O LIVRO PELA CAPA TRÊS PROJETOS GRÁFICOS COSAC NAIFY E A LITERATURA Priscila Justina � Belo Horizonte � Faculdade de Letras da UFMG � 2013
Priscila Justina
O LIVRO PELA CAPA TRÊS PROJETOS GRÁFICOS COSAC NAIFY E A LITERATURA
Monografia apresentada à Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Letras, ênfase em Estudos Literários. Orientadora: Profa. Dra. Sônia Maria de Melo Queiroz.
Belo Horizonte Faculdade de Letras da UFMG 2013
Para a vรณ Justina lรก e para a vรณ Dulce aqui.
A G R A DEC I MENTOS Aos meus preparadores de original, Clauzy e Samuel, pelo entusiasmo e cumplicidade desde o primeiro A, e por seguirem em todo o alfabeto, que – dizem – não termina no Z quando fora do papel. À minha orientadora, Profa. Sônia Queiroz, pelo espaço para o erro e acerto, pelo companheirismo e pelo aconselhamento desde muito antes desta monografia, e por compartir comigo, nesta análise híbrida, seu olhar simultâneo de editora e de poeta. Às Profas. Fernanda Mourão e Vera Casa Nova, que gentilmente se dispuseram a ler este trabalho e avaliá-lo. Aos autores Chico Homem de Melo e Elaine Ramos, profissionais da Cosac Naify que contribuíram com dicas valiosas para a composição deste texto. Aos amigos, em especial à Las, à Guria e ao Leo, pelo apoio e prontidão sempre. Aos meus companheiros de trabalho e de sonhos, Aline, Dudu e Garcias, pela amizade e incentivo incondicionais.
Por vezes, há pessoas que nunca viram um desenho, e ao verem reconhecem os traços. Os traços não existem na natureza. Se as pessoas são interessadas pelo desenho é porque ele mostra uma certa verdade da qual elas não eram conscientes. Uma verdade nova. É um tipo de escrita. Jean-Jacques Sempé
R E SU M O Esta pesquisa analisa três narrativas publicadas pela editora Cosac Naify pertencentes à Coleção Particular, cujos projetos gráficos são construídos para proporcionar ao leitor uma experiência diferenciada de leitura. Propõe-se uma breve reflexão acerca do design do livro através de perspectivas da edição e da teoria da literatura, a fim de evidenciar que o projeto gráfico pode ter não apenas a posição dita “funcional”, mas crítica, de conteúdo integrado ao texto literário. PALAVRAS-CHAVE: Projeto gráfico; design de livros; experienciação; livro-objeto; Cosac Naify.
ABSTRACT This study examines three narratives published by Cosac Naify within Coleção Particular, a series in which graphic designs are created to provide the reader with a different reading experience. It proposes a brief reflection on the Design Book through the publishing perspectives and the literary theory in order to show that graphic design can have not only the position called “functional”, but also critical, with content integrated to the literary text. KEYWORDS: Graphic Design; book design; experienciation; book-object; Cosac Naify.
L I STA D E I LUSTR AÇ ÕES
FIGURA 1
O natimorto da Companhia
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FIGURA 2
Livros infantis, design adulto
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FIGURA 3
Coleção Livros Infantis Monteiro Lobato (Brasiliense)
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FIGURA 4
Cantadas Literárias (Brasiliense) e edições da Max Limonad
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FIGURA 5
Os famosos de Moema Cavalcanti
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FIGURA 6
Bartleby, o escrivão (2005)
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FIGURA 7
Outros escrivães
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FIGURA 8
Avenida Niévski (2007)
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FIGURA 9
Primeiro amor (2004)
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SU M Á RI O
ACHADOS p. 9 O LIVRO NO DESIGN DE LIVROS p. 11
1 SINESTESIA p. 19 2 MOVIMENTO p. 26 3 VOLUME p. 31
ONDE CONVERGEM OS TRAÇOS p. 34 LITERATURA DE MERCADO p. 36 O QUE VIRÁ p. 37
REFERÊNCIAS p. 38
ANEXO p. 41 ANEXO A – “A CAPA”, DE MOEMA CAVALCANTI p. 41
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ACHADOS Quando há alguns anos peguei nas mãos O natimorto, de Lourenço Mutarelli, tive a sensação de que estava sendo apresentada a um novo conceito de qualidade em design editorial. Relançado em 2009 pela Companhia das Letras com um projeto gráfico totalmente diferente da edição da Dorea Books and Art, de 2004, O natimorto foi para mim um achado. O livro possui formato diferenciado (13, 5 x 20, 6 cm, mais fino que o padrão de 15 x 25 cm), com bordas em corte redondo e capa com cartas de baralho reproduzidas ao revés na contracapa, em cores em negativo que reproduzem um obscuro espelhamento. O texto trata sobre um agente de artistas que tira a própria sorte nas imagens dos maços de cigarro e se embrenha em uma obsessão por uma cantora de voz pura, tão pura que se torna inaudível aos ouvidos humanos. No interior do livro, margens estreitas e recuos de parágrafo comedidos pareciam perfeitos a um texto quebrado no qual uma frase às vezes se desdobrava em quatro, cinco linhas, jogadas na página como cartas de tarô. Quando comecei a ler aquela narrativa intrincada, parecia que ela já havia começado. A experiência gráfica se iniciava nos detalhes minimalistas que compunham uma atmosfera misteriosa, atmosfera esta que, mesmo antes da primeira palavra lida, já estava totalmente assimilada. Mais tarde tratei de adquirir todos os outros livros de Mutarelli que a Companhia re/ lançou, e tinham um projeto similar. Em um deles, A arte de produzir efeito sem causa, as escolhas gráficas funcionavam como em O natimorto, inclusive melhor, com inserções de ilustrações que foram produzidas especialmente para o texto, como complemento. Nos outros livros (Miguel e os demônios, O cheiro do ralo e Nada me faltará) o conjunto formava apenas um livro bonito. Pode-se pensar que seria natural que a imagem fosse bastante interligada ao texto nessas obras, pois os desenhos haviam sido feitos pelo próprio autor das narrativas. No entanto, em conversa pessoal, Mutarelli me afirmou que todas aquelas ilustrações eram puras escolhas editoriais. A Companhia das Letras solicitava um grande volume de desenhos que o autor já houvesse produzido e, dentre estes, selecionava os que segundo a editora se integravam melhor ao texto.1 Inclusive o resultado final que Mutarelli escolheria, se fosse escolha sua, seria mais “sóbrio”, similar a algumas edições portuguesas contemporâneas as quais sempre admirou.
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Isso só mudou em Nada me faltará, em que a capa foi feita por Mutarelli especialmente para o livro. No entanto, não há na edição tanta coesão entre a capa e o miolo, que seguem a mesma linha gráfica dos outros títulos lançados pela Companhia.
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FIGURA 1 – O natimorto da Companhia Fonte: Fotos próprias.
Após esse primeiro contato, passei a procurar livros em que o projeto gráfico fosse como em O natimorto e A arte de produzir efeito sem causa: um pré-texto visual que criava uma atmosfera que seria continuada no texto. Cheguei então aos livros da Cosac Naify. Ao contrário do que ocorre na maioria das outras editoras brasileiras de médio e grande porte,
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cujo capital disponível para investimento em profissionais e materiais gráficos costuma ser maior, na Cosac o projeto gráfico é composto para além da capa, isto é, a relação entre a imagem e o texto verbal é mais íntima e tecida com outros elementos da projetuação, como tipografia, tipo de papel, cor de impressão etc. Diz-se comumente que o projeto gráfico engloba um conjunto de escolhas que tem por função primordial dar forma gráfica ao texto, a fim de torná-lo materialmente publicável. Mas esta é uma definição tradicional que delimita o projeto gráfico a uma funcionalidade. Pretendo analisar elementos que apontam para um caráter autoral do design2 editorial, caráter este que se relaciona muito intimamente com o conteúdo, em especial quando tratamos de livros de literatura. Divido o texto em três capítulos analíticos, Sinestesia, Movimento e Volume, apontando temas essenciais de cada narrativa trabalhada e confrontando-os com as escolhas gráficas feitas pelo projeto. O LIVRO NO DESIGN DE LIVROS Pode-se estipular o “início” do design de livros contemporâneo no Brasil, ou seja, sua guinada de trajetória que o caracteriza conforme se configura hoje, nas décadas de 1980 e 1990 (HELLER, 2011, p. 9). Mas antes disso, voltando à década de 1920, o meio editorial brasileiro ganhou um marco importante através de um dos maiores incentivadores do livro no país. Em 1925, Monteiro Lobato associou-se a Octalles Marcondes Ferreira e juntos fundaram a Companhia Editora Nacional, que ao longo das décadas seguintes seria a maior editora do Brasil. Por ela chegaram ao público A menina do narizinho arrebitado, Aritmética da Emília, O poço do Visconde e O pó de pirlimpim, entre outros que se tornariam os clássicos da literatura infantil nacional. Na ala dos livros para crianças, a produção da editora primava por volumes coloridos, tipografia e diagramação que dialogavam com o texto e ilustrações de cuidado acurado. Apresentou-se como uma singularidade durante muito tempo frente a livros da época, que a despeito de inovações protagonizadas pela Martins Fontes, José Olympio ou Editora Cruzeiro do Sul e por artistas como Belmonte, J. U. Campos, Poty, Santa Rosa ou J. Borges (nas décadas de 1930-50), seguiam tendo pouco ou nenhum trabalho gráfico mais atencioso. Como exemplo, cito as edições de Figueiredo Pimentel e Viriato Padilha, grandes marcos da publicação de literatura para crianças no país, mas cujo design editorial nem de longe lembra o universo infantil.
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Apesar de não dicionarizado no português, o termo será grafado sem destaque durante este trabalho, devido a seu uso frequente notexto.
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FIGURA 2 – Livros infantis, design adulto Folhas de rosto de dois livros populares da década de 1950, Contos da carochinha (publicação da Livraria Garnier), editado por Figueiredo Pimentel, e Histórias do arco da velha (Livraria Quaresma), editado por Viriato Padilha. Fonte: ALMEIDA; QUEIROZ, p. 115.
Nos 1940, Monteiro Lobato associou-se à recém-nascida Brasiliense (1943) para que juntos reeditassem integralmente sua obra. Publicadas até o final dos anos 1980, a Coleção Livros Infantis Monteiro Lobato é até hoje reconhecida como referencial de excelência em design editorial, e suas histórias estão ainda frescas na memória de toda uma geração. A edição de Lobato, tanto na Companhia Nacional3 quanto na Brasiliense, foi uma das primeiras ocasiões no cenário brasileiro (se não a primeira) em que se tratou o livro de literatura como um todo, no qual os elementos editoriais deveriam ser complementares ao texto, e não apenas transmitir aquele texto. Por sua vez, a reedição da Brasiliense apresentou, através de ilustrações criadas por um único artista, Augustus, uma padronização de traço, desenho e diagramação que até então era inédita. Autor das vinte capas da nova coleção, Augusto Mendes da Silva, o AVGVSTVS, trabalhou durante muito tempo em arte comercial e execução de retratos, tendo sido premiado diversas vezes por sua maestria em trabalhar contraste entre sombra e luz e aplicar originalmente o estilo acadêmico herdado de sua sólida formação em pintura (ARBASP, 3
A Companhia Editora Nacional protagonizaria outro importante destaque no design crítico de livros em 1956, através do trabalho de Walter Levy para a edição de A metamorfose, que contava com desenhos internos harmônicos à atmosfera do texto, ilustração de capa integrada à tipografia de título e autoria e luva protetora do volume que comandava a ideia de camadas utilizada na composição gráfica.
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[s. d. ]). Suas incursões no design editorial foram esporádicas, mas seu traço marcado e abrangente ficou imortalizado em A reforma da natureza, Aritmética da Emília, Caçadas de Pedrinho, O minotauro, entre outros clássicos de Lobato. Seguindo o modelo criado por Belmonte na Companhia Nacional, a coleção se valia da capa como uma superfície inteiriça, fazendo com que a ilustração a abraçasse em uma única imagem que cobria frente, lombada e quarta capa, além de ilustrações internas dialogantes com a tipografia e o texto literário em si. Nas capas, até os créditos obrigatórios de título, autoria e edição casavam harmonicamente com as ilustrações.
FIGURA 3 – Coleção Livros Infantis Monteiro Lobato (Brasiliense) Fonte: MELO; RAMOS, 2011, p. 218.
Mais tarde, ao longo da década de 1980, a Brasiliense liderou mais uma inovação no design de livros, ao conseguir criar uma identidade própria para uma coleção e aliá-la à
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particularidade de cada obra editada. Nas Cantadas Literárias, a capa é sempre dividida em três seções, mas as ilustrações se permitem “invadir” o espaço vizinho, dando espaço próprio para cada obra. Na série Primeiros Passos, lançada com foco no público universitário, é relevante a unidade visual harmonizada a ilustrações diversificadas. A editora Max Limonad segue o mesmo caminho das Cantadas Literárias no que compete à unidade visual conciliada à variação ilustrativa. Na Max, todas as capas eram de responsabilidade de um único designer, Carlos Clémen, que se valia ora de colagens ora de desenhos próprios. Particularidade em relação às Cantadas, na Max Limonad a tipografia segue um mesmo padrão (o de manter serifas na tipografia de título e autor), o que reforça certa “hierarquia” unificadora da editora sobre o texto (transparecido na ilustração na faixa central das capas).
FIGURA 4 – Cantadas Literárias (Brasiliense) e edições da Max Limonad Fonte: MELO; RAMOS, 2011, p. 564-565.
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Ainda nos 1980, ganhou destaque, em outra editora, o grupo que daria continuidade à renovação da Brasiliense: Moema Cavalcanti, Hélio de Almeida, Ettore Bottini e João Baptista da Costa Aguiar seriam os responsáveis pelas primorosas capas da Companhia das Letras (1986), que romperam barreiras nos pensamentos comuns de então, revolucionando ao inserir fotografias, texturas e tipografia “pensada” como foco do projeto gráfico de capa, expandindo a noção de representação iconográfica no campo editorial. Entre 1988 e início dos 1990, Moema, que viria a trabalhar também nas editoras Abril, Globo e Círculo do Livro (FERLAUTO; JAHN, 1998), assinou duas séries ícones da década, as capas para a coleção Claro Enigma e para as coletâneas O desejo e Os sentidos da paixão. Na coleção, a artista insere uma informação tátil nos títulos, ao imprimir a imagem no verso do áspero papel de capa. Nas coletâneas, cria cortes em um plano de fundo claro que adquirem a cor “passional” da imensa orelha do livro. Moema inova não em propor uma criação exótica e incomum para os volumes, mas em compor para ambos uma capa que dialoga com o texto editado.
FIGURA 5 – Os famosos de Moema Cavalcanti Fonte: MELO; RAMOS, 2011, p. 570-571.
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Na década de 1990, mais precisamente em 1997, surge a editora idealizada por Charles Cosac e Michael Naify. Com o lançamento de Barroco de lírios, de Tunga, a Cosac Naify chega ao mercado editorial apresentando mais de dez tipos de papéis e duzentas ilustrações no livro criado por um dos principais artistas contemporâneos do mundo. O volume contava com recursos como a fotografia de uma trança que, desdobrada, chegava a um metro de comprimento. O trabalho da editora foi primordialmente voltado às artes plásticas, área na qual a Cosac se estabeleceu como referência, tendo publicado mais de cem títulos sobre o assunto. São mais de cinquenta monografias sobre artistas brasileiros, traduções pioneiras de clássicos da crítica de arte – como Outros critérios, de Leo Steinberg –, obras de referência como os três volumes de História da arte italiana, de Giulio Carlo Argan, e Piero de la Francesca, de Roberto Longhi, com introdução de Carlo Ginzburg. Também abriu caminho em outros territórios artísticos através de parcerias como com a Mostra de Cinema de São Paulo e a Cinemateca Brasileira, nos livros de cinema, o Grupo Corpo, na dança, a São Paulo Fashion Week, na moda, e o SESC-SP, com quem desenvolveu projetos em fotografia, cinema e a coleção multidisciplinar Ópera Urbana. Os títulos para crianças na editora não são realizados para uma faixa etária restrita, e englobam desde obras que representam marcos na história da literatura infantil, como O livro inclinado (1909), de Peter Newell, e Na noite escura (1958), de Bruno Munari, até livros feitos por jovens criadores brasileiros, como Lampião & Lancelote, de Fernando Vilela, premiado inclusive pela Feira de Bologna (a maior premiação na área), que em 2010 premiou Tchibum!, passando ainda pelo ganhador do Jabuti de Melhor Livro do Ano (concorrendo com os adultos), Bichos que existem & bichos que não existem, de Arthur Nestrovski, e do prêmio da Bienal de Bratislava, João-Felizardo, o rei dos negócios, de Ângela Lago. O catálogo infantil conta ainda com obras de Ana Maria Machado, Décio Pignatari, Mario de Andrade e Lima Barreto (ilustrados por Odilon Moraes), Machado de Assis (na leitura de Nelson Cruz), e ainda os cânones estrangeiros Goethe, Gógol, Tchekhov, Neruda e Faulkner. Os grandes artífices da cultura brasileira são, por sinal, um dos eixos em torno dos quais se organiza a produção editorial da Cosac Naify. Estão entre eles, por exemplo, os editores das obras de Paulo Emílio Sales Gomes, Glauber Rocha e Manuel Bandeira, e alguns dos mais importantes ensaístas recentes, de Bento Prado Jr. a Fernando Novais, de Davi Arrigucci Jr. a Ismail Xavier, de Eduardo Viveiros de Castro a Ferreira Gullar. Em 2008, seguindo o espírito da editora de oferecer aos leitores obras de referência em variadas áreas, a Cosac Naify inaugurou uma linha de livros teóricos sobre ficção infantil. O grupo se iniciou com a Era uma vez uma capa, obra de Alan Powers, uma história ilustrada da literatura universal para crianças.
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No campo da teoria do design, publicou em 2005 o completíssimo Elementos do estilo tipográfico, publicação essencial a todos os que desejam embrenhar no mundo da tipografia e do design de livros. Foi através do “dossiê” de Bringhurst que Elaine Ramos, a responsável pelo projeto gráfico dos três livros que serão analisados a seguir, obteve uma formação tipográfica aprofundada, segundo comentário da própria artista (RAMOS, 2011). Diretora de arte e coordenadora das publicações de design na Cosac Naify há sete anos, Ramos já desenvolveu mais de uma centena de projetos gráficos de livros. Entre os principais prêmios que recebeu estão o 48º Jabuti de melhor capa (com Avenida Niévski), o Prêmio Aloísio Magalhães da Fundação Biblioteca Nacional de 2007 (com o projeto gráfico de Coleção Moda Brasileira I), o 7º Prêmio Max Feffer e o 50 Books/50 Covers de 2007 (pelo projeto gráfico de O mundo codificado). Já teve também projetos selecionados pelo American Institute of Graphic Arts para a exposição 50 Books/50 Covers em 2007, 2008 e 2009 e pelo Art Directors Club 88th Annual Awards 2009. Paralelamente à atividade na editora, em 2008 desenvolveu (com Daniel Trench e Flávia Castanheira) a identidade visual e o projeto das publicações da 28ª Bienal Internacional de São Paulo, e em 2010 lecionou no curso de Design Editorial da pós-graduação lato sensu do Senac. Voltando as publicações sobre o design empreendidas pela Cosac, nasceu em 2009 a edição brasileira de História do design gráfico, de Philip B. Meggs, unanimemente considerada pelos estudiosos da área a “bíblia do design”. O livro abriu caminho para outro marco na publicação de livros sobre o segmento, o Linha do tempo do design gráfico no Brasil, aprofundado e pioneiro estudo realizado por Chico Homem de Melo e por Ramos. Em outra área vizinha, a arquitetura, a Cosac Naify também se fez referência. Além de trazer ao português parte importante do repertório mais celebrado do gênero, com livros como Aprendendo com Las Vegas, de Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour, e Precisões, de Le Corbusier, a editora vem publicando autores-chave da arquitetura contemporânea, como Rem Koolhaas e Rafael Moneo, e está desenvolvendo uma linha de cunho inédito em torno da arquitetura brasileira. Além de publicar três livros do vencedor do Prêmio Pritzker de 2006, Paulo Mendes da Rocha, o catálogo tem obras de e sobre os criadores mais importantes da arquitetura no país: de Oscar Niemeyer a Vilanova Artigas, de Lucio Costa a Joaquim Guedes, de Vital Brazil a Lina Bo Bardi. Para uma editora direcionada a tantas ramificações, pode ser considerada marcante a publicação de mais de 150 títulos, dentre aproximadamente 750 (até 2012), de obras literárias de ficção. Pela coleção Prosa do Mundo chegaram às livrarias obras de Tolstoi, Beckett, Brecht, Poe, Flaubert e Pirandello, e outras de escritores menos conhecidos, como o dinamarquês Jens Peter Jacobsen e o húngaro Gyula Krúdy. Mulheres Modernistas
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é o nome da coleção que reúne escritoras do calibre de Virginia Woolf, Karen Blixen, Flannery O’Connor, Katherine Mansfield, Marguerite Duras e Gertrude Stein. Foram publicados ainda Os miseráveis, Anna Kariênina e Moby Dick, edições que podem ser rotuladas com o clichê do “grande fôlego”. A editora trouxe ainda ao país obras de mestres mais recentes como William Faulkner, Adolfo Bioy Casares e João Antônio. Dos grandes ficcionistas em atividade também levou às prateleiras amostras de Enrique VilaMatas, Alan Pauls, Ingo Schulze, Mario Bellatin, J. M. G. Le Clézio (Prêmio Nobel de 2008), entre outros.4 Nascida daquela efervescência de vanguarda no cenário editorial brasileiro e posterior à maturidade que o país adquiriu na década de 1970 no setor (ÁTICA, 1996), a Cosac Naify atingiu, em relativamente pouco tempo, o ápice de experimentalismo aliado ao apuro em design gráfico de livros em um mercado que, se levar-se em conta a quantidade de editoras hoje atuantes,5 é muito mais competitivo que outrora. Única editora de médio porte brasileira a possuir uma equipe gráfica própria (não dependendo de terceirizações), suas etapas de escolha de originais, editoração, projetuação gráfica e produção são interligadas, garantindo, na criação visual, um profundo conhecimento sobre a obra editada. Dona de edições refinadas cujo tratamento gráfico é personalizado, a editora se permitiu criar uma “Coleção Particular”, que reúne “clássicos da literatura ocidental, com narrativas breves, em edições nas quais o projeto gráfico faz parte da experiência de leitura e interfere na forma de experimentar o texto” (COSAC NAIFY, [s. d. ]b). Nessa coleção de nome aparentemente pretensioso, mas que retrata verdadeiramente a consolidação de um lugar único no design contemporâneo para literatura no país, a editora publicou até o momento sete títulos, entre os quais estão as narrativas apresentadas adiante, Bartleby, o escrivão, de Herman Melville (2005), Avenida Niévski, de Nicolai Gógol (2007), e Primeiro amor, de Samuel Beckett (2004).
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A cronologia feita até aqui é baseada em Linha do tempo do design no Brasil (de Chico Homem de Melo e Elaine Ramos, 2011) para os fatos relacionados à história editorial brasileira, e no site da Cosac Naify para as informações relativas à editora (COSAC NAIFY, [s. d. ]). Aumento devido, entre outros fatores, à abertura facilitatória com que conta a produção editorial atual. Se antes era necessário um grande dispêndio em tipografias e impressão, hoje é possível editar um livro com não mais que uma pequena equipe de profissionais e um computador equipado com softwares de fácil obtenção e acessível preço, algo similar ao mote “uma câmera na mão, uma ideia na cabeça”. Além disso, a partir de 1960 os processos gráficos no Brasil sofreram considerável baratização, proporcionada pela fundação de uma associação defensora dos interesses da indústria gráfica, a Abigraf (1965), por novos auxílios governamentais e pela consequente autonomia da indústria do papel, a partir de então detentora de mercado suficiente para possibilitar uma produção nacional, em substituição à importação (ÁTICA, 1996).
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1 SINESTESIA BARTLEBY, O ESCRIVÃO Uma história de Wall Street Herman Melville 2005
Há grandes exemplos de narrativas, na história da literatura, que, por algum motivo, parecem ser sobre nada. Essa sensação pode ser dada pela restrição de personagens, restrição de diálogo, restrição do espaço (físico, não literário), ou todas juntas, aliadas a uma linguagem que não parece ter nada de absurdo ou inusitado. Mas o fato é que, quase sempre, a sensação é de que algo não está ali, como um mistério que não se apresenta como tal. São exemplos grande parte dos contos de Kafka, alguns de Clarice Lispector, outros de Tchecóv. Essas histórias, que primam pelo sentido do não dito, compõem a riqueza da leitura pela necessidade de retirar-se o foco de interpretação dos elementos aparentes e transferi-lo para os não aparentes. Muitas vezes o deslocamento se dá do objeto para o sujeito. Bartleby, o escrivão, narrativa de cinco personagens, incluindo um protagonista silencioso e um narrador não nomeado, faz parte desse grupo, que se pauta pela restrição – do espaço e do dito. Se o leitor do romance é solitário, e possui a ânsia de roubá-lo, achar-lhe o sentido e torná-lo seu (BENJAMIN, 1994), o mesmo poderíamos dizer sobre o leitor quando se depara com o exasperador silêncio das histórias que tratam de nada. A narrativa originalmente publicada em revista em 1853 foi editada pela Cosac Naify em 2005. No site da Cosac, Bartleby tem a seguinte chamada: Para ler a nova edição deste clássico de 1853, o leitor começa pelo desafio de descosturar a capa (puxando para baixo a linha vermelha que a lacra) e cortar as páginas não refiladas do livro (com a espátula plástica que acompanha o livro). Só assim, aos poucos, poderá desemparedar este personagem enigmático da ficção moderna que, no dizer do filósofo francês Gilles Deleuze, “desafia toda a psicologia e a lógica da razão”. [. . . ] Eleito por Jorge Luis Borges como uma das obras mais importantes para a humanidade e precursora de Kafka, a nova edição da novela de Melville reabre o caso do escrivão de Wall Street, investigado pela filosofia e pela crítica literária de todos os tempos (COSAC NAIFY, [s. d. ]c).
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FIGURA 6 – Bartleby, o escrivão (2005) Capa em duplo cartão martelado 250 g/m2, miolo em Paperfect 56 g/m2 sem refilo lateral, costura reta visível preta na lombada e vermelha na margem externa, tipografia em Goudy Old Style itálica (destaques em negrito). Fonte: Divulgação da editora. Montagem digital própria.
Ambientado em Nova York no fim do século XIX, Bartleby narra a ocasião em que um rapaz “inerte”, chega à porta de um advogado que necessita de mais um funcionário para complementar os seus dois que já não satisfazem plenamente as funções desejadas – Turkey e Nippers. Embora houvesse certo anúncio no jornal divulgando a procura de
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um empregado, a aparição de Bartleby é narrada como algo casual: ele surge porque a porta estava aberta, e esta estava aberta porque era verão. Toda a narrativa possui algo de misterioso, como as alternâncias de humor entre Turkey e Nippers, o silêncio de Bartleby e os questionamentos circulares do advogado. A paisagem possui papel importante, e é minuciosamente descrita: De um lado via-se a parede branca do interior de um enorme saguão, coberto por uma clarabóia, estendendo-se de alto a baixo no prédio. Este cenário teria sido considerado insípido, pois lhe faltava o que os pintores chamam de “vida”. A vista do outro lado do meu escritório oferecia pelo menos um contraste, embora também fosse só isso. Naquela direção, minhas janelas comandavam uma visão desobstruída de uma parede alta de tijolos escurecida pelos anos e pela sombra permanente. A beleza oculta da parede não precisava de lentes de aumento para ser vista, pois, para o benefício das pessoas míopes, ficava a uns três metros da janela. Porque os prédios vizinhos eram tão altos, e o meu escritório ficava no segundo andar, o espaço entre esta parede e a minha lembrava uma enorme cisterna quadrada (MELVILLE, 2005, p. 2).
Em outro momento acrescenta-se: Deveria ter dito antes que as portas de vidro esmerilhado dividiam o meu escritório em duas partes, uma das quais era ocupada pelos escrivães e a outra, por mim. Dependendo do meu humor, eu abria ou fechava as portas. Decidi instalar Bartleby no canto perto das portas dobráveis, mas do meu lado, para ter fácil acesso a esse homem silencioso, caso fosse necessário fazer uma tarefa de menor importância. Coloquei a sua mesa perto de uma janela pequena nesta parte da sala, uma janela que originalmente tinha vista lateral para alguns quintais sombrios e montes de tijolos, mas que, por causa das construções subseqüentes, já não oferecia qualquer vista, embora filtrasse alguma luz. Havia uma parede a um metro da janela, e a luz vinha de cima passando por dois prédios altos, como se fosse uma pequena abertura numa cúpula. De modo que a arrumação ficasse ainda mais satisfatória, coloquei um biombo verde para separar-me de Bartleby, mas que não o deixava fora do alcance da minha voz. Assim, até certo ponto, a privacidade e o convívio combinavam (MELVILLE, 2005, p. 8).
O escritório, onde passa a maior parte do tempo o advogado e seus funcionários, não poderia ser apresentado de outra forma. Estando em um espaço físico restrito, é justificável que o narrador saiba (e narre) em minúcia a aparência e disposição de paredes, móveis, janela. Esta possui uma vista interessante, se considerado um lugar chamado “Wall Street”: na frente da mesa de Bartleby, o limite de alcance é a parede, objeto que servirá de metáfora para os impedimentos e mistérios que ocorrem no lugar e que é o item principal no trabalho visual da edição da Cosac. Obviamente toda a angústia é narrada sob certa perspectiva, no caso a do advogado, que personifica inevitavelmente o narrador não confiável, no conceito deHenryJameslembradoporModestoCaronenoposfácio(CARONE, 2005, p. 46). Aliás, a incógnita Bartleby tem muito a ver com o silêncio em A volta do parafuso, de James, em que os assombros que ocorrem na mansão do interior
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da Inglaterra são conhecidos por todos, mas não são ditos. Algo impede a verbalização, tal como acontece em Bartleby: ‘’Parecia que [. . . ] analisava com cuidado cada palavra que eu proferia, compreendia o que eu queria dizer, não conseguia se opor à conclusão irresistível, mas, ao mesmo tempo, uma razão superior o levava a responder daquela forma” (MELVILLE, 2005, p. 10). Essa “razão superior” que proíbe a fala faz parte da atmosfera mística que encobre todo o ambiente. Mesmo antes da chegada de Bartleby, há a oposição entre Nippers e Turkey, que se transformam ao meio-dia em personalidades opostas às que possuem normalmente, complementando-se como que para alcançar um equilíbrio que é imperativo independentemente da vontade de todos, e sem que estes alcancem qualquer entendimento ou explicação a respeito. Relembrando as etapas aristotélicas para a construção do conhecimento (sensação, percepção, imaginação, memória, raciocínio e intuição), as incógnitas no escritório nunca ultrapassam para o narrador a fase de percepção, mantendo-se um constante estranhamento em um ambiente que é ao mesmo tempo familiar e enigmático.6 No projeto gráfico de Bartleby a capa é feita em papel áspero, o miolo tem um odor acentuado que lembra documentos antigos úmidos e a fonte itálica está presente em todo o corpo de texto. Os tipos itálicos começaram a ser desenhados, a partir do Renascimento, para proporcionar uma leitura fluida e contínua (BRINGHURST, 2005, p. 68), através de aberturas e fechamentos harmônicos no desenho do tipo. Entretanto, no design de livros contemporâneo um texto totalmente em itálico raramente é encontrado, primeiro pelas mudanças estéticas no uso tipográfico nos últimos três séculos, mas, principalmente, por não ser tão confortável à leitura como o tipo serifado romano. Para arrematar, Bartleby é lacrado, desde a costura da capa até às folhas que, antes do refilo, só dão ao leitor o muro. A série de inserções gráficas, ao contrário de tornar o volume amigável, apenas reforçam, através da aparência, os elementos não aparentes da narrativa, e tornam a edição um livro estranho. Feito para ser tocado, cheirado, visto, manipulado – antes de ser lido –, Bartleby é sinestésico. O livro é direcionado a um dono, e não à leitura compartilhada, à biblioteca ou à circulação: após o corte da costura e das páginas, muito se perde em um segundo manuseio. Supondo que todos os exemplares já houvessem sido abertos, restaria, a um leitor que ainda não conhecesse o livro, o relato de quem já houvesse experienciado Bartleby. O projeto gráfico adquire, assim, um poder aurático que, apesar de se amalgamar à obra, 6
Cabe aqui a lembrança do intraduzível conceito freudiano de unheimlich, redirecionado à análise literária por Tzvetan Todorov (Introdução à literatura fantástica, 1975). O conceito trabalhado por Todorov não pode ser transposto a Bartleby sem ressalvas, já que o autor o aplica especificamente no estudo da literatura fantástica. No entanto, a noção de familiaridade e estranheza simultâneas merece menção, por traduzir o insólito em Bartleby, no advogado, em Turkey e Nippers e no ambiente deWall Street.
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acaba por ter marcada uma individualização em relação a ela, e ao mesmo tempo incita (ou satisfaz) o leitor a uma experiência de posse.7 Mais uma vez volto a Benjamin, agora analisando sua observação em um sentido mais concreto: se a ânsia do leitor moderno antes mencionada era pela narrativa, no grupo de produções gráficas no qual Bartleby se insere ela se estende ao meio de materialização – o livro. A circulação do visto/sentido acontece, mas pelo viés de cada leitor, ao passo que a narrativa perdura no texto estabelecido. COMPARATIVO A impossibilidade de estabelecer leis rígidas para a criação gráfica talvez seja o único consenso entre os teóricos da tipografia e do design de livros. Se ora o design tem o dever de ser invisível o suficiente para que o texto apareça, ora é permitido e pertinente que ele dê ao leitor um contexto gráfico inesperado, para facilitar que o texto alcance toda a sua força e assuma a relevância que talvez não obtivesse com uma aparência convencional. O fato é que, no design de livro, toda escolha será relevante e adicionará efeito ao texto. Importante ressaltar que grande parte dos detalhes gráficos é assimilada inconscientemente pelo leitor comum: são raros os que dão maior atenção à posição de uma página de créditos ou à tipografia utilizada na publicação. Entretanto, todos estão igualmente sujeitos aos efeitos desses componentes durante a leitura.8 No projeto gráfico para literatura, as escolhas têm um resultado particular, pois trata-se de um acréscimo subjetivo a uma criação que também é subjetiva. Esse texto literário, portanto, está integrado a um estrato que poderá encaminhar o leitor a determinada interpretação, a partir de como é inserido na obra. O Bartleby da Cosac Naify é a quarta publicação brasileira da novela de Melville – antes o texto foi editado pela Record, no início da década de 1980 (a data provável é 1984),9 pela Rocco, na coleção Novelas Imortais em 1986, e em edição de bolso pela L&PM, em 2003.10 A versão da Cosac traz uma considerável ruptura em relação às publicações anteriores da
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Inclui-se nisso as vantagens mercadológicas que essa “aura” traz ao livro, já que ele só pode ser experienciado em sua totalidade quando novo. 8 Conforme Flusser, “Códigos imagéticos (como filmes) dependem de pontos de vista predeterminados: são subjetivos. São baseados em convenções que não precisam ser aprendidas conscientemente: elas são inconscientes. Códigos conceituais (como alfabetos) independem de um ponto de vista predeterminado: são objetivos. São baseados em convenções que precisam ser aprendidas e aceitas conscientemente: são códigos conscientes. ” (FLUSSER, 2007, p. 114). Assim, em uma obra cujo projeto gráfico se relaciona com o texto, há tensão entre a percepção – o aprendizado – do texto e a percepção dos elementos visuais. 9 Não foram encontradas, durante a pesquisa, imagens ou mais informações sobre essa edição da Record. 10 Posteriormente Bartleby foi editado também pela José Olympio em 2007 (agora pertencente ao grupo Record), pela Nova Fronteira em 2009 e novamente pela Rocco, dessa vez sob o selo Jovens Leitores, em 2010.
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narrativa no que compete já à capa. Em todas as antecessoras, a opção é pela tipografia comedida (serifas sem muito alarde ou disposição criativa), e ausência de ilustrações internas, padrão que pode ser estendido também às publicações posteriores à da Cosac. Merece menção a edição da Rocco republicada em 2010 sob o selo Jovens Leitores, que possui capa realizada pela retina78 Design, com grande apelo às cores e a um caráter representativo: a imagem principal é uma colagem a partir de The OP Spectacles, desenho inglês de Isaac & George Cruikshank que, originalmente, mostra uma caricatura do ator inglês John Philip Kemble (1757-1823) usando grandes óculos com as letras “O P” em cada uma das lentes, que refletem uma cena teatral. Nas lentes há as inscrições “Old House, Old Prices & No Private Boxes” e “Old House, Old Prices & No Pigeon Holes”, numa referência aos lugares dos antigos e baratos teatros ingleses (LIBRARY, [s. d. ]). No recorte da editora, a cena teatral e as iniciais são substituídas por duas imagens de gaiola, além da presença de um relógio, livros e manuscritos, uma chave e um pássaro. A capa faz uma interpretação alegórica do texto (nem gaiola nem pássaro, por exemplo, estão presentes na novela, exceto por uma única menção, irrelevante para a narrativa, deste último), colocando o advogado na posição de espectador e Bartleby na posição de um pássaro engaiolado. O reflexo dos óculos aponta para o leitor, e portanto pode-se fazer a leitura de que o Bartleby engaiolado está em quem lê. Idealizada como um “novo e ousado projeto gráfico” (ROCCO, [s. d. ]), a edição é, entretanto, bidimensional, ou seja, pensa-se o livro como suporte para receber impressões, e o projeto gráfico se configura a partir de uma visualidade restrita à imagem impressa. O papel não se relaciona com o conteúdo, assim como o formato, a disposição de elementos e a tipografia. Apesar da diferença entre a edição da Rocco e as demais, em todas as publicações falta certo aproveitamento do potencial do livro como um todo materialmente complexo, como encontrado na edição da Cosac.
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FIGURA 7 – Outros escrivães Edições publicadas pela (a) Rocco Novelas Imortais, de 1986; (b) L&PM, de 2003; e (c) Rocco Novelas Imortais, selo Jovens Leitores, de 2010. Fonte: Divulgação das editoras (capas) e fotos próprias (miolos).
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2 MOVIMENTO AVENIDA NIÉVSKI E notas de Petersburgo de 1836 Nikolai Gógol 2007
Ainda hoje é possível ver resquícios da Avenida Niévski dos anos 1830. Estão lá as calçadas largas, a Biblioteca Pública, o Palácio de Anítchkov, o amanhecer e o anoitecer que compartilharam a capital do império russo da época.11 O conto de Nikolai Gógol é parte de uma série de narrativas sobre Petersburgo, nas quais se inclui também as Notas de Petersburgo de 1836, texto meio artigo meio crônica anexo à edição da Avenida publicada pela Cosac Naify. A narrativa registra os caminhos do jovem pintor Piskarióv e do tenente Pirogóv, ambos atrás de duas mulheres cuja existência acabaram de descobrir; o primeiro acompanhado de uma ingênua e desnorteada paixão, e o segundo de sua artimanha e astúcia em prol da conquista da esposa de um artesão alemão radicado em Petersburgo. O tema de Avenida Niévski é, não Piskarióv ou Pirogóv, mas ela própria. As histórias dos dois homens começam e acabam enquanto a via faz indiferentemente uso disso para manter seu curso, alimentada pela passagem, pela morte e nascimento dos acontecimentos e de seus sujeitos. O projeto gráfico do livro traduz visualmente a importância do espaço na narrativa de Gógol, ao dividir o texto em dois blocos espelhados, numa referência aos lados direito e esquerdo da avenida. Para ir ao fim da narrativa, o leitor deve percorrer horizontalmente todas as páginas pela metade superior, para chegar à última, virar o volume de ponta-cabeça e recomeçar o trajeto, voltando pelo lado direito da via. O livro conta com litogravuras de 1830-1835 que reproduzem panoramicamente a avenida,12 e cada metade da folha é impressa em uma cor: na metade superior gravuras e texto estão em laranja, e na parte inferior a cor é azul. Paralelamente, a narrativa possui a transição do dia claro para a noite escura.
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Como mostra o recente street view do local pelo Google Maps (2011). Litogravuras de I. Ivánov e p. Ivánov a partir de aquarelas de Vassíli Sadonovnikov, publicadas por André Prévost (GÓGOL, 2007, página de créditos).
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FIGURA 8 – Avenida Niévski (2007) Embalagem em Off-set 100 g/m2, capa em cartão branco 220 g/m2, miolo em Munken Pure Rough 100 g/m2, acabamento brochura em Avenida e costura reta visível branca na lombada de Notas. Impressão em pantones laranja e azul (Avenida) e verde (Notas). Tipografia sem serifa (fonte não creditada) em Avenida e Nexus em Notas. Fonte: Fotos próprias.
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ESPAÇO E TEMPO DO PAPEL
“Paralelamente”, na verdade, expressa uma equivalência factual, mas não temporal. Em “Linha e superfície”, Vilém Flusser aponta que “a diferença entre a linha de uma só dimensão e a superfície de duas dimensões [é que] uma almeja chegar a algum lugar e a outra já está lá, mas pode mostrar como lá chegou. A diferença é de tempo, e envolve o presente, o passado e o futuro” (FLUSSER, 2007, p. 105). Segundo Flusser, é por esse motivo o profundo distanciamento entre a leitura de linhas escritas e a leitura de uma pintura. No caso, podemos estender a pintura mencionada por Flusser, na qual o procedimento de leitura é “apreender a mensagem primeiro e depois tentar decompô-la” (FLUSSER, 2007, p. 104) aos componentes gráficos determinantes em Avenida Niévski: gravura, tipografia, cor e disposição. Na perspectiva da linha versus superfície, esses elementos são lidos primeiramente no livro, e percorre-se a avenida por inteiro através deles, os quais mostram ao leitor que, no texto, ele participará de um percurso que sofrerá uma mudança brusca (o giro da página, que, a propósito, será dado por seu gesto). Após a leitura do conto, percebe- se que a mudança não foi apenas material e concreta, mas narrativa. Na primeira página o “narrador-guia” apresenta: Não há nada melhor do que a Avenida Niévski, pelo menos em Petersburgo; para a cidade, ela representa tudo. [. . . ] Não só quem tem vinte e cinco anos de idade, lindos bigodes e sobrecasaca admiravelmente benfeita, mas até quem tem pelos brancos que repontam no queixo e a cabeça lisa como umatravessa de prata se entusiasma com a Avenida Niévski (GÓGOL, 2007, p. 1).13
Mais tarde, na última página, desconstrói a ideia e aponta a verdade por trás do entusiasmo: Ela mente o tempo todo, essa avenida Niévski, porém mente sobretudo quando a noite recai sobre ela como uma densa massa e realça as paredes brancas e cor de palha das casas, quando a cidade inteira transforma-se em trovão e brilho, miríades de carruagens despencam das pontes, boleeiros berram e saltam sobre os cavalos e quando o demônio em pessoa acende os lampiões, apenas para mostrar tudo sob um aspecto falso (GÓGOL, 2007, p. 134).
Por o livro começar e terminar no mesmo ponto, os trechos do primeiro e último parágrafo citados acima compartilham a mesma página. Ao terminar o volume, a constatação de que materialmente o fim do texto estava em seu início remete à transição por que passa a perspectiva do narrador, no início um passante com discurso ingenuamente boêmio, e
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Uma interessante particularidade dessa edição é o início do fólio de acordo com o início da narrativa: página de créditos e demais acréscimos textuais ficam no fim do volume (no caso, no fim do volume das Notas). Esse cuidado, que pode sinalizar certo respeito sacro em relação ao texto, ocorre também na edição de Bartleby e em grande parte dos livros da Cosac Naify.
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ao final um vivente observador do espaço que faz parte dele mesmo. O que começou com floreios termina com certo mistério em relação àquela que parece ser uma avenida viva. Graficamente, a ideia é de que enquanto se caminha (e apenas enquanto se caminha) é possível analisar o espaço, e essa análise é sempre do oposto: enquanto se anda pelo lado esquerdo da avenida vai se conhecendo o direito, para na volta unir duas perspectivas e torná-las uma visão panorâmica, completude esperada de um narrador que se apresenta como profundo conhecedor do tema que irá tratar. Em Avenida Niévski, ao contrário do que ocorre em Bartleby, a aproximação entre projeto gráfico e texto se dá muito mais de forma visual que por meio de outros sentidos. O projeto é extremamente simples, contando com uma capa em cartão, de fundo branco, donde se destacam apenas os nomes do livro e do autor de um lado e do tradutor e da editora do outro (capa e quarta capa, respectivamente). Avenida Niévski e Notas de Petersburgo de 1836 vêm embalados em uma folha do Sanktpeterburgskiia Vdomosti, e já aí começa a ação do leitor, de gestualmente ler os volumes, desempacotando-os, dialogando com longínquos caracteres cirílicos no jornal e uma capa (a de Avenida) que não permite antever ordem de leitura antes de violada. A brancura da capa será a base necessária para destacar mais ainda o interior colorido. A tipografia é em fonte sem serifa, tradicionalmente usada em textos para serem lidos rapidamente como os de publicidade ou sinalização, devido a seu desenho limpo que torna fácil a apreensão do texto. Não é indicada para textos longos, pois sua falta de contraste entre pontas e curvas (já que não possui as hastes das serifadas) torna cansativa uma leitura prolongada, mas no curto texto de Gógol se encaixa perfeitamente, trazendo a rapidez do caminhar e o flaneurismo “de passagem” que possui a narrativa.14 As opções tipográficas, cromáticas e espaciais de um livro sempre espelham certo historicismo. O design do livro possui sua “sociologia”, e cada elemento assume inevitavelmente um sentido próprio. Em uma edição traduzida, monolíngue e produzida nos anos 2010, é de relevância a embalagem da edição trazer visualmente a cultura (era costume no século XIX embrulhar-se compras em jornais usados) e época da narrativa. Em contraposição e cerrando um anacronismo no mínimo interessante, estão as cores laranja e azul da fonte em Avenida, e o verde-escuro no fundo de Notas, escolhas pouco usuais na impressão de livros, que acompanham uma estética contemporânea de ruptura com o tradicional preto sobre branco.
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Elaine Ramos aponta que os textos escolhidos para publicação na Coleção Particular são sempre curtos, pois neles é possível tensionar o conforto que geralmente não pode ser negligenciado em um volume mais extenso (RAMOS, 2011).
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Assim, ainda que venha embalado em uma reprodução de jornal da época e possua litografias igualmente antigas, o projeto gráfico dá, através de um diálogo antropofágico entre o antigo e o novo, uma apresentação recente a uma narrativa datada de quase duzentos anos atrás, sem que se configure em uma criação meramente simulatória. O projeto contém movimento, não apenas no sentido de traduzir visualmente o espaço literário, mas também no fato de contribuir para uma realocação temporal da narrativa.
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3 VOLUME PRIMEIRO AMOR Samuel Beckett 2004
A leitura de um livro, quando bom, nunca termina com o fim de suas páginas. Há um after taste, e ela exige de nós um tempo de leitura de nós mesmos, de reflexão, que nasce no término do texto verbal. Nos contos e novelas, por serem histórias curtas e demandarem maior concisão, a diferença entre o tempo de leitura verbal e o tempo de absorção tende a ser ainda maior. Primeiro amor se encaixa nesse grupo de grãos de chumbo, pequenas esferas densas cujo volume de páginas não corresponde ao volume literário. O texto é o primeiro que Samuel Beckett escreveu em francês, em 1945 (embora tenha sido publicado apenas em 1970, pelas Éditions de Minuit). Nele, o protagonista discorre em monólogo sobre como conheceu o amor – numa acepção bem própria – e sobre fragmentos de sua vida. De início seus pontos de apoio no mundo são um estábulo e um banco de praça, no qual conhece Lulu, que depois passa a ser referida – porque ele se cansa do nome antigo – como Anne. O amante não nomeado “narra”, parcialmente, seu abandono do lar na juventude, os encontros pretensamente indesejados com Lulu, a repentina ida à casa da mulher – na qual passa a viver –, e a gravidez inesperada de um filho seu. Se há uma espinha temática no texto, ela pode ser creditada às repetidas menções à morte do pai, começando por: “Associo, com ou sem razão, o meu casamento à morte do meu pai, em outros tempos.” (BECKETT, 2004). Essa é a primeira frase do texto, que fica isolada e em negrito no canto inferior da primeira página. Entretanto, há uma abrupta quebra de página antes do adjunto. O que se vê, até que o leitor dê a primeira virada de folha, é apenas “Associo, com ou sem razão, o meu casamento à morte”. Amor e morte, no texto, serão elementos integradores um do outro, e se apresentam não numa perspectiva trágica por parte do protagonista, mas em uma visão em que tudo se resume ao banal. A sobrevivência, a memória ou a incompletude parecem sempre ocorrer indiferentemente: Aqui jaz quem daqui tanto escapou Que só agora não escape mais Há uma sílaba a menos no segundo e último verso, mas não importa, na minha opinião. Serei perdoado por mais do que isso, quando eu não existir mais. (BECKETT, 2004, não paginado).
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Ou ainda em: “As coisas devem ter se passado de modo completamente diverso, mas que importa, a maneira como as coisas se passam, desde que se passem?” e em: “quando me pegava chorando sem causa aparente, é porque eu tinha visto alguma coisa, sem me dar conta. ” (BECKETT, 2004). Ao contrário de qualquer sentimentalismo que possa sugerir seu título, Primeiro amor não é uma história feliz, nem traz a tristeza nostálgica que têm os primeiros amores. A ideia de desolação e de vazio é marca beckettiana, como bem averbariam Estragon e Vladimir, ou os homens especulares de Ohio Impromptu, ou ainda as cabeças prolixas nas urnas de Play, todos personagens de um mundo que, no sentido mais existencial do termo, é absurdo, por trazer um paradoxo entre o indivíduo se bastar (pois ética e moral não possuem nenhum peso ou aplicação ali) e a limitação inexplicável dele mesmo (limitação de espaço, de linguagem, de existência). Ao se fazer uma análise da obra de Beckett, tudo acaba inevitavelmente por dividir-se em extremos opostos, conviventes por algum motivo no mesmo perímetro. Na edição da Cosac Naify, a folha aberta de Primeiro amor é dividida em dois polos: texto no extremo esquerdo das páginas pares e desenhos no lado direito das páginas ímpares. Colada na margem quase inexistente das páginas esquerdas, a verborragia sincopada do protagonista vai se acumulando em um canto do livro aberto, ocupando-o apenas naquele espaço restrito, em fonte Univers condensada e entrelinha mínima. Mais uma vez o intocável conforto visual da leitura é violado, forçando o leitor a enxergar o livro durante a leitura. O espaço vazio no meio da folha aparta o texto de borrões, pinceladas, rastros de tinta e sombras presentes nos cantos opostos, desenhos que fotografam, através de um traço que vai se afinando ou crescendo de acordo com a quantidade de tinta presente no pincel, uma performance de sua própria construção. Assinados por Célia Euvaldo (também tradutora da edição), as ilustrações transmitem algo de passagem do tempo, de forma suja e imperfeita,15 enquanto o texto permanece fechado, olhando para si no canto à parte. A sintaxe invertida e os anacolutos de pensamento do homem que se esquiva de associar nascimento a morte, diálogo a assunto, juventude a velhice e amor a sentimento se encaixam perfeitamente na atmosfera engolidora de um luto negro, dos traços e da capa, sobre a frágil cor de areia do papel Chamois.
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Espacialidade, materialidade e temporalidade são temas muito presentes em toda a obra de Euvaldo, que os denomina “O tempo da tinta”, “O peso do corpo” e “A matéria da tinta”, numa tradução do aparecimento do gesto do artista na obra. (EUVALDO, [s. d. ]).
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FIGURA 9 – Primeiro amor (2004) Capa em cartão tintado em preto 250 g/m2, miolo em Chamois Fine Dunas 67 g/m2, acabamento em costura reta branca visível no verso do volume. Detalhe: margem estreita e rastros do desenho invadindo o texto. Tipografia em Univers condensed (miolo). Fonte: Fotos próprias.
Parece inadequado falar de volume físico em uma edição de 32 páginas impressas em papel de 67 g/m2, mas o fato é que Primeiro amor possui, materialmente, o dobro de volume do que se pode supor a partir dessas duas informações. Cada página da edição, como em Bartleby, é dobrada e sem refilo, o que faz de uma folha ser na verdade duas. A impressão, feita antes da dobragem do papel, permite que o desenho de uma página
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direita invada o texto da página posterior, pela margem. Percebe-se, assim, o quanto lados que pareciam extremos estão na verdade juntos – e para vê-lo basta um olhar que já está sendo forçado desde o início da leitura. Ao contrário do que o projeto na história do escrivão permitia à ânsia por transpor o muro de Melville, aqui o interior branco da folha dupla no monólogo mostra que a extremidade não pede corte. O texto já está à mostra, e o gesto do leitor não existirá. Cabe a ele apenas suportar, material e literariamente, o volume do amor.
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ONDE CONVERGEM OS TRAÇOS Um dos maiores paradoxos da arte é sua aversão a qualquer comunicação (sua função não é a de comunicar nada) ligada à sua dependência de um instrumento comunicante para se propagar, seja o som, a imagem, ou o texto. Nos três capítulos anteriores procurei abordar efeitos que o texto literário cria através da palavra, mas que nos casos são concretizados pelo meio de materialização, o livro. Os projetos gráficos analisados trazem características que são próprias de cada narrativa de forma sensorial, para além do texto verbal, e não são um acréscimo ilustrativo, mas uma forma de pensar o texto. São criações críticas. Sendo os estudos a respeito do design de livros empreendidos quase sempre pela área da edição, considerei interessante, como bacharelanda em estudos literários, desenvolver uma pesquisa que abordasse aplicações editoriais sem que fosse deixada em secundário a particularidade de cada narrativa, que afinal é a razão de ser do livro nos casos tratados (visto que nenhuma delas foram produzidas levando-se em conta o meio em que seriam materializadas, propriamente falando). Convém que estudos desenvolvidos na perspectiva da semiótica da qual se vale o hipertexto e o livro-objeto, traçados ao longo do século XX por teóricos como Mallarmé, Derrida, Blanchot e Borges, já bastante analisados pela teoria da literatura, sejam aproximados a teorias da edição e comunicação como as de Flusser, Hendel, Bringhurst e Genette. É através dessa junção de perspectivas que se pode abordar o fenômeno que acontece nos livros tratados neste trabalho: todas as obras escolhidas são publicações póstumas, portanto o objeto resultante do trabalho gráfico não possui de forma alguma a mesma autoria do texto literário, mas sim a de um indivíduo ou instituição externa à vontade do autor. Em Paratextos editoriais, Gérard Genette denomina peritexto o texto que […] se encontra sob a responsabilidade direta e principal (mas não exclusiva) do editor, ou talvez, de maneira mais abstrata porém com maior exatidão, da edição, isto é, do fato de um livro ser editado, e eventualmente reeditado, e proposto ao público sob uma ou várias apresentações mais ou menos diferentes (GENETTE, 2009, p. 21, grifo do autor).
Estão inclusas nesse grupo as manifestações icônicas e materiais, como o projeto gráfico. Como todo paratexto, a ideia é de que elementos do livro (e sobre ele) além do texto literário propriamente dito influem em sua recepção. Não houve, no processo de edição de Bartleby, Avenida Niévski e Primeiro amor, por exemplo, conversas como as que existiram entre Mallarmé e seu editor sobre espacialidade da página, lances gráficos do texto ou metáforas literárias projetadas na imagem, ou as reflexões traçadas por Poty e Guimarães Rosa para a ilustração dos livros deste último, ou a parceria sólida entre Monteiro Lobato e Belmonte para uma produção gráfica pensada em conjunto. O diálogo entre produção
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(para publicação) e recepção (do leitor) aqui é comandado pelo primeiro intermediário, o editor, algo inevitável. Como pergunta Richard Hendel, para depois ele mesmo responder negativamente, “Será possível fazer o design de um livro que não reflita de alguma forma a época em que ele é feito?” (2006, p. 12). Como afirma Vera Casa Nova em Fricções (2008), no livro (material) criado para além de sua funcionalidade, a simples análise do conteúdo não é o bastante, visto que nele o próprio livro já é literatura. Livro-objeto, difícil de ser definido de forma cerrada ou definitiva, a exemplo da maioria dos conceitos literários, pode ser entendido aqui como um suporte que, por sua configuração artística e autoral, deixa de ser um suporte apenas, e adquire um caráter de obra, com substância. Ele deixa de ser, pois, um “livro-códice” (CASA NOVA, 2008, p. 135). Seguindo essa visão, o projeto gráfico é um traço sobre outro traço. Assim como o desenho concebido por Sempé, citado na epígrafe deste trabalho, é uma “verdade nova” dada ao leitor.
LITERATURA DE MERCADO
Colocou-se quase sempre em foco aqui o nome Cosac Naify. Parece incongruente que criações tão subjetivas quanto os projetos gráficos críticos tenham sua autoria ligada mais à editora que a seu autor de fato. Utilizou-se a menção à editora porque no caso em específico o limite que a separa da projetista é tênue.16 Elaine Ramos acompanha todas as etapas do processo editorial e inclusive participa da escolha dos originais a serem editados, o que torna seus interesses e os da Cosac Naify quase um só (RAMOS, 2011). No entanto, cabe aqui se observar que a projetista das três obras ocupa lugar de grande destaque na editora (é sua atual diretora de arte, como mencionado) e, ainda assim, seu nome segue aparecendo apenas na página de créditos, ao contrário do recém-emancipado destaque ao tradutor e ilustrador, agora presentes nas capas das edições e também nas referências feitas à obra. Essa posição escondida, inclusive, camufla o trabalho gráfico, como se ele fizesse naturalmente parte do texto – e não como se fosse uma criação crítica. Evidentemente, um apagamento autoral é extremamente favorável a um foco na editora como corpo único. Afora a contribuição claramente subjetiva, o “traço” do projeto gráfico é também o livro por vir mercadologicamente falando. Nos últimos anos, em especial a partir do final dos 1990, muito se tem discutido (de forma por vezes sensacionalista, há que se dizer) a respeito do livro digital/eletrônico e qual será seu lugar num futuro em que tudo o que
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Em outros contextos, essa relação pode ser bastante tensa. Vide a respeito o Anexo A, que reproduz o textodeMoemaCavalcantisobreasjátradicionais“podas”empreendidaspeloseditoresnosprojetistas.
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é físico tende a ser transposto a uma nuvem intocável e imaterial da computação. Evocar a qualidade do livro como um objeto para além da mera transmissão do texto é uma forma que as editoras podem ter como trunfo em relação ao advento da abstração. Nesse contexto, merece observação o quanto essa tática interferirá na literatura, então tratada como item de comercialização.
O QUE VIRÁ
Em “A letra e o livro” (2011), Elaine Ramos observa que nem todo texto literário comporta “malabarismos formais e tipográficos” em sua composição editorial. É preciso, segundo a autora, certo “silêncio” ponderativo em relação ao texto. Concomitantemente à reflexão, segue crescendo a Coleção Particular, as editoras que pelo exemplo se arriscam ao novo, as ideias demolidoras de velhos conceitos. À semelhança da previsão de Italo Calvino sobre que elementos predominariam na literatura deste milênio, talvez também o projeto gráfico de obra literária esteja passando por um momento de reflexão a respeito do design de livros crítico no cenário brasileiro. É fato que “Toda arte é linguagem” (BLANCHOT, 2005, p. 354, a respeito da perspectiva mallarmaica) e “toda arte é uma forma de literatura, porque toda a arte é dizer qualquer coisa” (CAMPOS apud CASA NOVA, p. 7). Há no projeto gráfico, portanto, um poder de desconstrução e reconstrução do texto literário, de sua sacralidade. Nesse processo, nada mais natural que a projetuação faça parte da contribuição para um conceito vasto, irrestrito como deve ser, da literatura.
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REFERÊNCIAS
DO CORPUS BECKETT, Samuel. Primeiro amor. Trad. e ilus. Célia Euvaldo. Projeto gráfico: Elaine Ramos. São Paulo: Cosac Naify, 2004. Não paginado. GÓGOL, Nicolai. Avenida Niévski e notas de Petesburgo de 1836. Trad. Rubens Figueiredo. Projeto gráfico: Elaine Ramos e Gabriela Castro. São Paulo: Cosac Naify, 2007. MELVILLE, Herman. Bartleby, o escrivão – Uma história de Wall Street. Trad. Irene Hirsch, Josely Vianna Baptista e Maria Carolina de Araújo. Projeto gráfico: Elaine Ramos. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
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ANEXOS ANEXO A – “A CAPA”, DE MOEMA CAVALCANTI A CAPA
A capa é a embalagem do livro. Papel mais grosso, muita cor para chamar a atenção. Quando um editor me chama para fazer uma capa, vai logo dizendo que eu estou livre para criar e vai passando as coordenadas: bota orelha-não bota orelha, mas acham orelha muito caro porque gasta mais papel... Formato? O de sempre. Não pode mudar. Os livreiros não suportam livros que não caibam nas prateleiras. Tem título (enorme, geralmente) e subtítulo para o leitor entender melhor o que o autor quis dizer com o título. Tem o nome do autor (ou vários). É autor importante? Vende muito? É artista de TV? Então coloca o nome dele bem grande. Grandão! Tem logotipo da editora na primeira capa, na quarta capa, na lombada. “Dá pra ser colorido? Dá pra ser maiorzinho?” Ah, sim! Bota novamente o autor e o título na capa de trás. É para o leitor não se esquecer quando acabar de ler todo aquele texto da quarta capa. Olha! Não se esqueça do código de barras e do ISBN. É importante, sabe, a globalização, a gente precisa mostrar que é “muderno”. Acabou? Não. Falta o texto da orelha – geralmente tirado do prefácio, ou seja, lá dentro do livro tem o mesmo texto, de novo. Pra quando? Depois de amanhã, sem falta. O pagamento? No dia dez do mês que vem, e geralmente estamos no primeiro dia do mês anterior. Então o editor me diz: a gente escolheu você porque você é criativa. Quero uma capa linda. Ponha sua imaginação para trabalhar. OK! Se sobrar espaço na capa... É assim. Setecentos e cinqüenta vezes foi assim na minha vida.17
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Publicado em A gráfica do livro/O livro da gráfica, de Claudio Ferlauto e Heloisa Jahn (1998).