ESCAVAR O FUTURO

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COORDENAÇÃO EDITORIAL

PISEAGRAMA

ORGANIZAÇÃO

FELIPE SCOVINO FERNANDA REGALDO RENATA MARQUEZ ROBERTO ANDRÉS WELLINGTON CANÇADO

ARTES VISUAIS FUNDAÇÃO CLÓVIS SALGADO




E74 Escavar o Futuro / Renata Marquez ... [et al.]. – Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2014. 368 p. Il. Outros orgs: Felipe Scovino, Fernanda Regaldo, Roberto Rolim Andrés, Wellington Cançado. ISBN 978-85-66760-03-3 1. Arte Moderna – Séc. XXI– Brasil - Exposições. 2. Arte Moderna – Séc. XXI – Crítica e Interpretação. 3. Palácio das Artes (Belo Horizonte, MG) - Exposições. 4. Espaço Urbano – Brasil - História. 5. Espaço Urbano – Belo Horizonte (MG) - História. 6. Sociologia Urbana - Brasil. I. Marquez, Renata. II. Scovino, Felipe. III. Regaldo, Fernanda. IV. Andrés, Roberto Rolim. V. Cançado, Wellington. CDD 701.03


COORDENAÇÃO EDITORIAL

PISEAGRAMA

ORGANIZAÇÃO

FELIPE SCOVINO FERNANDA REGALDO RENATA MARQUEZ ROBERTO ANDRÉS WELLINGTON CANÇADO

ARTES VISUAIS FUNDAÇÃO CLÓVIS SALGADO



A exposição e a publicação ESCAVAR O FUTURO são ações da Fundação Clóvis Salgado no intuito de provocar a reflexão sobre o mundo contemporâneo e criar canais de discussão pública para procurar entender as recentes manifestações artísticas e seus modos de usar os espaços, dialogar com a cidade e com a história. Foi sobre as estreitas relações entre arte/arquitetura/sociedade que a mostra se construiu. Convidados pela Instituição para realizar a curadoria, Renata Marquez e Felipe Scovino ampliaram as discussões inicialmente propostas. As relações entre arte e arquitetura reveladas em cada trabalho exposto são uma reafirmação de que a arte e as formas de apropriação da cidade funcionam como potentes chaves de entrada para discutirmos as construções sociais dos espaços urbanos. A exposição possibilitou à Fundação Clóvis Salgado revisitar sua própria história ao referenciar-se na mostra Objeto e Participação e na ação Do Corpo à Terra, procurando tomar consciência do momento histórico do qual ela participa e dele retira sua capacidade de reinventar-se. A publicação deste livro-catálogo, com coordenação editorial da PISEAGRAMA, quer possibilitar a ampliação da leitura da mostra e reafirmar o papel da Instituição na produção e compartilhamento de pensamento, estreitar as relações entre obras e público e dar voz aos artistas. E convoca os espectadores a contribuir por meio da recepção e do olhar que produza sentido para fazer da arte matéria crítica da nossa contemporaneidade.

FABÍOLA MOULIN MENDONÇA DIRETORA DE PROGRAMAÇÃO FERNANDA MACHADO PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO CLÓVIS SALGADO


10 ESCAVAR O FUTURO Felipe Scovino e Renata Marquez

16 ABERTURA DA AVENIDA AMAZONAS Wilson Baptista

30 DO CORPO À TERRA E ESCAVAR O FUTURO Conversa aberta com Felipe Scovino, Frederico Morais, Renata Marquez e Rita Velloso

70 SE VENDE Carmela Gross

78 ESTÉTICA E POLÍTICA Conversa de PISEAGRAMA com Dereco, João Castilho e Tiago Mata Machado

104 RUA DIREITA Claudia Andujar


120 O DIA EM QUE A CIDADE PAROU Depoimento de João Luiz da Silva Dias à PISEAGRAMA e André Veloso

132 AUTOMÓVEL Cinthia Marcelle

138 AUTOPISTA DEL SUR León Ferrari Intervenção de Roberto Andrés

146 FESTA E POLÍTICA NA RUA Conversa de PISEAGRAMA com Áurea Carolina, Gustavo Bones, Guto Borges, Joviano Mayer, Priscila Musa, Rafael Barros e Rita Velloso

178 PASSAARÃO Performance: Espanca!

186 OS BRUTOS Daniel Carneiro (org.)


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EMPOSSAMENTO Mauro Restiffe

NATAL NO MINHOCテグ Luiza Baldan

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SANTOS SUJOS: RETRATO DO VAZIO Patrテュcia Azevedo

218 NO AGLOMERADO DA SERRA Conversa de PISEAGRAMA com Cecテュlia Reis, Floriscena da Silva, Izabel Melo, Margarete Leta, Ronaldo Silva e Sara Lambranho

240 EXCERTOS DO PROJETO MUTIRテグ Graziela Kunsch

FACHADA CEGA Pedro Motta

260 RIOS DE BELO HORIZONTE Alessandro Borsagli

270 ARRUDAS Daniel Iglesias


282 RIO Fernando Ancil e Marco Scarassatti

288 NÃO TEM COISA MAIS FEIA DO QUE MUDANÇA DE POBRE NUM CAMINHÃO CHEVROLET Zé do Poço

292 COSMOPISTA MAXAKALI-PATAXÓ Projeto Convivência e Ancestralidade no ~ ~ Maxakali território Tikmu’un

306 MORADIA NOS ARREDORES DA CIDADE Marcel Gautherot

320 MODERNIDADES Conversa de PISEAGRAMA com Edésio Fernandes, Felipe Magalhães, Stéphane Huchet e Alícia Penna

342 UTOPIA (JK) Angela Detanico e Rafael Lain

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ÁRVORE DO ESQUECIMENTO Paulo Nazareth

LISTA DE OBRAS


ESCAVAR O FUTURO Felipe Scovino e Renata Marquez

Inicialmente convidados para conceber uma exposição sobre arte e arquitetura, que ocuparia simultaneamente vários espaços do Palácio das Artes, propusemos partir da noção de prática espacial como eixo transdisciplinar comum à arte, à arquitetura e à vida cotidiana – ou ao artista, ao arquiteto e à sociedade – para apresentar uma série de propostas, experiências e produções que facilmente borram os limites entre as disciplinas e os campos do conhecimento, habitando justamente as suas fronteiras compartilháveis. Optamos por iniciar a pesquisa curatorial com um levantamento historiográfico local, na contramão da amnésia insistentemente cultivada no País, trazendo novamente à tona o trabalho do crítico, artista e curador Frederico Morais. Ele propôs, em abril de 1970 no Palácio das Artes, os eventos Objeto e Participação e Do Corpo à Terra, emblemáticos no contexto da arte brasileira por sua força de ruptura histórica em plena ditadura. No trabalho Quinze Lições sobre Arte e História da Arte – Apropriações: Homenagens e Equações, Morais desvia a categoria artística de paisagem da galeria para as ruas da cidade, apresentando como primeira lição ilustrada a Arqueologia do urbano – escavar o futuro, entendendo a paisagem como ação prospectiva no ambiente. A frase de Frederico carrega um movimento duplo e simultâneo de retrospecção e prospecção e dá título à exposição, fomentando, na sua aplicação atual, uma homenagem e múltiplas novas equações. ESCAVAR O FUTURO propõe, nesse duplo movimento, uma reflexão atualizada sobre a produção artística dos anos 1960 e 1970, momento histórico no qual o espaço é entendido como matéria-prima da arte, investigando, em suas continuidades e rupturas, o interesse atual dos artistas pela produção social do espaço. Se em 1970 a escultura transformou-se em objeto e participação, a

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presente exposição-pesquisa assume o desafio de investigar atualizações para objeto e para participação no contexto da ação atual no ambiente, tentando trilhar caminhos para possíveis respostas culturais às seguintes perguntas: como podemos entender criticamente as dinâmicas espaciais frente ao paradigma moderno, suas territorializações perversas por um lado e seus poderes fabuladores por outro? Em contexto distinto daquele da ditadura militar, podemos ainda falar de guerrilha artística, como dizia Frederico Morais? Quais são os atributos estéticos da percepção e da ação nos lugares atuais do dissenso? Em torno de dois núcleos históricos que nos inspiram movimentos de escavação, orbitam novas práticas que são tensionadas por esse retorno reflexivo ao passado. Os dois núcleos são formados pela série fotográfica Moradia nos arredores da cidade, de Marcel Gautherot (c. 1959), e pela série fotográfica Rua Direita, de Cláudia Andujar (c. 1970), indagando-nos respectivamente sobre o que foi o modelo de modernidade que atravessou o Brasil nos anos 1950 e 1960, e que foi freado pelo Estado da ditadura, e suas relações com o atual modelo excludente envolto em especulação imobiliária, gentrificação, deslocamento social, demarcação de terras indígenas, etc. O modelo de modernidade importado, com sua ideologia globalizante e com o prejuízo da noção de público, nos faz perguntar como ficam a promessa de modernidade, a falência de tal promessa e as insurgências, reinvenções e propostas emancipatórias. Ao lado das imagens oficiais de Brasília, pelas quais é internacionalmente conhecido, Gautherot também fotografou o outro lado da dissidente experiência da nova capital: os aglomerados de barracos que surgiam ao redor do canteiro e tinham como revestimento os sacos vazios do cimento utilizado na obra do Plano Piloto. O livro de fotografias que Gautherot planejava fazer com es-

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sas imagens não encontrou patrocínio na ocasião e permaneceu inédito. Com Gautherot, lembramos o processo paradoxal de aglutinar e expulsar inerente à arquitetura: o processo de exclusão dos candangos, aqueles que foram os pés e as mãos de Brasília e acabaram expulsos da própria cidade que construíram, formando a periferia das cidades satélites. Sacolândia era o avesso da máxima do mestre modernista Le Corbusier – “a arquitetura é o jogo sábio, correto e magnífico dos volumes dispostos sob a luz” – e, em vez disso, evidenciava as problemáticas que os produziam, a complexidade, a contradição e a pluralidade do espaço histórico. A série da Sacolândia cria uma associação, guardadas suas devidas especificidades e escalas, com o achatamento da classe média hoje em dia, que sofre com a especulação imobiliária nos grandes centros urbanos em nome da infraestrutura para a Copa, as Olimpíadas e os portos... A obra Utopia (JK), de Angela Detanico e Rafael Lain, é uma fonte tipográfica digital que desenha a paisagem atual das grandes cidades brasileiras, retratando a convivência de elementos planejados modernistas com reações que proliferam em suas brechas, falhas e contradições. As caixas altas apresentam caracteres desenhados a partir de vistas de construções projetadas por Oscar Niemeyer em todo o Brasil; as caixas baixas são ocupadas por objetos e ações urbanas informais. Utopia foi originalmente apresentada em 2001, através de uma citação da obra Utopia, de Thomas More, datada de 1516. Em sua versão de 2013 para essa exposição, a fonte é utilizada para redigir um trecho especialmente selecionado do livro escrito por Juscelino Kubitschek em 1975, intitulado Por que construí Brasília: Quando desci do carro, os forasteiros me cercaram. Eram milhares, possuindo apenas a roupa do corpo. Muitos tinham mulheres e filhos. Queriam trabalhar; fazer alguma coisa; ganhar dinheiro para sustentar a família. E, como era natural, tinham necessidade de casas. Os próprios moradores da Cidade Livre se mostravam a favor da liberação das licenças. Diante de mim, um deles fez este apelo: “Vamos deixar o povo construir, presidente?” E ficou me olhando. Contemplei aquela massa humana; avaliei o volume dos sem-casas; e respondi também à feição dos pioneiros: “Está bem, pessoal. Que cada um faça sua casa, mas nada de invadir o Plano-Piloto.1 Se Gautherot e Detanico&Lain nos mostram a lateralidade da modernidade, Claudia Andujar constrói, cerca de 10 anos depois, um Brasil ao mesmo tempo retrógrado e conservador (politicamente), mas amplamente moderno em suas manifestações culturais. Um País dividido entre os engajados e os alienados. Um País cujo povo preferia manter-se calado e segregado a sofrer as represálias do Estado. Coincidentemente, a Rua Direita, localizada no centro da cidade de São Paulo, lugar de produção dessa série de fotografias de Andujar, também foi uma das vias percorridas por Flávio de Carvalho durante a seminal Experiência n.2, em 1931. Encurralado, perseguido e quase linchado pela massa enfurecida pelo fato de percorrer a procissão de Corpus Christi em sentido contrário e usando chapéu, Carvalho foi alvo da multidão. Na obra de Andujar, o povo cerca a câmera. A artista estabelece uma inversão de escala com o outro, isto é, mesmo sendo menor confronta-

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-se com a massa. E as pessoas nas ruas transformam-se, por força do ponto de vista, em seres públicos agigantados. Nesse estado de reconhecimento e estranhamento mútuos, a obra ganha força pelo seu contexto: a ditadura militar colocava em suspenso uma política da subjetividade por meio da desconfiança em relação ao outro. Entre Gautherot e Andujar, Patrícia Azevedo e Guga Ferraz ocupam as ruas com obras avessas à obsessão pela modernidade eleitoreira. Nas ações feitas nas eleições de 1998 e 2002, sob o título de Santos Sujos: retrato do vazio, Azevedo recolheu nas ruas santinhos políticos pisados, amassados e rabiscados, fez fotogramas com eles nos quais se embaralham frente e verso, os reimprimiu e os redistribuiu nas mesmas ruas, tensionando, com a sua nova (ou inerente) ilegibilidade, as políticas da representação. Com Até onde o mar vinha, até onde o Rio ia, Ferraz registrou sua interferência urbana realizada em 2010 no Rio de Janeiro: um desenho com sal grosso sobre asfalto que demarcou até onde o mar chegava ao centro da cidade antes do seu aterramento. Por sua vez, a obra Céu, também de Ferraz, devolve a perspectiva da paisagem aos vizinhos do Viaduto Engenheiro Freyssinet, no Rio de Janeiro, que tiveram suas janelas e vistas atravessadas, no início dos anos 1970, pelo concreto armado. E, logo ali, num movimento historiográfico local, Wilson Baptista, fotógrafo falecido aos 100 anos ainda durante o período da exposição, em 13 de janeiro de 2014, nos mostra a série Abertura da Avenida Amazonas, processo de modernização de Belo Horizonte registrado por ele em 1941, por encomenda do gabinete do então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek. As formas cônicas conhecidas como “damas” ou “testemunhas de nível” revelam a altura original do terreno e o quanto ele foi cortado para a implantação da nova avenida, segundo os inabaláveis planos do “prefeito furacão”. O modelo rodoviarista típico da modernidade aparece também em seis exemplares das conhecidas heliografias das décadas de 1970 e 1980 do argentino León Ferrari, que aplicam o repertório plástico do projeto urbano técnico na formulação de novas imagens caóticas e absurdas, mas que, curiosamente, não diferem muito da experiência que temos do trânsito nada fluido de hoje em dia. Várias obras podem dialogar direta ou indiretamente com Baptista e Ferrari: História do Futuro, de Milton Machado; Automóvel, de Cinthia Marcelle; Erupção, de João Castilho; Limousine, Ônibus e Pedestre, de Guga Ferraz, e Rio, de Fernando Ancil e Marco Scarassatti, esta última uma instalação sonora montada no sistema de som da Rádio Feira da Avenida Afonso Pena. Se vende, de Carmela Gross, ocupa o gramado vizinho do Palácio das Artes, no Parque Municipal, mesmo cenário do evento Do Corpo à Terra, em 1970. Explicitando o processo tão corriqueiro quanto dissimulado da transformação urbana através da indústria imobiliária em curso em todo o Brasil, Se vende, juntamente com outro letreiro ambiguamente publicitário, Centro Cultural, de Vitor Cesar – instalado na fachada do Centro de Arte Contemporânea e Fotografia, também na Avenida Afonso Pena –, se lançam no fluxo

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fático urbano, lembrando que o movimento gentrificador implica, sobretudo, expulsão e valorização para poucos. Paralelamente, Fachada Cega, de Pedro Motta, O peso de uma casa, de Sara Lambranho, Não tem coisa mais feia do que mudança de pobre num caminhão Chevrolet, de Zé do Poço, Natal no Minhocão, de Luiza Baldan, e Você não enxerga o que eu não vejo, de Eduardo Coimbra, David Pacheco e André Weller, oferecem, em pontos distintos do percurso da exposição, chaves críticas para rever o nosso entorno imediato em transformação. É importante notar que a linha que separa os dois núcleos históricos iniciais representados por Gautherot e Andujar se faz cada vez mais tênue. O ideal de modernidade e a insurgência das ruas são imbricados, retroalimentam-se, consomem-se mutuamente. Na exposição, os trabalhos orbitantes em torno de Gautherot e Andujar são apresentados propositadamente de forma embaralhada. Um mundo repleto de utopias que se desfazem e outras que nos abastecem de esperança, coincidindo na mesma proporção de fim e começo. O mundo como um espaço de intensa turbulência, com o som das ruas, o risco de que as coisas escorreguem mesmo para o excesso, de que se expressem no desejo, e de que a luta e a vontade de mudança em todos os níveis e circunstâncias sejam as verdadeiras medidas e, subitamente, sem nenhuma outra razão. ˜ ˜ Maxakali, O Projeto Convivência e Ancestralidade no Território Tikmu’un com o filme intitulado Cosmopista Maxakali-Pataxó, paralelamente à coleção de quatro vídeos da série Árvore do esquecimento, de Paulo Nazareth, ampliam a escala das ruas rumo à escala do território, fazendo presentes os movimentos de ocupação e desocupação do País por meio de reflexões propositivas acerca dos fluxos históricos colonizadores, respectivamente, relativos aos povos originariamente residentes aqui – representados pelos Pataxó e pelos Maxakali –, e aos povos trazidos à força da África, cujo ritual de saída e entrada é performatizado por Nazareth. Com o fim da ditadura militar e cerca de mais 15 anos de governos alinhados ao conservadorismo, em 2003 finalmente um governo de esquerda assume o poder. As fotos de Mauro Restiffe, da série Empossamento, nos povoam com a imagem de esperança e oportunidade. Mas o que aconteceu nesse intervalo de 10 anos, entre o primeiro governo Lula e as manifestações de junho de 2013? Foi na rua que se manifestou a chegada ao poder de Lula, e foi neste mesmo espaço, uma década depois, que se deu uma das discussões mais agudas sobre os caminhos da política no País. O estado das coisas 2 (três poderes) e Choque de ordem 2, de André Komatsu, tratam dos significados e alegorias da tríade nação, fronteira e território, delimitações de conflitos cotidianos e irresolutos no nosso país. O Século, de Cinthia Marcelle e Tiago Mata Machado, Excertos do Projeto Mutirão, de Graziela Kunsch, e a coletânea aberta Os Brutos, organizada por Daniel Carneiro, mostram a possível performance do conflito, a implicação recente do corpo nas ruas e, sobretudo, os espaços de novos imaginários em flagrante processo de autoentendimento, de um possível “exercício experimental de liberdade”, citando Mário Pedrosa.

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Frederico Morais falava de “camelô da arte” e “caixeiro-viajante da arte”, disposto a oferecer arte de graça para detonar a capacidade de imaginação – aí teríamos o exato ponto de conjunção da arte com a política, o “exercício experimental de liberdade”? A tensão artista/espectador pode ser atualizada na tensão artista/cidadão? Se podemos dizer que a noção de intervenção urbana foi radicalmente desafiada pela emergência das manifestações populares de junho de 2013, percebemos que o limite entre artista e cidadão parece ter sido borrado. A estética e a política surgiram em junho como imaginários experimentados e compartilhados nas mesmas faixas, performances, ações e ocupações feitas por cidadãos, artistas ou não, numa intervenção urbana coletiva para um potente desvio de rota cotidiano e simbólico. Se entendemos a arte justamente como o lugar de fabricação desses desvios de rota cotidianos e de novos imaginários compartilháveis – derivas, errâncias, ações, performances – podemos falar não do esvaziamento da arte, mas, em vez disto, da vitória da arte através da sua recente coincidência com a política? A proposta de substituir o catálogo da exposição por um livro, entendido também como obra produzida nesse processo – capaz de fornecer levantamento de dados, gerar conhecimentos, novas elucidações e recortes críticos a partir da exposição –, vem ao encontro da intenção historiográfica local presente no início do processo curatorial. Este livro, cujo projeto editorial ficou a cargo da Piseagrama, empreendeu uma série de conversas gravadas e transcritas e ensaios fotográficos originais sobre a história recente de Belo Horizonte, suas dinâmicas de confronto com os modelos de modernidade e as insurgências populares recentes. Esperamos que ele condense e conclua o estatuto desejado por nós de exposição-pesquisa, promovendo o duplo movimento contido na frase ESCAVAR O FUTURO.

1 > KUBITSCHEK, Juscelino. Por que construí Brasília. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1975. p.174

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ABERTURA DA AVENIDA AMAZONAS Belo Horizonte, 1941 Wilson Baptista















DO CORPO À TERRA E ESCAVAR O FUTURO Conversa aberta com Felipe Scovino, Frederico Morais, Renata Marquez e Rita Velloso Palácio das Artes, 11 de dezembro de 2013

Renata Marquez: Boa noite a todos e obrigada pela presença. Vamos tentar fazer uma conversa totalmente aberta dentro da ideia de “escavar o futuro”, uma vez que temos dois convidados com pesquisas muito distintas. Frederico Morais, com sua experiência de 1970, e Rita Velloso e sua pesquisa sobre arquiteturas atuais de insurreição. Teremos simultaneamente os movimentos retrospectivo e prospectivo nesta conversa. Numa breve introdução, gostaríamos de falar que a exposição ESCAVAR O FUTURO tem como tema originário a relação entre arte e arquitetura, tema proposto para o nosso trabalho curatorial por Fabíola Moulin, em abril de 2013. Felipe Scovino e eu, no processo de pensar as possibilidades dessa relação hoje, começamos por desconstruir os limites disciplinares da arte e da arquitetura, substituindo-os pelo termo “prática espacial”, pois, ao pensar em prática espacial, trazemos à tona justamente a fronteira entre as disciplinas e a produção do espaço que se expande rumo à ação de artistas, arquitetos, geógrafos, cidadãos... Após esse primeiro momento, o passo seguinte foi iniciar um movimento historiográfico local, pensando como as relações entre arte e espaço se deram e se dão aqui em Belo Horizonte.

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Imediatamente buscamos a experiência que Frederico Morais concebeu na ocasião da inauguração do Palácio das Artes, em 1970. Começamos a nos perguntar: no contexto histórico e político dos anos de 1970, que espaço era aquele que se apresentava como possibilidade, desafio, matéria, mídia? E o que temos hoje? Gostaríamos de discutir, aqui, as continuidades imaginadas e as diferenças suspeitadas. Se, em 1970, estávamos em plena ditadura militar, um contexto político muito específico, conseguiríamos definir o contexto político que temos hoje? Seria este tão distinto daquele? Encontramo-nos em um momento de diagnóstico, no qual ainda não temos as respostas e tentamos entender o que está acontecendo exatamente agora. Gostaríamos de propor esse movimento do remexer a terra local para ver se emerge alguma possibilidade imaginativa para podermos pensar o que vivemos hoje. E, claro, o que podemos fazer a partir disso. Felipe Scovino: Dando continuidade ao que a Renata comentava, me vem a imagem de uma parábola. Não só um entendimento de uma conexão dos

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anos 1970 com os dias de hoje, mas as diferenças e similitudes que existem entre eles. Durante a ditadura de militar, os projetos do Frederico Objeto e Participação e Do Corpo à Terra ajudaram a fomentar uma nova possibilidade de entendimento a respeito do objeto, do público e do artista. Há mesmo uma diferença entre o artista e o cidadão? Essa pergunta, no caso do Brasil, começa exatamente nesse período. De que modo se distinguiriam essas duas entidades? Outra pergunta que se colocava muito nesse período era a ideia de arte e vida. Neste momento, apesar de não vivermos sob uma ditadura militar, as insurgências populares que começaram em junho colocaram um ponto de interrogação sobre os rumos que a política vem tomando em nosso país, e essa imagem da parábola volta a acontecer como uma possibilidade para entender as similitudes entre esses dois tempos. É importante localizar esse ponto de partida da exposição. O próprio título da exposição faz referência ao trabalho do Frederico. Mas, também, a outras situações importantes, ainda nos anos 1960, pois não é à toa que abrimos a exposição com o trabalho de Marcel Gautherot registrando a Sacolândia, trazendo a questão do que deveria ser entendido como espaço moderno, do ser moderno, da construção da ideia de modernidade, que foi tão forte no Brasil no final dos anos 1950 e início dos 1960. Podemos pensar em uma série de situações para a constituição do moderno que passam obviamente pela arquitetura moderna, pela Bossa Nova, pelo neoconcretismo, pelos “50 anos em 5” de Juscelino... Acho muito significativa a ideia da lateralidade da modernidade: ao lado da construção de Brasília, ainda um dos grandes marcos da modernidade no País, do sonho e da utopia de um novo Brasil, houve um esquecimento dos homens que construíam esse moderno, que eram os candangos. E a construção da Sacolândia, que foi uma espécie de favela, dentro da cidade de Brasília, feita com sacos de cimentos e outros resquícios da própria construção da modernidade. Lado a lado com o trabalho inserimos as fotografias do Mauro Restiffe, registrando o empossamento do Lula em 2003, para pensarmos sobre a recente história política do País. Chegamos às insurgências populares de junho que estabelecem um contato direto com o trabalho Os Brutos, organizado por Daniel Carneiro, ou com o trabalho de João Castilho e mesmo o de Guga Ferraz. O quanto a ideia de sonho e utopia nasce e, de alguma maneira, passadas poucas décadas, ela se põe em revisão com as manifestações deste ano? Renata Marquez: O título da exposição é uma citação literal de Quinze Lições sobre Arte e História da Arte – Apropriações, Homenagens e Equações, do Frederico, que fez parte da exposição Do Corpo à Terra. Era a lição número 1: Arqueologia do Urbano: escavar o futuro. Quando lemos isso no nosso movimento historiográfico de pesquisa, enxergamos toda a questão da modernidade que o Felipe acabou de falar. A frase traz uma foto da Av. Afonso Pena como canteiro de obras, e, se olhamos para a cidade hoje, ela não está muito diferente disso, não é mesmo? Parece que estamos ainda reféns do mesmo ideal de modernidade de 50 anos atrás. Como isso é pos-

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sível? Será que não há outra saída? Como lidar com essa questão? Então, inicialmente pensamos em organizar a exposição a partir de dois trabalhos dos anos 1960 e 1970 que agrupariam em torno de si os demais trabalhos selecionados. Um deles, de fato, é a série da Sacolândia, de Marcel Gautherot. O outro é a série Rua Direita, de Cláudia Andujar. Nessa última série, ela vai para as ruas e encara as pessoas, fotografando-as de baixo para cima, e fazendo com que as pessoas fiquem agigantadas no espaço público. A partir desses dois trabalhos e de seus núcleos estruturantes, orbitariam os outros trabalhos, atuais, sugerindo o movimento duplo de “escavar o futuro”. Um movimento de voltar no tempo e entender um pouco como o Brasil acolheu de braços tão abertos esse ideal de modernidade nos anos 1950 e como ele é refém deste ideal até hoje. Felipe Scovino: A ideia do canteiro de obras se faz presente também na expografia proposta por Wellington Cançado e Ivie Zappellini. Sobre a série de Claudia Andujar escrevemos, como legenda, uma rápida história ficcional através da relação com o trabalho de Flávio de Carvalho, Experiência n.2, em que Flávio sai de casa, usando um chapéu, no dia da procissão de Corpus Christi, percorrendo-a ao contrário, e quase sendo massacrado pela multidão. Ele passa pela Rua Direita, a mesma rua fotografada por Andujar. Aliás, o fenômeno da massa e da multidão vem sendo discutido largamente não só pela História da Arte, mas, também, pela Geografia, Ciência Política e Filosofia há décadas. É uma imagem interessante que também está no trabalho de Mauro Restiffe, Daniel Carneiro ou Graziela Kunsch, dentre outros. A multidão, a massa, o coletivo aparecem não necessariamente em revolta contra algo, mas como ideia de insurgência de um movimento do corpo, de um movimento político, que se revela nessa exposição. Renata Marquez: Nesse processo de pesquisa historiográfica local, descobrimos também a série fotográfica de Wilson Baptista do canteiro de obras, de 1941, da abertura da Avenida Amazonas, encomendada por Juscelino Kubitschek quando era prefeito de Belo Horizonte. É quase uma arqueologia de Brasília, uma pré-Brasília na Avenida Amazonas, com o “prefeito furacão” e seu poder de intervenção urbana. Podemos pensar a ideia de intervenção urbana presente na situação do canteiro de obras e desse imaginário de modernização que culmina com Brasília. E, fazendo uma rápida transposição para a experiência recente de junho de 2013, fico muito desafiada a pensar na ideia de intervenção urbana depois das manifestações de junho. Foi uma experiência de tal potência, como intervenção urbana, que é difícil falarmos em intervenção urbana artística do mesmo jeito depois disso. E essa é uma das perguntas que a exposição traz, uma das dúvidas atualmente emergentes. Felipe Scovino: Esse canteiro de obras também pode se transformar em falência. Se pensarmos nos trabalhos de Sara Lambranho, André Komatsu ou Milton Machado, embora com pontos de partida distintos, notamos

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esse ambiente de falência e destruição. O trabalho do Milton traz um ponto de partida ficcional, mas que pode virar rapidamente algo concreto, real. O trabalho da Sara envolve outras circunstâncias, tocando situações políticas e sociais importantes para serem discutidas. E o trabalho de André traz a invenção de um país. Um estado imaginário que já pressupõe uma qualidade de impotência, falência, colapso. E, de alguma maneira, esse estado de latência em direção a uma falência revisionista nos faz pensar exatamente nesse momento contemporâneo. Aliás, a exposição tem muito mais perguntas do que afirmações contundentes. Renata Marquez: O caráter fundamental da exposição é a ideia de exposição-pesquisa. Imaginar a exposição não como obra acabada, mas como uma instância de possíveis “apropriações, homenagens e equações” – citando novamente Frederico. As questões estão apenas lançadas, as conexões não estão exatamente prontas. A exposição começou com os dois núcleos muito rígidos, depois vimos que não fazia sentido separar o núcleo das modernidades e o núcleo das manifestações, que o mais interessante seria deslocar as coisas e deixar as equações livres no espaço. No processo de pesquisa, deixamos pairar mais as dúvidas do que as conexões certeiras. Voltando ao canteiro de obras, há outros dois trabalhos que trazem, sem literalidade, essa discussão. São trabalhos que estão fora do Palácio das Artes. Um deles está no Parque Municipal e, o outro, na Avenida Afonso Pena. No Parque temos o letreiro gigante Se Vende, de Carmela Gross, trazendo o impulso da especulação imobiliária como a energia de transformação real da cidade. E, na Avenida Afonso Pena, o rio aéreo da dupla Fernando Ancil e Marco Scarassatti, que ocuparam a estrutura de autofalantes da Rádio Feira, sistema de som da feira hippie de domingo que não é usado nos demais dias, deixando ressoar continuamente os sons dos rios que foram sistematicamente tapados pelas obras cidade afora. Tentamos falar um pouco da obscenidade do canteiro de obras atual. Felipe Scovino: Situações tão graves que vivemos nos principais centros urbanos do País, para não falar do mundo inteiro, como a especulação imobiliária, diretamente ligada à gentrificação dos centros urbanos, que promove o deslocamento geográfico porque as pessoas não conseguem mais pagar o aluguel em determinadas áreas. Você tem um processo de expulsão de moradores, fenômeno que também se reverte para outras questões, como, por exemplo, o caso de Belo Monte e as comunidades indígenas. O espaço do Palácio das Artes ou de qualquer museu torna-se pequeno para essas discussões, questões que estavam guardadas nos anos 1970 e que, de alguma maneira, permanecem hoje em dia, às vezes tomando uma dimensão ainda maior. Renata Marquez: E falando nas contramodernidades, movimentos de ocupação do espaço que vão na contramão desse ideal moderno, comentaria dois trabalhos. Um é o do Zé do Poço, um videoclipe chamado Não tem coisa

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mais feia do que mudança de pobre num caminhão Chevrolet, uma música que ele compôs com autoironia, pois ele mora em Ribeirão das Neves: já foi expulso da cidade há muito tempo, já sofreu o deslocamento. O outro é o reencontro recente dos Maxakali com os Pataxó, que é um trabalho muito interessante por construir o imaginário prático da recartografia do território. Com ele, saímos da escala da rua e fomos para a escala do território. Os Maxakali e os Pataxó eram índios vizinhos e amigos originalmente, mas, pelas vias da colonização, os Maxakali foram fugindo e adentrando o País, enquanto os Pataxó ficaram no litoral. Os Pataxó perderam todo o arsenal ritualístico de canto e língua, mas, por outro lado, são muito mais organizados politicamente, reconquistaram suas terras na Bahia. Já os Maxakali têm todo o seu ritual de cantos e língua conservado, mas não são nada mobilizados politicamente nas lutas. O projeto propõe religar os dois povos, para se reencontrarem, se visitarem, trocarem e pensarem prospecções para a reocupação do território. É um projeto de extensão da professora da Escola de Música da UFMG Rosângela de Tugny, com o apoio do Ministério da Cultura. Um projeto em processo trazido para que se discuta a complexidade do território e de sua ocupação. Antes de passar a palavra para o Frederico Morais, gostaria apenas de falar sobre duas citações que foram muito inspiradoras como perguntas que queríamos lançar. Frederico fala de “guerrilha artística”, “camelô da arte” e “caixeiro viajante da arte”, e nos perguntamos sobre a atualidade desses termos, com essa nova roupagem de pensar a indistinção recente entre artista e cidadão. Cansamos de ler nos livros de História da Arte que a arte faz com que vejamos as coisas de outro modo, que é um desvio de rota, um imaginário possível de outras visibilidades e visualidades para o mundo: todos esses quase-clichês da arte contemporânea pudemos experimentar nas ruas sem chamar de arte, sem chamar de artistas aqueles que se manifestaram. Ficamos pensando na pertinência ou não de falarmos hoje de guerrilha artística, de camelô da arte e de caixeiro viajante da arte... Frederico Morais: Estou muito satisfeito e lisonjeado por estar aqui. Em primeiro lugar, queria citar algumas observações feitas por críticos colegas que podem servir como epígrafes. Mário Pedrosa, meu guru, escreveu o livro Arte e Necessidade Vital, em 1949, que li quando ainda morava em Belo Horizonte. A citação, que veio um pouco depois, diz o seguinte: “Sim, a sensibilidade é motriz em tudo o que o homem faz, em tudo sobre o que age, em tudo que descobre pela imaginação criadora, em todos os domínios, inclusive nos da política e da ciência. A sensibilidade não é apanágio dos artistas”. Ele diz outra coisa: “A revolução política está a caminho, a revolução social vai se processando de qualquer modo, nada poderá detê-la. Mas a revolução da sensibilidade, a revolução que irá alcançar o âmago do indivíduo, da sua alma, não virá senão quando o homem tiver novos olhos para olhar o mundo, novos sentidos para compreender suas tremendas transformações e intuições para superá-las. Essa será a grande revolução, a mais profunda

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e permanente. E não serão os burocratas do Estado que irão realizá-la”. Jean-Jacques Lebel, estudioso dos happenings, diz o seguinte: “A função da arte em relação à sociedade é expressar, a qualquer preço, o que está atrás do muro. O artista é quem arranca o véu. Toda linguagem é violação, violação de regra”. Mais uma citação, de um livro de 1968, de Michel Ragon, já comentando os acontecimentos de maio e junho em Paris, aquela famosa teoria da imaginação no poder. Muita gente, depois de junho, está se lembrando dos acontecimentos de maio e junho em Paris, mas eu acho que 1968 não buscava propriamente uma tomada do poder, e, sim, colocar a imaginação no poder. Acho que hoje essas manifestações são mais pragmáticas, querem algumas reformas. Mas, por outro lado, têm também o seu lado de aventura e utopia. Michel Ragon diz o seguinte, quase o que Renata acabou de dizer: “Mas como, após os happenings gigantes de maio e junho em Paris, ousarão ainda fazer happenings? Como, após os 70 automóveis queimados do Quartier Latin, cujas carcaças permaneceram por tanto tempo expostas nas ruas descalçadas, Arman poderia ainda expor pianos queimados em galerias? Como César, que não estava infelizmente em Paris em maio para assinar seus automóveis, poderia fazer ainda expansões em público após essa expansão de milhares de estudantes que invadiram o Quartier Latin?”. E há ainda uma de Roberto Matta, artista chileno, que é pai do Gordon Matta Clark: “Assim como os povos se libertam mediante a luta contra a opressão política e econômica, os indivíduos só podem se libertar mediante a luta contra os tiranos interiores, a hipocrisia e o medo. Os preconceitos, os interesses criados, a falsa autocrítica, as ideias convencionais esquemáticas formam o exército invisível, amiúde mercenário, contra o qual as guerrilhas interiores deverão empreender sua luta pela liberdade criadora. Assim, estimular a imaginação criativa do povo, criar condições para que todos tenham acesso à cultura, será a verdadeira meta do processo revolucionário verdadeiramente fecundo no campo cultural”. Há também uma, de Millôr Fernandes, de 1972, em que diz que “todo tempo de grande opressão é tempo de grandes sutilezas”. E outra, de Willener Alfred, que escreveu o brilhante livro sobre 1968, L’image-action de la société, baseado em entrevistas feitas com as pessoas que participaram dos acontecimentos de maio e junho daquele ano em Paris, e os últimos capítulos são dedicados à arte porque só no campo da arte ele encontra explicações razoáveis para aquilo que tinha acontecido em Paris, que era um problema exatamente da imaginação do poder: “Se há uma similitude geral e surpreendente entre a denúncia e a reivindicação dadaísta e surrealista e aquela de 68 é o caráter geral de revolta para além da esfera material propriamente dita, econômica e social”. Eu não sou professor e cometi algumas teorias em alguns momentos, mas não me considero um teórico prático. Tenho uma necessidade mais física de lidar com a obra de arte e menos de montar teorias. Por outro lado, às vezes coloco algumas questões. Por exemplo, sempre defendo, contra boa parte de meus colegas artistas e críticos, que a biografia tem um papel

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importante na obra dos artistas. Eu acho que a biografia, por mais linda e perfeita que seja, não justifica nenhuma obra. Por outro lado, quanto mais a gente conhece o indivíduo, ou quanto mais a gente conhece uma obra – porque podemos falar também na biografia da obra – melhor a gente conhece o artista ou a obra do artista. Então, eu queria lembrar duas coisas muito curiosas. Estou aqui em Belo Horizonte, no Palácio das Artes, no Parque Municipal. Desculpem-me por um pouco de biografia, mas perdi meu pai muito jovem e, de repente, éramos classe média baixa. Meu pai era gerente de companhia de seguro e caímos praticamente na miséria. Apesar de que tínhamos uma casa maravilhosa, minha mãe tinha sete filhos e eu me tornei um vendedor ambulante, um camelô. Comprava uma barra de doce de leite, partia em 24 pedaços, colocava em uma caixa de madeira e vinha vender no Parque Municipal. Então eu conheci, durante quase três anos, cada pedaço desse Parque. Um dia, como crítico de arte e me sentindo um pouco artista – pois a crítica é uma forma de criação, não tão distante da literatura por ser uma espécie de narrativa com características poéticas – quando organizava Do Corpo à Terra, pensei que pudesse fazer um trabalho de arte no Parque Municipal. Selecionei aspectos do Parque que foram fotografados por Maurício Andrés Ribeiro e essas fotografias foram colocadas como se fossem placas. Através delas, a ideia era fazer não só a leitura da obra de arte a partir da natureza, de uma situação quase geográfica do espaço público, mas no sentido de que vejo também essa integração arte e vida como, também, entre História da Arte e outras histórias. Caminhar sempre foi o meu instrumento de ver o mundo, pensar o mundo, então, ao mesmo tempo, eu resgatava a memória e os medos de uma pessoa que tinha entre 12 e 13 anos e ia ali sozinho vender seus doces, com medo de ser assaltado. Fiz esse trabalho e ali já tinha alguma leitura de História da Arte, já tinha meus autores preferidos: acho curiosa essa relação. Entra um elemento biográfico, um elemento de quem está começando a formar um repertório de autores e, ao mesmo tempo, estabelece a relação da arte com o lado de fora do museu. A ideia de expor essas 15 fotografias legendadas estabelece uma relação com aquilo que estou vendo no Parque, mas, ao mesmo tempo, é como se fosse uma exposição dentro de um espaço. Por outro lado, eu considerava que o próprio esforço de caminhar em um “espaço museológico muito grande”, o próprio suor e o cansaço do corpo eram parte do trabalho. O Parque que conheci naquela época era muito mais que o dobro do que é hoje. Foi partido ao meio pela especulação imobiliária e, já no tempo de Do Corpo à Terra, o Parque já estava bastante cortado. A outra questão é que eu percebo que, ao fazer Do Corpo à Terra, ele não é isolado do conjunto de outros eventos e manifestações que fiz. Às vezes a gente vai fazendo as coisas um pouco intuitivamente, improvisadamente. Vocês hoje, por exemplo, estão aqui fazendo uma leitura do trabalho que escapa a mim mesmo, pois uma obra de arte tem vida própria, é impossível controlar. A obra de arte, ao circular no meio cultural, estabelece relações

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que ultrapassam a leitura inicial ou a perspectiva do artista, e ela perde ou ganha significados em função dos acontecimentos. E quanto mais potente a obra, mais ricas as relações que podem ser estabelecidas, e não apenas no universo fechado da arte. Do Corpo à Terra está relacionado com Domingos da Criação. Quando eu entrei para o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, comecei dando aulas de História da Arte e depois me tornei coordenador de cursos do Museu. Fiz uma reformulação dos cursos do Museu, estabelecendo uma integração entre eles. E, como professor de História da Arte, sempre procurava evitar que meus alunos restringissem sua pesquisa a uma leitura de enciclopédia (naquela época não havia Google), ou que, simplesmente, pegassem um texto e apresentassem uma análise escrita. Eu forçava frequentemente que fizessem algum comentário sobre, por exemplo, a Pop Art ou a Minimal Art não como um texto, mas como um objeto que fosse correspondente à leitura que tinham da Pop Art ou da Minimal Art. Por outro lado, quando eu queria falar, por exemplo, da Pop Art, eu levava meus alunos para supermercados ou feiras livres. E quando eu queria falar de arte minimalista, levava meus alunos para percorrer a área industrial do Rio de Janeiro e ver aquelas estruturas minimalistas dos gasômetros, dos silos, etc. Quando fui falar da Land Art, alugamos tratores para escavar a areia da Barra, que na época não era essa Barra especulativa, kitsch e chatérrima de hoje, eram areias brancas. Pegava um capítulo da história e estabelecia ligações com a vida cotidiana. Comecei a perceber que estava sempre buscando o lado de fora. E o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro está em uma extremidade do Aterro do Flamengo. É parte do Aterro, área importante em termos de lazer público. Chego a dizer que, na verdade, o Museu não é parte do Aterro, o Aterro é extensão do Museu - no sentido de que as atividades do Museu deveriam se estender pelo Aterro. Sob o ponto de vista arquitetônico, acho o edifício do Affonso Reidy primoroso, porque capta exatamente o sentido de horizontalidade do Aterro. O Museu tem muito lado de fora, o que atrai muito as pessoas. Muitos museólogos o condenam por estar perto do mar, o que pode afetar as obras. Mas eu sempre acho muito agradável, depois de percorrer meia hora o Museu, ter uma paisagem para ver. Reidy fez um museu de três andares, mas você tem um pátio enorme, jardins de Burle Marx, terraço... Está sempre vendo a paisagem do Rio de Janeiro. O lado de fora do Museu é parte do sentido do Museu. Então, quando criamos uma unidade experimental no Museu, a ideia era uma discussão sobre a plurissensorialidade da obra de arte, as relações do visual com o tátil e o olfativo. Já havia o Hélio Oiticica e a Lygia Clark e a coisa manuseável. As olfações criadas por Hélio com a borra de café. Houve uma experiência forte. Tentei fazer uma pesquisa sobre o frequentador do Museu de uma maneira menos acadêmica. Para colaborar comigo, usei alguns monitores formados nos próprios cursos que dava. Tínhamos inquéritos, os monitores faziam entrevistas que demoravam um tempo, eram anotadas e depois analisadas. Foram quase 800 entrevistas. A primeira coisa que fiz foi

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enumerar os diferentes espaços do Museu, chegando a 12 espaços: exposições, cinemateca, biblioteca, cantina, restaurante, terraço, jardim, espaço dos pescadores, estacionamento de automóveis, para não reduzir o Museu a biblioteca, sala de exposições e cinemateca. Depois, eu fiz uma divisão temporal: o Museu de 6h da manhã ao meio-dia, de meio dia às 18h, das 18h à meia-noite, e de meia noite às 6h. Fiz então esse corte espaço-temporal para tentar descobrir qual era o verdadeiro frequentador do Museu. E, aí, realmente a pesquisa redundou em coisas muito interessantes. Uma das conclusões a que chegamos é que era preciso repensar qual era o verdadeiro acervo do Museu. O acervo eram somente as obras de arte, os filmes, os livros? Uma parte do acervo não poderia ser a brisa, que balançava o corpo, os cabelos e as roupas folgadas? Outro acervo poderia ser a luz que entra no Museu. E a gente notou, por exemplo, que de 6h da manhã ao meio-dia, o lado de fora do Museu era ocupado pelas babysitters que cuidavam dos filhotes das madames. O horário de meio-dia às 18h era o horário padrão do Museu, quando a galeria estava aberta. Das 18h à meia-noite, naquele tempo, com a minha reforma de curso, a gente tinha programação noturna. Das 18h às 20h, por exemplo, eu dava um curso que na verdade era uma espécie de fórum, sempre com conferências sobre variados assuntos, não apenas sobre arte, mas sobre política, economia, história em quadrinhos. Uma tentativa de atrair os funcionários públicos do centro da cidade para que, antes de voltar para casa, passassem pelo Museu, assistissem ao curso ou simplesmente paquerassem e namorassem. E de meia-noite às 6h era um museu marginal, com prostituição masculina e feminina nos arredores, policiais, um museu barra pesada. A ideia final da pesquisa era, definidos os horários e espaços, definir o frequentador-tipo do museu. Selecionamos os frequentadores e passamos um dia com cada um deles. Fomos às suas casas, conhecemos seus pais, seu trabalho, etc. E a ideia final era reunir esses frequentadores para que discutissem, se conhecessem e degladiassem, pois percebemos que havia vários circuitos dentro do Museu. O yuppie deixava seu carro no estacionamento, frequentava o restaurante, mas não visitava a exposição. O hippie ia ao Museu porque era desempregado e não tinha nada para fazer, ou porque estava na fase de curtição da vida, e ficava esperando abrir a biblioteca e a cinemateca, que eram gratuitas. Os jovens artistas, por sua vez, frequentavam a cantina, e ali se discutia tudo. O fato é que essa pesquisa não terminou, porque terminaria ou como uma espécie de teatro ou como uma exposição, documentando esses vários representantes. Então, o representante típico da área de exposição era uma mulher solteirona, formada em nível superior, moradora da Zona Sul. Já do espaço do jardim, era o morador dos arredores do centro do Rio de Janeiro, eventualmente um comerciário ou bancário que estudava à noite. Percebemos, então, que as pessoas iam ao Museu não necessariamente para ver obras, mas porque buscavam respostas e não sabiam sequer qual era exatamente o problema. Talvez conseguissem, vendo alguma exposição. Ou, talvez, só andando ali naquele espaço agradável, tivessem a solução para suas inquie-

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tações e dúvidas. A ideia era que o Museu levasse em consideração esse tipo de frequentador e o tipo de busca que estava fazendo. O Palácio das Artes tem uma situação parecida, situado em uma face do Parque que dá exatamente para a avenida central da cidade: temos aqui certas semelhanças. Outro aspecto: em certo momento, era necessário se pensar em um museu de arte pós-moderna. E foi em Belo Horizonte, em 1969, que eu apresentei uma comunicação na Associação dos Museus de Arte do Brasil, uma fala com o título O Plano Piloto da Futura Cidade Lúdica. A minha ideia de museu naquele momento era o museu como proposta lúdica para a cidade. Uma ideia de que o museu não deveria se restringir a um acervo e sequer a um prédio. Ainda mais em uma época como a de hoje, de computador e tal, o museu pode ser uma salinha, mas você tem a cidade inteira como área de programação. As exposições poderiam se realizar no vasto salão de exposições da cidade. E, da mesma maneira, o ensino de arte e o professor de arte não deveriam se limitar a ensinar técnicas de arte, havia alternativas. O próprio conceito, de escola de arte, pode ser em qualquer lugar onde se estiver. Em uma praia se tem um ateliê: os materiais são a água, a areia, o vento. A minha proposta era fazer ao mesmo tempo o museu e a forma de ensino. Quando abri a discussão sobre Arthur Bispo do Rosário, com a exposição e o debate sobre Arte e Loucura, partimos para uma discussão curiosa, pois, naquele momento, já se falava das teorias do Franco Basaglia, da sociedade sem manicômios. Então pensei: “por que não imaginar uma sociedade sem museus?”. O museu não seria mais essa espécie de aprisionamento da obra de arte. Ela poderia acontecer em qualquer lugar. E os artistas, em tese, poderiam ser qualquer um. Tudo se misturava, arte e vida. Mondrian dizia que é necessário eliminar o trágico da vida para que ela ganhe harmonia, quando tudo seria arte e todos, artistas. Os Domingos da Criação foram pensados com certo rigor de títulos: Domingo de papel, Domingo por um fio, Domingo terra a terra, Corpo a corpo do Domingo, entre outros. Cada um desses domingos propunha uma tentativa de leitura do domingo, da relação entre lazer e trabalho, que, na nossa sociedade, não têm muita diferença porque quem explora o trabalho explora também o lazer. As fontes de recurso dos capitais são basicamente as mesmas. E o lazer proposto na nossa sociedade é o lazer burocrático e repetitivo do clube social. Então eu estava tentando pensar em um domingo que, na verdade, não fosse muito diferente dos dias de semana. Sem fazer essa dicotomia entre meio de semana e fim de semana, porque o que se criticava era exatamente esse trabalho burocrático do funcionário público. Eu queria mostrar que todas as pessoas são criativas e só não exercem sua criatividade se forem proibidas de exercê-la pela repressão, má-educação e por uma série de outras razões. Mas, ao mesmo tempo que dizia que todas as pessoas são potencialmente criativas, também dizia que nem todas as pessoas criativas são artistas. E nem todos os artistas são necessariamente criativos, porque muitos não passam de burocratas da arte. Roberto Rossellini fez um documentário so-

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bre o Centro Georges Pompidou, no qual posiciona a câmera dentro do Pompidou, mas voltada para a rua. Então, o documentário dele é, na verdade, sobre o lado de fora do museu, muito interessante... Do Corpo à Terra está ligado a tudo isso. Luciano Gusmão fez uma espécie de mapeamento do Parque, definindo as áreas em categorias como áreas de repressão, etc. Luciano, na verdade, era um matemático e o trabalho dele consistia em amarrar todo o Parque Municipal, tomando como referência as árvores. E é curioso que eles amarravam em uma ponta, e os vigias e policiais militares desamarravam em outra, porque eles pensavam que ele não podia fazer aquilo e o papel do militar é sempre repressivo. Lotus Lobo fez uma plantação de milho, simplesmente porque queria ver o milho crescer, mas sempre ficava uma radiopatrulha ali perto achando que aquilo era um herbanário. As coisas aconteciam assim. Eu não pensei nos Domingos da Criação como um fato político; para mim, eram uma extensão do setor de cursos do Museu. Tínhamos janeiro e fevereiro sem atividades, e janeiro e fevereiro é o Rio, os cariocas tomam sol, estão na rua, na praia, e o Museu ficava sem atividade. Então imaginei fazer alguma coisa fora do Museu. Consegui os materiais que eram sobra, o lixo das indústrias, e levava esse lixo para o Museu, que virava uma espécie de depósito. Caminhões cheios de materiais fantásticos: brita, farpas, tecido, etc. E, assim como todas as pessoas são artistas potencialmente, todos os materiais são passíveis de um trabalho artístico. Não há nenhum material privilegiado, tudo depende do artista e das circunstâncias. As pessoas, estimuladas pelo espaço amplo, favorável e agradável, e com a fartura de materiais e nenhum professor do lado, podiam exercitar sua criatividade. Isso foi em 1971, ainda durante a ditadura. Do Corpo à Terra tem um fato importante: os artistas foram convidados sem trabalhos prontos ou materiais. Simplesmente foram convidados para vir ao Parque: receberam passagem de trem, hospedagem e pequena ajuda de custo. Não tinha vernissage, cada um inaugurava a obra quando quisesse e as obras ficavam ali, perecíveis ao tempo. Mas esses artistas tinham uma carta assinada pelo Presidente da Hidrominas – que era uma empresa de economia mista, com 50% dela pertencentes ao Estado – que autorizava os artistas a fazerem seus trabalhos. Previamente não havia nenhuma censura. Então, Cildo Meireles queimou as galinhas em homenagem às vítimas torturadas e assassinadas pela ditadura. Houve obras fortíssimas, extremamente agressivas e violentas. Mas, em um nível mais baixo, os guardas estavam lá desmanchando as coisas, os deputados condenavam o fato de matar galinhas. E, por acaso, naquele dia 21 de abril, em que o governo do estado condecorava os deputados em Ouro Preto, no almoço de comemoração tinha galinha ao molho pardo! Chamo atenção para o fato de que há uma coerência nessas coisas todas que fiz e que há a preocupação de levar a arte para o lado de fora. Mas, com o passar do tempo, não quer dizer que não tenha mais sentido o museu ou que os museus conservem certos acervos. Mas acho que é possível traba-

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lhar nos dois níveis e não se fechar, nem só ficar a favor de uma proposta como essa, nem outra. Porque uma proposta de vanguarda pode levar a uma leitura moderna de um acervo tradicional. Quando, por exemplo, vem a Pop Art, ela está fazendo uma releitura dos quadrinhos, que, por sua vez, pode ser uma releitura das miniaturas medievais, dos livros ilustrados. Uma coisa influencia a outra... Rita Velloso: Primeiro, queria agradecer à Renata e ao Felipe pelo convite, me sinto muito honrada de estar aqui. Como a Renata disse, temos pesquisas bem diferentes. Recebi o convite para trazer uma reflexão que venho fazendo a partir de junho. Desde as primeiras conversas que tivemos, as duas teses colocadas sobre as ruas de junho já estavam muito nítidas. Primeiro, a ideia de que a gente tem uma obsessão com a modernidade e que somos reféns dessa modernidade. Isso na arquitetura e no urbano no Brasil é bastante evidente. Vocês falaram sobre Brasília e sua espécie de avesso da cidade capital, e essa antecedência em Belo Horizonte do JK prefeito em relação ao JK presidente: acho que junho evidencia um esgotamento do funcionalismo, pela maneira como as manifestações aconteceram em outros lugares fora dos circuitos simbólicos já conhecidos. Já vinha desenvolvendo há alguns meses uma pesquisa de história urbana sobre o que chamo de Arquitetura das Insurreições, que colava em dois momentos: em 1871, com a Comuna de Paris, porque há ali uma proposta de governo autogestionário e de uma repercussão espacial desse governo naquele momento na França; em 1968, não só na França, mas também na sua repercussão nos ambientes urbanos, entendendo que 1968 era uma culminação de algumas coisas e aquele maio também se desdobrou em outras experiências. São momentos muito diferentes, embora os autores pelos quais me interessei para chegar a esses assuntos tratem 1871 e 1968 de modo similar. No caso de Henri Lefebvre e Guy Debord, veem a Comuna e 1968 como momentos de uma protorrevolução urbana, e isso no Lefebvre vira toda uma teoria urbana. Mas, para Debord, isso também instaura uma perspectiva de interpretação política. Havia ali uma ideia de governo conselhista, por exemplo. Então, há uma espécie de hipótese política muito interessante formulada nos dois momentos, considerando que venho trabalhando com a teoria urbana e com a participação dos habitantes nos governos urbanos, olhando para isto sempre do ponto de vista da teoria e da capacidade das pessoas comuns em participar dos processos de tomada de decisão nas cidades agigantadas que temos. E quando junho começou, havia ali uma efervescência que podia ser logo colocada ao lado dessas duas experiências. A princípio, se dizia sobre as manifestações que, por exemplo, não tinham foco, eram difusas, as pessoas não sabiam o que queriam... Ou o contrário, quando a polícia e os governos se perguntavam onde estavam os líderes e por que os líderes não conseguiam ser acessados. Se não havia um sujeito nítido, uma subjetividade reivindicando a passeata ou se não havia carros de som, partido político, aquilo

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rapidamente perdia o valor. É quase como se essas categorias tivessem sido colocadas lá nos anos 1960 e havia algo de muito diferente nessas manifestações. Em um primeiro momento, é impossível enxergar. Hoje, seis meses depois, olhamos para trás e ainda não sabemos exatamente o que aconteceu. O que conseguimos é formular hipóteses. Quero dizer que minha fala ainda está em um momento de formulação, para entender algumas características do movimento em Belo Horizonte. Eu não acho que a gente consiga estabelecer similaridades entre as coisas que aconteceram no Brasil. Fiz uma espécie de inventário dos jornais que saíram entre junho e julho na Região Metropolitana. Em Belo Horizonte aconteceu algo peculiar, num contexto bastante específico. Primeiro, porque o que pode ser tratado como uma constante nessas manifestações é a ocupação dos espaços centrais e as pessoas na rua fazendo uma festa, uma celebração. Havia um inimigo público número um, que era a FIFA - e a Copa das Confederações. Então, todo mundo abraçou essa causa e as avenidas ficaram lotadas, o que foi muito bonito de ver. A festa, tão celebrada pelo Henri Lefebvre como esse protomomento revolucionário, estava presente nessas manifestações de junho. Ao mesmo tempo, me parecia que havia uma grande ausência, porque em Belo Horizonte o circuito era o mesmo. Fora a marcha para o Mineirão, as coisas estavam muito localizadas no centro, com o circuito Praça da Estação-Praça Sete-Praça da Liberdade-Praça da Savassi. Mas começou a aparecer nos jornais – e a princípio não eram os maiores jornais da cidade, até que o jornal noturno da Rede Globo foi obrigado a anunciar – uma espécie de rede que ainda não sei o quanto teve de espontaneidade ou se, de fato, estávamos falando de uma cadeia de erupções que foi acontecendo ao longo da Região Metropolitana. Recortava e colava tudo para depois pensar sobre ela, porque me pareceu que, pela primeira vez, havia um movimento político com uma repercussão territorial significativa e que estava fora de Belo Horizonte, na periferia da Região Metropolitana. É claro que meu olho está treinado para ver isso porque trabalho com essas centralidades periféricas da Região Metropolitana, então, até por isso, eu comecei a perceber que havia um tipo específico de manifestação acontecendo. Até que, entre o dia 24 de junho e 2 de julho, pudemos inventariar que 11 cidades da Região Metropolitana já haviam fechado estradas federais e estaduais. Esses protestos começavam sempre de madrugada, durando até as 9h da manhã, que era a hora em que a Polícia Militar, em princípio, conseguia negociar com esses moradores que habitavam as margens das estradas para retirar os manifestantes. E, à medida que junho foi terminando, as manifestações começaram de fato a bloquear as estradas. Tivemos oito cidades com estradas simultaneamente fechadas e é óbvio que havia repercussão desses fechamentos, pois eles não aconteciam em rodovias pequenas, fechavam-se as estradas que ligam Belo Horizonte a São Paulo, a Brasília, criando-se um impacto no transporte de cargas. Então, aquilo que parecia periférico e uma espécie de desdobramento quase irrelevante em relação ao que acontecia contra a FIFA foi obrigado a subir para a pauta principal dos jornais porque envolvia um movimento econômico.

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Os bairros eram os bairros periféricos de Ribeirão das Neves, Jaboticatubas, Sabará. Essas manifestações eram sempre muito caóticas e a polícia não tinha noção de quantas pessoas poderiam estar ali. Você poderia ter de 20 a 100 pessoas, oito sofás, alguns gravetos, motoqueiros deitados na estrada para não deixar os ônibus passarem, os motoristas de caminhão aderindo ou não. Tinha-se ali uma arquitetura do protesto que foi completamente imprevisível durante 15 dias e esse registro é muito curioso porque Belo Horizonte esconde seus pobres. Não é como no Rio, em que a superfície de contato entre as favelas e o centro do Rio de Janeiro mistura as coisas o tempo todo. É muito mais fácil para Belo Horizonte falar em periferias afastadas. Olhamos para Belo Horizonte e entendemos que o centro da cidade predomina sobre todos esses bairros populares e operários, e que historicamente se constituíram assim. Estamos em uma cidade de funcionários, de classes médias. Então me pareceu muito fértil que, no momento em que discutimos a emergência de novas classes médias, que estão exatamente nesses bairros da Região Metropolitana, que lá recebem programas de habitação porque não podem habitar a cidade-mãe e progressivamente podem discutir e reivindicar seu acesso a meios de consumo coletivos. Pela primeira vez parecia que Belo Horizonte permitia voz a essas pessoas. Em todos esses momentos, era curioso como essas pessoas estabeleciam pontos de contato com as manifestações no Brasil e fora do País. Conseguimos enxergar reivindicações com pontos de contato com o Ocuppy Nova Iorque, com a Primavera Árabe e com o Movimento Anônimos. Mas, ao mesmo tempo, se faziam perguntas básicas, como a dos moradores de Olhos d’Água: “Como um bairro cheio de empresas tão ricas pode abrigar tanta pobreza?”. E essa pergunta pelo bem coletivo não é uma pergunta rasa e não pode se esgotar em uma resposta apenas pragmática. Existe uma questão simbólica colocada aí que precisamos desvendar. Não acho que as manifestações de junho sejam manifestações também por tomada de poder. Não são manifestações por representação política. São manifestações expressivas. A questão da expressão, de dar voz e estabelecer a linguagem, achando frestas para que essas reivindicações apareçam é uma novidade. Comecei a prestar atenção nisso quando um jornal de manhã cedo mostrou uma senhora de Ravena (bairro de Sabará), por exemplo, que perguntava pelo fornecimento de água em seu bairro nos fins de semana, no meio da manifestação por transporte. É obviamente uma denúncia contra a interrupção do fornecimento de água, contra a COPASA, e que jamais estará em nenhum veículo de massa e em nenhuma mídia em Belo Horizonte. E essa é uma reivindicação que não tem nenhuma preocupação sistemática, é quase um berro: “Por que não tenho água na sexta, no sábado e no domingo?” Por que a COPASA pode tirar água da nascente do Rio Manso para trazer água limpa para Belo Horizonte e a cidade de Rio Manso, onde fica a nascente, não tem tratamento de esgoto em alguns locais? Qualquer cidadão morador dessas regiões percebe rapidamente, e não precisa ser engajado politicamente, que, se for tentar o curso normal

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do protesto, não vai chegar a lugar nenhum. O que veio acontecendo com os protestos nas estradas colocou uma variável nova em Belo Horizonte. Essas pessoas implicaram o próprio corpo no protesto. Muitos desses protestos eram simultâneos. Você tinha três pontos em Ribeirão das Neves, por exemplo, que foi uma cidade onde aconteceu o primeiro protesto de junho, três lugares diferentes na estrada fechados por pessoas diferentes em bairros sem conexão e com reivindicações ora semelhantes, ora diversas. Essa é a imagem da tomada dos ônibus, e a polícia não conseguia retirar as pessoas até as 9h da manhã, e mais pessoas chegavam, transformando aquilo quase em uma festa. É bastante curioso que se foi construindo ali uma espécie de protagonismo. É preciso pensar nessa subjetividade. Existe uma resistência expressa nessas manifestações na periferia e é preciso notar que são regiões sem nenhum tipo de investimento da indústria imobiliária recente, se olharmos para a configuração dos investimentos e do novo desenho urbano que está posto para a Região Metropolitana. E se estamos aqui discutindo a incapacidade da cidade de expandir sem limites, de minimamente colocar sua periferia em condições de vida dignas para as pessoas, se estamos discutindo o esgotamento de um dado desenho urbano, de um modelo funcionalista, ao mesmo tempo vemos o que está posto pelas instâncias de governo e vemos que a repetição do grande gesto que vai desenhar o futuro da Região Metropolitana é muito similar. O governo do estado trata a Região Metropolitana em quatro vetores. O Vetor Norte, que é muito pobre e que, portanto, receberá investimentos de alto porte, todos eles segregacionistas, gentrificadores, por serem condomínios de alto luxo, e que dão suporte para a experiência da aerotrópolis, do primeiro aeroporto-indústria do País, apoiam a Cidade Administrativa. Há claramente uma mudança no vetor de desenvolvimento da Região Metropolitana para o Vetor Norte para tornar aquela região enriquecida. Mas enriquecida para quem? O que vai acontecer com a população do São Benedito, população que historicamente foi sendo removida, que está ali na fronteira com Santa Luzia e que, provavelmente, vai para outro lugar porque a região vai se tornar região de alto investimento e de expectativas econômicas e financeiras? Do outro lado, o Vetor Sul, tal qual o conhecemos, ocupado por condomínios horizontais e altas classes médias. Nova Lima é uma cidade onde a maioria de sua população é rica, se situa na periferia e se relaciona com Belo Horizonte, mas não com o centro da cidade. Não há nenhuma relação de pertencimento àquele espaço. E, ao mesmo tempo, os eixos Leste e Oeste estão perdidos para sempre. O Oeste, porque é industrial e antigo. O que está configurado ali é uma população operária que, desde o momento que veio para Belo Horizonte, é uma população pobre e assim permanecerá. Já sobre o Vetor Leste, não há nada que caracterize ou permita a expansão urbana naquela direção. Os governos têm mapeado quem são os proprietários de terra e os possíveis investidores. E os planejadores urbanos e arquitetos que desenham para essas regiões são grandes escritórios do País e do exterior que, de novo, replicam o desenho do grande gesto urbano funcionalista. É um de-

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senho que, além de danoso, constrói uma espécie de cidade fantasma. E poderíamos falar muito tempo sobre como isso é um processo recorrente em Belo Horizonte, apagando sua memória topográfica. Como a Renata dizia, sobre o apagamento dos rios, não temos vestígios do traçado original da cidade. E o que a cidade faz, até por uma espécie de vício modernista, é substituir o que está construído e habitado por uma ideia de inovação e modernização que, cada vez mais, se cola na ideia de consumo dos lugares. Então, junho pareceu para Belo Horizonte uma espécie de redenção. Ainda não conseguimos inventariar o que de fato aconteceu. Frederico falou da pesquisa sobre os usuários do museu. Tentamos conversar com aquelas pessoas para tentar entender a lógica dos agrupamentos e redes, a simultaneidade ou não: essas cidades vizinhas conversam entre si? Achei que seria uma conversa ainda muito desarticulada, mas o que ouvimos foram questões dirigidas aos governos. As pessoas têm informação econômica sobre os investimentos dos seus respectivos municípios, mas não têm informação sobre seu próprio cotidiano. Fiquei espantada de ver a articulação das pessoas para entender qual era o problema estrutural do município, e nenhuma informação sobre a vizinhança entre os bairros. Sabará se ressente da falta de investimento de que o Manso se ressente também. Mas eles próprios ainda não assimilaram o que aconteceu. Então é preciso fazer uma longa investigação sobre o que significou interromper o fluxo das rodovias. Sobre a potência das manifestações, quando a estrada é bloqueada com sofás e o prefeito se recusa a negociar com “gente que põe sofá no meio da estrada”. Talvez não haja mesmo manifestação artística tão potente depois disso. Algumas pessoas centrais nessas cidades souberam que só teriam visibilidade se tocassem no ponto central, que é o transporte de carga. Vi meus colegas professores, por exemplo, apoiando todas as manifestações de junho, mas, quando começaram a fechar estradas, eles reclamaram do problema do abastecimento. Eu torcia para que as manifestações da estrada crescessem em volume, mas elas nunca cresceram. O ponto-chave é uma arquitetônica do fluxo, é entender o que está em jogo quando se impede que a vida das pessoas continue a ser equacionada do modo rotineiro e eficaz lá na Savassi. Basta botar os motoqueiros, que são seus vizinhos, deitados na estrada. Ou fazer as crianças reclamarem “como tinham dinheiro para construir Centro de Treinamento do Atlético e não havia dinheiro para resolver o problema da passarela da estrada”, uma reivindicação que completava 12 anos. Podemos olhar para esses momentos como momentos pragmáticos, mas há uma inteligência do cotidiano nessas pessoas que precisa ser investigada. Como comecei a olhar para esses eventos com a expectativa de contestar o protesto como festa, entendi, como Lefebvre já dizia, que era um protomomento, um momento de protorrevolução. Algo vai decorrer daqui. Estamos muito colados no acontecimento e é impossível falar alguma coisa a respeito, nem politicamente. Nasceu de uma reivindicação pragmática e de uma demanda por bem de consumo coletivo, mas não é isso que está em jogo. O que está em jogo é o cotidiano das pessoas e uma espécie de inter-

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rupção, no caso da Região Metropolitana, desse argumento da centralidade única. E é para isso que me parece que temos que ficar atentos, para a invisibilidade desses pobres nas franjas da metrópole. À medida que as pessoas iam dizendo e conseguíamos estabelecer diálogos com elas – porque não adianta, do centro e da universidade, tentarmos entender por completo o cotidiano da pessoa que está lá em Ravena – uma expressão ia sendo construída, um poder ia se constituindo pela fala. Esse poder é genérico e essa subjetividade é, por enquanto, difusa, mas construída coletivamente. Não exatamente por mim e pelas pessoas que estão nas manifestações nas áreas centrais. Desse poder decorreu uma consciência de que conseguiram expor um determinado conflito para a opinião pública. E isso, em Minas Gerais, tem que ser considerado uma vitória, muito embora não seja nada espetacular. Mas que isso possa ser amplificado é muito significativo para a história urbana da cidade. Essa expressão da periferia estamos ainda por mapear. Felipe Scovino: Para iniciar essa conversa eu gostaria de fazer uma pergunta. Acho que, no caso das manifestações de junho, o uso da violência é justificável. Vamos explorar um pouco mais isso, Rita? A Globo usou a palavra “vândalos” para qualificar as ações da subjetividade da massa. Isso cria camadas de qualificação sobre a ideia de povo. Povo e sociedade a princípio parecem ser a mesma coisa, mas, no Brasil, povo significa uma coisa e sociedade outra. Como você observa essa indiferença da mídia em relação à palavra “vândalo”, que pode estar tanto nas manifestações populares quanto naqueles que se agrediram mutuamente em um jogo de futebol? Refiro-me à partida entre Vasco e Atlético Paranaense, realizada no dia 8 de dezembro de 2013, na qual parte das torcidas de ambos os times entraram em confronto de forma brutal, ferindo gravemente quatro pessoas. Rita Velloso: Também acho que a violência é justificável, pois as pessoas sentem raiva e é impossível você transformar o banco Santander e a concessionária Kia Motors em uns coitados que perderam as suas portas e entradas. Eles têm seguro! As pessoas estão na rua porque estão com muita raiva, e como é que isso vai ser expresso? Temos que pensar a violência e o fim do lugar comum da cordialidade, do povo cordato, das pessoas festeiras. É por isso que fiquei impressionada quando isso apareceu na periferia de Belo Horizonte, porque não tem a ver com festa. Mas o que é muito impressionante é a capacidade das classes médias do País de reproduzirem o discurso da televisão. A Globo fabricou o termo, os repórteres, comentaristas e âncoras dos jornais repetiam essa mesma frase. Há um filme sobre as manifestações de Seattle, em 1999, que se chama A batalha de Seattle e a Globo começou a exibir o filme num Telecine qualquer, em vários horários. É um roteiro das manifestações: no primeiro dia são pacíficas, depois os bancos colocam os tapumes – da mesma cor que os tapumes do Brasil. A construção do imaginário está em jogo, e tínhamos que denunciar isso toda hora. Não

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podemos esperar nada vindo dali. Esse esvaziamento do que está em jogo, proibindo de certa maneira que a sociedade pense qual é o papel da violência. Porque é muito fácil dizer que as pessoas miseráveis estão retiradas da miséria e que têm acesso a bens coletivos, que elas estão agora saudáveis e prontas para ampliar o limite do cartão de crédito. É o País que, mais uma vez, se esmera no culto das aparências. Vitimizamos o dono da concessionária e a agência de banco em 5 minutos, mas somos incapazes de aprofundar o debate e entender de fato quem são as pessoas que estão na rua assim violentas. Frederico Morais: A televisão caracterizou muito bem: “Manifestação pode fazer, mas não pode ser vândalo”. Então, ao mesmo tempo que autorizaram fazer uma manifestação, eles a condenaram. Bom, tenho uma pergunta quase ingênua a essa altura dos acontecimentos. Como se relacionam essas duas coisas? Nós aqui, falando de arte, e você, de geografia? O que a geografia pode contribuir para a arte e vice-versa ou como a arte pode contribuir para o seu tipo de análise? Podemos realmente fazer alguma coisa juntos ou somos dois blocos diferentes? Você fala, por exemplo, que há a necessidade de gritar, que é uma forma de expressão. Eu me lembro no tempo do Fora Collor ou das Diretas Já. As pessoas se preparavam artisticamente para aquelas discussões, usavam certa roupa, certo penteado colorido, etc. Quase uma manifestação de arte popular coletiva. Você poderia fazer essa leitura hoje? Há uma dimensão artística nos movimentos que você analisou especificamente em Belo Horizonte? Rita Velloso: Respondo com você mesmo, Frederico. Se pensarmos na pluralidade de participantes envolvidos nessas manifestações, acho que algumas iniciativas nos anos 1960 e 1970 no Brasil podem servir como espelhos ou marcos. É claro que você desloca a arte do lugar, é claro que essa população jamais terá com a arte uma relação contemplativa. Pelo contrário, a princípio ela até se volta contra isso. Mas se você olha para as possibilidades que estão colocadas, quando eu vejo as pessoas tomarem o ônibus, escreverem um cartaz, saberem que aquele cartaz está sendo feito para ser filmado pelo helicóptero da televisão, isso é expressão gráfica. E, ao mesmo tempo, acho que as iniciativas como os seus Domingos, por exemplo, recolocam as pessoas numa perspectiva de entendimento do que são a criação e sua potência. A questão da arte aí não é mais a representação, o simbólico, mas a potência que ela pode ter de expressão e de transformação do cotidiano em um lugar da criação. Nesse sentido, acho que há uma pedagogia a ser feita em termos da arte. A arte tem uma função narrativa que nesse momento é o que vai aproximar as periferias e o centro, as camadas ocultas da população e essa perspectiva da criação. De alguma maneira é escapar desse cerco de que tudo é espetáculo. Frederico Morais: Pensei duas coisas enquanto você falava. Em certo momento, as pessoas começaram a levantar a hipótese sobre o negócio dos caminhoneiros e as ocupações das estradas, se, no fundo, os próprios donos dos caminhões não estavam envolvidos no sentido de reivindicar. O Allen-

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de foi derrubado exatamente pela rebelião dos caminhoneiros, que praticamente impediram os alimentos de chegar e, em certo momento, o povo reagiu. Chegou-se a levantar a hipótese: será que haveria a possibilidade de um novo golpe militar aqui? E houve um momento com um cartaz que reivindicava a volta da tomada de dois pinos! Pois você colocou a questão do cotidiano, cujas questões ficam um pouco encobertas… Na verdade as pessoas estão fazendo reivindicações sobre o dia a dia. Renata Marquez: Acho que estamos realmente num momento-laboratório de visibilidades, de modos de ver, dizer e sentir, citando Jacques Rancière. Isso pode vir de qualquer lugar, quando se menos espera, seja com a tomada de dois pinos, com um engajamento mais reconhecidamente artístico ou com um cartaz no meio da multidão. Esse laboratório estético para dar visibilidade aos modos de ver, dizer e sentir: eis o grande momento para funcionar como plataforma – Rita falou pedagógica, penso em epistemológica – para desvendar essa situação. Resgatando um pouco a exposição, fico pensando na plataforma de Os Brutos. Quando falavam da Rede Globo, referiam-se às manchetes, aos noticiários, a uma edição de um acontecimento. A ideia do Daniel Carneiro é distinta: é trabalhar com o material bruto, sem edição. Considero o material bruto uma plataforma epistemológica muito interessante para entender o que está ali. Nunca assistimos ao material bruto, não há chance, o material chega a nós sempre editado. E ele inverte a coisa: ora, está na hora de ter outra mídia, exatamente uma mídia não editada. Trata-se, então, desse laboratório de sensibilidade, da revolução da sensibilidade, de nos capacitar para dizer, ver e sentir. Um momento importante artística e politicamente, e indistingo as duas coisas. Temos ainda alguns minutos, se alguém quiser fazer um comentário ou pergunta. Júlia Rebouças: Queria perguntar para o Frederico sobre a comunicação que fez, em 1969, em um congresso que se chamava, se anotei certo, Plano Piloto da Futura Cidade Lúdica. Você comentou um pouco sobre as táticas e estratégias de como entender a cidade como museu, a cidade que abrigasse exposições, etc. Talvez você pudesse rememorar o que seria essa futura cidade lúdica, como você enxergava as cidades daquele momento e que plano piloto é esse dessa futura cidade. Frederico Morais: Eu teria que escavar o futuro [risos]. Coloquei a questão da futura cidade lúdica em termos mais genéricos. Considerando alguns eventos que organizei, a ideia seria uma exposição disso. No último dos Domingos da Criação, tivemos ao longo do dia quase 10 mil pessoas. Isso é quase um comício, o que era muito ousado, apesar de não ter parecido ousado para mim naquela época. Mas, hoje, fica claro que botar 10 mil pessoas para brincar em época de ditadura é uma coisa extremamente ousada, porque qualquer multidão era motivo de repressão. De alguma maneira, e até curiosamente, o Museu protegia um pouco, apesar de a polícia do Museu viver cercada de radiopatrulha

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e, às vezes, levar pessoas para dentro do Museu para torturar. Em relação a esse plano piloto, tenho exemplos em uma escala muito pequena. Esse conceito de ateliê, a ideia de que todos os materiais podem ser trabalhados, de que todo lugar pode ser um museu, afirmando-o como uma coisa ampla. Júlia Rebouças: Mas você acha que a cidade mudou de alguma maneira seu estatuto? Foram 45 anos desde esses seus insights tão precisos e interessantes. Então, você acha que a cidade vai se configurando de uma nova forma? Esse projeto de uma futura cidade lúdica ainda é possível? Frederico Morais: Acho que sim, mas não tenho dados objetivos e concretos. E me perguntavam sempre: qual foi o resultado objetivo daquilo? Eu dizia: “Olha, não tenho condições de fazer uma pesquisa, tipo do Ibope ou da Folha de São Paulo, que diria “47% aprovam”, etc., mas tenho certeza absoluta de que os Domingos da Criação modificavam a cabeça de muita gente. O filme que fizeram recentemente sobre os Domingos traz depoimentos maravilhosos: “Naquele tempo tinha duas saídas, ou a gente ia para o distúrbio, para as drogas, ou a gente vinha aqui para o Museu, que era uma espécie de quintal da minha casa. Eu não tinha dinheiro, estava fazendo uma porção de coisas, então vinha todo final de semana para cá”. E não iam só para ver exposição, mas porque ali era um espaço. Espaços como aquele existem muitos na cidade, nem precisa ser um museu, pode ser um parque. Traz também outros depoimentos, inclusive de pessoas que participaram e depois levaram suas experiências para cidades do interior. Denis Nascimento: Eu queria comentar sobre essa experiência dos Domingos e da pesquisa que você fez no Museu. Acho interessante a ideia de que a experiência que me leva para a rua é quase uma possessão do meu corpo. Quero realmente saber o que significa estar no meio de outras pessoas, o que até chega a um ponto de incomodar: fui embora justamente por estar no meio de muitas pessoas. E, ao mesmo tempo, me interessa a ideia de estar andando na rua, em um caminho rotineiro, e, de repente, se deparar com uma manifestação de muitas pessoas. Há uma experiência artística aí que é um contato físico. Frederico Morais: Há duas coisas que eu poderia contar. Os Domingos começaram com o papel, que é um material relativamente fácil de trabalhar em grande quantidade. Depois, fomos para o tecido, que é mais ou menos fácil de trabalhar. Com uma peça de tecido é possível criar uma peça de teatro puramente visual, sem texto, sem nada. Já na questão da terra, no Domingo Terra a Terra, chegaram dois caminhões com brita e areia. Mas choveu. Então deslocar um pouco de terra daqui para lá exigia um esforço físico grande. E o último foi o Domingo Corpo a Corpo, porque íamos retirando os materiais para ficar mais difícil de as pessoas repetirem os trabalhos e, assim, reinventarem o Domingos da Criação. Então, no último dia, simplesmente dissemos para as pessoas virem com o corpo. Tivemos capoeira, teatro, encenações de

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discursos políticos, daquela retórica de gesticulação, inclusive subindo em cima de palanques, jogos infantis. As pessoas foram para lá experimentar seu corpo. A Lygia Pape costumava dizer que ela tinha um fusca com o qual cortava a cidade até a Baixada, mas foi a rua que inspirou o trabalho dela, sobretudo na Baixada. Então, uma pessoa na rua, com sentido de observação, pode transformar essa observação em coisas fantásticas. Caminho todo dia e há 20 anos cruzo com as mesmas pessoas. Passo o tempo todo pensando que um dia quero reunir essas pessoas na minha casa. Eu só as cumprimento, mas não sei da vida delas. Eu ouço rabicho de conversas, sei um pouquinho da vida delas, mas eu queria um dia conversar mais com elas. Todo mundo tem uma história, a rua pode oferecer muitas coisas. Um trabalho de arte pode ser simplesmente uma caminhada. O Guilherme Vaz, por exemplo, fazia caminhadas longas, pegava sua camisa suada e dava para alguém vestir e passar para outro corpo seu suor. Felipe Scovino: Você me perguntou se as manifestações poderiam ser qualificadas como uma experiência de arte. Elas não nascem como arte, mas as demandas são as mesmas. A obra de arte pede uma mudança, uma sensibilização do olhar do espectador. E as manifestações oferecem a possibilidade de novas demandas e reivindicações. Nesse sentido, é claro que as esferas “o que é o espaço social?”, “o que é o espaço político?”, “o que é o espaço de arte?” já explodiram. Discernir manifestação artística de manifestação política não se coloca mais como um ponto de interrogação. Tanto que Os Brutos, ou o trabalho do João Castilho e do Guga Ferraz são indícios de manifestação de violência que interessam à arte. Frederico Morais: E as obras de arte podem deixar de ser arte, Felipe? Felipe Scovino: É uma boa pergunta! Nunca pensei nisso, mas, partindo de uma interpretação conservadora, a partir do momento em que ela se legitima através do museu, ela se qualifica como obra de arte. E, pensando kantianamente, podemos pensar no poder qualitativo de aparição da arte... Frederico Morais: Arte é o que eu e você chamamos de arte. É uma questão puramente estatística. Se 30 pessoas afirmam que aquilo é uma obra de arte, aquilo passa a ser uma obra de arte. Tudo pode ser arte, mas qualquer coisa não é arte. Carmela Gross uma vez me disse que o desenho é qualquer coisa que faça o artista. É qualquer coisa que faça o artista, mas com sentido. Podemos resgatar certas coisas que não nasceram como arte e dar o significado de arte, como aconteceu com Bispo do Rosário. Começo o livro sobre o Bispo dizendo que, assim como Lúcio Costa se refere a Brasília como “a cidade que eu inventei”, eu então digo que Bispo é o artista que eu inventei. Brasília já nasceu, de certa maneira, pronta. E o Bispo do Rosário, também. Só passou a ser conhecido depois de morto e com obra completa. Até então, não se lia a obra dele como artista.

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Rita Velloso: Com esse raciocínio de como a arte se conecta com a expressão da manifestação, fiquei pensando no movimento do Felipe e da Renata na curadoria da exposição, quando disseram que, em um primeiro momento, a exposição se estruturava em dois blocos distantes e, depois, isso se fundiu. Seria bom vocês explicitarem essa concepção porque muito da força da exposição está nessa fusão. Pois imagens explícitas ganham uma sutileza. O fato de a obra de João Castilho estar colocada daquela maneira, naquele momento no percurso, nos permite um segundo grau de reflexão sobre o que é a rua. Frederico Morais: Vocês poderiam fazer outra exposição contando como montaram essa, porque o trabalho de montar uma exposição é muito mais interessante do que ler um texto sobre ela. É um processo dinâmico. Você começa a relacionar e a exposição vai ganhando vida. Um trabalho que, a partir de coisas que acontecem em volta dele, cresce. É o lado vivo da exposição e das obras. Renata Marquez: No processo de pensar a exposição, a ideia da indistinção em vez da arte como distinção era nosso desafio original. Fundir o núcleo inicial das modernidades com o núcleo da rua constituiu um corpo interessante, pois está tudo fatalmente, tragicamente imbricado. Denis falou sobre ir para a rua para ter uma experiência estética. Parece-me que recuperamos, recentemente, a dimensão ritual do cotidiano, que, sem dúvida, é um processo estético – sem ser estetizante ou fetichizante no sentido da arte como mercadoria. Quero dizer estético no sentido da sensibilidade, da subjetividade, da experiência corpórea, da experiência das visibilidades e invisibilidades. Costumávamos ir para o museu para ter uma experiência ritual que não tínhamos na vida cotidiana, mas, de repente, a coisa embolou, os limites foram borrados. Frederico Morais: A arte não está só dentro do museu. Rita Velloso: A experiência estética não está só no museu. Renata Marquez: Sim, isso ficou mais visível e sensível hoje, com os trabalhos expostos e as experiências recentes nas ruas. O Zé do Poço, por exemplo, um artista genuíno como o Bispo e “excluído”, como ele mesmo diz, resolveu fazer um show inesperado na abertura da exposição. Veio caminhando até o Palácio das Artes desde a periferia de Ribeirão das Neves, onde mora. Performaticamente. E, ao mesmo tempo, naturalmente, uma vez que, como catador, ele caminha na cidade toda. Frederico Morais: Vocês pensaram a exposição depois dos acontecimentos de rua ou antes? Como os acontecimentos influenciaram a exposição?

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Felipe Scovino: A conversa começou antes das insurgências, no começo de 2013, mas é claro que a partir do momento em que elas eclodiram, tornou-se impossível pensar em uma exposição que a princípio tratava da relação entre arte e arquitetura e não trouxesse a rua, que é o grande veículo desta discussão. Frederico Morais: Dizia-se que a atividade política da rua tinha acabado com a televisão e a internet, que a praça não existe mais, que o comício de rua não teria mais sentido. E agora temos a resposta de que não acabou. Encontramos uma forma talvez mais agressiva e violenta de trazer as pessoas para a rua e retomar a ideia de praça no sentido grego. Rita Velloso: Mas é outra rua. As pessoas têm clara consciência de que a micropolítica é capaz de impactar a macropolítica. A rua não pede o comício. Você não tem o caminhão de som, mas temos a perspectiva de que somos capazes de repercutir na macropolítica se implicarmos nosso corpo. André Veloso: Pensando essa questão da arte nas ruas a partir de junho, tivemos uma experiência interessante no movimento Tarifa Zero. Quando preparamos uma manifestação para o dia 25 de outubro de 2013, Dia Nacional de Luta pelo Transporte Público e Dia Nacional do Passe Livre, foi um processo completamente diferente daquele de junho por não ter aquela espontaneidade. Conseguimos dois bandeirões pintados, uma faixa de 1,50m de altura por 15m de comprimento e uma catraca. Esse material de intervenção foi fundamental para passarmos a mensagem e fazer a disputa e o peso político na rua. Se você tem 100 pessoas com esse material, você consegue mais do que com 1.000 pessoas sem nada, porque elas não conseguem comunicar seus propósitos. Fechamos a rua e colocamos fogo na catraca embaixo dos arcos do Viaduto de Santa Tereza, onde penduramos a grande bandeira do Tarifa Zero. A partir desse processo conseguimos também ser mais deliberativos, ter mais consciência do que estamos fazendo e entender que existe a questão da performance e da criação que são fundamentalmente políticas. De certa forma, estamos criando uma nova estética no sentido da presença do corpo na rua, o que é fundamental na disputa hoje em dia na sociedade. Roberto Andrés: Sobre a indistinção do que é arte e do que não é: outro dia vi uma exposição sobre cartazes da ditadura no CCBB de São Paulo que tinha um tom muito histórico, congelado e reificado. Aquela exposição remetia a um tempo distante, a uma geração que pensa que o País se democratizou, que aquele momento difícil foi superado e que, hoje, estamos dentro de um processo que não demanda rupturas mais fortes. Tem aquela foto clássica da Dilma sendo interrogada durante a ditadura. Eu vi isso na mesma semana em que Dilma sancionou o decreto criminalizando, como formação de quadrilha, mais de quatro pessoas se reunindo para alguma manifestação. Se, naquela época, reunir milhares de pessoas era crime, estamos tendo hoje uma escalada do Estado repressor que criminaliza manifestantes. Dilma está nesse lugar, quem quei-

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mava galinhas está frequentando as vernissages enquanto tem gente queimando concessionárias. Vivemos hoje um momento de tensão, temos um Estado com muito pouco serviço público e sendo pilhado por um evento como a Copa do Mundo, e essa força criativa que tem uma potência de imagem no momento de tensão, não é mais o artista que queima galinhas, mas aquele que queima concessionária, sem reivindicar esse lugar de arte. Frederico Morais: Cildo Meireles continua igualzinho, continua político. Evidentemente que é um artista de prestígio, mas ele continua realizando trabalhos impecáveis. O que ele recusa é o trabalho político panfletário, foi sempre contra isso. O caráter político tem se acentuado no trabalho dele. Por outro lado, ele tem uma afirmação de que um trabalho pode não nascer político, mas, seguramente, há muitas chances de se tornar político. Ele dizia, há certo tempo, que o trabalho de queimar as galinhas era o verdadeiro trabalho político dele, tanto que ele jamais o repetiu, porque aquele, sim, era um protesto raivoso. E outra lembrança é que, dentro dos Domingos da Criação, o Domingo do Som foi o mais raivoso porque as pessoas estavam realmente com uma raiva interna. O Museu não ofereceu quase nada e as pessoas levaram tambores e latas de cerveja. E a maneira como as pessoas amassavam as latas e batiam nos tambores anunciava que botavam para fora uma coisa que estavam segurando há muito tempo... Rita Velloso: Queima-se a concessionária, mas não se reivindica para si o status de sujeito criador, sua subjetividade está misturada a uma coletividade sem rosto. As coisas estão, nesse momento, imbricadas umas nas outras. E, ao mesmo tempo, temos procedimentos e táticas que estão borradas para enfrentar essa fusão do estético e do político.

PÁGINAS 33-67 Quinze Lições sobre Arte e História da Arte - Apropriações: Homenagens e Equações Frederico Morais, 1970

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SE VENDE Parque Municipal AmĂŠrico RennĂŠ Giannetti, Belo Horizonte, 2013 Carmela Gross Fotografia: Daniel Iglesias









ESTÉTICA E POLÍTICA Conversa de PISEAGRAMA com Dereco, João Castilho e Tiago Mata Machado 20 de novembro de 2013

Renata Marquez: Gostaria de começar essa conversa a partir da dificuldade de falar das relações entre arte e espaço urbano depois da experiência das últimas manifestações de junho. Essa constatação foi muito importante para a concepção da exposição e sustenta um dos núcleos de discussão propostos. Como falar de “intervenção urbana” depois da experiência das manifestações de junho? Como pensar as potências e impotências da “intervenção artística” na cidade? Pudemos reconhecer vários dos clichês da História da Arte Contemporânea e da Estética Relacional concretizados nas práticas de ocupação da cidade por qualquer um. Em outra escala e com intenções múltiplas, certamente, mas havia o mesmo desejo prospectivo de enxergar a cidade de outra maneira, de usar a cidade de outra maneira e de imaginar como a cidade e as relações sociais poderiam ser. Essa coincidência ou justaposição entre arte e política ou artista e cidadão foi algo muito evidente para mim nas manifestações de junho. Mas, se essa é uma das perguntas propostas pela exposição, por outro lado, ela é tensionada espacial e temporalmente pela experiência histórica de Do Corpo à Terra, proposta por Frederico Morais em 1970, nas imediações do Palácio das Artes. O que acham que mudou nesses 43 anos? João Castilho: Não vi a exposição de Frederico Morais e não vivi a ditadura. É claro que estudamos e lemos sobre o assunto, ainda que o Brasil, no contexto da América Latina, seja o país que menos quer discutir as ditaduras. A Argentina, por exemplo, está sempre voltando a isso na arte e em outros campos. Por outro lado, todos vivemos as manifestações de junho. Viver aquele mês de forma tão inesperada foi uma coisa sem precedentes. Fiquei

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meio hipnotizado, em suspensão. Parei de trabalhar. Ficávamos na Internet lendo, repercutindo. Fomos para a rua e vivemos uma coisa extraordinária, no sentido do não rotineiro. Nunca havia tido essa experiência espacial e coletiva na cidade. Andar até o Mineirão! Com a Copa de 2014 talvez revivamos essa experiência. E fico pensando “por que isso?” Vivemos um momento tão escuro e tenebroso quanto foi a ditadura, um momento difícil na história do Brasil, da América Latina e talvez do mundo. Erupção é uma videoinstalação com monitores de televisão de tubo que mostram ônibus sendo queimados em São Paulo e Florianópolis. E o mais louco desse trabalho em relação às questões de junho é que ele foi feito antes de tudo acontecer. Já era uma coisa que sentíamos no ar e que vinha de fora, da Turquia e do Egito, por exemplo. E também da tensão permanente de viver em uma cidade, que nada pode aliviar. Quando a tropa de choque ou qualquer time de PMs entra em uma comunidade de periferia e mata, prende ou atropela alguém, a reação imediata e raivosa das pessoas ali, que não andam armadas, é colocar fogo num ônibus. Uma reação completamente legítima, uma reação violenta a uma violência recebida antes. O trabalho nasce dessa tensão que eu pensava que um dia iria explodir. Então, eu quis fazer um trabalho que fosse uma espécie de grito, uma explosão de raiva. Queimar um ônibus é uma eclosão de raiva. Renata Marquez: Quando eu e Felipe Scovino conversamos com você sobre as manifestações, você nos mostrou fotos que fez nas ruas. Lembro que você falou que fotografava os fatos no intuito de alimentar a rede, fazer a informação circular, tal qual um seed, não é?

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João Castilho: Sim, no sentido de semear. Houve um tempo em que andava por aí com câmera, mas, depois, parei de fotografar. E quando fui para as ruas em junho voltei a fotografar instantaneamente com o celular. Fotografar sempre foi uma forma de me relacionar com o espaço e com as pessoas. Em junho usei a câmera para entender o fluxo, aquele rio caudaloso, uma hora, bravo, outra, calmo, mas sempre volumoso. Movimentava-me como fotógrafo, aproximava-me das pessoas e fazia retratos. Chegava em casa e colocava na Internet, onde isso tudo surgiu. O Facebook foi primordial para que a coisa acontecesse daquele jeito. Postava o material como forma de continuar semeando, disseminando aquilo que estávamos vivendo. Obviamente eu não estava me entendendo ali como artista fotógrafo, nada disso. Eu estava ali como mais um. Dereco: Concordo que o fogo nos ônibus é uma ação raivosa, mas fico pensando se ela não é também uma ação midiática. E, nesse caso, bem calculada. Botar fogo em ônibus é uma forma de manifestação e um recado nem sempre tão passional assim. É claro que é motivado por uma injustiça, mas, às vezes, ele é mais calculado do que uma catarse. Inclusive o formato de Erupção me remete a isso, pois as imagens estão na tela da TV, são para serem vistas no noticiário, pois o povo também tem essa malícia de jogar com a imagem. Roberto Andrés: O Bruno Torturra, da Mídia Ninja, no meio da confusão no Rio, diz numa entrevista que “a guerra agora é dos memes”. A guerra está nas ruas, mas as imagens que vão ficar é que vão ser difundidas e criar versões e sentidos para a história. Durante as manifestações, você atuou nesse lugar e até falou de ser “mais um”. Mas, nesse desafio de criar as imagens, na verdade existe um papel que talvez tenha a ver com a questão do artista. Você não se vê como artista nesse caso? João Castilho: Eu não serviria para criar memes. Se entendo o sentido de meme como uma fotochoque, uma foto icônica que vai bombar, ela tem que ser feita pelo cara que está na linha de frente. E eu não estava na linha de frente nem estava equipado para isso. Estava ali como um pedaço daquele corpo gigante. Mas não consigo separar se sou artista ou outra coisa, é tudo junto e misturado. Só percebi que não tinha feito nenhum meme depois, quando notei que as imagens eram sobre o que acontecia ao meu lado, retratos dos amigos e de pessoas que estavam vivendo aquilo. Gostaria de ter feito muitas imagens como as imagens de contenção da galera usando escudo de tapume e encarando, na tora, a cavalaria e os policiais armados. Ou aquela do cara no skate usando o orelhão do telefone público como escudo. São imagens fortíssimas. Belo Horizonte produziu muitos memes. Mas as outras imagens que não são memes são interessantes também. São ordinárias e, aparentemente, sem espetáculo. Nesse contexto, tudo é importante.

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Tiago Mata Machado: O Artur Barrio foi genial nessa guerra de memes. Imagina, em plena ditadura, auge da tortura, encontrar trouxas de carne e osso boiando pelo Rio Arrudas. As fotos das trouxas saíram no caderno policial dos jornais e o próprio Barrio aparecia nas fotos, no meio do povo aglomerado nas margens. João Castilho: Ele fez o melhor meme da história, talvez o seu melhor trabalho até hoje. Tiago Mata Machado: Aliás, isso é um problema. Hoje ele expõe essas trouxas dentro de uma redoma de vidro. É triste o que ele faz com o próprio trabalho. Isso é Arte Contemporânea! Uma coisa destituída de seu verdadeiro potencial de ruptura. Já em Veneza, fizeram uma documentação ótima desse trabalho só com as fotos de jornal, sem as trouxas. Dereco: Se eu não me engano, a Copa foi anunciada em 2007, e alguém comentou que seriam “sete anos de azar” até 2014. Quebrou-se um espelho. Desde então, a coisa só está tensionando. A primeira experiência que eu tive de rua foi numa segunda-feira. Saí de casa pensando estar indo para uma guerra, pois tudo apontava que o bicho ia pegar. E pegou mesmo, foi feio já nesse primeiro dia de confronto. Eu me machuquei, teve gente que caiu de cima da passarela. Mas lembro-me de chegar em casa e entender que a potência maior, maior do que qualquer pedra jogada, estava nas imagens geradas. Eram imagens muito bonitas. Um contexto caótico, violento, mas com fotos belíssimas não só em BH, mas no Brasil inteiro. E essas imagens foram ficando mais impressionantes protesto após protesto. Eu me lembro de um vídeo fortíssimo dos Black Blocs no Rio, em um enfrentamento com a polícia, tocando o hino nacional. João Castilho: É um tipo de guerra de contrainformação. Você começa a furar a grande imprensa, que tentava a todo custo segurar o negócio. Mas não tinha mais jeito. Passaram alguns dias fazendo autocrítica e segurando a onda, mas, depois, voltaram a satanizar o movimento. Mas os vídeos e as fotos que circulavam sem passar pelo filtro editorial motivavam e faziam-nos pensar que era uma guerra de todos. Renata Marquez: O Daniel Carneiro fez Os Brutos, a partir de uma chamada pública pelo Facebook para as pessoas enviarem o material bruto que haviam feito nas manifestações. Exibiu durante uma semana esse material, organizado cronologicamente. Teremos Os Brutos no Palácio das Artes, mas um pouco diferente. Daniel e Priscila Musa estão preparando um material historiográfico local que antecede e ultrapassa as manifestações de junho. Pesquisando também outros movimentos e a ocupação da cidade desde 2009, Daniel fez um diagnóstico interessante: notou que as pessoas começaram a filmar de um jeito e, depois, foram mudando de estratégia e modos de ver. Aprenderam a filmar e a fotografar na rua, que demanda outra dinâmica.

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Tiago Mata Machado: O Século é um filme de 2011, anterior às manifestações. É uma cena de um roteiro que eu estava fazendo para filmar no ano que vem. É um projeto em torno do estado de exceção tornado regra, um projeto benjaminiano que tenta trabalhar o que sobrevive como ruína dessa época de ditadura. O estado de exceção é um conceito de origem revolucionária, da Revolução Francesa, mas ao longo do século XX foi adotado pelos regimes totalitaristas. Depois da Primeira Guerra, as primeiras medidas de exceção começaram em função dos planos econômicos para lidar com as primeiras grandes crises do capitalismo. O Terceiro Reich nada mais foi do que um estado de exceção oficial que durou 12 anos. E a tese do Giorgio Agamben é que hoje, nas democracias modernas, o estado de exceção virou regra, técnica de governo que é a todo momento aplicada. Em relação à ditadura: o que sobrevive dela? A Polícia Militar, por exemplo, é uma instituição típica de ditadura. O militar cuida da fronteira e a polícia cuida da sociedade... Várias instituições, técnicas, ruínas da ditadura, sobrevivem hoje nas democracias modernas. E, aparentemente, vivemos uma democracia em que a pretensa normalidade nunca é ferida por medidas de exceção que são tomadas o tempo todo. Então, o roteiro do filme Os Sonâmbulos, sobrepõe todas essas ruínas do estado de exceção, a revolução, os campos de concentração, os shopping centers. A ideia era usar o vídeo como cena do filme, mas O Século começou a circular loucamente, nesse ritmo frenético do mercado de arte que é o mesmo ritmo de circulação do capital no capitalismo avançado. O vídeo caiu nesse circuito das exposições de arte e política, que é uma praga que tem em todo lugar. Em menos de três anos eu e Cinthia Marcelle participamos de quatro bienais ou trienais em torno desse tema, em Istambul e no New Museum, em Nova York. Enfim, deveríamos discutir isso também, a necessidade dos curadores - que é quase uma perversão - de tomar esse tema da arte e política... Há uma má-consciência aí. Uma coisa interessante seria pensar Do Corpo à Terra, hoje: na época do neoconcretismo quase não tínhamos instituição de arte no Brasil, eram ainda muito incipientes. Lá fora tínhamos a Land Art, por exemplo, como um deslocamento em relação à coisa institucional. No caso do Brasil, havia uma necessidade do artista de encontrar o público, ativar o outro. Mas, hoje, o sistema de arte é totalmente globalizado, uma instituição gargantuesca. A ascensão dos curadores representa ao mesmo tempo o triunfo da instituição de arte, a domesticação do artista e a falência da crítica. Quando Arthur Danto, nos anos 1990, escreve que a Arte Contemporânea vai ser ótima para a crítica porque houve uma evolução conceitual muito maior do que formal, não contava com a ascensão dos curadores. Hoje não existe mais crítica de arte, existem curadores, que são profissionais que trabalham para a instituição de arte. As grandes eminências pardas do mercado de arte são os curadores. Quem é o Mário Pedrosa contemporâneo? Nesse contexto, há um movimento de padronização desse tema de arte e política. O artista dentro desse novo esquema é praticamente um experimentador profissional a serviço da esteira de produção. Está no topo da escala capitalista porque a publicidade vai atrás do que ele produz. Mais do que nunca, a imagem é o excedente do capital, como dizia Guy Debord nos anos 60. Vivemos uma espé-

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cie de capital art: a fluidez da arte se confunde totalmente com a fluidez do capital. O dinheiro lavado, dinheiro sujo na verdade, é o que move a arte. Na verdade, dinheiro sujo e boa arte nunca estiveram separados, desde o princípio, desde os mecenas. Mas o fato é que hoje, uma verdadeira ruptura política, uma ruptura no simbólico, é praticamente impossível dentro desse sistema. O próprio cinismo se tornou uma arte capitalista. O simbólico dentro desse sistema não está na mão do artista, mas do curador. É o curador quem vai ditar qual é o sentido da obra e onde o artista vai expor e com quem vai dialogar. Os poucos trabalhos que considero realmente políticos são trabalhos anti-institucionais como os do Santiago Sierra. Tem que haver uma violência. Na Bienal do Vazio, em 2010, ocorreu um dos primeiros sintomas do que está rolando agora com os Black Blocs, naquela situação dos pixadores. As coisas saíram do controle, os pixadores não se contentaram em pixar o espaço delimitado para eles, o que era óbvio. Alguns dos pixadores que foram presos nessa ocasião foram convidados para uma Bienal em Berlim para pixar dentro de uma catedral do século XVII em uma parede de madeira que tinha sido preparada para isso. Mas eles pixaram os muros da catedral. Vieram os curadores reclamar e levaram tinta na cara. Há umas fotos do curador todo pintado e me parece que é esse o tipo de potência de ruptura política que os Black Blocs trazem hoje, uma coisa meio bárbara mesmo. Aliás, há poucos dias parece que os Black Blocs invadiram uma exposição na qual estavam sendo expostas fotografias das manifestações, destruíram tudo e pixaram “White Bloc” no cubo branco. Black Blocs representam a ideia daquilo que Benjamin chamava de violência divina, da ira popular, a força do ressentimento – que é o que encenamos em O Século. Essa é a única coisa que parece ter hoje uma verdadeira potência de ruptura simbólica: o vandalismo. E, no Brasil, historicamente avesso a rupturas, os Black Blocs são um fator político novo. Não é mais uma revolução da classe simbólica, dos intelectuais, como aconteceu nos anos 1960, é uma espécie de revolta dos ressentidos. Dereco: O Agenda é um trabalho sobre pixação. Ele está postergando uma imagem que é uma imagem forte dentro da cena da pixação, uma “agenda”, que é também o nome do trabalho. Agenda é o muro que está colecionando assinaturas da cena do pixo. Então, a agenda é mais importante quanto mais assinaturas ela tiver, e quanto mais assinaturas de pessoas importantes ela tiver. Uma agenda é uma imortalização, uma forma de postergar aqueles nomes. E, geralmente, a agenda é um lugar difícil de limpar, pois lugares fáceis de limpar não viram agendas. Muros de pedra, lugares altos e prédios abandonados viram agendas. O prédio de Agenda não é só a maior agenda de pixação de Belo Horizonte, pois não conheço outra agenda aqui que carregasse tantas pixações, como também um símbolo de especulação imobiliária: um prédio que estava abandonado há anos. Um prédio que era um marco simbólico. Quem viveu durante 10 anos vendo esse prédio ao se aproximar do Centro, vai ter essa referência sempre. É uma forma de celebrar essa cultura, um trabalho quase panfletário, uma ode ao artista marginal. Também gosto da ideia da violência divina, que realmente é uma violência

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necessária. Essa catarse vem para transformar. Esses protestos foram o que foram por conta da violência. Pela imagem, mas pela imagem da violência. E pela experiência do corpo, também fundamental. E até pessoas conservadoras ao meu redor vieram me dizer que não dava para fazer omelete sem quebrar ovos. Isso é uma frase do meu pai, um cara que considero careta. Acho que essa violência é necessária e o pixo traz muito disso, é uma violência estética, a violência da imagem que ultrapassa a barreira da lei para mostrar nada mais do que o descontentamento contra o sistema. Tiago Mata Machado: Houve outro pixo histórico também, aquele pixo vermelho dos índios no Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, em São Paulo, em outubro de 2013. Dereco: Ótima lembrança, porque tem muito a ver com o movimento que começa com a invasão da Bienal e, antes, da Escola de Arte também. O movimento da pixação foi se politizando. A pixação é um movimento potente que, se começa a se politizar, aumenta sua potência ainda mais. E não precisa ser panfletária para ser política, pixar por si só é um ato político. No território da cidade, a mera afirmação daquela estética é política. Não importa se você está escrevendo o nome da sua gangue ou uma frase revolucionária. Por si só, o ato de pixar se basta. E isso é um pouco o que o Black Bloc é também: uma violência que se justifica. Ela não tem que ter uma linha ideológica definida, e nem é esse o objetivo do Black Bloc, que se coloca, pelo menos historicamente, como uma tática de luta, e não um movimento. No Brasil, ele tomou esse ar de movimento, acredito que por uma leitura equivocada e fantasiosa da mídia, publicando que eles estão sendo financiados por ONGs. Como assim? Black Bloc por si só é a imagem da violência, da desgraça da sociedade. É uma imagem supermidiática, como o pixo tem se tornado também. Inclusive, pixação e Black Bloc andaram juntos nos protestos. E, no contexto da Copa do Mundo, o Agenda se reatualiza como imagem de resistência porque se trata de um prédio que vai virar hotel para suprir a demanda da Copa. Renata Marquez: Em Agenda (2012), você fez uma enorme gravura desse prédio pixado, tal qual estava, abandonado, antes do processo de reforma. Sendo uma gravura, você fez uma tiragem, assinou e numerou. A tiragem era limitada ou ilimitada? Como você entende a transferência da gravura para a rua e vice-versa? Quantas impressões de Agenda foram para as ruas até hoje? Dereco: Fiz tiragens abertas, ilimitadas. Até hoje, duas gravuras foram para as ruas. As demais circularam como produto de arte. Fiz duas tiragens, cada uma de sete exemplares. Uma está ao lado do prédio original, na Rua Rio de Janeiro, e é a que está durando mais por estar mais escondida. A outra está na esquina da Rua Augusto de Lima com Espírito Santo, perto do Edifício Maletta. Por ela já estar se deteriorando, como coisa na rua, vai entrando na pele da cidade à medida em que vai sendo rasgada. Deixa de ser algo limpo e se mis-

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PÁGINAS 83-87 Erupção João Castilho, 2013


tura às camadas da cidade, amarrando-se mais à superfície. Foi interessante que as pessoas começaram a pixar seus nomes também e fiquei satisfeito em imaginar esse trabalho como um estímulo a essa cultura. As reações mais interessantes foram as dos pixadores que se viam ali. Então, de repente, um pixador se lembrava de um cara que tinha morrido e que tinha assinado no prédio. Ou de ter conhecido algum dos pixadores no dia em que entraram no prédio pela primeira vez. É uma memória importante para a cena da pixação em Belo Horizonte. Dois grandes nomes do pixo belo-horizontino, Goma e Pavor, se conheceram nesse prédio. Foi um encontro importante. Há vários outros fatos que esse prédio guarda e fico feliz de cumprir a função de estimular e resgatar essas histórias. Wellington Cançado: Quando você começou a falar de Agenda, pensei no pixo e na agenda como esse lugar de produção de um meme em outra escala. Não na escala do Facebook e da televisão, mas com uma questão muito tectônica ¬– o pixo está agarrado na arquitetura da cidade. E cada pixador tenta criar uma expressão mais forte que a do outro: aquele lugar é uma espécie de monumento ao pixo. E é muito importante porque você o monumentalizou pela segunda vez. Quando vi o trabalho pensei que, além de ser um monumento à pixação, é também um monumento a um determinado período da história urbana e arquitetônica da cidade. É um prédio que ficou abandonado por tanto tempo, servindo à especulação imobiliária e, de repente, é retomado pela indústria imobiliária que o potencializa de uma forma impensável quando foi construído. Sob a potência de hoje, com a Operação Urbana e a Copa, por exemplo. É uma profissionalização no bom e no mau sentido do urbanismo profissional de eventos. Muito dinheiro rolando e um novo tipo de arquitetura que vem e encapa a estrutura que estava lá, que poderia ser habitada com poucas alterações, mas que será encapada com uma carapaça de vidro e alumínio. Tudo vem por cima sobrepondo e desconsiderando a estrutura que está por baixo para criar uma imagem radicalmente diferente da imagem que Agenda traz. Dereco: Mas ainda é um espelho que, quando reflete o que está em volta, esvazia a estrutura. É como se estivesse anulando o significado arquitetônico desse prédio pela presença do espelho. Esse prédio vai virar um prédio que poderia ser aqui ou em Bangladesh, uma arquitetura genérica. Wellington Cançado: Décadas atrás o Dan Graham escreveu vários textos sobre isso, por ser um cara que trabalha com espelhos, discutindo a história do espelhamento dos edifícios corporativos genéricos. Esse espelho é um movimento duplo. Quem está dentro está totalmente protegido (a lógica do ar condicionado, uma cidade paralela dentro da cidade) e, ao mesmo tempo, o espelho do lado de fora serve para refletir e duplicar a cidade, e essa reflexão serve também para negar a cidade, para que o edifício se torne invisível na paisagem. E isso é a antítese da rugosidade, da tectônica que o prédio tinha e que o pixo foi acumulando.

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Tiago falou da relação do artista e as impossibilidades de ruptura simbólica. Vejo nessa fala a trajetória do Dereco, a história de um artista formado na escola de arte, mas que está buscando a proximidade com o pixo, com a rua. Essa relação entre artista e arte são categorias e camadas que às vezes se separam, não? Você pode ter arte onde não tem artista e às vezes pode ter artista onde não tem esse sistema da arte sobre o qual você estava falando. Tiago Mata Machado: Como cineast, fiquei abismado com o sistema da arte, em que entrei meio acidentalmente. O cinema é uma arte da era industrial do capitalismo, até certo ponto anacrônica. A relação dos cineastas com o mercado de arte é superproblemática. Já vi alguns dos melhores cineastas contemporâneos praticamente destruindo o próprio trabalho em exposições. Há uma relação econômica, de interesse, que se sobrepõe aí. O mercado de arte cresce de tal maneira que já começa a anexar o mercado de cinema a si. É um mercado tão grande, existe espaço para tanta gente, uma demanda tal que daqui a pouco o Dereco estará expondo, isso é o natural. Espero que não aconteça porque vai acrescentar mais um capítulo ao cinismo da arte contemporânea – depois da incorporação do graffiti, a do pixo. Mas se acontecer, é o jogo! Não dá para ser purista também. A gente acha que o mundo da arte é isolado e autista em relação à sociedade, autocentrado etc, mas o fato é que ele é a cara da sociedade. Hoje existe a ideia de que todo mundo é artista, todo mundo é criador da própria imagem, e, de certa forma, o modo como o artista funciona dentro desse sistema é o modo como todo mundo funciona. Todo mundo é mais ou menos submetido ao imperativo da produção. A começar com os profissionais de Facebook. Todo mundo produz para o mercado, para o capitalismo, mesmo e especialmente os que pretendem criticá-lo – veja o caso do Zizek, por exemplo, o grande crítico do novo capitalismo, a própria superprodução intelectual dele é perfeitamente adaptada ao modo de funcionamento desse capitalismo, o cara é um fenômeno editorial, lança não sei quantos livros por ano. Hoje você tem que ser capaz de tudo. Dizer um simples “não sou capaz de fazer isso”, o que é sempre muito difícil, torna-se um ato revolucionário – é preciso reinventar urgentemente a ideia de greve. Renata Marquez: Dereco, você já expôs Agenda em muitos lugares, certo? É interessante conversarmos sobre isso, porque eu simplesmente nãogostaria de colar isso dentro da galeria, me parece um espaço muito inadequado. Você fala com tranquilidade que o trabalho circula como produto de arte e está na casa das pessoas. Eu acho que o lugar dele é aqui mesmo nas ruas da cidade. Sou incapaz de qualquer gesto que pudesse ir na direção da domesticação. Respondendo também ao Tiago: a nossa proposta é trazer Agenda para o livro da exposição, no intuito de tensionar um pouco essa questão. Agenda é um trabalho que tem tudo a ver com o processo de escavação do futuro, mas que está perfeito nas ruas.

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Tiago Mata Machado: Acho complicado pensar fora do sistema porque o que mais vejo são novas formas de inserção no sistema – e as que se dizem críticas são as mais eficientes, enfim, acho que essa moda também já passou. O fato é que sistema de arte, como o capitalismo, vai engolindo tudo o que é antissistema. Fernanda Regaldo: E o cinema é o lugar para a ruptura simbólica? Tiago Mata Machado: É, sempre foi, potencialmente. E também sempre foi uma feira. Cinema é impureza. Roberto Andrés: Mas em que o sistema da arte se difere do sistema do cinema? Tiago Mata Machado: Ele é pós-industrial. O cinema é uma coisa industrial, da era industrial do capitalismo, os festivais de cinema são antigos, é uma estrutura pesada. Eu, como cineasta, tenho muito poucos contatos, são poucos os programadores, os curadores etc, é muito diferente do mercado de arte, que é tão perfeitamente adaptado ao capitalismo global que se tornou praticamente um amálgama. O cinema é totalmente defasado nesse aspecto. João Castilho: Eu acho que todo mundo que está na arte experimenta essa contradição e tem que aprender a lidar com isso. Enquanto Tiago falava do Giorgio Agamben, pensava que acabei de participar de uma exposição de viés político, feita pelo curador Moacir dos Anjos, que se chamava Cães sem plumas. É uma figura de linguagem do João Cabral de Melo Neto que quer dizer exatamente o que o Agamben diz, que são os excluídos. É aquele sujeito que perde até aquilo que não tem, é o cão sem plumas, o despossuído. E lá está o trabalho do Cildo Meireles, Onde está o Amarildo?, dentro da Galeria Nara Roesler. Tiago Mata Machado: Sim, mas quem está arregimentando o discurso da coisa? O curador. Ele está inserindo o teu trabalho dentro de um discurso que não é necessariamente o teu. Enquanto houver curador, não há como haver ruptura de verdade. Renata Marquez: Tiago, você não acha que generaliza demais a prática dos curadores? Estou perguntando porque concordo que, sem dúvida, se passa o que você diz no sistema globalizado da arte no pós-capitalismo, com a emergência das famigeradas “escolas de curadoria”, etc., mas consigo também mapear certa diversidade de práticas. Tiago Mata Machado: Estou falando de uma estrutura econômica, querendo fazer uma análise geral do tipo marxista mesmo. Além do mais, eu tive que lidar com isso diariamente, sei como funciona na prática a coisa.

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Renata Marquez: Mas parece só enxergar o macroestrutural. Se reduzirmos radicalmente a arte ao mercado, é melhor desistirmos de tudo, não é mesmo? Não acredito que a arte seja só mercado. Aliás, isso é o que considero menos interessante nela. Acredito na crítica de arte como leitura do mundo e na estética como plataforma de sensibilidades. Como não me encaixo na categoria de curador profissional, enxergo uma possibilidade de existência livre e crítica nesse lugar de pesquisador, artista ou curador frente ao mundo. Tiago Mata Machado: Acho isso inocente. E não coloco no mesmo saco artista e curador. Para começar, um curador trabalha para alguma instituição, fixa ou temporariamente, e o artista é uma espécie de empreendedor individual, não tem vínculo empregatício e tem que bancar constantemente a própria produção. Para mim, faz toda a diferença. Renata Marquez: E como você atua nesse sistema? Quando perguntei sobre o texto que Felipe Scovino e eu lhe enviamos como convite para participar da exposição, você disse que não lê texto de curador, mas aceitou participar da exposição para a qual foi convidado. Tiago Mata Machado: Não são trabalhos só meus, são da Cinthia Marcelle também, minha parceira, que é muito mais conhecida do que eu no mercado. Na verdade, minha inserção é superproblemática. Já briguei com muito curador, sou meio chato mesmo, também no cinema, não gosto de métiers, regras de conduta etc. Saboto. Mas posso considerar também que há certa dose de cinismo aí. Quando eu estava fazendo um vídeo novo com o Dereco essa semana, Rua de Mão Única, meu novo vídeo com a Cinthia, pensei nisso: eu sei que esse vídeo vai se inserir no mercado imediatamente por causa do nome da Cinthia. E sei que vai ser requisitado por curadores que querem fazer exposições sobre arte e política. Minha relação com o mercado de arte começou como uma relação conjugal e hoje é uma relação econômica, porque afinal os trabalhos vendem e tenho dois filhos para criar. Mas também é o meu projeto, minha pesquisa estética, que estão além disso. No mercado de cinema, meus filmes se inserem dentro de um nicho bem específico. Meu último filme foi para o Festival de Berlim, mas dentro de uma mostra de cinema de vanguarda, talvez a mais tradicional mostra experimental dos grandes festivais de cinema, o que para mim foi um luxo. Mas os curadores de arte tendem a não gostar desse filme. Os curadores de arte não costumam ser cinéfilos, é fato, e dificilmente um cinéfilo se tornaria um curador de arte. Gosto dessa coisa sofrida do cinema, desse martírio que é passar anos fazendo um único filme, colocando todas as suas loucuras ali. Masoquismo meu. Fazer um filme é empreendimento excessivo, trabalho duro, consome o seu tempo, tua energia vital e psíquica. Um tempo muito diferente da arte contemporânea. Um artista hoje precisa tentar retomar o controle sobre o seu tempo de criação, não só ele, como qualquer trabalhador e profissional. Porque as coisas podem chegar a um ponto em que as demandas são tantas que sua criação começa a

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ficar o tempo todo a reboque dos convites, das exposições e daquilo que você deve fazer para o curador, o próximo evento etc. Temos que ter domínio do nosso tempo, isso é a forma básica de resistência. Dereco: Falávamos sobre as formas como Agenda circulou. E nem é muito a minha intenção que o trabalho que está nas ruas não possa circular no mercado. Não me interessa maquiar essa contradição. Tiago Mata Machado: Para você o trabalho pode circular no Facebook? A partir do momento que vira imagem, vira capital. Interessa a você que ele circule? Dereco: Sim, me interessa que circule. Ele circula no Facebook, no mercado de arte, na rua. Como imagem ou como meme. Não estou nessa negativa, estou dentro do jogo. Não tenho dois filhos, mas tenho minhas contas para pagar como você... Estou vivendo disso. Para fazer esse trabalho é uma grana, produzir isso aqui não é qualquer coisa. É um estêncil gigante, gasta tinta, espaço, matriz, papel. Não existe o purismo de que esse trabalho esteja só na rua. Assumo essa contradição e chego até a questionar essa contradição no estado de coisas que vivemos. Será que isso é contraditório? Ou será que a contradição é bem anterior? Para mim, a coisa caminha junto: só vou poder fazer o que faço na rua se colocar para circular como produto. Se não, não acontece nem uma coisa nem outra. Wellington Cançado: O Tiago falou na perda do domínio do artista sobre seu tempo de criação, ou seja, da perda de autonomia para os curadores e as instituições. Eu sou arquiteto de formação e vejo que, muitas vezes, os trabalhos


dos artistas estão hoje próximos aos trabalhos dos arquitetos e designers, que são pessoas historicamente treinadas e formadas para trabalhar com demandas específicas de clientes. Há um tempo, eu pensava que essa autonomia do artista era algo muito interessante, mas isso começou a se perder com os trabalhos comissionados por curadores e instituições. Ao mesmo tempo, outras disciplinas, como a arquitetura e o design, começam a buscar essa autonomia, tentando superar essa lógica do cliente, das instituições e da demanda prévia. Arrisco pensar que as agendas dos pixadores sejam uma exposição autogestionada por eles, sem curador algum. Vocês acham possível que o artista retome essa autonomia? João Castilho: Eu acho que o artista tem o dever de segurar essa peteca. Não pode entrar no turbilhão da arte global. É aquela história do Bartlebly de Herman Melville, o cara tem que saber falar não. Eu, que não estou nesse esquema global, já sofro alguma pressão. Não sei como seria se chegassem dez convites por e-mail por dia, mas por enquanto meu ritmo continua o mesmo. O problema é começar a fazer merda. Mas pode ser que o cara tenha o tempo dele para fazer o trabalho, e faça merda mesmo assim. Mas negociando, dizendo “não”, dizendo “espera”, é possível controlar isso, apesar do mercado ser selvagem. Dereco: A autonomia que eu tento construir está em produzir pensando no suporte. Até esse momento, não tive restrição de curadores. Eu estou produzindo o que eu quero e colocando onde eu quero, correndo meu risco na rua. E a rua tem uma resposta preciosa para esse tipo de questão. É claro que o mercado pode influenciar o processo da arte urbana, mas para mim a construção dessa autonomia, no sentido econômico do mercado, é a potência de poder colocar


meu trabalho na rua como eu quiser. Ainda estou caminhando nesse aprendizado, mas o que tento fazer é não viver exclusivamente de arte, para evitar que eu fique refém de situações que não quero. Tiago Mata Machado: Mas aí você se torna refém de outras. Dereco: Sim, mas prefiro abrir mão de trabalhar só com arte, e trabalhar com outras coisas, o que é uma prisão também, a definirem o que devo fazer em termos de arte. Roberto Andrés: A arte opera muito pela restrição do acesso. Eu nunca vi muitos vídeos de arte dos quais eu já ouvi falar ou sobre os quais já li sobre, porque eu teria que ter visto aquela exposição específica ou adquirido a obra. João Castilho: Essa é a lógica da cópia única da pintura, que agrega valor. Roberto Andrés: E que é a lógica que dá margem para a especulação na arte. E talvez o que mais diferencie os sistemas que o Tiago chama de industrial e pós-industrial é que no cinema, na maioria das vezes, o produto vale mais quanto mais vezes for visto. Já na arte, a margem para especulação é aberta e o colecionador chega a pagar quinhentos mil por um trabalho. Acho curioso o Tiago falar que é um problema a imagem ir para o Facebook. Na verdade, essa circulação está rompendo uma restrição do sistema da arte. Dereco: Se estou produzindo da forma que quero e meu trabalho vira um meme, melhor, pois eu construí a imagem do jeito que eu quis.


Tiago Mata Machado: Mas essa é ainda uma lógica capitalista. Roberto Andrés: Mas no caso do galerista, a lógica do capital não é justamente restringir para vender mais caro? Tiago Mata Machado: Essa é a lógica antiga, o colecionador é um personagem do capitalismo clássico. A lógica do novo capitalismo é a fluidez, é mais a da circulação do que a da retenção, que é uma política antiga das galerias. João Castilho: No caso de vídeo, alguns são compartilhados e outros, restringidos. O Francis Alÿs, por exemplo, tem vídeos de domínio público. Você baixa e possui. Já outros, ele restringe. A questão dos vídeos é problemática no mercado, porque o resto é produto, é objeto, e o vídeo não. Mas se vende performance também, se vende tudo. O Tino Sehgal, performer que flerta com a dança, vende as coisas dele sem nenhum papel, sem nenhum documento. O que ele faz é falar no ouvido de quem está comprando. O negócio vai entrando em uns caminhos muito loucos. Não se trata nem de produto mais. Compram-se ideias. Tiago Mata Machado: Na arte se compram ideias desde os anos 1960. João Castilho: Mas ainda tem aquela coisa de ter um objeto para comprar. O Tino Sehgal vendeu um trabalho que são instruções para o curador, e o trabalho pode ser remontado. Tiago Mata Machado: Isso também é antigo, desde os anos 1970 se faz isso.


João Castilho: Mas antigamente se fazia contrato e assinava, agora não tem nem mais papel. Por mais que se faça esse tipo de coisa desde os anos 1970, são situações ainda raras. A maior parte do mercado se dá em circulação de produtos, e não de ideias. Tiago Mata Machado: Os produtos são também ideias. Mas acho contraditório o lugar do artista dentro desse sistema. O artista nunca teve tanto poder financeiro, quase nenhum artista hoje trabalha sem um time de produção. Ao mesmo tempo, ele é escravo de uma esteira de produção e corre sempre o risco de banalizar o próprio trabalho. E aí entra a questão da autonomia. Na época de Do Corpo à Terra, as questões eram muito próximas ao que estamos tentando discutir hoje. Na verdade, era uma tensão entre duas concepções de modernidade estética. Uma, que prega a autonomia da arte, a tendência kantiana, e outra, hegeliana, da arte dissolvida na vida, na práxis, como transformação social. A tensão dialética entre essas duas grandes concepções fez a História da Arte do Século XX, e a autonomia do artista era ligada à ideia da autonomia da arte. Sinto-me um pouco órfão do século XX, que foi um século de rupturas simbólicas constantes. Passei a infância no exílio com minha mãe, que fugia da ditadura, cheguei com nove anos ao Brasil e nunca deixei de me sentir meio exilado aqui. Não sou muito gregário. Digo isso porque minha relação com as manifestações de junho foi um pouco distanciada e me ressinto um pouco. Eu queria participar mais, mas ao mesmo tempo eu evitava participar por desacreditar na minha participação, por temer alguma impostura minha. Karl Kraus tem um aforismo engraçado que diz: político é um cara que está metido na vida nunca se sabe exatamente onde, e o esteta é o sujeito que quer fugir


da vida nunca se sabe exatamente para onde. Eu acho que, quando o artista quer se politizar, ele está se metendo na vida, mas nunca sabe exatamente onde – o Godard pós-68, por exemplo. E quando ele quer uma arte pura, a arte pela arte, ele está fugindo da vida. É aquela coisa do Rimbaud, “a verdadeira vida está ausente”. Nesse ponto, eu me sinto mais um esteta, mas eu tento compensar pela impureza. Minha relação com as manifestações foi problemática por ter sido muito conceitual. Quando veio junho, tudo que eu vinha escrevendo nos últimos dois anos, inspirado pelas primaveras árabes etc., começou a acontecer na esquina de casa, e já tinha uma onda meio benjaminiana, “uma história em que o passado está carregado do Agora e o atual se move na selva do Outrora”. Eu e Cinthia fizemos um vídeo agora com os Black Blocs que é uma espécie de continuação de O Século, enfim, retomando a mesma vibe, só que pós-junho. Convidamos alguns Black Blocs para atuarem, e durante a filmagem fiquei me questionando um pouco. Eu estava lá com Dereco, que nos ajudou, em cima de uma plataforma de 20m de altura, coordenando cada movimento dos Black Blocs com um megafone. Era uma ditadura total, a ditadura da arte, e os caras foram muito gente fina comigo! Os Black Blocs são meus heróis, mas são também filhos da violência social e do Estado, da violência e seus poderes miméticos. Enquanto eu os dirigia lá de cima, fiquei pensando que a minha relação com esses eventos foi meio essa, de ver as coisas à distância. O que eu mais gostava, na real, era ficar vendo aqueles planos alucinantes de helicópteros, de cima, eu retirava disso um verdadeiro gozo moral e estético porque eram variações dos planos que eu já vinha concebendo no meu roteiro. Mas, enfim, havia aí um óbvio distanciamento em relação à coisa, uma postura muito pouco participativa, por mais que eu me identificasse, minha postura era quase voyeurista.


Renata Marquez: Onde estaria a impureza? Você se considera um esteta: acho curioso como entende a estética a partir da distinção radical entre estética e política, que é exatamente o contrário das experiências urbanas recentes de indistinção entre artista e cidadão em discussão aqui e da ideia de partilha do sensível de Jacques Rancière... Tiago Mata Machado: E da ideia do comum também. Renata Marquez: E não somente do Rancière. Chantal Mouffe, conversando com Rosalyn Deutsche, também fala que toda arte é política e que toda política tem uma dimensão estética, pois ambas trabalham o regime de visibilidade das coisas, da troca dos significados da aparência das coisas. O que quero dizer é que parece não mais fazer sentido usar o político como adjetivo. Chantal e Deutsche discutem a falta de sentido ao dizer que uma arte é política e que outra não é. Tiago Mata Machado: O Rancière se propõe a resolver essa dialética do modernismo, que é da autonomia da arte e da arte como transformação social. E faz isso com essa ideia da partilha do sensível. Eu acho interessante quando ele fala do estético como uma ociosidade. Aí, entra em um terreno que me interessa mais, algo desfuncional e ocioso. Mas também acho que essa ideia do comum corre o risco de se transformar em um conceito meio esotérico, uma coisa inofensiva, como tantas modas políticas de academia, me lembra um pouco quando o Zizek fala dessa tendência contemporânea de retirar das coisas a sua nocividade potencial, quando ele fala do multiculturalismo, por exemplo, como sendo o o outro desprovido de sua verdadeira alteridade, ou como café sem cafeína, cerveja sem álcool, enfim, o comum é um pouco o comunismo (ou o comunitarismo) sem o ismo, sem o ranço partidário, sem a real politik etc. Acho legal, necessário, só temo que se torne algo meio “poliana”. Onde se encaixa, por exemplo, a violência dos Black Blocs nisso aí, as depredações de patrimônio público? O que foi essencialmente político nesse movimento foram os Black Blocs, que de certa forma excedem, pela barbárie, essa consideração do comum, que me soa meio conciliatória. E a violência é o fator político novo aqui, o verdadeiro apoderamento da sociedade civil brasileira só poderá vir através da ruptura, do vandalismo e do quebra-quebra. Renata Marquez: Mas essa é uma nova dimensão do visível e do sensível que, como o Dereco disse, o próprio pai dele conseguiu enxergar como potência de transformação do real. E a isso chamamos de estético também, a partir de Rancière. Os Black Blocs entrariam nesse regime estético, no sentido de imaginar uma nova forma de sentir, de ver e dizer. Tiago Mata Machado: Pois é, mas não pela criação coletiva, democratizada, mas pela barbárie.

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Renata Marquez: Como a arte. Os Black Blocs conformam, sem ter intenção artística, uma forma de representação nova para lidar com essa experiência que ainda não conseguimos dizer o que é, o que vai ser ou como deveria ser. Glauber Rocha dizia que a manifestação cultural da fome era a violência. É interessante pensar ainda e sobretudo hoje nessa indistinção. Tiago Mata Machado: Poder de criação da destruição. Como o Benjamin fala, a alegria da destruição é uma alegria criativa. Renata Marquez: Mas o comum para o Rancière não é comunismo, é criar uma entidade visível que pode ser enxergada como uma potência de existência. Nesse sentido, podemos repensar a questão da estética e da política. Um dos motes da nossa discussão na exposição é enxergar outras formas de sensibilidade que estão fora da arte mas que são estéticas também, e não o lugar da arte como privilégio, como distinção, do mercado global e dos colecionadores. Tiago Mata Machado: Mas vocês estão fazendo isso dentro de um espaço institucional da arte. Renata Marquez: Uma coisa importante de dizer é que, ao longo do nosso diálogo com a instituição, que é uma instituição pública, estamos tendo muitos pontos de conflito político com os quais lidar... Não se trata de uma situação de aderência e sim de discussão e confronto. Outra coisa é que a ideia da exposição é justamente tensionar o espaço de uma instituição pública aceitando-a como um lugar possível de ação, diferente da macroestrutura homogênea à qual você se refere. Os Brutos, por exemplo, é uma convocatória aberta para a qual se podiam enviar vídeos brutos das ocupações. Ou o trabalho da Patrícia Azevedo, Santos Sujos: retrato do vazio, que vem de práticas dela que sempre aconteceram na rua, como distribuição de panfleto. E isso gerou ótimas discussões sobre como o trabalho poderia aparecer na exposição, porque ela dizia que eram originalmente “objetos pouco preciosos”. Tiago Mata Machado: Isso volta à ideia hegeliana de dissolução da arte na vida. Renata Marquez: Uma coisa irresoluta ainda. Tiago Mata Machado: Algo que está incipiente, mas com certeza vai vir. Roberto Andrés: O Dereco fez o desenho do Luiz Estrela, e o Espaço Comum Luiz Estrela é para mim um nó de várias manifestações de Belo Horizonte que não sabemos direito como vai se resolver. A ideia do comum está lá. Dereco: Na verdade, esse nome tem muita importância para mim. O meu nome artístico é Comum. É como eu tenho assinado todos meus trabalhos de rua e até meus raps. Então, estava superatento à ideia de comum que vocês discutiam.

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Tiago Mata Machado: É um conceito da moda acadêmica. Dereco: Mas eu vejo os Black Blocs como algo comum, sim, no sentido de indistinção. Ele está misturado, e rostos tampados dizem muito sobre isso para mim. Inclusive, nesse trabalho que eu já desenvolvo há mais tempo como Cidadão Comum, antes mesmo de junho, eu já trabalhava esse personagem com o rosto tampado. Eu não imaginava o tanto que isso iria ganhar em dimensão simbólica no País. O mascarado virou o principal inimigo do País. Inclusive o termo deixou de ser “vândalo” e passou a ser “mascarado”. O cidadão comum é a massa sem forma, sem rosto, que está ali junta, nessa catarse violenta. E eu vejo isso de duas formas. Existe a dimensão comum do Black Bloc, que é a negativa. Quando essa violência se expressa, o Black Bloc está dizendo um grande não. No Espaço Comum Luiz Estrela, eu vejo o comum como um grande sim. São dois momentos diferentes. Para mim, o Espaço Comum Luiz Estrela é uma tentativa de propor algo. A grande potência do espaço comum é superar o não e dizer o sim. O governo não pode pautar como vai ser, nós já temos uma proposição, que se dá no confronto. Para mim, o comum se expressa nessa vontade que não é de ninguém e é de todos ao mesmo tempo. E enxergo o Black Bloc dessa forma, por ele conseguir triunfar em não ter um líder nem um rosto. Vejo o mesmo acontecer no Espaço Comum Luiz Estrela: é uma vontade comum, horizontal e sem distinção. Existe diferença, mas não distinção. Wellington Cançado: Sua leitura em relação à ocupação é muito interessante no sentido de dar um passo adiante. O Luiz Estrela é um passo adiante de movimentos que reagem a uma violência política, como a Praia da Estação, o Fora Lacerda e o Carnaval. Ele não é uma reação, ele é uma construção. É claro, existem várias ocupações na cidade em que as pessoas estão reagindo. Mas essa é uma construção de outro modelo de ocupação, que não é uma luta por habitação. Ela é dentro da cidade, é feita por outras pessoas, de outra classe social, com outro caráter simbólico e com uma agenda própria, fazendo a cidade que as pessoas querem. Por outro lado, essa história do comum me parece em vários momentos uma superação precipitada da ideia de espaço público. Na ocupação não sei de onde veio o termo comum exatamente, mas vejo que esse comum é usado em vários lugares, até mesmo na arte, como uma nova categoria que supera o espaço público. Mas no Brasil talvez seja inocente e precipitado falarmos nisso, porque não chegamos a construir um espaço público e já queremos substituí-lo pelo comum. Dereco: Vejo comum como construção coletiva e, nesse sentido, como ideia de superação do espaço público. O nome do Espaço Comum Luiz Estrela foi uma discussão que ocupou bem o nosso tempo. Eu me lembro de que havia variáveis para o nome do espaço e muitas delas sem o comum, que era só uma das variáveis e ganhou com muita folga. Público não foi uma opção.

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Wellington Cançado: Isso pode ter a ver com uma ligação no Brasil do público com o Estado, a institucionalidade. João Castilho: Público tem essa conotação impositiva, que vem de cima para baixo, à qual o comum reage. Dereco: O que norteia a ocupação hoje em dia é a noção de integração, a ideia de que todos somos responsáveis pelo espaço. E a responsabilidade não é só de quem está no grupo orgânico, queremos que as pessoas também assumam essa responsabilidade. Há um esforço constante de acessar a vizinhança, os moradores de rua, de incluí-los nas dinâmicas. Não estamos ali fazendo um serviço humanitário para alguém, estamos fazendo algo que nos interessa em termos de política e de cultura. Renata Marquez: No Brasil, temos um público incompleto, uma dimensão do público que ainda desconhecemos como experiência plena. Wellington Cançado: Vocês veem na arte uma potência de imaginação que poderia ser útil neste momento? João Castilho: Eu fico esperando surgir um trabalho que possa ter o efeito que as trouxas do Barrio tiveram quando foram lançadas no Arrudas em 1970. Tiago Mata Machado: Guernica, por exemplo, não mudou os bombardeios da guerra civil, mas mudou a sensibilidade da época. João Castilho: Pode ser que não mudem, mas podem ser trabalhos de maior potência, ruptura e efeito como o trabalho do Barrio teve naquele momento em Do Corpo à Terra. Dereco: Um trabalho pode ter uma potência de suscitar um sentimento, de levar as pessoas às ruas e incentivar que elas continuem esses confrontos. Contudo, o trabalho corre o risco de, em vez de incentivar um sentimento, incentivar a geração de um meme que se resolva em si. Então às vezes o cara se dá por satisfeito por compartilhar, mas ele não vai para a rua por conta de uma imagem. Renata Marquez: Ou então podemos pensar que um trabalho que corresponderia às trouxas do Barrio hoje seria a intervenção dos Black Blocs na qual você tem uma síntese complexa que dá conta dessas questões. João Castilho: E que tem a ver com essa ideia de artista-cidadão de que você falava, que é um limite que está meio borrado mesmo. Mas é difícil saber a potência de um trabalho, pois existe a questão do tempo. Não sei o impacto que as trouxas do Barrio tiveram na semana em que foram jogadas. Obviamente, o trabalho foi ganhando muito mais importância nas décadas seguintes.

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Isso lembra aquele conceito que Robert Smithson usa de ruína ao avesso, quando ele vai para a periferia em Passaic e começa a dar status de monumento a obras de engenharia que estavam acontecendo ali. Com isso, eu fiquei pensando muito no que estamos vivendo em Belo Horizonte, com esse prefeito que temos, que é obcecado com essas obras que são feitas e refeitas o tempo inteiro. A ruína ao avesso é o contrário da ruína romântica, que tem história e memória. Ruína ao avesso é aquilo que, antes de ter sido terminado, já tem o aspecto de ruína. Belo Horizonte é um pouco assim. Durante a exposição Do Corpo à Terra, estavam acontecendo algumas obras nos arredores do Palácio das Artes que foram fotografadas por Frederico Morais. Renata Marquez: Essas fotografias compunham o trabalho Quinze Lições sobre Arte e História da Arte – Apropriações: Homenagens e Equações e uma delas é Arqueologia do urbano: escavar o futuro. João Castilho: Que tem tudo a ver com os monumentos de Passaic, aquelas fotos de tubulação, de construção, de pontes, de balsa de extração de areia. Wellington Cançado: É interessante pensar a relação da natureza no Smithson e em Do Corpo à Terra. Uma dessas fotos da Arqueologia do Urbano era a canalização do Córrego Acaba Mundo, na Avenida Afonso Pena, que tinha a cascata dentro do parque e desaguava no Arrudas. Ficamos pensando em conversar com o Barrio agora, 40 anos depois, mostrando o que o Arrudas virou. Onde as trouxas foram jogadas não tem mais rio, é um apagamento. No Smithson, é uma questão da visibilidade da natureza, dos processos ecológicos da entropia, e aqui é o processo de invisibilidade radical desses processos geográficos. É a cidade solapando qualquer relação ecológica e entrópica da natureza, criando outro movimento de velocidade e brutalidade.

PÁGINAS 92-97 O século Cinthia Marcelle e Tiago Mata Machado, 2011

PRÓXIMA PÁGINA Agenda Cidadão Comum, 2012. Fotografia: Daniel Iglesias



RUA DIREITA S達o Paulo, c. 1970 Claudia Andujar

















O DIA EM QUE A CIDADE PAROU Depoimento de João Luiz da Silva Dias à PISEAGRAMA e André Veloso 13 de novembro de 2013

Até 1982, o sistema de transporte público de Belo Horizonte era radial, guardando a configuração do antigo sistema de bondes, que vinham dos bairros diretamente para o Centro, onde eram localizados os pontos finais. Associados originalmente às empresas de energia elétrica no Brasil, os bondes foram estatizados e viveram um período de decadência durante a guerra. E o sistema de ônibus surge dessa realidade pós-guerra, junto com o automóvel, com muito mais flexibilidade. Os ônibus não requeriam a implantação de trilhos ou alimentação elétrica, o que facilitava o desenho e redesenho de seu sistema. Como todas as linhas eram radiais, à medida que o centro se saturava, as linhas se afastavam. Nessa configuração, o passageiro saía de um ônibus vindo da região sul, descia atrás da Igreja de São José e só continuava a viagem pegando outro ônibus na Rua Caetés ou na Rua Guarani, por exemplo, andando seiscentos, oitocentos metros para continuar a viagem. O ProBus, implementado pela Metrobel em 1982, realizou, entre outras ações, a reconfiguração das linhas de ônibus, implantando as linhas diametrais, chamadas de Bairro a Bairro. Como empresas públicas não eram obrigadas a licitar o serviço, estabeleceu-se a forma e uma performance ideal para o sistema, e os empresários que se virassem para cumpri-lo. Apesar do planejamento prévio com as empresas, a reconfiguração das linhas foi feita em um só dia, porque, se a reforma fosse feita aos poucos, a convivência do sistema antigo com o novo comprometeria sua funcionalidade. Apesar de ineficiente, o sistema antigo era conhecido, e sua substituição parcial só iria tornar mais lenta a adaptação. Mas, quando rapidamente implementadas, essas mudanças são logo incorporadas. Passam vinte dias e é como se a vida inteira tivesse sido do mesmo jeito.

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Pร GINAS 121-122 Jornal Diรกrio da Tarde, 13 de julho de 1982



Nos dias que antecederam a mudança, montamos diversas barracas informativas no centro da cidade e espalhamos panfletos que explicavam as novas linhas e a supressão dos pontos finais: os ônibus passaram a atravessar o Centro, parando em diversos pontos. E essa novidade foi mesmo uma loucura durante uns dez dias. No domingo em que implantamos as novas linhas, apesar de ser um dia mais tranquilo e de todo o treino prévio com os motoristas, vários ônibus se perderam pela cidade. Os caras perderam os itinerários, não sabiam para onde ir e acabaram improvisando seus trajetos. Isso foi em 1982. E 11 de julho foi o dia em que a cidade parou.

CRIAÇÃO DA METROBEL Com o objetivo de gerenciar a integração do transporte urbano em nível metropolitano, a Companhia de Transportes Urbanos da Região Metropolitana de Belo Horizonte - Metrobel foi uma empresa pública criada a partir da fusão de dois projetos distintos: o Transmetro, criado dentro do Planbel, e a Metrobel, um projeto de metrô de superfície para Belo Horizonte, elaborado por consultores canadenses durante a prefeitura de Luiz Verano, e que teve seu nome incorporado ao novo órgão. Essa foi uma oportunidade na qual o Planbel teve de assumir o planejamento de parte das questões da engenharia de tráfego na cidade de Belo Horizonte, até então atribuídas ao governo do estado e aos Detrans. Nesse momento, o Detran já apresentava dificuldades em trabalhar com essas questões, por falta de recursos e de atualização com o contexto do tráfego urbano em constante crescimento. O projeto da Metrobel foi aprovado em 1978 com muita dificuldade devido à sua proposta inicial de fundir a gestão do transporte público e a do trânsito em uma só empresa. Essa proposta de um órgão gestor único era inovadora para as grandes cidades que, na época, desenvolviam os sistemas separadamente. Mas não podem ser sistemas diferentes, são duas faces da mesma moeda. Desse modo, a Metrobel já nasce com uma crítica ao modelo existente, e suas propostas sofrem, desde sua criação, uma resistência por parte de órgãos como o Detran, que não abria mão da gestão da engenharia de tráfego. A partir de então, e em um curto período de tempo, a Metrobel operou grandes transformações na cidade de Belo Horizonte. Nossa gestão durou menos de três anos, de junho de 1980, quando a Metrobel foi constituída, até março de 1983, quando saímos. A cidade tinha naquela época uma frota de cerca de 200 mil veículos e já apresentava, em alguns casos, problemas de trânsito até piores do que os atuais. O próprio desenho do centro da cidade, caracterizado por uma geometria quadricular com uma rede de avenidas sobreposta a ela em um ângulo de 45 graus, trazia uma complexidade considerável para o transporte urbano. Não é um desenho muito adequado para a fluidez do trânsito. Desde o início estava claro para nós que os problemas de trânsito não resultavam apenas do aumento da frota de veículos, mas, também, de um mau gerenciamento do sistema, que deveria

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contemplar o descongestionamento do tráfego, os novos modelos de segurança e a sinalização, além da conexão entre as modalidades existentes de transporte. Assumimos, então, alguns projetos em desenvolvimento no Planbel, como o Projeto da Área Central - Pace, que surge como resposta à constatação do Plano de Ocupação do Solo da Aglomeração de que a área central sofria perda de moradores e de atividades comerciais. O objetivo principal do Pace era hierarquizar o sistema viário dentro da área planejada da cidade a partir da definição de uma rede de vias arteriais, privilegiada por um sistema sincronizado de semáforos, além da definição do que chamamos de áreas ambientais. As áreas ambientais eram áreas destinadas apenas ao trânsito local, algumas incluindo o uso exclusivo de pedestres. Para tornar viável essa ideia, deveríamos criar artifícios para dificultar a passagem daqueles cujo objetivo era cortar caminho. Então, alargávamos as calçadas nas chamadas zonas mortas, locais nos quais o carro não podia passar ou estacionar, como em cruzamentos e esquinas, a fim de direcionar o fluxo mais rápido de carros para as vias arteriais. Em alguns pontos podiam-se até criar ruas sem saída, com praças em uma determinada esquina. E quem entrasse ali o faria somente com o objetivo de estacionar ou de se dirigir a algum comércio específico. Dessa forma, o objetivo do alargamento das calçadas nas áreas ambientais era reforçar a segurança do pedestre a partir do ponto de vista do traffic calming. Todas essas soluções do Pace, de hierarquização do sistema viário e de reordenamento do tráfego pela sincronização dos semáforos, eram soluções simples que envolviam apenas a geometria da cidade, em tempos nos quais já se falava em construir trincheiras e viadutos. Alguns dos projetos do Pace foram realizados em 1982. Entretanto, as áreas ambientais chegaram apenas a ser delimitadas, e nunca foram implementadas. Essa foi uma época bastante conturbada no que diz respeito à execução dos projetos da Metrobel, porque coincidiu com o fim do período militar no Brasil e com as reações de movimentos pelo reestabelecimento da democracia. Mesmo tendo sido formada no contexto da ditadura militar, nunca um órgão em Belo Horizonte teve a aproximação com a população que a Metrobel teve. Em trinta e três meses, fizemos cerca de duzentas reuniões com a comunidade. Promovíamos diversos encontros nos bairros, em escolas, igrejas, onde quer que fosse, nos quais a comunidade podia reclamar do transporte público (que tinha péssima qualidade) e opinar sobre as propostas. Nós levávamos as ideias, que eram discutidas com os moradores, e surgiam novas demandas a partir das quais as propostas eram readaptadas. As reuniões costumavam ser bem acaloradas. Em alguns casos fazíamos jornaizinhos com as propostas e que eram distribuídos nas casas do bairro.

TARIFA A grande inovação da Metrobel, depois de alterada a parte física do sistema, se deu em sua parte financeira. Cada linha de ônibus tinha uma performance diferente e realidades diferentes de itinerário, topografia, tamanho da linha, sobe e

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desce de passageiros e proximidade a polos mais geradores de viagens, como colégios, hospitais e INSS, ao longo da linha. E se cada linha tinha uma performance diferente, elas tinham que operar com frotas diferentes, de portes diferentes e com tarifas diferenciadas. Se a tarifa é o custo médio dos passageiros pagantes e fosse calculada para cada linha, como acontecia antes da Metrobel, cada linha teria uma tarifa. Então, quando as tarifas são unificadas, deve-se fazer uma compensação, para que a rentabilidade das empresas não seja muito discrepante. Criamos, então, em setembro de 1982, já no final do nosso período na Metrobel, o sistema de pagamento pelo serviço contratado com a intenção de unificar as tarifas nas linhas de ônibus. Em vez de receber a receita da catraca, o operador passou a receber pelo serviço contratado pela Metrobel. Para todas as empresas existia uma equação de remuneração baseada no quilômetro rodado e nas frotas certificadas. Nesse sistema, o recurso da tarifa era destinado à Câmara de Compensação Tarifária, criada pela Metrobel, que repassava esse recurso para os operadores do serviço de transporte contratado. Foi nesse momento que os ônibus passaram a ter três cores. Anteriormente, havia 120 empresas operando o sistema, cada uma com sua cor estampada em sua frota de ônibus. Com a revisão tarifária, as cores dos ônibus passaram a ser determinadas pelo serviço prestado. As linhas diametrais se tornaram azuis, as semiexpressas, vermelhas, e as circulares, amarelas. As linhas azuis, que são as linhas centrais, são muito produtivas, com alta rotatividade de passageiros, apesar de a população estar mais estabilizada. As vermelhas, com a pressão de crescimento da população, já que a cidade cresce mais na periferia, são linhas deficitárias na Câmara de Compensação. Além de

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percorrerem maiores distâncias, elas têm menor fluxo de passageiros. Na hora em que se faz a compensação mensal, quem é deficitário vai receber a diferença, que pode ser muito expressiva. Pode ser que as linhas vermelhas estejam arrecadando pela catraca apenas 30% de seu custo, e recebam os 70% faltantes da Câmara de Compensação. Por outro lado, as linhas superavitárias recebem, pela catraca, um excedente que, durante a compensação, é transferido às linhas deficitárias, impedindo lucros estratosféricos de uma empresa em relação à outra. O sistema de ônibus é, então, medido por produção quilométrica e não por catraca rodada. Uma empresa contratada nessa lógica quer operar a quantidade máxima de ônibus, com uma programação de horários enorme, simplesmente porque ela quer receber mais. Com isso, ela está aumentando o contrato dela, criando uma pressão geral para colocar mais ônibus circulando pela cidade, independentemente da rotatividade de passageiros por linha. E é isso mesmo que a população deseja: mais ônibus e maior conforto nos horários de pico. Essas medidas são um reflexo do nosso entendimento do transporte como bem público, que não deve ser definido pelo mercado. E a exclusão é própria do mercado: se não houver exclusão, não tem mercado. Bens públicos, por outro lado, não admitem a exclusão, isso é um princípio básico. Embora a questão social e a perversidade da exclusão sejam suficientes para questionar esse modelo, ele, por si só, mostra-se ineficiente do ponto de vista do mercado. Em alguns casos, como a iluminação pública, esse modelo é até impossível. Quem não paga a taxa de iluminação pública não precisa fechar os olhos para andar nas ruas à noite. Todos usufruem desse bem, inclusive quem está só de passagem pela cidade. Por outro lado, existem casos, como a saúde, a educação e o transporte, nos quais a exclusão é possível. E, quando feita, é ineficiente. Ao se reduzir a mobilidade das pessoas, você reduz inclusive o próprio mercado, que precisa de força de trabalho e de consumidor. Então, até para quem gosta muito do mercado, a mobilidade tem que ser garantida. Uma das condições perfeitas de mercado é a ausência de monopólio, que só é possível com a concorrência que, por sua vez, depende da mobilidade das pessoas para se tornar realizável. Com o fim da Metrobel, a Câmara de Compensação Tarifária ficou sob o controle do sindicato dos empresários de ônibus, o que durou até a formação da BHTrans, em 1993, quando a operação da Câmara foi restituída à prefeitura. O início da década de 1990 foi também marcado pelo Plano Real, que trouxe estabilidade para a economia e suprimiu a necessidade constante de reajuste tarifário. Como resultado disso, passamos a ter superávit na Câmara, que foi destinado a melhorias para o sistema, aumentando o número de ônibus, criando novas linhas e, finalmente, viabilizando o projeto Passe Passeio. O Passe Passeio significava tarifa zero para os ônibus de Belo Horizonte em feriados, com programação de dia útil. A pressão de demanda pelo transporte era tão grande nesses dias que, posteriormente, colocamos a tarifa a dez centavos com a intenção de pagar um bônus aos motoristas e cobradores que trabalhassem naquele dia, uma vez que a quantidade de passageiros, princi-

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palmente nas proximidades de lugares como o Zoológico, tornava o trabalho mais intenso. Essa experiência revelou uma demanda de transporte reprimida e oculta pelo alto custo de circular na cidade. Apesar da euforia causada nos dias de tarifa zero, o projeto não durou mais que três feriados. Houve muita pressão dos empresários, que conseguiram que o Tribunal de Contas inibisse o projeto, alegando ser proibido abrir mão de uma receita sem lei, apesar de o custo do Passe Passeio ter sido bancado pela receita superavitária do próprio sistema de transporte.

MODELO DE CIDADE RODOVIARISTA E AS EMPREITEIRAS As trincheiras e os viadutos, que foram feitos após a nossa gestão, violentavam a lógica e a concepção de engenharia do Planbel. Todas essas obras de infraestrutura urbana que são reproduzidas atualmente têm um impacto terrível na cidade, provocam um prejuízo ambiental imenso, além de solucionar apenas uma pequena parcela dos problemas. Belo Horizonte está cobrindo o rio Arrudas (e chamando de Boulevard!) e construindo uma série de viadutos para os carros. O indivíduo mora no terceiro andar de um prediozinho com vista, e de repente é construído um viaduto em frente à sua janela. De um dia para o outro, tem gente passando a apenas 4 metros da janela dele! Na Avenida do Contorno, por exemplo, tinha uma padaria de um espanhol que era um ponto de encontro, todo mundo parava ali. Depois da construção da trincheira, ficou quase impossível parar nessa padaria. Acabou a padaria! Se antes era possível passar pela

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Rua André Cavalcante para chegar ao estabelecimento, com a construção da trincheira tornou-se necessário ir até a ponta da passarela, subir para atravessar e depois descer. Uma distância que um dia foi de 5 metros passou a ser de 300 metros. A Linha Verde da Av. Cristiano Machado é outro exemplo. As pessoas passam de carro por cima e não sabem o que está acontecendo embaixo. E embaixo passa inclusive o transporte coletivo, que não teve o privilégio de circulação na Linha Verde. O espaço do transporte público foi reduzido, enquanto a parte de cima, ampliada, ficou para os carros. As manifestações de junho representaram um momento importante de reivindicação pela revisão dessas políticas. Entretanto, não vemos respostas coerentes do governo. Os recursos não têm um bom destino porque não há uma gestão adequada dos bens públicos. Dessa forma, nem metrô nós vamos construir. E se, eventualmente, for construído com parcerias público -privadas, não servirá aos seus usuários, e, sim, aos empreiteiros sem compromisso com a qualidade do que vai ser construído. Intervenções como essas, tão reproduzidas hoje, são resultado do fato de que nossa cidade está sob o império das empreiteiras, cujos objetivos a nossa vã filosofia não é capaz de alcançar. Esse sistema feria diretamente nossa lógica no Planbel, já que, para nós, a questão dos carros era uma obviedade: automóvel não é uma coisa universal, é uma solução individual que, se todo mundo tiver, ninguém vai conseguir usar. É o chamado sofisma de composição. Se continuarmos a alargar as ruas e as vias dessa forma, a cidade vai deixar de existir. E, aliás, é o que vem acontecendo. Os espaços de vida vão sendo eliminados gradativamente. Então, o que vai ser a cidade no final?

DEGRADAÇÃO DA METROBEL O problema de degradação da Metrobel é um problema muito sério, muito grave. Precisa ser analisado com cuidado, porque a mesma ameaça está acontecendo hoje com a BHTrans. Apesar de serem outros tempos, a BHTrans também vive um processo de degradação. Durante a gestão da Metrobel, além da catraca, tínhamos a previsão de contar com outras receitas para o financiamento do sistema de transporte. A primeira proposta foi a venda de espaços publicitários em ônibus. A publicidade seria padronizada por nós e deixaria de ser receita das empresas de ônibus. Quando isso foi feito, houve uma violenta campanha da imprensa contra a Metrobel, por influência de candidatos do governo mais ligados aos grupos técnicos de planejamento rodoviário. Havia também uma impressão generalizada da Metrobel como uma empresa autoritária, que precisava ser democratizada. Com a entrada de Tancredo Neves no Governo do Estado, em 1983, foi trocada a gerência da empresa. A partir de então, o órgão foi sendo gradativamente corrompido, principalmente no trabalho da Câmara de Compensação. Uma das coisas que mais aconteceram foi a inclusão de ônibus na planilha de custo da empresa, mas que, de fato, não foram acrescentados no

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serviço. Uma vez, em consultoria pela Fundação João Pinheiro no Proálcool, visitando usinas no Sul de Minas, encontrei ônibus de serviço urbano de Belo Horizonte em Guaxupé, com trabalhadores que tinham sido buscados no norte de Minas e que estavam lá cortando cana. E os ônibus lá, parados. Além disso, onde há ônibus parado, há tripulação fantasma, que era também incluída nas planilhas de custo das empresas. Essa degradação culminou na extinção da empresa no governo de Newton Cardoso, dando cano em todas as prefeituras, uma vez que a Metrobel tinha sido criada como sociedade anônima pelo Governo do Estado, com o DR, a IBTU, o Governo Federal e todas as quatorze prefeituras da Região Metropolitana da época. Nesse momento, foi criada a Transmetro, autarquia estadual que resgatava o nome de um projeto do Planbel da década de 1970. Mas a Transmetro seguiu a lógica de degradação por interesses rodoviaristas e empresariais: o gerenciamento da Câmara de Compensação foi transferido ao sindicato das empresas de ônibus. Aliando o novo gerenciamento da Câmara à inflação galopante desse período, as tarifas de Belo Horizonte foram sucessivamente elevadas, e a compensação foi sendo feita à moda dos empresários. As empresas azuis, superavitárias e sem condições de expansão de seu serviço, saíram comprando empresas pelo Brasil afora – ou apartamentos em Miami. Por outro lado, os ônibus vermelhos, pressionados pela demanda de crescimento populacional periférico, eram obrigados a crescer dentro de sua linha deficitária no sistema. Mas, nessa evolução de tarifa, até mesmo as linhas deficitárias não estavam tendo déficit tão expressivo quanto aquele que apontavam. E isso nós vimos quando reassumimos o sistema em 1993, já sob o nome de BHTrans.

AÇÕES NA BHTRANS: FORMATO DOS ÔNIBUS A BHTrans foi um projeto do Pimenta da Veiga, criado a partir de várias consultorias, com a intenção de aplicar em Belo Horizonte o que a Metrobel tinha sido no início da década de 1980. Quando assumimos a BHTrans, no governo do Patrus, em 1993, eram poucos os recursos disponíveis. Com o tempo, a receita da empresa foi sendo ampliada, resultando em um período de importantes conquistas para o transporte público na capital. No momento em que assumimos a BHTrans, o sistema de transporte público estava totalmente degradado. O modelo dos ônibus era aquele mais barato, um caminhãozinho da Mercedes, com porta estreita de 70 centímetros. Na parte traseira havia o chamado chiqueirinho, direcionador de passageiros, que tinha a função de reduzir a invasão. A pessoa entrava no ônibus e tinha que passar na catraca para poder voltar para sentar no banco de trás. Essa foi a primeira coisa que extinguimos. Proibimos também os ônibus de motor dianteiro, porque ônibus de motor dianteiro é exatamente ônibus que não é ônibus. É um caminhão ‘encarroçado’. Nesse momento, nossa assessoria de comunicação passou a produzir

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um jornal específico para os trabalhadores do transporte, como motoristas, cobradores e taxistas, que era entregue diretamente em suas casas. Foi uma experiência extremamente rica. Costumávamos receber cartas até das mulheres dos motoristas, se queixando ou contando que ganharam novos maridos por causa do motor traseiro. Com o motor dianteiro, que faz muito barulho, o motorista chegava em casa para assistir à televisão e colocava no último volume porque ele não escutava nada. E depois que ele passou a trabalhar no ônibus com motor traseiro, sua rotina ganhou nova qualidade - ele passou a escutar melhor. Gradativamente fomos melhorando as especificações dos ônibus, buscando desenvolver um transporte mais adequado com portas de 1,10 metros, transmissão automática, suspensão a ar e piso rebaixado nas entradas. Quando eu saí da BHTrans, em 2000, o percentual de ônibus com motor traseiro em Belo Horizonte era muito relevante. Em motor dianteiro não podia nem se falar, era proibido! Fizemos um grande esforço e definimos bem as especificações quanto ao rebaixamento do piso das entradas, que caminharia idealmente para o ônibus de piso baixo integral. Esse modelo, inclusive, apesar de não ser utilizado aqui, é produzido no território nacional para ser exportado. Os ônibus maravilhosos do Chile, por exemplo, são todos feitos aqui no Brasil pela Volvo, Mercedes, Scania e até a Volks, que entrou atrasada na história, lançando o ônibus de motor dianteiro exatamente quando nós o proibimos. Lembro-me de que nessa época havia um jornal panfletado nas repartições, apenas com matérias das pessoas que pagavam os produtores, exemplo de imprensa marrom da pior qualidade! Ele nem tinha assinantes, nem era vendido. Logo que eu saí da BHTrans, uma matéria foi publicada nesse jornal criticando os novos ônibus e a prática da BHTrans de pretender o que não era econômico, defendendo inclusive os ônibus de motor dianteiro. Era evidentemente uma matéria paga por empresários de ônibus. É verdade que, atualmente, os ônibus de motor têm o custo mais elevado. Mas isso se deve ao fato de estarem sendo produzidos sem escala. Se ele for especificado para operar em todas as cidades, de forma obrigatória e em larga escala, o custo será evidentemente reduzido. É esse tipo de postura que precisamos cobrar do Governo Federal, do Ministério das Cidades. Até a acessibilidade foi refém da lógica racional das empresas. Quando surgiu a lei da acessibilidade, em vez de especificarem ônibus de piso baixo, foram introduzidos os elevadores. Contudo, elevador não promove acessibilidade para o cadeirante, porque o princípio da acessibilidade envolve autonomia e espontaneidade. Essa noção de “autonomia assistida” é uma ofensa não somente aos cadeirantes, mas a todos aqueles com mobilidade reduzida, que abrangem os usuários de muletas e idosos, para os quais os elevadores nem sequer são previstos. Curitiba não foi um caso isolado no Brasil, Belo Horizonte também teve um transporte de qualidade um dia. Foi uma grande evolução que se interrompeu em função da lógica de mercado e da racionalidade dos empresá-

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rios, que não enxergam além da otimização de seus lucros. Como resultado disso, é visível que houve um relaxamento em relação à qualidade do transporte em Belo Horizonte. Aos poucos as coisas foram mudando, retrocedendo, e agora é isso aí: todos os ônibus voltaram a ter o motor dianteiro!

PÁGINAS 125-127-131 Jornal do Ônibus. nº 112. Agosto de 1998, nº 25. Maio de 1995, nº 68. Outubro de 1996


AUTOMテ天EL 2012 Cinthia Marcelle







AUTOPISTA DEL SUR 1982 - 2007 León Ferrari Fotografia: Rômulo Fialdini

PÁGINAS 140-145 Intervenção sobre Autopista del Sur Roberto Andrés, 2012









FESTA E POLÍTICA NA RUA Conversa de PISEAGRAMA com Áurea Carolina, Gustavo Bones, Guto Borges, Joviano Mayer, Priscila Musa, Rafael Barros e Rita Velloso 6 de novembro de 2013

Joviano Mayer: As Brigadas Populares surgiram do Núcleo de Estudos Marxistas, onde eu comecei a atuar em 2004. A primeira ocupação em que tivemos participação direta foi em 2005, a ocupação Caracol. Foi interessante porque Belo Horizonte vivia um momento de certo marasmo da luta popular urbana, sobretudo pensando os movimentos de sem-teto que foram tão expressivos na cidade, nas décadas de 1970 e 1980. Tivemos dezesseis anos de gestão petista e durante um longo tempo, em diversas ocupações, tínhamos a sensação, com todo o respeito aos movimentos que existiam, de estarmos sozinhos, construindo esses processos. As ocupações não tinham apoio e é engraçado que a Dandara, a primeira ocupação em que tivemos um apoio mais amplo, coincide com a Praia da Estação e, já que nós vamos discutir arte, apropriação da cidade, luta, talvez seja bom situar isso. Guto Borges: 2009 foi um ano-chave para quem se empenhou em várias das questões de Belo Horizonte: Dandara é de 2009, o Carnaval e a Praia são de 2009, e tem a eleição do Lacerda em 2008 e a posse em 2009, então se trata de um ano marcante em que se renova a ideia de atuação. A primeira saída do carnaval em 2009, com os blocos Tico Tico e Peixoto, já desenhou um tom político, ainda que diferenciado. O carnaval em Belo Horizonte era extremamente mal gerido e, em 2009, meio que sem querer, resgatamos, demos continuidade a um gesto muito antigo e muito importante em Belo Horizonte, que é a celebração do carnaval de rua. Intuitivamente, pois não havia nenhuma previsão. E isso se espalhou muito rápido. Foi muito marcante a sensação de estar nas ruas e de ver as pessoas nos prédios saudando aquilo que estava acontecendo, principalmente os idosos. Em 2010 já conseguimos fazer um bloco por dia durante o carnaval. Foi um grande marco...

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Rafael Barros: Ainda respeitando a quarta-feira de cinzas. Guto Borges: Exato. Havia dois blocos que antecediam, o Mamá na Vaca e o Tetê; durante o carnaval tínhamos a Praia, depois Tico Tico, depois o Cha Cha e o Peixoto. O Aproach ficava no Brasil 41, uma espécie de show. Queria lembrar uma ação do Mamá na Vaca, o bloco que faço com meus parentes no Santo Antônio, que é de 2010. Nós fomos atrás do artista que fez a vaca da Leopoldina, o Marcello Nitsche. Ele ganhou um Salão na Pampulha – havia uma categoria na época, no final da década de 1970, que era intervenção urbana. Primeiro nós levantamos várias lendas muito loucas no bairro sobre a vaca, e acabamos indo até ele, que está debilitado de saúde e teve um derrame, em São Paulo. É curioso como algo do gesto dele no fim dos anos 1970 permaneceu ausente ali na Rua Leopoldina. A vaca era tratada como uma propriedade privada do prédio. Houve vários conflitos nas primeiras vezes em que fomos pra lá conversar sobre pintar a vaca, porque eles não conseguiam entender que a vaca pertence à rua, e eles falavam ‘a calçada é minha e essa vaca é nossa’. O Marcelo Nitsche também percebeu isso. Quando chegamos lá, ele já conhecia o bloco e ficou bastante emocionado com o fato de prolongarmos um gesto, que ficou ausente durante muito tempo, anônimo ali naquela rua. De alguma forma isso continuava, até porque o gesto dele carregava um tema muito caro aos anos 1970, a questão do povoamento, seja ele imaginário ou, no nosso caso, uma ocupação física, festiva, com uma diferença na política, com uma língua ainda em gestação, uma linguagem política que ainda está em curso. Ficou mais clara em 2010 a demarcação de um território; existia ali um território que crescia, e crescia exponencialmente, por exemplo, no sentido das músicas, da qualidade dos músicos. Em 2010 já era visível uma “melhora” na qualidade da festa e na participação. No começo era uma dificuldade imen-

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sa, tínhamos que pedir pelo amor de Deus para as pessoas irem e levarem os instrumentos. Eu mesmo não sabia tocar, e aprendi a tocar caixa no carnaval. Poucos sabiam cantar as marchinhas, usávamos um pregador para pendurar as letras nas costas das pessoas que iam na frente. A coisa se tornou palpável, o carnaval era uma espécie de ansiedade, parecia que existia algo no ar, que estávamos concretizando uma realização importante no resgate cultural da cidade. Se não me engano, 2011 foi o ano da chuva, foi um ano em que choveu todos os dias de carnaval – a grande provação desse ímpeto ‘ou vai ou racha’, porque o poder público já tinha demonstrado certa antipatia com o que estávamos colocando em curso. Em 2012 o carnaval já foi bem grande e, em 2013, o poder público mudou o discurso, em uma conversa com outros caracteres, com outras intenções, outro trato e outra temperatura. Rafael Barros: Se você me permite, creio que 2013 é o ano em que o poder público se apropria do carnaval, ele toma o carnaval como uma realização da prefeitura. Guto Borges: Sim, mas só retomando um pouco, 2012 foi um ano fundamental. Tivemos a marcha do Fora Lacerda. Foi quando houve um processo de síntese de alguns movimentos, por exemplo, o carnaval com a Praia, e foi quando Dandara chegou de fato. Formamos um grande bloco, que o pessoal da Dandara integrou inclusive com seus músicos e com as canções do movimento, que se misturavam com as canções que foram criadas para o carnaval, as marchinhas contra o prefeito. Era um momento de síntese importante, durante um ano eleitoral. O próprio carnaval se politizou mais, a Dandara se carnavalizou também, as ações políticas das ocupações e a Praia acabaram tomando um ar de uma festa, uma ocupação mais móvel. Acho que esse é o momento em que essas origens se movimentam e se influenciam. As jornadas de junho deram uma grande mexida no cenário, ultrapassando em muitos aspectos esses movimentos, tanto em termos de gente na rua, quanto em termos de pauta política. Nós juntávamos algumas bandas para tocar, mas sempre ficávamos pequenos na multidão e tínhamos que ir dançando a música que estava tocando. A grande marca foi a ação violenta da Polícia Militar e as ações de resistência da sociedade civil, quando fica claro que a sociedade civil se organizou em resistência naquele momento. E Belo Horizonte sai disso tudo em meio a uma síntese, no movimento seguinte de formação da Assembleia Popular Horizontal que vai promover as ocupações na Câmara. É o momento em que a violência reduz e ganha outro sentido, por exemplo, na contestação ao poder público com pautas importantes para a vida da cidade, pautas que até então eram minoritárias e que ganham força na cidade. Quando a Câmara foi desocupada, nós saímos tocando e desembocamos na ocupação debaixo do viaduto, que também guardava o mesmo nome, mas com propostas diferentes. Ali havia uma sublimação de toda essa carga violenta e de tensão na questão artística, e é como se o gesto artístico que vinha sendo praticado informasse essa nova ação política, esse gesto

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inventivo e de renovação ou de contestação, um movimento de síntese. Não só o artista se politiza, mas o cidadão também se torna um pouco mais artista, no sentido da invenção, do engajamento. E o gesto da ocupação Luiz Estrela reforça esse corpo de ação crítica, artística e política na cidade. Lá, a questão do casarão é muito forte, o abandono e a própria memória – a política que inclui a memória, o ato da memória. No fim ela amarra as pontas de um gesto duplo – denominado aqui “escavar o futuro” – em que, ao ir para trás, se avança, esse gesto da memória que o carnaval também praticou em uma cidade tão desmemoriada como a nossa. Quando chegamos à Lagoinha pela primeira vez, com o bloco Tico Tico, a sensação de ruína era próxima da de quando se depara com o casarão do Luiz Estrela, na Rua Manaus, e talvez essas duas situações sejam muito simbólicas do estado das coisas e do que estamos buscando. Esse casarão arruinado que exige um cuidado, uma dedicação sobre-humana, é o estado no qual esse sonho se encontra, um sonho de lugares não regidos pela lógica do capital, lugares de liberdade, lugares de pressão. Acredito que o Luiz Estrela, aquele prédio, emana a sobrevivência de outro tempo, mas que também pode significar um tempo futuro, uma promessa sem tamanho do que pode acontecer dali para frente, e esse é um dos encantos desse movimento do passado em direção ao futuro. Priscila Musa: Estou cuidando da arquitetura do espaço físico do Luiz Estrela e cada vez mais descobrimos que ele oferece riscos à nossa vida. Um risco real de a ruína cair sobre a cabeça de quem dorme lá e, também, o que isto significa no contexto político e ativista. Guto Borges: O risco traz a questão do engajamento. Priscila Musa: O engajamento com o Luiz Estrela me move a entender a fundo esse lugar, e também o que aconteceu em junho, o que gerou a Praia, o que gerou o carnaval – se foi a gestão do Lacerda ou não, se foi o amor, o encontro de tantas pessoas... Acho importante ressaltar a importância dos encontros gerados pelo fato de estarmos cada vez mais nos apropriando dos espaços de uso público e coletivo da cidade, transformando esses encontros na discussão do “comum” que cresce agora com a ocupação Luiz Estrela, a partir do momento em que vamos tendo conhecimento de outras formas de agir e interagir, da horizontalidade e de vários outros gestos na tentativa de criar uma sociabilidade possível na cidade. Rafael Barros: Existe uma dimensão que está em todo esse movimento, que é a dimensão da experiência e do afeto. É um ponto muito forte, que tem marcado e acompanha esse movimento e esse momento que a gente vive: o poder do contágio. É impressionante como ele vai se propagando de uma forma que não tem direção e não tem controle, na verdade não tem orientação. Falar que os acontecimentos foram pensados, planejados e arquitetados é cometer um equívoco imenso. Engraçado é que, quando nós estivemos em São Paulo na

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Casa Fora do Eixo, com o Pablo Capilé, e o Pablo tinha vivido a Praia da Estação, ele perguntava, curioso: “O que é que está pegando em Belo Horizonte, o que está rolando?”. Ríamos e falávamos: “É amor”. Falávamos com ironia e verdade ao mesmo tempo – e ele fez pouco caso. É muito engraçado porque poucos meses depois, de repente, eles lançaram o Existe Amor em SP, não sei se por uma contradição ou por uma apropriação. E é amor, de fato. Passando rapidamente pela cronologia, em 2009 há todo um processo de movimento que começa lá do início do carnaval, a Dandara nasce em abril de 2009, e vem o Duelo de MCs, que ganha uma força poderosa – lembrando que o movimento hip hop se organiza há muito tempo, estamos falando das décadas de 1980 e 1990. A Real da Rua fez um mapeamento e eles conseguiram mapear 92 bairros que frequentam o Duelo de MCs. Não existe nesta cidade outro movimento que consiga mobilizar e trazer o deslocamento geográfico e esse encontro com tanta potência e com tanta força. Mas é na Praia que temos um marcador forte de tempo, em que se inauguram três dimensões fundamentais desse momento. Uma é colocar a cidade na pauta. É ali que entra em pauta a discussão sobre espaço público, sobre o Duelo de MCs, sobre os Piores de Belô, sobre as ocupações urbanas. O decreto do prefeito [proibindo a realização de eventos na praça] é na verdade um pretexto para aquilo tudo porque, automaticamente, já na segunda Praia, as discussões vão para outras direções. Guto Borges: Eu me lembro das primeiras declarações do Lacerda sobre a Praia. Ele falava “Eu gostaria de saber se a Praia, se esse movimento está sendo frequentado por pichadores”, porque os Piores na época estavam em evidência. Para ver a dimensão do Estado excludente. Quando surgiu um movimento de contestação, ele automaticamente foi lido pelo prefeito como vandalismo. Rafael Barros: A segunda dimensão, depois da pauta cidade, é a dimensão do encontro. A Praia proporciona o encontro, um encontro de energias, um encontro de potenciais, um encontro de movimentos, o encontro de pessoas, o encontro de vontades, o encontro de desejos, o encontro de gritos. A possibilidade de essas pessoas, de esses movimentos, de esses gritos, de essas discussões irem se agregando. Foi ali que as pautas das ocupações urbanas e da luta pela moradia entraram de fato na agenda de muitas pessoas, inclusive na minha. E a terceira dimensão é o caráter festivo. É quando a potência revolucionária da festa se apresenta como potência política, e é lógico que isso tem a ver com o processo de desgaste das formas tradicionais de se organizar, de se colocar e de protestar. Essa dimensão da experiência festiva como uma instância agregadora, como uma instância forte, e com tudo o que ela comporta, inclusive do ponto de vista das críticas, seja em termos da resistência por parte daqueles que têm certa dificuldade para uma experiência [de protesto festivo], seja em termos da sensação de não se ter controle, de a coisa se perder na festa, se perder em si.

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Gustavo Bones: Para mim, o Fora Lacerda foi uma lufada rejuvenescedora na cidade. Conheci muita gente, e acho que o Fora Lacerda marcou uma época para todos nós, embora a gente tenha depois tido uma derrota eleitoral. Acho que com o Fora Lacerda eu saí do armário, eu assumi uma posição ativista, militante, sem medo. Essa militância política já tinha começado junto com o carnaval e a Praia da Estação. Assim que a Praia começou, o pessoal do teatro se articulou e criou o movimento Nova Cena, que é um espaço que trata da cultura, de política, etc. Mas em 2011 eu acho que a gente se articulou mesmo, e a cultura pela primeira vez conseguiu fazer um elemento político. Foi quando a gente se conheceu, eu, o Rafael, o Joviano, a Família de Rua... No mesmo ano, o [grupo de teatro] Espanca! mudou a sede para a Rua Aarão Reis e isto também afetou a minha militância. Foi uma posição política que tomamos, a de ir para lá, e foi quando a gente trabalhou com o Luiz Estrela, com a população de rua, com a Gangue das Bonecas. Acho que junho foi outra história, que essa multidão teria explodido do mesmo jeito se não tivesse havido a Praia da Estação em Belo Horizonte, até porque foi uma coisa nacional, não tinha uma especificidade clara e local, foram outras coisas que fizeram aquilo explodir. Mas ficamos com esse pós-junho, a diferença da nossa cidade. O Rio continuava fazendo mobilizações de rua, em São Paulo há uma onda mais de movimentos organizados, do debate teórico, e Belo Horizonte ficou com essa política “culturalista” ou com essa cultura “politiquista”, que foram os desdobramentos de junho, a ocupação da Câmara, as ocupações no viaduto, e agora a ocupação Luiz Estrela. Nesses acontecimentos está o que a cidade conseguiu fomentar antes de junho. Esquentamos as ruas como todo mundo esquentou no País inteiro, veio a multidão e disputamos o sentido aqui em Belo Horizonte, por causa da história recente da cidade. Áurea Carolina: Minha movimentação vem de outro lugar, comecei cantando rap no movimento hip hop. Saí de Belo Horizonte em 2009 e fiquei recebendo notícias da Praia da Estação, vendo as fotos, louca de vontade de participar. Morei em Brasília e depois fui para Barcelona fazer uma especialização em gênero e igualdade. Eu estava lá quando eclodiu o 15M e estava na Praça Catalunya, no meio daquela muvuca, tentando entender também. Em meados de 2011 eu voltei ao Brasil e, em setembro, eu parei aqui em Belo Horizonte. O cenário já era outro, o Fora Lacerda estava muito ativo. Quando eu voltei, assumi a missão, com várias outras pessoas, de reerguer o Fórum das Juventudes da Grande BH, um coletivo que estava bem esvaziado. Atualmente estamos com a campanha Juventudes contra Violência, numa tentativa de parar de reagir aos mandos e desmandos do poder público municipal, que não tem abertura ao diálogo com a juventude. Essa campanha é um enfrentamento direto à violência e tenta trazer para o centro da discussão o problema do genocídio da juventude negra. Ainda não se deram conta na cidade oficial, nos veículos oficiais, que cerca de 50 jovens morrem assassinados todos os dias no País. Temos trabalhado alguns eixos na campanha, e um deles é a memória,

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a memória desses sujeitos invisíveis, dos que estão pelas bordas na periferia, onde promovemos esses encontros e trânsitos. Quando comecei a participar da Praia da Estação, dessas festividades políticas, para mim era um momento de fluir e viver a cidade. Mesmo quando fui, outro dia, ao Espaço Luiz Estrela, eu senti que ainda não me sinto exatamente militante nesses espaços fechados, coletivos e lúdicos, por ter essa carga minha de militância dura, pesada, de enfrentamento à violência – é sinistro, mano, o sistema é “cabuloso” e não tem piedade. Roberto Andrés: E como é a Marcha das Vadias dentro dessa história? Áurea Carolina: Na Marcha das Vadias eu não cheguei a participar da organização, eu fui também como uma feminista comprometida com a causa. Havia a festividade, mas, por eu já ter uma trajetória em movimentos de mulheres e fazer essa discussão tinha outra pegada, também pesada. Mesmo estando ali de sutiã, de peruca e com cartaz, eu acho que há uma densidade que não encontra correspondência na Praia da Estação. Mesmo com toda a festividade, a cara jovem, as meninas botando a cara na rua, há uma carga de discurso ali que não dá para negar, as mulheres estão morrendo e sofrendo violência diariamente, a questão é colocar exatamente isso. Priscila Musa: Às vezes a festa tem essa dificuldade quando a pauta política é forte. Existe um discurso e muita gente da organização se coloca em debate o tempo inteiro nas reuniões, mas na hora de ir para a rua é difícil comunicar. Às vezes eu ficava achando que os peitos desvirtuavam o debate e levavam para essa coisa de “por que essas meninas estão tirando o peito na rua”, e nós estávamos discutindo que duas mulheres são estupradas por dia em Belo Horizonte. Rafael Barros: As ocupações acabaram tendo um papel pedagógico dentro da cidade porque abriram as discussões para as periferias, com outros parâmetros, outros níveis. O Fora Lacerda foi uma síntese, pois marca uma segunda temporalidade, que é de potencializar as pautas, os encontros, as demandas e se organizar de forma orgânica. Os movimentos de esquerda tradicionais não conseguiram aparelhar, as estruturas vigentes não deram conta do processo. Tudo foi construído de forma dinâmica e ao mesmo tempo intensa, o que certamente tinha a ver com a proximidade do período eleitoral, a necessidade de marcarmos a luta e, ao mesmo tempo, todas as demandas que a cidade vivia. Áurea Carolina: Inclusive na elaboração do jornal Movimenta BH [que foi feito na época pelo movimento Fora Lacerda], houve esse grande esforço de tentar colher as várias pautas que estavam orbitando, por ali e apresentar como uma síntese e não uma agenda política, mas como relatos e visões de pessoas que estavam engajadas na cidade, circulando por esses espaços todos que o movimento conseguiu conectar.

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Priscila Musa: Embora o nome do movimento fosse Fora Lacerda, não era tão pontual assim. Ele se organizava de forma orgânica e a tentativa no começo era conectar em rede vários movimentos e juntar todo mundo nessa pauta da cidade. Criamos o jornal, e depois houve uma discussão sobre o nome. Foi quando o movimento se diluiu, porque os partidos políticos ou o pessoal que tinha uma luta de enfrentamento político mais direto com a figura do prefeito queriam manter o nome Fora Lacerda, e as pessoas que queriam continuar nessa organização de formação de rede de outros movimentos e de articulação queriam mudar para o nome Movimenta BH. Roberto Andrés: Mas agora, se por um lado o Fora Lacerda foi esse lugar de síntese, ou não sei se tanto de síntese, mas de primeiro posicionamento político mais contundente em torno do poder, da política e da eleição, por outro lado ele retomou, com a marcha, uma prática corporal dos anos 1980, do caminhão de som na avenida, dos sindicalistas... Guto Borges: A primeira grande marcha do Fora Lacerda que saiu da praça remete, sim, em alguma dimensão, a essa tradição dos sindicalistas de manifestação anterior. Mas havia as marchinhas que fazíamos na hora e é interessante essa forma não ter desaparecido naquele momento. De alguma forma vários movimentos se completavam e ali, naquela marcha, naquele dia, vários modelos e inclusive esses modelos mais velhos estavam em contato. Gustavo Bones: O Fora Lacerda não retomou as marchas, a cidade já estava fazendo isso. Teve a Marcha das Vadias que foi antes da primeira marcha do Fora, a Marcha da Liberdade, a Marcha da Maconha, Dandara. Na época do Fora já estava rolando uma agenda de marchas pequenas, como sempre são as nossas marchas, com pouca gente, mas com essa ideia de caminhar. Joviano Mayer: Retomando a conversa anterior, acredito que as jornadas de junho teriam explodido independentemente da Praia da Estação, mas é bom lembrar que a existência dos movimentos de rua trouxe um conteúdo diferente e que Belo Horizonte se destaca, pelo menos aqui no Sudeste, como a única metrópole em que a violência da extrema direita não chegou às vias de fato. De certo modo conseguimos abafar isso. Na grande marcha do Mineirão, por exemplo, os quatro blocos que acompanharam, do Maracatu, do Carnaval, do Levante e do COPAC [Comitê dos Atingidos pela Copa] se organizaram e abafaram as palavras de ordem, de tira bandeira, tira partido. Concordo que não se consegue explicar as jornadas de junho-julho a partir dos movimentos sociais, que é outra configuração, que estamos falando da multidão, que os movimentos sociais ficaram pequenos diante do que foram essas rebeliões urbanas, mas a existência dessa rede, dessa articulação em Belo Horizonte, tanto da esquerda tradicional como desses novos movimentos, criou um contexto de certa unidade que garantiu a nossa segurança e integridade física, diferentemente de São Paulo e Rio.

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Gustavo Bones: Em junho eu estava em cartaz em Brasília (com uma peça que, inclusive, trata de manifestações gigantescas inexplicáveis) e então eu acompanhei as marchas aqui e lá. Uma diferença de BH é que a gente ganhou o sentido das marchas com as pautas da esquerda. Em Brasília eu fui a uma manifestação, quando botaram fogo no Itamaraty, que era uma manifestação de direita, muito diferente do que eu experimentava aqui. Mesmo com o povo botando fogo, o conteúdo era outro. Joviano Mayer: E aqui a pauta da Copa ficou mais clara, o combate ao megaevento, a ida ao Mineirão. O COPAC cumpriu um papel fundamental. Participamos em 2010 de um evento puxado pela Raquel Rolnik, na USP, e a equipe dela fez esse chamado para que se criassem os comitês nas cidades-sede, espaços de articulação. Chamamos todo mundo e no primeiro encontro foram a População Nacional em Situação de Rua, o pessoal do Fórum de Moradia do Barreiro, o PSOL, várias forças, as Promig, as prostitutas. Começou forte, mas as organizações tradicionais, da esquerda tradicional, não toparam continuar. As forças tradicionais da esquerda esvaziaram e quem ficou participando do COPAC foram os barraqueiros do Mineirão. Tivemos reuniões com dez pessoas. É lógico que não pensamos que seria o que foi, que a questão dos megaeventos ia pegar como pegou nos outros países, como pegou na China, como pegou na África do Sul, onde houve processos de resistência. Durante as manifestações, as forças tradicionais reapareceram, se apropriaram do espaço e depois sumiram de novo. Parece que a unidade é construída só ocasionalmente para dar resposta a uma conjuntura adversa. Hoje, como as jornadas passaram, não vemos processos unitários sendo construídos por essas forças tradicionais. Os desdobramentos de junho demonstram como as organizações tradicionais construídas no século XX – sindicais, partidárias – estão completamente inadequadas para dialogar com esse novo contexto histórico e dar uma resposta. Aí está o potencial de Belo Horizonte. É uma Praia da Estação que forja um Fora Lacerda, são as jornadas de junho que forjam uma Assembleia Popular Horizontal, é a apropriação de um Mercado Distrital pela FIEMG que forja um Salve Santa Tereza, processos concretos que se materializam em forças políticas que são completamente diversas das organizações tradicionais. A experiência do Espaço Comum Luiz Estrela lembra a toupeira que está no texto do Carlos Vainer, no livro Cidades Rebeldes. Todos temos processos públicos, construídos, abertos e estamos envolvidos em processos que estão se dando no subterrâneo de organizações, como toupeiras, escavando o futuro. O Espaço Comum Luiz Estrela foi assim, ficamos desde abril nos reunindo no submundo. Assim construímos essa luta que traz vários elementos novos que são muito importantes. Destaco três. Primeiro, o processo construtivo, que tem importância maior do que o fim em si. Quando organizamos uma ocupação de sem-teto, a organização, as reuniões preparatórias, o trabalho de base é claramente um meio para chegar e ocupar o terreno, enquanto na construção do Espaço Comum Luiz Estrela o processo tinha um sentido, o meio também

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era um fim. Ir vistoriar o imóvel se transformava numa cena de teatro, fazer o mapeamento dos imóveis se transformava quase em uma Massa Crítica – saía todo mundo de bicicleta pela cidade, fazia-se uma discussão política. O segundo elemento é a dimensão do afeto, a ponto de um tenente ir lá e não fazer o boletim de ocorrência, vendo o arrombamento de um imóvel público (por mais que tenha havido um teatro, foi um arrombamento). Engraçado, se fossem pessoas sem casa ocupando para moradia a tônica seria outra. A dimensão do afeto, o casamento da cultura com a luta política, com a luta direta, tem uma repercussão importantíssima do ponto de vista de construir poder de persuasão. O terceiro elemento é que o Espaço Comum Luiz Estrela é uma ocupação que não tem uma bandeira de movimento, não tem ninguém disputando uma bandeira clara, nós temos uma multiplicidade de atores. Eu não me sinto lá como um brigadista. É um espaço comum que expressa multiplicidade, e isso é um salto do ponto de vista da luta política. Participei há pouco de uma oficina em Brasília com mais de 40 militantes de diversas forças, e teve um momento em que cantamos uma música do MST famosa: “Esse é o nosso país, essa é a nossa bandeira, é por amor a essa pátria Brasil, que a gente segue a fileira”, e eu fiquei cantando essa música e fiquei pensando: primeiro, essa não é a nossa bandeira porque são várias bandeiras; segundo, ninguém está falando em pátria mais, ninguém está reivindicando pátria; e, terceiro, a gente não segue em fileira, nós estamos todos juntos e misturados, não tem fileira. Rafael Barros: O nome Espaço Comum Luiz Estrela comporta tudo isso, primeiro porque ele traz o Espaço, ele traz essa dimensão do território, do lugar. Depois o Comum, já nessa orientação que vai de encontro e desconstrói a dimensão do público, para falar de algo que é compartilhado, que não está definido. É um Espaço Comum, e a figura do Luiz Estrela é um pouco tudo isso que nós estamos construindo o tempo todo. Ele é o morador de rua, o homossexual, o artista poeta, o favelado marginal, o alcoólatra, o da festa, que morreu em junho no meio das manifestações. Áurea Carolina: Existe uma carga dramática também (bonita, mas dramática) muito grave, muito séria nessa figura do Estrela, e eu fico pensando nessa dualidade que eu vivo participando desses espaços – na Praia eu estou relaxada, de boa, política light, estou vivendo a cidade na plenitude, só estou fruindo, mas amanhã tenho que produzir uma nota, uma análise de contexto sobre assassinatos no Brasil. É difícil conectar isso tudo. Guto Borges: Esse caso do PM que viu uma invasão e recuou, o ato da invasão, de arrombar uma casa, ocupar um espaço, ele é um ato herdado das ocupações, inclusive de ocupações que vêm de muito antes. O teatro, a cultura devolvem certa legitimidade ao ato de ocupação diante da sociedade. É um crime, teoricamente; o que está sendo feito é algo contra a lei, mas de repente é algo absolutamente legítimo.

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Joviano Mayer: Isso nem foi questionado, ninguém questionou se o imóvel foi arrombado, ninguém nem perguntou como, ninguém usou essa palavra na imprensa. Gustavo Bones: Mas é a cultura. O pessoal da arquitetura vai concordar comigo que o povo usa da cultura para higienizar também. Inclusive está super na moda os arquitetos fazerem isso, e na política também é assim. Melhor ter o pessoal da cultura que é limpo, cheiroso, rico e fala nossa língua do que ter os pobres querendo morar. A cultura tem um carimbo de que é legal. Guto Borges: Esse tipo de senso comum em relação à cultura é hoje uma das questões do embate entre essa cultura de rua em Belo Horizonte e a cultura dos equipamentos culturais de porta fechada. Por exemplo, quando vamos à praça [da Estação], a tensão com o Museu de Artes e Ofícios é essa, são duas visões completamente distintas de cultura. Quando tentam impor o Corredor Cultural e a rua responde “Não! Isso aqui já existe, já existe cultura aqui”, não estamos falando de museu, é claro, estamos falando de cultura de rua, cultura de duelo que está acontecendo há muito tempo, do teatro Espanca, do Nelson Bordello... Gustavo Bones: Isso é bonito na ocupação, porque ela não se nega a tomar partido, ela defende a ocupação urbana de moradia, ela defende população de rua. A ocupação usa desse apelo midiático e social, inclusive do apoio da comunidade, para propagandear lutas populares. Joviano Mayer: Mas olha que interessante: vai morador de rua lá, passa o dia, come, “fila a boia”, mas não dorme. Não sentem como espaço deles, é aquela coisa do hotel de luxo: está com a porta aberta para todo mundo, mas poucos entram. Então essa barreira ainda é uma questão. Rafael Barros: Essas coisas não se diluem, esses territórios sociais são muito bem demarcados. Áurea Carolina: Mas a aceitação, a quase unanimidade, passa por esse lugar de produção de cultura, de outra linguagem, outro apelo, para ser insurgência e para ser veículo de outras questões, vocalizar por pessoas que não estão necessariamente ali. Rafael Barros: O histórico da cidade e das ocupações já traz uma bagagem positiva, inclusive para essas pessoas [das ocupações] os últimos movimentos têm algo de concreto. A própria Eliana Silva, há quatro, cinco anos, não teria ficado no Barreiro. Foi um aparato e uma rede que se conseguiu formar para proteger e apoiar aquelas famílias. Na Rosa Leão, agora, são mais de 3 mil famílias, começou e foi proliferando. A prefeitura deixou aquilo acontecer daquela forma. Existe um campo político, que impediu o poder público de agir da forma como ele agiria naturalmente. A tratativa foi diferente do que seria em outros tempos.

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Joviano Mayer: Isso é um desdobramento: São Paulo, depois de junho-julho, já teve mais de 90 ocupações. Estamos destacando aqui o desdobramento dessas lutas no campo da cultura, dessa classe média branca, mas as ocupações em Belo Horizonte de julho-agosto para cá, o número de pessoas em situações organizadas, em situação de segurança da posse (William Rosa, Rosa Leão, Vitória e Esperança), supera o número total de famílias em ocupações organizadas de 2005 até 2013. Rita Velloso: Fica evidente que o tipo de movimentação que está acontecendo é muito mais expressão do que representação. O que vocês acham que vai acontecer em termos do que está posto da política como representação, o que vai acontecer com esses movimentos na hora em que o espaço deles aumentar a ponto de precisarem trilhar um caminho político? As pessoas que estão protagonizando esses movimentos vão assumir papéis representativos, ou de fato há uma questão política de se refazer a própria política? Áurea Carolina: O que seria uma representação que dá conta dessa multiplicidade de discursos, de temas, de pulsões? Gente que nunca fez uma reflexão sobre sistema de gênero, sobre a homofobia e sobre a população de rua, de repente se vê impelida a considerar seus posicionamentos nessa troca que está havendo, duvidar das suas crenças e refazê-las na vivência, seja festivamente, seja em discussões mais densas, como em alguns momentos nós fizemos e que só ali na Praia não dava. Eu estive em uma audiência pública com a Dilma durante as jornadas de junho. E testemunhei os bastidores imundos de UNE quebrando o pau com MST, de gente que estava muito mais preocupada em garantir um momento de fala com a presidenta, em se apropriar do que estava acontecendo nas ruas, se sentindo autores, se sentindo protagonistas legitimados, e não conseguindo captar esses ruídos todos. Vi que ali não dava para emergir uma voz representativa. Eu acho que a gente está justamente no momento de muita indefinição, academicamente, teoricamente, politicamente, do nosso fazer político, a gente está longe de direcionar para uma saída dessa encruzilhada da representação. Joviano Mayer: Esse é o grande dilema, a grande encruzilhada. No fim das contas tem a ver com a nossa relação com a institucionalidade, a relação frente ao Estado. Essa avaliação segue muito o que foi a experiência do PT, dos movimentos sociais que passaram a sentar à mesa, não porque estavam defendendo uma ocupação ou defendendo campanha salarial, mas passaram a sentar à mesa como poder instituído, com a institucionalidade dos acordos, da cooptação, do tapinha nas costas. Por isso eu fico preocupado sobre algumas pessoas se candidatarem, é precoce um de nós entrar na máquina para representar todo esse movimento. Tem que ser produto de uma multiplicidade de projetos que se materializa numa expressão política de disputa de poder, mas com uma força real clara. A nossa luta parte da negação da representatividade, não é negação pura e simples, mas é uma confrontação, é escancarar as limitações

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dessa esfera. Então, em vez de discutir a pauta que nós vamos colocar para o governante, vamos discutir como vamos fazer para que o governante engula nossa pauta, vamos construir essa pauta na marra. Não precisamos reduzir os nossos sonhos, as nossas reivindicações, os nossos desejos, as nossas pautas na negociação com o Estado, com a institucionalidade, porque muitas vezes a nossa luta representa a negação desse espaço legítimo. Rita Velloso: Existe uma autogestão que é possível com pessoas que estão na ponta, entre os protagonistas, e as pessoas que estão ao redor dos protagonistas, mas qual é a perspectiva de a autogestão se reproduzir fora das ocupações se estamos passando de um modelo de representação para um modelo de expressão, se estamos passando de um modelo de delegação de poder – que é o poder instituído, que é a institucionalidade – para o poder que vai se constituindo à medida em que as situações vão surgindo, exatamente no sentido do termo do Negri, o “poder constituinte”, que se constitui nesses atos? Todas as pessoas estão empoderadas a ponto de entender que elas podem tomar o poder pequenininho delas lá no bairro, mas o que é efetivo para começar um processo de autogestão? O Brasil inteiro botou em jogo o tema da autogestão, todo mundo foi experimentar. Há uma pedagogia urbana que está em jogo que é mais profunda, e me pergunto se vocês estão pensando sobre as pessoas que não estão na ponta, que tipo de desdobramentos elas estão levando para o cotidiano. Guto Borges: Alguns sinais indicam que a sociedade civil brasileira está em um processo de fortalecimento. Na questão das pautas, dessa pedagogia e do que estamos falando das ocupações, da Copa, da mobilidade urbana, que saem de um marasmo absoluto, e as pessoas passam a enxergar. A mobilidade urbana, por exemplo. O que era antigamente um fardo natural, as pessoas começam a discutir. É um dos papéis de toda essa movimentação, inclusive do Carnaval. Conheço relato de muita gente que, com o Carnaval, andou pela primeira vez na cidade, conheceu um bairro, passou a pé por uma rua, andou pela rua e teve uma experiência diferente. De alguma forma isso torna a sociedade civil mais forte para processos políticos, para encarar processos políticos, porque enxergávamos no Brasil essa espécie de esvaziamento do lugar da política. Gustavo Bones: Mas ficamos presos nesse embate entre o novo e o velho. Sou a favor de uma tentativa representativa nesse momento. Uma conjuntura como a nossa, tão especial, diversa, potente, poderia elaborar um projeto que pudesse transformar essa cidade, como pessoas elaboraram há vinte anos. Elaborar um projeto vitorioso eleitoralmente, se a gente conseguir conduzi-lo bem. Rita Velloso: Se você voltar um pouco atrás e imaginar o que culminou, por exemplo, na Constituição de 1988 e uma série de lutas que vieram dali, o que matou a Constituição foi a quantidade de alianças que se teve que fazer para passar algumas coisas. Então a pergunta sobre expressão ou representação é: o que é possível? O que eu mais vi nas periferias é que o movimento social

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arrefece depois da primeira vitória. Então o que tem de novo aqui? Porque há uma coisa nova, uma potência diversa. Você enxerga que há uma representação possível? Por onde você vê essa representação? Em qual escala? Eu fico pensando... Qual representação? Como você vai se eleger? Rafael Barros: Gosto da ideia de expressão como substituição de representação. O Foucault fala que o poder se constitui onde quer que seja, a estrutura do poder, porque o poder é acontecimento, não é algo dado, não é um ente. Se na estrutura representativa existe um espaço em que construções de fissuras são de fato possíveis, no meu ponto de vista ele só se dá no campo da municipalidade, na esfera da cidade. Na esfera da presidência e na esfera do Estado, a coisa se perde no emaranhado de tal forma que é impossível de acontecer. Na esfera da cidade, na dimensão da cidade, onde a coisa está mais próxima inclusive da dimensão da comunidade, talvez seja possível a construção de projetos que façam alguma diferença. Quando o Patrus ganhou a prefeitura de Belo Horizonte, foi o ápice de um processo, foi significativo em determinado momento e talvez estejamos iniciando um processo que possa culminar em outro projeto para a cidade. Talvez faça sentido sua provocação, porque, daqui onde estamos, qual é o nosso poder de segurar? Joviano Mayer: Acho que a diferença clara dos atores e das atrizes que estão aqui, dos movimentos representados, em relação aos movimentos de sem-teto, por exemplo, é que aqui há um salto claro para a discussão política, para um entendimento para além do fim imediato. O pano de fundo que está colocado, a reivindicação, aquilo que nos une e nos coloca em movimento nessa luta constante em vários campos, no fim das contas é a radicalização da democracia. Há outra diferença das forças tradicionais da esquerda instituída, que antes tinha um caráter muito claro de lutar para construir o socialismo (“Lutar hoje para sermos felizes amanhã”): nós estamos em luta para sermos felizes agora. Essas forças vivas que estão colocadas têm essas duas dimensões claras que se diferenciam. Primeiro, a radicalização da democracia, então não importa se vamos sair vitoriosos da Lagoinha porque amanhã estaremos lutando para o Santa Tereza e para outro bairro, e outra demanda. Não é mais uma conquista que vai nos colocar numa condição de satisfação e inércia, como, por exemplo, quando as ocupações conquistam uma permanência. Em segundo lugar, a busca da felicidade, de se realizar como sujeito no espaço urbano e de ser feliz, a dimensão da festa. Os movimentos sociais não dão conta mais de responder a esse novo contexto político, não conseguem entender. Rita Velloso: Junho é um momento em que estamos diante de uma transformação profunda da política, houve toda uma operação para diminuir o espaço da política na vida cotidiana das pessoas e é isso que essas jornadas colocaram em cheque. Os movimentos têm que radicalizar alguns pontos, porque a gente já percebeu que esse momento é um momento de muita transformação que talvez seja muito similar a outros em que caminhamos para a ruptura e a criação

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de outra coisa. Fico pensando se essa fertilidade desse momento vai levar a política para o “rame-rame” do cotidiano das pessoas, e também se a doninha que vai perder a casa dela daqui a seis meses vai entender o que é felicidade urbana sem a gente ir lá e fazer o projeto de doutrinação que os anos 1940, 1950, 1960 na história deste país fizeram. Rafael Barros: A sociedade seria bem mais feliz se o Estado não tivesse que ir lá na casa da doninha para poder falar o que é ou não é política, mas a deixasse viver a vidinha dela tranquilamente, deixasse os índios lá nas suas matas, as comunidades quilombolas lá nos seus territórios, vivendo a sua vida em comunidade. O problema é que a máquina age numa perversidade, ignora esses seres e passa por cima deles, está nesse lugar de poder absoluto e quer cada vez mais. É devoradora, e a presença do capital está cada vez mais forte, tanto que está engolindo essas bandeiras, que eles estão chamando de economia criativa, o capital chegando nesse espaço já colocado como simbólico e implementando uma agenda que é de total direita. O nosso país é a prova cabal disso. A inclusão no Brasil se deu através de bens de consumo, é o povo tendo televisão, é o povo tendo direito a casa, a carro, não é tendo acesso a educação, saúde, qualidade de vida, espaço público, não é o povo indígena tendo direito a seus territórios tradicionais, as comunidades quilombolas tendo direito à sua vida comunitária. Essa plataforma de direito está totalmente colocada e solidificada, ela está em uma expansão ferrenha. Esse mal-estar, a crise da democracia, a multidão de junho, a multidão pelo mundo, talvez anuncie esse momento paradigmático, que não tem nada a ver com a democracia, radicalização da democracia, porque não se trata de democracia e muito menos de radicalização da democracia. A democracia é a presença do sistema representativo, a democracia é representação. O processo de desconstrução da representação, esse termo que a Rita traz da expressão, passa também por um processo de diluição da ideia de democracia, vamos partir para outra coisa. A democracia tem a ver com o Estado, com a estruturação do Estado, a organização, e isso cria uma série de dicotomias, porque quem é povo? E quem não é povo? O poder do povo, o que é o poder do povo? Que tipo de poder estamos querendo? Podemos cair lá no marxismo clássico e defender a ditadura do proletariado? É isso? Daqui a três anos eu acho que não é votando no PT, não é anulando voto, e muito menos votando na Consola [candidata do PSOL] que a gente vai transformar alguma coisa. Priscila Musa: Muito menos se filiando a um partido político. Rafael Barros: Vai ser anulando voto? Confesso que depois da eleição do Lacerda isso se desconstruiu, gritantemente, anular voto dentro da estrutura foi fazer com que ele ganhasse. Se nós vamos tomar a prefeitura, beleza, eu topo. A gente monta uma facção armada e, em vez de votar, vai lá e dá o golpe, cria a Comuna do Curral Del Rei. Espaço Comum Curral Del Rei.

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Áurea Carolina: O projeto carrega todas essas contradições, projetar nessa multidão, nessa diversidade toda, é também acabar negligenciando e reproduzindo certas hierarquias, e daqui a 20 anos esse projeto vai caducar de novo e assim vamos renascendo. Acredito que não dá para abrir mão da institucionalidade, eu tenho fé na ideia da radicalização da democracia, pelas promessas não cumpridas da democracia como sistema, como potencialidade de inclusão da diversidade, de que as pessoas possam ter suas garantias de vida atendidas, a democracia antes de tudo como um sistema legal. Dentro e contra vamos tentando tensionar e criar as rupturas. No ano passado a gente fez a toque de caixa, a gente viu que não dava para abrir mão e que a gente quase chegou lá. Agora temos pelo menos três anos... Gustavo Bones: Temos três anos para construir, acumular, discutir, reunir e conversar e, eu falo com toda sinceridade, não sei que projeto é esse. Rita Velloso: Eu penso nos efeitos colaterais, todo mundo aqui sabe dos “piqueteiros” na Argentina, e é muito curioso que não tenha dado em nada do ponto de vista do Estado, mas, em compensação, é na América Latina onde as cooperativas estão mais fortalecidas com a economia solidária. Se você olha hoje, depois de não sei quantos governos dos Kirchner, as cooperativas estão superfortalecidas, e é esse o poder de alcance. Eu voto nessa ideia de pensar na microescala, a micropolítica é que pauta a macropolítica. Áurea Carolina: Sem a micropolítica a mulherada podia desistir de viver. Se não é a luta feminista no cotidiano... Wellington Cançado: Há um ponto curioso nessa história da representação: a teatralização da ocupação. A ação avança para a representação e ele não está lá como Joviano, ele está lá como um ator representando uma ocupação, ele e os outros todos. Há certa encenação da ocupação que deixa de ser a ocupação em si e caminha para representação nesse sentido. E aí vem a conversa da arte e da política. Eu acho que há uma representação da ocupação. Antes da ocupação em si, ela está sendo representada. Gustavo Bones: É uma representação diferente da política, da representação democrática, uma coisa é delegar a alguém a minha fala, outra é transformar um objeto em uma alegoria, numa ideia simbólica sobre ele. Guto Borges: Em termos de expressão, é cada vez mais radical não se colocar como o Joviano fazendo a ocupação ou as pessoas com seus nomes próprios, com seu agir social. Não é o Joviano ocupando, mas é a imagem da ocupação, não são pessoas ocupando, é a ocupação pura e simples, a ocupação desprovida de atores, de agentes concretos, mas o símbolo mais puro dela. A tentativa era despersonalizar aquilo ali, torná-la mais pura no sentido conceitual.

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Wellington Cançado: Uma questão muito forte na ocupação Luiz Estrela é essa despersonalização, no sentido de que em nenhum momento ela reivindica uma propriedade pessoal, de alguém ou de um grupo muito específico, por mais que não tenha um nome. É uma ocupação cultural, mas essa ideia de cultura é muito mais difusa do que no caso de uma ocupação de habitação, as pessoas estão ali reivindicando propriedade, casa própria. Ninguém está ali reivindicando o próprio, não tem próprio, o nome do espaço é Espaço Comum, a simpatia da cidade tem a ver com essa questão da cultura. Rita Velloso: Por isso que eu acho que ela é a mais longeva de todas. Porque no fim das contas ela é uma apropriação que aponta para uma coisa coletiva e o que está em jogo ali é acesso. Por que as pessoas se veem representadas? Porque elas sentem falta de um direito básico que é espaço público. Guto Borges: Só para problematizar, será que o vazio daquilo proporciona preencher aquilo de qualquer coisa, qualquer sonho... Rita Velloso: A imaginação que as pessoas têm do próprio espaço público. Acho que você tem razão. Guto Borges: A gente pode cair no dilema das próprias manifestações, que em alguma medida foram também a doninha da Zona Sul que se sentia representada – o que pode ser um pesadelo. No carnaval, por exemplo, tivemos uma postura muito clara: “É um grupo, sim, e o gesto desse grupo é faça o seu”, um gesto de multiplicação, a ideia era faça o seu bloco. Todo mundo que apareceu entrou, todo mundo que apareceu aprendeu a tocar, todo mundo viu que era fácil e que é uma forma absolutamente aberta, o que para mim é a grande potência. O policial disse: “É direito do cidadão tomar a dianteira do processo” em relação ao patrimônio. Na medida em que o Estado é omisso, isso é direito, a desobediência civil, a invasão e o rompimento da porta são legítimos. Uma grande potência disso é a multiplicação dessas ações, a despersonalização no sentido político. Gustavo Bones: A ocupação Luiz Estrela tinha que radicalizar, eu fiquei incomodadíssimo com a galera pedindo ao povo para não pixar. Pedimos para um pixador não pixar, entramos, mas não podemos mexer no patrimônio porque o Estado virá... Entramos, mas não tocamos nas paredes. Esse é o nosso dilema, tocaremos ou não tocaremos, não tocaremos para ficar mais tempo ou tocaremos para sermos autênticos? Priscila Musa: Não é uma questão de patrimônio a do pixo, foi uma questão sobre a qual a gente conversou muito. É que a partir do momento em que estamos tentando construir uma conversa com a comunidade temos que aprender a dialogar e saber os limites. A vizinhança está indo lá todo dia tomar café com a gente e o próprio vizinho ficou puto com o pixo. Temos esses limites...

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Rafael Barros: E o apoio da vizinhança é um dos nossos argumentos, a gente se utiliza dessa relação e desse apoio. Gustavo Bones: E tem o medo de queimar a imagem e para isso a gente tem que se calar uma hora. É realmente um dilema... Áurea Carolina: Em que medida é autogestão inibir a ação de um pixador? Isso é uma gestão que hierarquiza e determina os usos daquele espaço. Priscila Musa: Ainda é um grupo, por isso eu falava de construção. A gente entrou nesse imóvel. É o discurso da horizontalidade como fim, não como princípio. Vai haver um momento em que aquela casa vai estar toda pixada. Áurea Carolina: Vai sair do controle. Rafael Barros: E vai ter um limite porque, se sair do controle, vai chegar um momento em que aquilo vai ter que se manter e para se manter vai ter que ter uma gestão e esta gestão vai estabelecer um grupo, que vai ter que se dedicar àquele espaço. Wellington Cançado: Uma coisa é ganhar o direito de ocupar a casa, outra coisa é ganhar o problema, que é o problema do Estado que abandonou a casa por 33 anos. Agora chega um grupo e fala: “Nós vamos reformar”. É ótimo para o Estado, é ótimo porque ele vai abrir mão de uma política pública que não está cumprindo. E agora nós vamos fazer uma vaquinha para reformar a casa? Na verdade isso vai virar uma política pública, e então talvez tenha o efeito contrário, em outra escala isso é o Adote a Praça. “Adote a casa caindo na sua esquina”. O Adote a Praça é isso, a prefeitura não cuida dos espaços públicos e você pode ir lá capinar e pôr a logomarca da sua empresa. Guto Borges: Essa casa inclusive deve ser a mais detonada de Belo Horizonte, uma casa de 1910 que foi desocupada em 1994 porque já estava condenada e desde então ela está fechada, só tomando água e rachando. A questão não é ficar tomando lugar fodido, a prefeitura ou o Estado ceder lugar fodido e a galera se responsabilizar, inclusive financeiramente, por isso. É a legitimação da ocupação. Lá há um prédio ao lado em perfeito estado. Se se consegue aquela casa, se toma imediatamente o do lado. Imediatamente, porque está parado. Até o ano passado era uma escola, a escola fechou e ele está sem uso. Tem que tomar o do lado que está em perfeito estado, é jogar a favor da sociedade civil. Eu estou falando, por exemplo, do centro. Fico imaginando... Diversos prédios desocupados com condição de habitação, imagina se a própria Escola de Arquitetura faz uma avaliação e organiza uma grande invasão, igual ao que está acontecendo em São Paulo, o centro está sendo invadido por gente querendo morar de julho para cá...

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Wellington Cançado: Estou pontuando, na verdade, a diferença entre o direito de uso do espaço e uma política pública que precede isso, ainda mais num prédio emblemático que foi escolhido pela questão do patrimônio, que está caindo. Porque, se é um prédio qualquer, é “Então está bom, a gente pode usar esse lugar?”, e aí contrata um trator e passa por cima, mas não é esta a questão que está em discussão. A ocupação podia ser um modelo para redesenhar a política pública de patrimônio dentro do estado, exigindo que ele faça uma recuperação-modelo daquele edifício e não falando “nós vamos fazer”, porque isso pode ser inclusive um tiro pela culatra absurdo, daqui a um ano a casa cai literalmente. “Mas vocês não falaram que iam restaurar?”... Rafael Barros: Nós não entramos na casa com a ciência de que ela estava naquela situação e um dos nossos projetos era restaurar a casa. O espaço jogou essa bola quente no nosso colo. Foram 15 espaços visitados, e aquela casa foi escolhida nas duas últimas semanas, a ocupação se deu ali naquele momento, a Tita e o Gabriel entraram na casa na quinta-feira à noite, o grupo entrou da sexta para o sábado. Fernanda Regaldo: Não é engraçado que o símbolo em si toma o lugar do projeto? A casa acaba virando um símbolo, e só se sustenta como símbolo, ela não é penetrável. Roberto Andrés: Um parêntese na sua fala, é o Símbolo Comum Luiz Estrela. Fernanda Regaldo: É a representação no seu ápice, que se sustenta só pelo símbolo. Há uma discussão importante aí que é pensar qual é o nosso projeto coletivo, o projeto da esquerda. Até nesse sentido a casa é simbólica (e vão aparecendo vários níveis de simbolismo): que projeto é esse, como ele tem sido construído, como é que ele é pensado... E como é que se faz esse espaço, que é um espaço impenetrável. É importante inclusive para fazer uma autocrítica. A casa tem esse duplo aspecto simbólico: de um lado, o que se projeta para fora, e de outro, o que ela diz de nós mesmos. Eu sinto que falta projeto. Priscila Musa: Mas colocar a necessidade de um projeto é também colocar a gente nesse lugar que o Estado nos coloca: “cadê o projeto?” Fernanda Regaldo: Eu não estou falando do projeto concreto com plano de ação, cronograma, metas e plano arquitetônico, estou falando do projeto do que conjuntamente podemos construir, da questão, como a Rita coloca, da longevidade. A longevidade depende muito de um pensamento mais complexo sobre o que vai poder habitar esse espaço, em todos os sentidos, e neste momento eu vejo isso muito abstrato ainda... Rafael Barros: A proposta sempre foi construir um espaço cultural autogestionado, que fugisse do modelo e inclusive das amarras do Estado. Essa

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falta de lastro com o Estado desde o início foi uma coisa proposital, era justamente fugir do governismo, inclusive das leis de incentivo ou da tutoria do Estado, ir para uma coisa que pudesse ser feita de fato de forma colaborativa. A questão não é se é dever do Estado ou não arrumar aquele espaço, a questão é a capacidade de construir um modelo que seja de fato autogestionado e sustentado colaborativamente. Priscila Musa: O fato de a casa ser um patrimônio também foi decisivo na escolha do imóvel. O que a princípio se configura como nosso principal inimigo é o principal aliado também: a degradação da casa foi o que nos ajudou a ocupar e a trazer a sociedade civil e a mídia com a gente. A minha função era entrar junto para mapear e ver o estado da casa para ver aonde a gente podia ir. E só ficamos sabendo da gravidade quando entramos. E a gente só foi entendê-la de verdade depois que vários engenheiros vieram

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falar que a casa estava caindo. Estamos numa situação delicada que é nossa principal dificuldade, mas também é a nossa principal vantagem. Quando falo da comunidade e da sociedade que apoia, não estou falando só dos velhinhos e das velhinhas que não querem que pixem, estou falando também das pessoas que querem o pixo e que sonharam alguma coisa para aquele lugar, de transformar em sala de cinema, por exemplo. Várias pessoas que não entraram, que não sabiam que essa possibilidade não existia, mas que sonharam isso. Eu que trabalho com patrimônio há algum tempo, eu nunca senti isso, de repente ver uma comunidade realmente incomodada com a degradação do imóvel, e manifestando: “Fazia tempo que eu queria ver isso sendo transformado em alguma coisa”. Talvez a gente pudesse soltar uma campanha anônima do tipo, “Monte seu bloco”, “Ocupe a praça do seu bairro”, “Monte a sua ocupação na casa vazia”. Gustavo Bones: Faça seu Espaço Comum.

PÁGINA 163 Centro Cultural Vitor Cesar, 2013. Fotografia: Daniel Iglesias

PÁGINAS 169-175 Pedestre, Limousine e Ônibus Guga Ferraz, 2012

PRÓXIMA PÁGINA Choque de ordem 2 André Komatsu, 2013. Fotografia: Daniel Iglesias



PASSAARテグ Rua Aarテ」o Reis, Belo Horizonte, 2011 Performance: Espanca! Fotografias: Marcelo Castro









OS BRUTOS Belo Horizonte, 2013 Daniel Carneiro (org.) Videos de: Breno Farhat, Cardes Amâncio, Cebolose, Cili, Clarice Steinmüller, Cris Araújo, Daniel Carneiro, Diedro Pelão, Fabiana Leite, Fernando Soares, João Grilo, Joviano Mayer, Marcelo Duarte, Maria Objetiva, Matheus Roedel, Nara Torres, Nelson Pombo Jr., Philippe Urvoy, Priscila Musa, Renata Leite, Renato Gaia e Sílvia Herval



PĂ GINAS 187 -189 Imagens de Priscila Musa, 2013



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PĂ GINAS 191 - 193 Imagens de Daniel Carneiro, 2013



EMPOSSAMENTO Brasília, 2003 Mauro Restiffe













SANTOS SUJOS: RETRATO DO VAZIO Belo Horizonte, 1998 - 2002 PatrĂ­cia Azevedo













NO AGLOMERADO DA SERRA Conversa de PISEAGRAMA com Cecília Reis, Floriscena da Silva, Izabel Melo, Margarete Leta, Ronaldo Silva e Sara Lambranho 24 de novembro de 2013

NO RESTAURANTE DA MADRINHA Floriscena Silva: Eu posso falar como foi a história das remoções na Serra. Eles chegavam, pichavam as paredes das casas com um número em vermelho e davam para a pessoa um prazo de noventa dias para ela arrumar outra casa dentro do valor que eles determinavam. E aí a vida da pessoa vira uma loucura. O Arcrim, por exemplo, não conseguiu uma casa dentro do valor da indenização que ele recebeu, e ele teve que inteirar o dinheiro para comprar a casa em que ele mora hoje. Muitas pessoas acabaram tendo que ir para os apartamentos por essa falta de opção. Eles oferecem dez mil, vinte mil, e dão a opção – que muitas vezes é a única possível – de morar nos predinhos. Tanto que muita gente que comprou apartamento, já vendeu e voltou para a comunidade. Mesmo os apartamentos sendo na comunidade, muita gente não se adaptou a este estilo de moradia, vendeu o apartamento e já comprou uma casa, ou fez troca, ou alugou o apartamento e voltou a morar aqui dentro. Renata Marquez: E a história das ruínas ficarem aí? Floriscena Silva: A parte abaixo da Avenida Cardoso, que é onde os carros da região leste e centro-sul transitam, onde a população da cidade em geral tem acesso e vê, ficou toda limpa. Na parte acima, que fica dentro da comunidade, todos os escombros e entulhos continuaram. E a única coisa que eles falaram é que já estava pronto o parque ecológico. É interessante a gente trazer outras pessoas, porque contamos e as pessoas acham um absurdo. Vocês vão ver que é muito mais absurdo do que a gente acha! Eles estão obrigando as pessoas a conviver com aquilo ali.

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Renata Marquez: Mas havia uma combinação de retirar os escombros, não é? Floriscena Silva: Sim, inclusive houve pagamento para isso. No projeto existia uma parte que definia esse pagamento. É como eu disse: o que interessava a eles retirar eles retiraram. O que interessava à comunidade, à população local… não foi retirado escombro nenhum. Wellington Cançado: O seu engajamento com a comunidade começa com o Vila Viva ou antes? Você pode falar um pouco da sua história com a comunidade? Floriscena Silva: Eu nasci aqui e moro aqui há 37 anos. Vivi muitas políticas aqui dentro. Eu vivi as políticas de abertura de ruas – aqui onde é a rua da minha casa não era rua – mas eu era uma criança. Eu vi muitas coisas acontecerem: água, esgoto, luz... Eu vi ruas sendo feitas e desfeitas ao longo de toda a minha vida. Mas o Vila Viva foi o mais agressivo de todos os projetos, pela forma como ele aconteceu, pela falta de informação. Por exemplo, aqui, abaixo da minha casa, existiam outras casas. Hoje minha casa é a última, abaixo dela é a avenida. Aqui era um monte de casas. Eles estavam tirando a casa aqui, a um metro de distância da minha, e a gente perguntando se a nossa ia sair e eles não davam essa informação, falavam “não sei se está no projeto”. Então isso é muito violento com a gente, você não saber se você vai ficar ou sair. Eu perdi duas vizinhas aqui que morreram, eram senhoras amigas da minha mãe. Uma delas foi para o apartamento e não saiu mais de cima da cama. Aqui ela tinha uma relação com as pessoas do entorno. Lá não tinha!

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Ela foi para lá, ficou em cima de uma cama até morrer. A outra vizinha, que morava em frente a ela, a mesma coisa. Ficou no Bolsa Moradia muito tempo e, quando saiu o apartamento para ela, ela morreu. Então, foi dessa forma, com essa violência que eles fizeram as coisas aqui... Você negar à pessoa o direito de informação, negar o direito de escolha e negar a ela o direito de ficar onde ela sempre morou, para mim não tem nada mais violento do que isso. Aí começamos a questionar. Por vivenciar as coisas aqui, às vezes a gente vai questionando. Você vai vivendo aquela prática e muitas coisas começam a incomodar. Desde quando me incomoda? Acho que desde sempre. Desde sempre me incomodam muitas coisas que eu vivi na escola, com alunos de escolas aqui da comunidade; me incomodam muitas coisas que eu vivi aqui na minha prática de moradora; muitas ações e omissões do poder público. Com o Vila Viva, como foi a política mais agressiva e mais direta, meu questionamento também foi mais direto. Nós começamos a buscar apoios e respostas mais diretas. Izabel Melo: Eles deram algum argumento para vocês ou deixaram os entulhos sem falar nada? Floriscena Silva: Na verdade existem duas respostas, dois argumentos. O primeiro é que o entulho já foi retirado. Eles falam que nós somos mentirosos, e então a gente fotografa, filma e traz as pessoas para provar que não men-


timos. E o segundo é que o entulho não precisa ser removido, que ele pode ficar ali, porque com o tempo ele vai se acomodando e servindo àquele lugar. Então o questionamento é: por que na parte de baixo ele foi retirado? Se é bom ficar, então porque não ficou o entulho todo? Então, se não justificou ficar lá, também não justifica ficar aqui! Margarete Leta: Deixa eu falar uma coisa sobre esse segundo argumento, e porque isso é irônico. O professor Edésio Teixeira de Carvalho, geólogo, fez parte da equipe do PGE que estudou a Serra. Tanto é que a gente observa alguns de seus princípios aplicados – muito diferente da forma como ele propõe. O professor Edésio fala que entulho da construção civil é alguma coisa muito útil nas nossas cidades atuais porque ele é poroso, tem capacidade de reter a água, porque é uma reprodução de materiais da natureza. Tem areia, brita, o próprio cimento. Ele pode ser usado com uma função muito benéfica de recompor o reservatório natural de água, recompondo, por exemplo, voçorocas, aqueles buracos em que a terra já foi carregada e em que a água da chuva não vai ter onde ficar. O entulho pode ter essa função. Inclusive já tive alunos com propostas de montar gabiõezinhos com entulhos, pensando nisso. Pensando primeiro no impacto de tirar esse entulho daqui – imagina, tirar uma peça, como a Sara Lambranho fez, foi aquela produção toda: para a rua, para todo mundo, põe faixa... – imagina tirar tudo? Seria um transtorno na vida das pessoas ter que tirar esse entulho todo. Depois, circular com ele


pela cidade, além de achar um lugar que vá receber esse entulho. Há muita coisa aqui que não deveria ter sido feita. Para tirar esgoto de dentro da água, que foi o grande argumento das desapropriações, existem vários sistemas que tiram o esgoto mas não tiram as pessoas. Mas, enfim, é como se houvesse somente uma solução para tirar o esgoto. E se eles chegaram à conclusão de que tinham que ter tantas demolições, era lógico que aquilo ia render tanto entulho, e eles poderiam ter planejado acomodar tudo em algum lugar. Mas não foi assim. Não foi porque isso é até falado no texto do PGE, mas as planilhas dizem o contrário. Elas falam: demolição e retirada do entulho. E há também umas tentativas, umas caixas de peças de concreto pré-moldado, para acomodar o entulho. Só que elas foram, no mínimo, mal dimensionadas, porque não cabe nem o entulho de uma casa dentro delas. Então, essa história de o entulho ser útil e a ideia de ele ser acomodado é, na verdade, agora, um argumento oportunista, porque ele não foi considerado, embora seja verdadeiro, e eu acho que é a coisa mais correta a fazer: programar que o entulho daquelas unidades que têm que sair seja usado para reter a água. Ou seja, de montante para jusante, todas as oportunidades que eu tiver de reter a água, eu vou fazer. A gente fica falando “a Av. Mem Sá vai voltar a inundar”. E vai! Desde que fizeram o Vila Viva, em 2005, ela não voltou a inundar. Mas ela vai voltar porque os aterros já estão cheios de sedimentos e daqui a pouco eles vão ser transportados. Toda vez que eu venho com os alunos, eu falo: “a gente tem que pensar numa forma de não causar esse impacto com essa retirada porque vai ser um prejuízo ainda maior”. E fora que vai ser feito de novo com dinheiro público, nosso, de novo eles vão tirar daqui e vão levar para algum lugar para gerar outro impacto negativo. Ou seja, basta de impactos negativos e de jogar dinheiro público fora. Mas é um argumento oportunista, sem dúvida. Vítor Lagoeiro: No contexto da remoção daquele ponto específico de onde a Sara retirou a peça, a justificativa também era em relação ao esgoto ou era ao parque ecológico? Floriscena Silva: Não, era fazer o parque, preservar a mina, porque lá não tinha esgoto. Os moradores cuidavam do local. A gente foi ter água aqui no final de 1980, início de 1990. Antes disso, nós usávamos era a água dessa mina. As casas do entorno foram construídas com essa água, não havia outra forma. Era lá que a gente buscava água, era lá que a gente lavava roupa, era de lá que a gente trazia água para fazer comida, era lá que a gente brincava, era tudo. O Arcrim, por exemplo, morava numa casa bem próxima. Ele tinha um criatório de peixes que era dentro da mina, ele fez um laguinho e tudo. Lá não tinha esgoto! Margarete Leta: Faixa de preservação! Pegue a linha do vale, dê um afastamento de 15 metros para cada lado e onde passar... A casa do Seu Zé Lima é isso. Seu Zé Lima chegou em casa e estavam tirando o muro dele. Ele falou:

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“por que vocês vão tirar meu muro? Vai tirar a casa?”. “Nós não sabemos”. “Então você não vai tirar meu muro!”. É porque a ponta do muro dele pegava na linha desse afastamento. O muro está lá e a casa dele ainda está lá. Mas ele ficou sem lugar, sem acesso. Ele hoje atravessa por dentro dos escombros do parque, no escuro. Ele fala: “tem 28 anos que eu moro aqui. Quando eu vim para cá não tinha luz, a gente andava no meio do mato. Mas nós construímos toda uma condição para não passar por isso mais. E hoje eu estou de novo nessa situação. Eu passo no meio do nada. Não tem mais meu vizinho na porta com a sua luzinha acesa para eu passar, para minha filha chegar da escola de noite, para poder chegar em casa”. Porque a casa dele estava dali para fora da linha de preservação da APP.

SOB UMA AMOREIRA, PRÓXIMO AO LOCAL DE ONDE FOI RETIRADA A PEÇA DO TRABALHO O PESO DE UMA CASA, DE SARA LAMBRANHO Floriscena Silva: Aqui é a Primeira Água. Ali tudo era casa, e foram todos removidos. E aí a gente teve o transtorno primeiro de remover os moradores. Eles removiam e quebravam as lajes para ninguém ocupar, ninguém voltar. Só que essas casas viraram ponto de uso de drogas. Aí, para eles virem terminar de quebrar a gente tinha que acionar a prefeitura, acionar a polícia, acionar tudo. Eles vieram, terminaram de quebrar e deixaram os entulhos. Roberto Andrés: Qual solução você vê para esse trecho, Leta? Margarete Leta: Eu acho que é vir fazendo pequenas acomodações com o entulho e ir revegetando. Você cria uma contenção lateral, enche de entulho e coloca um piso em cima, tipo piso flutuante – madeira, etc. – de forma que os platôs possam ser usados. Porque continuar a demolir eu também acho que não vale a pena, a não ser em lugares em que a coisa fique em risco: pedaços de parede sozinhos, com ponta de ferro aparecendo. Acho que a solução é de cima para baixo ir acomodando. Na verdade, de cima para baixo ir planejando, e executando de baixo para cima. Roberto Andrés: Mas pensando como uma área pública mesmo? Margarete Leta: Uma área pública aberta, com gente se apropriando e ajudando a cuidar, fazendo um comércio e cuidando do lugar no entorno, como se fosse um arrendamento em área pública. Comércio, alguns serviços pequenos, usando essas lajezinhas que já existem, com construções leves. Eu chamo atenção aqui para o poder, a capacidade produtiva que esse lugar tem, demonstrado pelas famílias inteiras que foram criadas aqui. Essas árvores aqui foram todas plantadas. Todas são frutíferas. Aqui tem amora, ameixa, manga, goiaba... O povo fazia uso disso, o Arcrim tinha um bar ali que fazia movimento, vendia, iluminava o caminho, cuidava, limpava. Então acho que a lógica seria essa: aquelas bordas pelas quais nós vamos andar são perfeita-

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mente ocupáveis, sem maiores riscos nem para quem as está ocupando, nem para a sua preservação. Pelo contrário, o cara que mora lá podia cuidar daqui. Mas a primeira coisa seria tirar do Estado o poder de gerir esse espaço, porque a gestão deles é isso aqui, é criminosa. “Então, qual é o dinheiro que tem para recuperar? Passa para a gente”. Autogestão! O povo cuida, faz, contrata, movimenta. Cada vez que eles reclamam de alguma coisa eu arrepio. Porque eu falo: “nossa, mais uma brecha para a prefeitura gastar dinheiro!”. Agora começaram a cercar de novo, e a cerca parou lá em baixo. Se você tivesse acesso à planilha, você veria que, com o que se gastou naquele pedacinho, já dava para cercar tudo, se fosse o caso de cercar, porque achamos que nem precisaria disso. A Segunda e a Terceira Águas estão cercadas, e está cheio de buracos na cerca, o povo abre para jogar lixo, para jogar entulho, e as crianças, para brincar. Izabel Melo: Eu conheço o projeto daqui, eu participei muito da discussão. Mas, cada vez que eu venho aqui, é mais assustador pela distância do que foi pensado em relação ao que existe. E uma reflexão importante para mim, que sou arquiteta, é sobre o distanciamento do que a gente projeta em relação à realidade. Isso fica muito explícito num contexto que é construído a partir das necessidades imediatas do cotidiano. Isso pensado na cidade formal se destaca muito menos, apesar de acontecer também. Mas quando eu venho aqui eu acho assustador pensar naquilo que a gente refletiu na época... Mesmo se fôssemos fazer um projeto com participação da comunidade, a distância do projeto para a execução numa realidade tão complexa é muito grande. Margarete Leta: A favela é uma homogeneidade só para quem está de fora! Eu acho que o erro primário é você desconsiderar que esse território já está produzido. Ele foi autoproduzido, ele não é uma tábula rasa. Esses programas estruturantes falham nesse ponto. Floriscena Silva: E o problema é o Estado continuar insistindo no erro. Nas reuniões do Vila Viva 2, a gente tem cobrado participação! A gente tem cobrado, como morador, só isso. Nós queremos participar, nós queremos dar palpite, dar opinião, e isso nos é negado. É como na reunião que tivemos no escritório da Urbel, para a abertura da Nossa Senhora de Fátima: eles fazem todo aquele discurso, a gente faz toda a argumentação e, no final, eles falam assim: “Então agora nós vamos aprovar”. Quer dizer, você falou no vazio. Eles não te dão ouvidos! “Agora nós vamos aprovar isso aqui que foi apresentado?” Olha que absurdo! Margarete Leta: A única forma estruturante que eu acho que é possível é a que obedece à natureza do lugar: lá de cima, de onde o Vila Viva nem chegou, até chegar aos fundos de vale. A intervenção foi feita somente na área mais propícia a beneficiar a cidade [formal], segundo os valores da cidade [formal], porque segundo os meus valores o benefício maior viria se tivéssemos res-

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peitosamente vindo de lá para cá, acomodando, recuperando a capacidade de suporte do território que está pressionado pela densidade construtiva daqui. Mas é uma densidade construtiva sob outra lógica. Aquilo que os predinhos consomem em termos de espaço, em termos de energia, em termos econômicos, é muito maior do que seria para acomodar o entulho. Ou seja, no final da equação, o equilíbrio ambiental aqui ainda é menos desequilibrado do que lá na cidade formal. E não é à toa que só aqui a gente encontra isso: água em leito natural, vegetação nas encostas... Porque o resto já foi para o saco! Izabel Melo: Teve uma fala de um menino quando eu estava fazendo trabalho aqui que eu sempre gosto de citar. Tinha um primo dele que morava lá nos predinhos e ele continuou morando na casa dele. Eu perguntei como ele percebia a diferença entre os prédios e as casas. Ele falou: “para mim é igual. Vocês colam um em cima do outro e a gente cola um do lado do outro. Mas eu prefiro o nosso, porque aqui todo mundo tem o céu em cima”. É uma coisa poética, mas que fala muito de uma experiência estética diferente do espaço, uma forma diferente de vivenciar. E a gente vem com uma justificativa técnica que é apenas um instrumento institucional para legalizar... Margarete Leta: É a imposição de uma racionalidade técnica: “aquele povo não sabe nada, nós sabemos”. A Flor fala uma coisa que eu acho muito correta. Ela fala que, na verdade, o que o Vila Viva fez foi cobrir os grandes problemas da cidade a jusante, tanto do ponto de vista das inundações, essas histórias de fazer os aterros-diques e segurar os sedimentos, quanto do ponto de vista da circulação urbana, de conectar, de abrir espaço para carros. Então, na verdade, usou-se o território para tentar resolver problemas urbanos. E eu acho justo que a gente pense no sistema como um todo, desde as cabeceiras até o fundo de vale. Mas não beneficiando um lado e deixando todo o ônus nas cabeceiras, que é o que está acontecendo. Cada esplanadazinha que fosse preenchida com entulho seria mais uma área para plantio, para contemplação, para mirante, para qualquer coisa. Existe essa possibilidade, só que isso não foi pensado. Izabel Melo: É o que eu estava falando. Até foi pensado, mas é grande a distância entre o que foi pensado e o que foi realmente executado. Até pela forma da execução: são empreiteiras, com máquinas enormes. Margarete Leta: Quando você vê as fotos da execução, você vê o tamanho dos guindastes, dos equipamentos. Ou seja, se não tivesse sido aberta a Via do Cardoso, não havia como chegar com aquele equipamento aqui na esquina. O próprio projeto já pressupõe que eu vou ter que incorporar uma grande estrutura viária, no mínimo para chegar com os equipamentos lá em cima. Os beneficiados são as empreiteiras, é o mercado imobiliário. Se não nos lembrarmos disso o tempo todo, a gente acaba instrumentando, que é o que o projeto da gente faz.

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Floriscena Silva: E se você pega o projeto, você vê que um monte de coisas de interesse deles foram alteradas. Mas se for do nosso interesse, como população, nada é alterado. Aqui, por exemplo, quando começou a obra, com o consórcio Camargo Correia / Santa Bárbara, duas grandes empreiteiras fizeram a parte dos aterros-diques, no final da Av. Mem de Sá. Quando a obra foi subindo, chegando aos predinhos, nessa parte que atingia diretamente a população, eles foram terceirizando, quarteirizando, quinteirizando... À medida que a obra foi subindo para a comunidade, que chegou à parte que nos interessava, foi passando para um monte de gente e nós não tínhamos acesso a quem realmente era responsável por aquela etapa. Margarete Leta: Na hora em que começa a entrar dinheiro, é “obrigado população, vocês foram muito bacanas na participação, mas daqui para frente pode deixar que a gente cuida”. Então, na hora de gastar o dinheiro – o grande volume de dinheiro – que não representa nem 10% do que foi dito que foi gasto, a população é afastada. Por isso eu falei da autogestão. O Boaventura de Souza Santos fala isso: democracia participativa e democracia econômica são duas faces da mesma moeda. Não tem jeito, enquanto a gente não ultrapassar essa etapa e falar “nós queremos a gestão do recurso”, a gente não vai chegar a lugar nenhum, não tem chance. A ideia é a gente autogerir o espaço público. Os recursos para, por exemplo, recuperar isso daqui não serem destinados à administração pública, mas serem transferidos para uma gestão conjunta da população, dos interessados na autogestão. Contrata o serviço, a mão de obra, o projeto, o que precisar, gasta o dinheiro e presta contas. Além de formar mão de obra, porque a autogestão forma! Para recuperar esse território, eu não consigo fazer com a mão de obra tradicional, é necessária uma formação nesse sentido. Primeiro o cara tem que entender que o entulho pode ser útil. Segundo, em que situação ele seria útil e como. Ele tem que estar imobilizado, não pode estar sujeito a descer mais, não pode estar cheio de ferro dentro, não pode virar lugar de acomodação de escorpião… Há uma série de outras questões conjugadas. Então, junto com isso, é colocar um monte de bodes para comer o colonhão, porque dizem que a única chance de acabar com o colonhão são os bodes! Consórcio animal! Floriscena Silva: A única coisa que eles fizeram aqui foi plantar colonhão. Margarete Leta: Quando você olha de cima, o projeto está executado. De cima é uma área verde. Se você chega perto, é colonhão, mamona! E essas árvores, que felizmente já existiam. Floriscena Silva: Eles colocaram umas esteiras, umas telas, e depois a gente soube que essas telas eram sementeiras, e aí nasceram os colonhões. Naquela encosta lá abaixo de casa vocês viram que em uma parte grande dela não tem nada, não nasceu, porque os meninos foram lá e colocaram

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fogo na tela. Ela queimou todinha. Só a parte mais próxima lá de casa é que tem colonhão, porque minha mãe tem um galinheiro. Então a água do galinheiro cai toda lá e é um excelente adubo. Margarete Leta: Mas antes, o equilíbrio era mantido em função dessas coisas. Todo mundo tinha galinha, tinha bode pastando por aí, as pessoas varriam a porta da casa todo dia, bem ou mal uns tiravam o lixo, outros não tiravam, mas não era essa quantidade toda. Vocês vão ver lá em cima. Aquelas montanhas pelas quais nós vamos passar ali não são naturais, elas são entulho e lixo. São sete anos de entulho e lixo sendo colocados. A Sara fez um bem à humanidade, tirou uma peça e vai devidamente expô-la no Palácio das Artes.

NO RECANTO HORTA DA SERRA Margarete Leta: Que primor, Ronaldo! Ronaldo Silva: Eu dei uma mudada aqui, Leta! O pessoal da obra me deu essa tela para eu colocar. As galinhas do vizinho estavam entrando aqui e comendo meus negócios todos. Aí eu disse: “se for para eu ter essa horta aqui, ou ela vai para frente mesmo ou eu paro!”. Aí o pessoal me deu isso para eu pôr e eu tampei. Elas não deixam de entrar, mas pelo menos entram menos. Tem umas galinhas aqui que não são vegetarianas! Elas chegam e só ciscam o chão e vão embora. Agora, as outras que estavam aí estavam comendo as couves, comendo até arruda! Nunca vi galinha comer arruda! Nem rato dá certo com arruda. Onde tem arruda não tem rato, vocês sabiam, não é? Só que tem que plantar muita, um pezinho só não afugenta eles, não. Margarete Leta: Então, para afastar os ratos ali debaixo, na Primeira Água, é só plantar arruda? Ronaldo Silva: É, se o pessoal deixar, não é? Aliás, ali embaixo é muito bom! Se eu morasse ali, eu faria um criatório de peixes. Pena que eu não tenho uma mina daquela aqui. Aquela mina é 24 horas. Aquela lá é a nascente mesmo. Vem lá de cima. Se eu morasse ali eu faria uma represa e colocaria uns peixinhos. Margarete Leta: É o que o Arcrim tinha quando ele morava lá. Cecília Reis: O que você faz com a produção aqui? Ronaldo Silva: A maior parte eu dou para os outros. O pessoal costuma perguntar “por quanto você vende?” e eu digo “ah, um real o molho de couve”. Mas a maioria aqui é pessoal conhecido e eu dou. Uma folha de couve para fazer almoço… Se fosse uma horta grande, se eu tivesse um lugar de uns 500 metros quadrados para fazer a horta, aí, sim, eu poderia vender. Porque

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não adianta nada eu chegar aqui e vender um molhozinho hoje se semana que vem já não tem. Agora, quando eu tiver um lugarzinho com mais espaço, posso até trazer verdura de fora, tenho uns amigos que têm hortas fora, aí dá para fazer. Mas assim é só para passatempo, porque eu gosto. Eu venho todo dia aqui. A horta tem uns três, quatro anos. Eu chego às 15h, 14h30. Quando eu acabo o trabalho de gari na SLU eu venho. Tem vez que eu acabo um trecho ao meio-dia, aí eu venho às 13ho. De manhã eu venho também. Quando não está chovendo eu ligo o irrigador lá em cima, fica uns quinze minutos. Aí, quando eu estou com pressa, eu peço à minha esposa para deixar ligado dez minutos. Isso só quando o tempo está quente mesmo. Aí, quando eu chego do serviço, se está quente, eu águo de novo e vou mexendo um pouquinho. Estou mexendo com construção ali em cima também, aí eu venho, dou uma passadinha, tiro algumas coisinhas, replanto uma cebolinha. É assim. Roberto Andrés: O que você planta aqui, Ronaldo? Ronaldo Silva: Tem couve, tem cebolinha, bálsamo. Esse aqui é um pé de maçã. Está pequeno, mas vai crescer. Mais um ano! Roberto Andrés: Você já viu maçã dando aqui? Ronaldo Silva: Já! Mas você tem que pôr gelo no pé. Você esfarinha o gelo e põe de vez em quando no pé. Mas não pode ser todo dia não. Se aqui fosse um lugar de geada, de frio, já estava dando! Tem que chover é uma chuva de gelo aqui! Essa aqui é mexerica. Antes ela estava fraquinha, só agora começou a dar. Foi o vizinho que me deu uma muda. Tem pouca coisa por enquanto, porque tenho pouco tempo para plantar e pouco espaço. Essa aqui é couve flor. Ela é tipo o brócolis, ela dá uma flor. Jiló, orapronobis, abóbora… Floriscena Silva: Ronaldo, o que a gente faz para acabar com o colonhão este colonhão que a prefeitura jogou aqui naquelas telas? Ronaldo Silva: Tem que tirar eles com a raiz e bater Roundup neles. Neste que está perto aqui eu ia bater Roundup, mas resolvi que ano que vem eu vou criar só cabritos. A única solução mesmo é cabrito! Uns amigos meus vão me fornecer uns cabritos que vão ficar ali do lado de fora comendo os capins. Se a gente bate Roundup, vai matar a terra, e da terra eu preciso, aí não dá, não nasce. Aí eu jogo os cabritos e pronto. Eu uso o leite e a carne do cabrito. O cabrito você castra… depois põe ele na brasa… É bom demais! Roberto Andrés: Ronaldo, e aqui, antes de fazer a horta, como era? Ronaldo Silva: Era um lote vago que a prefeitura tinha indenizado. Tinha uma casa aqui, a casa da Dona Margarida, mãe do Tião. Não foi bem uma indenização, eles tiraram a casa porque ela estava em mau estado, aí colocaram ela

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em um predinho e tiraram a casa. Aí ficou aquele matão, o pessoal jogando cachorro morto. Inclusive, eu enterrei três na semana passada. A gente que é gari leva cachorro morto. Eu já sinto o cheiro e desço com a enxada para enterrar. Tem que ter estômago, e eu tenho, muito! Aqui era cheio de capim, o pessoal ficava jogando entulho, estava usando como ponto de droga, aí eu falei: “Esse negócio aqui me interessa”. Eu entrei aqui era meio-dia, no mês de outubro. O sol daquele jeito. Eu entrei, comecei com uma foicinha velha cega, dei uma foiçada no mato e ele nem tchum! Aí passou um cara ali em cima e me disse “você é doido, você não vai conseguir capinar isso tudo não”. Aí, quando ele falou isso, me deu uma força. Ele falou que eu não ia conseguir! Eu fui lá em casa, peguei uma lima, passei na foice e capinei tudo. Deixei o mato por cima do que tinha para nascer, já peguei as primeiras mudas e deixei aqui, mas não nasceu não. Estava seco, era outubro, não tinha esterco nem nada. Aí os matos que eu tinha colocado apodreceram, e eu peguei umas terras e joguei por cima deles e, aí, sim, começou a chover, e quando choveu começou a nascer. Coloquei dez mudas e nasceram três. Já estava de bom tamanho! Eu peguei uns tapetes de um banco lá na Contorno, que o pessoal me deu, e tampei o terreno. Mas o pessoal começou a reclamar que queria ver a horta e os tapetes estavam tampando. Aí colocaram fogo no tapete. Eu pensei bem, tirei e coloquei no chão. Tinha muita coisa aqui, mais verdura, mas, devido à época pouco favorável para certos tipos de verdura, não tem agora. Essa tela que eu coloquei também ajudou. E agora eu vou plantar alface no cano. Eu


vi na revista que eu pego o cano, corto ele, ponho o esterco e a muda e ele nasce! E quando ele nasce, fica bonito e limpo porque não está no chão. Do jeito que você pega ele, você lava um pouco e come. Izabel Melo: Não dá pulgão aqui não? Ronaldo Silva: Dá, sim, mas eu bato remédio. Eu faço fumo com água. Eu compro fumo de rolo, ponho na água e deixo uns três dias e depois eu bato. Margarete Leta: E essas garrafinhas aqui, Ronaldo? Ronaldo Silva: Isso era para ser um chuveirinho, mas não deu certo. Agora eu fiz uns furos no cano e funciona. Eu tive que fazer isso aqui na época da seca porque não tinha como... Roberto Andrés: Ainda dá para fazer horta nessas Águas aí para baixo? Ronaldo Silva: Dá, sim, tem muita área boa aí. Principalmente nesses caixotes de cimento que eles colocaram. Isso é um ótimo canteiro. Já tem entulho e terra. É só colocar um esterco por cima e pronto! Felipe Carnevalli: Ronaldo, você plantava antes de ter essa horta aqui?


Ronaldo: Eu sempre mexi com jardim para os outros. Não profissionalmente. Meu pai sempre mexeu com mato e eu sempre gostei. O pessoal passa aqui e fala que eu sou doido, que eu sou isso e aquilo, mas eu não esquento a cabeça. Os que falam que eu sou doido são os que mais se encantam com o negócio. Para mim só acrescenta. Se você quer esquecer os problemas, é só você vir para cá. Eu estava falando com o pessoal que, se em cada área que a prefeitura indenizar, o pessoal fizer uma horta – não precisava de ser grande não –, cada um teria seu próprio alimento, sem precisar de esquentar cabeça com sacolão. É tão fácil, você joga uma terra no chão, põe uma semente e ela nasce. Tem semente aqui que eu nem planto, nasce. O pé de mamão estava grandão, eu dei mamão para todo mundo aqui. A raiz dele encontrou alguma pedra no solo e ele morreu. Mas, onde ele morreu, está brotando de novo! Margarete Leta: Tem uma placa ali fora que diz “vende-se terra e esterco”. Você está até vendendo terra? Ronaldo Silva: Eu tinha umas cabritas lá em baixo. Aí eu peguei o esterco delas, juntei num saco. E nisso, juntando o esterco dos bichos, galinhas, tudo, deu 10 sacos de esterco de 15 quilos. Aí eu coloquei a placa “vende-se esterco”. E os 10 sacos de esterco saíram rapidinho. Eu fui e comprei mais 15 sacos para ver se vendia de novo, porque eu preciso pagar a água. A água dessa horta sou eu que pago, 60 reais de água. Aí vendeu tudo e o pessoal está pedindo mais. Com o dinheiro das couves eu nunca vou conseguir manter a horta, e a água estava vindo a 25 reais. Estava dando para eu manter. Agora que a água está vindo a 70 reais – a Copasa cobra muito caro! –, eu pensei que o único jeito era vender esterco. Eu ganho 4, 5 reais em cada saco, tiro o capital e com o lucro dá para eu pagar a água. Eu comprei 150 reais de esterco, vou tirar mais ou menos uns 300 reais. Com 150 reais eu pago a água e ainda sobra alguma coisa para eu comprar mais sementes para a horta, e eu compro mais 150. Roberto Andrés: Não dá para puxar a água de algum lugar? Ronaldo Silva: A Copasa disse que ia fazer um padrão social para mim, mas até hoje não veio fazer. Acho que, por ser uma área que já foi indenizada, eles não querem fazer muita coisa não. A Cemig falou “puxa um gato de luz para você colocar na horta”. Mas a água fica difícil, porque eles falaram: “tem algum ponto de água na casa que foi indenizada?”. Não tem ponto, então não tem jeito. Enquanto isso eu vou puxando ali de cima, da outra construção minha. Fernanda Regaldo: A água daqui é ligada na sua casa, então? Ronaldo Silva: Eu moro lá na frente. Mas minha esposa tem uma lojinha aqui e eu estou construindo em cima da loja. Eu liguei um padrão de água aqui, e, por ser perto da horta, eu puxei uma mangueira por cima da rua. Aí eu faço

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aquela jogada para pagar, porque se depender das couves... A horta é mais hobby mesmo, eu gosto mesmo de manter ali. Não tem como vender, o lugar é pequeno, acidentado. Eu pedi à prefeitura para fazer uma horta comunitária aqui, mas eles disseram que não aprovam porque o lugar é acidentado e tudo. Wellington Cançado: Você teria algum benefício por ser uma horta comunitária? Ronaldo Silva: Eles poderiam me ceder as sementes, a terra, a água, a casinha para guardar as sementes e o esterco, uma assessoria bacana. Mas eles falaram que não podia, então eu tenho que fazer tudo por conta própria. Tenho que comprar tudo. Wellington Cançado: Há outras iniciativas de horta aqui na comunidade? Ronaldo Silva: Que eu conheça, não. Inclusive eu projeto horta também. Eu vou lá, pergunto para as pessoas: “onde você quer que eu faça a horta?”. Aí a gente faz o esterco, leva a muda e já faz o projeto, de acordo com o tamanho do lugar que eles querem. Aqui eu só faço horta pequena, porque o pessoal não tem muito estilo para planta, não. A vida deles é muito sedentária, eles não têm muito tempo. É mais mulher e velho que mexem. O pessoal passa aqui e acha que é de um velhinho aposentado e tal! Até que se fosse um lugar mais plano daria para fornecer para as creches, mas ali não tem como. Wellington Cançado: Você pensa em expandir? Ronaldo Silva: Aqui não, por causa do espaço. Eu vou ser realista, eu não me vejo vendendo uma couve para uma grande empresa. Se a prefeitura me fornecesse as condições, esses matos todos que vocês estão vendo aí seriam hortas, comida, plantas medicinais. Mas aqui eu tiro o dinheiro do bolso com o maior prazer, para cuidar dessa hortinha aí. Eu conheço uma floricultura aí, e estou tentando trazer umas plantas que não existem aqui. Tem planta aqui que o pessoal não conhece. Tem planta aqui dentro que não existe mais na Serra, o pessoal vem para procurar. Arruda para conjuntivite... Saião, por exemplo, é bom para dor de ouvido. Você esquenta ela no calor do gás, e põe no ouvido da pessoa e sara em dois minutos. Já fiz a experiência comigo mesmo! É coisa simples que resolve o problema. Eu tenho muitas plantas medicinais, para dor de garganta, dor de cabeça, remédio para criança recém-nascida. Fernanda Regaldo: Você mora aqui desde pequeno? Ronaldo Silva: Tem 28 anos que eu moro aqui, praticamente nasci e cresci aqui. Eu vim de Marilac para cá com 5 anos de idade. Lá em casa eu ajudava a mexer na horta que meu pai tinha. E, agora, aqui na Serra, indenizaram muita casa. A prefeitura é assim, indeniza uma casa aqui e não indeniza a do lado.

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A que não indenizou, a pessoa faz uma horta na que tirou. Se a pessoa quiser fazer, agora tem área para fazer. Mas a maioria das pessoas não tem muito estilo para fazer, não tem paciência. Às vezes não tem uma condição financeira para cercar, para manter, ou, então, o pessoal fica receoso. Felipe Carnevalli: O pessoal da prefeitura já veio aqui depois que você fez a horta? Ronaldo Silva: Teve uma vez que eles me denunciaram. O pessoal falou que eu estava fazendo uma obra irregular. Eles viram que eu fechei ali com a tela para as galinhas não entrarem e denunciaram. Eu queria até fazer um galpãozinho para guardar esterco, mas tenho medo do pessoal denunciar. Com o povo eu sei lidar, o problema é a prefeitura querer tirar. Eu tenho consciência de que o terreno não é meu. Se a prefeitura falar “eu quero o terreno para fazer um parque”, eu tiro minhas couves com o coração partido, mas eu tiro. Mas, se for falar: “não quero você mais” e não for fazer nada, aí eu digo: “então vocês podem me prender porque eu não vou sair”. Eu vou na Itatiaia, eu vou na Globo dar entrevista com o maior prazer. Prender por causa de plantar plantas é uma vergonha. Se eu tivesse lascado um barracão de tijolo, que eu sei que não pode, aí, sim. Mas você acha que eu sou bobo de construir em uma área que não é minha? Eu sei que se eu tiver que fazer alguma coisa aí, vai ser de madeira. O pessoal fala que eu invadi. Todos têm condição de fazer, e a invasão se constitui quando você pega um terreno e faz uma casa para morar, mas, se você pega um negócio para plantar, não constitui invasão. Estou dando uso! Quer me prender, pode me prender, pode me levar com o maior prazer.

DESCENDO A SEGUNDA ÁGUA Sara Lambranho: Eu estava querendo fazer a obra, mas eu ainda não tinha um lugar, não tinha pensado nisso de retirar uma peça. Eu tinha pensado em retirar a fundação de uma casa, de um lugar que estivesse passando por um processo de transformação, mas não sabia qual. Eu estava vindo aqui com a Leta e comecei a procurar alguma coisa que fosse expressiva. E aquela peça lá, puxa vida, não é? E essa coisa de ela dar trabalho para sair foi interessante. A luta do cara com a peça, a relação com o espaço, o fato de ela ir levando tudo o que está ali em volta, arrastando as plantas... Margarete Leta: E, no dia, a Flor montou o esquema todo, entrou e saiu e ninguém deu notícia. Sara Lambranho: A Flor ficou junto, conversou, explicou, e eu fiz um folhetinho avisando o que era, convidando para a exposição. E, à medida que as pessoas se aproximavam para perguntar, a gente falava. Foi tranquilo, achei que incomodou menos do que pensávamos. Chegamos às 6h. O pessoal da exposição falou comigo: “Se formos fazer tudo certinho, vai demorar muito”.

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Floriscena Silva: Eles falaram que tinha que tirar fio de luz, tinha que olhar não sei o quê, tinha que ligar na prefeitura. Eu falei: “Vamos pôr umas faixas aqui, e fazemos no feriado ou no domingo, que são dias de menor movimento”. Aí o feriado foi ótimo, veio a calhar. Colocamos a faixa avisando ao povo que ia fechar a rua. Colocamos na noite anterior. Eu falei com a Sara: “Eu vou junto, inclusive na hora em que estiver descendo o caminhão”, porque o Seu Machado tinha falado que, se tivesse um carro em alguma curva, o caminhão não passava. Então eu vou junto e vou pedindo às pessoas. Quando a gente chegou ao lugar em que o caminhão ia ficar, tinha um carro parado. Eu fui atrás, procurei quem era o dono do carro, pedi para tirar, e avisei para o pessoal da esquina que não era para deixar o ônibus subir. Tanto que alguém chegou e tinha um ônibus voltando. Aí eles avisaram, passou um ou dois ônibus, só que chegaram até a esquina e voltaram. Foi supertranquilo, ninguém achou ruim demais, acabou que nem precisou fechar a rua tanto, dava para carro pequeno passar, só não passava carro grande. O Seu Machado começou a remover lá pelas 8h40, e ficamos lá até umas 11h da manhã, mais ou menos. E aí eu vim com o caminhão e com o Seu Machado. Mas acabou que nem precisou, foi muito tranquilo. As pessoas ficaram supercuriosas, perguntavam para todo mundo. Era um feriado, de manhã cedo, e a gente pensou: “está todo mundo dormindo”, não é? Mas, de repente, começou a aparecer gente nas lajes, nas janelas, todo mundo olhando, assistindo. Aí o povo começou: “Qual carro caiu aí? Foi moto ou foi carro?”. E a gente ia explicando o que estava acontecendo. A Sara fez uns panfletinhos explicando também. Foi muito bacana, o pessoal lá do entorno, de todo mundo que passava, ninguém passava direto. Todo mundo dava uma paradinha para ver o que estavam fazendo. O pessoal do entorno ia lá, olhava e, depois, ia para casa fazer alguma coisa. Depois voltava para ver o andamento. Dona Lourdes foi lá capinar o quintal dela e voltou para mostrar a cobrinha que ela achou lá e matou! E, aí, no final, eu desci para a Cardoso, lá na praça, e fiquei esperando os ônibus passarem para avisar que já podiam subir. Renata Marquez: Você é poderosa, hein, Flor? Sara Lambranho: Ela é brava! Ela põe a mão na cintura, assim, e o pessoal volta com o carro na hora! Floriscena Silva: Mas viu como as coisas são muito simples? Muito simples, gente, não pode complicar. Você chega e fala: “Não sobe porque a rua está fechada”. Depois você fala: “Agora pode subir”. E pronto! É muito mais fácil. Porque, se eles subissem, eles iam ficar estressados, teriam que voltar de ré. Mas, como eles já estavam avisados, foi tranquilo. Sara Lambranho: Espero que o trabalho ajude a trazer essa história à tona. Essa peça fala muita coisa.

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Floriscena Silva: Ela é muito problemática, não é? Você lembra o rapaz do caminhão? O pessoal do caminhão perguntou por que estava tirando. Eu fui e expliquei que isso era parte de uma casa que a prefeitura demoliu. “Mas por que está tirando? Essa casa era de quem?”. Não é porque a casa era de alguém, é a história que a peça conta, é pela história em si, como a coisa aconteceu... Essa peça conta a história da comunidade de certa forma, de tudo o que a gente passou. E foi muito interessante, as pessoas chegavam perto deles e perguntavam: “O que vocês estão tirando aí?” E eles respondiam: “Uma peça de uma casa que conta a história da comunidade!” Sara Lambranho: Toda hora ele falava isso! Eu estava lá em baixo e toda hora ouvia “história da comunidade, história da comunidade!”. Renata Marquez: É uma peça arqueológica, não é, Sara? Arqueologia da comunidade!

PÁGINAS 220-237 Retirada dos escombros para a obra O peso de uma casa de Sara Lambranho, 2013. Fotografia: Daniel Iglesias


EXCERTOS DO PROJETO MUTIRテグ Sテ」o Paulo, 1996 - 2004 - 2005 - 2006 - 2008 - 2009 - 2010 - 2011 - 2013 Graziela Kunsch


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De cima para baixo: stills dos vĂ­deos Abertura de portas, Novos ventos e Sem tĂ­tulo Graziela Kunsch, 2006-2005-sem data


NATAL NO MINHOCテグ Pedregulho, Rio de Janeiro, 2009 Luiza Baldan



18h chego no Minhocão, local da residência artística, moradia permanente até o dia 20 de dezembro. O medo vira alívio. O desconhecido vira vizinho. O apartamento 613, da Dona Leda, vira minha casa. Isto aqui não é um hotel, é a minha casa. Hoje faz 17 anos que meu pai morreu e fui obrigada a me mudar pela 8ª vez. Hoje fiz minha mudança de número 26. Encontrei minha família e despedi-me dela. Conheci uma família nova. Senti-me recebida com calor, carinho e atenção. O medo do desconhecido terminou na amabilidade do outro. Muitas são as janelas neste prédio de muitos. Sensação de que tudo ficou para trás. Sinto-me tão longe do presente próximo e tão perto de um passado qualquer, de cidade pequena e vizinhos queridos. O apartamento tem vista de torre e ar de casa. Estou acolhida em meio aos pertences da Dona Leda. Faz 3 meses que ela partiu. Os objetos ainda quentes, cachorros de porcelana que latem calados na estante. Imagino como seria a sua vida, junto à família com a qual agora convivo. Faço retratos a fim de homenagear os que aqui vivem. Vejo nos seus olhos uma ternura de agradecimento por meu gesto simples e afável. Participei da alegria do corredor – parte rua, parte pátio, parte sala –, local onde crianças deitam, eu deito, comida se apronta, comparte-se cerveja, música e conversas. Respeito esta casa como se fosse minha. Ela agora me pertence. *** Hoje me disseram que faço família em todo lugar. No início da residência artística eu não podia imaginar que isso de fato aconteceria. Sentir-se acolhido não necessariamente significa ter afinidade. Hoje deixei a casa que me devolveu um tanto de coisa que havia perdido



por aí. Tive que sair e abraçar e chorar e doer. Tive que prometer para mim mesma que aquele amor inventado em tão pouco tempo não cessaria naquela partida. Volto para o Natal. Volto para aquele corredor que foi tão casa quanto a minha casa. Volto para o calor das histórias embaladas por risos e gritos. Ontem vi um álbum de fotografias antigas. Ri das caretas das crianças que hoje são adultos. Vi a semelhança genética das pessoas e a permanência grifada daquele cobogó, daquele corredor. Não existe mágica que faça com que aqueles dias se prolonguem. As fotografias que fiz servirão de álbum para alguma outra conversa daqui a 20 anos, seja deles, minha ou nossa. Servirão de mapa para me levar de volta àquele lugar e adoçar a memória. Toda bala Juquinha me levará ao esconderijo, ao pote verde em forma de maçã, onde reencontrarei aquela felicidade. Trecho do texto original de Luiza Baldan, 2009

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FACHADA CEGA Belo Horizonte, 2003-2004 Pedro Motta









RIOS DE BELO HORIZONTE Alessandro Borsagli

Belo Horizonte tem aproximadamente 700km de cursos d’água, sendo que 200km encontram-se canalizados a céu aberto ou escondidos sob a malha viária da capital. Na contramão das políticas de gestão das águas urbanas que estão sendo adotadas em diversos países e do próprio Programa de Revitalização dos Cursos d’Água de Belo Horizonte (DRENURBS) – cuja meta é “a recuperação ambiental que implica reverter a degradação em que se encontram os córregos não canalizados da cidade” – o município continua a promover a canalização, e mesmo a erradicação, da paisagem urbana, de seus cursos d’água. O Ribeirão Arrudas figura como o protagonista do atual encaixotamento, sepultado pelo Boulevard Arrudas, na verdade o alargamento de pistas para uma suposta melhoria viária ao longo de seu curso. Para além da pressão automobilística para a expansão viária, existe também uma pressão imobiliária, que não é novidade na cidade, cujo impacto sobre os cursos d’água é enorme. A voracidade imobiliária ao longo dos 115 anos de existência de Belo Horizonte contribuiu para a marginalização da população e a ocupação das margens dos cursos d’água. A zona urbana compreendida dentro da Avenida do Contorno foi construída nas vertentes da bacia do Ribeirão Arrudas e nas proximidades das cabeceiras de inúmeros córregos tributários do ribeirão, e a verticalização mais recente só contribuiu para o agravamento de problemas como o mau cheiro e as enchentes, já comuns no passado. A lógica imobiliária precede a inauguração da capital mineira, tendo informado, junto ao racionalismo e ao sanitarismo que impregnavam o pensamento progressista do período, os próprios membros da Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC). Na confecção da planta geral da nova capital apresentada em 1895, a Comissão Construtora ignorou os cursos d’água que corriam no arraial de Belo Horizonte e nos seus arredores, apesar de eles terem sido res-

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Córrego do Leitão, Rua Marília de Dirceu, 1930


Ribeirão Arrudas e Avenida dos Andradas desde o Viaduto Santa Tereza, 1963

ponsáveis pelo abastecimento de água da crescente população do arraial. O erro começou aí: construir uma cidade quadriculada sobre o relevo acidentado de uma das bordas do quadrilátero ferrífero, não levando em conta os cursos d’água e acreditando que a natureza se submete ao ser humano, uma utopia racionalista – utopia cuja falência é revelada todos os anos nos períodos chuvosos. Entre 1897, ano da inauguração da nova capital, e 1920, os córregos que atravessam a zona urbana ainda apresentavam o seu traçado inalterado, devido ao lento crescimento urbano dentro dos limites da Contorno. Servindo como despejo de esgotos e de imundices dos fundos dos lotes, os córregos foram retificados e canalizados durante a década de 1920, para permitir a expansão urbana na região sul da capital, destinada às camadas mais abastadas. Os córregos da Serra, do Acaba Mundo e do Leitão, afluentes da margem direita do Ribeirão Arrudas, são responsáveis pelo despejo de boa parte dos esgotos da região centro-sul da capital mineira. Foram retificados para as vias mais próximas do seu leito natural. O Acaba Mundo é um bom exemplo de como se deu a retificação. Seu leito natural atravessava as ruas Paraibuna (Professor

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Córrego do Leitão, Rua Tupis, 1960

Morais) e Rio Grande do Norte. Seguindo entre os quarteirões planejados, atravessava a Avenida Afonso Pena e seguia paralelamente à Rua Bernardo Guimarães até o largo da Boa Viagem, entrando logo abaixo no Parque Municipal. A sua retificação e a canalização para a Rua Professor Morais e a Avenida Afonso Pena, empreendida no período entre 1926 e 1928, proporcionaram a expansão urbana do Bairro Funcionários, até então interrompida nesse trecho pelo leito natural do córrego, aterrado posteriormente com material proveniente da abertura da Avenida Afonso Pena até a Praça do Cruzeiro. A canalização e a retificação do Córrego do Leitão foram empreendidas na segunda metade da década de 1920, ao mesmo tempo que eram instalados os emissários de esgotos em sua margem direita. A canalização, como no caso do Acaba Mundo, visava a proporcionar a urbanização e a ocupação da porção de terras localizada no vale do Leitão correspondente aos bairros Barro Preto, Santo Agostinho e Lourdes, os dois últimos na porção reservada pelo Poder Público para a expansão urbana de classes mais abastadas. Inicialmente o curso do córrego foi retificado para as ruas Tupis, Padre Belchior – que não existia no projeto original da capital –, e São Paulo, até o cruzamento com a Rua Alvarenga

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Peixoto. A canalização permitiu a expansão urbana e a integração viária entre a região central e a região dos bairros Barro Preto e Calafate, cujo único acesso se dava por uma precária ponte que existiu na Rua dos Tamoios. O Córrego da Serra foi retificado e canalizado em canal fechado no final da década de 1920. O primeiro manancial destinado ao abastecimento de Belo Horizonte foi também o primeiro curso d’água da capital a ser erradicado da paisagem urbana. Já o Ribeirão Arrudas, pela planta de 1895, seria inicialmente retificado e canalizado apenas no trecho que atravessa a zona urbana planejada1 da capital. No trecho compreendido no projeto primitivo do Parque Municipal, o ribeirão continuaria a correr em seu leito natural, assim como o Córrego Acaba Mundo, que passando pelo Parque formaria seus lagos e desaguaria no Arrudas. Na verdade tal projeto nunca saiu da planta, ficando o Parque limitado à margem direita do ribeirão, que correu em seu leito natural naquele trecho até a década de 1920, quando então foi aberta a Avenida do Canal, hoje Avenida dos Andradas, que não existia no projeto original. Entre 1897 e 1940, trechos do ribeirão dentro da zona urbana foram retificados e canalizados em diferentes administrações, que empregaram processos diferentes de revestimento e estipulavam diferentes larguras para o canal, o que contribuiu para o agravamento das enchentes. A partir da segunda metade da década de 1940, Belo Horizonte passou a crescer vertiginosamente, optando por um modelo de desenvolvimento urbano norte-americano que incentivava a verticalização e ocultava os cursos d’água da paisagem urbana. Os rios, com os quais a população até então convivera de forma relativamente harmoniosa, passaram a ser protagonistas de conflitos entre o meio físico, a sociedade e o desenvolvimento. A capital apresentou entre as décadas de 1950 e 1970 a maior taxa de crescimento do País e os cursos d’água passaram a sofrer as consequências desse crescimento. O Arrudas foi a principal vítima. Suas águas, que desde os primeiros anos sofriam com o despejo de esgotos, passaram a receber lixo doméstico e dejetos de toda natureza. A coleta de lixo, precária, entrou em colapso na década de 1960, levando uma parte da população a se livrar do lixo doméstico nos cursos d’água a céu aberto. A rede e os emissários de esgotos da capital mineira eram insuficientes devido à falta de investimentos por parte da prefeitura. Surgia também um problema de mobilidade urbana: além do grande adensamento da região central e dos bairros adjacentes, houve um considerável aumento da frota de veículos, e já se apresentavam congestionamentos nos horários de pico em diversos locais. O transporte público, de responsabilidade da prefeitura, não se desenvolveu de forma eficaz, marcando um descompasso que se mostraria duradouro. Como em outros centros urbanos brasileiros, a cobertura dos córregos da zona urbana de Belo Horizonte era uma questão de tempo. Diante do progresso social materializado no veículo individual, não havia mais lugar para os rios dentro da metrópole. Na primeira metade da década de 1960, o Poder Público optou por fechar os córregos que passavam dentro da Avenida do Contorno, a fim de melhorar

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o fluxo viário e a salubridade das regiões atravessadas por eles. Na visão dos governantes, a cobertura dos córregos resolveria rapidamente o problema da poluição e traria um embelezamento da paisagem com o alargamento das vias, extremamente simbólicas para uma sociedade que associa o carro ao progresso e ao bem-estar. O primeiro curso d’água a ser fechado foi o Acaba Mundo, em 1963. O rebaixamento do leito e a cobertura do canal foram realizados ao longo da Rua Professor Morais e da Avenida Afonso Pena até a altura do Parque Municipal. As águas que antes alimentavam os lagos do Parque também foram canalizadas e encaixotadas devido ao alto grau de poluição. Os lagos são atualmente abastecidos com águas provenientes do lençol subterrâneo. O córrego, inserido na paisagem urbana na década de 1920, não resistiu à pressão urbana, cedendo espaço para o carro. O Córrego do Leitão também apresentava altos níveis de poluição de suas águas. Na década de 1960 o córrego atravessava uma porção da capital já bastante urbanizada, ao mesmo tempo que tinha início a ocupação irregular das suas cabeceiras. O mau cheiro de suas águas e as constantes enchentes que levavam lama e lixo para as ruas eram motivos de reclamações constantes da população, que passou a exigir uma solução rápida para o problema. A cobertura do córrego foi tida como solução. Ela também era percebida como obra de embelezamento da capital, abalada com a perda do título de “Cidade Jardim” desde o corte das árvores da Avenida Afonso Pena em 1963. No final da década de 1960, têm início as obras de fechamento e cobertura do Córrego do Leitão desde a Rua São Paulo até a sua foz no Ribeirão Arrudas. Paralelamente ao fechamento no centro, tiveram início em julho de 1970 a canalização e a cobertura do Leitão na zona suburbana para a abertura da Avenida Prudente de Morais. Tal obra, além de erradicar da paisagem o malcheiroso curso d’água, visava mais uma vez a melhorar o fluxo viário na região, que se expandia a largos passos. O Ribeirão Arrudas, principal drenagem de Belo Horizonte, sofria com o despejo de esgotos desde os primeiros anos da nova capital, e já havia se transformado, na década de 1950, em um verdadeiro emissor de esgotos a céu aberto. Suas vertentes foram sendo continuamente ocupadas por vilas que não contavam com nenhuma benfeitoria urbana, como água encanada e iluminação. Na ausência de infraestrutura urbana básica, o saneamento era deixado de lado, sendo conveniente para o Poder Público o despejo direto no ribeirão. A Cidade Industrial do Ferrugem, inaugurada em 1946 em terras que faziam parte da bacia do Arrudas, também contribuiu significativamente para a piora na qualidade das águas, com o despejo in natura de detritos industriais no ribeirão e em seus tributários. O Arrudas, completamente poluído e assoreado, causava grandes estragos nos períodos chuvosos, principalmente na zona central e no Bairro Lagoinha, edificado na várzea do ribeirão e dos córregos do Pastinho e Lagoinha. Com a urbanização e a impermeabilização de sua bacia, as águas drenadas pelas suas vertentes passaram a chegar mais rápidas e em maior volume ao seu

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Ribeirão Arrudas, Barro Preto, 1963

curso, agravando as enchentes e causando tragédias no trecho não canalizado a jusante da Avenida do Contorno, ocupado naquele período por diversos aglomerados espremidos pela pressão urbana. Desde então o Arrudas passou a ser visto como um vilão pela população belo-horizontina, que, no entanto, contribuía para o assoreamento e a poluição de suas águas. A solução encontrada pelo Poder Público para o “controle” das cheias foi o alargamento e o rebaixamento do canal do ribeirão, plano elaborado em 1975 e executado ao longo da década de 1980, ao mesmo tempo que ele era retificado e canalizado fora dos limites da Avenida do Contorno, proporcionando um melhor escoamento das águas poluídas para fora do município e longe das vistas da zona planejada. Para amenizar os problemas das enchentes, o Córrego do Acaba Mundo, depois de coberto, teve o seu curso ramificado em três braços para melhorar o escoamento das águas, sendo que um dos braços deságua atualmente no Córrego da Serra. O Córrego do Leitão ainda não sofreu esse tipo de intervenção, apesar de transbordar sistematicamente nos períodos de chuva, causando incontáveis prejuízos ao Poder Público e à sociedade. A

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Córrego do Zoológico, Rua Rio de Janeiro, 1963

canalização dos cursos d’água de Belo Horizonte não resolveu o problema das enchentes – na verdade, piorou. Todos os anos as ruas e avenidas sobre os córregos sofrem com inundações devido ao grande escoamento de vertentes impermeabilizadas para fundos de vale também impermeabilizados. Com a contínua cobertura dos cursos d’água, eles vão desaparecendo da paisagem urbana e a identificação do seu traçado atualmente é possível apenas com a consulta às Plantas Cadastrais antigas e às Cartas Hidrológicas das sub-bacias de Belo Horizonte. O racionalismo positivista que predominou na construção de Belo Horizonte persiste com a tentativa de dominar a natureza e o anacrônico encaixotamento dos rios. A ele somam-se uma assustadora falta de conhecimento e certo excesso de interesse com as próximas eleições. Os cursos d’água que correm na cidade são historicamente vistos, tanto pelo Poder Público quanto por uma boa parcela da população, como um entrave para o desenvolvimento urbano – daí a percepção de que devem ser continuamente erradicados da paisagem para possibilitar o desenvolvimento da cidade. Tal pensamento ganhou força na década de 1960, quando

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as palavras “sanitária” e “estética” estavam na moda nos documentos oficiais que tratavam de obras de lajeamento de córregos, bem como de supressão da arborização da região central – nesse último caso, executadas sob protesto da população. No caso dos cursos d’água, nunca houve protesto. A população, que exige medidas urgentes para a solução de problemas como o mau cheiro causado pela poluição das águas, a lama trazida pelas enxurradas nos períodos chuvosos, ou as enchentes que levavam lixo e sujeira para as vias, desconhece a possibilidade de ter cursos d’água limpos e revitalizados, integrados ao ecossistema urbano. Esconde-se o problema, convenientemente, debaixo do tapete – um tapete de asfalto.

PÁGINA 261 Acervo do Arquivo Público Mineiro

PÁGINAS 262-263 e 266-267 Arquivo Público da cidade de Belo Horizonte / Fundo Assessoria de Comunicação do Município

PRÓXIMA PÁGINA Córrego do Acaba Mundo, Parque Municipal Américo Renné Giannetti, 1904 Acervo do Arquivo Público Mineiro 1 > Considera-se como zona urbana planejada a porção da cidade inserida dentro dos limites da Avenida do Contorno,

construída de acordo com a Planta oficial da nova capital, apresentada em 1895 pela CCNC. Apesar da zona suburbana (fora dos limites da Contorno) também ter sido planejada, o seu crescimento se deu em grande parte de forma desordenada, devido ao assentamento das cinco colônias agrícolas que existiram em Belo horizonte entre os anos de 1897 e 1913. O grande parcelamento do solo a partir de 1913 e a abertura de inúmeras ruas foram responsáveis pela grande disparidade entre a zona suburbana da Planta oficial e da zona suburbana atual.



ARRUDAS Belo Horizonte, 2013 Daniel Iglesias













RIO Belo Horizonte, 2013 Fernando Ancil e Marco Scarassatti



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NÃO TEM COISA MAIS FEIA DO QUE MUDANÇA DE POBRE NUM CAMINHÃO CHEVROLET Belo Horizonte, 1997 Zé do Poço




Não tem coisa mais feia Do que mudança de pobre Não tem coisa mais feia Do que mudança de pobre Num caminhão Chevrolet A mulher na boleia O peão na caçamba O sofá tão rasgado E a tevê preto e branco O cachorro latindo O vira-lata amarrado Mais um pé de abacate E um pé de banana Não tem coisa mais feia Do que mudança de pobre E que coisa horrorosa É um pobre mudando É um pobre sem dente É um pobre sem roupa E também sem morada A mulher na boleia E faltando os dente E o lenço cambraia E o nó no cabelo Estrado de cama

E um pé que é de cana E um fogão esmaltado E panela de barro E arroz misturado Os menino jogado No meio da caçamba Não tem coisa mais feia Do que mudança de pobre Não tem coisa mais feia Do que mudança de pobre Não tem coisa mais feia Do que mudança de pobre Num caminhão Chevrolet E o pobre sofrendo E virando nômade Acabou o emprego Acabou a comida E o pobre mudou E virou esta coisa Num caminhão Chevrolet Não tem coisa mais feia Do que mudança de pobre Não tem coisa mais feia Do que mudança de pobre

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COSMOPISTA MAXAKALI PATAXÓ ˜ ˜ Maxakali Projeto Convivência e Ancestralidade no território Tikmu’un Toninho Maxakali, Manuel Damasio Maxakali, Mamei Maxakali, Marilton Maxakali, Josemar Maxakali, Alessandro Pataxó, Arauê Pataxó, Adriana Maxakali, Juninha Maxakali, Zé Antoninho Maxakali, Derli Maxakali, Rosângela Pereira de Tugny, Bruno Vasconcelos e Ricardo Jamal

Belo Horizonte, 4 de agosto de 2013. Caros Thiago e Caroline, Escrevo para tentar fazer, o mais breve possível, um relato da viagem prevista ~ ~ sobretudo no projeto Convivência e Ancestralidade no Território Tikmu´un, naquilo que nos interessa para projetos futuros. Peço desculpas se, mesmo assim, o relato parecer muito longo. Agradeço desde já pelo empenho e pela colaboração fundamental do Museu do Índio e da Coordenação Regional de Governador Valadares. Tudo transcorreu muito bem. O trabalho envolveu Mamei, da Aldeia Verde, e várias pessoas das aldeias Maravilha, Nova Vila e Vila Nova do Pradinho. Houve a oficina de vídeo para vários jovens. Dois Pataxó de Barra Velha estiveram presentes nas oficinas realizadas no Pradinho, assistiram a diferentes rituais e visitaram muitas aldeias do Pradinho e de Água Boa.

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Viajamos no dia 25 de julho de 2013 para Barra Velha (Bahia). Éramos sete indígenas Maxakali (três pajés de diferentes aldeias, dois videastas e duas mulheres), além do cinegrafista (Bruno Vasconcelos) e de um pesquisador colaborador (José Ricardo Jamal) e dos motoristas. Ficamos em Barra Velha de 25 a 30 de julho. Fizemos uma visita ao topo do Monte Pascoal e passamos os dias restantes na reserva da Jaqueira. Ficamos surpresos com a acolhida generosa, interessada e calorosa dos Pataxó de Barra Velha. Fomos recebidos por várias aldeias, com intensas falas e oferendas de comidas. Os Maxakali ficaram encantados por desfrutarem dos jardins (as hortas e os pomares) de todas as casas e entenderam a articulação política das lideranças. Os Maxakali e Pataxó falaram de parentes que migraram entre as aldeias, observaram os traços de parentesco entre um antigo cacique Pataxó, Tururim, e ficou marcado em todas as conversas o desejo de retomar as antigas alianças realizadas entre os po~ ~ e os Putuxop (antes, aliados nas guerras contra os Botocudos). vos Tikmu´un Se, por um lado, os Maxakali elaboraram aos poucos o desejo de chegar a possuir a autonomia e a capacidade de gestão do território que observaram nos Pataxó, estes não deixaram de exprimir o desejo de ir às aldeias Maxakali e recuperar, pelos Maxakali, uma língua materna. Foram rememoradas inúmeras vezes as palavras ainda faladas pelo Pataxó que são semelhantes a vocábulos do Maxakali. Um grupo de jovens pertencentes ao “Patxohã”, um grupo de resgate da língua e dos costumes Pataxó, veio ao encontro dos visitantes Maxakali. Foi dito entre eles que as viagens constantes dos Maxakali até as cidades de Itamaraju eram claramente uma tentativa de retornar aos parentes Pataxó, e que, devido ao crescimento das cidades, eles se perdiam até que a Funai organizasse seu retorno. O entendimento deles foi de que os Pataxó permaneceram nas costas, enfrentando e lutando diretamente contra os efeitos do avanço da sociedade nacional sobre suas vidas, e perderam sua língua, seus cantos, e, segundo muitos, sua religiosidade. Os Maxakali, por sua vez, entraram para o interior de Minas Gerais, afastando-se, evitando enfrentamentos diretos com seus invasores, tendo, desta forma, garantido a língua e suas formas de religiosidade. Os Maxakali retornaram com muitas mudas e sementes oferecidas amorosamente por seus parentes. Não tivemos nenhum incidente com uso de bebidas alcoólicas. No retorno de Porto Seguro até a Terra Indígena do Pradinho, que ocorreu no dia 2 de agosto, paramos em Almenara (MG) e Jequitinhonha (MG), onde foram contadas histórias e mostrados os lugares de visitação e perambulação dos Maxakali. Todo o trajeto de retorno até a aldeia foi alimentado pelos cantos eufóricos dos pajés e jovens e quase integralmente documentado. Os cantos reafirmavam o profundo conhecimento que possuem dos lugares por onde o carro passava. Fomos interpelados por uma senhora, moradora da cidade de Guaranilândia, próxima a Almenara, que nos levou até o lugarejo, por saberem os seus habitantes que “um dia os indígenas voltariam ali para buscar o que é seu”. A localidade é citada em

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vários relatórios da Funai por ter sido o aldeamento do Farrancho, onde houve um massacre que levou os sobreviventes a se instalarem na cidade de Rubim (ver relatório de Hilda Paraíso, de 1992). Portanto, há propostas que vi surgirem nas conversas que podemos, creio, transformar em projetos de rápido e maior tempo de duração: 1. viabilizar a realização perene de intercâmbios organizados na forma de trocas concretas entre Pataxó e Maxakali: aprendizado da língua e dos cantos para os Pataxó e “formação de gestores” (ou algo parecido) para um grupo de jovens Maxakali. Creio que devemos aliar jovens de 13 e 14 anos e os pajés nesses trabalhos. Creio, também, que tudo deve ser sempre acompanhado do trabalho da filmagem, pois ela garante que cada situação seja transformada em um evento de intensidade e concentração. 2. proporcionar a participação dos Maxakali nas palestras e atividades a serem realizadas durante os meses de setembro e outubro, nas escolas das cidades que envolvem os trajetos dos Maxakali, desde Teófilo Otoni até Rubim. 3. viabilizar o Curso de Pajés, já mencionado entre nós, por demanda de alguns professores indígenas ao pajé Toninho Maxakali, provocados pela publicação do livro de Komayxop. O pajé está muito animado com essa proposta. O Curso aproveitaria um instante relativamente favorável de intercâmbio entre aldeias para reunir jovens cantores interessados, de diferentes grupos Maxakali, e um grupo de jovens Pataxó na Aldeia Maravilha, durante um mês em que aconteceriam intensas atividades no Kuxex. Contudo, achamos interessante vincular esse curso de pajés com a realização de uma grande roça coletiva, fazendo um grande apelo à autonomia dos tihik neste empreendimento. 4. Prêmio Cultura Indígena, relacionado ao Livro de Cantos Xamânicos Komayxop, organizado por Eduardo Rossi e Toninho Maxakali, com desenhos de seu filho, Zé Antoninho. O prêmio foi solicitado em nome da Aldeia Maravilha e o pajé Toninho deve receber os 15 mil reais em sua conta, cujo cartão encontra-se em posse do supermercado Vó Ernestina, da cidade de Santa Helena de Minas. Quando esse ritual foi gravado, os agrupamentos em aldeias eram diferentes dos que encontramos hoje. Quase todos os cantores, mulheres, pajés e crianças estavam na Aldeia Nova, liderada por Guigui Maxakali. Hoje, poucos se encontram lá, tendo eles formado duas novas aldeias: Maravilha e Novila. A maior parte dos cantores e participantes do ritual está hoje na Maravilha, assim como o pajé Toninho, tido como o principal conhecedor. Foi Toninho quem escreveu o livro de A a Z na língua maxakali e fez as exegeses que permitiram a sua tradução. No entanto, Guigui Maxakali solicitou uma divisão igualitária do recurso do prêmio. Propus, então, à comunidade da Aldeia Maravilha, que fosse suspenso qualquer uso do recurso (inclusive avisei aos donos do supermercado) até que fosse realizada uma reunião entre as lideranças políticas e religiosas das três aldeias, na presença da FUNAI. Mas penso, sobretudo, que podemos aproveitar os ensinamentos da viagem e propor aos Maxakali que não dividam ou façam uso desse recurso, a não ser para criar algo que os ajude a pensar em seu futuro, como uma associação. Nas reuniões que fizemos falamos muito das divisões internas e da necessidade

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de pensar além delas e não brigar pelos recursos dos projetos, que não deixavam nunca nada que durava em suas vidas. Fizemos um recapitulativo de muitos projetos que passaram por eles e que eles apenas tiveram parte ativa na disputa pelos bens. Cunhamos a expressão “hãm pexpaxîy yãy xak”, que é algo como “pensar-procurar no futuro”. O que solicito é que a Coordenação de Governador Valadares acompanhe de perto a formação de jovens, que possam dar conta de levar adiante uma associação e consigam parceria das prefeituras locais para a gestão da mesma. A Associação de Aldeia Verde resiste com o apoio da prefeitura de Ladainha e percebo que ela mudou muita coisa para este grupo. Enfim, tudo isso é muito, mas é pouco diante do que é necessário fazer pela dignidade desse povo maravilhoso. Sinto que temos, agora, pessoas incríveis e a possibilidade de parcerias para assumir um trabalho que vai realmente fazer diferença no destino deles. Seria importante convencer a instituição da necessidade de um plano de longo prazo e sustentado, que vá nessa direção. O capim está seco, há muitas queimadas e não há sequer um pequeno acompanhamento de tratorista ou técnico agrícola que os incentive e apoie nas roças e na gestão dessa terra. Em Maravilha não há água encanada, e a água dos córregos vizinhos estava quase preta. Nunca a vimos tão suja. Por fim, em nosso retorno, levamos Jojô Maxakali até a Casai para visitar sua irmã Nilva, da Aldeia Cachoeirinha. Ele tem a intenção de levar sua irmã definitivamente para a Aldeia Maravilha, e ouvi do cacique e de homens do Kuxex que todos na aldeia estão dispostos a recebê-la. Jojô nos disse que já havia pedido várias vezes para fazer essa viagem e nunca foi ouvido e que já estava bravo com isto. Algumas pessoas da Aldeia Maravilha aventaram a possibilidade de absorverem em diferentes aldeias pessoas da Cachoeirinha, devido à grave situação de isolamento e conflito. Mas sabemos como tudo é delicado. Abraços e obrigada a todos pelo apoio. Estamos aqui, à escuta! Rosângela Pereira de Tugny

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Ă RVORE DO ESQUECIMENTO Brasil / Benin, 2013 Paulo Nazareth



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Stills dos vídeos Cine África, Cine Brasil, L’arbre de l’oublie e Ipê amarelo Paulo Nazareth, 2013


MORADIA NOS ARREDORES DA CIDADE Sacolândia, Brasília, c. 1959 Marcel Gautherot















MODERNIDADES Conversa de PISEAGRAMA com Edésio Fernandes, Felipe Magalhães, Stéphane Huchet e Alícia Penna 16 de dezembro de 2013

Edésio Fernandes: Eu gostaria de iniciar com a ressalva de que minha contribuição é a partir de uma perspectiva sociopolítica. Não é uma crítica estética, no sentido da arte especificamente. Eu acho que um conceito que vocês estão propondo, que é comum aos meus interesses, e que acho que é uma porta de entrada para essa discussão, é a ideia de cidade como criação coletiva. A ideia de criação coletiva é uma maneira de desconstruir tudo o que o urbanista e o planejador de política pública propõem, e em que Belo Horizonte é exemplar, paradigmática. Inclusive em termos jurídicos, em que você aceita a ideia de cidade como criação coletiva, você abre o caminho para considerar a função social da cidade, a distribuição dos custos de política urbana, direitos coletivos e públicos, direito à cidade. Todos esses são conceitos que dependem da compreensão de que a cidade não é produzida nem só pelo Estado, nem só pela iniciativa do poder privado, dos construtores, mas, também, é resultado de uma criação coletiva. Jane Jacobs tem uma frase que sempre foi muito instigante: de que as cidades têm a capacidade de prover algo para todo mundo apenas e somente quando são criadas por todo mundo. Acho pessoalmente que as cidades são sempre criadas por todo mundo de uma forma ou de outra. Então, a noção da cidade como criação coletiva é muito rica porque ela permite questionar os discursos dominantes sobre quem é o dono da cidade. Se é por uma perspectiva sociojurídica, temos dois paradigmas que disputam essa hegemonia. O dominante é esse discurso ainda civilista da sociedade pensada a partir do mercado, da iniciativa individual, do direito de propriedade. E a outra perspectiva é a chamada administrativista, é a cidade pensada pelo Estado no exercício de um interesse público, que é assumido como sendo a mesma coisa que interesse estatal – o público é reduzido à noção de estatal.

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Belo Horizonte é sintomática dessa discussão, do discurso da falta de planejamento e da lógica dominante. “Se tivéssemos planejamento, teríamos outra cidade”. Mas Belo Horizonte, sendo uma cidade planejada, coloca o dedo na ferida da questão da natureza do Estado, dos proprietários de terra, da legislação. Quer dizer, o problema é muito mais da natureza desse planejamento do que da falta dele, do papel do Estado na construção da cidade. Podemos pensar, por exemplo, na exclusão histórica dos grupos que construíram a cidade – antes de a cidade ser inaugurada, 3.000 pessoas já viviam em favelas. A cidade era o lugar reservado aos funcionários públicos e a periferia era o lugar dos construtores da cidade. E a cidade cresceu no entorno desse centro. E, depois de muitos anos, não existe nenhuma política de regularização fundiária, não existe o mínimo de direitos fundiários para essa população que é anterior à própria fundação da cidade. Contudo, Belo Horizonte, no contexto dessa disputa, está se virando hoje para o sentido de outras possibilidades de construção de cidade a partir da noção da criação coletiva. A série de ocupações que tem acontecido em relação tão próxima com arquitetos, engenheiros, juristas tem mostrado que a comunidade pode gerir não só o espaço, mas pode refletir sobre o próprio contexto ambiental de acordo, inclusive, com as próprias exigências da lei. Mas há uma coisa que não é possível ser feita nesse contexto de mutirão, que é a questão da estrutura pública. É a ferida brasileira, o nó da questão urbana, pois sem a intervenção do Estado não há como pensar. Podemos pensar soluções construtivas, ambientais, de saneamento. Todo tipo de soluções urbanísticas podemos passar por fora da tutela do Estado, mas, na questão central dos direitos fundiários e do reconhecimento do acesso à terra, a política excludente do Estado ainda é clara.

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Felipe Magalhães: Quando recebi a descrição inicial da exposição e o convite à reflexão sobre os grandes projetos modernizadores de Belo Horizonte, fiquei pensando que existem algumas linhas condutoras que interligam esses grandes projetos, desde o plano da capital até o “Nova BH”. E uma coisa que chama a atenção é como eles refletem a visão do que é a situação ideal para as elites brasileiras e a mentalidade, ao mesmo tempo colonizada e colonizadora, que acompanha essa visão. Quando se tenta pensar a cidade ideal, ela não é somente imposta de cima para baixo, mas reflete certo isolamento das elites no plano simbólico. E o formato em que isso acontece vai mudando ao longo do tempo. Há uma literatura recente que está sendo muito lida e usada sobre a colonialidade do poder na América Latina que pode ser interessante para pensar a cidade e se aplica muito aos grandes projetos urbanos pensados pelas elites. A partir dos anos 1980 e, mais intensamente, nos anos 1990, houve um fluxo externo de referências, uma nova rodada que veio junto com esse formato hegemônico de globalização aliado ao neoliberalismo, em que os mais bem informados usam de um jeito interessante, mais oswaldiano, mas não é o caso de 99% do que sai da produção simbólica da elite para a elite no Brasil. E o que temos é um temporal dos termos em inglês – coisas tipo espaço fitness, espaço kids, etc. E nos grandes projetos urbanos, acho que desde Aarão Reis bebendo na fonte do plano de Washington até agora, com essas torres de aço e vidro, com esse falso espaço público entre os prédios que as operações urbanas demonstram a intenção de fazer. A cidade ideal é sempre a ideia de construir a cidade de primeiro mundo. Quando vocês falaram em ESCAVAR O FUTURO, não conhecia a referência do Frederico Morais: a referência que me veio foi o título do livro do Mike Davis, Cidade de Quartzo: Escavando o Futuro em Los Angeles. Pensei a partir daí: o que aconteceu na cidade brasileira? Vejo que o que está acontecendo atualmente é

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um retorno das elites à cidade depois de um período de fuga nos condomínios fechados, principalmente nos anos 1990 até a primeira metade dos anos 2000. Com a volta do crescimento econômico e a valorização imobiliária que ele inevitavelmente gera, e que é incentivada pelo próprio governo por meio de políticas públicas como o Minha Casa, Minha Vida, e por causa da falta de implantação de instrumentos urbanísticos (previstos no Estatuto da Cidade), que poderiam coibir a especulação imobiliária, temos uma versão brasileira daquilo que Neil Smith chamou de cidade revanchista, que acontece nos Estados Unidos de forma mais intensa porque a saída das elites das cidades também foi muito maior. Mas há um retorno aos centros com essa nova forma de higienismo urbano que caminha junto com a gentrificação. Então, a crise dos anos 1980 e o aumento da violência geraram aquela dinâmica dos enclaves fortificados que Teresa Caldeira estudou tão bem em Cidade de Muros – e é incrível como essa história da cidade de muros se tornou natural, nem percebemos mais como a cidade é completamente dominada pela arquitetura do isolamento. Mas, para além disso, a resposta das elites a essa deterioração da vida urbana nos anos 1980 é a tríade do urbanismo em bolhas: o condomínio fechado, o shopping center e o carro, que agora é o veículo utilitário esportivo, geralmente carregando uma pessoa só, que predomina nos nossos engarrafamentos. E é interessante que esse paradigma do enclave fortificado está sendo ameaçado simbolicamente e, na prática, também por essa história dos “rolezinhos”, esses passeios nos shoppings que os jovens da periferia do funk marcam pela Internet. A mídia chama de arrastão, a polícia comparece em peso. Um racismo escancarado. Talvez seja das coisas mais interessantes que surgiram dessa profusão criativa de novos vetores políticos que foi o junho de 2013. Mas o fato de o nosso atual prefeito morar fora de Belo Horizonte é muito emblemático: o cara que sai da cidade provavelmente porque ela está perigosa demais e acha

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que não tem nada com isso. E a gente aprendeu com Jane Jacobs que o esvaziamento ajuda a tornar o lugar mais perigoso, criando-se um ciclo vicioso. E agora o sujeito volta como o prefeito que vai limpar tudo, deixar tudo bonito, com um ideário não declarado de que a cidade ideal é a cidade do primeiro mundo. E essa é a utopia burguesa pós-condomínio fechado, tem uma lógica de revanche, nos termos do Neil Smith. E tem um urbanismo policial seguindo essa lógica com os seguranças particulares e outras coisas que só aconteciam em condomínios e shoppings nos anos 1980 e que, a partir de 2004, voltam para o meio urbano adensado. Porque o problema da rua para esse pessoal é a violência, eles têm medo da cidade, de andar a pé no meio do povão no centro. O cara vai abrir uma boutique de altíssimo padrão fora do shopping e contrata todo um aparato de segurança particular para continuar blindado. Ele sai de dentro do shopping, mas tem esses dispositivos para carregar o enclave fortificado com ele. E isso anda junto com a valorização imobiliária e a total ausência de coisas que vão em direção ao comentário do Edésio: as políticas habitacionais de fato e a aplicação mais extensa dos instrumentos do Estatuto da Cidade com o intuito de democratizar o acesso ao meio urbano. Edésio Fernandes: Nesse aspecto, acho importante discutir dois temas. Primeiro, os projetos que vêm da Escola de Arquitetura. Qual é o papel dessa escola na produção da cidade, desse imaginário e do discurso hegemônico? Que tipo de planejamento está sendo ensinado, que teorias e práticas, qual tem sido a relação da escola com os processos de formação de críticos, de legislação urbanística? Acho isso muito relevante porque, pensando na questão da distribuição da responsabilidade, os urbanistas brasileiros têm uma responsabilidade enorme pela importação dos modelos e pela reprodução, consciente ou não, de padrões essencialmente de exclusão, padrões elitistas de legislação territorial. O segundo tema é a administração popular que se deu aqui, durante um período de 15 anos, um período significativo e sem antecedentes. Por exemplo, a primeira ZEIS brasileira é de Belo Horizonte, a ideia de que quem mora em assentamento informal tem direito a ficar no lugar e com melhores condições naturalmente. Ela vem da lei do espaço aberto, de 1983, em Belo Horizonte, muito antes da constituição de 1988 e do Estatuto da Cidade. Já anunciava o movimento de reforma urbana que vai desembocar no Estatuto da Cidade e Belo Horizonte, de muitas formas, foi uma das referências. O contexto era feito de restaurante popular, orçamento participativo, experiências de conselhos... Enfim, são 15 anos dessa política e me impressiona muito como isso se perdeu com tanta facilidade. Quer dizer, essas instituições, essas ideias são tão frágeis que podem ser descartadas de forma tão fácil? A mim me impressiona muito esse período de 15 anos de tentativa de construção de outro governo, outro discurso e prática ter sido jogado fora com tanta facilidade. Não ficou nada no lugar, nenhuma cultura diferente.

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Stéphane Huchet: Escutando essa conversa, me pergunto qual será o tema desse livro. Porque parece que ele está se transformando em um conjunto de análises sobre uma situação social e urbana. Me pergunto se uma das perspectivas da exposição era realmente focar de maneira tão direta essas questões ou se havia uma perspectiva um pouco mais aberta. Pergunto isso, Renata, porque me lembro de quando me falou da exposição, que era inicialmente sobre arte e arquitetura, disse que haviam decidido reorientá-la para questões urbanas. Pessoalmente, entendi perfeitamente a lógica do seu desejo de orientação, mas pensei que de certa maneira você perdia, ao mesmo tempo, a ocasião para bater na tecla da arquitetura. Escutando o Edésio e o Felipe – que não viram a exposição e, portanto, é normal que tomem posição com relação à temática que você apresentou – não sei se com esse tipo de discurso que foca de maneira unilateral a questão urbana, uma parte de seu trabalho de curadora não está um pouco se perdendo. Se tivesse desejado fazer uma exposição que fosse sobre a questão urbana somente, como um veículo para tratar de questões sociais e urbanas em torno da dinâmica de junho passado, talvez você pudesse ter escrito apenas um artigo, ou discursado sobre. Mas não foi essa a escolha. Você quis fazer uma exposição feita de imagens, e pessoalmente é isso o que me interessa, mais do que um discurso crítico sobre a situação social e urbana brasileira. Reduzir o impacto da exposição apenas a essas questões é um pouco injusto, pois ela é mais rica do que isso. Frederico Morais, na conversa da semana passada, lembrou um pouco a trajetória dele, a relação histórica com a exposição que fez em 1970, Do corpo à Terra, mas fiquei um pouco chocado por ele ter feito poucas menções à sua exposição. E no caso da Rita Velloso, ela nos apresentou algo que, a meu ver, não tem relação tão central com a exposição. É uma questão séria. Acho difícil quando um trabalho de curadoria que tem uma densidade real torna-se, de repente, um mero pretexto. Para considerações e críticas sociológicas, que não levam em conta o que acontece nas imagens. Estou falando de um ponto de vista totalmente outro. Fico preocupado porque você, Renata, não foi expor nas dependências do IAB. Estamos no Palácio das Artes, um lugar com certo estatuto, certa história. Não é por acaso que remontou até ao Frederico Morais, então mesmo que se queira diluir as categorias arte e arquitetura, o lugar não é neutro. Nesse sentido, penso que a restrição do seu trabalho com a exposição às temáticas rebatidas é uma injustiça. Gostaria de saber se você está de acordo comigo ou não. Renata Marquez: Posso falar três coisas a partir do que você diz. Uma é que o livro, na verdade, foi concebido como uma obra da exposição também. O livro tem uma autoria editorial que é da Piseagrama. Tem um conteúdo autônomo, cujo recorte proposto foi o de ler, a partir da exposição, as questões que ela poderia suscitar e convidar certas pessoas para conversar sobre as questões, tendo como fundo fundamentalmente a historiografia local de Belo Horizonte. O livro Escavar o Futuro é um livro em vez de um catálogo de exposição. Quisemos deslocar a mera ideia de registro das imagens expostas para esse outro lugar

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do conteúdo editorial, no qual as imagens orbitam. Mas nossa intenção não foi reduzir a exposição a certo enfoque, e, sim, proporcionar uma série de discussões e interlocuções extras. Obviamente a exposição tem trabalhos muito distintos entre si, feitos de imagens, objetos, instalações, trazendo processos criativos totalmente diferentes. E espero que o livro também preserve a riqueza da experiência da exposição em vez de reduzi-la a uma interpretação única. Outro ponto, que talvez demonstre que pensamos de forma diferente, é que, realmente, no momento atual, estou mais interessada na indistinção da arte com as outras coisas do mundo do que na sua categoria de distinção. Não que as obras expostas estejam a serviço de certas questões. Eu e Felipe Scovino inclusive discutimos muito sobre o vício de muitas curadorias ao trabalhar um discurso literalmente ilustrado pelas obras. Não se trata disso, na exposição esse discurso não aparece do jeito que estamos conversando aqui no livro e a vizinhança das obras é apenas sugestiva. O que dá impulso curatorial à exposição é realmente o resgate de outra exposição de 1970, de Frederico Morais, em que percebemos um vazio pronto para pensarmos a partir dessa possível atualização. É possível atualizá-la no contexto político e artístico de hoje? Quisemos provocar essa pergunta mais do que trazer respostas ou afirmações, pensando a exposição como plataforma de pesquisa. Pretendemos deixar esse rumor solto nos vários espaços da exposição. E a terceira coisa é que, pessoalmente, estou interessada na ampliação dos formatos de pesquisa. Entendo a curadoria como uma plataforma de pesquisa; um vídeo como um videoensaio possível, etc. São coisas que já venho trabalhando inclusive no nosso meio acadêmico como expansões de linguagem do conhecimento compartilhável.

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Stéphane Huchet: Mas como você reage ao fato de que a exposição parece convergir para um tipo de análise que vai sempre na mesma direção, como nas colocações de Edésio e Felipe? Renata Marquez: Minha expectativa na conversa de hoje não era somente falar sobre a exposição, porque realmente Felipe e Edésio não a viram porque estão fora do Brasil, mas, também, ajudar a criar no livro o lugar da historiografia da cidade, pensando a cidade um pouco independente dos trabalhos, em paralelo. O livro quer trazer a contribuição de avançar a escrita crítica da história local. As diversas conversas que integram o livro trazem a exposição com maior ou menor peso, cada uma à sua maneira. Por exemplo, tivemos uma conversa sobre estética e política com alguns artistas participantes ou não da exposição. Outra conversa se deu na favela da Serra, a partir do trabalho de Sara Lambranho. Nessas conversas, a exposição comparece de maneira mais explícita e, em outras, não, como, por exemplo, a conversa sobre mobilidade urbana. O livro então é uma instância que não é ilustrativa ou justificativa, mas traz outra possibilidade de formatação de ideias que funciona em paralelo. Edésio Fernandes: Um dos desafios de hoje é pensar com mais vigor a noção de que, se há um legado para as futuras gerações, esse legado é a cidade. Hoje, mais de 50% das pessoas no mundo vivem em cidades, taxas cada vez mais altas de urbanização no mundo em desenvolvimento, mesmo em contextos de cidades como no Brasil, com taxas significativas em termos de crescimento de cidades médias e pequenas, de expansão de regiões metropolitanas. Então, me impressiona ver como não existe, sobretudo da parte de crianças e adolescentes, uma compreensão de que o legado da atual geração para as próximas é viver na cidade com os padrões de exclusão, segregação,

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poluição, insegurança. O discurso ambientalista tradicional e naturalizado é muito mais abraçado pelos jovens e adolescentes do que o discurso urbano de inclusão, de oportunidades, da necessidade de se mudar o padrão. Não sei se conhecem o trabalho no Rio de um grupo de adolescentes que reconstroem o lugar onde moram com tijolos. Eles foram levados até a Bienal de Veneza, fizeram um sucesso enorme pela Europa. Reconstroem com tijolos e pintam em detalhes as características das favelas cariocas, mostrando o estado em que moram, seus problemas e oportunidades. Prover às crianças e aos jovens a representação pela arte é muito importante. É uma maneira bastante eficaz de passar essa ideia às próximas gerações. Roberto Andrés: Gostaria de perguntar ao Stéphane se o lugar da imagem também não seria o de prover de uma potência essa crítica sobre a cidade. Você não acha que a ampliação do lugar de crítica e pensamento somente dos textos ou da análise oral para uma prática expositiva, organizada no espaço, também permite que várias dessas questões sejam vistas por outros ângulos? Eu me lembro de você falando algumas vezes sobre a potência das imagens como uma crítica radical de uma situação concreta que, às vezes, um texto inteiro não teria a mesma condição de discutir com essa força. Stéphane Huchet: Concordo plenamente com você. É claro que não participei das outras conversas, mas reajo apenas a essa tendência de privilegiar a temática urbana e ponto. Acredito que um trabalho como o da Renata aposta plenamente no poder crítico das imagens e da arte. Quer queira ou não, o uso das imagens que é feito na exposição aponta para o domínio estético e artístico, sobretudo. Sou muito sensível a isso, ao poder crítico e ao uso artístico das imagens, penso que isso tem que ser assumido plenamente. Uma exposição como ESCAVAR O FUTURO tem um suporte estético e artístico mesmo, apontando claramente para questões sociológicas, políticas, urbanas, mas não o faz como faria um ensaio escrito. É completamente diferente. Renata Marquez: Isso porque, com a exposição, estamos conscientemente trabalhando uma plataforma crítica e epistemológica de sensibilidade... Stéphane Huchet: Às vezes é bom reafirmar isso porque hoje há uma tendência forte de movimentos microssociais tomarem como objeto e recurso de expressão crítica o que chamamos de performance ou intervenção urbana. Inclusive a exposição tem inúmeros reflexos disso. Muitas vezes essas intervenções recorrem à arte, mas, ao mesmo tempo, se negam a reconhecer que esse núcleo artístico ainda é inspirador para elas. Muitas vezes há uma maneira de dizer: “fazendo uma intervenção na cidade eu estou fazendo arte”, mas, ao mesmo tempo, sem querer reconhecer as consequências no âmbito da “arte” mesmo. É uma forma de esquizofrenia extremamente interessante, mas que me parece problemática. Às vezes leva a uma negligência da consistência da manifestação estética.

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Talvez possam pensar que é uma visão conservadora e obsoleta. Mas, nessa perspectiva, o que apreciei na exposição é que ela investe em imagens, em processos de produção da imagem que tentam remeter a todas as questões que estamos discutindo hoje, sem perder a coerência dos processos imagéticos. Uma das grandes questões que enfrentamos, hoje, é uma instrumentalização dos processos artísticos ou estéticos através de um tipo de performance que tem um caráter artístico quase inexistente. Então, não entendo como se pode dizer “eu faço arte”, se não for para se colocar perante o desafio de fazer algo coerente em termos estéticos. Seria melhor dizer “eu faço programa de comunicação”. Hoje, acho que o mundo diluído da arte tem uma tendência real de transformar a arte em programas de comunicação. Se você tivesse desejado fazer um programa de comunicação, você teria escolhido outra maneira de fazer, e as imagens não teriam entrado no jogo. Isso representa um ponto muito interessante da exposição, querer tratar de temáticas que poderiam ser escritas, mas, não, ela o faz a partir de imagens. Penso também que a questão arquitetural foi tratada com um pouco de discrição. O trabalho que mais gostei nesse sentido foi o do Milton Machado. É um trabalho potente, muito interessante. Talvez ele vá mais longe do que certos vídeos que se contentam apenas em mostrar certa dinâmica social e urbana de rua, de maneira quase acrítica. Acho que esse tipo de trabalho tem muito a ver com a ideia de comunicar uma mensagem, mas penso que a arte não deve comunicar mensagem alguma, ela deve provocar. Há uma evidência em mostrar o que na verdade já sabemos, o que já experimentamos no cotidiano. Não sei se o papel da arte é mostrar o que já sabemos; deve haver um deslocamento mínimo. Renata Marquez: No caso de Os Brutos há uma ideia importante do processo de produção da imagem, porque são imagens produzidas coletivamente, por convocatória, e são materiais brutos, sem edição. Há uma “enformação” (este termo é seu, Stéphane!) da imagem que é especial. Ele traz uma série de materiais brutos, criando uma ambiência para enxergar materiais que bradam precisar urgentemente de edição, no sentido da compreensão, da reflexão. Acho que no momento de incompreensão geral no qual estamos, é uma provocação epistemológico-estética muito interessante. Edésio Fernandes: Uma questão sobre a imagem que tem me incomodado muito é a falsificação da imagem pelas tecnologias e pelos programas de computador. Nesse sentido, nenhuma proposta do setor privado, nenhuma política pública, deixa de ser acompanhada por representações visuais do futuro a ser implementado por aquele projeto, e que são verdadeiros delírios. Delírios urbanísticos, arquitetônicos, que têm valor até como produção artística de tão longe da realidade que estão. Os projetos abstraem os edifícios do contexto, não colocam a intervenção proposta nos contextos efetivos. São verdadeiras fantasias urbanísticas que, com frequência, são de uma perversidade enorme ao antecipar um processo de exclusão.

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Por exemplo, a imagem que está na discussão sobre a torre mais alta da América Latina, proposta por um colega de vocês, em Belo Horizonte, é uma imagem que antecipa a exclusão de uma favela da redondeza, que já foi deletada da imagem como condição da implementação do projeto. As imagens que estão na base da Operação Urbana, feitas não só por escritórios de Belo Horizonte, mas, também, por escritórios internacionais, são imagens cada vez mais tecnologicamente sofisticadas, mas profundamente falsificadas, e têm um forte poder no discurso de exclusão. Em termos jurídicos essas imagens são extremamente danosas. Isso volta àquele ponto da responsabilidade do arquiteto e urbanista na produção desse padrão de cidade cada vez mais mercantilizado. Roberto Andrés: Sobre a questão da imagem: quando as imagens são reapropriadas dentro de uma intenção artística, se podemos dizer assim, e que inserem certo viés crítico que evidencia o que o Edésio disse. Como são absurdas algumas dessas imagens, e as utopias ou distopias que elas significam, que são também ensinadas nas escolas de arquitetura... Felipe falou sobre os “rolezinhos”. Se atualizarmos ou fizermos um comparativo com a prática artística, é como se os jovens de periferia, sem nenhuma intenção de que isso signifique uma prática artística, fizessem um happening que consiste, simplesmente pelo fato de serem de periferia e do universo do funk e do hip hop, em ir para um shopping center e andar. É uma certa deriva! E só o fato de eles andarem pelo shopping gera um estardalhaço social, a polícia é mobilizada, e eles não fazem nada, só andam pelo shopping e saem. Isso tem uma potência que acho similar a quando os jovens queimam as concessionárias de carro dentro de toda uma discussão de mobilidade urbana, e de o Cildo Meireles ter queimado as galinhas nos anos 1970, já com outra intenção. Queria provocar o Stéphane e, talvez, o Felipe com esses paralelos.

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Felipe Magalhães: Acho que existe um paralelo com as manifestações que vêm acontecendo em Belo Horizonte, como a Praia da Estação, o próprio carnaval, o Duelo de MCs, e, agora, a ocupação Luiz Estrela, que tem uma dimensão estética importante. Não sei se esse pessoal está preocupado se os críticos vão achar que é arte ou não, ou se está instrumentalizado ou não. Mas talvez o “rolezinho” seja uma forma bem mais radical e efetiva desse tipo de ensaio. Um grupo que representa uma espécie de alteridade da cidade neoliberal, com seu outro constituinte que são esses grupos que se manifestam e produzem espaço, heterotopias de formas interessantes. E em uma dimensão que é extremamente pertinente frente ao diagnóstico crítico único que é o enfraquecimento do espaço público. Qualquer um que participou da Praia da Estação desde o seu início sabe que esse é o eixo principal. O enclave fortificado é a total negação do espaço público. Renata Marquez: Acho que podemos voltar à minha provocação ao Frederico Morais, na conversa aberta que fizemos com ele. Falei da dificuldade de falar de intervenção urbana depois das experiências recentes das manifestações e ocupações populares. Como falarmos de intervenção urbana depois das últimas potências experimentadas por qualquer um e por todos? Da indistinção notada entre artista e cidadão? Foi ótimo porque Frederico buscou uma citação da época da exposição dele de 1970 quando tinham o mesmo dilema. Como os artistas poderiam fazer as mesmas ações depois de maio de 1968? Achei interessante esse paralelo porque poderíamos falar que houve um enfraquecimento da arte nessas ocasiões, mas penso justamente o contrário. A experiência que antes pertencia ao discurso estético da arte, como, por exemplo, os happenings, as derivas, a experiência urbana de ver a cidade de outra maneira, de perceber um imaginário novo borbulhante, de mudar a visibilidade do real – termos da arte –,

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ou mesmo se pensarmos na estética relacional e sua proposta de coletividades instantâneas e ensaios de sociabilidade, tudo isso nós temos experimentado nessas ocupações e manifestações na cidade. Quem não andou para o Mineirão ao longo da Av. Antônio Carlos pensando em como a cidade seria muito melhor com as pessoas no lugar dos carros sobre os viadutos? Experimentou-se ordinariamente um deslocamento de ponto de vista que era historicamente função da arte. Então, quando falo de indistinção não é no sentido de “então a arte não serve mais para nada”, mas, ao contrário, é a vitória da estética atuando cotidianamente na sensibilidade das pessoas. Wellington Cançado: Há uma coisa que eu queria retomar da fala do Stéphane a partir da cidade como criação coletiva proposta por Edésio. Depois de ouvir esses diversos pontos de vista aqui, penso nesse retorno às décadas de 1960/70, e na instrumentalização da arte. Voltando à instrumentalização das imagens, penso na história da própria Sacolândia, na série de Marcel Gautherot. Quando Gautherot fotografa a Sacolândia, em Brasília, na verdade ele vem convidado pelo próprio Juscelino para fotografar não a Sacolândia, mas a inauguração da capital. Mas fica tão impressionado com uma favela dentro do plano piloto, construída com sacos de cimento da própria construção da cidade, que fotografa a Sacolândia e tenta fazer um livro sobre ela, sem sucesso. Penso na instrumentalização da arte não só no momento atual, mas nesse momento específico de Brasília. E como, 50 anos depois, podemos enxergar as imagens de Gautherot com a abertura que acho que Stéphane reivindica para elas, não instrumental, mas que, em determinado momento, estavam ali instrumentalizadas por uma força política direta. E, pensando nessa história da criação coletiva que o Edésio colocou, como hoje reivindicamos a cidade como criação coletiva? Talvez fosse uma espécie de criação artística, um campo expandindo radical, se pensarmos a partir do ponto de vista do discurso artístico das décadas de 1960/70. Será que, sobre essa cidade como criação coletiva reivindicada pelo Edésio, poderíamos voltar atrás para pensar a sua genealogia estética? Roberto Andrés: Até o Frederico Morais, na fala dele, disse que eles pensavam o museu como projeto piloto de cidade. Stéphane Huchet: Como historiador da arte, concordo plenamente que esse tipo de manifestação coletiva tem caráter muito capilar. Quem organiza esse tipo de manifestação às vezes nem ouviu falar dos artistas dos anos 1960 e 1970, do neoconcretismom por exemplo. É uma forma de difusão capilar de certa energia profunda de corpo social que acaba de fato realizando programas quase utópicos, semeados há 50 anos pelos próprios artistas. Concordo que, para entender uma pequena parte da significação social desses movimentos, não podemos desvincular certas revoluções que propuseram ideias, eu diria mais estéticas do que artísticas. Quando se usa a expressão “sensibilidades espaciais ou urbanas”, tudo isso remete a uma dimensão

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estética, que não é estetização, evidentemente, mas que é o sentido literal da expressão, diz respeito ao corpo, aos sentidos, que talvez fossem monopólio das artes visuais durante séculos e que adquiriram uma autonomia total. Com as manifestações estéticas que se liberaram da dependência da arte, concordo que essas categorias começam a se tornar um pouco improdutivas para conseguir abarcar sua complexidade. Entendo perfeitamente quando Renata fala de indistinção, mas, ao mesmo tempo, você não pode deixar de ver que a indistinção entre artista e cidadão na fala de vocês foi justamente levantada como palavra de ordem pelos artistas do século XX: não são questões de políticos, não vêm da ciência política, dos sociólogos, dos antropólogos, dos economistas ou dos padres, vêm dos artistas mesmo. Então é claro que, quando insisto sobre a matriz artística que vem atrás dessas manifestações, é porque elas vem dar um eco, uma prolongação sintomática de questões que foram debatidas durante décadas dentro das artes plásticas. Fernanda Regaldo: Então você diz que dentro das artes plásticas existe a elaboração desse discurso da ruptura? Stéphane Huchet: Exatamente. É um fato histórico. Não quero parecer reacionário, tratando das questões dessa dinâmica como sendo o substrato, o motivo principal de uma exposição feita de imagens, fotografias e vídeos. Por que fico batendo nessa tecla? Porque, senão, bastaria viver, se expor, simplesmente se exprimir espontaneamente sem investir no recurso artístico. Realmente, como crítico de arte, penso que seria uma pena esquecer que há uma exposição aqui que vai ser vista por milhares de pessoas. O que há dentro não pode ser apenas um veículo de uma mensagem transparente sobre certo estado de crise da modernidade urbana, há também a força das próprias imagens. E uma imagem não é apenas alguma mensagem, realmente não acredito nisso. Fernanda Regaldo: Sobre essa elaboração discursiva presente na arte, a capacidade de organizar e categorizar algum tipo de ação, dentro da história de “rolezinho”, lembro-me de algumas questões de antes de junho, como, por exemplo, o que ocorreu com o PCC. Acho que o líder do PCC no Rio tinha sido preso e soltaram a voz de que o Rio ia fechar, foi um feriado geral, a favela fez a cidade fechar! Para mim, isso é um movimento tão grande de expressividade, um movimento dos líderes do tráfico que fez a cidade fechar por conta disso. O comércio não abriu. Se pensarmos a partir da questão do que são essas rupturas e olhar esse fato a partir da arte, creio que há uma elaboração discursiva do entendimento da cultura e do sensível. Pensando nessa ruptura, acho que a questão do PCC tem um forte caráter de expressividade, de como isso é completamente quebrado ou subvertido no jogo quase artístico, e que é, mas não é artístico porque em momento algum se coloca como prática artística.

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Stéphane Huchet: Não sendo brasileiro, é possível que eu seja um pouco menos envolvido. Acho que, nos movimentos de junho de 2013, há uma manifestação de festa mesmo, algo que na história remonta muito longe no tempo, a certa festa medieval, certa inversão dos valores, sobretudo à festa revolucionária. Todos os principais movimentos políticos na França passaram por esse tipo de dinâmica social, de agrupamento de pessoas que iam reivindicar e quebravam a ordem vigente. As manifestações tiveram muito a ver com isso e refletiram um déficit democrático enorme e evidente na sociedade brasileira. Tenho 17 anos de Brasil e foi a primeira vez que vi massas na rua e tamanha mobilização. Isso realmente tem um impacto imenso. Edésio Fernandes: Acho que o desafio colocado hoje, que é um problema que nunca foi enfrentado no Brasil com sucesso, é a constituição de uma ordem pública que não se reduz a uma ordem estatal. Gosto sempre de lembrar a ideia do baldio. Todo mundo imediatamente pensa na malha abandonada, no espaço de pelada de futebol, uma área de ninguém. Quando, na verdade, o baldio é um instituto crítico político, no caso do direito português herdado pelo Brasil, que não é uma área nem do Estado nem do indivíduo. É uma área da comunidade. Ele constitui a mesma coisa que o common do direito inglês. Você tem essa expressão desse vazio na história política brasileira de constituição dessa ordem que é coletiva, é pública. Ela não se reduz à estatal, não é individual. Quer dizer, ela não é o lugar da rua, nem o lugar da casa, é o lugar da calçada, do passeio. Até hoje há uma dificuldade dos municípios brasileiros em criar o estatuto jurídico do passeio. De quem é a responsabilidade pela calçada, pela manutenção, pelo buraco no passeio? Não enfrentamos essas questões. A constituição brasileira cunhou essa expressão que até hoje não foi enfrentada por ninguém – filósofos, cientistas políticos, juristas, urbanistas –, a função social da cidade. Quando muito, trabalhamos com a função social

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da propriedade, e isso já é um desafio. E a função social da cidade? Entender que a cidade é uma entidade com natureza própria e coletiva, que tem que cumprir uma função social. Como construir, ocupar, reclamar esse espaço? Eu acho que esse é o grande desafio. A arte tem um lugar central em colocar tensão e propor estratégias de compreensão. Paola Berenstein Jacques trabalha a morfologia, a plasticidade e a construção do espaço nas favelas a partir da obra do Hélio Oiticica. Muita coisa da interação e da autoria coletiva são pistas interessantes. Mas o meu argumento é no sentido de colocar também essa moldura na discussão para compreender que, a partir dessa noção, a gente pode buscar outra. De direito à cidade, de direitos coletivos, de gestão participativa, de distribuição de custos, de captura de mais-valia, outro grande desafio do urbanismo brasileiro. Enfim, criar outro pacto sociopolítico que tenha outra distribuição socioterritorial. Eu acho que tudo isso cabe nessa moldura da cidade como criação coletiva. Mas esse é só um começo de conversa. Felipe Magalhães: Queria retomar a questão das escolas de arquitetura e seu envolvimento com a cidade. O hiato de 15 anos que Edésio comentou foi produto do envolvimento de pessoas inseridas na universidade. Recentemente trabalhei no Núcleo de Planejamento Urbano da prefeitura, num período, digamos, logo antes da entrega de bandeja, que foi uma transição de governo. Até aquele momento havia um envolvimento muito grande com a academia e com a tentativa de fazer outras formas de planejamento urbano. No Canadá, onde estou agora, vejo que o envolvimento deles com o mundo fora da torre de marfim da universidade é muito menor que o nosso no Brasil. Talvez seja necessário criar novas formas de retomar o hiato. Acho que existe um tema contemporâneo pertinente para pensar o planejamento que é a questão do comum. Você falou sobre os commons, Edésio, e sobre as formas de cerceamento que a neoliberalização do

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espaço promove, e de como a noção do que é público vai variando ao longo da história. O que estamos vivendo agora é certa aproximação intensa entre o público e o capital, o público, como aquilo que é do Estado, e o Estado atuando de forma muito ligada a interesses do próprio mercado. Então, a noção do que é o público se altera bastante do que foi durante esse hiato e a pertinência do conceito do comum aumenta. O comum é aquilo que é de todos. É o bem comum e o Estado não têm nada com isso. Roberto Andrés: Talvez esse baldio citado por Edésio, lugar que não é de ninguém e que pode ser apropriado, seja o terreno da arte, não é? Felipe Magalhães: Acho que, sem dúvida, existe uma ligação do comum com a arte. O Duelo de MCs, por exemplo, é uma manifestação fortíssima do comum. E o comum é isso, são as pessoas indo para lá, se apropriando do espaço e criando uma coisa que tem uma dimensão estética e subjetiva fundamental. Isso tem, sem dúvida, uma inserção da arte, além de uma dimensão política indissociável. Stéphane Huchet: Eu gostaria de evitar finalizar com um discurso de político. O que escutei de urbanistas na Escola de Arquitetura é um discurso tecnocrático, que mostra sempre um olhar de sobrevoo sobre certo espaço, raramente com uma inserção concreta das condições de vida das pessoas. O urbanista é como um general que organiza uma batalha. Ele trabalha com mapas e desloca as peças como em um tabuleiro estratégico. Essa é uma ferramenta excelente mesmo para prestar serviço ao poder político. O Edésio criticou o Estado, mas eu diria que existem tradições históricas na função do Estado que não são as mesmas em qualquer parte do mundo. Em outros países, “Estado” não quer dizer a mesma coisa. Aqui, por Estado, entendemos força de repressão, força

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hegemônica. Mas, ao mesmo tempo, o Estado é constituído também de pessoas. Pode parecer ingênuo falar assim, mas ele não é só uma máquina fria – de fato as pessoas que trabalham nele interiorizam os mecanismos da máquina. Mas, ao mesmo tempo, o funcionário público sai de certa formação. Aqui, sem querer acabar com uma fala de político, que promete maravilhas para o mundo, penso que a função do professor é despertar o espírito crítico. Podemos mudar o Estado lentamente. O problema de nossos colegas é que muitos são complacentes e extremamente inertes. Wellington Cançado: A questão do comum surgiu em várias conversas que fizemos. Uma das questões que colocamos é de certo protagonismo dessa ideia do comum em detrimento de uma ideia de público. Acho que tem muito a ver com pensar o Estado como outra coisa. Vivemos um momento interessante que é a reivindicação do comum, ao mesmo tempo desistindo do público. Falando “a gente não tem espaços públicos, o Estado é uma força repressiva”, e, ao mesmo tempo, surge um novo conceito que é o comum. Mas funciona como se a gente queimasse etapas nesse sentido. Quer dizer, nunca seremos capazes de forjar um espaço público, uma esfera pública que seja realmente forte e contundente e que não seja repressiva? Stéphane Huchet: Eu acho que, no Brasil, público quer, muitas vezes, dizer reflexo de interesses privados. A renovação desse conceito de público é um grande desafio, mas é bem possível que tenha que partir do comum mesmo. A noção de poder público é uma noção completamente desgastada. Wellington Cançado: Do ponto de vista do comum, talvez valesse a pena voltar ao momento específico de pensar nas sociedades contra o Estado (citando o livro de Pierre Clastres). Qual era a ideia deles de comum e de público, que talvez

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não seja nenhum desses dois termos, nem comum e nem público? Qual seria a ideia deles de sociedade e de Estado? Para talvez buscar uma ideia de coletividade e comunhão. O Edésio trouxe o termo baldio do ponto de vista jurídico que é incrível. Essa interpretação jurídica ocupa um lugar que talvez nem o público nem o comum sejam capazes de preencher. Felipe Magalhães: Concordo plenamente com sua crítica a respeito do comum virando as costas para o público. Existe uma linha muito forte aí, muito em cima dos trabalhos do Michael Hardt e do Toni Negri, de que é um projeto de consumo do comum a partir da rota de fuga e da construção de alternativas que vão minando e esvaziando o capital junto com o Estado capitalista. Acho que isso é importante, mas não pode vir separado de uma dimensão que está ligada a uma democracia radical, de transformar o Estado, de democratizar a democracia, nos termos do Boaventura de Souza Santos. Essas duas coisas têm que vir juntas e precisam ser complementares, porque simplesmente insistir nessa via de virar as costas, fugir e construir outra coisa por fora, está fazendo um grande favor, está deixando a avenida aberta para quem precisa continuar aprofundando a simbiose entre Estado e capital. Sobre Pierre Clastres, acho que hoje o Estado é onipresente, pensando no contexto do lugar onde estou, que tem um Estado forte. Essa dimensão da fuga é muito limitada por isso, pela onipresença do Estado, as coisas não fogem do controle, é muito difícil fazer o que foi feito na história da transição do feudalismo para o capitalismo. Voltando lá atrás, existia uma rota de fuga da burguesia nascente em direção à cidade, aquela história de que o ar da cidade liberta. Hoje, pensando na dimensão territorial disso, não existe mais esse território para fuga. Se o Estado não gostar, ele vai lá reprimir. É só conversar com gente que trabalha com economia informal há muito tempo nas grandes cidades brasileiras, que sabe muito bem que na época em que a economia está crescendo, e que existe uma demanda por mão de obra grande, a polícia chega reprimindo, porque você não pode ser camelô. Enfim, acho que essas duas coisas deveriam andar juntas: a construção do comum e, ao mesmo tempo, o projeto de transformar o público, de torná-lo democrático de fato. *** Alícia Penna: Como só pude entrar na conversa depois de ela ter acontecido, achei melhor não me intrometer, mas partir do que foi conversado. Como vou escrever e não falar, para não ficar injusto, vou escrevendo pelos cotovelos, sem direito a revisão. Vou começar pela exposição, o que não quer dizer que vá deixar de lado ou para trás a questão urbana. Vou falar de alguns trabalhos. O primeiro, o mais memorável talvez: o do Milton Machado. Por que esse trabalho em primeiro lugar? Porque ele evidencia, acho, as relações entre arte e realidade, arte e alienação, arte e revolução pelas quais a conversa passou e por onde também vou passar. Então, aquele trabalho (como pude me esquecer do nome dele? Talvez ele seja tão forte que dispense o nome. Não há, por

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Você não enxerga o que eu não vejo Eduardo Coimbra, André Weller e David Pacheco, 2013


outro lado, trabalhos de arte que são puro nome?) me desloca da realidade ao mesmo tempo em que me faz pensar sobre ela, e o faz com a crueldade de um menino. Mais ou menos assim: nós, falíveis, imperfeitos ou propensos mesmo ao erro, nunca seremos capazes de criar um mundo imediatamente fruto de um plano, por mais cuidadoso, minucioso que seja ele e, no entanto o “outro -mundo” está lá, naquele trabalho, concebido por um único homem, sozinho como um autor, tim-tim por tim-tim, sob o vidro meio aquário, inabitável, claro, mas nele mergulhamos como “outros-seres”, esperançosos inclusive, gozosos até, dessa condição. Pulo agora para as fotos do Wilson Baptista, este pai de muitos olhares. E pensar que a Avenida Amazonas foi construída, hein? Não nasceu o mundo assim, asfaltado e engarrafado, mas foi feito: a mão, a corpo, a manilhas gigantescas, faroestemente. É ótimo poder ver o que esteve ali antes. O terreno cortado em fatias ainda era terra, quase sem lei. Viram? Depois dali, já sabemos (em qual vantagem em relação aos que estiveram ali noutro século, como documentam a foto e seu impressionante fotógrafo, que atravessou mais de um?), vieram a Cidade Industrial – na outra ponta, em relação à nova ponta Praça Sete, não mais Bar do Ponto – e, logo, as Centrais Elétricas de Minas Gerais, que finalmente puseram a funcionar as chaminés e aquelas que seriam as primeiras periferias, na nossa primeira metropolização. Que condição operária era aquela? Indagamos diante dos modelos em “quase-pose”, “quase-autores” daquela obra de arte (assim se nomeiam também as grandes obras de engenharia), que assim nos respondem. Diferentemente das fotos publicitárias de linhas verdes e amarelas, nessa há terra e gente – carne, vou exagerar –, e, não desenho, abstração. Caio agora no escombro da Sara Lambranho, de cuja história eu pude saber, mas não quero, não quero mesmo, teimosamente, saber, no exato momento em que vejo o escombro no chão do Palácio das Artes e penso, vermelha: a ruína venceu a construção. A fabricação do escombro o escombro já a havia contado, de tal forma que não, não preciso do vídeo, e, menos ainda, menos do que zero, daquela chama-depois-fumaça do vídeo sobre/ das manifestações de junho-julho. Já????????????????? Já saímos da rua para entrar no Palácio? O que é que é isso? Apressar a imagem – congelada, congelada – esfria o que está vivo, bem vivo! Em vez disso, proponho: depositemos nossos IPTUs em juízo, pois não é esta a cidade pela qual devo e quero pagar com o meu trabalho de... urbanista. Pausa. Peço licença para citar Marcuse de Contra-revolução e revolta, literalmente. Antes, pergunto o seguinte sobre os situacionistas: a deriva não foi tecnificação, pro-ce-di-men-to do que um dia foi encontro, confronto, deslocamento entre existências concretas, como escreveu (e sei de cor, então, não é injustiça em relação aos que entraram na conversa falando, e não escrevendo ou lendo) o Lefebvre? Indo agora em direção ao Marcuse, pedida a licença. Não, arte não é revolução. “A arte conserva aquela alienação da realidade estabelecida que está na origem da arte. É uma segunda alienação”. Mais: “A relação entre arte e revolução é uma unidade de opostos, uma unidade antagônica. A arte obedece a uma necessidade e tem uma liberdade que lhe é própria – não a da revolução. Arte e revolução estão unidas em ‘mudar o mundo’ – libertação. Mas, em sua prática, a arte não abandona as suas

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próprias exigências nem abdica de sua dimensão: permanece não operacional”. Ou: “A abolição da forma estética, a noção de que a arte podia se tornar uma parte componente da praxis revolucionária (e pré-revolucionária) até que, sob o socialismo plenamente desenvolvido, fosse adequadamente traduzida em realidade (ou absorvida pela ‘ciência’) – essa noção é falsa e opressiva: significaria o fim da arte”. Significaria a realização do “outro-mundo” do Milton Machado, o cessar do desejável, o inabitável! Dito de outra forma por uma das diretoras de 5 x favela – agora por nós mesmos: “Não quero ser reconhecida como cineasta da favela, mas como cineasta”. E, no entanto, pude apurar enquanto escrevia uma tese, muitos estudiosos das favelas no Brasil, os mais clássicos, se esforçaram para torná-las defensáveis porque nelas moram trabalhadores! Seriam defensáveis por abrigarem artistas? Por abrigarem revolucionários? Que diabos de carga despejamos sobre os ombros dos pobres – nas favelas ou fora delas! Atrás de que, classe média, subimos Baile Funk e descemos Zona Sul? Temos, nós próprios, classes médias, um projeto outro de cidade, de vida? Ao visitar as “ocupações urbanas” em curso em Belo Horizonte, decepcionei-me com o “cada qual-cada lote” que comanda o parcelamento do solo! Mas é dali, onde o solo não pode definitivamente ser como o da indefensável (para quem ataca) favela, que eu esperava outro desenho? E que diabos de carga sobre os ombros dos urbanistas que, não, não são de um urbanismo só, e nem mesmo numa escola só, num mesmo governo, sob o mesmo capital, e nem respondem, únicos e sozinhos (como autores) pela cidade? Pergunto, então, aproveitando a deixa do Edésio: “quem não leva em conta outras formas comunitárias de produção” da cidade? A esse respeito e a respeito da cartografia, esse instrumento, sim, de abstrair o espaço (a começar pelas abstratas categorias de que parte!), vale saber o que andam falando e fazendo os cartógrafos da ação social. E vale, como venho insistindo, começarmos – alguns professores, ao menos, e seus cada vez mais incontáveis alunos, pelo menos nas escolas privadas – a contar a história da nossa urbanização não pela ordem do planejamento urbano, mas pela sua contraordem. Só para ilustrar, a periodização adotada para essa história sempre foi baseada na política ou na economia e não no espaço, assim também e, mais uma vez, abstraído. O que não quer dizer, como bem colocou o Felipe, que o mundo vá ser salvo por essa outra história – concreta, digamos assim. O mundo já é bem isso que está aí.

PÁGINAS 322-337 Estudos preliminares da série História do Futuro Milton Machado, 1978, obra em progresso, versão 2013

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UTOPIA (JK) 2001 - 2013 Angela Detanico e Rafael Lain







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B

C

D

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LISTA DE OBRAS ESCAVAR O FUTURO Curadoria: Felipe Scovino e Renata Marquez 10 de dezembro de 2013 a 02 de fevereiro de 2014 Palácio das Artes, Centro de Arte Contemporânea e Fotografia, Parque Municipal Américo Renné Giannetti, Avenida Afonso Pena



André Komatsu O estado das coisas 2 (três poderes), 2011

André Komatsu Choque de ordem 2, 2013

Objeto Cortesia: Galeria Vermelho

Objeto Cortesia: Galeria Vermelho

Angela Detanico e Rafael Lain Utopia (JK), 2001-2013

Carmela Gross Se vende, 2008

Plotagem Cortesia: Galeria Vermelho

Objeto Cortesia: Galeria Vermelho

Cinthia Marcelle Automóvel, 2012

Cinthia Marcelle e Tiago Mata Machado O século, 2011

Audiovisual 7 min 11 seg Cortesia: Galeria Vermelho

Audiovisual 9 min 37 seg Cortesia: Galeria Vermelho



Claudia Andujar Rua Direita, c. 1970

Daniel Carneiro Os Brutos , 2013 > obra em progresso

São Paulo, SP Fotografia, negativo flexível Coleção Inhotim

Belo Horizonte, MG Videoinstalação Tempos variáveis Vídeos de Breno Farhat, Cardes Amâncio, Cebolose, Cili, Clarice Steinmüller, Cris Araújo, Daniel Carneiro, Diedro Pelão, Fabiana Leite, Fernando Soares, João Grilo, Joviano Mayer, Marcelo Duarte, Maria Objetiva, Matheus Roedel, Nara Torres, Nelson Pombo Jr., Philippe Urvoy, Priscila Musa, Renata Leite, Renato Gaia, Sílvia Herval

Eduardo Coimbra, André Weller e David Pacheco Você não enxerga o que eu não vejo , 2013

Fernando Ancil e Marco Scarassatti Rio, 2013

Audiovisual 17 min 32 seg Coleção dos artistas

Av. Afonso Pena, Belo Horizonte, MG Instalação sonora Coleção dos artistas

Graziela Kunsch Excertos do Projeto Mutirão, 1996 - 2004 - 2005 - 2006 - 2008 - 2009 - 2010 - 2011 - 2013 > obra em progresso

Guga Ferraz Até onde o mar vinha, até onde o Rio ia, 2010 Rio de Janeiro, RJ Fotografia Coleção do artista

Audiovisual Tempos variáveis Coleção pública

Céu, 2012 Rio de Janeiro, RJ Fotografia Cortesia: A Gentil Carioca



Guga Ferraz Limousine, 2003 Adesivo sobre impressão Ônibus, 2003 Adesivo sobre placa

João Castilho Erupção , 2013 Videoinstalação 4 min 23 seg Coleção do artista

Pedestre, 2003 Adesivo sobre placa Cortesia: A Gentil Carioca

León Ferrari Autopista del Sur, 1982/2007 Passarelas, 1981/2007 Rond Point II, 1981/2007 Cruces, 1983/2007 Gente, c. 1983/2007 Cidade, 1980/2007 Cópias heliográficas Coleção Museu de Arte Moderna de São Paulo

Marcel Gautherot Moradia nos arredores da cidade, c. 1959 Sacolândia, Brasília, DF Fotografia, negativo flexível Coleção Instituto Moreira Salles

Luiza Baldan Sem título I Sem título II Sem título III (série Natal no Minhocão), 2009 Pedregulho, Rio de Janeiro, RJ Fotografia Coleção da artista

Mauro Restiffe Empossamento #1a Empossamento #1b Empossamento #1c Empossamento #1d Empossamento #1e Empossamento #1f Empossamento #7, 2003 Fotografia Cortesia: Galeria Fortes Vilaça



Milton Machado História do Futuro, 1978, obra em progresso, versão 2013

Patrícia Azevedo Santos Sujos: retrato do vazio, 1998-2002

Texto Descritivo, 14 desenhos, Lápis sobre papel, 1978 inkjet sobre papel de algodão Nômade, Escultura, 2010 20 estudos preliminares, Gravura, 2012 Inkjet sobre papel de algodão Módulo de Destruição na Posição Alfa, Fotografia, Gibellina, Itália, 1990-91 Nômade, Fotografia, Gibellina, Itália, 1990-91 Coleção do artista

Impressão de fotograma Coleção da artista

Paulo Nazareth L’arbre de l’oublie Ipê Amarelo Cine África Cine Brasil, 2013

Pedro Motta Fachada Cega, 2003-2004 Fotografia Coleção do artista

Benin / Brasil Vídeo em loop Coleção do artista

Projeto Convivência e Ancestralidade no ˜ ˜ Maxakali território Tikmu’un Cosmopista Maxakali-Pataxó, 2013 > obra em progresso Minas Gerais / Bahia Audiovisual 1 h 55 min Toninho Maxakali, Manuel Damasio Maxakali, Mamei Maxakali, Marilton Maxakali, Josemar Maxakali, Alessandro Pataxó, Arauê Pataxó, Adriana Maxakali, Juninha Maxakali, Zé Antoninho Maxakali, Derli Maxakali, Rosângela Pereira de Tugny, Bruno Vasconcelos e Ricardo Jamal Apoio: ProExt MinC

Sara Lambranho O peso de uma casa, 2013 Instalação e vídeo Vídeo 25 min, Edição: Luiz O. Froiid Design de som: Thelmo Cristovam Agradecimentos: Laís Grossi, Margarete Leta, Floriscena Carneiro da Silva, Leonardo de Oliveira, Joaquim Machado, Marcelo XY, Douglas Silva, Cleber Rodrigues, Marlon Dias, Breno Silva, Ilza M. Loreano, Carlito Antônio da Silva, Douglas Pego, Frederico Cavalcante, Luísa Horta, Sylvia Amélia Coleção da artista



Vitor Cesar Centro Cultural, 2009

Vitor Cesar Recepção, 2013

Neon Coleção do artista

Instalação Coleção do artista

Wilson Baptista Abertura da Avenida Amazonas, 1941

Zé do Poço Não tem coisa mais feia do que mudança de pobre num caminhão Chevrolet, 1997

Belo Horizonte, MG Fotografia, negativo flexível Coleção do artista

Belo Horizonte, MG Videoclipe 5 min 52 seg Coleção do artista




ADRIANA MAXAKALI Participante do Projeto Convivência e Ancestralidade no Território Maxakali ALESSANDRO BORSAGLI Geógrafo pela PUC-MG e criador do blog curraldelrei.blogspot.com.br ALESSANDRO PATAXÓ Aluno do curso de licenciatura indígena da UFMG e artista plástico ALÍCIA PENNA Ensaista, arquiteta e urbanista, é professora do Curso de Arquitetura da PUC-MG ANDRÉ KOMATSU Artista plástico pela FAAP, São Paulo ANDRÉ WELLER Cineasta e curador no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro ANGELA DETANICO E RAFAEL LAIN Artistas, respectivamente linguista e tipógrafo de formação [www.detanicolain.com] ARAUÊ PATAXÓ Pescador pataxó, participante do Projeto Convivência e Ancestralidade no Território Maxakali ÁUREA CAROLINA Mestranda em Ciência Política na UFMG e atua no Fórum das Juventudes de Belo Horizonte BRENO FARHAT Operador e assistente de câmera freelancer, artista participante da mostra Os Brutos BRUNO VASCONCELOS Cineasta e membro da Associação Filmes de Quintal e do Forumdoc.bh CARDES AMÂNCIO Roteirista, diretor, produtor e curador audiovisual, é mestre em estudos de linguagens CARMELA GROSS Artista plástica pela FAAP, São Paulo, é professora da ECA-USP [www.carmelagross.com.br]. CEBOLOSE Artista participante da mostra Os Brutos CILI Artista participante da mostra Os Brutos CECÍLIA REIS Arquiteta e urbanista e mestranda na UFMG, atua no programa Cidade e Alteridade e no PRAXIS CINTHIA MARCELLE Artista plástica pela UFMG [vimeo.com/cimarcelle] CLARICE STEINMÜLLER Artista, graduou-se em Comunicação Social e cursa Artes Plásticas na Escola Guignard CLÁUDIA ANDUJAR Fotógrafa nascida na Suíça, criada na Hungria e emigrada para o Brasil em 1955 CRISTiANO ARAÚJO Artista participante da mostra Os Brutos, cursa o 3º ano do ensino médio DANIEL CARNEIRO Diretor, editor e roteirista, é idealizador da mostra Os Brutos [georgettezonamuda.wordpress.com] DANIEL IGLESIAS Fotógrafo formado em Comunicação Social pela UFMG, registrou Escavar o Futuro DERECO (CIDADÃO COMUM) Artista urbano e MC, estuda na Escola de Belas Artes da UFMG DERLI MAXAKALI Participante do Projeto Convivência e Ancestralidade no Território Maxakali DIEDRO PELÃO Artista participante da mostra Os Brutos EDÉSIO FERNANDES Doutor em Direito (Warwick University), é escritor, professor, pesquisador e consultor EDUARDO COIMBRA Artista, foi um dos editores da revista Item, no Rio de Janeiro FABIANA LEITE Formada em Direito e trabalha na ONG Oficina de Imagens de Belo Horizonte FELIPE MAGALHÃES Economista, mestre e doutorando em Geografia pela UFMG FELIPE SCOVINO Professor da Escola de Belas Artes da UFRJ e curador independente FERNANDO ANCIL Artista visual pela UFMG [fernandoancil.wordpress.com] FERNANDO SOARES Artista participante da mostra Os Brutos e estudante de Arquitetura e Urbanismo na UFMG FLORA RAJÃO Fotógrafa e estudante de Arquitetura e Urbanismo na UFMG FLORISCENA DA SILVA Professora, mestre em Educação pela UEMG, moradora do Aglomerado da Serra FREDERICO MORAIS Foi curador das exposições Do Corpo à Terra e Objeto e Participação, em Belo Horizonte (1970) GRAZIELA KUNSCH Artista, editora da revista Urbânia, membro do Usina e doutoranda na ECA-USP GUGA FERRAZ Artista visual graduado em Escultura pela UFRJ GUSTAVO BONES Licenciado em Teatro pela UFMG, é um dos fundadores do grupo Espanca! GUTO BORGES Mestre em história pela UFMG, é músico e fundador de diversos blocos de carnaval em Belo Horizonte IZABEL MELO Arquiteta e Urbanista, trabalha na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte JOÃO CASTILHO Fotógrafo, é Mestre em Artes Visuais pela UFMG [www.joaocastilho.net] JOÃO GRILO Artista participante da mostra Os Brutos JOÃO LUIZ DA SILVA DIAS Pesquisador no Instituto da Mobilidade Sustentável, foi diretor da BHTRANS


JOSEMAR MAXAKALI Participante do Projeto Convivência e Ancestralidade no Território Maxakali JOVIANO MAYER Advogado popular e mestrando em Arquitetura e Urbanismo na UFMG JUNINHA MAXAKALI Participante do Projeto Convivência e Ancestralidade no Território Maxakali LEÓN FERRARI Artista argentino falecido em 2013 aos 92 anos LUIZA BALDAN Fotógrafa e mestre em Artes [www.luizabaldan.com] MAMEI MAXAKALI Participante do Projeto Convivência e Ancestralidade no Território Maxakali MANUEL DAMASIO MAXAKALI Participante do Projeto Convivência e Ancestralidade no Território Maxakali MARCEL GAUTHEROT Fotógrafo francês, mudou-se para o Rio de Janeiro em 1940 MARCELO CASTRO Graduado em Teatro pela UFMG, é um dos fundadores do grupo Espanca! MARCELO DUARTE Artista participante da mostra Os Brutos. MARCO SCARASSATTI Compositor, artista sonoro e professor de Prática do Ensino de Música na UFMG. MARGARETE LETA Arquiteta e urbanista, professora da UFMG e da PUC-MG. MARIA OBJETIVA Coletivo midialivrista-ativista do cenário audiovisual, literário e fotográfico de Belo Horizonte MARILTON MAXAKALI Participante do Projeto Convivência e Ancestralidade no Território Maxakali MATHEUS ROEDEL Artista participante da mostra Os Brutos, é mestre em Literatura Brasileira pela UFMG MAURO RESTIFFE Fotógrafo, estudou na FAAP e no International Center of Photography, em Nova York MILTON MACHADO Artista, arquiteto e escritor, é professor da Escola de Belas Artes da UFRJ NARA TORRES Artista e música, estudou Comunicação Social na UFMG NELSON POMBO JR. Artista licenciado em Educação Artística pela UEMG, midialivrista e ativista PATRÍCIA AZEVEDO Artista com formação em filosofia, é professora na Escola de Belas Artes da UFMG PAULO NAZARETH Artista, bacharel em desenho e gravura pela UFMG PEDRO MOTTA Fotógrafo, formado em desenho pela UFMG [www.pedromotta.net] PISEAGRAMA Plataforma editorial para espaços públicos: existentes, urgentes, imaginários [www.piseagrama.org] PHILIPPE URVOY Artista participante da mostra Os Brutos PRISCILA MUSA Arquiteta e integrante do Espaço Comum Luiz Estrela e do Baixo Bahia Futebol Social RAFAEL BARROS Antropólogo e membro do Espaço Comum Luiz Estrela, da Ass. Filmes de Quintal e do forumdoc.bh RENATA LEITE Artista participante da mostra Os Brutos RENATA MARQUEZ Professora de Análise Crítica da Arte na UFMG e editora de PISEAGRAMA [www.geografiaportatil.org] RENATO GAIA Artista participante da mostra Os Brutos RICARDO JAMAL Pesquisador e violonista, integra o quarteto de violões Corda Nova RITA VELLOSO Arquiteta e professora da Escola de Arquitetura da UFMG e da PUC-MG ROBERTO ANDRÉS Arquiteto, professor da UFMG e editor de PISEAGRAMA RONALDO SILVA Funcionário da SLU, propositor do Recanto Horta da Serra, no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte ROSÂNGELA DE TUGNY Etnomusicóloga e professora da UFMG SARA LAMBRANHO Artista pela Escola Guignard e Designer Gráfica pela Escola Panamericana de Artes SÍLVIA HERVAL Arquiteta e artista participante da mostra Os Brutos STÉPHANE HUCHET Historiador, professor da UFMG e membro do Comitê Brasileiro de História da Arte TIAGO MATA MACHADO Mestre em Multimeios pela Unicamp, atua como crítico de cinema, curador e cineasta TONINHO MAXAKALI Um dos maiores pajés maxakali em atividade VITOR CESAR Artista, estudou Arquitetura e Urbanismo na UFC e é mestre pela ECA/USP [vitorcesar.org] WILSON BAPTISTA Começou a fotografar em 1926 e participou da exposição Escavar o Futuro com 100 anos ZÉ ANTONINHO MAXAKALI Ilustrador, participante do Projeto Convivência e Ancestralidade no Território Maxakali ZÉ DO POÇO Artista, compositor, escritor, roteirista, cinegrafista, separador e reciclador, fundou o jornal Jarotocrimiaijam


Governador do Estado de Minas Gerais: Antonio Anastasia Vice-governador do Estado de Minas Gerais: Alberto Pinto Coelho Secretária de Estado de Cultura de Minas Gerais: Eliane Parreiras Secretária Adjunta de Estado de Cultura de Minas Gerais: Maria Olívia de Castro e Oliveira

FUNDAÇÃO CLÓVIS SALGADO Presidente: Fernanda Medeiros Azevedo Machado Chefe de Gabinete: Renata Bernardo Diretora Artística: Edilane Carneiro Diretora de Ensino e Extensão: Patrícia Avellar Zol Diretora de Marketing, Intercâmbio e Projetos Institucionais: Cláudia Garcia Elias Diretor de Planejamento, Gestão e Finanças: Luiz Guilherme Melo Brandão Diretora de Programação: Fabíola Moulin Mendonça Gerente de Artes Visuais: Tatiana Cavinato Assessora da Gerência de Artes Visuais: Ana Cristina Lima Chefe de Departamento de Artes Plásticas: Karolina Penido Chefe de Departamento do Centro de Arte Contemporânea e Fotografia: Rodrigo Gonçalves da Paixão Produção: André Murta e Camila Batista Analista Cultural: Fernando Pacheco Apoio Administrativo: Jairo de Oliveira Montagem: Edivaldo Gomes da Cruz e Ronaldo Braz da Silva Estagiários: Leandro Duarte, Mônica Santiago e Cristina Lima Cardoso Coordenadora do Programa Educativo: Fabíola Rodrigues Educadores: Ana Carolina Ministério, Ana Maria Martins, Clarice Steinmuller, Clarita Gonzaga, Daniela Marques, Deise Oliveira, Fabiane Barreto, Fabrize Pousa, Gabriela de Paula, Geraldo Peixoto, Janaina Beling, Juliana Gontijo, Naíra Duarte, Paulo Peixoto, Renata Delgado, Renata Nery, Rita da Matta, Sandra Moreira e Tânia Mateus. Assessora-chefe de Comunicação Social: Liana Caldeira B. Rafael Coordenadora de Assessoria de Imprensa e Mídias Sociais: Júnia Alvarenga Assessoria de Imprensa e Website: Gustavo Monteiro, Maíra Bueno, Gabriela Rosa, Maria Elisa Pompeu, Paulo Lacerda (fotógrafo), Lorena Franco (estagiária), Luísa Loes (estagiária), Patrícia Henrique (estagiária). Publicidade: Larissa Batista, Samanta Coan, Ricardo Teixeira (estagiário), Yasmin Moura (estagiária). Relações Públicas: Sílvia Bastos, Andyara Almeida (estagiária) Assistente de Comunicação: Thiago Amador Revisão Editorial: Maria Eliana Goulart

EXPOSIÇÃO ESCAVAR O FUTURO 10 de dezembro de 2013 a 02 de fevereiro de 2014 Galerias Alberto da Veiga Guignard, Genesco Murta, Arlinda Corrêa Lima, Centro de Arte Contemporânea e Fotografia, Parque Municipal Américo Renné Giannetti e Avenida Afonso Pena. Realização: Fundação Clóvis Salgado


Artistas: André Komatsu, Angela Detanico e Rafael Lain, Carmela Gross, Cinthia Marcelle, Cláudia Andujar, Daniel Carneiro, Eduardo Coimbra, André Weller e David Pacheco, Fernando Ancil e Marco Scarassatti, Graziela Kunsch, Guga Ferraz, João Castilho, Leon Ferrari, Luiza Baldan, Marcel Gautherot, Mauro Restiffe, Projeto Convivência e ~ ~ Maxakali, Milton Machado, Patrícia Azevedo, Paulo Nazareth, Pedro Motta, Ancestralidade no Território Tikmu’un PISEAGRAMA, Sara Lambranho, Tiago Mata Machado, Vitor Cesar, Wilson Baptista, Zé do Poço Curadoria: Felipe Scovino e Renata Marquez Projeto Expográfico: Ivie Zappellini e Wellington Cançado Identidade visual e sinalização: Ricardo Portilho e Graziani Riccio Cenografia: Artes Cênica Produção: Guilherme Machado Montagem: Erika Uehara, Hironobu Kai, Cícero Bibiano, Miguel Ferreira, Alessandro Lima, Rafael Perpétuo Conservação: Raquel Teixeira Fotografia: Daniel Iglesias Agradecimentos: Frederico Morais, Instituto Inhotim, Instituto Moreira Salles, Parque Municipal Américo Renné Gianetti/ Fundação de Parques Municipais, Museu de Arte Moderna de São Paulo, Galeria Vermelho, Galeria Fortes Vilaça, Galeria A Gentil Carioca.

PUBLICAÇÃO ESCAVAR O FUTURO Realização: Fundação Clóvis Salgado Coordenação Editorial: PISEAGRAMA Organização: Felipe Scovino, Fernanda Regaldo, Renata Marquez, Roberto Andrés e Wellington Cançado Projeto Gráfico e Editoração: PISEAGRAMA, Felipe Carnevalli e Vítor Lagoeiro Capa: PISEAGRAMA a partir de identidade visual criada por Ricardo Portilho e Graziani Riccio Transcrição das conversas: Felipe Carnevalli, Matheus de Paula e Vítor Lagoeiro Revisão: Trema Fotografia: Daniel Iglesias Impressão: Rona Editora, 2014

ISBN 978-85-66760-03-3


2014 Patrocínio Master

Promoção

Apoio

Parceria

Realização

2014 Patrocínio Master

Promoção

Apoio

Parceria

Realização

2014



ADRIANA MAXAKALI ALESSANDRO BORSAGLI ALESSANDRO PATAXÓ ALÍCIA PENNA ANDRÉ KOMATSU ANDRÉ WELLER ANGELA DETANICO ARAUÊ PATAXÓ ÁUREA CAROLINA BRENO FARHAT BRUNO VASCONCELOS CARDES AMÂNCIO CARMELA GROSS CEBOLOSE CILI CECÍLIA REIS CINTHIA MARCELLE CLARICE STEINMÜLLER CLÁUDIA ANDUJAR CRIS ARAÚJO DANIEL CARNEIRO DANIEL IGLESIAS DAVID PACHECO DERECO DERLI MAXAKALI DIEDRO PELÃO EDÉSIO FERNANDES EDUARDO COIMBRA FABIANA LEITE

ISBN 978-85-66760-03-3

FELIPE MAGALHÃES FELIPE SCOVINO FERNANDO ANCIL FERNANDO SOARES FLORA RAJÃO FLORISCENA DA SILVA FREDERICO MORAIS GRAZIELA KUNSCH GUGA FERRAZ GUSTAVO BONES GUTO BORGES IZABEL MELO JOÃO CASTILHO JOÃO GRILO JOÃO LUIZ DA SILVA DIAS JOSEMAR MAXAKALI JOVIANO MAYER JUNINHA MAXAKALI LEÓN FERRARI LUIZA BALDAN MAMEI MAXAKALI MANUEL DAMASIO MAXAKALI MARCEL GAUTHEROT MARCELO CASTRO MARCELO DUARTE MARCO SCARASSATTI MARGARETE LETA MARIA OBJETIVA MARILTON MAXAKALI

MATHEUS ROEDEL MAURO RESTIFFE MILTON MACHADO NARA TORRES NELSON POMBO JR. PATRÍCIA AZEVEDO PAULO NAZARETH PEDRO MOTTA PHILIPPE URVOY PISEAGRAMA PRISCILA MUSA RAFAEL BARROS RAFAEL LAIN RENATA LEITE RENATA MARQUEZ RENATO GAIA RICARDO JAMAL RITA VELLOSO RONALDO SILVA ROSÂNGELA DE TUGNY SARA LAMBRANHO SÍLVIA HERVAL STÉPHANE HUCHET TIAGO MATA MACHADO TONINHO MAXAKALI VITOR CESAR WILSON BAPTISTA ZÉ ANTONINHO MAXAKALI ZÉ DO POÇO


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