Cultura e as Relações de Poder: uma breve reflexão sobre a relação Funk x Estado

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CULTURA E AS RELAÇÕES DE PODER

Uma breve reflexão sobre a relação Funk x Estado


Quando se entende cultura como uma relação de contato e troca de noções e sentidos, também tratamos de práticas e saberes (individuais e coletivos), que presentes no âmbito social, acabam por ser incorporados à lógica dominante vigente e suas especificidades, pois mesmo detendo de suas próprias especificidades, até mesmo a cultura que se entende por não homogênea, é levada a se adequar ao formato predominante. Pois apesar de toda a multiplicidade que possui, a cultura não se faz ausente da necessidade de se constituir como organização, ou de integrar um sistema, os quais geralmente são baseados em padrões-modelo consolidados (logo de caráter predominante). Além de que devido ao fato de estar inserida em sociedade, ela se encontra também presente nos cenários político e econômico, assim facilitando o processo de apropriação que o Estado e o mercado fazem da mesma. Cultura para Morin (1969, p.17), conforme citado por Sodré (2005, p. 54) é: “um sistema indissociável onde o saber, estoque cultural, seria registrado e codificado, assimilável somente para os detentores do código, os membros de uma cultura dada (linguagem e sistema dos signos e símbolos extralinguísticos); o saber estaria ao mesmo tempo constitutivamente ligado a padrões-modelo (patterns) que permitem organizar, canalizar as relações existenciais, práticas e/ou imaginárias” (MORIN, 1969, p.17) aqui se destaca as singularidades e riqueza de diversidade que se faz possível quando falamos de cultura, e a maneira como ela se manifesta dentro de um modelo pré-estabelecido, com a finalidade de se constituir uma lógica de organização. E quanto ao significado da palavra cultura, um dos termos associados a ela é o do “cultivo”, e é a partir deste que Eagleton pontua sobre a relação cultura x Estado: “Cultivo, entretanto, pode não ser apenas algo que fazemos a nós mesmos. Também pode ser algo feito à nós, em especial pelo Estado. Para que o Estado floresça, precisa incutir em seus cidadãos os tipos adequados de disposição espiritual" (EAGLETON, 2005 p. 16)

levando a reflexão de que desde que o Estado utiliza de seu poder de alcance para impor sua própria cultura, devemos questionar a quem ela representa, e como ela (a cultura) se dá.


No que diz respeito a quem o Estado representa, não há dúvidas de que seja a elite socioeconômica do país e seus respectivos valores, os quais são apresentados como factuais, numa tentativa de se estabelecer como neutro e incontestável. Quanto a maneira como se dá, é dentre outras formas, através do controle que exerce em diferentes instituições, como a Escola e a Família, além de utilizar de mecanismos como a mídia para propagar seu discurso, através do qual busca-se normalizar a exploração, quando apresenta sua dominação como natural e universal, logo inevitavelmente representativa de todos. O Estado sendo canal que reproduz os valores de uma parte da população que é minoria em quantidade, porém soberana em seu poder, desempenha papel crucial no processo de manutenção do status quo. “A ideia de que o Estado representa toda a sociedade e de que todos os cidadãos estão representados nele é uma das grandes forças para legitimar a dominação dos dominantes.” (CHAUÍ, 2000, p. 27) Assim faz-se necessário identificar o que se tem do outro lado, o lado que não se vê de baixo da cobertura, legitimado e incentivado pelas instituições de letra maiúscula, onde se encontra as classes subalternas, com seus indivíduos subjugados, e consequentemente suas manifestações culturais. É aí em que dentre tantas outras manifestações populares, se encontra o funk, gênero musical que para além da sua sonoridade característica (que conta com a forte presença do grave nas batidas), em suas letras retrata a realidade e as ânsias de uma parcela da juventude do país, juventude essa que é majoritariamente negra e periférica. O funk representa um estilo de vida, é motivador de um modo de se vestir e se comportar próprios. Para além de ser a diversão no baile de rua, ou no show de fim de semana, o funk também significa a possibilidade de se ter uma carreira (para além daquelas que são tradicionalmente ofertadas a essa parcela da população), e se ascender economicamente, seja como MC, DJ ou dançarino (a). Originário de música negra, vinda da África, Estados Unidos e Brasil, é inegável sua conexão com a diáspora africana, assim fazendo do funk um gênero musical essencialmente negro.


Se tratando de uma manifestação cultural fundamentalmente popular, o funk não apenas é constantemente atacado por duras críticas propagadas pela mídia (numa tentativa de deslegitimação do gênero), como também se vê alvo do poder público. Tendo seus bailes de rua quase que tradicionalmente interrompidos pela chegada da polícia (a qual age com conhecida truculência), nota-se o esforço do poder público em dar fim aos eventos, que são em sua maioria realizados de maneira quase que orgânica, desde que a demanda para o evento não é tão grande, necessitando principalmente de caixa de som (geralmente dentro dos carros), e a comercialização de bebida. Os bailes mobilizam um grande número de pessoas, e seu crescimento quando se dá, é espontâneo, mesmo contando com aqueles que atuam como organizadores, o evento não se rende à lógica burocrática que domina nosso sistema de organização social e cultural predominante, e assim preserva sua condição. Ainda falando do tratamento que o poder público direciona ao funk, chegamos numa outra esfera de atuação, onde ele age diretamente de dentro do sistema que ele integra (o próprio Estado), e utiliza das ferramentas lá disponíveis para dar continuidade às suas práticas de perseguição. Enquanto há projetos de lei de criminalização do funk (os quais quando noticiados pela mídia, são causadores de grande repercussão), também há os projetos pró legitimação do funk. E é aí em que se dá a discussão, pois entende-se que o Estado como representante dos interesses de uma elite dominante, jamais atuaria em prol de uma manifestação popular (pelo menos não inteiramente, e sem interesse próprio por trás). Segundo Chauí: “Para que a violência da dominação exercida por uma classe surja como natural, inscrita na ordem das coisas, racional e legítima, ou como lugar de direito do exercício da dominação - sem o que os dominados teriam o direito de insurgir-se contra ela - é preciso que seja anulada como violência, e a única via possível consiste em produzir uma imagem unificada da sociedade, com polarizações suportáveis e aceitáveis para todos os seus membros" (CHAUÍ, 2000 p. 27)

o processo de dominação é uma violência que nem sempre se apresentará de maneira violenta, logo, uma das formas que o Estado encontra de manter sua


supremacia de maneira não violenta, é incorporando aquilo que não se adequa à sua proposta. Sendo assim, projetos como o de promoção do funk ao status de cultura reconhecida pelo Estado, pode ser lido como tendo caráter autoritário, desde que parte do pressuposto de que a instituição é detentora única do poder de se definir aquilo que tem valor, e aquilo que não. Além de que apenas esta ação sendo realizada isoladamente não significaria o aporte do Estado para com o funk, sequer significaria que o mesmo iria cessar a perseguição que promove. Perseguição essa que como citado anteriormente (num dos muitos exemplos que se tem) leva ao fim forçado de bailes de rua, com a chegada da polícia que age com excesso de força (o que implica dois problemas, o primeiro sendo a intervenção na atividade que é artística, cultural e de lazer, assim impossibilitando seu acesso e rebaixando consideravelmente seu nível de qualidade, e o segundo é o fato de que a polícia como representante do Estado não deveria utilizar de seu recursos para agir com violência para com a população). Mas afinal por que o funk é considerado uma ameaça à Ordem? Feito por gente marginalizada, para gente marginalizada, ele é canal que dá voz àqueles que historicamente foram e são excluídos das possibilidades do criar artístico, e não apenas isso, como ele também influencia no processo de construção de visão de mundo, senso de pertencimento e reconhecimento de pautas identitárias (seja referente a questões étnicas, de gênero, sexualidade, ou classe) de uma geração de jovens que de repente passou a ouvir sua realidade historicamente estigmatizada, ser ressignificada e cantada por seus semelhantes. A associação que se faz do gênero musical à criminalidade, não ocorre por mera coincidência, afinal trata-se de criminalizar corpos que já são criminalizados (os corpos da juventude negra e periférica), de se julgar inferior a produção oriunda da favela, de manter sexo como pauta tabu, especialmente quando o tema é cantado sem pudor, no melhor estilo “proibidão”. O que ocorre é uma tentativa de se manter distante da realidade que se ajuda a sustentar, mas não quer se ouvir a respeito. Chauí, cita:


“Salta aos olhos, então, o caráter paradoxal do autoritarismo das elites, visto que a ideia de padrão cultural único e melhor implica, por um lado, a imposição da mesma cultura para todos e, por outro lado, simultaneamente, a interdição do acesso a essa cultura "melhor" por parte de pelo menos uma das classes da sociedade. Assim, negando o direito à existência para a cultura do povo (como cultura "menor", "atrasada" ou "tradicional") e negando o direito à fruição da cultura "melhor" aos membros do povo, as elites surgem como autoritárias por "essência". Em outras palavras, a expressão "autoritarismo das elites" é redundante.” (CHAUÍ, 2000, p. 39) e desde que funk é cultura, e cultura é política, se torna evidente a importância de ele ser insubordinável, assim não se adequando ao modelo dominante imposto pela elite através do Estado e da mídia. Cultura e relações de poder se dão a partir do momento em que a cultura age dentro de todos os âmbitos, desde a realidade individual de um sujeito e como isso influencia na maneira como o mesmo transita em sociedade: as relações que estabelece consigo mesmo e com outros, a compreensão que se tem da própria realidade, as práticas que se realiza, dentre outros, assim como se encontra dentro das estruturas da sociedade, sendo estes espaços de organização e consolidação de sistemas burocráticos, tipicamente elitizados. Lidando com um cenário onde a disparidade de poder de atuação é tão significante, é necessário que se aponte as diferenças e se reconheça a existência de divisões, pois junto a tamanha diversidade impera uma lógica que beneficia alguns, e em meio à falta de equilíbrio há de haver um conflito, pois aqueles que são historicamente excluídos, perseguidos e apagados merecem mais do que apenas serem utilizados para mera preservação das coisas como elas já são.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Bittar, Paula. Câmara aprova funk como manifestação da cultura popular. Câmara dos Deputados, 2019. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/EDUCACAO-ECULTURA/557886-CAMARA-APROVA-FUNK-COMO-MANIFESTACAO-DACULTURA-POPULAR.html>. Acesso em: 15 de jun. de 2019. CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e as outras falas. São Paulo: Cortéz, 2000. EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. São Paulo: Unesp, 2005. Sodré, Muniz. A verdade seduzida. Rio de Janeiro: DP&A. 2005.


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