etc espaço, tempo e crítica... ester limonad (org.) ana clara torres ribeiro ana fani alessandri carlos azael rangel camargo celso monteiro lamparelli circe maria gama monteiro geraldo magela costa heloisa soares de moura costa jorge luiz barbosa leila christina dias maria regina nabuco pedro conceição jorge rainer randolph roberto luís de melo monte-mór rogério haesbaert ruy moreira sandra lencioni
Copyright © Ester Limonad (organizadora), 2019 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e expressa do autor. Editor João Baptista Pinto Editoração Rian Narcizo Mariano Capa Ester Limonad Revisão Da organizadora
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Etc espaço, tempo e crítica [recurso eletrônico] / organização Ester Limonad. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2019. recurso digital ; 2 MB Formato: epdf Requisitos do sistema: adobe acrobat reader Modo de acesso: world wide web ISBN 9788577857081 (recurso eletrônico)
1. Urbanização - Brasil. 2. Política urbana - Brasil. 3. Espaços públicos - Aspectos socais. 4. Livros eletrônicos. I. Limonad, Ester. 19-60686
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Ester Limonad (org.)
etc espaço, tempo e crítica
Coletivo Editorial Ana Clara Torres Ribeiro (in memoriam) Ana Cristina Fernandes Ester Limonad Geraldo Magela Costa Heloisa Soares de Moura Costa Leila Christina Dias Rainer Randolph Roberto LuĂs de Melo Monte-MĂłr
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uma apresentação Ester Limonad
A organização desta coletânea etc tem por fundamento um resgate de uma iniciativa editorial encetada em 2007 por um conjunto de pesquisadores da área de ciências humanas e sociais aplicadas e respectivos grupos de pesquisa cadastrados no CNPq, que resultou em um periódico com essa designação1. etc é um acrônimo de espaço, tempo, crítica e outras coisas, que sintetizava a amplitude das preocupações de pesquisa, assim como a intersecção e pluralidade das formações de seus integrantes, que convergiam para um conjunto de abordagens especializadas, explicitadas nos referidos grupos de pesquisa do CNPq. A revista surgiu de uma proposta comum de trabalho dos referidos grupos de pesquisa, como um meio de se articular em rede. Não se tratava de defender o discurso da pluralidade em que tudo cabe. Havia, então um eixo comum, que se caracterizava por uma visão não-ortodoxa da teoria social crítica, marcado, em particular, pela necessidade de inserção do espaço enquanto categoria de análise na reflexão contemporânea, à medida que a noção de espaço incorpora o social. etc tinha por meta divulgar a produção acadêmico-científica de seus integrantes e de pesquisadores na área de Ciências Humanas, Sociais Aplicadas e áreas afins. Os artigos deviam ser de preferência provenientes de publicações esgotadas e de difícil acesso, que não dispunham de acesso digital (publicados em anais de congresso, em edições de âmbito local, etc.). O propósito original de publicar quinzenalmente, revelou-se deveras ambicioso, pela falta de apoio institucional. Enfim, foram publicados um total de nove fascículos, disponibilizados no site criado para esse fim no servidor da Universidade Federal Fluminense. Todavia, problemas de atualização no servidor, somado ao reduzido número de visitas ao site, a despeito de elevado número de citações de seus artigos, levaram à extinção do site pela universidade com a perda dos arquivos aí depositados. Editado por mim, com o apoio dos demais membros do coletivo editorial (Ana Clara Torres Ribeiro, Ana Cristina Fernandes, Geraldo Magela Costa, Heloisa Soares de Moura Costa, Leila Christina Dias, Rainer Randolph e Roberto Luís de Melo Monte-Mór), coordenadores ou membros dos seguintes grupos de pesquisa cadastrados no CNPq: GECEL - Grupo de Estudos Cidade, Espaço e Lugar (Ester Limonad); LASTRO - Laboratório de Análise da Conjuntura Social - Tecnologia e Território (Ana Clara Torres Ribeiro); DRIN - Desenvolvimento Regional e Inovação (Ana Cristina Fernandes); PESA - Processos Espaciais e SócioAmbientais (Geraldo Magela Costa e Heloisa Soares de Moura Costa); ROT - Redes e Organização Territorial (Leila Christina Dias); LABORE - Laboratório Oficina Redes e Espaços (Rainer Randolph) e GUMA - Grupo Urbanização e Meio Ambiente (Roberto Luís de Melo Monte-Mór).
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Por conseguinte, a presente coletânea reúne os artigos publicados online no site da revista, com seis artigos adicionais que caberiam ter sido publicados então. Cabe, antes de prosseguir um agradecimento aos autores e autoras (Ana Fani Alessandri Carlos, Celso Monteiro Lamparelli, Circe Maria Gama Monteiro, Geraldo Magela Costa, Heloisa Soares de Moura Costa, Jorge Luiz Barbosa, Leila Christina Dias, Rainer Randolph, Roberto Luís Monte-Mór, Rogério Haesbaert, Ruy Moreira, Sandra Lencioni) que apoiaram essa iniciativa e colaboraram com essa coletânea. Cabe um agradecimento, em particular, a Francisco Rubens de Melo Ribeiro e a Ana Luiza Nabuco Palhano, por autorizarem, respectivamente, a publicação dos textos de Ana Clara Torres Ribeiro e de Maria Regina Nabuco. Este livro tampouco teria sido possível sem o apoio da Letra Capital Editora, na pessoa de seu editor João Baptista Pinto e de Rian Narcizo Mariano no cuidado e elaboração e da composição gráfica dessa obra. Cabe observar que os textos aqui reunidos são de diferentes momentos das trajetórias acadêmicas e intelectuais de seus autores, que se por um lado permitem avaliar os avanços, aprofundamentos ou mesmo mudanças de rumo havidas; por outro contribuem para retratar o espectro de preocupações acadêmico-científicas que se entrecruzavam nos campos da geografia humana crítica e do planejamento territorial entre a década de 1970 e o início do século XXI. Em Nota introdutória sobre a construção de um objeto de estudo: “O Urbano”2 (1978), Azael Rangel Camargo, Celso Monteiro Lamparelli e Pedro Conceição Jorge se propõem a apresentar um debate teórico-metodológico, ao aplicar as ideias de Marx e as teorias da sociologia urbana dos anos 1970 no estudo das relações Estado-Urbano, a partir do levantamento dos fenômenos de urbanização e das metamorfoses institucionais no estado de São Paulo, como parte de um projeto de pesquisa, realizado na FUNDAP3 em 1978. Inicialmente, os autores procedem a uma rápida descrição da formação da sociedade urbana no Brasil fundada nos conceitos de divisão técnica e social do trabalho, de condições gerais de desenvolvimento das forças produtivas e de meios coletivos de consumo; este último entendido como a socialização de atividades empresariais e domésticas, assumidas pela nova divisão do trabalho na sociedade, e que são apoios à produção e, portanto, à acumulação do Capital ou à sobrevivência da população em especial à reprodução da Força de Trabalho. Em seguida, para criticar as políticas públicas e a intervenção do Estado na formação do Urbano, os autores propõem um método de análise das formas alternativas dos meios coletivos de consumo, identificando a combinação das lógicas Texto elaborado, em 1978, como parte da Pesquisa: Manifestações da Relação Estado-Urbano no Estado de São Paulo (1947-1977) realizada pela FUNDAP (Fundação para o Desenvolvimento Administrativo) para a Secretaria de Economia e Planejamento do Governo do Estado de São Paulo. Foi originalmente publicado, sob o título: Construção de um objeto de estudo: O urbano. Estudos FUNDAP, São Paulo, v. 1, p. 1-23, 1983. Posteriormente, foi publicado no periódico ETC em 1º de maio de 2007, n° 1(1), vol. 1. 3 FUNDAP – Fundação para o Desenvolvimento Administrativo. 2
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de investimento, operação e acesso, seja como serviços públicos, seja segundo as leis do mercado da iniciativa privada ou ainda pela lógica do associativismo comunitário. O Planejamento: algumas considerações4 (1983) de Circe Maria Gama Monteiro condensa a discussão conceitual da dissertação de mestrado da autora e traz uma série de considerações, ainda atuais sobre diversas definições de planejamento urbano, com base no referencial teórico em voga nos anos 1970. A autora situa a discussão em torno do papel do planejamento urbano, de suas potencialidades e limites. O planejamento visto como técnica apresenta o processo como uma atividade revestida de cientificidade onde o objetivo das propostas seria alcançar a melhor solução de um problema. O planejamento como instrumento político ou de dominação, reflete sobre sua função como produto formulado por um sistema político atuando sobre um sistema econômico e social visando regular contradições e a favor da reprodução de uma condição propicia a sua manutenção. O planejamento como instrumento de libertação considera a estratégia de superação e o seu papel em fomentar mudanças qualitativas na sociedade advogando a importância de procedimentos participativos. Em Da região à rede e ao lugar: a nova realidade e o novo olhar geográfico sobre o mundo5 (1997) Ruy Moreira aponta a nova realidade que despontava no início do século XXI, relacionada aos conteúdos do mundo globalizado, que segundo o autor traz uma renovação nas formas de organização geográfica da sociedade. Diante dessa nova realidade, segundo o autor, conceitos velhos aparecem sob forma nova e conceitos novos aparecem renovando conceitos velhos. Destaca, assim, a rede global como forma nova do espaço e a fluidez - indicativa do efeito das reestruturações sobre as fronteiras – como sua principal característica. Assinala, por conseguinte, a necessidade de na forma do olhar geográfico e do geógrafo, o que o leva a questionar; em que consiste este olhar? E como dar-lhe contemporaneidade? Para esclarecer tais questões o autor examina diversos olhares geográficos sobre o mundo e as formas geográficas de representação. Em Planejamento Urbano no Brasil: Emergência e Consolidação6 (1980) Roberto Luís Monte-Mór apresenta uma visão crítica da emergência e consolidação do planejamento urbano no Brasil, tanto como prática urbanística quanto como Este texto é um excerto do primeiro capítulo da Dissertação de Mestrado, Por um Planejamento Alterativo, apresentada ao Programa de Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1983. Posteriormente, foi publicado no periódico ETC, em 15 de maio de 2007, n° 1(2), vol. 1. 5 Texto de uma palestra realizada no sistema FATEC/Paula Souza, da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, revisto e ampliado pelo autor. Publicada originalmente na Revista Ciência Geográfica número 6, abril de 1997, AGB-Bauru. Posteriormente, foi publicado no periódico ETC em 1º de junho de 2007, n° 1(3), vol. 1. 6 Este texto é a íntegra revisada do primeiro capítulo da Dissertação de Mestrado, Espaço e Planejamento Urbano, apresentada ao Programa de Engenharia de Produção da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1980. Uma versão atualizada foi publicada no livro, organizado por Geraldo Magela Costa e Jupira Gomes de Mendonça, que reúne textos do Seminário “Planejamento Urbano no Brasil: trajetórias e perspectivas”, realizado em Belo Horizonte, em 2006. Foi publicado no periódico ETC em 15 de junho de 2007, n° 1(4), v. 1. 4
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institucionalização política no regime militar. O autor, inicialmente, expõe de forma as principais influências urbanísticas no Brasil com ênfase na vertente racionalista, que teve em Le Corbusier sua maior expressão mundial e em Lucio Costa, com o projeto de Brasília, sua consagração como a grande experiência nacional. A seguir apresenta uma abordagem histórica da transformação do pensamento urbanístico em prática de planejamento urbano com uma reflexão crítica da implantação do sistema nacional de planejamento urbano local, montado na década de 1960, com base no binômio SERFHAU-BNH. A abordagem crítica se estende à implantação do paradigma da política nacional de desenvolvimento urbano, que privilegia os objetivos econômicos de caráter regional em detrimento da problemática intraurbana, que se intensificou durante o milagre brasileiro. Leila Christina Dias, em seu texto Redes de Informação, grandes organizações e ritmos de modernização7 (1993) aborda o papel das novas redes de telecomunicações, que em seu entender parecem constituir a resposta contemporânea à necessidade de acelerar a velocidade de circulação dos dados e do saber e engendrariam mesmo, como sugerem certas teses, “o desaparecimento do espaço geográfico”. A autora chama a atenção para o fato de o encontro entre informática e telecomunicações estar no centro dos debates relativos às transformações da ordem econômica mundial e dos territórios. Ressalta, assim, que para esclarecer a ação das telecomunicações sobre o espaço se impõe uma dialética, que articule a evolução da técnica à sociedade de onde ela emerge. Por entender que a compreensão do papel dessas novas redes exige uma mediação que articule mutação técnica e mutação espacial, evitando um “salto mortal” entre as duas instâncias de análise, propõe que tal mediação poderia ser encontrada na utilização das novas redes de telecomunicações pelas grandes organizações econômicas. O texto Teorias socioespaciais: diante de um impasse?8 (1999) de Geraldo Magela Costa discute a hipótese da existência de impasse ou crise no processo de produção do conhecimento sobre os processos socioespaciais. O autor considera duas passagens nesse processo: das abstrações teórico-filosóficas para proposições teóricas e metodológicas concretas e destas para a identificação de possibilidades de práticas de mudança social. A reflexão se desenvolve a partir da revisão de contribuições de Harvey, Lefebvre e Soja. Além da importância da contribuição teórica de Lefebvre em si, o artigo enfatiza a sua propriedade como suporte teórico-metodológico para a análise de processos socioespaciais específicos. Heloisa Soares de Moura Costa na discussão conceitual de sua dissertação Artigo originalmente publicado nos Anais do 3º Simpósio Nacional de Geografia Urbana, Rio de Janeiro, 1993. p. 53-55. Editado por Tiago Cargnin Gonçalves. Posteriormente, foi publicado no periódico ETC em 1º de julho de 2007, n° 2(1), vol. 1. 8 Uma primeira versão desse artigo foi publicada nos Anais do 8º Encontro Nacional da ANPUR (COSTA, 1999). Posteriormente, partes dele foram também incorporadas a: Costa e Costa (2005); Costa (2005). Foi publicado no periódico ETC em 15 de julho de 2007, n° 2(2), vol. 1. 7
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Algumas formulações teóricas sobre a produção de loteamentos residenciais populares em Belo Horizonte, Brasil9 (1983), aborda alguns elementos teóricos e conceitos fundamentais para a análise da produção do espaço urbano no Brasil, através de projetos de loteamentos habitacionais para população de baixa-renda. A partir de uma abordagem do “urbano” e de questões relativas ao consumo coletivo em relação a urbanização capitalista no Brasil, trata das formas que assume a produção da habitação popular em países da América Latina. O texto discute, ainda, a questão fundiária urbana, a formação de preços e a distribuição espacial das classes sociais no espaço urbano. E, na sequência, aborda o papel e as atividades dos promotores imobiliários na produção do ambiente construído, bem como os artifícios empregados para superar barreiras ao desenvolvimento de suas atividades. A autora finaliza com uma abordagem das principais hipóteses e assumpções que orientam o desenvolvimento de sua dissertação. Em O território em tempos de globalização10 (1999), publicado em 1º de agosto de 2007, Rogério Haesbaert e Ester Limonad fazem uma introdução ao estudo das novas territorialidades emergentes no final do século XX, época usualmente definida como marcada por um processo que, genericamente, convencionou-se denominar de globalização. Os autores esboçam no texto uma síntese das principais linhas de interpretação ainda hoje vigentes sobre este conceito (ou noção), incluindo a proposta para uma caracterização das múltiplas faces do território, verificando como se manifestam novas territorialidades como o território-mundo no âmbito dos processos de globalização/fragmentação. Ana Clara Torres Ribeiro em O fato metropolitano – enigma e poder11 (1984) preocupa-se em mapear os paradigmas das ciências sociais norteadores da produção acadêmica e do debate da cidade, ao final do século XX, na formação social brasileira. Seu mapeamento privilegia o trajeto do conhecimento, a partir de aproximações sucessivas de modo a propiciar o desdobramento articulado de planos de observação e de interpretação da realidade social contemporânea. Resulta daí, que os planos analíticos apresentados pela autora contemplam a identificação dos principais veios temáticos no estudo da metrópole, a partir de uma postura definida com relação à realidade social contemporânea, procurando estabelecer Este texto é uma tradução feita e revisada pela autora do capítulo de discussão conceitual da dissertação “The production of popular residential land developments in Belo Horizonte, Brazil”, apresentada à Architectural Association School of Architecture, Londres, Inglaterra, em 1983, para obtenção do Master of Philosophy in Urban and Regional Planning. Uma versão em inglês foi publicada originalmente no periódico ETC, n.2 (3), v.1, 1º de agosto de 2007. 10 Esta é uma versão revisada e atualizada do artigo “O território em tempos de globalização” publicado na Revista Geo UERJ. v. 3, n. 5, p. 7-20, 1° semestre, 1999. Posteriormente, foi publicado no periódico ETC em 15 de agosto de 2007, n° 2(4), v. 1. 11 Versão revisada e atualizada pela autora. Este trabalho foi originalmente apresentado à 36ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) em julho de 1984. Uma primeira versão foi publicada nos Cadernos PUR/UFRJ, Ano I, n°1, p. 100-125, jan/abr 1986. Posteriormente, foi publicado no periódico ETC em 1º de setembro de 2007, n° 2(5), v. 1. Publicação autorizada pelo viúvo da autora, Francisco Rubens de Melo Ribeiro. 9
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trajetos de estudos e reflexão coerentes com esta postura, de tal maneira a permitir a proposição de formas de organização úteis do material teórico, conceitual e empírico subjacente – explícita ou implicitamente – aos cursos da “questão urbana” na formação social brasileira na década de 1980. Maria Regina Nabuco em seu texto, A (des)institucionalizacão das políticas regionais no Brasil12 (1995) discute os principais programas e políticas econômicas, que definiram as grandes linhas do planejamento regional, de 1945 até meados dos anos 1990. Sua hipótese básica é a de que o governo federal brasileiro, em consonância com as demandas políticas regionais, buscou promover o desenvolvimento regional, reduzir as desigualdades espaciais, ampliar a integração nacional, desconcentrar o desenvolvimento econômico e corrigir os desequilíbrios setoriais e sociais, através de normas institucionais que atendiam a pressão política das elites regionais. Assim, sistematiza e considera as normas legais que fundamentaram tais tendências no quadro geral das principais concepções teóricas relativas ao desenvolvimento regional no Brasil. O texto aborda, também, o período e mudanças após o fim do regime militar e, argumenta que o novo municipalismo que emerge neste contexto representa avanços em termos de políticas sociais locais, porém vem impedindo a emergência de articulações supralocais a exemplo da gestão metropolitana. Soma-se às contribuições publicadas anteriormente em etc o conjunto de textos relacionados a seguir, que caberiam haver sido publicados então. Em Urbanização extensiva e lógicas de povoamento: um olhar ambiental13 (1994), Roberto Luís Monte-Mór questiona, entre diversas indagações norteadoras de sua reflexão, o que vem mudando nas lógicas de assentamento e povoamento e até que ponto as mudanças observadas são fruto da metropolização? Qual é o “novo” que está querendo nascer? Assinala, ainda, a necessidade de (re)perguntar sobre as (novas) territorialidades que informam nossos olhares, vivências e reflexões contemporâneas. Inicialmente, procede a uma digressão teórica sobre as relações industrializaçãourbanização para clarear a ideia de urbanização extensiva na periferia industrial, seguida por uma abordagem e diferenciação da questão territorial nas periferias capitalistas - na região industrial e nas fronteiras – em relação aos países centrais. Em um segundo momento, trata da questão ambiental, em suas dimensões urbana e metropolitana, e aponta para a necessidade de se repensar as distinções entre espaço natural e espaço construído, ou novamente, espaços urbano e rural, campo e cidade. 12 Uma primeira versão desse texto foi apresentada na Mesa-Redonda do VI Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa e em Planejamento Urbano e Regional (ANPUR) realizado em Brasília em maio de 1995. Sua publicação foi autorizada por Ana Luiza Nabuco Palhano, filha da autora. Posteriormente, foi publicado no periódico ETC em 15 de setembro de 2007, n° 2(6), v. 1. 13 Publicado originalmente em: SANTOS, M.; SOUZA, M.A.; SILVEIRA, M.L. (Org.) Território, Globalização e Fragmentação. São Paulo: HUCITEC-ANPUR, 1994, p. 169-181. Posteriormente traduzido para o inglês com o título: Extended Urbanization and Settlement Patterns in Brazil: An Environmental Approach, publicado na coletânea organizada por Neil Brenner.. Implosions / Explosions: Towards a Study of Planetary Urbanization. 1ª ed.Berlim: Jovis Verlag GmbH, 2014, p. 109-120.
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A questão da cidadania que perpassa o trabalho é, então, a partir dessa perspectiva, revista e trazida para o debate. Rainer Randolph traz uma versão atualizada de suas reflexões apresentadas em Tecnologia, Sociedade e Produção Social do Espaço: a dialética entre percepção e concepção e seu rompimento no ciberespaço14 (2001), que remontam ao início do século. O autor se propõe a aperfeiçoar, na presente versão, uma orientação conceitual que possa ajudar a interpretar o advento, já em fins do século XX, de uma (nova?) “espacialidade” das assim chamadas sociedades de informação e comunicação. Para isso, procura ligar articulações entre técnica, sociedade e espaço a categorias-chave de Lefebvre de “sensação”, “percepção” e “concepção” para identificar mudanças de fundo epistemológico que estão envolvidas no avanço da telemática e de redes computacionais. É esse processo, que, ao se intensificar no século XXI, dá origem a um novo espaço chamado de “cibernético”. À sua argumentação o autor incorpora a conceituação da trialética do espaço de Soja com o propósito de problematizar e confrontar, criticamente, a elaborada perspectiva do “ciberespaço” com a concepção lefebvriana do espaço social ao lançar mão de uma discussão sobre sua influência na construção/transformação social de “representações do espaço” e “espaços de representação”. Em Entre as lógicas e as escalas da urbanização15 (1996) Ester Limonad, com base no resgate teórico realizado, parte da compreensão da urbanização como um processo espaço temporal de estruturação de um território e simultaneamente como resultante deste mesmo processo. O texto tem por objetivo delimitar e instrumentalizar essa concepção para a análise da estruturação territorial do interior fluminense. Trata-se de entender a estruturação deste território, dialeticamente como um elemento substantivo das relações gerais de produção (lógicas) simultaneamente sociais e espaciais, necessárias para o próprio processo de produção no arranjo dos territórios e na distribuição desigual e hierarquizada das classes sociais e das atividades produtivas no espaço. Resulta daí uma diferenciação socioespacial que contribui para um desenvolvimento desigual e combinado em diferentes escalas; a nível espacial e de relações de dominação. O desenvolvimento desigual pautado não só pela história, mas também pela geografia. Ana Fani Alessandri Carlos e Sandra Lencioni em seu Dois breves Uma primeira versão desse trabalho foi apresentada e publicada nos Anais da V Conference of the European Sociological Association “Visions and Divisions” em Helsinki (Finlândia), de 28.8 a 1.9.2001 sob o título “New Technologies and Space – Spatiality as a key concern of understanding social transformation in the information age”; tradução e revisão em maio de 2019 pelo autor. 15 Este texto é a versão integral do 3º capítulo de minha tese (LIMONAD, E. Os Lugares da Urbanização, o caso do interior fluminense. Tese (Doutorado) – USP, 1996. Disponível em < http://www.teses.usp.br/teses/ disponiveis/16/16131/tde-27042005-162418/pt-br.php>) correspondente ao desdobramento da discussão conceitual iniciada no 2º capítulo. Uma versão condensada e modificada foi publicada no artigo: Reflexões sobre o Espaço, o Urbano e a Urbanização. Geographia. v.1, n.1, p. 71-91, 1999. <DOI https://doi.org/10.22409/ GEOgraphia1999.v1i1.a13364> em que se suprimiu a reflexão sobre as lógicas e as escalas da urbanização. 14
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ensaios sobre a produção social do espaço: um preâmbulo (2019), situam e contextualizam a elaboração de A apropriação capitalista do espaço geográfico16 (1980) e de Alguns elementos para a discussão do espaço geográfico como mercadoria17(1980). No primeiro, as autoras de forma pioneira formulam que o espaço é simultaneamente produto e resultado do processo de produção, a partir da compreensão da centralidade do espaço no processo histórico, considerandose o desenvolvimento das forças produtivas. Abordam o desenvolvimento da relação sociedade-natureza face à apropriação social do espaço para apontar os termos de sua valorização, em particular na formação social capitalista. Ao passo que, no segundo ensaio dão sequência à reflexão, para apontar que o espaço como mercadoria é resultante “de uma determinada atividade produtiva útil e complexa. É a combinação de dois elementos, o trabalho e a natureza num primeiro momento histórico e entre o trabalho e o espaço já produzido, num segundo”. Jorge Luiz Barbosa encerra esta coletânea com Olhos de ver, ouvidos de ouvir: os “ambientes malsãos” da capital da República18 (1992). O autor ao apontar a visão preconceituosa das representações hegemônicas dos “ambientes malsãos”, ao fim do século XIX, revela o caráter antigo e secular de problemas urbanos reputados hoje como atuais. Ao mesmo tempo, valendo-se de uma peça de Arthur de Azevedo, O Tribofe, evidencia a inoperância do Estado, tanto frente as epidemias de varíola e febre amarela, que grassavam na cidade do Rio de Janeiro; quanto em relação à avidez dos especuladores frente a escassez de moradias higiênicas para os trabalhadores. Ressalta, ainda, a discriminação social com base em preconceitos, que ainda hoje, persistem arraigados no imaginário social. As condições socioespaciais e de produção eram outras, era um outro Estado, porém os problemas só fizeram se avolumar. Enfim, é com muito prazer e alegria que organizei essa coletânea de textos antigos, mas nem ultrapassados, nem obsoletos, que reúne não apenas colegas, amigos, companheiros de jornada, em encontros ao longo de nossas vidas, mas também condensa os encontros, amizades, mudanças de rumo, convergências e talvez algumas divergências de pensamento, pois se todxs pensássemos da mesma forma tudo seria muito sem graça. Afinal, é desses encontros e divergências que se faz o avanço do conhecimento. Uma boa leitura! Ester Limonad Rio de Janeiro, 8 de agosto de 2019
Publicado originalmente em CARLOS, A.F.A.;LENCIONI, S. A apropriação capitalista do espaço. In: 4º ENCONTRO NACIONAL DOS GEÓGRAFOS. Rio de Janeiro, Anais... Rio de Janeiro: AGB, 1980. 17 Publicado originalmente em Borrador: teoria e método. São Paulo: AGB-São Paulo, nº 1, p. 1-9, 1980. 18 Publicado originalmente em ABREU, M.A. Natureza e Sociedade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro, 1992. p. (Coleção Biblioteca Carioca). 16
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Sobre os autores Ana Clara Torres Ribeiro (in memoriam) • Professora Titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutorado pelo Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (1988), Bolsista do CNPq e FAPERJ. Ana Fani Alessandri Carlos • Professora Titular do Departamento de Geografia e Permanente do Programa de Pós-graduação em Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Pós-Doutorado na Universidade de Paris VII e Paris I, Doutorado (1987) e Livre-Docência (2000) em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo. Bolsista de Produtividade do CNPq. Azael Rangel Camargo • Professor Associado da Universidade de São Paulo, Doutorado em Urbanisme et Aménagement, Politiques Publiques pelo Institut d’Urbanisme de Paris Université Paris Val de Marne (1984). Celso Monteiro Lamparelli • Professor Titular aposentado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Pós-doutorado pela École Pratique des Hautes Études (1975). Circe Maria Gama Monteiro • Professora Titular do Departamento de Arquitetura e Permanente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco, Pós-doutorado na Bartlett School of Architecture - UCL, London (1995) e Faculty of Architecture da University of Sydney, Australia (2005), Doutorado em Sociologia Urbana na University of Oxford (1989). Bolsista de Produtividade do CNPq. Ester Limonad • Professora Titular do Departamento de Geografia e Permanente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense, PósDoutorado em Geografia Humana pela Universidad de Barcelona - Espanha (2006). Doutorado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (1996), Bolsista de Produtividade do CNPq. Geraldo Magela Costa • Professor Associado, aposentado e voluntário no Departamento de Geografia e no Professor Permanente no Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais, Pós-doutorado na University of California at Berkeley (1998), Doutorado pela London School of Economics and Political Science, Department of Geography (1984), Bolsista de Produtividade do CNPq. Heloisa Soares de Moura Costa • Professor Titular do Departamento de Geografia e Permanente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais, Pós-doutorado no Departamento de Geografia da Universidade da Califórnia em Berkeley (1998). Doutorado em Demografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1995). Bolsista de Produtividade do CNPq. Jorge Luiz Barbosa • Professor Associado do Departamento de Geografia e Permanente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense, Pós-Doutorado em Geografia Humana pela Universidad de Barcelona – Espanha (2010). Doutorado em Geografia pela Universidade de São Paulo (2002). Bolsista de Produtividade do CNPq. Leila Christina Dias • Professora Titular do Departamento de Geografia e Permanente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina,
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Sobre os Autores
Pós-doutorado em Geografia - Université de Paris I (2000), Doutora em Geografia Université de Paris IV (Paris-Sorbonne) (1991). Bolsista de Produtividade do CNPq. Maria Regina Nabuco (in memoriam) • Professor Adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais, Doutorado e Pós-doutorado em Economic and Social Studies pela University of Manchester(1982). Pedro Conceição Silva George • Professor Associado da Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa, Doutorado em Planeamento Urbano pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa – Portugal. Rainer Randolph • Professor Titular Aposentado do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ) e Permanente do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutorado em Ciências Econômicas e Sociais da Universidade Erlangen-Nuremberg/RFA (FriedrichAlexander) (1978), Bolsista de Produtividade do CNPq. Roberto Luís de Melo Monte-Mór • Professor Associado do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, Cedeplar, da Face - Faculdade de Ciências Econômicas e do Núcleo de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo - NPGAU, da Escola de Arquitetura, ambas da UFMG, Doutorado em Planejamento Urbano (2004) pela Universidade da Califórnia, Los Angeles – UCLA, Bolsista de Produtividade do CNPq. Rogério Haesbaert • Professor Titular Aposentado do Departamento de Geografia e Permanente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. Pós-Doutorado em Geografia na Open University (Milton Keynes, Inglaterra) (2003), Doutorado em Geografia Humana (1995) pela Universidade de São Paulo (Doutorado-Sanduiche no Instituto de Estudos Políticos de Paris), Bolsista de Produtividade do CNPq. Ruy Moreira • Professor Associado Aposentado do Departamento de Geografia e Permanente do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Permanente da Pós-graduação (mestrado) em Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Doutorado em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo-USP (1994), Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual do Ceará-UECE (2016), Bolsista de Produtividade do CNPq. Sandra Lencioni • Professora Titular Sênior do Departamento de Geografia e Permanente do Programa de Pós-graduação em Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Pós-Doutorado em Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne) (1992), Doutorado (1991) em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo, Bolsista de Produtividade do CNPq.
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Sumário Nota introdutória sobre a construção de um objeto de estudo: “O Urbano”........................................................................................... 17 Azael Rangel Camargo, Celso Monteiro Lamparelli e Pedro Conceição Silva George O Planejamento: algumas considerações.......................................... 68 Circe Maria Gama Monteiro Da região à rede e ao lugar: a nova realidade e o novo olhar geográfico sobre o mundo.................................................................. 87 Ruy Moreira Planejamento Urbano no Brasil: Emergência e Consolidação......... 109 Roberto Luís de Melo Monte-Mór Redes de Informação, grandes organizações e ritmos de modernização................................................................... 143 Leila Christina Dias Teorias socioespaciais: diante de um impasse?................................. 148 Geraldo Magela Costa Algumas formulações teóricas sobre a produção de loteamentos residenciais populares em Belo Horizonte, Brasil........................................................................... 168 Heloisa Soares de Moura Costa O território em tempos de globalização............................................ 189 Rogério Haesbaert e Ester Limonad O fato metropolitano – enigma e poder............................................ 206 Ana Clara Torres Ribeiro
A (des)institucionalizacão das políticas regionais no Brasil.............. 220 Maria Regina Nabuco Urbanização extensiva e lógicas de povoamento: um olhar ambiental.............................................................................. 251 Roberto Luís de Melo Monte-Mór Tecnologia, Sociedade e Produção Social do Espaço: A dialética entre percepção e concepção e seu rompimento no ciberespaço..................................................................................... 263 Rainer Randolph Entre as lógicas e as escalas da urbanização..................................... 284 Ester Limonad Dois breves ensaios sobre a produção social do espaço: um preâmbulo...................................................................................... 307 Ana Fani Alessandri Carlos e Sandra Lencioni A apropriação capitalista do espaço geográfico....................... 309 Ana Fani Alessandri Carlos e Sandra Lencioni Alguns elementos para a discussão do espaço geográfico como mercadoria...................................................... 316 Sandra Lencioni e Ana Fani Alessandri Carlos Olhos de ver, ouvidos de ouvir: os “ambientes malsãos” da capital da republica......................................................................... 323 Jorge Luiz Barbosa
Nota introdutória sobre a construção de um objeto de estudo: “O Urbano”1 Azael Rangel Camargo Celso Monteiro Lamparelli Pedro Conceição Silva George
Este texto é apenas uma introdução ao debate sobre a especificidade do urbano e como captá-la. O tom por vezes peremptório é meramente “estilístico”, pois as proposições destinam-se ao debate e todo o documento deve ser lido como um conjunto de hipóteses, e não de conclusões. Compõe-se o texto de uma primeira parte em que é tentada uma descrição geral do processo de formação do urbano, sem conotações geográficas, utilizando os conceitos de divisão social e técnica do trabalho, de socialização e de aglomeração. Dentro das duas etapas de desenvolvimento do modo de produção capitalista (M.P.C.), concorrencial e monopolista, propõe-se aqui uma descrição da influência da divisão social e técnica do trabalho na constituição das condições gerais para a reprodução da população e para a produção e na sua gradual socialização e aglomeração, processos esses que desembocam no urbano de hoje. Na parte referente ao urbano do estágio monopolista do M.P.C. relaciona-se o que de específico têm as condições gerais e o espaço nesse estágio e delimita-se a intervenção do Estado tanto num como noutro desses elementos. Essa intervenção é uma característica fundamental do estágio em questão. Continuamos com uma breve visão do processo de formação do urbano no contexto brasileiro, realçando algumas de suas peculiaridades que o fazem diferenciar-se do que se passou nos países centrais. Distinguem-se quatro etapas no processo: o período colonial e pós-colonial até meados do século XIX, o ciclo cafeeiro da economia (com especial referência ao estado de São Paulo), a primeira vaga de industrialização (até meados deste século) e o período de penetração do capital monopolista internacional e de desenvolvimento industrial mais acentuado. Tenta-se, na segunda parte do trabalho, analisar o processo, utilizando os 1 Este texto foi elaborado, em 1978, como parte da Pesquisa: Manifestações da Relação Estado-Urbano no Estado de São Paulo (1947-1977) realizada pela FUNDAP (Fundação para o Desenvolvimento Administrativo) para a Secretaria de Economia e Planejamento do Governo do Estado de São Paulo. Foi originalmente publicado, sob o título: Construção de um objeto de estudo: O urbano. In Estudos FUNDAP, São Paulo, v. 1, p. 1-23, 1983. reeditado no caderno do Laboratório de Planejamento da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, n° 17. Posteriormente, foi publicado no periódico ETC em 1º de maio de 2007, n° 1(1), vol. 1
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conceitos desenvolvidos na primeira. Emitem-se em seguida algumas hipóteses referentes ao tema. Segue-se uma colocação sobre o recorte (e a metodologia que nele prevalece) de um possível objeto de estudo, a que se convencionou chamar “urbano”, um pouco por falta de melhor palavra. Adotou-se essa terminologia também com o intuito de entrar na briga ideológica de que é o fulcro, para, ao incluir no conceito toda uma série de fenômenos que consideramos importantes, ligá-lo com os horizontes mais vastos do processo de acumulação, do processo político e do processo de urbanização (como fenômeno demográfico) e assim, de certa forma, explodi-lo fazendo aparecer às claras a natureza das contradições que encobre. Trata-se, portanto, não de criar uma nova categoria, noção ou conceito abstrato que se prestaria a manipulações ideológicas, mas sim de dar um novo conteúdo a um conceito já existente, com o intuito de estabelecer a sua articulação com o discurso que analisa os processos gerais acima mencionados. Esta articulação permite, no nosso entender, exatamente a desideologização do conceito (ou talvez a sua ideologização com objetivos diferentes). Ao recortar um grupo de fenômenos na realidade, que estão por natureza ligados aos processos gerais de acumulação, político e de urbanização, e ao propor um conceito que os identifique, estamos lançando as primeiras pedras na construção de um enunciado teórico que deverá desenvolver-se necessariamente através da formulação de mediações que nos levem da compreensão interna do objeto de estudo à sua explicação nos processos gerais mencionados e vice-versa. Na secção seguinte abordam-se questões metodológicas que se constituíram em problemas no decorrer do trabalho. Nas duas últimas partes delineiam-se os objetivos e expõe-se um primeiro esboço do método que estamos propondo para levar a cabo a análise de um meio coletivo, ou seja, de um dos fenômenos que constituem e dão especificidade ao urbano de hoje. Deve ser ressaltado que, sobretudo nas duas últimas partes, abordaremos primordialmente questões referentes aos meios coletivos mais ligados ao consumo, embora, inevitavelmente, tenhamos que examinar suas relações com aqueles mais voltados à produção, pois não é possível separar dicotomicamente uns dos outros. Mesmo que o fosse, ao pôr de lado a área da produção, perderse-iam determinadas relações, essenciais na análise, que podem vir a contribuir para a riqueza do trabalho. Por outro lado, a atenção que deveria ser dispensada pelo Estado aos problemas da reprodução da força de trabalho faz com que se proponha como área prioritária de análise o campo de interação dos meios coletivos com esses problemas, e o posicionamento do Estado nesse campo. Ao longo de todo o texto, baseamo-nos nas ideias de Marx sobre o assunto e no desenvolvimento destas levado a cabo por Lojkine (enquanto representante da chamada “nova escola francesa de sociologia urbana”) e por Harvey. 18
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O Processo de Formação do Urbano Uma Descrição Tentativa A realidade urbana é objeto de múltiplas conceituações. Existem vários conceitos de “urbano”, ou seja, pela mesma palavra subentendem-se conteúdos diferentes (isto pode ser uma prática ideológica, mas não entraremos na análise desse campo!). Os “arquitetos”, por exemplo, incluem nesse conceito a problemática ligada às questões do espaço construído. Já a chamada “nova escola francesa de sociologia urbana” tende a ver nele não só os problemas espaciais, como também aqueles ligados à produção e reprodução da força de trabalho e as práticas político-ideológicas que se dão no âmbito da cidade. Se analisássemos o conceito de urbano usado pelos poderes públicos no Brasil, teríamos ainda outra definição. Neste contexto, precisamos, antes de mais nada, examinar o que para nós vai conter o conceito de urbano. O texto que se segue é uma tentativa nesse sentido. Assim, propomos como processo determinante do urbano a dinâmica do desenvolvimento das forças produtivas, articulada com a produção e reprodução da população e com as questões políticas dentro de uma formação social. É evidente que a cada etapa desse desenvolvimento e seu correspondente modo de produção deverá estar associado um determinado urbano. Não tentaremos aqui examinar em detalhe a situação anterior à implantação do modo de produção capitalista, pois só a partir desse momento nos interessa o problema. Há que frisar que as questões relacionadas com o urbano (espaço e condições gerais) não esgotam nem condensam todos os problemas inerentes ao desenvolvimento do modo de produção capitalista; elas são apenas uma parte destes últimos.
O Urbano e o Modo de Produção Capitalista em seu Estágio Concorrencial O desenvolvimento das forças produtivas e a gradual implantação do modo de produção capitalista carregam consigo uma particular e mais avançada divisão do trabalho. A divisão do trabalho pode-se subdividir em divisão técnica e divisão social do trabalho. Estas duas divisões do trabalho diferem profundamente. Na divisão técnica do trabalho que se dá no seio das unidades produtivas (empresas, fábricas, oficinas) são os instrumentos de trabalho que comandam e que instituem uma ordem de interdependência. Os trabalhos são complementares, encadeados uns nos outros por uma conexão racional; existem aí unidade e solidariedade, complexidade, comple19
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mentaridade e cooperação. A esta cooperação justapõe-se a separação das funções em funções de comando e funções produtivas. Esta separação é um fato social e não técnico. No modo de produção capitalista a divisão social do trabalho faz-se no mercado, a partir das exigências do mercado e do aleatório que este comporta. Não há nela a racionalidade que é possível exercer-se na empresa. No mercado há concorrência e, logo, possibilidade de conflitos, seguida de conflitos reais entre indivíduos, grupos e classes2. A complementaridade dos trabalhos (dos produtos) opõe-se o caráter conflitual do conjunto das relações sociais. Na sociedade capitalista a divisão do trabalho, em ligação com as formas de propriedade, não gera apenas unidade social, mas também rivalidades e conflitos. Enquanto no interior de uma fábrica a divisão do trabalho é minuciosamente organizada pelos engenheiros e regulamentada pela autoridade do empresário, a sociedade não tem, para a distribuição do trabalho, outra regra, outra autoridade além da livre concorrência. A divisão técnica do trabalho consubstancia-se em processos produtivos que são típicos do modo de produção capitalista: maquinaria mais sofisticada e poderosa, acionada por novas formas de energia, técnicas mais avançadas e, sobretudo, um fenômeno novo que é a unidade produtiva tipo fábrica, ou seja, a aglomeração de meios de produção e força de trabalho num ponto do espaço. Esse simples fato implica toda uma série de fenômenos que irão modificar profundamente as cidades e criar, genericamente, o urbano hodierno. A concentração de meios de produção num só lugar implica que a população, enquanto força de trabalho, se concentre também. Isso faz com que tenha necessariamente que viver num espaço relativamente próximo do local de trabalho, na cidade (ou na área onde está a fábrica). Para que isso aconteça tem que se estabelecer toda uma série de condições (não interessa aqui sua sequência cronológica, ou mesmo a sua existência real, mas sim a tendência) necessárias para que ela se reproduza enquanto força de trabalho e enquanto população. Podemos assim enumerar essas condições (não exaustivamente): habitação, alimentação, transporte, energia, assistência à saúde, lazer, comunicações, saneamento geral etc. Da mesma forma, a unidade produtiva tipo fábrica requer para o seu funcionamento, ou seja, para que atue como unidade de acumulação de capital, toda uma série de outras condições (por vezes coincidentes com as anteriores, mas não necessariamente) que também podemos enumerar não exaustivamente: 2
Ver, a respeito desta problemática, a leitura que Henri Lefebvre faz dos clássicos marxistas.
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transporte para matérias-primas, energia industrial, saneamento, comunicações, serviços de apoio à produção, escritórios, bancos, transportes para o produto acabado, unidades de distribuição e comercialização etc. No decorrer do tempo, as unidades produtivas irão crescer, multiplicar-se e, sobretudo articular-se entre si. O crescimento de uma unidade produtiva pode, por sua vez, causar o aparecimento de outras, a ela subordinadas, que lhe darão insumos ou dela receberão produtos, perfazendo assim pequenas partes do processo produtivo original, partes essas que por necessidades de economia e eficiência não convém englobar numa mesma unidade. Além disso, as próprias unidades produtivas originais ao crescerem, articulam-se cada vez mais entre si, transacionando produtos de uma a outra, formando-se assim cadeias de unidades produtivas interligadas. Esta crescente articulação e complexidade do processo produtivo geral aumentam a necessidade de condições gerais e impõe uma determinada configuração ao espaço ocupado. É necessário ressaltar que qualquer tipo de produção (agrária ou industrial) requer certas condições gerais para que se complete o ciclo econômico de produção de valor, sua realização e a acumulação de excedente; isto em qualquer época histórica. Essas condições gerais evidentemente variam de época para época. Nos parágrafos acima tratemos com mais relevo a unidade produtiva industrial, pois é ela que influencia fundamentalmente as transformações históricas que culminam no urbano de hoje, mas poderíamos raciocinar da mesma forma em relação à unidade produtiva agrária. Se as unidades produtivas tipo fábrica, e as cadeias por elas formadas, são fruto quase exclusivo da divisão técnica do trabalho e das necessidades técnicas e econômicas do processo faz dos clássicos marxistas produtivo, elas têm como contrapartida e muitas vezes como condição necessária uma divisão social do trabalho que se consubstancia na separação entre trabalhador e meios de produção e na constituição das classes sociais. A crescente complexidade da interação conflitual dessas classes faz com que elas criem órgãos e instituições (associações, sindicatos, partidos políticos, etc.) que por sua vez vêm requerer condições gerais para a sua operação e funcionamento. Por outro lado, as relações entre essas classes dentro de uma formação social, que condicionam e são condicionadas pelo modo de produção nela dominante, são a base sócio-política que necessita ser mantida para assegurar a continuidade de um determinado modo de produção e de apropriação do excedente. 21
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Esta dinâmica dá azo à criação (supostamente pela sociedade como um todo, na realidade pelo Estado como guardião de certos interesses das classes dominantes e da coesão do todo social) de uma série de condições gerais (talvez caiba aqui uma distinção entre a instituição e suas condições de operação) para que se mantenham essas relações sociais e se assegure a sua reprodução. Temos assim os serviços de justiça e afins, a polícia e demais órgãos repressivos, a educação, certos aspectos dos organismos culturais e de lazer, a previdência social nos seus aspectos de “seguro-desemprego” etc. As classes sociais confrontam-se em lutas sócio-políticas nas quais o objetivo é obter maior poder econômico e político. A apropriação de condições gerais também faz parte dessa luta. Uma classe social articula práticas de apropriação das condições gerais que servem de sustentáculo às atividades que asseguram a sua sobrevivência e sua própria reprodução enquanto classe. Essas práticas de apropriação das condições gerais são prenhes de contradições e conflitos, pois, no fundo, trata-se de recursos escassos cuja apropriação se dá na maior parte através do mercado, onde vigora a concorrência e a competição. O processo descrito não implica de forma alguma que, num momento anterior àquele em que se inicia a descrição, os vários elementos em jogo, unidades produtivas (mas ainda não fábricas!) e agentes da produção e do consumo não tivessem necessidades e não se beneficiassem já das condições mencionadas acima, numa certa forma. A) A primeira grande e fundamental diferença entre o antes e o depois é que antes da penetração e desenvolvimento do M.P.C. essas condições eram asseguradas (na sua maior parte) no âmbito individual (através do trabalho individual) isto tanto em relação às unidades produtivas quanto em relação à população consumidora. Após o desenvolvimento do M.P.C., essas condições passam para o âmbito coletivo, passam a ser produzidas coletivamente, portanto são socializadas, até porque a divisão técnica e social do trabalho também atua na esfera da produção dessas, agora sim, condições gerais (gerais porque socializadas, produzidas coletivamente, geridas e consumidas dentro de regras, normas e leis gerais e coletivas). Poderíamos aqui mencionar a título de exemplo a provisão da água, da educação e da energia, em suas formas extremas. Asseguradas, inicialmente, individualmente através de poços ou localizações perto de córregos, através de preceptores ou professores particulares, através de formas de energia primitivas - lenha e carvão extraídos ou angariados manualmente; depois, asseguradas coletivamente, através de grandes sistemas hidráulicos de captação e condução, 22
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através de escolas públicas ou privadas, mas para grande número de alunos, através de grandes centrais hidroelétricas ou de grandes sistemas de captação, processamento e distribuição de petróleo e gás. Na medida em que o M.P.C. se desenvolve, estabelece-se uma dinâmica nessa passagem das condições necessárias à produção e ao consumo, que tem uma lógica própria derivada da necessidade de eficiência econômica na procura de maiores lucros. Assim, na esfera da produção, as pequenas firmas familiares podem conservar ainda no seu âmbito serviços, tais como limpeza da fábrica, “estudos” de processos técnicos etc. À medida que crescem e se estabelecem as cadeias de firmas, tendem a lançar para fora do seu âmbito esses serviços, indo eles cair no urbano, coletivizados. Estabelecem-se assim pequenas firmas, ou apenas pessoal “especializado” que faz esses serviços contratualmente. Num outro estágio do seu crescimento, poderá ser que a firma tenha escala suficiente para re-englobar no seu âmbito esses serviços, constituindo os seus próprios serviços de limpeza, o seu próprio departamento de estudos e pesquisa. Ou então, a firma de limpeza ou consultoria técnica cresce e estabelece-se independentemente, vendendo os seus serviços a uma unidade produtiva, a várias ou, a uma cadeia de firmas já, mais ou menos, consolidada. A mesma, ou semelhante dinâmica, poderíamos detectar em outros serviços ou setores (transportes, autopeças, energia etc.). Na esfera do consumo, estavam no âmbito da unidade familiar todas (ou quase) as condições necessárias à reprodução de seus membros: água (poços), energia (lenha ou carvão apanhados na natureza pelos próprios), saneamento (fossa negra ou estrumeira própria), alimentação (angariada e preparada individualmente e muitas vezes de produção própria), transporte (a pé ou por meios próprios) etc. Em seguida, essas condições são gradualmente coletivizadas: a água passa a ser coletada e distribuída por grandes redes hidráulicas, a energia é gerada e distribuída por companhias, o saneamento é realizado por sistemas gerais, a alimentação passa a ser distribuída por lojas, produzida por grandes firmas e muitas vezes até preparada por restaurantes e refeitórios, instalam-se transportes coletivos etc. Algumas dessas condições gerais materializam-se em atividades que, como veremos na parte final do texto, se convencionou chamar de meios coletivos de consumo. Não cabe, no entanto, no âmbito deste trabalho, uma análise aprofundada do desenvolvimento histórico dos meios coletivos de consumo. Propomos aqui, a título de registro, algumas ideias que poderão formar o embrião de uma tal análise. 23
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Uma forma de se tentar a análise do processo de constituição dos meios coletivos de consumo seria através do exame das transformações por que passou a unidade de reprodução da força de trabalho ao longo do desenvolvimento dos vários modos de produção, no que respeita ao binômio trabalho produtivo e trabalho individual de consumo, ou seja, trabalho necessário para realizar a reprodução da força de trabalho. Nas épocas anteriores ao modo de produção capitalista, esses dois tipos de trabalho coincidiam. A exploração se dava através da cessão gratuita de uma parte do excedente, ou de uma parte perfeitamente distinta de tempo de trabalho. No que respeita à subsistência da unidade familiar, os dois tipos de trabalho coincidiam. O desenvolvimento do modo de produção capitalista vem gradualmente instaurar a separação entre o trabalhador e os meios de produção, e como corolário a separação entre estes dois tipos de trabalho. A mercantilização e monetarização da economia estabelecem o vínculo entre os dois, que é o salário e a possibilidade de com ele adquirir as mercadorias que servirão ao consumo para reprodução da força de trabalho. No seio da unidade familiar estabelece-se uma dicotomia entre os dois tipos de trabalho. Num primeiro momento, o sistema capitalista tenta aumentar a acumulação através do aumento da mais-valia absoluta, ou seja, do tempo de trabalho produtivo. Num segundo momento, com o mesmo objetivo, tenta aumentar a mais-valia relativa, através da redução do valor da força de trabalho e, portanto do tempo de trabalho necessário para a sua reprodução. Em ambos os casos, a redução do tempo de trabalho para consumo ou do valor da força de trabalho requer que se façam economias no trabalho de consumo. No primeiro caso, é óbvio que, sendo o dia composto por uma parte de trabalho produtivo e outra de trabalho de consumo, para aumentar a primeira há que diminuir a última. No segundo, sendo o valor da força de trabalho o valor dos bens e serviços consumidos pelos trabalhadores para assegurar a sua reprodução, ao se conseguir prover esses bens e serviços de forma socializada e racionalizada, obtêm-se economias de escala que abaixam o seu valor e, portanto, o da força de trabalho. Retomando o caso da educação e da água, se cada família tivesse que providenciar individualmente educação para os filhos e água para o seu consumo, estas duas coisas teriam custos e um valor muito maior do que sendo obtidas socializadamente através de sistemas organizados e com escala maior. Essa é a razão por que se começam a desenvolver os meios coletivos de consumo, que virão a permitir grandes economias de escala nesse consumo. Por outro lado, a aglomeração também vem permitir as chamadas economias 24
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de aglomeração no consumo. Esta é uma das razões por que a cidade, forma de organização espacial aglomerada, é condição necessária (embora não suficiente!) para o desenvolvimento do modo de produção capitalista. Uma outra é a mesma necessidade de economias no âmbito da produção, sendo que, evidentemente, uma viabiliza a outra. B) A segunda grande e fundamental diferença entre antes e depois da penetração do M.P.C. se dá ao nível espacial. Se antes já se notava uma certa tendência à aglomeração, essa tendência é enormemente potencializada e realizada pela penetração do modo de produção capitalista na formação social, pois este acarreta, como vimos, uma aglomeração no espaço de meios de produção, uma aglomeração das unidades produtivas, da população enquanto força de trabalho (e consequentemente enquanto consumidores) e uma aglomeração das próprias condições gerais. O fato de se ter criado uma concentração de meios de produção e de população implica que essas condições estejam também concentradas. Este fato permite que se realizem determinadas economias de escala no fornecimento dessas condições, o que por sua vez condiciona e permite que elas sejam fornecidas de uma determinada maneira e com uma certa forma. Essas aglomerações são (grosso modo) as cidades modernas. No entanto essa aglomeração espacial não se poderia dar, evidentemente, num só ponto do espaço; constituem-se assim várias cidades, que se especializam funcionalmente devido a condições geográficas, econômicas e políticas. Progride-se assim na divisão do trabalho, visto que esta se instaura entre as cidades. Temos aqui, com toda a clareza, uma divisão social do trabalho, que se reflete numa divisão social do espaço, imposta pelo mercado e sua extensão. Com efeito, é através da competição e da concorrência dos preços dos seus produtos no mercado que as atividades de cada cidade gradualmente se ampliam, estagnam ou nem sequer chegam a nascer. É evidente que presidem aqui certas condições, a que poderíamos chamar de técnicas, que estão presentes, ou não, em cada cidade. Mas o fato é que a dinâmica deste processo de especialização se dá no mercado, através da concorrência, não havendo nele nenhuma “racionalidade técnica”, nenhuma lógica da cooperação. Há então a necessidade de estabelecer ligações entre essas aglomerações, constituindo-se assim uma rede de cidades, dentro da qual cada’ uma tem a sua especificidade, mas depende, para se realizar enquanto “urbano”, das outras cidades e das suas ligações com o resto da rede. É preciso realçar aqui que essas aglomerações e a constituição da rede são a própria materialização, ao nível espacial, do modo de produção capitalista. 25
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São as suas expressões espaciais! Não há desenvolvimento capitalista sem aglomerações, num primeiro momento, e sem rede, num segundo. Pode haver aglomerações sem capitalismo, mas não há capitalismo sem aglomerações. O espaço do capital exprime essa tendência dupla do M.P.C. que é a de aglomerar capital fixo num ponto e de se expandir através da multiplicação desses pontos, abarcando áreas cada vez maiores e causando assim o chamado “desenvolvimento desigual e combinado”. O que é a chamada “integração nacional” (capitalista) senão exatamente a constituição de aglomerações e de uma rede, cobrindo todo o espaço nacional, como o seu corolário, a constituição de um mercado integrado e nacional para todos os produtos do capital? Nesse momento de passagem (que, escusado será dizer, não se dá em bloco) das atividades que asseguram e produzem as condições (gerais), do âmbito individual para o âmbito coletivo, dá-se a transfiguração do velho urbano e materializa-se o novo, visto que essas atividades, aglomeradas pelas próprias necessidades e imposições da divisão técnica e social do trabalho, “caem” no velho espaço urbano, explodem-no, aumentando-lhe os limites, e constituem um novo espaço urbano, com outra escala e dimensão. Este processo de aglomeração e a consequente estruturação do espaço urbano não se dão sem atritos e conflitos. A divisão técnica do espaço dentro das unidades produtivas (e/ou de consumo) se dá (como a do trabalho) de acordo com uma ordem de interdependência imposta pelos instrumentos de trabalho. Estamos aí no âmbito da complementaridade e da cooperação. O “layout” da fábrica, determinado pelos instrumentos de trabalho (máquinas) e sua concatenação lógica no processo de produção é organizado pelo engenheiro da mesma forma que na unidade habitacional se processa uma organização do espaço de acordo com as atividades que nele se levam a cabo e, portanto com os “instrumentos” nelas usados. Já na estruturação do espaço urbano como um todo se dá uma divisão social do espaço que, na sociedade capitalista concorrencial, se processa através dos mecanismos de mercado. Estamos no âmbito da concorrência, da competição e, portanto, do conflito potencial e real. Essa concorrência se dá entre agentes utilizadores do espaço urbano que têm diferenças de poder econômico e político. A localização real de cada um deles é fruto do jogo das necessidades locacionais com as suas possibilidades em termos econômicos e políticos, isto tanto para as unidades produtivas (empresas e fábricas) como para as classes sociais e os próprios indivíduos. As práticas de apropriação que se dão no seio deste processo de estruturação do espaço urbano ilustram bem a contradição fundamental que se dá no seu seio. Por um lado o espaço urbano é cada vez 26
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mais socializado, quer no que respeita ao seu potencial de expansão (visto que este é determinado pelo crescimento geral das atividades econômicas, que são de caráter social), quer no referente à sua produção, quer ainda no que diz respeito às necessidades dos seus utilizadores. Por outro lado, a sua apropriação é no geral privada, prevalecendo aí a lei do econômica ou politicamente mais forte. Essas contradições resolvem-se, na prática, sempre (ou quase) a contento de um terceiro ator do drama urbano, o proprietário do solo que, através do instituto da propriedade privada, neste caso aplicado ao solo urbano, consegue apropriar-se de uma parte da maisvalia gerada em outros setores, sob a forma de renda fundiária 3. Estabelece-se assim a divisão técnico-social do espaço que temos frente a nós na realidade. Deste modo, vai-se concretizando ao longo da história do desenvolvimento do M.P.C. o tipo de urbano que lhe corresponde e lhe supre as próprias necessidades de desenvolvimento, de acordo com o estágio em que se encontra. GRÁFICO 1 - Notas Introdutórias para a Construção de um objeto de estudo: “O URBANO” Estado e Urbano no processo de desenvolvimento das forças produtivas no modo de produção capitalista
Fonte: Elaboração de Celso Monteiro Lamparelli 3
Ver, a respeito da problemática da renda fundiária urbana, em particular Lipietz (1974).
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O Urbano e o Modo de Produção Capitalista no seu Estágio Monopolista Podemos detectar, no entanto um outro momento de mudança do urbano, que está ligado à transformação do modo de produção capitalista, do seu estágio concorrencial para o estágio de capitalismo monopolista. Este novo estágio, caracterizado pela constituição de grandes unidades de produção complexas, pela formação de um capital financeiro que comanda as operações de grande monta, pela internacionalização do capital ao nível mundial (penetrando até nos países socialistas!), vem requerer do urbano condições gerais de um novo tipo e, portanto transformado radicalmente outra vez. As unidades de produção complexas, pelo seu porte, pela sua sofisticação, pela avançada divisão técnica do trabalho que nelas se manifesta, e pela consequente divisão social do trabalho também mais complexa, resultam numa procura de condições gerais, que devido ao seu porte, organização e necessidade de capital são cada vez mais assumidas pelo próprio Estado. Na esfera do consumo, as necessidades de realização do capital monopolista, bem como as lutas sociais dos trabalhadores organizados por melhores condições de vida, provocam o aparecimento do consumo de massa, sob duas formas: na esfera dos bens privados de mercado, através de aumentos relativos de salário; na esfera dos “bens públicos”, através de uma crescente intervenção do Estado na sua produção. Os circuitos de distribuição aumentam enormemente e racionalizam-se. Caracteriza-se essa nova fase do urbano por uma crescente intervenção do Estado na esfera do acondicionamento, gestão e provisão das condições gerais tanto para a produção como para o consumo, ou seja, para a reprodução ampliada do capital e da força de trabalho. Essa intervenção é causada por múltiplas razões. Neste estágio de desenvolvimento do M.P.C. embora o problema da baixa tendencial da taxa de lucro se ponha ainda, vem juntar-se a ele o problema da realização do valor materializado nos produtos. Nas suas intervenções o Estado visa atingir um triplo objetivo: 1) contrariar a baixa tendencial da taxa de lucro; 2) facilitar a realização do valor e 3) minimizar os conflitos sociais. A sua intervenção, nas condições gerais e particularmente nos meios coletivos, contribui sobremaneira para que estes objetivos sejam atingidos. Por um lado, o Estado baixa os custos de reprodução da força de trabalho, não só ao proporcionar bens e serviços de forma racionalizada e com econo28
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mias de escala, mas também ao socializar os custos através da forma de financiamento, baseada no sistema tributário, no mais das vezes bastante regressivo. Além disto, os meios coletivos são utilizados (ou pelo menos podem sê-lo) para veicular novos produtos e hábitos de consumo estandardizados, que contribuem para a formação de um “homem racional capitalista”: consumidor padrão de tudo o que é produzido. Abrem-se assim novos mercados para serem, mais tarde, ocupados pelos produtos do capital privado, de forma direta. Por outro lado, o Estado torna-se consumidor de uma vasta gama de produtos do capital privado, e ainda por cima, fornece-lhe processo de trabalho e de valorização que permitem o desenvolvimento da acumulação na esfera privada. Finalmente fornece a custos subsidiados os equipamentos necessários à manutenção de um determinado padrão de vida para as classes trabalhadoras, o que minimiza as tensões sociais (não sem causar outras contradições, como se pode verificar). Além do mais, os meios coletivos de consumo passam também a cumprir funções no processo de reprodução das relações sociais. Têm eles um papel ideológico de grande importância, tanto no que respeita ao seu potencial de legitimação para o Estado que os fornece, como também no que respeita à sua capacidade de veicular a ideologia dominante. É ela veiculada tanto ao nível das relações interpessoais que se estabelecem no seio dos meios coletivos (o caso do atendimento hospitalar é óbvio, onde o relacionamento médico/ paciente é um reflexo, e ao mesmo tempo novo reforço, das relações de dominação mais gerais), como ao nível do conteúdo do que lhes é dado distribuir (o conteúdo da educação é altamente ideológico - como o é a forma em que é ministrada, sendo o relacionamento professor/aluno semelhante ao do médico/ paciente). O urbano tal como é entendido aqui passa cada vez mais para o âmbito do Estado, e a socialização mencionada acima passa a assumir crescentemente uma forma estatal. Esta socialização dá-se no âmbito do desenvolvimento do M.P.C. no seu estágio de capitalismo monopolista, e, portanto, não é de admirar que o M.P.C. penetre também a própria prática estatal de produção dos bens e serviços socializados. Nada, ou muito pouco, distingue hoje em dia no caso brasileiro a prática e organização de uma SABESP4 ou CESP5 das de uma firma privada qualquer. Neste aspecto da produção dos bens e serviços pelo Estado, há que Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo, responsável pelo abastecimento de água e saneamento. 5 Centrais Elétricas de São Paulo, atualmente Companhia Energética do estado de São Paulo, responsável pelos sistemas de geração e fornecimento de energia elétrica. 4
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distinguir a produção do bem em si, da sua gestão e operação e por sua vez do resultado final. Por exemplo: um serviço de “metrô”. Temos primeiro a produção do bem em si, ou seja, os túneis, as estações, a via férrea, os trens e vagões, os sistemas de controle etc.; temos em seguida a operação desse “metrô”, ou seja o seu funcionamento efetivo; e temos finalmente o resultado (produto?) final que é o fato de determinado número de pessoas serem transportadas de forma mais eficiente, de um ponto A para um ponto B. Estes três itens são geralmente objeto de tratamento ou análise diferentes. O primeiro é entregue à “iniciativa privada” que tem aí um processo de trabalho para a valorização do seu capital; o segundo corre por conta integral do Estado que normalmente assume e subsidia os custos; o terceiro é apropriado em parte pelo capital privado, que pode assim contar com força de trabalho mais descansada, fresca e produtiva (com os custos dessa melhoria arcados pelo Estado), em parte pela população em geral que dispõe assim de um meio de transporte mais rápido e eficiente quer seja para ir trabalhar quer seja para objetivos de lazer, entre outros. A intervenção do Estado é determinada por múltiplas causas. O capital monopolista, que detém poder suficiente para influenciar decisivamente a ação estatal através de vários mecanismos, tenta instrumentalizá-lo no sentido de fazer com que as suas intervenções beneficiem diretamente a acumulação de capital, quer através de ajudas diretas à produção, quer pelo viés dos subsídios ao custo de reprodução da força de trabalho, quer facilitando a realização do valor, como vimos. Por outro lado, o Estado, sobretudo em períodos de democracia formal, é sensível às lutas que se travam na sociedade civil e age muitas vezes em função dessas lutas, levando assim, em alguns casos, os benefícios de suas intervenções às classes dominadas. Essas lutas refletem-se ainda no seu próprio seio, influenciando a prática político-administrativa num sentido ou noutro, em função da correlação de forças conjuntural. Toda e qualquer intervenção estatal nas condições gerais é, no fundo, multifacetada, e um mesmo conjunto de ações, ou políticas, pode “beneficiar”, ao mesmo tempo, interesses divergentes. É nesta característica (entre outras) que reside a possibilidade de o Estado fazer crer na sua isenção político-ideológica, perpetuando assim o mito do “Estado-neutro”. Como se pode prever, no seio desta dinâmica, geram-se contradições num momento, para se resolverem ou “acalmarem” noutro, contribuindo assim para o avanço do processo histórico. Se a visão apresentada até aqui tende a enfocar esse processo do ponto de vista do capital, a verdade é que, 30
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no processo de constituição dos meios coletivos, trabalhadores e população em geral jogam um papel importante, não apenas como objeto, mas também como sujeitos do processo. Uma vez que se estabelecem os meios coletivos, e muitas vezes por não se terem ainda constituído, eles passam a ser objeto de luta por parte da população (e espaço dessa própria luta), que vê neles formas de socialização necessárias, mas insuficientes, precisando ser aprofundadas e desenvolvidas tanto quantitativa quanto qualitativamente. São eles então pretexto para pôr formas de socialização ainda mais avançadas, transformando-se assim, dialeticamente, de puros instrumentos de dominação, em patamares para lutas por objetivos mais avançados (nos momentos de avanço das forças progressistas) ou em lócus de resistência às pressões da classe dominante (nos momentos de refluxo dessas forças). Os chamados movimentos sociais urbanos, que se articulam tendo o mais das vezes esses meios coletivos como objeto de luta, nada mais são do que a concretização dessas resistências no contexto urbano. Ao nível espacial, as grandes cidades de hoje constituem-se em escala muito maior do que na fase anterior. Do ponto de vista qualitativo, ao nível da estruturação do seu espaço, são mais sofisticadas e complexas, refletindo a maior divisão social e técnica do trabalho, que se transforma numa divisão social e técnica do espaço. A produção do espaço atinge novos patamares técnicos e a estrutura das rendas fundiárias e suas apropriações tornam-se também mais complexas; todo este setor passa a ser objeto de penetração do capital financeiro que leva os processos especulativos aos níveis mais altos, com as consequências que podemos ver hoje na realidade das grandes metrópoles de todo o mundo capitalista. Agrava-se assim ainda mais a contradição entre o caráter socializado do espaço urbano e a apropriação privada que dele é feita. A rede urbana, por sua vez, torna-se mais hierarquizada, interdependente e integrada, proporcionando a cada elemento dessa rede possibilidades de funcionamento mais eficiente dentro do padrão de acumulação imposto pelo modo de produção capitalista. Cada cidade adquire funções específicas e características gerais ligadas à configuração dos meios coletivos que materializam as condições gerais, o que resulta numa “unidade na diversidade” do caráter urbano, mas também num agravamento a nível inter-regional das contradições do “desenvolvimento desigual e combinado” fruto da divisão social do espaço (e do trabalho) perpetuada pelo mercado. O agravamento destas contradições é de tal ordem que o Estado se vê obrigado a intervir como normalizador, regulador e muitas vezes produtor do próprio espaço urbano. No período pós-II Grande Guerra, vemos por todo o 31
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mundo capitalista uma proliferação de planos de urbanização, leis de zoneamento, obras pontuais, e outras manifestações dessa intervenção estatal, numa tentativa de resolver ou pelo menos minimizar essas contradições. O planejamento urbano aparece então como a atividade que organiza e operacionaliza essa intervenção. Atividade organizadora e operacionalizadora que é, baseia-se numa racionalidade técnica deduzida de premissas ideais, mas encontra pela frente uma realidade complexa e, sobretudo contraditória, poucas vezes passível de tratamentos técnico-racionais. Causa esta defasagem profundas contradições no seio da disciplina e inúmeras dúvidas existenciais nos profissionais que a praticam, prensados entre os ditames dessa racionalidade e as pressões políticas, econômicas e sociais que emanam da realidade. Dentro dessa dinâmica, as leis de zoneamento são uma tentativa de aplicar à força uma racionalidade técnica (?) na melhor das hipóteses, baseada numa visão da cidade que a toma idealmente como um espaço onde seria possível aplicar uma divisão técnica, sem perceber (ou sem querer perceber) que a dinâmica de estruturação desse espaço é eminentemente social e não técnica, portanto contraditória e não cooperativa! É também neste período histórico que o Estado começa a tratar com mais cuidado o problema das “disparidades regionais”, produzindo planos regionais (“métropoles d’équilibre” e “aid to depressed regions”) e dando tratamento econômico especial às regiões menos bafejadas pela sorte no jogo do mercado livre, pautando a sua intervenção pelos mesmos princípios básicos que orientam a sua atuação nas cidades. Ao M.P.C., no seu estágio de capitalismo monopolista em escala mundial, corresponde, portanto, um novo tipo de urbano, com as características que todos podemos ver nas grandes metrópoles do mundo capitalista bem como nas redes urbanas de cada país, cujas peculiaridades regionais são cada vez mais apagadas pela penetração da uniformidade cultural imposta pelo modo de produção dominante, que se estende hoje aos mais afastados recantos do mundo. Ao distinguir estas duas etapas de desenvolvimento do M.P.C. estamos conscientes de que elas não são estanques ou mutuamente exclusivas. Os urbanos que criam interpenetram-se e sobrepõem-se, pois, pela sua própria natureza, os aspectos físicos do urbano têm uma “inércia histórica” que os faz atravessar vários períodos, por vezes intocados em alguns traços ou em certos lugares, sobrevivendo aos processos sociais que abrigavam. Assiste-se assim a um processo de sedimentação e de interpenetração dos 32
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aspectos físicos desse urbano, em certos casos por corresponderem ainda a restos de modos de produção anteriores ou a etapas pretéritas do M.P.C. que sobrevivem (e têm certas funções econômicas) embora já tenham deixado de ser dominantes, em outros por não terem ainda sido objeto de atenção por parte das forças que produzem os aspectos físicos das nossas cidades (quer isto dizer não demonstrarem ainda um potencial de lucro suficientemente alto!). De todo este aglomerado de processos, forças, contradições, pressões e resistências resultam as cidades e também as regiões urbanizadas, tal como as conhecemos hoje.
Estado e Urbano no Brasil. Visão Geral e Hipóteses Exploratórias As Etapas
Numa primeira visão do desenvolvimento histórico da relação Estado / urbano no Brasil, podemos detectar várias etapas distintas que se relacionam com as características econômico-políticas da formação social brasileira, tanto internas quanto externas (ou seja referentes ao papel do Brasil no contexto internacional). Assim, uma primeira etapa seria o período colonial e pós-colonial até meados do século XIX. O urbano nasce pela mão do Estado colonizador, fundamentalmente como lócus do aparelho político e administrativo que exerce a dominação colonial e capta uma parte do excedente produzido. As atividades econômicas à medida que se desenvolvem requerem condições gerais que se inserem nesse urbano, fazendo-o desenvolver-se de acordo com as necessidades dessas atividades: instalam-se os circuitos comerciais que permitem a ligação da produção com a circulação internacional de mercadorias. As cidades políticas normalmente localizadas na costa (Salvador e Olinda/ Recife) passam também a ser portos de exportação e polos de influência das regiões produtoras que as rodeiam, fornecendo-lhes os (poucos) insumos necessários e os pequenos mercados para as trocas comerciais. No interior, as próprias unidades produtivas contêm no seu âmbito as condições necessárias à sua reprodução, tanto da força de trabalho como das condições para a produção. Uma série de particularidades do processo econômico desta época influenciará determinantemente o padrão de urbanização. 33
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A monocultura do açúcar para exportação apenas necessitava das cidades como entrepostos para o produto no seu caminho para o exterior. A relativa autossuficiência das unidades produtivas, por um lado, fazia com que elas requeressem da cidade poucas contribuições para o seu funcionamento; e, por outro, em virtude de estar nelas embutida uma divisão social do trabalho que era a própria condição dessa autossuficiência, impedia o desenvolvimento da divisão social do trabalho nas cidades e a aparição de toda uma série de atividades que “normalmente” aí se encontrariam. Note-se que este padrão extremamente pobre de divisão social do trabalho no campo ocorre não porque não haja bens e serviços, mas sim porque não há troca de mercadorias. A reprodução se dá dentro das unidades produtivas (sem trocas comerciais) e por isso se pode chamá-las de “autárquicas” 6 . Evidentemente, sem as trocas comerciais, falta um elo no processo que permitiria o aprofundamento da divisão social do trabalho e, portanto limitase bastante o desenvolvimento desta. O trabalho escravo, pelo seu lado, negava à cidade a sua condição de mercado de trabalho, que é um dos seus atributos básicos. Todos estes fatores contribuíram para que a rede urbana do Brasil, neste primeiro período, tomasse uma forma extremamente polarizada, com um pequeno número de grandes cidades e raras pequenas aglomerações entre elas e as unidades produtivas. As grandes cidades eram assim as sedes da administração e do capital comercial que controlava a produção e fazia a ligação com a circulação internacional de mercadorias; pouco mais. Os grandes exemplos deste tipo de cidade são Salvador e Olinda/Recife. Durante o século XVIII, o ciclo mineiro da economia brasileira deu lugar ao surgimento de algumas cidades de certo porte no seu auge (Ouro Preto, São João Dei Rei, Cuiabá, Vila Bela), mas que decaem com a exaustão dos veios de minério, retrocedendo para um semi-isolamento e estagnação quando uma boa parte da população a elas ligada se desloca, e a que fica passa a dedicar-se a uma agricultura de subsistência. Temos, no entanto, fruto deste período, o aparecimento do Rio de Janeiro como grande cidade, porto de exportação e comércio das riquezas extraídas, que mais tarde se transformará na capital administrativa do país. É exatamente através do Rio de Janeiro que irá começar o ciclo cafeeiro da economia, ciclo este que terá consequências importantes para a urbani6
Sobre a questão da “autarcização” ver Oliveira (1978) que cunhou o termo e desenvolveu o conceito.
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zação do país, em particular do estado de São Paulo. Com efeito, o cultivo do café é uma atividade urbanizadora, pois ao contrário do açúcar, necessita de condições gerais para o seu funcionamento que só podem ser oferecidas pelas cidades: circuitos de comercialização, rede bancária, entrepostos para estocagem e beneficiamento do produto, mercado para compra de insumos importantes e, finalmente, um local de consumo um pouco mais santuários para os proprietários do excedente. Assim, entra o café pelo Rio de Janeiro, penetra em São Paulo através do Vale do Paraíba, expande-se pelo interior do estado e desvia-se para o Norte e interior do Paraná. Ao longo desta marcha cria as suas cidades e as beneficia diferencialmente, pois o excedente tende a concentrar-se (através dos circuitos de comercialização) em algumas que virão a ser cidades médias de relativa importância. Com efeito, no período de “invasão”, expansão e auge do café numa região, a cidade com melhor localização em termos de comunicações com os grandes centros (São Paulo e Santos), e/ou rodeada pelas melhores terras, começa por concentrar os serviços necessários à produção, o que por sua vez atrai o comércio, o banco, o médico, a farmácia, a escola etc. Os circuitos comerciais que se estabelecem entre esta e as outras cidades da região canalizam a transferência do excedente que se fixará em parte na primeira, formando-se o círculo vicioso no qual “quem mais tem, mais ganha”. O excedente monetário arrecadado pelos produtores de café (dele deduzidos os gastos de consumo e as possíveis aplicações de capital noutros setores da economia) é reaplicado na compra de novas terras agrícolas ou de propriedades imobiliárias na cidade polarizadora, e até mesmo em São Paulo (vide Avenida Paulista), o que contribui ainda mais para o processo de concentração. Forma-se assim uma rede hierarquizada de cidades. No período de “fuga” do café (por esgotamento das terras) as várias cidades irão resistir diferenciadamente. A cidade maior e algumas outras resistirão com êxito, tendo gradualmente substituído ou complementado as atividades de distribuição com a produção de mercadorias, ou sustentando-se noutras atividades agrícolas quando as terras ainda o permitem. É curioso notar que o próprio processo de “fuga” do café contribui potencialmente para uma polarização ainda maior, pois embora leve consigo população de todas as cidades indiscriminadamente, dos que ficam na região, muitos partirão da cidade pequena, agora “arruinada”, e irão se fixar nos centros urbanos que conseguiram resistir à partida do café. Nas palavras de Sergio Milliet7 Vide Milliet (1946), e em particular Padis (1978), pois várias das ideias aqui enunciadas baseiam-se em sua análise da influência da agricultura no processo de urbanização.
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[...] há na sua (das cidades) sobrevivência à onda cafeeira uma espécie de ponto de equilíbrio que precisa ser atingido antes da derrocada. Assim, Taubaté, Jundiaí, Campinas, Piracicaba, Sorocaba, Bauru, se firmam; Areias, Ubatuba, São Luiz do Paraitinga, Parnaíba, desaparecem praticamente; outras se imobilizam. Influência do café? Indiscutivelmente. Grandezas e decadências que se ligam de um modo direto à grandeza e decadência do café. (MILLIET, 1946)
Quanto à influência da cultura cafeeira na divisão social do trabalho, poder-se-ia pensar que, no âmbito estrito da produção, ela não lhe introduz aumentos significativos; mas por outro lado, a sua presença numa região chama toda uma série de atividades que vão estimular e possibilitar as trocas de mercadorias em geral, e assim contribuir para o aumento desta divisão, ao longo de um lento processo. Quando o café se retira, as cidades que resistem à sua partida conservarão sem dúvida uma parte das conquistas já alcançadas nesse campo. Resta saber se essas atividades “novas”, e a força de trabalho por elas criada, se adequam às necessidades do tipo de desenvolvimento que virá numa fase posterior. A resposta parece ser parcialmente negativa, pois as primeiras são na sua maioria de caráter comercial e do tipo “prestação de serviços” (comércio de todo o tipo, bancos, serviços médicos e educacionais etc.). O padrão de acumulação posterior terá base essencialmente industrial e só indiretamente se baseará na força de trabalho criada e utilizada por essas atividades. Assiste-se também por volta de 1850 ao “início” dos fluxos migratórios europeus. Parte do excedente do café foi utilizada para financiar a vinda de trabalhadores europeus, que, com o acesso à propriedade da terra vedado, de facto ainda que não de jure, pela lei 601 de 1850, tendem a afluir às cidades médias uma vez que se desloca a atividade base que serviu para os atrair, ou seja a cultura do café. Vão eles estabelecer-se nessas cidades de porte médio onde alguns exercerão os misteres que originalmente tinham no seu país (artesanatos de toda a ordem). Cria-se assim uma mão-de-obra bastante especializada que servirá depois para a implantação da indústria na segunda etapa do desenvolvimento econômico da sociedade brasileira, na medida em que a tendência é à migração para a cidade maior, São Paulo. Nesta, juntam-se aos operários especializados de origem europeia que também imigram, de motu próprio ou já contratados por industriais interessados nas suas especialidades. As crises internacionais do mercado do café e a I Grande Guerra permitem e ao mesmo tempo requerem que a sociedade brasileira inicie a sua industriali-
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zação, baseada na substituição de importações, utilizando o excedente gerado pelas atividades agrícolas de exportação. Estas (em particular a economia cafeeira) teriam já preparado um mercado interno propicio à absorção das mercadorias industrializadas e criado um mercado de trabalho livre nas cidades, com abundância de força de trabalho a baixos preços (embora não qualificada), o que no todo configurava uma excelente situação para a inversão de capitais nos setores industriais (MILLIET, 1946). Essa industrialização não podia contar, como nos países centrais, com uma divisão social do trabalho autônoma no campo, consubstanciada em um campesinato - artesão que lhe fornecesse a mão-de-obra necessária às suas atividades. Ela teve que ser, pois, imediatamente urbana, e ainda assim com características peculiares devido às condições imperantes, nessa altura, nas cidades. Como vimos, a autarcização das unidades produtivas do campo impediu também nas cidades o desenvolvimento da divisão social do trabalho e o aparecimento de atividades que poderiam, neste novo estágio, fornecer a mão-de-obra, bem como outras condições necessárias ao desenvolvimento industrial. No que diz respeito à mão-de-obra especializada, as necessidades dessa indústria nascente foram supridas pelos imigrantes europeus que entretanto tinham afluído às cidades (embora em número e qualidade insuficientes por si só) e pela “importação” de operários especializados agora vindos diretamente para trabalhar na indústria urbana. Por outro lado, como já foi mencionada, a economia cafeeira tinha resultado, pela liberação do mercado de trabalho, numa oferta abundante e barata de força de trabalho não especializada. Assiste-se então à autarcização reflexa das unidades produtivas industriais na cidade, que, para subsistir, se viam obrigadas a criar, dentro delas mesmas, toda uma série de atividades não diretamente ligadas à produção propriamente dita, mas que asseguravam as condições necessárias à sua reprodução, tanto de força de trabalho especializada como dos meios de produção (habitação 8 , manutenção e até manufatura de máquinas, limpeza geral, beneficiamento de matérias-primas etc.). Este fato tem consequências importantes. Em primeiro lugar, a necessidade de as unidades produtivas serem, desde o início, de porte relativamente grande e tendência oligopolista, particularmente naquelas indústrias cuja base técnica é importada do contexto tecnológico vigente, à altura, nos países centrais. Ressalve-se não querer isto dizer As “vilas operárias”, normalmente construídas pela empresa industrial e de sua propriedade, destinavam-se principalmente aos operários especializados que a empresa queria manter nos seus quadros.
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que as indústrias nasçam já grandes, mas sim que no seu processo de acumulação galguem patamares de tamanho e atinjam rapidamente um porte relativamente grande. Esta afirmação parece ser confirmada por dados apresentados por Cano (1977), onde se pode ver que, por exemplo em São Paulo, os “estabelecimentos”, da indústria de transformação com mais de 100 operários (21,5% do total dos estabelecimentos) em 1907, utilizavam 82,8% do capital total do setor. Ao contrário do que se poderia prever, na indústria têxtil a concentração era ainda maior: o mesmo tipo de estabelecimento (74,2% do total deles, mas apenas 23 em números absolutos) utilizava 95,7% do capital total do ramo e tinha uma média de mais de 400 operários por unidade. Já em 1919, ainda o mesmo tipo de estabelecimento (3,5% do total) empregava 64,4% do total do operariado. Para o Brasil como um todo, a mesma porcentagem desses estabelecimentos (3,5%) empregava 69,7% do operariado e dava conta de 65,5% do valor total da produção da indústria de transformação. Como se pode ver, o grau de concentração da indústria, tanto no estado de São Paulo como no Brasil, é alto e foi atingido num lapso de tempo relativamente curto (15-20 anos). Resulta também do fato apontado acima que a urbanização induzida pelas indústrias é muito maior do que aquela que se poderia prever do número de postos de trabalho necessários à produção propriamente dita. Isto não só porque paralelamente ao posto de trabalho “produtivo” são também criados os postos de trabalho ligados às atividades que asseguram as “condições gerais autarcizadas”, mas também porque, na abundância de força de trabalho não especializada, a maior parte destas atividades é realizada com pouco capital e muito trabalho, o que potencia ainda mais a “capacidade urbanizadora” (melhor seria dizer apenas “aglomeradora”) deste tipo de industrialização. Por outro lado, esta situação faz com que a taxa de acumulação interna dessas unidades tenha que ser elevada (pois elas atendem também à criação das condições necessárias ao seu funcionamento, que estão no seu âmbito) e consequentemente que a taxa geral de acumulação não cresça tanto quanto deveria, pois quase todo o excedente é utilizado internamente, não sendo re-circulado através dos circuitos financeiros para ser reinvestido na criação de condições gerais urbanas, que teriam resultado numa urbanização mais “equipada”. Temos, portanto o seguinte quadro: por um lado uma altíssima taxa de urbanização, por outro um necessário desleixo na criação de condições gerais urbanas. O desleixo mencionado não quer dizer total abandono. Nas áreas onde pode identificar lucros potenciais, o capital entra, como é normal, quer 38
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se trate da produção de chapéus ou do transporte de pessoas. As áreas fundamentais para a produção ou comercialização de algum produto com um bom mercado também atrairão o capital privado. O caso da Light com os seus bondes, das empresas de ônibus de São Paulo, das ferrovias ligadas ao escoamento do café e à abertura de novas terras agrícolas são boas ilustrações do que acima está dito. Mais do que analisar a entrada do capital nessas áreas, seria interessante pesquisar por que ele gradualmente delas se desinteressa, bem como examinar as razões e a forma de intervenção do Estado nas mesmas. Esta situação de “necessário desleixo” vai evidentemente fazer com que o Estado, no momento em que quer potenciar e aumentar a taxa geral de acumulação, se veja obrigado, por um lado a intervir nos setores produtivos que, pelo volume de capitais necessários e de baixa rentabilidade potencial, não podem ser assumidos pelo capital privado (sendo, no entanto, fundamentais para o desenvolvimento) e por outro a assumir a criação das condições gerais urbanas e regionais que até aí tinham sido votadas ao abandono. Na década de 1950 o Estado abre as portas do país ao capital estrangeiro, por várias razões entre as quais avultam a falta de capitais e tecnologia nacionais para levar a cabo o desejado desenvolvimento, bem como a própria necessidade do capital internacional, então em fase expansionista, de procurar novos espaços para a sua valorização. A entrada deste capital traz consigo uma desenvolvida divisão social e técnica do trabalho e na maioria dos casos uma forma monopolista, o que cria uma nova feição na estrutura social brasileira com o aparecimento das chamadas “classes médias”. Classes médias essas que por sua vez requerem condições urbanas de consumo9 de um novo tipo que o Estado é obrigado a criar, desenvolvendo assim a sua intervenção nessa esfera. Além das condições gerais para a produção, também necessitam de renovação, que este capital exige e o Estado fornece. A partir de 1964, aumenta a penetração do capitalismo no campo e modernização de certas áreas agrícolas, o que contribui para a expulsão da mão-de-obra rural, que migra para as cidades de maior porte. Essa tendência acentua-se ainda mais quando o Estado, no seu esforço de atendimento às necessidades das classes médias urbanas, lança grandes programas de estímulo à construção civil, setor que absorve uma parte dessa mão-de-obra. De outro lado, a extensão das garantias trabalhistas ao campo contribui para a transformação dos parceiros e meeiros em simples assalariados que, no desenvolver do processo, acabam sendo expulsos do campo, vindo engrossar o número de migrantes para a cidade em Entre estas se destacam a habitação, mais sofisticada, com todos os produtos a ela ligados (eletrodomésticos, mobiliário, etc.) e o automóvel particular.
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busca de trabalho; ou então, continuando a trabalhar no campo, vêm reproduzirse e viver nas cidades (boias-frias). As Hipóteses
Podemos, agora, formular algumas hipóteses relativas à intervenção do Estado no urbano ao longo das etapas descritas acima. Num primeiro momento, o Estado cria o urbano, mas limita-se a fazer dele o lócus de sua administração. Este período vai até meados do século XIX. Durante o ciclo do café, e acompanhando todo o seu desenvolvimento praticamente até hoje, o Estado intervém no urbano, sobretudo através da sua instância municipal, para cuidar das condições urbanas que permitem o funcionamento dessa atividade, bem como do setor agrícola em geral. O município toma a seu cargo as poucas condições gerais urbanas para o consumo da classe dominante. No momento da industrialização, o Estado intervém apenas nas relações econômicas gerais, embora a sua atuação venha a ter profundos reflexos nas cidades. Por um lado, redireciona o excedente gerado pela atividade cafeeira, do setor agrícola para o setor industrial nascente; por outro, regulamenta as relações capital/trabalho, criando salário mínimo nas indústrias e toda uma legislação trabalhista que contribui para atrair mão-de-obra para as cidades, ao mesmo tempo que regula e abaixa o custo da força de trabalho. Mais tarde, o Estado começa também a criar condições gerais para a acumulação (transportes, energia elétrica, indústrias de insumos básicos), mas continua agindo no urbano da mesma forma que anteriormente, ou seja, com uma atuação voltada para o atendimento das necessidades das classes dominantes: velha (rural) e nova (industrial e financeira). Atua ainda pontualmente, segundo a conjuntura, para resolver problemas urbanos muito específicos. Tendo a sua ação voltada cada vez mais para a acumulação, descuida das questões urbanas mais sérias que afligem a crescente classe trabalhadora, e que se transformarão em graves problemas, num terceiro momento. Esse terceiro momento é marcado pela penetração do capital estrangeiro, que exige do Estado uma ação quase inteiramente voltada para a criação de condições gerais para a acumulação, começando também a atender às condições urbanas de reprodução das classes médias geradas por esse capital. No entanto, os problemas urbanos das classes trabalhadoras agravam-se e ameaçam afetar a própria dinâmica da acumulação, bem como a estabilidade do sistema como um todo. Começa então uma fase onde o Estado inicia a sua atuação sobre os ditos problemas, criando embrionariamente condições gerais urbanas para a reprodução da força de trabalho. 40
Nota introdutória sobre a construção de um objeto de estudo: “O Urbano”
O urbano aparece ao nível do discurso e de uma certa prática, embora de pequenas proporções. Temos, ainda hoje, um atendimento preferencial às necessidades da acumulação e das classes média e alta, com uma pequena, mas crescente preocupação com as condições gerais urbanas para a reprodução da força de trabalho. As Particularidades
Convêm destacar algumas particularidades do processo de urbanização brasileiro e da intervenção do Estado no urbano, para pôr em evidência algumas diferenças fundamentais em relação ao que se passa nesse campo nos países centrais. A rede urbana da primeira fase de desenvolvimento da economia brasileira é extremamente polarizada em poucas e grandes cidades. Não existe, como nos países centrais, o grande número de pequenas e médias cidades que formariam a base dessa rede urbana e poderiam, no momento da industrialização, fornecer localizações alternativas para as indústrias. Uma segunda diferença fundamental é a referente à divisão social e técnica do trabalho, à autarcização das unidades produtivas rurais e à consequente autarcização reflexa das unidades produtivas industriais com as enormes taxas de urbanização daí derivadas. Uma terceira diferença diz respeito ao período de capitalismo industrial semi-concorrencial que se deu no Brasil. Foi ele extremamente curto e de características peculiares no que se refere à capacidade de iniciativa privada para investir em condições gerais urbanas e regionais. Com efeito durou esse período, quando muito, uns 50 anos (l900-l950) vindo sobre ele imediatamente sobrepor-se um período de intervenção estatal e logo em seguida a penetração do capital monopolista internacional (escusado será dizer que esta periodização, além de grosseira, não é “estanque”). Além disso, o capital privado nacional presente nesse período não tinha condições de acumulação que lhe possibilitassem contribuir para a criação de condições gerais. Não houve, portanto, nem tempo nem dinheiro para investir e acumular em condições gerais, como foi o caso nos países centrais, onde durante 150 anos o capital privado construiu estradas, ferrovias, barragens e usinas de energia elétrica, tratou das comunicações, da habitação, do saneamento e dos insumos urbanos (água, gás, energia elétrica), dos transportes, dos circuitos de comercialização etc., entrando no século XV com toda uma infraestrutura que permitiria ao capitalismo monopolista desenvolver-se sem a intervenção direta do Estado num primeiro momento. Não se deu no Brasil essa acumulação de condições gerais, o que por um lado permitiu e por outro obrigou o Estado 41
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brasileiro a intervir maciçamente nos processos econômicos, o que lhe conferiu características bem particulares. Isto nos remete ao problema das diferenças existentes na forma de intervenção estatal nas condições gerais, nos países centrais e no Brasil. Nos países centrais o Estado intervém maciça e sistematicamente na área dos meios coletivos mencionados acima, através da ajuda direta ao capital monopolista a fim de lhe facilitar a penetração em certos setores, resolvendo parcialmente o problema da realização do valor e, por outro lado, preenchendo os vazios deixados pelo capital nos setores onde a taxa de lucro não é compensatória. Ele age com uma lógica capitalista, contrariando a baixa tendencial da taxa de lucro através de subsídios ao custo de reprodução da força de trabalho, dentro de um capitalismo que se desenvolveu através de uma dinâmica própria. O importante, no entanto, é que, ao fazê-lo, ele atua com um grau de eficiência suficiente para assegurar que os produtos, em senso lato, cheguem realmente aos seus destinatários. No Brasil, o Estado, num primeiro momento, é o principal fator de rearticulação das atividades econômicas, que irão permitir, facilitar e “empurrar” o desenvolvimento do modo de produção capitalista, à custa de uma enorme exploração da força de trabalho, exploração essa regulada e permitida pelo próprio Estado. Num segundo momento é ainda o Estado que abre as portas do país ao capital monopolista internacional, facilita a concentração do capital e a formação de monopólios. nacionais, e atua ele próprio na esfera da produção. Os problemas urbanos agravam-se de tal forma que o Estado é chamado a intervir entrando então na normatização, produção, gestão, operação e consumo das condições gerais mencionadas acima. Ao fazê-lo, a sua lógica reflete não somente as necessidades intrínsecas do processo de acumulação, impostas pela classe dominante que luta por fazê-lo um instrumento dessas necessidades, como também as lutas políticas que se dão no seio da sociedade civil, e que se refletem no seio do próprio Estado; essas lutas (de classes) dão-se com o objetivo de obter melhores condições econômicas e maior poder político para os diferentes grupos que nelas participam. O Estado não pode deixar de levá-las em conta na sua prática concreta, e acaba intervindo na esfera das condições gerais de acordo com estas múltiplas determinações. Poderíamos propor aqui, como hipótese, a seguinte formulação: no Brasil, de 1930 até agora, o Estado veio intervindo nesse campo com o objetivo fundamental de aumentar diretamente a taxa de acumulação, ou seja, direcionando essas condições gerais na sua maior parte para a produção (e consumo da classe de alta renda), sem passar pelo viés dos subsídios ao custo de reprodução da 42
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força de trabalho (até porque, a existência de um enorme exército industrial de reserva e dos mecanismos repressivos quer ao nível social - repressão propriamente dita - quer ao nível econômico - salário mínimo e sindicatos controlados - assegura por si só que esses custos sejam extremamente baixos). A não ser em casos onde esteja em causa a boa ordem política e social, o Estado não faz um esforço de atendimento às classes de baixa renda. A sua lógica de intervenção desdobra-se, na prática, através da ação de organismos estatais ou paraestatais, que operam como firmas privadas buscando o lucro por um lado (e, portanto, atendendo prioritariamente a quem pode pagar os seus bens e serviços), mas por outro beneficiando-se de créditos a baixas taxas de juro ou até a fundo perdido providenciados pelo próprio Estado, socializando assim boa parte dos custos. Isto tem como resultado que os principais beneficiários da sua intervenção nas condições gerais sejam as unidades produtivas e as classes sociais de média e alta renda (ligadas organicamente ao capital monopolista), e só secundariamente as classes populares de renda baixa. É interessante notar aqui que, para que o desenvolvimento do processo de acumulação se realize sem estrangulamentos, deve haver um determinado equilíbrio entre produção propriamente dita e condições gerais. Cabe ao Estado, em primeira instância, velar para que esse equilíbrio seja atingido e não se desregule. É o Estado que determina globalmente, a nível nacional, os volumes de investimentos a aplicar numa e noutra área. No entanto, por vezes, fica incapacitado para o fazer, por razões várias, e nota-se então uma perda de “equilíbrio” na economia, que se manifesta por uma baixa global na taxa de lucro. Os organismos supranacionais tais como o FMI10 e o Banco Mundial, são a segunda instância que vela por esse equilíbrio. Podemos notar intervenções diferenciadas, conforme o país, em relação ao problema. Por exemplo, na Inglaterra, de 1973 em diante, começou a notar-se que a balança pendia perigosamente para o lado das condições gerais (consubstanciadas nos gastos públicos do Welfare State). O FMI impôs, como condição para os seus empréstimos, que o governo britânico cortasse esses gastos públicos substancialmente, para restabelecer o tal “equilíbrio”. No Brasil, a intervenção do Estado descrita acima resultou num descuido em relação a certas condições gerais; o Banco Mundial detecta esse problema nas suas análises e portanto empresta fundos ao Brasil fundamentalmente para gastos públicos nessas condições gerais, numa tentativa de recriar esse “equilíbrio”. 10
Fundo Monetário Internacional
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Muitas vezes, devido à lógica de intervenção do próprio Estado, os resultados não atingem os objetivos desejados, mas podemos, no entanto pensar que, devido ao agravamento das contradições sociais, cada vez mais de teor urbano, chegou-se a um ponto em que o Estado está repensando essa lógica da intervenção na esfera das condições gerais. Estaríamos, portanto, no limiar histórico de uma nova época em relação a essa intervenção, que poderá trazer profundas implicações para o problema urbano no Brasil.
A Construção do Objeto de Estudo A pesquisa central que gerou este texto teve como objetivo investigar a existência de uma correlação entre a ação do Estado, suas inflexões e a emergência dos problemas urbanos, bem como as formas que a intervenção do Estado nesse campo assume, o que as determina, a lógica que nelas se materializa e o que ela implica. A relação biunívoca ação estatal - problemas urbanos existirá em certas instâncias, em dados momentos, mas na maior parte das vezes essa relação não é direta, mas sim mediada pelos processos de acumulação e políticosocial. É evidente que há relações diretas e estreitas entre o urbano e a acumulação, bem como com a política em geral, mas é difícil detectar nelas a intervenção do Estado. Tratava-se, portanto, num primeiro momento, de levantar e descrever a ação do Estado perante os problemas que se lhe apresentam, além de captar as relações imediatamente aparentes entre este e o urbano. Num segundo momento, tentaríamos recortar o que há de urbano nas intervenções do Estado nos problemas mais gerais. Tínhamos, portanto, dois componentes da análise que necessitavam ser bem definidos: o Estado e o urbano. Ficou claro que não são eles, per se, os objetos de estudo que nos interessavam, mas sim suas inter-relações; no entanto, havia que definí-los previamente e assim podemos tomá-los, por um momento, como tais. Esta parte do texto tem como objetivo contribuir para a definição de um deles: o urbano. A definição de um objeto de estudo, através de cortes na realidade, não pode pretender ser exaustiva. No nosso caso, há fenômenos que poderiam ser urbanos e estarão fora desse objeto, e outros que poderiam não ser urbano e estarão dentro. O corte é uma decisão, se bem que fundamentada e criteriosa (visto que baseada num trabalho de análise teórica anterior), que em certas
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alturas, por necessidades de operacionalização, não poderá deixar de ser arbitrária, quanto mais não seja por falta de informações concretas sobre os ditos fenômenos. No entanto, as exemplificações estáticas, isolando fenômenos ou ocorrências sociais e propondo-lhes um lugar num esquema de classificação prédesenvolvido, pouco contribui para esclarecer o conteúdo e os limites do objeto de estudo, pois nunca é exaustiva e necessita sempre de novos exemplos para reiterar ou “negar” a validade da classificação e dos conceitos nela incorporados. Como forma de apreender a ideia central aos conceitos que se propõem aqui é preferível examinar as tendências históricas de desenvolvimento dos fenômenos, que originalmente lhes deram origem. Foi este o enfoque que presidiu à elaboração das duas primeiras partes deste texto. Deixa-se de lado a tentativa de definição estrita do conceito pela demarcação dicotômica da realidade que lhe corresponde, para, através do exame e análise dessas tendências históricas, captar o âmago do conceito, que é, no fundo, o que nos interessa, mais do que a delimitação precisa do mesmo. A construção desse objeto seguirá, portanto, por duas vias. A primeira será a constante re-elaboração teórica, à luz de novos textos que venham a surgir no futuro. A segunda se baseará nas informações que derivarmos tanto da pesquisa que gerou este texto, como de outras que venham a realizar-se mais adiante.
O Urbano como conceito não-espacial Numa tentativa de construir teoricamente o objeto de estudo a que chamamos de urbano, identificamos (ao nível descritivo) como processo determinante desse urbano a dinâmica do desenvolvimento das forças produtivas, articulada com a produção e reprodução da população e com as questões políticas, dentro de uma formação social. O que está dentro do objeto de estudo
Esse processo geral e determinante tem como núcleos estruturantes as áreas da produção e do consumo. O núcleo consumo, dada a configuração da estrutura social, pode ser subdividido em consumo das classes dominantes ou de alta renda e consumo das classes populares ou de baixa renda. O processo engloba estes núcleos e também o “espaço” entre eles, ou seja, os fenômenos dentro desse “espaço”, que estão relacionados e articulados com os núcleos, mas não estão dentro deles. Esses fenômenos são exatamente a materialização das relações que se estabelecem entre esses núcleos. Na medida em que a divisão do trabalho aumenta dentro de uma
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formação social, como vimos, o “espaço” entre esses núcleos vai aumentando e os fenômenos que ele contém tornam-se mais volumosos, complexos e articulados. Este aumento se dá não só através do aumento natural dos fenômenos que lhe são próprios, como também pelo acréscimo de novas atividades que anteriormente estavam no âmbito estrito dos núcleos produção e consumo, e que gradualmente passam para esse “espaço”, socializando-se. São essas inter-relações que compõem o nosso objeto. Este conjunto é precisamente o que entendemos aqui por “urbano” enquanto conceito não-espacial. O que está fora do objeto de estudo
A especificidade dos núcleos produção e consumo estão fora do nosso objeto de estudo. Podemo-nos perguntar por quê? A especificidade desses núcleos se materializa, pelo lado da produção, nas relações técnicas e sociais e nas atividades inerentes à própria produção (cujo espaço é a unidade produtiva); pelo lado do consumo, no próprio ato de “consumo-destruição” (cujo espaço é a unidade habitacional). A especificidade do núcleo produção tem a ver primordialmente com o processo da acumulação de capital, no seu aspecto de geração de valor e maisvalia, que não é intrinsecamente urbano (o aspecto da realização, o momento da troca, por outro lado, pode considerar-se fundamentalmente urbano). A atividade produtiva, o gesto produtor do indivíduo, nada tem a ver com o urbano; precede-o historicamente e continuará possivelmente a existir se o urbano “desaparecer”. As relações técnicas dentro de uma unidade produtiva também nada têm de urbano, pois respondem a necessidades que não provêm do urbano, mas da organização técnica do processo produtivo que materializa o processo de acumulação. A própria existência de uma unidade produtiva (fábrica) é uma resposta a necessidades técnicas e econômicas do processo de produção, e não do fenômeno urbano. No entanto, como vimos, a sua existência exige um certo número de condições e causa fenômenos que podemos classificar como urbanos. As contradições que se encontram no processo produtivo (nomeadamente a do capital / trabalho) não estão necessariamente no âmbito do urbano, nem histórica nem geograficamente. O que há é uma certa área de coincidência geográfica com ele, no momento em que as unidades produtivas tendem a localizar-se no espaço urbano, mas que, historicamente, é conjuntural. Inclusive sente-se hoje, nos países desenvolvidos, tendências ao deslocamento da produção industrial propriamente dita do lócus geográfico urbano. Não são as atividades internas à produção industrial que geram o urbano (vide os primórdios do modo de produção capitalista no seu estágio de acumulação primitiva, que se articula 46
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no seio da relação dialética campo-cidade, e não apenas num ou noutro dos dois polos dessa relação!). O urbano é gerado na verdade por aquilo que a teoria neoclássica chama de “economias externas e de aglomeração”, que tentaremos aqui captar exatamente no “espaço” falado anteriormente e através de sua materialização nos meios coletivos que abaixo mencionamos. O mesmo poderíamos dizer relativamente ao núcleo consumo, ao gesto do “consumo-destruição”, e à unidade familiar na habitação, cuja existência responde às necessidades do processo mais geral, de produção e reprodução da população, mas que necessita de condições e causa fenômenos urbanos.
A produção agrícola também gera o urbano A produção e o consumo são os núcleos estruturantes do processo que determina o urbano. Propusemos que eles não sejam incluídos no nosso objeto de estudo. Dissemos também que o urbano incluiria os fenômenos dentro do “espaço” entre os núcleos produção e consumo. Convém notar que o núcleo produção se divide em produção agrícola e produção industrial. Sendo os fenômenos que materializam as relações entre os núcleos produção e consumo aquilo a que chamamos: urbano, é de realçar que tanto a produção agrícola como a industrial geram fenômenos que se podem considerar urbanos. A crescente divisão do trabalho, penetrando o mundo rural, faz com que a própria produção agrícola lance fora do seu âmbito estrito fenômenos que podemos classificar de urbanos. O caso mais típico é o fenômeno dos boias-frias, trabalhadores rurais sem terra (e aqui se sente a divisão social do trabalho) cuja reprodução enquanto força de trabalho se dá nas cidades. Todo o processo de socialização das condições de sua reprodução, fruto da penetração do M.P.C. no campo, qualifica este fenômeno de tal forma que ele deve ser incluído no nosso objeto. Ao nível da rede urbana, esta situação manifesta-se no fato de certas cidades (talvez as de nível hierárquico mais baixo) estarem mais voltadas para o fornecimento das condições gerais exigidas pela produção agrícola.
Os meios coletivos Voltando à problemática anterior, paralelamente ao aumento do “espaço” entre os núcleos produção e consumo, fruto da crescente divisão do trabalho e como seu corolário, dá-se uma crescente socialização das atividades que materializam as relações entre os núcleos, socialização essa que, como vimos, se processa primordialmente no que chamamos de urbano. O urbano passa cada vez mais a assegurar as atividades de circulação, distribuição, gestão e 47
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troca, que são as condições gerais para que se possam realizar as atividades de produção e consumo. Essas condições gerais concretizam-se como meios coletivos (coletivos enquanto socializados em maior ou menor grau) que podem estar mais ou menos voltados ao atendimento do núcleo produção ou do núcleo consumo, ou seja, reprodução ampliada dos meios de produção e reprodução ampliada da força de trabalho e da classe dominante. Entendemos por meio coletivo o conjunto formado pela legislação e normas internas pertinentes, pelo financiamento operacional e de investimento, pela base física permanente e de consumo operacional interno, pelas atividades de operação, pelas práticas internas de apropriação e pelos agentes (pessoas) que realizam estas atividades e práticas, tudo isto no âmbito de uma ou várias unidades organizativas cujo objetivo seja levar a cabo as atividades socializadas de circulação, distribuição, gestão, troca e consumo coletivo. Configuram-se aqui determinadas práticas políticas e econômicas de apropriação desses meios, que resultam exatamente no fato de estarem eles mais ou menos voltados para um ou outro núcleo. Quando o Estado ou determinada firma privada se propõe produzir esses meios o seu direcionamento já está mais ou menos determinado pelas lutas sociais ou pelas condições que precederam essa produção, medidas e articuladas em função do diferente acesso que determinados agentes, dentro dos núcleos, têm ao poder político e econômico. Esse direcionamento não é fruto do acesso ou de qualquer boa intenção por parte dos agentes que produzem ou distribuem os meios coletivos.
Níveis e formas de socialização A socialização que penetra cada vez mais estes meios o faz gradualmente, e podemos assim distinguir vários níveis em que ela pode se encontrar: nível das normas sociais vigentes entre os indivíduos de uma sociedade num determinado momento histórico; nível da produção, da gestão, da operação e mesmo do consumo. Esta socialização pode assumir três formas distintas e gerais: ela pode ser privada (firmas e companhias de direito privado), estatal (assumida pelo aparelho do Estado nas suas várias manifestações) ou de agrupamentos sociais, formalizados ou não (associações de bairro, grupos de ajuda mutua tipo mutirão etc.). A socialização na sua forma estatal reveste-se de características particulares, no caso da formação social brasileira, como vimos na segunda parte deste texto. No que respeita ao desenvolvimento concreto da socialização tal como ocorre na realidade, deveremos analisá-lo no âmbito das relações de apropriação e no das relações de propriedade, que se dão junto aos meios coletivos; 48
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isto tanto num momento “fotográfico” como, e sobretudo no seu desenvolvimento histórico, enquanto tendência11.
Urbano como conceito espacial O espaço urbano Esta delimitação do objeto de estudo não esgota ainda a sua especificidade, visto que lhe faltam os aspectos mais corriqueiramente associados ao conceito, nomeadamente os espaciais. O espaço urbano, ou o urbano enquanto espaço, é o suporte material de todos os meios mencionados acima. Neste campo articulam-se contradições próprias e específicas, relacionadas com o parcelamento, propriedade e uso do solo urbano, assim como com a geração e apropriação das rendas desse solo e espaço construído. O conceito de urbano enquanto espaço cobre aqui não só o suporte material dós meios coletivos como também o próprio espaço suporte da produção e do consumo (que se concretiza no espaço usado pela indústria propriamente dita e pela habitação para as várias classes sociais). Dentro do objeto de estudo estão as questões relacionadas com o modo de produção do espaço construído, não só no que respeita ao uso do solo, como também em relação aos aspectos da sua própria produção: construção civil, promotores imobiliários, agências financiadoras etc. Também sob esta luz o urbano se socializa e coletiviza, na medida em que a divisão social do trabalho se repercute numa divisão social do espaço. Essa socialização pode atingir vários níveis (acima detalhados) e tem as três formas básicas: a privada, a estatal e a de agrupamentos sociais (nos quais podemos detectar formas “autogestionárias”).
A rede urbana O conceito de “urbano” não está limitado a uma ou várias cidades. Ele estende-se ao conjunto das cidades que compõe a rede urbana, concretizandose em cada uma delas com uma determinada configuração e especificidade; até porque, se o urbano é o conjunto dos meios coletivos e o espaço que os suporta, e se esses meios não estão limitados a uma ou várias cidades, o próprio conceito também não o pode estar. Se os meios coletivos estendem-se por toda a rede urbana e suas interligações, consequentemente o conceito também. A socialização dos meios coletivos que acompanha a divisão social do trabalho é paralela à socialização do espaço, pois este também sofre uma divisão social e técnica. 11
Ver, a respeito deste problema Preteceille (1977).
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A divisão social e técnica do espaço fazem com que cada cidade tenha atividades econômicas (particularmente no que se refere à própria produção) dominantes, e é através delas que se classificam “normalmente” as cidades quanto à sua função. Ora, se o urbano não abarca essas atividades de produção propriamente ditas, não se reduziria ele (enquanto conceito) ao menor denominador comum de todas as cidades? Acontece que a especificidade das atividades de produção reflete-se numa especificidade dos meios coletivos, e, portanto numa especificidade do conceito de urbano, que pode assim assumir características diferentes para cada cidade, sem no entanto perder a sua unidade (na diversidade).
Questões de Método Propõe-se, portanto, a noção de meios coletivos para descrever um dos fenômenos constituintes do urbano. Esta noção, que parece clara à primeira leitura, vai-se “obscurecendo” à medida que avança a discussão sobre ela, revelando-se a sua precariedade por estar insuficientemente trabalhada e a sua falta de clareza quando usada empiricamente. Diga-se de passagem, ser este um dos méritos fundamentais da discussão sobre noções e conceitos: obscurecer o que parece estar claro em virtude da pura lógica formal interna ao discurso escrito, da concatenação correta das palavras, como peças de um quebra-cabeça bem arrumadas. “Obscurecer”, ou seja, chamar a atenção para as insuficiências, para os pontos menos claros, para a inconsistência empírica, para as limitações ao poder explicativo. Um dos principais descontentamentos em relação à noção de meios coletivos refere-se à sua indefinição, à incapacidade de se distinguir claramente na realidade um conjunto de fenômenos que corresponda de forma estrita ao que se entende teoricamente pelo conceito. Torna-se difícil colocar a realidade dentro ou fora dos limites do conceito, pois estes não são suficientemente precisos. Este descontentamento provém do fato de se considerar os conceitos como categorias classificatórias estáticas, onde se arruma a realidade de acordo com as regras “clássicas da classificação”. Os conceitos identificar-se-iam com a essência dos fenômenos (a “ideia” platônica), seriam as suas verbalizações. Entre eles se estabeleceriam relações abstraídas indutivamente de múltiplas observações empíricas, ou intuídas através de uma prática social, respeitando as regras da lógica formal. Assim se chegaria eventualmente a uma teoria explicativa cujo fulcro se coloca numa grelha ou matriz classificatória, utilizando os conceitos organizados de acordo 50
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com alguma hierarquia ou outra forma qualquer de disposição, abstraída do próprio relacionamento que se estabeleceu entre eles. Essa grelha ou matriz serve depois para, de novo, classificar a realidade. A pertinência e validade da teoria são aferidas pela forma, adequada ou não, como permite colocar nos compartimentos conceituais os fenômenos do real. Esta forma de proceder, embora criticada por várias tendências atuais da teoria do conhecimento, continua ainda a ser um dos principais fundamentos do empiricismo nas ciências sociais. No nosso caso particular esta visão foi criticada por Preteceille (l977), e convém aqui relembrar o essencial da sua proposta. Para ele, o enunciado de um conceito teórico não tem como resultado, em termos de conhecimento, a designação direta dos objetos concretos (mesmo que apenas na sua “essência”), mas constitui um meio teórico de produção de conhecimentos que só funciona quando articulado, no conjunto de uma teoria, a outros conceitos. Isolado, o conceito não tem sentido. A utilidade dos conceitos gerais tais como o de “meios coletivos” - só aparece no processo de desenvolvimento dos enunciados teóricos dos quais fazem parte. Esse desenvolvimento faz-se através da especificação progressiva das relações e processos sociais, especificação essa que não é uma operação de pura lógica dedutiva. Os enunciados teóricos nunca são puramente formais, e os conceitos são sempre construídos em parte sobre noções intuitivas que se referem à apreensão empírica dos fenômenos. O desenvolvimento da teoria baseia-se numa confrontação constante com observações empíricas que lhe servem de guia e referência crítica, bem como de teste à sua pertinência. Mas a utilização das observações empíricas no decorrer da elaboração teórica é apenas um momento provisório, pois os conhecimentos empíricos anteriores ao trabalho teórico são conhecimentos insuficientemente controlados que não podem ser aceitos como conhecimentos empíricos corretos dos objetos estudados, e “arrumados” tais quais nos “compartimentos” da teoria. O objetivo do trabalho teórico é exatamente de desenvolver a teoria até ao ponto onde ela pode ser investida em procedimentos de observação empírica, de construção de dados, eles próprios dominados teoricamente. E os dados assim construídos, ultrapassando as pré-noções iniciais, poderão ser reinvestidos num novo cicio de desenvolvimento teórico-empírico. Ainda segundo Preteceille, a ideia de se utilizar os diferentes tipos de relações sociais como variáveis que definiriam uma “grelha” teórica onde se classificariam os meios coletivos dados empiricamente, bem como a de se 51
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definir a priori um campo empírico de estudo - separando o que é meio coletivo do que não é -, revela-se inadequado para se levar a cabo o desenvolvimento teórico nos moldes delineados. Podemos deduzir desta colocação alguns comentários sobre a posição do conceito (melhor seria dizer “noção”) de meios coletivos no movimento do método: Primeiro: ele se encontra ainda no estágio de “noção intuitiva”, portanto pouco trabalhado, mesmo ao nível teórico. Segundo: ele deve ser visto no contexto do “enunciado teórico”, articulado aos outros conceitos aí empregados (tais como divisão social e técnica do trabalho, divisão social e técnica do espaço, condições gerais, socialização, aglomeração, cooperação e competição) sob pena de perder sentido e utilidade. Terceiro: o desenvolvimento do “enunciado teórico” apenas agora começa a ser encetado, através da confrontação com observações empíricas e reelaboração teórica. Este texto serve apenas para esboçar uma descrição do desenvolvimento histórico no seio do qual se detecta, instintiva ou intuitivamente, o aparecimento e importância desse fenômeno que se convencionou chamar de “meios coletivos”. É portanto prematuro cobrar definições precisas do conceito para substituir a noção. Só com a continuação do trabalho esboçado neste texto se poderá chegar ao estágio onde o enunciado teórico permitirá observar e construir dados (“dominados” teoricamente) que, aí sim, permitirão julgar do acerto, da utilidade e da correspondência do conceito à realidade empírica, devidamente trabalhada e dominada. A crença, quase mística, nos “fatos empíricos puros” é, ressalte-se, uma das peculiaridades do empiricismo crasso, que mais contribui para o mascaramento da própria realidade que tenta explicar. Embora o enunciado teórico não se encontre ainda em estágio suficientemente desenvolvido para poder gestar e ao mesmo tempo requerer uma classificação rígida e cristalizada do objeto de estudo, não se pode negar que em determinados momentos do seu desenvolvimento se sente a necessidade de classificar, para ter uma ideia, embora momentânea, da extensão e conteúdo do objeto de estudo. Esses “momentos classificatórios” são instantes passageiros, mas necessários. No movimento do método a classificação contém o próprio germe da sua negação, pelo fato de chamar a atenção exatamente para o que não se enquadra bem no esquema por ela proposto, e portanto para a necessidade de reelaboração teórica dos conceitos e reconstrução dos dados empíricos a classificar. A classificação não é um fim em si, não é um objetivo, nem sequer um momento de 52
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fundamental importância, como parecem propor os empiristas, mas um mero expediente momentâneo para se poder continuar o trabalho de desenvolvimento teórico. O próprio trabalho de “construção dos dados empíricos” a que se refere Preteceille contém um elemento de rearranjo desses dados de sua reorganização em função de algum tipo de classificação, mas sem que isso constitua objetivo primordial. A utilidade desses “momentos classificatórios” no nosso caso foi clara. Exatamente num desses momentos transpareceu uma das especificidades do objeto de estudo mais importantes no caso brasileiro, ou seja o fato que os meios coletivos, neste país, se desenvolveram em função de, e estão voltados prioritariamente para, o atendimento das necessidades da produção, da acumulação de capital e do seu corolário, o consumo das classes de alta renda, e só em pequena medida para o atendimento das necessidades da reprodução da força de trabalho. Nos países centrais este processo tem mediações que os fazem diferenciar-se fundamentalmente do que se passa no Brasil. Isto nos traz ao problema da relação entre o desenvolvimento histórico da formação social e o desenvolvimento do enunciado teórico. Nas chamadas ciências sociais, poucas teorias são formuladas sem que o seu objeto tenha já uma determinada importância social. A tendência é, inclusive, que haja um atraso da teoria em relação ao desenvolvimento da realidade. No Brasil a situação não foge à regra, estando a teoria atrasada em relação ao desenvolvimento dos meios coletivos que atendem à produção. No caso dos meios coletivos de consumo, o objeto de estudo está se desenvolvendo, mas encontra-se ainda em estágio embrionário (pelo menos no que respeita às classes de baixa renda). O problema da reprodução, simples ou ampliada, da força de trabalho não representa ainda uma preocupação de real importância. Ele é mencionado, demagogicamente por vezes, no discurso dos poderes públicos, mas pouco ou nada de concreto se faz a seu respeito. Estamos, portanto, propondo um objeto de estudo semivirtual, que se define mais pela ausência do que pela presença. Nesta situação a teoria deve - e só pode - desenvolver-se ainda mais cautelosamente do que aconteceria na situação “normal”, pois o componente empírico para o seu desenvolvimento é de difícil apreensão e análise, não existindo (ou pelo menos não estando tão “à mão” como nos países centrais) o indispensável guia, estimulante e referência crítica para testar a pertinência dos desenvolvimentos teóricos. Não se estaria então correndo o risco de pressupor um objeto de estudo que pode não vir a concretizar-se? Sem dúvida, mas instintivamente uma coisa nos parece clara: a crescente importância, a nível global, desse objeto de estudo nascente (meios coletivos, condições gerais, o urbano) para a compreensão das forma53
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ções sociais do capitalismo moderno, nos seus aspectos de acumulação de capital, reprodução da força de trabalho e natureza do Estado contemporâneo. Em particular no Brasil, ele assume especificidades tais, embora ainda embrionário, que nos fazem crer estar na presença de fenômenos cujo estudo, no decorrer do trabalho, poderá ser extremamente rico em “insight” para a compreensão da realidade que nos cerca. Não obstante o objeto de estudo precisar ainda de muito trabalho para sequer se perceberem nitidamente os seus contornos, intui-se a sua importância. Qual arqueólogo tendo localizado urna peça enterrada no solo, embarca-se agora no paciente e moroso trabalho de a desenterrar limpando gradualmente a terra que a cerca, para trazê-la à luz do dia, avaliar a sua importância e fazer dela, se for o caso, objeto de estudo real. No nosso caso o objeto “mexe”, cresce e desenvolve-se, flui e reflui com uma dinâmica própria que é fruto do movimento da realidade e da história. Inclusive, o trabalho teórico sobre esse objeto ainda semivirtual e embrionário pode contribuir para o crescimento real da sua importância enquanto problema a ser objeto de ação por parte das instâncias societais competentes. A própria teoria contribuiria assim para a criação do seu objeto de estudo, desenvolvendo-se ao mesmo tempo com e através dele.
Possíveis Objetivos de uma Análise dos Meios Coletivos Esta parte do texto não tem por objetivo analisar o objeto de estudo. Ele apenas propõe um método possível de fazer isso: um conjunto articulado de noções, uma maneira de se utilizar essas noções e alguns objetivos gerais a serem atingidos. Na presença de objetos de estudo concretos, poder-se-á então fazer as análises pertinentes, utilizando o método proposto. No entanto, para realizar o trabalho de análise, precisamos, como complemento, de um conjunto de objetivos de análise, que guiarão e darão direção à utilização do método. A metodologia ora apresentada em embrião, e que será necessário desenvolver, tem como objetivo geral permitir o estabelecimento de mediações entre os problemas e contradições fundamentais que permeiam a formação social e o objeto de estudo proposto, respeitando as suas especificidades sem ao mesmo tempo perder ou passar para segundo piano os ditos problemas gerais. Ela tenta, também, permitir a captação da forma como se refletem e reaparecem no contexto estrito do objeto de estudo as contradições fundamentais da formação social. Isto quanto aos objetivos do método; quanto aos objetivos da análise, 54
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ou seja, da utilização do método, podemos propor o seguinte, para começo da discussão sobre o assunto: 1.
descrever (sem esquecer que toda a descrição já contém, implícita, uma análise) os processos sociais, em particular o de reprodução da força de trabalho, nos quais os meios coletivos de consumo têm um papel preponderante;
2.
identificar os agentes que intervêm nos processos de financiamento, regulamentação, produção, operação e apropriação dos meios coletivos; ver quais são os seus interesses e detectar as contradições inerentes nesses processos;
3.
tentar estabelecer as formas pelas quais essas contradições se articulam com as contradições mais gerais da formação social;
4.
examinar o confronto (“interface”) Estado / usuário (classes sociais) tal como se dá no seio dos meios coletivos de consumo;
5.
examinar a forma como o Estado, ator fundamental destes processos, intervém nas questões da reprodução da força de trabalho. O Estado e seus aparelhos aparecerão às vezes como ator ou agentes no processo em análise, às vezes como espaço onde se desenrola todo ou parte fundamental do dito processo;
6.
aferir a possibilidade de, ao captar as tendências de socialização e aglomeração internas aos processos de seu desenvolvimento, implantar meios coletivos com formas mais avançadas dessas tendências, quer seja através da reorganização da estrutura dos meios já existentes, quer seja através da concepção de novas formas que incidam. sobre algum ou todos os aspectos constituintes dos meios coletivos. O exame dessas possibilidades deverá levar em conta o contexto político que permitiria essa implantação, no que respeita ao padrão de relacionamento das forças sociais presentes na formação social onde ela se daria.
Não será demais repetir que o método de análise proposto contém o prolongamento de uma visão que considera o Estado como um campo de interação de forças sociais, espaço de confronto e luta entre interesse de várias classes, grupos sociais e da própria burocracia que por vezes articula interesses próprios. É também, útil ressaltar, que a ênfase e o aprofundamento da análise poderão concentrar-se mais em um ou outro dos processos mencionados em b, consoante não só a especificidade do meio coletivo em análise, como também as características da intervenção do Estado através desse meio coletivo (no 55
Azael Rangel Camargo, Celso Monteiro Lamparelli e Pedro Conceição Silva George
caso de ser o Estado o seu promotor). É evidente que se se chegar à conclusão que o objetivo fundamental dessa intervenção, ao invés de ser o atendimento das necessidades de determinada camada da população às quais as funções do meio se adequam é, pelo contrário, de criar processos de valorização para o capital privado que intervém na sua produção, o fulcro da análise concentrarse-á no processo de produção desse meio e suas ligações com o estado geral da economia e do setor de atividades que irá participar dessa produção. O interessante é que talvez se possa fazer o raciocínio pelo caminho inverso, e chegar a uma conclusão sobre o caráter da intervenção do Estado, através da análise de um caso concreto, de acordo com os vários aspectos que compõem a metodologia. A utilização desta metodologia para analisar casos concretos faz parte do processo de desenvolvimento do quadro geral teóricometodológico que embasa todo o trabalho realizado sobre este tema. Assim, os conceitos de nível geral que fazem parte desse quadro - socialização, aglomeração, cooperação, competição, dominação e resistência - poderão ser utilizados nas análises concretas como conceitos de interpretação, que permitirão aferir e interpretar as tendências que se manifestam no seio dos processos que compõem o objeto de estudo, permitindo inclusive uma articulação com os processos gerais que se dão no âmbito da formação social, na qual está inserida a problemática dos meios coletivos de consumo12 .
Esboço de um Método de Análise para os Meios Coletivos Ao propor os meios coletivos como objeto central a ser analisado podemos, de imediato, distinguir três aspectos distintos que compõem o seu todo e que podem ser outras tantas avenidas de penetração analítica: os aspectos relativos à sua base física, os relativos à sua operação e finalmente os relacionados à sua apropriação. Base Física
Tomemos em primeiro lugar a base física. Este aspecto leva-nos a examinar um campo de fenômenos que vão desde a problemática da sua localização, na qual está embutida a questão da terra urbana e os interesses a ela associados, até à própria produção e utilização dos equipamentos necessários ao funcionamento do meio, passando pelas questões da edificação, seu desenho e produção, das instalações (água, luz, esgotos etc.) e das condições urbanas do lugar onde se vai implantar o meio. 12 Ver Lamparelli (1978b) - capítulos II e IV (p. 5 e 21) que tratam do “Objeto” e de “Elementos e Questões Metodológicas”.
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Nota introdutória sobre a construção de um objeto de estudo: “O Urbano”
Em particular, o processo de produção que gera o que poderíamos chamar de equipamento coletivo, no sentido físico do termo, carece de uma análise aprofundada, pois nele se imbricam as questões mencionadas acima e se geram e resolvem grande parte das contradições que permeiam este aspecto. Nesse processo de produção se vão confrontar e articular agentes e interesses bem determinados, que se referem a objetos concretos (processos de trabalho e valorização de capital privado, através de encomendas vultosas), e cuja identificação é, senão fácil, pelo menos não tão difícil quanto em outras áreas. A tecnologia é também um fator relevante neste aspecto da análise. Corre por duas vertentes o seu exame: a tecnologia no que respeita ao processo de produção do meio na medida em que determina e é determinada pela escala, localização e função do meio, e a tecnologia inerente ao próprio funcionamento físico do meio - que tipo de tecnologia é necessário para que tal meio funcione, e de que maneira? Operação
O aspecto da operação do meio coletivo oferece-nos uma outra gama de fenômenos para análise. Temos aí a questão da estrutura administrativa que assegura a base organizacional indispensável para o funcionamento do meio. Na estrutura administrativa estão embutidas as questões relativas à estratégia (ou seja, a forma de se atingir determinados objetivos) e à estrutura (ou seja determinado arranjo do organograma da organização e as competências respectivas de seus vários elementos). Esta questão é importante, pois a resolução efetiva da tensão entre esses dois polos determina a adequação do meio a seus fins, e portanto sua efetividade enquanto organização. Põem-se também dentro deste aspecto as questões relativas à gestão do meio, gestão enquanto organização e métodos que permitam um bom ou mau funcionamento do meio no que se refere a recursos humanos e materiais. Os recursos humanos, que perfazem parte do trabalho de consumo, podem ser divididos em duas categorias, especializados ou de apoio, na medida em que a divisão técnica do trabalho nesse meio lhes atribua funções específicas relativas ao próprio conteúdo do meio (professores, médicos, enfermeiros, condutores, engenheiros etc.) ou apenas funções de apoio à operação do meio (pessoal administrativo, de limpeza, de manutenção etc.). Dentro desta divisão (grosseira) poder-se-ão encontrar muitas outras categorias às quais se relacionam interesses mais ou menos específicos. A mesma distinção se pode fazer em relação aos recursos materiais, sendo 57
Azael Rangel Camargo, Celso Monteiro Lamparelli e Pedro Conceição Silva George
eles nesse caso objeto, e não sujeito, de interesses por parte de quem os produz ou compra. De novo, o problema das técnicas e processos utilizados para a operação do meio é de fundamental importância, pois tem múltiplas interdependências com os outros aspectos, da base física e da apropriação. Uma determinada técnica de ensino, por exemplo, requererá um determinado espaço físico e conjunto de equipamentos educacionais. Examinar essas interdependências é tarefa necessária. Os problemas da gestão para manutenção do equipamento permitem estabelecer uma outra ponte de ligação com o aspecto base física. É útil ressaltar que se põe aqui, no que respeita à identificação de agentes e interesses, toda a problemática ligada à análise das burocracias e das maneiras como desenvolvem interesses próprios, diferenciados dos que lhe são estatutariamente impostos bem como dos interesses societais mais específicos que podem estar defendendo “por interposta pessoa” dentro do aparelho burocrático. A gama de contradições que se podem estabelecer dentro deste enfoque é vasta, mas estas devem necessariamente ser avaliadas e analisadas pois determinam muitas vezes o sentido de decisões não só internas ao aspecto que se examina aqui (a operação do meio) mas também relativas aos outros dois aspectos mencionados inicialmente. Apropriação
O último aspecto que forma o tripé proposto para análise dos meios coletivos de consumo refere-se à apropriação. Por apropriação entende-se o consumo feito por uma coleção de usuários através do meio. Neste campo o importante é ter em vista que esses usuários se estruturam em classes sociais, classes essas que são determinadas não no campo do consumo, mas sim no da produção, pela sua inserção e posição no conjunto das relações de produção. Esse posicionamento e essa inserção, além de servir para distinguir as classes, conferem-lhes características que determinam as práticas sociais de consumo no momento em que se dá o confronto meio/usuário. No momento em que se articulam essas práticas sociais de consumo por parte dos usuários, estes já se apresentam determinados pela sua posição na estrutura das relações de produção. As características mais relevantes no que se refere às práticas de consumo (que deverão elas próprias ser objeto de análise) são: nível de renda, hábitos de consumo, distribuição espacial, nível de organização classista e especificidades de clientela. É bom frisar que a última destas características, embora bastante afetada pelo fator classe social, não tem as suas raízes nas relações de produção, mas em fenômenos de outro nível, tais como 58
Nota introdutória sobre a construção de um objeto de estudo: “O Urbano”
classe etária, situação de saúde etc., que geram especificidades que por sua vez requerem determinado tipo de meios coletivos. Há também que notar que as características determinadas pelas relações de produção não aparecem com a mesma forma no âmbito do consumo. Estas últimas são sem dúvida determinadas pelas primeiras, mas após passarem por várias mediações. O caso do nível de renda é óbvio. O nível de renda nada mais é do que a forma específica com que aparecem, no âmbito do consumo, as classes sociais determinadas pelas relações de produção (e de exploração!), após passarem por certas mediações. Proletariado e população de baixa renda não são categorias intercambiáveis, mas também não são independentes. Uma determina a outra através de mediações específicas a cada formação social e momento histórico (organização e poder dos sindicatos, estado do mercado de trabalho etc.), que não cabe aqui analisar. As classes sociais, com suas características, articulam, portanto práticas sociais de consumo, contidas em certas formas de apropriação. Estas confrontam-se com formas de distribuição dos bens e serviços através dos meios coletivos, que têm também certas características, determinadas pelos aspectos relativos à sua produção, operação, financiamento e normatização. Neste confronto das formas de apropriação com as formas de distribuição, se joga a adequação do meio às necessidades especificas do grupo social a que se dirige. Essa adequação deve ser aferida tanto em termos quantitativos como qualitativos. Voltando às formas de distribuição que especificam o processo de consumo, e suas características, podemos propor uma tipologia de formas extremas, entre as quais se posicionam as características reais desse consumo e do meio que o faculta: este pode ser individual ou coletivo (inserindose aqui toda a análise do que é o real significado do “consumo coletivo”), distribuído pelo livre jogo de mercado ou de acordo com critérios políticos, pode ser espacialmente concentrado ou disperso, isolado/ especializado ou integrado/ articulado (centro de saúde isolado e com funções muito específicas tenderia para a primeira forma, centro de saúde de amplo espectro junto com creche, escola primária e farmácia tenderiam para a segunda, por exemplo). Dentro deste aspecto não se pode isolar a identificação dos agentes, da própria estruturação e caracterização das classes sociais, pois são uma e a mesma coisa. Não obstante, o problema da identificação dos seus interesses específicos enquanto “consumidores” ainda se põe como importante objeto de análise. 59
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Os três aspectos mencionados acima não esgotam a especificidade dos meios coletivos enquanto objeto de análise. Há que lhes juntar outras duas áreas, que pela sua globalidade estão presentes de ‘per se’ e através dos aspectos identificados anteriormente: a questão do financiamento e a das normas e regulamentos. Financiamento
A questão do financiamento é de extrema importância pela capacidade que tem de influir sobre todos os outros aspectos já mencionados. É este sem dúvida o aspecto mais determinante na problemática dos meios coletivos. Coloca-se ele no vasto campo delimitado pelas formas de captação de recursos e pelas formas de retorno dos recursos gastos. É neste âmbito que se põe a questão fundamental da comparação entre o que é captado (em termos de valor) e o que é efetivamente distribuído através dos meios coletivos. Pode muito bem ser que se esteja articulando (por intermédio do Estado) mais uma forma de exploração indireta, caso estes dois valores não sejam equivalentes. O diferencial sendo desviado para uma ajuda direta ou indireta à acumulação de capital (no caso brasileiro, o exemplo do BNH-FGTS13 é significativo!). No que respeita às formas de captação de recursos, seria necessário analisar a estrutura tributária e a incidência social dos tributos que a compõem, ou seja, quem paga que percentagem do total da receita do Estado? Quanto às formas de retorno de recursos, é fundamental a sua análise, pois muitas vezes determina toda a lógica de funcionamento do meio que foi objeto do investimento. Decisões sobre se o investimento será a fundo perdido ou com retorno, e neste caso de que maneira e em quanto tempo, afetam profundamente, no que respeita ao meio, todo o processo subsequente. O financiamento, como é óbvio, penetra também profundamente na lógica do processo de produção física do meio, afetando todo ele. Seria necessário identificar que capitais participam desse processo, pois dependendo da sua procedência terão efeitos diferenciados no dito. Os agentes financeiros, órgãos através dos quais fluem os capitais, intervêm no processo de produção, determinando a lógica que vai imperar nesse processo: caso os capitais sejam privados, esta será a lógica pura e simples da valorização, da busca do lucro; caso eles sejam públicos ou para-públicos, pode então se estabelecer uma lógica política, onde o objetivo será ditado por necessidades ou determinantes sociais ou políticas. 13
BNH - Banco Nacional da Habitação e FGTS – Fundo de Garantia por Tempo de Serviço.
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É necessário ressaltar, em particular no que respeita ao caso brasileiro, que a correspondência: privado - lucro, público – político e social não é biunívoca, pois muitas vezes a lógica que pauta a atuação dos capitais públicos é também a do lucro e da acumulação, característica cada vez mais presente no estágio atual do desenvolvimento do capitalismo. As formas de financiamento do processo de produção determinam muitas vezes a própria configuração e agentes desse processo, bem como a tecnologia passível de ser utilizada. É tarefa de fundamental importância analisar como se dá essa determinação. As questões relativas ao financiamento permeiam também o aspecto da operação do meio coletivo. Há formas de operação que estão diretamente ligadas à forma de financiamento. O financiamento estatal direto normalmente dá lugar à criação de estruturas administrativas dentro do aparelho estatal. A aceitação de uma lógica de financiamento cujo objetivo é a autossustentação dá lugar à criação de empresas estatais cuja forma de operação é em tudo semelhante à das empresas privadas. A venda ou aluguel de concessões para a realização de certos serviços ou produção de bens é uma outra forma de operação cujas raízes se encontram no esquema de financiamento pensado para essa área de atuação, onde o lucro possível é suficiente para ser interessante a uma empresa privada tomar a seu cargo essa atividade e ao mesmo tempo pagar um determinado montante pela concessão. Ainda dentro do aspecto operação, um dos elementos fundamentais determinados pelos esquemas de financiamento é o preço de acesso ao serviço ou do bem, ou seja, o problema das tarifas. Este elemento é importante de ser analisado pois é o elo de ligação entre financiamento, operação do meio e usuário/consumidor. A tarifa define de imediato, numa situação de mercado, quem pode e quem não pode ter acesso ao meio. Os esquemas de financiamento, via operação quotidiana do meio, vão determinar não só a existência ou não de tarifas, mas também a sua magnitude. Duas tendências podem ser detectadas nesta problemática, uma apontando para a “verdade dos preços”, gerando tarifas que cubram os custos integralmente, outra mostrando a necessidade de subsidiar tal meio, gerando tarifas abaixo das calculadas pela economia de autossustentação do meio. Além dos efeitos indicados (na produção da base física e operação) que o financiamento tem sobre a apropriação possível do meio pelos usuários, ele também tem efeitos diretos, quando são instalados sistemas de financiamento de consumo veiculados por certos meios. 61
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Os casos da habitação (empréstimos para a compra de casas próprias) e da educação (bolsas de estudo com período de carência) são típicos. O usuário adquire solvabilidade para adquirir esses bens através de esquemas financeiros implantados como parte integrante do meio. Na habitação, caso se venha a socializar ainda mais essa área através da construção de moradias para aluguei, de propriedade e gestão dos poderes públicos, certamente se desenvolverão esquemas de acerto do montante do aluguel às possibilidades financeiras da unidade familiar, o que reforçará ainda mais a importância desse efeito direto do financiamento na apropriação. Normas, Regulamentos e Aspectos Legislativos
A segunda questão geral que merece a nossa atenção é a relativa às normas e regulamentos que sempre acompanham um meio coletivo. Podemos identificar normas e regulamentos referentes aos quatro aspectos já abordados anteriormente. Em todos esses aspectos, eles têm um papel importante que deve ser analisado. Quanto ao financiamento, é óbvia a sua importância: não só especificam, definem e limitam as possibilidades de acesso das entidades que se propõem criar determinados meios, como ainda estabelecem a forma como se vai dar a gestão dos fundos emprestados, em termos de quantidade e canais por onde vão passar os fluxos financeiros. Isto tem, de imediato, efeitos sobre os outros três aspectos, na medida em que são essas normas que vão permitir e exigir a entrada em jogo de certos agentes nos processos de produção, operação e apropriação do meio. Ao mesmo tempo essas normas regulam e limitam a sua participação nesses processos, pondo-se aqui a questão do cumprimento, ou não, das mesmas, e o efeito real que isso tem no processo. O fenômeno do “despachante” é típico neste caso. As complicadíssimas normas que regulam o acesso e trânsito do usuário em certos meios coletivos - bem como as características específicas desses usuários (analfabetismo em particular) - determinam o surgimento (espontâneo num primeiro momento, regulamentado num segundo) dessa tropical figura! Em cada um dos três aspectos mencionados acima temos também normas que lhes são específicas. Na produção da base física, os códigos de obras, e toda a problemática que lhes é inerente, são o exemplo mais gritante. Também, a norma de financiamento para o processo de produção propriamente dita, impõe uma determinada configuração a esse processo, exigindo e justificando, pelo simples fato de existirem, a presença de certos agentes. No caso da operação, não será necessário mencionar que toda a gestão burocrática do meio é normatizada e regulamentada. Além disso, o próprio conteúdo 62
Nota introdutória sobre a construção de um objeto de estudo: “O Urbano”
da atividade exercida nesse meio é também objeto de normatização; o caso da educação é um bom exemplo, onde não só as técnicas de ensino, como o próprio conteúdo é regulamentado, através dos programas oficiais, dos livros didáticos feitos de acordo com esses programas e das regras de comportamento e ensino do corpo discente. Quanto à apropriação, ela é por definição objeto de regulamento. Não é concebível o acesso livre aos meios coletivos, e só a população que cumpra determinados critérios - estabelecidos por norma - terá direito a esse acesso. O próprio ato de consumo é regulamentado, como podemos verificar em qualquer lugar público onde se possa realizar atividades de qualquer ordem. As tabuletas do “É PROIBIDO...” figuram proeminentemente em todos esses lugares. É útil ressaltar que é através das diversas normas e regulamentos que se materializa grande parte da ideologia embutida nos meios coletivos. Não será novidade dizer que os meios coletivos são veículos ideológicos e participam da luta travada nesse campo no seio da sociedade. O interessante é notar que, nas normas e regulamentos, essa função ideológica fica patente e clara como “óleo na água”. De acordo com as normas, produzem-se habitações e escolas, hospitais e parques nos quais a população é levada a habitar, educar-se, tratar-se e divertirse de uma determinada maneira. Ensina-se e trata-se da saúde sempre de uma certa forma, permitida pela norma. Consome-se ainda de acordo com a norma. A análise das formas permitidas - pelas normas revela certas predeterminações ideológicas que nunca são questionadas, mas que atuam para submeter e adaptar o indivíduo, a unidade familiar, a classe social à ordem estabelecida (pela norma!). Tendo identificado as várias vias de penetração no objeto de estudo, acima expostas, resta agora propor um movimento metodológico para levar a cabo a análise. Esse movimento poderia ser composto por duas aproximações: na primeira far-se-ia uma passagem geral sobre todos os aspectos propostos no método, a um nível de aprofundamento não muito grande, onde o objetivo seria identificar o aspecto dominante, a área de maior importância e peso relativo, de acordo com a especificidade do meio, para num segundo momento aprofundar-se ao máximo a análise desse aspecto. Assim, ter-se-ia uma visão geral dos processos, dos agentes e seus interesses que se estruturam no meio de consumo e em sua volta, bem como uma análise em profundidade do seu aspecto mais relevante para a consecução dos objetivos gerais propostos acima. 63
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No movimento do método, utilizando as noções acima enunciadas, ainda que precariamente, poder-se-á esboçar uma análise dos meios coletivos. Seguir-se-á a esse movimento de compreensão do objeto de estudo um movimento de explicação onde o objetivo será de síntese e não de análise. Procurarse-á estabelecer as relações entre todos os aspectos detalhados, vendo como se inter-relacionam e se inter-determinam mutuamente. A produção da base física vai determinar as práticas de operação possíveis, e é ao mesmo tempo determinada por estas. Ambas condicionam a apropriação e são condicionadas por ela, numa constante dialética, cuja apreensão se dará mais facilmente através do exame de exemplos concretos. Além do mais, toda a questão dos meios coletivos se coloca no âmbito das determinações impostas pelos processos de acumulação, política e social, bem como no contexto de políticas públicas articuladas pelo Estado através de seus diversos aparelhos. GRÁFICO 2 - Notas Introdutórias para a Construção de um objeto de estudo: “O URBANO”
Fonte: Elaborado por Celso Monteiro Lamparelli
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Nota introdutória sobre a construção de um objeto de estudo: “O Urbano”
Nas questões gerais do financiamento e das normas e regulamentos temos duas possíveis pontes de ligação entre esses processos mais amplos e o nosso objeto de estudo específico. Analisar e compreender essa dinâmica entre contexto e objeto é sem dúvida um dos pontos fundamentais do exercício proposto. E o objetivo fulcral do método aqui exposto é exatamente de permitir a análise e penetração no objeto de estudo sem perder de vista, e mais ainda, trazendo para dentro dele, as contradições e tensões existentes no contexto onde se coloca. O critério para se julgar sua utilidade deverá ser exatamente esse; contribui ele, ou não, para se poder, no próprio ato de análise, estabelecer as ligações com o contexto geral no qual se coloca o objeto de estudo, identificar os reflexos das contradições do todo na parte em análise, compreender as tensões que lhe são próprias e as que derivam dos problemas gerais. Em suma, preparar o seu utilizador para uma ação mais consequente cujo objetivo é transformar uma realidade que se apresenta, em primeira instância, como objeto de estudo. GRÁFICO 3 - Quadro de referências de um método de análise de Meios Coletivos de Consumo
Fonte: Elaborado por Celso Monteiro Lamparelli
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Conclusão Para continuar o trabalho, apenas esboçado neste texto, poderíamos e teríamos que desenvolver e aprofundar os aspectos aqui abordados, em particular os relativos ao espaço e rede urbanos, seus modos de produção, suas contradições e articulação com os meios coletivos. Além disto, teríamos de penetrar na problemática da produção dos meios coletivos: quem os produz, como e por que são produzidos, que efeitos colaterais tem essa produção, como se articula a intervenção do Estado nessa produção; e do seu consumo: quem os consome, como se dá a apropriação diferenciada pelos núcleos produção e consumo (neste caso pelas classes sociais); poder-se-á medir essa diferenciação? Como é ela influenciada pelas práticas das diferentes classes e grupos sociais; como influencia a estratificação social? Perguntas todas elas sem resposta, e que por isso ilustram bem a natureza incompleta do trabalho ora apresentado. Não achamos ser isto um defeito. Muito pelo contrário, pois o objetivo fundamental deste trabalho é chamar a atenção de todos os interessados pela problemática do urbano para a reflexão sobre os temas aqui propostos. Encaramos este texto como uma provocação à reflexão, e como peça de um trabalho coletivo mais amplo, cujas fronteiras não se limitam àqueles que participaram na elaboração deste primeiro ensaio. Esperamos contar com críticas, sugestões e novas contribuições escritas, numa dinâmica de trabalho coletivo que deve contar com o esforço de todos os interessados pelo tema.
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Nota introdutória sobre a construção de um objeto de estudo: “O Urbano”
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O Planejamento: algumas considerações Circe Maria Gama Monteiro1
Este artigo apresenta vários argumentos que permeavam a discussão sobre os limites e potencialidades do planejamento urbano na década de 1970. O assunto guarda alguma atualidade face à disseminação do planejamento local centrado em práticas participativas, os modelos de governança preconizados por agências internacionais de desenvolvimento e as continuadas críticas aos limites do planejamento a serviço dos mais pobres (HAMDI, 2004). Neste sentido espera-se que a leitura tardia possa ressaltar as questões ultrapassadas e as que ainda permanecem em pauta.
Introdução Ao iniciar considerações sobre o planejamento, faz-se necessário esclarecer os matizes de que o termo é revestido, sua amplitude e vários significados. No caso do planejamento urbano, cabe fazer uma distinção entre este e o urbanismo, pois frequentemente assistimos a confusas colocações quando se trata de delimitar um ou outro conceito. A palavra “urbanismo” é relativamente recente. O dicionário Larousse a define como “ciência e teoria da localização humana”, ou melhor, teoria da organização dessas localizações. Gaston Bardet (1977)2, planejador urbano francês, remonta sua criação a 1910. Somente a partir da revolução industrial, com a completa modificação do perfil das cidades, resultante da desordem inerente ao novo modo de produção, estabelecendo um caos urbano, desgraças sociais como a marginalidade, miséria, surtos de epidemias, o estudo do urbano começou a se constituir em preocupação sistemática dos homens, alarmados com o destino da cidade. O urbanismo, surgido nesta época, apresenta-se como disciplina de caráter reflexivo e crítico, portador de uma pretensão científica, dirigido a resolver um problema, o caos e a desordem urbana. Este texto é um excerto do primeiro capítulo da Dissertação de Mestrado, Por um Planejamento Alterativo, apresentada ao Programa de Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1983. Posteriormente, foi publicado no periódico ETC em 15 de maio de 2007, n° 1(2), vol. 1. 2 Reconhecido urbanista francês, crítico a Le Corbusier. Responsável por ter cunhado o termo “urbanificação”, como veremos adiante, tal conceito serve para designar a aplicação dos princípios do urbanismo de modo a diferenciá-los da “urbanização”. (Nota do Editor) 1
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O Planejamento: algumas considerações
Este urbanismo, porém, apesar de ter-se apresentado de diversas formas, ou tentando viabilizar uma volta da sociedade ao passado, pleno de valores culturais e sociais “nobres”; ou em uma visão progressista, propondo uma “nova sociedade” tecnológica, desenvolvida em função do bem estar coletivo, fracassa a maioria das vezes em sua percepção da realidade e no diagnóstico das causas dos problemas. O urbanismo, neste período, percebe as consequências como a desorganização urbana, a densidade excessiva, o congestionamento das cidades como causas; assim, não percebia a situação como resultado inerente do novo modo de produção, ou seja, o capitalismo. Em consequência, as soluções propostas eram formuladas num sentido de “ordenação” do espaço. Sir Patrick Abercrombie (1959) dizia que “o feio gera a miséria” e acreditava que organizando o espaço físico, estar-se-ia também adequando as relações sociais. O urbanismo lançava-se em direção a racionalização urbana através de grandes planos, onde a sociedade pretendida chegava às raias da utopia; já que não eram levadas em consideração as forças econômicas, sociais e políticas existentes. Da nova ciência uma gama de conceitos derivados foram surgindo, como “urbanificação” utilizada para designar o processo espontâneo do crescimento urbano; em oposição a “urbanização”, expressão que pretendia indicar “organização” do desenvolvimento, assim como toda uma nomenclatura própria e um corpo conceitual que nunca chegou a ser bem desenvolvido. Mas, de modo geral, tende-se a compreender urbanismo como a ciência que estuda a forma física da cidade. Ledrut (1971, p. 46) assinala que “o planejamento urbano não é a mesma coisa que o urbanismo”, e acrescenta que enquanto o último se constitui em “ciência normativa de formas urbanas ideais”, o planejamento se constituiria em um meio de controle da ordem urbana. Neste sentido explicita, em seguida, que “pode-se chamar de planificação urbana os mecanismos e os processos sociais pelos quais os diferentes comportamentos e movimentos que contribuem para modificar a cidade e para determinar seu desenvolvimento, são controladas de forma consciente”. (LEDRUT, 1971, p.46) Ou seja, o planejamento se pretende mais amplo, englobando a compreensão do sistema econômico, social, político sobre o espacial. O fato é que o urbanismo e o planejamento, além de partilhar uma mesma área de atuação, são ambos muito recentes. E, o planejamento urbano ainda 69
Circe Maria Gama Monteiro
se encontra em fase embrionária, considerando-se sua trajetória histórica. Embora conceitualmente seja possível distingui-los, na prática, mesmo por parte da maioria dos autores voltados ao assunto, não há uma preocupação em estabelecer estes limites rigidamente. Isto porque o termo “planejamento” tem uma abrangência tal, que superando a adjetivação de “urbano”, é aplicado a todas atividades. O urbanismo assim se constitui em um “planejamento do urbano” no seu aspecto físico espacial. Deste modo, o ponto inicial das considerações aqui expostas será o “planejamento” enquanto um processo de organização das cidades. Planejar é racionalizar, ou seja, é pensar sobre uma realidade no sentido de compreendê-la e propor determinadas ações objetivando sua alteração; portanto, “uma ação planejada é uma ação não improvisada” (FERREIRA, 1981, p. 15). A necessidade de racionalização das ações surgiu com o desenvolvimento do capitalismo mercantil e industrial, que começava a determinar, cada vez mais, uma complexidade do processo produtivo. As indústrias precisavam ordenar todas as fases da produção para conseguir competir no mercado; era a procura de maximização do tempo, da mão-de-obra e dos meios de produção e, consequentemente, dos lucros. Durante muito tempo o planejamento esteve restrito a este tipo de função dentro de instituições privadas. Segundo Ferreira (1981) a transposição do planejamento dos limites fechados das fábricas para a sociedade como um todo, foi um processo relativamente lento, em particular durante a vigência do liberalismo econômico e do capitalismo competitivo. A falta de planejamento social permitia às parcelas detentoras do capital viabi1izar seus lucros, através da selvagem exploração da mão-de-obra, dos recursos naturais, sem preocupações com os efeitos depredatórios de suas atividades, tanto na natureza como no resto da sociedade. Afinal, a acumulação de capital era possível inclusive nos momentos de crise! Somente quando as crises tornaram-se maiores e mais constantes, quando a miséria social começou a imperar e a gerar maiores parcelas de descontentes, com um aumento das tensões sociais, quando tais tensões começaram a ameaçar os níveis de acumulação, foi então que a sociedade capitalista começou a aceitar a ideia de um planejamento geral, notadamente na área econômica, visando corrigir certos abusos e desvios. Esta lentidão dos países capitalistas ocidentais em absorver o planejamento geral, se deu também em grande parte, em contraposição ao naquela época emergente sistema socialista, que instaurado na Rússia sob a égide do “planejamento para o bem de todos” implantava a coletivização da propriedade dos meios de produção. 70
O Planejamento: algumas considerações
Na ocasião, temerosos da repercussão de tal proposta, os capitalistas passaram a veicular a ideia do planejamento geral como um meio de cercear as liberdades individuais e os direitos de todos cidadãos, como algo contrário a instituições como a família, a religião e o direito privado de cada um poder agir a seu bel-prazer sobre seus bens e propriedades. Por isso foi difícil, num momento posterior ao próprio capitalismo, apresentar o planejamento como algo válido e positivo para a sociedade capitalista. O ponto de inflexão de tal postura se estabeleceu com a crise de 1929, que deixou patente a necessidade de uma visão de conjunto, e de uma planificação geral que assegurasse a acumulação. Anteriormente o Capital já havia passado para o Estado a função de viabilizar as “condições gerais de produção”, ou seja, o planejamento de infraestruturas, transportes, escolas, etc... e todos os serviços não rentáveis ao mesmo, porém necessários para sua reprodução. Tais necessidades eram programadas ou planejadas através de planos físicos setoriais de curto e médio alcance bastante controlados pelos interesses do Capital. Com o advento das guerras mundiais os Estados desenvolvidos experimentaram novas formas de racionalização do conjunto, pois tinham que determinar a vida econômica de seus países durante o evento e dirigir toda sua recuperação e desenvolvimento no pós-guerra. Surge, assim, uma articulação entre o Estado, representante das parcelas dominantes da sociedade, e determinadas frações de capital, que passa então, a emitir orientações e planejar as atividades gerais do país, inclusive as econômicas, em nome do progresso e do desenvolvimento econômico. O planejamento estatal centralizado passa, então, a fazer parte do dia a dia das sociedades capitalistas e se espalha por todos os setores: educação, saúde, habitação, lazer, etc. Porém, como meio de se diferenciar do modelo soviético, o planejamento nos países capitalistas assume uma postura de caráter técnico.
O Planejamento como técnica O planejamento urbano se apresenta na maioria das vezes, como atividade desempenhada por técnicos; profissionais experientes, portadores de um cabedal de conhecimentos sobre a realidade urbana e capazes de propor as melhores soluções para seus problemas. Reveste-se de uma cientificidade, que é a responsável pela sua imagem de “neutralidade” frente aos variados conflitos urbanos. Nesta ótica o planejamento é encarado como um processo, desenvolvido em várias fases, que visa o conhecimento da realidade, objetivando a solução 71
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dos problemas existentes através de orientações gerais e ações de intervenção, materializadas em um plano ou projeto. A definição de planejamento, contida no documento de 1958, Carta dos Andes, segue esta linha, em seus termos, o “planejamento é o processo de ordenação e previsão para conseguir mediante a fixação de objetivos e por meio de uma ação racional, a utilização ótima dos recursos de uma sociedade em uma época determinada”. Tal assertiva transmite a ideia de que, através do conhecimento de uma situação e por meio da “racionalização” e cientificidade das propostas elaboradas se chega a melhor solução. Despreza-se, assim, a existência de externalidades ao processo de planejamento, como se toda a problemática dependesse apenas de soluções técnicas. A neutralidade perseguida pelo planejamento, neste posicionamento, é facilmente questionada quando enfocamos a fase de determinação dos objetivos das ações a serem propostas. Em qualquer universo de intervenção em nossa sociedade é notória a existência de conflitos. Podem ser de origens mais diversas; conflitos internos a uma área relacionados com os diversos interesses da comunidade; conflitos gerais envolvendo a estrutura geral da sociedade como também e no caso mais determinante, conflitos devido a divergências entre os interesses de quem “promove” o planejamento e das populações que dele são alvo. A ideia de que os objetivos de uma ação planejada são produto do conhecimento e da técnica é falsa, assim como também é falso o fato de que há uma autonomia decisória do planejador quanto a estes objetivos, como procuraremos mostrar a seguir. A noção da técnica é classicamente defendida pelos modelos e esquemas diretores das etapas de planejamento (onde a função do planejador termina com o plano). Estas etapas corresponderiam a três momentos: •
o do conhecimento;
•
o da racionalização de alternativas;
•
e o da proposta definitiva de intervenção.
O esquema a seguir ilustra uma versão deste processo (FERRARI , 1977, p. 155). No caso do planejamento urbano, os primeiros passos correspondem ao conhecimento da situação que consiste na recuperação de informações residuais existentes em organismos oficiais e de contato com a população através da pesquisa. São levantadas informações quanto à composição da população, sua
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O Planejamento: algumas considerações
situação socioeconômica, a situação da área em termos de infraestrutura e serviços e os anseios dos seus moradores quanto às melhorias a serem implantadas. O esquema apresenta a articulação necessária com a comunidade em vários momentos. Este contato primário qualitativamente pode ser de várias maneiras, dependendo do interesse do planejador, do tempo para elaborar o trabalho, das condições políticas dos seus habitantes, mas geralmente o enfoque dado é da população objeto de estudo, mais do que população/sujeito da ação, isto é, propositora das intervenções. O segundo momento é o do diagnóstico: através da análise dos elementos recolhidos se detecta os problemas prioritários das áreas, suas causas, consequências e as alternativas prováveis de solucioná-las ou de promover alguma melhoria nas suas condições de vida. É também neste momento que se passa ao exercício de visualizar a realidade desejada; que servirá de base para proposição das ações devidamente dirigidas para materializar dita abstração do futuro - é a chamada prognose. O plano, última fase do processo, consiste em um documento contendo os resultados das fases materiais, que justificam as ações apresentadas, com detalhamento quanto a sua execução, forma de implantação, recomendações gerais e orientação quanto à forma de atuação das diversas instituições envolvidas no processo. Mas o planejamento não se restringe a este estágio, um outro esquema também clássico e mais abrangente apresenta o processo de acordo com os principais níveis decisórios: •
A etapa eminentemente técnica, correspondente ao esquema anterior, ou seja, a preparação dos planos pelos planejadores;
•
A adoção do plano pelos que decidem, responsáveis pela chamada fase política;
•
A implementação dos planos pelos administradores; isto é a fase executiva;
•
A realimentação do processo via avaliação dos resultados obtidos na implantação.
Funcionalmente, este esquema é corretíssimo. Apresenta um processo dinâmico, cujas etapas deverão ser estreitamente conectadas e interdependentes, onde a ação é acompanhada diretamente pelo planejador. Os resultados da intervenção são analisados e as causalidades ocorridas e desvios não esperados, servirão de base para futuros planejamentos. Assim, após seu início o processo seria continuo, sempre acumulando conhecimentos e refletindo-os na concepção das ações. 73
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Ambos os esquemas de planejamento aqui apresentados são utópicos, não correspondem ao que se desenvolve na prática e neste sentido não passam de elementos de legitimação exterior do mesmo. O fato é que o planejamento enquanto técnica, não assume tal esquema global. Porque como elemento técnico, ele precisa ser distante, isto é, desvinculado de quaisquer interesses. A partir do momento em que é vinculado à implantação de suas propostas, se coloca na posição de dar satisfação de suas ações e de sofrer questionamentos diretos. Com isso a máscara da razão e da cientificidade, de que depende sua sobrevivência é ameaçada. A partir deste temor, que se estabelece a ideia de que o objetivo final do planejamento é o plano. E os planejadores são os primeiros a aceitar estas premissas como forma de evitar um julgamento social de sua atividade profissional. A postura de desvinculação do pensamento da ação, leva-os a ter um discurso revolucionário, a produzir diagnósticos críticos sobre as estruturas políticas e econômicas, sem a preocupação de que tais diagnósticos se materializem em ações. Neste sentido estão sendo eminentemente alienados pactuando com uma pretensa ideia de neutralidade, alimentada pelo fato de produzirem críticas inócuas. A fase política não representa quaisquer empecilhos; o planejamento enquanto técnica, “neutro”, está a serviço de quem o contrata, de quem decide, “este é outro dos mitos aceitados do processo clássico de planejamento: que os planejadores entregam alternativas com a finalidade que os políticos escolham. Isso não acontece”. (BROWNE; GEISSE, 1974, T.A.). Os planos, assim, já são orientados para os interesses do cliente. Com a sua atuação, finalizando neste estágio, o planejador estabelece um “álibi” perfeito, quando do fracasso dos planos: o plano não foi corretamente implantado, sua concepção foi distorcida pelos políticos, não existiam as condições sociais prévias necessárias, etc. E finalmente, a quarta fase do modelo circular de planejamento que corresponde a avaliação dos resultados, é um MITO. No estabelecimento dos papéis de decisão não cabe a nenhuma das instâncias tal função, o planejador quando é encarregado desta monitoração o faz através de seus parâmetros, “legitimando externamente sua posição, a técnica julga e justifica à técnica...” O planejamento enquanto técnica não se envolve em programações de longo alcance, geralmente ligadas a projetos de desenvolvimento nacional, mudanças sociais, enfim, propostas de cunho estrutural. Enquanto técnica o planejamento se orienta para a “confecção de planos puntuais”, respostas a problemas prementes, passíveis de qualificar como projetos corretivos. 74
O Planejamento: algumas considerações
As propostas urbanas, assim, se caracterizam por projetos de adequação infraestrutural, melhorias de sistema viário, esgotamento sanitário, ampliação do abastecimento d’água, oferta de equipamentos sociais, programas habitacionais. Ações visando adequar áreas mais carentes à estrutura atual e, portanto, reforçando seu funcionamento. Embora no diagnóstico elaborado se detectem problemas advindos exatamente destas “estruturas”, os planos não chegam a questioná-las, caracterizam-se por propostas reformistas. A longo prazo, estas ações desconectadas entre si acabam por agravar os problemas urbanos, pois não há um direcionamento deste planejamento frente a sociedade, se constituindo assim em um perigoso planejamento incrementalista.
A técnica e os métodos Um esclarecimento deve ser feito. A crítica ao “planejamento enquanto técnica” não se refere aos métodos e técnicas utilizados pelo planejamento, que, todavia, possuem uma importância para a compreensão dos fatos e para a geração de conhecimento. Estes instrumentos que consistem praticamente em métodos de observação, análise da validade, formulação de modelos, foram inicialmente incorporados ao estudo do urbano pela Escola de Chicago e seus seguidores. A chamada “Ecologia Humana” baseando-se no pressuposto de que no mundo tudo segue uma regra biológica começou a utilizar metodologias de observação usuais em ciências naturais e biológicas no contexto urbano. Seu maior expoente, Louis Wirth (1938), desenvolveu trabalho de análise do meio urbano frente a parâmetros estabelecidos para a classificação das cidades: tamanho, densidade e homogeneidade, utilizando métodos usuais para observação comportamental de animais e cobaias, do seu ponto de vista a cidade seria como um grande laboratório. Robert Ezra Park (1916), do mesmo modo, elaborou parâmetros técnicos para uma análise sociológica do meio urbano. O desenvolvimento destes estudos levou à criação de um instrumental técnico para o planejamento estabelecendo parâmetros ideais, normas e limites de densidade populacional, tamanho de aglomerados urbanos, regras de zoneamento, critérios para dimensionamento e localização de equipamentos comunitários, índices de conforto ambiental, dimensionamento de sistema viário e uma infinidade de dados visando orientar o desenvolvimento urbano; de validade ainda hoje (salvo adaptações necessárias), inestimáveis para a prática de formulação e propostas no meio urbano. 75
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Refletindo isto, houve na década de 60 uma grande predileção na utilização de técnicas científicas, voltadas para um acentuado empirismo. Neste sentido buscaram indicadores de análise que apresentassem qualidades práticas como facilidade de mensuração, estabilidade e constância, facilidade de aplicação e que fossem portadores das mais importantes características do objeto de estudo. Verificou-se uma difusão dos métodos, técnicas científicas agora contando com o suporte da cibernética, na elaboração dos “modelos”. A classificação é uma maneira de identificar modelos similares entre acontecimentos, que em outro caso, apareceriam sem relação. “É provavelmente a técnica mais sensível para se reduzir uma matéria a limites manejáveis e práticos” (REISMANN, 1972, p. 82). Devido a esta extrema praticidade seu uso foi se tornando indiscriminado resultando constantemente em dados incoerentes, relações “forçadas” e análises irreais. A transposição de modelos elaborados com variáveis relativas às sociedades desenvolvidas, nos países latino-americanos, resultou numa quantidade de diagnósticos totalmente descabidos e inúteis. Isto porque a técnica não existe per si, ela só tem sentido quando sustentada por um esquema teórico, que especifica o que terá de ser medido, e por que. Não se pode “transpor” teorias de uma realidade, a outra totalmente diversa, a técnica estando a serviço da teoria, deverá ser repensada a partir desta última. Um enfoque extremo da utilização de métodos racionais e científicos no planejamento é postulado pelos adeptos da Teoria Geral dos Sistemas, que tentam utilizar uma linguagem única para a análise de subsistemas distintos. Embora o enfoque sistêmico tenha contribuído e muito, na formulação de teorias de desenvolvimento, no planejamento regional, nas teorias de localização, etc., apresenta muitas restrições para sua utilização em nossas sociedades onde variáveis difíceis de ser mensuradas (influenciadas por políticas existentes, dependência do país, sentimentos culturais e outros) são causas determinantes do problema e por isso primordiais para sua compreensão; sendo ainda válidas as mesmas críticas feitas à utilização de “modelos importados”. Vimos que na fase dita eminentemente técnica pelos dois esquemas, o “produto final” ou plano de intervenção, é condicionado por duas instâncias: a realidade existente, seus problemas, causas e consequências, e a determinação dos objetivos a serem perseguidos nas ações do plano. Voltamos a uma indagação inicial: 76
O Planejamento: algumas considerações
Quem fixa tal objetivo? O planejador? O Estado? A população? Quaisquer das três respostas vão implicar em tipos de planejamento totalmente diversos. A ótica do planejador quanto ao que seria melhor para certa parcela da sociedade, possivelmente não é a mesma do Estado, muito menos dos reais implicados na problemática. As mesmas considerações são feitas quanto a sistemática de conhecimento dos problemas. As formas de implantação das ações, as formas de participação da população. Não podemos mais continuar considerando o planejamento como produto da razão, consciência e seriedade de seu formulador, - como um processo neutro e mediador dos conflitos, mas sim como resultado dos interesses de quem o promove. Na realidade, é um instrumento que pode ser manipulado diferentemente de acordo com quem detém “as suas rédeas”, assim sendo planejamento é um instrumento político?
O Planejamento como Instrumento Político O ato de planejar, ou seja, de elaborar uma ação cuja formulação passa por uma fase de racionalização, objetiva sempre imprimir alteração a algo que vem se desenvolvendo espontaneamente. Esta nova situação desejada vem sempre acoplada a necessidades mais amplas que as indutoras da dita situação alvo e por isso, geralmente ligada a interesses de um sistema dominante maior, econômico ou político. O planejamento no qual centramos nossa análise, é o urbano, portanto possuidor de uma característica fundamental, a de que todas as recomendações e diretrizes são materializadas em um espaço físico. Neste sentido, seria o espaço físico considerado somente como suporte ou local onde se processam as relações sociais, ou mais amplamente o espaço onde se desenvolve as atividades produtivas, o consumo e reprodução geral do sistema determinador de uma sociedade? Ledrut tende a chamar de planejamento urbano, “aos mecanismos e processos sociais pelos quais os diferentes comportamentos e movimentos que contribuem para modificar a cidade e para determinar seu desenvolvimento, são controlados de forma consciente” (LEDRUT, 1971, p. 47). Frente ao objetivo de analisar o planejamento como “instrumento político”, é interessante esclarecer o que entendemos pelo mesmo. O termo instrumento é claramente empregado no sentido de “utensílio” porém quando acoplado ao 77
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adjetivo em pauta podemos entendê-lo como “capaz de viabilizar os interesses de determinadas classes sociais, na sociedade como um todo”; mesmo sendo esta sociedade capitalista, subdesenvolvida e caracterizada por classes radicalmente antagônicas. Em países onde a situação das classes é aguçada ao extremo, são distinguidas basicamente as classes dominantes e as classes exploradas; onde poderíamos considerar também a existência de campo para dois planejamentos explícitos e conflitantes quanto a seus objetivos. Existiram e existem, assim, dois urbanismos, um que gostaria de mudar o mundo, mas não pode fazê-lo a não ser que se torne uma parte do movimento de libertação; outro que quer conservá-lo como é, para manter imutáveis os próprios poderes, mas que somente pode piorá-lo levando-o ao desastre. (GUIDUCCI, 1980, p.12).
As cidades capitalistas refletem as regras de poder, lucros imediatos o que igualmente acontece com o planejamento a serviço deste sistema, que acaba sendo um planejamento do sistema dominante e reacionário. É interessante notar que existe uma tendência de negar qualquer valor revolucionário ao planejamento urbano; dentre os muitos motivos que levam a esta posição está o fato deste ainda ser considerado ciência parcial, que abrange somente o espaço físico e há uma vívida reação a uma concepção passada e falida de que ordenando o espaço estar-se-ia também ordenando as relações sociais que nele se processam e consequentemente a sociedade. Do nosso ponto de vista esta tendência é fruto da não compreensão de algo, em que já há uma consciência ampla; ou seja, de que o planejamento urbano não se restringe a fatos construtivos, tipo infraestrutura, serviços, habitação, centros produtivos e outras, que são inertes; [...] a organização espacial implica também qualidades que não são físicas, como o tipo de relações sociais, a mobilidade, as alternativas de uso do tempo, a coagulação de capacidades inventivas, as tensões em direção a renovação, a cultura, os outros homens, a consciência das contradições econômicas e sociais, o esforço de libertação da sociedade da opressão de classe e de estrato, etc.” (GUIDUCCI, 1980, p.26).
O planejamento urbano só pode ser compreendido como atividade global, onde conhecimentos de economia, sociologia, geografia, política dentre outros têm presença marcante. E em uma sociedade onde a multiplicidade de interseções e complexidade das estruturas necessitam de um maior grau de racionalidade e ordenamento, o planejamento cresce em importância como elemento de intervenção eficaz, de controle ou libertação. Este não mais “pode prescindir da consciência e responsabilidades políticas e sociais (que lhe são) consequentes”. (CASTELLS, 1975, p.214). 78
O Planejamento: algumas considerações
E se reforçamos este ponto é porque o planejamento que nossa sociedade conhece atualmente, como tal, é primordialmente o planejamento como um instrumento do Estado. Isto também se deve pela presença de regimes políticos autoritários nas sociedades latino-americanas que dificultam, senão impedem, qualquer viabilização de práticas sociais democráticas de base, indispensável para a emergência de um “outro” planejamento. Considerando o planejamento via Estado, “a nossa análise de planejamento urbano como instrumento político, é a análise do potencial de transformação de tal processo no sistema de consumo coletivo e no da organização espacial das atividades”. (CASTELLS, 1975, p. 220). Mas para tal, é necessário uma aproximação da realidade em questão. Dificilmente esta análise poderá ser feita em termos gerais, abstratos, porque tal potencialidade acha-se intimamente ligada a condições específicas; como o tipo de regime político, a fase de desenvolvimento histórico do país, as forças políticas atuantes, o grau de pobreza urbana, o nível de organização da população, a organização do aparato institucional do Estado e seus aparelhos. Embora seja material suficientemente vasto, apresentaremos umas breves considerações e caracterizações gerais do planejamento sob este prisma.
O Planejamento como Instrumento Político do Estado Ao enfocarmos anteriormente o planejamento como uma atividade técnica, demonstramos como este se reveste com caráter de racionalidade, seriedade e de uma pretensa neutralidade frente a situação contraditória sobre a qual ele atua. É exatamente esta sua capacidade de poder se apresentar através de um pretenso caráter de cientificidade e neutralidade, que o transforma em valioso instrumento de dominação e veiculação ideológica por parte de parcelas dominantes da sociedade, através do Estado. Quando se veicula a ideia, do planejamento como esforço para atuar de maneira consciente e racional através de um conjunto de planos, programas e projetos objetivando o bem-estar social, visa-se transmitir à sociedade as “boas intenções” de quem o promove, a sua procura por “mudanças” positivas. Para entendermos o seu papel nas sociedades capitalistas não podemos desvincular a análise das relações sociais dominantes nas mesmas, da lógica do processo de produção e de consumo e apropriação do espaço urbano pela sociedade; e consequentemente das articulações e reflexos do sistema econômico, político e social neste mesmo espaço. 79
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Nesta ótica surge um entendimento de que o [...] planejamento urbano pode definir-se em geral, como a intervenção do sistema político sobre o sistema econômico, a nível de um conjunto sócioespacial específico, intervenção encaminhada para regular o processo de reprodução da força de trabalho (consumo) e da reprodução dos meios de produção (produção) superando as contradições postas no interesse geral da formação social cuja subsistência visa assegurar (CASTELLS, 1975, p. 223 – grifo da autora).
Esta regulação das contradições via planejamento de Estado se verifica basicamente a partir da elaboração e atuação em três campos diversos: •
uma via ideológica, que utiliza o planejamento urbano como canal de veiculação direta de um sistema de valores a ser transmitido à sociedade;
•
a gestão, que visa a administração e a regulação legal das unidades produtivas cada vez mais complexas e dispersas no espaço urbano;
•
e a produção das “condições gerais de produção” e reprodução do capital, com a dotação de infraestrutura física e equipamentos supra-estruturais.
De modo geral, como estamos apresentando as diversas “formas” de que se reveste o dito planejamento, podemos enfocar suas características dominantes de acordo com os níveis de intervenção do Estado, ou seja, nacional. regional e local. Ao nível nacional, o planejamento urbano se apresenta como a formulação de uma política urbana, que emana orientações e recomendações do Estado, a todos os setores envolvidos na resolução dos problemas urbanos. Consiste então em um planejamento que objetiva mudanças a “longo prazo” onde as diretrizes e orientações gerais são voltadas para o “desenvolvimento econômico e o crescimento da sociedade”; e caracteriza-se primordialmente por ser um “momento eminentemente político”, onde as decisões estratégicas são tomadas. Esta política urbana é materializada a nível nacional através de dois mecanismos de controle: o institucional e o financeiro. Institucionalmente com a elaboração de leis e decretos que regem por exemplo, o parcelamento do solo, o desenvolvimento industrial em “distritos” específicos e outros, e financeiramente com o estabelecimento de linhas de crédito orientadas para determinadas intervenções politicamente escolhidas. Assim, em um determinado momento, no setor habitação só há crédito para intervenções em habitações de baixa renda, em outro, para infraestruturas básicas ou créditos para aquisição de imóveis usados; no setor transporte, ora
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O Planejamento: algumas considerações
se financia o transporte coletivo, ora a execução de estacionamentos periféricos para veículos privados, ora o transporte rodoviário, ora o ferroviário e assim por diante. Apesar de se constituir em plano de longo alcance e de longo prazo, as alterações e mudanças de nuances ocorrem com grande frequência e dinamismo. Isto devido às constantes alterações, adaptações e arranjos das forças políticas na sociedade; não só da correlação histórica entre dominantes e dominados como também das modificações em termos de alianças do “bloco no poder”. É o produto consequentemente de uma atuação em cima de interesses tão contraditórios, como por exemplo: •
atendimento às necessidades do empresariado industrial quanto a expansão do setor, garantindo seus níveis de acumulação;
•
o atendimento das necessidades mínimas da população trabalhadora, garantindo sua reprodução e mantendo um nível sustentável de tensão social;
•
a necessidade de assegurar a expansão do setor imobiliário aumentando os limites urbanos e promovendo sua acumulação em cima da dotação de serviços urbanos públicos e enfrentar os problemas de uma crescente pobreza urbana...
O planejamento regional embora com várias características semelhantes ao nacional, tem sido enfocado basicamente como um planejamento corretivo, visando adequar desvios estruturais, produtos dos desequilíbrios e injustiças do modelo histórico de crescimento do país. Com uma base eminentemente econômica, os planos regionais geralmente são voltados para a correção de desníveis econômicos entre regiões, através do desenvolvimento industrial nas áreas mais subdesenvolvidas na estruturação de centros urbanos de médio porte e incentivos bastante atraentes para esta nova localização do capital industrial. Pelo seu espaço de atuação é um nível de planejamento imprescindível para a solução dos problemas urbanos, cujas causas principais não estão na cidade e sim no campo, ou melhor, em problemas regionais. O nível regional teoricamente possui um espaço para adequação entre os setores primário e o industrial, mas na prática, os interesses contraditórios e conflitivos entre estes setores fazem deste plano de intervenção um verdadeiro “palco de luta” entre interesses da burguesia industrial e da oligarquia rural; o que vem comprometendo sempre seus resultados. E finalmente, o planejamento urbano ao nível local, [...] é o escalão do concreto, onde se exercem as relações de produção, é onde se materializam as relações sociais de uma sociedade, é o meio onde as contradições estão mais explícitas e o menos sujeito ao controle ideológico e é
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onde a ação do poder público se manifesta de forma mais intensa e suscetível de ser orientada pelo planejamento urbano”. (COSTA, 1978, p. 84).
As ações no urbano segundo Castells (1975) estão voltadas a duas problemáticas distintas: a) Os remédios para fazer frente às “insuficiências” do processo de industrialização ao nível do consumo e especialmente de consumo de bens coletivos; b) A gestão técnico-econômica de unidades espaciais cada vez mais extensas e complexas. Respondendo à primeira problemática, o planejamento urbano ou a urbanização, tem se constituído de fundamental importância nesta “mediação” do nível de consumo. A dotação de serviços de infraestrutura e equipamentos sociais tem atuado como “salário indireto” às populações pobres, cujos rendimentos permitem apenas um nível de sobrevivência fisiológica. Isto se explica pela forma de um modelo de desenvolvimento onde a acumulação é assegurada principalmente via achatamento salarial. Fica claro compreender que este tipo de intervenção tem um papel nitidamente político, tanto no sentido de aliviar tensões como de favorecer determinados grupos. As ações infra estruturais no nível local, na maioria das vezes não passam por um processo de planejamento, são respostas a “necessidades que se tornam emergentes”, necessidades estas que não são naturais, ou as mais prementes “e que só são socialmente tratadas na medida em que são socialmente expressas por meio de um jogo político”. (CASTELLS, 1975, p. 211). Este planejamento de respostas imediatas a quem “grita mais alto”, ao invés de minimizar os problemas urbanos, a longo prazo o compromete irremediavelmente pela ausência de uma orientação que trate o urbano como uma unidade, cria uma “colcha de retalhos”. Quanto à gestão do urbano, esta tem-se verificado com a proliferação de organismos de planejamento nas cidades. A gestão está ligada a duas atividades: a criação de planos orientadores para a ocupação do espaço, tipo modelo de ordenamento territorial, uso do solo, zoneamento, etc... e a elaboração de projetos específicos de renovação urbana, urbanização de áreas periféricas e favelas, criação de novos centros, etc... Embora sejam ambas intervenções de gestão a nível local, as primeiras se distinguem por consistir basicamente na elaboração de instrumentos institucionais e legais de regulação e por estar completamente dissociadas de uma ação executiva, como nas últimas intervenções citadas. É nestas, que o planejamento tem o maior campo de atuação não só pelo fato de ter um controle mais efetivo na implantação destes planos, como 82
O Planejamento: algumas considerações
também um certo grau de liberdade frente às orientações gerais emanadas pelo poder central. Isto porque trata diretamente as áreas urbanas cujas especificidades locais são tantas que é impossível englobá-las dentro de orientações gerais. É certamente o espaço mais criativo do planejamento urbano onde as contradições são sentidas frontalmente e onde segundo nosso entender era o nível que se encontrava menos “estruturado”. Recentemente porém, com a necessidade do Estado de angariar apoio político das populações pobres e ao mesmo tempo garantir um maior controle das tensões e movimentos sociais; a gestão e o planejamento local tornam-se elementos valiosos e começam a se constituir em instrumentos ideológicos de uma “política central” que extrapola os interesses meramente “urbanos”.
O Planejamento como Instrumento de Libertação Primeiramente cabe estabelecer o que se entende por “libertação”. O termo se define por uma “falta de liberdade”, “necessidade de ser livre”, ou ao seu oposto “dominação” e “dependência”. “Tem o sentido de algo que se tem de eliminar (a dominação e dependência) e de “alguém” (o sujeito da libertação) que deve ir realizando-se, ‘fazendo-se’”. (ANDER-EGG, 1976, p. 210). Quando falamos de planejamento para libertação, nos remetemos a uma ação capaz de criar, ruptura crise, nas estruturas atuais buscando um novo rumo, uma nova sociedade. Agora como o processo de planejamento se insere em um projeto tão vasto e global? Anteriormente foram desenvolvidas considerações sobre o planejamento, onde se mostrou que a tomada de decisão dos objetivos a serem perseguidos pelo planejamento não era um exercício técnico, nem racional e sim político; e assim dependendo de “quem toma as decisões”, poderiam haver vários rumos. Mesmo quando o processo era detido exclusivamente em mãos da técnica, o fator arbitrariedade, adquiria um peso igualmente perigoso. Chega-se assim à constatação de que para haver intervenções no meio urbano voltadas para as reais necessidades da população, esta inevitavelmente deverá tomar parte do processo de planejamento. Cada intervenção urbana cristaliza uma alteração, representa uma evolução (ou não) nestas condições físicas e nas relações sociais que aí ocorrem. Para concebermos um “planejamento de libertação, devemos partir de duas premissas básicas: 83
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a.
que há uma evolução da humanidade, e há fases que significam uma ascensão qualitativa da humanidade,
b.
que o homem é construtor, fazedor de história, ou o que é o mesmo, é responsável por conduzir a evolução” (ANDER-EGG, 1976, p. 210).
Se o planejamento pode ser instrumento de um povo, pode se constituir em prática de valores reais desta sociedade; “ao escolher seu urbanismo, uma sociedade escolhe a si mesma, determina uma forma de existência humana e uma arte de viver”. (LEDRUT, 1971, p. 205). A libertação como projeto de uma sociedade pode se dar em termos de prática social do povo em três níveis: •
as lutas pela libertação nacional (nação contra império);
•
as lutas pela libertação social (classes exploradas versus exploradoras);
•
as lutas pela libertação pessoal (desalienação e conscientização para a criação de uma nova maneira de ser homem).
Estas “lutas para libertação” estão sempre ligadas a estados futuros desejados, tem uma base prospectiva, mas ao mesmo tempo pressupõe fundamentalmente uma práxis. Práxis esta ligada à conscientização e a procura de superação das contradições homem-homem e homem-natureza. “Conscientizar implica sempre em um juízo crítico da situação, de suas causas e conseqüências (sic) e uma orientação para saber em que direção se orienta a ação, qual é o caminho de libertação”. (ANDER-EGG, 1976, p. 214). Neste processo, porém não podemos deixar de ressaltar que “não se conscientiza no vazio ideológico, a conscientização está sempre acoplada a um projeto político” (ANDER-EGG, 1976). Assim como o planejamento via Estado contém toda ideologia do Poder este “novo planejamento” deverá também refletir os valores de uma outra sociedade. Em síntese, conscientização, política e ideologia são ingredientes indispensáveis, permanentes e inseparáveis anteriores a qualquer processo de planejamento para libertação e diretores deste. Agora, em que o planejamento em sua atuação no urbano poderia contribuir em tal estratégia de libertação? Em relação a uma libertação social, primeiramente o planejamento tem uma função de denunciar, de revelar as contradições do sistema capitalista e do próprio planejamento. Denunciar por exemplo a propalada intenção de “integração” das áreas pobres à cidade e consequentemente de uma população marginal à sociedade 84
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demonstrando que é a estrutura desta sociedade que cria a marginalidade. Esclarecer o que significa se integrar nesta sociedade, de lucro, de exploração, da valorização do homem pelo que tem e não pelo o que vale. Demonstrar que as áreas pobres não podem ser tratadas pelo urbanismo da mesma forma que áreas ricas, porque estas refletem a realidade destas classes; da exploração de uma sobre a outra; e de que a superação de tal situação não poderia se dar dentro de regras do sistema capitalista. No plano das lutas para libertação pessoal, o urbanismo pode contribuir através da estruturação de espaços ligados a noção de que “vida é individualidade coletiva, da existência do “sujeito-coletivo urbano” de que fala Ledrut (1971); na prática e na vivência de tal coletivo. Parece primordial o estabelecimento de uma posição ideológica nos próprios fundamentos do que é urbano e dos seus parâmetros. A invasão cultural que é um instrumento de dominação dos mais fortes, levou a população a introjeção de valores que não são seus; “na invasão cultural, é importante que os invadidos vejam sua realidade com a ótica dos invasores e não com a sua própria. Daí que uma das condições para o êxito da invasão cultural é que os invadidos se convençam de sua inferioridade intrínseca” (FREIRE, 1970). Em uma área pobre, marginal, depara-se com a assimilação dos padrões culturais dominantes e burgueses veiculados pelos meios de comunicação. É necessário questionar e romper esta dominação; uma destas formas é fazer com que os reais interessados participem do planejamento de seus espaços, eliminando o planejamento imposto que trata-os como meros objetos sem vontade e sem saber. Uma política que seja verdadeiramente ação libertadora, pressupõe que o oprimido tenha condições de descobrir-se e conquistar-se reflexivamente, como sujeito de seu próprio destino histórico, de modo tal que, ao investigar, planificar e executar com o povo, o trabalho social serve para que o povo descubra seus próprios caminhos de libertação (COSTA PINTO, 1963).
O planejamento ao nível local constitui-se em excelente espaço para uma ação conscientizadora eficaz, por tratar principalmente com aspectos cotidianos, vividos proximamente por cada habitante. Agora é necessário ponderar estas posições, o planejamento per se não é, e nem nunca será instrumento de mudança social, esta será resultado das confrontações entre classes sociais. O planejamento poderá contribuir na medida em que se constituir em um processo aberto capaz de viabilizar projetos de uma sociedade oprimida. Seu papel então será de conscientizador e 85
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organizador das formas de resistência, promovendo então, um meio favorável à germinação de novas forças sociais. Ao identificar as causas da pobreza urbana, da injustiça e dos males sociais que afligem com grande intensidade às populações urbanas, vimos que a superação só seria possível através de mudanças estruturais da sociedade. Neste sentido dificilmente podemos encarar o planejamento urbano como instrumento político para esta superação, mas não podemos deixar de considerar que “não há mudança qualitativa importante que não se prepare longamente, na acumulação quantitativa de pressões e condições para realizá-las” (FERREIRA, 1981, p. 88).
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Neste início de século uma realidade nova, apoiada não mais nas formas antigas de relações do homem com o espaço e a natureza, mas nas que exprimem os conteúdos novos do mundo globalizado, traz consigo uma enorme renovação nas formas de organização geográfica da sociedade. Diante dessa nova realidade, conceitos velhos aparecem sob forma nova e conceitos novos aparecem renovando conceitos velhos. A rede global é a forma nova do espaço. E a fluidez – indicativa do efeito das reestruturações sobre as fronteiras – a sua principal característica. Uma mudança se pede assim na forma do olhar geográfico e do geógrafo. Mas em que consiste este olhar? E como dar-lhe contemporaneidade?
A realidade e as formas geográficas da sociedade na história Até o advento da primeira Revolução Industrial, no século XVIII, o mundo era um conjunto de realidades espaciais as mais diversas, e as sociedades se distribuíam na infinita diversidade espacial dos gêneros de vida das civilizações. Desde então, a tecnologia industrial passa a intervir na distribuição, unificando em sua expansão área a área, um após o outro esses antigos espaços. Com o advento da segunda revolução industrial, que ocorre na virada dos séculos XIX-XX, esta intervenção é levada à escala planetária, na forma da uniformização dos modos de vida e processamentos produtivos. Os espaços são globalizados em menos de um século sob um só modo de produção, que unifica os mercados e os valores, suprime a identidade cultural das antigas civilizações e traz com a uniformidade técnica uma desarrumação socioambiental em escala inusiTexto de palestra realizada no sistema FATEC/Paula Souza, da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, revisto e ampliado pelo autor. Publicada originalmente na Revista Ciência Geográfica número 6, abril de 1997, AGB-Bauru. Posteriormente, foi publicado no periódico ETC em 1º de junho de 2007, n° 1(3), vol. 1.
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tada. Ao re-arrumar os espaços sob um só modo padrão, a uniformidade de organização destrói e prejudica o modo de vida com que a humanidade se conhecia. Um ponto de inflexão é a década de 1950 e um outro a década de 1970.
A região: o olhar sobre um espaço lento Quando os geógrafos dos anos 1950 olhavam o mundo o que viam era a paisagem de uma história humana que mal mudara de página no trânsito dos séculos XIX-XX. Viam a sombra das civilizações antigas, com suas paisagens relativamente paradas, compartimentadas e distanciadas. Os meios de transporte e comunicação e o poder de intervenção técnica da humanidade sobre os meios ambientes só neste momento passavam a se alicerçar na tecnologia da segunda revolução industrial, interditada em seu desenvolvimento no período de entre-guerras dos anos 1930-1940. Nada mais natural, pois, que intuíssem tais geógrafos a sensação da imobilidade dos espaços e teorizassem sobre a paisagem como uma história de duração longa – tal qual viu Fernand Braudel (1989) –, eterna em suas localizações imutáveis. É isto o que explica ter a leitura geográfica pautado-se por muito tempo na categoria da região. Era o que os geógrafos viam ainda em 1950. A região é então a forma matricial da organização do espaço terrestre e cuja característica básica é a demarcação territorial de limites rigorosamente precisos. O que os geógrafos viam na paisagem era essa forma geral e de longa duração e passaram a concebê-la como uma porção de espaço cuja unidade é dada por uma forma singular de síntese dos fenômenos físicos e humanos que a diferencia e demarca dos demais espaços regionais na superfície terrestre justamente por sua singularidade. Pouco importava se o dito e o visto não coincidissem exatamente. As coisas mudavam, mas o ritmo da mudança era lento. De tal modo que se os geógrafos olhassem a paisagem de um lugar e voltassem a olhá-la décadas depois, provavelmente veriam a mesma paisagem. A distribuição dos cheios e vazios, para usar uma expressão de Jean Brunhes (1962), trocava-se com lentidão e os limites territoriais das extensões permaneciam praticamente os mesmos por longos tempos.
A rede: o olhar sobre o espaço móvel e integrado Nada estranho que por todo esse tempo seja o recorte regional a tradição do olhar geográfico: fazer geografia é fazer a região, dizia-se. A organização 88
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espacial da sociedade é a sua organização regional e ler a sociedade é conhecer suas regionalidades. Uma mudança forte, entretanto, vinha há tempos ocorrendo em surdina na arrumação dos velhos espaços fazia tempo. Desde o Renascimento, com a retomada da expansão mercantil e o advento das grandes navegações e descobertas, uma mudança acontece na arrumação dos espaços das civilizações, recortando-as em países e estes em regiões. Esta mudança se acelera para ganhar forma definitiva com as revoluções industriais dos séculos XVIII, XIX e XX, mediante a reorganização dos antigos espaços na divisão internacional de trabalho da produção e das trocas da economia industrial. A ordem fabril que assim se institui vai dando ao espaço um modo novo de ser, regionalizado e unificado a partir da integração das escalas de mercado. Desse modo, a imagem do mundo ganha a forma desde então tornada tradicional das grandes regiões. Primeiro das regiões homogêneas, depois das regiões polarizadas. É a região adquirindo uma importância de capital significado na ordem real da organização espacial das sociedades modernas. Mas neste justo momento esta ordem espacial começa a se diluir diante da arrumação do espaço mundial em rede. A organização em rede vai mudando a forma e o conteúdo dos espaços. É evidente que a teoria precisa acompanhar a mudança da realidade, ao preço de não mais dela dar conta. Uma vez que muda de conteúdo – já que ele é produto da história, e a história, mudando, muda com ela tudo que produz –, o espaço geográfico muda igualmente de forma. A forma que nele tinha importância principal no passado, já não a tem do mesmo modo e grau na organização no presente. Contudo, a tradição regional era tão forte que ainda por um tempo pensar-se-á os espaços das sociedades em termos regionais. A teoria da região não declina de importância, porém o papel matricial da região é cada vez menos de forma chave da arrumação dos espaços reais. Com o desenvolvimento dos meios de transferência (transporte, comunicações e transmissão de energia), característica essencial da organização espacial da sociedade moderna – uma sociedade umbilicalmente ligada à evolução da técnica, à aceleração das interligações e movimentação das pessoas, objetos e capitais sobre os territórios –, tem lugar a mudança, associada à rapidez do aumento da densidade e da escala da circulação. Esta é a origem da sociedade em rede. Nos anos 1970 já não se pode mais desconhecer a relação em rede, que então surge, articula os diferentes lugares e age como a forma nova de organização geográfica das sociedades, montando a arquitetura das conexões que dão suporte às relações avançadas da produção e do mercado. É quando junto à rede se descobre a globalização. 89
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A rede não é, portanto, um fenômeno novo. Recente é o status teórico que adquire (DIAS, 1995). Imaginemos o espaço no passado, quando cada civilização constituía um território organizado a partir de um limite específico e da centralidade de uma cidade principal. De cada cidade parte uma rede de circulação (transportes, comunicações e energia) destinada a orientar as trocas entre as civilizações umas com as outras, a cidade exercendo o papel de arrumadora, organizadora e centralizadora dos territórios. Temos aí uma rede organizando o espaço. Mas não um espaço organizado em rede. Podemos dizer que a rede é um dado da realidade empírica, mas conceitualmente não estamos diante de um espaço organizado em rede. Isto só vai acontecer recentemente. A trajetória da rede moderna se inicia no Renascimento, com o desenvolvimento do transporte marítimo a grandes distâncias e o desenvolvimento articulado dos transportes terrestres internamente e fluviais entre os continentes. O desenvolvimento da rede de transportes estabelece uma conexão que evolui e se acelera do século XVI ao XVIII, quando então advém a Revolução Industrial e com ela a máquina a vapor, o trem e o navio moderno. A cidade é a grande beneficiária desse desenvolvimento dos meios de transporte e comunicação trazidos pela revolução industrial. A cidade vira o ponto de referência de uma gama de conexões que recobre e vai deitar-se sobre o espaço terrestre como um todo numa única rede. Pode-se até periodizar a história das cidades a partir da história da rede. O século XIX é o tempo de hegemonia das cidades portuárias como Londres, Hamburgo, New York, Rio de Janeiro. O século XX é o tempo da cidade da rede multimodal, em que o aeroporto substitui o papel anterior do porto. Até que chegamos à cidade da rede virtual de hoje. E, assim, à sociedade em rede. A característica da sociedade em rede é a mobilidade territorial. E o desenvolvimento da rede de circulação inicia-se num movimento de desterritorialização de homens, de produtos e de objetos, que ocorre em paralelo à evolução das cidades e das redes, periodizando o processo da montagem e do desmonte do recorte da superfície terrestre em regiões, e cuja referência à época é a reterritorialização dos cultivares. Transportados pelos navios, cultivares de diferentes lugares de origem se difundem e se misturam nos diferentes continentes, formando com o tempo uma paisagem de culturas entrecruzadas na qual as regiões antigas não se distinguem mais umas das outras pelos cultivos do trigo, do café, do arroz, do milho, da batata, formando-se regiões novas com essas culturas agora mundializadas. Cada cultivar é descolado do seu ambiente natural para ir localizar-se em outros contextos ambientais, acompanhando o desenvolvimento das comu90
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nicações e das trocas. Então, sobre a antiga paisagem dos cultivares, fundadora e constitutiva dos complexos alimentares de cada povo, cada paisagem sendo arrumada ao redor de uma cultura chave e à qual se juntam as demais culturas do complexo – como a paisagem dos arrozais do oriente asiático, do trigo-centeio do ocidente europeu e do milho-batata dos altiplanos americanos –, tão bem analisadas por Max Sorre (1961), vai-se montando uma paisagem nova, regional. Essa mudança da arrumação, que ocorre no espaço em todo o mundo, saindo de uma espacialidade baseada num complexo agrícola para uma outra apoiada numa arrumação regional de cultivares, vindos da migração de plantas e animais oriundos de outros cantos, muda a cultura humana em cada povo, pois o resultado é uma radical troca de hábitos e regimes alimentares, alterando as relações ambientais, os gostos e os costumes desses povos. O eixo-reitor desse rearranjo é o desenvolvimento da divisão internacional do trabalho e das trocas, em função de cujos propósitos os pedaços do espaço terrestre vão se regionalizando por produto. De modo que, sobre a malha regional assim criada pode-se vislumbrar o início da atual globalização, marcado pela escalada dos cultivares, uma escalada cultural. E estabelece-se a partir daí, uma intencional confusão de termos, embaralhando o conceito de culturas e cultivares, que explora o próprio fato da antiga imbricação das culturas humanas enquadrada na tradição da paisagem dos cultivares. Agora, cultivar vira cultura regionalizada como veículo da colonização. E o cultivar morre dentro da cultura, de modo a prevalecer a referência cultural do colonizador, não mais a cultura dos cultivares das civilizações. Um jogo ideológico que só nos dias de hoje vem à tona, com a emergência do discurso da biodiversidade, interessado no resgate do conhecimento próprio da cultura dos antigos cultivares, para o fim de implementar a cultura técnica da engenharia genética. Com a propagação das técnicas de transportes e comunicações próprias da segunda Revolução Industrial – encarnadas no caminhão, no automóvel, no avião, no telégrafo, no telefone, na televisão, ao lado das técnicas de transmissão de energia –, o movimento de regionalização da produção e das trocas dessas culturas introduz a relação em rede, dissolvendo as fronteiras das regiões formadas pelas migrações dos cultivares, fechando um ciclo e inaugurando uma nova fase de organização mundial dos espaços. Até que o mundo é recriado na escala globalizada, formada por uma rede de conexões territoriais intensamente mais fortes. O tecido espacial se torna ao mesmo tempo uno e diferenciado em uma só escala planetária. 91
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O fato é que o arranjo espacial sofre uma profunda mutação de qualidade. O sentido da rede mudou radicalmente. E mudou de modo radical correspondentemente o conteúdo do conceito. O conteúdo social da rede torna-se mais explícito. E as relações entre os espaços se adensam numa tal intensidade, que densidade deixa de ser quantidade para adquirir um sentido mais significativo de qualidade. Cabe ao espaço agora o sentido da espessura: a densidade de população, por exemplo, pode ser baixa do ponto de vista da quantidade, mas alta do ponto de vista da rede de relações sociais que encarna. Assim os campos se despovoam de população, ficando, porém, ao mesmo tempo ainda mais densos de relação, mercê do aumento das atividades, da circulação e das trocas econômicas. Com a organização em rede o espaço fica simultaneamente mais fluído, uma vez que ao tornar livres a população e as coisas para o movimento territorial, a relação em rede elimina as barreiras, abre para que as trocas sociais e econômicas se desloquem de um para outro canto, amplificando ao infinito o que antes fizera com os cultivares. É então que as cidades se convertem em nós de uma trama. Diante de um espaço transformado numa grande rede de nodosidade, a cidade vira um ponto fundamental da tarefa do espaço de integrar lugares cada vez mais articulados em rede. Ao chegarmos aos dias de hoje, em que a rede do computador é o dado técnico constitutivo dos circuitos, o espaço em rede por fim se evidencia. Então, assim como sucede com a forma geral, cada atributo clássico da geografia ganha um outro sentido. Em particular a distância. A distância perde seu sentido físico, diante do novo conteúdo social do espaço. Vira uma realidade para o trem, outra para o avião, outra ainda para o automóvel, sem falar do telefone, da moeda digital e da comunicação pela internet, uma rede para cada qual e o conjunto um complexo de redes. Desse modo, quem, como Virílio (1996a, 1996b), diz que o tempo está suprimindo o espaço, externa uma ilusão conceitual, de vez que é o tempo que cada vez mais se converte em espaço, o espaço do tecido social complexo – um complexo de complexos, diria Sorre (1961) – seguidamente mais espesso e denso. E quem, como Harvey (1992), afirma uma tese de compressão do espaço-tempo, sem considerar, como Soja (1993), o ardil com que na modernidade, desde o Renascimento, a razão subsumira o espaço no tempo físico – daí o espaço virar distância –, incorre num equívoco igualmente. Por isso a contiguidade, condição sine qua non da região, que sem ela não se constitui, perde o significado de antes. O fato é que a intensidade e a globalidade das interligações 92
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ainda mais aumentam, a mobilidade territorial mais se agiliza, a distância entre os lugares e coisas mais se encurta, a espessura do tecido espacial mais se adensa e o espaço se comprime no planeta. Então, espécie de São Tomé das ciências, o geógrafo declara extinta a teoria do espaço organizado em regiões singulares e de compartimentos fechados e proclama realidade o espaço em rede.
O lugar: o novo olhar sobre o espaço de síntese “Ocupar um lugar no espaço” tornou-se, assim, o termo forte na nova espacialidade. Expressão que indica a principalidade, que na estrutura do espaço vai significar estar em rede. Fruto da rede, o lugar é o ponto de referência da inclusão-exclusão dos entes na trama da nodosidade. Mas o que é o lugar? Podemos compreendê-lo por dupla forma de entendimento. O lugar como o ponto da rede formada pela conjugação da horizontalidade e da verticalidade, do conceito de Santos (1996), e o lugar como espaço vivido e clarificado pela relação de pertencimento, do conceito de Fu-Tuan (1983). Para Santos (1996), o lugar, que a rede organiza em sua ação arrumadora do território, é um agregado de relações ao mesmo tempo internas e externas. Atuam aqui a contiguidade e a nodosidade. A contiguidade é o plano que integra as relações internas numa única unidade de espaço. É a horizontalidade. A nodosidade é o plano que integra as relações externas com as relações internas da contiguidade. É a verticalidade. Cada ponto local da superfície terrestre será o resultado desse encontro entrecruzado de horizontalidade e de verticalidade. E é isso o lugar. O pressuposto é a rede global. Vê-se que a horizontalidade tem a ver com a antiga noção de contiguidade. Seu vínculo interno é a produção. A fábrica, as áreas de mineração e as áreas de agricultura, que a ela se articulam como fornecedoras de matérias-primas e insumos alimentícios, são, todas elas, pontos espaciais de interligação local promovida pelo ato do interesse solidário da horizontalidade. Cada atividade é parte de um todo orgânico local do ponto de vista da horizontalidade. E nessa condição entra como especificidade no todo orgânico do lugar. Já a verticalidade é a combinação dos diferentes nós postos acima e além da horizontalidade. Seu veículo é a circulação, circulação de produtos, mas, sobretudo, de informações. E sua forma material é a trama da rede dos transportes, das comunicações e meios de transmissão de energia, hoje a infovia, que leva aos diferentes planos horizontais as coisas que lhe vêm de fora. Daí que cada lugar nasce diferente do outro, dando ao todo da globalização um cunho nitidamente fragmentário, já que 93
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“o lugar são todos os lugares”. Condição que leva Santos (1996) a dizer que é o lugar que existe, e não o mundo, de vez que as coisas e as relações do mundo se organizam no lugar, mundializando o lugar e não o mundo. É o lugar então o real agente sedimentador do processo da inclusão e da exclusão. Tudo dependendo de como se estabelecem as correlações de forças de seus componentes sociais dentro da conexão em rede. Isto porque natureza e poder da força vêm dessa característica de ser a um só tempo horizontalidade e verticalidade. Por parte da horizontalidade, porque tudo depende da capacidade de aglutinação dos elementos contíguos. Por parte da verticalidade, da capacidade desses elementos aglutinantes se inserirem no fluxo vital das informações, que são o alimento e a razão mesma da rede (é neste momento que a contiguidade pode servir ou desservir como base do poder ao lugar). Para Tuan (1983), lugar é o sentido do pertencimento, a identidade biográfica do homem com os elementos do seu espaço vivido. No lugar, cada objeto ou coisa tem uma história que se confunde com a história dos seus habitantes, assim compreendidos justamente por não terem com a ambiência uma relação de estrangeiros. E, reversamente, cada momento da história de vida do homem está contada e datada na trajetória ocorrida de cada coisa e objeto, homens e objetos se identificando reciprocamente. A globalização não extingue, antes impõe, que se refaça o sentido do pertencimento em face da nova forma que cria de espaço vivido. Cada vez mais os objetos e coisas da ambiência deixam de ter com o homem a relação antiga do pertencimento, os objetos renovando-se a cada momento e vindo de uma trajetória, que é para o homem completamente desconhecida, a história dos homens e das coisas que formam o novo espaço vivido não contando uma mesma história, forçando o homem a reconstruir a cada instante uma nova ambiência que restabeleça o sentido de pertencimento. Podemos, todavia, entender que os conceitos de Santos (1996) e Tuan (1983) não são dois conceitos distintos e excludentes de lugar. Lugar como relação nodal e lugar como relação de pertencimento podem ser vistos como dois ângulos distintos de olhar sobre o mesmo espaço do homem no tempo do mundo globalizado. Tanto o sentido nodal quanto o sentido da vivência estão aí presentes, mas distintos justamente pela diferença do sentido. Sentido de ver que, seja como for, o lugar é hoje uma realidade determinada em sua forma e conteúdo pela rede global da nodosidade e ao mesmo tempo pela necessidade do homem de (re)fazer o sentido do espaço, ressignificando-o como relação de ambiência e de pertencimento. Dito de outro modo, é o lugar que dá o tom da diferenciação do espaço do homem – não do capital – em nosso tempo. 94
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Com o lugar, a contiguidade e a coabitação, categorias características do espaço em região, assim se renovam. Ao mesmo tempo o lugar se reforça com a permanência da contiguidade como nexo interno do homem com o seu espaço. Categoria da horizontalidade, a contiguidade permanece, costurando agora a centralidade do lugar como matriz organizadora do espaço, porque é coabitação e ambiência. Recria-se. Ontem, a contiguidade integrava numa mesma regionalidade pessoas diferentes, mas coabitantes do mesmo espaço. Hoje, ela é a condição da acessibilidade dos mesmos coabitantes a este dado integrador-excluidor do mundo globalizado que é a informação informatizada, mesmo que não habitem a mesma unidade de espaço. Importa que coabitem a rede.
O novo caráter da política Mudam, assim, a natureza e o modo de fazer política. Estar em rede tornou-se o primeiro mandamento. Porque fazer política passou a significar construir um grande arco de alianças para se organizar em rede. Diz-se ocupar um lugar no espaço. A corrida para incluir um lugar na rede, a um só tempo, aproxima e afasta os homens hoje. Acirra as disputas pelo domínio dos lugares e entre os lugares. Daí a valorização contemporânea do território. Lugares ou segmentos de classes inteiros podem ser incluídos, ou, ao contrário, excluídos, dos arranjos espaciais, a depender de como os interesses se aliem e organizem o acesso do lugar às informações da rede. E, deste modo, um caráter novo aparece na luta política, e em decorrência do que é o novo caráter do espaço, exigindo que se reinvente as formas de ação. Até porque a rede é o auge do caráter desigual-combinado do espaço. Estar em rede tornou-se para as grandes empresas o mesmo que dizer estar em lugar proeminente na trama da rede. Para ela não basta estar inserida. O mandamento é dominar o lugar, dominá-lo para dominar a rede. E vice-versa. Antes de mais, é preciso se estar inserido num lugar, para se estar inserido na geopolítica da rede. Uma vez localizado na rede, pode-se daí puxar a informação, disputar-se primazias e então jogar-se o jogo do poder. Entretanto, para que os interesses de hegemonia se concretizem, é preciso conjugar o segundo mandamento: é o controle da verticalidade que dá o controle da rede. A informação se torna a matéria prima essencial do espaço-rede. Indústrias que possam às vezes ter dificuldade de obter matéria prima, obtêm-na facilmente, uma vez se vejam inseridas no circuito exclusivo da informação. Mais
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que se inserir, acessar é a regra. E, assim, de poder encontrar-se em vantagem na dianteira dos competidores. Acessa informações quem está verticalizado. O fato é que a instantaneidade do tempo virou espaço, neste mundo organizado em rede. E o vital é ser contemporâneo instantâneo e do instante. Quem só está horizontalizado pode ficar excluído do circuito, e, então, dos benefícios da informação. Assim se define o novo poder da sobrevivência. E assim se pode explicar a reunião de países em blocos regionais, no momento mesmo que a história se despede da região como modo de arrumação. Quanto mais olhamos para o mapa contemporâneo, o que mais vemos, numa aparente contradição com um mundo globalizado em rede, é a multiplicação de blocos regionais, como a UE (União Europeia), o Mercosul (União dos países do Cone Sul da América do Sul), o Nafta (União dos países da América do Norte). A região continua a existir, porém não mais na forma e com o papel de antes. Aspecto da contiguidade da rede, a região é hoje o plano da horizontalidade de cada lugar. Para entrarem em rede de modo organizado, os países lugarizam-se mediante a organização regional. Só depois saem em voo livre pela verticalidade da rede. De modo que a região virou o lugar da articulação entre os países, visando o concerto de estratégias globais num mercado globalizado. Daí parecerem usar de formas passadas para entrar no mundo unificado em rede, seja para segurar o tranco da competição dos grandes (UE), reduzir margens de exclusão herdadas do passado recente (Mercosul) ou evitar ônus de quem, desde o começo, já nasceu globalizado (Nafta). Modos de estratégia e não modos geográficos de ser, eis em suma o que hoje é a região como categoria de organização das relações de espaço. Veículo de ação de contemporaneidade e não modo estrutural de definir-se, como eram nas realidades espaciais passadas, o passado recente da divisão internacional industrial do trabalho. De qualquer modo, a região é um dado de uma estratégia de ação conjunta por hegemonias a partir do plano da horizontalidade. Logística de integração da confraria dos incluídos da verticalidade, às vezes visando a exclusão do oponente, por enxugamento (de custos, de preços, de postos de trabalho) ou marginalização (de poder de interferência, de comunicar-se em público, etc.), a região reciclou-se diante do novo modo de fazer política do espaço em rede.
O que são o espaço e seus elementos estruturantes Tornou-se vital para a geografia, diante dessa nova realidade, clarificar o conceito e o papel teórico do espaço geográfico. Vejamos uma forma de entendimento. 96
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Espaço: a coabitação Olhando o mundo, vê-se que é formado pela diversidade. Povoa-o a pluralidade: vemos as árvores, os animais, as nuvens, as rochas, os homens. A diversidade do mundo é o que chama nossa atenção de imediato. À medida, entretanto, que experimentamos esta pluralidade no seu convívio mais íntimo, vem-nos a noção de que junto com a diversidade há a unidade. Uma interligação invisível entre as diferentes coisas faz que a diversidade acabe contraditoriamente se fundindo na unidade única de um só todo. A grande pergunta a se fazer é o que leva tudo a ser diferente e ao mesmo tempo uma só unidade na realidade que nos cerca. A resposta em geografia relaciona-se com o ponto de referência do olhar, segundo o qual o homem observa e se localiza dentro desse mundo, e a partir daí o vê e unifica (NOVAES, 1988; BUCK-MORSS, 2002). E o ponto de referência do olhar identifica o mundo como uma grande coabitação. Uma relação de coabitação com animais, vegetais, nuvens, chuvas e o próprio homem, para o qual tudo se relaciona num viver com entre si e em relação a ele. Assim, o homem não se vê como uma figura isolada e inerte dentro dessa diversidade, porque é coparticipe. A coabitação cria o mundo como o espaço do homem.
O olhar espacial: a localização, a distribuição e a extensão Por força da diversidade, o homem que a observa a vê, em primeiro lugar, como uma localização de coisas na paisagem. Cada localização fala de um tipo de solo, de vegetação, de relevo, de vida humana. Destarte, a localização leva à distribuição. A distribuição é o sistema de pontos da localização. Assim, a distribuição leva por sua vez à extensão. A extensão é a reunião da diversidade das localizações em sua distribuição no horizonte do recorte do olhar. E pela extensão a diversidade vira a unidade na forma do espaço. O espaço é, então, a resposta da geografia à pergunta da unidade da diversidade. De modo que, a coabitação, que une a diversidade diante de nossos olhos, é a origem e a qualificação do espaço. A coabitação faz o espaço e o espaço faz a coabitação, em resumo.
A ontologia do espaço: o fio tenso entre a diferença e a diferença A noção da unidade espacial é complexa, de vez que é uma unidade de contrários: o espaço reúne a síntese contraditória da coabitação – primeiro da localização e da distribuição, a seguir da diversidade e da unidade, e por fim 97
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da identidade e da diferença – e se define como a coabitação dos contrários. O conflito, eis o ser do espaço. Esclareçamos este ponto. O espaço surge da extensão da distribuição dos pontos da localização. Assim, como múltiplo e uno. E o que vai determinar o primado – se o múltiplo ou o uno – na dialética da extensão é a direção do foco do olhar (ARNHEIM, 1991). Se o olhar fixa o foco na localização, um ponto impõe-se aos demais, e a localização arruma o plano da distribuição por referência nesse ponto. Se o olhar abrange a diversidade da distribuição, a distribuição arruma por igual o plano das localizações. O olhar focado na localização dimensiona a centralidade. O olhar focado na distribuição dimensiona a alteridade. A tensão se firma sobre essa base, opondo a identidade e a diferença. A centralidade estabelece a identidade como o olhar da referência. A alteridade estabelece a diferença. Desta forma, o espaço se clarifica como o fio tenso de um naipe de oposições, em que a centralidade e a alteridade se contraditam: a centralidade se afirma como o primado da identidade sobre a diferença e a alteridade como uma dialética da diferença e da identidade. Na centralidade a identidade se firma pela supressão da diferença (a localização se impõe à distribuição diante do olhar). Na alteridade a diferença coabita com a diferença (a alteridade reafirma a igual coabitação da diversidade), a identidade sendo a diferença auto -realizada. Em ambos os casos, a tensão aparece como o estatuto ontológico do espaço (MOREIRA, 2001, 2006). A tradição trabalha com a noção da unidade, como o ser do espaço por excelência, a tal ponto que é a ideia da identidade, dita identidade espacial, que está mentalizada em nós como a ideia de espaço. Seja o nome com que apareça – área, região, país ou continente –, espaço é isto, não a coabitação dos contrários, a tensão seminal: a diversidade suprimida na unidade, a diferença tensionada no padrão da repetição mecânica/ identidade. Em suma, o espaço pontuado a partir da dialética do de dentro (MOREIRA, 1999).
O ser do espaço: a geograficidade O espaço surge da relação de ambientalidade. Isto é, da relação de coabitação que o homem estabelece com a diversidade da natureza. E que o homem materializa como ambiência, dado seu forte sentido de pertencimento. Este ato de pertença identifica-se no enraizamento cultural, que surge da identidade com o meio, através do enraizamento territorial que tudo isto implica. Podemos 98
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notar este enraizamento quando mudamos de cidade. Na cidade nova sentimonos inicialmente desidentificados e por isso desambientalizados, ressentindonos da falta de uma ambiência. Só quando nos familiarizamos com as casas, o arruamento, o fluxo do trânsito, um detalhe da paisagem, sua localização e distribuição, como referências de espaço, é que nos sentimos enraizados no novo ambiente. A ambientalização é antes de tudo uma práxis. Nenhum homem se enraíza cultural e territorialmente no mundo pela pura contemplação. A experimentação da diversidade é que faz o homem sentir-se no mundo e sentir o mundo como-mundo-do-homem. O enraizamento é um processo que se confunde com o espaço percebido, vivido, simbólico e concebido, e vice-versa, porque é uma relação metabólica, um dar-se e trazer o diverso para a coabitação espacial do homem sem a qual não há pertencimento, ambiência, circundância ambiental, mundanidade. Este dar-se e trazer é o processo do trabalho. O trabalho é o ato do homem de ir à natureza e trazê-la para si. Assim inicia-se a ambientalização (MOREIRA, 2001). Paul Vidal La Blache (1954) mostrou como este processo está na origem da constituição do homem, desde as “áreas laboratórios”, quando pela domesticação e a seguir pela aclimatação o homem vai modificando a natureza e modificando-se a si mesmo. Nessas áreas laboratórios, o homem inicia seu processo de hominização, definido mediante seu enraizamento cultural que vai saindo da relação metabólica, fruto da relação de ambientalização e do enraizamento territorial que daí deriva. As áreas laboratórios localizam-se nas partes semiáridas e de relevo movimentado das encostas médias das montanhas, do longo trecho de condições naturais semelhantes, cortado pelo paralelo de 40 graus de latitude norte. Somente depois desse aprendizado, desce o homem em grupos para as “áreas anfíbias” dos vales férteis dos grandes rios, dessa faixa de área disposta do Mediterrâneo europeu às portas do oriente asiático. E, então, dá início às grandes civilizações da história. É pelo metabolismo do trabalho, portanto, que a coabitação se estabelece, o mundo aparece como construção do homem e o espaço se clarifica como um campo simbólico com toda a sua riqueza de significados (LEFEBVRE, 1983). Um significado que só pode ser para o homem. Enquanto isto não acontece, a relação homem-espaço-mundo é uma duplicidade do de dentro e do de fora, até que a troca metabólica funde o homem e o mundo num mundo-do-homem (MOREIRA, 2004a, 2004b). E, é isto a geograficidade.
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A representação e o olhar da geografia num contexto de espaço fluido As transformações que levam do espaço de um arranjo arrumado em matrizes regionais a um espaço de um arranjo arrumado em rede levantam o problema da linguagem. Isto se traduz no problema da representação cartográfica, significando uma dificuldade adicional. Mas é um esforço necessário, de vez que se trata de requalificar o discurso geográfico no formato da linguagem, que preserve sua personalidade histórica e dê o passo seguinte, que a ponha em consonância com a nova realidade. É disso que trataremos agora.
A dupla forma e o problema da personalidade linguística da geografia Vimos que, embora leia a complexa realidade mutante do mundo pela janela do espaço, com a vantagem de encontrar na paisagem o instrumento privilegiado da leitura, o geógrafo nem sempre tem sabido ser contemporâneo do seu tempo. A causa, em boa parte, está na dificuldade da atualização da linguagem – em sua dupla forma da linguagem conceitual e da linguagem cartográfica – a cada novo momento de enfrentamento do real. É fato que a linguagem geográfica deixou de atualizar-se já de um tempo. As expressões vocabulares antigas perderam a atualidade, diante dos novos conteúdos, e as expressões novas foram tiradas mais de outros campos de saber, que da sua própria evolução histórica. Como isto aconteceu? Há uma raiz de origem epistêmica e outra de natureza metodológica, ambas com forte viés institucional. São três geografias na prática a se atualizar, cada qual correndo habitualmente em paralelo à outra: a geografia real (da realidade que existe fora de nós), a geografia teórica (da leitura desse real) e a geografia institucional (a dos meandros institucionais). Há uma realidade externa a nós, que é o fato de a humanidade existir sob uma forma concreta de organização espacial. E há a representação dessa realidade capturada por meio de sua formulação teórica. Isto estabelece na geografia uma diferença entre realidade e conhecimento, com a tradução dupla do real e do lido, que nem sempre se relacionam numa consonância. Ainda existe, porém, a geografia materializada institucionalmente e prisioneira do seu cotidiano. Não é isto uma propriedade da geografia, mas dos saberes, uma vez ser 100
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a ciência uma forma de leitura do mundo real, que usa como recurso próprio o expediente das representações conceituais, fazendo-o em ambientes fortemente formalizados, como as instituições de pesquisa e a universidade. Se este múltiplo não é uma exclusividade do saber geográfico, há nele, entretanto, a situação específica do fato de que raramente em sua história estas três geografias coincidem, raramente se encontram, raramente se confundem. A década de 1950 é um raro momento de encontro. Quando os geógrafos daquela década falam do mundo real, a geografia teórica o representa com uma precisão suficiente para que as pessoas que os ouvem se sintam como se estivessem vendo o que falam, não sentindo propriamente diferença entre o que ouvem falar e o que vêm. Tal é o que se percebe nos textos de Pierre George, para ficarmos num exemplo conhecido, acerca dos espaços agrários ou dos espaços industriais da França ou de qualquer outro contexto regional do mundo. A geografia é um saber descritivo, um saber que olha e fala do mundo por meio da paisagem, e o faz numa tal correspondência que as pessoas saem das aulas, andam pelos espaços do mundo, e olhando estes espaços se lembram das lições do professor de geografia. Era a vantagem de trabalhar com a paisagem. Tal não é o que se dá em nosso tempo. Muito raramente acontece de quando hoje as pessoas olham a organização dos espaços, se lembrem do seu professor de geografia. Falta a identidade entre o que ele falou e o que se está vendo. Porque isto aconteceu?
O fixo e o fluxo Uma grande transformação aconteceu primeiramente com as paisagens. Aquela mutação lenta que ainda nos anos 1950 permitia ao geógrafo explicar o mundo com ela desapareceu rapidamente diante da evolução da técnica e das formas de organização do espaço. E a paisagem tornou-se fluida. É consenso, no plano mais geral, que a geografia lê o mundo através da paisagem. A história usa recursos mais abstratos. Pode usar a paisagem, mas não depende dela. A sociologia também. O geógrafo, entretanto, não vai adiante sem o recurso da paisagem à sua frente. Como decorrência, isto faz da linguagem da geografia uma linguagem por essência colada justamente a este seu dado real que é a paisagem geográfica. Ora, a transfiguração do espaço da região no espaço em rede característica de nosso tempo, só lentamente vem sendo traduzida numa linguagem mais contemporânea de paisagem.
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A paisagem foi capturada pela mobilidade contínua da TDR (territorialização-desterritorialização-reterritorialização), no dizer de Claude Raffestin (1993), e é precisamente isso que, contrariamente ao período dos anos 1950, caracteriza o espaço de nosso tempo. Há, porém, uma segunda componente nessa defasagem das três geografias: o foco do olhar na localização, ou seja, no fixo e não no fluxo. Brunhes (1962) ensinava que o espaço é uma alternância de cheios e vazios. E que a distribuição é redistribuição. Segundo ele, cheios e vazios trocam de posição entre si no andar do tempo, de modo que o que hoje é vazio, amanhã é cheio, e o que hoje é cheio, amanhã é vazio. Sob a forma dessa bela metáfora, Brunhes está dizendo que o espaço tem um caráter dinâmico, como numa tela de um filme no cinema. E que devemos vê-lo por isso em seu movimento. Significa, portanto, priorizar o olhar da distribuição, quando temos priorizado o olhar da localização. A apreensão da dinâmica de redistribuição só é possível com foco no aspecto dinâmico, que é a distribuição. Não foi, entretanto, esse modo de entender que prevaleceu, mas sim a noção de que fazer geografia é localizar. Toda a ênfase foi dada à localização, nos fazendo perder a percepção do movimento da redistribuição da própria localização. Privilegiamos o olhar fixo em benefício da afirmação da centralidade. Afinal, La Blache (1954) dizia que a geografia é a repetição e a permanência. Contrariamente a Brunhes (1962), que sugere o olhar da redistribuição. O olhar do espaço como movimento, em que se privilegia a fluidez. Não se atentou para o quanto de revolucionário havia no pensamento de Brunhes (1962). Raros viram a necessidade de fundar a leitura geográfica na categoria do movimento como ele. E optaram pela alternativa conservadora de calcá-la na categoria do imóvel. Somente hoje, quando nos damos conta da diferença, percebemos o quanto o olhar do fluxo contém de dinamicidade. Por isso, ao falar de fixos e fluxos como categorias de apreensão do movimento do espaço, Milton Santos (1996) recria de maneira magnífica a teoria dos cheios e vazios de Brunhes (1962). Foi, inclusive, a incongruência do primado da categoria da localização sobre a categoria da distribuição, que não nos permitiu ver a tempo a esclerose do conceito de região, diante do espaço em rede que se formava.
O problema cartográfico da geo graphia E foi ela, que igualmente não nos permitiu ver o envelhecimento e desatualização da velha cartografia. Preparada para captar realidades pouco 102
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mutáveis, essa cartografia se tornou inapropriada para representar a realidade do espaço fluido. A geografia lê o mundo por meio da paisagem. A cartografia é a linguagem que representa a paisagem. Este elo comum perdeu-se no tempo, e não por acaso ficaram ambas desatualizadas. Não houve atualização para uma e para outra. Até porque a iniciativa está com a geografia. Vejamos porque. Paisagem é forma. Forma é forma do conteúdo. Mudando o conteúdo, muda também a forma. Embora a forma sempre mude mais lentamente, a mudança de conteúdo só pode ser realizada se a forma o acompanha em seu movimento. Há uma contradição nos ritmos de mudança entre a forma e o conteúdo que, deixada entregue à sua espontaneidade, o conteúdo vai para frente e a forma fica para trás. A contradição se resolve pela aceleração da mudança da forma. É onde entra a função da geografia. Primeiro é preciso saber ler essa dialética. E, em segundo lugar, é preciso poder representá-la com a máxima fidelidade possível. A primeira exigência é atendida com a linguagem do conceito. A segunda, com a linguagem da representação cartográfica. A finalidade é mexer na forma, de modo a compatibilizá-la com a contemporaneidade do conteúdo. E isto em caráter permanente. A cartografia instrumenta esse poder. Mas antes a geografia deve atualizá-la nessa função. A perda da correlação, exatamente, foi isto o que aconteceu. Centrada no enfoque estático da localização dos fenômenos, a geografia fixou a cartografia nesse campo. Escapou-lhe, porém, o momento do desencontro, de um lado, entre a forma e o conteúdo, e, de outro, entre a paisagem e a realidade mutante. Assim, não renovou sua linguagem conceitual. E ficou impossibilitada de orientar a renovação da linguagem representacional da cartografia. A correlação geografiacartografia não se deu. A geografia teórica perdeu o passo da geografia real de uma forma abismal. Transportou então este mal para o campo da cartografia. É quando se evidenciam as duas razões da defasagem: a metodológica, isto é, o fato de a geografia ler o mundo por meio de um recurso que se defasa continuamente; e a epistemológica, ou seja, a natureza altamente mutante da técnica da representação em nossa era industrial. O problema metodológico logo se sobrepõe ao problema epistemológico (MOREIRA, 1994).
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Os lugares da recuperação Num lugar, todavia, o uso da correlação guardou um pouco do seu frescor: a escola. Isto embora a linguagem do conceito tenha evoluído e a linguagem da representação cartográfica tenha se estagnado, a segunda aumentando a já forte defasagem em relação às formas reais do espaço que representa. O fato é que, na escola, o mapa é, ainda, o símbolo e a forma de linguagem reconhecida da geografia. E, por isto mesmo, os programas escolares começam com as noções e expressões vocabulares da representação cartográfica. A leitura do mundo se faz por intermédio das categorias da localização e da distribuição, mesmo que o problema do primado da primeira sobre a segunda, as categorias da distribuição e da extensão entrando para o fim da montagem do discurso do geográfico como a unidade espacial dos fenômenos. Aí ainda aprendemos o ritual banal do trabalho geográfico: localizando-se e distribuindo-se é que se mapeia o mundo. E que todo trabalho geográfico consiste na sequência clássica: primeiro localiza-se o fenômeno; depois monta-se a rede da sua distribuição; a seguir demarca-se a extensão; por fim, transporta-se a leitura para a sua representação cartográfica. Mas tudo sendo verbalizado, ainda, na linguagem do mapa. O mapa é o repertório mais conspícuo do vocabulário geográfico. E trata-se da melhor representação do olhar geográfico. O mapa é a própria expressão da verdade de que todo fenômeno obedece ao princípio de organizar-se no espaço. Todo estudo ambiental, por exemplo, é o estudo de como a cadeia dos fenômenos arruma seu encadeamento na dimensão do ordenamento territorial, um fato que começa na localização, segue-se na distribuição e culmina na extensão por meio da qual se classifica como um ecossistema. Do contrário não haveria como. O mesmo acontece com o estudo de uma cidade, da vida do campo, da interação de montante e jusante da indústria, dos fluxos de redistribuição das formas de relevo, da alteração do desenho das bacias fluviais e das articulações do mercado. Eis porque o historiador trabalha com mapa, sem que tenha de ser geógrafo. Também o sociólogo. E igualmente o biólogo. Todos, mas necessariamente o geógrafo. O mapa é o fiel da sua identidade. Todo professor secundário sabe disso. E o mantém, e reforça. É preciso, pois, reinventar a linguagem cartográfica como representação da realidade geográfica. E reiterar o pressuposto de a linguagem cartográfica ser a expressão da linguagem conceitual da geografia. Afinal, olhando a legenda dos mapas, signos e realidade do espaço geográfico, vemos: formas de relevo, tipos de clima, densidade de população, tipos de bacia hidrográfica, formas de cidade, núcleos migratórios, coisas da paisagem, que simplesmente transportamos mediante uma linguagem própria para o papel. De modo que as 104
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nervuras do mapa são as categorias mais elementares do espaço: a localização, a distribuição, a extensão, a latitude, a longitude, a distância e a escala, palavras do fazer geográfico. O reencontro das linguagens é, assim, o pressuposto epistemológico da solução do problema da geografia. Pelo menos por duas razões. Primeira: a geografia afastou-se fortemente da linguagem cartográfica, agravando o afastamento entre a geografia teórica e a geografia real. Segunda: a linguagem cartográfica que usamos está desatualizada, já nenhuma relação mantendo com a realidade espacial contemporânea. A solução supõe, todavia, trazer a cartografia para o seio da geografia. A geografia ficou com o conteúdo e perdeu a forma. E a cartografia levou a forma e ficou sem conteúdo. Nessa divisão de trabalho reciprocamente alienante e estranha, a cartografia virou uma forma sem conteúdo e a geografia um conteúdo sem forma. Diante de um espaço de formas de paisagens cada vez mais fluidas, a ação teórica da geografia não poderia dar senão numa pletora de desencontros: desencontro da geografia e da cartografia frente ao desencontro da forma-paisagem com o conteúdo-espaço. Faltou aí uma teoria da imagem num tempo de espaços fluidos.
Da cartografia cartográfica à cartografia geográfica Reinventar a cartografia hoje é, portanto, criar uma cartografia geográfica. Afinal, o que está velho são os signos e significados guardados no mapa. A velha cartografia fala ainda a linguagem das medidas matemáticas, que longe estão de serem o enunciado de algum significado. As cores e os símbolos nada dizem. É uma cartografia cuja utilidade está preservada para alguns níveis, mas pouco serve para os níveis de significação. Permanece fundamental à leitura geográfica das localizações exatas, mas não para a leitura do espaço dinâmico das redistribuições de espaços fluidos. Serve para representar e descobrir significados dos espaços dos anos 1950. Contudo não tem serventia para ler os espaços de um novo milênio. É uma cartografia ainda necessária, todavia não mais suficiente. No entanto, os parâmetros de uma cartografia geográfica já estão postos: estão presentes na linguagem semiológica das novas paisagens. Mapear o mundo é antes de tudo adequar o mapa à essência ontológica do espaço. Representar sua tensão interna. Revelar os sentidos da coabitação do diverso. Falar espacialmente da sociedade a partir da sua tensão dialética. Mas tudo é impossível, repita-se, sem uma semiologia da imagem. 105
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Para uma cartografia geográfica A geograficidade é o que, no fundo, a geografia clássica de Carl Ritter (1974) e Alexander von Humboldt (1866) busca apreender, representar e, assim, por intermédio da geografia, clarificar como prática consciente do homem. A grande limitação da cartografia corrente – mesmo a semiologia gráfica – é a linguagem que leve a isto. Uma alternativa foi aberta por Yves Lacoste (1988) com o conceito de espacialidade diferencial, um conceito muito próximo da visão corológica e da individualidade regional de Ritter, e, na formulação, muito próxima também do conceito de diferenciação de área de Alfred Hettner, com a vantagem de vir como uma proposta de escala. E, destarte, a caminho de uma linguagem da geograficidade. Conceito, por sinal, com que Lacoste (1988), além de Eric Dardel (1990), trabalha. A espacialidade diferencial articula porções de espaço, semelhantemente aos recortes ritterianos, que Lacoste (1988) designa de conjuntos espaciais. Cada fenômeno forma um conjunto espacial em seu recorte. Há um conjunto espacial clima, solo, população, agropecuária, cidade etc. O limite territorial de cada conjunto numa área de recorte comum não coincide normalmente, uns sendo mais extensos e outros mais restritos, forma-se um complexo entrecruzamento nessa superposição, que é a matéria-prima da espacialidade diferencial. A paisagem depende, assim, do ângulo do olhar de quem olha, que toma um dos conjuntos espaciais como referência do olhar, e vê, em consequência, a paisagem pelo olhar de referência. Daí que cada conjunto espacial resulta numa forma de paisagem, cada qual servindo como nível de representação e nível de conceituação. Cada complexo de paisagem se interliga com os complexos vizinhos mediante a continuidade-descontinuidade de cada um e de todos os conjuntos espaciais, alargando a espacialidade diferencial para o todo da superfície terrestre numa sequência de entrecruzamentos, que lembra o conceito de diferenciação de áreas de Hettner – visto, porém, no formato do complexo de complexos de Sorre (1961)–, a superfície terrestre se organizando como um todo combinado de continuidade e descontinuidade, que faz dela mais que um simples mosaico de paisagens e algo muito distanciado conceitualmente de uma sequência horizontal de regiões diferentes e singulares. Lacoste (1988) expressa certamente a influência do relativismo de Einstein nessa atribuição do conceito de paisagem e de superfície terrestre ao movimento do olhar. E lembra o conceito de espaço de Henri Lefebvre (1981 e 1983) nessa combinação de espaço e representação, que acaba por ser o conceito de espacialidade diferencial. 106
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Além disso, retira o conceito de escala do entendimento puramente matemático da cartografia cartesiana tradicional e o remete a uma concepção qualitativa (sem dispensar a abordagem quantitativa), permitindo renovar a linguagem da cartografia, a partir da renovação da linguagem da geografia, numa nova semiologia. Assim, o espaço bem pode ser um todo de relações entrecruzadas, cada porção espacial – o território – se identificando por uma espessura de densidade de relações diferente, umas com um tecido espacial mais espesso e outras mais modestas, inovando o conceito de densidade, habitat, ecúmeno, sítio, entre outros da geografia clássica, por tabela, sem contar com a constituição da paisagem e da imagem como conceitos, a partir da teoria que dê conta de cada uma delas na hora de virarem discurso de representação cartográfica. Abre então a possibilidade de introduzir esse novo viés cartográfico – a cartografia de um espaço visto como uma semiologia de real significação –, compreender o espaço como modo de existência do homem, incluindo-o como um elemento essencial de sua ontologia, e permitir ao homem mais do que ver, pensar o espaço como seu modo de ser.
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Planejamento Urbano no Brasil: Emergência e Consolidação1 Roberto Luís de Melo Monte-Mór
Raízes do Planejamento Urbano no Brasil O Urbanismo: principais influências na experiência brasileira É a partir do questionamento da cidade industrial e da própria sociedade capitalista moderna que surgiu, face ao contexto tecnológico e cultural gerado nos países desenvolvidos, uma nova área de estudos e pesquisas - o urbanismo2. Tendo sua origem conceitual nos estudos realizados por historiadores, economistas e políticos do século XIX3, foi através dos arquitetos que o urbanismo se especializou como matéria de estudo específico no século seguinte. Entretanto, se os conceitos que o geravam provinham de teóricos que desenvolviam uma análise crítica global da sociedade, enfocando a cidade como um elemento integrado e decorrente do processo socioeconômico-político então vivido, para os “urbanistas” que os sucederam tomou-se uma matéria despolitizada, quase um elemento físico-espacial a ser tratado segundo uma visão formal-estética. A tradição da atuação dos arquitetos, como grupo profissional ligado à classe dominante, à qual emprestava seus serviços na organização formal do espaço, segundo um sistema de valores culturais que, na sociedade hierarquizada, ratificam a dominação ideológica (BENEVOLO, 1976), determina talvez, o enfoque simplista com que tentam tratar a cidade no novo contexto urbano -industrial. A particularização do seu enfoque profissional parece impedir o entendimento do novo modo de produção que rege a organização da sociedade e, consequentemente, do espaço social. A tentativa de organizar este espaço Este texto é a íntegra revisada do primeiro capítulo da Dissertação de Mestrado, Espaço e Planejamento Urbano, apresentada ao Programa de Engenharia de Produção da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1980. Uma versão atualizada foi publicada no livro, organizado por Geraldo Magela Costa e Jupira Gomes de Mendonça, que reúne textos do Seminário “Planejamento Urbano no Brasil: trajetórias e perspectivas”, realizado em Belo Horizonte, em 2006. Foi publicado no periódico ETC em 15 de junho de 2007, n° 1(4), v. 1. 2 “Urbanismo... esse neologismo corresponde ao surgimento de uma realidade nova: pelos fins do século XIX a expansão da sociedade industrial dá origem a uma disciplina que se diferencia das artes urbanas anteriores por seu caráter reflexivo e critico, e por sua pretensão científica”.(CHOAY, 1979) 3 Tais como Engels, Marx, Ruskin, Arnold, Fourier, Owen, Proudhon e Carlyle na Europa e Jefferson, Thoreau e Sullivan na América.
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segundo uma dominância da instância ideológica está presente em todas as propostas apresentadas. Diversas correntes se formaram sob diferentes enfoques, mas sempre partindo do princípio de que a industrialização gerou uma desordem social e urbana à qual deveria ser imposta ou aposta uma nova ordenação espacial. Tendo em vista a necessidade de “ordenar o espaço”, surgiram modelos diversos, dos quais nos deteremos apenas na corrente denominada “progressista ou racionalista”, à qual pertencem nomes como Le Corbusier, Walter Gropius, Tony Garnier e Gerrit Rietveld, entre outros4, que grande influência teve sobre o urbanismo brasileiro. Tem sido frequente a apropriação, por parte dos países periféricos, das soluções geradas no bojo do desenvolvimento capitalista nos países de centro. À medida que as forças modernas do capitalismo penetram nos espaços econômicos subdesenvolvidos, vão sendo buscadas, na experiência do mundo desenvolvido, as abordagens existentes para os problemas gerados. O urbanismo no Brasil não foge à regra. O desenvolvimento do capitalismo industrial brasileiro, iniciado no período de substituição de importações e aguçado nas décadas de 1960 e 1970, criou os chamados “problemas urbanos” e com eles, a necessidade de buscar soluções nas propostas elaboradas nos países desenvolvidos. Assim, as diversas tendências e correntes surgidas no centro do sistema capitalista vão sendo incorporadas “tardiamente” pela periferia. No caso das cidades, à medida que as “mazelas” geradas pela concentração populacional e industrial vão surgindo no processo de expansão do capitalismo, vão sendo importadas também as “soluções”. Interessa-nos analisar este processo de apropriação ou de importação de soluções para os novos problemas velhos e suas implicações sobre o planejamento urbano brasileiro. A experiência brasileira de planos urbanos remonta ao século passado. Algumas cidades como Belo Horizonte, na virada do século, e Goiânia, na década de 1930, foram construídas a partir de desenhos urbanos influenciados pelos padrões culturais do período barroco. A característica do traçado é o “tabuleiro de xadrez”, cortado por largas avenidas e amplos espaços abertos onde se localizam os edifícios monumentais de estilo neoclássico tão ao gosto da época. A área urbanizada se estende em baixa densidade, sem espaços verdes – à exceção do grande parque urbano obrigatório. Este padrão atinge a toda Françoise Choay (1979) desenvolve amplos estudos sobre o assunto, delimitando dois períodos: o préurbanismo do século XIX. e o urbanismo propriamente dito, levado à frente pelos arquitetos no século XX. Em ambos os casos, distingue correntes de pensamento, sendo as correntes “culturalista”, fortalecida na Inglaterra com as “cidades-jardim” e a “progressista ou racionalista”, com maior influência na França, Alemanha e Países Baixos, as mais significativas. Choay analisa também o “naturalismo” e o “anti-urbanismo” americano, além de outras que enfatizam visões tecnicistas, humanistas e organicistas da cidade.
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e qualquer expansão urbana daquele período; todavia, são as novas cidades planejadas o seu exemplo mais significativo. O planejamento do núcleo urbano também se fez presente no caso de alguns projetos governamentais que ganham importância estratégica especial, principalmente a partir do esforço de industrialização iniciado nos anos 1930. Desta feita o urbanismo se volta para a cidade industrial, e assim as correntes de pensamento surgidas no início do século XX nos países desenvolvidos já exercem uma influência substantiva sobre os arquitetos e engenheiros no Brasil e os novos projetos incorporam os conceitos modernos de racionalidade espacial, hierarquização de espaços habitacionais, cinturões verdes de proteção ambiental, zoneamento, etc. Nestes casos, sendo o planejamento urbano encarado como um projeto acabado, ou seja, como uma obra a ser construída e edificada em sua totalidade, o “dono” da cidade tomava a si a função de implementação, sendo os recursos mobilizados para a implantação desse “urbanismo de luxo” conseguidos com facilidade proporcional à dimensão político-econômica do projeto em questão. Nas cidades particulares de apoio à atividade mono-industrial, as próprias empresas se encarregavam da construção5. Além destes casos, onde a importância política e econômica justificava um cuidado especial com a organização do espaço, o urbanismo foi aplicado também ao nível micro para atender às novas exigências sócio urbanas 6. Assim, foram construídas vilas operárias e áreas industriais nas periferias das cidades grandes, assim como bairros-jardim e subúrbios distantes exigidos pela classe alta e permitidos pelo desenvolvimento dos transportes urbanos7. Neste quadro de transformação das cidades, as propostas urbanísticas se multiplicaram seguindo as diversas correntes estrangeiras, desde o modelo barroco nos meios mais conservadores até tentativas de cidades-jardim e núcleos industriais modernos. É neste contexto que o modelo progressista-racionalista se impôs como a principal influência no movimento urbanístico brasileiro, tendo seu coroamento com a construção de Brasília. Volta Redonda, da Companhia Siderúrgica Nacional; Acesita, da Aços Especiais Itabira; Ipatinga, da Usinas Siderúrgicas Minas Gerais, são os exemplos mais marcantes, havendo também diversos casos de cidades particulares contíguas a pequenos centros já existentes ou parcelas da cidade sob controle direto de uma empresa. Em todos os casos acabam surgindo “cidades públicas” junto a “cidades particulares”. A este respeito, ver Costa (1979). 6 É importante ressaltar que não nos referimos às melhorias técnicas de serviços e infraestrutura urbana tratadas setorialmente, fechadas em si mesmas, por não as considerar como um esforço de “planejamento” urbano. 7 Yujnovsky (1971) ressalta o apoio do governo a estes bairros das classes dominantes, acompanhados sempre por grandes inversões em infraestrutura, transportes e faci1idades recreacionais, tais como clubes, hipódromos, etc. 5
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Esta corrente de pensamento, apoiada no conceito-chave do modernismo, ou l’ésprit nouveau (MERLIN, 1972) da era industrial, concentra o interesse dos urbanistas na técnica moderna e na estética, redefinida face aos novos conceitos. A cidade industrial é considerada anacrônica e defasada, devendo assim passar por transformações fundamentais estruturais, de forma a se coadunar com a eficácia exigida pela sociedade moderna. O urbanista da escola racionalista-progressista está “bem mais preocupado em representar uma visão arquitetural da cidade grande contemporânea do que em fazer a análise aprofundada de seu complexo organismo”. (OSTROWSKY, 1968) A partir do questionamento da cidade industrial do século XIX, enquanto outros urbanistas propunham a negação da cidade grande e a volta aos valores culturais pré-industriais8, os progressistas defendiam o progresso industrial e a eficiência capitalista. Enquanto aqueles proclamavam os males da cidade grande e a necessidade do convívio que só a pequena podia dar, estes se propunham a vestir a cidade grande com uma roupagem moderna que lhe permitisse melhor se inserir na era industrial. Assim, se para alguns a negação da cidade industrial gera uma nostálgica busca da unidade da cidade comunitária, espaço de convivência harmônica e símbolo da libertação da burguesia, os progressistas sonham com uma nova cidade grande, atual e moderna, harmônica e eficiente, onde o solo, o ar, a luz e a água devem ser igualmente distribuídos a todos. (RAMON, 1974) O principal ponto comum entre as duas correntes que se opõem, aliado à visão da “desordem” e à busca do “modelo”, é a incapacidade de reconhecer na cidade o espaço precípuo da luta de classes. Enquanto alguns atribuíam à cidade grande ou à forma da cidade a raiz de todos os males da sociedade, outros partiam para a utopia social como a imagem à qual aporão as suas propostas urbanísticas. Os modelos são variados, desde o historicismo culturalista ao tecnicismo isento de compromissos políticos do progressismo-racionalismo9. Para este, o caráter universal e purista atribuído à forma e a aceitação de um homemtipo universal permite uma padronização do urbanismo em todo o mundo. Assim, um mesmo plano poderia servir para uma cidade latino-americana, Neste grupo se situam os chamados “culturalistas”: W. Morris, Camilo Sitte, Ebenezer Howard, Unwin e Parker, entre outros. 9 “Muito cuidei para não sair do terreno técnico. Sou arquiteto e não me obrigarão a fazer política. Que cada qual, em diversos campos, com a mais-rigorosa especialização, leve sua solução às últimas conseqüências”. São palavras de Le Corbusier (1966) para se defender previamente das acusações que vinha sofrendo. 8
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europeia ou africana, por partirem do pressuposto de que as necessidades básicas dos homens são as mesmas, e se regem pelos princípios fundamentais de estética e eficácia10. O urbanismo passa a ser a busca de uma lógica racional-arquitetônica em contraposição às estruturas urbanas espontâneas ou “naturais”. Ao indivíduotipo atemporal e ahistórico corresponde uma ordem-tipo, para o progresso. A cidade é vista como um instrumento de trabalho, gerando-se assim a especialização de porções do espaço urbano visando maior eficácia e riqueza formal. Segundo Le Corbusier, a geometria é o ponto de encontro entre o belo e o verdadeiro11. Diante da negação da cidade como até então existia, e da marcante simplificação funcional do conjunto exigida pelas bases da teoria progressista, era natural que o planejamento urbano se prendesse principalmente à criação de cidades novas. Entretanto, foram feitas propostas de intervenção sobre grandes cidades (inclusive para o Rio de Janeiro e São Paulo, por Le Corbusier), porém sempre desconsiderando o capital básico já implantado e propondo transformações tão fundamentais na estrutura urbana que quase implicava na destruição do espaço urbano até então existente. De fato, tornava-se difícil compatibilizar as propostas às cidades reais. Desagregando o conceito clássico de cidade-aglomeração através da fragmentação e especialização funcional de “porções” do espaço, e impondo uma predefinição integral de uma nova ordem específica e rígida definida a partir de uma exaustiva análise funcional, o urbanismo progressista propõe autoritariamente um espaço urbano acabado que visa a permitir um rendimento máximo no desempenho das funções urbanas. A Carta de Atenas (CIAM, 1964), famosa declaração de princípios desta corrente urbanística, define quatro funções urbanas fundamentais sobre as quais estruturar o espaço - habitação, recreio, trabalho e circulação - tratando cada uma na especialização isolada, “até as últimas consequências”12. Ao nível da macroestruturação urbana, Le Corbusier propõe uma cidade “centro de decisões e negócios”, onde habita a classe dirigente, os que têm 10 Choay (1979) transcreve a afirmação de Le Corbusier: “Todos os homens têm o mesmo organismo, as mesmas funções, Todos os homens têm as mesmas necessidades”. 11 “O homem anda reto...O asno faz ziguezagues. O asno traçou todas as cidades do continente”. (LE CORBUSIER, 1966) 12 A Carta de Atenas (CIAM, 1964), publicada em 1943 por Le Corbusier, aborda outros pontos importantes, quais sejam: a incorporação do enfoque da cidade face ao seu território de influência (“cidade e região”), defendendo a necessidade da integração da visão urbano-regional e dedica parte especial à preservação do patrimônio histórico. Na cidade moderna proposta pelos progressistas, há que se tratar também com cuidado os exemplos arquitetônico-urbanísticos de um período histórico já ultrapassado.
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o poder, e cidades-jardim periféricas para a população trabalhadora. Com os devidos “cinturões verdes” de proteção separando as diversas partes da cidade, propunha a localização, na extrema periferia, das indústrias. Classifiquemos três classes de população: os que habitam o centro da cidade, os trabalhadores, cuja vida se desenvolve por metades no centro e nas cidadesjardim, e as massas operárias, que dividem sua jornada de trabalho entre as fábricas dos subúrbios e as cidades-jardim. (LE CORBUSIER, 1966)
Dentre as diretrizes fundamentais do racionalismo, alguns elementos conceituais permanecem como referência para o planejamento de cidades ou do espaço como um todo, no nosso contexto. A habitação, compreendida como célula principal de estruturação urbana, assumiria significativa importância e papel crescente em razão da necessidade da burguesia de se isolar da invasão urbana pelo proletariado industrial. Do ponto de vista do capitalismo, significa o necessário fortalecimento da propriedade privada em detrimento dos espaços comunitários defendidos pelos culturalistas - as praças, os pontos de encontro, os espaços públicos para o congraçamento. Na cidade racionalista, o objetivo principal é tornar agradável o espaço habitacional, restringindo-se o convívio social ao nível das unidades de vizinhança. Evidentemente, esta é uma maneira de reduzir os conflitos sociais gerados pela luta de classes no interior do espaço urbano, levada ao extremo na proposição macroestrutural de Le Corbusier citada anteriormente13. Da mesma forma, as diversas funções urbanas são tratadas isoladamente, de modo a evitar qualquer conflito funcional que possa prejudicar a eficiência da cidade. O conceito de zoneamento rígido, onde a cada espaço especializado corresponde uma concentração funcional, é o principal instrumento de política urbana, transformando a cidade em setores justapostos: setor bancário, setor recreacional, setor comercial, etc. A circulação, altamente desenvolvida e buscando também evitar conflitos entre os diversos modos de transporte, atua como elemento de interligação, sem contudo interpenetrar os espaços funcionais. A rua é um anacronismo da velha cidade e deve ser substituída pela via urbana, novo elemento cuja função se restringe à circulação.
13 Para Le Corbusier, “a cidade é um utensílio de trabalho” e “elas (as cidades atuais) não são dignas da época: elas não são mais dignas de nós”. (LE CORBUSIER, 1966)
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Brasília: primeira iniciativa urbana de caráter nacional Quando na década de 1930 foi realizado o 4° CIAM - Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, e os postulados progressistas-racionalistas foram reunidos na Carta de Atenas, no Brasil já se tinha conhecimento de suas premissas antes mesmo que Le Corbusier a publicasse em 194314. A partir de então, ligado a todo o movimento moderno de artes e arquitetura no Brasil, o pensamento corbusiano ganhou força entre os nossos profissionais, influenciando o planejamento de novas cidades ou partes de cidades15. Em todos os casos, subestima-se a dinâmica própria da cidade e o espaço urbano não era visto como resultante da projeção de diversas estruturas e atividades socioeconômicas nele desenvolvidas. Ao contrário, a cidade e o espaço urbano ganhavam um significado simbólico muito maior, adquirindo força e qualidade ambiental em sua própria lógica formal, quase independentemente da estrutura socioeconômica que a suportava. O projeto de Brasília, refletindo esta ausência de correspondência ou mesmo preocupação de ajustamento entre as estruturas fundamentais socioeconômicas da população e o sistema espacial proposto, ilustra com brilhantismo essas posições fundamentais da escola progressista16. Para Andrade (1972) essa ausência de preocupação atinge não apenas o projeto vencedor de Lúcio Costa, mas o próprio júri do concurso, que nada menciona sobre a questão. Ao contrário, o júri se prende a considerações essencialmente ligadas ao “expressionismo da função governamental ... expressão arquitetônica própria da cidade” que sintetizam bem a escala de valores empregada no julgamento (ANDRADE, 1972). Embora duramente criticadas nas últimas décadas pelos que as interpretam como uma camisa-de-força imposta ao organismo social17, as premissas do pensamento racionalista dos progressistas influíram decisivamente sobre os urbanistas brasileiros. Se esta influência, até meados do século XX, se restringia às elites egressas da aristocracia rural que tinham acesso direto aos ensinaO movimento dos arquitetos “progressistas” contou com a participação de um representante brasileiro: Lúcio Costa. 15 Já em 1934, um concurso estabelecido pela Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira permitiu a Lúcio Costa (1962) expor, ainda como complementação aos projetos arquitetônicos, os conceitos básicos da escola progressista, que viriam tomar forma definitiva em Brasília. 16 Françoise Choay (1979) afirma: “ (...) mesmo Brasília, construída segundo as regras mais estritas do urbanismo progressista, é o grandioso manifesto de uma certa vanguarda, mas de forma alguma a resposta a problemas sociais e econômicos específicos”. 17 Entre as críticas mais conhecidas, pode-se citar Jane Jacobs, Cristopher Alexander. Pierre Francastel e H. Wasser. Este último diz que “o urbanismo funcional mata a alma”, enquanto Francastel critica duramente Le Corbusier ao dizer: “O universo de Le Corbusier é o universo concentracionário. É, na melhor das hipóteses, o gueto. (...) Pessoa alguma tem o direito de fazer a felicidade do vizinho à força (...)” In Waclaw Ostrowsky (1968) e Choay (1979). Também no Brasil surgiram fortes críticas a Brasília, e a análise dos demais projetos apresentados no concurso para construção da Capital Federal mostra que urbanistas brasileiros sofriam também influência da escola culturalista europeia e do modelo 14
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mentos das metrópoles europeias, com a emergência da arquitetura moderna brasileira aliada ao processo de urbanização acentuado no pós-guerra, ela se difunde entre os “círculos de interessados”. Brasília vem a ser o coroamento de uma corrente que já se fortalecia como sendo a vanguarda do pensamento arquitetônico-urbanístico. De fato, o modelo racionalista respondia melhor que qualquer outro às demandas do momento histórico que vivia o país. No momento em que a racionalidade do planejamento atingia o aparelho do Governo, resultante da influência das missões americanas e dos organismos internacionais, e em que se estruturava uma “nova burocracia” (CARDOSO, 1975) com um papel mediador entre o sistema político clientelístico tradicional e a “mobilização direta das massas”, principalmente ao nível urbano, os conceitos de ordem e progresso do positivismo implícitos no racionalismo europeu casavam perfeitamente com as diretrizes políticas vigentes no país. O Plano de Metas de Kubitschek estabelecia as bases da ruptura com o planejamento e modernização restritos às “ilhas de racionalidade”, (CARDOSO, 1975) ao mesmo tempo em que coexistia com a administração rotineira do sistema político tradicional. Estruturava-se, na verdade, uma nova concepção de governo central, no qual a abertura para o exterior, a integração nacional para construir um país forte e moderno, o desenvolvimentismo e o crescimento econômico exigiam decisivo apoio popular. Neste momento, em que a ideologia do “desenvolvimento” ganhava força crescente entre nós, fruto da expansão do imperialismo do pós-guerra, as proposições racionalistas vindas dos “países adiantados” respondiam com vantagens às necessidades político-ideológicas do país18. Era necessário criar grandes símbolos de “integração” nacional, a fim de evidenciar a nova era em que o país entrava. Vivia-se um clima de “futuro”, de modernidade, de identificação por parte da população com o Estado Nacional, que surgia disposto a tomar as rédeas do país e conduzi-lo à condição de potência industrial moderna. Pedia-se uma cidade com um novo espírito para uma nova era - o “espírito novo” (MERLIN, 1972) racionalista? Que cidade? A cidade dos negócios, centro de negócios modelo! A capital do capitalismo. A cidade da burocracia dirigente, das classes médias servidoras do sistema... (RAMON, 1974) Furtado (1978) mostra como a ideologia do “progresso” evolui para a ideologia do “desenvolvimento” a partir da internacionalização da economia capitalista. Se a primeira funcionava como uma “superideologia”, capaz de aglutinar gregos e troianos, a segunda, dado o modelo implícito que carrega em si, serve apenas às necessidades de expansão do sistema capitalista mundial.
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Cidade instrumento, o modelo progressista é também cidade-espetáculo (CHOAY, 1979).
E Brasília nasce como tal, um monumento aos seus criadores, ao “destino” do país, à entrada efetiva, pelas mãos do Estado, do capitalismo industrial internacional que integrará o espaço nacional, expressão da nova ordem buscada pela burguesia emergente brasileira, atrelada ou não ao capital externo. De qualquer modo, símbolo do progresso e modernidade nacionais, e afirmação inquestionável de um Estado de importância crescente na vida nacional19. Por outro lado; era necessário construir em tempo recorde esta cidademonumento. A rápida implementação era de tal importância, dado o sentido político que envolvia a obra, que a compreensão do fato de que a cidade deveria poder ser tornada irreversível em curto espaço de tempo deu a Lúcio Costa condições de concorrer com vantagem sobre os demais projetos (ANDRADE, 1972)20. Tal condição exigia de fato um projeto acabado, a ser implantado autoritariamente, mas buscando a identificação da população com o “castelo do rei”(BENEVOLO, 1976). No entanto, imensas críticas foram feitas ao processo de implementação de Brasília, ressaltando sua rigidez e a ausência de participação da população. Essa marginalização da população no processo de formação da cidade, segundo Jorge Wilheim (1969), faz com que parcelas da população prefiram habitar cidades-satélites onde o “desejo de fazer uma cidade” pode ser satisfeito, sendo este “desejo” uma necessidade vital do cidadão21. Entretanto, apesar da rigidez das propostas progressistas e do caráter de ruptura com uma ordem espacial tradicional estabelecida que caracteriza essa corrente de pensamento, o próprio Lúcio Costa admite o autoritarismo implícito na sua proposta, afastando-se, assim, um pouco dos pensamentos originais do mestre Le Corbu: Bahia (1978) afirma que “a construção de Brasília - uma cidade-capital - propositadamente projetada para não ser uma cidade industrial, tem certo simbolismo político - o da afirmação da cidade burocrática representativa do Estado-nação sobre a cidade industrial e sobre os grandes centros metropolitanos”. 20 Andrade (1972) ressalta em seu trabalho: “Na análise de seu relatório percebe-se que ele se ocupa principalmente dos dois fatores que eram os mais importantes para o proprietário do empreendimento: o caráter monumental e a possibilidade de ter uma obra irreversível ao fim do mandato do Sr. Kubitschek”. 21 Apesar de ressaltar a importância do autoritarismo na implantação de Brasília, camuflado pela mobilização ideológica do populismo, a análise de Jorge Wilheim nos parece uma excessiva simplificação, talvez de caráter enfático. Na realidade, a estrutura socioeconômica da população trabalhadora migrante impunha seu afastamento do plano-piloto, buscando numa área informal soluções menos onerosas. Além do mais, apesar do monopólio da terra, o Estado impôs restrições ao uso do espaço (leis para uso do solo e das edificações) que impediam que a população levantasse ali os seus barracos, demonstrando claramente a necessidade de expulsar da cidade os trabalhadores que, com sua pobreza, poderiam empanar o monumento símbolo do desenvolvimento do país. Tal raciocínio pode se aplicar melhor, talvez, às populações ricas que buscam nas áreas contíguas a Brasí1ia a sua chance de “criar” sua casa e sua cidade. 19
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O urbanista deve limitar-se a criar condição para que o desenvolvimento regional e urbano se processe organicamente e a guiá-la para que o crescimento natural ocorra no melhor sentido, de acordo com as necessidades de vida e as circunstâncias. Mas no caso de Brasília, teria sido falso adotar esse critério programático, porque, tendo de ser estruturada em prazo exíguo, a ordenação da cidade se impunha como única solução. Teve de nascer como Minerva, já pronta. Em condições normais, ela é o exemplo de como não se deve fazer uma cidade. (COSTA, 1962)
Apesar das afirmações de Costa, que atestam a sua contemporaneidade de pensamento, não há como não reconhecer que a implantação de Brasí1ia seguiu muito de perto os ditames do urbanismo progressista, que percebe a cidade como um projeto acabado ou, na melhor das hipóteses, como um modelo a ser aprimorado. Este é o pensamento geral da época, como ressalta Choay (1979): [...] contudo, e este é o ponto importante, todos esses pensadores imaginam a cidade do futuro em termos de modelo. Em todos os casos, a cidade, ao invés de ser pensada como processo ou problema, é sempre colocada como uma coisa, um objeto reprodutível. É extraída da temporalidade concreta e tornase, no sentido etimológico, utópica, quer dizer, de lugar nenhum.
Ao atribuir uma supervalorização à capacidade de transformação estrutural do espaço programado, os urbanistas progressistas concebiam estruturas urbanas apoiadas em estruturas socioeconômicas inexistentes ou utópicas, fazendo com que, obviamente, o espaço resultante muitas vazes guardasse pouco das intenções iniciais de sua concepção22, pois, como afirma Oscar Yujnowsky (1971) “o sistema físico planejado não pode alterar a estrutura socioeconômica básica vigente”. E de fato, ao analisar o resultado de Brasília, observa-se a pertinência de diversas das colocações críticas que lhe são feitas, não enquanto qualidade ambiental, expressiva e urbanística, mas enquanto solução aos problemas socioeconômicos que a sociedade brasileira apresenta. E não poderia deixar de ser assim, visto que “a burocracia não pode mais que a economia” (SANTOS, 1978). A “camisa-de-força” imposta pelo projeto original, assumida pelo governo local e ratificada pelo controle estrito do uso do solo, fez com que cidades fossem formadas na sua periferia, estas compatíveis com os níveis de reprodução da população brasileira. Neste sentido, Brasília é uma caricatura no subdesenvolvimento do citado modelo progressista original proposto por Le Corbusier (1966), onde se define um “centro de negócios”, que é também o espaço residencial da classe dominante, e cidades-jardim periféricas onde vivem os trabalhadores. “Apenas”, Segundo Andrade (1972), essa atitude utopista reflete um idealismo característico do arquiteto, que tenta resolver pelo desenho urbano ou arquitetônico os problemas estruturais da sociedade.
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o modelo corbusiano pretendia “sol, luz, água e terra para todos” (RAMON, 1974), e tampouco se pode dizer que as cidades-satélites sejam cidades-jardim. Assim, em sua macroestrutura, Brasília não difere das cidades brasileiras geradas no capitalismo industrial recente onde, a par de uma área central onde se concentram o capital e as classes dominantes, a cidade se estende em uma periferia destituída de infraestrutura e serviços, ou seja, “marginal” à acumulação de capital fixo, refletindo ao nível urbano o que se observa ao nível nacional e regional. Obviamente, a organização espacial é apenas parte da estrutura social em que se integra, podendo minimizar ou aguçar as suas contradições, mas nunca resolvê-las.
Do urbanismo ao planejamento urbano O rápido processo de urbanização trazia consigo problemas urbanos “menores, quotidianos”. As cidades brasileiras começavam a demandar ações governamentais, visando soluções técnicas e políticas para os problemas sociais e econômicos que se avolumavam. A necessidade de atuação do governo ao nível das cidades, não apenas nos casos “de luxo”, mas principalmente quando a livre-iniciativa não conseguia resolver os problemas, já era princípio amplamente aceito a partir da noção keynesiana de distinção entre serviços de caráter social e de caráter individual. Usando estes conceitos, o urbanismo extrapola os limites urbanos, atingindo a região ou a “planificação espacial”. Ou, visto de outro ângulo, o paradigma do planejamento difundido ao nível nacional e regional, ganhava também a cidade. A “visão compreensiva” da cidade se desenvolve logo também no Brasil. Os primeiros estudos nessa linha foram elaborados pela seção de urbanismo da Secretaria de Governo do Estado do Rio Grande do Sul, a partir de 1935. Foram produzidos, no período de 1939 a 1945, dez “planos diretores” (SERFHAU, 1971), os quais evidenciavam uma preocupação em incluir novos aspectos no planejamento das cidades. Em 1947 surgiu o Curso de Urbanismo da Escola de Belas Artes de Porto Alegre, que veio reforçar essa atividade. Com este movimento, advém uma mensagem renovadora do urbanismo, expressa através dos “planos diretores”23. Apesar de restritas à área físico-urbanística, devem ser ressaltadas as suas preocupações com o processo de planejamento, a assistência permanente e as medidas visando a implantação gradual e efetiva dos trabalhos. Os “planos diretores” surgiram nos Estados Unidos, no inicio do século XX, diante dos problemas que a urbanização acelerada impunha, mormente no tocante à oferta de serviços de consumo coletivo e à expansão física das cidades.
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Ao zoneamento rígido do urbanismo progressista esses planos opõem a ideia de zoneamento por tolerância ou expulsão das diversas funções urbanas. Tentam promover a expansão do tecido urbano de forma “ordenada”, induzida por investimentos viários ou equipamentos de função principal. Incorporam ao desenho urbanístico a técnica engenheirística dos serviços e infraestrutura urbanos. Embora tenham sido incorporados pelos arquitetos nas suas preocupações com a forma das cidades, os “planos diretores” valorizam principalmente o caráter funcional e a técnica urbanística, dando assim destaque à atuação dos engenheiros como profissionais ligados ao problema urbano. A cidade passa a ser vista principalmente como um problema técnico, resultante da somatória dos sistemas de produção dos serviços e infraestrutura requeridos, e consequentemente, afetos ao processo da administração urbana. É neste sentido que representa uma ruptura com o modelo anterior, por incorporar, assim, a ideia de processo contínuo de planejamento, inserido no contexto político-administrativo como atividade normativa perene, onde o plano representava uma sistematização no médio prazo dos objetivos a serem atingidos a partir de ações de curto prazo. O problema urbano se deslocava, assim, da preconcepção ideológicoformal do espaço, segundo uma análise funcional do organismo ou instrumento “cidade”, para uma visão da aglomeração urbana centrada na ideia de resolução técnica dos serviços de consumo coletivo que o Estado era crescentemente chamado a assumir, aliada à tentativa de “ordenação” do espaço em expansão pela localização de investimentos indutores e legislação apropriada ao controle social. Além da experiência gaúcha, mais restrita ao aspecto urbanístico, merece destaque o movimento liderado pelo Padre Lebret que, ainda nos anos 1940, representou uma versão brasileira do movimento francês “Economia e Humanismo” (SERFHAU, 1971). Esse grupo desenvolveu uma série de estudos e planos para várias cidades importantes (São Paulo, Belo Horizonte e Recife, entre outras), introduzindo técnicas de pesquisa e análise até então inexistentes no planejamento urbano brasileiro e incorporando a visão dos cientistas sociais do fenômeno urbano. Em continuidade a essa experiência, o Centro de Pesquisa e Estudos Urbanísticos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (CEPEU), através de um grupo de arquitetos e engenheiros, desenvolveu conceitos básicos para a participação comunitária nos planos urbanísticos. O grupo do CEPEU aliou à influência francesa os conceitos mais recentes da experiência inglesa e norte-americana. Entretanto, os trabalhos se caracte120
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rizavam principalmente por amplos diagnósticos, resultando assim em estudos sobre o urbano que ainda não conseguiam mobilizar os governos para uma ação efetiva. Já se observava uma ampliação significativa do planejamento urbano no tocante às áreas de enfoque aos problemas urbanos, embora ainda predominasse incontestavelmente a prioridade dos aspectos físicos. A fundamentação do planejamento integrado intersetorial que caracterizou os anos 1960 e se impõe ainda hoje, só se efetivou nos trabalhos realizados em 1960 em São José dos Campos e na Região do Recife, quando à equipe de arquitetos e engenheiros foram incorporados sociólogos e economistas para a análise de áreas de sua especialidade24. Embora não houvesse logrado resultados concretos, no inicio da década de 1960 já estava esboçada a conscientização, entre os “círculos de interessados”, da necessidade de que o planejamento do desenvolvimento urbano fosse assumido como uma tarefa fundamental do governo num país em intenso processo de industrialização, e consequentemente, de urbanização. Uma pesquisa realizada em 1958 pelo IBAM - Instituto Brasileiro de Administração Municipal - mostrava que 11,6% dos municípios brasileiros possuíam algum tipo de organismo responsável pelo aspecto urbano ou urbanístico. (SERFHAU, 1971) Ainda que em muitos casos de caráter pouco expressivo, sem órgãos efetivos de controle do espaço urbano, buscava-se mostrar que a preocupação com o planejamento urbano já havia atingido os municípios de forma significativa. Entretanto, fora da esfera municipal o problema do desenvolvimento urbano continuava restrito aos profissionais ligados à área, principalmente os arquitetos (que discutiam amplamente o assunto nos seus encontros profissionais) e os engenheiros, com uma participação crescente dos economistas, sociólogos, geógrafos e outros profissionais que vinham se interessando pela questão urbana. Ao nível do governo federal e dos estados, na sua maioria, o problema urbano continuava restrito aos aspectos habitacionais. Em 1963 foi realizado no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, um “Seminário de Habitação e Reforma Urbana”, com ampla divulgação, na tentativa de oferecer subsídios para uma atuação estatal efetiva no setor. Os participantes discutiam então em torno do conceito de “reforma urbana”25, detendo-se na necessidade de regulações do Nessa época, proliferavam as discussões sobre o papel de cada profissional no planejamento urbano “interdisciplinar”. A este respeito, ver a discussão de Wilheim (1969). O conceito de “reforma urbana”, já amplamente difundido nos países de centro no sentido de reforma espacial de áreas deterioradas, ganha novo significado no mundo periférico a partir da experiência desenvolvida na Cuba pós-revolucionária, principalmente nas transformações estruturais desenvolvidas em Havana.
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uso do solo urbano, das construções e investimentos setoriais, numa tentativa de ação integrada para o controle estatal do espaço urbano26. Nesse seminário tentou-se estabelecer as bases para a ação governamental, elaborando a proposta de lei que criaria a SUPURB (Superintendência de Urbanização), organismo nacional encarregado de promover e ordenar o desenvolvimento urbano no país. Tal lei não foi aprovada, e a semente lançada veio frutificar em situação bastante diversa do que havia sido pensado. Até 1964, o planejamento do espaço urbano continuaria sendo encarado pelo governo federal como “artigo de luxo”, reservado aos grandes projetos políticos, onde o caráter nobre do empreendimento exigia um toque artístico e uma funcionalidade técnica compatíveis com a grandeza da obra. A partir de então, com a ruptura do pacto social populista, a ação do Estado modificar-se-ia radicalmente, culminando na institucionalização do planejamento urbano, como veremos a seguir.
A institucionalização do Planejamento Urbano no Brasil O planejamento local integrado: uma política equivocada? Apesar das citadas colocações de 1963, a institucionalização do planejamento urbano no primeiro governo militar não ocorreu a partir do enfoque da questão urbana em sua totalidade. O problema urbano permaneceu centrado na habitação e só gradativamente foram incorporados os aspectos ligados à infraestrutura urbana e ao próprio planejamento urbano e metropolitano. Aqui, novamente se percebe a pertinência da perspectiva progressista que ao se apoiar no indivíduo-tipo (em oposição à comunidade-tipo), centra seus estudos e interesses no “habitat”, no espaço individual, na propriedade privada. E não poderia ser de outro modo no momento em que o regime autoritário instalado dava uma forte guinada para a direita no processo de implantação efetiva do capitalismo industrial no país. Em 1964, o país já se aproximava da sua “maioridade urbana”27 e o crescimento metropolitano era inegável e intenso em todas as suas dimensões - da concentração industrial às favelas. O urbanismo não poderia continuar a ser um privilégio reservado aos espaços nobres. As cidades brasileiras, e principalmente as metrópoles, passaram a se apreCintra (1978) coloca: “no ambiente polarizado daqueles dias, muitos estavam propensos a considerar as alterações revolucionárias como o único remédio realmente eficaz para os males do país, não se excluindo a questão habitacional e os problemas urbanos a ela relacionados”. 27 Em 1960 a população urbana do país representava 45,08% da população total. 26
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sentar como focos de problemas e surgiu a necessidade de instrumentos de controle social e econômico, pois as aglomerações urbanas se tornavam ao mesmo tempo elemento de destaque no modelo político-econômico que se intentava implantar. Desta feita, o autoritarismo foi gradativamente assumido, em oposição ao paternalismo que escondia a manipulação do período populista, onde conviviam os objetivos progressistas da “nova burocracia” - que via como necessária “a mobilização de novas camadas da população a partir do Estado” (CARDOSO, 1975) - e as elites econômicas que ainda suportavam o tradicional sistema político clientelístico “irracional”28. Neste contexto, as cidades deixavam de ser encaradas apenas como problemas de técnica de engenharia e de embelezamento arquitetônico. Sociólogos, economistas, cientistas políticos, enfim, os cientistas sociais, descobriam a cidade como foro de estudo da sociedade capitalista industrial que se consolidava no país. Por outro lado, o governo militar se instalava em meio à crise econômica e social que se esboçara no país a partir da segunda metade da década de 1950. As tensões sócio-políticas iniciadas com a ruptura do pacto social populista foram agravadas pelo processo de contenção salarial e consequente concentração de renda, medidas utilizadas pelo novo governo de forma a aumentar a capacidade de investimento da classe empresarial. Para obter garantia de efetivação de sua política econômica, era necessário [...] formular projetos capazes de conservar o apoio das massas populares, compensando-as psicologicamente pelas pressões às quais vinham sendo submetidas pela política de contenção salarial. Para tanto, nada melhor do que a casa própria (BOLAFFI, 1975) 29.
Se por um lado o ideal da casa própria já tinha sido incorporado à população brasileira, por outro a comprovada correlação entre casa própria e atitudes conservadoras, observada no Brasil30, servia plenamente aos interesses do novo Aqui já se esboçava a dicotomia técnico-política tão difundida no Brasil nos últimos quinze anos. Aliás, a partir do regime militar. com o afastamento do poder de parte das elites políticas e da totalidade da população, esta tecnocracia embrionária ganhou força crescente na sua aliança com os militares e com a burguesia nacional e estrangeira na promoção do desenvolvimento. Furtado (1978) afirma que o autoritarismo e a doutrina da “segurança nacional” são corolários da “ideologia do desenvolvimento”, trazidos no bojo da expansão do capitalismo internacional quando este atinge os países periféricos não-industrializados. 29 A este respeito, nada mais claro do que a famosa carta da Deputada Sandra Cavalcanti ao Presidente Castelo Branco, ao apresentar a proposta de criação do BNH: “[...] aqui vai o trabalho sobre o qual estivemos conversando. Estava destinado à campanha presidencial do Carlos, mas nos achamos que a Revolução vai necessitar de agir vigorosamente junto às massas. Elas estão órfãs e magoadas, de modo que vamos ter de nos esforçar para devolver a elas uma certa alegria. Penso que a solução dos problemas de moradia, pelo menos nos grandes centros, atuará de forma amenizadora e balsâmica sobre as suas feridas cívicas”. (o grifo é do Presidente Castelo Branco). Apud Souza (1974). 30 Pesquisa feita por Lloyd A. Free, em 1960, citada por Bolaffi (1975). 28
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governo. Paralelamente, a expansão da construção civil viria gerar emprego exatamente nas áreas onde o desemprego ou subemprego apresentam um quadro social mais grave: as cidades maiores, onde a concentração de migrantes não-qualificados crescia, aumentando a marginalização e as tensões sociais. O BNH - Banco Nacional da Habitação - surgiu neste contexto e com a sua criação foram rapidamente dados os passos iniciais para a institucionalização do planejamento urbano no Brasil, através de mecanismos assumidos pela esfera federal de governo. Os recursos financeiros seriam provenientes do FGTS - Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, criado pela lei n° 5.107 de 13 de setembro de 1966. No mesmo ano, o decreto n° 59.917, de 30 de dezembro, instituiu o SNPLI - Sistema Nacional de Planejamento Local Integrado, e criou o FIPLAN Fundo de Financiamento de Planos de Desenvolvimento Local Integrado, com recursos do FGTS, denominando o SERFHAU - Serviço Federal de Habitação e Urbanismo, seu gestor e órgão coordenador central do sistema (SERFHAU, 1971). Em janeiro de 1967, o decreto-lei n° 200 criou o Ministério do Interior, ao qual foram vinculados o SERFHAU e o BNH, sendo reafirmadas suas funções. Embora tais medidas institucionais caminhassem no sentido de maior integração da atuação do Estado face aos problemas urbanos - no sentido de uma política urbana nacional - na verdade observou-se verdadeira dicotomia nas ações governamentais. Com efeito, apesar do Plano Decenal, elaborado em 1967, procurar estabelecer as diretrizes principais dessa política, o BNH e o SERFHAU tomariam caminhos diversos em suas ações quanto ao desenvolvimento urbano. Para a compreensão desta colocação recordemos, ainda que rapidamente, o discurso do Plano Decenal quanto à política urbana. O Plano Decenal assumiu a importância de uma política urbana no país, renomeando o SERFHAU como “organismo central do Sistema Nacional de Planejamento Local Integrado” e dedicando um tomo ao desenvolvimento regional e urbano, no qual era dada ênfase à necessidade de formulação de uma política nacional urbana e à implantação do SNPLI: Da mesma forma que os investimentos industriais, agrícolas, etc., são racionalizados através da elaboração de projetos, torna-se necessário elaborar planos de desenvolvimento local para a racionalização dos investimentos que se destinarão à urbanização. (BRASIL, 1967a)
Abordando o assunto de forma quase didática, o Plano desenvo1veu considerações sobre custos de urbanização, densidades urbanas, zonas periféricas “pseudo-urbanas” e outros conceitos analíticos intra-urbanos. Levantou também o problema da rede urbana, considerada “inadequada” ao desenvolvimento 124
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nacional, ressaltando os problemas da concentração excessiva em São Paulo e Rio e a necessidade de ação preventiva nas demais metrópoles. Preconizou uma Política Nacional Urbana como instrumento para alterar a estrutura de urbanização de um país, citando como exemplos experiências nos países de centro: a desmetropolização da Inglaterra na década de 1950 com base na política de empregos; os casos da França e dos Estados Unidos. Definiu dois outros níveis de atuação estatal no planejamento urbano: os padrões intra-urbanos de organização do espaço e retornou, com um anglicismo –”administração local” -, à velha bandeira do IBAM, de modernização das administrações municipais. Chamou a atenção para a necessidade de estudos de base para a formulação de uma política urbana nacional, a partir de visões local, micro e macrorregional. Propôs o estabelecimento de regiões-programa e a definição de polos de desenvolvimento para efetiva implantação do SNPLI, preocupando-se com instrumentos de ação, com a descentralização do Sistema pelo envolvimento dos Estados, a formação de recursos humanos para o setor, a participação efetiva da população e a instalação do processo de análise e avaliação do planejamento (BRASIL, 1967a). Em suma, o Plano Decenal abordou os pontos principais, ainda hoje discutidos, de uma política urbana e propôs que o SERFHAU, como organismo principal do SNPLI, fosse apoiado por organismos de pesquisa, como o Conselho Nacional de Geografia - CNG e o EPEA, hoje IPEA - Instituto de Planejamento Econômico e Social. Entretanto, é grande a separação entre o discurso do Plano Decenal e a atuação efetiva do governo federal. Na verdade, o Plano Decenal foi rapidamente abandonado em sua visão compreensiva e em suas proposições de descentralização e crescimento equilibrado quando o ministro Delfim Neto assumiu a pasta da Fazenda, optando claramente pelo modelo centralizador de incentivo ao “capitalismo selvagem” que caracterizou o “milagre brasileiro”. E assim o BNH, na sua atuação efetiva, colocar-se-ia frontalmente contrário às diretrizes da política formal expressa no Plano Decenal, e cada vez mais afinado com a estratégia de crescimento econômico proposta pelo Governo. O modelo de desenvolvimento econômico, adotado após 1964, continha implicitamente uma opção de concentração urbana, na medida em que se apoiava no processo de intensificação da industrialização e nos mercados urbanos, de maior elasticidade face aos produtos principais da crescente indústria de bens duráveis. Os objetivos principais perseguidos pelo governo, então, encontram nas cidades grandes o meio propicio à sua consecução, na medida em que estas permitiam maior rentabilidade ao capital investido pelas condições de econo125
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mias externas que oferecem, mercado e mão-de-obra semiespecializada, e se prestavam mais à estratégia de concentração de renda através de poupança e compressão salarial, para gerar novos investimentos. Por outro lado, a chamada indústria da construção, como foi ressaltado, é amplamente propícia ao processo de geração de empregos urbanos, sendo por isto mesmo reconhecida como um mecanismo eficaz de controle de conflitos sociais. Porém, tal política só poderia agravar o processo migratório campocidade, já intenso na década anterior, na medida em que concentrava nos principais centros urbanos os investimentos governamentais. Esta concentração ocorre não apenas em relação ao sistema urbano, privilegiando as grandes cidades, mas também no tocante à distribuição regional31. Por outro lado, a concentração de investimentos, tanto ao nível macrorregional quanto internamente ao sistema urbano, veio não apenas aumentar os desequilíbrios regionais e acelerar o crescimento das cidades grandes, mas também contribuir para o agravamento dos problemas intra-urbanos decorrentes da rápida urbanização marginal brasileira. A distribuição de investimentos provenientes da poupança compulsória (FGTS) e as linhas de crédito de incentivo à construção desenvolvidas pelos agentes financeiros do BNH, que manipulam os recursos da poupança voluntária (SBPE), não obedeceram a qualquer macropolítica de aplicação, seja de racionalidade urbana, seja de cunho sócio-político, regendo-se apenas pelos critérios de rentabilidade econômica exigidos pelo Banco. Como resultado, não apenas o problema habitacional não foi solucionado onde era mais crítico - a habitação popular, pois descobriu-se que a população pobre brasileira não tem renda para ter casas - como tampouco foram equacionados os problemas urbanos trazidos à luz quase como decorrência da política habitacional. Na verdade, ao contrário, a atuação do BNH veio apenas agravar dois problemas fundamentais das grandes cidades brasileiras: a supervalorização da terra urbana (e imóveis) gerando (e sendo gerada pela) especulação imobiliária, e o seu corolário, o processo de expansão periférica das cidades, de densidade rarefeita e “marginal” ao processo urbanizador. Enquanto as companhias habitacionais (COHABs), utilizando os recursos do FGTS, implantam seus conjuntos na periferia urbana mais distante, onde a terra é mais barata, contribuindo desta forma para o esgarçamento do “tecido urbano”, o estímulo à construção privada das classes médias e altas, possibilitado pelos recursos do 31 A análise das aplicações do BNH mostra que 58,63% dos investimentos do Banco, de 1968 até setembro de 1973, se concentraram na região Sudeste, 15,89% na região Nordeste, 10,72% na região Sul, 4,53% no CentroOeste e 3,14% na região Norte. Dados trabalhados a partir da tabela (III. 4) apresentada in Francisconi e Souza (1976).
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SBPE, promove o adensamento da área central e favorece o processo de especulação imobiliária32, transformando o imóvel (e o próprio solo urbano) num “objeto de ações econômicas alheias ao seu valor de uso” (BOLAFFI, 1977) 33. Neste contexto, acentua-se a seletividade e a especialização funcional do espaço decorrentes da distribuição diferencial do capital fixo no espaço urbano: as áreas centrais da cidade se apresentam “superequipadas”, enquanto a periferia carece dos requisitos mínimos que a vida urbana exige. Ao adensamento do capital fixo na área central das metrópoles se opõe o esgarçamento espacial da área periférica “marginal” ao sistema. Os dois espaços se complementam34. Enquanto isso, “apoiado técnica, institucional e financeiramente” (BRASIL, 1967a), o SERFHAU atuava ao nível local, definindo, em primeira etapa, as cidades de população superior a 50 mil habitantes como objeto de seus trabalhos, à exceção das cidades da Amazônia, onde esse critério se reduzia para 25 mil habitantes. Com base nesta de1imitação do universo de trabalho, no período 1967/69 o SERFHAU financiou a elaboração de dezoito estudos urbanos, incluindo estudos preliminares, projetos setoriais - distritos industriais e cadastros técnicos municipais – e planos de desenvolvimento. Entretanto, ao trabalho do SERFHAU faltava uma diretriz macroespacial ao nível nacional que definisse áreas e abrangência de atuação segundo características comuns a grupos homogêneos de municípios. Em junho de 1969, o Ministério do Interior baixou a portaria n° 214, criando o PAC - Programa de Ação Concentrada que, apoiando-se em estudos de base do IBGE35, definia 457 centros urbanos como prioritários para a ação do governo no campo do planejamento urbano e também os níveis de abrangência e profundidade dos estudos a serem elaborados, segundo diferentes tamanhos de cidades36. O PAC respondia à crescente discussão, ao nível da tecnocracia, sobre a necessidade de uma política de desenvolvimento urbano no país, que, já afirmada no Plano Decenal, tinha sido retomada no Programa Estratégico de 32 Neste trabalho, quando nos referimos à “especulação imobiliária”, queremos dizer da retenção de terra improdutiva (no caso urbano, desocupada), com o objetivo de auferir maior renda futura a partir da sua valorização, esta provocada pela agregação de capital ao seu entorno. Ainda que empreendimentos imobiliários possam conter em si um processo de especulação, não se confundem necessariamente com a atividade especulativa. 33 A rigor, não são alheias ao seu valor de uso potencial, dado que é este valor, ou a possibilidade de auferir renda sobre ele que determina a própria especulação. Mas Gabriel Bolaffi (1977) parece se referir ao uso imediato visando a ocupação. 34 A respeito da estruturação do espaço metropolitano no Brasil a partir de uma perspectiva da localização relativa do capital e do poder de acesso às áreas urbanizadas ver Santos e Bronstein (1978). 35 Em 1968, o IBGE havia definido microrregiões homogêneas para todo o país. 36 Segundo a metodologia do PAC, os Relatórios Preliminares (RP) se dirigiam aos municípios pequenos, enquanto os Termos de Referência (TR) constituíam diagnósticos e indicações preliminares que antecediam (ou não) e justificavam a elaboração de planos, que podiam ser Planos de Ação Imediata (PAI) para municípios de até 50 mil habitantes, e Planos de Desenvolvimento Local Integrado (PDLI), para os municípios maiores.
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Desenvolvimento - PED 1968/70. Este, no capitulo sobre Desenvolvimento Regional e Urbano, ressaltou o sentido nacional e regional da política urbana: A formulação de uma política de desenvolvimento urbano deve ser elaborada através de uma ótica regional: as cidades nascem e se desenvolvem em função dos potenciais econômicos, estratégicos, etc., de uma dada região. (BRASIL, 1967b)
Paralelamente, insistia na “desintegração” encontrada nos planos urbanísticos até então elaborados, preconizando o “planejamento urbano integrado”, ótica que orientaria toda a atuação do SERFHAU, a quem coube implementar e supervisionar as fases de execução do SNPLI. Entretanto, se o SNPLI nasceu desta forma abrangente enquanto formulação de objetivos e metodologias, a atuação do SERFHAU se restringiu ao planejamento intra-urbano de cidades médias e pequenas, predominantemente. Dos 237 municípios onde atuou até 1973, 68% tinham população inferior a 50 mil habitantes, 28% entre 50 e 250 mil habitantes e 4% superior a 250 mil. Tabela 1 - BRASIL - Número de Documentos Financiados pelo FIPLAN até 10/09/1973, por regiões Documentos concluídos Regiões Norte Nordeste Centro-Oeste Sudeste
TR
Relatórios Preliminares
Planos/ Projetos.
Documentos em elaboração Subtotal
TR
Relatórios Preliminares
Pianos/ Projetos
Total
9
35
2
46
-
-
-
46
10
68
15
93
6
25
3
127
2
34
7
43
-
-
3
46
41
11
35
87
4
-
14
105
Sul
11
-
1
12
13
-
8
33
Total
73
148
60
281
23
25
28
357
FONTE: SERFHAU, in Francisconi e Souza (1976).
Ao se considerar as sedes municipais (população urbana), estes percentuais passam para 80%, 16% e 4%, respectivamente37. Por outro lado, a grande maioria dos trabalhos feitos (63%) são relatórios preliminares para municípios pequenos, como se observa na tabela (1). A distribuição regional por trabalhos elaborados sugere um grande privilégio ao Nordeste e dir-se-ia que ali os problemas urbanos eram maiores. Entretanto, essa aparente distorção se deve apenas ao fato de terem sido elaborados inúmeros relatórios preliminares e termos de referência através da Informações estatísticas agregadas do estudo de Fonseca (1973), compiladas por Francisconi e Souza (1976). Para uma avaliação mais extensa da atuação do SERFHAU, ver, além dos dois estudos acima citados, Josef Barat (1979) na sua discussão sobre planejamento de centros urbanos de porte médio.
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SUDENE e do Projeto Rondon. Ao se observar a distribuição regional segundo o tipo de documento elaborado, verifica- se que no Sudeste se concentram 62% dos PAI/PDLI e 53% dos Cr$ 18,62 milhões emprestados pelo FIPLAN aos municípios. No contexto político-econômico descrito, o planejamento integrado para o desenvolvimento socioeconômico é mera figura de retórica e a promoção do desenvolvimento municipal se submete inteiramente às necessidades de crescimento econômico do país. Assim, outro não poderia ser o resultado do SNPLI pois, como vimos, a política do SERFHAU se mostrava distante dos reais objetivos nacionais e conflitante com o planejamento econômico federal. Partindo da perspectiva do “desenvolvimento local integrado”, o planejamento urbano promovido pelo SERFHAU se baseava no município enquanto entidade autônoma, capaz de decidir sobre seus problemas urbanos. O caráter “integrado” dos planos, abrangendo a visão físico-territorial, social, econômica e administrativa, se por um lado abria uma nova dimensão à tentativa de organização do espaço urbano, por outro desconhecia a centralidade crescente observada no país a partir de 1964. Esvaziado politicamente pelo autoritarismo vigente, destituído de diversas de suas funções “de peculiar interesse” e enfraquecido financeiramente pela reforma tributária que o atrelava a uma condição de dependência dos níveis estadual e federal, o município sofreu as consequências do anti-federalismo que ele mesmo havia apoiado no período pré-1964 (BAHIA, 1978). O SNPLI parecia pretender montar um sistema de planejamento urbano de baixo para cima. Entretanto, todo o resto do sistema político-econômico se caracterizava por uma postura autocrática e assim, enquanto o SERFHAU incentivava, promovia e financiava a organização administrativa e o planejamento municipal. o sistema político-econômico do país se pautava por intensa centralidade de decisão. Na nova visão, os objetivos municipais deviam se curvar aos objetivos do “desenvolvimento nacional”. Por outro lado, os objetivos nacionais não estavam claramente definidos no seu desmembramento ao nível municipal. Dessa forma, as estratégias de desenvolvimento local continuavam sendo enfocadas a partir do ponto de vista municipal, assumindo-se que as diretrizes de planejamento ao nível global devessem ser elaboradas a partir da agregação dos planos municipais (TOLOSA, 1972). Entretanto, como tal esta postura não encontrava ressonância no conjunto do sistema, o SERFHAU estava fadado a ser engolido, como de fato o foi, transformando-se numa carteira do BNH.
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A falta de coordenação das ações diversas ao nível local, espelhada na não-implantação dos planos serfharlinos apenas evidencia a fragilidade do sistema montado. Na verdade, o SNPLI se transformou apenas num promotor de documentos “técnicos” que tinha, em última instância, o papel de modernizador das burocracias municipais38. A elaboração dos planos gerou uma expectativa de investimentos incapaz de ser atendida pelos governos locais ou mesmo estaduais e federal. Por outro lado, as prefeituras já sabiam que sem o apoio técnico nada conseguiriam junto aos organismos estaduais e federais. Era preciso que se tivesse o plano feito para conseguir recursos, ainda que parcos. Aqui se define um papel para a “nova burocracia” ao nível municipal: fazer a “ponte” entre as necessidades do município e os recursos centralizados. A adaptação dos municípios à nova situação é expressa na pesquisa do IBAM sobre o prefeito brasileiro, realizada em 1975, onde se mostra que: [...] os prefeitos que se identificavam com o tipo de atuação mais política são maioria entre os municípios mais rurais (57,1%), enquanto entre os medianamente urbanizados esta percentagem desce para 41,1% e daí para 29,7% nos mais urbanizados. Seguindo tendência contrária, os prefeitos que defenderam um tipo de atuação técnico-administrativa são mais numerosos naquelas faixas em que a população urbana do município é maior. Na última faixa (acima de 20 mil habitantes urbanos), a predominância da atuação mais técnica é bastante sensível, dado que 70% dos dirigentes locais consideram ser esse tipo de atuação a melhor forma de assegurar o sucesso do seu governo.39
Quanto à “qualidade técnica” do planejamento desenvolvido pelo SERFHAU, pouco há a dizer. Coerente com a política do BNH e com a perspectiva anti-populista e empresarial do governo, o SERFHAU também se apoiou na empresa privada. Desta feita, não nas construtoras, mas nas consultoras. O financiamento era dado ao município para que contratasse uma empresa consultora para elaborar seu plano de desenvolvimento. A metodologia geral era definida pelo SERFHAU, obedecendo à ideia do planejamento “compreensivo”. Não se tratava mais de projetar cidades, mas de definir “imagens-objetivo” a serem atingidas a partir das diversas ações “integradas”. Buscava-se a fusão “interdisciplinar” das várias visões da problemáNo seu trabalho sobre a avaliação da atuação do SERFHAU, Fonseca conclui que os projetos resultantes dos planos elaborados foram pouco significativos. Ou seja, o que denomina “efeito micro” foi pequeno, surgindo resultados ao nível do “efeito macro”, o que define como sendo a formação de uma mentalidade de planejamento urbano. Com a “nova burocracia” atingindo o nível municipal, mesmo que os recursos para implantação dos projetos fossem negados e as ações setoriais isoladas dos diversos níveis de governo se perpetuassem, parte dos objetivos do planejamento eram atingidos: a sua incorporação como preocupação permanente no processo de administração municipal. A “racionalidade técnica” chegava ao falido município brasileiro. 39 Transcrição de Bahia (1978). 38
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tica urbana de forma a promover o desenvolvimento equilibrado. Os estudos e diagnósticos analisavam os diversos aspectos da cidade e propunham ações nos principais “setores” de atuação do Estado: físico-territorial, econômico, social e institucional -administrativo40. O pressuposto positivista disciplinar foi transposto à leitura analítica do fenômeno urbano e, nesta perspectiva, ao nível formal o SNPLI era coerente com as grandes diretrizes do sistema de planejamento brasileiro, também “compreensivo”. Como resultado “técnico”, pouco se pode dizer. Sem dúvida, agregou experiências, ampliou o conhecimento e muitos dos planos apresentaram diagnósticos, alternativas de ação, proposições e projetos específicos pertinentes e bem elaborados. Muito se avançou no conhecimento dos problemas das cidades e na sua sistematização. As críticas ao seu caráter normativo e à sua suposta universalidade de propostas para todo o país; à ênfase excessiva nos aspectos urbanísticos; enfim todas estariam contidas no problema fundamental de sua postura conflitante com a política econômica nacional, visto que os planos eram, na sua grande maioria, natimortos. Montou-se todo um discurso de planejamento urbano voltado para o fortalecimento da célula mínima autônoma da nação - o município quando os instrumentos de política eram cada vez mais centralizados e autoritários. De fato, então, pretendeu-se o desenvolvimento integrado local atrelado aos grandes objetivos nacionais. Mas tudo isto foi exposto de forma nebulosa, pois a sua apresentação clara desmontaria o sistema enquanto tal. Marília Steinberger Fonseca (1973), ao tentar avaliar a atuação do SERFHAU, conclui pela “maior responsabilidade” dos “atores executores” (municípios e empresas consultoras), refletindo a falta de apoio e definição nos escalões superiores - “atores definidores e controladores”, quais sejam, o governo federal, as superintendências regionais e os esta dos. Há aqui um risco de se identificar na “maior responsabilidade” dos executores a razão do fracasso da experiência. De fato, tal colocação, parece refletir uma postura tecnocrata que se fortalecia ao nível federal e estadual, onde o município aparece como ineficiente, desatualizado e incompetente administrativamente. Neste quadro, a citada pesquisa do IBAM vem apenas confirmar os pressupostos dessa tecnocracia emergente que defende a “racionalidade técnica” em oposição ao exercício político. Diante do novo contexto apolítico e autoritário pós-1964, as esvaziadas prefeituras municipais apareciam como desatualizadas, e tal argumentação já A análise do urbano passou da perspectiva funcional intra-sistêmica espacial do “progressismo” habitação, lazer, trabalho e circulação - para a ótica disciplinar – economia, sociologia, engenharia. etc.
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havia se prestado à justificativa da própria reforma tributária (BAHIA, 1978). As consultoras – os outros “executores” – são assumidas como limitadas tecnicamente e irrealistas em suas proposições, além de pautarem-se por um interesse principalmente lucrativo. Na verdade, todas estas colocações parecem servir à a justificativa de maior centralização e ao fortalecimento da burocracia federal e estadual. Os planos locais refletiam apenas as contradições do sistema montado, que oferecia serviços muitas vezes não solicitados a um consumidor que dependia crescentemente das instâncias superiores para poder utilizá-los da forma como se pretendia. Colocar na predominância dos aspectos físico-territoriais a causa dos fracassos, ou na insuficiência da análise “integrada” ou mesmo na incompetência técnica dos municípios é escamotear o problema real. Pelo contrário, não se pode negar que um dos ganhos do período serfhalino se prende ao maior conhecimento sistematizado dos problemas urbanos brasileiros e ao avanço metodológico no tratamento teórico desses problemas. Assim também, foi significativo o avanço dos municípios no sentido de conseguirem maior controle administrativo e independência financeira relativa através do aumento de suas receitas próprias pela atualização e implantação dos famosos cadastros técnicos municipais. Entretanto, são apenas ganhos secundários, uma vez que somente representam a maximização possível diante da grande fragilidade da comunidade municipal no contexto nacional. Ou seja, a questão da inviabilidade do esforço do SERFHAU não se situa no plano técnico, ainda que possa ter interessado a alguns setores da tecnocracia tentar situar aí um dos ponto-chaves do problema. Na verdade, a disfunção do SERFHAU e a inoperância dos “atores executores” refletia apenas as contradições políticas do sistema montado, que precisava então ser redefinido face ao novo contexto político-econômico do país.
Política urbana nacional – o novo paradigma Como vimos, já em 1967 o Plano Decenal apresentava as bases de uma política urbana nacional. Entretanto, a atuação do SERFHAU, ao se restringir ao planejamento local, pouco avançou no sentido de formular diretrizes para uma política espacial nacional. Talvez por insistir em atuar contra a corrente centralizadora, poder-se-ia dizer que o SERFHAU apenas camuflou os principais problemas uranos do país. Ao se dirigir ao município, quando a decisão de investimentos era cada vez mais centralizada; ao trabalhar principalmente com centros pequenos e 132
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médios, quando o capital e os grandes movimentos migratórios se dirigiam para as metrópoles; ao se preocupar quase que apenas com a feitura dos planos, quando os problemas urgentes exigiam investimentos imediatos e objetivos; ao não conseguir a liderança real da intervenção do Estado no espaço urbano, ficando à margem dos grandes investimentos feitos pelo BNH nas cidades brasileiras, o SERFHAU decreta seu suicídio como organismo central da política urbana brasileira. Entretanto, o problema urbano já havia sido teoricamente incorporado às grandes preocupações nacionais. Quando o Programa de Metas e Bases para a Ação do Governo, preparado às pressas para substituir o PED, foi apresentado ao final de 1970, incluía um capítulo sobre o desenvolvimento regional e urbano, relacionando os projetos prioritários do setor (BRASIL, 1970). Todavia, apesar de definir diretrizes para o Sudeste, Nordeste e Amazônia, propor o desenvolvimento das principais áreas metropolitanas do país, preconizar a integração de programas setoriais dos planos de urbanização, e propor o revigoramento do nível de decisão municipal, tendo como principal instrumento o PAC, ao propor projetos prioritários limita-se ao enfoque setorial e puntual, abrangendo a área de eletrificação, centrais de abastecimento, aeroportos, etc., sem a preocupação de uma integração ao nível do conjunto urbano. De fato, a única medida efetiva ao nível local contida no plano se prende à fixação de normas de aplicação do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) como instrumento de controle para integração vertical dos objetivos do governo federal. Ou seja, já neste período se evidenciava a nova ótica centralizadora do governo, e o problema urbano, até então tratado como matéria integrada horizontalmente, ao nível das cidades, é deslocado para uma perspectiva de tratamento setorial e isolado de aspectos principais segundo uma hierarquia de prioridades integradas verticalmente. Com o I PND - Plano Nacional de Desenvolvimento, o aspecto espacial, regional ou urbano começou a ser visto como elemento integrante das diretrizes econômicas das estratégias de desenvolvimento nacional. Diferentemente dos três planos que o antecederam, o I PND não dedica parte especial ao desenvolvimento urbano e regional. Entretanto, ao explicitar o modelo econômico a ser adotado e em seguida, a estratégia de desenvolvimento, os aspectos espaciais regionais aparecem como elementos integrantes fundamentais. Na parte seguinte, quando da “execução da estratégia”, ao considerar os fatores de expansão - emprego e recursos humanos - as considerações sobre o processo urbano e de metropolização contêm a tônica do raciocínio desenvolvido em torno da “consolidação do Centro-Sul”, sendo exposto como ação fundamental: 133
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[...] instituir as ‘primeiras regiões metropolitanas do país, principalmente para o Grande Rio e o Grande São Paulo, como mecanismo coordenador de atuação dos Governos Federal, Estadual e Municipal, nos programas conjuntos, observadas as respectivas áreas de competência. (BRASIL, 1971)
De fato, apesar da não-definição de metas sob o título de desenvolvimento urbano, o enfoque estava consolidado dentro da própria estratégia econômica de desenvolvimento, dessa forma criando condições para que, no próximo governo, o assunto fosse enfocado de forma mais precisa e objetiva, distanciando-se, entretanto, cada vez mais da perspectiva que orientava a criação do SNPLI. Diante do modelo centralizador e verticalizador a partir dos objetivos nacionais agora claramente explicitados a política serfhalina tornavase anacrônica e conflitante mesmo ao nível do discurso do planejamento. Por outro lado, em 1973, quando o “milagre brasileiro” apresentava sinais de degeneração e quando o processo político começava a se reestruturar de forma reivindicatória e avessa ao governo militar, os problemas da marginalidade social crescente e deseconomias de aglomeração nas grandes metrópoles começavam também a se agravar. A discussão da metropolização ganhava vulto no país, e com ela a perspectiva de solução de um dos problemas fundamentais a ela relacionados: a sua institucionalização, vista como condição sine qua non para qualquer ação de planejamento. Problema não de todo resolvido, a criação das regiões metropolitanas41 levantava também discussões ferrenhas sobre sua autonomia, formação institucional, recursos, etc. Tratava-se de criar uma nova instância de poder , ao nível microrregional, que feria diretamente a já tão enfraquecida autonomia dos municípios. Uma discussão extensa, que foge ao nosso escopo e que esconde questões muito mais importantes. A este respeito, Bahia (1978) coloca a questão com extrema propriedade: Só a redemocratização do país poderá colocar em bases corretas a questão dos órgãos executivos da região metropolitana, os quais reduziriam sensivelmente as autonomias dos municípios componentes. Tal redução de autonomia só seria concebível e aceitável no regime democrático, porque este asseguraria aos conselhos deliberativos poderes e atribuições políticas, enquanto os órgãos executivos teriam de início, provavelmente, caráter gerencial. (BAHIA, 1978) 42
Apesar de previstas na Constituição de 1967, as regiões metropolitanas só foram institucionalizadas em 1973, pela Lei Complementar n° 14. 42 Entretanto, até hoje o que existe de fato, ao nível metropolitano, são organismos de planejamento inteiramente “tecnocratizados” e polarizados pelo governo federal, sem qualquer expressão comunitária. 41
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A busca de solução para o problema metropolitano serviu também a outros objetivos. Ao se atentar para a efetiva fragilidade dos municípios e chamar-se o governo federal para assumir parte das responsabilidades de gestão urbana, criou-se o espaço para a definição da nova política de planejamento urbano, desta feita não mais sob a capa da cooperação técnica com os municípios na solução de seus problemas específicos. Assumia-se finalmente que a importância econômica das áreas urbanas transcendia os interesses municipais, transformando-se em matéria da “segurança e desenvolvimento” nacionais. Na verdade, o processo de urbanização e industrialização, iniciado com o período de substituição de importações e acelerado nos anos 1950, é retomado com força redobrada a partir dos governos militares, modifica substancialmente o enfoque do problema urbano. Cada vez mais, a cidade se torna o palco da produção. A tradicional relação de dominação da cidade pelo campo no Brasil se rompe à medida que o locus da produção se desloca para o espaço urbano. O PIB nacional passou a ser gerado em sua grande maioria nas áreas urbanas e assim as cidades brasileiras não são mais apenas o espaço de vivência de uma classe dominante e de seus servidores imediatos. A cidade é agora também uma “unidade de produção” da maior importância, e é preciso que se cuide de sua administração e eficiência enquanto espaço produtivo. Diante do novo quadro, há que se redefinir a atuação do Estado diante do problema. Ao Estado liberal, preocupado com o simbolismo do espaço urbano onde se concentra a classe dominante e que ratifica sua dominação ideológica, se apõe o Estado burguês moderno, preocupado em atender às crescentes demandas que a concentração populacional gera para a produção. A preconcepção racionalista de espaços adequados à nova realidade burocrata-industrial importada dos países de centro pôde servir às demandas imediatas do capitalismo nas suas formas mais avançadas, mas se mostrou incapaz de responder às necessidades de organização dos espaços gerados pela movimentação difusa de uma população que se situa aparentemente à margem do processo em curso. E, as metrópoles subdesenvolvidas não constituem apenas o espaço onde se aglomeram os setores de ponta da economia são também o espaço onde se concentram setores periféricos ao processo produtivo. Assim, ao lado do pleno desenvolvimento industrial das forças modernas do capitalismo mundial, observa-se cada vez mais intensamente nas metrópoles brasileiras a crescente participação “informal” destas camadas marginais ou periféricas ao sistema central, e por isto mesmo, condição de seu fortalecimento e expansão. 135
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Em outras palavras, as cidades grandes no Brasil, diante do modelo de crescimento econômico experimentado tornam-se cada vez mais “centros de riqueza e focos de pobreza” (BRASIL, 1974). Evidentemente, neste contexto se aguçam as contradições da ação do Estado. Seu papel como fornecedor de serviços de consumo coletivo se amplia consideravelmente, assim como sua tentativa de controle sobre os conflitos sociais crescentes face à distribuição desigual das benesses do desenvolvimento urbano-industrial. Nesta perspectiva, o espaço social urbano é cada vez menos uma totalidade para a ação estatal e apenas os setores mais prementes, face às necessidades da acumulação, vão ganhando importância, com consequente desintegração da atuação do Estado. Paralelamente, a importância crescente das cidades no contexto econômico nacional determinou, ao nível do planejamento urbano, a entrada maciça em cena de novos profissionais, que viam a cidade sob uma nova ótica. Não se trata mais definitivamente de “simplesmente” organizar o espaço segundo uma racionalidade totalizante, que expressa valores socioculturais, mas de buscar soluções imediatas para os problemas que a nova organização socioespacial para a produção trouxe consigo, principalmente os conflitos sociais e deseconomias de aglomeração. A “nova burocracia” que vai tentar promover esta racionalidade é a nova assessoria que substitui definitivamente os artistas e bacharéis na ratificação do Estado burguês que se fortalece com a maturação do capitalismo industrial do qual é importante acionista. Trata-se então de operar a cidade de forma rentável para o capital, e esta é a nova tarefa dos planejadores urbanos, com a qual parecem não querer se conformar. Até 1974, o Ministério do Interior abrigava a política urbana habitacional, sendo que o IPEA, organismo do Ministério do Planejamento , deveria lhe prestar assistência, como era previsto no SNPLI. Entretanto os enfoques do Interior e do Planejamento não pareciam se coadunar. Enquanto o SERFHAU se pautava por um domínio relativo dos planejadores espaciais, arquitetos e engenheiros, o Ministério do Planejamento era sem dúvida alguma o reduto dos economistas, preocupados principalmente com a eficácia econômica do desempenho das cidades enquanto suporte à produção43. Tolosa, em 1972, ao falar sobre uma política nacional de desenvolvimento urbano, salienta que o planejamento urbano no país havia se restringido a dois aspectos: tamanho absoluto das cidades e padrões intra-urbanos de organização espacial. Segundo o autor, dois outros aspectos fundamentais não eram mencionados, quais sejam, a distribuição de frequências de tamanhos de cidades e a distribuição espacial de cidades em um sistema urbano nacional.
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Cabe salientar que, neste período, uma significativa leva de tecnocratas voltava de cursos de pós-graduação nos Estados Unidos onde, a par das grandes discussões sobre os problemas metropolitanos, desenvolviam-se estudos sobre a rede de cidades tentando estabelecer correlações entre o desenvolvimento econômico de um país e a distribuição frequencial dos tamanhos de cidades. Na França, por outro lado, difundia-se a preocupação com uma política de urbanização nacional através da criação de cidades novas e “metrópoles de equilíbrio” que pudessem contrabalançar a extrema primazia de Paris. No Brasil, a economia já não ia tão bem. As altíssimas taxas de crescimento do PIB vinham decrescendo e a insatisfação social vinha aumentando, principalmente nos grandes centros I evidenciada sem contestação nas eleições de 1974. Fazer planos para os frágeis municípios pequenos e médios e investir maciçamente em grandes obras viárias nas regiões metropolitanas já não atendia às necessidades do sistema econômico e político. Não se tratava mais de fazer planos para o desenvolvimento municipal isolado, na maioria inexequíveis pelas diversas razões expostas. O novo objetivo era coordenar os investimentos federais e estaduais cada vez mais significativos nos municípios, seja através de intervenções diretas ou de empresas de serviços altamente centralizadas e com políticas próprias, ou mesmo através das transferências de receitas fiscais, com aplicações previamente determinadas. O SERFHAU, definitivamente falido, transformou-se numa simples carteira do BNH. Por outro lado, todo o sistema de planejamento nacional se reformulava, dando origem à Secretaria de Planejamento da República, velho sonho dos planejadores desde a tentativa de Celso Furtado, inviabilizada no período do governo do Presidente João Goulart e de seu (19621964) Plano Trienal. Neste quadro de transformações, fortalece-se a ideia de criação de um organismo federal forte que assumisse a tarefa que o SERFHAU não conseguiu levar adiante: a definição e efetiva coordenação de uma política urbana nacional. E coordenar a política de investimentos urbanos é tarefa hercúlea, visto que envolve organismos setoriais muito fortalecidos nos últimos anos, que têm políticas próprias que respondem à nova visão dos serviços públicos assumida pela tecnocracia que ascendeu juntamente com os militares. Em oposição ao assistencialismo clientelista do populismo, estes serviços vão se pautar por uma perspectiva empresarial de lucratividade, onde a seletividade da alocação dos recursos não obedece mais a critérios políticos, mas sim 137
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à necessidade de retorno imediato do capital investido. E, sem dúvida, no novo contexto não há lugar para a preocupação local. Cada vez mais, a cidade é uma preocupação que transcende os interesses da comunidade municipal e ganha as esferas do interesse de segurança e desenvolvimento nacionais. A cidade, uma vez convertida em unidade concentrada de produção de bens e de serviços no setor secundário, terciário e quaternário, assemelha-se a uma grande empresa fabril governada como esta à maneira militar hierarquizada, de rala autonomia. Nada mais parecido com uma comunidade militar do que uma empresa produtiva. (BAHIA, 1978)
E cada vez mais as esferas superiores, federal e estadual, assumem partes maiores no tocante à administração urbana. Neste sentido, o planejamento urbano acompanha em sua transformação evolutiva, com atraso, o fortalecimento do poder federal e a centralidade crescente das decisões. Ao abdicar do caráter integral do espaço social urbano em função da maximização setorial, o planejamento está apenas refletindo ou se coadunando com o planejamento econômico global, onde também as dimensões locais e regionais, apesar dos discursos dos planos, foram durante os últimos anos crescentemente esquecidas em função do macro objetivo nacional de acelerar a acumulação do capital nos setores mais modernos, mesmo que isto se desse em regiões “atrasadas”. O discurso do planejamento busca a integração socioeconômica e administrativa com a dimensão espacial enquanto as ações efetivas e os investimentos significativos são cada vez mais puntuais e setorizados. Neste quadro, o próximo passo lógico é a tentativa de uma definição macroeconômica espacial para o país. A necessidade de aumentar a oferta de serviços urbanos passa a ser incompatível com a redução dos conflitos sociais nas cidades, senão através de um autoritarismo crescente e marginalização cada vez maior de amplas parcelas da população que não têm renda para constituir demanda por tais serviços. Assim, a política de serviços imediatos prestados à população das grandes cidades se mostra inócua para resolver os grandes problemas urbanos e metropolitanos. É preciso que se repense a forma de atuação do Estado, tendo como foco principal o problema da crescente concentração metropolitana e, de quebra, englobar a nova discussão da reorganização espacial dos recursos para o desenvolvimento urbano no país, buscando assim uma reorganização espacial da rede de cidades em sua importância funcional. Por outro lado, [...] é preciso que fique bem clara a diferença que existe entre uma política urbanística tradicional - onde apenas determinados aspectos da natureza física da cidade são manipulados - e uma verdadeira política urbana - em que
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os ele mentos sócio-econômicos e físicos são manipulados causalmente, de forma correlacionada. (FRANCISCONI; SOUZA, 1976)
Talvez aqui estivesse implícita uma crítica ao SERFHAU, frequentemente visto como privilegiador dos aspectos físico-urbanísticos intra-urbanos. Entretanto, se analisarmos o discurso do SERFHAU, encontraremos os mesmos elementos de proposta de “ação integrada interdisciplinar”. Pouco se acrescentava, de fato ao discurso do Plano Decenal. Entretanto, se o SERFHAU pretendeu uma ação integrada a partir do município, evidentemente, só poderia fracassar. E também, como não poderia deixar de ser, diante da criação de um novo sistema federal para a promoção do desenvolvimento urbano, as críticas ao antigo organismo passaram a ser numerosas, assim como aos seus supostos aliados, os municípios. A predominância da visão arquitetônica na experiência serfhalina era amplamente criticada pela nova tecnocracia, onde se destacavam os economistas e seus aliados entre outros profissionais, inclusive os novos arquitetos de “vanguarda”. É neste sentido que o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) marcou uma ruptura com o processo anterior de enfoque do problema urbano. Partiu-se para uma tentativa de definição macroespacial de política urbana nacional, onde não mais se pretende montar um sistema a partir da ótica municipal, de baixo para cima, mas onde as grandes definições de investimento - e planejamento - serão tomadas autoritariamente, de cima para baixo, como de resto em todo o sistema econômico e político montado no país. Quanto à concepção de uma política urbana ao nível nacional, Hamilton Tolosa (1978) fala de um “notável avanço” no tratamento dos problemas urbanos brasileiros. De fato, a centralização de poderes e a proliferação de instrumentos de atuação estatal ao nível federal - e ao nível estadual, como seus desmembramentos - exigia uma concepção racional mais abrangente da distribuição espacial dos recursos, segundo os objetivos de “desenvolvimento nacional”. E isto ainda não havia sido feito, apesar de muitas vezes discursado. Francisconi e Souza (1976) apontam algumas consequências do que consideram a “ausência” de uma política de organização do território, coerentemente definida, que possa ser integrada nos mecanismos financeiros e institucionais”, quais sejam: a atomização, a casualidade e o desordenamento das inversões federais e estaduais, orçamentárias e principalmente dos fundos financeiros recém criados ao nível intra-urbano, orientados primordialmente para os grandes centros; a desarticulação entre os estudos e análises nas “faixas pioneiras” e os investimentos e decisões de aplicação de recursos; e finalmente, 139
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o tratamento idêntico dado às diversas regiões metropolitanas, de características tão díspares entre si. É a partir destes elementos que se intenta montar uma “política urbana nacional”, partindo de onde sempre se parte no planejamento brasileiro - da criação de um novo organismo. No caso, tenta-se resolver duas coisas ao mesmo tempo: buscar um organismo federal que assuma a tutela das regiões metropolitanas, ainda sem lugar efetivo no sistema político-financeiro do país, e criar um organismo que possa assumir a coordenação da política nacional (MINAS GERAIS 1978). A Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana (CNPU)44, foi a solução institucional encontrada a partir das alternativas sugeridas. Pensada como uma comissão interministerial, surgiu na verdade bem mais frágil do que se pretendia não sendo um “Conselho de Ministros” (CINTRA; HADDAD, 1978). Tampouco nasceu fortalecida financeira e institucionalmente, capaz de coordenar os fortes organismos setoriais que atuam nas cidades. Mas sem dúvida, sua íntima ligação à Secretaria de Planejamento da Presidência da República lhe conferiu maior poder de barganha. Por outro lado, a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Urbano (FNDU), lhe deu uma capacidade maior de manipulação. Mesmo que os recursos do Fundo fossem pouco substantivos face à capacidade de inversão dos organismos setoriais, e ínfimos diante dos recursos administrados pelo BNH, seu caráter não-rentável, a fundo perdido, lhe confere uma capacidade de multiplicação, que a CNPU soube utilizar no seu programa principal: o Programa Nacional de Cidades de Porte Médio. Entretanto, propunha-se um objetivo muito maior: a coordenação das ações estatais no espaço urbano. Este objetivo parece de difícil consecução, e esta tarefa cabe agora ao CNDU - Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano, organismo criado em maio de 1979; no Ministério do Interior, para suceder à CNPU. Seu sucesso dependerá, a nosso ver, muito mais dos rumos que a política assumir no país do que do discurso tecnocrata.
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A CNPU foi criada pelo Decreto n° 74.156. de 06/06/1974.
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Redes de Informação, grandes organizações e ritmos de modernização1 Leila Christina Dias
As novas redes de telecomunicações – como no passado o telégrafo e o telefone – constituem a resposta contemporânea à necessidade de acelerar a velocidade de circulação dos dados e do saber e engendrariam mesmo, como sugerem certas teses, “o desaparecimento do espaço geográfico”. O encontro entre informática e telecomunicações encontra-se assim no centro dos debates pluridisciplinares que giram em torno de suas capacidades virtuais de criar condições sociais inéditas, de modificar a ordem econômica mundial e de transformar os territórios. Todavia, responder a todas essas interrogações implica no risco de cair em especulações sobre os pretensos efeitos das novas redes de telecomunicações. Para esclarecer a ação das telecomunicações sobre o espaço uma dialética se impõe, que articule a evolução da técnica propriamente dita à sociedade de onde ela emerge. As redes não se inscrevem no vazio, mas em espaços geográficos plenos de história, moldados pelo movimento incessante das disparidades sociais e regionais. A compreensão do papel dessas novas redes exige o recurso a uma mediação que articule mutação técnica e mutação espacial, evitando um verdadeiro “salto mortal” entre as duas instâncias de análise; pensamos tê-la encontrado observando que a utilização das novas redes de telecomunicações pelas grandes organizações econômicas constitui uma condição econômica necessária ao exame das incidências espaciais dessas mesmas redes. A história recente do desenvolvimento das técnicas de informação e de comunicação no interior das organizações econômicas pode ser dividida em duas fases (NORA; MINC, 1978). A primeira começa nos anos sessenta e se estende ao longo da década de setenta. Nesse estágio, como ressalta o relatório Nora-Minc, [...] a informática tinha um estatuto particular no interior das grandes organizações: isolada porque ela se apoiava em máquinas reunidas num mesmo lugar; centralizada, pois ela trazia de volta todas as informações dos usuários; Artigo originalmente publicado nos Anais do 3º Simpósio Nacional de Geografia Urbana, Rio de Janeiro, 1993. p. 53-55. Editado por Tiago Cargnin Gonçalves. Posteriormente, foi publicado no periódico ETC em 1º de julho de 2007, n° 2(1), vol. 1.
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traumatizante enfim, pois ela fornecia um produto acabado após uma operação que tinha todas as aparências da alquimia. (NORA; MINC, 1978, p. 19)
A segunda fase tem início nos anos sessenta e adquire sua especificidade pela introdução dos microcomputadores e pela utilização das redes em tempo real: A unidade central e os arquivos se situam no interior de um complexo sistema cujos pontos de acesso se multiplicam e os terminais cada vez mais numerosos dialogam entre si e com os computadores centrais. (NORA; MINC, 1978, p. 21)
Como cada estágio tecnológico abre novas possibilidades para o acesso à informação, bem como o seu controle, nossa pesquisa vem acompanhando o surgimento de uma terceira fase, inaugurada no final dos anos oitenta e definida pelo aumento na capacidade de análise instantânea dos dados. Isso significa que cada vez mais dados são transformados em informações, tornando-se essenciais à gestão de grandes organizações econômicas. É bem verdade que um fator econômico deu origem a esta evolução, a saber, a espetacular redução dos custos no setor da eletrônica em curso nos últimos anos2. Ao mesmo tempo, os critérios capitalistas de organização da produção, e a busca da redução no tempo da circulação estão na origem de um duplo processo de seletividade: econômica e espacial, que as novas técnicas de informação e de comunicação só farão aumentar. No Brasil, a difusão dos microcomputadores e a criação pela EMBRATEL em 1981 da rede TRANSDATA (Rede Nacional de Comunicação de Dados) permitiram as organizações tomarem pé num campo que ainda lhes escapava – aquele da comunicação instantânea com parceiros extramuros da fábrica ou da sede; em outros termos, a proximidade geográfica não é mais condição indispensável para transmissão instantânea das informações. O objetivo deste trabalho é apresentar algumas conclusões parciais de um projeto de pesquisa em curso sobre as implicações das redes de informação sobre a organização territorial brasileira. Os primeiros estudos identificaram as principais tendências em curso a partir da análise da grandeza e da direção dos “vetores” de informação que ligam as cidades brasileiras, bem como do grau e do ritmo de assimilação das novas redes pelos diferentes setores econômicos. Concluímos que mudança técnica, mudança organizacional e mudança espacial estão articuladas num único conjunto – as firmas não podem conceber uma tecnologia sem articulá-la à organização do trabalho e à organização da produção. Um microprocessador vendido por 20 dólares em 1975 já possuía a mesma capacidade de cálculo de um computador IBM comercializado por 1 milhão de dólares no início dos anos cinquenta. (BRESSAND; DISTLER, 1995, P.37).
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Dando continuidade à pesquisa, procuramos agora: 1) identificar a grandeza e a direção dos “vetores” de informação que articulam as cidades brasileiras nas escalas intra e inter-regionais, começando pela Amazônia; 2) continuar a apreender as possíveis incidências do desenvolvimento conjunto da informática e das telecomunicações sobre a organização do trabalho e sobre a lógica locacional de grandes organizações econômicas instaladas no Brasil. Nesse sentido, os estudos em andamento apontam para algumas conclusões que passaremos a expor. Em primeiro lugar, consideramos importante contestar a ideia de que a contração das distâncias se tornou uma realidade estratégica de consequências econômicas incalculáveis, pois ela corresponde à negação do espaço, e seu corolário de que a localização geográfica pode ter definitivamente perdido seu valor estratégico3. É claro que a aceleração dos ritmos econômicos pela eliminação do “tempo morto”, graças às novas técnicas de informação, diminui as barreiras espaciais. Contudo, associar contração de distâncias à negação do espaço situa-se no plano da utopia, pois se refere mais a uma situação ideal do que à realidade econômica. A análise do caso brasileiro vai de encontro a essa visão de um espaço indiferenciado, reduzido à única noção de distância. Observamos um espaço que se ordena em função de uma nova diferenciação que poderíamos caracterizar como a diferença entre o virtual e o real – a integração de todos os pontos do território pelas novas redes de telecomunicações, sem consideração de distância, só se materializa em função de decisões e estratégias4. A localização geográfica torna-se, ao contrário da visão “Viriliana”, portadora de um valor estratégico ainda mais seletivo. As vantagens locacionais são fortalecidas e os lugares passam a ser cada vez mais diferenciados pelo seu conteúdo – recursos naturais, mão-de-obra, infraestruturas de transporte, energia ou telecomunicações etc. Nesse sentido, a pesquisa concorda com a tese defendida por David Harvey (1992 , p. 267) Quanto menos importantes as barreiras espaciais, tanto maior a sensibilidade do capital às variações do lugar dentro do espaço e tanto maior o incentivo para que os lugares se diferenciem de maneiras atrativas para o capital.
Em segundo lugar, introduzimos a questão da hierarquia urbana. As hierarquias – nacionais e internacionais – são reafirmadas, quando observamos o papel particular de grandes cidades como São Paulo. No Brasil, o espaço teleinformático é fortemente polarizado em torno da metrópole paulista 3 4
Virilio (1977, p. 131). Esta ideia é igualmente defendida por Bressand e Distler (1995). As análises desenvolvidas na França vão na mesma direção; ver Begag, Claisse e Moreau (1990).
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Leila Christina Dias
– nódulo maior de múltiplas redes de infraestrutura de transporte e de telecomunicações, concentrando atividades de comando e de direção. O fortalecimento do papel de São Paulo teve como paralelo um conjunto de mudanças de igual importância na hierarquia urbana em seu conjunto. Por exemplo, a ligação direta e instantânea de algumas localidades da Amazônia com os principais centros econômicos do país tornou desnecessária a mediação anteriormente realizada pelos degraus inferiores da hierarquia urbana. Observamos que a hierarquia urbana interage com a organização do trabalho e com as formas organizacionais de produção das grandes firmas. Ao mesmo tempo em que as técnicas de informação e de comunicação permitem maior controle e gestão centralizada, elas alteram a estrutura do emprego, quer pela mudança nas qualificações, quer pela eliminação de certos quadros médios – por exemplo, pela perda dos “boys de luxo”, que existiam para “informar o chefe”5. Ao mesmo tempo em que os lugares se especializam num processo de divisão territorial do trabalho que vem se acentuando em todo o Brasil, esses mesmos lugares estão cada vez mais submetidos a um controle centralizado em alguns raros pontos do território. Concluímos que novas técnicas e novas formas organizacionais de produção marginalizaram, assim, centros urbanos que tiravam sua força dos laços de proximidade geográfica. Em terceiro lugar, consideramos importante insistir que as redes não vêm arrancar territórios “virgens” de sua letargia, mas se instalam sobre uma realidade complexa que elas vão certamente transformar, mas na qual elas vão igualmente receber a marca; a introdução da teleinformática põe em movimento todo um jogo de interações a partir do qual não é fácil prever as consequências. A comunicação através das novas redes de parceiros econômicos – à montante e à jusante – se acompanha de uma seletividade espacial. Integrando os agentes mais importantes, as redes integram desigualmente os territórios, seguindo o peso das atividades econômicas pré-existentes. Ao mesmo tempo em que a teleinformática permite uma multiplicação de informações processadas, ela tende a agravar as desigualdades favorecendo as áreas mais desenvolvidas. No lugar de abrir os ferrolhos, ela favorece a rigidez e o peso de antigas solidariedades. Em quarto lugar, para todas as organizações econômicas a conexão às redes teleinformáticas é uma etapa no processo de modernização – “permanecer moderna” equivale aqui a reduzir o tempo de circulação em todas as escalas nas quais a organização opera. O ponto crucial é a busca de um ritmo, mundial ou nacional, beneficiando-se de escalas gerais de produtividade, de Segundo depoimento de sócio da Andersen Consulting, em entrevista realizada na cidade do Rio de Janeiro, em junho de 1993.
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circulação e de trocas. A teleinformática aparece como um dos elementos de um novo modo de gestão econômico-territorial, resultante em grande medida de novos limites impostos pelos mercados. Constatamos que a competitividade difere segundo o tipo de atividade; segue-se um volume maior ou menor de investimentos em vista de uma boa articulação, à montante e à jusante, visando reduzir o gasto do tempo.
Referências BEGAG, A.; CLAISSE, G.; MOREAU, P. L’espace des bits: utopies et réalités, Communications et Territoires. Paris: La Documentation Française, 1990. BRESSAND, A. ; DISTLER, C. Le prochain monde – réseaupolis. Paris: Seuil, 1995. HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992. NORA, S.; MINC, A. L’informatisation de la société. Paris: La Documentation Française, 1978. VIRILIO, P. Vitesse et Politique. Paris: Galilée, 1977.
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Teorias socioespaciais: diante de um impasse?1 Geraldo Magela Costa
Introdução: impasse ou incertezas? Textos recentes sobre formas diversas de leitura do espaço urbano e regional têm deixado a impressão de que o conhecimento em relação a este aspecto da realidade passa por um momento de crise. Se esta crise existe, ela não é nova. Começa a se manifestar em fins dos anos oitenta, por meio da descoberta da insuficiência das análises macrossociais em dar conta dos processos socioespaciais em toda a sua complexidade. Em 1987, Christian Topalov (1988) ao escrever sobre a experiência francesa de pesquisa urbana desde 1965, procurou refletir a respeito dessa possível crise nas formas de produção do conhecimento sobre a questão urbana. Para esse autor, a crise se manifestava em três níveis naquele momento: o objeto da pesquisa urbana havia se dissipado, as instituições responsáveis por tais pesquisas se esfacelaram e os conceitos teóricos se esgotaram (TOPALOV, 1988, p. 12). Esse era um momento de reflexão sobre as possibilidades do paradigma de inspiração marxista, especialmente da chamada economia política da urbanização, que havia tido um período relativamente longo de hegemonia em termos de análise urbana. Minha intenção não é rever aqui todo o artigo de Topalov que é uma referência importante para aqueles que se dedicam ao tema, mas registrar aquele momento como marco inicial de uma discussão sobre uma possível crise na produção do conhecimento sobre a questão urbana. A crise, no entender de Topalov, fez com que ressurgissem velhos conceitos e teorias, cuja principal marca era o abandono dos fenômenos macrossociais e o consequente favorecimento do “objeto local”, do “microssocial” e do “cotidiano” (TOPALOV, 1998, p. 23). Suas indagações sobre “em qual direção irão os desenvolvimentos em curso”, continuam até o presente como motivo de discussões e debates. Topalov conclui seu artigo dizendo que parece claro que “os paradigmas que emergiram deste questionamento não adquiriram ainda o alcance e a influência dos precedentes” (TOPALOV, 1988, p. 23). Uma primeira versão desse artigo foi publicada nos Anais do VIII Encontro Nacional da ANPUR (COSTA, 1999). Posteriormente, partes dele foram também incorporadas a dois outros textos: Costa & Costa (2005) e Costa (2005). Foi publicado no periódico ETC em 15 de julho de 2007, n° 2(2), vol. 1
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Após esta pequena síntese caberia formular algumas questões. Haveria de fato uma crise relacionada às formulações teóricas sobre os processos socioespaciais? Esta crise estaria caracterizada principalmente pela inexistência de um paradigma hegemônico? Haveria a necessidade de tal paradigma dominante ou poderíamos ver este momento de questionamento, em que novas e velhas formas de leitura dos processos socioespaciais competem, como rico em novas perspectivas de análise? Pretendo ao longo deste artigo argumentar em torno destas e outras questões relacionadas. Em primeiro lugar, argumento que, havendo ou não a crise, uma situação de incertezas parece persistir ao longo destes dez últimos anos. Um primeiro aspecto desta possível crise refere-se aos questionamentos em torno da suficiência dos paradigmas críticos de orientação estruturalista e marxista em dar resposta à complexidade dos fenômenos socioespaciais urbanos. Com isto, ganharam espaço análises que apresentam visões parciais da realidade, a exemplo das questões relacionadas a raça, gênero, cotidiano, comunidade, etc. Por um lado, estes novos estudos, que são rotulados de pós-estruturalistas por alguns e pós-modernistas por outros, enfocam aspectos relevantes da dinâmica socioespacial que teriam sido esquecidos na perspectiva totalizante e economicista das abordagens estruturalistas. Por outro lado, no entanto, a maioria dessas análises acaba por apresentar resultados particulares, fragmentados e parciais, ou seja, não procuram inserir as questões acima mencionadas em um quadro teórico abrangente dos fenômenos estudados. Mais recentemente, questões relacionadas aos processos de globalização da economia, aos consequentes processos gêmeos de homogeneização e fragmentação socioespacial e às novas formas de organização da produção e de relações de trabalho, têm introduzido novos elementos à discussão da questão socioespacial urbana e regional. Por um lado, estes novos elementos são reais e, portanto, não podem deixar de ser considerados na análise. Por outro lado, no entanto, ao serem considerados como um novo paradigma suficiente para o entendimento dos processos socioespaciais, resultam, na maioria das vezes, em interpretações vagas e parciais. Um exemplo disto são as abordagens de oposição binária entre homogeneização espacial seletiva e fragmentação que colocam esta última como uma inevitável forma de expressão sócio-espacial relacionada ao momento atual do modo desigual de desenvolvimento capitalista. Com isto, a possível situação de incertezas parece aumentar. Harvey (1996) procura refletir em torno dessas incertezas ao discutir o que denomina “possíveis mundos urbanos”. Após constatar a insuficiência tanto do enfoque da “globalização” quanto do de “comunidade”, pergunta: “Se 149
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as linguagens de ‘comunidade’ e de ‘globalização’ devem ambas ser rejeitadas, então para onde ir?” (HARVEY, 1996, p. 429). No campo teórico, Harvey sugere como uma possível resposta a esta pergunta, o conceito de “desenvolvimento geográfico desigual”, que está centrado “nas condições concretas dentro das quais a ação sócio-ecológica é possível e o modo no qual a atividade humana, por sua vez, transforma as condições sócio-ecológicas” (HARVEY, 1996, p. 429). “Como mover-se deste momento puramente discursivo no processo social para os reinos do poder, práticas materiais, instituições, crenças e relações sociais”, Harvey sugere, “é […] onde a prática política começa e a reflexão discursiva termina” (HARVEY, 1996, p. 438). Com isto, percebe-se que mesmo havendo uma proposta teórica de solução para a possível crise, permanece a incerteza em relação a como avançar na direção de uma práxis para a transformação social. Em relação a esta questão as contribuições de Harvey continuam orientadas pelos princípios de justiça social e pela adoção da análise marxista, claramente afirmada e reafirmada em seus trabalhos, em especial na introdução ao The Urban Experience (1989)2. Em seu clássico artigo Social Justice, Postmodernism and the City, por exemplo, Harvey (1992) sugere o planejamento com justiça social e as práticas políticas como caminho a ser perseguido para a supressão do que ele, citando Young (1990), denomina cinco faces da opressão. Apesar de se observarem algumas situações de incertezas, eu sugeriria que isto não caracteriza uma situação de impasse. Ao contrário, a crise tem permitido que se avance na direção de uma abordagem multiparadigmática e transdisciplinar na análise dos processos socioespaciais, além de contribuir para que se avalie empiricamente e de forma mais aprofundada as práticas socioespaciais observadas no Brasil, em especial aquelas relacionadas a novas formas de gestão ao nível local. Acredito que estes novos procedimentos analíticos são de fundamental importância para se avançar no conhecimento dos fenômenos e processos socioespaciais e no questionamento de algumas “certezas” teóricas que tentam explicá-los. Em pesquisa realizada nos anos 1990 (COSTA, 1996, 1998), procurei avançar na direção da produção do conhecimento dos processos socioespaciais e, também, questionar algumas dessas “certezas” teóricas. O objetivo do estudo foi o de entender “novas” formas de urbanização observadas na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) e que estariam expressando consequências, na forma de exclusão socioespacial, do momento atual Em suas próprias palavras: “[…] eu me voltei para a meta-teoria marxista no início dos anos 1970 em parte porque eu a considerava (e ainda considero) o mais poderoso de todos os esquemas explicativos disponíveis. Ele tem a potencialidade […] de captar questões tão diversas quanto formação do ambiente construído e desenho arquitetônico, cultura de rua e micro-política, economia urbana e política assim como o papel da urbanização na rica e complexa geografia histórica do capitalismo” (HARVEY, 1989, p.4).
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de reestruturação produtiva e de inserção econômica global. O caso de uma manifestação urbana no município de Betim, RMBH, que surgiu e cresceu em relação estreita com a implantação e consolidação da planta industrial da Fiat Automóveis, revelou-se apropriado para o objetivo proposto. A hipótese geral para a pesquisa sugeria que, apesar de não haver dúvidas em relação ao caráter de fragmentação e exclusão socioespacial da manifestação urbana em análise, este fato não poderia ser tomado como uma conclusão absoluta, em função de certas particularidades do lugar que poderiam ser mais bem avaliadas por meio da investigação empírica. O suporte teórico para o estudo de caso estava baseado na contribuição de Lefebvre (1979), sobre o confronto entre o espaço abstrato, ou a “externalização de práticas econômicas e políticas que originam com a classe capitalista e o Estado”, e o espaço social, “ou o espaço de valores de uso produzido pela complexa interação de todas as classes na procura da vida cotidiana” (LEFEBVRE, 1979, p. 241). Apesar de os pressupostos teóricos propostos por Lefebvre serem apropriados para a formulação de hipóteses de pesquisa empírica, eles não são suficientes para se proceder a uma avaliação de seus resultados. Daí a importância de certas contribuições teóricas apresentadas por Santos (1996) sobre o potencial do impacto da novidade como fonte de novas descobertas e novos conhecimentos para o indivíduo imigrante e que poderiam levar a práticas emancipadoras. Os moradores da manifestação urbana pesquisada são, em sua maioria, imigrantes pobres e recentes, que começaram a ocupar o lugar somente a partir de meados dos anos setenta. Somando-se esses insights de Santos a outras contribuições teóricas sobre lugar, comunidades e práticas socioespaciais, em especial as de Massey (1994), Harvey (1996) e Castells (1996, 1997), foi possível estruturar uma interpretação para as particularidades dos processos socioespaciais em análise, contribuindo para o seu conhecimento e para realimentar os estudos teóricos que procuram discutir a difícil passagem da teoria para a identificação de possibilidades de práticas de mudança social. A pesquisa domiciliar aplicada permitiu constatar um certo grau de otimismo dos moradores do lugar frente ao novo, apesar da pobreza e da precariedade ambientais do lugar. As conclusões sugerem uma inserção marginal dos moradores do lugar, explicada por um processo de “transferência de renda”, propiciado pela presença da Fiat Automóveis, pela localização próxima a postos de trabalho na RMBH e, talvez o mais importante, pela boa qualidade de serviços urbanos básicos, a exemplo de educação e saúde, em boa parte devida à forma democrática e participativa como vinha
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sendo a gestão municipal de Betim3. Apesar dos avanços obtidos quanto ao conhecimento de formas recentes de urbanização e ao questionamento de “certezas” teóricas, fica clara a necessidade de novos estudos, tanto empíricos quanto teóricos, sobre a questão. O presente artigo pretende avançar em relação a estes últimos.
Tendências teóricas recentes As abordagens teóricas e metodológicas de análise dos processos socioespaciais vêm sendo desenvolvidas por autores americanos em termos de três tendências principais: as análises baseadas na economia política, as interpretações pós-estruturalistas e o que denominam populismo urbano. Com base em Fainstein (1997), farei uma síntese crítica das principais características destas formas de abordagem. 4 Começando com a economia política urbana ou da urbanização, a autora reconhece, de início, que essa não se limita à abordagem de orientação marxista. Haveria também análises que estariam dentro do enfoque de orientação para o mercado. Considerando os argumentos que desenvolvo neste capítulo, adotarei o mesmo procedimento dessa autora ao restringir [...] a definição de análise político-econômica aos esforços de entender desenvolvimento urbano [processos sócio-espaciais, no meu caso] que começam suas explicações com processos econômicos e que criticam os resultados do desenvolvimento capitalista principalmente com base em seus impactos para o welfare de grupos relativamente desprovidos (FAINSTEIN, 1997, p. 19).
Estariam incluídos neste enfoque, de acordo com a autora, os escritos pioneiros de Castells – A questão urbana – e de Harvey – Justiça social e a cidade. Outros textos destes autores e de outros serão considerados mais adiante neste artigo. Fainstein (1997) sugere que o fato de a economia política ter como ponto de partida a base econômica representa ao mesmo tempo vantagens e desvantagens deste tipo de enfoque. Em suas próprias palavras: A mais óbvia deficiência do enfoque da economia política é também a sua grande força – seu ponto de partida na base econômica das cidades. [No processo de] identificar a lógica econômica da urbanização capitalista, a política econômica delineia – eu penso que corretamente – os limites da reforma e os processos recorrentes que continuamente geram desenvolvimento econômico Mais detalhes sobre os resultados desse estudo de caso podem ser encontrados em Costa (1996, 1998). Apesar de o artigo de Fainstein referir-se mais especificamente à análise do espaço urbano, seu esquema classificatório pode perfeitamente ser útil para uma abordagem ampliada dos processos socioespaciais.
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desigual, subordinação e insegurança. Mas o favorecimento do econômico na corrente de explicação causal leva a um freqüente cálculo mecânico de interesses reais, assim como à negação da validade de percepções subjetivas que orientam o comportamento humano (FAINSTEIN, 1997, p. 23).
Gottdiener (1985) também oferece uma boa contribuição a esta discussão sobre o potencial e os limites da economia política da urbanização. Sua argumentação está principalmente no fato de que a ênfase que a economia política dá aos processos de produção do ambiente construído e à circulação do capital é essencialmente econômica, desconsiderando a importância da dimensão espacial para a análise dos fenômenos urbanos. Este reconhecimento de limites do enfoque da economia política é muito importante como contribuição para a discussão das incertezas hoje observadas na produção do conhecimento teórico sobre os processos socioespaciais. Por um lado, não tenho dúvidas de que tal enfoque tem poder explicativo, o que o torna imprescindível à análise dos processos socioespaciais. Por outro lado, no entanto, não se pode esquecer que ele apresenta os limites acima mencionados. A questão é saber se é possível manter o enfoque da economia política, procurando inserir e acomodar os insights de outras formas correntes de análise de processos socioespaciais. O enfoque pós-estruturalista, que ganhou espaço nos últimos anos, não constitui por si só resposta às incertezas aqui discutidas. Concordo com Fainstein (1997, p. 25-26), que apresenta de forma muito clara sua crítica a respeito da insuficiência deste enfoque: “Pós-estruturalismo”, ela afirma, “é um termo impreciso que abarca uma variedade de formulações que enfatizam contingência sobre estrutura no processo de explicar resultados” e que, portanto, resulta em explicações reducionistas. Continuando em sua conceituação do enfoque, a autora diz que A cultura mais do que a economia torna-se origem de identidade política no pensamento pós-estruturalista. Os indivíduos existem como membros de grupos sócio-culturais dos quais eles obtêm suas identidades, derivam seu welfare e constróem estratégias de resistência e ações objetivas. (Fainstein, 1997, p. 27)
A que acrescento, de caráter intencional. Nesta categoria de pós-estruturalismo estão incluídas as análises de comunidades, de identidade socioespacial, do cotidiano, bem como os estudos não necessariamente urbanos ou regionais a respeito de gênero, raça e cultura em geral. Numa avaliação sintética deste tipo de análise, Fainstein escreve: “De fato, no seu esforço para transcender o reducionismo econômico marxista, os pós-estruturalistas parecem ter abandonado tanto a análise econômica quanto o reco153
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nhecimento dos interesses de classe” (FAINSTEIN, 1997, p. 28). Além disso, e levando em consideração os aspectos socioespaciais e políticos da questão, o pós-estruturalismo, [...] por defender a identificação de grupos e simultaneamente se opor à segregação espacial, (…) endossa uma situação em que antagonismos são abertamente expressos e podem facilmente resultar não no crescente entendimento do Outro, mas em ciclos de ações hostis e vingança (FAINSTEIN, 1997, p. 30).
Pode parecer, com essas colocações, que o pós-estruturalismo é um total equívoco. Harvey (1996) também demonstra suas preocupações em relação à forma generalizada como as análises baseadas neste tipo de enfoque têm crescido. Em suas próprias palavras: […] a influência proliferante do que são vagamente denominados ‘pósestruturalista’ e ‘pós-modernista’ modos de pensar e de escrever, torna particularmente difícil nos dias atuais encontrar algo tão mundano quanto uma linguagem comum para expressão, particularmente na academia” (HARVEY, 1996, p. 14).
De fato, os textos hoje produzidos sobre o urbano e os processos socioespaciais, perderam a linguagem comum de um paradigma dominante, que permitia um melhor entendimento de conceitos utilizados. A Torre de Babel que se instalou nos últimos anos, no entanto, não significa, no meu entender, um retrocesso na produção do conhecimento sobre os processos socioespaciais. Ao contrário, pode-se pensar positivamente no sentido de que este momento de incertezas pode ser também um momento de criatividade em termos de proposições de avanços de transformação social. Pode significar o fim de um período um tanto cômodo, propiciado pelo enfoque marxista de análise, em que os claros e, acredito, verdadeiros esquemas analíticos baseados na lógica da acumulação e do desenvolvimento capitalista pareciam ser suficientes para fornecer todo o suporte explicativo para a desigualdade socioespacial, mas que deixavam em aberto as formas de se avançar da teoria para a ação transformadora. Não estou com isto dizendo que o enfoque pós-estruturalista seria capaz de tal façanha. Ao contrário, os comentários acima realizados mostram que a forma fragmentada daqueles tipos de análises leva à proposição de formas parciais e às vezes equivocadas de ação e de luta. Por último, o populismo urbano que caracteriza um tipo de enfoque analítico em que democracia e direitos individuais são valores centrais. Trata-se de um enfoque que prioriza as preferências da população, significando que ele existe mais em termos de prática do que em teoria. De acordo com Fainstein (1997,
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p. 31), “o populismo urbano compartilha os mesmos objetivos igualitários dos economistas políticos”. A diferença estaria em que os autores e ativistas do populismo urbano “raramente se engajam em sofisticadas análises da estrutura econômica e tendem a ver a riqueza nascendo do poder, mais do que viceversa”. A principal vulnerabilidade deste tipo de teoria de direitos, Fainstein afirma, “está no seu fracasso em situar a fonte de direitos individuais, a não ser na forma de uma intuição aparentemente natural que é o comportamento ético” (FAINSTEIN, 1997, p. 31). Poder-se-ia, portanto, afirmar que não se trata exatamente de uma teoria, mas de uma crença em certos princípios e direitos baseados na ética da democracia liberal. Em uma breve síntese, poder-se-ia dizer que os três enfoques economia política, pós-estruturalismo e populismo urbano estariam respectivamente ligados aos conceitos de igualdade, diversidade e democracia (ver FAINSTEIN, 1997, p. 33). Não seria então possível a unificação de contribuições relacionadas aos três enfoques? A proposição não é nova. Ela vem sendo mencionada repetidas vezes como uma saída para a possível crise na produção do conhecimento. Fainstein sugere que a reconciliação desses valores em sociedades divididas por classe e sentimentos comunitários representa um grande desafio para qualquer agenda relacionada ao pensamento da esquerda, apesar de todos os três enfoques serem inerentes ao conceito de justiça social (FAINSTEIN, 1997, p.33, 38). Pensando no caso brasileiro, poder-se-ia afirmar que as análises de planejadores e de propositores de políticas urbanas de algumas administrações locais progressistas tentam buscar este tipo de junção de enfoques. As proposições sobre as necessidades de se levar em consideração a função social da terra urbana, por exemplo, mesmo sendo fundamentalmente orientadas pelo enfoque da economia política, estão certamente também baseadas nos princípios da ética e da justiça social. Estariam essas dificuldades e esses desafios caracterizando um momento de crise no avanço do conhecimento sobre os processos socioespaciais? Acredito que para alguns, a crise não existe. Seriam aqueles que passaram ao largo dos avanços teóricos a partir dos anos sessenta em relação a esta questão, a exemplo dos positivistas. Para estes, talvez tenha havido somente uma maior complexidade na construção de modelos e fórmulas, exigindo a introdução de novas variáveis e de técnicas mais avançadas de cálculos, propiciadas pelas descobertas da ciência computacional. O impasse talvez também não exista para aqueles marxistas ortodoxos que acreditam unicamente no determinismo econômico na realidade do mundo capitalista. Ou ainda, o impasse não existe 155
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para os que se dedicam às narrativas históricas5. Acredito que a crise ou o impasse está mais claramente presente nos textos de certos autores que acreditam no potencial da produção do conhecimento para o processo de mudança social. Ou seja, aqueles autores que colocam o socialismo, como um projeto político. É este aspecto da questão que dá a ideia de uma crise ou de incertezas. No campo teórico, a crise estaria relacionada à difícil passagem da filosofia para a ciência ou da filosofia para o pensamento filosófico, nos dizeres de Lefebvre em alguma parte de sua vasta obra sobre a produção do espaço. Outras dificuldades estariam na subsequente fase de passar de formulações teórico-científicas concretas para as propostas de práticas de mudanças sociais. Passagens da obra de Harvey mostram sua visão destas dificuldades. Não obstante afirme que o [...] socialismo tem que ser entendido como um projeto político, uma visão alternativa de como a sociedade funcionará, como as relações sócio-ecológicas se desdobrarão, como as potencialidades humanas podem ser realizadas mesmo que dentro de uma geografia da diferença”, (HARVEY, 1996, p. 433)
Reconhece, também, como é difícil concretizar práticas que levem a este tipo de transformação social, quando escreve: “A dificuldade é, como sempre, encontrar tanto a retórica quanto os meios tangíveis para colocar juntas forças opositoras divergentes engajadas na luta anticapitalista”. (HARVEY, 1996, p. 433) Para outros autores, como Soja, as dificuldades estariam relacionadas ao reconhecimento de um novo status ontológico para espaço na busca do conhecimento dos processos socioespaciais. Isto está expresso tanto em sua discussão sobre a dialética socioespacial (SOJA, 1989), quanto em Thirdspace (SOJA, 1997). Discutindo a dialética socioespacial, por meio da contribuição de autores como Castells, Mandel e, principalmente Lefebvre, Soja oferece boa contribuição ao avanço do conhecimento em relação aos processos espaciais. Suas reflexões sobre a importância do espaço enquanto uma dimensão comparável a outras como as forças produtivas e as relações sociais da sociedade, são bem elaboradas. Em Terceiro Espaço (Thirdspace), no entanto, sua tentativa de avançar para além daquela visão dialética, sugerindo uma “trialética” a ser explorada entre espacialidade-historicidade-sociabilidade, não representou avanços. Além disso, em Thirdspace Soja sugere que estaria, a exemplo de Lefebvre, trabalhando no campo de uma metafilosofia, onde o prefixo meta teria mais o sentido de além (beyond) do que de depois (after). No entanto, o que se observa é que Soja, na tentativa de De acordo com Escobar (1995, citando Haraway, 1989 e 1991), “narrativas não são nem ficção nem opostas a “fatos”. Narrativas são, de fato, texturas tecidas de fato e ficção”. Continuando, Escobar afirma que “Mesmo os mais neutros domínios científicos são narrativas nesse sentido” (1995, p. 19). Ainda mencionando Haraway, Escobar defende a ideia de que tratar a ciência como narrativa não é ser superficial.
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propor um novo status ontológico para espaço, permanece atado à epistemologia vigente, sem perspectivas de avanços significativos. Portanto, se Soja reconhece a existência de uma crise, eu estou sugerindo que sua última análise sobre a “trialética” não traz contribuições significativas para a sua superação. O termo sugere menos um conceito e mais um rótulo, portanto sem o conteúdo científico e teórico necessário ao avanço do conhecimento sobre os processos socioespaciais.
A contribuição de Henri Lefebvre Se Lefebvre ainda estivesse vivo e se perguntado se existe uma crise na produção do conhecimento dos processos sócio-espaciais, sua resposta talvez fosse não. Seus vários espaços às vezes dão origem a certa confusão para o leitor6. A complexidade de sua obra é também mencionada como de difícil assimilação, mas ao mesmo tempo com um grande potencial para o avanço do conhecimento teórico-científico. As palavras de Kofman e Elizabeth (1996) na introdução à sua tradução para o inglês de vários textos de Lefebvre sobre a cidade (Writings on Cities), revelam esta dupla percepção em relação à sua obra: “Ser Lefebvriano, tem que ser dito, é mais uma sensibilidade do que um sistema fechado; e de fato, muitos têm achado seus insights teóricos difíceis de serem aplicados devido à fluidez, dinâmica e abertura de seu pensamento” (KOFMAN; LEBAS, 1996, p. 8). A essência de sua reflexão sobre produção do espaço, no entanto, é bastante clara e coerente ao longo de todos estes vários anos em que ele se dedicou à análise desta questão, apesar das dificuldades que às vezes o leitor encontra em ver com clareza sua proposta de uma teoria única para espaço. “O projeto que estou esboçando”, escreve Lefebvre (1993, p. 16), “[…] não objetiva produzir um (ou o) discurso de espaço, mas sim expor a real produção do espaço por um processo de trazer os vários tipos de espaço e as formas de suas origens, juntos em uma teoria única”. Para isto, o autor sugere que é necessário destruir os códigos existentes sobre a análise do espaço, principalmente aqueles dos especialistas. No meu entender, a característica mais significativa deste seu projeto está no uso do método dialético. Nas palavras do autor: A mudança que estou propondo em orientação analítica em relação ao trabalho de especialistas nesta área precisa agora estar clara: ao invés de enfatizar os aspectos rigorosamente formais de códigos, eu estarei ao contrário dando ênfase ao seu caráter dialético (LEFEBVRE, 1993, p. 17,18).
Ver, por exemplo, menção aos vários tipos de espaço contidos no livro The Production of Space, no artigo de Dear (1997), sobre a questão pós-moderna.
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Kofman e Lebas (1996, p. 10) também comentam esta importante característica da obra de Lefebvre: “O dialético, ele [Lefebvre] comenta, é freqüentemente obstruído por metáforas”. Acredito que obstruções são também introduzidas, de forma involuntária talvez, por meio de certas tentativas de se criarem categorias analíticas a partir da contribuição teórica de Lefebvre sobre a produção do espaço. Leituras recentes da sua obra (SOJA, 1997; MERRIFIELD, 1998; MADANIPOUR, 1996; DEAR, 1997 e até mesmo HARVEY, 1989) em algumas passagens terminam por empobrecer a sua contribuição na medida em que tentam, dentro da racionalidade, construir categorias de espaços, que certamente não era a intenção de Lefebvre ao enumerar os tipos de espaço que ele usa com o objetivo de construir, por meio da argumentação dialética, uma teoria única sobre a produção do espaço. Com isto, estaria perdida, no meu entender, a principal força da contribuição de Lefebvre ao avanço do conhecimento dos processos socioespaciais. Dentro deste seu projeto, Lefebvre tenta trabalhar com as duas passagens que consideramos aqui como sujeitas à existência de possíveis crises ou incertezas: da filosofia para as formulações teóricas concretas e da teoria para a possibilidade da prática. Em relação à primeira, Lefebvre certamente deu boas contribuições no sentido de se avançar na produção do conhecimento do espaço e sua produção. A passagem da filosofia para proposições teóricas concretas não significa, no entanto, sua descrença no pensamento filosófico. Como Kofman e Lebas (1996, p. 44) afirmam, Lefebvre sempre disse “morte à filosofia, vida longa ao pensamento filosófico”.7 Sua preocupação com o senso da totalidade faz com ele esteja sempre apegado ao pensamento filosófico. De acordo com Lefebvre (KOFMAN; LEBAS, 1996, p. 175) os [...] conhecimentos parcial e fragmentário pretenderam ter encontrado certezas e realidades, mas somente comunicaram fragmentos”. Nestas leituras parciais estariam incluídas as descrições fenomenológicas da vida urbana e as reconstituições semiológicas da realidade urbana (LEFEBVRE, 1993, p. 92).
Por outro lado, Lefebvre também critica a pretensão de certos filósofos que procuram expressar uma filosofia da cidade, por meio da extensão de conceitos da filosofia tradicional, tais como “essência” da cidade, ou cidade como “espírito”, como “vida”, etc. Nesta perspectiva, Lefebvre afirma: “Conceitos filosóficos não são operativos, mesmo que eles situem a cidade e o urbano – e toda a sociedade – como uma totalidade acima e por cima de fragmentações analíticas” (LEFEBVRE, 1993, 93). 7
Em inglês: “death to philosophy, long live philosophical thinking”.
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Em um primeiro momento, Lefebvre (1993, p. 11) diz que a “teoria unitária” sobre espaço que procura apresentar, tem como objetivo “descobrir ou construir uma unidade teórica entre ‘campos’ que são apreendidos separadamente, da mesma forma que forças molecular, eletromagnética e gravitacional são em física”. Para o caso do espaço, estes “campos” seriam, “primeiro, o físico – natureza, o Cosmos; segundo, o mental, incluindo abstrações lógicas e formais; e terceiro, o social” (ênfases do original). Concordo com Soja (1996, p. 62, ênfases no original) quando sugere que nesta primeira tríade apresentada por Lefebvre, o espaço social tem duas diferentes qualidades. “Ele é ao mesmo tempo um campo separável, distinguível de espaço físico e espaço mental, e/ também uma aproximação para um modo abrangente de pensamento espacial”. De fato, esta aparente dupla conceituação de espaço social está presente ao longo de todo o texto de Lefebvre sobre produção do espaço. Essa proposta de quebra de códigos antigos e/ou específicos relacionados ao espaço é o primeiro passo do autor na construção de uma teoria unitária de espaço, na qual o conceito de espaço social é ao mesmo tempo distinguível de outros espaços (físico e mental) e uma composição transcendente de todos espaços (SOJA, 1996, p. 62). Lefebvre (1993) diz, no entanto, que a sua intenção não é a de elaborar uma teoria crítica. Em suas próprias palavras: “A substituição de uma utopia tecnológica dominante por uma utopia negativa e crítica já não é mais suficiente. Teoria crítica, depois de ter sido usada como oposição prática, (…) teve os seus dias” (LEFEBVRE, 1993, p. 25).8 Continuando, Lefebvre afirma que ”[...] é muito tarde para se destruir códigos em nome de uma teoria crítica”. Ao invés disso ele se propõe a descrever a já completa destruição daqueles códigos, “para medir seus efeitos, e (talvez) construir um novo código por meio de um ‘supercódigo’ teórico” (LEFEBVRE, 1993, p. 26). Sua proposta não é a de procurar um substituto para uma tendência dominante, mas reverter tal tendência. Está nesta passagem do livro de Lefebvre um ponto central de sua contribuição teórica, quando apresenta a sua proposta: Como tentarei […] mostrar, mesmo que uma prova absoluta seja impossível, tal reversão ou inversão consistiria como no tempo de Marx em um movimento de produtos (estudados em geral ou em particular, descritos ou enumerados) para produção (LEFEBVRE, 1993, p. 26, ênfases no original).
Ou seja, está expressa nesta citação a intenção do autor de dar ênfase a processos na construção de sua teoria sobre a produção do espaço. Para ele “espaço (social) é um produto (social)” (LEFEBVRE, 1993, p. 26, ênfases no Importante notar que esta avaliação da teoria crítica foi feita por Lefebvre em 1974, quando a versão original de A produção do espaço foi escrita em francês (La production de l’espace). No meu entendimento, no entanto, A produção do espaço é uma teoria crítica, como se verá ao longo desse artigo.
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original), numa afirmação que o próprio autor reconhece ser tautológica e óbvia, mas que deve ser examinada com cuidado. Neste exame, Lefebvre, além de procurar avançar em sua formulação teórica sobre a produção do espaço, dá os passos iniciais no sentido de entender a segunda passagem que menciono neste artigo, ou seja, da construção teórica para as propostas de práticas de mudança socioespacial. Começando o exame de sua afirmação Lefebvre escreve: Muitos acharão difícil endossar a noção de que espaço tem assumido, dentro do presente modo de produção, dentro da sociedade como ela realmente é, um tipo de realidade própria, uma realidade claramente distinta, ainda que muito semelhante, àquelas assumidas no mesmo processo global por mercadorias, dinheiro e capital. (LEFEBVRE, 1993, p. 26)
Além de ser um meio de produção, o autor afirma, mais adiante, o espaço é também “um meio de controle, e, portanto, de dominação, de poder”. Apesar deste seu poder político, Lefebvre adverte que, como tal, espaço escapa em parte daqueles que fazem uso dele. Ele escreve: As forças sociais e políticas (Estado) que geraram este espaço agora procuram, mas falham, dominá-lo completamente; o próprio agente que forçou a realidade espacial na direção de um tipo de autonomia incontrolável agora se esforça para subjugá-lo e, então, algemá-lo e escravizá-lo (LEFEBVRE, 1993, p. 26).
Na relação entre as forças geradoras deste espaço e a dinâmica social que impede o seu domínio completo, o autor constrói sua teoria de práticas socioespaciais, que procurarei desenvolver mais adiante neste artigo. No momento, considero que a discussão sobre o espaço enquanto um produto social deve passar por algumas perguntas e respostas elaboradas por Lefebvre como forma de continuar a sua busca teórica. São elas: Este espaço, é um espaço abstrato? Sim, mas ele é também “real” no sentido em que abstrações concretas tais como mercadorias e dinheiros são reais. Então ele é concreto? Sim, porém não no sentido em que um objeto ou produto é concreto. Ele é instrumental? Sem dúvida, mas como conhecimento, ele vai além de instrumentalidade. (LEFEBVRE, 1993, p.27)
O autor então propõe o envolvimento de novas ideias para se avançar nesta construção teórica. Para isto ele introduz a ideia de uma diversidade ou multiplicidade de espaços diferente daquela que resulta da segmentação e cortes de espaço ad infinitum. Sua proposta de inserir esta nova forma de multiplicidade de espaço no contexto histórico mostra, mais uma vez, sua preocupação com processos mais do que com stasis. Com isto, Lefebvre afirma: 160
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O espaço social será revelado em suas particularidades à medida que deixa de ser indistinto do espaço mental (como definido pelos filósofos e matemáticos) de um lado, e do espaço físico (como definido pela atividade prático-sensorial e a percepção da “natureza”) de outro lado. O que estarei procurando demonstrar é que tal espaço social não é constituído nem por uma coleção de coisas ou um agregado de dados (sensoriais), nem por um vazio embrulhado como um pacote com vários conteúdos, e que é irredutível a uma “forma” imposta sobre fenômenos, sobre coisas, sobre a materialidade física. (LEFEBVRE, 1993, p.27)
Portanto, quando Lefebvre decodifica espaço em prática espacial (espaço percebido), representações de espaço (espaço concebido) e espaço de representações9 (espaço vivido), sua intenção não é a de criar uma categorização fragmentadora do todo espacial, mas sim procurar entender as relações entre uma nova multiplicidade de espaços que integram o espaço social, com suas particularidades e dinâmicas próprias, que não podem ser considerados de forma isolada, mas em um relação dialética que está na base de sua proposta teórica sobre o processo de produção do espaço. Lefebvre (1993, p. 38) procura especificar o seu entendimento de cada um desses espaços. Começando com prática espacial, sugere que ela “incorpora uma associação estreita, dentro do espaço percebido, entre a realidade diária (rotina diária) e a realidade urbana (as rotas e redes que ligam lugares reservados para trabalho, vida ‘privada’ e lazer)”. De acordo com Harvey (1989, p. 261), tratam-se de práticas espaciais materiais, uma vez que incorporam os fluxos físicos e materiais, transferências e interações que ocorrem no e através do espaço para assegurar produção e reprodução social. Representações do espaço, ou espaço concebido, por sua vez, constitui o “espaço dos cientistas, planejadores, urbanistas, tecnocratas e engenheiros sociais”, um espaço que tende a ser verbalizado; enquanto o espaço de representações, seria aquele “diretamente vivido através de suas imagens e símbolos associados […], o espaço que a imaginação procura mudar e apropriar” (LEFEBVRE, 1993, p. 39). Este último tende a ser não verbalizado. As relações dialéticas entre estes “três momentos do espaço social” (SOJA, 1996, p. 65) são vistas por Lefebvre como o fulcro de uma tensão “através da qual a história das práticas espaciais pode ser lida” (HARVEY, 1989, p. 261). Novamente de acordo com Harvey (1989, p. 261-263), qualquer tentativa de analisar estas relações supondo que as práticas espaciais determinam diretamente as outras duas dimensões – representações de espaço e espaços de represen“Espaço de representações” é uma tradução da expressão utilizada por Harvey (1989) e Soja (1996), “spaces of representations”, que eles consideram mais apropriada do que “representational spaces”, utilizada na versão para o inglês de Lefebvre (1993).
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tação – seria equivocada. Citando uma passagem de Marx em O capital que diz: “O que distingue o pior dos arquitetos da melhor das abelhas é que o arquiteto ergue sua estrutura na imaginação antes de ergue-la na realidade” (Capital, vol. 1, p. 178), Harvey (1989, p. 262-263) afirma: “Os espaços de representação, portanto, têm o potencial não somente de afetar a representação de espaço, mas também de agir como força produtiva material em relação a práticas espaciais”. Por um lado, concordo com Harvey quando diz que mesmo com este tipo de interpretação, a proposição de relações entre as três dimensões de espaço social de Lefebvre ainda permanece muito vaga. Por outro lado, no entanto, insistir em criar, a partir destas três dimensões, um esquema fechado de análise dos processos socioespaciais teria, no meu entendimento, o risco de volta aos esquemas fragmentários de análise do espaço, que Lefebvre tentou destruir. Lefebvre procura, com sua proposição de análise de relações dialéticas entre os componentes da “tríade”, uma forma de não cair em teorias de oposições binárias ou em dualismos, que pouco ou quase nada tem a contribuir para o avanço do conhecimento. Por último, e talvez mais importante para a discussão de processos socioespaciais, caberia a pergunta: a dimensão espacial é realmente importante quando se procura avançar nas formas de conhecimento da realidade social com o objetivo de transformá-la? Em uma passagem de A Produção do Espaço, Lefebvre (1993) faz a seguinte observação a este respeito: “Do ponto de vista do conhecimento (connaissance), espaço social funciona (junto com seu conceito) como uma ferramenta para a análise da sociedade”. O autor sugere que aceitar isto significa eliminar imediatamente “o modelo simplista de um-para-um ou a “pontual” correspondência entre ações sociais e localizações sociais, entre funções espaciais e formas espaciais”, um esquema estrutural que, “continua freqüente em nossa consciência e conhecimento (savoir)” (1993, p. 34, destaque no original). A análise torna-se certamente mais simples quando se pensa não em espaço social, com toda a sua complexidade e dimensões, mas em espaço (ambiente) construído. Esta tem sido a perspectiva da economia política da urbanização. Sua contribuição tem sido valiosa ao longo de todos estes anos de análise marxista da questão urbana, mas seu enfoque espacial se limita às práticas espaciais (espaço percebido), deixando de lado as duas outras dimensões de espaço social anteriormente mencionadas. A teoria de Lefebvre além de permitir uma visão de processo, leva em consideração todas dimensões do espaço social, com suas relações complexas. No entanto, fica ainda a dúvida quanto ao sucesso ou não de Lefebvre em especificar claramente um novo status ontológico para o espaço, como 162
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sugerem, por exemplo, Soja (1989, 1996) e Dear (1997). Lefebvre (1993) enfatiza de fato este novo status do espaço quando escreve: Embora [seja] um produto para ser usado, para ser consumido, [ espaço] é também um meio de produção; redes de troca e fluxos de matéria prima e energia, moldam o espaço e são determinados por ele. Portanto este meio de produção, assim produzido, não pode ser separado das forças produtivas, incluindo tecnologia e conhecimento, ou da divisão social do trabalho que lhe dá forma, ou do estado e das superestruturas da sociedade (LEFEBVRE, 1993, p. 85, ênfases no original).
O autor repete este seu argumento em outras partes de sua obra, em especial em um pequeno artigo (LEFEBVRE, 1979), que foi exaustivamente explorado por Gottdiener (1985). Em uma passagem deste artigo Lefebvre afirma que O arranjo espacial de uma cidade, uma região, uma nação ou um continente, aumenta as forças produtivas, da mesma forma que equipamento e máquinas em uma fábrica ou em um negócio, mas a um outro nível. Usa-se espaço da mesma forma que se usa uma máquina (LEFEBVRE, 1979, p. 288).
Por um lado, estas afirmações sugerem avanços na forma de se pensar o espaço, uma vez que lhe dá um novo status, comparável ao das forças produtivas. Por outro lado, no entanto, tais afirmações identificam-se com textos da economia política da urbanização, que tão somente enfatizam o papel do ambiente construído para o processo de acumulação capitalista, sem desenvolver de fato uma teoria de produção do espaço. No entanto, a contribuição de Lefebvre para o entendimento de processos socioespaciais não pode ser avaliada por meio de passagens isoladas. Sua discussão sobre a dialética entre valor de troca e valor de uso do espaço, por exemplo, leva a avanços ainda mais significativos na análise dos processos socioespaciais. Para se entender esta discussão, é necessário rever as reflexões do autor sobre as contradições do/no espaço. Um primeiro conceito importante para isto, é o de espaço absoluto. “Espaço absoluto”, escreve Lefebvre (1993, p. 48, ênfases no original), “religioso e político em caráter, foi um produto dos vínculos de consanguinidade, terra e linguagem, mas dele desenvolveuse um espaço que era relativizado e histórico”, um espaço com origem na antiguidade. Não que o “espaço absoluto tenha desaparecido no processo; ao contrário ele sobreviveu como fundação do espaço histórico e base de espaços de representação (simbolismos religiosos, mágicos e políticos)”. Um espaço da acumulação, o espaço abstrato, começa a se sobrepor ao espaço absoluto na passagem para o capitalismo. Nas palavras do autor:
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Foi durante este tempo que a atividade produtiva (trabalho) deixou de ser parte integrante do processo de reprodução que perpetuava a vida social; mas, ao tornar-se independente daquele processo, o trabalho torna-se presa da abstração, por isso trabalho social abstrato – e espaço abstrato (LEFEBVRE, 1993, p. 49, ênfase no original).
Este espaço abstrato abriga, principalmente, além de velhas contradições que permaneceram ao longo da história, novas contradições relacionadas ao novo modo de produção. Estas contradições estariam expressas no [...] confronto entre espaço abstrato, ou a externalização de práticas econômicas e políticas que originam com a classe capitalista e o estado; e espaço social, ou espaço de valores de uso produzido pela complexa interação de todas as classes na procura da vida cotidiana (GOTTDIENER, 1985, p. 127).
Este tipo de enfoque, que introduz a dimensão política da questão, constitui um aspecto importante de diferenciação da análise de Lefebvre daquela da economia política tradicional. Esta, ao considerar, por exemplo, a imprescindível participação do Estado na produção do ambiente construído, não introduz de fato a dimensão política da questão, mas tão somente inclui o nível da superestrutura de um esquema de análise em que o econômico é determinante. Importante para a continuidade desta segunda passagem na abordagem dos processos socioespaciais - ou seja, das formulações teóricas para a análise de possíveis práticas de mudanças sociais – é o conceito de espaço diferencial. Este espaço é germinado a partir das contradições inerentes ao espaço abstrato. De acordo com Lefebvre (1979, p. 290, ênfases no original), por causa “dessas contradições, nós nos defrontamos com um fenômeno extraordinário, pouco notado: a explosão de espaços. Nem o capitalismo nem o Estado podem manter o caótico, contraditório espaço que eles produziram”. Daí a explosão de espaços em todos os níveis, do lugar ao internacional, passando pelos níveis das cidades e das regiões. O autor desenvolve seu raciocínio da seguinte forma: “A reprodução das relações sociais de produção dentro deste espaço [abstrato] obedece inevitavelmente a duas tendências: a dissolução de velhas relações de um lado e a geração de novas relações de outro lado”. Com isto, o [...] espaço abstrato contém dentro de si mesmo as sementes de um novo tipo de espaço. Chamarei este novo espaço de “espaço diferencial”, porque, na medida em que espaço abstrato tende para a homogeneidade, para a eliminação de diferenças ou peculiaridades existentes, um novo espaço não pode nascer a não ser que ele acentue diferenças (LEFEBVRE, 1993, p. 52).
Tais diferenças, no entanto, não estão baseadas em particularidades ou individualismos; elas emergem da luta, conceitual e vivida. Em termos socioespaciais poder-se-ia traduzir este processo na forma de uma luta que procura 164
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manter ou resgatar o valor de uso do espaço da tendência de transformá-lo acentuando o seu valor de troca. Este processo, que não pode ser visto de forma separada da luta política, está relacionado à ideia de direitos associados com diferença inscrita na igualdade, como forma de concretizar democracia e socialismo (KOFMAN; LEBAS, 1996, p. 26-27, comentando Lefebvre). Refletindo sobre a questão da dimensão política de sua análise, Lefebvre (1993, p. 60) se pergunta: “Estamos falando de um projeto político?” E responde: “Sim e não. Ele certamente incorpora uma política do espaço, mas ao mesmo tempo vai além da política uma vez que ele pressupõe uma análise crítica de toda política espacial assim como de toda política em geral”.10 No meu entender, os argumentos do autor em torno da relação dialética entre valor de troca e valor de uso do espaço é um excelente suporte teórico para a formulação de hipóteses de pesquisa sobre os processos socioespaciais. A este respeito Lefebvre (1979, p. 292) sugere que Apesar do espaço não ter sido analisado em o Capital, certos conceitos, tais como valor de troca e valor de uso, aplicam-se hoje ao espaço. No momento atual, nós devemos usar a distinção, que Marx não considerou, entre a dominação e a apropriação da natureza. Este conflito se desdobra no espaço: em espaços dominados e espaços apropriados. (LEFEBVRE, 1979, p. 292)
As lutas que se dão em torno deste conflito entre espaço abstrato (dominado) e espaço social (apropriado)11, contribuiriam para o processo mais amplo de mudanças sociais? O estudo sobre novas formas de urbanização na região metropolitana de Belo Horizonte, mencionado na introdução deste artigo (COSTA, 1996, 1998), foi desenvolvido partindo-se da hipótese de que o objeto de análise, um assentamento urbano próximo à fábrica da Fiat Automóveis, em Betim, seria o palco de conflitos desta natureza, cujos efeitos e resultados poderiam ser apreendidos por meio da pesquisa empírica. De fato, uma pesquisa domiciliar, idealizada a partir das contribuições teóricas de Lefebvre sobre a relação entre espaço abstrato e espaço social, aplicada aos moradores do assentamento, revelou-se útil para se avaliar aquela forma complexa de manifestação socioespacial urbana. Trata-se de uma perspectiva de análise socioespacial que leva em conta, além dos princípios teóricos da economia política, aspectos importantes das contribuições relacionadas aos estudos do cotidiano, de identidade, de comunidade, etc., que alguns poderiam considerar incompatíveis com o primeiro enfoque. Nota: Política, nesta citação é uma tradução de politics e não de policy. Note-se que aqui espaço social tem o sentido de espaço apropriado socialmente e não a ideia integradora de espaço desenvolvida anteriormente neste capítulo.
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Entendo, no entanto, que este tipo de “integração” na prática da pesquisa empírica, que incorpora contribuições de enfoques de análise tanto de processos quanto de “cotidianidades”, está implícita ou explicitamente expressa nas contribuições teóricas de Lefebvre. Esta é uma forma possível, de se ir da formulação teórica para a proposição de possíveis práticas de mudança social. Merrifield (1997, p. 431) comenta este aspecto da contribuição de Lefebvre: “Assim para a teoria ser comunicável e praticável politicamente, deve-se tentar ativamente reintroduzir a narrativa nela, usando metáforas da vida cotidiana”. Penso que quando Lefebvre introduz a luta cotidiana como forma de resgatar o valor de uso do espaço da tendência homogeneizadora do espaço abstrato, ele está sugerindo este tipo de tentativa. Concluindo, sugiro que uma hipotética pergunta que procurasse desvendar se Lefebvre seria um precursor do pensamento pós-moderno, como alguns acreditam (ver por exemplo, SOJA, 1996, 1997), ou se seria um adepto do enfoque da economia política, um modernista (ver KOFMAN; LEBAS, 1996, p. 45) ou essencialmente um filósofo, teria talvez como resposta, que sua contribuição teórica para o avanço do conhecimento dos processos socioespaciais prescinde de quaisquer destes rótulos. Sua discussão teórica tem contribuído para avançar no conhecimento de processos socioespaciais específicos, o que é importante quando se pensa, por exemplo, em formulação de políticas, ao mesmo tempo em que busca uma teoria única de espaço, cuja visão do todo permite elaborar objetivos relacionados ao ideal de um espaço socialista, o que é fundamental para a construção de formas de mudanças sociais, mesmo quando se sabe que tal espaço é uma utopia.
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Algumas formulações teóricas sobre a produção de loteamentos residenciais populares em Belo Horizonte, Brasil1 Heloisa Soares de Moura Costa
Definição do “Urbano” e a questão do consumo coletivo O primeiro ponto importante, embora óbvio, a ser considerado é que o objeto sob análise é essencialmente um fenômeno urbano. Além disso, é um fenômeno urbano que ocorre em um país capitalista em desenvolvimento. Assim, é necessário delinear quais são as características da urbanização capitalista, procurando relacioná-las ao contexto específico do Brasil urbano. Dentro de uma perspectiva marxista, o urbano não pode ser visto isoladamente do movimento global do capital no modo de produção capitalista. A organização do espaço em uma cidade capitalista, portanto, segue algumas leis, que estão conectadas com a lei mais geral da acumulação de capital que prevalece em cada formação social. A estrutura urbana, no entanto, não reflete simplesmente em termos de espaço as necessidades do capital, mas expressa as contradições e os conflitos inerentes a todo o processo de desenvolvimento capitalista, pois se manifestam em cada caso a ser considerado. Esta abordagem foi desenvolvida nos últimos anos pela chamada Escola Francesa de Sociologia Urbana, cujos membros mais proeminentes são Castells e Lojkine. O trabalho destes autores, embora diferindo em vários aspectos, é muito importante no sentido de desenvolver proposições teóricas com o objetivo de explicar e analisar a questão urbana como um todo, e não apenas aspectos específicos dela. O ponto de partida das proposições de Castells (1977)2 é que o sistema capitalista, para sobreviver, deve reproduzir seus meios de produção, sua força de trabalho e suas relações de produção. Os meios de produção, no atual estágio de desenvolvimento capitalista, são cada vez mais organizados e reproduEste texto é uma tradução revisada do capítulo de discussão conceitual de minha dissertação “The production of popular residential land developments in Belo Horizonte, Brazil”, apresentada à Architectural Association School of Architecture, Londres, Inglaterra, em 1983, para obtenção do Master of Philosophy in Urban and Regional Planning. Uma versão em inglês foi publicada originalmente no periódico ETC, n.2 (3), vol.1, 1º de agosto de 2007. 2 Ver Castells (1977), especialmente o ”Afterwords”. 1
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zidos em âmbito regional, nacional ou internacional. A força de trabalho e as relações de produção, no entanto, são organizadas e reproduzidas dentro de um nível espacial que é a unidade urbana. A reprodução da força de trabalho pressupõe o consumo de uma série de bens e serviços que podem ser classificados como consumo individual ou coletivo. Castells argumenta que o processo de produção está cada vez mais dependente da disponibilidade de elementos que hoje são considerados necessários para a reprodução da força de trabalho, como moradia adequada, transporte público, educação, saúde e assim por diante. Esses elementos constituem os meios de consumo coletivo, que ele define como os elementos característicos do sistema urbano na atualidade. Isso não significa que a produção não ocorra no sistema urbano. Ele aponta que aqueles que são geralmente conhecidos como problemas urbanos são questões relacionadas aos meios de consumo coletivo. Como a provisão desses meios não é suficientemente lucrativa, em geral, para ser assumida pelo capital privado, o Estado é cada vez mais forçado a assumir a responsabilidade por sua provisão. Para Lojkine (1976), a cidade capitalista é uma forma particular de concentração no espaço dos meios de produção, circulação e consumo coletivo. Essa concentração reduz os custos de produção, circulação e consumo e, portanto, acelera a rotação do capital no sistema (LOJKINE, 1976, p. 127). Para ele, os meios de consumo coletivo representam “a totalidade dos suportes materiais das atividades dedicadas à reprodução ampliada da força de trabalho social” (LOJKINE, 1976, p. 121, T.A.). Por isso, não só inclui as necessidades mais básicas para a reprodução dos trabalhadores e suas famílias, como habitação, transporte, etc., mas também outros elementos que são considerados necessários para a reprodução da força de trabalho, pelo menos nas sociedades capitalistas desenvolvidas, tais como cuidados com a saúde, centros de formação, lazer, etc.3 Sua definição do urbano, no entanto, não se limita àqueles aspectos relacionados à reprodução da força de trabalho, mas, inversamente, a aglomeração urbana é “uma combinação espacial dos vários elementos de produção e reprodução das formações sociais capitalistas” (LOJKINE, 1976, p. 123, T.A.) o que, naturalmente, inclui os elementos necessários para o processo de produção e circulação de mercadorias (por exemplo, meios de comunicação). Embora todos esses elementos sejam necessários para a acumulação de capital, há obstáculos no processo de fornecê-los. Lojkine identifica três obstáculos para a 3 A definição de Lojkine dos meios de consumo coletivo apresenta algumas diferenças de Castells. Para Lojkine os meios de consumo coletivo são assim caracterizados: 1. Não se trata de uma mercadoria, mas de um serviço, “um efeito útil que é inseparável dos meios materiais que o produzem; 2. Eles não são destruídos durante o consumo; e 3. Eles necessitam ser consumidos coletivamente. (LOJKINE, 1976, p. 122, T.A.).
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socialização do desenvolvimento urbano. Primeiro, há limites financeiros para a prestação dos serviços ou “efeitos úteis”, na medida em que são produzidos por capital desvalorizado. Em outras palavras, eles não produzem mais-valia. Assim, o financiamento dos meios de consumo coletivo aumenta a massa de capital utilizada improdutivamente em relação àquela utilizada produtivamente. Em segundo lugar, há um obstáculo relacionado à competição anárquica das firmas capitalistas no que diz respeito ao uso do espaço. Isso causa o aumento do congestionamento nas áreas mais bem equipadas e reforça os padrões de diferenciação no espaço urbano. E finalmente o terceiro obstáculo é representado pela fragmentação e propriedade privada da terra, que é um obstáculo à concentração adequada (ou seja, combinação) dos meios de produção e reprodução de uma formação social. Devido ao caráter não lucrativo dos meios de consumo coletivo, eles são fornecidos pela intervenção do Estado. Assim, o Estado capitalista assegura a provisão de todos esses elementos necessários à acumulação, incluindo alguns aspectos da reprodução da força de trabalho, como forma de aliviar o capital de gastos improdutivos. Essa intervenção do Estado, no entanto, especialmente no que diz respeito à reprodução da força de trabalho, não é apenas um reflexo automático das exigências do capital. É também uma resposta às demandas da força de trabalho. Isto é, será determinado pelo nível de desenvolvimento da luta de classes em uma dada formação social. Há sempre uma contradição entre as exigências do capital e as do trabalho, que será expressa, ao nível da aglomeração urbana, pelo grau de provisão de meios coletivos de consumo, pelo grau de controle sobre o uso e a propriedade da terra e até que ponto a segregação ocorrerá no espaço urbano. O exposto acima é apenas um breve esboço das formulações apresentadas pelos dois autores. Os argumentos que geralmente são levantados em relação às suas proposições e à chamada Escola Francesa de Sociologia Urbana em geral são diversos e controversos, e sem dúvida estão além do escopo da análise que se pretende apresentar. É importante enfatizar, entretanto, que a relevância de sua contribuição está no fato de que as chamadas questões urbanas são analisadas à luz de um contexto mais amplo, ou seja, em sua relação com o funcionamento do modo de produção capitalista. Os processos urbanos não são vistos como tendo uma lógica própria, mas a lógica predominante no urbano é parte de uma lei geral de acumulação e expansão de capital. Há um ponto, no entanto, que precisa ser desenvolvido. Essas abordagens sobre a urbanização capitalista foram formuladas levando em conta as sociedades capitalistas desenvolvidas, principalmente em períodos de expansão 170
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econômica. Por conseguinte, baseiam-se no pressuposto de que os meios de consumo coletivo são elementos fundamentais e necessários para a reprodução da força de trabalho. O financiamento estatal e/ou a provisão desses meios de consumo coletivo é, portanto, justificado e explicado pelo fato de que eles são necessários para a acumulação de capital, juntamente com o fato de que são exigidos pela classe trabalhadora. Assim, o desenvolvimento das relações sociais e da luta de classes alcançou tal nível que a habitação, a saúde socializada e as instalações educacionais, os transportes públicos, o saneamento básico e muitos outros elementos são considerados necessidades mínimas para a reprodução dos trabalhadores e suas famílias. O conceito de requisitos ou necessidades mínimas é, obviamente, determinado socialmente; é uma conquista do movimento operário e, portanto, expressa o poder de barganha e a representatividade política da classe trabalhadora em um lugar específico e em um momento específico. Como esta análise diz respeito ao Brasil, é essencial ser muito claro sobre o que a reprodução da força de trabalho realmente significa nesse contexto. Como um país em desenvolvimento, durante o processo de rápida expansão econômica, especialmente entre o final dos anos sessenta e início dos anos setenta, o Brasil alcançou altas taxas de crescimento industrial por meio da super-exploração da força de trabalho. O padrão de acumulação de capital estabelecido no país foi caracterizado principalmente, como será mostrado mais detalhadamente, pelo estabelecimento de todas as condições necessárias para que a acumulação de capital, e particularmente o capital industrial estrangeiro, ocorresse. Entre os requisitos do modelo, um papel muito importante é desempenhado pela existência de uma força de trabalho abundante e prontamente disponível, que não tem outra alternativa senão vender seu trabalho a um preço muito baixo. A manutenção desse padrão é, portanto, assegurada por um regime autoritário que não apenas prevê a disponibilidade das condições exigidas pelo capital - infraestrutura econômica, mecanismos de crédito, aparato institucional, oportunidades de investimento, só para citar algumas - mas também exerce um rígido controle sobre o sistema político como um todo, e particularmente sobre a organização política da força de trabalho. Assim, de modo geral, a classe trabalhadora no estágio atual do desenvolvimento capitalista no Brasil está sujeita a salários muito baixos, instabilidade de trabalho, jornada de trabalho prolongada e poder de barganha ainda muito fraco em nível político. As consequências disso são os baixos níveis de alimentação, saúde, educação e condições de vida em geral, que se manifestam no nível urbano por condições inadequadas de habitação e saneamento, trans171
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porte público precário, enfim, uma provisão deficiente dos meios de consumo coletivo mencionada anteriormente. Assim, os elementos considerados socialmente necessários para a reprodução da força de trabalho em uma formação social como a brasileira são quantitativa e qualitativamente inferiores aos das sociedades capitalistas desenvolvidas. Assim, considerando o caso da habitação, que é o mais relevante para este estudo, nem os salários são suficientemente altos para cobrir os custos de moradia adequada, nem o estado atua de forma significativa para fornecer moradia subsidiada. O excedente de mão-de-obra, o controle sobre o movimento sindical e sobre a participação política em geral impedem que tanto o Estado quanto o capital (industrial) sejam demasiadamente pressionados por questões relativas à reprodução da força de trabalho. Ao mesmo tempo, parcialmente liberado dessa pressão, o estado fica mais livre para concentrar-se na provisão daqueles elementos (gastos improdutivos), que são, no presente, mais imediatamente exigidos pelo capital (por exemplo, infraestrutura econômica). A primeira hipótese, subjacente a esta análise, é, portanto, que, no que diz respeito à habitação, a maioria da força de trabalho deve se reproduzir à suas próprias expensas4. Os elementos necessários para a reprodução do capital e da força de trabalho são fornecidos na medida em que são efetivamente exigidos, dado o poder real de cada lado. No caso do Brasil, o Estado assume pouca responsabilidade pelo fornecimento de tais elementos necessários para a reprodução da força de trabalho. A relação entre a exploração que ocorre no local de trabalho e aquela que ocorre no nível do nível urbano, isto é, no ponto de residência, nomeadamente as relativas à habitação adequada e aos serviços e instalações com ela relacionados, é muito claramente expressa na seguinte citação de Kowarick: Assim, o chamado “problema” habitacional deve ser equacionado tendo em vista dois processos interligados. O primeiro refere-se às condições de exploração do trabalho propriamente ditas ou mais precisamente às condições de ‘pauperização absoluta’ ou ‘relativa’ a que estão sujeitos os diversos segmentos da classe trabalhadora. O segundo processo, que decorre do anterior e que só pode ser plenamente entendido quando analisado em razão dos movimentos contraditórios da acumulação de capital pode ser nomeado de ‘espoliação urbana’: é o somatório de extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo que se apresentam como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência e que agudizam ainda mais a dilapidação que se realiza no âmbito das relações de trabalho. (KOWARICK, 1979, p. 59) Na Região Metropolitana de Belo Horizonte, 67% das unidades habitacionais foram obtidas pela ação do próprio usuário, e estão localizadas em distritos e ‘vilas’. (PLAMBEL, 1974, p.23).
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Assim, o conceito de “espoliação urbana” refere-se basicamente às precárias condições habitacionais, que incluem tanto a casa quanto a disponibilidade de meios de consumo coletivo. Enquanto ambos constituem uma consequência direta do nível de intervenção do Estado, a qualidade da casa também é muito influenciada pela forma específica como é produzida.
Formas de Produção Habitacional O primeiro ponto a ressaltar é que, no modo de produção capitalista, a moradia e todos os seus componentes - terra, materiais de construção, infraestrutura, etc. - são mercadorias como qualquer outro produto. Embora a habitação possa ser construída ou trocada pelo seu valor de uso, pelo menos potencialmente ela tem um valor de troca e, portanto, é uma mercadoria em potencial. Como tal, sua produção é destinada àqueles que podem pagar, e não àqueles que realmente precisam. Em segundo lugar, a habitação tradicionalmente tem sido vista como uma mercadoria produzida em bases industriais. Ou seja, a maioria das unidades habitacionais são mercadorias que derivam das atividades da indústria da construção civil e são fornecidas em escala industrial. Isso não se aplica como regra geral ao Brasil, particularmente se consideradas em termos quantitativos. De fato, diferentes formas de produção habitacional coexistem, cada uma apresentando características diferentes, tanto em termos de seus próprios processos de produção quanto em termos de para quem são produzidas. Pradilla (1977) identifica três formas que o processo de produção habitacional assume nas formações sociais latino-americanas: A. Autoconstrução: nesta forma, o agente social que produz a habitação é o mesmo que a consome. A edificação é construída com mão de obra resultante da extensão das horas de trabalho do morador e de sua família, juntamente, em muitos casos, com trabalho coletivo de amigos e vizinhos e/ou serviços profissionais de pequena escala. O trabalho pode ser pago ou não-pago, mas em ambos os casos, geralmente é trabalho estendido fora do horário normal de trabalho. Os materiais de construção podem ser de segunda mão ou não, e são geralmente de baixa qualidade. O período real de construção pode ser estendido indefinidamente, de acordo com a capacidade financeira e de trabalho do construtor, e a construção é geralmente feita em etapas, para que possa ser combinada com o uso das partes concluídas. A perspectiva geral é de precariedade e falta de serviços urbanos. Construída como um uso valor, esta forma de habitação pode ser considerada como uma “mercadoria virtual”, ou seja, um 173
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valor de troca potencial. Isso corresponde a uma forma de produção pré-capitalista, que sobrevive no contexto das condições típicas das sociedades capitalistas dependentes (PRADILLA, 1977, p.5). B. Produção manufatureira (ou produção artesanal): Nesse caso, um grupo de trabalhadores assalariados trabalha sob a supervisão de um arquiteto ou construtor que controla o processo em nome do proprietário. Há uma quantidade limitada de máquinas e trabalhadores, e a produção é realizada em uma base artesanal, às vezes combinando atividades manuais altamente qualificadas com atividades não qualificadas. A produtividade é muito baixa e os custos finais envolvidos são muito altos, devido ao processo de produção utilizado. Essas casas individuais ou pequenos blocos de apartamentos são para o consumo dos grupos com níveis médios ou mais altos de renda da sociedade, que podem arcar com os custos de projeto e construção em uma base quase individual. C. Produção industrial: Não há relação direta entre produtores e consumidores nesta forma. O capital é investido neste processo com o único objetivo de ser expandido e reproduzido. Os materiais de construção são produzidos em grande escala e a qualificação necessária da força de trabalho dependerá das técnicas usadas no processo e do grau de padronização do projeto. Neste caso, as mercadorias são produzidas para a troca e sua realização será fruto da atuação de um agente intermediário diferente, o agente imobiliário (PRADILLA, 1977, p. 4-5). Tendo identificado as formas que a produção habitacional assume nos países latino-americanos, Pradilla desenvolve os modelos de articulação entre eles. A forma industrial é considerada determinante devido às características dinâmicas das relações de produção predominantes no setor e à sua articulação com outros setores industriais relacionados à construção civil. As outras formas ocupam uma posição subordinada em relação à determinante. A forma dominante, no entanto, refere-se àquela que corresponde à maioria das unidades construídas. Assim, ele argumenta que a tendência é que a forma determinante de produção se torne também a dominante. Em outras palavras, a forma de produção tipicamente capitalista, no longo prazo, incorporará as outras duas formas. A forma artesanal de produção ainda existe devido a uma série de fatores como a existência de mão-de-obra barata que torna o processo lucrativo, a barreira da propriedade da terra, a manutenção de valores que perpetuam o status da habitação unifamiliar, restrições ao avanço tecnológico na indústria da construção civil, falta de capital de circulação suficiente para desenvolver a forma industrial, entre outros. Uma vez que algumas dessas limitações sejam 174
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superadas, esse tipo de produção tende a desaparecer ou ficar restrito a uma forma limitada de produção de moradias de luxo. A existência da produção habitacional por autoconstrução, no entanto, tem suas origens nos baixos níveis salariais de uma vasta proporção da população, na desigualdade da distribuição de renda, em suma, nas condições de super-exploração da classe trabalhadora. Enquanto essas condições forem mantidas, a autoconstrução continuará sendo a forma dominante de produção. Em outras palavras, as várias formas de autoconstrução são a única maneira pela qual vastos setores da classe trabalhadora têm acesso à moradia. Assim tem-se como importante pressuposto que a produção da habitação requer, de fato, uma série de etapas para que o produto acabado - a unidade habitacional - possa ser alcançado. Primeiro, é necessário obter terra urbanizada, isto é, a terra em si acrescida da infraestrutura e dos serviços necessários. Em seguida, materiais de construção são necessários e, finalmente, o processo construtivo propriamente dito. Juntamente com estes, é necessário um capital de circulação, quer para o financiamento dos materiais de construção e do processo construtivo, quer para o financiamento da compra da casa. Todos esses elementos serão adicionados para formar o preço final da unidade habitacional. No entanto, para a unidade habitacional ser acessível à grande maioria da população, ela deve ser a mais barata possível. A maneira óbvia de reduzir os custos do produto final é eliminando alguns dos elementos mencionados acima e/ou reduzindo seus custos ao mínimo possível. Assim, a forma de autoconstrução da produção habitacional é a “solução” encontrada pela população para redução de custos, mesmo que o preço pago seja a ampliação do horário de trabalho e a qualidade precária do produto final. Assim, materiais de construção podem ser de segunda mão ou reciclados, o processo construtivo pode ser realizada pelo próprio usuário, e as taxas de juros do financiamento formal podem vir a ser eliminadas. Há um passo, no entanto, que não pode ser evitado, que é a compra do lote. Ocupações de terras existem em alguns contextos, mas em termos de acesso real à habitação, a ocupação de terras não pode ser considerada como uma alternativa segura. Além disso, como veremos mais adiante, devido às características do processo de formação de Belo Horizonte e ao padrão de propriedade da terra ali estabelecido, as ocupações de terras são relativamente pouco difundidas como uma prática alternativa5. A maneira dominante pela qual a classe trabalhadora obtém acesso à moradia é comprar um terreno e executar alguma forma de autoconstrução da moradia. Cabe registrar que quando este texto foi escrito em 1983, as ocupações organizadas de terras eram muito pouco frequentes. Tal situação foi substancialmente alterada nos últimos anos.
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Da mesma forma que a habitação, o lote produzido é uma mercadoria produzida e vendida no mercado. Devido às características da demanda (os setores de baixa renda da população), a mercadora “lote urbanizado” também deve ser a mais barata possível. Existe, portanto, uma fração específica de capital que se especializa na produção destes loteamentos residenciais: os loteadores populares. O processo de formação dos preços da terra e a estratégia dos incorporadores são, portanto, questões fundamentais para a compreensão da produção de loteamentos populares. Eles serão discutidos nas secções sobre A questão da terra urbana e Os promotores imobiliários, respectivamente.
A questão da terra urbana Do exposto até agora, está claro que o acesso à terra é uma etapa fundamental a ser alcançada no processo mais amplo de acesso à moradia, pelo menos para uma parte significativa da população urbana no Brasil. Embora, em certo sentido, o lote urbano seja produzido e comprado como qualquer outra mercadoria em um sistema capitalista, a terra em si e as relações sociais que ela engendra têm algumas características que devem ser apontadas, de modo que todo o processo de produção imobiliária possa ser entendido. Primeiro, é evidente que a terra é, até certo ponto, um recurso escasso, ou seja, existem limites dentro dos quais a terra pode ser tornada disponível para qualquer uso. Em segundo lugar, certas qualidades (ou atributos) da terra não serão encontradas em todos os locais. Assim, as qualidades exigidas para um uso específico da terra tornarão um local preferível a outro, de acordo com a atividade que ocorrerá naquela terra. Finalmente, a disponibilidade de terra é controlada por certo número de indivíduos, que obterão renda a partir deste direito. Em que medida essa renda é obtida, sua natureza e condições, variarão historicamente uma vez que a propriedade da terra constitui uma relação social. A natureza e a origem das rendas que os proprietários podem obter por causa de sua relação de propriedade foram analisadas por Marx para o caso da agricultura e constituem a teoria da renda da terra. Para os propósitos deste estudo, serão introduzidos brevemente os principais conceitos teóricos a ela associados, para que possam ser discutidos para o caso específico da terra urbana. A renda da terra é recebida pelo proprietário pelo uso de sua terra pelo produtor agrícola capitalista. É uma renda indevida, uma vez que não há trabalho próprio envolvido. A renda recebida é, portanto, parte da mais-valia 176
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criada na produção agrícola, ou, em alguns casos, da massa de mais-valia criada na sociedade como um todo. A razão para isso é que o proprietário detém a propriedade legal da terra, o que lhe dá o direito de estipular os termos em que terra será usada. O monopólio da propriedade permite que ele se aproprie de […] uma parte da mais-valia produzida na terra sob a forma de renda, e de aumentar a renda como e quando a mais-valia aumenta (seja como resultado de o agricultor investir mais capital, ou de desenvolvimentos sociais ou outras causas que elevem o preço do produto) (EATON, 1952, p. 99, T.A.).
Existem alguns elementos que influenciam os custos de produção e determinam a renda (o aluguel)6 a ser paga por um pedaço de terra, como por exemplo, acessibilidade e fertilidade. As diferentes combinações desses elementos permitirão que seja cobrado um aluguel maior ou menor. Mas mesmo o pior pedaço de terra colocado em cultivo gera um aluguel a ser pago, devido ao fato de que a terra é de propriedade privada, e o agricultor dependerá de sua disponibilidade, bem como da demanda por seus produtos, a fim de investir na agricultura. Esta renda básica gerada por qualquer terra, independentemente de suas qualidades relativas, é denominada renda absoluta. Varia, portanto, com a disponibilidade de terras a serem colocadas em uso. Como o preço de produção de um produto agrícola será determinado pelas piores localizações e pelas terras menos férteis, os lucros obtidos pela produção em terras melhores gerarão uma renda diferencial que será cobrada em adição à renda absoluta. Assim, a renda diferencial surge de vantagens relativas na fertilidade do solo, na localização ou em outros fatores que podem diferenciar um pedaço de terra de outro. Essas não são apenas vantagens naturais, mas podem ser geradas por investimentos de capital na terra para melhorar sua qualidade e gerar novas vantagens. Quando quantidades iguais de capital são aplicadas a terrenos de fertilidade variável, a renda resultante dos diferentes produtos é denominada renda diferencial I. Quando essa renda é obtida por meio de quantidades distintas de investimentos de capital, ela é chamada de renda diferencial II (BALL, 1977, p. 383). Finalmente, a terceira forma de renda da terra é a renda de monopólio que pressupõe a existência de condições excepcionais que permitem ao agricultor vender o seu produto em condições de monopólio. Uma parte do lucro excedente será reivindicada pelo proprietário que fornece a terra necessária para essa produção. O acima exposto é apenas um resumo rápido do que é a renda da terra e quais são os componentes que a determinam. Antes de prosseguir, no entanto, Na língua inglesa renda e aluguel tem a mesma tradução: rent, o que faz com que ambas as expressões sejam usadas, conforme apropriado, em língua portuguesa.
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algumas restrições devem ser apontadas. Inicialmente, é importante mencionar que a teoria da renda da terra foi formulada para o caso da produção agrícola no contexto do século XIX na Inglaterra. Isso pressupõe, por um lado, que o produtor capitalista não detém a propriedade da terra, que ele tem que alugar de um agente social diferente, o proprietário da terra. A existência de propriedade privada é, portanto, uma barreira para o capital envolvido na produção agrícola. Mas mesmo que o capitalista e o proprietário da terra fossem o mesmo agente social, ainda existiriam as mesmas diferenças nas qualidades dos diferentes pedaços de terra, que gerariam, no final, quantidades diferentes de lucros excedentes. Esses poderiam simplesmente ser apropriados pelo capitalista. No entanto, os preços da terra refletiriam essa possibilidade de obtenção de lucros excedentes, ou seja, seriam cobrados preços mais altos pelos terrenos que geram rendas mais altas e vice-versa. Assim, a teoria da renda da terra ainda determinaria os elementos de formação dos preços da terra agrícola. Por outro lado, a teoria diz respeito aos efeitos que a propriedade da terra têm na produção de um produto específico (cultura). Como Ball (1977, p. 400) aponta, a situação urbana não corresponde à da agricultura, justamente por causa das diferenças no tipo de produção e, consequentemente, no tipo de estrutura do mercado. Ele critica a aplicação mecânica das categorias de renda ao caso urbano sem levar em conta sua pertinência. Apesar destas advertências, elas não constituem uma razão em si para rejeitar os conceitos e métodos de análise usados para lidar com a questão da propriedade da terra. No que diz respeito à terra urbana, os pontos importantes são: primeiro, entender em que medida a propriedade da terra constitui uma barreira ao desenvolvimento e à expansão do capital no contexto da urbanização capitalista em um determinado lugar e tempo. E segundo, em vez de apenas tentar adivinhar a que a fertilidade corresponderia, por exemplo, numa situação urbana, o importante é reter o método de análise, isto é, identificar quais os elementos que influenciam a constituição dos preços da terra no meio urbano. Uma vez identificados esses elementos, sua origem e suas consequências em termos de fixação dos diferentes setores da população sobre o espaço urbano podem ser compreendidas. Não há dúvida de que a renda da terra é uma parte da mais-valia produzida tanto na sociedade como um todo como em um setor específico da produção, que é apropriado por quem controla a propriedade da terra, um proprietário de terras ou um promotor imobiliário. No entanto, existem algumas condições específicas para que uma parte da mais-valia seja transformada em renda da terra. É necessário que 178
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[...] o processo de expansão de valor que origina esses lucros excedentes traga consigo condições que são externas ao capital e não podem ser reproduzidas por ele; por outro lado, essas condições têm de ser monopolizáveis, isto é, o capital não tem livre acesso a elas, uma vez que são objetos de apropriação privada (TOPALOV, 1978, p. 30, T.A.).
Em outras palavras, em termos gerais, a terra é uma barreira para a livre expansão do capital, na medida em que não é de livre acesso. Isto poderia se dar na medida em que a terra é necessária para que as atividades produtivas ocorram; ou, mais especificamente, dentro da indústria da construção civil, quando a terra pode aumentar os custos de produção; ou a terra pode até ser um elemento que aumente os custos de reprodução da força de trabalho se os custos da terra para uso residencial ou da habitação forem muito altos. Embora isso seja verdade em geral, pode não ser assim em casos específicos. Também pode ser verdade para alguns usos da terra e não para outros. Como o próprio Topalov observa, o capitalismo tem uma tendência a “expandir a reprodutibilidade de suas condições de aumentar e reproduzir valores e seus limites estruturais” (TOPALOV, 1978, p. 39, T.A.)7. Em outras palavras, o capitalismo tenderá a eliminar as barreiras impostas à livre acumulação de capital. Isto pode ser alcançado pela ação do próprio capital ou pode ser produto da intervenção de outro agente, o estado. O Estado capitalista irá, portanto, em maior ou menor medida, dependendo do equilíbrio das forças sociais em cada formação social, procurar prover as condições adequadas para a acumulação de capital. No caso da região de Belo Horizonte, o Estado atuou decisivamente para eliminar algumas dessas barreiras para aqueles setores que lideram o processo de acumulação. Assim, o acesso à terra para uso industrial não constituiu uma barreira, na medida em que vários esquemas foram colocados em operação, a fim de fornecer terras a baixos custos para o capital industrial. A questão da terra para uso residencial, no entanto, é deixada para ser “resolvida pelo mercado”, não apenas porque não é uma barreira para os principais setores do capital produtivo no atual estágio de desenvolvimento capitalista no Brasil (como vimos na primeira secção Definição do “Urbano” e a questão do consumo coletivo, habitação adequada não constitui um requisito decisivo sobre o capital para reprodução da força de trabalho necessária), mas também porque há um setor da classe capitalista que se especializa na produção de terras para uso residencial, os loteadores. Edel fez o mesmo tipo de observação em relação às terras agrícolas. Segundo ele, pode-se chegar a um ponto em que “como o capitalismo desenvolve a tecnologia e torna a qualidade da terra menos importante, e à medida que os capitalistas compram a terra, os proprietários podem desaparecer como classe e a renda deixa de existir como uma parte distinta da mais-valia” (EDEL 1975, p. 5, T.A.).
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Finalmente, vale ressaltar que a propriedade privada da terra também pode ser uma barreira para o capital envolvido na indústria da construção civil como um todo. A liberação de terra (potencialmente) urbanizada para construção será, portanto, uma das principais funções dos promotores imobiliários. Esses dois últimos pontos serão retomados na secção Os promotores imobiliários, mas antes disso é preciso examinar outra questão, a saber, a maneira pela qual os preços da terra urbana são formados e quais são os principais elementos que diferenciam um pedaço de terra de outro. Isso será feito com ênfase especial na formação do preço da terra para uso residencial, que é a principal preocupação nesta discussão. A propriedade privada da terra urbana, a diferenciação espacial dos preços da terra urbana e suas consequências foram objeto de análise de vários autores. Entre eles, vale destacar Harvey (1973), Edel (1975), Bruegel (1975), Lamarche (1976), Lojkine (1976 e 1979), Singer (1979), Lipietz (1974) e Topalov (1974 e 1978). Suas abordagens tendem a diferir, especialmente pelo fato de cada um deles ter preocupações com questões específicas e, portanto, tendem a generalizar as conclusões obtidas a partir da análise de uma situação particular. Não se pretende fazer uma revisão de seus trabalhos, mas selecionar as formulações que podem ser mais úteis na análise de nosso caso8. Considera-se, no entanto, que a contribuição apresentada por Lipietz é a mais abrangente. Ao invés de tentar aplicar a teoria marxista da renda da terra ao caso urbano, ele usa seus conceitos para construir um arcabouço para explicar o papel desempenhado pela existência da propriedade privada da terra urbana, enquanto ao mesmo tempo identifica a natureza. e as fontes de renda que a terra urbana pode gerar. Além disso, seu foco principal, como o nosso, é a terra para uso residencial. Lipietz introduz o conceito de “divisão social e econômica do espaço”, que é a manifestação, no nível do espaço, da divisão social e econômica da sociedade. Ela superpõe uma divisão “técnica” do espaço que determina áreas para as diferentes atividades, tais como habitação, comércio, indústria, recreação, entre outras; a uma divisão “social” da população pelo espaço, como bairros da classe trabalhadora, áreas habitacionais burguesas, empreendimentos de classe média, favelas, etc. Essa divisão social e econômica do espaço constitui a manifestação da renda da terra urbana, enquanto ao mesmo tempo a existência da renda da terra urbana legitimará e reforçará tal divisão social e econômica do espaço (LIPIETZ, 1974, p. 22-26). De fato, expressa a segregação das classes sociais no espaço urbano de acordo com a estrutura de classe, níveis de renda Uma revisão das abordagens sobre a terra urbana apresentada por alguns desses autores foi objeto de estudo anterior, “Land rent como um instrumento de análise urbana”, apresentado como parte dos requisitos para a obtenção do AA Diploma in Planning, em 1980.
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e os atributos de cada área, conforme exigido pelos diferentes grupos sociais. O outro conceito proposto por Lipietz é o de um tributo fundiário (tribut foncier em francês). Ele argumenta que a nomenclatura renda é aplicável principalmente ao caso da produção agrícola, na qual o agricultor capitalista não é o proprietário da terra. Nesse caso, o processo de produção do produto agrícola é reproduzido a cada ano e, como tal, pressupõe uma periodicidade. O processo de produção de moradias urbanas, no entanto, leva alguns meses e só será produzido na mesma terra novamente após um considerável número de anos. Além disso, as unidades construídas serão vendidas aos seus futuros ocupantes. Assim, há uma transação definitiva em andamento, que é a venda da terra. Ele está vendendo esse direito e o preço será determinado não apenas pelo controle que ele tem de uma mercadoria necessária para que a construção possa ocorrer (o conceito de renda absoluta), mas o preço também será determinado pelas vantagens relativas que cada pedaço de terra tem quando comparado com os outros (o conceito de renda diferencial). O preço da terra urbana não é a capitalização da forma renda (aluguel), “é o próprio tributo fundiário, é a forma que revela a relação social entre o proprietário da terra e o promotor imobiliário (a troca de um direito de dispor do solo por uma parte dos lucros), que são escondidos sob a aparência de comprar e vender um bem econômico” (LIPIETZ, 1974, p. 105, T.A.). O tributo fundiário é, portanto, uma parte do lucro excedente que o capital envolvido na promoção imobiliária realiza e que é eventualmente transferido (em maior ou menor grau) para o proprietário, uma vez que a disponibilidade de terra é uma condição para o empreendimento acontecer. O tributo fundiário é proveniente de duas fontes, segundo Lipietz. A primeira fonte, como mencionado, é o fato de que a terra urbana é monopolizada por um grupo social . É um processo de expansão do valor do capital (na forma de terra) investido na indústria da construção civil. É a apropriação de uma parte da mais-valia como um todo. Este tributo é gerado no processo de circulação da mercadoria (habitação/lote residencial) (LIPIETZ, 1974, p. 119-125). A segunda fonte do tributo fundiário situa-se dentro do processo de produção da indústria da construção civil, isto é, vem de uma parte da maisvalia produzida naquele setor que geralmente deriva da menor composição orgânica do capital nessa indústria. O proprietário de terras ou o agente social que controla a terra tentará reivindicar uma parte da mais-valia produzida (LIPIETZ, 1974, p. 125-133).
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Tendo identificado as fontes do tributo fundiário, cabe agora caracterizar os principais elementos que diferenciam os preços da terra: A. O primeiro mais importante elemento é a localização do pedaço de terra na divisão social e econômica do espaço, como referido anteriormente. Ela envolve não apenas os elementos sociais e ideológicos que identificam uma determinada área com uma classe social, mas também elementos físicos como acessibilidade e disponibilidade de infraestrutura e equipamentos urbanos que originalmente formaram a base para tal identificação. Este mecanismo de tributo diferencial é, de acordo com Lipietz (1974, p. 147, T.A.), “[…] o operador econômico da reprodução da divisão social do espaço”, no sentido que, ao aumentar os preços da terra, excluirá setores da população do acesso à terra em algumas áreas. B. O tributo diferencial de construtibilidade, que envolve os custos de preparação do terreno para a construção quando é necessário qualquer tipo de investimento adicional (por exemplo, áreas alagadas, etc.). C. Os limites impostos pela legislação urbanística fixam a densidade legal máxima permitida, geralmente por meio do estabelecimento de coeficientes de ocupação dos lotes, número máximo de andares permitidos, ou restrições similares. Estes são limites impostos à própria construção. D. As exigências impostas também pela legislação urbanística com referência ao fornecimento de infraestrutura ou obras públicas que devem ser realizadas pelo promotor nas áreas a serem incorporadas nas áreas urbanas já existentes. Fica claro, a partir dos pontos listados acima, que o papel do Estado no estabelecimento do preço da terra no espaço urbano é muito importante. Sua ação pode ser sentida em vários níveis: na provisão dos meios de consumo coletivo que serão um dos elementos determinantes na divisão social e econômica do espaço; no estabelecimento de legislação urbanística por meio de uma série de mecanismos como o zoneamento, níveis de densidade considerados adequados para diferentes setores do espaço urbano; estabelecendo regulamentos relativos à construção de unidades habitacionais; no estabelecimento de requisitos a serem obedecidos por empresas de parcelamento do solo, entre outros. Este último ponto será de fundamental importância para este estudo. Um último ponto que não foi mencionado antes e que, no entanto, é de 182
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grande importância, diz respeito a até que ponto o Estado dispõe de mecanismos de controle sobre a propriedade privada da terra. Não se trata da abolição da propriedade privada da terra, uma proposição que não parece se encaixar no modo de produção capitalista, mas sim de alguns instrumentos que desencorajem a concentração especulativa de terras urbanas por alguns indivíduos. Instrumentos como maiores impostos sobre terrenos desocupados, tributação progressiva para aqueles que possuem certo número de propriedades ao mesmo tempo, tributação sobre construções que ultrapassem a área máxima permitida, entre outros. Essas medidas visam evitar a manutenção de terrenos urbanizados vazios em áreas bem providas de meios de consumo coletivo e, ao mesmo tempo, compensar o Estado e suas instituições responsáveis pelo provimento de equipamentos e serviços urbanos, pelo investimento realizado que não esteja sendo utilizado em sua plena capacidade. Essas questões estão no centro da discussão sobre o planejamento urbano no Brasil, mas ações efetivas para restringir a permissividade que existe em termos da especulação imobiliária ainda precisam ser tomadas. Assim, o pressuposto básico subjacente à questão da terra urbana para uso residencial pelo chamado mercado “popular” é que o preço tem que ser acessível para esse setor da população. Assim, de acordo com o que foi dito, os loteamentos populares estarão localizados em áreas que detém baixa renda diferencial/tributo fundiário. Isso significa que os diferentes elementos que contribuem para a formação dos preços da terra devem ser minimizados ou mesmo eliminados sempre que possível. Vale a pena recordar, nesta fase, que a primeira redução dos custos no que diz respeito ao acesso a habitação adequada, já foi alcançada através da prática da produção de habitação por autoconstrução. Então, trata-se apenas do acesso ao lote como meio de acesso à moradia. Loteamentos populares ocorrerão nas áreas mais carentes dentro da divisão social e econômica do espaço, especialmente porque os preços da terra têm que ser baixos antes que o parcelamento ocorra. No entanto, os preços da terra devem permanecer baixos após o loteamento, o que significa que o investimento real em obras necessárias para a urbanização será mínimo. Isto será obtido negligenciando os procedimentos exigidos pela legislação urbanística e/ ou escolhendo locais onde as exigências legais são baixas, o que muitas vezes pode significar áreas bastante distantes, isoladas e não equipadas. Essas ações fazem parte de uma estratégia bem definida, praticada pelo agente social que se especializa na produção de loteamentos populares. A série de práticas que constituem o desempenho dos loteadores será o objeto da próxima secção. 183
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Os promotores imobiliários Em termos gerais promotores imobiliários são os agentes sociais responsáveis pela coordenação e gestão do conjunto de atividades que são necessárias para a produção capitalista do ambiente construído e, mais especificamente no nosso caso, para a produção e circulação capitalista da habitação. Essas atividades referem-se à disponibilidade de terras, estudos e projetos técnicos, construção, promoção e comercialização, e financiamento. Cada uma dessas atividades pode ser executada por um agente diferente, algumas delas pelo mesmo agente que pode ser o próprio promotor imobiliário. Em qualquer caso, este último tem o papel de garantir o funcionamento adequado de todas essas atividades. No entanto, como mencionado anteriormente, existem algumas barreiras ou obstáculos para a reprodução das condições de acumulação de capital na indústria da construção habitacional. A intervenção do promotor imobiliário terá como objetivo proporcionar as condições para a eliminação de algumas dessas barreiras9. Este ponto é enfatizado de forma muito clara por alguns autores preocupados com o papel desempenhado pelos promotores imobiliários na produção de habitação, nominalmente Topalov (1974) e Lipietz (1974). Tais barreiras são basicamente: a propriedade privada da terra urbana; o período excepcionalmente longo de rotação do capital na indústria da construção civil; e a solvência da demanda. No que diz respeito à propriedade privada das terras urbanas, o papel do promotor imobiliário será o de procurar terras que melhor se adequem ao tipo de produto final que será produzido. Ele liberará o solo para a construção e tentará obter terras em tais condições que lhe permitam apropriar-se do lucro excedente que o pedaço de terra proporcionará. Em que medida ele será bem sucedido dependerá da percepção do proprietário do lucro potencial a ser obtido. Cada lado lutará para reter a maior parte do tributo fundiário. As estratégias relativas à liberação de solo para construção ou loteamento podem variar consideravelmente; a terra pode ser obtida a cada empreendimento a ser executado, ou pode ser estocada para uso futuro, ou mesmo ambos procedimentos podem ocorrer simultaneamente como uma estratégia específica do promotor. O terreno ideal para um determinado empreendimento dependerá evidentemente do produto final a ser vendido. Como Topalov percebe, “[...] a natureza A intervenção dos promotores imobiliários visa eliminar principalmente as barreiras que existem ao nível da circulação da habitação enquanto mercadoria. Os problemas que existem no interior do processo de produção de habitação (por exemplo, produtividade na indústria de construção habitacional) estão geralmente fora do alcance dos promotores imobiliários. Para uma análise das contradições no interior da indústria da construção civil, ver Ball (1978) e Pradilla (1977).
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da política fundiária de promotores é, de fato, em grande parte determinada pela orientação da sua ‘produção’, quer do ponto de vista da quantidade ou do ponto de vista dos níveis de preços” (TOPALOV, 1974, p. 145, T.A.). A segunda barreira refere-se ao fato de que o período de rotação do capital (M-C-M’) na indústria da construção é muito longo, tanto no processo de produção quanto no processo de circulação. A solução é a interferência de um capital comercial para financiar ambos os processos. No processo de produção, os promotores imobiliários garantirão que o financiamento esteja disponível para o processo de construção em si. A transformação do capital de sua forma de mercadoria para sua forma de dinheiro, na indústria da construção civil, geralmente requer um período bastante longo (às vezes 15 a 20 anos) e está diretamente relacionada à terceira barreira, ou seja, a solvência da demanda. Um capital de circulação para financiar a aquisição do imóvel é, portanto, essencial para que a realização do capital investido no processo de produção possa ser alcançado. Assim, a função dos promotores imobiliários é assegurar o funcionamento de todas as atividades relacionadas com o processo de produção da habitação através da eliminação dos obstáculos aos capitais envolvidos no setor. E isso se aplica também ao desempenho dos loteadores porque, embora o produto final não seja uma unidade habitacional acabada, mas um lote, a terra deve ser fornecida, os serviços e a infraestrutura devem ser executados no processo de loteamento, os lotes têm que ser comercializado, e tanto a aquisição como o loteamento da área têm que ser financiados. Além disso, as atividades e estratégias dos promotores imobiliários variam de acordo com o produto final. Assim, os promotores imobiliários que se dedicam à produção de empreendimentos de luxo têm estratégias bem diferentes daqueles envolvidos na produção de loteamentos populares. A prática dos loteadores populares refletirá sua estratégia em termos de eliminar as barreiras que existem para a produção de lotes residenciais direcionados aos setores de baixa renda da população. Seu papel será produzir uma mercadoria compatível com a solvência da demanda, e isso envolverá não apenas a liberação de terras em áreas com baixa renda diferencial/tributo fundiário juntamente com uma quantidade mínima de investimentos no próprio loteamento, como mencionado na secção anterior, mas também um esquema particular de financiamento e comercialização dos lotes, para que o pagamento possa ser cumprido pelos compradores. Na verdade, pode-se dizer que é a capacidade de pagamento da demanda que, em última análise, determinará a quantidade de investimento a ser realizado pelo empreendedor e a 185
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localização do empreendimento, em termos da divisão econômica e social geral do espaço e em termos das exigências para o parcelamento do solo. É importante ressaltar que a produção de loteamentos no Brasil (em contraposição ao parcelamento do solo com construção das unidades habitacionais) não é uma prática restrita aos setores de baixa renda do mercado. Há um número considerável de empreendimentos imobiliários direcionados aos níveis mais altos de renda, que evidentemente são caracterizados por uma qualidade muito superior de infraestrutura e serviços, e uma localização muito melhor na divisão econômica e social do espaço urbano. A razão disso é provavelmente a existência da forma manufatureira ou artesanal de produção habitacional, segundo as definições de Pradilla (1977) apresentadas na secção Formas de produção habitacional, que permitirão que o acesso a uma casa individualizada seja um processo distinto daquele de acesso ao lote. Um último ponto é que o parcelamento do solo é caracterizado como uma atividade realizada pelo capital privado. Essa iniciativa privada, no entanto, está ligada e, até certo ponto, determinada pela intervenção do Estado nas áreas urbanas e vice-versa. Essa intervenção pode ser sentida no nível da legislação urbanística, na provisão de meios de consumo coletivo, na política habitacional, nos mecanismos de financiamento e em muitos outros níveis. Assim, é a ação combinada dos promotores imobiliários e do estado que reproduzirá e reforçará a divisão social e econômica do espaço.
Definição das hipóteses e premissas Com base nas abordagens conceituais apresentadas nas secções anteriores, a análise do processo de produção de loteamentos populares em Belo Horizonte é orientada por duas hipóteses principais. A primeira é que a maneira pela qual o Estado intervém no urbano torna atraente para o setor privado intervir na habitação popular. Essa relação entre Estado e setor privado, no que diz respeito à habitação popular, pode ser sentida direta e indiretamente. Os resultados da intervenção direta do Estado na habitação popular são tais que, como este assume pouca responsabilidade pela provisão de habitação popular, abre-se uma grande proporção do mercado para o setor privado. A intervenção estatal indireta na habitação por meio dos mecanismos de política urbana - a provisão de meios de consumo coletivo, a legislação urbana, entre outros - influencia e estabelece as condições nas quais o setor privado atua nos mercados habitacional e fundiário.
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A segunda hipótese é que o preço a ser cobrado pela mercadoria produzida - o lote - é o elemento que determina não apenas o processo de produção, mas também o próprio produto final. O pressuposto implícito é que o preço tem que ser o mais barato possível para ser acessível ao maior número de pessoas possível, isto é, para expandir o mercado potencial. Como consequência, os loteadores populares têm uma estratégia própria no desempenho de suas atividades, que é orientada e condicionada pelas características econômicas do chamado mercado popular. Assim, a intervenção do setor privado na habitação popular, através da produção de lotes, baseia-se nos seguintes pontos: a)
O produto final é o lote. Os custos de construção da casa são assim eliminados, na medida em que são transferidos para o comprador. A casa é obtida geralmente por meio da autoconstrução.
b) Como a terra tem que ser barata antes do parcelamento, os empreendimentos populares estão localizados nas áreas urbanas, onde prevalecem as menores rendas/tributos diferenciais. Assim, o peso dos elementos que contribuem para a formação dos preços da terra ao nível da aglomeração urbana é reduzido ao mínimo. c)
Como os preços dos lotes devem permanecer baixos após o parcelamento, os investimentos no processo de parcelamento também devem ser minimizados. Isso geralmente é obtido pelos loteadores evitando os procedimentos exigidos pela legislação urbanística e/ou escolhendo locais com baixos níveis de exigência.
d) Uma forma muito particular de comercialização e financiamento é necessária para que os lotes possam ser realmente comprados pelos setores de baixa renda da população. Essas hipóteses são examinadas na dissertação, levando em conta o contexto específico da região metropolitana de Belo Horizonte e utilizando os conceitos aqui discutidos em nível teórico. Assim, o relato histórico da formação do espaço metropolitano analisa a intervenção do Estado e do setor privado em questões de habitação e desenvolvimento urbano, com o objetivo de contextualizar a produção de loteamentos populares como uma forma alternativa de acesso à moradia, ao mesmo tempo em que caracteriza a divisão social e econômica do espaço metropolitano que prevalece nos diferentes períodos de tempo. Os mecanismos de formação dos preços diferenciados da terra urbana e o padrão de segregação da população de acordo com sua renda são considerados em termos gerais no contexto histórico. Esses mecanismos são analisados com mais detalhes na discussão do intenso 187
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processo de parcelamento do solo durante os anos de 1970. A questão da terra urbana é então examinada tanto do ponto de vista dos resultados da intervenção do setor privado engajado no parcelamento do solo, quanto da intervenção do Estado através do estabelecimento da legislação urbanística. Assim, as abordagens conceituais relacionadas à terra e à distribuição espacial do tributo fundiário são úteis para a compreensão dos efeitos da legislação urbanística sobre os preços da terra na região metropolitana, assim como as consequências para os assentamentos residenciais populares. Igualmente importante é a metodologia proposta por Topalov, e discutida na secção Os promotores imobiliários, para a análise da intervenção destes no processo de parcelamento do solo para uso residencial popular e da intervenção do Estado através do estabelecimento de legislação urbanística.
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O território em tempos de globalização1 Rogério Haesbaert Ester Limonad
Este ensaio é uma abordagem introdutória ao estudo das novas territorialidades emergentes ao final do século XX, época tantas vezes definida como aquela marcada por um processo que, genericamente, convencionou-se denominar de globalização. Constitui, assim, uma tentativa em distinguir o que há de novo e o que ainda reproduz antigos processos sociais, verificando portanto como se manifestam novas territorialidades como o território-mundo, propalado hoje por pesquisadores das mais diversas áreas. Após alguns comentários iniciais sobre algumas controvérsias em torno dos processos concomitantes de globalização e fragmentação, a concepção de território é abordada através de um breve resgate histórico, relacionando as mudanças conceituais com as principais transformações sociais em curso. Este ensaio se encerra com uma proposta de caracterização das múltiplas faces do território em um período marcado pelos processos da globalização, depois de proceder a um esboço sintético das principais linhas de interpretação ainda hoje vigentes sobre o conceito (ou noção) de globalização.
Controvérsias em torno da globalização O termo globalização, nascido no âmbito do discurso jornalístico de teor econômico, tornou-se palavra da moda, e passou a ser utilizado de modo generalizado no discurso teórico de diversos campos do conhecimento. Pode-se dizer , com alguma ironia, que o que mais se globalizou foi a adoção deste termo para indicar a disseminação em escala planetária de processos gerais concernentes às relações de trabalho, difusão de informações e uniformização cultural. A ideia de globalização, no fim do século XX, remete de imediato a uma imagem de homogeneização sociocultural, econômica e espacial. Homogeneização esta que tenderia a uma dissolução das identidades locais, tanto econômicas quanto culturais, em uma única lógica, e que culminaria em um espaço global despersonalizado. Esta é uma versão revisada e atualizada do artigo “O território em tempos de globalização” publicado na Revista Geo UERJ. V. 3, n. 5, p. 7-20. 1° semestre de 1999. Rio de Janeiro: Departamento de Geografia – UERJ. Posteriormente, foi publicado no periódico ETC em 15 de agosto de 2007, n° 2(4), vol. 1.
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Rogério Haesbaert e Ester Limonad
Há que se considerar, porém, que tal ideia de homogeneização é falsa. Para ilustrar, tomamos como exemplo a anedota onde o remador das galés de uma nau trirreme romana sobe ao convés e diz ao capitão, “Assim não dá para continuar”; ao que o capitão, em meio a uma grande orgia, retruca “Como não? Estamos todos no mesmo barco!”. Em síntese pode-se dizer que está em curso uma homogeneização (mesmo que ela se refira apenas à consciência de que “estamos todos no mesmo barco”), mas que no entanto não atinge igualmente todos os segmentos socioespaciais, pois não somente ela se processa em pontos seletivamente escolhidos do globo terrestre como, em muitos casos, é obrigada a adaptar-se e/ou a reelaborar processos político-econômicos e culturais ao nível local. Há que se considerar, ainda, que se há uma homogeneização pelo alto, do capital e da elite planetária, há também uma homogeneização da pobreza e da miséria, considerando-se que, à medida que a globalização avança, tende a acirrar-se a exclusão socioespacial. Se muitos autores afirmam que o mundo contemporâneo vive uma era de globalização, outros, por sua vez, enfatizam como característica principal do nosso tempo a fragmentação. Globalização e fragmentação constituem de fato os dois polos de uma mesma questão que vem sendo aprofundada, seja através de uma linha de argumentação que tende a privilegiar os aspectos econômicos e que enfatiza os processos de globalização inerentes ao capitalismo, seja através do realce de processos fragmentadores de ordem cultural, que podem ser tanto um produto (veja-se o multiculturalismo das metrópoles com o aumento do fluxo de migrantes de diversas origens) quanto uma resistência à globalização (veja-se o islamismo mais radical). Haesbaert (1998a) distingue uma fragmentação inclusiva ou integradora, pautada numa lógica de “fragmentar para melhor globalizar” (como na formação de blocos econômicos), e uma fragmentação excludente ou desintegradora, que pode ser ao mesmo tempo um produto da globalização (a exclusão fruto da concentração de capital no oligopólio central capitalista) ou uma resistência a ela (no caso de grupos religiosos fundamentalistas, por exemplo). A maior parte dos estudiosos vê a globalização - ou a mundialização, termo utilizado geralmente como homônimo - antes de tudo como um produto da expansão cada vez mais ampliada do capitalismo e da sociedade de consumo. Para alguns a distinção entre globalização e mundialização seria meramente idiomática, os ingleses preferindo a primeira, os franceses a segunda. No Brasil acabou se firmando a vertente anglo-saxônica, mas alguns autores diferenciam globalização - referida mais aos processos econômico-tecnológicos, e mundialização - referida mais aos processos de ordem cultural (ver por exemplo Ortiz, 1994). 190
O território em tempos de globalização
Marx e Engels no Manifesto Comunista já destacavam o caráter globalizador do capitalismo. O capital, em seu processo de reprodução, se expande tanto em profundidade - reordenando modos de vida e espaços já organizados e consolidados - como em extensão - através da incessante incorporação de novos territórios. Estes movimentos dialeticamente conjugados conduzem, tendencialmente, à produção de um espaço global. As limitações deste trabalho não permitem aprofundar a questão das origens e bases históricas desse processo. Sem dúvida, a globalização não ocorreu de forma linear e sem resistências; passou por fases de aceleração e crises, impulsos tecnológicos e refreamentos sócio-políticos e encontra-se, em períodos mais recentes, cada vez mais subordinada aos imperativos do capital financeiro e dos fluxos mercantis e financeiros das grandes corporações transnacionais. Cabe, entretanto, distinguir e diferenciar internacionalização e globalização. Internacionalização refere-se simplesmente ao aumento da extensão geográfica das atividades econômicas através das fronteiras nacionais, não constituindo, portanto, um fenômeno novo. A globalização da atividade econômica (capitalista) é qualitativamente diferente: trata-se de uma forma mais avançada e complexa da internacionalização, implicando em um certo grau de integração funcional entre as atividades econômicas dispersas em escala planetária e em um crescimento cada vez mais pronunciado dos fluxos do capital financeiro de caráter volátil ou fictício. A globalização - compreendida neste último sentido, portanto, é mais recente; acelera-se a partir dos anos 1960 e consolida-se no decorrer da década de 1970. Todo esse processo é facilitado e torna-se possível conforme se acelera a velocidade da circulação, mediada pela técnica, em particular pelas novas formas de telecomunicação e comunicação mediada por computadores (redes) que constituem a “base material” do “espaço de fluxos” do capital financeiro. Isto leva autores como Castells (1996) a denominar a sociedade atual como uma sociedade-rede, pautada naquilo que Santos (1985, 1994) denominou meio técnico-científico informacional. A controvérsia entre globalização e fragmentação estabelece-se ao se observar que, ao lado destes processos dominantes de expansão e aprofundamento do capitalismo, que na década de 1990 incorporam ao seu domínio os antigos países socialistas, começam a surgir mobilizações em torno de propostas de contra-globalização. Estas formas de resistência, bem como as próprias consequências mais diretas da globalização, conduzem a um processo de fragmentação que se manifesta na forma de exclusão, reforço de desigualdades etc. e constituem, 191
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assim, o polo oposto aos processos hegemônicos pretensamente homogeneizadores. A simples emergência de muitas novas-velhas territorialidades antepõese à ideia de globalização na medida em que, dialeticamente, enquanto a globalização remete à ideia de unidade do diverso, muitas territorialidades que hoje emergem são de per se a própria diversidade. Procura-se, aqui, trabalhar esta controvérsia ao nível das territorialidades que, supostamente, são expressões destes processos recentes, sejam eles de globalização e/ou de fragmentação. Uma análise das territorialidades que surgiram no mundo contemporâneo - quer sejam de fato novas ou não - pode contribuir para uma melhor compreensão do próprio processo de globalização e, quem sabe, ajudar a superar as visões dicotômicas (globalização versus fragmentação) através de uma perspectiva dialética, tanto no sentido de uma globalização que fragmenta como no de uma fragmentação que ao mesmo tempo se antepõe aos processos globais. Para compreender até que ponto estas territorialidades em formação apresentam-se efetivamente como novas, impõe-se aprofundar, inicialmente, algumas questões relacionadas às concepções de território e territorialidade.
Território: algumas considerações teóricas É possível partir de uma constatação aparentemente banal: sem dúvida o homem nasce com o território, e vice-versa, o território nasce com a civilização. Os homens, ao tomarem consciência do espaço em que se inserem (visão mais subjetiva) e ao se apropriarem ou, em outras palavras, cercarem este espaço (visão mais objetiva), constroem e, de alguma forma, passam a ser construídos pelo território. Autores como Raffestin (1992) propõem uma distinção, da qual nem todos partilham, entre espaço, prisão original, primeira, e território, “a prisão que os homens constroem para si”2. Para Souza (1995, p. 97), Raffestin “praticamente reduz espaço ao espaço natural, enquanto que território de fato torna-se, automaticamente, quase que sinônimo de espaço social”. empobrecendo assim “o arsenal conceitual à nossa disposição” e não desenvolvendo a perspectiva relacional 3 a que o autor se propõe. De fato o território não deve ser confundido com a simples materialidade do espaço socialmente construído, nem com um conjunto Muitos autores preferem privilegiar a dimensão política ao definirem território. Souza (1995, p. 97, grifos do autor), por exemplo, enfatiza o caráter especificamente político (p.84) do território, definindo-o como um “campo de forças, as relações de poder espacialmente delimitadas e operando, destarte, sobre um substrato referencial”. 3 Grifo do autor. 2
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de forças mediadas por esta materialidade. O território é sempre, e concomitantemente, apropriação (num sentido mais simbólico) e domínio (num enfoque mais concreto, político-econômico) de um espaço socialmente partilhado (e não simplesmente construído, como o caso de uma cidadefantasma no deserto norte-americano, exemplificado por Souza (1995)). Desta forma, o importante a enfatizar aqui é que a noção de território deve partir do pressuposto de que: •
primeiro, é necessário distinguir território e espaço (geográfico); eles não são sinônimos, apesar de muitos autores utilizarem indiscriminadamente os dois termos – o segundo é muito mais amplo que o primeiro.
•
o território é uma construção histórica e, portanto, social, a partir das relações de poder (concreto e simbólico) que envolvem, concomitantemente, sociedade e espaço geográfico (que também é sempre, de alguma forma, natureza);
•
o território possui tanto uma dimensão mais subjetiva, que se propõe denominar, aqui, de consciência, apropriação ou mesmo, em alguns casos, identidade territorial, e uma dimensão mais objetiva, que pode-se denominar de dominação do espaço, num sentido mais concreto, realizada por instrumentos de ação político-econômica4.
Esse espaço tornado território pela apropriação e dominação social é constituído ao mesmo tempo por pontos e linhas redes e superfícies ou áreas zonas. É possível acrescentar então que são elementos ou unidades elementares do território aquilo que Raffestin denomina de malhas - que preferimos denominar de áreas ou zonas; e as linhas e os nós ou pontos - que, reunidos, preferimos denominar de redes. Nas sociedades tradicionais prevaleceria uma construção de territórios baseada em áreas ou zonas e nas sociedades modernas predominaria a construção de territórios onde o elemento dominante seriam as redes ou a geometria dos pontos e linhas. A preponderância da dimensão mais subjetiva e/ou simbólica de apropriação do espaço nas sociedades tradicionais cede lugar, nas sociedades modernas, à dimensão mais objetiva ou funcional de dominação do espaço. Preponderância, note-se bem, pois nunca existiram espaços puramente simbólicos ou puramente funcionais5. Se nas sociedades tradicionais o homem preenchia todos os poros de Pautamo-nos aqui na distinção feita por Lefebvre (1986) entre domínio e apropriação do espaço. Vide por exemplo o caso de Brasília, típica cidade “funcional” moderna, construída visando ao mesmo tempo a funcionalidade no zoneamento estrito do uso do solo e na livre circulação de veículos e o simbolismo do poder, da “capital da nação”, através da imponência do seu urbanismo e da sua arquitetura.
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seu território através de uma apropriação simbólica onde, por exemplo, uma dimensão sagrada dotava de sentido o espaço em sua totalidade, nas sociedades modernas o território passa a ser visto antes de tudo, numa perspectiva utilitarista, como um instrumento de domínio, a fim de atender às necessidades humanas (e não “dos deuses”, embora a ciência, de alguma forma, também tenha construído suas próprias “divindades”). Pode-se dizer, assim, que enquanto o território mais estável nas sociedades tradicionais era em geral fragmentador e excludente em relação a outros grupos culturais mas profundamente integrador e holístico no que se referia ao interior do grupo social, no mundo moderno capitalista a fragmentação territorial interna ao sistema é uma necessidade vital para a sua reprodução (a começar pela instituição da propriedade privada e pela dessacralização da natureza, separada do social), sendo que esta forma de organização territorial, cada vez mais moldada pela mobilidade, pelos fluxos e pelas redes, tende a fragmentar e, destarte, assimilar todo tipo de cultura estrangeira. A vinculação entre território e rede é extremamente polêmica. As abordagens vão desde aquelas que os distinguem de forma nítida, contrapondo as duas concepções (como por exemplo Badie (1995) e, de forma mais nuançada, Lévy (1993)), até aquelas que veem uma simbiose praticamente total entre elas, fazendo desaparecer a especificidade das redes no interior dos territórios. Uma tendência importante, contudo, é aquela que propõe a rede como um elemento do território ou, no máximo, como uma das formas do território se apresentar. Ainda em 1981 Bonnemaison afirmava que [...] um território antes de ser uma fronteira é primeiro um conjunto de lugares hierarquizados, conectados a uma rede de itinerários. (...) A territorialização (...) engloba ao mesmo tempo aquilo que é fixação [enraizamento] e aquilo que é mobilidade, em outras palavras, tanto os itinerários quanto os lugares. (BONNEMAISON, 1981, P. 253 - 254)
É polêmica também a relação território-lugar. Autores como Yi-Fu-Tuan (1983) chegam a preferir lugar ao invés de território, e vários outros autores trabalham com a concepção de lugar como uma nova noção contraposta ao conceito de rede. Deste modo, o lugar pode ser visto como o espaço da unidade e da continuidade do acontecer histórico (SANTOS, 1996, p. 132) frente ao espaço dos fluxos e da descontinuidade das redes (CASTELLS, 1996, p. 423). Ao se partir, porém, da noção mais ampla de espaço geográfico como um espaço relacional, definido pelas relações sociais, os espaços dos fluxos (ou das redes) e o espaço dos lugares não podem ser dissociados, porque o espaço social não existe sem os fluxos e as redes. Neste sentido a indagação de “como os signi194
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ficados espaciais podem estar ligados ou se desenvolver no interior de uma experiência na qual o ‘o espaço dos fluxos’ [...] supera o espaço dos lugares?”, feita por Henderson e Castells (1987), torna-se nada mais do que uma figura de linguagem6. Iremos optar, assim, por uma posição em que: •
o território pode ser uma noção mais ampla que lugar e rede mas pode também, em muitos casos, confundir-se com eles;
•
a rede pode ser tanto uma forma de expressão/organização do território (principalmente na atual fase globalizante) quanto um elemento constituinte do território;
•
o lugar, enquanto espaço caracterizado pela contiguidade e por ações de co-presença (GIDDENS, 1991), é uma das formas de manifestação do território, e embora no lugar não se privilegiem os fluxos e as redes, estes não podem ser vistos em contraposição a ele.
No sentido de poder contribuir para a compreensão dessa mudança de significado do território, devemos analisar as formas com que hoje ele é apropriado, em um contraponto com as práticas sociais anteriores. Ora, o conjunto de práticas sociais e os meios utilizados por distintos grupos sociais para se apropriar ou manter certo domínio (afetivo, cultural, político, econômico etc...) sobre/através de uma determinada parcela do espaço geográfico manifesta-se de diversas formas, desde a territorialidade mais flexível até os territorialismos mais arraigados e fechados. Em uma visão geopolítica do território, enquanto espacialidade social contida por limites e fronteiras sob o estatuto de um Estado-nação, por exemplo (mas nunca restrita apenas a ele), a territorialidade pode ser entendida como a estratégia geográfica para controlar/atingir a dinâmica de pessoas, fenômenos e relações através da manutenção do domínio de uma determinada área (SACK, 1986). O mundo contemporâneo, ao mesmo tempo em que se abre a fluxos como os do capital financeiro globalizado, exibe inúmeros exemplos de fortalecimento dos controles territoriais, como é evidente nas fronteiras internacionais que se fecham aos fluxos migratórios. Existe, assim, uma imensa gama de territórios sobre a superfície do globo terrestre e a cada qual corresponde uma igualmente vasta diversidade de territorialidades, com dimensões e conteúdos específicos. As conotações que a territorialidade adquire são distintas dependendo da escala, se enfocada ao nível local, cotiNeste sentido Moreira (1997, p.4), interpretando as noções de verticalidades e horizontalidades de Santos, afirma que o lugar é ao mesmo tempo horizontalidade e verticalidade; por parte da primeira, ele “tem a capacidade de aglutinar numa unidade regional os elementos contíguos”, enquanto, por outra parte da segunda, temos a “capacidade desses elementos aglutinados de se inserirem no fluxo vital das informações, que são o alimento e a razão mesma da rede”.
6
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Rogério Haesbaert e Ester Limonad
diano, ao nível regional ou ao nível nacional e supranacional. Igualmente, existem diversas concepções de território de acordo com sua maior ou menor permeabilidade: temos, desta forma, desde territórios mais simples, exclusivos /excludentes, até territórios totalmente híbridos, que admitem a existência concomitante de várias territorialidades. Embora em vários períodos da história apareçam territorialidades múltiplas, sobrepostas (vide os múltiplos domínios territoriais medievais), elas são uma marca indiscutível do mundo globalizado / fragmentado. Para fins didático-analíticos, distinguimos no Quadro I as diferentes concepções de território a partir de três linhas de abordagem conforme a dimensão social priorizada, sabendo que o que temos na realidade são distintas formas de fusão de ao menos três dimensões: jurídico-política, sempre mais enfatizada, a cultural e a econômica. Quadro I - As abordagens conceituais de território em três vertentes básicas territorialização Dimensão Privilegiada
concepções correlatas
concepção de território
principais atores/ agentes
principais vetores
perspectiva da Geografia
exemplos de trabalhos próximos a esta vertente
jurídicopolítica (majoritária, inclusive no âmbito da Geografia)
• Estado-nação • fronteiras políticas e limites políticoadministrativos
um espaço • Estado-nação delimitado e • diversas controlado sobre organizações / por meio do políticas qual se exerce um determinado poder, especialmente o de caráter estatal
relações de dominação política e regulação
Geografia Política (Geopolítica)
Alliès (1980) a visão clássica de Ratzel
cultural(ista)
• lugar e cotidiano • identidade e alteridade social • cultura e imaginário (imaginário: “conjunto de representações, crenças, desejos, sentimentos, em termos dos quais um indivíduo ou grupo de indivíduos vê a realidade e a si mesmo”)
• indivíduos produto fundamentalmente • grupos da apropriação do étnicoespaço feita através culturais do imaginário e/ou da identidade social
relações de identificação cultural
Geografia Humanística e/ou Geografia Cultural
Deleuze e Guattari (1972) Tuan (1980 e 1983)
econômica (muitas vezes economicista) minoritária
• divisão territorial do trabalho • classes sociais e relações de produção
(des)territorializa ção é vista como produto espacial do embate entre classes sociais e da relação capitaltrabalho
Geografia Econômica
Storper (1994) Benko (1996) Veltz (1996)
Elaborada pelos autores.
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• empresas relações (capitalistas) sociais de • trabalhadores produção • Estados enquanto unidades econômicas
O território em tempos de globalização
O território entre a cultura e a natureza Outra questão que merece um tratamento mais detalhado é aquela que diz respeito à indissociabilidade entre território e natureza, geralmente menosprezada pelos geógrafos. Com todas as controvérsias que esta diferenciação implica, natureza e cultura ou natureza e sociedade estão presentes (ou pelo menos deveriam estar) em toda definição de espaço geográfico e território. Podemos mesmo partir da premissa de que as concepções de território bem como, aquela mais ampla, de espaço geográfico, transitaram ao longo do tempo entre uma visão mais naturalista ou naturalizante e uma visão mais culturalista ou sociologizante. Na abordagem naturalista temos uma naturalização do território que pode se dar de duas formas: •
uma naturalização biologicista, que entende o homem /a sociedade como simples continuidade, extensão ou até mesmo raiz do mundo da natureza, que teria como destino natural (como os próprios animais) dominar certa parcela do espaço (seu nicho ecológico) e seus recursos para sobreviver (evitando, assim, na argumentação de seus defensores, dilemas como a superpopulação). A tese de Gaia, da Terra como um grande ser vivo, pode levar a conclusões vinculadas a esta perspectiva de território;
•
uma naturalização de fundo funcional-economicista (e, em última instância, imperialista), como na tese determinista de que um Estado ou uma civilização só se desenvolvem, progridem a partir de sua expansão físico-territorial. Um exemplo disso são as “pan-regiões” de Karl Haushofer, ao longo de faixas longitudinais que iriam de um polo ao outro, a fim de garantir, em cada uma delas, a diversidade e a autossuficiência em recursos naturais.
Já no outro extremo, uma abordagem culturalista sobrevaloriza a constituição social do território, ao ponto de prescindir de qualquer base física ou natural para sua existência: •
numa visão que prioriza e sobrevaloriza o político (visão politicista), o território não passa de uma construção sócio-política, de um conjunto de normas ou forças que atuam sem ligação indissociável com a natureza ou com o ambiente físico socialmente construído;
•
numa outra visão culturalista, de caráter sacralizador ou mitificador, o espaço que compõe um território não passa de uma dimensão simbólica, mítica, enquanto produto de uma sacralização totalizadora, morada dos deuses (ou o espaço se confundindo com os próprios deuses). Aqui, as leituras culturalista e naturalista do território acabam se confundindo, na 197
Rogério Haesbaert e Ester Limonad
medida em que a sacralização pode tornar completamente indissociáveis sociedade e natureza. De fato não podemos ignorar, principalmente no âmbito da Geografia, que a definição de território precisa levar em conta a dimensão material e/ ou natural do espaço, mas sem sobrevalorizá-la. É importante não esquecer que há sempre uma base natural para a conformação de territórios e que, dependendo do grupo social que o produz (por exemplo, as comunidades indígenas), a relação dos grupos sociais com a primeira natureza pode mesmo ser primordial na sua definição. As diferenças naturais atuam em si mesmas como uma espécie de território – neste caso preferimos utilizar o termo domínio natural - que, com a modernidade e sua dinâmica tecnológica, acabaram bastante relativizadas. Hoje, entretanto, com a intensidade das transformações socioeconômicas, de efeitos imprevisíveis, essa relação volta a receber atenção. Ecossistemas, biomas, desenvolvimento sustentável e biodiversidade são concepções que, sob prismas distintos, evidenciam esse retorno a uma natureza indissociavelmente ligada à dinâmica da sociedade. O homem geralmente tem tratado o espaço natural exclusivamente como esses territórios-domínio, fechados em si mesmos, e não na sua imbricação com redes (tanto ligadas à própria dinâmica da natureza como socialmente construídas), vendo-o assim parcelizado, com fronteiras claras e não conectado através de fluxos globais. Vide os diferentes tipos de vegetação e solo e a dinâmica climática planetária - se os primeiros são marcados mais pela continuidade espacial, a segunda é marcada sobretudo por movimentos e fluxos globalmente conectados, e hoje nem um deles pode ser conhecido sem as múltiplas vinculações com as redes do capitalismo planetário. Como já foi ressaltado, a diferenciação natural foi uma das primeiras bases para a formação de territórios (e ainda o é em certos espaços/grupos sociais, como os indígenas da Amazônia, os tuaregues do Saara ou os nômades mongóis e tibetanos). Fornecendo recursos diferentes e desigualmente distribuídos, bases físicas distintas para a ocupação, ela não só condicionou redes moldadas por uma divisão territorial do trabalho (especialmente nos setores extrativo e agrícola), mas também ajudou a moldar diferentes identidades territoriais, associadas às paisagens e ao tipo de recurso natural dominante. Hoje, numa outra escala, aparece também a formação de territórios-reserva associados a uma rede de caráter mundial. As reservas naturais e os “patrimônios culturais da humanidade” podem ser considerados tipos específicos de território, produtos característicos da modernidade contemporânea7. 7
Embora o primeiro parque nacional tenha sido criado ainda no século XIX (Yellowstone, nos Estados
198
O território em tempos de globalização
Seu valor ao mesmo tempo simbólico e concreto e seu papel conservacionista parecem a princípio contradizer o espírito mutável da sociedade moderna ou, pelo menos, impor-lhe limitações de ordem ao mesmo tempo cultural e natural para a transformação do espaço geográfico. A institucionalização de uma natureza preservada como objeto de contemplação na forma de santuários naturais (BERQUE, 1995) e, hoje, também como reserva biotecnológica, numa espécie de territórios-clausura (de acesso pelo menos temporariamente vedado), está sendo colocada em cheque na medida em que muitas espécies não irão sobreviver isoladas umas das outras, sendo imprescindível a criação de redes (corredores) que interliguem as diversas reservas, pelo menos aquelas pertencentes a um mesmo ecossistema.
Antigas e novas territorialidades Se o território é uma construção histórica, sem esquecer que dele fazem parte diferentes formas de apropriação e domínio da natureza, as territorialidades também são forjadas socialmente ao longo do tempo, em um processo de relativo enraizamento espacial. Porém, se hoje o mapa da Europa, por exemplo, é redesenhado, retomando algumas configurações de muitas décadas atrás, porque falar em novas territorialidades? O que existiria de efetivamente novo? Cabe aqui um breve parêntese, para considerar, ainda que de forma sumária, a identificação entre Estado e território e o seu caráter relativamente recente. No decorrer do século XX, até 1980, pode-se dizer que se consolidou uma identidade entre Estado e base espacial (ou, mais simplesmente, o Estado territorial moderno), a qual foi construída de distintas maneiras ao longo da história, construção em larga escala iniciada na alvorada da era moderna, no século XVI - salvo raras exceções, como a França (século VIII), Inglaterra (século XII) e Portugal (século XIII), entre outros. Esta identidade entre Estado (enquanto fonte de poder) e espaço (tornado território) propiciou de certa forma a construção de uma unidade de base territorial com limites político-administrativos definidos, unidade esta alcançada muitas vezes mediante longos e extenuantes conflitos, em que identidades e culturas locais tiveram que se subordinar ou foram subjugadas, por um largo espaço de tempo, a uma identidade e cultura nacional alheia8. Unidos), áreas de preservação natural só se difundiram efetivamente em nível global a partir das décadas de 1950 e 1960. 8 Isto se deu tanto através de manobras políticas relacionadas aos direitos de sucessão real (Escócia anexada ao Reino Unido), como por acordos político-econômicos (caso da unificação da Alemanha no século XIX através da ação de Bismarck), através de lutas de unificação do território (caso da Itália) ou ainda pela
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Rogério Haesbaert e Ester Limonad
Temos, assim, no processo de construção dos Estados contemporâneos uma mescla de distintas identidades culturais e territoriais, que antes conformavam distintas territorialidades (variadas formas de apropriação de uma parcela do espaço por distintos grupos sociais). Neste processo de construção dos Estados nacionais temos a relação cada vez mais forte entre o Estado territorial e o Estadonação. O Estado e seu território tendendo a promover uma única identidade, construída, vale ressaltar mais uma vez, através do processo de construção de uma identidade nacional, seja do ponto de vista cultural - em termos da partilha de uma cultura (língua, religião...) - que leva à asfixia de traços culturais e tradições minoritários, seja do ponto de vista da organização social como um todo. Por um largo período de tempo, portanto, diversas territorialidades, que hoje emergem com caráter de novas, foram subordinadas ou subjugadas coercitivamente, e permaneceram, por assim dizer, submersas, como é o caso de muitos processos em curso nos anos 1990 no ex-bloco socialista. Cabe, portanto, questionar onde está a novidade. O fato é que, se as velhas territorialidades pareciam mais nítidas ou mais fáceis de ser identificadas, hoje há uma complexificação e uma sobreposição muito maior de territórios. Muitas vezes não se tratam de novas territorialidades enquanto construção de novas identidades culturais; a novidade está mais na forma com que muitas destas territorialidades, imersas sob o jugo da construção identitária padrão dos Estados-nações, ressurgem e provocam uma redefinição (ou mesmo indefinição) de limites político-territoriais, alterando a face geográfica do mundo neste fim de milênio. Da intensificação do fluxo de pessoas de diferentes classes, línguas e religiões à intensificação do fluxo de mercadorias, capital, informações, tudo parece mais móvel, relativizando as fronteiras territoriais tradicionais como forma de controle. Hoje o espaço nacional cede rapidamente lugar aos espaços locais, seletivamente escolhidos para se inserirem nos circuitos da globalização. Entre as características que regem a emergência destas novas-antigas territorialidades temos, inseridas nos processos de globalização /mundialização: 1.
a formação simultânea de uma elite globalizada vis a vis a uma enorme massa de excluídos que buscam reconstruir seus territórios, muitas vezes de forma extremamente reacionária e ainda mais discriminatória que a dos Estados-nações.
2.
o fortalecimento dos processos de âmbito local frente ao regional e
coerção e força (países balcânicos que constituíam a antiga Iugoslávia) e pela definição arbitrária de espaços coloniais de dominação (vide a respeito a .partilha da África no início do século XX) - estes, hoje, com fortes tendências ao esfacelamento a partir de conflitos de fundo étnico-territorial.
200
O território em tempos de globalização
ao nacional - seja como meio de fortalecer condições para competir no mercado, seja como forma de resistência cultural; 3.
o aparecimento de vínculos complexos de ordem concomitantemente local e global, sintetizados nos processos de glocalização analisados por Robertson (1995), e, mais radicalmente, na formação de translocalidades, tal como proposto por Appadurai (1997);
4.
o recrudescimento de regionalismos e nacionalismos de ordem político-cultural - enquanto movimentos pelo menos parcialmente contra-globalizadores;
5.
a constituição de novas modalidades político-institucionais reguladoras do território através, por exemplo, de entidades supranacionais e de organizações não-governamentais.
Uma das causas fundamentais para esta reestruturação estaria nas mudanças do papel normativo e regulador do Estado, enquanto aglutinador de diferentes interesses, onde a fração no poder gozaria de uma autonomia relativa (POULANTZAS, 1978). Enquanto em alguns lugares há um enfraquecimento do Estado, que não tem mais meios de manter uma pretensa coesão nacional frente às disputas regionais e dos lugares para se globalizar (a “guerra dos lugares” a que alude Santos, 1996). Em outros lugares os nacionalismos são retomados, sob as mais diversas argumentações e colorações políticas, da esquerda ultrarradical à extrema direita: muitas vezes em nome da preservação e/ou defesa da identidade territorial. Estamos muito longe, entretanto, do fim dos territórios, como tentou defender Badie (1995), mesmo ao se proceder a uma simplificação grosseira ao se restringir a noção de território às relações na escala do Estado-nação.
Por uma caracterização geral dos territórios Como instrumento geral de análise e como síntese da multiplicidade de feições que o território e os processos de territorialização assumem num mundo dito globalizado, é possível afirmar que: a.
A construção do território resulta da articulação de duas dimensões principais, uma mais material e ligada à esfera político-econômica, outra mais imaterial ou simbólica, ligada sobretudo à esfera da cultura e do conjunto de símbolos e valores partilhados por um grupo social. Assim, a princípio, há três possibilidades na fundamentação dos territórios, conforme estejam mais ligados a uma ou outra destas três esferas da sociedade. Num sentido mais material201
Rogério Haesbaert e Ester Limonad
funcionalista, o território pode estar vinculado tanto ao exercício do poder e ao controle da mobilidade via fortalecimento de fronteiras, quanto à funcionalidade econômica que cria circuitos relativamente restritos para a produção, circulação e consumo.
202
b.
Num sentido mais simbólico, o território pode moldar identidades culturais e ser moldado por estas, que fazem dele um referencial muito importante para a coesão dos grupos sociais.
c.
O território, além de ter diferentes composições na interação entre as dimensões política, econômica e simbólico-cultural, pode ser visto a partir do grau de fechamento e/ou controle do acesso que suas fronteiras impõem, ou seja, seus níveis de acessibilidade. Assim, teríamos desde os territórios mais abertos, de fronteiras permeáveis, intensamente conectados ou redificados, até aqueles mais fechados, quase impermeáveis. Entre os dois extremos desdobram-se os mais diversos níveis de permeabilidade ou flexibilidade (ver, por exemplo, a “territorialidade flexível” apontada por Souza (1995, p.87) para as metrópoles modernas).
d.
Uma propriedade geográfica fundamental diz respeito à continuidade e descontinuidade do território, ou seja, seu maior ou menor grau de fragmentação. Territórios globais tendem a se fragmentar e ao mesmo tempo se rearticular pela presença de diversos tipos de rede que vinculam seus diversos segmentos. A velha estratégia do “dividir para melhor governar”, embora mais complexa, também se encontra presente no mundo contemporâneo, vide os exemplos da Bósnia e da Palestina. Neste sentido, mais tradicional, de território político que reivindica a condição de Estado-nação, a fragmentação geográfica não é, entretanto, como no passado, uma condição para a fragilização do poder., tendo em vista que agora este se potencializa pela capacidade conectiva (de conexão) de cada fragmento do espaço, mediada pelas relações sociais necessárias à reprodução social.
e.
O território deve ser trabalhado sempre a partir de sua perspectiva temporal, já que envolve profundas transformações ao longo da história. Desse modo, tomando como referência as temporalidades de curta e longa duração tal como definidas por Fernand Braudel, temos desde os territórios episódicos ou conjunturais, que podem mudar ou mesmo desaparecer em questão de horas (como os territórios da prostituição em certas áreas das grandes cidades (MATTOS; RIBEIRO, 1994), até os territórios de mais longa duração (como
O território em tempos de globalização
muitos Estados-nações), estruturais a uma sociedade. Com relação à temporalidade, devemos considerar também o caráter permanente, cíclico ou circunstancial do território. f.
Outra característica a ser considerada é a maior ou menor instabilidade territorial, seja pela facilidade em recompor os desenhos fronteiriços, seja pela facilidade em diminuir e aumentar o seu grau de acessibilidade. Logicamente esta instabilidade está amplamente ligada à maior ou menor fragmentação territorial e à duração de uma territorialidade no tempo, conforme comentado nos dois itens anteriores. A isso se soma ainda a maior ou menor superposição a que um território está submetido (item a seguir).
Juntamente com o grau de instabilidade territorial encontra-se a maior ou menor possibilidade de um território ser entrecruzado por ou se inserir no interior de outros, já que uma das características do mundo dito global é promover uma complexa superposição de territórios. Vinculada a esta super ou inter-posição encontramos a questão da escala territorial: continua relevante para o geógrafo saber se uma territorialidade tem abrangência local, regional, corresponde aos limites do Estado-nação ou cobre o mundo como um todo. Porém, mais do que isto, é imprescindível, hoje, verificar até que ponto os territórios estão des-conectados nesta complexa teia de imbricação entre múltiplas escalas9.
Uma nova territorialidade possível: o território-mundo Entre as novas territorialidades em gestação, talvez a mais surpreendente seja aquela que envolve a escala-mundo. É a sua existência, afinal, que de diversas maneiras coroaria os processos de globalização, de certa forma legitimando-os, na medida em que a dimensão política da globalização, o controle político dos fluxos (especialmente de capitais), é a menos evidente. Simbolicamente, territórios como aqueles das reservas naturais e patrimônios da humanidade podem ajudar na consolidação de uma identidade-mundo, capaz de unir numa mesma “rede-território” toda a civilização planetária, que pela primeira vez (desde a Segunda Grande Guerra) coloca em risco sua própria existência na superfície da Terra. Estaríamos vivenciando um processo radicalmente novo de territorialização, pelo menos no que diz respeito à escala planetária, com a formação de Uma tentativa de apreender empiricamente estas complexas des-conexões, da qual resultou um mapeamento de diferentes redes/escalas que perpassam as cidades, incluindo-as ou excluindo-as dos circuitos externos à região (no caso o leste paraguaio), é o trabalho de Haesbaert (1998b).
9
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Rogério Haesbaert e Ester Limonad
uma nova identidade territorial, um novo espaço a controlar (e preservar) de maneira conjunta, a Terra em sua totalidade (ou a “Terra pátria”, no dizer de Morin e Kern (1993))? Essa possibilidade de uma sociedade global no sentido positivo, e não apenas negativo de opressão e controle (do Grande Irmão planetário, como diria Orwell em seu romance 1984), coloca pela primeira vez na história a possibilidade de uma “sociedade-mundo” (LÉVY, 1992) onde valores como a democracia, a autonomia e os direitos humanos seriam de fato universalizados. Para isso, uma nova identidade sócio-territorial, também planetária, torna-se imprescindível. Neste sentido, a consciência global dos problemas (ecológicos, político-militares, econômicos, médico-sanitários...) pode constituir um primeiro passo. Lévy, numa visão a partir do contexto europeu, identifica como problemas mundiais contemporâneos aqueles relacionados ao meio-ambiente, às questões demográficas, médicas (Aids, cólera...), ao tráfico de drogas e ao armamentismo. Ressalta que “a questão é saber se, para um problema mundial, há também um tratamento mundial” (1992, p.22), ou, em nossa opinião, se se tratam de questões que estimulam a integração (para sua resolução) ou se, por manifestarem uma situação de crise, evidenciam muito mais uma dinâmica de fragmentação do que de globalização. O surgimento de uma opinião pública internacional (com uma mídia globalizada) e de uma política mundial (com entidades e instituições como a ONU, o Grupo dos Sete, o FMI e as ONGs) são respostas ainda tímidas, ou exclusivamente a serviço das grandes redes moldadas pela elite planetária. Em síntese, Lévy afirma que “o homem em geral não tem maior significação hoje do que no passado; mas a generalidade dos homens ganha sentido” (1992, p.214). O novo padrão que tenta moldar a sociedade vai gradativamente diminuindo as distâncias no nível planetário, ao ponto de, na “sociedade-mundo” de Lévy, termos uma distância nula, pois “todos os pontos da Terra pertencem a uma mesma sociedade” (1992, p.23) através de redes sincronizadas. Essa afirmação a nosso ver é hipotética - só é válida, se é que a sociedade -mundo está de fato se estruturando, para um grupo social muito seleto. Talvez esteja se moldando assim, hoje, uma nova concepção de território: um território que, acoplando inúmeras redes, poderia dar-lhes uma unidade e incorporá-las, integrando-as num grande lugar: o território-mundo. Vide a polêmica teoria de Gaia, da Terra como um grande ser vivo - que, apesar de todas as críticas e do “naturalismo” (ou mesmo, por outro lado do “espiritualismo”) a que está propensa, que pode ter um importante papel ao demonstrar a necessidade dessa identidade-mundo, reunindo de maneira indissociável a natureza e 204
O território em tempos de globalização
a sociedade. O problema é distinguir que grupos a utilizam/manipulam e que níveis de autonomia e em que escala estão realmente dispostos a difundí-la.
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O fato metropolitano – enigma e poder1 Ana Clara Torres Ribeiro Sob o familiar, descubram o insólito. Sob o cotidiano, desvelem o inexplicável. Que tudo que é considerado habitual Provoque inquietação (Brecht)
O Fato Metropolitano – enigma e poder, enquanto campo de reflexão, permitiu-nos a pesquisa bibliográfica de alguns planos analíticos que informam (ou podem informar) o debate contemporâneo da “grande cidade” no país. Conseguimos, sobretudo, esclarecer alguns dos mapas2 teóricos, disciplinares e empíricos, que constituem os caminhos atuais para a compreensão analítica da complexidade metropolitana. Face ao enigma da metrópole, a misteriosa vida coletiva das “grandes cidades”, preocupamo-nos, especialmente, em localizar os parâmetros/paradigmas das visões sintéticas em ciências sociais que orientam, hoje, a produção nesta área de conhecimento e conformam também a nossa possibilidade de contribuir para o debate da cidade na formação social brasileira. O mapeamento aqui esboçado privilegiou o roteiro (caminho/trajeto) de conhecimento, tentando-se o uso de um processo de aproximação sucessiva que permitisse o desdobramento articulado de planos de observação e interpretação da realidade social contemporânea.
A visão sintética – sobre a possibilidade de interferir no debate Acreditamos que para a reflexão da sociedade brasileira hoje seja essencial a compreensão de visões sintéticas sobre as metrópoles do país. Denominamos de visões sintéticas aquelas apreensões da realidade social que surpreendem Versão revisada e atualizada pelo autor. Este trabalho foi originalmente apresentado à XXXVI Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) em julho de 1984. Uma primeira versão foi publicada nos Cadernos PUR/UFRJ, Ano I, n°1, jan/abr 1986 [100-125]. Posteriormente, foi publicado no periódico ETC em 1º de setembro de 2007, n° 2(5), vol. 1 2 Mapa – expressa, idealmente, orientação para a leitura do espaço social, histórico e político; apontando, simultaneamente, para um conjunto de possíveis trajetos no processo de conhecimento. 1
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O fato metropolitano – enigma e poder
o estado da sociedade, vinculando-o, fortemente, ao seu passado histórico e vinculando-o às perspectivas do futuro. Tratamos, aqui, simultaneamente, da necessidade de apropriação plena das teorias e do questionamento das próprias teorias enquanto fornecedoras de macro-parâmetros para a compreensão da realidade social. Neste sentido, devemos lembrar que as principais matrizes político-filosóficas do pensamento social contemporâneo (Marx, Weber, Durkheim) enfrentaram o enigma da “grande cidade” surgida da revolução industrial e da afirmação da hegemonia capitalista – demonstração viva de transformações históricas na sociedade, na técnica e na cultura. A “grande cidade” expressa/impõe, em Marx, o reconhecimento histórico das contradições sociais (capital-trabalho) oriundas da re-criação da sociedade pelo capital a partir da conquista/destruição das formas sociais pré-existentes de reprodução da vida coletiva. A “grande cidade”, portanto, constitui um espaço desenhado (ou redesenhado) pelo poder do capital sobre a sociedade (relação campo-cidade); contendo, de forma exemplar, as novas desigualdades (contradições fundamentais) produzidas e inerentes à organização social sob domínio do modo de produção capitalista – divisão social do trabalho (cooperação ampliada no processo de produção), exploração da força de trabalho (existência histórica do trabalhador livre), afastamento radical entre trabalhador e meios de subsistência e de trabalho (apropriação privada dos meios de produção e salário). A “grande cidade” é, assim, concomitantemente, expressão plana das necessidades de reprodução do modo de produção capitalista e das suas contradições fundamentais, expandidas e acirradas no próprio movimento da sua imposição histórica – contém dominação mas, contém, também, a possibilidade de sua superação. Em Weber sobressai, metodologicamente, a busca do modelo, da ideiasíntese (tipo ideal) capaz de captar – em suas características radicalizadas – a face econômico-social da sociedade que se impunha, historicamente, a partir das transformações técnicas e econômicas profundas da revolução industrial. A ciência e a racionalidade alimentam o novo modelo de organização social, reforçando os paradigmas contemporâneos, do exercício do poder e suas bases ideológicas da construção da modernidade. Comunidade-sociedade constituem, no período (ver TONNIES, 1947; SIMMEL, 1926), conceitossíntese da mudança histórica ocorrida nas formas de vida social, nos valores e 207
Ana Clara Torres Ribeiro
nos elementos psicossociais de convicção e controle social. A “grande cidade” espelha / acompanha, em Weber, os processos históricos, numa multiplicidade de tipos que antecipa tendências atuais na análise do fenômeno urbano: critérios quantitativos, qualitativos, político-administrativos e funcionais. A busca da construção tipológica se produz em Émile Durkheim, visando estabelecer os parâmetros objetividade científica na análise sociológica. As sociedades movem-se no sentido da complexidade crescente, destruindo as barreiras entre os tipos mais elementares de vida coletiva. O processo denominado “coalescência dos segmentos sociais” expressa, no autor, o movimento histórico de ruptura com o passado, diluindo fronteiras sociais e físicas pré-existentes. Tal processo contempla, ainda, a possibilidade de inteligibilidade do estado da sociedade (sua normalidade ou patologia) e a orientação para a intervenção do “homem público”, ou melhor, do Estado. A “grande cidade” moderna manifesta um momento complexo da sociabilidade humana (vida coletiva)3, da conformação do indivíduo à divisão do trabalho social e à cooperação social, isto é, ao amoldamento oriundo do meio social interno da sociedade histórica em que vive. As formas de apreensão do fenômeno urbano, rapidamente referidas acima, expressam uma formulação sintética dos fatos sociais, econômicos e espaciais profundamente informada histórica e teoricamente. A “grande cidade” é, portanto, compreendida no interior de visões de mundo claramente calcadas em oposições político-filosóficas que envolvem tanto a compreensão das transformações sociais (concepções sobre a história humana) como a construção de interferências políticas-radicalmente distintas – na realidade social. Acreditamos que a ausência de uma postura definida com relação à história e à vida coletiva marque, acentuadamente, as tentativas atuais de compreensão do fato metropolitano na realidade brasileira, fragilizando, significativamente, a possibilidade de interferir no debate urbano e a possibilidade de compreender o sentido histórico dos fatos sociais nas “grandes cidades” do nosso tempo e espaço. Sem passado e sem futuro, a análise em ciências sociais perde em eficácia e em contundência, aproximando-se, perigosamente, do pensamento circuns tancial, sensitivo e acrítico. A complexidade e o ritmo da vida no contexto urbano-metropolitano alimentam esta possibilidade de fragmentação da percepção induzindo a análise à desestruturação temática ou à inovação aparente cuja tendência é ser rapidamente abafada por novos fatos ou por novas formas de olhar a realidade social. 3
“Enquanto a organização social for essencialmente segmentaria, a cidade não existe” (DURKHEIM, 1967, p. 220).
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No entanto, é exigido do analista de formação social brasileira o seu posicionamento face aos novos paradigmas que procuram circunscrever a “grande cidade” nos marcos de novas visões de mundo e apreensões globalizantes do destino social. Julgamos que este desafio – inicialmente assustador – constitua uma possibilidade virtual de ruptura com os rótulos (caos, desordem) que são seguidamente projetados sobre os extremamente complexos espaços urbanometropolitanos do país. Por outro lado, os novos paradigmas vinculam-se a rupturas ou inovações dos grandes meios teóricos tradicionais do pensamento em ciências sociais; desconhecendo as suas origens políticas, filosóficas e teórico metodológicas dificilmente conquistaremos a oportunidade de avaliar suas consequências para a análise da realidade urbano-metropolitana brasileira4. Ao propor os planos analíticos e interpretativos, referidos na introdução, pensamos, sobretudo, nestas novas frentes teóricas cujo ordenamento é essencial já que podem orientar a nossa leitura quotidiana da realidade metropolitana.
Compreensão do momento histórico Este plano analítico introduz a necessidade de compreensão do fenômeno metropolitano em interligação com os avanços teóricos atuais relativos ao estágio/ momento histórico do capitalismo. Devem ser consideradas, neste sentido, as inovações factuais e interpretativas que assinalam a presença de processos históricos (conjunturais/ estruturais) que transformam, significativamente, a dimensão e o caráter da metrópole. A “grande cidade” está intrinsecamente associada, hoje, à escala mundial do processo de acumulação do capital. E, também, encontram-se analiticamente articuladas ao macroespaço metropolitano as formas de manifestações contemporâneas da fração capitalista hegemônica – o capital financeiro5. Estas observações assinalam o caráter historicamente móvel do conceito de metrópole, ou seja, a sua facies pressupõe, teoricamente, a existência de determinados processos econômicos, institucionais e políticos. A admissão da importância destes processos impede a generalização do conceito de metrópole a partir de critérios exclusivamente político-administrativos ou tradicionalmente funcionais. “O que devemos aprender com os antigos é como fazer coisas novas” – Bertold Brecht apud Peixoto (1974, p.227). “O capitalismo avançado está composto de unidades econômicas relacionadas entre si em escala mundial em termos de capital, mercados e processos de trabalho (internacionalização da força de trabalho, independência internacional das cadeias de produção e distribuição, etc.); todas se beneficiam, de certa forma, do desenvolvimento dos meios de transporte e comunicações” (CASTELLS, 1979, p.115).
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Os novos patamares – historicamente significativos – do processo de modernização capitalista, uma vez traduzidos empiricamente, poderiam permitir a compreensão das atuais hierarquias urbano-metropolitanas. Neste sentido, acreditamos que seja essencial o lastreamento teórico e factual das formas contemporâneas de realização do capital, de maneira a permitir o encaminhamento: •
da absorção consciente dos avanços teóricos atuais relativos, sobretudo, aos países capitalistas centrais;
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da compreensão das metrópoles face à especificidade da inserção capitalista periférica.
Cabe assinalar, neste plano analítico, os riscos representados por uma aceitação linear dos avanços teóricos relativos à realidade metropolitana dos países capitalistas centrais. A cidade do capital (LOJKINE, 1981; TOPALOV, 1978) – desdobrada conceitualmente – explica parte dos processos metropolitanos; restando por desenvolver as suas manifestações concretas (setoriais, espaciais e demográficas) em formações sociais específicas. Um desenvolvimento teórico deste teor teria possivelmente o poder de contribuir para o esclarecimento do caráter das novas relações de subordinação colocadas ao plano internacional e dos processos de articulação que agilizam e usufruem dos espaços metropolitanos historicamente construídos6. As características essenciais das face contemporânea do modo de produção capitalista colocam, assim, em questão, no âmbito de discussões atuais, as práticas de absorção/adequação dos espaços metropolitanos às novas órbitas e ritmos do processo de acumulação do capital. Por outro lado, a enorme mobilidade dos processos econômicos sugere, ainda, a necessidade de reflexão do virtual desbaratamento das condições históricas (trabalho sócia) acumuladas em determinados espaços metropolitanos dos países não-hegemônicos. A estrutura urbano-metropolitana de um país adquire, hoje, uma dimensão conexa às suas articulações econômicas internacionais, constituindo, assim, um veio privilegiado de observação do estado da sociedade a que nos referimos no início deste texto. Este plano analítico valorizou as relações econômicas e financeiras que ajudam a esclarecer os limites do estudo da metrópole assumida como objeto isolado de investigação. De forma sintomática, cada vez com maior “[...] As mesmas razões que fazem com que o espaço subdesenvolvido seja um espaço instável, fazem com que ele seja igualmente um espaço diferenciado. Uma vez que as forças externas alcançam um espaço qualquer e forçam a sua transformação, elas são obrigadas a se compor com a herança do passado que marca este espaço num momento dado. O espaço é então um compromisso entre um tempo externo representado pelas variáveis impostas de fora e um tempo interno representados pelas variáveis já localmente amalgamadas” (SANTOS, 1978, p. 110).
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frequência, a conotação e o significado do urbano extrapolam o marco construído para envolver a rede urbana e os fluxos (ver CAMARGO; LAMPARELLI; CONCEIÇÃO, 2007) e, para envolver, também, conteúdos inovadores na cidade e na urbanização os caminhos das novas contradições sociais. No urbano começam a sintetizar-se, em qualquer direção, os problemas da expansão do capitalismo no Brasil, na forma da estruturação oligo-monopolista fortemente interpenetrada pelo Estado. Não há praticamente qualquer dimensão da vida nacional que não se reflita imediatamente num problema urbano ou num problema que explode como urbano [...] (OLIVEIRA, 1977, p. 67)
Estado e planejamento O Estado administrador ou harmonizador das condições históricas do desenvolvimento capitalista surge, nas análises contemporâneas, transmutado em agente econômico e político direto da acumulação. Tanto o aparelho (ou aparelhos) de Estado quanto os espaços urbano-metropolitanos passam, nesta postura política analítica, a assinalar (ou decodificar) o gigantismo e a complexidade dos processos econômicos atuais – aglomeração/ concentração/ centralização e poder. A metrópole é, assim, a expressão materializada das novas formas econômicas (oligo-monopolistas) e dos novos patamares financeiros e técnicos do processo de acumulação de capital. Expressa, desta maneira, o espaço urbanometropolitano, poder e expropriação e, também, domínio e alienação. A escala dos processos e a modelagem do espaço pressupõem a intervenção dos organismos governamentais, de tal forma a estimular os fluxos financeiros e materiais indispensáveis e a reduzir as resistências decorrentes da segmentação e fragmentação espaço-sociais originadas de formas de organização social historicamente precedentes (OLIVEIRA, 1977). Metrópole e acumulação configuram, teoricamente, duas faces de uma mesma moeda. Estado e unidades capitalistas (polivalentes e polipresentes) passam a constituir a expressão institucional de um mesmo processo, na sua formulação e nos seus propósitos, de adequação das condições históricas metropolitanas (e nacionais) às novas necessidades do modo de produção capitalista.
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Através desta linha de reflexão o planejamento perde sua racionalidade técnica, expressando, em sua racionalidade e em sua técnica7, os interesses hegemônicos que usufruem da cena urbana como limiar/patamar histórico indispensável ao alcance e à subordinação de novos espaços, novas populações, novas produções e novas riquezas às formar modernas de realização e acumulação capitalistas. A discussão da metrópole envolve, assim, diretamente a discussão do planejamento e do Estado, constituindo este plano analítico a face política do plano analítico anterior. Por outro lado, o plano analítico II tem constituído um núcleo teórico resistente e capaz de contra-restar a tendência à fragmentação da avaliação das ações do Estado – metas setoriais, inovações técnicas, reorganizações administrativas cujo número e diversidade dificultam, enormemente, a elaboração de visões sintéticas inovadora. No entanto, cabe ao analista observar, ainda, a produção conceitual subjacente ao que denominamos, aqui, visão sintética. Dificuldades podem ser assinaladas no esclarecimento de particularidades históricas e, especialmente, no acompanhamento do movimento das conjunturas políticas e econômicas. Neste sentido, a perspectiva unívoca do estado pode contribuir para que permaneça oculta parte de suas características nos países periféricos – entre o “Pois o planejamento [...] é o sinal mais marcante do capitalismo das oligopólios. Pois o planejamento é uma forma transformada de lutas de classes, horizontal e verticalmente. Ele emerge como um trabalho técnico cuja tarefa é racionalizar a irrazão do sistema capitalista: esse lócus da racionalização da irrazão é o Estado. Pois o capitalismo dos oligopólios tornou o Estado absolutamente indispensável para a sustentação do modo de produção capitalista”. (OLIVEIRA, 1978, p. 2).
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tradicional e o moderno – e, desta maneira parte do sentido político das ações de planejamento (subordinação à escala local e regional do poder). Isso dificulta a identificação da manifestação desigual das classes, frações de classes, segmentos sociais e forças sociais no espaço, nas regiões e nas metrópoles do país8. Afinal, quem são os novos príncipes dos intelectuais/planejadores modernos? Quais são os conteúdos político-ideológicos das metrópoles na fase contemporânea do modo de produção capitalista? Como podemos articular uma tipologia de cidades (metrópoles) que considere a variação de situações históricas, sociais e políticas na formação social brasileira? Podemos acrescentar, nesta direção, que a ação do Estado, através das chamadas regiões metropolitanas, tem contribuído, historicamente, tanto para homogeneizar processos e espaços quanto para homogeneizar problemáticas e conceitos, o que tende a dificultar, ainda mais, qualquer tentativa de contribuição para a construção da tipologia sugerida
Análise intra-urbana Os marcos inovadores da análise urbana assinalam o “vazamento” da metrópole, ou seja, sua natureza histórica subordinada/subordinadora com relação aos processos fundamentais da etapa contemporânea do modo de produção capitalista. A estrutura interna da metrópole constitui, então, o campo de manifestação das forças econômicas que modelam e redefinem o seu destino. Concentração (de investimentos, equipamentos e recursos) e segregação socioespacial constituem, talvez, os termos básicos do seu equacionamento factual e teórico9. A ação política e ideológica superestrutural do planejamento corresponde à adequação da infraestrutura (meios de consumo coletivo) aos novos objetivos históricos a serem cumpridos pela aglomeração humana, isto é, a agilização adequada dos fluxos financeiros (de mais-valia), dos fluxos materiais e a apropriação privada do trabalho social acumulado no chão produzido das metrópoles (HARVEY, 1980). A problemática levantada por este plano analítico desenvolve, sobretudo, a discussão da origem da terra urbana, as novas modalidades de atuação (frações) do capital imobiliário e a orientação socialmente restritiva dos investimentos Ver sobre as Regiões Metropolitanas no Brasil a dissertação de mestrado de Miriam Danowski (1981). “Não temos passado, na verdade, de uma constatação da ação dos investimentos estatais sobre as cidades; por exemplo, a regulação de certos aspectos da vida urbana, desde leis de uso do solo até códigos de construção, mas esse é precisamente talvez um dos campos dessa relação (Estado-urbano) cujo trabalho teórico tem sido mais ineficiente, manos profundo. Há aí portanto uma contradição entre visibilidade do fenômeno e a possibilidade de sua recuperação enquanto teoria”. (OLIVEIRA, 1982, p. 36-37).
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públicos. Encontra-se subjacente a este meio analítico, com frequência, uma visão aproximadamente organicista dos espaços metropolitanos, ou melhor uma certa perspectiva totalizadora/sintética que observa a metrópole a partir de processos considerados fundamentais em sua face histórica atual (SANTOS, 1982). Assim, a ação combinada do capital imobiliário e do Estado define tanto o núcleo metropolitano quanto a periferia através de efeitos desiguais (segregacionistas) dos mesmos processos de valorização/exclusão social determinados pelos impulsos da acumulação e absorvidos pelo espaço metropolitano em sua totalidade. Alguns estudos, do interior do mesmo âmbito teórico, assinalam, porém, a existência de mercados urbanos segmentados, contribuindo para encaminhar a identificação das pontes teóricas entre as visões dualistas (especialistas) anteriores – núcleo/ hierarquias periféricas – e os avanços conceituais decorrentes da manifestação plana das leis do modo de produção capitalista nas metrópoles do país. Cabe assinalar, particularmente, na observação deste plano analítico, a magnitude dos processos de segregação na realidade brasileira que, se podem não chegar a produzir mudanças de qualidade nos processos geradores, exigem, sem dúvida, que seus efeitos sejam refletidos na escala de sua ocorrência. Acreditamos estar face a processos de absorção/ajustamento dos espaços e das populações metropolitanas que destroem patamares anteriores de vida coletiva, contribuindo para que as chamadas “soluções populares” de vida – estratégias de sobrevivência/ marginalização – sejam, cada vez mais, responsáveis pela reprodução social da população (de forma oficializada ou clandestina). ESTRUTURA TEMÁTICA ANÁLISE INTRA-URBANA MPC – FES – ESTADO/PLANEJAMENTO apreensão dos modelos teóricos à compreensão da cidade: organicistas, mecânicos ou dialéticos
• • •
metrópole e espaço nacional de produção/ destruição de formas de vida coletiva acumulação/segregação formas “oficiais” de vida coletiva, estratégias de sobrevivência e marginalização
METRÓPOLE / ESTRUTURA URBANA / HIERARQUIAS URBANAS Elaboração própria
Conjunturas políticas e conjunturas urbanas. Neste plano analítico são privilegiados o movimento (tempo) e a especificidade histórica. Ao considerarmos o tempo, propomos a reflexão política da 214
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continuidade (controle/socialização/ cultura de alienação) e de ruptura (reivindicação/ manifestação / cultura e transformação). Procuramos atingir, assim, a necessidade de reflexão dos vínculos entre a estrutura e conjuntura, entre evolução e transformação, ou seja, a complexidade dos processos de periodização em ciências sociais. As defasagens entre mudanças conjunturais e rupturas estruturais10 têm sido, ainda, escassamente refletidas na realidade brasileira, principalmente quando consideramos as questões de método. De fato, seria indispensável alcançar os elos entre as modificações na base produtiva da formação social brasileira, as forças sociais emergentes e tradicionais e as forças hierarquizadas de exercício do poder (legitimidade e/ou coerção). Neste sentido, acreditamos que dispomos de informações teóricas e históricas mais completas sobre as passagens (transição) entre formas de produzir – pré-capitalistas ou não capitalistas para plenamente capitalistas (SINGER, 1979) – do que sobre o movimento de absorção, concentração e centralização de capitais, ou ainda, sobre as formas de acumulação (desiguais e articuladas) que caracterizam, hoje, o país. Esta dificuldade de conhecimento atinge tanto a análise interna da metrópole – superação teórica das perspectivas dualista e espacialista – quanto à qualidade do seu domínio e do seu sentido histórico atual. Quais são os processos de transformação histórica que implicam a existência da metrópole? Quais são as formas modernas de exercício do poder (subsunção real ou formal) que pressupõe a reprodução da vida metropolitana? Estas questões atingem a estrutura urbano-metropolitana e atingem as perspectivas políticas do “fato metropolitano” no país. Neste sentido, as análises das chamadas lutas urbanas têm privilegiado, sobretudo, as características conjunturais destes movimentos sociais, deixando, em segundo plano, a configuração de classe (totalidade) das metrópoles brasileiras, a sua composição social e o possível impacto político extra-urbano (campo-cidade) das mobilizações sociais no espaço metropolitano (ver CAMARGO et al., 1976; SINGER, 1980). Evidentemente, a qualificação das conjunturas urbanas necessita do apoio de análises estruturais que considerem o significado histórico variável das metrópoles e a sua inserção contemporânea desigual nas tendências atuais do crescimento capitalista. O deslocamento espacial dos investimentos produtivos e improdutivos e seu impacto sobre a composição social metropolitana (condições de vida e 10 Este fato acompanha o desenvolvimento mais corrente do pensamento social preocupado com a mudança. Ver Balibar (1971).
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trabalho) constituem, em seus parâmetros político-administrativos, um dos caminhos para o equacionamento teórico e factual da “natureza” da metrópole e da sua vida coletiva. A cidade como expressão da “lógica capitalista” ou como “lócus de reprodução da força de trabalho”, na realidade brasileira, pressupõe antes de sua generalização o conhecimento das forças sociais e do seu movimento histórico no espaço metropolitano (a população para o capital) e o aprofundamento da compreensão das relações contemporâneas campo-cidade. ESTRUTURA TEMÁTICA MPC – FES – ESTADO/PLANEJAMENTO/INTERESSES HEGEMÔNICOS (posicionamento face à natureza do poder metropolitano) METRÓPOLE / ESTRUTURA URBANA (desigualdades regionais)
ESTRUTURA / CONJUNTURA-TEMPO / ESPAÇO (periodização) }
- forças sociais - composição de classes - mobilidade e mobilizações sociais
Elaboração própria
Cultura e vida urbana Este plano analítico propõe a articulação entre a visão teórica sintética da metrópole e o movimento da vida urbana – a fluidez e o ritmo da vida coletiva nas “grandes cidades” do país. Estamos, também, frente a fenômenos que se manifestam ao nível político-ideológico da sociedade brasileira. Atingimos a face quotidiana do “enigma metropolitano”, onde atuam as forças coercitivas e as forças coesivas que permitem a reprodução, no dia-adia, da sociedade urbano-metropolitana do país (VELHO, 1981). O desafio, aqui colocado, pode ser resumido na nossa capacidade de lidar com o senso comum11 e com a “questão urbana” da forma como ela se apresenta – política e ideologicamente – para os segmentos sociais que compõem a população de uma “grande cidade” de um certo tempo e de um certo espaço. Sobre este pano de fundo da concentração e da segregação, da homogeneidade e da heterogeneidade sociais estendem-se, neste plano analítico, os princípios teóricos da reprodução (cultura e alienação) e as análises do “modo de vida” urbano. Por este encaminhamento, retomamos, de forma mais próxima, a observação dos fatores de continuidade e ruptura referidos no plano analítico anterior. Gramsci foi mais longe, também, num outro plano: as ideologias não se reduzem somente a algumas formas bem manifestas, como a religião, mas envolvem também todas as dimensões do campo social: não somente as filosofias, as estéticas, as éticas até inclusive as ciências, mais ainda toda a esfera do ‘quotidiano’: a paisagem urbana, a arquitetura doméstica são vetores ideológicos da mesma maneira que podem sê-lo um anúncio ou uma emissão de televisão” (RIBEILL, 1976, p. 101 – T.A.)
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O fato metropolitano – enigma e poder
Os principais debates teóricos, no campo da sociologia urbana, têm sido travados neste espectro teórico. Assim, a clivagem teórico-metodológica entre as abordagens culturalista e marxista da “grande cidade” no capitalismo contemporâneo têm partido, significativamente, da avaliação política da vida coletiva no espaço da metrópole – por exemplo: Castells (1976, p. 95-106) e a crítica à sociologia urbana; Castells (1976, p. 107-117) e a crítica à Lefebvre; Harvey (1980, p. 247-271) e seu posicionamento face a Lefebvre. Neste confronto são identificáveis estruturas explicativas alternativas para o fato metropolitano e para o significado político dos movimentos sociais (lutas urbanas) e, também, são identificáveis blocos conceituais diversos, assim como, serão diversos os elencos de questões face à metrópole. São estas, portanto, as manifestações do debate entre óticas, entre visões de mundo globalizantes que contribuem para a compreensão da presença, na realidade brasileira deste ou daquele produto teórico ou preocupação temática. De forma mais positiva, e para o nível da nossa discussão, parece-nos fundamental assinalar a pertinência de um trajeto teórico-metodológico que respeite o movimento próprio da chamada instância político-ideológica na sociedade urbano-metropolitana brasileira. Assim, acreditamos que a valorização desigual dos fatos da cultura e dos fatos ideológicos – frente ao privilégio dado às mudanças estruturais e imediatamente políticas – tem dificultado, extraordinariamente, o enfrentamento do enigma metropolitano, permitindo que a análise se desdobre em aspectos extraordinariamente particulares da vida urbana ou que repita criticamente apenas os caminhos da dominação já politicamente reconhecida (relação Estado-população; relação planejamento-população). Neste sentido, podemos acrescentar que conhecemos ainda pouco sobre os caminhos da elaboração das imagens coletivas da (s) cidade (s) no país, assim como sobre como sobre os fenômenos de massa e sobre as manifestações particulares daquilo que podemos denominar, provisoriamente, de nosso consciente e do nosso inconsciente coletivos. ESTRUTURA TEMÁTICA
PODER
MPC – FES – METRÓPOLE (estrutura urbana/desigualdades regionais) instâncias analíticas; • ideologia e cultura urbanas; domínio / exercício de hegemonia • imagens coletivas / senso comum e ritmo metropolitano; • formas de exercício do poder (posicionamento face ao poder de • coerção e coesão; determinação do espaço) • elaboração das imagens coletivas da vida metropolitana.
Elaboração própria
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Considerações finais O levantamento bibliográfico e teórico realizado pela pesquisa O Fato Metropolitano – enigma e poder indicou- a validade do exercício de um tipo de reflexão que oriente, metodologicamente, aproximação com a produção intelectual sobre o tema da metrópole no país. Realmente, por diversas ocasiões, nos sentimos, simultaneamente, face à fartura e a escassez; fartura pela abundância do material já produzido sobre a “grande cidade” no país, e escassez pela ausência relativas de formas de análise e apropriação adequadas deste amplo leque de estudos. À fragmentação disciplinar acrítica podemos atribuir, naturalmente, parte ponderável da responsabilidade pelo desconhecimento mútuo entre as disciplinas do social. Por outro lado, outra parte ponderável desta responsabilidade pode ser atribuída, também, à ausência – na qual nos incluímos – de formas filosóficas e teóricas abrangentes que permitam a compreensão e a inclusão dos produtos particulares em quadros conceituais definidos; quadros conceituais estes que nos ajudem, de fato a questionar a coerência e/ ou pertinência destes estudos para a compreensão do país. Os planos analíticos, apresentados neste texto, contemplaram a identificação dos principais veios temáticos no estudo da metrópole a partir de uma postura definida com relação à realidade social contemporânea, procurando estabelecer trajetos de estudos e reflexão coerentes com esta postura, de tal maneira a permitir a proposição de formas de organização úteis do material teórico, conceitual e empírico subjacente – explícita ou implicitamente – aos cursos atuais da “questão urbana” na formação social brasileira.
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O fato metropolitano – enigma e poder
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A (des)institucionalizacão das políticas regionais no Brasil1 Maria Regina Nabuco
Tendo em vista os principais marcos institucionais referentes às políticas regionais no Brasil, este trabalho tem como objetivo central analisar as políticas econômicas, que definiram as grandes linhas do planejamento regional, desde o Pós II Guerra até os dias atuais. Desta forma, serão discutidos os principais programas que tiveram como propósito promover o desenvolvimento econômico regional (industrial e agrícola), reduzir as desigualdades espaciais, ampliar a integração territorial nacional, desconcentrar o desenvolvimento econômico e corrigir os desequilíbrios setoriais e sociais, quando regionalmente considerados. Nossa hipótese básica é a de que o governo federal brasileiro, em consonância com as demandas políticas regionais, buscou promover tais objetivos através, principalmente, de normas institucionais que expressavam, num grau considerável, a pressão política das elites regionais. A grande extensão territorial brasileira, as fortes diferenças climáticas e geológicas entre suas regiões, a preocupação com a integração nacional, aliadas à forte influência política das elites de regiões menos desenvolvidas (com forte representatividade no Congresso Nacional) e à necessidade da promoção da acumulação capitalista no país, são considerados como fortes razões para justificar a mobilização do aparelho estatal no apoio e desenvolvimento de políticas regionais. Muitas destas políticas permaneceram no campo das ideias ou foram incipientemente implementadas (falta de recursos e/ou de acompanhamento na execução dos projetos). A maioria delas não atingiu suas metas, muito embora os recursos tenham sido significativos (desperdício, improvisação administrativa, fatores conjunturais, para citar apenas alguns dos problemas). A avaliação econômica-social da maioria dos programas regionais já foi realizada por pesquisadores e instituições2. Resta proceder a uma sistematiUma primeira versão desse capítulo foi apresentada na Mesa-Redonda do VI Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa e em Planejamento Urbano e Regional (ANPUR) realizado em Brasília em maio de 1995. Sua publicação foi autorizada por Ana Luiza Nabuco Palhano, filha da autora. Posteriormente, foi publicado no periódico ETC em 15 de setembro de 2007, n° 2(6), vol. 1 2 França (1984); PIMES (1984); Guimarães Neto (1989); Albuquerque (1976) e Jatobá (1979). 1
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A (des)institucionalizacão das políticas regionais no Brasil
zação destes programas, inseridos na política regional global do país e definir suas principais tendências macroespaciais. As normas legais que fundamentaram estas tendências serão aqui consideradas no quadro geral das principais concepções teóricas sobre a questão do desenvolvimento regional.
O pós-guerra e o princípio do planejamento regional no Brasil No Pós II Guerra o Brasil iniciava os primeiros passos na direção do planejamento regional. Apesar da importância das teorias que consideravam o atraso regional como questão de tempo e consequência da escassez de recursos naturais, já surgiram interpretações que consideravam necessárias intervenções públicas no mercado, a fim de eliminar as barreiras contra uma integração regional plena. Estas análises se baseavam nas contribuições de autores adeptos da teoria da “causação cumulativa e circular”, que apontavam uma tendência de as regiões mais desenvolvidas sustentarem e incrementarem o seu crescimento econômico, enquanto as mais atrasadas permaneceriam estagnadas ou até mesmo declinariam (MYRDAL, 1957). Neste sentido, a Constituição Federal de 1946 apresentava alguns dispositivos importantes com respeito ao desenvolvimento da região Amazônica e às secas periódicas que atingiam a região Nordeste do país. Foram assim criados, através de recursos financeiros nunca inferiores a três por cento da renda tributária federal, planos de defesa contra as secas da região Nordeste. Os estados incluídos no chamado Polígono das Secas deveriam, semelhantemente ao governo federal, destinar três por cento de suas rendas tributárias aos serviços assistenciais das populações atingidas pelo flagelo climático, dando preferência à construção de açudes em regime de cooperação3. No que diz respeito à região Amazônica previa-se um plano de valorização econômica da Região, através de aplicações, durante um mínimo de vinte anos, do mesmo percentual aqui referido para o Nordeste, com respeito às rendas tributárias, da União e dos estados. Esta disposição constitucional transformou-se, via regulamentação em 1953, no I Plano de Valorização Antes da constituição de 1946, já existia o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) que teve origem na Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), primeiro órgão público de caráter regional, criado em 1909. Transformada em Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS). Em 1919, a instituição voltou-se para a consolidação de obras de engenharia, preocupando-se com a implantação de infraestrutura regional, que incluía a construção de estradas, portos, eletrificação, campos de pouso, açudes, poços e canais. Desde 1945, o DNOCS tem se dedicado, principalmente, ao aproveitamento hídrico da região, onde se sobressai a construção de açudes para abastecimento, piscicultura e irrigação (DNOCS, 1983, 1991).
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Econômica da Amazônia, criando sua respectiva superintendência.4 Foi ainda através da Constituição Federal de 1946 que se institucionalizaram recursos (1% da receita tributária da União) para um plano de aproveitamento das potencialidades econômicas do rio São Francisco e seus afluentes5. Ao iniciar o apoio público às regiões menos desenvolvidas, o estado brasileiro buscava, não só reduzir as diferenças regionais, como também criar ali infraestrutura mínima com objetivo de atrair investimentos. Acreditava-se, então, que o Estado fosse forte e capaz o bastante para atingir dois objetivos aparentemente conflitantes: resolver o problema das disparidades regionais, cujas principais consequências recaíam sobre a população das regiões atrasadas - desemprego, miséria, desnutrição, etc. - e ao mesmo tempo tornar estas regiões mais atraentes para o mercado capitalista. Contando com grande oferta de mão-de-obra, mercado consumidor urbano de pequenas proporções, mas importador de bens e serviços do resto do país/mundo, e subsídios governamentais na oferta de bens públicos, o capital começa a acorrer para as regiões subdesenvolvidas do País, mais claramente a partir dos anos 1950. Com efeito, em 1952 foi criado o Banco do Nordeste do Brasil (BNB), sociedade anônima, aberta, de economia mista, com sede e domicílio na cidade de Fortaleza, com área de atuação básica restrita aos estados compreendidos no Polígono das Secas. Como instituição financeira de investimentos, iniciou então assistência financeira e técnica a empreendimentos de interesse econômico e social localizados na Região Nordeste. Os recursos à disposição do BNB são provenientes de repasses e refinanciamentos do Fundo constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE) (BNB, 1992). A Amazônia dispunha, desde 1942, do Banco de Crédito da Borracha S/A, com o objetivo de fornecer assistência financeira e técnica para as atividades de extração, comércio e industrialização da borracha. Além disso, o Banco era o responsável exclusivo pelas operações finais de compra e venda da borracha. Com a decadência da borracha, foi transformado em Banco de Crédito da Amazônia S/A (1950), propiciando a ampliação do campo de atuação o Banco, oferecendo recursos para o financiamento de atividades agrícolas, pecuárias, industriais, melhorias dos meios de transporte, etc. Finalmente, pela Lei nº 5.122, de 28.09.66, o Banco de Crédito da Amazônia S/A foi transformado em Banco da Amazônia S/A, possibilitando a implantação na Região Amazônica, de um banco de desenvolvimento regional (MAHAR, 1978). 5 Em 1945, foi criada a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF), outorgando-lhe a concessão, para aproveitamento progressivo da energia hidráulica do Rio São Francisco. O objetivo principal da CHESF era assegurar o suprimento de energia elétrica à Região Nordeste, com o intuito de dar suporte ao desenvolvimento socioeconômico. Em 1948, criou-se, sob inspiração da experiência norte-americana da Tennessee Valley Authority (TVA), a Comissão do Vale, do São Francisco, com vistas no desenvolvimento, no Vale, da agricultura, indústria, irrigação e transportes, ao incremento da imigração e da colonização, à assistência às famílias a ao apoio à educação e a saúde. Em 1967, a Comissão foi extinta e criou-se a Superintendência do Vale do São Francisco (SUVALE). Em 1974, esta Superintendência foi substituída pela Companhia de Desenvolvimento do vale do São Francisco (CODEVASF) que, como empresa pública, passou a atuar sobre uma área de 640 mil quilômetros quadrados, correspondendo a 7,4% do território nacional. Suas atribuições principais referem-se à coordenação de programas e projetos de outros organismos públicos e privados, a nível federal, estadual e municipal (CHESF, 1988; Souza, 1979; CODEVASF, 1985). 4
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A (des)institucionalizacão das políticas regionais no Brasil
A expressão máxima de planejamento regional no Brasil, no entanto, foi a criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), em 1959. Surgiu como órgão capaz de definir e implementar um conjunto de políticas para a modernização da estrutura socioeconômica nordestina. Inicialmente, a SUDENE concentrava seus esforços na realização de pesquisas, estudos e levantamentos básicos, sendo seus primeiros investimentos direcionados para a construção da infraestrutura regional (rodovia, eletrificação, etc.). Esses investimentos eram organizados e orientados por intermédio dos planos diretores de desenvolvimento, elaborados pela SUDENE e aprovados pelo Congresso Nacional (SUDENE, 1990). A principal fonte de recursos financeiros da SUDENE provinha do “Sistema 34/18”6, instituído em 1961, com base em facultar, às pessoas jurídicas, deduzirem até 75% no imposto de renda devido. Estes recursos foram aplicados em projetos agropecuários e, principalmente, industriais, julgados pela SUDENE de grande interesse para o Nordeste. Entre os vários programas e atividades desenvolvidos pelo órgão, destacam-se a mobilização de cooperação externa (OEA, ONU, CEPAL, UNESCO, OIT etc.), a cooperação técnica e financeira aos Estados e Municípios, a investigação sistemática dos recursos naturais e da dinâmica da economia regional, a avaliação da administração pública no Nordeste, a coordenação e supervisão de programas, projetos e serviços, entre outras atividades (SUDENE, 1990). No tocante às décadas de 1950 e 1960, pode-se dizer, de maneira geral, que a política regional respondeu às tensões políticas (elevada representatividade no Congresso Nacional de deputados destas regiões) e se configurou mais como política assistencial de caráter territorial. Neste sentido, não alterou a lógica básica do modelo de acumulação desenvolvimentista e modernizante do País. Os movimentos sociais e políticos nordestinos que reivindicavam mudanças profundas na sociedade, como, por exemplo, a reforma agrária, foram contrarrestados rapidamente pelo golpe militar de 1964, que instaurou a ditadura no Brasil. O “Sistema 34/18” era formado pelo artigo 34, da Lei nº 3.995, de 14.12.61, que aprovou o primeiro Plano Diretor da SUDENE e pelo artigo 18, da Lei nº 4.239 de 27.06.63, que aprovou o segundo Plano Diretor. O artigo 34 facultava às pessoas jurídicas, constituídas de 100% de capital nacional, a reduzirem até 50% do imposto de renda devido, para reinvestimento ou aplicações em indústrias consideradas de interesse para o desenvolvimento do Nordeste. O artigo 18 manteve, aperfeiçoou e ampliou a política de incentivos fiscais. Ele permitiu o abatimento de até 75% sobre o imposto de renda, caso a pessoa jurídica utilizasse esse montante para a aquisição de obrigações do Fundo de Investimentos para o Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste (FIDENE). Além isso, o artigo estendeu a dedução de 50% nas declarações do imposto de renda para as pessoas jurídicas de capital estrangeiro e para as inversões compreendidas em projetos agrícolas. Em 12.12.74, através do Decreto-lei nº 1.376, foi criado o Fundo de Investimentos do Nordeste (FINOR), com o objetivo de solucionar alguns problemas criados pelo “Sistema 34/18”, como por exemplo, a cobrança de altas taxas de captação e a demora na implantação dos projetos privados (SUDENE, 1990).
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O golpe militar de 1964 e um novo ciclo de políticas regionais A região Nordeste diante da reestruturação da política de incentivos fiscais A partir de 1964 assiste-se a um novo ciclo de políticas regionais no Brasil, cuja maturação e real expressão vai se consubstanciar nos anos 1970, através de apoio institucional a novas áreas (fronteira agrícola), perdendo o Nordeste e o Norte a posição anterior de regiões privilegiadas como únicas absorvedoras de programas de incentivos fiscais. Esta perda vai ser verificada mais enfaticamente a partir do início dos anos 1970, quando da criação de outros programas regionais (PIN, PROTERRA) e setoriais (FISET – pesca, florestamento e reflorestamento, turismo, etc.) que disputarão o volume de recursos financiados através da dedução sobre o Imposto de Renda devido pelas empresas7. Ao examinarmos a Tabela 1 e a Tabela 2 a seguir, não verificamos uma nítida subtração dos incentivos fiscais recebidos pelo Nordeste (Sistema 34/18 - 1962/74 e FINOR 1975/agosto de 1992). Na verdade, as reduções que se observaram ao longo do período 1962/92 correspondem muito mais aos ciclos recessivos da economia brasileira como um todo. Isso significa que o Nordeste, embora disputando com outras regiões e setores recursos financeiros provenientes do governo federal, soube inserir-se também no projeto militar desenvolvimentista dos 1960 e 1970. É interessante verificar, pela Tabela 1, a rápida evolução positiva no valor dos recursos 34/1, no período 1962 - 1974, antes da criação do FINOR, em 1974. Apesar de nos três anos iniciais do Programa de Incentivos Fiscais 34/18, os recursos terem se situado abaixo de 120 milhões de dó1ares, nos anos corresO Fundo de Investimentos Setoriais (FISET) foi criado pelo Decreto-Lei nº 1.376, de 12.12.74, o qual unificou a sistemática de incentivos fiscais setoriais que estava dispersa entre vários decretos-lei: a pesca no Decreto-Lei nº 221, de 28.02.67, florestamento e reflorestamento no Decreto-Lei nº 1.134, de 16.11.70, o turismo no DecretoLei nº 1.191, de 27.10.71, a Empresa Brasileira de Aeronáutica S/A (EMBRAER) no Decreto-Lei nº 770, de 19.08.69, o Fundo de Recuperação econômica do Estado do Espírito Santo (FUNRES) no Decreto-Lei nº 880, de 18.09.69 e a Fundação MOBRAL no Decreto-Lei nº 1.274, de 30.05.73. Esse mecanismo de incentivo fiscal permitia, às pessoas jurídicas, deduzirem dos respectivos impostos de renda devidos, as seguintes alíquotas: a) até 8%, no caso do FIEST - Turismo, para projetos de turismo aprovados pelo Conselho Nacional de Turismo; b) até 25%, no caso do FISET - pesca, para projetos de pesca aprovados pela Superintendência de Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE); c) até os percentuais a seguir enumerados, no caso do FISET – Florestamento e Reflorestamento, para projetos aprovados pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF): ano-base de 1974 – 45%; ano-base de 1975 – 40%; ano-base de 1976 – 35%; ano-base de 1977 – 30%; e ano-base de 1978 e seguintes – 25%. d) até 33%, no caso do Fundo de Recuperação Econômica do Estado do Espírito Santo; e) até 1%, em novas ações da Empresa Brasileira de Aeronáutica S/A (EMBRAER); e f) até 1 %, em projetos específicos de alfabetização de Fundação MOBRAL.
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A (des)institucionalizacão das políticas regionais no Brasil
pondentes ao “milagre econômico brasileiro (1965/1974)”, o nível situou-se, em média, em torno de 263 milhões. A SUDENE adquiriu ainda maior importância por ser administradora do FINOR, um dos principais instrumentos fiscais e financeiros destinados à região pelo governo federal. O FINOR não alterava o mecanismo de dedução do imposto de renda das pessoas jurídicas, mas estabelecia que a opção exercida em favor do Nordeste deveria dar origem a Certificados de Investimentos (CI), os quais seriam trocados automaticamente por quotas do FINOR no prazo de um ano. Desse modo, a empresa com projeto aprovado pela SUDENE não precisaria mais partir para a obtenção dos recursos dos incentivos fiscais junto aos depositantes das deduções do imposto de renda, uma vez que os desembolsos previstos no projeto seriam liberados automaticamente pelo FINOR. Além das deduções do imposto de renda, a receita do Fundo inclui a subscrição de quotas pela União, a subscrição voluntária de quotas por pessoas físicas e jurídicas e os resultados da aplicação dos recursos, entre outras receitas (SUDENE, 1990). De 1975 até agosto de 1992, foram alocados cerca de US$ 5.03 bilhões de incentivos fiscais do FINOR, conforme a Tabela 2. Com o FINOR, que agilizou a aplicação de recursos advindos dos incentivos fiscais, ampliam-se ainda mais as transferências governamentais (média anual em torno de 287 milhões de dólares), sendo mais expressivos, neste sentido, os anos que correspondem a ciclos expansivos da economia nacional, como, por exemplo, os períodos 1975-1978 e 1986-1988. TABELA 1: Nordeste: evolução dos recursos 34/18 - 1962/74 (em USD) Anos
Recursos 34/18
1962
32.651.410
1963
24.483.017
1964
61.606.520
1965
183.842.963
1966
200.988.194
1967
250.486.283
1968
259.891.857
1969
321.520.730
1970
340.550.183
1971
258.102.701
1972
229.868.679
1973
278.255.678
1974
310.470.451
Total 2.752.718.666 FONTE: Banco do Nordeste do Brasil S/A. Departamento de Mercado de Capitais (DEMEC). Extraído de NABUCO; MESQUITA (1993).
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TABELA 2: Nordeste: evolução dos recursos do FINOR 1975/Agosto de 1992 (Em US$ 1.00) Anos
Recursos do FINOR
1975
373.740.033
1976
254.497.748
1977
285.520.185
1978
271.852.797
1979
211.296.285
1980
180.743.521
1981
224.152.558
1982
256.876.440
1983
303.194.664
1984
261.195.440
1985
273.009.707
1986
449.496.986
1987
393.368.646
1988
284.227.755
1989
264.541.038
1990
366.593.614
1991
221.817.144
Até agosto de 1992
158.416.861
Total 5.034.538.422 FONTE: Banco do Nordeste do Brasil S/A . Departamento de Mercado de Capitais (DEMEC). Extraído de NABUCO; MESQUITA (1993).
A Incorporação da “Amazônia Legal” A centralização administrativa, institucionalizada após o golpe militar de 1964, concentra ainda mais poder e recursos financeiros no governo federal. Este persistiu na política do desenvolvimento regional do Pós-Guerra, ampliando as aplicações de verbas federais nas regiões atrasadas (como vimos, através de incentivos fiscais, Tabelas 1 e 2). Neste sentido, é importante registrar o caso dos incentivos fiscais para a “Amazônia Legal” (BRASIL, Leis nº 4.216 e 5.174, de 06/05/1963 e de 27/10/1966, respectivamente). Estas leis estenderam para a Amazônia os benefícios fiscais referentes ao Nordeste. Este mecanismo de incentivo fiscal para a Amazônia vigorou até o ano de 1974, tendo sido captado no período de 1968-1974 cerca de US$ 765.481 mil, conforme mostra a Tabela 3.
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A (des)institucionalizacão das políticas regionais no Brasil
TABELA 3: Amazônia Legal: Evolução dos incentivos fiscais, 1963/74 (em us$ mil) Anos
Lei Nº 4.216
1963
3.372
Lei Nº 5.174
TOTAL
1964
5.427
5.427
1965
13.623
13.623
1966
35.380
3.372
35.380
1967
60.030
1968
78.267
78.267
1969
102.252
102.252
1970
125.868
125.868
1971
90.5913
90.5913
1972
69.308
69.308
.
1973 1974 Total
57.802
60.030
76.987
76.987
104.369
104.369
707.679
765.481
FONTE: MAHAR, D. Desenvolvimento Econômico da Amazônia. Extraído de NABUCO; MESQUITA , 1993.
TABELA 4: Amazônia Legal: Evolução dos recursos do FINAM - 1975/86 (em USS mil) Anos 1975
Valor líquido disponível para aplicação 101.813
1976
80.645
1977
101.597
1978
120.037
1979
117.545
1980
111.812
1981
141.300
1982
175.712
1983
95.482
1984
71.814
1985
69.795
1986
196.071
Total
1.383.623
FONTE: Anuário Econômico-Fiscal, vários números. Extraído de NABUCO; MESQUITA, 1993.
A partir de 1975, com a criação do Fundo de Investimento da Amazônia (FINAM), Decreto-lei nº 1.376, de 12/12/1974, o processo de captação de recursos foi agilizado, buscando-se eliminar as cobranças de altas taxas de captação de recursos. No período 1975-1986 foram alocados cerca de US$ 1.38 milhões desse incentivo fiscal, de acordo com a Tabela 4. Além do objetivo de estimular o desenvolvimento econômico-social de uma região atrasada, os incentivos fiscais para investimentos na Amazônia buscavam outras metas, além das perseguidas pela SUDENE. Uma delas era de natureza geopolítica, ou seja, a consideração de que era necessária uma maior integração territorial do espaço nacional.
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Maria Regina Nabuco
Era necessário efetuar a consolidação das nossas fronteiras em espaços contíguos aos nossos vizinhos latino-americanos. A esta visão militarizada da integração regional da Amazônia, juntaram-se outras, como por exemplo, a necessidade de absorção ali de parte importante do excedente estrutural de mão-de-obra gerada pela expansão da industrialização nos centros urbanos, e pela modernização agrícola que, desde o final dos anos 1960, iniciara um processo de expulsão de mão-de-obra de grandes proporções. Além disto, incorporar a Amazônia significava também ampliar o espaço para a mobilização do capital do Centro-Sul do país, através do investimento em terras de preço quase nulo, mas de valor inestimável, quando considerada a possibilidade de sua exploração futura, via descoberta de novas tecnologias para uso econômico do solo, sua importância internacional como reserva florestal e animal etc. Foi durante este período de incorporação da Amazônia através, principalmente, de aplicações financeiras dos incentivos fiscais, que se ampliaram as análises e pesquisas sobre o tema da fronteira agrícola, sua existência e mesmo sua extinção (MAHAR, 1978; IANNI, 1979; SAWYER, 1979). Estas análises, em geral apontam para o fato de que os recursos provenientes do FINAM se dirigiram fundamentalmente à compra especulativa de terras onde a “grilagem”, usurpação e violência foram os traços marcantes do processo de ocupação. Um outro objetivo defendido pelo governo militar com respeito à incorporação da Amazônia foi o de levar a efeito uma Reforma Agrária deixando intocável a propriedade rural no resto do País. O Estatuto da Terra, aprovado pelo Congresso Nacional, em 1966, propunha a Reforma Agrária em latifúndios e/ou terras improdutivas. A expansão demográfica em direção à Amazônia no final dos anos 1960 e, especialmente, nos anos 1970, serviu como argumento de que era possível assentar colonos sem-terra em terras devolutas, sem tocar na propriedade privada. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) desenvolveu então um processo de assentamento em pequenos lotes de terra, especialmente em Rondônia8. Para lá seguiram milhões de brasileiros do Nordeste, Goiás, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo, em geral expulsos do campo pela expansão da produção da soja e da cana-de-açúcar (Projeto Pro-Álcool). Sem infraestrutura adequada, e sem apoio técnico e jurídico, estes Ao programa de incentivos fiscais da SUDAM e da SUDENE, incorporou-se com o objetivo de maior integração da região ao Centro-Sul do País, o Programa de Integração Nacional (PIN), criado através do Decreto-Lei nº 1.106, de 16.06.70. O Programa previa investimentos em obras de infraestrutura e, na sua primeira etapa (1971/74), a construção das rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém, além de um plano de irrigação para o Nordeste. O decreto estabelecia que 30% do total de dedução do imposto de renda destinado à aplicação em incentivos fiscais seriam direcionados para o PIN.
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assentamentos logo se transformaram em propriedades de “grileiros”, devastando as matas e explorando recursos minerais. Com a alta dos preços do petróleo nos anos 1970, os primeiros resultados da expansão demográfica e econômica para a Amazônia, onde os insucessos da pesquisa tecnológica com respeito à possibilidade de uma agricultura racional já se verificavam, a região perdeu importância como objetivo de programas de desenvolvimento regional. A produtividade agrícola era baixa, o controle climático era impossível de ser obtido, os capitalistas do Sul já haviam “fechado” as melhores terras à continuidade da expansão da fronteira e, ademais, os custos de transporte da região aos mercados consumidores do Centro-Sul tornavamse proibitivos com os então elevados preços dos combustíveis.
As políticas regionais para ocupação da fronteira agrícola brasileira A partir de meados dos anos 1970, surgem os grandes programas federais para a expansão agrícola e agroindustrial do Centro-Oeste do país. Estes programas foram antecedidos em termos da preocupação comum em relação ao estímulo à agricultura e à agroindústria, pelo PROTERRA (Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e do Nordeste). Criado em 1971, o PROTERRA9 tinha como objetivo básico facilitar o acesso do homem à terra e promover a agroindústria da região compreendida nas áreas de atuação da SUDAM e da SUDENE. Os recursos eram provenientes, principalmente, da alíquota de 20% incidente sobre o total das importâncias deduzidas do imposto sobre a renda das pessoas jurídicas (incentivo fiscal). O PROTERRA, assim como o PIN (Plano de Integração Nacional) na área da SUDAM, visavam, na sua concepção original, reorientar o modelo de desenvolvimento regional, baseado na industrialização via substituição de importações. Este modelo privilegiava o desenvolvimento urbano, em detrimento das grandes parcelas populacionais do meio rural. Desta forma, estes dois programas direcionariam seus esforços para as principais causas da pobreza rural: desigual distribuição e utilização da terra e deficiente integração regional. Os instrumentos utilizados pelo PROTERRA foram os seguintes: aquisição ou desapropriação de terras julgadas de interesse social; empréstimos fundiários para pequenos e médios produtores rurais; 9
BRASIL, Decreto-lei nº 1179, de 06/07/1971.
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financiamento de projetos destinados à expansão da agroindústria; subsídio ao uso de insumos modernos; garantia de preços mínimos para os produtos exportáveis; e assistência financeira aos serviços de pesquisa agrícola, sistemas de armazenagem, comercialização, transporte, energia elétrica e outros. No período de 1974-1986, o Tesouro Nacional destinou cerca de US$ 5,1 bilhões para aplicação nos programas de investimentos do PIN. De acordo com a Tabela 5, podemos observar que a transferência de recursos atingia uma média anual de 395,7 milhões de dólares, importância muito superior às médias anuais do FINAM (US$ 115 milhões) e do FINOR (287 milhões). Também no período de 1974-1986, o PROTERRA foi responsável pela captação de US$ 3,4 bilhões, que eram valores líquidos disponíveis para aplicação. Conforme a Tabela 6, verificamos que a média anual de recursos do PROTERRA atingia a importância de 263,8 milhões de dólares, o que se configurava como um importante apoio financeiro à zona rural das Regiões Norte e Nordeste. A preocupação com a ocupação da fronteira agrícola nos anos 1970, em especial com direção ao Centro-Oeste do país, tinha por base o otimismo com relação à teoria das vantagens comparativas. A grande disponibilidade de terras boas e baratas surgia como um recurso de extrema importância numa conjuntura internacional de aumento dos preços de matérias-primas e alimentos. Desta forma, os programas regionais implementados à época (PRODOESTE, POLOCENTRO, POLONOROESTE, POLOAMAZÔNIA, PADAP, PRODECER, etc) romperam com os anteriores, onde a ênfase situavase na questão dos desequilíbrios regionais, que deveriam ser resolvidos via ações governamentais. No caso dos programas de incorporação da fronteira agrícola, a questão da desigualdade regional não se colocava. Mas sim a necessidade de ampliar a produção econômica, via modernização agrícola. A fronteira, especialmente a do Centro-Oeste, era enaltecida pelos seus aspectos geográfico/locacionais, ao contrário das abordagens em relação ao Nordeste, que enfatizavam seus problemas. Neste sentido, a Constituição de 1967, que foi substituída praticamente “in totum” pela Emenda Constitucional nº 1, de 17/10/1969, registrou pouca preocupação com a questão das desigualdades regionais, estabelecendo apenas a obrigação da União com respeito à execução de planos regionais de desenvolvimento (art. 8º).
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A (des)institucionalizacão das políticas regionais no Brasil
TABELA 5: Programa de Integração Nacional (PIN) evolução dos recursos, 1974/86 (Em US$ mil) Anos
Valor Líquido disponível para aplicação
1974
318.923
1975
370.266
1976
361.225
1977
441.241
1978
475.260
1979
422.292
1980
386.255
1981
518.756
1982
545.830
1983
317.820
1984
255.561
1985
253.405
1986
477.385
Total
5.144.219
Fonte: Anuário Econômico-Fiscal, vários números. Extraído de NABUCO; MESQUITA, 1993.
TABELA 6: Programa de redistribuição de terras e de estímulo à agroindústria do Norte e do Nordeste (PROTERRA) evolução dos recursos, 1974/86 (em us$ mil) Anos
Valor líquido disponível para aplicação
1974
212.622
1975
246.840
1976
240.813
1977
294.158
1978
316.838
1979
281.528
1980
257.503
1981
345.837
1982
363.886
1983
211.880
1984
170.374
1985
168.937
1986
318.257
Total
3.429.473
Fonte: Anuário Econômico-fiscal, vários números. Extraído de NABUCO; MESQUITA 1993.
Os anos 1970 representam, desta forma no Brasil, o período em que a questão da integração nacional e dos desequilíbrios regionais é vista como passível de solução via articulação entre o Estado e o grande capital privado, nacional e estrangeiro. O Estado associava-se aos empreendimentos via melhoria na infraestrutura (estradas, energia rural, tecnologia) ou até mesmo como parceiro nos investimentos (petroquímica no Nordeste, por exemplo). Além destes apoios, o setor privado beneficiava-se, como vimos, do mecanismo de dedução do imposto de renda das pessoas jurídicas para fins de investimento (FINOR, FINAM, etc). 231
Maria Regina Nabuco
Em 1971, foi instituído o Programa de Desenvolvimento do Centro-Oeste (PRODOESTE)10, com o objetivo de incrementar o desenvolvimento econômico dos Estados de Mato Grosso do Sul, Goiás e Distrito Federal. O programa previa a aplicação de recursos nas seguintes atividades: implantação e pavimentação de rede rodoviária básica; construção de estradas vicinais, de redes de armazéns e silos, de usinas de beneficiamento e frigoríficos; e realização de obras de saneamento em geral. Os recursos do PRODOESTE eram incluídos nas dotações orçamentárias do Ministério dos Transportes e do Interior. Com a finalidade de acelerar o desenvolvimento socioeconômico do Vale do São Francisco, foi criado o Programa Especial para o Vale do São Francisco (PROVALE)11. Os recursos provenientes do PIN, do PROTERRA e de dotações orçamentárias seriam aplicados nos seguintes serviços: realização de obras de urbanização, infraestrutura social, saneamento e irrigação; apoio aos programas de colonização; implantação de projetos de reflorestamento e parques nacionais; me1horamentos das condições de navegabilidade do Rio São Francisco; dentre outros. Em 1974, foi criado o Programa de Desenvolvimento de Áreas Integradas do Nordeste (POLONORDESTE)12, que tinha como finalidade principal a modernização das atividades agropecuárias de determinados polos agrícolas do Nordeste. Os recursos para execução do POLONORDESTE eram provenientes, principalmente, do PIN, do PROTERRA e do Fundo de Desenvolvimento de Programação Integrados (FDPI). Programa semelhante ao POLONORDESTE era o Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia (POLAMAZÔNIA)13, que selecionava quinze áreas prioritárias da Amazônia para o recebimento de investimentos públicos, visando ao aproveitamento integrado das potencialidades agropecuárias, agroindustriais, florestais e minerais. Os recursos do POLAMAZÔNIA eram provenientes do PIN, PROTERRA e FDPI. No sentido de promover o desenvolvimento e a modernização das atividades agropecuárias no Centro-Oeste e no Oeste do Estado de Minas Gerais, foi criado o Programa Desenvolvimento dos Cerrados (POLOCENTRO)14. O programa selecionava áreas com características de cerrado para serem incorporadas à agropecuária, mediante investimentos nas atividades de pesquisa, experimentação, florestamento/reflorestamento, assistência técnica e fortaleciBRASIL, Decreto-Lei nº 1.192 de 08/11/1971. BRASIL, Decreto-Lei nº 1.207 de 07/02/1972. 12 BRASIL, Decreto-Lei nº 74.794, de 30/10/1974 13 BRASIL, Decreto-Lei nº 74.607, de 25/09/1974 14 BRASIL, Decreto-Lei nº 75.320, de 29/01/1975 10 11
232
A (des)institucionalizacão das políticas regionais no Brasil
mento da infraestrutura básica de apoio (estradas vicinais, eletrificação rural, armazenagem, etc.). Os recursos eram provenientes do FDPI, do Fundo de Desenvolvimento de Áreas Estratégicas (FDAE), de dotações orçamentárias do Ministério da agricultura e de financiamentos internos. O Programa Especial de Desenvolvimento do Pantanal (PRODEPAN), foi instituído em maio de 1974, objetivando “promover o melhor aproveitamento econômico dos recursos naturais do Pantanal Mato-grossense”. O programa contemplava a aplicação de recursos na infraestrutura de transportes terrestres, na regularização dos cursos de água, na expansão da oferta de energia, na promoção da industrialização de matérias-primas locais, dentre outras atividades. O Programa Especial de Desenvolvimento da Região de Grande Dourados (PRODEGRAN), tinha como finalidade básica a ampliação da produção de cereais e oleaginosas, na Região de Dourados, Mato Grosso do Sul, mediante o direcionamento de investimentos para as seguintes atividades: combate e prevenção da erosão; mecanização dos cultivos; estímulo ao processo cooperativo de comercialização; armazenagem etc. Estes programas têm várias características comuns. Foram criados na primeira metade da década de 1970 (“milagre brasileiro”) e se assentam na ideia de polarização do desenvolvimento econômico, ou seja, acreditam que é possível a desconcentração geográfica do desenvolvimento, via criação de polos regionais em regiões de “fronteira”15. A modernização agrícola ou “Revolução Verde”, apoiada em crédito rural abundante e a taxa de juros negativa, tendo em vista a elevação da inflação no período, geraria aumento da oferta de alimentos e matérias-primas agrícolas (com o objetivo principal de exportação), constituindo economias de aglomeração no cerrado, através da ampliação do mercado local para insumos, máquinas, indústrias agroalimentares, serviços financeiros etc. (FRANÇA. 1984; DINIZ, 1987). O melhor exemplo de programa regional se firma na ideia de desconcentrar geograficamente a produção econômica via criação de polos foi a criação da Zona Franca de Manaus (Decreto-Lei nº 288, de 28.02.67), como uma área de livre comércio de importação e exportação e de incentivos fiscais. A sua criação objetivava promover o desenvolvimento da Amazônia Ocidental, através do estabelecimento de um centro comercial, industrial e agropecuário. Os incentivos fiscais do decreto-lei previam a isenção dos impostos de importação e sobre produtos industrializados incidentes sobre as mercadorias estrangeiras utilizadas tanto para o consumo interno da Zona Franca como para a industrialização. No entanto, armas e munições, perfumes, fumo, bebidas alcoólicas e automóveis estavam fora desse benefício fiscal. Além disso, toda a mercadoria exportada pela Zona Franca para o estrangeiro estava isenta do imposto de exportação. Na verdade, a Zona Franca se assemelhava a um país estrangeiro, onde as compras de mercadorias do território nacional equivaleriam a uma exportação brasileira. A recente Constituição Federal prorrogou até o ano 2013 o funcionamento da Zona Franca com suas características de área de livre comércio exterior e de incentivos fiscais. No âmbito estadual, a Zona Franca contava ainda com auxílios fiscais provenientes de restrições da arrecadação do imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) e no âmbito municipal a prefeitura concedia isenções sobre o pagamento dosa seus impostos específicos. Obviamente, é praticamente impossível quantificar o montante de incentivos fiscais federais, estaduais e municipais que foram direcionados para a Zona Franca de Manaus. Entretanto, não resta dúvida de que eles foram fundamentais na industrialização e no povoamento da região, bem como no forte crescimento do seu comércio interno e externo.
15
233
Maria Regina Nabuco
A norma institucional que permitiu a incorporação da fronteira do Centro-Oeste brasileiro (Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Oeste de Minas Gerais e da Bahia) não foi, pois, a Constituição de 1967, mas sim o II Plano de Desenvolvimento Econômico (II PND, 1975-1979), que deu consistência ideológica e política á formulação destes programas e á incorporação capitalista das terras do “cerrado”. O II PND definiu como uma das principais linhas programáticas a integração das regiões brasileiras e a aproximação do urbano e rural. (LAVINAS; NABUCO, 1991). Com recursos financeiros estatais abundantemente distribuídos aos médios e grandes proprietários para custeio, investimento e comercialização dos produtos, a agricultura brasileira expandiu-se em direção ao CentroOeste, gerando o período das “super safras” (especialmente soja e milho). Este processo levou à redução da produção per capita dos alimentos básicos do mercado interno, maior concentração fundiária, especialização das novas empresas rurais em produtos de exportação e utilização de recursos de crédito rural na compra de terras. Desta forma, a questão dos “desequilíbrios regionais” ou do desenvolvimento econômico das regiões atrasadas competiu com as novas necessidades de expansão capitalista no Centro-Oeste (crédito farto e construção de infraestrutura básica). A partir da segunda metade da década de 1970, alguns programas de desenvolvimento de regiões atrasadas foram elaborados, mas não foram capazes de oferecer eficientes resultados socioeconômicos. Um exemplo destes programas é o Sertanejo (criado através do Decreto nº 78.229, cujo nome completo era Programa Especial de Apoio ao Desenvolvimento da Região Semiárida do Nordeste), que objetivava fortalecer as economias dos pequenos e médios produtores do semiárido por intermédio de núcleos de prestação de serviços e de assistência técnica. Os recursos oriundos do PIN e do PROTERRA seriam utilizados como crédito para financiamento dos agricultores estabelecidos em áreas periodicamente afetadas pelas secas. Além do Sertanejo, foram implantados os seguintes programas: Programa de Aproveitamento de Recursos Hídricos do Nordeste – PROHIDRO (EM/CDE nº 10/79), o Programa de Apoio às Populações Pobres das Zonas Canavieiras do Nordeste – PROCANOR (Decreto nº 84.096/79) e o Programa de Pesquisas do Trópico Semiárido – TSA (Decreto nº 74.911/74) Outros programas similares buscavam reativar áreas de pequena produção estagnada, como o PRODEMATA, MG II e o PROVARZEAS, em Minas Gerais. O PROVARZEAS (Programa Nacional de Aproveitamento de Várzeas Irrigáveis) foi, mais tarde, estendido para o resto do País, na busca de viabi234
A (des)institucionalizacão das políticas regionais no Brasil
lizar a pequena produção elevando seus níveis de emprego e renda por intermédio do aumento da produção e produtividade. A avaliação destes programas evidenciou sua baixa eficiência no atingimento das metas propostas. Desta forma pode-se dizer que as políticas regionais dos anos 1970 basearam-se no tripé constituído pelas teorias de polarização, aglomeração e modernização agrícola. O POLOCENTRO tinha como objetivo incorporar 3,7 milhões de hectares de “cerrado” no período 1975-79, através de financiamento com 12 meses de prazo. A concentração deste crédito foi de tal ordem que, no período 75-79, cerca de 70% do total foi distribuído entre os estratos de área superior a 750 hectares. Após sua desativação no final dos anos 1970 (ineficiência produtiva, intensificação do processo inflacionário, esgotamento dos recursos financeiros internos), criou-se o PROCEDER (Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o desenvolvimento agrícola da região dos cerrados), com recursos nacionais e japoneses. Já instalada uma razoável infraestrutura nos cerrados via POLOCENTRO, o PROCEDER passou a desenvolver programas de assentamento de colonos, via apoio de cooperativas e compra de terras pela CAMPO (empresa agropecuária, constituída de duas “holdings”, a JADECO, japonesa, e a BRASAGRO, brasileira). Estava assim coroada a expansão da fronteira do Centro-Oeste, alcançando agora também os estados de Tocantins, Rondônia, Sudoeste do Piauí, Maranhão e Bahia, via incorporação da mais moderna tecnologia agrícola, em bases empresariais. Para ter-se uma ideia da importância da fronteira do Centro-Oeste, no período 1974/92, sua participação na produção nacional de grãos cresceu de 21% para 33%. Enquanto isto, as regiões de ocupação antiga seguiam dois caminhos: aprofundavam seu processo de estagnação (Nordeste do Brasil, Norte e Leste de Minas Gerais, espírito Santo e Rio de Janeiro) ou adquiriam novas vantagens comparativas (Paraná, com a substituição do café pela soja; São Paulo, com a expansão da soja, cana-de-açúcar e frutas; a expansão da cultura de trigo e soja nos demais estados do Sul, etc.).
A transição democrática dos anos 1980: irrigação e a “desconcentração concentrada” A crise econômica dos anos 1980 no Brasil (em especial entre 1980-83) vai reforçar as desigualdades espaciais no Brasil, cuja nova configuração já se desenhava nos anos 1970, como vimos. Assiste-se ao que já se convencionou chamar de “desconcentração concentrada” (AZZONI, 1986; DINIZ, 1991), ou seja, ao 235
Maria Regina Nabuco
espraiamento industrial da industrialização paulista em direção às regiões que lhe são próximas, como o Sul de Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Do ponto de vista agrícola, os projetos que resistem à crise também são os que se situam próximos à São Paulo, em especial o triângulo Mineiro, o Sudoeste de Minas, Mato Grosso do Sul e os Estados Sulinos. Algumas “manchas” de industrialização, no entanto, são visíveis em algumas poucas regiões que não pertencem a este seleto grupo dos que apresentam algum crescimento. Pode-se citar a química na Bahia, o reflorestamento no Espírito Santo, a produção de frutas irrigadas ao longo do Rio São Francisco, a produção de novos materiais no Rio Grande do Norte, a indústria têxtil e de confecções no Ceará etc. (DINIZ, 1991). A maioria destes projetos foi gerada por programas regionais, como o FINOR, PROINE (Programa de Irrigação do Nordeste) etc. No caso do FINOR (Tabela 2), a partir de 1979 até a primeira metade da década de Oitenta, assiste-se a uma visível redução de seus recursos. A média anual, no período, de cerca de US$ 250 milhões, contrasta com a média do período anterior, 1970-1978, de US$ 290 milhões. Mas, com os anos da recuperação parcial ou conjuntural da crise econômica nacional (1986-1990) estes recursos voltam a crescer e vão se situar em um patamar médio anual bastante elevado – US$ 350 milhões – considerando-se todo o período de sua vigência (1962/91, incluindo o programa anterior – os Recursos 34/18, Tabela 1). O PROINE16 foi, em termos de programa de desenvolvimento regional, a grande novidade dos anos 1980. De fato, tratava-se de um subprograma do PRONI (Programa Nacional de Irrigação), criado no governo Sarney (1985), para o prosseguimento da modernização agrícola. Foi, para tanto, criado um ministério especial – Ministério da Irrigação, cujo principal objetivo era aumentar a área irrigada nacional em mais de 2 milhões de hectares, sendo 700 hectares situados no Nordeste. Estas metas seriam obtidas no período 1986/89, como parte do Plano de Metas, cujo objetivo principal seria produzir em 1989, 71,6 milhões de toneladas de grãos. A irrigação seria, segundo o referido plano, o principal fator para esta expansão (NABUCO, 1987). Através do apoio à produção agrícola nos anos 1986, 1987, 1988 (política de estímulo ao aumento dos preços mínimos, ampliação do crédito de investimento e custeio, etc.), o Brasil conheceu elevadas taxas de grãos, mas que não O Programa de Irrigação do Nordeste (PROINE) foi instituído pela Lei nº 7.499, de 26.06.86, no contexto do I Plano Nacional de Desenvolvimento da Nova República, do Presidente José Sarney. No período de 1986/90, foram reservados recursos na ordem de US$ 4,305 bilhões, provenientes do PIN, PROTERRA, FINSOCIAL, do Orçamento da União, de empréstimos do sistema BNDES / FINAME, do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Entre os objetivos do programa destacavam-se o aumento da produção e da produtividade agrícola, implantação de projetos irrigados, criação de empregos estáveis e bem remunerados, fortalecimento dos serviços de pesquisa e assistência técnica, estímulo à agroindústria regional, etc.
16
236
A (des)institucionalizacão das políticas regionais no Brasil
tiveram continuidade no início dos anos 1990. Desta forma, o recrudescimento da crise financeira do Estado Brasileiro, a redução dos preços internacionais dos alimentos e a pouca eficiência produtiva e financeira da irrigação, especialmente irrigação por aspersão (“pivôs-centrais”), impossibilitaram a continuidade dos programas modernizantes da agricultura dos “cerrados” brasileiros. Sobrevivem, no final dos 1980 e início dos 1990 alguns poucos projetos, como o PROCEDER II, cujos colonos se encontram, de maneira geral, fortemente endividados com o sistema financeiro que gerencia o crédito agrícola. No Nordeste (região da SUDENE) também sobrevivem alguns poucos projetos ligados à pequena produção agrícola, como o Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural (PAPP), criado em 01-04-85, pelo Decreto nº 91.179, que absorveu o POLONORDESTE, o Projeto Sertanejo, o PROHIDRO e o PROCANOR. O PAPP objetivava elevar os níveis de emprego e de renda dos pequenos produtores agropecuários, por intermédio do aumento da produção e da produtividade. Por fim, a crise econômica que se aprofunda no final dos 1980, porém, torna ainda mais escassos os recursos para ações de política pública (ver redução dos recursos do FINOR, a partir de 1987, Tabela 2)
A Constituição de 1988 e o governo Collor: regionalismo versus localismo A promulgação da Constituição de 5 de outubro de 1988 foi o coroamento do processo de abertura democrático iniciado no governo militar do general Figueiredo (1979-1985). Nesse sentido, a elaboração da Constituição foi caracterizada pela forte pressão de classes sociais, grupos e estamentos organizados da sociedade, que procuravam influenciar os constituintes no sentido de faze-los votar conforme os interesses desses grupos. Assim, o texto final da Constituição não revela organicidade ou consistência ideológica, acolhendo em graus variados grande diversidade de demandas sociais, fruto dos “lobbies” militares, regionais, empresariais, neoliberais, do operariado, religiosos, conservadores (latifundiários), profissionais liberais e organizações emergentes (consumidores, ambientalistas etc) etc. O “lobby” regional teve uma participação significativa neste processo, sendo obtidas conquistas inéditas para as regiões menos desenvolvidas do País. O enfoque do apoio do desenvolvimento regional foi contemplado nos seguintes artigos: 237
Maria Regina Nabuco
a.
art. 3º , que estabelece como um dos objetivos fundamentais da república a redução das desigualdades sociais e regionais;
b.
art. 21-IX e art. 48-IV, que impõem à União a elaboração e execução de planos regionais de ordenação do espaço e de desenvolvimento sócio econômico, após suas devidas apreciações pelo congresso Nacional;
c.
art. 43, que dispõe sobre a criação da Lei Complementar para reduzir as desigualdades regionais e, no seu segundo parágrafo, aborda a questão dos incentivos regionais, podendo estes compreender juros favorecidos para atividades estratégicas, isenções, reduções ou diferimento temporário de tributos federais, prioridade para o aproveitamento de recursos hídricos nas regiões sujeitas a secas periódicas, além de outros incentivos;
d.
art. 151, que concede à União o poder de criação de incentivos fiscais, com vistas à promoção do equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico entre as diferentes regiões do País;
e.
art. 165, que trata especificamente do Plano Plurianual e dos Orçamentos. O Plano Plurianual abordará regionalmente as diretrizes e metas para as despesas de capital. O Orçamento Fiscal e o de Investimentos, cuja função central é a redução das desigualdades inter-regionais, deverão acompanhar um demonstrativo regionalizado sobre os efeitos de isenções e subsídios de natureza tributária e creditícia;
f.
192, que dispõe sobre o depósito e a aplicação, pelas instituições regionais de crédito, dos recursos financeiros concernentes a programas e projetos de caráter regional; e
•
nas “Disposições Transitórias”, o art. 40 mantém a Zona Franca de Manaus, com suas características de área livre de comércio exterior e de incentivos fiscais, por um período mínimo de vinte e cinco anos e o art. 42 obriga a União a aplicar dos recursos destinados à irrigação, durante quinze anos, 20% na Região Centro-Oeste e 50% na Região Nordeste.
No entanto, com exceção das “Disposições Transitórias”, os artigos constitucionais acima mencionados não tiveram ainda um impacto sobre as regiões menos desenvolvidas, uma vez que a efetiva implementação desses artigos depende da formulação de leis complementares, que até o momento não foram elaboradas. Situação oposta, com respeito à viabilidade atual de implementação das questões regionais pela União é apresentada pelo art. 159 da Constituição, uma 238
A (des)institucionalizacão das políticas regionais no Brasil
vez que, em 27/09/1989, ele foi regulamentado pela Lei nº 7.827. Este dispositivo constitucional resgatou a contínua aplicação de recursos nas regiões menos desenvolvidas do País, na medida em que obrigou a União a entregar às instituições financeiras regionais, três por cento do total arrecadado com impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados. Esses recursos não podem ser aplicados em empréstimos, assistências ou a fundo perdido e devem contemplar programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. No caso da região Nordeste, metade dos recursos deve ser direcionada para o semiárido. De acordo com a Tabela 7, no período de setembro/89 a dezembro/92, o Tesouro Nacional transferiu cerca de US$ 2,55 bilhões para o fundo constitucional das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. TABELA 7: Evolução dos recursos do fundo constitucional das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil. De setembro de 1989/1992 (Em US$ mil) Anos
Valor líquido disponível para aplicação
1989
445,197
1990
927,573
1991
627,292
1992
549,560
Total
2.549,622
FONTE: Boletim Mensal do Banco Central do Brasil, vários números. Extraído de NABUCO; MESQUITA, 1993.
Fazendo uma análise dos números do fundo, verificamos que a média anual dos últimos três anos alcança a importância de 701 milhões de dólares, o que é uma média significativa relativamente às outras médias do FINOR (US$ 287 milhões), FINAM (US$ 115 milhões), PIN (US$ 395, 7 milhões) e PROTERRA (US$ 263,8 milhões), Observamos também que, no ano de 1990, época da implantação do Plano Collor, a arrecadação dos dois principais tributos federais – Imposto de Renda e IPI – teve uma expressiva elevação e nos anos seguintes, período da política econômica recessiva do Ministro Marcílio e do “impeachment” do Presidente, há uma queda substancial na receita tributária. Tudo isso é refletido na captação de recursos do Fundo Constitucional. Aliás, o “Plano Collor” ou “Plano Brasil Novo” consistia em um conjunto de medidas provisórias, posteriormente aprovadas pelo Congresso Nacional e transformadas em leis, expedidas pelo Presidente Fernando Collor de Mello no dia da sua posse, em 15/03/90. Essas medidas provisórias envolviam uma ampla reforma econômico-financeira e administrativa no País e a sua consis239
Maria Regina Nabuco
tência macroeconômica estava fundamentada em instrumentos de políticas monetária, fiscal e de rendas. Na área monetária, a principal medida dizia respeito à retenção vigorosa dos ativos financeiros, o que resultou e uma forte redução do estoque nominal de moeda. As medidas fiscais do Plano incorporavam a suspensão de incentivos fiscais, a incidência do Imposto sobre Operações Financeiras sobre os ativos financeiros retidos, combate à sonegação fiscal, programa de privatização de estatais, reforma administrativa, criação e aumento de alíquotas de alguns impostos e a redução do serviço da dívida pública interna. A política de renda contemplava reajuste das tarifas públicas, congelamento provisório e posterior prefixação de preços e nova política salarial (BARBOSA, 1990). Na verdade, o “Plano Collor” compreendia duas vertentes ideológicas de política econômica: uma neoliberal e outra socialdemocrata. As medidas de austeridade na política monetária e nos gastos da administração pública e no processo de desregulação da economia, entre outras, demonstravam a opção neoliberal do Plano. Por outro lado, a vertente socialdemocrata estava de certo modo presente na adoção do congelamento de preços e do gatilho salarial. (PAIVA, 1990). No tocante à questão regional, o Plano incorporava principalmente as seguintes medidas: revogação das isenções/reduções do Imposto de Importações e do IPI, dentro do sistema de Regimes Especiais de Importação, inclusive no âmbito da SUDENE e da SUDAM (Lei nº 8. 032, de 12/04/90), e suspensão, por 180 dias, dos benefícios fiscais relacionados ao FINOR, FINAM e ao Fundo de Recuperação Econômica do Espírito Santo (FUNRES) Lei nº 8.034, de 12/04/90. A revogação das isenções/reduções do Imposto de Importação e do IPI estava vinculada à política de abertura/desregulamentação da economia. Para as regiões menos desenvolvidas, essa medida representava uma redução da transferência de recursos tributários da União para o setor privado regional. Assim, sem esse benefício tributário, as indústrias regionais que importavam máquinas, equipamentos, matérias-primas etc, se defrontaram com uma elevação dos custos. A suspensão do FINOR, FINAM e FUNRES implicou interrupção na transferência da parcela dos incentivos fiscais às regiões menos desenvolvidas. Essa medida paralisou, temporariamente, a implantação de novos projetos industriais e agrícolas considerados de relevante interesse para essas regiões. Dessa forma, podemos inferir que o “Plano Collor” priorizou uma 240
A (des)institucionalizacão das políticas regionais no Brasil
política econômica centrada principalmente nas questões macroeconômicas de curto prazo ou conjunturais e, nesse contexto, a problemática regional foi tratada subsidiariamente. Como vimos, as medidas de caráter regional eram instrumentos de uma política fiscal austera, cujo objetivo precípuo residia no combate à inflação. Noutras palavras, as decisões executivas foram tomadas e implementadas sem um estudo ou avaliação prévia dos seus impactos sobre as regiões menos desenvolvidas do País. Por outro lado, o governo Collor exprimiu, desde a campanha presidencial, propostas de política que unem, paradoxalmente, modernidade (livre mercado, desenvolvimento tecnológico, expansão em direção ao mercado internacional, privatização, enxugamento da máquina administrativa do Estado etc.) e apoio aos “descamisados”, ou seja, à massa não organizada, especialmente à população rural e urbana das regiões mais atrasadas. O governo Collor, na verdade, reproduziu a ambiguidade contida na Constituição Federal de 1988 e, neste sentido, também acolheu demandas regionais, consubstanciadas, por exemplo, na tentativa de levar à frente uma “Política de Governadores” e de apoiar-se e elites regionais (rolagem da dívida dos usineiros). A descentralização administrativa, propiciada pela Constituição de 1988 (Reforma Tributária) gerou uma nova territorialidade que não se limitou aos contornos geográficos e administrativos existentes até então. A maior participação dos municípios nos recursos financeiros gerados pela nova tributação confere a estes maior capacidade para planejar e executar suas ações17. Desta forma, a grande proposta regionalizante da Constituição de 1988 foi a descentralização administrativa, onde sua face mais visível é a municipalização. Não é coincidência que a este processo corresponda, a nível mundial, o fenômeno da globalização, onde as “cidades mundiais” ocupam papel de destaque na produção, concentração e distribuição de riquezas. Os serviços modernos ligados à produção industrial (financeiros, de pesquisa e desenvolvimento, consultoria, informática, etc.) adquiram maiôs importância, quer como geradores de excedente e emprego, quer como polarizadores de atividades industriais e agrícolas. Ao ganhar maior autonomia financeira, os municípios adquirem real especialidade, no sentido de maior capacidade de formuladores de política. Ganha também maior dimensão p localismo, onde a vizinhança, os movimentos comunitários e as variadas normas de integração social (religião, 17 Rocca (1992) mostra que, pela nova Constituição, a carga tributária descentralizou-se rapidamente. O Fundo de Participação dos Estados ampliou-se de 14% para 25%; o Fundo de Participação dos Municípios passou de 17% para 22,5%; e o Fundo Especial (Norte, Nordeste, Centro-Oeste), de 2% para 3%. No total, esta descentralização significou uma ampliação de 33% para 47% destas transferências.
241
Maria Regina Nabuco
educação etc.) são fatores rapidamente colocados na agenda do desenvolvimento econômico e social. Este tipo de movimento administrativo/espacial tem raízes no neoliberalismo dos anos 1980, quando ressurge o mito de que apenas as comunidades são morais e autônomas, enquanto o Estado apresenta-se intrinsecamente burocrático, corrupto e dominado pelas elites. Este é um equívoco não só de princípios, como também de política econômica. O desenvolvimento econômico e social pode iniciar-se localmente, através da demanda e pressões de comunidades e grupos organizados, mas sem o apoio dos governos municipais, estaduais e federal, pouco se pode fazer. A ação local para o poder requer um estado forte. Os conflitos locais não podem ser localmente contidos. Eles devem atingir as arenas regionais e nacionais porque, caso contrário, não terão eficácia permanente. O objetivo de longo prazo das políticas locais é reequilibrar a estrutura de poder na sociedade. (FRIEDMANN, 1992) e, portanto, deve direcionar-se a âmbitos regionais mais amplos, que envolvem regiões metropolitanas, municípios vizinhos, unidades federativas, reservas ambientais, zonas agroecológicas, bacias fluviais, etc.
Emergência do municipalismo Desta forma, os quase cinquenta anos de institucionalização das políticas regionais para o Brasil podem ser classificados em pelo menos quatro formas de intervenção pública. Os anos compreendidos entre os primeiros programas de desenvolvimento regional implementados no espírito da Constituição de 1946 e o início dos anos 1970 representam uma política que privilegiou o combate ao atraso via ações territoriais, de caráter geográfico/climático. O “círculo vicioso da pobreza” foi aqui detectado como causado principalmente pelas desvantagens comparativas das regiões atrasadas (problemas da seca, baixa fertilidade das terras). Uma visão mais refinada desta interpretação é representada pelas análises da SUDENE que aponta, ademais, a organização econômica e social da agricultura nordestina, como um dos fatores fundamentais do atraso. O governo militar implantado em 1964 inicia um novo ciclo de políticas regionais, caracterizado pelo extremo centralismo das decisões políticas e pela ênfase em políticas de integração regional. O Nordeste deixa de ser a principal região alvo de políticas, incluindo-se outras áreas também relevantes: Amazônia e Centro-Oeste. Reforça-se o sistema do desenvolvimento regional via incentivos fiscais, unindo-se o capitalismo industrial do Centro-Sul às oportunidades de ampliação do mercado, especialmente no Nordeste. No 242
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caso da nova fronteira agrícola (Amazônia e Centro-Oeste), a ligação com o Centro-Sul dá-se menos através da expansão do mercado consumidor e mais através da incorporação de terras baratas à produção agrícola. Estado e empreendimento privado unem-se via fartos recursos oficiais, despendidos em grandes programas territoriais, via melhorias na infraestrutura, crédito farto e barato, “ joint-ventures”, etc. Com os primeiros sinais da crise econômica no final dos anos 1970, a escassez de recursos públicos obrigou os governos regionais (estaduais) a uma série de estratégias de captação de recursos. Uma delas ficou classicamente conhecida como “estratégia participativa de administração” (GÓMEZ DE SOUZA, 1991) em que à maior participação popular gerada pelos movimentos sociais contra a ditadura militar, somou-se a ação de alguns governos estaduais e municipais democratas, eleitos por via direta. Este processo de ampliação da participação democrática nas decisões de política ampliou-se, a nível federal, com a Nova República do governo Sarney (1985-90). Com a eleição de Collor (1990), a complexa combinação entre o neoliberalismo, revigorado a partir do processo de reestruturação industrial nos países desenvolvidos, e o clientelismo/populismo dos “descamisados” encontra sua expressão territorial na descentralização administrativa, ou localismo. Os municípios adquirem maior visibilidade na implementação das políticas territoriais, expressão da redobrada importância que assume a produção de serviços modernos, sediados nas cidades e expressando o que de mais moderno o capitalismo mundial nos anos 1990. Somam-se, assim, neoliberalismo, globalização, possibilidade de inserção do país no Primeiro Mundo e municipalismo. Algumas experiências recentes de administração municipal num país periférico como o Brasil têm buscado alternativas que levam em consideração a busca da modernidade, mas incluindo novas formas de gestão do espaço público e privado, no sentido do avanço da qualidade de vida para os cidadãos. A nova agenda governamental é a busca dos direitos humanos urbanos universais, através da redução da desigualdade do acesso dos serviços sociais. Para tanto, “complementa-se” a lógica do conflito entre classes e setores da sociedade, com a lógica da renegociação “ad-hoc”. Estado e sociedade buscam a governabilidade local, ampliando-se a participação política daqueles que são capazes de formular demandas (ex: orçamento participativo), tornando o processo administrativo de alocação de recursos mais transparente. Ademais, cria-se nas cidades brasileiras nos anos 1990, uma série de Conselhos ligados à Política Urbana (paritários, consul-
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tivos, deliberativos), nos mais diversos setores (Moradia, Meio Ambiente, Criança e Adolescente, Abastecimento, etc.), de caráter pluralista, ampliandose o leque de possibilidades de arranjos entre organizações governamentais e não governamentais. Estes novos arranjos ou parcerias, que em grande medida reduzem a capacidade e o poder de atuação dos partidos políticos e do legislativo, buscam nova governabilidade, baseando-se em três fatos: 1.
novo papel econômico do Estado – mais reduzido e ágil – mas ainda garantindo a manutenção de ciclos econômicos, expansivos, tendo em vista que as cidades periféricas brasileiras não contêm (ou apenas rarissimamente) o núcleo gerador do progresso técnico. Embora cada vez menos presente nos setores dinâmicos da economia, o Estado se faz presente nos chamados setores estratégicos (não atrativos ao capital privado) e no apoio à pesquisa e desenvolvimento tecnológico;
2.
nova ordenação do espaço público, através da permissão ou concessão de uso a grupos privados, desde que os contratos incluam benefícios sociais mais amplos, como melhoria da qualidade dos produtos oferecidos, preços com margem de comercialização controlada, melhoria sanitária e ambiental das áreas, etc.
3.
nova estratégia política, com a institucionalização de alianças de negociação-harmonização entre governo, sindicatos, associação de consumidores e produtores, etc, formas que competem com o canal convencional de deliberação do Estado.
Esta busca de governabilidade através da ampliação da participação da sociedade na administração municipal (democracia radical), adaptando-se à nova divisão internacional e inter-regional do trabalho e suas repercussões locais, apresenta, no entanto, fragilidades que podem comprometê-la. Em primeiro lugar, as dificuldades (financeiras, burocráticas, públicas) de cumprir o programa de governo, frustrando as expectativas dos cidadãos, em especial, dos interesses organizados. Em segundo, a incapacidade de incluir a massa dos cidadãos que, crescentemente, encontram-se fora do mercado de trabalho e, consequentemente, fora do mercado de bens e serviços. Mesmo com a virtual retomada do ciclo expansivo da economia nacional e seus rebatimentos locais, sabe-se que o desenvolvimento hoje se dá em uma correspondente ampliação da oferta de trabalho. O conflito social se expressa, não só através da oferta da propriedade da terra e do capital e da redistribuição da renda, mas se torna mais visível através 244
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da marginalidade, miséria e violência urbanas. Com isto, a governabilidade pode se romper, assegurando-se a regulação da sociedade apenas através de maior repressão. Como neste caso amplia-se o número de elementos não negociáveis entre sociedade e estado, corre-se o risco da igual ampliação de movimentos que excluem o estado, apoiados em identidades coletivas que não se baseiam em posições contratuais, em relação ao mercado de trabalho. Estes movimentos em geral possuem uma concepção negativa da política, buscando sua unidade através de uma utopia conservadora, reduzindo-se cada vez mais as relações inter-organizacionais e a solidariedade orgânica (faccionismo). Se a saída da crise econômica não nos oferece garantia de ampliação do emprego e redistribuição de renda, a questão da exclusão de grande parte dos cidadãos da participação política (problema da “governança”) relativiza o otimismo com que foi inicialmente tratada a questão do municipalismo, localismo ou descentralização espacial das políticas públicas. Às virtudes da democracia direta – maior transparência do setor público, maior controle por parte dos cidadãos, maior autonomia e flexibilidade das decisões locais, etc., contrapõem-se problemas, como a restrição a solidariedade territorial mais ampla, percepção fragmentada dos problemas sociais e isolamento das cidades de sua realidade regional, do ponto de vista de sua economia. Ademais, esta nova modalidade de “estado do bem-estar”, em que governos municipais buscam, durante a crise, expandir-melhorar os serviços públicos, enquanto abrem o leque de oportunidades de parceria com o setor privado (por escassez de recursos e reconhecimento da necessidade de reforma do estado) pode propiciar cada vez mais o acomodamento dos chamados movimentos reivindicativos de valores, ampliandose aqueles que se baseiam apenas nos interesses re-distributivistas. É preciso que a busca da governabilidade através da negociação e da parceria não leve ao enfraquecimento dos partidos competitivos, retirando sua vitalidade e a repassando para os movimentos que reduzem a solidariedade interinstitucional e territorial. Impossível buscar a “governança” municipal sem consonância com políticas de âmbito nacional, estadual e supralocal. Pode-se mesmo dizer que sem a esfera supralocal, corremos o risco de continuarmos combinando a velha fórmula federativa brasileira: centralismo, clientelismo e localismo. (PACHECO, 1994) A este respeito, é interessante observar que, mesmo entre as políticas públicas que sofreram algum processo de descentralização ou desconcentração administrativas, pós Constituição de 1988, a dinâmica tem sido falha em vários sentidos.
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A descentralização administrativa foi iniciada, de maneira geral, pelos municípios, numa verdadeira investida para a resolução dos graves problemas locais, sem aguardar que as outras esferas federativas agissem no mesmo sentido, a fim de renovar-se a antiga articulação espacial pré-1988 (LAVINAS; NABUCO, 1994b). No que diz respeito à Constituição, há referências setoriais específicas apenas à saúde e educação, art. 198 e 211, respectivamente. As demais políticas continuam carecendo, não só de Leis complementares para “fixação de normas para a cooperação entre a União e os estados, o DF e os municípios” (art. 23, inciso VIII), como também da garantia das transferências financeiras necessárias à sua implantação. Ademais, para que o maior dinamismo recente dos municípios não transforme este processo em um conjunto de experiências bem sucedidas, mas isoladas (“prefeiturização”) e dispersas geograficamente, é necessária também a coordenação do governo federal, estipulando prioridades, evitando a dispersão de recursos e a superposição de projetos (LAVINAS; NABUCO, 1994a). Análises recentes revelaram que a Constituição de 1988 “permitiu uma repartição mais equânime das transferências federais para os estados”. Mas os estados não podem ser tecnicamente definidos como “escala espacial predominante nos processos econômicos, sociais e políticos”, não podem ser considerados como regiões, no verdadeiro sentido deste termo (LAVINAS; MAGINA; SILVA, 1994). É neste sentido que, além da transferência compensatória, em casos específicos, é necessário ampliar-se também em direção às regiões menos desenvolvidas, o volume dos financiamentos com recursos federais. Apesar de ter-se ampliado em período recente, o volume de transferências para os estados, e de este ter-se concentrado em regiões como o Nordeste (33% das transferências correntes no período 1982-88), o montante de financiamentos supera em muito o das transferências (segundo LAVINAS; MAGINA; SILVA, 1994, no período acima referido, o primeiro foi cinco vezes maior que o segundo). Isto significa que às transferências compensatórias deverá ser acrescida a preocupação com o aumento de financiamento para projetos econômicos em regiões menos desenvolvidas, com preocupações de repercussões econômico/ sociais de âmbito local e supralocal não necessariamente federativo (regional igual à estadual ou à soma de estados). Somente com esta preocupação é que os três níveis espaciais objeto de políticas públicas – local, supralocal e nacional poderão articular-se com equidade e eficiência.
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O Município: “Território democrático da ingovernabilidade?” Para superar as limitações do municipalismo aqui já referidas – isolamento, fragmentação e incapacidade de resolução dos graves problemas econômicos (inserção periférica na divisão internacional do trabalho) e sociais (a não “governança”) – é necessário uma inserção mais articulada às esferas regionais e nacional do planejamento. Isto significa que, muito embora sejam hoje os municípios a arma privilegiada para a melhoria das condições de vida da população, esta tendência pode ser reduzida ou mesmo contraarrestada por impossibilidade de sua reprodução a nível mais amplo. No caso mais específico de desenvolvimento econômico – avanço tecnológico, aumento da renda e possibilidade de geração de novos empregos – é indispensável ações de planejamento a nível supralocal, que garantam não só maiores ganhos de escala, mas contínua articulação de bens, serviços e conhecimento científico. Quer chamemos a esta nova região de supralocal (para diferenciá-la do “regional” que, muitas vezes, se confunde com unidades federativas), ou de funcional, tendo em vista que são, em geral, conurbações urbanas definidas por proximidade e fluxos de bens, serviços e população), é necessário conferir um nível superior de institucionalização a tais regiões. O não reconhecimento deste chamado “quarto nível de poder”, baseia-se em dois fatos principais: por um lado, a recente história do moderno municipalismo brasileiro, preocupado basicamente com os graves problemas locais; por outro, a dificuldade de os governos estaduais reduzirem a tutela do Estado sobre quaisquer questões que envolvam um conjunto de municípios18. As poucas tentativas de planejamento supralocal, independentes da tutela estadual, não foram bem sucedidas, de maneira geral, embora se saiba que há interesses comuns por parte dos municípios. Estes interesses ultrapassam a questão do controle do crescimento urbano em áreas metropolitanas (visão urbanística, em voga nos anos 1970) e da provisão e gestão de serviços comuns, incluindo hoje a abordagem do desenvolvimento econômico e social (PACHECO, 1994). Políticas como as ligadas ao meio ambiente, abastecimento alimentar, a indústria e o comércio, saneamento básico, transportes, geração de empregos, moradia, entre outras, ultrapassam o nível municipal e só terão maior eficiência se se lograr apoio e consonância entre municípios. Ao mesmo tempo em que ver Pacheco (1994) e sua análise sobre as raízes do imobilismo pós-constitucional, no que diz respeito a experiências de arranjos supralocais para gestão regional em contexto metropolitano
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cada um destes busca seu fortalecimento interno, deverá buscar também parcerias com os demais, criando-se uma atmosfera de colaboração ou, no mínimo, de uma competição justa (ao contrário da corrida por investimentos externos, que coloca os municípios em posição fragilizada na negociação com empresas). Alguns exemplos de políticas setoriais tornam mais claras a questão da necessidade do planejamento e a ação pública supralocal. A política de industrialização de algumas áreas no município frequentemente gera empregos fora deste. As ações públicas de melhorias do abastecimento ampliam a demanda por alimentos no entorno próximo ou distante do município, gerando renda e emprego e, consequentemente, apoiando a possibilidade de maior organização entre produtores rurais. Os programas de conservação e melhoria ambientais são supra municipais, por natureza não se limitando a cortes administrativos, etc. A soma de todas estas preocupações setoriais no âmbito supralocal é definida por Pacheco (1994) como “governança” regional, onde, além dos governos municipais, outros atores seriam chamados a atuar (cidadania regional). Alguns exemplos desta “governança” já existem: consórcios intermunicipais, fóruns nacionais de secretários municipais, assembleias e conselhos metropolitanos, etc.
Conclusões Após longos períodos de implementação de políticas regionais no Brasil, onde se ressaltam duas linhas de ação principais – redução das desigualdades regionais e ocupação da fronteira – nos últimos anos assiste-se a uma paralisia na agenda dos governos, com respeito à concepção, formulação e implementação de tais políticas. Isto se deveu, como foi visto, à reestruturação da divisão internacional do trabalho nos anos 1980, recolocando para a periferia papéis econômicos ainda mais subsidiários aos países centrais. Ao mesmo tempo, para a sobrevivência neste novo cenário, a periferia adotou procedimentos para a reprodução da importância do papel do Estado, acreditando estar aí a raiz dos problemas da falta de crescimento, da estagnação tecnológica e da inflação. Ao mesmo tempo em que a população ampliava a demanda por maior participação econômica (renda) e política (direitos de cidadania), o Estado se mostrou incapaz de resolver, ou mesmo equacionar tais demandas. Do ponto de vista da territorialidade, não avançou na definição das políticas regionais 248
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compensatórias, da questão da proteção aos recursos naturais, na implementação da descentralização administrativa. Os governos municipais, mais ágeis, ensaiam os primeiros passos de governabilidade, através de ampliação dos recursos descentralizados e da parceria possível com os grupos privados. A questão maior é conseguir incluir os excluídos neste processo, tendo em vista os elevados níveis da miséria urbana. Estes “ingovernáveis” urbanos, parcamente atendidos pelos movimentos filantrópicos (elites esclarecidas), constituem perigo para a já frágil construção da democracia. Voltamos ao velho dilema, compartilhado por liberais e marxistas, ou seja, a possibilidade de convivência entre capitalismo e democracia. Desta forma, a descentralização não é um simples processo administrativo pelo qual o governo delega poderes às autoridades regionais para administrar diversos programas decididos no centro. Os municípios e as regiões supralocais convertem-se hoje em “quase-estados”, tendo em vista a importância das decisões e do poder a elas conferido enquanto arenas de negociação de conflitos.
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Urbanização extensiva e lógicas de povoamento: um olhar ambiental1 Roberto Luís de Melo Monte-Mór
Este trabalho busca um olhar ambiental sobre alguns aspectos das relações cidade-campo, das articulações metrópole-região e das lógicas de povoamento que marcam os tempos-espaços contemporâneos. Algumas perguntas amplas, mas centrais, orientam a reflexão: o que vem mudando nas lógicas de assentamento e povoamento? Até que ponto as mudanças observadas são fruto da metropolização? No contexto dos “pós-ismos” do limiar do século XXI, como as relações cidade/campo e metrópole/região estão pedindo para serem perguntadas? Qual é o “novo” que está querendo nascer? O trabalho não pretende responder a essas perguntas, evidentemente, mas apenas alinhavar alguns pontos de reflexão que possam orientar outras perguntas. Pressupõe, entretanto, que antes de tudo, precisamos (re)perguntar sobre as (novas) territorialidades que estão informando nossos olhares, e vivências e reflexões contemporâneas. Em primeiro lugar, faz-se necessária uma digressão teórica sobre as relações industrialização-urbanização para clarear o ponto de vista adotado: da urbanização extensiva na periferia industrial. Segue-se uma discussão sobre a questão territorial nas periferias capitalistas - na região industrial e nas fronteiras - vis-à-vis alguns processos identificados nos países de centro, chamandose atenção para aspectos de similitude e diferenciação. Num segundo momento, o trabalho levanta a questão ambiental nas suas dimensões urbana e metropolitana, discutindo implicações das dicotomias modernas com que se tem tradicionalmente trabalhado, e voltando-se principalmente para a necessidade de se repensar as distinções entre espaço natural e espaço construído, ou novamente, espaços urbano e rural, campo e cidade. A questão da cidadania que perpassa o trabalho é, então, a partir dessa perspectiva, revista e trazida para o debate.
Publicado originalmente na coletânea: SANTOS, M.; SOUZA, M.A.; SILVEIRA, M.L.. (Org.). Território, Globalização e Fragmentação. São Paulo: HUCITEC-ANPUR, 1994, v. , p. 169-181. Posteriormente traduzido para o inglês com o título: Extended Urbanization and Settlement Patterns in Brazil: An Environmental Approach, publicado na coletânea organizada por Neil Brenner.. Implosions / Explosions: Towards a Study of Planetary Urbanization. 1ed.Berlim: Jovis Verlag GmbH, 2014, p. 109-120.
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Da industrialização e da urbanização extensiva O principal conceito que orienta a compreensão da dinâmica contemporânea da organização do espaço social aqui apresentada é a ideia da urbanização extensiva. Estou derivando este termo a partir de Henri Lefebvre, no que ele chamou “zona urbana”. Analisando a dicotomia urbano-rural nos países industrializados e focalizando suas implicações políticas - o “direito à cidade”, ao espaço do poder e da cidadania; a vida cotidiana e suas lutas políticas espacializadas; a produção social do espaço em suas múltiplas implicações, incluindo a reprodução das relações de produção – Lefebvre propõe o conceito de “zona urbana” referindo-se àquele estágio de organização espacial no qual o capitalismo industrial, firmemente estabelecido dentro da cidade e controlando toda sua região de influência, provoca a ruptura da cidade (herdeira da “polis”, da “civitas”), em duas partes relacionais: o core, o centro/núcleo urbano, resultante do processo de implosão do lócus do poder, marca da antiga cidade; e o tecido urbano, a trama de relações socioespaciais que se estende à região resultante da explosão da cidade preexistente. Citando Lefebvre: O tecido urbano prolifera, estende-se, corrói os resíduos da vida agrária. Estas palavras, “o tecido urbano” não designam, de maneira restrita, o domínio edificado nas cidades, mas o conjunto das manifestações do predomínio da cidade sobre o campo. Nessa acepção, uma segunda residência, uma rodovia, um supermercado em pleno campo fazem parte do tecido urbano. Mais ou menos denso, mais ou menos espesso e ativo, ele poupa apenas as regiões estagnadas ou arruinadas, devotadas à “natureza” (LEFEBVRE, 1999,[1972] p. 17).
O que Lefebvre chama “zona urbana” é, portanto, o estádio da urbanização que se encontra para além dos limites da “cidade industrial”, ainda que a englobando. Estende-se pelo espaço regional à medida que relações de produção e forças produtivas capitalistas criam as condições socioespaciais necessárias para a acumulação continuada. Estas condições são necessariamente urbano -industriais, nas suas formas sociais e espaciais. A área metropolitana é a expressão mais óbvia de zona urbana de que fala Lefebvre, da urbanização extensiva na sua forma mais visível e imediata. Gosto mais da versão original! Ali, a antiga cidade industrial, implodida sobre o centro metropolitano e alguns de seus subcentros, recriou o “core urbano” - concentração nodal do poder - e a trama extensiva da cidade industrial explodida, equipada para a produção e para a reprodução coletiva, sob a forma do tecido urbano: distritos 252
Urbanização extensiva e lógicas de povoamento: um olhar ambiental
industriais, indústrias isoladas, comércio, serviços, bairros residenciais, cinturões agrícolas, áreas de lazer etc. A unidade dialética centro urbano-tecido urbano expressa, de fato, a espacialidade do capitalismo tardio. Representa a extensão virtual da organização industrial a todas as partes do território penetrado pelo capitalismo; expressa a forma socioespacial daquele estágio no qual, segundo Ernst Mandel, não apenas os bens de consumo e de capital, mas também as matérias-primas e os alimentos - e o próprio espaço e a natureza, deveríamos acrescentar, são industrialmente produzidos. Citando Mandel: O capitalismo tardio, longe de representar uma “sociedade pós-industrial”, aparece então como o período no qual todos os ramos da economia estão totalmente industrializados pela primeira vez; ao qual poder-se-ia adicionar a mecanização crescente da esfera da circulação (com a exceção dos serviços puramente de reparos) e a mecanização crescente da superestrutura.” (MANDEL, 1987, p.191, T.A.)
A espacialidade de tal organização societal e econômica, gestada dentro e através da “sociedade burocrática de consumo dirigido” (na terminologia de Lefebvre), é necessariamente urbano-industrial. Urbana, como expressão da institucionalização promovida pelo Estado, e das várias formas de organização da sociedade civil; industrial, como uma manifestação do estágio da própria acumulação capitalista. No seu conjunto, expressa as exigências do capitalismo tardio em termos das necessárias “condições gerais da produção”. A urbanização extensiva - esta urbanização que se estende para além das cidades em redes que penetram virtualmente todos os espaços regionais integrando-os em malhas mundiais - representa, assim, a forma socioespacial dominante que marca a sociedade capitalista de Estado contemporânea em suas diversas manifestações, desde o centro dinâmico do sistema capitalista até - e cada vez mais - às diversas periferias que se articulam dialeticamente em direção aos centros e subcentros e subsubcentros...
Das periferias: das indústrias e das fronteiras A precariedade das condições gerais de produção na periferia industrial, ou “semiperiferia”2 , gerou, no mais das vezes, uma concentração metropoliPara WalIerstein (1974, 1976) a semiperiferia é formada por países que ocupam uma “terceira posição estrutural” na divisão internacional do trabalho, com uma estrutura econômica interna onde o produto industrial supera 20% do PIB. A OECD chama NICs (Newly Industrializing Countries) àqueles países cuja produção manufatureira representa pelo menos 25% do seu PIB e 50% das suas exportações (LIPIETZ, 1987). Aqui, periferia industrial refere-se aos países que, como o Brasil, participam cada vez mais intensamente, como produtores, do mercado mundial de produtos industrializados.
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tana que vem sendo descrita há mais de duas décadas em diversos estudos sobre primazia urbana, migrações, processo industrial, entre outros temas correlatos. A expansão metropolitana que acompanhou a industrialização periférica resultou na superposição espacial de lógicas da produção e consumo, como de resto em todo o mundo capitalista, mas sua peculiaridade face ao centro capitalista repousava na concentração quase absoluta das condições de produção industrial (incluindo a reprodução coletiva da força de trabalho) nas áreas metropolitanas e nas cidades mono-industriais características da primeira fase de substituição de importações. A recente extensão das condições de produção a parcelas mais amplas dos espaços regionais e nacionais e a própria transformação dessas condições em função da dita terceira revolução tecnológica (das comunicações e da informação) criaram as bases para a transformação espacial que vimos observando nos últimos vinte anos no Brasil. Desde então a metrópole vem se derramando não apenas sobre as regiões circunvizinhas mas também sobre as periferias distantes. Cria padrões e externalidades que se impõem e se estendem, fazendo-se sentir em todo o espaço nacional. A metrópole brasileira, também caleidoscópica (SOJA et aI., 1985; DAVIS, 1990), tem repercussões e rebatimentos até mesmo na distante fronteira agrícola. Muitos dos processos urbanos hoje observados em Rondônia diferem apenas em grau e intensidade daqueles observados no centro das metrópoles brasileiras, ou nas áreas metropolitanas dos países industriais. De fato, os fragmentos da cidade metropolitana espalham-se por todo o território nacional, como já dizia Chico de Oliveira (1978) no famoso texto em que se propunha a colocar em pé o ovo de Colombo do processo de urbanização brasileira. O preço pago pela forma violenta e excludente desse processo intenso e rápido está ainda sendo cobrado da Nação. No entanto, também como resultado daquele processo de metropolização e urbanização extensiva, novas formas de ocupação do espaço e novas lógicas de povoamento vêm surgindo em todo o território nacional, do eixo Rio-São Paulo à fronteira agromineral da Amazônia. Suas articulações se dão de forma cada vez mais descontínua no espaço geográfico, levando-nos a (re)pensar em desterritorialização, ou mesmo na de-localização de que falava François Perroux (1967) décadas atrás. Assim, processos de produção e reprodução podem ser identificados em fazendas do sul do Pará ou em cidades, vilas, povoados, áreas de mineração e projetos de colonização no interior de Rondônia, envolvendo populações que emigraram de grandes áreas urbanas e metropolitanas do País. De fato, já na década de 1970 o quadro começava a se inverter em relação ao processo intensamente dicotômico que caracterizou as décadas anteriores. 254
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A substituição de importações, vista da ótica de um tecido urbano industrial que se implantava nas grandes cidades e metrópoles da periferia industrial produziu, segundo olhares dos países industrializados, “cidades de camponeses” (ROBERTS, 1978). Ali, práticas identificadas como rurais se superpunham à economia urbano-industrial em formação: economias domésticas de subsistência de fundo de quintal completando o orçamento familiar; grupos de parentesco e compadrio dominando relações e controles sociais; relações de produção pré-capitalistas coexistindo com relações (sub)assalariadas marcando uma inserção particular na economia urbana. Por outro lado, a partir já da segunda etapa de substituição de importações inaugurada no período Kubitschek, a tentativa de implantação de um fordismo periférico nos países da periferia semi-industrializada - e no Brasil - cuida de estender as condições de produção a todo o espaço nacional. Essa expansão territorial produziu um espaço urbano-industrial extensivo – a urbanização extensiva que hoje no Brasil atinge até mesmo a floresta amazônica, região quase inexpugnável para os padrões de produção do espaço habitado prevalentes antes do salto qualitativo da construção civil de base juscelinista que tem em Brasília seu símbolo. O “desenvolvimentismo” militar, promovendo a ocupação da Amazônia com migrantes de quase todo o País – do campo e de cidades do Nordeste; do campo urbanizado às metrópoles “de camponeses” do Sul-Sudeste -, gerou sua contrapartida nas “florestas de urbanitas”. De fato, as novas formas urbanas e/ou protourbanas - assim metodologicamente chamadas em estudos de campo em Rondônia e no sul do Pará (MONTE-MÓR, 1988, 1989) - não diferem, em sua essência, das formas que Allen Scott (1988) identificou como protourbanas em Orange County, no Sul da Califórnia, ou que Ed Soja (1990), sem assim nominá-las, descreve para a área de Los Angeles. As formas protourbanas, seja na fronteira de recursos da Amazônia, seja na fronteira tecnológica da Califórnia, representam a mesma dinâmica que constitui “o fulcro geográfico do processo urbano no capitalismo (...) [ditado por] processos de produção espacialmente convergentes ligados através de extensivas redes de relações transacionais” (Scott, 1988:60). Aqui e lá, são protourbanas por serem manifestações incompletas do padrão urbano-industrial que caracteriza as vidas contemporâneas nacionais e regionais3. Em ambos os casos, o binômio centro urbano-tecido urbano está por se 3 Entretanto, considere-se que de fato os padrões urbano-industriais referenciais do Sul da Califórnia e os da Amazônia apresentam distinções consideráveis em forma e conteúdo. Assim, processos incompletos diversos podem representar formas espaciais bastante distintas, apesar das inúmeras identidades formais encontradas.
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consolidar. A intensidade das relações, a natureza das redes, a qualidade do espaço social e “natural” produzidos (e destruídos) pela dinâmica do capital (e do Estado seu aliado) são alguns dos elementos que marcam diferenças entre tais realidades aparentemente tão opostas, mas similares enquanto expressões de uma lógica comum. Fragmentação, extensão, segmentação, involução... essas são algumas das hipóteses que orientam nosso olhar sobre as metrópoles e sobre a dinâmica da urbanização contemporânea. O que está se escondendo de novo por trás desse caleidoscópio fragmentar? Quais são alguns dos novos elementos e visões que vêm informando o novo olhar que podemos dirigir sobre o espaço socialmente produzido?
Da questão ambiental Existe um certo consenso se formando em cima da hipótese - ou já será considerada um fato? - de que a questão e a consciência ambiental e ecológica4 vêm trazer transformações profundas na compreensão do processo de produção e na organização econômica e espacial da sociedade contemporânea. Entretanto, o impacto real dessa consciência crescente sobre o ambiente construído, em especial nas aglomerações metropolitanas, deixa ainda muito a desejar. As áreas urbanas têm sido vistas tradicionalmente como espaços mortos, do ponto de vista ecológico. Ainda que tomadas como focos principais da problemática ambiental contemporânea - seja pela lógica da produção industrial e suas mazelas ambientais, seja pelos padrões de consumo que atuam intensamente na destruição e desperdício dos recursos naturais e humanos - as metrópoles, as cidades e as áreas urbanas têm sido ainda pouco consideradas nos seus aspectos ambientais. A qualidade de vida - com suas implicações sobre o resgate do valor de uso do espaço urbano e do sentido social da propriedade - aparece ainda por demais timidamente nos debates urbano-ambientais nestes tempos de crise econômica. De fato, o sentido mercantil dominante da produção e organização do espaço no capitalismo, expresso no valor de troca imputado ao solo (urbano, no caso), se agudiza em tempos de crise quando a reserva de valor se impõe como artifício de acumulação e sobrevivência, acentuando seu caráter Há um debate sobre limites e diferenças implícitos nos termos ecologia e meio ambiente. Este não é o espaço para tal discussão, mas cabe apenas afirmar que, aqui, a noção de meio ambiente tem abrangência comparável à noção de espaço social, incluindo necessariamente a sociedade, a economia, a política e a própria ecologia entre os aspectos que o conformam. De outra parte, a ecologia, tomada para além dos limites disciplinares, transcende os limites histórico-geográficos imediatos, podendo corresponder-lhe então espacialidades e condições ambientais múltiplas (assim como acontece com a economia, a política etc.).
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de elemento central na reprodução das relações sociais de produção e do próprio capitalismo (LEFEBVRE, 1976). O acesso ao solo urbano, ao bem de produção “espaço urbano”, entretanto, fortalece o sentido do valor de uso, o qual se impõe crescentemente na medida em que garante a inserção das populações pobres na economia popular urbana voltada, principalmente, para a reprodução5. Também nas camadas ricas da população onde a garantia da reprodução ampliada já permite digressões, o valor de uso do espaço urbano tem ganhado importância crescente no resgate do conceito e nas restrições que tal resgate sugere sejam impostas à dinâmica da valorização do espaço social. Entretanto, mesmo no contexto mutável contemporâneo, onde a qualidade ambiental ganha importância crescente, questões como a existência e a penetração de “manchas de espaço natural” e seus possíveis efeitos sobre a qualidade de vida urbana mesmo questões ligadas à biodiversidade, não têm merecido um maior esforço de compreensão, questionamento e equacionamento de políticas públicas. Os ecólogos e ambientalistas parecem ter dificuldades em pensar a ecologia e a biodiversidade a nível do ambiente construído. Perguntas do tipo “qual o impacto e eventual benefício da existência de uma área do tipo ‘Floresta da Tijuca’ no interior do tecido urbano para a conservação da biodiversidade a nível regional?” encontram resistências, tanto no domínio das Ciências Sociais quanto das Ciências Ecológicas. As possibilidades de pensar a diversidade cultural e biológica no contexto metropolitano e da urbanização extensiva parecem, no entanto, imensas. Mas estamos de tal forma imersos nas nossas crises urbanas - da cultura, da ordem e da lei, do poder constituído, do consumo e da reprodução, da própria produção e sua realização, do conhecimento, enfim, as múltiplas manifestações da crise civilizatória contemporânea - que virtualidades integradoras da natureza e do hábitat humano parecem ainda quase impensáveis. Questões como a integração cidade-campo e as relações cidade/região ainda não freqüentam, com a devida importância, o universo das preocupações ambientalistas, apesar de um certo consenso de que aí repousa um aspecto central da questão ambiental contemporânea. De fato, a dicotomia do período moderno se mantém: os cientistas sociais pensam o espaço construído, onde a lógica da reprodução repousa na dinâmica social, ou o espaço transformado, onde a lógica da reprodução repousa na dinâmica natural a partir da intervenção de processos sociais. Os ecólogos, por Coraggio (1991, p. 335) define por “economia popular en una primera aproximación, el conjunto de recursos, prácticas y relaciones económicas propias de los agentes económicos populares de una sociedad”, i.e., aqueles agentes que compõem “unidades de reproducción [que] dependen de su propio fondo de trabajo (Ias capacidades conjuntas de trabajo de sus miembros)” (CORAGGIO, 1991, p.336)
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sua vez, pensam apenas os espaços naturais, aqueles cuja reprodução e regeneração se centram nos processos biológicos6 . Os espaços urbano-metropolitanos permanecem como espaços mortos, ao nível das ciências ambientais e ecológicas. Caberia então perguntar a partir de que ponto o espaço pode ou deve ser considerado morto? Diante do avanço tecnológico na própria produção da natureza, quando e como podem esses espaços serem ressuscitados? Apenas os espaços “naturais” (re)construídos, como a Floresta da Tijuca, ou aqueles preservados, como O Parque das Mangabeiras em Belo Horizonte? Ou poderse-ia pensar em uma outra ecologia metropolitana e urbana, um novo ambiente urbano a ser pensado, inventado, produzido a partir da fragmentação, da involução, da segmentação e da extensão?
Por outras ecologias metropolitanas? A íntima relação entre a ecologia urbana e a questão ambiental não parece ter sido ainda de fato compreendida, mesmo que se aceite, como já dito, a importância crescente das concentrações metropolitanas e urbanas na desarticulação - imediata e distante - do equilíbrio natural global e de ecossistemas específicos. Há, entretanto, uma ideologia ecológica ligada ao capitalismo ecológico. como diz Carrión (1986, p. 193), que não apenas faz naturais as relações sociais, mas malthusianamente se volta contra a população e o migrante, enquanto contrapõe jardins nos altos prédios dos centros metropolitanos a um ruralismo mítico da volta à natureza, reificando a dicotomia ambiente natural -ambiente construído. Essa interpretação naturalista da ecologia urbana naturaliza a própria relação sociedade-natureza confundindo pobreza com deterioração ambiental, igualando a crise social e econômica à crise ambiental, muitas vezes culpando a vítima (SANTOS, 1990). Alguns pontos parecem interessantes para se buscar enfoques contemporâneos para outras ecologias urbanas - ou metropolitanas. Uma das questões principais que se coloca diz respeito às mediações entre o nível micro da análise ligada aos aspectos da reprodução e da vida quotidiana, e as grandes questões ditas urbanas: habitação, alimentação, saneamento básico, transportes, serviços urbanos, poluição industrial, padrões de consumo etc. A nível dos núcleos urbano-metropolitanos, os aspectos de saneamento aparecem como centrais em países, como o Brasil, onde o caráter incompleto da produção e organização do espaço social cria sérios problemas ambientais A referência aos espaços “natural, transformado e social” é tomada de IBARRA, V.; PUENTE, S.; SCHTEINGART (1984).
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ligados à reprodução coletiva. Serviços sanitários precários ou inexistentes (água, esgoto, lixo) ameaçam o quotidiano das populações urbanas pobres, enquanto a disposição final dos resíduos (sólidos e líquidos) atinge o conjunto das áreas urbanas, suburbanas e espaços regionais. Soluções tradicionais têm-se mostrado ineficientes e onerosas, demandando altos investimentos públicos de um Estado há muito falido em sua capacidade de promover e administrar o bem-estar coletivo. Ademais, a altíssima densidade tendencial das áreas urbanas centrais dificulta possíveis soluções alternativas. Nesse sentido, é o próprio modelo territorial urbano e metropolitano que necessita ser revisto, em busca de alternativas múltiplas que garantam maior permeabilidade e integração entre o espaço natural e espaço social. De outra parte, a tradicional fragilidade da sociedade civil brasileira só recentemente vem mostrando sinais de transformação no sentido de chamar a si um papel mais decisivo e atuante no enfrentamento dos seus problemas coletivos imediatos. Movimentos diversos nascidos no seio das sociedades urbanas, e expandidos através do tecido urbano por amplos territórios micro e macrorregionais têm, ainda que incipientemente, mostrado novas direções em busca da criação de maior base de autonomia, de diversidade socioespacial pela intensificação da relação com o meio ambiente, contribuindo para a construção de mediações entre as questões locais e a problemática ambiental e ecológica global. No tecido urbano extensivo, as questões se prendem à forma e processos de transformação do espaço natural e transformado em espaço construído. Assumindo uma abordagem crítica aos padrões hegemônicos que marcaram períodos passados, a análise passa a se central’ nas diversas e múltiplas formas possíveis de produção e extensão do tecido urbano e seus impactos sobre o meio ambiente e condições de reprodução e conservação do espaço natural. Caberia identificar níveis e formas distintas de expansão do tecido urbano: loteamentos típicos de periferia onde a cobertura vegetal é destruída por uma ocupação densa mas incompleta; esgarçamentos do tecido urbano por loteamentos de chácaras e pequenos sítios; implantação de áreas industriais e núcleos comerciais e de serviços em áreas urbanas periféricas; loteamentos para a classe alta, buscando manter níveis ótimos de conservação da natureza, entre outros. A análise urbana, assumindo o olhar ambiental, há que estar centrada na conservação das condições ecológicas adequadas às distintas comunidades, enfatizando suas relações com a diversidade social e biológica. Isto posto, a questão central passa a ser: “cabe falar em biodiversidade a nível do espaço construído ou deve-se puramente ignorá-lo, considerando-o 259
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um espaço morto?” Se a resposta for negativa, questiona-se então a partir de qual nível de ocupação o meio ambiente humano contemporâneo - o espaço urbanizado - deve ser considerado “morto”? Por outro lado, se a resposta for afirmativa, que tipo específico de biodiversidade deverá ser levado em conta? Há distinções entre diversidades sociais e biológicas em interação segundo dominâncias e adequações diversas? Nas interpenetrações dos espaços naturais-transformados e espaços sociais, há padrões vários possíveis de combinação de diversidade social e biológica? Volta-se então às questões levantadas no item anterior. O que parece certo é que não podemos mais trabalhar com as velhas dicotomias reificadas pelo modernismo hegemônico dos tempos recém-passados. Ao contrário, se a questão ambiental recoloca a questão central da relação cidade-campo, mediações, articulações, fusões, e integrações são partes constituintes do novo que pede para nascer a partir das fragmentações, extensões e segmentações que conseguimos hoje identificar. Novas formas de integração entre centros urbanos-metropolitanos e hinterland rural-região parecem desejáveis e mesmo inevitáveis, se nosso objetivo é buscar o aprimoramento das formas de ocupação e produção do espaço social. À urbanização extensiva é necessário corresponder uma naturalização extensiva, tanto para enfrentar problemas urbanos e ambientais ao nível micro, da vida quotidiana, quanto para enfrentar questões globais da crise ambiental e societal. Uma economia de crescente exclusão, com seus comandos de poder centrados nos grandes centros metropolitanos e extraindo excedentes de um espaço subordinado submetido à lógica da produção industrial, pode se voltar contra o feiticeiro, resultando em um cenário virtual anti-utópico como aquele pintado por Ridley Scott no filme Blade Runner (versão comercial inicial). Ali, o poder abandona a cidade, a metrópole, a área urbana, para se situar no refúgio da natureza, ou mesmo, para além da natureza terrestre, fora do planeta Terra. Apenas os despossuídos permanecem na Los Angeles hiper-degradada de 100 milhões de habitantes... Esse quadro virtual assustador, agravado entre nós por uma situação de exclusão histórica tão assustadora quanto essa própria virtualidade, acentua talvez o ponto positivo da crise, qual seja, nossa oportunidade diante do risco, fortalecendo as possibilidades - maiores talvez até que de vários outros países e povos - de recriar as relações cidade-campo, espaço construído-espaço natural. A urbanização extensiva que vimos observando, se por um lado constitui uma ameaça concreta que poderia levar à perda do pouco de cidadania que conseguimos construir - é a linha que Bookchin (1987) desenvolve, associando 260
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a crescente urbanização ao declínio da cidadania -, de outro abre potencialidades de novos arranjos territoriais - ambientais e sociais - que resgatem outras mediações e articulações possíveis que a expansão da modernidade cristalizada na hegemonia do industrialismo fordista tem destruído. Nesse sentido, a integração metrópole-tecido urbano estendido, a reinvenção das relações urbano -rurais e as novas combinações espaço construído - espaço natural aparecem como de importância central. Finalmente, parece claro que a metropolização brasileira não pode mais ser pensada em si mesma, mas deve ser pensada sim em suas contrapartidas de periferias próximas e distantes. A importância da questão ambiental metropolitana no centro da dinâmica urbano-industrial contemporânea e da questão ambiental em seu sentido global recolocam necessariamente a discussão para além das cidades, atingindo o conjunto dos espaços urbanizados - inclusive protourbanos - e trazendo assim a necessidade de se repensar também a questão rural. Os espaços monolíticos e hegemônicos construídos pelo industrialismo fordista têm que se abrir para a plural idade e diversidade que podem ser propiciadas pelo resgate das mediações e articulações dos muitos subespaços que resistiram à modernização frustrada e incompleta. Talvez por aí passem as possibilidades de reinvenções dos ambientes sociopolíticos contemporâneos, tendo por suposto a (re)criação das muitas formas espaciais que tem assumido a urbanização extensiva. É no bojo dessa expansão do tecido urbano-industrial que vêm sendo forjadas outras formas de cidadania, aquelas que surgem dos novos papéis que a sociedade civil vem chamando a si diante de um falido Estado do Bem-Estar. Essas cidadanias - que incluem desde garimpeiros, seringueiros e povos indígenas até associações profissionais e de moradores metropolitanos - parecem estar se construindo sobre os escombros da cidade industrial - a sede do poder do Estado Moderno. Seu fortalecimento e expansão no espaço nacional são fruto da extensão da pólis sobre o hinterland rural e sobre as regiões, aqui tomadas como espaços virtuais possíveis de modernidades diferenciadas e múltiplas sócio-bio-diversidades. Nesse contexto, uma das tarefas que se apresenta é explorar as possibilidades de criação e fortalecimento de uma ampla economia popular urbana, nos moldes propostos por Coraggio (1991), como uma necessária contrapartida de resistência a uma economia mundial centrada na exclusão de espaços e populações, e, consequentemente, destruidora do ambiente natural e social por ela excluído. Apenas com outras (novas e velhas) bases econômicas, voltadas para a garantia da reprodução coletiva, as cidadanias que parecem querer nascer, incorporando a consciência ambiental e ecoló261
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gica, poderão crescer e frutificar, contribuindo para novos arranjos socioespaciais e ambientais nos centros e periferias diversos.
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Tecnologia, Sociedade e Produção Social do Espaço: A dialética entre percepção e concepção e seu rompimento no ciberespaço1 Rainer Randolph
As reflexões apresentadas neste trabalho remontam ao início do presente século e pretendem elaborar, agora em fins da década de 2010, uma orientação conceitual que possa ajudar interpretar o advento, durante o século XXI, de uma (nova?) “espacialidade” das assim chamadas sociedades de informação e comunicação. Uma espacialidade que, na sua totalidade, não é reduzida a uma “mundialização” de tecnologias informacionais e comunicativas, mas tem como sustento fundamental as suas diferentes apropriações e expressões em redes sociais do tipo de Facebook, Instagram, Twitter, etc., na troca instantânea de mensagens via celular (WhatsApp etc.), para só mencionar as mais difundidas e outras. Parte-se do pressuposto que uma compreensão mais profunda dos problemas recentemente apontadas a respeito dessas redes2 depende de um investigação e reflexão sobre a suposta novidade dessa “espacialidade”. Num momento ainda inicial, na virada para o século XXI, tinham sido identificadas mudanças de articulações entre técnica, sociedade e espaço, particularmente em relação a telemática e redes computacionais, que ocorriam em partes do mundo com maior ou menor intensidade e apontavam, como resultado, para a formação de um novo espaço chamado de “cibernético”. O presente texto vai ser iniciado com essa discussão (i). Depois, como elementos da anunciada orientação conceitual de uma interpretação desse espaço serão apresentadas duas diferentes epistemologias do espaço encontradas nas análises de Soja (1996) (ii) que, no passo seguinte, problematizarão a introdução das categorias-chave “sensação”, “percepção” e “concepção” encontradas no pensamento dialético de Lefebvre (1969, 1979, 1991). Em particular, os conceitos de percepção e concepção permitirão uma apropriação crítica da base conceitual Uma primeira versão do trabalho foi apresentada e publicada nos Anais da V Conference of the European Sociological Association “Visions and Divisions” em Helsinki (Finlândia), de 28.8 a 1.9.2001 sob o título “New Technologies and Space – Spatiality as a key concern of understanding social transformation in the information age”; tradução e revisão em maio de 2019 pelo autor 2 Em uma série de matérias críticas de jornais de grande circulação em relação à produção das chamadas fake news, do poder oligopolístico das poucas empresas que dominam o setor de alta tecnologia etc. 1
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da Soja, identificada no item anterior (iii). Com a finalidade de se aproximar a uma concepção do espaço social – base para a compreensão da suposta nova espacialidade – estes conceitos serão articulados em um esquema que lança mão das epistemologias de Soja e será base para uma apreciação crítica do termo “ciberespaço” (iv). Finalmente, será procurada uma primeira articulação entre essas características técnicas e a concepção de um espaço social que trabalha com três “partes” diferentes - momentos de uma tríade -, mas dialeticamente entrelaçados (v). Acredita-se não ser necessário chamar atenção pelas dificuldades que a abordagem aqui proposta enfrenta ao tentar indicar um novo campo de pesquisa e estudo que precisa reunir (e unificar) muitos dispersos elementos, contemplados por várias disciplinas acadêmicas tradicionais. Neste sentido, como anunciado acima, pretende-se ganhar neste empreendimento de refletir sobre o “espaço” ao menos alguma orientação para compreender a importância em contemplar o “espaço” para conseguir identificar alguma (nova) “totalidade” de sociedades de “informação e comunicação” nas suas diferentes facetas.
I. A controvérsia, debatida em congressos e seminários, no início do novo século, a respeito do significado da difusão progressiva de redes de computadores não precisa ser abordada aqui. Será a história que responderá a essa pergunta se este avanço das tecnologias estaria relacionado a uma mera “evolução” das sociedades capitalistas atuais; ou se esse processo está sinalizando alguma mudança “revolucionária”. Em outro lugar (RANDOLPH 2000), foi observado que, em muitos casos, tem-se a impressão que os autores e palestrantes que parecem apostar em transformações mais profundas da realidade, adotam, mesmo quando implicitamente, uma posição evolutiva na medida em que não realizam nenhuma ruptura conceitual, o que seria necessário para poder caracterizar mudanças mais profundas: “apenas passam a atribuir às supostas ´novas´ realidades adjetivos como ´cibernético´, ´digital´, ´eletrônico´, ´tele´, etc.”, que em si não alteram, qualitativamente, o significado dos seus objetos (o substantivo) como o de “comércio”, “democracia”, “participação”, “sociedade civil”, “comunidade”, “cidade” etc. De início, ao entrar em uma discussão sobre a relação entre técnica e sociedade (ver SANTOS, 1996), deve-se constatar que não necessariamente, na história da humanidade, a adoção de novas ferramentas em diferentes sociedades resultou no surgimento direto de novas práticas sociais, mas em sua 264
Tecnologia, Sociedade e Produção Social do Espaço...
reinterpretação da percepção e concepção em termos de sua materialização. Isto é, parte-se, aqui, do pressuposto de que não haja uma relação imediata e determinista entre tecnologia e sociedade. Interessam, dentro do contexto de amplas mudanças tecnológicas no século XX (3ª revolução industrial), aquelas que facilitam a circulação dos homens e de suas ideias (vide DUARTE, 1999). Sem aprofundar esse vasto tema, as técnicas de circulação material e energética revolucionaram a divisão social e territorial do trabalho e, particularmente, a industrialização. Aí, sim, se pode observar uma estreita relação entre as transformações que ocorrem com o avanço (desigual) do capitalismo e o aprimoramento dessas tecnologias de transporte físico-material e energético. De fato, a circulação de material e energia (inclusive aquela de corpos humanos) acompanhou sempre a circulação de informação onde a última foi suportada pela primeira (por meio de mensageiros, pombos, cartas, jornais ou outro suporte material). Transmissões de informações chamadas dirigidas e imediatas são aquelas realizadas, pelo menos potencialmente, com um determinado objetivo ou mesmo para um maior público que precisa estar presente no ato. Essas formas são relevantes para a discussão do ciberespaço apenas como contexto histórico. Porque, apesar dessas formas de circulação não terem se tornado totalmente supérfluas, elas foram superadas pelos enormes avanços das tecnologias de circulação do conhecimento nas últimas duas ou três décadas do último século que viabilizou a circulação de informações (conhecimento) em grande escala. O que interessa aqui são aqueles instrumentos (técnicas e/ou meios de suporte físico-material-energético) que permitem a circulação intencional do conhecimento para além das fronteiras temporárias e territoriais do contexto imediato de sua produção. A trajetória desses instrumentos e formas já começou, no mundo oriental e ocidental, com as pinturas de Altamira, as tábuas de pedra de Hamurabi e o papiro dos egípcios e ganhou um enorme impulso com a invenção da imprensa por Gutenberg. Por enquanto nesta linha, hoje culminam nos meios técnico-científico-informacionais das redes de computadores (SANTOS 1996). Se, por um lado, a criação desses meios técnicos parece possibilitar apenas a circulação, mas não a produção da informação, por outro, estes meios não são neutros e não deixam, de alguma maneira, de imprimir aos processos seu caráter “material” e seus “objetivos” para os quais foram criados. Por esta razão, sua capacidade de possibilitar determinadas formas potenciais ou virtuais de circulação (transmissão) do conhecimento é diferentes das transmissões orais (imediatas) de tradições, para mencionar apenas um exemplo. 265
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Como mencionado, esta nova fase da circulação de informações está vinculada a duas características dos computadores como, primeiro, instrumento e técnica de processamento de dados a realizar uma gama de funções quase infinita de propósitos, baseados na sua capacidade de processar cada vez maiores quantidades de dados em menos tempo com menos custo. E, segundo, além dessa capacidade de processamento de dados, permitir em conjunto com outras invenções de técnicas de transmissão (p.ex. sem fio etc.), galgar novos patamares de circulação de informação e distribuição da informação e sua popularização. Turkle (1997) considera que a perspectiva “modernista” da presença do computador - um mero dispositivo de cálculo - está se tornando cada vez mais obsoleta à medida em que sua interface gráfica (desde a interface intuitiva da Apple até o Windows da Microsoft e de outros sistemas operacionais e programas) permite um uso qualitativamente diferente. O aumento de difusão e uso de computadores (portáteis) foi possível não apenas pela nova qualidade da ferramenta. Havia uma certa “coincidência” entre sua potencialidade e uma disposição em manifestações cotidianas de próprias práticas sociais num contexto em que o consumo é organizado ou intermediado pelos meios de comunicação. Onde ser “consumidor” significa também “consumir” representações (informações, signos, sinais) produzidas e difundidas (entretenimento) mesmo antes da sofisticação dos modos de intermediação pela mídia de hoje. Desta maneira, abordar a Internet como meio de difusão de signos e imagens não pode ficar limitado ao mero assunto de seu manejo instrumental. É preciso estar atento ao fato que ela é mais do que uma forma mais poderosa de tradicionais meios de armazenamento, processamento e circulação de informações como rádio, televisão, jornais e outras mídias. Portanto, a Internet teria talvez a capacidade de potencializar os conhecidos “efeitos” destes meios tradicionais3. De uma forma simplificada – no próximo item essa questão será aprofundada - pode se dizer que essa nova qualidade de representações gera uma nova “realidade” – relativa ao “representado” - que tem algum caráter “virtual” ou “fictício” e, por outro lado, torna o signo, a própria mensagem um objeto de consumo, ou seja, uma “mercadoria”. De fato, como diz Turkle (1997), com a superação da tradicional função do computador de realizar cálculos e a introdução das interfaces gráficas acima mencionadas, estes aparecem agora como meio de simulação e “incorporam a teoria pós-moderna; eles a levam para a prática” (TURKLE 1997, p. 26). Não 3
Vide Coy (1997), Hart; Kim (2000).
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são bons apenas para aumentar a capacidade intelectual de uma pessoa, mas também a sua presença física. E, como diz o autor, é essa perspectiva que está em franca expansão. Deste modo, a Internet não é apenas um instrumento de circulação da informação, mas suporte físico-material que permite “o aumento das relações do ser humano com a tecnologia e com outros seres humanos através da tecnologia” (TURKLE 1997, p. 26); como meio de estabelecer relações entre seres humanos. Nesse sentido, “essas novas relações enredadas tecnologicamente nos forçam a nos perguntar até que ponto transformamos em ciborgues, transgressores biológicos, de tecnologia e código. A distância tradicional entre nós e as máquinas resulta difícil de manter” (TURKLE 1997, p. 31). O autor menciona MUDs (masmorras de múltiplos usuários) na Internet como formas paradigmáticas de encontros virtuais entre diferentes personagens que podem ser criados ou não por pessoas. Sem muita diferenciação, deduz que as práticas “de fato” (“factuais”) e as no âmbito das redes (“ficcionais”) dos homens se tornam qualitativamente diferentes. Por sua qualidade simulada e por meio de um processo de desconexão (virtualização, afastamento e estranhamento), novas formas de subjetivação (socialização) e formação de identidades (personalidade) surgem nesse “novo” espaço ficcional que será complementado por uma reconexão entre “realizações virtuais”, “presenças imateriais” e uma pertença tecnologicamente mediada, que as mencionadas tecnologias tradicionais (não interativas) não permitiram por não terem uma “escala” ou grau suficiente. Em princípio, todas as tecnologias “tele” já caminham nessa mesma direção. O mundo virtual em três dimensões no computador já é uma promessa bastante próxima e a VR (Realidade Virtual com capacete e luva) sua culminação. Estes processos apontam para o surgimento de experiências problemáticas de integração social em relação aos cânones dos modos modernos estabelecidos. Porque o lado individual da erosão em formas imediatas de sua subjetividade e identidade pode levar à reformulação da inserção das pessoas nas comunidades de convivência cotidiana (família, vizinhança) ou mesmo em comunidades mais amplas de direito4. De maneira simples, como resultado dessa pequena investigação, se poderia dizer que a perspectiva do “ciberespaço” a partir de seu suporte técnico-material aponta para a substituição de uma “oposição” entre “real” e “representado” para um confronto entre um “factual” e um “ficcional” ou um Em relação a esse conceito, ver Habermas (1997) com quem se poderia levar a presente reflexão a uma dimensão política.
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“manifesto” e um “virtual”. De uma forma ainda incipiente, percebe-se que a parte “ficcional” (informacional) tem alguma “materialidade” para que sua “virtualidade” possa existir, cuja “manifestação” (atualização) é um processo “imaterial” como será mostrado no item seguinte. Parece paradoxal, mas não o é: ao mesmo tempo em que a virtualidade depende das características físico-materiais do seu meio (mídia), sua manifestação depende de outras restrições que podem ser chamadas de “espaços de representação” como será visto mais adiante. Estes podem abarcar um amplo espectro de fatores econômicos, sociais, políticos e, naturalmente, culturais.
II. Essa provisória caracterização de um “espaço cibernético”, “virtual” ou mesmo “ficcional” apenas permite sua problematização, mas não sua compreensão porque separa os dois lados do “factual” e “ficcional” sem articulá-las em uma “totalidade” espacial. É a hipótese do presente trabalho que essa “totalidade” só será encontrada através de uma investigação das diferenças e, mais importante, articulações dialéticas entre os dois lados (de um “espaço só”). Debates e controvérsias em torno do conceito de “espaço” são tão antigos quanto o pensamento da humanidade. Vão da antiguidade grega aos dias de hoje; tanto no pensamento filosófico de um Aristóteles, Kant ou Descartes para mencionar apenas alguns - como no conhecimento científico de diferentes disciplinas - em particular naqueles que, explicitamente, afirmam ser especializados em reflexão sobre espaço como a geografia onde inúmeras abordagens podem ser identificadas. Obviamente, com relação a esse conceito, é impossível dar conta neste pequeno ensaio do patrimônio do pensamento e do conhecimento humano acumulado durante séculos, mesmo se fosse apenas em partes No entanto, há autores que recuperam e sintetizam, pelo menos parcialmente, essa trajetória5. De acordo com uma breve sistematização de Soja (1996, p. 74), pode-se identificar duas grandes vertentes epistemológicas diferentes sobre o espaço de pensamentos e conhecimentos. Ele as chama de uma epistemologia de “primeiro espaço” e uma de “segundo espaço” em decorrência de sua leitura da obra “A produção do espaço” de Lefebvre (1991). Correndo o risco de simplificar cada uma dessas duas vertentes de conhecimento espacial, Soja (1996) apresenta como suas “mentalidades características:
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Ver, entre muitos outros, o esforço de Costa (1999) em relação às tendências teóricas recentes;
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(i) as epistemologias e modos de pensar do primeiro espaço (First Space) [...] dominaram a acumulação de conhecimento espacial durante séculos. Elas podem ser definidas pelo foco de sua atenção primária à “decifração analítica” do que Lefebvre chamou de prática espacial ou espaço percebido, enquanto espacialidade “física” material e materializada que é diretamente compreendida em configurações empiricamente mensuráveis: nas localizações absolutas e relativas de coisas e atividades, locais e situações, em padrões de distribuição, design e diferenciação da multiplicidade de fenômenos materializados através de espaços e lugares; nas geografias concretas e mapeáveis de nossos mundos da vida, desde o espaço emocional e comportamental “bolhas” que de forma invísivel cercam nossos corpos até a complexa organização espacial das práticas sociais (SOJA, 1996 p. 74, T.A.). As epistemologias do primeiro espaço tendem a privilegiar a objetividade e a materialidade e visar a ciência formal do espaço. A ocupação humana da superfície da Terra, as relações entre a sociedade e a natureza, a arquitetura e as geografias resultantes do “ambiente construído” humano fornecem as fontes quase ingenuamente dadas para a acumulação do (Primeiro) conhecimento espacial (SOJA, 1996, p. 75, T.A.)
(ii) por outro lado, as epistemologias do segundo espaço (Second Space) surgiram durante a longa história do pensamento espacial em [...] reação ao fechamento excessivo e à objetividade forçada da análise do Firstspace, colocando o artista versus o cientista ou o engenheiro, o idealista versus o materialista, o subjetivo versus o objetivo da interpretação (SOJA 1996: 75, T.A.) Apesar das sobreposições entre as duas epistemologias, ele aponta rapidamente: as epistemologias do Secondspace são imediatamente distinguíveis pela sua concentração explicativa no espaço “concebido em vez de percebido” e sua suposição implícita de que o conhecimento espacial é produzido principalmente através de representações de espaço discursivamente planejadas, através do funcionamento espacial do espaço. (SOJA, 1996, p. 79, T.A.)
Ao reconhecer a dualidade entre primeiro e segundo Espaço (SOJA, 1996, p. 81), o autor “avança” para um “terceiro espaço” – Thirdspace - que aparece como a “desconstrução congenial e reconstrução heurística” dessa dualidade. No atual contexto, não parece necessário entrar nessa discussão com maior detalhe. Da mesma forma, a distinção entre as duas epistemologias não será aqui analisada, crítica e especificamente. De um modo geral, parece evidente que ambas se baseiam na mesma polarização entre manifestações espaciais imediatas (matéria física, de acesso aparente imediato) e fenômenos mediadores, indiretos (imagens, signos, símbolos, representações etc.). Em princípio, a abordagem do primeiro espaço negligencia qualquer influência, em geral, de signos, símbolos ou representações como elementos constitutivos da 269
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compreensão do espaço (“concreto”) - os espaços, por assim dizer, revelam-se de maneira imediata e sensível. Por outro lado, o paradigma do segundo espaço já compreende o espaço (“abstrato”) a partir de imagens, signos, símbolos etc. que o representam. Tendencialmente, relega a materialidade e a experimentação sensível a um segundo plano. Em outras palavras, as duas abordagens são dedicadas a descrições fenomenológicas ou a reconstruções semiológicas do espaço. O próprio Soja entende essas duas epistemologias como (dialeticamente) opostas e busca (também dialeticamente) a “superação” de ambas através da introdução do terceiro espaço, utilizando o referencial conceitual e analítico da obra de Lefebvre. Concorda-se com Soja e outros autores6 que procuram em Lefebvre uma base para superar as aparentes aporias das abordagens opostas na geografia e em outras disciplinas científicas cujo objeto é o “espaço” (como, por exemplo, sociologia urbana ou regional ou economia, planejamento entre outros). No entanto, mesmo tendo a obra de Lefebvre sobre o “espaço” e sua “produção social” (LEFEBVRE, 1971) como sua principal contribuição para uma reflexão compreensão sobre o assunto, há outros momentos na trajetória do autor cuja apropriação é importante para a atual discussão. É necessário entender as origens dos seus conceitos desde suas primeiras publicações sobre a vida cotidiana (mundo da vida) e, especialmente, o confronto entre lógica formal e lógica dialética (vide LEFEBVRE, 1984, 1979). Encontra-se, em particular, neste ultimo livre uma importante reflexão sobre movimentos de pensamento e conhecimento do movimento, além da superação (dialética) da lógica formal por uma lógica concreta que permite identificar o equivoco implícito na oposição (sempre relativa, mas contendo um grau de verdade) entre primeiro e segundo espaço. Este erro (relativo) tem sua origem na compreensão limitada (no domínio da lógica formal) de categorias como “concreto” e “abstrato” e, mais especificamente no presente caso, de “imediato” e “mediado”. Uma investigação mais cuidadosa sobre este último par pode contribuir para a compreensão de uma distinção entre “sensação”, “percepção” e “concepção” que, em toda discussão sobre a produção do (social) espaço, se tornará fundamental7. Pretende-se mostrar8 no item seguinte como, em termos de “espaço”, o “cyber” apresenta uma mudança fundamental e quase “revolucionária” em relação a outras formas de virtualidades que sempre - desde a aurora dos tempos - acompanharam a existência humana. Ver também Costa, (1999). Ver em particular Lefebvre (1991). 8 Eis uma fundamental diferença com a versão do texto de 2001. 6 7
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III. Como resultado de suas críticas a posturas psicológicas, metafísicas e místicas sobre possibilidades de um conhecimento imediato por meio da intuição, Lefebvre afirma que o conhecimento (imediato) através da sensação (impressão sensível) só é possível “como ausência de conhecimento” (LEFEBVRE, 1979, p. 106). Isto significa que a sensação indica apenas a “coisa a saber” e não o que é; aponta para o “ser”, de um modo geral, de cada coisa; à sua “existência” no sentido mais vago: “dificilmente a sensação entra no conhecimento adequado, embora seja o ponto de partida necessário” - não absoluta, mas relativamente, porque o conhecimento começa com a sensação de ausência em contato com as coisas, começa com o imediato, do aqui e agora em seu estágio primitivo (isto é, da sensação). O acima introduzido “primeiro espaço” parece ser este “aqui e agora” (mesmo que passado ou esperado no futuro), o imediato, que “existe” (em contraste com as representações). Mas, seguindo Lefebvre, o “espaço” como “coisa imediata” só poderia ser sentido, mas não notado (percebido) - e, portanto, só poderia ser conhecido como ausência; de modo que sua percepção já “resulta de uma atividade prática e um trabalho de compreensão”, portanto, “infelizmente”, já precisará usar algum tipo de representação. A percepção já unifica racionalmente as sensações, adiciona-lhes memórias etc. É, portanto, um conhecimento mediado: Mas o imediato, a sensação, apropria-se diretamente dos conhecimentos mediados adquiridos. Não há duas operações diferentes, duas vezes diferentes na recepção de coisas sensíveis: a sensação e, mais tarde, a percepção. A sensação torna-se um momento interno, um elemento da percepção tomando como um todo, isso significa que o mediado, por sua vez, se torna imediato. (LEFEBVRE, 1979, p. 107)
Ao seguir essa compreensão, “primeiro” e “segundo espaço” não poderiam ser distinguidos por critérios de sensações (físico-materiais e, em seguida, sensoriais e corporais) e percepções (de sinais e imagens). Neste sentido, abordagens, que separam esses dois “lados da mesma moeda”, correm o risco de cometer erros (relativos). Mesmo ao avançar de “percepções” para “concepções” (um termo que Lefebvre ainda não discutiu em sua Lógica Formal, mas em LEFEBVRE, 1991), é difícil encontrar justificativas para a oposição entre um espaço “percebido” - como “primeiro” - e um espaço “concebido” - como “segundo”. Parece que não pode haver dúvida de que a concepção expressa por um teorema da geometria, por exemplo, chamado por Lefebvre de um “conhecimento superior”, só 271
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é descoberta e compreendida através de operações complicadas. Portanto, é também um conhecimento mediado. Porém, [...] conquistado, adquirido e assimilado, esse conhecimento [concepção] torna-se o meio de adquirir novos conhecimentos, mas, nesse momento, chega imediatamente ao nosso pensamento. O mediato mudou para “imediato”. A mediação não é destruída simplesmente quando é negada dessa maneira. O novo imediato não é mais o começo imediato, simples e indiferenciado; é enriquecido, desenvolvido e obtido apenas em um nível mais elevado e mais profundo (LEFEBVRE, 1979, p. 107s).
Ao se referir aos dois sentidos diferentes que Descartes atribuiu à palavra “intuição”, Lefebvre traça um paralelo com essa discussão sobre “percepção” e “concepção”. No primeiro sentido, a intuição cartesiana versa sobre a “concepção segura [sic!] que nasce com um espírito saudável, atento às simples luzes da razão”. Isto, parece a abordagem (concepção) que é a base do primeiro espaço. Já a intuição, no segundo sentido de Descartes, [...] corresponde mais ou menos ao que a dialética lógica designa como “superior imediato”, o imediato enriquecido e desenvolvido através da mediação. Mas, diferença essencial, a cadeia e o todo não eliminam sua verdade de uma evidência colocada no começo, como supõe Descartes; o superior imediato recebe sua verdade de sua objetividade superior; ...; e a verdade que implica e envolve é obtida a partir do fato de que ela penetrou nas coisas, é um grau mais elevado de conhecimento (LEFEBVRE, 1979, p. 107s, grifos nossos)
Se o segundo espaço representasse um grau mais alto de conhecimento, ele não poderia tomar o mediado, o construído (as imagens, sinais, símbolos, etc.) como uma coisa imediata cuja forma ou modo de percepção (“semiose”) se distingue da sensibilidade (percepção) imediata, como apresentado Soja. De fato, essa é exatamente a crítica de Soja e sua justificativa para a introdução do Third Space (terceiro espaço). Pois, nem o primeiro nem o segundo espaço alcançam um “grau mais alto” de compreensão das coisas e do espaço na forma de sua “verdade” ou, como diz Lefebvre, sua objetividade superior, pela penetração superior nas coisas. Primeiro e segundo espaços são distinguidos, então, apenas gradualmente; em outras palavras, eles se assemelham em certos aspectos e diferentes em outros: ambas as concepções não avançam além de uma mera percepção imediata das coisas (que englobam signos, símbolos etc.); elas simplesmente orientam observar diferentes fenômenos (aparências) das mesmas coisas que são diferentes em relação às mediações que são inscritas neles. Ou seja, ambas as epistemologias não chegam ao que Lefebvre chama de “objetividade superior”. Do ponto de vista aqui adotado, a compreensão do “ciberespaço” exige, 272
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exatamente, que seja investigado em que medida seu caráter “fictício” e “virtual” apoia ou prejudica uma penetração mais profunda nas coisas (no factual e manifesto); ou seja, ou possibilita alcançar uma “objetividade superior” que supere (dialeticamente) as meras aparências ou emprisiona o conhecimento no reino de uma “objetividade inferior” ao sucumbir nelas (seja factual/manifesto, seja fictício/virtual). É esse desafio que será enfrentado no próximo item.
IV. A apontada, necessária “con-fusão” do imediato com o mediado para alcançar um conhecimento superior poderia ainda ser aproveitada para argumentar de maneira semelhante a respeito da mesma “con-fusão” entre concreto (real) e abstrato (pensamento) e, por analogia, entre o “real” e “imaginado”, uma “oposição” que se refere (i)mediatamente ao consumo de signos e significados. Por outro lado, Lefebvre começa a questionar se não se deveria recusar o imaginário porque há um outro tipo de “confusão” ou mistura entre sonho e praticidade quando “alguém entra no imaginário, mas acha que se encontra no real, idêntico ao racional” (LEFEBVRE 1980). Hoje, o senso comum a respeito do “ciberespaço” se apoia em imagens e símbolos de um espaço “de ilusão, imaginário, e fictício”, como chamado acima. Essa visão deste “espaço” (cibernético) aparece explicitamente relacionada à suposta existência de duas esferas da vida social (diária) que, de alguma forma repete as duas epistemologias das acima discutidas vertentes na geografia: existe uma “vida factual” (de fato; primeiro espaço) (nas suas manifestações físicas-materiais e corporal-comuns – que são as práticas “reais”) e, paralelamente, uma “vida ficcional” (segundo espaço dos signos etc. na frente de telas, nas redes, nos jogos, ou seja, que são as práticas “imaginárias”) das pessoas. Tais práticas (”reais” e “imaginárias”) podem estar mais ou menos articuladas se existir, ou não, aquela articulação dialética que forma um Third Space, como Soja propõe, ou entre percepção e concepção como foi visto na discussão sobre os conceitos de Lefebvre. Na própria bibliografia, aquele “espaço ficcional”, constituído com base em tecnologias e redes informacionais e comunicativas tende a ser designado como “espaço cibernético”, muitas vezes sem considerar as relações entre estes dois “espaços” e sua necessária “fusão”, É preciso, portanto, retornar ao debate, dentro da perspectiva do espaço e na base de uma reflexão explícita, sobre a articulação (dialética) entre o imediato e o mediado e sentido/percebido e concebido, apresentado num item anterior. Como demonstrado acima, as duas epistemologias fundamentais do espaço, 273
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como sintetizado por Soja, não fornecem, satisfatoriamente, a difícil fusão entre “imediato” e “mediado” ou esferas “real” e “imaginária” de práticas sociais que parecem ser base para o conhecimento da objetividade superior da produção (social) do espaço social (pelo menos no presente). É, então, por meio da apropriação desses elementos importantes de reflexões lefebvrianas e sua reformulação por Soja que se optou por construir uma interpretação do ciberespaço que o situa no contexto da acima discutida fusão entre o imediato e o mediado. Inserido numa longa história de radicalização da experiência social da humanidade e, portanto, também daquela do espaço-tempo, é possível entender o surgimento do “ciberespaço” ou “hiperespaço” a partir da concepção lefebvriana como um “espaço social produzido” (mediato) quando o incremento “quantitativo” do seu suporte material-físico – base de qualquer prática espacial – chega em algum momento a um ponto que resulta em uma transformação “qualitativa” do imaginário ou de um “espaço de representações” – sua hipertrofia9. Daí sua denominação de “ciber” ou “hiper”. Pois, como já foi objeto de discussão anterior, a partir dos seus primórdios nos anos 1990, se observa a construção de uma cada vez maior e gigantesca infraestrutura mundial de informação e comunicação por meio de redes de computadores. Equipada com os respectivos instrumentos que permitem o uso de difusão e troca de informações e comunicação (software), essa rede técnica superou aquilo que se denominava inicialmente como TICs – um conjunto de meras tecnologias de informação e comunicação. Na base desse “hardware” e do desenvolvimento de “aplicativos” que sofisticaram e aumentaram as potencialidades de seu uso, também ainda na década de 1990, essa estrutura tecnológica se transformou em algo onde vira suporte para atividades simbólicas ou de “representação” que não estão vinculadas a qualquer materialidade específica – tanto das “representações do espaço” – mencionado acima -, mas também do “espaço das representações”. Analiticamente, essa trajetória (técnica) pode ser diferenciada em dois momentos que estão relacionados às formas de apropriação pelos humanos da natureza material e simbólica10: (i) como forma de trabalho enquanto apropriação da natureza material (técnica) em um “metabolismo sócio-técnico” que, hoje, é submetido a uma “objetivação” por meio de uma crescente incorporação da técnica nas dinâmicas de práticas sociais; (ii) como forma de um “trabalho” simbólico (comunicação) enquanto apropriação de uma natureza de símbolos, códigos, representações etc. em 9
Ver a lei dialética de saltos, Lefebvre (1979, p. 239). Vide Randolph (2005, 2017).
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um “metabolismo sócio-simbólica” que, hoje, é “subjetivado” (perdendo seu referencial prático-material) por meio da mesma incorporação de uma dinâmica simbólica determinada pela técnica nas práticas sociais. Como indicado, essa diferenciação analítica entre essas duas formas de “trabalho” separa dois aspectos dialeticamente inter-relacionados de uma única “interação” do humano com a natureza – material-física e simbólica – como já argumentou Habermas em sua crítica a respeito do conceito marxiano de “trabalho”11. Sem poder aprofundar essa discussão, é interessante observar que, na concepção deste autor, uma sociedade capitalista se caracteriza por um relativo “descolamento” entre estas duas dinâmicas – uma instrumentaltécnica-abstrata e uma comunicativa-concreta – e esferas sociais onde a lógica instrumental-abstrata procura dominar a lógica comunicativa. E parece, que as mudanças trazidas pela 3ª revolução tecnológica e informacional do século XX, objeto deste ensaio, vão exatamente nesta direção12. Esse breve excurso sobre trabalho e comunicação permite identificar, de um outro ângulo, uma “verdade relativa” na diferenciação entre “factual” e fictício” que expressa, como apontado por alguns autores, o resultado do enorme progresso e difusão de redes de computadores em todo o mundo (vide RANDOLPH, 1998). Também, procura aproximar a compreensão da relação entre percebido (“manifesto”) e representado ou concebido (“virtual”) (LEFEBVRE, 1991) num determinado contexto histórico-territorial de práticas sociais: sociedades capitalistas na contemporaneidade. A fim de consolidar uma perspectiva a respeito do próprio espaço social que facilite, posteriormente, à caracterização do “ciber”-espaço é necessário incorporar as duas discussões anteriores nessa elaboração: (i) aquela da parte III deste ensaio que postula a compreensão do espaço social na sua totalidade por meio do avanço de uma percepção (trabalho) de uma “imediata objetividade inicial” tanto do físico-social como da “mediada objetividade inicial” do metabolismo simbólico-social em relação à natureza física-simbólica para a concepção de uma “objetividade superior” que supera (dialeticamente) as separadas objetividades iniciais enquanto imediatas e mediatas; (ii) aquela referente à aproximação dessa compreensão (superior) da relação entre percebido (“manifesto”) e representado ou concebido (“virtual”) (LEFEBVRE, 1991) a um determinado contexto históVide a discussão em Habermas (2016). Seria interessante, aqui, incorporar a clássica discussão de Habermas (2009) em “ciência e tecnologia como ideologia”. 11
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rico-territorial da produção (social) do espaço social, ou seja a sociedades capitalistas contemporâneas. Poderia parecer lógico e oportuno se basear, nesta empreitada, explicitamente no conceito da “tríade” da produção social do espaço social do próprio Lefebvre. Entretanto, a fim de permitir uma discussão mais operacional será aproveitada novamente a concepção de Soja (1996) do Third Space e sua “triáletica” que, por sua vez, é resultado da apropriação deste autor do pensamento lefebvriano sem se basear nos momentos dialéticos da tríade. Para alcançar a “objetividade superior” do espaço social, Soja propõe articular, dialeticamente, as categorias da historicidade, espacialidade e sociabilidade como constituintes do espaço social e elementos para seu conhecimento. Nessa base, na FIGURA 1 abaixo, se apresenta uma primeira caracterização esquematizada tanto das relações entre os elementos do espaço social, conforme a concepção de Soja, como as diferenças entre sua percepção e concepção que vai permitir, mais tarde, a caracterização analítica do ciberespaço (de seu componente fictício). Em relação à percepção (indicada na segunda coluna da figura) sua diferenciação nas duas linhas da figura constam as características da objetividade inicial da percepção imediata (material) e da percepção mediada (simbólica) e sua diferenciação por meio dos três constituintes da “trialética” de Soja: historia - espaço – social. Em relação à percepção da objetividade material, essa se refere (i) ao tempo ou momento atual, (ii) a uma existência objetiva, “externa” e considerada material e (iii) à necessidade da prática imediata de percepção no processo social. Na segunda linha a percepção da objetividade simbólica se refere (i) a resultados de representação do real, virtualmente atuais, (ii) cuja ausência do real se faz imaterialmente “atual” e que (iii) significa, socialmente, uma mediação e afastamento da produção de significado. FIGURA 1 Superior
Concepção (“fusão”) dialética: Objetividade superior
Inicial
História / tempo
Material / Espacial
Social
Percebido Objetividade material - imediata
Atualidade
Existência (objetiva – material)
Prática Imediata (pertença)
Percebido Objetividade simbólica - mediada
Representação do real - virtual
Ausência (imaterial)
Mediado (afastamento)
Elaboração própria
O alcance de uma “objetividade superior”, indicada na primeira coluna da figura que reúne as duas linhas, necessita de uma “con-fusão” entre a distinção 276
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analítica do percebido com o concebido, como discutida por Lefebvre, o que significa apenas dois momentos de um único processo de cognição num processo de aperfeiçoamento do conhecimento. O “verdadeiro” conhecimento, ou mesmo o movimento do pensamento para encontrar o pensamento em movimento, seria este que é caminho e resultado de um processo dialético que contempla sensações, percepções e concepções. Na busca pela “objetividade superior” do ciberespaço, interessa aqui em que medida o avanço da tecnologia de informação e comunicação e das redes, acima apresentado, altera características de percepções, concepções e suas articulações na produção de conhecimento e da compreensão do espaço13. Em primeira aproximação – inicial –, a percepção em um “espaço de representação” com um grau de autonomia relativamente alto em relação ao seu “suporte” material-físico-temporal-prático (do ciberespaço) apenas tem, analiticamente, algum grau diferente em relação a afastamento e processos de mediação que caracterizam, em geral, as percepções simbólicas. Entretanto, devido a graus de mediação diferentes entre as iniciais objetividades materiais e simbólicas do espaço que são reflexo não apenas das tecnologias, mas também de práticas sociais por elas “objetivadas” e “subjetivadas”, como anteriormente discutido, a possibilidade de incorporar na produção (dialética) da objetividade superior pode ser fortalecida ou prejudicada: (i) por um lado, as técnicas e redes podem potencializar o conhecimento através das suas ferramentas digitais e fortalecer à produção de uma objetividade superior por meio de suas formas particulares (e até poderosas) de concepção do real, virtualmente atuais, cuja ausência (p.ex. histórica) é imaterialmente atual (mais do que outras representações) e que medeia o processo social de afastamento por mecanismos de co-presença virtual; (ii) por outro lado, ao retomar uma ideia de Lefebvre acima citada, essas tecnologias podem promover uma mistura entre sonho e praticidade que impede a realização de uma concepção dialética – vide FIGURA 1 – e com isto é prejudicial para o alcance de uma objetividade superior como acontece diariamente pelo uso de certas formas de tecnologias na distribuição de informações na vida cotidiana,. Aí, Negligenciamos, no presente trabalho, a posição (de classe, grupo, segmento) dos sujeitos na sociedade e sua influência nas possibilidades de conhecimento. Na prática, há não apenas uma distribuição desigual de acesso à articulação entre percepção e concepção entre classes, segmentos etc. sociais, mas existem também produções deliberadas de “concepções” de duas formas: uma que é expressão de posições de domínio nas sociedades e influencias assim, a compreensão da (objetividade superior da) realidade por meio da dialética entre percepção e concepção, e uma outra – típica do ciberespaço – que se propõe a “superar” essa dialética e reclama, por si, um status de percepção imediata e objetividade inicial difundida, especialmente, por redes de computadores (Internet).
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[...] o imaginário social, produzido pela linguagem, geralmente auxiliado por certas imagens e símbolos, comporta erros, ilusão, mistificação. Começando de um certo estrato, o próprio imaginário se separa da realidade e, de fato neste momento, é tomada como real, para o real (LEFEBVRE, 1980, p. 28).
Em certas circunstâncias, a própria materialidade do “meio técnico-científico-informacional” (SANTOS, 1996) pode favorecer a irrupção da “ fusão” entre processos de percepção e de concepção. Pode originar um paradoxal processo de divisão/substituição entre “factual” e “ficcional” onde o segundo se autonomiza do primeiro, mas, ao mesmo tempo, assume seu lugar – ou seja, onde o simbólico como imaginário é tido como própria “realidade” materialtemporal-social: “de fato neste momento, (o imaginário) é tomada como real, pelo real” como mencionado acima. Na terceira linha da FIGURA 2 essa situação está esquematicamente representada onde, como na segunda possibilidade acima, não apenas a produção de uma objetividade superior é abortada, a distinção entre factual (material-prática) e fictício (simbólica) é abolida com a negação total de uma separação entre imaginário e realidade e o imaginário tomado como real. É o caso quando o elemento virtual de um espaço se transforma na sua totalidade e onde o imaginário é real com uma objetividade ficcional de caráter inicial – de mera percepção – com uma correspondente existência imaterial objetiva e com uma presença social e pertença imediata. O ciberespaço, compreendido assim, é um espaço “total” que se manifesta em práticas influenciadas por uma objetividade inicial – que corresponde a uma percepção distorcida por representações com origens difusas, mas também intencionalmente dirigidas para determinados fins de influenciação. A terceira linha na Figura 2 quer indicar essa situação. FIGURA 2 Características Superior Objetividade superior Concepção (“fusão”) dialética: Inicial Ciberespaço
Elaboração própria
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Inicial
Historia / tempo
Material / Espacial
Social
Percebido Objetividade inicial
Atualidade
Existência (objetiva – material)
Prática Imediata (pertença)
Concebido Objetividade inicial
Representação do real - virtual
Ausência (imaterial)
Mediado (afastamento)
“Objetividade” inicial à sensação/ percepção simbólica toma o lugar da percepção material-social
Atualidade imaginária - virtual
Existência imaterial (objetiva)
Presença imediata (pertença distante)
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V. Como visto no item anterior, se poderia trabalhar com a proposição que uma práxis social “racional” fosse aquela na qual está contemplada, na prática, a dialética da articulação de atualidade e virtualidade14; ou seja, a presença e a distância no espaço (físico), e o pertencimento (pertença) e a distância social das pessoas envolvidas, conforme a FIGURA 1 acima apresentada, mesmo quando nem sempre são conscientes. Pois, na perspectiva aqui proposta15, um conhecimento “verdadeiro” – de uma objetividade superior – apenas é alcançado por um pensamento cujo movimento articule percepções com concepções nas duas “direções”. No entanto, a “realidade” do pensamento e da ação mostra que a práxis não consegue, na maioria das vezes, cumprir o “padrão ideal” desta “racionalidade”. Obviamente, há as mais diversas razões para possíveis “irracionalidades” que não serão aprofundadas aqui. Mas, interessam aqui aquelas que partem de uma separação ou mesmo oposição entre o “real” e o “virtual” e pressupõem lógicas diferentes de apropriação de uma natureza partida em uma “dimensão” material e outra simbólica – como foram as perspectivas do primeiro e segundo espaço acima. No entanto, não interessam aqueles casos onde a adoção dessa perspectiva de separação está meramente uma expressão de limitações subjetivas, pessoais e individuais de realizar aquela “fusão” dialética acima mencionada – por exemplo, provocadas por circunstâncias singulares da vida de cada pessoa no seu cotidiano. Há limitação de alcançar aquela “objetividade superior” que não são aleatórias, mas estruturais enquanto resultado sistemático de processos políticos e sociais que dificultam ou mesmo impedem que o pensamento do movimento contribua para que seu movimento contribua ao aperfeiçoamento de uma “objetividade superior”. Sem poder aprofundar a argumentação aqui, poderia ser levantar a posição que, em tendência, a própria separação entre sistema e mundo da vida da sociedade capitalista enfraquece, estruturalmente, a compreensão da objetividade superior de sua realidade. Assim, a possibilidade está presente estruturalmente na sociedade a práxis social ser orientada prioritariamente pelo imaginário, em detrimento de suas articulações materiais-práticas - pela adesão a certas mistificações e ilusões. Mas, pela discussão anterior do ciberespaço (vide a terceira linha na FIGURA 2) mostra o perigo nem só da total separação ou descolamento entre objetividades material e simbólica, mas um “espaço virtual” autonomizado 14 15
Vide Lefebvre (1972) que entende a “virtualidade” (potencialidade) como parte da realidade (presença) Em consonância com outros autores
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cuja objetividade simbólica substitui a material. Este mecanismo de “reduzir” (e simplificar) uma realidade complexa à uma mera “sensação” (baseada em ilusões e mistificações) opera, conforme a perspectiva aqui defendida, também dentro do ciberespaço. Mas, o “novo” do ciberespaço não é apenas uma potencialização destas “simplificações” pelo potencial das tecnologias de informação e comunicação, senão uma mudança de “qualidade” por causa do suposto caráter “objetivo”, “imediato” e “presente” da produção dessa realidade – decorrência da própria materialidade e suas características da produção dos signos, símbolos, representações etc. Com isto, ao resumir as reflexões sobre o “caráter” do ciberespaço e sua novidade, é possível afirmar preliminarmente: (a) as tecnologias telemáticas, as redes mundiais de computadores e as interfaces cada vez mais sofisticadas entre computador e pessoa (ou pessoa - computador - pessoa) (talvez ainda mais potenciais que reais) parecem permitir a articulação entre instrumentos e práticas e o alcance de uma nova “dimensão” do conhecimento humano, como já aconteceu em outros momentos da história da humanidade; ou seja contribuir para sua emancipação ou “empoderamento”; (b) no entanto, é necessário estar ciente e vigilante para que a nova potencialidade das ferramentas de conhecimento (i) não seja usada para facilitar sua apropriação por alguns privilegiados e restringir e limitar seu uso para outros16; (ii) não sirva como forma de “embrutecer” seus usuários ao promover sua “ignorância” por meio da produção de uma aparência (enganosa – fake) de uma “realidade” de objetividade inicial, de uma existência imediata (percebida) e presença para todos como o Ciberespaço pode facilitar – o que é, como se poderia falar, seu “lado dark”. (c) Como mostra a FIGURA 2 acima, parece ser possível, ao observar a contribuição desses instrumentos para a construção (produção) do espaço social, identificar a “qualidade” da passagem da “virtualidade” para a “realidade” (“fusão”); em outras palavras, pode mostrar ou o alcance de uma objetividade superior ou uma regressão a uma objetividade inicial ou “primitiva”. Isto quer dizer que com a perspectiva lefebvriana do espaço social poderia ser possível articular a questão da virtualidade dos meios de circulação (transmissão, O que se refere aqui a aspetos não apenas sociais e culturais, como já mencionado antes, mas também e especialmente, econômicos.
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transporte) às práticas sociais/espaciais, representações de espaço e espaços de representação. O que precisa ser observado são, especialmente, as representações do espaço e os espaços de representação. (d) Nesse binômio entre “representação” e “espaço” se pode “localizar”, analiticamente, a questão do uso prático dos instrumentos, meios e técnicas (objetivados) de circulação (transmissão) do conhecimento. Esse uso aparece, à primeira vista, como simbólico - e não de prática espacial - em um espaço composto por signos, sinais, valores, imagens etc.. Dentro da compreensão de sua objetividade superior (fusão dialética com seu suporte material-prático), ele expressa, assim, alguma “representação deste (do) espaço” que, sendo resultado de práticas simbólicas, podem se tornar condição da produção de representações do espaço para outrem – eis a dialética do resultado/condição na produção social. Em outras palavras, se suportado por uma força hegemónica, vão promover uma determinada compreensão do espaço social como “verdadeira” e “real”. Em relação às características do Ciberespaço, seria um “real” de existência imediato, de objetividade inicial e de presença única. Vê-se que seu “lado escuro” tem suas origens em processos de exercício de poder para a qual as ferramentas virtuais parecem perfeitamente adequadas. O que não surpreende porque se sabe que apesar de técnica não ser nem neutra, nem determinante; mas, pela sua concepção, pode facilitar certos usos em detrimentos de outros. (e) Mas, além da influência destas “representações do espaço”, há ainda um outro “espaço” que é outro momento (na produção) do espaço social e não necessariamente se subordina ao antes mencionado. Seria um “espaço de representação” que está vinculado e surge, dentro da visão dialética de Lefebvre, da vivência dos sujeitos sociais. Neste caso, de uma forma diferente a anterior, a “objetivação” das práticas pelos instrumentos é incorporada no e ao cotidiano e dia-a-dia dos seus usuários e contribui à constituição deste espaço (de representação). Apesar das limitações impostas pela “naturalidade” do positivismo cotidiano e sua decorrente objetividade inicial da vivência imediata, os instrumentos podem permitir constituir práticas de superação daquela objetividade inicial e construir formas (poderosas) superiores (compreensões mais aprofundadas, abrangentes etc.). Aquilo que Lefebvre chama de “underground”, presente nos espaços de representação, pode ter sua origem nesta forma de 281
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apropriação dos instrumentos “virtuais”; a “fusão” entre a percepção da vivência e a concepção da prática (ou vice verso) criam um espaço próprio que é o dessa representação. (f) A utilização de interfaces gráficas no computador como ferramentas em práticas cotidianas, facilita, certamente, sua “integração” como elementos no espaço de representações. Essa interface pode assumir um caráter de fronteira entre “prática espacial” e “vivido”: ou seja, apesar de estar relacionada ao espaço vivido, as manipulações devem ser entendidas como resultados de representações do espaço na medida em que transcendem meras representações imateriais (simbólicas) o que foi discutido anteriormente. Apesar de ser interessante nesse contexto, não cabe aqui aprofundar, por exemplo, uma leitura crítica das tentativas e experiências de criar novas formas de sociabilidade mediadas por redes de computadores na forma de, por exemplo, salas de bate-papo, comunidades virtuais, eletrônicas ou de rede sociais17. Sintetizando, pode-se dizer que a perspectiva do espaço social – tal como foi elaborada por Lefebvre – leva a tratar o ciberespaço como um espaço particular de representações inserido na conjunção atual de outros momentos da totalidade do espaço social com o esquematicamente apresentado nas figuras acima. Em princípio, não apresenta “novidade” em relação à sua “virtualidade”, mas mostra uma nova qualidade da compreensão do “ficcional” como “real” que pode afetar profundamente relações sócias – e assim – a compreensão e produção do espaço social. A discussão acerca dos possíveis “impactos” na representação do espaço, por um lado, e nos espaços de representação mostra toda a ambiguidade da produção do espaço social através da incorporação das diferentes formas da específica objetivação tecnológica por meio da transmissão e transformação de informações. Essa primeira conceituação do ciberespaço também mostra as limitações que se percebe no uso do termo pelo senso comum que restringe grande parte das reflexões e investigações. À medida em que muitas abordagens não ultrapassam um nível analítico, e ao negligenciar os outros momentos acima mencionados, estas adotam um “encurtamento” da realidade e, com isso, produzem apenas proposições ideológicas (porque parciais) mesmo quando seus trabalhos pretendem apreender a totalidade do espaço social. 17 Formas que assumiram um grau de sofisticação inédito desde os primórdios das meras tecnologias de informações e comunicação.
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Entre as lógicas e as escalas da urbanização1 Ester Limonad
No intuito de delimitar uma concepção de urbanização para a análise da estruturação territorial do interior fluminense em minha tese de doutorado, parto da compreensão da urbanização como um processo espaço temporal de estruturação de um território e simultaneamente como resultante deste mesmo processo. Para fundamentar a argumentação do presente texto, antes de tratar da escala territorial da urbanização e das lógicas que a regem, retomo aqui, de forma abreviada, a relação entre urbanização e estruturação do território, que encerra o segundo capítulo da tese após a revisão conceitual das principais vertentes teóricas, até meados da década de 1990, sobre o espaço, o urbano e a urbanização (LIMONAD, 1996, 1999).
Urbanização e estruturação do território2 A partir da trajetória examinada podemos reafirmar que as relações sociais de produção assumem um caráter espacial na medida em que não se processam no vazio, mas em espaços determinados; as relações espaciais de produção (horizontais) são vazias de significado sem relações sociais de produção (verticais) que as qualifiquem. Há que se perceber o caráter destas relações onde uma pressupõe a outra, ambas dialeticamente inseparáveis, interdependentes e contraditórias. Para superar a tendência de uma postura historicista, em bloquear o papel do espaço social no território e reduzi-lo ao papel do lugar do processo histórico, há que se considerar uma série de premissas levantadas por Soja (1993), nas quais operamos algumas modificações. Primeiro, Soja (1993) atribui uma dualidade ao espaço produzido, da qual decorreriam as contradições. Em nosso entender, diferentemente dessa posição e apesar da dualidade evocar uma compreensão dialética, o espaço produzido Este texto reúne preâmbulo explicativo, uma versão abreviada das conclusões do 2º capítulo, a versão revisada da discussão conceitual do 3º capítulo de minha tese de doutorado (LIMONAD, 1996), sem a parte relativa aos “procedimentos gerais e delimitações”. Uma versão condensada do 2º e 3º capítulos foi publicada no artigo: Reflexões sobre o Espaço, o Urbano e a Urbanização. Geographia. v.1, n.1, p. 71-91, 1999. <DOI https://doi.org/10.22409/GEOgraphia1999.v1i1.a13364>) em que se suprimiu parte da reflexão sobre as lógicas e as escalas da urbanização. 2 Essa parte corresponde a versão abreviada das conclusões do 2º capítulo da tese. 1
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Entre as lógicas e as escalas da urbanização
possui um caráter dialético da simultaneidade da união e contradição, de necessidade e antagonismo, de suporte e obstáculo. Segundo, para este autor “a estruturação espaço-temporal da vida cotidiana define o modo como a ação e a relação sociais ... são materialmente constituídas” (SOJA, 1993, p. 158). Usar o termo “definir” poderia remeter à ideia de uma determinação. Pareceria, por isto, mais adequado falar de “interferir” cuja conotação seria mais de contingência e não de determinação. Com essas ressalvas, as premissas de Soja (1993) podem ser assim formuladas: 1.
O espaço social é produto de uma sociedade; como tal é ao mesmo tempo meio e resultado das ações e relações sociais, o que lhe confere um caráter dialético. A estruturação espaço-temporal da vida cotidiana interfere na concretização e constituição das ações e relações sociais.
2.
A constituição desse espaço social (socialmente produzido) é plena de contradições e lutas, muitas rotinizadas no cotidiano, decorrentes do caráter dialético de sua produção, através da atividade social e econômica, por ser simultaneamente suporte, meio, produto e expressão da reprodução das relações sociais de produção em escala ampliada, o que confere a estas relações um caráter espacial necessário.
3.
O espaço social é, simultaneamente, fruto e condição das tensões entre capital e trabalho e de estratégias de luta pela reprodução do capital e do trabalho, bem como de práticas sociais organizadas que visam quer a manutenção do espaço social existente, quer uma transformação radical deste espaço.
4.
O espaço social condensa em si desde a cotidianidade do viver até a história; nele se mesclam marcas de tempos passados e persistem e coexistem, conforme o caso, formas capitalistas e pré-capitalistas de produção. Neste sentido não há como realizar uma interpretação materialista da história sem uma concomitante interpretação do espaço social e vice-versa.
Ao considerar essas afirmações, a produção do espaço social e os processos históricos e sociais, não se desenrolam alheios entre si, mas num jogo de interação, oposição, contradição. Indo ao encontro da concepção ampliada de Giddens (1989, p. 297), a urbanização poderia ser entendida como um processo social de maior significância na estruturação do território, onde o peso dos lugares varia historicamente em função dos condicionantes e processos sociais, econômicos, políticos 285
Ester Limonad
e, por vezes, culturais que tomam corpo. E, a rede urbana seria a expressão cristalizada de diferentes estruturações do espaço em diferentes tempos históricos. Soja amplia esta proposição ao afirmar que A urbanização pode ser vista como uma de várias grandes acelerações do distanciamento espaço-tempo [...] A especificidade do urbano é definida, pois, não como uma realidade separada, com suas próprias regras sociais e espaciais de formação e transformação, ou meramente como um reflexo e uma imposição da ordem social. O urbano é uma parte integrante e uma particularização da generalização contextual mais fundamental sobre a espacialidade da vida social [...] Em sua [...] especificidade social, o urbano é permeado por relações de poder, relações de dominação e subordinação, que canalizam a diferenciação regional e o regionalismo, a territorialidade e o desenvolvimento desigual, e as rotinas e revoluções, em muitas escalas diferentes (SOJA, 1993, p. 186).
Essas concepções vão ao encontro das proposições de Lefebvre (1973, 1991), que desenvolvemos a seguir.
A escala territorial da urbanização3 A maioria das concepções de urbano e urbanização converge para duas visões polares: o urbano enquanto lugar da reprodução da força de trabalho e das relações sociais no cotidiano que se expressam através do consumo; e o urbano enquanto lugar da reprodução das relações sociais de produção na perspectiva da reprodução dos bens de produção. Lefebvre, por sua vez, chama a atenção para o fato de que o urbano é o espaço onde se processam estas duas esferas de reprodução, que historicamente se concatenam em diferentes graus e intensidades conforme o estágio de desenvolvimento das forças produtivas, concernente principalmente ao desenvolvimento do meio-técnico-científico (SANTOS, 1991 e 1994). O território, todavia, não é apenas o continente destas relações; para Lefebvre o caráter espacial destas relações cria historicamente um espaço social que condiciona o desenvolvimento futuro destas relações. Durante o capitalismo competitivo o espaço urbano condensou e concentrou estas duas esferas de reprodução dadas as limitações do meio-técnico científico em termos de transportes e comunicações. Hoje, entretanto, pode-se observar a tendência à separação crescente entre as localizações espaciais destas duas esferas de reprodução4. Essa parte demarca o início do texto do 3º capítulo. Vide Benko (1993), Castells; Hall (1994), Tavares (1993) a respeito das novas localizações industriais relativas aos polos de alta tecnologia.
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Entre as lógicas e as escalas da urbanização
As transformações em curso e seus desdobramentos para a análise urbana O problema que se impõe no presente é o teor das transformações na matriz espacial - temporal da organização social, empresarial e territorial decorrentes das revoluções informacional, genética e energética, que tendem a tornar nosso instrumental analítico obsoleto e contribuem para gerar um novo paradigma que nos leva a considerar o urbano em escala territorial. A resultante fragmentação espacial de empresas e de grupos sociais articulados mediante a formação de novas redes dá margem ao surgimento de novas solidariedades e territorialidades (Randolph, 1994); as quais incidem diretamente sobre a distribuição das atividades produtivas e da população no território. No âmbito da distribuição das atividades produtivas, conduzem a uma reestruturação horizontal e vertical da produção que resulta em uma reestruturação territorial, com uma abrangência da escala global a local. No âmbito da distribuição da população, contribuem para alterar substancialmente as condições de vida de diferentes assentamentos em diversos pontos do território, em função seja de sua localização estratégica frente às novas redes de comunicação e transportes, seja pela integração e/ou não integração aos fluxos empresariais e da produção. Pode-se dizer, que as transformações em curso representam novas estratégias para a acumulação e criam novas condições para a mobilidade do capital e novos obstáculos à mobilidade espacial da força de trabalho. Análises recentes5 caracterizam a nova distribuição das atividades produtivas enquanto um dos fatores da reestruturação territorial. Seu recorte analítico leva-as a privilegiar os aspectos e efeitos da reestruturação vertical (escala hierárquica de produção) e horizontal (amplitude espacial) da produção nas empresas, nas relações de trabalho e seus desdobramentos espaciais (territoriais) através da terceirização, da formação de novas redes empresariais e das novas localizações. Dada sua ênfase na esfera da produção e circulação, a maior parte destes trabalhos desconsidera o que acontece em termos da distribuição da população (trabalhadores urbanos, agrícolas, empresários, etc.).
Condicionantes da Estruturação Territorial As transformações socioespaciais na distribuição das atividades produ5
Storper (1994), Walker (1985), Scott (1988), Lipietz (1988) entre outros.
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tivas e da população, materializadas espacialmente enquanto formas de desenvolvimento urbano, em diferentes níveis e escalas, seriam resultantes tanto da lógica da ação do Estado, de distintos capitais (empresas), entre eles o industrial, agroindustrial e em particular o imobiliário; quanto das estratégias de localização e distribuição da força de trabalho.
Três Lógicas Há que se considerar que na estruturação territorial - distribuição das atividades produtivas e da população (diferentes classes sociais) - interferem, além da ação das empresas e das diferentes classes sociais, de distintas maneiras três lógicas ligadas a ação: •
do Estado, não enquanto sujeito e ou entidade, mas como um conjunto de frações de classe em luta pela hegemonia (Poulantzas, 1980). Embora sejam distintos, os determinantes das ações estatais nos diferentes níveis e esferas6, e nem todos estejam voltados diretamente para a organização do espaço, não deixam de ter um desdobramento espacial, pois não pode se admitir que se deem em lugar nenhum. Ou seja a ação do Estado em diversas escalas e alcances tem desdobramentos diretos e/ou indiretos previstos ou imprevistos na organização do espaço e nos padrões de assentamento das diversas frações do trabalho e também do capital.
•
do setor imobiliário - composto por distintas frações de classe em concorrência e conflito entre si7, em defesa de seus interesses (Topalov, 1980), inclusive o Estado, enquanto promotor e financiador imobiliário, e a fração do capital financeiro voltada para investimentos fundiários - integra a vanguarda da produção do espaço e da estruturação territorial. Somado ao fato da propriedade privada e da especulação imobiliária constituírem-se em entraves seja para outras frações de capital e para o assentamento de trabalhadores, quando não mesmo para o próprio capital imobiliário. Como assinala Gottdiener [...] a forma que o espaço de assentamento assume não é necessariamente benéfica a qualquer um, com exceção dos que lucram no setor imobiliário.
Nacional - orientação de investimentos e prioridades, política de subsídios e financiamentos, legislação tributária, taxas e tributos interestaduais, etc.; Regional (a nível da unidade federada) - definição das diretrizes e áreas de desenvolvimento, política viária que acaba por ficar a cargo da federação, estímulos a incorporações e empreendimentos imobiliários, definição de implantação de infraestruturas de porte que viabilizem a ocupação do espaço, Local - redes locais entre empreendedores fundiários e políticos, zoneamentos urbanos etc. 7 Vide Kleiman (1985) a respeito dos pequenos e médios incorporadores imobiliários na cidade do Rio de Janeiro. 6
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Entre as lógicas e as escalas da urbanização
Tanto o capital quanto o trabalho são obrigados a viver num meio ambiente difícil de controlar, mas cujos efeitos negativos sempre podem ser mais bem transcendidos pelo rico e pelo poderoso” (Gottdiener, 1993, p. 268).
•
da capitalização da agricultura com a formação de complexos agroindustriais, favorecida pela persistência de relações tradicionais de produção, de uma estrutura fundiária concentrada no campo, associada por vezes a programas governamentais de modernização agrícola; abre lugar, em áreas com potencial de desenvolvimento econômico, tanto para complexos agroindustriais quanto para a penetração do capital imobiliário, com a dissolução de relações tradicionais de produção.
Sem querer menosprezar sua relevância, não pretendemos enveredar no âmbito da análise de seu papel na estruturação territorial, em que pese a farta produção teórica existente8. Serão consideradas, todavia, de forma subjacente na análise. A ação destas três lógicas isoladas ou combinadas, conforme a conjuntura e as especificidades de cada lugar, tende a gerar um novo padrão de liberação da força de trabalho, que foge ao esquema clássico de proletarização total, característico das etapas anteriores do capitalismo. Os pequenos proprietários e trabalhadores “liberados” das relações tradicionais de produção ao invés de se dirigir, conforme o processo clássico, para as cidades e se assalariar em atividades urbanas; tendem a se ocupar em atividades rurais e urbanas e tornar-se uma força de trabalho sazonal dedicada tanto a atividades urbanas quanto primárias. Contribuem, assim, para alterar o padrão de assentamento nas pequenas, médias e grandes aglomerações urbanas seja ao manter suas pequenas propriedades seja ao tender a se localizar nas periferias urbanas ou em pequenos aglomerados (Santos, 1993, p. 52). A lógica do setor imobiliário acirra estes movimentos. A perspectiva de usos potenciais propicia a valorização do solo em áreas urbanas e rurais o que leva a uma expulsão dos trabalhadores urbanos das cidades e dos trabalhadores rurais das áreas agrícolas. Resulta daí tanto um aumento da população rural em áreas urbanas situadas em áreas onde a produção agrícola se capitaliza (vide vários in PIQUET, 1986), quanto uma tendência a trabalhadores urbanos se radicarem em áreas rurais9. Com relação ao Estado vide Becker; Egler (1993); Cintra; Haddad (1978); Evers (1979); Ianni (1977); Lamparelli (1982); Lojikine (1981); Offe (1984); Oliveira (1981, 1987); Piquet (1986); Poulantzas (1976, 1980), etc. Com relação ao setor imobiliário vide trabalhos de Campos Fo (1989); Campos (1989); Egler (1982, 1983); Lamarche (1977); Smolka (1987, 1989, 1992); Topalov (1980), etc. Com relação a capitalização da agricultura vide Barlett (1991); Fernandes (1988); Müller (1982) e Sorj (1988). 9 Processos descritos por Becker (1982, p. 109-122) e Machado (1982, p. 182-183) para áreas de fronteira e por Santos (1993) com relação às agrovilas. 8
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Tais movimentos estariam ligados à estratégias de sobrevivência e a mobilidade espacial da força de trabalho. Isto vai ao encontro da hipótese alternativa ao modelo clássico marxista de proletarização total e liberação repentina dos meios de produção e conformação de um exército industrial de reserva tipicamente urbano proposto por Becker (1982) a partir da análise dos processos espaciais na fronteira. Na atual etapa do capitalismo e de conformação de complexos agroindustriais (BARLETT, 1991) a mobilidade espacial e setorial do trabalho passaria a ser uma condição necessária para a constituição de um mercado de trabalho regional na fronteira. Oliveira (1977) já assinalara a tendência a fluidez do exército industrial de reserva entre as atividades rurais e urbanas. O estudo da urbanização no atual momento, portanto, deve contemplar o papel da mobilidade do capital e do trabalho, na medida em que sua intensificação contribui para alterar a distribuição das atividades produtivas e das diversas classes sociais no território.
Mobilidades do capital e do trabalho na estruturação territorial Os modelos tradicionais relativos à localização das atividades produtivas apresentam uma certa rigidez e pouca agilidade em relação à mobilidade do trabalho, como vimos no segundo capitulo. Estes modelos tendem a se aproximar da abordagem geográfica tradicional e tratar a mobilidade da força de trabalho como transferência. Ignoram, assim, o que lhe antecede e segue: a expropriação, expulsão, transformação dos que ficam e da natureza de seu produto em excedente para o mercado ampliado pelos que foram e perderam a condição de produtores de sua subsistência. A existência de infraestruturas sociais e físicas, imóveis e estáveis é necessária para garantir a acumulação do capital e a reprodução da força de trabalho, e para dar condições para ambos se moverem rápido e a baixo custo. Porém, conforme deixa de haver um comprometimento da produção e/ou dos trabalhadores com as infraestruturas existentes sua viabilidade é posta em risco. Em consequência, segundo Harvey (1985), as mudanças geográficas na circulação do capital e na disponibilidade da força de trabalho geradas pela acumulação, pelas mudanças tecnológicas e pela luta de classes tendem a minar a coerência regional da circulação do capital e da força de trabalho. Resulta daí uma instabilidade crônica das configurações espaciais e regionais. Configura-se, assim uma tensão entre a livre mobilidade espacial da força 290
Entre as lógicas e as escalas da urbanização
de trabalho e a organização da produção num território confinado, tanto para o capital quanto para o trabalho. a) a mobilidade do capital
A mobilidade do capital não pode ser analisada in totum. Sua análise deve envolver sua decomposição na mobilidade de diferentes capitais. A produção e a efetivação da mobilidade espacial de cada capital, conforme Harvey (1985, p. 145-153) em quem nos apoiaremos nesta parte, exige infraestruturas fixas e uma complexa matriz de serviços sociais e físicos disponível in situ que se configura espacialmente em um sistema de transportes estável, infraestruturas de abastecimento e de serviços e na existência de sistemas eficientes de telecomunicações, crédito, finanças e instituições legais. Os custos de investimento e a dependência de infraestruturas físicas interferem com a mobilidade do capital. Nos últimos vinte anos, todavia, os diferentes capitais conseguiram maximizar suas mobilidades, por um lado, através da redução dos custos e tempos do fluxo de investimento e da circulação de mercadorias propriamente dita, conforme outros agentes (entre eles o Estado) assumiram maiores parcelas dos custos de infraestrutura física. Por outro lado, se a dependência do capital de equipamentos fixos de longa duração (infraestruturas) diminuía sua capacidade de se mover sem desvalorização, isto tende a ser superado através dos atuais processos de reengenharia industrial que resultam na terceirização da produção; que tende a diminuir os custos de investimento e a necessidade de estruturas fixas e maximiza a mobilidade dos capitais em questão (BENKO, 1993). Os diversos capitais, segundo Harvey, possuem diferentes capacidades de circulação e mobilidade espacial. Estes diferenciais introduzem tensões no processo de circulação no espaço, com um deslocamento diferenciado de firmas e indústrias que afeta a mobilidade do trabalho. b) a mobilidade da força de trabalho
A mobilidade do trabalho constitui-se, segundo Gaudemar (1979), em condição necessária, senão suficiente da gênese do capital e indício de seu crescimento; expressa na (re)produção da força de trabalho, em sua utilização no processo produtivo, em sua circulação espacial e ocupacional, e em sua liberação que compreenderia tanto a transformação do campesinato em trabalhadores assalariados rurais e/ou urbanos quanto a constituição de camadas intermediárias. Configura-se, portanto, como fruto das estratégias de diversos agentes
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sociais, entre eles o Estado10 e as companhias privadas para moldar mercados de trabalho regionais. A livre mobilidade espacial da força de trabalho e sua fácil adequação constitui-se em condição necessária à circulação do capital no espaço. Paradoxalmente por preferirem uma parcela da força de trabalho estável num território delimitado os capitalistas individuais tendem a apoiar ações estatais que restrinjam a livre mobilidade da força de trabalho (HARVEY, 1985, p. 148). As transformações recentes, a reengenharia industrial, acompanhada da modernização da agricultura aumentaram a mobilidade setorial e espacial do trabalho e fragmentaram a estrutura de classes com uma ampliação da margem de pobreza. Na atual conjuntura a existência de uma força de trabalho polivalente coloca um limite à proletarização total e torna-se condição necessária para a organização de um mercado de trabalho regional. A mobilidade espacial e setorial da força de trabalho, concretizada em ocupações sazonais possibilita a complementação da renda dos trabalhadores e permite compatibilizar a contradição entre a necessidade de atrair força de trabalho sem lhe dar legalmente a terra e a necessidade de dar a terra para produção de alimentos (subsistência) e diminuir as tensões sociais (BECKER, 1982, p. 109-122; MACHADO, 1982, p. 182-183). Os trabalhadores para melhorar seus salários e condições de vida e trabalho podem se organizar coletivamente, construir suas próprias infraestruturas sociais e físicas, lutar pelo controle do aparato de Estado; e conforme obtenham sucesso veem-se em condições de suportar restrições a livre mobilidade geográfica da força de trabalho. Caso contrário tenderão a buscar maximizar sua mobilidade espacial através de migrações. Em caso de sucesso das reivindicações dos trabalhadores em espaços delimitados, o capital tende a se evadir gradativamente e migrar para outras áreas. Em síntese, frente às novas condições espaciais da produção os diversos capitais buscam maximizar suas respectivas mobilidades e tornar-se quase que independentes do espaço; enquanto os trabalhadores procuram maximizar sua mobilidade espacial através de diferentes estratégias no âmbito das relações de trabalho e de sobrevivência no cotidiano. Temos, assim, movimentos antagônicos, entre capital e trabalho e entre diferentes capitais, para maximizar suas respectivas mobilidades, mediados pela ação do Estado em dotar o espaço de infraestrutura (meios de abastecimento e comunicação) (Harvey, 1985). 10 A estratégia do Estado para aumentar a mobilidade social e espacial da população está contida em todas as suas políticas. Ao promover atração em massa de migrantes através de programas oficiais de colonização o Estado condiciona os fluxos migratórios.
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Entre as lógicas e as escalas da urbanização
Esferas de (re)produção e urbanização Essas mobilidades traduzem-se em duas esferas de (re)produção voltadas para a satisfação das necessidades respectivamente do capital e da força de trabalho, ambos com diversas frações com distintas lógicas e movimentos, que se concretizam espacialmente na produção de distintos espaços de trabalho e vida, que atravessam a esfera de reprodução social no cotidiano11. A urbanização, assim, hoje, poderia ser compreendida como a concatenação e concretização espacial destes movimentos, de reprodução e distribuição das atividades produtivas e da população, em disputa pelo espaço, que sob o capitalismo traduzem-se nas estratégias do capital e do trabalho para garantir suas respectivas reproduções. As diferenças de intensidade e de articulação entre estes processos variam historicamente e conformam a estruturação da produção e do território. A urbanização, via de regra, é enfocada como resultante de um destes processos de reprodução, preferencialmente o da reprodução das relações de produção, que são hegemônicas. Se estas esferas de (re)produção caminharam combinada e antagonicamente em um espaço comum durante o capitalismo competitivo hoje há uma tendência a maximizar sua separação. O desenvolvimento do meio técnico científico propicia que deixe de haver necessariamente uma coincidência espacial no território destas duas esferas, que tendem a se tornar independentes da aglomeração. Estes movimentos conjugados às três lógicas abordadas (do Estado, do capital imobiliário e agroindustrial) e o desenvolvimento do meio técnico científico, tendem a gerar uma exclusão social e espacial dos trabalhadores e uma fragmentação do espaço que se expressa em uma diferenciação e especialização dos lugares a nível territorial, com cidades voltadas ou para a produção, o consumo ou a moradia. Parece-nos, portanto, que a conjugação destes dois movimentos (do capital e do trabalho) resulta em uma estruturação do território que atinge as velhas formas de urbanização. A disseminação no território de relações espaciais e sociais de produção de caráter urbano - enquanto relações que o capital (entendido aqui enquanto um conjunto de diferentes capitais em disputa pela hegemonia) e o trabalho (entendido aqui enquanto um corpo de diferentes categorias sociais) travam Para Lefebvre no capitalismo deve ser considerada a interação entre o espaço social e três níveis de reprodução conforme a seguinte passagem “Aqui três níveis interrelacionados devem ser levados em conta: (1) reprodução biológica (a família); (2) a reprodução da força de trabalho (a classe trabalhadora per se); e (3) a reprodução das relações sociais de produção - isto é, daquelas relações que são constitutivas do capitalismo e que são cada vez mais (e cada vez mais efetivamente) buscadas e impostas como tais”. LEFEBVRE, 1991, p. 32, T.A).
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com o meio (o espaço) para garantir suas respectivas reproduções e necessidades - tendem a conferir ao urbano uma amplitude territorial; isto é, uma amplitude que transcende (ultrapassa) aquilo que percebemos como “perímetro urbano”. O urbano poderia, assim, ser considerado não-simultaneamente tanto o lugar da reprodução das relações de produção, referentes aos bens e meios de produção, quanto o lugar da reprodução da força de trabalho. O confronto entre estas esferas é antigo, não se trata de resolvê-lo aqui. Para sua análise ser completa, deveria abranger estes dois movimentos. Tomar em conta apenas o lado da produção significaria reduzir a urbanização a uma determinação do econômico e atribuir a estruturação do território apenas à esfera da produção. O mesmo vale em contrapartida se considerarmos apenas os aspectos ligados a população. Entretanto não podemos desconsiderar a farta produção teórica sobre a estruturação territorial do ponto de vista da produção. A nível do capital o urbano se espraia como novas formas de apropriação e ocupação do espaço, que resulta em uma estruturação territorial da produção. A nível da força de trabalho o urbano dissemina-se como um modo de vida, que tem por base o quadro de vida dos trabalhadores e sua efetiva inserção na produção; que conduz a uma redistribuição territorial da população. A combinação destas estruturação e distribuição transforma a face do território e engendra (nov)os padrões de urbanização.
Os lugares da urbanização O entrelaçamento e encontro espacial das diferentes lógicas apontadas e dos movimentos das esferas de reprodução (de diversos capitais, por vezes em conflito, e de diversas classes e frações de classe sociais com interesses distintos) em confronto pelo espaço propicia o surgimento, em diferentes escalas, de pontos (lugares) no território, o que vai ao encontro da proposição de Santos de que “cada lugar ... é ponto de encontro de lógicas que trabalham em diferentes escalas, reveladoras de níveis diversos, e às vezes contrastantes, ...” (SANTOS, 1994, p. 18 -19; 32). Estes pontos (lugares) - através de suas interações ou não-interações e de seus desenvolvimentos variáveis, em uma rede espacial de pontos especializados hierárquicos e multiestratificados - contribuem para a regionalização do território e da sociedade. Esta regionalização, segundo Giddens, “constituir-se-ia em torno das conexões, tanto de interdependência quanto de antagonismo, entre a cidade e o campo” (GIDDENS, 1989, p. 116) conforme se configuram o que caracteriza como contextos de co-presença (GIDDENS, 1985, p. 293; 1989, p. 294
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115), definidos por modos variáveis de intersecção de presença e ausência de integração social. Consoante com esta perspectiva, os lugares poderiam ser considerados uma manifestação espacial da apropriação do espaço e da natureza pelo homem, que é inseparável da transformação da sociedade no tempo e no espaço, enfim poderiam ser entendidos como pontos de concentração de condições gerais. Neste sentido a definição de Pred, de que Como tal, o lugar é caracterizado pelo fluxo ininterrupto da prática humana - e experiência disso- no tempo e no espaço. Não é apenas o que é fugazmente encenado como lugar, um “local” ou cenário para atividade e interação social. É também o que tem lugar incessantemente, o que contribui para a história em um contexto específico através da criação e utilização do que é encenado como lugar. (PRED, 1985, p. 337, T.A.).
coloca-o na mesma perspectiva de Giddens e Soja, e contribui para espacializar o lugar e extrapolar sua dimensão material. Estes pontos tornam-se lugares ao permitirem que haja um entrelaçamento e aglomeração de atividades permanentes e estáveis que os tornem centrais (LEFEBVRE, 1991, p. 331), nodais, estratégicos, para as interações intra-territoriais e para as diferentes lógicas que estruturam o território em tempos históricos delimitados. Na escala intra-urbana, historicamente, os pontos predominantes da co-presença social (GIDDENS, 1985, 1989) seriam os lugares de residência e de trabalho. Se em contextos menos modernos esses locais são concentrados em contextos mais avançados ou em transformação, tendem a se distanciar e se separar, em escalas que vão do local ao territorial. Neste sentido estas localidades constituiriam a base da urbanização, assim, As vilas e cidades podem ser descritas como localidades que abrangem contextos, recintos e concentrações nodais da interação humana, ligados à integração social e dos sistemas e, por consegüinte, a redes múltiplas de poder social. No contexto do mundo contemporâneo, a localidade pode ir desde os menores povoados ou bairros até as maiores conurbações (SOJA, 1993, p. 185).
Estes lugares, pontos nodais, todavia, podem não se converter em aglomerações urbanas, e isto irá depender necessariamente dos graus e tipos de interações que estabeleçam entre si e outras áreas do território, em diferentes níveis e escalas.
As Escalas da Urbanização Giddens relaciona o espaço e a urbanização ao afirmar que “o espaço não é uma dimensão vazia ao longo da qual agrupamentos sociais vão sendo estrutu295
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rados, mas deve ser considerado em função do seu envolvimento na constituição de sistemas de interação” (Giddens, 1989, p. 297). O espaço se transforma conforme se desenvolve o meio técnico científico e modificam-se as formas de apropriação da natureza pelo homem. Em um determinado momento histórico temos a cidade limitada à aglomeração física, e com uma identidade comum ao urbano, todavia, concordamos com Giddens que Essas cidades, poderíamos dizer, ainda não existem no tempo e no espaço mercantilizados. A compra e venda de tempo - como tempo de trabalho - é certamente uma das características mais distintivas do capitalismo moderno ... A mercantilização do tempo, voltada para os mecanismos de produção industrial, quebra a diferenciação da cidade e do campo característica de sociedades divididas em classes [...] Junto com a transformação do tempo, a mercantilização do espaço estabelece um “ambiente criado” de caráter muito distintivo - expressando novas formas de articulação institucional. Essas novas formas de ordem institucional alteram as condições de integração social e dos sistemas e, assim, alteram a natureza das conexões entre o próximo e o remoto no tempo e no espaço (Giddens, 1985, p. 294-295, T.A.).
As transformações presentes do meio técnico científico, dos novos meios de comunicação e transporte, ao vencer o espaço pelo tempo favorecem uma crescente desaglutinação espacial de atividades e permitem uma separação de locais de trabalho, residência e consumo em uma escala mais ampla do que a cidade propriamente dita. Tende a diminuir a necessidade de diversas pessoas trabalharem num mesmo local para uma empresa funcionar, e o mesmo no concernente às suas moradias. E tende a aumentar a dissolução entre rural e urbano. Ocorre uma especialização (separação) de lugares na escala do território com a multiplicação de núcleos dormitório, centros de consumo e centros de produção não necessariamente coincidentes e aglutinados. A urbanização, assim, tende a deixar de estar relacionada apenas a urbe, ao urbano, à cidade, à aglomeração de pessoas, equipamentos e infraestruturas. A urbanização tende a assumir uma forma pulverizada em segmentos dispersos e conquista desta maneira fragmentada a escala do território - e passa a se referir também a processos gerais e socioeconômicos no meio rural (se é que ainda hoje podemos falar de uma dicotomia rural-urbano). O urbano torna-se “uma parte integrante e uma particularização da generalização mais contextual mais fundamental sobre a espacialidade da vida social, a de que ocupamos uma matriz espacial multiestratificada de locais nodais” (Soja, 1993, p.186) e passa a estar relacionado a um modo de vida, enquanto quadro e condição de vida (inserção no processo produtivo), não na acepção restrita de Wirth, e sim numa acepção mais ampla, onde não só a cultura mas 296
Entre as lógicas e as escalas da urbanização
outros fatores sociais, econômicos, políticos e espaciais interferem nas relações que os homens travam entre si e o meio em que vivem. A aglomeração não deixa de ser importante, porém, sua permanência dependerá do desenvolvimento do meio técnico-científico e das transformações das relações de trabalho e de vida. As cidades seriam, neste contexto, mais que um meio físico, aglomerações nodais especializadas, socialmente criadas, parte de um sistema multiestratificado de pontos nodais e de uma configuração raras vezes hierárquica de locais diferenciados, cujas formas e funções variam tanto no tempo quanto nos lugares. Se as cidades como as conhecemos tendem a desaparecer, se a distribuição da população e das atividades produtivas está em transformação em todas as escalas em diversos pontos, isto resultaria no surgimento de novos padrões de assentamento e distribuição da população e das atividades produtivas, ou seja de novos padrões de urbanização. O que nos obriga a estudar os padrões de urbanização em diversas escalas articuladas.
Padrões de Urbanização Os padrões de assentamento espacial da população e das atividades produtivas, a partir do que foi dito até aqui, podem ser compreendidos como fruto do sistema de organização social, estruturado vertical e horizontalmente, em termos das hierarquias sociais e funcionais e de sua distribuição e amplitude espacial, bem como das mobilidades espaciais do capital e do trabalho - movimentações de firmas e pessoas. Em um processo que envolve “forças econômicas, políticas e culturais ligadas dialeticamente e entendidas, não em termos de três práticas distintas, como na abordagem estruturalista marxista, mas através da teoria contemporânea da estruturação, que une forças sistêmicas estruturais com modos voluntarísticos de comportamento” (Gottdiener, 1993, p. 267). A organização social, política, econômica e cultural e a organização espacial estariam dialeticamente interrelacionadas, em uma amplitude que transcenderia uma possível ligação mecânica causa social - efeito espacial (Gottdiener, 1993, p. 268); na medida em que as mudanças na organização social, econômica e cultural, vistas não como instâncias aparte umas das outras mas que se interpenetram e interagem entre si, geram uma constante (dis)solução e (re)construção do espaço social. Vale ressalvar, porém, que as bases da produção do espaço não podem ser atribuídas apenas ao capitalismo, e as relações capitalistas não necessariamente refletem-se diretamente no espaço social (Gottdiener, 1993, p. 266). Admiti-lo redundaria em recair em uma causalidade mecânica. 297
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Ao invés é o desenvolvimento contínuo e contraditório das relações sociais de produção e das forças produtivas, em diferentes níveis e escalas, que se materializa no espaço em qualquer tempo de forma desigual e combinada e faz com que aumentem as desigualdades intra e inter-regiões em diversas escalas e níveis, em recortes horizontais (em termos da amplitude e extensão) e verticais (em termos das diferenciações-hierarquizações internas e externas) (Soja, 1993). Nesta perspectiva os padrões socioespaciais podem ser vistos enquanto resultantes de processos contraditórios e dialéticos e não apenas de uma lógica irredutível e linear do sistema capitalista, considerado enquanto um bloco infracionável e infragmentável. Se assim o fosse, onde ficaria o papel e peso dos trabalhadores na transformação do espaço? Onde poderíamos situar a disputa entre as diversas frações de capital pela hegemonia? E, onde ficaria o papel do Estado? Neste contexto os padrões de urbanização poderiam ser considerados como as formas com que se processa esta organização, em função de determinantes sociais, econômicos relacionados ao desenvolvimento de atividades produtivas e relações sociais de produção em diferentes pontos do espaço. Formas relativas ao nosso objeto específico de análise que não podem ser generalizadas, e não devem ser interpretadas como modelos, tipos ou padrões fixos, e sim como manifestações espaço-temporais de relações sociais e espaciais de produção concernentes a um objeto específico e a um espaço-tempo delimitado; que não devem ser vistas como estáticas, imutáveis ou em evolução, mas em dissolução / recriação, em permanente transformação, caracterizando um espaço-tempo preciso e a condensação de espaços-tempos passados. Conferir-lhes um grau de generalidade e retirar-lhes a especificidade significaria cair no empirismo positivista, porém conforme os circunscrevemos em sua especificidade enquanto objeto de análise e estudo tornam-se um elemento a mais para a compreensão da complexidade do processo de estruturação do território, da urbanização enquanto processos não redutíveis a modelos, padrões matriciais, sistemas e/ou fórmulas simples. Não se trata de criar tipologias, catalogações de tipos de urbanização ou especificidades para tentar conhecer os “impasses” urbanos ou regionais como manifestação localizada, específica, ou elaborar uma tipologia de regiões e/ou cidades, buscando regras empíricas, estatísticas e formais. Mas de tentar superar o empirismo das análises sobre a problemática urbana e regional, para entender as dimensões espaciais como parte integrante das relações sociais em um período histórico definido, que se manifestam em uso e apropriação do espaço tanto pelo capital quanto pelo trabalho (Lipietz, 1988, p.5-6). 298
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Urbanização e História Para conduzir a investigação de nossa hipótese necessitamos conferir concretude a categoria de urbanização, neste sentido, a recuperação teórica, feita até aqui, parece-nos não suficiente, na medida em que compreendemos que a urbanização: •
não é uma categoria invariante historicamente pois assume qualidades e significados distintos no decorrer do processo histórico;
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não pode ser reduzida a produto de um único modo de produção - o capitalismo em particular;
•
não é um processo autóctone, auto reprodutível e nem se dá em espaço virgem, mas em espaços pré-existentes, pré-produzidos e pré-organizados a partir das práticas de diversos agentes sociais e econômicos que variam historicamente, e constitui-se em um processo de produção do espaço social;
•
é integrante e resultante da constante (re)estruturação do espaço de reprodução das relações sociais de produção, da força de trabalho e da vida cotidiana, através das relações que os homens travam entre si e a natureza;
Torna-se necessário assim recuperar a dimensão temporal (histórica) da urbanização dentro de limites precisos a partir da análise e historicização da urbanização de um objeto específico. Ou conforme Lefebvre “se o espaço é produzido, se há um processo produtivo, então estamos lidando com história” (LEFEBVRE, 1991, p. 46, grifo do autor, T.A.). Espaço e história não podem ser dissociados e ambos estão indissoluvelmente ligados à vida social, às condições materiais e ao desenvolvimento das forças produtivas e do meio técnico-científico. As relações de classe e produção, de dominação e hegemonia, não existem por si só e sua reprodução não se dá em um mundo desterritorializado e a-espacial. Elas materializam-se no espaço e o estruturam no decorrer da história enquanto litígios territoriais de caráter político ou desigualdades econômicas e sociais. Cabe, assim, primeiro assinalar a especificidade da historiografia do espaço. Tal recuperação difere da historiografia tradicional (Lefebvre, 1974, p. 46). Não pode ser confundida com uma cadeia causal de eventos históricos12, nem se limitar a um corte temporal único como se antes e depois fosse o nada. Conforme assinala Lefebvre: 12 “A história do espaço, de sua produção enquanto ‘realidade’, e de suas formas e representações, não deve ser confundida nem com a cadeia causal de eventos “históricos” (isto é datados), nem com uma sequência, teológica ou não, de costumes e leis, ideais e ideologia, e estruturas ou instituições socioeconômicas (superestruturas)” (LEFEBVRE, 1991, p. 46, grifo do autor, T.A.)
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A história do espaço não pode ser limitada ao estudo dos momentos especiais constituídos pela formação, estabelecimento, declínio e dissolução de um dado código. Ela deve lidar também com o aspecto global – com modos de produção como generalidades cobrindo sociedades específicas com suas histórias particulares e instituições. Além disso, deve-se esperar que a história do espaço periodize o desenvolvimento do processo produtivo de uma forma que não corresponde exatamente a periodizações amplamente aceitas” (Lefebvre, 1991, p. 48).
A estimativa das mudanças históricas nas estruturas sociais e a progressão histórica, destarte, ao contrário da ênfase clássica de periodização em estágios distintos, com início e fim temporalmente demarcados, deve compreender uma superposição de fases sem início e fim demarcados, na medida em que um modo de produção não desaparece e é substituído por outro de imediato13. Quando uma fase, ou ciclo, se encontra no auge, a seguinte apenas começa a se esboçar, e enquanto a primeira decai a segunda ascende. E, as fases de desenvolvimento não se expressam em formas espaciais únicas e próprias, os períodos históricos mesclam-se em uma mesma forma espacial dando-lhe corpo, pois “a articulação entre o modo de produção e o espaço é, ela mesma, um processo dialético contingente de duração indistinta e efeito variável” (Gottdiener, 1993). Cada período histórico carrega em sua forma espacial os períodos precedentes e as sementes do período subsequente, ou seja “o espaço carrega em si mesmo as sementes de um novo tipo de espaço” (Lefebvre, 1991, p. 52, T.A.). O espaço presente, assim, condensa em si cristalizações de trabalho social passado, de diferentes momentos históricos, que se configuram no presente em potenciais alavancas ou obstáculos a seu desenvolvimento futuro, em razão da desigualdade histórica e geográfica de desenvolvimento de diferentes espaços e da tensão gerada pela simultaneidade e coexistência espacial de formas produtivas de diferentes tempos históricos. No capitalismo esta tensão torna-se necessária para a própria acumulação e reprodução do capital e o que se torna geograficamente diferenciado são as taxas de lucro, a composição orgânica do capital, a produtividade do trabalho, o custo de reprodução da força de trabalho, a mobilidade do capital e do trabalho, etc. Esses diferenciais são mantidos através de distribuições geográfica e setorialmente desiguais dos investimentos de capital e da infra-estrutura social, da concentração localizada de centros de controle da mão de obra e dos meios de produção, dos circuitos entrosados do capital no processo de urbanização e das formas particulares de articulação entre as relações capitalistas e não capitalistas de produção (Soja, 1993, p. 132).
13 Conforme Marx (1977) um modo de produção não desaparece até haver libertado as forças produtivas e atingido seu pleno potencial.
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Ao mesmo tempo, há uma tendência para a homogeneização e redução das diferenças geográficas. A tensão entre diferenciação e homogeneização é subjacente ao próprio desenvolvimento geográfico desigual14. A crescente incorporação de espaços onde predominavam relações pré-capitalistas e sua articulação aos espaços capitalistas, com a desintegração e reorganização de suas relações de produção aponta para uma tendência crescente de combinações contraditórias onde há uma constante diferenciação / homogeneização, desintegração / preservação e fragmentação / articulação, (SOJA, 1993, p. 134-135) como ressaltam Palloix, Aglietta e Lipietz. Em contraposição à visão quase estática das teorias do dualismo econômico, dos polos de desenvolvimento de Perroux e das teorias da localização neoclássicas, que subsidiaram e nutriram diversas práticas de planejamento no sentido de superar as desigualdades interregionais, em particular as proposições de Perroux. Não se pode supor, conforme o ideário neoclássico, uma distribuição homogênea nem da população nem das atividades produtivas em diferentes territórios ou regiões. As desigualdades geográficas constituem-se historicamente e resultam de todos os processos sociais, conforme os homens se apropriam, transformam e estruturam o território através da formação de núcleos urbanos, vilas e cidades para satisfazer necessidades conjunturais e/ou estruturais. Nem a estruturação territorial, nem a escolha dos sítios é fortuita. Ou seja a estruturação e desenvolvimento de espaços dados está intrinsecamente ligada à história e à forma com que o espaço foi apropriado e adequado às necessidades de reprodução e sobrevivência, que variam tanto histórica quanto geograficamente em função do desenvolvimento das forças produtivas, entendidas aqui enquanto potencial de matérias primas, força de trabalho, meios de produção e meio técnico-científico. E isto conforma uma desigualdade espacial e histórica em termos de desenvolvimento, porém tal desigualdade também é necessária e se dá de forma combinada, na medida em que diferentes áreas, espaços o desenvolvimento social e econômico não deverão necessariamente percorrer as mesmas etapas. Se assim não o fosse, a história de todos lugares seria a mesma e todos apresentariam uma mesma configuração. A base da acumulação está na existência de espaços desiguais (SOJA, 1983), da escala global à local, e em seu desenvolvimento desigual e combinado, através da mescla do atraso das condições sociais e econômicas atrasadas com formas de capitalismo avançado. Em última análise se todos os pontos fossem homogêneos não haveria mais acumulação 14 A tensão entre a diferenciação e equalização espaciais emergiram na década de 1970 nas teorias do imperialismo que trabalhavam na escala regional-internacional. (SOJA, 1993, p. 133).
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(MANDEL, 1975). A ênfase do local (fragmentação territorial) tem importância, porém deve ser inserida na perspectiva do avanço da globalização. O espaço social, historicamente produzido, torna-se outrossim uma contingência para a reprodução ampliada de capital e das condições gerais de produção. Referimo-nos ao espaço social em escala regional / territorial que condensa em si trabalho morto (estradas, infraestruturas, meios de comunicação, obras de dragagem, terraplanagem, drenagem e irrigação) e abriga trabalho vivo (enquanto local onde se distribui a população dividida e organizada em classes sociais). Tais condicionantes remetem diretamente a mobilidade espacial do capital e do trabalho e ao desenvolvimento desigual e combinado histórica e geograficamente, necessários na escala ampliada para a própria reprodução do capitalismo. A existência prévia de infraestrutura, de núcleos urbanos com força de trabalho disponível, de equipamentos e serviços e sua articulação espacial com os fluxos da produção e circulação tornam-se um elemento a ser considerado no desenvolvimento inter-regional. Concordamos neste sentido com a proposição de Soja, para quem “a história do capitalismo, da urbanização e da industrialização, da crise e da reestruturação, da acumulação e da luta de classes torna-se, necessária e centralmente, uma geografia histórica localizada.” (Soja, 1993, p. 127).
Definição do caminho15 A urbanização, como foi mostrado, concerne às duas esferas da reprodução das relações sociais de produção e da reprodução da força de trabalho, que se manifestam em diferentes níveis e escalas na distribuição das atividades produtivas e da população no território, que demandam diferentes abordagens. A primeira, relacionada diretamente com o econômico, exigiria uma investigação e análise das interações (redes) e distribuição das empresas de diversos setores no território considerado, no sentido de estabelecer os efeitos das transformações das relações espaciais de produção dada a formação de novas estruturas produtivas (empresariais) horizontais e verticais. A segunda, por sua vez, demanda uma investigação concernente à distribuição espacial da população, ao comportamento demográfico e as atividades econômicas desenvolvidas da escala local (distrito) à escala regional (regiões). Na medida em que as lógicas apontadas conjugadas à disputa das mobilidades 15 Essa parte corresponde aos “Procedimentos gerais e delimitações” e foi ligeiramente modificada para finalizar este texto. A síntese da investigação e seus resultados encontram-se nos capítulos subsequentes da tese.
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Entre as lógicas e as escalas da urbanização
do capital e do trabalho pelo espaço tendem a excluir social e espacialmente os trabalhadores em pontos específicos do território, essa análise pode se constituir em um indicador de um aspecto da urbanização, expresso no surgimento de novos padrões de distribuição da população e das atividades produtivas. Dentro desta visão, a procura pela identificação de padrões de urbanização deve passar necessariamente por uma investigação de distintas formas desta estruturação territorial, que se manifestam, articuladamente, em diferentes escalas espaciais - desde estruturas locais (distritais), municipais até regionais (estadual ou regiões de governo). Índices ou taxas de urbanização, não deixam de ter uma determinada utilidade (dependendo dos objetivos de cada investigação), mas são por demais simples para retratar um padrão dentro da nossa concepção da urbanização. Serão necessárias as três escalas que acabamos de mencionar para a identificação de possíveis padrões de urbanização. Em princípio, nenhuma parece, ex ante, privilegiada. Não as encaramos, em relação aos dados, como simples níveis diferenciados de sua agregação ou desagregação. Todavia, ao pensar a urbanização como propagação e instalação do “urbano” - um “princípio” de estruturação espacial - como já assinalamos, a escala municipal parece-nos de importância especial. Esta escala realiza a intermediação - inclusive por causa de sua expressão superestrutural (jurídico-política e ideológica) - entre processos a nível (micro) local e (macro) regional. É esta “função” na estruturação espacial que nos faz insistir no município como principal unidade territorial de referência mesmo quando observadas as outras duas escalas (intermunicipal e intra -municipal). O “padrão” - a padronização - da urbanização será construído, no desenvolvimento ulterior da tese, a partir de uma série de características que dizem respeito a estruturação espacial nas suas múltiplas dimensões como argumentamos acima. O padrão de urbanização constrói-se, portanto, do abrangente (regional) para o específico (local) como, também, do particular (local) para o geral (regional). Tenta refletir, com este procedimento, a complexidade (pelo menos uma pequena parte) da estruturação espacial da qual a urbanização é componente cada vez mais importante. Com isto, entendemos que a urbanização, nas suas práticas e relações urbanas, e o modo de vida urbano, enquanto quadro de vida e modo de inserção os trabalhadores no processo produtivo, extravasa os limites da aglomeração física e da concentração física e ganha uma abrangência territorial com a aglomeração disposta em múltiplos núcleos com uma grande diversidade. 303
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Repetimos, a urbanização precisa ser investigada em várias escalas; não se pode mais partir do pressuposto que o “lugar” da urbanização é pura e simplesmente o “urbano” e confundi-lo com a sua manifestação físico-aparente: a cidade. E, muito menos seu padrão ser identificado dentro desta visão. Vale ressaltar que via de regra a população urbana das cidades corresponde à população urbana municipal que pode ser distribuída entre diversas vilas (sede e distritos) sem contiguidade física entre elas. Portanto, tais “cidades” são de fato muitas vezes compostas por diversas aglomerações urbanas dispersas no território do município e, por vezes, inclusive sem articulação física e viária com as respectivas sedes municipais. Então, como fica o “urbano” quando o “perímetro urbano” (que não é “urbano”, mas da cidade) é territorialmente segmentado, e sem contiguidade.
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Dois breves ensaios sobre a produção social do espaço: um preâmbulo Ana Fani Alessandri Carlos Sandra Lencioni
Os anos de 1970 e 1980 foram anos difíceis, em que vivíamos um regime de exceção no qual a institucionalização da tortura e a perseguição ao pensamento divergente, além de tantas outras arbitragens próprias das ditaduras, se faziam presentes. Aprisionavam-se pessoas, mas não o pensamento, pois não há mordaça que impeça a reflexão. O pensamento crítico era necessário para que as tensões na sociedade não pudessem ser dissimuladas e nem obscurecidas, o que poderia levar à passividade frente ao que se vivia. Era nítido que as questões relativas ao espaço eram questões visivelmente sociais, fosse em relação ao uso da natureza ou em relação a tantos outros aspectos abordados pela geografia. De forma sintética podemos dizer que o âmago da reflexão se centrava no desafio de se pensar a sociedade em sua dimensão espacial tendo como ponto central a reflexão de que a sociedade se constituía como tal a partir da relação entre o homem e a natureza. A geografia brasileira, particularmente a que se desenvolvia na Universidade de São Paulo (USP), questionava a sua potência para compreender a realidade. A influência do historicismo, trazido pelos mestres franceses por ocasião da fundação da USP, com as ideias de processo, gênese e movimento da história se combinou com a busca de novas referências teóricas que permitissem melhor compreender a realidade, particularmente a relação entre a sociedade e seu espaço. Mas, essa relação não era mais entendida nos termos postos pela geografia clássica. Agora, essa relação era compreendida pela mediação do trabalho, ou seja, a relação entre o homem e a natureza se constituía como uma atividade produtiva em todos os sentidos, quer como produtora de objetos, quer também como produtora da própria vida. Iluminava-se, assim, a ideia da sociedade produtora do espaço o que fazia do espaço uma produção social mudando radicalmente as reflexões sobre o papel da geografia na compreensão do mundo moderno. 307
Ana Fani Alessandri Carlos e Sandra Lencioni
Na medida em que qualquer produção tem um caráter histórico, a relação entre o homem e a natureza no capitalismo não escapa à determinação de que esse transforma tudo em mercadoria. Significa dizer que no capitalismo a produção do espaço se baseia e repõe em seu movimento, por meio do processo de valorização (produto do trabalho), a sua realização no mundo da mercadoria. Consequentemente, a percepção dessa chave interpretativa conduziu ao pensamento de que o espaço produto dessa relação conteria, certamente, a lógica produtora dessa sociedade; no caso, a lógica da mercadoria. Pensar o espaço como mercadoria permitiria assim, pensar uma dimensão necessária do movimento da reprodução do capital. O desdobramento dessa interpretação permitia, por exemplo, considerar o turismo como um momento em que o usufruto do espaço por um determinado período de tempo significa ter em conta que essa atividade econômica se constitui como uma potente possibilidade para a continuidade do processo de acumulação em momentos de crise do modelo fordista. Hoje, face aos avanços teóricos da geografia situada no plano da teoria social, que dá centralidade à noção de produção do espaço, é dispensável a adjetivação de “geográfico”, que naquele momento era pertinente porque se tratava da construção de uma nova geografia, mantendo o diálogo com o que havia e buscando a superação da forma clássica de se pensar. Sobre a sociedade produtora do espaço, no caso, sob o imperativo do capital, é do que tratam os dois textos apresentados. Foram concebidos naqueles anos, há cerca de quarenta anos, portanto, têm mais anos do que tínhamos quando nós os escrevemos. Vemos neles uma audácia própria dos jovens, que infelizmente perdemos, e um senso de criatividade e de ousadia que fez avançar nosso pensamento – e que mantemos ainda vivos em nós!
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A apropriação capitalista do espaço geográfico1 Ana Fani Alessandri Carlos Sandra Lencioni
O espaço geográfico enquanto produto histórico é hoje fruto de relações específicas que se estabelecem entre sociedade e espaço no modo de produção capitalista. Enquanto tal, ele surge aos nossos olhos com caracteres específicos e determinantes do momento e se torna portanto necessário desvendar-lhe a forma pela qual ele aparece. O espaço uma vez produzido sofre um processo de apropriação que é inerente ao seu próprio processo de produção. Cabe apreender qual a expressão material através da qual ele é apropriado. A propriedade é o comportamento do homem em relação às condições naturais e produção como se essas condições pertencessem a ele como sua própria existência. Assim, a propriedade é para o homem uma pressuposição natural, um prolongamento de seu corpo (MARX, 1968, 2 bis, p. 27). Como comportamento do homem em relação às condições naturais, a propriedade é um comportamento do sujeito ativo em relação às condições de sua produção. A propriedade se realiza através da produção e a apropriação efetiva se desenvolve e relações reais ativas. A propriedade privada não é extensão do homem, ela depende do movimento do trabalho. Assim, o trabalho é a essência subjetiva da propriedade privada do mesmo modo que a essência subjetiva do trabalho são as necessidades vitais para a existência humana (MARX, 1974, p. 9). A troca de equivalentes é fundada sobre a propriedade do trabalho. A existência social do homem é a própria mediação das relações deste homem com as condições objetivas de trabalho. O modo como se dá a propriedade das condições objetivas de trabalho determina as condições específicas de existência desse homem. Nesta medida podemos dizer que também o trabalho produzido engendra um espaço produzido. Portanto, o trabalho cria não só Publicado originalmente como CARLOS, A.F. A E LENCIONI, S. A apropriação capitalista do espaço. In: 4º ENCONTRO NACIONAL DOS GEÓGRAFOS. Rio de Janeiro, Anais... Rio de Janeiro: AGB, 1980.
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o espaço, mas também determina a apropriação deste espaço. Não é apenas a instância natureza que é apropriada, mas todas as instâncias do espaço. Na relação sociedade/natureza, esta última aparece como objeto de trabalho na sua instância natural. Isto quer dizer que a natureza, exterior do homem, em sendo pressuposto do próprio trabalho humano, se coloca como a condição primeira de trabalho. Na dominação do homem sobre a natureza e sobre si mesmo é que se dá o arcabouço de toda riqueza. Riqueza esta que é objeto da própria produção, sendo portanto uma produção material. Para que haja produção é seu suposto que se estabeleçam determinadas condições que em si mesmas não sejam produzidas. O homem tem que ser posto como membro de uma comunidade e a relação que ele estabelece com a natureza, passa pelo crivo desta comunidade. Numa analogia poderíamos dizer que também não há linguagem com um só indivíduo, pois o desenvolvimento da linguagem pressupõe sociabilidade. As condições naturais e a atividade humana, deslocadas separadas resultam no processo histórico da humanidade. E, não ao contrário, que esse processo seria fruto da unidade homem/natureza. Essa unidade é apenas um dado histórico mas não exprime em si o processo. Este se elabora nesta dissociação. Ao se engendrar nesta separação condições naturais cabe lembrar que tais que tais condições também são históricas. Assim, não se poderia, sem incorrer num erro grosseiro considerar tais condições como imutáveis como um dado estático. Como que em se falando de tais condições no modo de produção feudal se estivesse ao se falar no modo de produção capitalista se falando das mesmas condições. Ora, o servo ao ser tomado como apêndice da terra, como um acessório da terra faz parte das condições naturais. Contudo, tal não se pode dizer do trabalho assalariado no modo de produção capitalista onde a separação da atividade humana com as condições naturais encontra o seu ápice. A terra, como meio e objeto de trabalho, é uma condição anterior e exterior ao homem, na medida em que não é produzida por ele sendo assim a primeira condição objetiva de trabalho. Quando se lhe incorpora diretamente trabalho é objeto de produção e como meio de trabalho ela expressa a própria condição de trabalho. É com a propriedade que se estabelece a separação entre a terra e como objeto de trabalho da terra como condição de trabalho. No modo de produção capitalista a terra encontra expressões diferentes. Marx (1978, vol. 3 p. 577) distingue terra-matéria de terra-capital. Terramatéria, enquanto natureza, ao passo que a terra-capital se coloca como meio de produção, como incorporação de capital; seja de um modo mais perma310
A apropriação capitalista do espaço geográfico
nente, através de canais de irrigação, por exemplo; ou seja de um modo mais temporário, como pela adubação. A terra, no modo de produção capitalista se apresenta, portanto, sob essas duas naturezas. A valorização do espaço capitalista abrange portanto, essas duas naturezas com todas as relações aí imbricadas. O modo pelo qual se dá a apropriação das condições objetivas de trabalho determina a condição de uma comunidade. As formas de propriedade têm como suposto a comunidade. O que define se a posse é privada ou coletiva é o tipo de propriedade é o trabalho. Assim, se o possuidor privado efetua isoladamente o trabalho a posse é privada; ao contrário se o trabalho é determinado pela comuna, a posse é coletiva; e ainda a propriedade será estatal quando o trabalho for determinado por uma unidade quando ele pairar acima das comunidades particulares. Para esta última forma, pressupõe-se a comunidade como Estado, quando a comunidade não aparece simplesmente como uma reunião pura e simples de indivíduos que sejam proprietários mas como que formando uma unidade numa verdadeira coesão. Na comunidade tribal a terra é propriedade da coletividade onde cada indivíduo é proprietário. É através da terra como suposto natural e não como produto do trabalho que se dá pelo processo de trabalho, sua apropriação. Na forma asiática o membro da comunidade é co-proprietário da propriedade coletiva. Ele aparece como um proprietário hereditário mas na verdade ele é desprovido de propriedade, pois ele tem apenas o direito de trabalhar a terra direito esse dado pelo déspota que se apropria do seu sobre-trabalho. Nas tribos primitivas a propriedade aparece mediatizada pelo Estado, na medida em que o indivíduo aparece como membro do Estado. A comunidade como condição primeira da propriedade individual do solo a condição de Estado se expressa pela relação recíproca que se estabelece agora entre os proprietários livres. Supõe-se já a separação cidade/campo onde o campo aparece como um território da cidade. A base desta comunidade não é mais a terra e nem os indivíduos constituem mais elementos naturais. A base é a cidade, como sede já desenvolvida dos camponeses proprietários de terra. O obstáculo maior não está em se trabalhar a terra, como objeto de trabalho mas sim no confronto com outras comunidades fazendo da guerra o grande trabalha coletivo objetivando manter as condições objetivas de existência da comunidade. A concentração na cidade, é a base desta organização guerreira. Na forma germânica a comuna se expressa pela associação que se estabelece entre indivíduos autônomos que sejam proprietários fundiários. A 311
Ana Fani Alessandri Carlos e Sandra Lencioni
comunidade aparece como uma união não como uma unidade não existindo portanto como Estado. A base de ordem econômica é aí então a propriedade fundiária e a agricultura. O espaço geográfico capitalista produzido pelo trabalho social é um espaço apropriado na medida em que o trabalho que o produz é um trabalho alienado. A força de trabalho que realiza o processo de produção é uma mercadoria alheia ao trabalhador e pertencente ao capitalista e portanto subordinada a seus desejos, necessidades e objetivos. No modo de produção capitalista a mais-valia apropriada aparece disfarçada e o trabalho aparece totalmente pago, enquanto que no modo de produção feudal a apropriação do excedente é evidenciada na medida em que o sobretrabalho fica cristalino como trabalho para outro, como trabalho não remunerado. Isto significa que o capitalismo cria formas fetichizadas que escondem a essência da apropriação. A apropriação da terra se expressa num primeiro momento histórico como apropriação da primeira natureza quando esta se apresenta exterior ao homem e num segundo momento a apropriação é do espaço enquanto produto criado pela sociedade. Quando se trata da análise da apropriação do espaço geográfico capitalista, surge inicialmente uma questão: qual a forma de expressão do espaço geográfico que permite sua apropriação? Uma vez que a apropriação se traduz pela propriedade, cabe ressaltar como esta se materializa concretamente uma vez que a noção de espaço geográfico é teórica. A apropriação do espaço geográfico na sua instância material é o “físico2. No entanto não se trata da apropriação de algo inerte e natural, mas a apropriação do espaço (enquanto produto social) que aparece aos nossos olhos através de um elemento concreto e que portanto permite identificá-lo como apropriação de um espaço abstrato. Através do físico, apropria-se da representação do espaço geográfico abstrato materializado nele o físico” representa parcelas da crosta terrestre de uma maneira geral a terra. Na realidade são parcelas concretas do espaço global, na medida em que este possui uma fisionomia e uma significância Mas a apropriação do espaço é determinada pelo seu valor; e consequentemente o valor de parcelas do espaço é determinados pelo seu valor em si, que condiciona e é condicionado por todos os valores espaciais gerais. 2
O “físico” é entendido no texto como segunda natureza.
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A apropriação capitalista do espaço geográfico
O valor é dado pelo papel e inserção dessa parcela na totalidade espacial e vice-versa. Desta feita o valor de uma parcela só pode ser entendido pelo todo, pela sua potencialidade histórica de valorização e pela sua capacidade de viabilizar a reprodução do capital. O processo de valorização do espaço é dado pelo seu papel no processo de produção capitalista. Por exemplo, a integração de espaços por estradas ou rodovias para aumentar ou possibilitar o escoamento de mercadorias e/ou matérias primas faz que se dê a abertura e/ou alargamento do mercado e consequentemente da acumulação. O valor do espaço urbano ou rural não é determinado pelo capital que se incorpora à terra, mas pelo papel que desempenham no processo de produção direta ou indiretamente. Isto explica o processo de valorização da Amazônia que no espaço brasileiro tem um valor em potencial dentro do desenvolvimento da produção capitalista. É portanto o processo de produção do espaço global dentro do processo de produção da existência humana, que cria valor. O valor do espaço é dado pelo fator trabalho, não necessária e diretamente incorporado a todas as parcelas do espaço mas do processo de produção global. Assim, o valor de uma parcela é dado pela totalidade dos valores criados na sociedade e vice-versa. Portanto ao se apropriar de uma parcela do espaço está se apropriando de relações gerais que não são necessariamente produzidas e determinadas localmente mas pela totalidade da produção. Assim o valor do espaço é determinado pela sociedade como um todo. À medida que o processo de produção capitalista avança muda a importância e o valor de determinadas parcelas do espaço, uma vez que ele depende das modificações das relações gerais. O universo do capital ao expandir diminui as distâncias, implicando numa integração espacial pela ampliação do processo de produção, crescendo a demanda pela terra. Portanto objetivamente, o valor do espaço é dado por uma relação de produção real determinada historicamente no nosso caso específico determinado pelo modo de produção capitalista. A apropriação do espaço através da propriedade da terra revela a apropriação de um produto de relações gerais da sociedade que ultrapassa a simples apropriação da forma. Aqui levantamos uma questão: como a produção espacial viabiliza a produção de mais valia? •
sendo pressuposto para a produção integrando os elementos condicio313
Ana Fani Alessandri Carlos e Sandra Lencioni
nantes criando as condições de produção; •
a integração espacial viabiliza o processo de circulação e consequentemente permite realização de mais valia;
•
como resultado do processo de produção o espaço é produto social cuja produção visa aumentar produzir e viabilizar a mais valia e consequentemente a reprodução ampliada do capital.
O valor do espaço materializado se expressa através da renda da terra, porque sua apropriação se dá pela propriedade da terra. Assim, a apropriação do espaço é desvendada através da propriedade da terra. A propriedade é portanto o pressuposto histórico do modo de produção capitalista. Enquanto a posse da terra é apenas uma condição de produção, sua propriedade é a condição mais favorável para que se estabeleça as relações capitalistas. Isto revela que há o monopólio da terra pelos proprietários fundiários. Nesse sentido se perguntaria: por que nós geógrafos, ao tentarmos analisar o espaço nos deteríamos na questão da propriedade fundiária? Ora, a propriedade da terra é a própria expressão da apropriação do espaço através de sua instância física, como suposto da produção. Além do mais esse monopólio permite aos proprietários fundiários tirar do arrendatário, do capitalista industrial uma parte da mais valia produzida através da renda da terra expressa num tributo em dinheiro. Neste momento a apropriação do espaço adquire forma puramente econômica. Só quando se estabelece historicamente a propriedade privada podemos falar em renda. A cada forma que toma essa propriedade privada temos também uma forma de renda. É no modo de produção capitalista que ela se expressa em dinheiro, equivalente geral de toda riqueza criada. E, cada vez mais a geração de mais valia se transforma em renda da terra pois o proprietário da terra se apropria cada vez mais dos valores criados. Nesse sentido a produção capitalista esbarra com a questão da propriedade da terra. O espaço aparece então apropriado. Pela apropriação da terra, o capitalista se apropria do espaço – enquanto personificação do capital – afim de viabilizar o processo de reprodução do capital. Na verdade, quando o capital se apropria de uma determinada parcela do espaço ele o está fazendo se apropriando de tudo que ele contém. De fato, não é apenas e tão somente apropriação de uma parcela física do espaço mas sobretudo de uma parcela do espaço – que extrapola o simples condicionante físico. Nessa medida se estabelece a apropriação de todo o espaço 314
A apropriação capitalista do espaço geográfico
circundante, ou seja ao se apropriar de uma parcela do espaço se está apropriando da totalidade do espaço, como que se estabelecesse uma propagação do direito de propriedade. A apropriação é um processo real que aparece como um processo legal. O processo jurídico sacramenta uma relação de apropriação que permite a determinadas pessoas dispor de certas porções do espaço. A forma jurídica legaliza a apropriação e depende de condições históricas. A propriedade seja qual for sua expressão formal é sempre apropriação da terra. Sua expressão pode variar no tempo histórico mas ela sempre significa apropriação da terra. Consequentemente a renda da terra é a realização econômica da propriedade territorial3. A forma é o mais visível das coisas que determina a maneira da coisa, portanto não se deve confundir o imediato com a essência. O espaço geográfico aparece formalmente através da paisagem e sua apropriação através da propriedade da terra mas ambas só tem sentido como formas através do qual o espaço geográfico se apresenta e pode ser apropriado. Tanto uma quanto outra só podem ser analisadas como manifestações formais do fenômeno que em essência é uma relação social que só pode se concretizar formalmente para que possa ser apreendida e consequentemente revelar a essência do fenômeno.
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É necessário que se ressalte a diferença entre a propriedade da terra e a posse da terra.
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Alguns elementos para a discussão do espaço geográfico como mercadoria4 Sandra Lencioni Ana Fani Alessandri Carlos
É nosso objetivo apontar, no presente texto algumas questões concernentes ao problema espacial, no que se refere especificamente ao espaço geográfico analisado como mercadoria produzida pela sociedade capitalista. Muito mais do que respostas a essas questões, o presente texto procura, nas discussões que se prosseguem, lançar indagações a respeito do assunto com o intuito de encontrar ideias a fim de que as polêmicas oriundas venham a suscitar novos encaminhamentos para a questão. Partimos, para isso, de uma reflexão mais ampla a respeito da concepção de espaço geográfico; no entanto as considerações aqui levantadas, longe de serem conclusivas, têm o objetivo de suscitar indagações, juntamente com algumas observações sobre o tema. Essa discussão pressupõe como pano de fundo a própria discussão do objeto da Geografia. A questão espacial está muito presente nos dias de hoje e o geógrafo não pode, de modo nenhum, assumir um papel de ouvinte. Longe de estar esgotado pela geografia, tal debate checa toda a produção geográfica feita até agora à luz de novas concepções; uma vez que o conhecimento além de ser um processo cumulativo e ininterrupto é também um produto da história. Se é uma questão de nossos dias, com que olhos devemos enxergá-la? O avanço interplanetário, ou seja, a conquista que o homem fez sobre o Universo não nos colocaria sobre uma ótica diferente, daqueles que tanto no século passado, como no início deste, trataram da questão do espaço geográfico, do geográfico? Como discutir a questão, nos esquecendo desses eventos que caracterizam a época em que vivemos? Se isso ocorre, é porque talvez esqueçamos que somos indivíduos históricos. Num mundo onde a consciência de sucessivos eventos nos são apresentados pelos meios de comunicação, maciça e continuadamente, nos distanciamos cada vez mais da reflexão desses fatos para deixarmos espaço às novas informações que virão. O que dizer ainda da conquista da Lua pelo homem? Aquilo que no primeiro momento nos deu o impacto da aproximação de nossas ficções tipo Flash Gordon, Jules Verne 4
Publicado originalmente em Borrador: teoria e método. São Paulo: AGB-São Paulo, nº 1, p. 1-9, 1980.
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com a realidade já agora tornada possível - nos parece como um sonho tão distante e remoto como as lembranças de sonhos infantis. Nós, agora ao falarmos de espaço geográfico, do que vem a ser o geográfico, temos um quadro da nossa civilização diferente daqueles geógrafos que frequentemente chamamos de clássicos, como Vidal de La Blache, Le Lannou, Choley, Brunhes, etc. O espaço geográfico que o processo histórico tornou cada vez mais distante do meio natural, das forças produtivas - como conceito - evolui no pensamento geográfico a partir da noção de meio geográfico. O meio geográfico chegou a ser concebido por alguns geógrafos somente como meio natural. Hartshorne chamou a atenção para o reconhecimento da importância da inclusão dos fatores culturais na análise geográfica, dando uma nova dimensão à concepção restrita de meio geográfico. O autor escreve que [...] partindo do conceito de natureza como “meio natural”, expresso de forma abreviada pelo termo “meio”, eles observam, então que os autores de outras disciplinas se utilizam dela para incluir muitos elementos que os geógrafos não reconhecem como sendo pertencentes ao “meio natural”, mas que são decididamente importantes no ambiente total de qualquer indivíduo ou grupo humano. (HARTSHORNE, 1969, p. 88)
Atualmente, a noção de espaço geográfico incorpora uma diversidade histórica e social que escapou, frequentemente, à noção de meio geográfico (esse termo tem sido usado, via de regra, como sendo apenas o substrato físico). As discussões das noções de espaço geográfico e meio geográfico colocam a questão da natureza; daquilo que é natural. O homem geneticamente, também é natureza, mas se distingue dela através do processo civilizatório que torna possível a vida comunitária dos homens. Esse processo, que significa o próprio processo de hominização é, de um lado, o próprio processo de trabalho que mediatiza a relação homem-natureza para garantir a sobrevivência humana e, de outro, significa a normatização do grupo humano, com o intuito de regular a distribuição da riqueza produzida e as relações dos homens entre si. Essa normatização se coloca porque o homem enquanto natureza é “virtualmente inimigo da civilização, embora esta pareça ser um objeto de interesse humano universal” (FREUD, 1978, p. 88). Para tornar possível a vida comunitária os homens são sujeitos a suportarem os sacrifícios que a civilização lhes impõe, traduzidos pela repressão dos seus instintos; por exemplo: instinto de matar, canibalismo, etc. Portanto, é na internalização de coerções que o homem se transforma em ser moral e social. A produção do espaço geográfico e da realidade do homem tem como pressuposto o processo civilizatório; e se dá como natural. Cada transformação 317
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se inscreve no interior de períodos históricos específicos e, portanto, é própria de cada período que a natureza-histórica se apresente como natural. A construção da natureza-histórica se viabiliza pela organização física territorial, pois esta dá o suporte para que as exigências de transformações históricas determinadas se realizem. Portanto, as dimensões social e histórica do espaço geográfico não podem excluir sua instância natural. Desta feita, acreditamos que a análise geográfica, dentro da perspectiva histórica, não pode ignorar as instâncias social e natural, apreendidas no nível concreto através da paisagem. O espaço, na sua instância natural, tem sua existência limitada. Como um dado natural, não produzido, encontra um limite, que é o da natureza. Limite este que se coloca em dois níveis: o real concreto e, do outro, o infinito. Infinito na media em que se considera o universo infinito e um limite real concreto que compreende especificamente a ação humana mais próxima, ou seja, as fronteiras do nosso planeta. Circunscrito ao âmbito terrestre, que é o que cabe discutir agora, o espaço geográfico é finito. Nesse sentido, se a produção do espaço incorpora o elemento natural finito, tem como dado estrutural a escassez; a finitude real do lugar imprime à mercadoria espaço uma especificidade na limitação de sua própria produção em escala. Evidentemente, sua limitação não se absolutiza dado que o homem equaciona o finito, quer quando produz “lugares” artificiais, quer intensificando o aproveitamento de um dado espaço. Por outro lado, o social é relativamente ilimitado, tendo como limite histórico o grau de desenvolvimento que as forças produtivas sociais podem alcançar num determinado momento. O espaço geográfico, entendido como um produto social, nos remete à questão de analisa-lo enquanto produto histórico da sociedade capitalista. Toda produção social tem como finalidade um produto. Na sociedade capitalista cada vez mais os produtos assumem a forma de mercadoria, mas isso não quer dizer que todo produto seja mercadoria. Para que o produto se realize como mercadoria ele deve ser colocado no mercado e sua troca por dinheiro estar sujeita à dupla determinação do valor contido nela; isto é, de seu valor de uso e valor de troca. O espaço geográfico poderia ser analisado como uma mercadoria “sui generis”, com determinações específicas tanto no que se refere ao seu processo de produção, quanto ao seu processo de apropriação e, consequentemente, consumo. 318
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O processo de produção do espaço geográfico não se dá, necessariamente, por meio da destruição formal do que existe em uma total transformação. O velho e o novo podem coexistir e o trabalho passado cristalizado na paisagem assume nova função apesar de conservar antigas formas. O espaço se produz também redefinindo funções antigas, sem necessariamente mudar suas formas, mas decididamente alterando-lhes o conteúdo. Quer incorporando meio natural, como outros espaços já produzidos, a problemática espacial nos coloca frente a uma outra questão, a de que a especificidade histórica do lugar transcreve na sua produção, singularidades. Não poderíamos dizer que a produção do espaço metropolitanos japonês e a do espaço metropolitano paulista guardem as mesmas identidades que a produção de botões em Tóquio e em São Paulo. Mesmo obedecendo às leis da sociedade capitalista as paisagens transcrevem semelhanças, mas não identidades. Essas “n” produções espaciais sucessivas e cumulativas em momentos históricos diversos configuram as paisagens que tomamos contato. Muitas vezes formas espaciais antigas persistem ao lado de novas. Em outras, as antigas formas são destruídas sem deixar memória espacial. Por contar com o substrato físico da natureza como um dado estrutural, o espaço tornado mercadoria nos coloca a questão do valor levando à reflexão sobre aquelas porções do nosso planeta que embora não contendo trabalho objetivado e, portanto, valor, tenham preço. O valor de qualquer mercadoria é determinado pela relação entre seu valor em si e o processo geral de valorização do valor. Pensemos que quanto ao espaço, seu processo de valorização pode dispensar a geração de valor em si mesmo e mesmo assim ter um preço devido ao fato do espaço ter potencialidade de gerar valor decorrente do fato de que o substrato físico natural terrestre é condição original do processo de trabalho. Como mercadoria, o espaço geográfico contém a unidade entre valor de uso e valor de troca. Essa unidade, na mercadoria espaço tem suas especificidades, pois ela possui uma abrangência, uma escala diferente que se restringe à mercadoria em si. Como entender o valor de porções da Amazônia na medida em que essas se apresentam como meio natural, ou seja, sem incorporar trabalho produtivo objetivado? Na verdade, o processo de valorização dessas porções nos sugere que elas realizam o trabalho produtivo de outros espaços. Isto porque a especificidade planetária da mercadoria espaço, sua finitude, seu caráter real concreto de meio de produção dado pela natureza e, mais do que tudo, o fato de estar numa formação econômica social capitalista faz com que seu processo de valorização se dê não só pela incorporação de trabalho 319
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produtivo, mas também pela realização desse trabalho na totalidade do espaço geográfico. E é esse trabalho produtivo geral da sociedade que dará valor ao espaço geográfico. O valor do espaço geográfico é dado pela posição que cada parcela concreta ocupa dentro do espaço global, cuja totalidade é determinada pela formação econômica social capitalista. Como um jogo de bilhar em que as bolas são direta ou indiretamente tocadas, o capital, como um taco vai valorizando direta ou indiretamente os “n” lugares incorporados na formação econômica social. Assim, o fato de uma parcela espacial não conter trabalho objetivado não exclui seu valor na medida em que essa parcela entre e influi no processo geral de produção de valores como potencialidade, acabando por influenciar ou mesmo atuar diretamente nesse processo. Portanto, ao falarmos em produção e apropriação do espaço geográfico estamos falando de um conjunto bastante complexo e amplo. Enquanto parcela desprovida de trabalho objetivado, o espaço obviamente não é produto do processo de trabalho, nem tão pouco mercadoria, seu papel se restringe ao de meio de produção em potencial, o que também o diferencia de outra mercadora. Qualquer outra mercadoria deve conter trabalho objetivado para que possa existir concretamente como meio de produção, o espaço não. O espaço geográfico é produto específico, pois é sempre incondicionalmente, meio de produção. Essa condição faz com que no processo de trabalho o que entra originalmente como meio de produção seja o dado físico e o que sai desse processo seja o espaço, já agora um produto de relações sociais determinadas. Portanto, se por um lado ele é originalmente premissa do processo de produção, por outro é seu resultado, formando uma unidade indissociável. Em outras palavras, num primeiro momento histórico o meio natural é um dado que será transformado pelo processo de trabalho. Exemplificando, podemos dizer que os originais Campos de Piratininga se transformaram no espaço metropolitano paulista. Historicamente a produção do espaço cada vez mais se vê distanciada do meio natural como ponto de partida. A produção do espaço pode advir tanto da relação da sociedade com a natureza, como da relação entre a sociedade e um espaço anteriormente já produzido. Na medida em que se foi desenvolvendo o processo histórico da humanidade foram sendo produzidos espaços a partir de espaços anteriores, numa cadeia sucessiva, uma vez que se trata de uma produção histórica ininterrupta em que tanto o espaço quanto a sociedade são modificados na relação. Numa sequência histórica de produção espacial ininterrupta teríamos: natureza - espaço1 - espaço2 - espaço3...
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Quando o espaço como produto do processo de trabalho sai desse processo e entra novamente no processo de trabalho como meio de produção é que falamos de segunda natureza. Isto é, quando o meio geográfico incorpora trabalho passado, cristalizado. O espaço como mercadoria é produto, resultado de uma determinada atividade produtiva útil e complexa. É a combinação de dois elementos, o trabalho e a natureza num primeiro momento histórico e entre o trabalho e o espaço já produzido, num segundo. Neste sentido é que falamos que o espaço geográfico ao mesmo tempo que é produto, pode também ser seu pressuposto; isto é, meio de produção. Por exemplo, a avenida Paulista tanto quanto a Rebouças, atualmente importantes artérias de circulação urbana sofreram processos de transformação distintos. Na Paulista os antigos casarões e finas residências se metamorfosearam em edifícios modernos, com predominância da atividade financeira coexistindo ao lado das restantes mansões residenciais, às vezes com novas funções. No caso da Rebouças, a paisagem não se vê totalmente transformada. As atividades do chamado terciário se localizam nas antigas residências que tiveram jardins diminuídos devido às obras de alargamento da avenida. Novas funções aí se redefinem, não são mais mansões residenciais, hoje a avenida tem um novo papel na divisão espacial do trabalho determinado pelo desenvolvimento da metrópole paulista. Para a produção desses dois espaços citados, a Nova Paulista e a Nova Rebouças contaram como meio de produção a Velha Paulista e a Velha Rebouças. Isso que dizer que a produção desses novos espaços significa o consumo dos espaços produzidos anteriormente. Esses espaços se redefinem em função de sua inserção no espaço urbano metropolitano. Percebe-se que o processo de produção do espaço é imediatamente um processo de consumo, pois ao mesmo tempo em que é espaço produzido ele também é consumido. A produção se dá e se realiza pela realização concomitante do consumo, uma vez que o processo de produção é mediado pelo processo de consumo. Para que se realize esse processo de produção é necessário que se estabeleça a apropriação das condições de produção, que passa pela apropriação da natureza como condição primeira de trabalho. O modo pelo qual se efetiva a apropriação é determinado pelas condições específicas e históricas de uma dada sociedade. Isto quer dizer, por exemplo, que numa comunidade tribal a apropriação é coletiva, enquanto que na socie321
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dade capitalista a apropriação é privada. Portanto, o processo de produção capitalista do espaço significa também processo capitalista de consumo que se traduz pela propriedade privada do espaço. A apropriação do espaço se realiza através da forma material contida nele. Essa materialização configura a paisagem, quer seja ela muito ou pouco construída. Em ambos os casos tem como substrato comum a terra. Através da renda da terra é que se expressa o valor do espaço, seu preço e consequentemente sua apropriação significa também propriedade da terra. A renda da terra é então a realização econômica da propriedade territorial a qual subtrai os valores gerais criados pela sociedade. Neste sentido, “a apropriação do espaço através da propriedade da terra revela a apropriação de um produto de relações gerais da sociedade que ultrapassa a simples expropriação da forma” (CARLOS; LENCIONI, 1980, p. 302). Portanto, a produção capitalista do espaço esbarra fundamentalmente em duas ordens de contradições: a primeira, quando os proprietários de terra se colocam em antagonismo com os capitalistas; e a segunda, decorrente da tensão entre o desenvolvimento do consumo socializado do espaço (consumo da cidade) e a privatização da propriedade da terra. Apresentamos no presente texto algumas das questões que julgamos importantes na introdução à discussão da temática como uma contribuição ao espírito crítico que deve permear a atividade de todos nós. Esse texto tem, portanto, um caráter muito mais de abrir perspectivas para as discussões, do que de apresentar ideias acabadas.
Referências CARLOS, A.F. A E LENCIONI, S. A apropriação capitalista do espaço. In: 4º ENCONTRO NACIONAL DOS GEÓGRAFOS. Anais... Rio de Janeiro: AGB, 1980. FREUD, S. O Futuro de uma ilusão. In: Freud. São Paulo: Ed. Abril, 1978. (Série Os Pensadores) HARTSHORNE, R. Questões sobre a natureza da geografia. Rio de Janeiro: IPGH, 1969, p.88.
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Olhos de ver, ouvidos de ouvir: os “ambientes malsãos” da capital da República1 Jorge Luiz Barbosa Admirava-me que essa gente pudesse viver, lutando contra a fome, contra a moléstia e contra a civilização; que tivesse energia para viver cercada de tantos males, de tantas privações e dificuldades. Não sei que estranha tenacidade a leva a viver, porque essa tenacidade é tanto mais forte quanto mais humilde e miserável. (Lima Barreto. Recordações do escrivão Isaías Caminha).
Em junho de 1892 e sob as luzes do palco do teatro Apolo, estreava com grande sucesso a revista do ano, O Tribofe, obra cênica do genial Arthur Azevedo, onde se passavam em revista – “trocando a sátira eterna pela pilhéria moderna” – os acontecimentos do segundo ano da República2. A partir de um argumento central ingênuo (as peripécias de uma família do interior que vem à procura - na capital federal - do noivo desaparecido da filha), desfilam, ao longo dos 12 quadros de O Tribofe, o arrivismo dos especuladores, os costumes pseudoaristocráticos das classes abastadas, as dificuldades e atribuições da população, o “arrolhamento’” da imprensa de oposição, o (des) governo republicano etc. Entre tantos encontros insólitos, envolvidos com o humor e a ironia inconfundíveis de Arthur Azevedo, surgem duas personagens bastante conhecidas na cidade do Rio de Janeiro: —O tempo está refrescando. É tempo de me pôr a panos. Vou-me embora. Oh, Varíola! Chegas agora. —É verdade, Febre Amarela. (Os personagens cumprimentam-se e prosseguem a conversa) Febre Amarela: Parto Varíola: Venho substituir-te. Foste feliz? Febre Amarela: Felicíssima. Varíola: Qual tal a Inspetoria de Higiene? Febre Amarela: Boa. Varíola: E a Intendência Municipal? Este texto foi originalmente publicado em ABREU, M.A. Natureza e Sociedade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro, 1992. p. (Coleção Biblioteca Carioca). 2 Todas as citações referentes à peça encontram-se em Valença (1986). 1
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Febre Amarela: Ótima. Varíola: Ainda bem. Até a vista. Febre Amarela: Sê feliz. (VALENÇA, 1986)
Se o insólito diálogo acima reproduzido provocou risos na plateia que lotava O Apolo em junho de 1892, certamente provocou muito mais desgraças na população que lotava os ambientes insalubres da capital da República. Em 1891, a (re)visita da febre amarela e da varíola coincidiu com a expansão da malária e da tuberculose (tristemente já tradicionais na cidade), elevando a taxa de mortalidade para 52 pessoas em cada mil habitantes. Acontecimento particularmente trágico que, em revista n’O Tribofe, possuía referências obvias à incapacidade do poder público de solucionar um dos sinais mais evidentes da crise ambiental na capital República: a insalubridade. Celebrada pelo apodo “caixão mortuário”, a cidade do Rio de Janeiro atravessava, nas últimas décadas do século XIX, uma das suas mais graves e prolongadas crises ambientais e, diga-se a, bem da verdade, sobretudo no que se refere à questão da insalubridade, objeto permanente de debates e de inúmeros projetos por parte das “autoridades” intelectuais e públicas desde o período imperial. A insalubridade, sem dúvida, era uma referência unânime entre as autoridades, porém as explicações de suas causas variavam. O clima excessivamente quente, a umidade dos solos, a existência de pântanos, o ar impuro (contaminado por “infecções miasmáticas”), faziam parte do imenso rol das explicações das condições insalubres da cidade. Entre as diversas tentativas de explicação das causas da insalubridade, um trabalho nos chama particular atenção. Referimo-nos à tese “Um ponto de ciências médicas” (PIMENTEL, 1884), apresentada na Faculdade de Medicina. No trabalho em questão, o autor indagava, aos seus pares quais seriam os lugares da cidade mais favoráveis à saúde e, por consequência da interrogação primeira, quais seriam os mais insalubres. Através de um mapeamento pretensamente científico concluía-se que as diferenças (geográficas?) de insalubridade existiam em função “ [...] da educação, dos costumes, da demasiada tolerância, da nojenta dos escravos, da sua fétida e viscosa respiração, das valas, dos monturos nos quintais, dos imundos regos das ruas amontoamentos de imundícies [...]”(PIMENTEL, 1884).
Embora “Um ponto de ciências médicas” estivesse revestida de uma série de preconceitos, inclusive personificando (no escravo) uma das causas dos ambientes malsãos, eram inegáveis as diferenças das condições de salubridade na cidade: 324
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Na cena II do quadro segundo de O Tribofe, três personagens estão à procura de casas para lugar. Estes encontram um proprietário e... O Proprietário: Bem, como eu não sou um estabelecimento legalmente autorizado, dou uma indicação por três mil-réis. Mota: Guarde-a. Vieira: Dispenso-a. A Senhora: Aqui tem os três mil-réis. A necessidade é tanta, que me submeto a todas as patifarias. O Proprietário (muito calmo): Patifaria é forte demais..., mas como a senhora paga... A Senhora: Vamos. O Proprietário: A minha casa é na Praia Formosa. Mota e Vieira: Que horror. O Proprietário: É um sobrado com janelas de peitoril. Os baixos estão ocupados por um açougue. A Senhora: Oh! Deve haver muitos mosquitos. O proprietário: Mosquitos há em toda parte. Sala, três quartos, sala de jantar, despensa, latrina na cozinha, água, gás, tanque para lavar e galinheiro. A Senhora: Tem banheiro? O Proprietário: Terá, se o inquilino o fizer. A casa foi pintada e forrada há dez anos; está muito suja. Aluguel, duzentos mil-réis por mês [...] A Senhora: Com os três mil-réis que me roubou, compre uma corda e enforquese. (VALENÇA, 1986)
A “pilhéria moderna” busca retratar as dificuldades vividas pela população diante da escassez de moradias e do oportunismo dos proprietários, porém nos revela pistas interessantes para analisar as condições socioespaciais da questão da insalubridade no período em foco.
Na Praia Formosa? Que horror ... Não é sem susto e asco que os personagens recebem a indicação do lugar onde se localizava a casa oferecida em aluguel. As praias que, então, eram circunvizinhas ao imenso aglomerado humano que caracterizava o território central da cidade, foram transformadas em notórios vazadores “naturais” de lixo e excrementos. Tal situação tendeu, ao que nos parece mais imediatamente, a se agravar com a rede de esgotos criada pela City Improvements Company3 que, nas palavras do engenheiro André Rebouças (1888), convertera a baía do Rio de Janeiro numa imensa cloaca. Inaugurada em 1862, sob a concessão do governo imperial, a The Rio de Janeiro City Improvements Company ocupou-se de forma exclusiva da construção e da exploração comercial da rede de esgotos. Esta empresa, criada pelo capital bancário inglês (Glenn and Mills Company), inicialmente alocou seus serviços na área central da cidade e daí ampliou-os para outras freguesias imediatamente próximas (Laranjeiras, Glória, São Cristovão, Engenho Novo, Rio Comprido e Catumbi). (REBOUÇAS, 1888)
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Contudo, as péssimas condições do saneamento urbano não emergiam apenas nas imediações da imensa “cloaca”, estavam presentes em outros lugares e, até mesmo, no curso da rede de esgotos: “O subsolo desta capital é úmido, poroso e saturado de matérias excrementícias pela nefanda rede de ruins canos de esgoto” (REBOUÇAS, 1888). Os serviços da City, além da qualidade discutível, atendiam de modo discriminador a população da cidade, sobretudo quando se referia às instalações dedicadas às habitações coletivas. Por outro lado, o monopólio do serviço de esgotos, assegurado pela concessão do Estado impedia qualquer tipo de interferência da população quanto à melhoria, conserto ou ampliação das instalações: Os representantes da companhia (The Rio de Janeiro City Improvements Company, Limited) previnem aos moradores desta capital que, na forma dos contratos e posturas vigentes, ninguém senão a companhia, tem o direito de construir quaisquer obras de esgoto, adicionais ou extraordinárias, sobre seus encanamentos e alterar ou reconstruir as existentes, sob pena de multa e demolição das mesmas obras e mais efeitos, à custa do infrator. (TRIBUNA OPERÁRIA, Ano I, n. 15, 1º/01/1900)
As valas, os imundos regos nas ruas, os amontoamentos de imundícies, colocados em evidência pelo discurso médico-higienista, reproduziam-se em determinados lugares da cidade, e eram tão reais como a precariedade do saneamento básico que, ao nascer sob o signo do lucro privado, jogavam no limbo zodiacal o sentido de bem público do saneamento. Tal como a Praia Formosa, a Zona Portuária, a Gamboa, a eufemística Saúde, a Cidade Nova e as freguesias centrais da cidade poderiam também despertar o mesmo horror dos personagens de Arthur Azevedo. Eram lugares que recebiam o selo ideológico de malsão, conferido pela arrogância da cientificidade. Alguns desses lugares foram inclusive, matéria para projetos irrealizados de saneamento e urbanização. Porém, as epidemias, a cada ano que seguia continuavam a entoar um réquiem.
A necessidade é tanta... A demanda por habitações e a especulação dos aluguéis, em revista na cena II de O Tribofe, exprimiam um movimento real que se agudizava na capital da República. Movimento este que possuiu, entre as suas expressões estruturais, o desequilíbrio entre a oferta de habitações e o rápido incremento demográfico na cidade - a população urbana quase duplicou entre 1872 e 1890, passando 326
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de 226 mil a 552 mil -, sobretudo em função da crise da lavoura cafeeira no vale do Paraíba fluminense e da decomposição do escravismo mercantil, impulsionadoras da migração campo-cidade4. A cidade do Rio de Janeiro, apesar da crise do seu Hinterland ainda era o principal centro comercial e financeiro, além de experimentar o desenvolvimento das atividades manufatureira e industrial. Todavia, era incapaz de abrigar o enorme influxo populacional, corroborar o aumento de subempregados que já vicejavam na cidade.5 Os níveis de precariedade e de indigência a que estavam submetidos os proletários da cidade reproduziam-se nas condições do seu espaço-moradia. Mota, Vieira e a Senhora, personagens em busca de habitação, são pessoas de posses, representantes típicos da classe média urbana e a eles é oferecida em aluguel uma casa de vários cômodos (com exceção do banheiro - aí talvez residisse a única cáustica de Arthur Azevedo em relação às condições de higiene da cidade). No entanto, aos “sem eira nem beira”, que se multiplicavam na cidade, eram oferecidas as casas de cômodos as estalagens e, sobretudo, os cortiços. Nos lugares malsãos – zona portuária, Gamboa, Saúde, as freguesias centrais, Cidade Nova etc. – comprimia-se a imensa população que trabalhava ou vagava em busca de um trabalho ocasional. E, dada a concentração das atividades econômicas no Centro da cidade, a alternativa desses homens pobres era buscar também ali o abrigo para si e suas famílias: São as ruas da Cidade Nova, da Gamboa, da Frei Caneca (que sempre foram habitual residência da gente pobre) as que hoje continuam a ser procuradas [...] [pelos] trabalhadores, carroceiros homens ao ganho, carroceiros, caixeiros de bodegas, lavadeiras, costureiras de baixa freguesia, mulheres de vida reles.6
A íntima associação trabalho-moradia limitava a mobilidade territorialurbana dos trabalhadores. Acrescentar-se-iam ainda, as dificuldades de arcar com os custos dos transportes, que obrigavam as parcelas mais empobrecidas da população a fixarem-se nas freguesias centrais da cidade. Embora as casas de cômodos, estalagens e cortiços estivessem marcadas pelo estigma de anti-higiênicas e fossem definidas como antros de promiscuidade, estas não eram redutíveis a esses aspectos marcantemente ideológicos. As habitações coletivas representavam formas espaciais de captura de rendas É preciso acrescentar a contribuição da imigração estrangeira. Em 1890, 28,7% da população da cidade tinham sua origem na imigração estrangeira. O Censo de 1872 apontava a existência de 80.717 “pessoas sem profissão definida”. Esse número aumentaria para mais de cem mil em 1890 e, em 1906, para mais de duzentas mil pessoas. 6 BACKHEUSER, E. Habitações populares. Relatório apresentado ao Exm. Sr. Dr. J.J. Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1906. apud. Benchimol (1982). 4
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por parte de seus proprietários - de “muitos crachás, muitos brasões d’armas, muitos Cresus” -, aproveitando-se da escassez de moradias na cidade. Para seus ocupantes estas formas espaciais representavam as alternativas precárias de moradia diante da degradação vivida no limitado “mundo do trabalho” que se refletia nas suas condições de reprodução social.
A Casa foi pintada e forrada há dez anos; está muito suja... A especulação imobiliária confessava sua lógica perversa no palco do teatro Apolo. Diante da escassez das moradias, os proprietários ofereciam seus imóveis em condições precaríssimas e eram poucos aqueles que podiam sugerir aos especuladores que comprassem uma corda e... As formas precárias das habitações nas freguesias centrais não só exprimiam as condições aviltantes a que estavam submetidos os proletários da cidade, como também confessavam o arranjo espacial consolidado na última década no século XIX. Palacetes de feição afidalgada, por certo residências nobres nos tempos da Colônia ou do Império, estendidos pelas ruas do Camerino, Barão de São Félix, Visconde de Itaúna, Riachuelo e um milheiro de outras, recobrem com seu aspecto agigantado a negra miséria de uma população enorme.7
Ao longo das últimas décadas do século XIX as “famílias aristocráticas” empreenderam um movimento de distanciamento da urbe primordial. Fugindo do Centro congestionado e insalubre, as classes abastadas construíram seus solares na Glória, no Catete, em Botafogo, Vila Isabel, Tijuca..., expandindo a fronteira urbana para além da urbe primordial. Tal movimento, porém, não configurava uma mera mudança de hábitos e gostos da (pseudo)aristocracia carioca. Suas razões mais recônditas devem ser buscadas num conjunto de determinações, cujo eixo principal é a própria decomposição do escravismo mercantil e a consequente transferência do sentido da propriedade da pessoa do escravo para a terra. Essa transparência respondia, no urbano, pela criação de um mercado de terras urbanizáveis e a elevação das rendas territoriais do espaço construído. E, na cidade do Rio de Janeiro, os capitais acumulados na esfera comercial, bancária e até mesmo os de origem agrária, eram destinados à aquisição de terras urbanizáveis, sobretudo a partir da expansão dos carris que permitiam o acesso a distintas e, até então, distantes partes da cidade: 7
Backeuser (1906) apud Benchimol (1982)
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[...] os bondes não só vieram reforçar as características existentes como passaram também a determinar a evolução de grande parte da cidade, tornando-se, assim, veículo importante da criação, acumulação e reprodução do capital nacional e estrangeiro. O capital nacional, proveniente de grande parte dos lucros da aristocracia cafeeira, dos comerciantes, industriais e financistas, passou a ser aplicado em propriedades imóveis, nas áreas servidas pelas linhas de bonde. Já o capital estrangeiro teve condições de se multiplicar, pois controlava as decisões sobre que áreas seriam servidas por bondes e onde deveriam ser criados novos bairros (neste caso em associações com empresas nacionais), além de ser o responsável pela provisão de infraestrutura. (ABREU, 1987, p. 43- 44)
Como consequência da apropriação e valorização fundiária, os preços dos terrenos, bem como os dos aluguéis, elevaram-se e excluíam a “população de baixa renda” do mercado imobiliário. Embora as fronteiras urbanas da cidade ganhassem expansão, através da construção de bairros de nítida conotação residencial, a população mais pobre e oprimida aglomerava-se nas freguesias centrais, tendo como alternativa possível as habitações coletivas. O monopólio da terra urbanizável em associação aos monopólios dos serviços de infraestrutura e transportes edificaram uma valorização diferencial do solo urbano, que demarcava no arranjo espacial da cidade o seu caráter de classe correspondente às “leis do mercado”. O distanciamento das classes abastadas do núcleo central da cidade e a valorização diferencial da terra urbana criaram o seu contrário: a degradação das residências de aparência “afidalgada” e a proliferação dos cortiços nas freguesias centrais da cidade. Não há dúvida de que havia na capital da República lugares salubres e insalubres, porém suas causas fundamentais não eram aquelas definidas em “Um ponto de ciências médicas”.
Oh! Deve haver muitos mosquitos... As habitações coletivas, em especial os cortiços, foram eleitas pelo discurso médico higienista como o mais “repugnante foco de pestes” que assolavam a cidade. “Pocilgas imundas”, “antecâmaras da morte”, “antro de promiscuidade” eram os títulos nada lisonjeiros que prefaciavam as campanhas em prol da extinção das habitações coletivas, consideradas como as principais responsáveis pelo quadro de insalubridade da capital da República A tolerância das “autoridades” em relação à existência dos cortiços reduzia-se, evidentemente, quando os surtos das pestes se agravavam na cidade. Contudo, passaram a assumir maior grau de preocupação, na medida que as condições de insalubridade se desdobravam em ameaças à formação do mercado de força-de-trabalho: 329
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Sem levar em conta considerações muito respeitáveis de caráter humanitário, basta atender que a questão é daquelas que não só afetam as rendas públicas e a nossa expansão industrial, como também concorrem para retardar o crescimento de nossa população operária. De fato, nesses melos malsãos, não só ela se estiola e diminui a sua defensiva orgânica, quando não desaparece no período mais produtivo da atividade humana, como cria uma solidariedade entre a população propagando, ainda que inconscientemente, moléstias evitáveis 8.
Para a rationale das personas do capital, a insalubridade da cidade que deprimia o crescimento da população operária e reduzia a sua capacidade produtiva, exigia formas de controle dos “meios malsãos” através da vacinação, do saneamento e da construção de casas higiênicas. Contudo, o controle dos “meios malsãos” não era exigido apenas pelos dados objetivos da insalubridade. As habitações coletivas, é importante recordar, estavam também marcadas como “antros” de vagabundos, ladrões e meretrizes, “gente sem lei e sem ordem” que espalhava outras moléstias perigosas à “laboriosa população” da cidade: a ociosidade e a indisciplina. Portanto, o controle dos cortiços e estalagens possuía conotações nem sempre explícitas no discurso das autoridades do Estado e da Academia. No entanto, como afirmava o proprietário indiferente em O Tribofe “– Mosquitos há em toda parte”... Os cubículos sem ar, sem luz e habitados por gente pálida e doentia, denunciados pelos higienistas, não eram uma realidade exclusiva da precariedade das habitações coletivas. Nas manufaturas que se multiplicavam no velho casario das freguesias centrais, as condições não eram nada salubres. É o que podemos perceber na carta enviada à Inspetoria Geral de Higiene pelo Clube Protetor dos Chapeleiros: É demasiado o sofrimento dessa classe, que é obrigada, em uma estação tão calmosa, como atravessamos, rodeada de diversas moléstias [...] a trabalhar ao pé de grandes maquinismos movidos a vapor, em espaço acanhadíssimo, sem nenhuma entrada para o ar e mesmo sem luz do dia, aglomerados assim os operários e em pleno contato uns com os outros, porque as atuais fábricas de chapéus, todas edificadas em ruas estreitas e em edifícios pequenos e impróprios, não têm espaço para a distância dos mesmos operários; o vapor que move os maquinismos e o espaço um dos outros, e finalmente, não podendo ventilar suas oficinas, porque estão rodeadas de outros edifícios que não permitem, por exemplo, a abertura de janelas e outras medidas de pura higiene. (JORNAL ECHO POPULAR. Ano I, 22/03/1890)
Observadores mais atentos da cidade não deixavam de notar as moçoilas Trecho do parecer de Lima Azeredo apresentado ao Ministro dos Negócios do Interior e da Justiça (1905) apud Lobo e Carvalho (1989, p.18).
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pálidas e cheias de olheiras confinadas em “palácios retalhados em cubículos, muitos deles com compartimentos mostrando divisões de aniagem ou tabiques [...] sem ar e sem luz” (EDMUNDO, 1956 p.207), onde bordavam e cerziam roupas que jamais vestiriam. A exploração brutal nas manufaturas não fazia distinção de sexo nem de idade. O jornal Echo Popular (22/03/1890) denunciava as “fábricas de chapéus”, afirmando que estas eram [...] consumidoras de tantas vidas, que vão perdendo o vigor, extinguindo lentamente a existência pela acumulação de diversas moléstias adquiridas em meio tão infeccioso, emprega-se número superior a mil operários e, entre estes, conta-se com grande número de mulheres e crianças, jovens, que procuram trabalho honrado e lícitos meios de subsistência, mas que, se não velarem pela saúde dessa .classe, principalmente desses entes na flor dos anos, cotidiano, em breve serão inutilizados de ganhar o pão cotidiano, como já tem acontecido até hoje a grande número de membros dessa classe. (JORNAL ECHO POPULAR. Ano I, 22/03/1890).
Se, nas manufaturas, as condições ambientais eram precárias, nas indústrias modernas – símbolos do progresso e da civilização – as condições não eram menos dramáticas. Nas fábricas têxteis, o setor de ponta da indústria carioca e brasileira, os trabalhadores estavam submetidos a ambientes sem arejamento, “saturados de poeiras e temperaturas superiores a 38°C”, e sendo obrigados a utilizar as terríveis lançadeiras de chupar que provocavam diversas infecções pulmonares (também conhecidas como “doença das lançadeiras”). No relatório da Liga Brasileira contra a Tuberculose de 1909, constava que os “operários e artistas” (sobretudo das fábricas têxteis) representavam 25% dos óbitos provocados pela “peste branca”. Era correto afirmar que as habitações coletivas não preenchiam os mínimos requisitos de higiene e seus proprietários eram indiferentes à população que se abastecia de água “em cacimbas” e geralmente contaminadas por “toda sorte de imundícies”. Entretanto, nas indústrias modernas, os trabalhadores também conheciam a indiferença e a precariedade. É o que nos relata, em tom indignado, um dos operários da Fábrica Aliança: A água existente em uma caixa da fábrica que é depositada por meio de uma bomba tocada a mão, não presta nem para lavagem de roupa; entretanto os operários são obrigados a bebê-la. Os operários da sala de teares pagam cada um a quantia de 1$00 mensais a uma pessoa para encher moringas particulares, d’água existente em uma mina nas dependências da fábrica. Na sala dos Massarogueiros, porém, o mestre Francisco Cardoso obriga os operários a utilizarem-se da água ordinária da referida caixa, suspendendo do serviço, sempre, quem não obedece sua ordem. (GAZETA OPERÁRIA, 26/10/1902)
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No espaço da moradia como no espaço da produção, homens e mulheres proletarizados viviam as mesmas condições de degradação física e social. Os trabalhadores inúmeras vezes ergueram suas vozes para denunciar as condições degradantes a que estavam submetidos, porém não eram ouvidos: Trabalhávamos aninhados no chão, como de castigo [...] os joelhos serviam de mesa, pois era sobre eles que colocávamos o prato de lata, quando os mestres ordenavam que já podíamos comer [...] Sem nenhuma conquista no campo da Assistência Social, nossa classe (a dos alfaiates), fértil em produzir tuberculoses, vivia o seu drama angustiante.(citado em RODRIGUES, 1979, p. 203-204).
Embora ainda bastante frágeis, as organizações operárias sindicatos, associações, clubes - empenhavam-se nas lutas pela melhoria das condições de trabalho. Os efêmeros Partidos Operários organizados na última década do século XIX destacavam nas suas pautas de reivindicações a construção, por parte do Estado, de habitações higiênicas para os trabalhadores. O empenho do poder público na construção de habitações para a classe trabalhadora nunca ultrapassou os limites da cessão de concessões às empresas particulares e poucas destas levaram adiante os seus projetos: mesmo aqueles que conseguiram edificar “habitações populares”, o seu número estava muito aquém da demanda e além das possibilidades econômicas da classe operária. Ainda abordando a questão da “construção de habitações higiênicas para os operários”, lembramos que as fábricas de tecidos também construíram casas para seus trabalhadores, sob o modelo vila operária. Contudo, as “vilas” foram edificadas com objetivos precípuos da vigilância e da disciplina, isolando as famílias das “moléstias” de ordem social transmitidas pelos “antros” de vida amoral e anti-higiênica da cidade: As casas são alugadas por preços exorbitantes e os moradores não têm liberdade, sem prévia licença da fábrica, de serem visitados por pessoas estranhas, o que não acontece, em parte alguma, por mais exigente que seja o senhorio [...] (GAZETA OPERÁRIA, 26/10/1902)
Construídas como mercados cativos de força-de-trabalho, as vilas operárias demonstravam ser muito mais formas de controle dos trabalhadores e apropriação de rendas por parte dos industriais do que exemplos do altruísmo patronal. É na Gazeta Operária (01/02/1903) que encontramos outro lado oculto da fachada higiênica das vilas operárias: Nesta localidade (Bangu), como sabem os leitores, só existem moradores operários da fábrica de tecidos; o número de moradores que não são da fábrica é insignificante. Pois bem, como todo mundo que conhece o Bangu não ignora, aquele lugar é doentio. As enfermidades de mau caráter ali existem sempre,
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porém a população local acha-se semanalmente alarmada com a mortalidade que ali se dá. O médico local, que é o da fábrica e que é pago pelos operários, só visitas a domicílio faz cinqüenta, e mais por dia; a farmácia da fábrica avia um considerável número de receitas diárias. Reina o pânico naquele povo, e não teremos que apelar para ninguém, porque quem sofre são os operários; e os industriais, e a junta de higiene, o prefeito, governo, todos enfim, quantos tinham por dever olhar para estas calamidades não se incomodam, porque os operários não faltam.(GAZETA OPERÁRIA, 01/02/1903)
Os “ambientes malsãos” nem sempre eram identificados com unanimidade, mas é indiscutível quem eram os personagens que mais sofriam com as suas dramáticas consequências. Vítimas da degradação das condições de moradia e trabalho, os homens e mulheres pobres da cidade ainda estavam submetidos às extensas jornadas de trabalho, características do “sistema de suadouro” implantado tanto nas manufaturas como nas fábricas modernas, e aos baixíssimos salários que deprimiam suas condições de vida. Submetidos a viver na tênue fronteira entre a precariedade e a indigência, os trabalhadores da cidade do Rio de Janeiro lutavam diariamente contra a fome, contra a moléstia e contra a civilização. Olhos de ver, ouvidos de ouvir... Qual era a natureza dos “ambientes malsãos” da capital da República?
Referências ABREU, M.A. A evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLAN/RIO, Zahar, 1987. BARBOSA, J. L. Modernização Urbana e Movimento Operário. Dissertação (Mestrado) – Geografia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1990. BENCHIMOL, J. L. Pereira Passos − um Haussman tropical: as transformações urbanas na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Dissertação (Mestrado) – Planejamento Urbano e Regional. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1982. EDMUNDO, L. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Editora Conquista, 1956. LOBO, E. M. L.; CARVALHO, L. A. A questão habitacional operária, 1880 – 1930. In: LOBO, E. M. L. (org.) Questão habitacional e o movimento operário. Niterói: UFF, 1989. PIMENTEL, A.M.A. Um ponto de ciências médicas. (Tese) – Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia e Litografia de Moreira Maximino, 1884. REBOUÇAS, A. Revista de Engenharia, março de 1888. RODRIGUES, E. Alvorada operária. Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1979. VALENÇA, R. T. (org.). O Tribofe. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Fundação Casa Ruy Barbosa, 1986. Jornais consultados (Arquivo Nacional) Echo Popular, Ano I, 22 de março de 1890. Gazeta Operária, 26 de outubro de 1902. Gazeta Operária, 1º de fevereiro de 1903. Tribuna Operária, Ano I, n. 15, 1º de janeiro de 1990.
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olhos de ver, ouvidos de ouvir: os “ambientes malsãos” da capital da republica
alguns elementos para a discussão do espaço geográfico como mercadoria
a apropriação capitalista do espaço geográfico
dois breves ensaios sobre a produção social do espaço: um preâmbulo
entre as lógicas e as escalas da urbanização
a dialética entre percepção e concepção e seu rompimento no ciberespaço
tecnologia, sociedade e produção social do espaço:
urbanização extensiva e lógicas de povoamento: um olhar ambiental
o território em tempos de globalização o fato metropolitano – enigma e poder a (des)institucionalizacão das políticas regionais no brasil
algumas formulações teóricas sobre a produção de loteamentos residenciais populares em belo horizonte, brasil
teorias socioespaciais: diante de um impasse?
redes de informação, grandes organizações e ritmos de modernização
planejamento urbano no brasil: emergência e consolidação
da região à rede e ao lugar: a nova realidade e o novo olhar geográfico sobre o mundo
o planejamento: algumas considerações
nota introdutória sobre a construção de um objeto de estudo: “o urbano”