma relação direta e inequívoca com o tema do militarismo, central em Dar Não Dói, o que dói é resistir. Nos ensaios realizados durante a pesquisa, eram abundantes as improvisações em que os atores, caracterizados com peças de uniformes militares, evoluíam em marcha pelo espaço cênico enquanto o apresentador narrava os acontecimentos verídicos da época do golpe e seus desdobramentos, ao som de hinos e canções das Forças Armadas, sobretudo do Exército Brasileiro. Em contrapartida, o Hino do Movimento Internacional Socialista era utilizado em vários outros momentos, colocando em cena uma potência coletivizada, também direcionada para a luta, ainda que em oposição à anterior. A primeira cena de Dar não dói..., por exemplo, tinha início justamente com uma marcha militar – o Hino do Exército -, na qual entravam em cena os atores marchando garbosamente e empunhando armas, enquanto eram saudados pelo “povo” – as atrizes do elenco, carregando bonecos de bebês no colo. Simultaneamente, o DJ fazia soar uma sirene de viatura policial, anunciando subliminarmente o clima de repressão que em breve irá se instalar na cena. Logo em seguida, após a saída do “batalhão” e uma breve narração de Haddad sobre os movimentos populares da época, adentrava o espaço cênico a multidão de trabalhadores e camponeses que participavam das lutas e movimentos sociais anteriores ao golpe, caminhando (e não, marchando) enquanto entoavam o hino socialista, estabelecendo um contraponto visual e auditivo entre os dois setores. Embora situados em posições opostas, os dois coletivos – soldados e trabalhadores -comunicavam uma inequívoca intenção de lutar, explicitada através dos elementos musicais colocados em cena. A estrutura rítmica que corresponde a esse gênero musical é a do compasso binário simples, dado pelas representações numéricas mais usuais: 2/2, 2/4 e 2/841. A relação que estas “fórmulas” musicais estabelecem com o movimento corporal é perceptível na forma mais básica de locomoção do ser humano: o andar. Sendo, como já foi comentado anteriormente, um ser bípede, o homem caminha para frente deslocando alternadamente os seus dois membros inferiores: enquanto uma 41 Por convenção da notação musical ocidental, o termo superior indica o número de tempos do compasso e o inferior, a duração de cada tempo. O compasso mais utilizado no binário simples é 2/4, ou seja, cada compasso tem dois tempos (e cada um desses tempos tem a duração de uma semínima, figura que corresponde ao número 4).

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perna apoia todo o peso do corpo, a outra se eleva levemente flexionada pelo joelho, estendendo-se no momento em que o calcanhar toca o chão, pouco mais à frente, iniciando uma pressão que “puxa” o mesmo para trás à medida que o pé avança. Nesse exato momento, a perna de apoio que ficara para trás perde o contato com o solo e inicia o mesmo processo de impulso do corpo à frente, enquanto a outra realiza agora a função de apoio. Assim, alternando sucessivamente as funções de apoio e impulso para frente e “puxando” o solo para si, o homem executa o movimento fundamental que o leva, definitivamente, a relacionar-se com o espaço físico e a conquistar sua autonomia no mundo circundante - a marcha. Não por acaso, o gênero musical onde uma estrutura rítmica binária aparece em sua forma mais simples, é conhecido pelo mesmo nome. Enquanto música, a “marcha” assume, com o compasso binário simples, a representação gráfica/musical desse movimento corporal primário, cuja dinâmica é traduzida pela sucessão de dois momentos distintos ou “tempos”: o primeiro, mais forte, que lhe dá início e tem a função de apoio; e o segundo, mais fraco, que dá continuidade ao primeiro por meio de um novo impulso instaurando, na própria terminologia musical, esses dois movimentos complementares. Assim, na marcha musical o ouvinte é instigado ritmicamente à marcha motora; é conduzido subliminarmente ao movimento de tocar o solo sucessivamente com um pé no primeiro “tempo” (o de apoio) e o outro no segundo (o de impulso), à medida que o ouvido envia o estímulo sonoro para o cérebro e este identifica, aí, uma sequência sonora lógica que pode ser vivenciada prazerosamente pelo corpo ao exercer o poder da locomoção. O resultado, por assim dizer, natural desse estímulo binário é deste modo, o deslocamento da pessoa pelo espaço, uma vez que o corpo tende a “responder”, a cada “tempo” musical, com um passo para frente.

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Nem todos os deslocamentos “binários” são, entretanto, exatamente iguais. A sua qualidade pode variar imensamente, de acordo com outros aspectos presentes no estímulo musical além de sua estrutura rítmica básica e que, embora geralmente passem despercebidos – como a intensidade do som, os timbres instrumentais e o próprio andamento da música – fornecem importantes informações ao cérebro humano, a despeito do conhecimento, ou desconhecimento intelectual sobre música, por parte do ouvinte. O caso mais claro dessa situação é dado pelo primeiro exemplo, já citado: o compasso binário simples da marcha militar. A sua origem perde-se no tempo; contudo, é possível perceber que o gênero se encontra presente ainda hoje nos hinos nacionais, em alguns ritos cristãos, nas exortações coletivas a times esportivos e outras agremiações reunidas em torno de uma identidade grupal a ser conquistada ou reafirmada por meio de luta, seja a devoção religiosa, uma competição lúdica ou a guerra propriamente dita. Há marchas militares presentes em cortejos dramáticos de várias manifestações da cultura popular brasileira, trazidas pelos colonizadores europeus como, por exemplo, as festividades da Cavalhada na região Centro-Oeste, onde são revividas simbolicamente as lutas que mouros e cristãos travaram no período das Cruzadas. Na Antiguidade, músicos à frente dos exércitos estimulavam os guerreiros com ritmos enérgicos, de estrutura binária, produzidos por meio de instrumentos de percussão e


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sopro, cujos timbres penetrantes continham, em si, a marca sonora de sua identidade cultural. Sua função, evidentemente, era disseminar coragem e determinação entre os soldados (particularmente os das primeiras fileiras, nos batalhões de “artilharia”), que avançavam resolutamente a pé em direção ao inimigo, no ritmo fortemente marcado por tambores. A ocupação do novo território – o espaço físico - era a consequência mais imediata da vitória de um avanço decidido e bem sucedido sobre as tropas inimigas. A música, desde tempos remotos, proporcionou aos exércitos conquistadores um poderoso símbolo de seu poder territorial, como nos mostra Murray Schafer em suas pesquisas sobre a paisagem sonora nos tempos de guerra: Os exércitos condecorados para a batalha ofereciam um espetáculo visual, mas a batalha em si era acústica. Ao barulho dos metais que se entrechocavam cada exército acrescentava seus gritos de guerra e toques de tambor no intuito de amedrontar o inimigo. O barulho era um estratagema militar deliberado, defendido pelos antigos generais (SCHAFER, 2001, p. 80). Assim, não é estranho que, durante as improvisações do TNR, em suas oficinasespetáculos, desde o momento em que os primeiros sons de uma marcha militar são discriminados como tal pelos participantes – timbres metálicos, percussões que executam rufos e, principalmente, a estrutura rítmica do compasso binário simples – surge, quase que imediatamente, o movimento corporal da marcha, bastante acentuado em cada “tempo” musical. Este se inicia com um ou dois atores e rapidamente se transforma num coletivo organizado, passando a evoluir em linha reta, avançando decididamente sobre o espaço em fileiras e/ou colunas. O olhar é direto, altivo ou até mesmo “duro”. A expressão facial é geralmente muito séria, mesmo que os atores joguem com as possibilidades cômicas da improvisação (colocando elementos cênicos contraditórios, como capacete, arma e nariz de palhaço, por exemplo). Algumas vezes, essa primeira formação geométrica se desdobra em improvisações cênicas muito elaboradas: facções inimigas enfrentam-se, surgem cenas de sequestros, tiroteios, resgates heróicos, mortes violentas, fugas impressionantes, derrotas e vitórias coletivas. Nesses improvisos, os performers costumam buscar os símbolos nacionais entre os materiais cênicos disponíveis, como bandeiras do Brasil, faixas de cor verde-amarela, camisetas da “seleção canarinho”, além de objetos que possam constituir signos visuais relacionados ao tema da guerra, como capacetes e uniformes de militares, armas, brasões e outros, acrescentando elementos diversos que compõem imagens cênicas de grande complexidade. Como foi comentado há pouco, nos ensaios abertos de Dar não dói... os atores do TNR exploravam essas possibilidades ao máximo. Em alguns dias, as cenas que envolviam desfiles militares eram realizadas a partir de um registro mais realista de caracterização e ação cênica; noutros, os atores se superavam em termos de improvisação, “carnavalizando” esses personagens ao misturar adereços coloridos, femininos e carnavalescos aos figurinos militares ou, ainda, criando formas não convencionais de deslocamento pelo espaço, subvertendo os rígidos códigos gestuais da marcha militar. Nessas ocasiões, os atores executavam, sobretudo, coreografias de can-can, revelando com exagero proposital o

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deboche dos militares sobre a população brasileira, em sua fantasia de onipotência. Quando isto acontecia, estabelecia-se uma complexa polifonia de sentidos da cena, produzida pelo cruzamento paradoxal entre referências visuais e sonoras. A sonoridade dos instrumentos musicais presentes numa Banda Marcial também é marcadamente “penetrante”, como o metal de armas cortantes (sopros, como o das cornetas e trompetes) ou uma explosão, sugerida pelos pratos e tambores; as percussões mais agudas, como as caixas-de-guerra (como o próprio nome já o diz) que produzem o rufo, técnica característica do suspense e perigo, também adotada pelas bandas circenses42. E as percussões graves como o bumbo, que evocam remotamente sons amedrontadores como o do trovão ou de passos pesados avançando perigosamente em nossa direção. Desse modo, na marcha militar o conteúdo da ação física - ligado ao ato de invadir, penetrar, ocupar um espaço, avançar e afirmar uma identidade - permanece como fundo subliminar, mobilizado por esse gênero musical que traz ontologicamente, em sua estrutura rítmico-sonora, o impulso humano natural de romper os próprios limites e impor a sua presença no espaço.

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42 Cabe lembrar que, a despeito da natureza lúdica assumida pela arte circense nos nossos dias, desde os seus primórdios na Antiguidade o circo foi uma invenção romana instituída para demonstrar o poderio militar do Império Romano sobre as demais civilizações do mundo conhecido até então, e famoso pela crueldade dos espetáculos de sangue e ação nele apresentados; a música circense é também, um tipo de marcha militar: o dobrado.


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3.10. 2 A marchinha carnavalesca

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marchinha carnavalesca é um exemplo que mostra como a mesma estrutura musical - o compasso binário simples – pode levar a outras dinâmicas corporais e espaciais. O impulso de avançar para frente ainda está presente; contudo, não se trata, aqui, de um avanço militar, em que a entrada agressiva de um exército em território alheio se faz pela força. Trata-se também de uma ocupação, porém a ocupação pacífica de um coletivo organizado cujo objetivo é seduzir os habitantes desse espaço e não subjugá-los; a invasão se dá pela alegria e não pelo terror. O império que tal exército pretende instalar é o do Carnaval, por isso os meios utilizados (estando a música, em primeiro lugar) são os de uma “visão carnavalesca de mundo” (BAKHTIN, 2002), no sentido do desejo coletivo de instauração de uma nova ordem social, onde a inversão dos valores e regras cotidianas confere grande liberdade aos seus participantes. A primeira estrofe da primeira marcha carnavalesca43 do Brasil, composta no Carnaval de 1899 por Chiquinha Gonzaga ordena, amorosa e imperativamente: Ó abre alas, que eu quero passar! Como, musicalmente, essa intenção sedutoramente invasora se revela? O impulso para frente, dado pela estrutura rítmica binária, é parcialmente freado, inicialmente pelo andamento de grande parte das marchas carnavalescas – a marcha rancho, em particular - que permite, ao corpo todo, oscilar lateralmente a cada tempo do compasso, “quebrando as arestas” de um movimento que seria em princípio firme e retilíneo, proporcionando à locomoção uma certa “ginga” especial. Assim, a marcha carnavalesca permite que a penetração no espaço seja realizada não em linha reta, mas de modo sinuoso, convidativo e envolvente. Estrela D’Alva, Bandeira branca, Pierrô apaixonado, Pirata da perna-de-pau, Índio quer apito, Máscara negra, Cidade maravilhosa, Marinheiro só, Quem me ensinou a nadar, Jardineira, Alalaô, Mamãe eu quero, Touradas de Madrid, Cabeleira do Zezé, Turma do funil, Mulata Bossa Nova, Me dá um dinheiro aí, Chiquita Bacana, além de vários exemplos do cancioneiro popular entoados ao ritmo de marcha, conduzem musicalmente os atores do TNR pelas ruas da cidade. Muitas vezes, era desse modo que se iniciava uma oficina-espetáculo; dançando e cantando, os atores iam desfilando o seu cortejo de sonoridades e cores, seduzindo os pedestres e absorvendo as pessoas em seu caminho, no percurso entre a Casa do Tá Na Rua e o Largo da Carioca. Se, para o coletivo, a proposta é transformar o espaço da cidade, é pela musicalidade que essa transformação tem início; a música é o primeiro elemento a “invadir” a cidade uma vez que esta pode ser ouvida de longe, antes mesmo que os corpos dos atores em movimento sejam avistados. Um cortejo festivo, que se aproxima aos poucos, carnavaliza a cidade em sua passagem; ninguém lhe é indiferente, pois chega com ele toda uma constelação de imagens sonoras, plenas de sentidos, que cada um preserva em sua memória. Por onde passa, o TNR instaura a festa da praça no imaginário do cidadão, muitas vezes arrastando-o consigo em seu trajeto. Brincando, a marchinha carnavalesca busca atrair para dentro do coletivo aquele que ainda se encontra “fora” do cortejo de foliões; o seu passo típico não é acentuado nem afirmativo, mas arrastado, quase vacilante; se o caminhar é para frente, o olhar do caminhante, não o é 43 Mais especificamente, uma marcha-rancho.

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necessariamente - a cabeça pode oscilar de um lado para o outro, conforme o apoio e o impulso se deslocam. Esse movimento sutil permite ao participante estabelecer contato visual com os participantes-ouvintes, seja alguém do próprio cortejo ou um espectador – algo impensável dentro da formação militar, onde a comunicação com o outro é impedida, uma vez que nesta o olhar de cada um está fixado diretamente à frente. Aqui, porém, a expressão facial invariavelmente irradia simpatia, o rosto se torna discreta ou francamente sorridente, buscando a adesão do outro. O conteúdo do texto musicado – ou “letra” – é carregado de lirismo, sugerindo o devaneio romântico que se traduz corporalmente por movimentos mais leves e suaves, ou ainda é impregnado de humor e malícia. A dinâmica própria do cortejo encontra nas marchinhas de carnaval o seu principal gênero musical porque estas são portadoras de elementos carnavalizantes; além das letras satíricas, impregnadas de duplo sentido, repletas de crítica moral e social, ou que evocam simplesmente o prazer da brincadeira e da fantasia que o reinado de Momo instaura na cidade, a musicalidade da marchinha já é, em si, uma quebra das estruturas métricas que organizam retilineamente o mundo, o tempo e o espaço. Provavelmente é esta a razão pela qual os performers, sob o estímulo de marchas carnavalescas, tendem a desfazer qualquer formação espacial rígida e a caminhar de maneira flutuante pelo espaço apesar de o coletivo, como um todo, evoluir para frente. Na rua, os atoresmúsicos do TNR, atuando como que numa Banda Marcial, avançam à frente do grupo, executando instrumentos de sonoridade penetrante e “abrindo caminho” para o grupo, tal como os músicos dos antigos exércitos fizeram. Ou, ainda, forma-se um círculo que tende a girar ininterruptamente ao redor de um eixo central, como nos bailes carnavalescos tradicionais, realizados nos salões de agremiações e clubes.

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Talvez estas razões expliquem porque a marcha carnavalesca é o gênero musical preferencial do TNR em seus cortejos de rua, sejam estes realizados durante todo o ano ou no período de Carnaval. É a inversão carnavalesca o que ela propõe, com a sua tomada do espaço da cidade. Afinal, o Rei Momo é quem reina durante o Carnaval. Porém, longe de representar apenas uma brincadeira “inocente”, a intenção invasora do teatro de rua se faz clara na própria estrutura rítmica “quebrada” da marcha carnavalesca, símbolo musical de uma atuação essencialmente micropolítica, no dizer de Félix Guattari (2010), que Amir Haddad e o TNR vêm propondo em nosso país há três décadas. Numa das mais belas apresentações realizadas no Largo da Carioca, o TNR não se limitou a ocupar o anfiteatro que é costumeiramente utilizado como espaço cênico; foi em cortejo, ao som de marchinhas, para a grande área aberta em frente à Estação do Metrô Carioca e instaurou, ali, a praça em festa. Nesse dia houve grande uma participação do público, pois o grupo apresentou várias cenas com temas alusivos ao trabalhador, como parte de uma programação voltada para o Dia do Trabalho44. Durante o prólogo, momento em que os atores evoluíam pelo espaço fazendo o seu “aquecimento” afetivo e estabelecendo os primeiros contatos com um público bastante receptivo, um rapaz, cadeirante, adentrou a roda e começou a dançar, girando a cadeira sobre as rodas com grande habilidade. Participou de todo o espetáculo, principalmente nos momentos de intervalo entre uma cena e outra, quando as marchas retomavam o espaço sonoro da praça e ele podia demonstrar a sua alegria e desenvoltura, estimulando outras pessoas do grande público que se formou em volta, a participarem com ele.

44 O registro audiovisual desta apresentação, realizada em 14/04/2010, foi transformada em um vídeo promocional da FUNDACENTRO, entidade do Ministério do Trabalho e Emprego que atua na pesquisa tecnológica e prevenção de acidentes no trabalho.


Capítulo 3 - Paisagem

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3.10.3 O choro brasileiro

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choro é outro gênero musical bastante empregado nas oficinas e apresentações do TNR porque, principalmente nos momentos iniciais do prólogo, oferece um estímulo basicamente “dançante” capaz de mobilizar todo o corpo daqueles que se permitem vivenciá-lo intensamente. Ainda mais sensual que a marcha carnavalesca, e já muito distante das conotações afirmativas evocadas pela marcha militar, o chorinho é mais propício à relação dual, de modo que sob esse estímulo sonoro são comuns as improvisações a dois, com o acordo visual levando a um contato físico mais estreito e frequentemente à dança em pares. Não há, nesse ritmo tão genuinamente brasileiro45, a mesma tendência de locomoção para frente que os exemplos anteriores; a natureza de seu movimento é mais complexa, sugerindo outras possibilidades de deslocamento no espaço e exigindo um envolvimento maior de outras partes do corpo, principalmente aquelas mais diretamente ligadas ao centro de gravidade do corpo – como quadris e pelve. A linearidade rítmica do compasso binário simples parece, aqui, querer ocultar-se sob uma enxurrada de alterações em sua métrica original, e a relação apoio-impulso já não oferece a mesma segurança aos pés. Como se dá, musicalmente, tamanha transformação no caráter de uma mesma estrutura rítmica? Como já foi dito antes, o compasso binário simples, em sua conformação básica, prevê uma estrutura em dois “tempos”: um apoia e o outro impulsiona o ritmo em direção a um novo compasso à frente, e assim sucessivamente até o final da música. Nas marchas, cada tempo é claramente acentuado por meio de um golpe em um instrumento percussivo - o bumbo, por exemplo. No cotidiano da música, diz-se que essa batida é dada “na cabeça do tempo”. Ao se deslocar sob o estímulo rítmico de uma marcha, cada pé toca o solo sucessivamente, também “na cabeça” de cada tempo. Subdivisões rítmicas de cada um dos tempos podem ser realizadas através de outros instrumentos mais agudos (os pratos, a caixa-clara, os sopros executando uma melodia), enriquecendo o conjunto sonoro em sua totalidade; mas aquela base binária permanece presente toda a duração da música, como um esquema sonoro subliminar. Cabe ressaltar aqui, o importante papel das subdivisões rítmicas em cada um dos tempos dos compassos que formam a partitura musical. O tipo de subdivisão rítmica proporcionada pelos demais instrumentos é, nas marchas cívicas, de uma exatidão rigorosamente matemática própria da música de origem europeia, e cujo efeito final é o de reforço da estrutura. Toda a música concorre, portanto, para um efeito de peso, que numa oficina ou espetáculo do TNR muitas vezes se manifesta na força com que os participantes batem com os pés no chão ou marcam, com gestos de braços, cada “tempo” musical de uma marcha militar46. O mesmo já não acontece no choro brasileiro, onde o efeito criado pelas subdivisões rítmicas não reforça a estrutura binária, mas ao contrário, a desestabiliza! Isto ocorre em 45 Segundo a historiografia da música popular brasileira, o choro é uma criação nacional do século XIX, resultante da fusão entre elementos da música portuguesa e do ritmo africano (CÁURIO, 1989). 46 Nas marchas carnavalescas, o peso dos dois tempos marcados pelos pés já sofre um abrandamento, provavelmente pela influência da cultura africana sobre o ritmo binário de origem europeia.

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função da abundância de contratempos nesse gênero, os quais são criados pelos demais instrumentos ou pelo próprio canto da melodia. Esse elemento musical caracteriza-se por retirar estrategicamente a batida na “cabeça do tempo”, colocando uma pausa – ou seja, um silêncio – em seu lugar. Embora sutil, esse procedimento gera um inevitável deslocamento, que será ainda maior caso ocorra justamente nos tempos de apoio da música (ou seja, no primeiro tempo de cada compasso ou, ainda, na parte mais forte das subdivisões internas do tempo). O contratempo – como o nome o diz – opõe-se ao “tempo” que subtraiu; desse modo, é sobre a nota musical seguinte que recairá o peso do corpo em movimento - e não onde se poderia esperar, conforme uma sequência rítmica lógica. Praticamente “sem o chão” – que foi retirado momentaneamente pela ação do contratempo – o corpo terá, então, que se adequar subitamente à nova ordem instaurada e apoiar cada pé noutro momento dos compassos, ou então apoiá-los nos tempos “virtuais” oscilando lateralmente, com um prolongamento do movimento para as pernas e quadris, a fim de compensar o desequilíbrio criado pelos contratempos, manter sob controle o centro de gravidade e prosseguir um diálogo corporal fluente com a música. Assim, uma sequência de contratempos, encadeados, pode levar o corpo a romper a linearidade do movimento da marcha para frente, instaurando a necessidade de restabelecer continuamente o equilíbrio corporal global em meio a vários desequilíbrios parciais e gerando, desse modo, um equilíbrio dinâmico que é, em suma, característico das danças afro-brasileiras.

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Outro caso de deslocamento dos pontos de apoio na música, que se assemelha ao contratempo em termos do seu efeito sobre o corpo é o da síncope, elemento musical que se tornou abundante na música popular brasileira pela influência da cultura africana. Aqui também se verifica um notável deslocamento de acentos rítmicos, que provoca um efeito na movimentação corporal. Mas, se no primeiro caso existe um silêncio que rompe momentaneamente uma sequência lógica de apoios e impulsos, aqui esse efeito é causado não por uma pausa musical, mas por um som que se prolonga “além do previsto” nessa lógica sequencial. Musicalmente falando, pode-se dizer que se uma nota musical cujo som iniciou num tempo de impulso, é projetada para além de sua duração original e avança sobre o tempo de outra situada num tempo de apoio, estará configurando uma síncope, termo latino (syncope) que, segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa se relaciona com uma “ação de cortar” ou um colapso circulatório47. Assim, pela ocorrência de síncopes e contratempos em abundância nesses e outros exemplos pontuais da nossa música popular (frevo, samba, xote e outros gêneros), é possível perceber a existência de uma espécie peculiar de subjetividade dentro da própria musicalidade brasileira, que se caracteriza pela não-linearidade rítmica, por avanços que terminam em recuos repentinos, circunvoluções, hesitações e rodeios que se revelam principalmente nas danças regionais e fazem parte daquilo que o imaginário social nomeou como ginga. Presente também na capoeira, modalidade de dança-luta criada pelos africanos escravizados no Brasil, essa ginga é a essência da micropolítica que o TNR pratica em sua festiva ocupação da cidade, pois a resistência que propõe – aos processos mercadológicos, à homogeneização do pensamento e das formas de viver - não se dá de modo direto e explícito. Trata-se de um enfrentamento pelo desarmamento: desviando dos padrões préestabelecidos, dos espaços previamente demarcados, das posições rigidamente definidas, o TNR não penetra na cidade; antes, se infiltra. 47 Analogias com a função circulatória do corpo humano estão presentes em vários termos musicais ligados a uma qualidade essencialmente rítmica como, por exemplo, pulso, pulsação e síncope.


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3.11 A praça sonora do TNR Finalizo o capítulo com uma pergunta: Como o TNR constrói (ou reconstrói) a praça no imaginário do cidadão? A resposta mais provável parece estar contida na própria prática teatral que o TNR instaurou no Largo da Carioca. Com a sede pública, houve uma ocupação sistemática do espaço público da cidade. Em consequência disso, deu-se um contato prolongado e constante com o centro da cidade do Rio de Janeiro e as pessoas que ali transitam, trabalham e vivem, possibilitando que as reflexões propostas por Amir Haddad em suas narrações e comentários não se desvanecessem ao término de cada atividade ali realizada. Ao contrário, as oficinas-espetáculos proporcionaram aos espectadores ocasionais experiências muito importantes que merecem ser mencionadas. Por exemplo, a de um senhor, morador de rua, que sempre assistia aos trabalhos. Se, no período inicial ele se limitava a assistir, em silêncio, da arquibancada de pedras que formam o anfiteatro, com o tempo e a sua assiduidade essa relação se transformou completamente. De espectador eventual, seu interesse levou esse senhor a tornar-se um verdadeiro “entendido” na linguagem teatral do grupo; os atores contam que depois das atividades do dia, quando a oficina já estava encerrada e se fazia a “desprodução”, ou seja, a desmontagem do equipamento de som e guarda dos materiais cênicos, ele se dirigia diretamente a alguém do grupo ou mesmo a Amir Haddad para comentar o trabalho daquele dia, emitindo avaliações que eram sempre ouvidas e respeitadas pela sua pertinência. Além disso, em certos dias, ao perceber a confusão de algum espectador diante da interrupção de uma cena (em geral, quando se tratava de um dia de ensaio de Dar não dói, o que dói é resistir), explicava ao “iniciante” o que estava acontecendo: “Agora, ele [Amir] vai reunir todo mundo pra dar bronca, porque eles estão fazendo errado”, ou “É assim mesmo, de vez em quando eles param para combinar o que vai acontecer depois”. Ou, ainda, assumindo ares de crítico: “Hoje não foi muito bom, não... você precisava ver na semana passada, foi muito linda essa parte”48. Depois de anos como espectador assíduo, veio a falecer, segundo outros moradores de rua que também pernoitavam nos arredores do anfiteatro do Largo da Carioca e assistiam às atividades do TNR. Algum tempo depois, um neto seu (que ainda criança conhecera o trabalho do coletivo no centro da cidade) apareceu na Casa do Tá Na Rua, solicitando permissão a Amir Haddad para participar das oficinas teatrais regulares que continuavam a ser realizadas nesse local. Assim foi feito até que, do mesmo modo que tantos outros participantes, afastou-se sem dar maiores explicações. O que se evidencia, por meio deste exemplo, é a potência desse trabalho teatral sobre o espectador da rua, cujos efeitos jamais são totalmente previsíveis. Outro aspecto determinante para a instauração da praça enquanto espaço de 48 Relatos de Alessandro Perssan, ator e atual DJ do TNR.

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congraçamento e convívio estava na dramaturgia musical da oficina, onde a produção ininterrupta de imagens cênicas a partir de músicas criava uma situação propícia à participação ativa do espectador-ouvinte, levando-o também à condição de atorcidadão. Essa construção dramatúrgica não se estabelecia apenas pelo fato de o grupo “usar música” na rua, invadindo sonoramente o espaço da cidade. Mas, também, pelas imagens sonoras que a dinâmica musical suscitava no afeto e no imaginário do cidadão, acionando o seu inventário de sinais, marcas e arquétipos sônicos, de memórias, de lugares, de tempos passados e futuros, como meio de refletir sobre o mundo e tentar descobrir, afinal, qual é a cidade que se deseja para viver.

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Considerações Finais

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Considerações Finais

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sta pesquisa partiu da hipótese de que, no âmbito do teatro, a música é um fenômeno teatral, além de estritamente musical. A dicotomia entre linguagem teatral e linguagem musical, inexistente nas origens primitivas do teatro ocidental, foi resultante do desenvolvimento de um pensamento lógico-abstrato que se iniciou na Grécia Clássica, acompanhou todo decurso da história no ocidente e atingiu seu ápice no século XIX, separando em compartimentos estanques praticamente todos os campos do conhecimento, inclusive a arte. A partir do século XX, entretanto, essa forma de pensamento será fortemente questionada por meio de experimentações inovadoras que irão contribuir para levar a cabo o desafio de demolir as fronteiras construídas até então entre os campos artísticos. A partir do trabalho pioneiro realizado por grandes encenadores teatrais - do “didatismo” russo de Meyerhold ao “malandrismo” brasileiro de Amir Haddad - evidenciase o importante papel que a música desempenha no teatro, atuando decisivamente na busca e delimitação de novos objetivos estéticos, tanto no que diz respeito à formação do ator e aos processos de criação, quanto à construção e recepção do espetáculo. Este trabalho se propôs então, a investigar as possíveis dimensões da música presentes no teatro, em busca de subsídios para a comprovação da hipótese. Verificouse, em primeiro lugar, a necessidade de uma maior clareza quanto à natureza da “música no teatro”, constatando-se que o conceito de “música”, quando aplicado a esse âmbito, tende a reforçar uma concepção cartesiana da arte por sugerir que se está falando de uma determinada obra (ou obras) simplesmente inserida(s) em um trabalho teatral. Por isso, propus considerar a música (no teatro) enquanto musicalidade, termo que permite adotar uma perspectiva mais abrangente do problema. Meu contato pessoal e profissional com o universo do teatro de rua levou-me a considerar diferentes esferas da musicalidade, não obstante interligadas: a musicalidade do ator; a musicalidade da cena; e, mais especificamente, a musicalidade do espetáculo teatral em espaços abertos da cidade. No desenvolvimento da proposta, a pesquisa estabeleceu, como pontos de partida para abordar cada uma dessas esferas distintas, três matrizes conceituais oriundas do universo musical: mousiké, escuta e paisagem sonora. A musicalidade do ator foi investigada a partir do espetáculo de rua Mauro-LauroPaulo, o Homem-Banda. Verificou-se que a natureza simultaneamente teatral e musical dessa performance-solo se encarregou de pulverizar os limites entre o ator e o músico, aproximando-se da mousiké. Se, por um lado, a apresentação exigia do performer um alto nível técnico para a execução de atividades especificamente musicais, como cantar e tocar diversos instrumentos musicais em cena, por outro, nenhuma destas ações se realizava sem que a teatralidade fosse também colocada em jogo. Dito de outro modo, cada ação musical do espetáculo estava ali investida de dramaticidade, diferentemente do que ocorre, por exemplo, nas apresentações de rua em que o artista exibe as suas qualidades como instrumentista, pondo em cena a “música” propriamente dita - e não o músico -, agradecendo no final de sua performance musical o aplauso e o reconhecimento

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do público, evidenciando que é, nestes casos, somente um veículo da chamada “arte dos sons”. Mas, o que se verificou em Homem-Banda foi a presença em cena de um ator/ performer-músico que domina diferentes linguagens estéticas, narra histórias, pessoais e/ou ficcionais e, sobretudo, se relaciona com o público por meio de uma complexa musicalidade em que gestualidade corporal, execução instrumental e atuação cênica se apresentam perfeitamente integradas, numa situação de representação polifônica que concretiza a mousiké no contexto do teatro de rua. Ser Tão ser: narrativas da outra margem foi o espetáculo de teatro de rua que permitiu à pesquisa demonstrar como o emprego de procedimentos musicais diversificados pode levar à amplificação dos sentidos da cena, além da exploração criativa de obras musicais que possam integrar um espetáculo. No caso estudado, houve uma intenção de utilizar a música – sob a forma de canções - como recurso narrativo ligado a uma concepção espetacular épica; mas, também, como elemento co-construtor de uma dramaturgia musical que desencadeava múltiplos sentidos por meio de suas imagens sonoras, isto é, pelas associações mnemônicas, afetivas, culturais e sinestésicas que era capaz de suscitar no imaginário do espectador-ouvinte. Pôde-se, assim, constatar que a musicalidade de um espetáculo se configura conforme as atribuições fundamentais que a música assume na estética particular de um grupo teatral.

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A musicalidade de um espetáculo é um poderoso meio de interação entre a cena e o público, pois a natureza transicional da música (WINNICOTT, 1988) estabelece um forte canal de comunicação com o espectador-ouvinte, antes ou mesmo independentemente de uma compreensão propriamente intelectual daquilo que ele vê em cena. Dessa forma, quando um espetáculo teatral adentra o espaço urbano por meio de sua musicalidade, o espectador eventual do espaço público da rua é atraído para ele com grande intensidade, porque o impacto das imagens sonoras veiculadas pelos seus eventos sonoros - um ritmo que é percutido, vozes que entoam uma canção ou uma sonoplastia que “colore” uma cena - cria subitamente, em meio ao emaranhado indistinto de sons fundamentais da cidade (o vozerio dos pedestres, os sons do trânsito etc) cadeias significantes de objetos sonoros que se destacam sobre a paisagem sonora cotidiana, contribuindo para a construção de nexos afetivos com o espetáculo. É nesse sentido que as oficinas-espetáculos do grupo TNR no Largo da Carioca constituíram, para vários usuários desse espaço público, uma experiência de grande importância em suas vidas. Ao penetrar no espaço da cidade, a musicalidade das atividades teatrais, ali desenvolvidas pelo coletivo, contribuiu, durante anos, para reinstaurar a praça (GASTAL, 2006), carnavalizada, no imaginário do cidadão carioca, propondo outros modos de relacionamento com a cidade, criando novos vínculos onde este descobriu ter vez e voz. O percurso da investigação permitiu verificar os seguintes aspectos: No espaço aberto da rua, a música que chega de longe por um ator-músico solitário ou um cortejo de atores cantando e dançando, comunica algo às pessoas que transitam dentro do campo sonoro do espetáculo, anunciando a presença de algo novo na paisagem sonora da cidade. Antes mesmo de a visão identificar esse estranho elemento sonoro, o espaço urbano já é modificado pela música que interfere


Considerações Finais

na rotina do transeunte, convidando-o a desacelerar o passo, alterar o seu trajeto e até mesmo, a parar. A expectativa que a musicalidade instaura no espaço sonoro da cidade prepara o cidadão comum para converter-se, ao menos temporariamente, em “público de arte” (TURLE, 2011) no momento em que a cidade torna-se “palco” de um acontecimento cênico. Não por acaso, quase todo evento espetacular na rua é precedido de música, como um prólogo que concorre para a receptividade, a atenção, o estado psicológico do público; em outras palavras, para garantir o “clima” favorável ao evento artístico. A diferença, contudo, entre essa situação mais geral e um espetáculo teatral de rua que elege um cortejo de atores-músicos como procedimento de entrada no espaço da cidade, é que neste, o “prólogo” musical faz parte do próprio evento artístico. A música não está “antes”, nem “dentro” do espetáculo; a música, teatralizada pelos performers, é o próprio espetáculo. Uma vez estabelecido o lugar do espetáculo, a sua musicalidade instaura ali um campo estético, como uma fonte sonora para a qual irá convergir a escuta daqueles que por ali passarem. A musicalidade de um espetáculo em espaços abertos propicia “capturar”, de modo particularmente eficiente, a atenção de um espectador-ouvinte ocasional como o da rua, porque produz sinais e imagens sonoras que constituem um apelo muito forte para esse espectador, destacando-se das sonoridades habituais do espaço urbano para as quais ele se encontra “anestesiado”. Além disso, a música cumpre na rua um papel de elemento facilitador da relação cena-público, por propor relações mais informais e participativas, sobretudo em cenas onde a música pode ser vivenciada coletivamente. Em todos os trabalhos teatrais estudados, as atividades musicais eram realizadas de acordo com uma função especificamente teatral, demonstrando os vínculos interacionais existentes entre ambas as linguagens, a musical e a teatral. Isso revelou não apenas um interesse estético dos atores e seus grupos pela música, ou talvez o hedonismo produzido pelo simples “fazer musical”, mas a sua percepção de que a exploração criativa de elementos e procedimentos musicais diversos os leva à descoberta de novos modos de expressarem seus posicionamentos éticos e estéticos no teatro. Verificou-se que, no teatro de rua, é frequentemente pelo caminho da musicalidade, experimentada em sua plenitude, que os artistas exercem a teatralidade - ainda que esse processo não esteja totalmente conscientizado por esses teatristas. A bagagem musical do ator torna-se amiúde um dos principais mecanismos de aprimoramento da representação na rua, tanto como material de investigação e criação, quanto na montagem de um espetáculo. Constata-se, portanto, que o conhecimento musical no teatro voltado para os espaços abertos se faz necessário para o cumprimento de várias atividades cênico-musicais, sejam elas “performáticas” (como nas práticas propriamente musicais da cena) ou implícitas na musicalidade do espetáculo (escuta cênica, sonoridade da voz, produção de imagens sonoras etc). A atração que a rua exerce sobre os novos atores e grupos, principalmente neste momento em que a espetacularidade voltada para os espaços públicos da cidade vem sendo reconhecida pela academia e recebendo apoio financeiro de órgãos públicos, concorre para que a ocasião seja propícia para se ampliarem as discussões sobre a

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especificidade do teatro de rua e o desenvolvimento de seus meios expressivos. Nesse sentido, a questão da formação musical do ator é o que constitui o cerne do problema. De um modo geral, como aponta Fernandino (2008), numa formação teatral acadêmica realizada dentro dos estabelecimentos oficiais, o ensino musical - quando é oferecido – situa-se dentro de um quadro referencial teórico-prático eminentemente musical, ou seja, trata-se de ensinar a música por meio de métodos direcionados a objetivos musicais, e não teatrais. Canto, ritmo e outros aspectos da musicalidade, ainda que estudados em detalhe, são abordados num contexto distante da atividade teatral. Isso significa que os conteúdos musicais, assim assimilados pelo ator, serão provavelmente aplicados de forma mecânica nas atividades teatrais, atendendo precariamente às exigências da cena. No teatro de rua isso se agrava ainda mais, porque a modalidade ainda não conquistou espaços significativos dentro dos estabelecimentos oficiais de ensino de teatro, de modo que os meios de aprimoramento estético dependem exclusivamente da iniciativa dos próprios grupos como é, por exemplo, o caso do Buraco d’Oráculo. Assim, o aprendizado musical no teatro de rua se dá em grande parte pelo autodidatismo e pela informalidade, dentro dos próprios grupos teatrais, situação que ocorre, de fato, em relação à formação do ator de rua de um modo geral, como aponta Carreira (2006).

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Os três exemplos aqui estudados confirmam essa situação, a qual impele artistas e grupos de rua a buscarem meios próprios de preencherem as lacunas de sua formação, tais como a contratação de profissionais especialistas1. E, mesmo essa solução alternativa é temporária, pois dura apenas o tempo de uma produção artística ou do projeto que sustenta tais contratações - quando este é contemplado. Por isso, é preciso que, ao lado dessas soluções paliativas, se comece também a pensar numa formação musical voltada para o ator. Mais especificamente no caso do ator de teatro de rua, cuja formação e aprimoramento permanecem ainda atrelados à vida grupal, o saber oriundo de um ensino convencional é insuficiente para suprir as necessidades musicais que o espaço aberto das ruas exige; é preciso que os teatristas de rua se empenhem na integração do conhecimento acadêmico com o informal, com vistas à construção de um corpo teórico-metodológico de saberes e práticas musicais, baseado em suas próprias experiências artísticas no meio urbano. A notória oposição de boa parte desses teatristas quanto a uma reflexão mais sistemática ainda constitui um obstáculo a ser superado; contudo, percebe-se hoje uma maior disponibilidade dos artistas de rua para o registro de suas experiências. Se, até pouco tempo, o trabalho teatral de rua era irremediavelmente perdido após sua apresentação, hoje já existe uma preocupação maior dos coletivos em fazer anotações de campo, relatos, filmagens, comentários, que são discutidos em rede e/ou postados em blogs, assim como têm sido realizadas oficinas de temas diversos (dramaturgia, música, bonecos etc) entre grupos de diferentes regiões. Essas ações concretas contribuem para elevar o patamar de autoestima do teatro de rua, retroalimentando as suas conquistas e estimulando os teatristas a realizarem estudos acadêmicos, percebendo-se cada vez 1 Na etapa inicial do espetáculo Dar não dói, o grupo TNR contratou um professor de música, Lucas Ciavatta, para ensinar ritmo e instrumentos de percussão aos atores. “O passo”, por ele criado, mostrou ser um método muito eficaz para aprendizes leigos em música como era o caso, mas essa experiência não se prolongou o suficiente para configurar um aprendizado sólido.


mais como artistas-pesquisadores que detêm a chave de um precioso tesouro. O momento positivo que vive hoje o teatro de rua no Brasil deve redundar na busca de meios para o desenvolvimento da potência do jogo do ator na rua, onde a musicalidade desempenha papel fundamental. Isso também aponta a importância das políticas públicas para a formação musical dos artistas, pois o panorama acima descrito mostra que os grupos teatrais de rua vêm ocupando um espaço significativo na vida cultural de suas cidades, como demonstra o crescimento do número de grupos e eventos teatrais de rua por todo o país, notadamente a partir da criação da Rede Brasileira de Teatro de Rua em 2007. O investimento na musicalidade do ator e do espetáculo no espaço urbano se transforma, portanto, numa ação essencial no desafio de ultrapassar a concepção de teatro de rua como modalidade teatral “menor”. No campo acadêmico, encontram-se exemplos de pedagogias musicais que oferecem ricas possibilidades para o ator de teatro de rua. Nesse sentido, destaco a pedagogia Dalcroze, que privilegia o aprendizado musical a partir do movimento corporal; o trabalho de Carl Orff, em sua proposta de musicalização através de canções e brinquedos populares; e a pedagogia da escuta de Murray Schafer, voltada para a sensibilização da paisagem sonora que nos rodeia. No âmbito da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE), os ainda poucos pesquisadores da música e da musicalidade no teatro encontram-se dispersos pelos diversos GTs. Em 2009, durante a realização da V Reunião Científica, foi levantada a proposta de criação de um Grupo de Trabalho que, infelizmente, não se concretizou. Creio que seria importante retomar, então, a discussão dessa proposta. Para finalizar, gostaria de ressaltar que considero urgente, no teatro, a produção de pesquisas que possibilitem o cruzamento de conhecimentos e linguagens estéticas, pois vivemos num mundo de referências híbridas em que as fronteiras demarcatórias já não oferecem garantias de funcionalidade.


Glossรกrio de Termos Musicais


Glossário de Termos Musicais

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este glossário estão contidas as definições de elementos da linguagem musical que se encontram no corpo do texto desta tese. Para a sua elaboração, foram utilizadas as seguintes obras: Dicionário de Música Zahar (1985); Forma e estrutura na música (BENNETT, 1986);

Uma breve história da música (BENNETT, 1986); Dicionário Grove de Música (1994); Elementos básicos de música (BENNETT, 1998); Música e cena: uma proposta de delineamento da musicalidade no teatro (FERNANDINO, 2008); Música: entre o audível e o visível (CAZNOK, 2008). Abertura. Parte inicial das óperas, grandes obras musicais do período barroco (1600-1750). Accelerando. Indicação de aumento de velocidade, num trecho musical. Acento/acentuação. Recurso gráfico que enfatiza uma nota na partitura, aumentando a sua intensidade ou duração. Acorde. O soar simultâneo de três ou mais notas. Acorde dissonante. Acorde formado por intervalos considerados dissonantes, na música ocidental, tais como os de 2ª, 7ª etc. Acorde fundamental. Acorde organizado em intervalos de terças, com a nota mais grave abaixo das demais. Acusmático. O termo “acusmático” se origina da palavra grega akousmatikós (disposto a ouvir), derivada de ákousma (o que escuta – ensinamento, música, ruído etc – e o que faz escutar – músicos, professores etc). Refere-se à escuta acusmática, antigo recurso usado por Pitágoras que, atrás de uma cortina, passava seus ensinamentos aos seguidores de sua doutrina. Hoje, liga-se à ideia do som desconectado de sua fonte sonora (por exemplo, ouvir música por meios eletrônicos). Andamento. Velocidade em que uma peça musical deve ser executada. As variações de andamento recebem denominações específicas e são reguladas pela quantidade de batimentos por minuto, como por exemplo: largo (lento, 40-60 bpm); andante (próximo ao andar humano, 76-108 bpm); allegro (rápido, 120168 bpm); presto (veloz, 169-200 bpm). Estas variações constam no metrônomo, aparelho que regula as diversas velocidades. Appoggiatura. Tipo de ornamento (uso de notas extras que enriquecem a linha melódica) em que, antes que a nota musical propriamente dita seja executada, toca-se outra, com metade ou 2/3 de sua duração, dependendo de cada caso em particular. Ária. O termo significa canção e surge com a ópera, que marca o início do período barroco no século XVII. A primeira grande ópera é Orfeo, de Monteverdi (1607). Os compositores de óperas usavam o recitativo (estilo de canto meio cantado, meio recitado) para relatar a história com mais dinamismo, e as árias para mostrar o pensamento e as emoções dos personagens, durante o desenrolar dos acontecimentos. Arpejado (arpeggio). Significa literalmente “à maneira de harpa”. Sucessão de notas de um acorde soando em sequência. Baixo. A nota mais grave de uma composição. Aplica-se também à nota de base (fundamental) de um acorde, à parte mais grave de uma estrutura polifônica, ao registro inferior e à voz masculina mais grave. Baixo de Alberti. Tipo de acompanhamento para a mão esquerda, na música para teclado, consistindo de notas arpejadas, habitualmente com as notas tocadas da mais baixa à mais alta. O nome vem de Domenico Alberti (1710), que popularizou a técnica. Banda. Conjunto instrumental. A palavra pode ter origem no latim medieval bandum (“estandarte”), a bandeira sob a qual marchavam os soldados. Hoje é usada para designar grupos de instrumentos relacionados (banda de pífanos, por exemplo).

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Barra de compasso. Linha vertical que é traçada no pentagrama para delimitar unidades métricas; daí também as unidades assim demarcadas (apareceu somente no século XVIII). Bordão. Termo usado para indicar um som prolongado, habitualmente grave, que pode ser mantido continuamente ao longo de um trecho musical, como num registro de pedal dos órgãos. Cadência. Encadeamento de acordes característico do sistema tonal que, no final de uma frase harmônica, dirige-se para o acorde de tônica, sugerindo a ideia de conclusão ou repouso. Cadência perfeita. Na música ocidental tonal, é um tipo de encadeamento harmônico que utiliza um acorde em V7 (tensão) e depois, em I (repouso) no final de uma frase musical. Cadência plagal. Encadeamento harmônico de um acorde de subdominante para o de tônica (IV-I), considerado menos “tenso” que o anterior. Cantochão. Canto monofônico e em uníssono, originalmente sem acompanhamento, empregado em liturgias cristãs de repertório especificamente latino, da Idade Média. Canto gregoriano. Antigo canto romano; repertório litúrgico de melodias que se tornou o canto oficial da Igreja Católica Romana no período medieval. Cantus firmus. “Canto fixo”. Expressão usada no contexto da polifonia dos séculos XIV a XVI para uma melodia de cantochão, frequentemente em valores de notas longas e iguais, ou para uma melodia já existente utilizada como base de uma composição polifônica. A capella. “Na capela”. Expressão que designa a música coral cantada sem acompanhamento instrumental. Choro. Gênero de música popular urbana do Rio de Janeiro, que se refe ria, no início do século XX, aos músicos que o praticavam – os “chorões”. Os grupos de chorões usavam habitualmente flauta, clarinete, trombone, cavaquinho, violão e percussão. O repertório se baseava nas danças europeias então em voga – polcas, valsas, schottisches. Das adaptações desses gêneros começou a surgir o repertório característico do choro, com improvisações e virtuosidade instrumental, mas com as inflexões melancólicas que justificam esse nome. Joaquim Antônio da Silva Callado, flautista, foi o primeiro compositor de choros a se destacar. O “chorinho” é a variante mais leve do gênero, em que a linha melódica tende a predominar sobre o contraponto instrumental.

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Compasso. Sinal colocado no início de uma composição para indicar a métrica (em geral, binária, ternária ou quaternária) do trecho musical que se segue. Compasso binário simples. Estrutura rítmica de dois tempos em cada compasso da composição. Contraponto. Sobreposição de duas ou mais linhas musicais, sendo que cada uma mantém a sua independência. Como as primeiras experiências foram realizadas acompanhando-se cada nota de uma melodia com uma nota da outra melodia, a saber, nota contra nota (em latim punctus contra punctus), o termo contraponto passou a designar este tipo de tratamento musical mesmo posteriormente, quando se tornou mais complexo. Contratempo. Efeito de deslocamento da acentuação natural do ritmo em uma peça musical. Corda de recitação. Chama-se “corda de recitação” ou “dominante salmódica”, a nota sobre a qual são entoadas as salmodias (salmos bíblicos). Obs: Em Ser TÃO ser, há uma corda de recitação na nota ré que conduz a música seguinte para a tonalidade de RéM, marcando a afinidade interna existente entre ambas, embora a primeira seja modal e a segunda, tonal. Crescendo. Um dos elementos dinâmicos de uma peça musical. Indica a transição de uma intensidade para outra, maior. Dinâmica. Aspecto da expressão musical resultante de variação de intensidade. Inclui as indicações padrão: f – forte; ff – fortíssimo; p – piano; pp – pianíssimo; mf – mezzo forte; mp – mezzo piano, bem como as transições de uma intensidade para outra (crescendo e diminuendo). A dinâmica de uma música é a indicação, escrita na partitura, da intensidade (energia) com que uma nota ou trecho musical deve ser executado.


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Escala. Sequência de notas em ordem de altura ascendente ou descendente. Escala modal. Escala baseada num tipo de estrutura musical arcaica, anterior à atual escala maior ou menor (tonal). Estrofe. Agrupamento de versos com unidade, na poesia moderna. Estribilho. Ethos. Modo de ser; caráter; comportamento do homem em relação à sua comunidade. Frase melódica. Termo usado para pequenas unidades musicais de tamanhos variados, geralmente consideradas maiores do que um motivo, porém menores do que um período. Aplica-se o termo “frasear” à subdivisão de uma linha melódica. Gênero (musical). Estilo musical representativo de uma determinada cultura, tais como o samba e o chorinho (Rio de Janeiro), o xote (Paraíba), o frevo (Pernambuco) etc. Homofonia. “Mesma sonoridade”. Hoje, utiliza-se mais “monofonia”. Escrita musical em que existe uma distinção clara entre melodia e harmonia de acompanhamento, em oposição ao tratamento polifônico no qual as diversas partes podem seguir independentemente. Intervalo. Distância entre duas notas, de acordo com a convenção escalar adotada como referência. Por exemplo, no sistema tonal: 2ªMaior, 3ªmenor, 4ªjusta etc. Leitmotiv. “Motivo condutor”. Tema ou ideia musical claramente definida, representando ou simbolizando uma pessoa, objeto, ideia etc, que retorna na forma original ou em forma alterada, nos momentos adequados, numa obra dramática (principalmente operística). Wagner elevou o termo a uma posição de importância capital. Marcha militar. Peça em compasso binário fortemente marcado, com frases simétricas destinadas a estimular e acompanhar o passo cadenciado dos soldados ao som do tambor. A marcha parece ter ingressado na música erudita através de óperas e ballés para as bandas de Luís XIV, onde representavam a entrada e saída dos intérpretes. Diversas antigas marchas militares foram adaptadas de melodias populares. Marcha carnavalesca. Peça em compasso binário originária dos ranchos e outros agrupamentos carnavalescos característicos de algumas zonas urbanas brasileiras. Inicialmente calmas e bucólicas, ligadas aos cordões e ranchos do ciclo do Natal, no século XX as marchas aceleraram seu andamento por influência da música comercial norte-americana, produzindo a alegre e brejeira marchinha. A marcha-rancho é uma variante mais lenta, ligada aos ranchos carnavalescos da entrada do século. Melisma. Grupo de várias notas musicais cantadas sobre uma única sílaba, especialmente no canto litúrgico. Nas culturas antigas, técnicas melismáticas eram usadas para fins hipnótico-religiosos. Da música árabe, onde desenvolveu grande complexidade, o canto melismático propagou-se por todo o ocidente, estando na origem mesma do canto gregoriano cristão. Melodia. Para a psicoacústica, uma melodia é o exemplo mais simples de mensagem musical significativa, uma vez que já contém elementos-chave da música ocidental como, por exemplo, o ritmo e a tonalidade. Métrica. A métrica é identificada no início de uma composição, ou em qualquer ponto onde mude, através de uma fórmula de compasso. Indica a percepção da pulsação regular de uma música ou trecho por meio de tempos. Modal (escala). No ocidente, refere-se à organização escalar de notas musicais dentro do sistema musical utilizado na Grécia Antiga. Modo. Deriva do termo latino modus (“medida”, “padrão”, “maneira”). Em seu sentido mais comum, significa a escala ou seleção de notas usadas como base para uma composição; essa seleção tem implicações sobre o caráter expressivo de uma peça. Tipo de escala e de melodia de um trecho musical. Modos gregos. É como ficou conhecido o sistema musical empregado pelos antigos gregos e que, segundo consta, teve origem no oriente. Suas escalas são caracterizadas por um movimento predominantemente descendente. Cada uma das escalas estava ligada a um significado social, religioso, ético e psicológico. São eles: jônio, eólio, dórico, lídio, frígio.

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Monodia. Canção italiana para voz solista acompanhada, que surge com força no século XVII. Os tipos mais comuns são o madrigal e a ária. Moteto. Uma das formas mais importantes de música polifônica, que se originou da prática dos compositores da chamada Escola de Notre Dame, no século XIII. Motivo. Ideia musical curta, podendo ser melódica, harmônica ou rítmica, ou as três simultaneamente. Independente de seu tamanho, geralmente é visto como a menor subdivisão com identidade própria de um tema ou frase. Mousiké. Realização de múltiplas ações, numa situação de representação artística. Nomos. Melodias-tipo, inalteráveis, às quais se atribuía influência mágica, moral ou ritual, na Grécia Antiga. Sempre cantados, os nomos tinham a participação de instrumentos acompanhantes (cítaras, aulos, etc). Música programática (ou descritiva). Obra inspirada por uma ideia não-musical. O termo foi introduzido por Liszt, mas seus inícios vêm da música vocal italiana do século XIV e nas canções descritivas de Jannequin, no século XVI. Ao contrário da chamada “música absoluta”, trata-se da música que conta uma história ou, de certo modo, é descritiva, evocando imagens na mente do ouvinte. Depois da Sinfonia Pastoral de Beethoven (1807-1808), evoluiu significativamente através do poema sinfônico, encontrando terreno fértil no nacionalismo do século XIX. Musicologia. Estudo acadêmico da música. O termo foi introduzido no século XX e abrange todos os aspectos do estudo teórico da música: acústica, estética, bibliografia, história, biografia, instrumentos, harmonia e notação. Nota musical. Som musical de altura (frequência) identificável e duração precisa. Nota “branca”. Termo do jargão musical para designar as notas de maior duração numa partitura, como a semibreve e a mínima. Organum. Termo originalmente relacionado ao órgão, depois à polifonia medieval. A partir do século XII, referia-se especificamente à música de cantus firmus (o tenor) em notas sustentadas e parte superior em movimento mais rápido.

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Organum paralelo. Tipo de organum formado por duas linhas melódicas que se acompanhavam por meio de um movimento paralelo, numa sucessão de intervalos iguais. Ornamento. Enriquecimento melódico de uma música, o qual pode ser acrescentado livremente pelo intérprete ou por sinais convencionais. Os ornamentos foram usados em todos os períodos da música ocidental, mas proliferaram particularmente no Renascimento tardio, Barroco e Classicismo. Paródia. Técnica de polifonia renascentista que envolve o uso de materiais de composições preexistentes. O aspecto essencial da paródia é que a matéria-prima é absorvida na nova peça, criando uma fusão de elementos antigos e novos. Foi usada por compositores que usavam trechos de peças anteriores (deles mesmos), reelaborados e, ainda, em composições humorísticas ou satíricas, em que aspectos (às vezes mesmo as próprias melodias) de um compositor, período ou estilo são empregados de forma a parecerem ridículos. Pianíssimo (ppp). Indicação, na partitura, que o som deve soar muito suavemente no trecho musical ao qual se refere. Poema sinfônico. Um dos tipos de Música Programática ou “de programa”, surgida no período romântico. É uma obra para orquestra, em um só movimento e com sentido descritivo. O poema sinfônico foi criado por Liszt, que utilizava o recurso da “transformação temática”: um tema básico recorrente que aparece em toda a peça em contínua transformação, como na idée fixe de Berlioz ou no leitmotiv de Wagner. Os poemas sinfônicos de Liszt são todos inspirados em poemas, peças teatrais, mitos. Foi adotado por outros compositores, como Mussorgsky (Uma noite no Monte Calvo) e Dukas (O aprendiz de feiticeiro), peças imortalizadas no filme Fantasia e Música, de Walt Disney. Seu declínio se deu junto ao do romantismo no século XX, pela ascensão das noções de abstração e independência da música.


Glossário de Termos Musicais

Polifônico. Relativo a polifonia, termo derivado do grego, que significa “vozes múltiplas”. É usado para a música em que duas ou mais linhas melódicas (vozes ou partes) soam simultaneamente. A expressão “era polifônica” é geralmente aplicada ao final da Idade Média e ao Renascimento. Presto. Indicação de andamento de uma peça musical ou trecho em grande velocidade. Prólogo. Cena de introdução a uma obra dramática, geralmente explicando o contexto e o significado do que se seguirá. Em meados do século XVII, os prólogos em que apareciam personagens alegóricos eram muito comuns na ópera barroca. Poslúdio. Peça tocada em órgão no final de uma cerimônia religiosa que se caracteriza pela relativa liberdade de execução, podendo ser improvisada a fim de fornecer a duração exata de música para acompanhar a saída do coro e da congregação. Pulsação. Termo ligado à ocorrência dos tempos na música, o que significa dizer que é a sensação temporal perceptível em termos de duração dos sons. Recitativo. Tipo de escrita vocal, normalmente para uma única voz, que segue os ritmos e acentuações naturais do discurso. Durante o século XVII a ária tornou-se o elemento dominante da ópera e o recitativo um veículo para diálogos, bem como um elemento de ligação entre árias. Refrão. Em poesia, uma frase ou verso que ocorre em intervalos determinados, especialmente no final de uma estrofe. O termo é usado analogamente em formas musicais. Responsório (ou Canto em responsório). Categoria de cântico ocidental que desde o século XI serve como poslúdio musical à leitura de lições. Envolve o canto de um salmo alternadamente entre um solista, que canta um versículo, e um coro, que canta um refrão (responso). Ressonância. Vibração sonora em afinidade com uma vibração exterior de mesma frequência. Observação: esse fenômeno acústico pode causar efeitos indesejáveis numa sala de concertos como se dá, por exemplo, quando certas notas ou passagens musicais causam a vibração de janelas ou outras estruturas físicas. Reverberação. É o efeito físico gerado pelo som. Reflexão múltipla de uma frequência, fundamental na construção dos instrumentos musicais. A velocidade do som reverberando é de 340 m por segundo. Ritmo. Subdivisão de um lapso de tempo em seções perceptíveis; o grupamento de sons musicais, principalmente por meio de sua duração e ênfase. Na música ocidental, é um dos elementos básicos da música, juntamente com a melodia e a harmonia. Organização do tempo para estabelecer uma pulsação regular, e pela subdivisão dessa pulsação em grupos também regulares. A disposição da pulsação em grupos é a métrica de uma composição, e a velocidade das pulsações é o seu andamento. O ritmo é fundamental à dança, cujos padrões, derivados dos ritmos naturais do movimento corporal, ditaram muitos dos modelos rítmicos que permeiam toda a música ocidental. Staccato. O sinal de staccato (“destacado”) indica que as notas musicais, ou acordes, devem ter sons curtos e destacados. Na partitura musical, essa indicação é dada por meio de pontos colocados em cima ou embaixo das notas. Tema. Termo que aparece com a fuga, peça instrumental polifônica do período barroco que se fundamenta na técnica da imitação. É a melodia curta, de acentuado caráter musical, sobre a qual toda a fuga se baseia. Ele aparece no início e depois é imitado pelas outras vozes (vocais ou instrumentais), dando a impressão sonora de notas que perseguem ou fogem de outras. Tempo. Pulsação básica subjacente à música; é a unidade fundamental do compasso. Timbre. Característica do som, e a sua “cor” diferencial. Feixe de frequências formado pelos componentes da onda sonora, que determina diferentes tipos de sonoridades. Timbrística (configuração): organização de timbres numa composição musical. Tímpano. Mais importante instrumento de percussão da orquestra.

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Tonal/ sistema tonal. Termo que designa a série de relações entre as notas musicais. O termo se aplica mais comumente ao sistema utilizado na música erudita ocidental, do século XVII ao XX. Tônica. No sistema tonal maior-menor, é a nota principal, ou primeiro grau, de uma escala (a sua fundamental). Trêmolo. Ornamento que consiste na rápida reiteração de uma nota ou acorde sem considerar os valores de tempo mensurados. Recurso muito usado em música orquestral para efeitos enfáticos, ou “para criar um clima agitado”. Trinado. Ornamento que consiste na alternância rápida de uma nota com a nota um tom ou semitom acima dela. Uníssono. Execução simultânea de uma parte polifônica por mais de um intérprete ou grupo de intérpretes. Voz. Além de referir-se à voz humana propriamente dita, empregada nas diversas formas de canto, o termo também é usado para indicar cada uma das partes que compõem uma textura polifônica, seja instrumental ou vocal. Voz tenor. Antes de significar a voz masculina aguda, era originalmente uma parte de sustentação que dava apoio sonoro a uma estrutura contrapontística.

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Lista de Abreviaturas e Siglas - ReferĂŞncias

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Lista de Abreviaturas ABRACE – Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas BIEV – Banco de Imagens e Efeitos Visuais BNDES – Banco Nacional do Desenvolvimento CBM – Conservatório Brasileiro de Música CLA – Centro de Letras e Artes CMI – Capitalismo Mundial Integrado CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico COHAB – Companhia Metropolitana de Habitação (SP) CPA/UNICAMP - Centro do Pensamento Antigo da Universidade Estadual de Campinas (SP) CULTUAR – Fundação de Cultura de Angra dos Reis (RJ) DCE – Diretório Central dos Estudantes EDUFAL – Editora da Universidade Federal de Alagoas EDUFBA – Editora da Universidade Federal da Bahia FAPERJ – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro FATE – Fundo de Amparo ao Teatro (Município do Rio de Janeiro) FUNARTE – Fundação Nacional de Artes GT – Grupo de Trabalho HB – Homem-Banda

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IFCH – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas ILEA – Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados LAS – Laboratório de Antropologia Social MINC – Ministério da Cultura MTP-PE – Movimento de Teatro Popular de Pernambuco MTR-RS – Movimento de Teatro de Rua do Rio Grande do Sul NUPECS – Núcleo de Estudos em Arte e Estilos de Vida PAC – Programa de Aceleração do Crescimento PPGAC – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas PPGAS – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social PPGT – Programa de Pós-Graduação em Teatro RBTR – Rede Brasileira de Teatro de Rua TNR – Grupo Tá Na Rua TUT – Grupo de Teatro da Universidade Tecnológica Federal do Paraná UDESC – Universidade Estadual de Santa Catarina UFBA – Universidade Federal da Bahia UFF – Universidade Federal Fluminense


Lista de Abreviaturas e Siglas - Referências

UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro UNE – União Nacional dos Estudantes UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

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Lista de Abreviaturas e Siglas - Referências

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