Mostra Imagens para a liberdade - Retrospectiva Orlando Bomfim, netto

Page 1




www.piquebandeira.com.br | contato@piquebandeira.com.br

produção

apoio

realização


organização Maria Ines Dieuzeide Vitor Graize

Centro Cultural Sesc Glória Vitória – ES 2018



O estado do Espírito Santo possui uma extensa e qualificada produção cinematográfica. A dimensão dessa produção pôde ser mensurada no livro Plano Geral: Panorama Histórico do Cinema no Espírito Santo, publicado pelo Serviço Social do Comércio (Sesc), no ano de 2015. Na ocasião, identificamos mais de 500 filmes produzidos desde as primeiras décadas do século XX até o ano em questão. Parte dessa produção, pelas dificuldades de armazenamento e preservação, perdeu-se no tempo e temos hoje apenas registros de exibições, frames, cartazes, resquícios. Nesse sentido, iniciativas de pesquisa, arqueologia audiovisual, restauro, digitalização e organização de acervos são extremamente valorosas e importantes. É o caso do projeto Acervo Capixaba, que restaurou e digitalizou parte da obra de Orlando Bomfim, netto, cineasta fundamental para a cinematografia realizada no Espírito Santo, pela capacidade de registro histórico, potência narrativa documental e síntese audiovisual de seu tempo. Diante das características de nossas salas de cinema, que trazem o anseio por uma programação de cinema qualificada e diversificada nas dimensões estéticas, éticas, narrativas, culturais e políticas, acolhemos essa produção. Oportunizá-la ao público numa mostra específica e em homenagem ao cineasta foi natural e uma imensa satisfação. Surge assim, em parceria com a Pique-Bandeira Filmes, a mostra Imagens para a liberdade - Retrospectiva Orlando Bomfim, netto. Para além da mostra, os filmes exibidos serão licenciados por um período mais extenso e apresentados também a outros públicos, como escolas e grupos diversos, além de compormos programações especiais de curta-metragem que fazem parte de nossas atividades regulares. Queremos ver a obra de Orlando Bomfim, netto seguir adiante, encontrando seu necessário público e trazendo à superfície aspectos profundos dessa terra tão rica que é o Espírito Santo. Desejamos força às iniciativas de pesquisa, restauro, digitalização e organização de acervos audiovisuais. Nossa história, nossas narrativas e nossas memórias precisam ser preservadas e mantidas vivas em nosso cotidiano. Que esta mostra seja um alento e traga potência aos novos realizadores capixabas. Vida longa e vigor ao nosso cinema! Centro Cultural Sesc Glória


9

APRESENTAÇÃO Maria Ines Dieuzeide e Vitor Graize

13

ENTREVISTAS

27

FILMES

43

ENSAIOS

45

Erly Vieira Jr. e Vitor Graize

Cinema para nos libertar Marcos Valério Guimarães

53

A invenção da cultura capixaba Sandro José da Silva

63

Liberdade em construção Kênia Freitas

SUMÁRIO


69

Fazer ver o invisível

73

Notas sobre a dimensão sonora dos filmes de Orlando Bomfim, netto

Bruno Galindo

Hugo Reis

79

Uma análise da fotografia de Douglas Lynch Fabio Camarneiro

85

Relatório do projeto Acervo Capixaba

91

ARQUIVO

Marcos Valério Guimarães e Vitor Graize

114

PROGRAMAÇÃO

118

CRÉDITOS


MARIA INES DIEUZEIDE é curadora da mostra Imagens para a liberdade. Doutora em Comunicação Social pela UFMG, é uma das curadoras do Cineclube Sorpasso e do Festcurtasbh (edições de 2014, 2017 e 2018). Trabalha na produção e edição da Revista Devires - Cinema e Humanidades, do PPGCOM-UFMG. VITOR GRAIZE é curador da mostra Imagens para a liberdade. Diretor e produtor audiovisual, assina a produção executiva do projeto Acervo Capixaba – Orlando Bomfim, netto.


Apresentação Maria Ines Dieuzeide e Vitor Graize

Neste emblemático 2018, que marca os 50 anos das diversas movimentações de 1968 – a tomada revolucionária das ruas na França e também o massacre de estudantes no México, a Primavera de Praga e também o AI-5 no Brasil, entre tantas outras coisas –, ainda enfrentamos o deliberado apagamento da memória dos povos violenta e continuamente oprimidos na história do Brasil: o genocídio indígena, a cultura escravocrata, a criminalização de movimentos sociais ou as tentativas de aniquilação das alteridades. É neste contexto que apresentamos a mostra Imagens para a liberdade, uma retrospectiva da obra de Orlando Bomfim, netto, cineasta que se dedicou ao registro sistemático de manifestações culturais do Espírito Santo que estão sempre em risco iminente de esquecimento. Mineiro de nascimento, Orlando Bomfim, netto mudou-se, na juventude, para o Rio de Janeiro, onde começou sua carreira no cinema. Tendo família capixaba, seu olhar foi atraído por aspectos da formação cultural e política do estado: os processos de imigração voluntária ou forçada, a luta pela preservação ambiental, as tradições de resistência dos músicos e cantadores. Assim, entre as décadas de 1970 e 1980, o cineasta firma residência no Espírito Santo, mantendo uma produção audiovisual de notável consistência temática e pesquisa formal. A série de documentários realizados nestes anos mostra-se atenta às possibilidades de registro, articulação e produção de memória oferecidas pelo fazer cinematográfico, resultando num conjunto contundente de imagens e sons que constituem não só um importante acervo do patrimônio cultural do Espírito Santo, mas também proporcionam reflexões acerca da história e do momento vivido no país. A partir do seu interesse em conhecer e registrar gentes, paisagens, festas e tradições, Orlando parece mesmo interessado em desvelar e intervir no contexto social e político no qual está imerso. Esta mostra nasce como um desdobramento do projeto Acervo Capixaba – Orlando Bomfim, netto, produzido pela Pique-Bandeira Filmes com coordenação de Marcos Valério Guimarães. O projeto, coerente contribuição ao esforço de memória empreendido pelo cineasta, restaurou e digitalizou sete filmes de Bomfim

9


realizados entre os anos 1975-1985, a partir de cópias em 35mm e 16mm que se encontravam depositadas no Arquivo Nacional (Rio de Janeiro) ou guardadas com o próprio autor.1 Compõem a coleção Acervo Capixaba os médias Tutti tutti buona gente, propriamente buona (1975) e O Bondinho de Santa Tereza (1977 – este o único não realizado no Espírito Santo, documentando os usos do emblemático transporte do Rio de Janeiro), e os curtas Canto para a liberdade – A festa do Ticumbi (1978), Mestre Pedro de Aurora, pra ficar menos custoso (1978), Itaúnas desastre ecológico (1979), Augusto Ruschi Guainunbi (1975-1979) e Dos Reis Magos dos Tupiniquins (1985).

10

A partir desta coleção recuperada pelo projeto, grande parte dela desconhecida do público contemporâneo, idealizamos a mostra Imagens para a liberdade, que reúne os primeiros filmes à produção mais recente do cineasta, apresentando uma retrospectiva com 13 títulos. Além dos sete filmes restaurados, exibiremos suas duas únicas ficções, Status 69 – A gente que a gente vê (1969)2 e Linhas paralelas (2010), e dois documentários que continuam debruçados sobre os temas de interesse do cineasta: Casaca (2013), que resgata a história deste típico instrumento musical do estado, e A história oculta (2012-2014), elaboração memorialística da história de seu pai, Orlando Bomfim Jr., jornalista desaparecido político durante a ditadura civil-militar no Brasil. Por fim, incluímos também dois curtas que, não realizados por Bomfim, oferecem possibilidades de expandir o entendimento sobre esta obra: Receita artesanal (1988), dirigido por Douglas Lynch (fotógrafo que trabalhou com Orlando em todos os filmes produzidos durante as décadas de 1970-80), que se volta para a tradição dos pescadores capixabas e das paneleiras de Goiabeiras, e A palavra do autor (2018), de Marcos Valério Guimarães, no qual Bomfim reflete sobre sua própria trajetória. Apesar do esforço de pesquisa e localização da filmografia completa do diretor, dois de seus documentários, produzidos para a TV Educativa do Espírito Santo na década de 1980, permanecem perdidos: As paneleiras do barro e Um inferno na ilha. Ainda assim, optamos por mantê-los referenciados entre os filmes do catálogo, de modo que este sirva de registro e instigue a continuação da pesquisa. 1. Neste catálogo, publicamos o relatório do processo de restauração, com informações acerca das matrizes, dos procedimentos técnicos e dos resultados. 2. Este, o primeiro curta de Orlando Bomfim, netto, não fez parte do projeto de restauração já que a cópia em película não foi preservada. A única cópia existente é uma digitalização precária que será exibida na sessão de abertura.

Maria Ines Dieuzeide e Vitor Graize


A reunião destes filmes, primeiro gesto retrospectivo de exibição da filmografia de Orlando Bomfim, netto, propõe que as obras incidam umas sobre as outras, gerando novas reflexões. Assim, optamos não por uma exibição cronológica, mas por sessões que podem estimular os diálogos entre os filmes, reunidos sob quatro eixos: Territórios, Cultura popular, Da terra para a história e Memória. Essas reflexões serão ampliadas nos debates, de modo que uma visada atual ao conjunto permita sua expansão e ressignificação crítica. Junto à exibição, a publicação deste catálogo pretende aglutinar uma fortuna crítica em torno de sua obra. Assim, reunimos ensaios inéditos e republicamos alguns textos e entrevistas que iluminam a carreira do diretor, com contribuições de Erly Vieira Jr., Marcos Valério Guimarães, Sandro José da Silva, Kênia Freitas, Bruno Galindo, Hugo Reis e Fabio Camarneiro. Com a organização do catálogo, estivemos movidos também pelo desejo de recuperar outros materiais produzidos em torno da trajetória do cineasta e reunimos, na seção Arquivo, alguns registros da atuação de Bomfim nas diferentes frentes nas quais trabalhou3 – pesquisa intensa e incompleta, mas que pode servir de estímulo para novos empreendimentos de recuperação e preservação de acervos. Esperamos, com isso, que a mostra Imagens para a liberdade possa contribuir com a difusão da obra de Orlando Bomfim, netto, ainda pouco conhecida do público local e nacional, embora o cineasta tenha desempenhado destacado papel na história recente do cinema brasileiro – não só por meio da realização audiovisual, mas também pelos espaços institucionais e de fomento ocupados por ele. Que possamos, em diálogo, construir novas miradas ao cinema e reconstruir histórias e compreensões sobre nós e nossa contemporaneidade. »

3. Vale destacar que Orlando Bomfim, netto dividiu a carreira entre a realização cinematográfica e a atuação institucional, presidindo a ABD nacional e do Espírito Santo (do qual foi também fundador) e dirigindo o Departamento Estadual de Cultura, entre outras atividades cineclubistas, de formação e de fomento da produção de cinema. As entrevistas publicadas no catálogo trazem mais informações sobre isso.

Apresentação

11


ERLY VIEIRA JR. é cineasta, escritor e pesquisador na área audiovisual. Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ (2012), é professor do Departamento de Comunicação Social e dos programas de pós-graduação em Artes (PPGA) e Comunicação (POSCOM) da UFES. Desde 2012, é um dos curadores do Festival de Cinema de Vitória, e em 2018 participou da comissão de seleção de longas-metragens do 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. VITOR GRAIZE é curador da mostra Imagens para a liberdade. Diretor e produtor audiovisual, assina a produção executiva do projeto Acervo Capixaba – Orlando Bomfim, netto.


Entrevistas Erly Vieira Jr. e Vitor Graize

A presença de Orlando Bomfim, netto no Espírito Santo é uma constante desde 1975. Primeiro como realizador, produzindo o média-metragem Tutti tutti buona gente, propriamente buona, e na sequência conciliando a realização de documentários com uma participação cada vez maior na política cultural do estado. Ao sucesso do filme sobre a imigração italiana, que lhe rendeu um Troféu Humberto Mauro em 1977, seguiu-se um mergulho intenso do cineasta nas questões capixabas e, no âmbito nacional, uma dedicação crescente à política cinematográfica para o curta-metragem. Em 1979 é eleito presidente da Associação Brasileira de Documentaristas (ABD), fundada em 1973. A partir de 1981, quando se instala definitivamente na cidade de Vitória, preside o Departamento Estadual de Cultura (DEC, atual Secretaria de Estado da Cultura) e depois, entre 1987 e 1990, dirige a TV Educativa do Espírito Santo (TVE-ES). Com voz ativa na mídia local e nacional, Orlando aparece com frequência nos jornais e revistas do período, nos quais divulga os debates que naquele momento pautavam o setor cinematográfico, especialmente a Lei do Curta (Artigo 13º da Lei Federal 6.281, de 9 de Dezembro de 1975). Suas ideias, projetos (alguns não realizados) e posicionamentos a favor do cinema brasileiro de autor e comercial estão representados com frescor e vitalidade nas páginas da seção Arquivo desse catálogo, que reúne alguns desses momentos. Orlando seguiu como referência. Em 2000, participou da fundação da seção capixaba da ABD nacional e foi o primeiro presidente da ABD&C/ ES. Nas décadas 00 e 10, participou ativamente do Conselho Estadual de Cultura, do Conselho Municipal de Políticas Culturais de Vitória e foi gestor da Lei Rubem Braga da Prefeitura de Vitória, entre outros filmes e envolvimentos. A importância de sua obra para a cinematografia brasileira e a sua influência no debate sobre a política cultural capixaba justificam e são alguns dos assuntos abordados nas duas entrevistas abaixo. Primeiro apresentamos um trecho da conversa realizada por Erly Vieira Jr. em 2002, nunca publicada, na qual aborda os primeiros anos da carreira do cineasta, sua atuação nas entidades representativas do cinema e do audiovisual e suas impressões sobre o cenário

13


capixaba quando aqui chegou. A segunda entrevista, realizada por Vitor Graize em 2010, é um recorte do material originalmente publicado na segunda edição da Milímetros – Revista do Audiovisual Capixaba, publicada pela ABD&C/ES, que busca tratar das questões estéticas e de produção que pautaram a realização dos filmes que Orlando Bomfim realizou entre 1975 e 1985 no Espírito Santo. É importante ressaltar que tanto em 2010 quanto 8 anos antes, alguns desses filmes ainda não tinham cópias em formato digital e haviam sido pouco exibidos nos anos recentes.

Entrevista inédita realizada por Erly Vieira Jr. em Vitória/ES, nos dias 27/08 e 04/09/2002.

14

Como foi seu primeiro contato com o cinema? Acho que ele é o mais comum de todos, o mais elementar. A questão visual me tomou desde criança. O grande barato na época eram as histórias em quadrinhos. Comprava duas, três revistas iguais para poder cortar, fazer tiras com os quadrinhos, e aí passava num carretel dentro de uma caixa de sapatos, com uma lâmpada dentro, ou uma vela, e fazia a projeção daquilo de noite, vinha a galera toda, a criançada. Tinha um projetor anunciado nessas revistinhas, ou gibis, uma propaganda que vinha na capa de trás, de um projetorzinho caseiro chamado Cine Barlan que já vinha com uns filmes, tudo artesanal. E junto com isso era evidente que tinha sessão de cinema no final de semana, principalmente no domingo, com os seriados e cinema brasileiro. Então, a história é essa. Depois, como eu não tinha máquina de filmar entrei na fotografia, que era outra paixão, e depois meu pai fez uma viagem à URSS, em 1955, e trouxe de lá uma filmadora 8mm, que temos lá em casa até hoje. E a partir daí comecei a fazer filmes em 8mm, depois veio o super-8, comprei uma câmera super-8 ótima, que tinha zoom eletrônico, e fui fazendo 8mm e super-8. Até que realizei meu primeiro curta em 16mm, que é o Status 69 - A gente que a gente vê, de 1969, e logo em seguida fui trabalhar na R.F. Farias, a famosa “Refefê”, dos irmãos Farias, e então entrei no cinema de longa-metragem em 35mm, participando da produção de uma quantidade enorme de filmes, de todos os gêneros. Qual era sua função na R.F. Farias? Como os irmãos, eu era uma espécie de diretor-geral, era uma produtora extremamente democrática em todos os sentidos. A gente recebia muitos roteiros

Erly Vieira Jr.


de diretores, o pessoal da área procurava a produtora com propostas, tinha muitos filmes de coprodução. Então, a minha experiência se abriu de uma forma muito grande, porque o contato permanente com todas as fases da produção de um filme era uma coisa do dia a dia. O Reginaldo [Farias] adorava escrever os roteiros dele lá dentro, ele queria que a gente conversasse muito, a gente discutia bastante o roteiro. Assim como outros diretores, como o próprio Arnaldo Jabor, o Antônio Carlos Fontoura, uma quantidade grande. O Roberto [Farias] também era extremamente meticuloso com o trabalho dele, uma pessoa apaixonada pelo trabalho com o cinema. Era um clima de muita troca, reciprocidade. Você ficou quanto tempo lá? Do final dos anos 60 até 1975. Em 1975 eu comecei a produzir com o apoio da “Refefê” o meu primeiro filme em 35mm, o Tutti tutti buona gente, propriamente buona, que desviou minha vida totalmente de caminho. Eu estava engajado na luta do cinema de longa-metragem, uma luta política pela exibição do cinema de longa-metragem no Brasil, uma luta contra as pressões do cinema americano, que já eram fortíssimas naquela época – num momento em que o Brasil tinha quase 40% do mercado, mesmo sendo muito combatido. E esse curta, o Tutti tutti, que foi um filme que me desviou dessa trajetória, o foi em questão da minha família, por parte de pai, ser toda do Espírito Santo – na época meu pai ainda não era desaparecido político, era um clandestino político no Brasil desde 1964. E também em função das revistas, principalmente a revista Veja, que publicou uma matéria sobre os 100 anos da imigração italiana que não tinha nenhuma foto do Espírito Santo, tinha umas quatro ou cinco linhas numa página em que se misturavam outros estados que tinham recebido alguma imigração italiana, e eu fiquei muito indignado com aquilo, era um absurdo. Tá certo que o Espírito Santo não era um estado muito conhecido, mas desconhecer que aqui foi um dos celeiros da imigração italiana já era um absurdo. O Espírito Santo praticamente iniciou, formalizou o processo de imigração italiana no Brasil, já havia italianos por aqui muito antes de 1875, vindos inclusive com quem estava encarregado de fazer a imigração oficial, que era o Pedro Tabachi [Pietro Tabacchi]. Então aquilo me deu uma indignação muito grande e eu já conhecia esse aspecto totalmente italiano da cidade de Santa Teresa, conhecia o trabalho do [Augusto] Ruschi, e decidi realizar esse filme para mostrar o tamanho, o gigantismo da imigração italiana. A partir daí eu realmente me apaixonei pelo Espírito Santo, pela cultura, por aquele movimento que era muito forte, mas ainda era muito enclausurado. As pessoas do Espírito Santo se desconheciam, e pra mim foi uma surpresa muito

Entrevistas

15


maior saber que aqui também não se tinha noção da dimensão da imigração italiana. Consegui material, consegui muita informação, acabei demorando muito para a elaboração do projeto, mas eu queria filmar durante as comemorações do centenário em 1975, e comecei a vir muito pra cá por causa das pesquisas desse filme. Em paralelo ao Tutti tutti, também comecei a fazer o filme do Ruschi [Augusto Ruschi Guainunbi], e conheci o Hermógenes Lima Fonseca, um homem da cultura popular, um intelectual de um brilho gigantesco, pois era capaz de perceber os movimentos populares em suas expressões máximas e era capaz de conversar com qualquer pessoa, e daquilo ali extrair as coisas mais bonitas e mais importantes. Com Hermógenes eu conheci o Ticumbi, o Mestre Pedro de Aurora, a vila de Itaúnas, Nova Almeida, que é outro cenário de riquezas. Eu viajei o Espírito Santo todo, fiz vários outros documentários, e aí não voltei mais, mudei pra cá em 1981 e fiquei direto.

16

De 1975 a 81, então, você estava lá e cá. Eu morava no Rio de Janeiro, a gente estava nessa época apertando os parafusos para a regulamentação da Lei do Curta. A ABD estava ganhando uma força enorme de articulação, já era, como é hoje, a maior entidade de classe do cinema brasileiro, nós tínhamos uma diretoria enorme, com centenas de associados. E como foi sua entrada na ABD? O curta já era um movimento muito forte. Já tinha a Jornada [de Cinema da Bahia], em Salvador, que era o maior centro de agitação do curta-metragem do Brasil, e foi durante muitos anos – as pessoas iam pra lá, muito diferente dos festivais de hoje, elas pagavam para ir pra lá, participar daquele movimento. E a ABD saiu de uma dessas reuniões em Salvador, em 1973, se constituiu oficialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo e depois foi se expandindo, e tornou-se um movimento importante, porque ao mesmo tempo que havia uma luta política contra a ditadura, tinha um movimento de luta política (não só nacional como internacional) contra o cinema norte-americano. A ABD era um movimento que congregava todos esses esforços, com uma vantagem sobre os outros: como a produção de curta-metragem era incontrolável, os filmes eram feitos de todas as formas. No cinema de longa-metragem, tudo poderia ser censurado. Outra das coisas importantes pela qual a ABD lutava era a questão da descentralização da produção, para que se fizesse cinema no Brasil inteiro. Essa era uma das lutas mais importantes, e é até hoje. Porque era importante pensar o país, fazer o país, colocar a cara do país no ar. Eu entrei em 1975, na formalização da ABD no Rio.

Erly Vieira Jr.


E quais eram as questões principais da época? A questão principal era a da regulamentação da Lei do Curta. Já existia essa luta antes, o certificado de classificação especial, dado a filmes de até 10 minutos. Já existiam duas ou três distribuidoras no Rio, algumas em São Paulo, para exibição desses filmes antes do longa, mas não com a obrigatoriedade que conseguimos com a Lei do Curta, no Brasil inteiro. Você foi presidente em que ano? Eu participei de várias diretorias e fui presidente duas vezes, eleito em 79 e depois reeleito. Quando me mudei para Vitória, em 81, eu ainda era Presidente da ABD. Foi um período muito violento, em que a gente conseguiu concentrar a distribuição do curta na Embrafilme e regulamentar vários aspectos da Lei. Junto com isso tinha o problema das liminares dos exibidores contra a Lei, a gente teve muitos encontros com os exibidores. Também fazíamos exibições de curtas e debates nos bairros, e a gente procurava estimular isso no Brasil inteiro. E o Orlando realizador? Seu primeiro curta... Filmado na Rocinha. Era difícil ter acesso a equipamento. Aquele curta foi feito num dia, filmado com uma câmera emprestada. A gente trabalhava assim: não tinha moviola, então se montava em casa, com um abajur onde você olhava, como se fosse um visor frio, e contava pelos fotogramas, media o tempo, tantos segundos... O subtítulo de Status 69 - A gente que a gente vê parece um slogan... Na realidade é uma contradição, porque aquilo ali, a classe média ainda não via: a criança carente, o abandono das classes. O pobre já era um problema grave naquela época, era forte o conceito de uma sociedade excludente. Mas chamar atenção para o menor abandonado é uma coisa mais recente, vem na redemocratização do país. Houve até um momento, alguns anos atrás, em que se começou a pensar a questão do menor carente, mas naquela época [1969] não, então o título era uma ironia. Seus filmes de 1978 têm, nos créditos finais, dedicatórias a seu pai. A censura deixou passar sem problemas? Porque o texto é muito claro: “Desaparecido desde...”. Em muitas sessões dos meus filmes era comum as pessoas se levantarem e baterem palmas. Porque as pessoas compreendiam a questão do desaparecido político, era uma questão muito barra pesada. Agora, eu não botava aquilo pra Censura. Os filmes não iam com aquele crédito final pra Censura. Eu tinha

Entrevistas

17


que depois mandar pro laboratório, refazer, pois se mandasse pra Censura, eles cortavam, era inevitável. O curta tinha menos problemas com a Censura. Como a Lei não estava vigendo, só começou no final de 1977, houve um período grande em que as pessoas não colocavam o curta na censura porque não havia necessidade, quer dizer, você ainda não ia colocar o curta em cinemas comerciais. Então, as exibições eram feitas através do grande, do gigantesco movimento do cineclube, do circuito das universidades, das escolas, das associações de bairro, você conseguia driblar a Censura por esse aspecto. Você usava o curta-metragem como chamariz para o debate, juntava cinco, seis curtas com temáticas sociais ou filmes que mostravam realidades diversas do Brasil, seus vários aspectos, e na exibição se debatia, na realidade, a questão política do país. Vários curtas foram muito exibidos para conhecidos e tal, sem passar pela Censura. Por outro lado, como a própria Censura não tinha uma noção a respeito do poder do curta-metragem, eles também não tinham muita atenção para com os filmes.

18

Como eram os debates quando você chegou no Espírito Santo? O debate era muito bom. Me lembro que a primeira sessão que fiz do Tutti tutti aqui em Vitória foi no Cineclube Universitário, na inauguração do cineclube, em 1977. Mas eu já tinha feito sessões aqui em Vitória antes. A Adelzira Madeira, que era professora de Educação Física e responsável pelo folclore na Sub-reitoria Comunitária da Universidade Federal do Espírito Santo, organizou algumas mostras em escolas públicas, não só nas escolas municipais mas também estaduais, e essas mostras tinham uma receptividade muito grande. Nós fomos a quase todas as escolas de Vitória e algumas do interior. A gente falava rapidamente sobre o que era o filme, sobre cultura popular capixaba, depois exibia e você via crianças de sete a catorze anos que ficavam meia hora, uma hora, um pouco mais, conversando e levantando perguntas bastante pertinentes sobre o assunto. Então a gente fez muita exibição fora dos cinemas. O filme com exibição comercial não foi muito passado por aqui, que é a coisa mais curiosa que eu acho dessa história toda. Vitória era uma das cidades com mais cinemas na época, mas passaram o filme muito pouco por aqui. Tanto é que quando passaram o [Canto para a liberdade – A festa do] Ticumbi no Cine Glória teve até chamada no jornal, pelo fato do filme estar passando por aqui, com sessões sempre muito cheias. E o filme teve uma boa audiência. A exibição no estado foi muito boa por conta disso, de uma adesão de um grupo de pessoas, especialmente do movimento cineclubista, o Claudino [de Jesus], o Marcos Valério [Guimarães]. E isso foi muito gratificante. Mas o mais impressionante disso foram as exibições fora do estado,

Erly Vieira Jr.


recebi muitas cartas, muita gente que viu, queria saber onde era, porque pouca gente conhecia o Espírito Santo fora daqui. Então esses filmes causaram muita repercussão fora do Espírito Santo, uma recepção muito positiva. E o cinema no Espírito Santo nessa época, como estava a produção de filmes? Em 74 estava tudo parado. Vitória era uma cidade com muitos cinemas, as pessoas iam muito ao cinema mas, lamentavelmente, quando eu vim, não tinha ninguém fazendo cinema. A única pessoa a quem eu tinha acesso para conversar sobre cinema aqui era o Cláudio Bueno Rocha. Era um grande intelectual vindo do Rio, era amigo de Glauber e era uma pessoa que tinha uma cultura cinematográfica extraordinária. E aí você vai perguntar: não tinha o Amylton, que era o crítico de cinema? O Amylton [de Almeida] era um crítico de cinema totalmente voltado para o cinema estrangeiro, não tinha nenhuma afinidade com o cinema brasileiro, ele não via e não gostava. Isso para a gente era uma coisa insuportável, numa época de ditadura, numa época de fechamento, em que até o patronato lutava... ter um crítico de cinema que era radicalmente contra o cinema brasileiro, não por ver e não gostar, mas por não ver e não gostar. Então, o relacionamento com ele era bastante difícil, marcado pela agressividade, que era a marca costumeira dele, e por respostas minhas bastante agressivas, pela imprensa e assinadas. É curioso que o Amylton, nessa época, fez uns documentários, mesmo sendo para televisão, em 16 mm e com linguagem de cinema. Como isso era visto pelo pessoal de cinema daqui? Não era exibido como cinema. Tinha pessoas muito boas, várias pessoas dentro da TV Gazeta [afiliada da Rede Globo] preocupadas com a necessidade de mostrar o Brasil, mostrar o Espírito Santo, as realidades regionais. Mas era pouco exibido fora daqui e aqui não era visto como cinema. Era um produto de televisão, e o preconceito contra isso era muito maior que hoje [2002], quando temos festivais de vídeo e material feito para televisão que ganha salas de cinema porque se faz uma transferência para película. Mas a situação era diferente, a televisão ainda carregava aquela marca do Fellini: “Televisão é um eletrodoméstico” e essa produção acabou passando batida, com exceção do Lugar de toda pobreza (1983). E como era produzir no Espírito Santo em 1981? Eu vim pra cá não só por causa desses filmes, mas também por um lema que tínhamos na ABD, que era o seguinte: “O cinema deve ser feito a partir de sua própria realidade”, quer dizer, através das pessoas que moram, que vivem,

Entrevistas

19


convivem e vivenciam sua história, sua realidade, sua cultura. Então como eu estava muito mais engajado nessa questão cultural do Espírito Santo, mais do que no Rio de Janeiro, considerado o centro cultural do país, eu optei por vir pra cá por isso também, pela coerência com a produção. Lamentavelmente, a partir de 1982/83, o curta-metragem começa a não ser exibido mais no cinema, a Lei do Curta começa a ser torpedeada, os exibidores vão fazer ações e mais ações contra a Lei, no final da ditadura esse processo da redemocratização ainda não está claro, a Embrafilme vai perdendo forças, o movimento contra a Embrafilme é muito forte entre as empresas exibidoras, muitos mandados de segurança, aquelas coisas todas. Há também um movimento político muito forte em que o cinema americano consolida sua escalada pela hegemonia em todo o mundo. O cinema alemão cai totalmente, cinemas que eram muito fortes também caem, como o cinema tcheco, o polonês, o russo, há todo um processo terrível, e aqui, imagine, se a situação fora já era difícil, aqui se torna impossível. O último filme que faço é o Dos Reis Magos, que comecei a filmar antes mesmo de me mudar pra cá. Depois disso eu entro para a TV Educativa, em 1987. Aí se faz uma produção muito grande de documentários [para TV] no estado. 20

Em todos seus filmes da época quem assina a Direção de Fotografia é o Douglas Lynch, que anos mais tarde dirigiria um curta no Espírito Santo, o Receita artesanal. O Douglas, pouco tempo depois de eu me mudar pra cá, veio com mulher e filhos também, e fizemos uma série de outras coisas juntos. O Douglas era fotógrafo de cena. Na realidade, ele tinha um laboratório de revelação fotográfica no MAM [Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro] no tempo do Cinema Novo, mas era foto de cena, e o Douglas era um fotógrafo de estúdio. Na época da “Refefê” eu revelei muito still lá nesse estúdio do MAM. Ficamos amigos, ele falou que queria fazer foto de cena, eu o contratei para fazer dois ou três filmes no Rio, e quando eu resolvi fazer o Tutti tutti, ele nunca tinha feito fotografia de cinema, só de cena e estava muito a fim, e como ele era muito bom de fotômetro eu o trouxe para fazer a fotografia do Tutti tutti e nós acabamos fazendo até o Dos Reis Magos (1985) e parte do As paneleiras de Goiabeiras [1983, lançado com o título As paneleiras do barro]. Sua equipe era pequena: você, um fotógrafo, produtor, eletricista... no som vocês se revezavam (o Nagra até aparece no Mestre Pedro). E que tipo de luz vocês tinham? O básico. A gente tinha acho que quatro refletores, de 1000w e de 500w. Maquinária mesmo não tinha carrinho, prolongas, nada.

Erly Vieira Jr.


Voltando à política e aproveitando o fato de que você passou pelo longa e pelo curta nos anos 70, como foi a relação ABD e Embrafilme nas suas gestões (como presidente ou diretor)? Foi uma relação muito produtiva, a Embrafilme não tinha histórico de distribuição de curta-metragem, e nós conseguimos colocar na direção da distribuidora de curtas uma pessoa que tinha experiência na distribuição de curtas-metragens com o certificado de classificação especial, que era o Paulo Martins. A gente colocou também um curta-metragista, que era o Sebastião França, na parte de projetos especiais, que era a distribuição do curta fora do circuito comercial, inclusive com a venda no mercado externo. Foi uma relação de muita luta, porque a Embrafilme era voltada para o longa e essa distribuidora de filmes de curta-metragem era uma coisa à parte, mas o volume dela era muito grande. Os filmes tinham uma velocidade muito grande, você tinha como transitar com esses filmes pelo Brasil inteiro. Mas foi uma relação em que a gente lutou muito e conseguiu vitórias importantes, até o momento em que essa outra luta contra a Embrafilme começou a contaminar a própria Embrafilme. Quando o Roberto Farias saiu, a direção da Embrafilme deixou de ser uma direção ligada ao cinema brasileiro e começou a perder esse movimento de fortalecimento do cinema nacional. Então a gente começou uma luta diferente da anterior, uma luta de confronto com uma direção menos afinada com o cinema brasileiro e que, evidentemente, foi trazendo muitos prejuízos para o cinema de curta-metragem.

Entrevista realizada por Vitor Graize em Vitória/ES, e publicada na Milímetros – Revista do Audiovisual Capixaba nº 2, edição de Julho de 2010. A liberdade é um tema recorrente na série de filmes que você filmou no Espírito Santo nos anos 70. É impossível não relacionar esse aspecto ao período histórico que o país atravessava e, ainda mais especificamente, à história da sua família. De que maneira seu pai influenciou sua carreira, seus filmes? Talvez mais do que o desaparecimento político, meu pai me influenciou na paixão pela fotografia. No final dos anos 50, ele trouxe da União Soviética uma câmera super-8, o que facilitou ainda mais meu contato com as imagens em movimento. A família do seu pai é de Santa Teresa. Então você já tinha contato com a cultura dos imigrantes e com os personagens da história registrada em Tutti tutti buona gente, seu primeiro curta capixaba.

Entrevistas

21


Isso facilitou muito porque não só estabeleceu o contato institucional com a prefeitura, como também porque eu já conhecia muita coisa sobre Santa Teresa, já que minha avó, tias, primos moravam lá (e ainda moram até hoje). Por outro lado, eu já tinha pesquisado mais do que eles próprios em Santa Teresa conheciam. Eles estavam vivendo a vida normalmente, preparando uma grande festa para o centenário, mas aquilo não era novidade para eles. Mas para todo o resto do mundo era. Esse filme causou uma grande movimentação na embaixada italiana. Pessoas me pediram para mandar cópias para a Itália, inclusive.

22

E ele é construído muito a partir de arquivos. Tem uma primeira parte só de fotos. E o filme está a todo momento tentando identificar aquelas pessoas com os nomes, os rostos, buscando fazer retratos. É uma coisa curiosa. O fato de todo esse processo cultural ser desconhecido internamente teve um peso muito grande em mim. Fiquei muito chocado. Eu vinha de Belo Horizonte, uma metrópole; me mudei com a família para o Rio de Janeiro, que era o maior centro cultural do país, e encontro aqui uma situação que nem se eu fosse a pessoa mais criativa do mundo poderia imaginar encontrar: esse silêncio, essa falta de articulação interna do estado, as pessoas não se conhecendo, não conhecendo sua história. Esses fatos não eram reportados. Isso é tão grave que até hoje essas questões demandam muito esforço das pessoas para torná-las conhecidas, para que elas tenham realmente influência no processo de formação da identidade capixaba. Nos anos 70, as pessoas diziam “isso aqui é mais pobre que o Piauí”; era um desdém com o próprio estado muito grande. Então todos esses filmes têm muito essa carga de revelar aquilo que existia, essa coisa poderosa que era a imigração italiana; que era o trabalho do Ruschi, reconhecido no mundo inteiro, mas desconhecido aqui e até sendo estigmatizado; a síntese de Itaúnas, como o desastre ecológico, a luta anti-escravagista em Conceição da Barra, muito presente na época. E depois as Paneleiras. Em todos os filmes dessa série de documentários, temos sempre presente a narração over e eles também não se eximem em mostrar o entrevistadordocumentarista. Por que essas opções de linguagem? No mesmo momento em que eu filmava o Tutti tutti estava fazendo o Ruschi; da mesma forma, enquanto fazia o Pedro de Aurora, filmava o Itaúnas e o Ticumbi. Já o Dos Reis Magos tem uma aproximação diferente. Mas esses filmes têm não só o interesse de revelar, mas o de preservar. São duas coisas fundamentais porque naquele momento, nos anos 70, o Espírito Santo começava a receber o

Vitor Graize


impacto do desenvolvimento de Vitória, a capital do estado. Isso previa o fim dessas manifestações, dessas histórias. Na medida em que eram desconhecidas, se acabassem não ia ter grito nenhum e nem como recuperar – e isso aconteceu, muita coisa morreu, perdeu seu significado real. Essa linguagem teve muito disso. Há certa retirada de uma linguagem mais abstrata, ou de uma linguagem mais impactante do ponto de vista de alterar os enquadramentos ou a montagem, para evitar uma contaminação que tirasse a simplicidade e a essência da história como ela era contada, ou pelo menos como ela era vista. A necessidade de interferir o mínimo era fundamental. Tinha uma interferência política para permitir que houvesse a compreensão, por isso eles são assinados! Notadamente no Mestre Pedro de Aurora, e talvez em Augusto Ruschi Guainunbi, nota-se certa encenação, a preocupação do diretor com a construção das ações na tomada dos planos e na composição dos quadros. Esse modo de se fazer documentário se aproxima de uma formação mais clássica que já vinha sendo questionada pelo chamado cinema direto/cinema verdade. Essa era uma questão pra você nessa série sobre o Espírito Santo, havia esse debate promovido pela influência do cinema direto? Ou a noção assimilada era mesmo a preocupação em construir a narrativa pelo modelo clássico? A questão do som direto, a escola do cinema verdade e outras polêmicas esquentavam o momento no início dos anos sessenta e aumentaram muito com a chegada do cineasta sueco Arne Sucksdorff, que trouxe a primeira moviola plana e o primeiro gravador Nagra para o Brasil. Era contagiante. Havia o CPC da UNE e a vertigem das Reformas de Base. No caso, a minha ideia era de dar o máximo de voz para os personagens e suas movimentações. No entanto, logo no início das primeiras cenas, a luz do Nagra indicava falta de sincronismo ou uma flutuação. Parar tudo e buscar no Rio outro Nagra era impossível. A solução foi filmar como se estivesse tudo certo e buscar respostas mais curtas tentando segurar a sincronia. Dá para ver na entrevista com o Rogério e o Hermógenes [sequência de Canto para a liberdade – A festa do Ticumbi]. De qualquer jeito, procuramos manter todo o som direto possível e isso se vê não só nas entrevistas, mas nos ruídos e encenações. Na estética, há a movimentação com a câmera na mão e outros recursos, próprios do cinema direto/cinema verdade, e câmera no tripé quando eram representações organizadas para serem filmadas, mais de acordo com um cinema encenado. Sempre mantendo a forma real como eles se apresentavam, sem qualquer alteração de comportamento ou localização. A minha escolha se dava em função de, como falei, procurar trabalhar com o mínimo

Entrevistas

23


de contaminação da minha participação por conta da força e desconhecimento daquelas manifestações na época. Entendia que havia a necessidade de revelar e preservar. No Ticumbi, por exemplo, o auto está apresentado na montagem do filme com todas as partes da sua dramaturgia, que é composta de cinco atos, e na ordem como são encenadas, mas com inserções de espaços extra ritual e passagem de tempo. Assim, podemos ver o teatro em sua complexidade e as manifestações exteriores provocadas pela sua realização. É bom lembrar que quando filmei, nos anos 70, já havia um novo debate sobre a estética e se cobrava mais cinema, mais montagem (linguagem) e menos entrevistas e falação. O 16mm e o som direto sincronizado sem fio eram uma tentação muito próxima do super-8 e, mais tarde, do vídeo. Havia um roteiro pré-determinado, uma decupagem das cenas? Roteiro escrito, não. O que havia era o conhecimento do que era fundamental filmar para montar, revelar, preservar e a abertura para os acontecimentos.

24

Você se mudou para o Rio de Janeiro no final dos anos 60 e foi quando começou a produzir. Na mesma época, o Cinema Novo já era uma corrente majoritária e bastante influente. Essa linhagem estética do cinema brasileiro foi uma influência no modo como você buscou retratar a imagem do povo nessa série de documentários de fins dos anos 70? Me mudei para o Rio em 1956, no início da época mais politizada que o Brasil viveu e que era visível em todos os lugares. As ruas do Rio eram tomadas de debates de todas as correntes. O Cinema Novo era a abertura ideológica fundamental dos anos sessenta pra frente. Mas o cinema de entretenimento também era muito forte e representava uma outra luta: a de enfrentar o cinema americano ocupando os espaços e impondo a presença da nossa cara. O conceito principal era a necessidade de filmar e mostrar o Brasil e seu povo. O protagonista era o povo e sua voz. E filmar e ocupar os espaços de exibição era a palavra de ordem. Avançando um pouco no tempo, nos anos 90 você participou da organização dos primeiros festivais de cinema do Espírito Santo. Desde que eu vim pra cá existia a vontade de realizar um festival no Espirito Santo e de colocar a questão do cinema como relevante, dar a ela a importância que deveria ter. Iniciamos as conversas para criar aqui um pólo, e até aconteceram algumas tentativas que não prosperaram. Mas foi na pior época do cinema brasileiro, a partir da posse do [Fernando] Collor [em 1990] – que destruiu todo

Vitor Graize


o sistema institucional de apoio às atividades artísticas e culturais, inclusive o cinema –, que a gente conseguiu o apoio da Prefeitura de Vitória para promover um festival e criamos o Vitória Cine Vídeo. A ideia era organizar mostras, não era pra ser competitivo. A primeira foi sobre o centenário do cinema brasileiro, a segunda mostra foi sobre o cinema de língua portuguesa na África e a terceira sobre o cinema do Cone Sul, em 1994, 1995 e 1996. Em 1997, por problemas familiares, comecei a ficar muito tempo no Rio de Janeiro. A partir daí o festival mudou completamente o perfil, se transformou num festival competitivo, mais destinado a um movimento de entretenimento e de trazer convidados de fora. Como surgiu o projeto do Linhas paralelas? Não é seu primeiro trabalho em ficção, mas é lançado 40 anos após o Status 69 e depois de vários documentários. É um filme que demorou muito pra ficar pronto. Filmamos em 2003, ficou guardado, conseguimos recursos para finalizar e ficou pronto esse ano [2010]. A minha base cinematográfica começou com a ficção, o que é natural na formação de todo mundo após os anos 30, já que o cinema de ficção predominou e o documentário acabou sendo estigmatizado, tido, até muito pouco tempo atrás, como coisa chata. O que me levou para o documentário foi a história do Tutti tutti buona gente e a percepção do processo da cultura capixaba, de trabalhar a revelação dessa cultura. Cheguei até a fazer sobre a história dos desaparecidos políticos um roteiro de ficção, exatamente por esse confronto que havia entre o filme documentário e o filme de ficção. O filme de ficção tinha visibilidade, uma posição de destaque e uma possibilidade de interferir na sociedade, de difundir a história, fazer com que ela entrasse no sangue da sociedade, fosse absorvida e a partir daí ter elementos para lutar contra essa perversidade. Quanto ao Linhas paralelas, o livro da Wanda Sily me cativou pela história do trem, porque quando eu era criança vinha de Belo Horizonte passar férias em Vitória. E o trem era um outro mundo, uma viagem dentro da viagem. Toda viagem tinha uma história diferente: o trem enguiçava, batia, descarrilhava, às vezes tinha boi na linha. E o filme se passa basicamente dentro de um trem, onde uma personagem principal, que é fugidia, recorda as coisas que viu no trem. São micro-crônicas. »

Entrevistas

25


26


FILMES


Status 69 - A gente que a gente vê 16mm | 1969 | p&b | 2' Com uma montagem ágil, que joga com transições, delírios e imbricamentos temporais, o primeiro curta ficcional de Orlando Bomfim, netto propõe uma síntese do problema da luta de classes no Brasil. Contrapondo duas infâncias distintas em apenas dois minutos, o filme tenta desvelar raízes mais profundas para aquilo que o cotidiano nos apresenta. » Maria Ines Dieuzeide Direção: Orlando Bomfim, netto Direção de Fotografia: Armando Pinheiro Guimarães Som: Laboratório Embrafilme Com: Alberto Delerue, A. Garcia de Lima, Carlos Alberto R. Pinto, Luiz Mauro Sampaio Magalhães, Noélia de Paula, Roberto Vieira Costa, Therezinha Licio M. Pontual, Vitória de Jesus Festivais: Festival JB Mesbla, Rio de Janeiro/RJ (1969).

28


Tutti tutti buona gente, propriamente buona 35mm | 1975 | cor | 28' Imagens de arquivo, depoimentos em off, portraits e sequências encenadas, trilha sonora. Os elementos de Tutti tutti buona gente, filme inaugural da fase documental do cineasta, são organizados em uma estrutura cronológica lírica que abrange os 100 anos da colonização italiana no Brasil e no Espírito Santo, sua história e seus costumes. O navio e o trem, meios de transporte da imigração, se tornam metáforas para o progresso, a urbanização e a renovação da comunidade de descendentes da cidade interiorana de Santa Teresa. » Vitor Graize Roteiro, Produção e Direção: Orlando Bomfim, netto Direção de Fotografia e Câmera: Douglas Lynch Montagem: Manfredo Caldas, Leon Cassidy Produção: Circus Produções, Astrid Marot | Coprodução: Cinemateca MAM-RJ Assistente de Direção e Produção: Janet Chermont Mixagem: Carlos de la Riva | Efeitos Sonoros: Walter Goulart Prêmios: Troféu Humberto Mauro da Embrafilme de Melhor Curta-Metragem de 1976. Festivais: Festival de San Sebastián, Espanha (1976); Manheim, Alemanha (1976); Tashkent, ex-União Soviética (1976); 6ª Jornada Brasileira de Curta-Metragem, Salvador/BA (1977). Filme restaurado pelo projeto Acervo Capixaba – Orlando Bomfim, netto.

29


O Bondinho de Santa Tereza 16mm | 1977 | cor | 30’

30

Rio de Janeiro, anos 70, o tradicional bondinho de Santa Tereza na iminência da descontinuidade. Na banda sonora, uma séria e distanciada locução em voz over divide espaço com sambas, chorinhos e percussões que se mesclam ao ruído do trem, e também com falas dos moradores e trabalhadores locais. As imagens de arquivo, que contextualizam historicamente o popular meio de transporte, dão lugar para longos e bem compostos planos do bairro e da gente que ocupa as ruas e o bondinho, seduzindo-nos com o belo serpentear amarelo na paisagem. » Maria Ines Dieuzeide Roteiro, Produção e Direção: Orlando Bomfim, netto Direção de Fotografia e Câmera: Douglas Lynch Montagem: Alexandre Alencar Produção: Circus Produções Cinematográficas | Coprodução: Cinemateca MAM-RJ Diretor de Produção: Lucio Aguiar Som Direto: Pedro Cavalcanti Produzido com o apoio do Estado do Rio De Janeiro. Secretaria de Estado de Educação e Cultura. Festivais: Mostra Paralela do 12º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (1979); Mostra Rio Memória do Rio Cine Festival, Rio de Janeiro/RJ (1985). Filme digitalizado pelo projeto Acervo Capixaba – Orlando Bomfim, netto.


Canto para a liberdade – A festa do Ticumbi 35mm | 1978 | cor | 20’ O que vemos ainda são apenas as cartelas dos créditos, mas a banda sonora já está tomada pelo som de pandeiros e burburinho de rua. Em seguida, com as imagens de barcos que descem o rio, uma voz de impostação simples declama versos diretos que avisam que nós pobres só temos valor quando da necessidade dos ricos. Esses minutos iniciais já revelam o desejo do documentário de se deixar levar pelo Ticumbi, manifestação negra singular do norte do Espírito Santo que toma conta dos quadros, apresentando-o como festejo da resistência e da ancestralidade. » Maria Ines Dieuzeide Roteiro, Produção e Direção: Orlando Bomfim, netto Direção de Fotografia e Câmera: Douglas Lynch Montagem: Alexandre Alencar Produção: Circus Produções Cinematográficas Som Direto: Flávio Holanda Operador de som - Estúdio: Jorge Rueda Pesquisa: Hermógenes Lima Fonseca, Rogério Medeiros Festivais: Mostra Paralela do 12º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (1979). Filme digitalizado pelo projeto Acervo Capixaba – Orlando Bomfim, netto.

31


Mestre Pedro de Aurora, pra ficar menos custoso 35mm | 1978 | cor | 11’ O velho Mestre Pedro, um dos últimos cantadores de jongo de Conceição da Barra, é quem guia este documentário, com seus versos e sua voz. Mas a câmera, explicitando seu poder de captura, se interessa por cada rosto, cada mão, cada instrumento e construção desta pequena comunidade negra do norte do Espírito Santo, fazendo de Mestre Pedro de Aurora um potente registro sonoro e visual resultante do trabalho atento de escuta e observação que devolve imagens a essa família. » Maria Ines Dieuzeide Roteiro, Produção e Direção: Orlando Bomfim, netto Direção de Fotografia e Câmera: Douglas Lynch Montagem: Alexandre Alencar Produção: Circus Produções Cinematográficas Som Direto: Flávio Holanda Operador de Som - Estúdio: Jorge Rueda Pesquisa: Hermógenes Lima Fonseca, Rogério Medeiros 32

Filme digitalizado pelo projeto Acervo Capixaba – Orlando Bomfim, netto.


Itaúnas desastre ecológico 35mm | 1979 | cor | 9’ A narração over apresenta o tema, situa o local e identifica os culpados pelo “criminoso processo de desmatamento” na vila de Itaúnas, norte do Espírito Santo. As imagens realçam a pequenez dos homens e mulheres frente ao desequilíbrio ambiental, aqui representado pelo vento ruidoso e pelas dunas de areia que vão cobrindo as imagens. Seis curtos depoimentos de moradores conferem verdade e urgência ao filme, que equilibra o texto jornalístico e materiais de arquivo (como gravuras e fotografias) com o ensaio visual etnográfico. » Vitor Graize Roteiro, Produção e Direção: Orlando Bomfim, netto Direção de Fotografia e Câmera: Douglas Lynch Montagem: Alexandre Alencar Produção: Circus Produções Cinematográficas Som Direto: Flávio Holanda | Mixagem: Carlos De La Riva Gravuras Itaúnas 1950: Caribé Fotos Últimos Retirantes: Rogério Medeiros Prêmio: Melhor Curta-Metragem 35mm no 12º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (1979). Festival: 2º Rio Cine Festival, Rio de Janeiro/RJ (1986). Filme digitalizado pelo projeto Acervo Capixaba – Orlando Bomfim, netto.

33


Augusto Ruschi Guainunbi 35mm | 1975-1979 | cor | 12’

34

O que define um personagem? A terra, o homem e a luta do ecologista Augusto Ruschi são aqui sintetizados na imagem delicada, ágil e bela do beija-flor (ou guainunbi). Com suavidade o filme se desloca do discurso político de Ruschi para a natureza que ele tanto defendeu. Um movimento de montagem análogo à aproximação gradual da câmera em relação aos pássaros. A afinidade entre Bomfim e Lynch, aqui acompanhados pela música de Jaceguay Lins, atinge seu ápice na decupagem do naturalista em sua chácara e na poesia e precisão dos grandes planos e planos detalhes dos beija-flores. » Vitor Graize Roteiro, Produção e Direção: Orlando Bomfim, netto Direção de Fotografia e Câmera: Douglas Lynch | Montagem: Alexandre Alencar Produção: Circus Produções Cinematográficas | Coprodução: Antonio Copriva, Filho Som Direto: Jorge Saldanha - Mixagem: Carlos de la Riva Maquinista e eletricista: Dermeval Peçanha Música: Jaceguay Lins Festivais: Mostra Paralela do 12º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (1979); 9ª Jornada Brasileira de Curta-Metragem, Salvador/BA (1980); 2º Rio Cine Festival, Rio de Janeiro/RJ (1986). Filme digitalizado pelo projeto Acervo Capixaba – Orlando Bomfim, netto.


As paneleiras do barro 16mm | 1983 | cor | 55' História da confecção da panela de barro capixaba no momento em que houve risco de extinção de sua produção, por causa da urbanização e da falta de reconhecimento de sua importância para a cultura do Espírito Santo. Direção e Produção: Orlando Bomfim, netto Direção de Fotografia e Câmera: Douglas Lynch Montagem: Alexandre Alencar Produzido com apoio da TV Educativa do Espírito Santo (TVE-ES) e da TVE-RJ Nenhuma cópia do filme As paneleiras do barro foi localizada. O mesmo acontece com Um Inferno na Ilha, filme produzido para a TVE-ES sobre a situação do bairro São Pedro, em Vitória, por volta de 1986, do qual não há informações ou cópias disponíveis. Para reunir no catálogo a filmografia do diretor, optamos por registrar estes títulos, ainda que os filmes não possam ser exibidos na mostra. As informações da ficha técnica foram retiradas do Catálogo de filmes: 81 anos de cinema no Espírito Santo (org. Carla Osório, ABD&C/ES, 2007). A imagem é um frame capturado de parte do material bruto do filme encontrado no acervo da TVE-ES.

35


Dos Reis Magos dos Tupiniquins 35mm | 1985 | cor | 10’ A partir do registro do processo de restauração do altar da igreja jesuítica dos Reis Magos e das festas populares na região de Nova Almeida, Orlando Bomfim, netto elabora, num ousado exercício de montagem, uma síntese da história do Brasil. Realizado durante o processo de redemocratização do país, os choques sonoros e visuais criam figuras para a contínua e violenta opressão – do período colonial à ditadura – e para a resistência, em corpos negros e indígenas, expondo a impossibilidade do Brasil cordial. » Maria Ines Dieuzeide Roteiro, Produção e Direção: Orlando Bomfim, netto Direção de Fotografia e Câmera: Douglas Lynch Montagem: Aida Marques Produção: Imagem Comunicação Produção final: Landa Pinheiro Festival: 14ª Jornada de Cinema da Bahia (1985).

36 Filme restaurado pelo projeto Acervo Capixaba – Orlando Bomfim, netto.


Receita artesanal 16mm | 1988 | cor | 15' A pesca artesanal é o mote dessa pequena joia. Autores do roteiro de texto primoroso, Vilaça e Dias convidaram Douglas Lynch para produzir e dirigir o filme. Com imagens captadas de norte a sul do Espírito Santo, mas com maior interesse na colônia de pescadores da Praia do Suá, em Vitória, o filme também aproveita planos de produções de Orlando Bomfim, especialmente As paneleiras do barro. A diversidade de paisagens, retratos e situações é habilmente organizada pela montagem, que articula o trabalho no mar com a preparação da moqueca capixaba em uma ode aos trabalhadores e manifesto contra a exploração capitalista dos homens. » Vitor Graize Direção, Produção Executiva e Direção de Fotografia: Douglas Lynch Roteiro e Argumento: Adilson Vilaça e Helô Dias Montagem: Jaceguay Lins Produção: Cena Filmes Prêmios: Roteiro vencedor do concurso Ludovico Persici promovido pelo Departamento Estadual de Cultura de Vitória/ES (1986). Prêmio Especial do Júri no IV Rio Cine Festival, Rio de Janeiro/RJ (1989).

37


Linhas paralelas 35mm | 2010 | cor | 14'

38

Diferentes tempos se embaralham na retomada da ficção empreendida por Orlando Bomfim, netto quarenta anos depois do início de sua trajetória no cinema. Com roteiro adaptado de uma história de Wanda Sily, permanece um interesse pelas relações tecidas entre filme e memória. O trem se faz máquina do tempo, possibilitada pelos artifícios do cinema – ainda que formas e ritmos construídos sejam arranjados de modo irregular –, e permite que a personagem reviva, reencontre ou reinvente pessoas, momentos e experiências. » Maria Ines Dieuzeide Roteiro, Produção e Direção: Orlando Bomfim, netto Direção de Fotografia: Carlos Tourinho Montagem: Beto Wagner Produção Executiva: Polyana Côgo Som Direto: Alessandra Toledo Direção de Arte: Flávia Carvalhinho, Rosana Paste Com: Alcione Dias, Agostino Lázaro, Rosana Paste e Janine Corrêa Festivais: 17º Vitória Cine Vídeo, Vitória/ES (2010). VI Mostra Produção Independente, Vitória/ ES (2010).


Casaca Digital | 2013 | cor | 20' No retorno ao documentário, dando sequência ao interesse pelas manifestações culturais características do Espírito Santo, Casaca é construído por meio da contraposição de distintas vozes: artesãos que fabricam o instrumento, tocadores tupiniquins, mestres de bandas de congo, historiadores, folcloristas. A montagem, imbricando esses discursos, nos apresenta um processo de controvertida e disputada fabricação da história e da memória. » Maria Ines Dieuzeide Direção: Orlando Bomfim, netto Direção de Fotografia: Secundo Rezende Montagem: Jefferson Rodrigues Produção: Orlando Bomfim, netto e Secundo Rezende Som Direto: Glauber Fonseca Festival: 20º Vitória Cine Vídeo, Vitória/ES (2013).

39


A história oculta Digital | 2012-2014 | cor | 30’ Desde o prólogo entendemos que se trata de abordagem extremamente pessoal, em que o cineasta refaz os movimentos que levaram o pai à clandestinidade após o golpe militar de 1964. O advogado e jornalista Orlando Bomfim Jr. é descrito por um dos entrevistados como um dos "últimos cadáveres da Ditadura em São Paulo". Palavras tão duras como só podem ser aquelas usadas para representar uma verdade tão violenta. Há outras versões sobre o crime e o filme terá em todas elas a reação do cineasta no quadro, em plano ou contraplano. Entre depoimentos de antigos companheiros de jornalismo e luta política, destacam-se as lembranças familiares. » Vitor Graize Direção e Roteiro: Orlando Bomfim, netto Direção de Fotografia: Orlando Bomfim, netto e Carlos Tourinho Montagem: Marcos Valério Guimarães Pesquisa: Leonardo Almenara e Marcos Valério Guimarães

40

Filme também creditado como Orlando Bomfim Jr - Desaparecido Político. Tem uma versão de 24 minutos de duração. Festival: 19º Vitória Cine Vídeo, Vitória/ES (2012).


A palavra do autor Digital | 2018 | cor | 20’ No contexto de realização do projeto Acervo Capixaba, o cineasta Orlando Bomfim, netto revisita o começo no cinema e seus primeiros filmes em uma série de depoimentos informais a Marcos Valério Guimarães, amigo e parceiro de trabalho de longos anos. Ilustrado pelas imagens das obras do autor, o filme apresenta o núcleo de ideias que mobilizaram a produção desses filmes num panorama de 50 anos de atividade cinematográfica. » Vitor Graize Roteiro, Direção e Câmera: Marcos Valério Guimarães Produção: Pique-Bandeira Filmes Edição: Marcos Valério Guimarães e Luiza Grillo Rabello Edição de Som e Finalização: Luiza Grillo Rabello

41


42


ENSAIOS


MARCOS VALÉRIO GUIMARÃES é cineclubista e professor de Arte. Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Artes (PPGA) do Centro de Artes da UFES. Criador do Metrópolis Cineclube e do Cine Jardins.


Cinema para nos libertar Marcos Valério Guimarães

São Benedito falou Que é prá nós prestá atenção Nós pobre só tem valor Quando rico tem precisão Nós já prestemo atenção Que São Benedito falou Quando rico tem precisão É que nós pobre tem valor

Esses versos são do Ticumbi, o baile de congos de São Benedito de Conceição da Barra, e abrem o filme Canto para a liberdade – A festa do Ticumbi (1978), um dos marcos da obra cinematográfica de Orlando Bomfim, netto em torno da cultura praticada e dinamizada pelas gentes do estado do Espírito Santo. Um cinema feito sob a égide das lutas políticas de afirmação do espaço e do tempo dessas gentes, lutas políticas de afirmação da democracia e da diversidade das culturas: os modos de vida, os valores, os signos, as lutas sociais e políticas. Os brancos italianos de Santa Teresa, os negros áfricos de Conceição da Barra e as gentes metropolitanas misturadas são partes dos objetos de uma cinematografia que se assume como luta política, como estética e arte da vida e na vida naquele instante da nação brasileira. Era também o momento dos grandes projetos industriais, que expulsavam os quilombolas e índios de suas terras, portanto de suas vidas, histórias e culturas, e destruíam a natureza. Um momento sem democracia, quando o cinema e o cineclubismo brasileiros atuavam como instância de comunicação livre e libertária. Fazer agora a apresentação do trabalho de restauro dessa obra dos anos 1970 e 1980, acrescida de filmes posteriores, é muito oportuno. Em 2018 uma eleição trouxe novamente o retorno do sentido e do conceito da intolerância ao exercício do poder político-administrativo-jurídico do país, num impressionante gesto

45


coletivo de, deliberadamente, eleger a barbárie. Como a memória de uma nação se esvai em medos difusos, em fantasmas construídos por narrativas arcaicas dos grupos de mídia e da pregação política conservadora e retrógada? Talvez o relançamento dos filmes de Orlando Bomfim, netto possa trazer um pouco dessa luz que nos iluminou quarenta anos atrás.

46

Porque são filmes que revelaram esses povos e suas histórias, abrindo estradas para o diálogo social, político e histórico com toda a sociedade. Nós nos desconhecíamos. Foi o trabalho de nossos folcloristas, desde os mestres Guilherme Santos Neves, Renato Pacheco, Hermógenes Lima Fonseca e Rogério Medeiros, até uma geração mais recente, como Adelzira Madeira e depois Eliomar Mazoco, que trouxe à presença da sociedade as diversas manifestações e formas da cultura praticada pelas comunidades e gentes que aqui se estabeleceram ao longo da história, e formaram as suas bases identitárias, sejam os brancos da Europa, sejam os negros d’África, e outras etnias que ocuparam, por diversas vias, motivos e tempos, o espaço do índio, dizimando-o, e estabelecendo outra sociedade, com nuances diversas e interativas, gerando um povo de mútuas contaminações. Mas que o preconceito atrapalha a se ver no espelho. As pesquisas desses folcloristas ajudaram a contrapesar esse preconceito. O cinema de Orlando Bomfim ampliou o alcance dessas pesquisas. Seus filmes circularam por festivais e mostras de cinema pelo mundo (como os Festivais de San Sebastián, Brasília e Gramado), foram exibidos em salas comerciais do circuito nacional (quando havia a legislação do curta-metragem, que criou horários de exibição dessas obras antes de longas estrangeiros) e, principalmente, caminhou Brasil afora nas máquinas projetoras de 16mm do movimento cineclubista. O Espírito Santo ganhou projeção e conhecimento por meio dos filmes e das discussões promovidas. Só o Cineclube Universitário Cláudio Bueno Rocha (hoje o “Cine” Metrópolis), e depois a Federação de Cineclubes do ES, fizeram centenas de exibições e debates com esses filmes estado afora. Orlando Bomfim inicia sua filmografia no Espírito Santo em 1975. Naquele tempo, atuava como produtor de vários importantes filmes do cinema nacional pela Produções Cinematográficas R.F. Farias, empresa de cinema carioca mantida pelos irmãos Roberto, Reginaldo, Régias e Riva Farias, apoiadores do curta-metragem O Bondinho de Santa Tereza (1977), documentário sobre o bondinho do bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro, que mesclava a forma

Marcos Valério Guimarães


sociológica1 da narrativa documental com momentos de fina poética, como o plano-sequência em travelling no qual viajamos sobre os arcos da Lapa ao som de um chorinho comovente: a síntese de uma situação carioca. Orlando conta que leu uma reportagem da revista Veja sobre o centenário da imigração italiana no Brasil e ficou indignado com o fato de que não havia uma linha sequer sobre a cidade de Santa Teresa, no Espírito Santo, o marco inicial dessa imigração no Brasil (hoje fato oficialmente reconhecido). Apesar de ter nascido em Belo Horizonte, Minas Gerais, Orlando tem sua história pessoal ligada à cidade das montanhas capixabas: sua família é de Santa Teresa, cidade da qual seu avô foi prefeito por cinco ocasiões, tendo sido o primeiro eleito. Sua primeira reação foi, então, iniciar o processo de produção de um filme sobre o centenário da imigração em Santa Teresa. Foi o ponto de início de sua história aqui no estado, onde, como bom mineiro, até então só havia veraneado. Com o apoio também da R.F. Farias, fez os contatos para a produção e a pesquisa, que foi muito dificultada pela escassez de fontes e a pouca colaboração inicial da população italiana, ainda indiferente à importância de sua história, quadro que o filme reverteu em seu período de exibição que mobilizou, durante três dias, toda a região de imigrantes. O filme Tutti tutti buona gente, propriamente buona (1975) faz uma ode à trajetória do povo italiano, desde as suas origens em uma Itália em crise à vida de enfrentamentos de uma situação totalmente adversa em terras do Espírito Santo, enganados pela propaganda oficial brasileira. É um filme que reflete um tanto da estética sociológica vigente no documentário brasileiro naquele instante, mas com a personalidade do autor já evidente, criando momentos em que a dialética imagem-som produz uma estética que se afirma por si, sem se colocar a serviço de teses. Ela produz um sentido de vida. Há passagens em que a voz do autor some, deixando seus personagens criarem a poética própria de seus viveres. Momentos como as sequências do jogo de truco ou da bocha (ou 1. O conceito de filme sociológico foi proposto por Jean-Claude Bernardet em um estudo sobre a forma documental do cinema brasileiro das décadas de 1960 a 1980 no livro Cineastas e imagens do povo (1985). Trata-se de um conjunto de filmes cujas características convergem, em inúmeros aspectos, para a estética do documentário clássico. Em especial, os mecanismos de produção de significação do filme, centrados na relação entre o particular e o geral. Cf. BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 1985.

Cinema para nos libertar

47


bola de pau), nas quais a montagem entre cartas de baralho, tapas na mesa, olhares enigmáticos, as bolas de pau, as mãos que as lançam e expressões tensas de rostos nos indicam pessoas comprometidas não com um jogo, mas com uma poética de vida, com um sentido para as suas existências. Chamo especial atenção para a construção da metáfora que gera o conceito básico do filme: seu início é construído com fotos das pegadas do astronauta norte-americano na lua. Lembrar que estamos a seis anos da experiência humana de chegar ao satélite natural da Terra. Uma grande sequência de fotos e falas nos informa da história da imigração italiana para o Brasil, para Santa Teresa: é uma aventura de exploração de novos territórios, de um espaço-tempo a outro. Uma canção épica da tradição operística italiana nos informa a dimensão humana e sensorial da exploração.

48

Nesta mesma chave, Orlando desenvolveu o filme Augusto Ruschi Guainunbi (1975-1979), sobre o trabalho do cientista e naturalista Augusto Ruschi e a sua luta pela preservação do meio ambiente, no auge dos conflitos políticos da instalação dos grandes projetos industriais no estado, cujos impactos também veremos em outros de seus filmes. Nessa obra, o autor faz um catálogo muito rico do trabalho de Ruschi, o que é fundamental, pois é um de seus raros registros de que se tem notícia. Documento raro. Mas que não prescinde da poética cinematográfica, com uma montagem primorosa em momentos de puro lirismo entre a fotografia de Douglas Lynch (aliás, seu parceiro constante nessa coleção de filmes) e a música e trilha sonora do experimental Jaceguay Lins (com a flauta de Balú), como na sequência do banho dos beija-flores em um toco de tronco de árvore. Uma parceria que trouxe o Maestro Jaceguay Lins para um longo e importante trabalho no Espírito Santo, ao longo de quase trinta anos. Mas essa é outra história. O trabalho de pesquisa de Orlando para Tutti tutti rendeu contatos e conhecimentos sobre o Espírito Santo, suas gentes, as lutas políticas e sociais e sua arte e cultura. Desses encontros, duas personalidades foram fundamentais: o folclorista e ativista político Hermógenes Lima Fonseca e o fotojornalista (e também ativista político) Rogério Medeiros, que transitavam entre distintos universos da vida do estado. Desse encontro surgem as condições para a realização de três obras de valor inestimável para a história do Espírito Santo. Em um mesmo instante foram realizados Canto para a liberdade - A festa do Ticumbi (1978), Mestre Pedro de Aurora, pra ficar menos custoso (1978) e Itaúnas desastre ecológico (1979).

Marcos Valério Guimarães


Em Canto para a liberdade, Hermógenes e Rogério não apenas participam e são fundamentais para a pesquisa, como estão na narrativa da história desse grupo folclórico, um dos mais icônicos da tradição áfrica no estado. Um filme que se sustenta bastante da relação entre dados históricos e econômicos faz, no entanto, uma tese política de afirmação dos processos de formação identitários de um povo e de resistência aos processos políticos e econômicos que forçam a sua extinção. Como diz Hermógenes a certa altura do filme, “o Ticumbi é um auto pelo qual eles aproveitavam o processo de conspiração para a libertação, para a luta pela libertação”, referindo-se às origens do folguedo nas lutas de resistência dos escravos contra a opressão. No entanto, Orlando mantém seu estilo, sua poética, em cenas muito líricas dos momentos em que filma a apresentação do Ticumbi ao público, sempre nos primeiros dias de cada ano. Imagens aéreas, as ruas e vilarejos de Conceição da Barra de quarenta anos atrás, as gentes de lá e as gentes do folguedo, vistos hoje, nas belas imagens recuperadas, é de dobrar uma saudade e de renovar a sede de lutas de resistência, que em 2018 se fazem mais que necessárias, senão imprescindíveis. Na caminhada de registro das tradições, Mestre Pedro de Aurora, pra ficar menos custoso (1978) é uma pérola. Mestre Pedro de Aurora, aliás Pedro Camilo Guimarães, um lenhador cego pela lasca de uma tora que lhe feriu, foi um Mestre de Jongo e um dos maiores cancioneiros do folclore capixaba, cujas toadas estavam sempre na chave da crítica, do questionamento, utilizando das narrativas do imaginário popular: “Ai se eu tivesse uma dona, que bem soubesse bem dirigir avião / nóis ia dá um passeio na lua / com a viola na mão / e nóis ia bater um papo / e junto com Eva e Adão / Eu ia bem prevenido / levava até geladeira / eu ia comprá pra ela um rádio de cabeceira / botava pilha no gato / miau, miau prá pegá língua estrangeira / quando eu voltasse de lá / vinha com outra direção / desejava fazer um cais da Bugia o pai João / mas eu não quero mexer / com o dinheiro da nação”, era a senha para a crítica ao descaso do poder público com o vivente da região e seu trabalho de vida, senão, ao contrário, sua cumplicidade com os grandes projetos industriais que sufocavam desde ali a tradição e a vida secular dos quilombolas. Um filme também de uma poética envolvente, respeitoso e carinhoso com o seu personagem, deixando a sua fala e a sua música fluírem sem muitas questões. O filme não interroga, deixa fluir. A região norte do estado, antes mesmo dos impactos da cultura do eucalipto, que devastou terras e cultura, conheceu um fenômeno de destruição atribuído

Cinema para nos libertar

49


ao desmatamento, que desde a década de 1950 foi dizimando a Mata Atlântica. Em Itaúnas, pequena vila do município de Conceição da Barra, um provável desmatamento na região favoreceu que o vento forte deslocasse, em movimento que prossegue até os dias atuais, as areias do litoral, que foi sistematicamente soterrando a antiga cidade, forçando seus moradores a deslocarem-se em busca de novo espaço, onde hoje está a Vila de Itaúnas, local da maior festa de folclore do estado. Itaúnas desastre ecológico (1979) é um registro único desse evento. Com uma estética que reúne uma iconografia histórica, tomadas aéreas impressionantes, depoimentos reveladores e emocionantes das gentes de lá, o filme tem na montagem o seu ponto forte, construindo uma relação de imagem e som que nos sensibiliza para a vivência do ambiente, ao mesmo tempo que enfatiza o tempo da natureza, a quase imobilidade de um passar sem limites. Tempo infinito, onde a ação humana é um desastre que altera seu ritmo.

50

São filmes que também antecipam o quadro de devastação: hoje a região é um imenso campo de eucaliptos para atender à indústria do papel, e seu povo vive na luta de resistência, para o que o restauro dessas obras significa agregar a força da história. O trabalho de Orlando Bomfim, netto para o cinema capixaba significou, nessas obras, manter a continuidade de uma tênue produção, uma conexão entre os experimentos da geração da década de 1960 com o que veríamos surgir nos experimentos em vídeo na década de 1980 e todas as obras que consolidaram um campo de trabalho cinematográfico atual. Há cineastas que seguiram a conexão de Orlando com as lutas sociais, históricas e culturais, atualizando as abordagens e rearticulando o cinema em novas formas de participação. Inclusive o próprio Orlando, que continua na ativa, experimentando a ficção e mantendo o documentário como linha mestra de trabalho. Desse primeiro ciclo de filmes que passaram pelo processo de restauro, Dos Reis Magos dos Tupiniquins (1985) é uma síntese da poética desenvolvida nos outros filmes. É um experimento de colagem de diferentes materiais iconográficos, literários, jornalísticos e sonoros, tendo como base expressões da cultura popular manifestas em Nova Almeida, no município de Serra. Mesclando o congo, as religiosidades de matrizes africanas aos procedimentos de restauro da Igreja

Marcos Valério Guimarães


jesuítica dos Reis Magos, o filme é um ensaio sobre a história do Brasil no ponto de passagem da ditadura civil-militar para um momento de participação efetiva da sociedade civil nos rumos do país. Era a Nova República, a restauração da democracia, que trinta e três anos depois novamente sofre graves ameaças de retrocesso, de um povo que ainda não entendeu os interstícios da relações de poder, que os versos do Ticumbi nos alertam: “São Benedito falou / Que é prá nós prestá atenção / Nós pobre só tem valor / Quando rico tem precisão...”. Ou, como atualizou Tancredo Neves naquele mesmo 1985, na frase que é citada no final de Dos Reis Magos dos Tupiniquins: “Não nos dispersemos!”. »

51

Cinema para nos libertar


SANDRO JOSÉ DA SILVA é doutor em Antropologia, docente no Departamento de Ciências Sociais e no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, ambos da Universidade Federal do Espírito Santo. Realiza projetos de pesquisa e extensão com povos indígenas e quilombolas.


A invenção da cultura capixaba Sandro José da Silva

A reedição dos filmes de Orlando Bomfim, netto abre importantes possibilidades de análise do que foi cunhado como “cultura capixaba”. Durante algum tempo, saber o que era ou não capixaba estava no centro das preocupações de uma literatura local sem, no entanto, suscitar perguntas sobre as razões de tal interesse. Também não questionamos a forma como ela foi narrada nas artes, na academia e nos planos governamentais. Isto porque não fazia parte das preocupações de uma elite emergente refletir sobre as condições de produção da cultura capixaba e quais foram os elementos elegidos para isso. Neste sentido, não me dedicarei a analisar os filmes de Orlando em si mesmos, senão identificando neles uma virada de paradigma da autoimagem de uma parcela da sociedade capixaba e a produção de fronteiras étnicas. Na trajetória de construção do capixabismo fica evidente que alguns aspectos receberam mais luz que outros; enquanto uns, mesmo tendo recebido alguma luz, foram encobertos por discursos coloniais, homogeneizadores e essencialistas próprios do momento político ao qual o país estava entregue nos anos 1970, marcado pelo discurso nacionalista, ufanista e autoritário. Os filmes de Orlando Bomfim são o testemunho desse momento de surpresa e estarrecimento e nos dão caminhos importantes para pensar a cultura como um processo político.

Arte e vida Um traço importante a se pensar sobre a obra de Orlando Bomfim é a razão de, embora imerso em um movimento emergente do cinema nacional que buscava desconstruir as subjetividades violentas que insidiam sobre a intimidade, o amor e o sexo, e mostrar como tais comportamentos derivaram do cenário político repressivo, ele ter optado por narrar a história de comunidades italianas, indígenas e de africanos, com uma chave da leitura folclórica que busca as origens e a autenticidade de grupos autóctones.

53


Tal efeito de memória coletiva provocado pela literatura e pelo cinema não são fortuitos, mas obras intencionalmente fabricadas, organizadas e editadas sob uma perspectiva coletiva. Sim, a sociedade faz falar e faz calar por meio do artista que, embora muitas vezes à sua frente, ecoa anseios de um projeto de imaginário coletivo que reúne memória e relações de poder. Embora estejam emaranhadas, as histórias narradas por Bomfim seguirão destinos diferentes. A italianidade se constituirá no discurso hegemônico sobre o capixabismo reforçando uma visão racial do século XIX que se dedicou a promover o branqueamento da população brasileira. E as culturas africanas e indígenas permanecerão em um tempo congelado das origens, mas não como destino do capixabismo e seu projeto econômico e político.

54

Vejamos que os relatos visuais em busca da identidade capixaba têm como um de seus patronos o político Jerônimo Monteiro, que foi presidente da província entre 1904 e 1908. A fotografia era uma invenção recente que combinava ciência e poder na busca da representação real da realidade. J. Monteiro viu nisso uma oportunidade de encenar um discurso sobre as riquezas naturais, mas não sua gente, uma vez que pairava uma visão negativa dos capixabas, uma população vista como atrasada e fruto da miscigenação racial entre pretos e indígenas, plasmada pela Câmara Federal e pelos positivistas do século XIX.1 A novidade é que J. Monteiro mandou fotografar suas obras e feitos, colocou tudo em um catálogo para oferecer ao estrangeiro “persistente propaganda das vantagens naturais, para o cultivo do seu solo, aproveitamento de suas águas, para a indústria, facilidade de adaptação para imigrantes e condições de vida fácil e proveitosa” (NOVAES, 2017).2 A esta memória oficial capixaba, recheada de obras públicas, homens de vulto e tentativas de vencer o próprio isolamento como uma virtude, interagiram os relatos do folclorista Hermógenes Lima Fonseca, do jornalista e fotógrafo Rogério Medeiros e do cineasta Orlando Bomfim, netto a partir dos anos 1970. Para eles era preciso redescobrir o Espírito Santo, expor as “raízes de sua gente”, 1. Por questões raciais, o decreto 528, de 1890, restringiu a entrada no Brasil de “indígenas da Ásia e da África”. 2. NOVAES, Maria Stella de. Jerônimo Monteiro: sua vida e obra. 2. ed. Vitória: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2017.

Sandro José da Silva


esquecidas por ela própria. Eles viajaram aos recônditos das terras capixabas com uma perspectiva que combinava a admiração – por encontrar personagens e obras artísticas ímpares ainda vivos – e o pesar melancólico – devido à gritante pressão da agroindústria sobre essas comunidades e os territórios que habitavam. Tais relatos escritos, fotografados e filmados nos deram um cenário singular e ao mesmo tempo trágico dessas comunidades. Elas foram projetadas no pano de fundo de uma relação econômica em transformação, o que as definiu como um efeito marginal e fragmentado dado pelo Desenvolvimento com a iminência de desaparecerem sem deixar vestígios. Processos de resistência que se desenvolviam, como é o caso dos Tupinikim e dos quilombolas no território do Sapê do Norte, e sucumbiam a uma narrativa bem-intencionada, mas que cobria as lacunas da subjetividade desses sujeitos com uma imperiosa voz over. Foi assim que o tema do Desenvolvimento se constituiu em uma verdadeira sombra fantasmagórica que tornou todo o discurso sobre o Estado verossímil e a cultura capixaba possível de existir como um objeto autônomo do capital cultural de suas elites. Tal moldura epistêmica tratará a história capixaba como fases que se sucedem naturalmente: descobrimento, imigração estrangeira e Grandes Projetos e inundará os discursos oficiais de governo, da academia, de empresas, da arte e do cotidiano espontâneo e bem pago estampado nas matérias jornalísticas. O que se destaca nos filmes da coleção de Orlando Bomfim, netto é a oposição quase binária que se modelou entre, de um lado, a força da imigração italiana e o Desenvolvimento e, de outro, a melancolia das culturas autóctones, indígenas e africanas, plasmadas, ameaçadas num eterno dolce far niente, como se referiu o presidente da província Pedro Leão Veloso [1859-1860] ao narrar a vida destes que “não queriam trabalho”. Todos conhecemos os argumentos que justificaram tais assimetrias: de um lado identidade fragmentada, escassez de mão de obra, inaptidão para o trabalho e folclore versus do outro lado a identidade italiana, empreendedorismo, oportunidade na nova terra e facilidades como a propriedade privada da terra e a civilização.

A invenção das tradições Os filmes de Orlando Bomfim estão, neste sentido, como testemunho da consolidação de uma narrativa hegemônica, pois é o imaginário de Graça Aranha

A invenção da cultura capixaba

55


que salta de sua obra como a grande voz da europeidade dos descendentes dos imigrantes. Como se sabe, o romance Canaã (1902), citado no documentário Tutti tutti buona gente, propriamente buona (1975), é um divisor de águas porque é transformado em uma narrativa verossímil daqueles que o elegeram como obra significativa para justificar a formação capixaba. Ao explicar o mundo, ela explica o mundo no qual seus narradores de hoje querem se ver representados. Ela consolida um passado do qual e sobre o qual é possível falar e se distanciar dos demais capixabas, um passado que foi superado por eles, um passado que promete o germe do futuro. É preciso construir um passado para justificar o presente como projeto de futuro.

56

Autores como Benedict Anderson e Eric Hobsbawm buscaram respostas para o fato de que os Estados Nacionais, antes de serem reais, são imaginados e ritualizados.3 Tal imaginação não tem relação com uma mentira, mas sugere um processo complexo e ininterrupto de criação que envolve símbolos onde se desenvolvem as tramas do poder. Mapas, constituições, línguas, nacionalidades e identidades fazem parte destas tramas que possibilitaram às nações serem imaginadas em relações efetivas. A exemplo disto, a cultura capixaba foi pensada como italiana, mesmo que a Itália como Estado Nação ainda não existisse no momento da imigração e mesmo que os que participaram desse projeto não fossem italianos, mas provincianos. Sugiro que houve um momento na sociedade capixaba em que ela precisou construir uma imagem de si para que pudesse, nela, erguer seus próprios mitos fundadores e justificar sua existência. Isto pode ser feito pela comparação de dois dos sete filmes recuperados: Tutti tutti buona gente, propriamente buona (1975) e Canto para a liberdade – A festa do Ticumbi (1978).

Onde tudo começou? Estes dois documentários são importantes a meu ver porque eles inauguram e consolidam uma iconografia responsável por cristalizar, em primeiro lugar, uma 3. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Cia das Letras, 2008. HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

Sandro José da Silva


linha imaginária entre pretos e brancos no Espírito Santo. E em segundo lugar porque têm o mérito de captar o momento em que as elites capixabas de origem europeia se dedicam à reinvenção da cultura italiana como uma maneira de se posicionar politicamente nos quadros de poder, invertendo a relação tempo, espaço e sujeito em relação aos africanos e indígenas. Segundo esta perspectiva, estes não teriam produzido transformações econômicas em todo o período colonial, portanto sua cultura não seria representativa na “formação” econômica e política do estado; enquanto aqueles foram parte de um projeto de nação que desde o início do século XIX atribuía um papel civilizador às culturas europeias. O tempo dos europeus no Brasil, embora mais curto quando projetado no ideário de nação, tornou-se um projeto hegemônico de Estado. Quem assistir aos filmes de Orlando Bomfim, netto buscará nas frestas das imagens sua segunda memória. Tutti tutti buona gente é um exemplo singular pois o filme se dedica aos cem anos da imigração italiana e ao mesmo tempo faz uma homenagem à cidade de Santa Teresa, que se transformou no reduto da italianidade capixaba. Segundo Orlando, o filme surgiu da injustiça com que o estado foi tratado no cenário da imigração italiana.4 Em 1975 a Revista Veja havia publicado um número especial sobre a imigração italiana onde o estado de São Paulo fora retratado como central nesse processo. Enquanto faz sua pesquisa, Orlando também se surpreende, pois os próprios capixabas não conheciam onde “tudo começou”. Um processo subjacente de formação cultural, no entanto, estava em curso. Bomfim tinha à frente de suas lentes a transformação de uma cultura popular em uma festa da identidade italiana, expressão ritual de uma elite econômica e política que havia deixado a roça décadas antes e que voltava para celebrar e reconstruir suas origens como parte de um processo político de afirmação identitária e construção da hegemonia da italianidade. Tutti tutti buona gente exibe uma voz de dentro, é narrado em primeira pessoa pelos próprios sujeitos que contam as memórias e a afetividade familiar que conecta as pessoas em um projeto comum, enquanto em Canto para a liberdade a narrativa é constituída por um narrador externo pelo recurso da voz over. 4. O trabalho de conclusão de curso de Ana Luiza Calmon, A gente que a gente vê: O olhar cinematográfico de Orlando Bomfim, de 2012, traz uma narrativa biográfica do autor.

A invenção da cultura capixaba

57


Ambos se dedicam a narrar a festa e celebrações de seu grupo: os italianos, sua perseverança na nova terra e a centralidade que algumas categorias sociais adquiriram, como o “desbravador” e a “família” – essa última condição estatal obrigatória para a imigração, vindo a se tornar mais tarde o centro narrativo da identidade italiana. Os afrodescendentes narram seu processo de resistência mediante as metáforas cotidianas da guerra e da justiça. À abertura do filme, pontuada pela quadra do senhor Tertolino Balbino: “São Benedito falou para nós prestar atenção, nós pobres só temos valor quando rico tem precisão”, se contrapõe uma narração over que reifica a escravidão como ponto de origem da identificação dos africanos e seus descendentes. Ainda aqui, se recria um passado homogêneo e imóvel da escravização onde a “dor comum os unia em uma trágica estratégia na luta contra a opressão” e que fazia com que eles camuflassem “em festa os preparativos da luta”.

58

Entre a afirmação do ser da italianidade e o não ser dos afrodescendentes, temporalidades e pertencimentos são tecidos no plano de fundo do capixabismo, constituindo não apenas grupos, mas direitos e prerrogativas: o sucesso de uma vertente da italianidade e os enormes obstáculos impostos à população preta afrodescendente e indígena.

Os bravos a serem desbravados Se a reação do cinema foi narrar estes rincões ou o que sobrou deles com o intuito de produzir uma narrativa de resistência, do meu ponto de vista ele o fez sob dois ângulos: um desbravador e outro melancólico. No primeiro deles, as origens europeias de parte da sociedade capixaba foram descritas como um tipo de patrimônio identitário para servir à afirmação das relações de poder na posteridade; e o outro, formado por outros fronteiriços, fragmentos de sociedades africanas e indígenas que aguardavam seu fim e precisavam ser registradas para a posteridade, como aquilo que foi e não se reestabeleceria dadas suas próprias fraquezas. O primeiro argumento busca, mediante a projeção de um discurso das elites contemporâneas dos anos 1970, construir um pertencimento autóctone calcado nas categorias família, trabalho e cultura. Ele se inicia nos documentários com

Sandro José da Silva


imagens e sons de uma Itália sonhada e hoje reconectada com políticas de dupla cidadania mediante identificação dos ancestrais italianos. Daí sua presença exitosa projetada no futuro como as elites dominantes no cenário político e econômico que hoje governam o estado. O segundo argumento buscou recriar o Povo, os bravos a serem desbravados, como o resultado de uma mistura de fragmentos conectados apenas pela narrativa colonial de Gilberto Freyre da mistura e da tragédia da falta de um projeto coletivo e uma voz independente. O argumento do documentário sugere que o máximo que se pode fazer nestes casos é um registro para a posteridade, num tipo de museu trágico. Ambas narrativas são, no entanto, esforços de um terceiro discurso, ocultado, de produzir sentido ao cenário econômico e político que se viu nos anos 1970 no Brasil, e no Espírito Santo de maneira particular: a violência física e simbólica que avançou sobre as comunidades tradicionais de pescadores, indígenas e quilombolas despossuindo-os de seus modos de vida sob promessas de uma passagem rápida ao mundo urbano. Das muitas entrevistas que fiz com os anciãos indígenas e quilombolas, a promessa feita a eles de casa e escola para as crianças era presença constante. Num cenário nacional conservador com baixíssimo investimento educacional, eles foram levados a trocar as terras herdadas dos parentes por barracos nas periferias das cidades. Dizia-se: “era só colocar o dinheiro na Caixa e os filhos na escola”. Este terceiro discurso oculto teve como agente principal a terceira geração urbana e escolarizada do processo de colonização europeia do século XIX. Foram eles e elas que conseguiram, desde uma posição política e econômica hegemônica, validar o discurso desenvolvimentista e nele incluir-se como grupo exitoso e, ao mesmo tempo, imprimir a marca de seu status de elite que não se encontrava mais na roça, mas detrás das mesas da burocracia estatal, das empresas e da universidade, celebrando suas raízes. A esta expropriação material seguiu-se uma expropriação simbólica. Tais sociedades de pescadores, indígenas e quilombolas passaram a ser retratadas na arte e nos planos de governo como um Espírito Santo retardatário, razão de um passado que precisa ser reverenciado, mas que deve ser considerado como algo superado pois representa a contramão do Desenvolvimento.

A invenção da cultura capixaba

59


A produção da imaginação Os documentários de Orlando Bomfim sobre a cultura capixaba ecoaram os anseios do Movimento Negro no Brasil e anteciparam os debates da Constituição de 1988 pelos direitos afrodescendentes que remodelaram o entendimento do lugar civilizatório que as sociedades africanas têm no país. Naquele momento, lutava-se para a descolonização da população negra dos valores brancos que a inscreveram como atrasadas, marginais, sem voz e, sobretudo, para romper com a recusa em considerá-los como cidadãos brasileiros. Vemos hoje os resultados positivos de um minúsculo movimento de reparações pelos mais de 300 anos de escravização oficial do Estado brasileiro. Voltar os olhos para o processo civilizatório que a África produziu no Brasil era, como é, tarefa urgente em um país que despreza a memória de seu povo.

60

Sua obra cinematográfica é, neste sentido, uma janela reflexiva crítica sobre como a história se materializa em projetos de poder e como o cinema é, desde sua criação, uma ferramenta singular na produção da imaginação da sociedade e de quem são seus cidadãos. Ele nos convida a identificar as formas narrativas não como verdade incontestável, mas como tais fatos são modelados pelas tensões e projetos de determinados grupos que buscam se impor aos demais. Neste sentido, são as condições de produção da obra artística que devem nos ocupar também como parte da análise fílmica e cultural, especialmente como antídoto aos essencialismos responsáveis por instaurar zonas abissais onde poderiam testemunhar que as sociedades e as culturas são produto de interações e aprendizados mútuos e que o sucesso de uma não pode ser o fracasso da outra. Para quem se dedica à pesquisa sobre a formação social e política do estado, os filmes de Orlando são uma oportunidade singular para identificar os valores e práticas que moldaram uma visão sobre a formação capixaba que contempla os modos de ser e fazer que configuram as ontologias dos povos e comunidades tradicionais. Os filmes são uma importante referência para instigarem novos olhares sobre a formação do discurso hegemônico como característica correlata da produção de fronteiras culturais, onde as condições políticas de produção da obra cinematográfica interessam tanto quanto o que elas procuram representar. »

Sandro José da Silva


61

A invenção da cultura capixaba


KÊNIA FREITAS é pós-doutoranda (CAPES/PNPD) do programa de pós-graduação em Comunicação da UNESP. Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Escreve críticas cinematográficas para o site Multiplot! Integra o Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.


Liberdade em construção Kênia Freitas

Em A história oculta (2012-2014), Orlando Bomfim, netto articula o drama familiar com a tragédia política coletiva nacional do Golpe Militar de 1964. Ao rememorar a história de resistência contra a ditadura, vida na clandestinidade, prisão e desaparecimento de seu pai – o jornalista e advogado Orlando Bomfim Jr. –, o documentarista parte do particular para a construção de uma narrativa ausente, oculta. Ainda mais ocultada pelo termo “desaparecido político” adotado pelo regime para se referir ao mortos e enterrados pelo estado de exceção fora dos registros oficiais. Mais do que pelo drama, o documentário move-se pela vontade de desvelar: tornar visível e reafirmar a trajetória e o destino do pai como um dos tantos mortos políticos pela ditadura civil-militar. Juntando a narração expositiva em voz over e a utilização de entrevistas, que denunciam na imagem o filme como um processo construído (incluindo equipamento e realizador), o efeito obtido é menos o de afirmação de uma verdade e mais o de mostração de evidências. E esta é uma diferença significativa que situa o fazer documentário de Orlando Bomfim, netto na crença no potencial do cinema como forma de acessar e ressignificar o mundo pelos filmes, pela montagem sobreposta de imagens e sons. Se em A história oculta o desaparecimento do pai e a sua luta de resistência à ditadura aparecem de forma central, os documentários do diretor se interessam há décadas por formas de se criar narrativa em contraposição à opressão. Filmes como Canto para a liberdade – A festa do Ticumbi (1978) e Dos Reis Magos dos Tupiniquins (1985), feitos durante o período não democrático e dedicados à memória do seu pai, partem da aproximação com a cultura popular para pensar a arte como ferramenta de resistência (no cinema e fora dele). No primeiro filme, o diretor registra o Ticumbi de Conceição da Barra, uma manifestação cultural negra oriunda do tempo de escravização. Interessa ao diretor sobretudo realçar o caráter político inicial da manifestação – disfarçado em uma festividade religiosa, o Ticumbi foi por anos um ponto de encontro e resistência dos escravizados na luta pela liberdade. Já em Dos Reis Magos, o diretor parte da restauração do altar da Igreja dos Reis Magos, em Nova Almeida, para, a partir das manifestações

63


populares locais e da história da vila com os indígenas Tupiniquins, repensar livremente o processo de colonização e formação nacional brasileiro. Os dois filmes feitos em um momento de ausência de liberdade democráticas apontam para o passado para falar de uma questão do presente do realizador. Mais do que um subterfúgio, a conexão atinge com precisão o entendimento de que as tecnologias de opressão e controle das sociedades modernas – no Brasil levadas à radicalização da violência do estado nos anos da ditadura civil-militar – são reflexos diretos das tecnologias de opressão e controle dos processos de colonização, com a escravização de nações africanas e o massivo extermínio das indígenas. A tortura, a perseguição, os assassinatos, enfim o uso da violência como método de terror em nome de um processo civilizatório é secular e parece operar em ciclos no Brasil.

64

Neste sentido, esse investimento de Bomfim, netto na cultura popular faz mais do que criar paralelos entre as diversas formas artísticas e políticas de construção de liberdade, o engajamento cria um movimento de cumplicidade entre experiências raciais, sociais e de classes bastante diversas entre si. Assim, se a repressão do regime militar amplia as práticas seculares e cotidianas de violência para a população branca e das classes médias, os documentários supracitados encontram formas históricas de resistir e de existir na cultura popular. Com estratégias narrativas diferentes entre si, os dois filmes partem do entendimento de uma distância, social e racial, e do gesto fílmico como um projeto de aproximação. Não por coincidência, planos abertos do mar e da cidade distante abrem os dois filmes. E também, não por acaso, a narração em voz over explicativa que marca o início dos filmes é aos poucos diluída em performances e vozes múltiplas.

Camuflar em festa os preparativos da luta Em Canto para a liberdade os sons do Ticumbi são as primeiras marcas da manifestação cultural no filme, ainda durante os créditos de abertura. Ouvimos na sequência, em off, as rimas do mestre dos ditos de São Benedito: “São Benedito falou que é para nós prestar atenção: nós pobres só tem valor, quando rico tem precisão.

Kênia Freitas


Nós já prestemos atenção que São Benedito falou: quando o rico tem precisão, é que nós pobres tem valor”

As palavras do mestre situam o documentário no jogo de encontro de classes (os ricos e os pobres) e do sistema de valoração (o reconhecimento do pobre diretamente atrelado à necessidade do rico). Esse jogo marca o fazer documentário entre o desejo exploratório de conhecer o “outro” e o entendimento do cinema como arma de transformação, criação e comunhão. Esse “outro” do cinema documental está situado historicamente a partir de uma perspectiva ocidental de quem filma: o homem branco – sendo então o “outro”: o pobre, o negro, o estrangeiro, enfim, as “minorias” sociais e raciais. Assim, se a rima do mestre abre ludicamente o filme, é a voz do narrador quem explica e contextualiza a tradição nos primeiro minutos do filme. A narração expositiva, no entanto, divide o contar da história com as vozes dos mestres, contra-guias, secretários e violeiros da festividade – pelas entrevistas – e com o próprio performar do Ticumbi. O movimento de encontro das vozes é seguido em uma estratégia de aproximação com a forma de enquadrar e o local da câmera de filmar. Dessa forma, o filme passa de uma distância contextualizadora e confortável em seu início (com a hierarquia das vozes) para dentro da cerimônia, acompanhando e dançando junto com os movimentos dos corpos, fazendo parte da performance em curso. Nessa transformação também as inserções de imagens fixas entre as sequências da festa mudam: das ilustrações em preto em branco de violências do período de escravização para imagens fotográficas coloridas de pessoas negras felizes, de origens étnicas e culturais diversas. Em Dos Reis Magos dos Tupiniquins a polifonia de vozes se amplia e se complexifica. Os discursos se atravessam em uma montagem criativa do som que mistura a trilha sonora com trechos de músicas populares brasileiras (sobretudo as de protesto contra a ditadura civil-militar), a narração em voz over explicativa, a leitura encenada também em voz over de textos e discursos famosos do violento processo de formação nacional e os sons e músicas das festas populares da vila de Nova Almeida. As imagens também funcionam como unidades independentes de significados sobrepostos. Tem-se assim uma montagem em paralelo que

Liberdade em construção

65


une imagens das festas populares e o minucioso trabalho de restauro do altar da Igreja dos Reis Magos. A Igreja dos Reis Magos mais do que um tema, objeto ou a locação do filme é um ponto de disparo destas relações históricas da montagem, começando pelo início da colonização e pelo suposto “descobrimento” do Brasil. Na origem do prédio, a participação dos tupiniquins na construção; no presente, as imagens das não mais do que 36 famílias remanescentes que vivem a 20 km de Nova Almeida – como nos informa a voz em over ao som e modo de narrar dos informes da Voz do Brasil. Assim, as imagens vão do altar a ser reconstruído à aldeia dos tupiniquins.

66

A montagem paralela segue de forma inventiva: da fundação (da igreja e do Brasil) o filme salta para as festas populares do município da Serra (onde fica Nova Almeida), como a fincada e puxada de mastro no dia de São Benedito. No plano sonoro, ouvimos o discurso do Fico de Dom Pedro I. No plano imagético, do mastro de São Benedito o filme nos puxa de volta às peças de madeira maciça do altar – cujo restauro se iniciou em 1981. De volta às festa populares, o dia de Iemanjá e as celebrações das religiões de matriz africana são atravessados pela voz over que nos lembra da declaração do ventre livre. A voz declara solenemente “Independência ou morte”, “quem for brasileiro que me siga”, enquanto o mestre da banda de congo apita e a porta-bandeira gira. Na trilha sonora, “Apesar de você” de Chico Buarque de Hollanda, enquanto acompanhamos lentamente o canivete que delicadamente retira camadas da madeira para a restauração do altar. A igreja e as festas populares se encontram finalmente pela comemoração da finalização do restauro em um evento popular no dia de Reis Magos. O filme registra então o coral de hino católico dentro da igreja e o congo do lado de fora. Todas estas são montagens múltiplas não de conciliação, mas de copresença e interpretações plurais dos acontecimentos. Para além do paralelismo direto que o realizador constrói entre a resistência negra que originou o Ticumbi e a necessidade de resistir à opressão política do momento da filmagem, em Dos Reis Magos dos Tupiniquins o que entra em jogo é uma ideia de acúmulo. Não se propõe uma síntese possível das múltiplas vozes ou uma simetria entre os diversos momentos históricos citados, e sim uma ideia de que os processos históricos de opressão seguem em aberto, se atravessam, se inter-relacionam, se empilham e influenciam mutuamente.

Kênia Freitas


Histórias ocultas e não contadas Nesses três trabalhos de Orlando Bomfim, netto, pensar a construção de liberdade passa por uma rememoração e mesmo por um processo de reconstrução de histórias que não foram contadas e/ou estão ocultas. Concretamente no cinema esse processo esbarra no desafio de inventar um material imagético e sonoro que não existe – seja por questões tecnológicas históricas, seja porque o apagamento dos fatos foi uma estratégia fundamental dos regimes de opressão e controle. Em cada um dos filmes, essa estratégia de recriação e invenção será diferente. Em A história oculta os depoimentos e entrevistas no presente serão a fonte privilegiada dessa invenção. Neste sentido, em consonância com o entendimento da Nova História, a micronarrativa familiar não é uma questão pessoal ou íntima, mas coletiva. São os relatos e as interpretações de familiares e policiais que viveram o acontecimento que suprem as ausências oficiais de registro. Em Canto para a liberdade o diretor busca recursos na inserção de ilustrações e fotografias de pessoas negras, e sobretudo na performatividade da festa e ritos do Ticumbi no filme. A oralidade da tradição de resistência e o movimento dos corpos negros do presente que reencenam a narrativa dos seus ancestrais atualizam, dão corpo e presentificam a ausência histórica. Se os registros oficiais são raros, o performar no filme é criação histórica no ato. Em Dos Reis Magos dos Tupiniquins uma polifonia de músicas, discursos e narração expositiva e encenada recriam e apontam para diversos momentos históricos. Mais do que a materialidade destes momentos, o filme aposta em um potencial alusivo e crítico da história nacional. Caberá aos espectadores darem conta de interpretar a acumulação das referências históricas, para se tornarem agentes ativos desse processo de reinvenção dos acontecimentos. Neste conjunto de filmes, a liberdade não será um conceito dado ou idealizado, mas uma construção do fazer histórico e fílmico. No intuito de desvelar os processos de opressão e resistência, o realizador trabalhará com sons e imagens como evidências inventivas da realidade. Essa realidade que interessa ao diretor não está estagnada ou dada, mas é recriada e ressignificada nas estratégias de montagem e de narração dos documentários. Se fora e dentro da tela a liberdade é a meta, a sua construção cinematográfica é peça motora dos filmes de Orlando Bomfim, netto. »

Liberdade em construção

67


BRUNO GALINDO é crítico, curador e roteirista. Escreve para blogs e revistas virtuais, além de ter projetos com um coletivo negro de cinema e audiovisual. É autor do blog Sessão Aberta (sessaoaberta.com).


Fazer ver o invisível1 Bruno Galindo

Andar em Ouro Preto significa entre outras coisas notar uma seletividade de imagens. A arquitetura segue símbolo de autoridade, as estátuas remetem sempre ao poder histórico no controle das narrativas. Não há, em destaque, estatuária aos inconfidentes, aos revolucionários, aos insurgentes. E isso não é pouco quando no nosso tempo inexistir nas imagens é inexistir por completo. Enquanto escrevo este texto escuto o lindo álbum de Vicente Barreto, Cambaco, nome também da primeira faixa, na qual, em dada altura, a letra me diz o seguinte: “o passado às vezes sai do lugar / onde era manada e rouquidão, hoje mercado negro de marfim / onde havia batuta e balafon, hoje é metralhadora a gargalhar”. O sentimento instaurado em mim desde ontem, ecoado nessa canção, encontrou, no entanto, algum afago na sessão que abriu a terceira noite de filmes no Cine Vila Rica. Na Mostra Preservação tive a grata surpresa de descobrir, entre as sessões deste terceiro dia da 13ª CineOP, a obra de um diretor sobre o qual, confesso, nunca havia ouvido falar, mas que com certeza revisitarei sempre que possível. Verso aqui sobre os filmes de Orlando Bomfim, netto. E como é bom quando um gesto curatorial percebe a potência de um programa de filmes para além de tensões circunstanciais ou mesmo predileções pessoais apenas. Filho de Orlando Bomfim Junior, desaparecido político em 1975, Bomfim, netto traz em sua filmografia dois traços que considero fundamentais: uma consciência bastante apurada sobre as relações de poder mediadas pela presença da câmera, além de um interesse genuíno pelas pessoas e manifestações culturais que registra, sobretudo em cidades do Espírito Santo. Entre os cinco filmes exibidos na sessão, falarei mais profundamente sobre os três que de alguma forma respondem à relação entre imagem e existência que abre 1. Texto originalmente publicado no site Cine Festivais em 18 de junho de 2018, com o título Crônicas de Ouro Preto #3: Fazer ver o invisível, como parte da cobertura da 13º CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto. Reproduzido com autorização do autor e do site (cinefestivais.com.br).

69


este texto, e que por isso mais me interessam. São eles: Canto para a liberdade – A festa do Ticumbi (1978); Mestre Pedro de Aurora, pra ficar menos custoso (1978); e Dos Reis Magos dos Tupiniquins (1985).2 Cada filme tem suas peculiaridades e escolhas próprias, mas nitidamente constroem juntos uma relação de imagens com um diálogo bastante central: no cinema, não basta dar voz, é preciso dar imagens aos invisíveis. Antes de chegar aos filmes individualmente, a mesma questão que os filmes de Bomfim, netto e que a letra de Vicente Barreto me propuseram proponho agora a quem lê; retórica talvez, mas necessária: em algum lugar do Brasil existem estátuas aos pedreiros? Ou mesmo gravuras aos garis? E pinturas às empregadas domésticas, temos? “Onde era savana e kalundu / hoje é nego roendo o couro cru / onde havia calunga e bonbolon / hoje a mesa tá posta pra urubu”, continua dizendo a voz de Vicente Barreto.

70

Chegamos em Canto para a liberdade – A festa do Ticumbi, que já no próprio título integra seus três eixos principais: o canto literal como forma de expressão; a ideia de festa e de resistência como imagens muito próximas; a ideia da festa como manifestação pessoal e coletiva ao mesmo tempo. E neste curta essas relações se constroem de maneiras muito objetivas, o que de modo algum sugere a transformação de sujeitos em objetos. Mais do que um registro sobre a festa (inserida numa tradição de herança quilombola do interior do Espírito Santo), o filme traz registros de quem faz a festa. E costura por fora ainda outra relação de imagens que se incorporam ao filme (a gravura do período escravocrata que dá lugar a uma fotografia etnográfica e que, por fim, vira um still de um dos senhores entrevistados no próprio filme). Existir na imagem é existir no mundo. A relação entre Canto… e o seguinte, Mestre Pedro de Aurora, pra ficar menos custoso, é construída dentro dessa mesma relação, mas num recorte mais pontual: se no primeiro curta as imagens são mais gerais, com planos abertos e geográficos que tentam capturar a expressão cultural como um todo, no segundo o processo é inverso: a partir da figura do cantador Pedro de Aurora o filme dá imagens a sua história e a partir delas passa a ampliar seus campos, registrando primeiro seu íntimo em seus gestos (as mãos em ritmo no tambor), depois também sua família, 2. Os outros dois filmes exibidos na mesma sessão da Mostra Preservação foram Itaúnas desastre ecológico (1979) e Augusto Ruschi Guainunbi (1975-1979). A sessão ocorreu no dia 16/06/2018, no Cine Vila Rica, em Ouro Preto (N.E.).

Bruno Galindo


chegando ao espaço onde vivem, até culminar num belo retrato da pequena comunidade ao som do próprio canto de Pedro de Aurora. Há uma dignidade definitiva na imagem que encerra o filme e que me trouxe novamente a dúvida: haveria, em Ouro Preto, Espírito Santo ou São Paulo (de onde venho), estátuas a Pedro de Aurora, este senhor de idade e de tantas histórias? “Tem mil anos que a vaca se embrejou / só cambaco ainda relembrou”, diz o último verso da canção de Vicente Barreto. Dessa relação entre imagem e memória caminhamos ao terceiro curta-metragem. Dos Reis Magos dos Tupiniquins é, entre os filmes aqui citados, o mais experimental, organizado naquela que é sua maior ferramenta nas relações de sentido: a montagem. Interpondo sequências de cenas culturais populares da Vila de Nova Almeida com imagens da restauração do altar da Igreja dos Reis Magos, o filme cria tensões sucintas, mas profundas. Os planos gerais servem como localização geográfica e, mais do que isso, da dimensão de tensões históricas dentro de um espaço relativamente pequeno. As sequências de danças e cantos do festejo dão faces e feições (que nos remetem sempre a uma herança negra muito forte) aos movimentos em grupo; as sequências em que um profissional de restauração vai retirando delicadamente, com uma ferramenta, as camadas de partes de um monumento histórico surgem em seguida. As imagens da festa alteram o sentido das imagens do restauro, e vice-versa. Atesta-se então: não há concreto restaurado nem novas tintas que alterem o sentido primário das imagens associadas ao poder. Não há reformulação possível dessas imagens sem sua completa destruição, simbólica ou não. Pra alterar os sentidos históricos de algumas imagens, só erguendo monumentos a quem matam, a quem fica, a quem desaparece. Só esquecendo dos monumentos tombados e erguendo monumentos aos que tombam. Mas sendo isso, sabemos, impossível, que filmes como os de Orlando Bomfim, netto (senhor pacato e cineasta complexo) confiram, acima de tudo, dignidade às pessoas e aos movimentos que registram. Que a possibilidade de existir (num sentido muito mais amplo) no campo das imagens sirva como caminho para existir fora delas também, tal como a imagem do “Cambaco”, referenciada no álbum homônimo de Vicente Barreto: “cambaco é elefante velho, que tudo vê e já viu, grande imagem que permanece e que não se deslumbra ao que aí está / Cambaco é um certo cambalear / antigamente antes do mundo surtar”. »

Fazer ver o invisível

71


HUGO REIS é músico e​​realizador audiovisual, especializando-se em captação e edição de som com atuação em diversos filmes, séries de TV e internet. Mestre em Imagem e Som pela UFSCAR (São Carlos/SP), onde dedicou-se aos estudos de som no cinema.


Notas sobre a dimensão sonora dos filmes de Orlando Bomfim, netto Hugo Reis

Deparei-me pela primeira vez com os filmes de Orlando Bomfim, netto na antiga sala do Cine Metrópolis na Ufes, lá pelos anos 2000, quando ainda era estudante. Desde então já me chamava a atenção a beleza das imagens e as histórias que talvez não tivesse acesso se não dessa maneira, numa sala escura de cinema. Anos depois me veio o convite para fazer parte da equipe que se ocupou de cuidar da restauração dos filmes deste diretor, reconhecidos como patrimônio da cinematografia capixaba. Fiquei responsável pela remasterização sonora deste material, composto por sete filmes de curta e média metragens, desafio que aceitei com bastante interesse e curiosidade. Como pesquisador e profissional do cinema trabalhando com edição de som, havia realizado alguns trabalhos do tipo mas não com tamanha responsabilidade. À primeira impressão, grande parte dos trabalhos de Orlando Bomfim, netto como documentarista são lembrados pela linguagem que flerta com o gênero da reportagem jornalística, dialogando com certa tradição do documentário brasileiro dos anos 70, década em que a maior parte de seus filmes foi realizada. No que diz respeito à dimensão sonora deste estilo, predominam o recurso da narração em voz over como organizadora do conteúdo e das entrevistas de campo, intervalados por sequências que se apoiam principalmente na música, mas também nos ruídos captados in loco ou acrescentados na pós-produção. No entanto, revendo os filmes quinze anos depois daquele primeiro contato, noto com entusiasmo certa tentativa de diálogo, ainda que incipiente, com outras formas de uso do som no documentário. O tratamento musical de alguns ruídos, por exemplo, o flerte com técnicas de composição da música contemporânea, bem como a fusão de elementos do erudito e do popular aparecem aqui e ali como pontos fora da curva, espaços para pequenas experimentações que ultrapassam uma proposta eminentemente didática.

73


Na introdução de O Bondinho de Santa Tereza (1977), por exemplo, ouvimos uma música que parece mimetizar o som de um trem iniciando sua marcha. À marcação de um tambor, misturam-se em crescendo o som dobrado de uma cuíca e o som ritmado de um apito de trem, objeto “industrial” aqui tratado como instrumento musical percussivo. A sequência de abertura termina em ritmo de samba, seguida por uma série de fotografias embaladas pela música Lamentos, de Pixinguinha que, junto às imagens, ancora o cenário do filme: a cidade do Rio de Janeiro. Em outra sequência, num plano geral do Largo dos Guimarães, a música Odeon é interrompida para dar lugar ao som da partida elétrica do bondinho saindo da estação, registro sonoro precioso que resistiu durante muito tempo, enquanto a maioria dos sons ao redor foram se modificando junto com as mudanças socioculturais e tecnológicas.

74

Tutti tutti buona gente, propriamente buona (1975) é um documentário pautado em grande parte por uma diversidade de músicas italianas que marcaram diferentes épocas, e também por depoimentos em off de imigrantes e seus descendentes, então moradores da cidade de Santa Teresa. Há, no entanto, uma passagem sonora estranha ao restante do filme, na sequência em que se vê uma série de retratos filmados dos antigos moradores, acompanhados somente pelo tic-tac de um relógio de parede. Esse ruído mecânico – muito utilizado no cinema para dar peso aos efeitos do tempo – desaparece no plano seguinte quando vemos a roda dentada de um antigo moinho. Aqui, o silêncio inicial gera expectativa e prepara o terreno para logo ser interrompido pelo som bastante expressivo do que parece ser o apito de um navio. Essa nota grave de longa duração sublinha o movimento de aproximação da lente em zoom in, que seguirá até encontrar o miolo daquela engrenagem. Essa sobreposição de som e imagem nos remete nostalgicamente às engrenagens dos navios que trouxeram esses imigrantes para o Brasil. Esse fluxo será interrompido com a sequência seguinte, na qual é apresentada ao espectador uma nova geração de ítalo-brasileiros: crianças e jovens sorridentes, embalados na pista sonora pela voz espirituosa de Lucio Battisti, cantando a setentista La canzone del sole. Propostas mais criativas de uso do som no documentário surgem já com o cinema sonoro, na passagem dos anos 20 para os anos 30. Cineastas como Walter Ruttmann, Dziga Vertov e Joris Ivens, por exemplo, apostam numa dimensão mais autoral, explorando as possibilidades técnicas de se ter o som e a imagem

Hugo Reis


num mesmo suporte físico. Em seu filme-encomenda Philips-Radio (1931), Joris Ivens, em parceria com o compositor Lou Lichtveld, utiliza a potência da trilha sonora (música, efeitos sonoros, diálogos e silêncio) para enaltecer os processos industriais de uma fábrica holandesa moderna. A riqueza de sons que se escuta em determinadas sequências foi gravada posteriormente nos estúdios da Tobis, em Paris, simulando os sons da fábrica com objetos e ferramentas. Os efeitos sonoros não estão presentes apenas para ilustrar as imagens, estão ali para serem ouvidos. O filme demonstra uma intensa fascinação com os sons do dia a dia que são tão importantes quanto a música. Este uso de sons do cotidiano cria um terreno desconhecido, o som no cinema estava sendo descoberto, testado e escutado pela primeira vez. O som claro, articulado e próximo; seu timbre e ritmo clamam por atenção. Os sons da fábrica foram selecionados e arranjados para dar um tom característico. Nesse sentido os efeitos sonoros contribuem para a ideia de “sinfonia industrial”. (DIBBBETS, 1999, p. 76)1

Na obra de Orlando, essa dimensão mais criativa do uso do som se faz notar mais claramente no trabalho realizado em parceria com o compositor Jaceguay Lins, cuja obra é marcada por influências da música contemporânea e pela fusão do erudito com o popular. O compositor pernambucano assina a trilha sonora de Augusto Ruschi Guainunbi (1975-1979), filme que defende o legado deste importante cientista e naturalista brasileiro. Já em seu prólogo, ouvimos uma montagem sonora em que o canto dos pássaros e outros animais é interrompido a todo momento por sons agressivos de motosserras, britadeiras e outras máquinas, tensionando ainda mais o discurso inflamado do próprio Augusto Ruschi, em defesa do meio ambiente. No filme, a melodia imprevisível da flauta de Balú se soma a uma grande variedade de sons de pássaros, contribuindo para a construção de ambiências sonoras peculiares. A composição, com ataques bruscos ao piano e grandes variações de dinâmica, parece querer mimetizar a trajetória aleatória, as mudanças bruscas de direção e o voo enérgico dos beija-flores. Em outros momentos, a velocidade dos floreios na flauta tenta alcançar o ritmo frenético do bater de asas desses pássaros. 1. Cf. DIBBETS, Karel. High-tech avant-garde: Philips Radio. In: BALLER, Kees (ed.). Joris Ivens and the documentary context. Amsterdam, 1999. p.72-86.

Notas sobre a dimensão sonora dos filmes de Orlando Bomfim, netto

75


Ao longo do filme, irá predominar a voz do narrador, com intervalos de bela interação poética dedicado à pura interação entre som e imagem. O momento mais sublime desse arranjo acontece na sequência que encerra o filme, quando um beija-flor se banha em cima de um toco de madeira, sob uma bica de água. A modulação de um ruído que ressoa a borbulhas de água, junto com a melodia da flauta, conversa livremente com os movimentos do pássaro em quadro. O Lins tinha uma capacidade muito grande de perceber os espaços vazios e a causa desses espaços vazios no filme, e isso dava a ele a possibilidade de entrar no filme. A música dele não fica solta no espaço, ela está agregada ao material, assim como o limo está integrado a uma pedra no rio, recebendo todos aqueles movimentos [...]. (Orlando Bomfim, netto) 2

76

Já a trilha sonora do documentário Dos Reis Magos dos Tupiniquins (1985) destaca-se pela colagem de vários fragmentos sonoros. Enquanto as imagens acompanham a voz over, que narra no melhor estilo “reportagem” a história da aldeia jesuítica dos Reis Magos (hoje Nova Almeida), uma outra camada de som parece sugerir relações entre a pequena vila e a história do Brasil. Essa pista de som “paralela” é composta de trechos musicais e frases emblemáticas de diferentes períodos históricos, desde os tempos coloniais até o período da ditadura civil-militar brasileira. O repertório é diverso, passando pelo erudito (Bachianas brasileiras nº5, de Villa-Lobos; O Guarani, de Carlos Gomes) mas, sobretudo, pelo popular (Samba do crioulo doido, de Stanislaw Ponte Preta; Querelas do Brasil, de Aldir Blanc; Dois jongos, de Clementina de Jesus e outros). Essa narrativa musical começa com a marchinha História do Brasil, de Lamartine Babo, sobreposta por um trecho da carta de Pero Vaz de Caminha (“em se plantando, tudo dá”), e termina com três canções (Senhora liberdade, de Nei Lopes e Wilson Moreira; O bêbado e a equilibrista, de Aldir Blanc e João Bosco; e Coração de estudante, de Milton Nascimento e Wagner Tiso) consideradas “hinos” da resistência contra a ditadura militar e a favor da campanha pelas Diretas já. Entre uma canção e outra, esse libelo de Orlando contra o período e os governos tenebrosos que lhe tiraram o pai lança em seu fluxo sonoro final a famosa frase do discurso de Tancredo Neves em 1985: “Não vamos nos dispersar”. Tal montagem 2. Entrevista concedida a Marcos Valério Guimarães para o documentário Melodiário: sobre a obra de Jaceguay Lins (2015).

Hugo Reis


fragmentada e não linear, que entrecruza o discurso das imagens com o discurso sonoro imputado principalmente pelas músicas – as quais já trazem toda uma carga de significados pré-existentes ao filme – sugere associações mais livres entre seus significantes, diferenciando este filme de outros trabalhos do cineasta. Orlando trabalhou com reconhecidos profissionais do som no cinema brasileiro. Nos trabalhos aqui analisados, repete-se nos créditos o nome de Carlos de la Riva, conhecido engenheiro de som espanhol, pioneiro na dublagem de filmes no Brasil e dono da Tecnisom, laboratório responsável pelo som dos filmes em questão. Outro parceiro importante foi Walter Goulart, pioneiro da captação e da engenharia do som no Brasil, que trabalhou com vários nomes da geração do Cinema Novo, como Glauber Rocha, Leon Hirszman e Bruno Barreto. Jorge Rueda, Flavio Holanda e Pedro Cavalcanti são os três técnicos de Som Direto que colaboraram com a obra de Orlando nos filmes aqui citados. Ao que parece, utilizam um esquema de captação simples o suficiente para garantir bastante agilidade, herdeiro da escola do cinema direto. A captação baseada no uso do microfone aéreo como principal recurso deixa vazar resquícios de uma paisagem sonora peculiar, que já não existe mais. Ainda nesse sentido, experiências timbrísticas que respondem pela estética sonora da época tornam-se hoje uma camada extra de interesse, fruição e informação. Vale notar também que, mesmo sob condições pouco ideais, filmes como Dos Reis Magos dos Tupiniquins (1985), Canto para a liberdade – A festa do Ticumbi (1978) e principalmente Mestre Pedro de Aurora, pra ficar menos custoso (1978) nos brindam com a enorme riqueza de registros sonoro-musicais únicos dessas manifestações da cultura popular capixaba. »

Notas sobre a dimensão sonora dos filmes de Orlando Bomfim, netto

77


FABIO CAMARNEIRO é doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP e mestre em Comunicação Impressa e Audiovisual pela mesma instituição. É professor adjunto na Universidade Federal do Espírito Santo – UFES.


Uma análise da fotografia de Douglas Lynch Fabio Camarneiro

A forte unidade estilística dos filmes de Orlando Bomfim, netto deve-se, entre outros fatores, à presença recorrente do fotógrafo Douglas Lynch.1 Ao registrar as identidades presentes na formação do Espírito Santo (os imigrantes italianos; as tradições de matriz africana), Lynch cria imagens de impactante sobriedade – contrassenso apenas aparente, que resume a construção de imagens ora mais “documentais” (e por vezes didáticas), ora mais “etnográficas”, que buscam a distância equilibrada entre o eu e o outro, entre a câmera e seus cenários, seus personagens e objetos. O ímpeto dos filmes de Bomfim, netto em registrar tradições populares é bastante comum no documentário brasileiro no final dos anos 1960 e na década de 1970, especialmente em alguns trabalhos da chamada Caravana Farkas, que trazem como tema central o trabalho manual (já então arcaico) realizado em espaços rurais e em risco de ser esquecido. Em Tutti tutti buona gente, propriamente buona (1975), um bom exemplo desse interesse pelo trabalhador braçal ocorre em dois âmbitos: nas pequenas indústrias fundadas por imigrantes italianos e no ambiente familiar. O funcionamento das máquinas em uma fábrica de tijolos e em uma serraria surgem como momentos de reportagem, em que a compreensão do contexto é mais importante à câmera do que a presença dos operários. Da mesma maneira, nas cenas caseiras, o fabrico do espaguete é feito por duas mulheres – uma mais velha, a outra ainda adolescente – que usam um pequeno torno para dar à massa sua forma característica. A diferença de idade entre elas revela a perpetuação da tradição no âmbito familiar. Ainda em outro momento, outra mulher prepara o cappelletti. O enquadramento é analítico, sendo que cada plano dá conta de 1. Douglas Edward Lynch nasceu no Rio de Janeiro em 02 de julho de 1942. Foi fotógrafo do Museu de Arte Moderna do Rio e trabalhou como fotógrafo de cena em filmes como Copacabana me engana (Antônio Carlos Fontoura, 1968) e Eu transo… ela transa (Pedro Camargo, 1972). Mudou-se para Vitória na década de 1980, onde montou com Orlando Bomfim, netto a produtora Cena Filmes. Atualmente vive em Brasília.

79


uma etapa específica do trabalho, filmado separadamente: abrir a massa, cortála, preparar o recheio, dobrar o cappelletti em seu formato. Quando reúne esses planos em sequência, a montagem lhes atribui um tom didático.

80

Ainda em Tutti tutti buona gente... – e ainda aproveitando o tema da comida –, um plano se destaca, seja no filme em si, seja em toda a obra de Bomfim, netto: uma imagem estática mostra uma mesa e, no plano mais próximo da imagem, os pequenos cappellettis; uma grande peça de queijo à esquerda, um cacho de uvas ao centro (os verdes bastante saturados) e, atrás deles, um garrafão e uma garrafa de vinho; alguns pedaços de pão ao fundo; tudo disposto de maneira bastante posada, pouco espontânea. O conjunto remete ao gênero pictórico da natureza-morta e é importante dizer que não se trata do único gênero da pintura europeia a aparecer neste filme que trata, propriamente, sobre a presença do imigrante na cidade de Santa Teresa. Mas, diferentemente da natureza-morta – que não vai reaparecer –, esses dois outros gêneros pictóricos – a paisagem e o retrato – serão recorrentes em toda a obra posterior de Bomfim, netto. Em outras palavras, do encontro entre a escolha dos temas e as elaboradas composições de Lynch, surgem os dois pilares centrais da obra do realizador: os cenários e a gente do Espírito Santo. Não são outros os dois elementos centrais de, por exemplo, Mestre Pedro de Aurora, pra ficar menos custoso (1978). Ao fotografar os cenários de Vila de Santana (localidade no norte do Espírito Santo, fronteira com a Bahia), onde vive o cantador que dá título ao filme, Lynch prefere a luz difusa, típica de dias nublados. As sombras menos marcadas parecem atenuar também os aspectos mais duros das precárias condições de vida dos protagonistas – o registro deixa de lado qualquer aparência de denúncia, e se aproxima com cuidado de seus personagens. Ao mesmo tempo, essa mesma luz mergulha as paisagens em uma atmosfera de tons pasteis que denota equilíbrio e harmonia, além de criar um paralelo entre as imagens e a capacidade agregadora da música, um dos temas centrais de Mestre Pedro de Aurora. A preferência por planos abertos que mostram o entorno da casa do cantador, com pessoas caminhando sem pressa, serve de contraponto aos detalhes dos instrumentos musicais, que surgem em planos muito próximos. Igualmente importante é o uso da cor: vestidos azuis ou vermelhos ou lilases, camisas cor-de-rosa ou ocres, as fachadas coloridas das casas, a vegetação de um verde intenso, os instrumentos musicais – a fotografia reforça uma paleta

Fabio Camarneiro


mais saturada, próxima da arte naïf. Mas a elaboração dos planos afasta qualquer ideia de naivité. Com maestria Lynch trabalha diversos quadros em um mesmo plano, sendo o melhor exemplo quando Mestre Pedro dá um depoimento à câmera, apoiado em uma janela. Atrás dele, vemos um cômodo escuro; ao fundo, outra janela abre a perspectiva rumo ao infinito. Além de trazerem equilíbrio à composição, as partes escuras parecem funcionar como metáfora para a condição do cantador (que é cego), ao mesmo tempo em que a janela ao fundo traz – literal e metaforicamente – um ponto de fuga (a música). O retrato de Mestre Pedro – assim como os retratos dos demais filmes de Bomfim, netto – não buscam a imagem idealizada da tradição romântica, mas a contundência do retrato realista. Às vezes, trazem os personagens de corpo inteiro em frente a suas casas ou com os instrumentos (sejam de trabalho, sejam de lazer) que os caracterizam. Em outros momentos, planos mais aproximados não buscam dissimular a pele sulcada, filmada sob a luz do sol, que ressalta as sombras. Nos filmes que lidam com as tradições de matriz africana, os close-ups privilegiam a pele negra. Em alguns momentos, os personagens chegam a interagir com a câmera com um riso aberto, como os jovens no final de Tutti tutti buona gente... Aqui, estamos próximos ao filme de família, em que tão ou mais importante que a pessoa retratada é a própria câmera a registrar as reações a sua presença. Em Mestre Pedro de Aurora, a tradição musical de matriz africana aparece tanto na banda sonora como nos rostos de pele negra que aparecem em close-up. A cerimônia festiva terá papel central em dois outros filmes, em que – por diferentes motivos – as limitações são mais evidentes: Canto para a liberdade – A festa do Ticumbi (1978) e Dos Reis Magos dos Tupiniquins (1985). Em ambos, a festa acontece à revelia da equipe de filmagem, que precisa descobrir, em meio ao acontecimento, o melhor ângulo para o enquadramento. Ainda assim, em alguns momentos em que há ao menos um aparente controle sobre a encenação, as filmagens noturnas acabam por limitar a profundidade de campo. O resultado é uma disposição mais encenada dos personagens, em que a luz artificial parece recortar um espaço teatral de representação, com os limites da cena bem definidos. Por outro lado, esse aparente confinamento presente nas imagens conecta esses filmes com um processo histórico maior: a repetição da festa, a presença da tradição, parece abrir esses registros para o passado (quando a cultura negra chegou ao estado) e para o futuro. Olhar o momento da festa a partir de um ponto de vista que parece espacialmente limitado é apontar para os limites da

Uma análise da fotografia de Douglas Lynch

81


própria experiência da temporalidade. Além disso, o movimento panorâmico é usado em vários momentos (não só nesses filmes como em todos os demais que compõem a coleção). Esse movimento horizontal tenta abarcar sempre um pouco mais do que cada plano pode conter e pode servir para entendermos um pouco mais do sentido desses filmes: construir não uma síntese, mas um painel vasto e por definição sempre inacabado da memória do Espírito Santo. O espaço (e os corpos que o ocupam) se torna depositário de toda uma história pregressa. Mas, ao contrário do que acaba de ser dito, há na obra de Bomfim, netto um filme que se destaca pela urgência jornalística em suas imagens e pela contundência de sua denúncia.

82

Se em Tutti tutti buona gente... ou em Mestre Pedro de Aurora as paisagens são trabalhadas como atmosfera, em Itaúnas desastre ecológico (1979) elas são o tema em si. Para dar conta do avanço da areia no norte do estado, Lynch altera de maneira radical seus até então equilibrados enquadramentos, o que faz deste o filme mais particular do realizador: ao sermos apresentados à pequena vila pertencente à cidade de Conceição da Barra, a imagem está quase sempre dividida ao meio: metade céu, metade terra; metade céu, metade mar... Em outros momentos, ainda atenta-se à chamada “regra dos três terços”, em que temos as imagens divididas horizontalmente com, por exemplo, duas partes de terra para uma de céu. Mas, ao enquadrar as dunas de areia que invadiram espaços de habitação e ruas, essa faixa de céu é reduzida pela metade. A areia passa a ocupar a quase totalidade do quadro, ou seja, aproximadamente cinco sextos da imagem – que assim traduz o desastre citado no título do filme. Além disso, a fotografia – um pouco estourada, com a luz refletida na areia que surge muito branca – parece sintetizar a violência tranquila do desastre. Para ajudar na composição da imagem, há sempre um arbusto, um personagem que caminha, um animal de carga. O contraste é aqui utilizado de maneira inédita em relação aos demais filmes de Bomfim, netto, e o resultado é algo próximo às gravuras de um cordel (inspiração de Glauber Rocha para o alto contraste de Deus e o diabo na terra do sol, de 1964). Deixamos para o final as imagens de maior exuberância – e de maior virtuosismo – de Douglas Lynch: os beija-flores criados e estudados pelo cientista Augusto Ruschi, que aparecem em Tutti tutti buona gente... e também no filme inteiramente dedicado ao pesquisador e pioneiro da ecologia no Brasil. Em Augusto Ruschi Guainunbi (1975-1979), Lynch utiliza um diafragma totalmente aberto e pouca luz artificial (para não perturbar os animais), num resultado de grande beleza,

Fabio Camarneiro


que dialoga com as primeiras experiências de captura do movimento de animais, pelo francês Étienne-Jules Marey ou o inglês Eadweard Muybridge. Ao resolver a questão técnica de filmar em viveiros (ambientes fechados e com pouca luz, em que a “colaboração” dos animais se torna imprescindível), Lynch consegue capturar o colorido variado dos beija-flores e também das plantas. Toda essa eloquência cromática desaparece quando encontramos Ruschi em seu ambiente de trabalho, de paredes e objetos muito brancos, iluminados por uma luz fria. Nesses momentos, o enquadramento é novamente analítico (como quando as mulheres preparam a massa em Tutti tutti buona gente...), em que cada plano registra uma pequena atividade que, depois, pode ser reconstruída pela montagem. Também neste filme temos um retorno à paisagem enquanto evocação de certa atmosfera de harmonia, como em Mestre Pedro de Aurora. Mas Augusto Ruschi Guainunbi é muito mais espetacular: quando o cientista caminha pelos cenários naturais, estes surgem como deslumbramento. Em meros 12 minutos, Ruschi parece querer nos mostrar que a ciência (como bem sabiam os inventores do cinema) não estava divorciada da beleza. Em 1988, Lynch dirigiu, fotografou e operou a câmera em um curta-metragem que parece sintetizar suas experiências nos filmes de Bomfim, netto. Receita artesanal2 apresenta, logo nos primeiros minutos, reenquadramentos a partir de uma janela (Mestre Pedro de Aurora), a filmagem de pescadores no mar (Itaúnas desastre ecológico), o trabalho artesanal de fabricação das panelas de barro, o preparo da tradicional moqueca capixaba (filmado de maneira analítica), os retratos montados em sequência (Tutti tutti buona gente...). Partes da trilha musical, por sua vez, remetem aos filmes das festas tradicionais. Mas Receita artesanal traz também uma consciência social que marca sua particularidade em relação ao cinema de Bomfim, netto. Neste, a busca é pela descoberta e valorização de uma identidade. Por outro lado, o curta de Lynch flerta com a tradição cinemanovista (ou neorrealista) de denúncia social, ao mostrar o pescador que, mesmo sendo “dono do mar”, não participa dos lucros gerados por seu trabalho – como em Arraial do Cabo (1960), de Paulo César Saraceni (ou A terra treme, de Luchino Visconti, de 1948). Essa experiência de Lynch como diretor é metade a busca do saber tradicional de Bomfim, netto, metade denúncia da exploração do capital. » 2. Receita artesanal teve argumento e roteiro escritos por Adilson Vilaça e Helô Dias, que convidaram Lynch para produzir, dirigir e fotografar o curta.

Uma análise da fotografia de Douglas Lynch

83


MARCOS VALÉRIO GUIMARÃES é cineclubista e professor de Arte. Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Artes (PPGA) do Centro de Artes da UFES. Criador do Metrópolis Cineclube e do Cine Jardins. VITOR GRAIZE é curador da mostra Imagens para a liberdade. Diretor e produtor audiovisual, assina a produção executiva do projeto Acervo Capixaba – Orlando Bomfim, netto.


Relatório do projeto Acervo Capixaba1 Marcos Valério Guimarães e Vitor Graize 1. Antecedentes Em 2016, Marcos Valério Guimarães apresentou o projeto intitulado “Orlando Bomfim, netto: Cinema, Memória e Cultura Capixaba” ao Edital de Seleção de Projetos Culturais e Concessão de Prêmio para Inventário, Conservação e Reprodução de Acervos, do Fundo de Cultura do Espírito Santo (Funcultura), por meio da Secretaria de Estado da Cultura, objetivando restaurar parte da cinematografia do cineasta Orlando Bomfim, netto que, de seu lugar estético e histórico, é um raro marco da cultura do/no Espírito Santo. Aprovado o projeto, Marcos Valério Guimarães convidou a Pique-Bandeira Filmes para produzir o projeto de restauração, com sua coordenação e pesquisa. Inicialmente, o projeto visava apenas a digitalização e difusão dos filmes da fase “capixaba” do cineasta, com obras realizadas ao longo das décadas de 1970 e 1980 nos municípios de Conceição da Barra, Santa Teresa e Serra, elaborando uma abordagem de aspectos humanos, culturais e naturais do estado. Posteriormente, a partir da pesquisa de matrizes e o encontro com a cópia em bom estado do filme carioca O Bondinho de Santa Tereza (1977) no Arquivo Nacional, o recorte deixou de ser o Espírito Santo e o projeto se reestruturou a partir de uma fase da carreira do cineasta, compreendida entre 1975 e 1985, período em que realizou os sete filmes que compõem o projeto Acervo Capixaba – Orlando Bomfim, netto.

2. Financiamento O projeto foi realizado com prêmio de R$ 60.000,00 (sessenta mil reais). Contou ainda com o apoio da Afinal Filmes, empresa produtora do Rio de Janeiro, onde 1. Texto originalmente publicado no catálogo da 13ª CineOP - Mostra de Cinema de Ouro Preto, realizada entre 13 e 18 de junho de 2018.

85


foram realizados o scan do material cinematográfico, a colorização, a restauração digital, a aplicação de novos créditos, os deliveries e a masterização digital, e a gravação das fitas LTO para preservação. Também contou com o investimento de serviços e equipe da Pique-Bandeira Filmes e dos profissionais parceiros da produtora, entre eles o editor de som Hugo Reis, que assina a restauração sonora digital, e o estúdio de design Monomotor, que criou o projeto gráfico.

3. Matrizes: material fílmico

86

Compõem o projeto os filmes: Tutti tutti buona gente, propriamente buona (35mm, 1975, cor, 28’); O Bondinho de Santa Tereza (16mm, 1977, cor, 30’); Canto para a liberdade – A festa do Ticumbi (35mm, 1978, cor, 20’); Mestre Pedro de Aurora, pra ficar menos custoso (35mm, 1978, cor, 11’); Itaúnas desastre ecológico (35mm, 1979, cor, 9’); Augusto Ruschi Guainunbi (35mm, 1975-1979, cor, 12’); Dos Reis Magos dos Tupiniquins (35mm, 1985, cor, 10’). É importante observar que o documentário As paneleiras do barro, realizado em Vitória, em 1983, peça importante dessa mesma fase da carreira do cineasta, foi deixado de fora do projeto pois não foi possível localizar nenhuma cópia da obra. O projeto digitalizou os negativos em 35mm e 16mm que se encontravam depositados no Arquivo Nacional (Rio de Janeiro) e também as cópias de exibição guardadas com o próprio cineasta. O Arquivo Público do Estado do Espírito Santo também possui cópias de exibição em película de parte da filmografia do cineasta. O material filmográfico em películas 16mm e 35mm foi revisado na Afinal Filmes pela Sra. Ângela Bífaro, que produziu relatórios específicos sobre todas as matrizes reunidas pelo projeto. Esses relatórios e os laudos do Arquivo Nacional balizaram a seleção dos materiais para digitalização, tratamento de cor e restauração, conforme descrição detalhada abaixo.

4. Scan, Restauração Parcial e Colorização Realizado o scan em resolução 4K, os filmes passaram por um processo de estabilização quadro a quadro e enquadramento na janela de exibição original. Constatou-se a necessidade de realizar uma restauração digital em dois filmes, cujas cópias estavam bastante comprometidas. Os filmes Tutti tutti buona gente, propriamente buona e Dos Reis Magos dos Tupiniquins passaram por um processo de

Marcos Valério Guimarães e Vitor Graize


restauração digital parcial, na Afinal Filmes, realizada pelo profissional Fernando Andrade. A restauração digital buscou a recuperação da cor original e a correção de problemas causados pelo mau estado de conservação do material fílmico. Os outros cinco filmes não passaram por restauração digital, mas pelo tratamento de cor, redução de ruídos, reenquadramento e estabilização digital, realizados pelos técnicos Pedro Saboya e Gabriel Passarelli, com coordenação de Alexandre Rocha e Marcelo Pedrazzi. Abaixo segue detalhamento técnico do processo de digitalização de cada filme: - O filme Tutti tutti buona gente, propriamente buona (1975), originalmente filmado em 35mm, foi escaneado em resolução 4K e restaurado digitalmente a partir de uma cópia de exibição em 16mm que estava em posse do diretor. A cópia de exibição 16mm depositada no Arquivo Público do Estado do Espírito Santo e os negativos originais em 35mm depositados no Arquivo Nacional estavam em avançado estágio de deterioração e não foram usados. A restauração digital incluiu o tratamento de cor, a restauração sonora do material escaneado e a produção de cópia de exibição digital 2K. Também foi produzida uma matriz digital de preservação com o material bruto escaneado. - O filme O Bondinho de Santa Tereza (1977), originalmente filmado em 16mm, foi escaneado em resolução 4K a partir do positivo de imagem e do som ótico da cópia 16mm depositada no Arquivo Nacional. O processo de digitalização incluiu o tratamento de cor, a restauração sonora do material escaneado e a produção de cópia de exibição digital 2K. Também foi produzida uma matriz digital de preservação com o material bruto escaneado. - O filme Canto para a liberdade - A festa do Ticumbi (1978) foi escaneado em resolução 4K a partir dos negativos originais 35mm de imagem e de som ótico depositados no Arquivo Nacional. O processo de digitalização incluiu o tratamento de cor, a restauração sonora do material escaneado e a produção de cópia de exibição digital 2K. Também foi produzida uma matriz digital de preservação com o material bruto escaneado. - O filme Mestre Pedro de Aurora, pra ficar menos custoso (1978) foi escaneado em resolução 4K a partir dos negativos originais 35mm de imagem e de som

Relatório do projeto Acervo Capixaba

87


ótico depositados no Arquivo Nacional. O processo de digitalização incluiu o tratamento de cor, a restauração sonora do material escaneado e a produção de cópia de exibição digital 2K. Também foi produzida uma matriz digital de preservação com o material bruto escaneado. - O filme Itaúnas desastre ecológico (1979) foi escaneado em resolução 4K a partir dos negativos originais 35mm de imagem e de som ótico depositados no Arquivo Nacional. O processo de digitalização incluiu o tratamento de cor, a restauração sonora do material escaneado e a produção de cópia de exibição digital 2K. Também foi produzida uma matriz digital de preservação com o material bruto escaneado.

88

- O filme Augusto Ruschi Guainunbi (1975-1979) foi escaneado em resolução 4K a partir dos negativos originais 35mm de imagem e de som ótico depositados no Arquivo Nacional. O processo de digitalização incluiu o tratamento de cor, a restauração sonora do material escaneado e a produção de cópia de exibição digital 2K. Também foi produzida uma matriz digital de preservação com o material bruto escaneado. - O filme Dos Reis Magos dos Tupiniquins (1985), originalmente filmado em 35mm, foi escaneado em resolução 4K e restaurado digitalmente a partir de duas matrizes. Foram usadas uma cópia de exibição em 16mm, bastante danificada, que estava em posse do diretor, e alguns planos em interpositivo de imagem 35mm, em ótimo estado de conservação, depositado no Arquivo Nacional no mesmo rolo do filme Mestre Pedro de Aurora, pra ficar menos custoso (1978). A restauração digital incluiu o tratamento de cor e a restauração sonora do material escaneado, mas não eliminou todas as imperfeições da cópia 16mm, que se encontrava em avançado estágio de deterioração. Foi produzida uma cópia de exibição digital 2K e uma matriz digital de preservação com o material bruto escaneado. Os negativos originais do filme não foram localizados.

5. Som A restauração sonora foi realizada pelo editor de som Hugo Reis, em Vitória. Durante o processo, o profissional produziu um relatório detalhado de restauração sonora com informações sobre o estado da banda sonora dos sete filmes tratados e o detalhamento dos ajustes realizados, com imagens capturadas do software de

Marcos Valério Guimarães e Vitor Graize


edição de som. As intervenções sonoras realizadas foram basicamente remoção manual de cliques e pops, atenuação de médios e agudos, redução de saturação, adequação de volume (aumento ou redução) aos padrões digitais, e eliminação de ruídos. Em seguida, foi realizada a remasterização sonora em estéreo.

6. Novas cópias digitais Não foram produzidas novas matrizes de preservação em material fílmico. Foram feitas cópias de preservação digital, em arquivos DPX, gravados em LTO 5, do material escaneado em dois formatos: o material escaneado sem tratamento e o material escaneado colorizado e, conforme o caso, restaurado. As novas matrizes digitais têm as seguintes especificações técnicas: Resolução: 4K 4096x2160 DCI Codec de vídeo: Apple Pro Res 4444 Frame rate: 24fps Áudio: 2.0 (24bits) A partir dessas matrizes, foram produzidas novas cópias digitais de exibição em formato DCI (DCP) 2K. Nas novas cópias, foram incluídos créditos iniciais e finais, em cartelas de padrões diversos aos originais, com informações sobre o processo e com os créditos da equipe do projeto de digitalização. Pretende-se o depósito desse material de preservação, em formato LTO, sob guarda do Arquivo Nacional.

7. Outras informações O projeto também reuniu materiais conexos aos filmes, como materiais gráficos, cartazes, impressos e registros diversos na imprensa com matérias, fotografias e reportagens sobre o lançamento dos filmes, exibição em festivais e entrevistas com o diretor. O projeto também realizou a transcrição dos créditos originais dos filmes e a tradução dos diálogos e legendagem na língua espanhola. A partir da realização do projeto com a obra de Orlando Bomfim, netto, a PiqueBandeira Filmes criou o selo Acervo Capixaba para o relançamento e a difusão de obras cinematográficas produzidas no Espírito Santo em novas cópias digitalizadas e restauradas. »

Relatório do projeto Acervo Capixaba

89


90


ARQUIVO


92


93

Especial A vez do curta-metragem no Brasil. A Gazeta, 17/07/1977. Acervo: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo (APEES).


94


95

Bomfim e a importância do documentário. A Tribuna, 16/02/1978. Acervo: APEES.


96

Coruja de Ouro / 77. Revista Filme Cultura 29, maio de 1978. p. 15-24. Acervo: http://revista.cultura.gov.br/. Reprodução: págs. 15 e 16 (acima); págs. 20, 21 e 24 (direita).


97


98


Seção Curta metragem. Revista Filme Cultura 29. p. 114-124. Acervo: http://revista.cultura.gov.br/. Reprodução: págs. 120-122.

99


100

Incentivo ao filme cultural no estado do Rio. Filme Cultura 32, fevereiro de 1979. p. 90-96. Acervo: http://revista.cultura.gov.br/. Reprodução: pág. 90.


101

Orlando Bomfim, netto e Hermógenes Lima Fonseca apresentam o mestre Pedro de Aurora ao público universitário, em sessão do filme no Cineclube Universitário Cláudio Bueno Rocha, na UFES, em 1982. Fotos: Sebastião Ribeiro Filho.


102


Itaúnas, desastre ecológico. Jornal do Brasil, 08/10/1979. Acervo: Rogério Medeiros.

103


104


BrasĂ­lia 79. Filme Cultura 34, jan./fev./mar. de 1980. p. 17-18. Acervo: http://revista.cultura.gov.br/.

105


Cartaz original do filme Canto para a liberdade - A festa do Ticumbi, criado pelo artista plaĚ stico Nenna. Acervo: SebastiaĚƒo Ribeiro Filho. 106


107


108


109

O curta-metragem já é nosso? Filme Cultura 35/36, jul./ago./set. de 1980. p. 38-40. Acervo: http://revista.cultura.gov.br/. Reprodução: págs. 38 e 39.


110

Dossiê Som e Cinema. Entrevista com Jaceguay Lins na seção Os compositores. Filme Cultura 37, jan./fev./mar. de 1981. p. 08-16. Acervo: http://revista.cultura.gov.br/. Reprodução: págs. 10 e 11.


111


Material de divulgação do filme Receita artesanal. 1988. Acervo: APEES

112


Ruschi é tema de filme. Matéria sobre projeto de longa-metragem de Orlando Bomfim que não foi realizado. A Gazeta, 27/06/1990. Acervo: APEES. 113


PROGRAMAÇÃO Todas as sessões têm entrada franca. As exibições serão em formato digital (DCP e outros). O formato original de exibição de cada filme está citado entre parênteses.


QUINTA-FEIRA | 22/11 19h00 Abertura com a presença do cineasta Orlando Bomfim, netto e exibição especial de Status 69 - A gente que a gente vê (16mm, 1969, p&b, 2’) 19h30 Sessão 01 | Territórios Tutti tutti buona gente, propriamente buona (35mm, 1975, cor, 28’) O Bondinho de Santa Tereza (16mm, 1977, cor, 30’)

SEXTA-FEIRA | 23/11 12h00 Sessão 02 | Cultura Popular Canto para a liberdade - A festa do Ticumbi (35mm, 1978, cor, 20’) Mestre Pedro de Aurora, pra ficar menos custoso (35mm, 1978, cor, 11’) Dos Reis Magos dos Tupiniquins (35mm, 1985, cor, 10’) Casaca (Digital, 2013, cor, 20’) 18h20 Sessão 04 | Memória A palavra do autor (Digital, 2018, cor, 20’) Linhas paralelas (35mm, 2010, cor, 13’) A história oculta (Digital, 2012-2014, cor, 30’)

19h30 Sessão 03 | Da Terra para a História Augusto Ruschi Guainunbi (35mm, 1975-1979, cor, 12’) Itaúnas desastre ecológico (35mm, 1979, cor, 9’) Receita artesanal (16mm, 1988, cor, 15’) Dos Reis Magos dos Tupiniquins (35mm, 1985, cor, 10’) SÁBADO | 24/11 12h00 Sessão 04 | Memória A palavra do autor (Digital, 2018, cor, 20’) Linhas paralelas (35mm, 2010, cor, 13’) A história oculta (Digital, 2012-2014, cor, 30’) 17h20 Sessão 01 | Territórios Tutti tutti buona gente, propriamente buona (35mm, 1975, cor, 28’) O Bondinho de Santa Tereza (16mm, 1977, cor, 30’) 18h30 Sessão 02 | Cultura Popular Canto para a liberdade - A festa do Ticumbi (35mm, 1978, cor, 20’) Mestre Pedro de Aurora, pra ficar menos custoso (35mm, 1978, cor, 11’) Dos Reis Magos dos Tupiniquins (35mm, 1985, cor, 10’) Casaca (Digital, 2013, cor, 20’)

115


19h30 Debate: Imagens para a Liberdade O resgate de movimentos de resistência e luta pela liberdade foram uma preocupação constante na cinematografia de Orlando Bomfim, netto. Neste debate, discutiremos como as imagens elaboram o registro de memórias e tradições, expandindo seu potencial político.

18h30 Sessão 03 | Da Terra para a História Augusto Ruschi Guainunbi (35mm, 1975-1979, cor, 12’) Itaúnas desastre ecológico (35mm, 1979, cor, 9’) Receita artesanal (16mm, 1988, cor, 15’) Dos Reis Magos dos Tupiniquins (35mm, 1985, cor, 10’) SEGUNDA-FEIRA | 26/11

116

Convidados: Kênia Freitas, pesquisadora e crítica de cinema, Erly Vieira Jr., cineasta, escritor e professor da UFES, e Lavínia Cardoso, historiadora, ativista negra e professora. Mediação de Maria Ines Dieuzeide. DOMINGO | 25/11 12h00 Sessão 01 | Territórios Tutti tutti buona gente, propriamente buona (35mm, 1975, cor, 28’) O Bondinho de Santa Tereza (16mm, 1977, cor, 30’) 17h20 Sessão 04 | Memória A palavra do autor (Digital, 2018, cor, 20’) Linhas paralelas (35mm, 2010, cor, 13’) A história oculta (Digital, 2012-2014, cor, 30’)

Não haverá sessão TERÇA-FEIRA | 27/11 12h00 Sessão Acervo Capixaba 01 Tutti tutti buona gente, propriamente buona (35mm, 1975, cor, 28’) Mestre Pedro de Aurora, pra ficar menos custoso (35mm, 1978, cor, 11’) Canto para a liberdade - A festa do Ticumbi (35mm, 1978, cor, 20’) 13h00 Sessão Acervo Capixaba 02 O Bondinho de Santa Tereza (16mm, 1977, cor, 30’) Augusto Ruschi Guainunbi (35mm, 1975-1979, cor, 12’) Itaúnas desastre ecológico (35mm, 1979, cor, 9’) Dos Reis Magos dos Tupiniquins (35mm, 1985, cor, 10’)


18h20 Sessão 01 | Territórios Tutti tutti buona gente, propriamente buona (35mm, 1975, cor, 28’) O Bondinho de Santa Tereza (16mm, 1977, cor, 30’) 19h30 Sessão 02 | Cultura Popular Canto para a liberdade - A festa do Ticumbi (35mm, 1978, cor, 20’) Mestre Pedro de Aurora, pra ficar menos custoso (35mm, 1978, cor, 11’) Dos Reis Magos dos Tupiniquins (35mm, 1985, cor, 10’) Casaca (Digital, 2013, cor, 20’)

18h20 Sessão 03 | Da Terra para a História Augusto Ruschi Guainunbi (35mm, 1975-1979, cor, 12’) Itaúnas desastre ecológico (35mm, 1979, cor, 9’) Receita artesanal (16mm, 1988, cor, 15’) Dos Reis Magos dos Tupiniquins (35mm, 1985, cor, 10’)

QUARTA-FEIRA | 28/11

19h30 Lançamento do Catálogo e Debate: Documentário e Invenção Como o cineasta explora as possibilidades do fazer documental? Buscamos desvendar as invenções formais propostas pelos filmes de Orlando Bomfim, netto em seu encontro com os povos e culturas do Espírito Santo, pensando também nos diálogos com o cinema brasileiro.

12h00 Sessão Acervo Capixaba 02 O Bondinho de Santa Tereza (16mm, 1977, cor, 30’) Augusto Ruschi Guainunbi (35mm, 1975-1979, cor, 12’) Itaúnas desastre ecológico (35mm, 1979, cor, 9’) Dos Reis Magos dos Tupiniquins (35mm, 1985, cor, 10’) 13h00 Sessão Acervo Capixaba 01 Tutti tutti buona gente, propriamente buona (35mm, 1975, cor, 28’) Mestre Pedro de Aurora, pra ficar menos custoso (35mm, 1978, cor, 11’) Canto para a liberdade - A festa do Ticumbi (35mm, 1978, cor, 20’)

Convidados: Hugo Reis, músico e realizador audiovisual, e André Felix, diretor e roteirista de cinema. Mediação de Vitor Graize.

117


CRÉDITOS SESC | SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Presidente do Conselho Nacional Antonio Oliveira Santos

DEPARTAMENTO REGIONAL

118

DEPARTAMENTO NACIONAL

NO ESPÍRITO SANTO

Direção-Geral

Presidente do Conselho Regional

Carlos Artexes Simões

José Lino Sepulcri

Diretoria de Cultura

Diretor do Departamento Regional

Marcos Henrique Rego

Gutman Uchôa de Mendonça

Gerência de Cultura

Gerente do Centro Cultural Sesc Glória

Marcia Costa Rodrigues

Carlos Bermudes

Assessoria em Audiovisual

Coordenadora de Cultura

Marco Aurélio Fialho

Rita de Cássia Sarmento Costa

Fábio Lucas Belotte Assessor em Audiovisual Assessoria em Museologia

Leonardo Almenara

Pamela Oliveira Assessora de Imprensa Assistência de Produção Cultural

Gabriela Galvão

Nathan Yuri Gomes Operadores de Projeção Cinematográfica Assessoria de Comunicação em Cultura

Francinardo de Oliveira

Juliana Alberico Gutierre

Theo Mathias Lopes


Mostra de Cinema Imagens para a Liberdade: Retrospectiva Orlando Bomfim, netto EQUIPE Produção

Operadores de Projeção

Pique-Bandeira Filmes

Cinematográfica e

AGRADECIMENTOS

Preparação Técnica Curadoria

do Espaço

Adilson Vilaça

Maria Ines Dieuzeide

Francinardo de Oliveira

Adriano Garrett

Vitor Graize

Theo Mathias Lopes

Ana Luiza Calmon

Produção Executiva

Apoio

Berenicia Nascimento

Vitor Graize

Arquivo Público do Estado

Cilmar Franceschetto

Leonardo Almenara

do Espírito Santo

Claudino de Jesus

TV Gazeta

CTAv/Ministério da Cultura

Apoena Medeiros

Douglas Lynch

Coordenação

Eliomar Mazoco

Leonardo Almenara CATÁLOGO Victoria Brasil Design Gráfico

Fábio Carvalho Fran de Oliveira

Assistente de Produção Edição e Revisão

Gabriel Albuquerque

Maria Ines Dieuzeide

Gabriel Alves de Moura

Vitor Graize

Helô Dias Iphan Espírito Santo

Diana Klippel Projeto Gráfico, Editoração

Kassius Vinicius S. Bezerra

Equipe Pique-Bandeira

e Tratamento de Imagens

Lilian Casotti

Igor Pontini

Diana Klippel

Lucia Caus Patrícia Bragatto

Rodrigo de Oliveira Textos

Patrick Lynch

Convidados Debates

Bruno Galindo

Rede Gazeta

André Félix

Erly Vieira Jr.

Revista Filme Cultura

Erly Vieira Jr.

Fabio Camarneiro

Ricardo Sá

Hugo Reis

Hugo Reis

Rogério Medeiros

Kênia Freitas

Kênia Freitas

Sérgio Dias Forese

Lavínia Coutinho Cardoso

Marcos Valério Guimarães

Tiago de Matos Alves

Sandro José da Silva

Tinoco dos Anjos TV Educativa do Espírito

Preparação de Cópias e Vinheta

Revisão

Santo (TVE-ES)

Luiza Grillo Rabello

Gabriela Galvão

Universo Produção

119


Dados Internacionais de catalogação na Fonte – CIP Centro Cultural Sesc Glória (Danubia Florindo – CRB 862/ES) Imagens para a liberdade: retrospectiva Orlando Bomfim, netto / organização de Maria Ines Dieuzeide e Vitor Graize. Vitória, ES: Centro Cultural Sesc Glória, 2018. 119 p. : il. Catálogo da mostra de cinema realizada no Centro Cultural Sesc Glória, Vitória, ES, de 22 a 28 de novembro de 2018. ISBN 978-85-69009-05-4 1. Cinema – Catálogos. 2. Cinema brasileiro. 3. Cinema capixaba. I. Título.

69009

CDD: 791.4375



produção

apoio

realização


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.