plástico bolha aparentemente insólito...
Ano 2 - Número 17 - Outubro/2007
Distribuição Gratuita O que já era bom acaba de ficar ainda melhor, e maior! O plástico bolha agora vem com 12 páginas de puro pensamento, nas suas mais diversas modalidades. Participe você também, enviando seu texto para o nosso e-mail: jornalplasticobolha@gmail.com Este número especial vem cheio de novidades, a começar pelos nossos novos colunistas: Santuza Cambraia Naves, do departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, que passa a dar dicas musicais na coluna Por dentro do tom e Felipe Carvalho dos Santos, da pós de Letras, que apresenta os saberes não-ocidentais nas (sobre)vivências. Miriam Sutter, da área de Letras Clássicas, inaugura a nova coluna Oráculo, um espaço dedicado aos mitos e à cultura da antiguidade. O poeta Eucanaã Ferraz enviou-nos um poema belíssimo; Ricardo Sternberg continua tendo seus poemas traduzidos, dessa vez por Mariana Lopes; e nosso chargista Heinz Langer continua impagável. O Aos alunos com carinho ficou por conta da professora Ana Paula Kiffer, e a coluna Puzzles vem com mais um texto de Marília Rothier sobre Nietzsche, a continuação de seu Puzzle anterior. A nova coluna Desafio Poético propõe aos leitores os mais variados exercícios líricos, neste número de estréia, uma tradução às cegas do renomado poeta húngaro Démeny Zita. Nicole O’Hara enviou-nos de Paris, onde faz mestrado na Sorbonne, um Mulheres-Damas à altura dos textos de Ana Chiara. Tatiana Levy também participa com um conto especial. Para completar, uma entrevista em família: Isabel Wilker entrevista seu pai, José Wilker, em uma conversa sobre teatro, cinema e literatura. Muitos outros vêm completar esse festival de idéias com seus contos e poemas, fazendo deste o plástico bolha mais especial de todos os tempos. Aproveite!
NESTA EDIÇÃO miriam sutter
Agora é pra valer
Desabotoa-se por fim a cena que se desenhava no baço da janela do sonho (o sonho é uma espécie de vidraça?)
Metonímia Para escrever bonito, me ensinaram expressões grandiosas e doces. Comentaram a extrema importância de um vasto léxico e do conhecimento (profundo!) de todas as palavras. Então passei a definir com cuidado compota, cheiro, despretensiosamente, saudade e morango. Tirei tudo isso de letra, fiz direitinho a lição de casa e, em pouco tempo, eu engolia dicionários com a avidez de quem aprende a falar. Mas logo depois descobri que me ocultaram um detalhe imenso, como só a palavra minuciosamente escolhida poderia descrever: pri-mor-di-al. O bom escritor deve saber muito mais que palavras: é preciso, antes de tudo, esquecer-se delas. E reinventá-las, ao ponto em que o sentido de saudade se mescle com o de cheiro, e, assim, sem pretensão, morango e compota sejam uma coisa só. E vice-versa.
Constanza de Córdova
santuza cambraia naves
josÉ wilker
felipe carvalho sueli rios luiz coelho
ger
z Lan
Hein
ana paula kiffer
paulo henriques britto
Cristal
e tudo o que se realiza vive da necessidade, agora que o motor do instante se agita e vibra sua perfeição. Enfim, vem à luz a experiência que se vinha elaborando no laboratório de algum andar do sonho (o sonho é uma espécie de edifício?): o mar nasce de amar, e – cristalinas – águas sem margens usurpam a cidade, arrastam inocentes. Os amantes gozam. É justo que seja assim. Eucanaã Ferraz Poeta e professor de literatura brasileira da UFRJ, é autor de “Livro Primeiro”, “Martelo” e “ D e s a s s o m b ro ” . A t u a l m e n t e c o o rd e n a o POP - Pólo de pensamento contemporâneo.
dÉmeny zita
marÍlia rothier
ricardo sternberg angelo abu tatiana salim levy
lucas viriato eucanaà ferraz letÍcia simÕes
isabel wilker
mariana lopes paloma espÍnola lasana lukata heinz langer edson santana
isabel diegues
letÍcia katz raquel naveira
silvia bagrichevsky
thiago costa faria
luiz carlos nascimento
gregÓrio duvivier
manuelle rosa dimitri merino
paulo gravina
marcelo dos santos nicole o’hara guilherme amado fernando soares rosÁlia milsztajn marilena moraes roberto s. queiroz jr. camilo pinheiro machado
constanza de cÓrdova
Aos alunos com carinho
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–Professora, existe uma interpretação correta? –Não, mas errada existe! Como “interpretar” esse diálogo, de tom levemente absurdo, mas indicador profundo das angústias que habitam, sim, os estudantes de Letras hoje? Não sejamos ingênuos, não só os alunos sofrem dessa angústia. Nós, professores, a vivemos a cada texto lido em sala de aula, posto que já não temos mais “a leitura correta” a oferecer. Ainda ontem Ana Cristina César (leiam! está em seus Escritos do Rio, e o texto chama-se ironicamente “Os professores contra a parede”) falava, neste mesmo campus, de “uma certa ditadura teórica”, falava não contra a teoria, bem entendido, mas contra “a teoria correta”, aquela à qual o professor se filiava e impunha, “tentando eroticamente a turma, como um sultão sobre seu harém”. Duas grandes lições, só para começar: já nos distanciamos desse texto da poeta e constatamos a falência dos grandes sistemas de pensamento que indiciavam as leituras corretas, respondendo, por conseguinte, à primeira parte do diálogo ‘absurdo’. Mas não perpetuemos o equívoco de achar que, porque enterramos as escolas e os “ismos”, devemos nos esquecer dos autores e, sobretudo, dos textos que a elas deram origem. Ao contrário, torna-se fundamental lê-los agora mais do que nunca, libertos de seus automatismos escolares. Na esteira da cantora direi: “Vamos comer Marx, vamos comer Freud...” Mas o texto de Ana C vai mais longe e nos faz constatar a íntima relação entre o saber, o poder e o corpo. Mesmo que Ana C indicasse um quadro bastante específico (professores majoritariamente homens e turmas formadas majoritariamente de mulheres), ela apontava, de modo lapidar, para aquilo que Foucault desenvolveu em sua História da Sexualidade (leiam!!!). Que o poder não é algo abstrato, distante, restrito aos centros e cargos. Ao contrário, ele se exerce desde o mais ínfimo contato humano, sobre a pele, entranhando nos corpos. Desse modo, os discursos do saber (aparentemente neutros) mantêm íntima relação com os desejos mais recônditos. Ora, mesmo que o perfil sociológico do curso de Letras tenha mudado (estaríamos hoje finalmente mais próximos do “matriarcado de Pindorama”?), e que, por conseguinte, as relações de poder tenham se transformado, não significa que ele não se exerça e, muito menos, que saber e corpo não se entrelacem. Um dos entrelaçamentos possíveis é o que chamarei de “paixão interpretativa”, doença que sofre ou deveria sofrer todo leitor/crítico. Afinal, ainda nos falta responder à segunda parte do diálogo, entendida a inexistência da leitura/interpretação correta, falta entender a existência da “errada”. Dito de modo mais polido: os limites para o que se brada ser o reino livre, único e universal da “MINHA leitura”!!! É óbvio que poderíamos responder a isso enumerando um certo número de exigências para o exercício interpretativo, tais como: conhecer o contexto da obra, a sociedade que a leu e que a comentou, as críticas mais importantes a respeito do autor ou da obra diferençando suas escolas, as distintas vertentes teóricas em jogo, etc. Mas, apesar de ser fundamental poder conhecer esses itens todos, algo ainda se tece noutro plano. Muitas vezes, uma leitura não cumpre nenhuma das exigências e consegue se aproximar sensivelmente do texto, produzindo uma crítica pertinente, criativa, iluminadora. Outras vezes, cumpre-se item por item e se produz uma crítica meramente burocrática, onde faltou justo uma pitada daquela doença do leitor... A doença do crítico/leitor/escritor ou escrevente (escolham o termo) é aquela que faz com que algo nele se transporte em bloco para as perguntas da infância: “Por quê?”, “Como?”, “O que é isso?” Naquilo em que essas perguntas são o desvelar de um mundo, em sua simplicidade e em seu mistério. A paixão interpretativa faz, então, com que os sentidos instituídos e as imagens fixadas se movam, a paixão viola, inflama e insufla de ar, fazendo com que as letras se mexam, como os assombros das palavras de Guimarães Rosa, ou o maravilhamento daquelas de Manuel de Barros, ou mesmo a secura cortante daquelas do velho Graça e tantos, tantos outros. O movimento é ele mesmo involuntário — como toda paixão irresistível — e começa por um toque leve mas febril dos dedos sobre o plástico (papel) e só se completa com o estalar, estourar da bolha (letra). Só se completa quando o ar se liberta da bolha / letra! O estal-ar é o limite da “minha leitura”! –Eta professora, tá viajando? Estou dizendo que a experiência literária propiciaria experimentar coisas, mundos, afetos diferentes daqueles que vivemos e que nos constituem como uma identidade ambulante. Seria uma experiência provocadora de um “sair de si mesmo”. Isso parece pouco, mas é muito, no interior de uma cultura que se ergue a partir da certeza e veracidade nas experiências que encontram origem e centro justo num “si mesmo” que as sustente! Caberia então ao leitor/crítico, antes de mais nada, dar crédito a essa experiência literária. Saber, portanto, que a literatura pensa. Que não é ele o centro emissor de uma razão sobre a literatura (encerrando-a no mundo perdido das emoções...) e, a partir daí, buscar se aproximar do específico dessa experiência literária que é justo o que nos conecta com um fora, o ar ao sair da bolha, estalAR! Nessa perspectiva a leitura mais pessoal é aquela cunhada no seio da “despessoa” (termo de Marguerite Duras). Paradoxo da leitura que faz com que um limite se interponha ao “meu”, ao “minha” (exagero de um mundo de propriedades), e que um crivo se mantenha em proveito desse múltiplo que é a palavra solta no mundo, que é a confirmação mesma de que outro mundo é possível. Registro aqui meu carinho, Parabenizo o coletivo bolha, E um beijo da Ana Paula Kiffer Professora de Literatura da PUC-Rio
Capitais
Associações
250 g. de jóias 250 g.de silicone 250 g. de chocolate 250 g. de palavrões 250 g. de bocejos 250 g. de silicone alheio
250 g. de nariz empinado
Ando pelos subterrâneos Como subterfúgio Num continuum Evito dores das luzes
+ + + + + +
Ando pelos ares Como os pássaros Encondo asas Para não as cortarem
1kg 750 g. de remorsos.
.
. .
Pensando bem, vou deixar... pra me arrepender só depois do verão.
Marilena Moraes
Às vezes ando Como semiviva Por lembrar a vida à morte E não quero pensar nisso
Rosália Milsztajn
Subjetivas por Gregório Duvivier
Tudo já foi dito Todos os livros falam de outros livros, todos os sons de outros sons e todos os sons de outros livros, cores e cheiros. Não se pode dizer hoje sinto saudades sem evocar – mesmo sem conhecer – a saudade que Casimiro sentiu da aurora da sua vida ou tudo aquilo que fica daquilo que não ficou ou o ronco barulhento do meu carro e os erros do meu português ruim. Há em toda saudade traços indeléveis da saudade de Ronsard, de Cecília, de Roberto, de Caio, de Cole, de Gonçalves, de Florbela e de cada um que já cantou sua saudade em altos brados. Este texto mesmo está permeado de outros textos e tentar descobrir o que o permeia é cair numa cilada pois o que o permeia foi permeado por textos já antes permeados e se seguirmos adiante nessa genealogia textual descobriremos que ela é viciosa pois eu também estou a influenciar os textos que cito pois eles passarão a ser para você leitor um texto por mim citado. Assim, mesmo sendo posterior a eles, influencio meus predecessores – Borges principalmente, que já disse tudo isso muito melhor, e antes, do que eu. E pode ser que já o tivessem dito antes dele. Pois tudo já foi dito. Inclusive que tudo já foi dito* . * Posteriormente à escrita deste texto descobri que o trecho “Tudo já foi dito. Inclusive que tudo já foi dito.” também já foi dito, mas não lembro por quem.
plástico bolha produzido pelos alunos de Letras da PUC-Rio
Editor Lucas Viriato Editora Assistente Marilena Moraes Conselho Editorial Luiz Coelho Gregório Duvivier Isabel Diegues
Comissão Constanza de Córdova Carlos Andreas Tomé Lavigne Julia Barbosa Isabel Wilker Edson Santana Projeto Gráfico Lucas Viriato
Tiragem: 8.000 Impresso na CUT Graf Distribuído no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte
Coordenação Paulo Gravina Lucas Viriato Revisão Marilena Moraes Rubiane Valério Rafael Anselmé Gabriel Matos
Equipe Márcia Brito Beatriz Pedras Paloma Espínola Fernando Fernandes Joana Petersen Apoiadores Maria Regina Viriato Ettore Siniscalchi
Envie seus textos para: jornalplasticobolha@gmail.com
A essência das vogais
As vogais não têm cor, como já pensou Rimbaud, não têm cheiro, como a flor, não têm gosto, só no emprego, e certamente não têm medo; não acordam nunca cedo para irem trabalhar. Mas elas têm, sim, essência, pois qualquer consciência vai notar a tendência – ou será uma insistência mascarada em coincidência – que nós, seres humanos, temos na letra “a”. De Alá a abracadabra, essa vogal inerente está sempre presente nos discursos e nas palavras de qualquer tempo e região. É fato que Saussure a pensou bem arbitrária e a posteriori predicou variedade sem notar nenhuma igualdade nem qualquer forma de padrão. O padrão existe, sim, e está exatamente na relação tão veemente – seja toante ou consoante – que sentimos diante do acaso e que, por acaso, nos faz dizer: “ah!”. Mas ele nem precisava ter percebido tudo isso, bastava só ter lido o seu próprio nome escrito, em que a soma das vogais “a” com “u” dá numa nova: “oh!”. E não digo nada mais da essência das vogais, que o digam os poetas na sua ânsia tão correta de torcer com a linguagem, numa volta à infância, onde tudo é assonância. Paulo Gravina
O agora inteiro Este mar enorme. O amarelo, o laranja, também a asa-delta a deslizar no vazio colorido do céu, do instante.
Ricardo Sternberg
Seguimos publicando a série de poemas que Ricardo Sternberg, professor de Literatura Portuguesa e Brasileira da Universidade de Toronto, enviou para o Plástico Bolha. Nesta edição, a aluna Mariana Lopes Peixoto, acostumada a traduzir para a televisão em seu estágio na Gemini Vídeo, aceitou participar de mais uma aventura poética (ela já traduziu um poema de André Sigaud na edição #5). Assim como os demais poemas da série Sternberg, também este conta com a louvável supervisão do tradutor, professor e poeta Paulo Henriques Britto.
Blues Toot me something on your golden horn He said to the musician. I feel cold as my soul turns blue. Jerryrig me some intricate melody Full of those diminished sevenths And with enough thrust to push me through Bar by smoky bar, into oblivion. Extricate me from thorny feelings, Put brain and heart to sleep. Bring out a flute and its Bolivian So sorrow can be trumped by sorrow. Afford me, at any price, some peace. Today I feel bedraggled, Befogged by this predictment. Will I find myself myself again tomorrow? 3
Não se trata de algo concreto. O momento vivido é indescritível. De que adiantam estes versos? Cabe a ti, leitor, adiantar-te. Seja como for, o mar continua abundante e, como a vida, esconde em suas profundezas seja o que for.
Blues Toque algo para mim no seu instrumento dourado Disse ele ao músico. Sinto frio vendo minha alma se amargurar. Improvise para mim uma melodia complexa Cheia de sétimas diminutas E com força suficiente para me empurrar. De bar em bar esfumaçado, me alienando Livre-me de sentimentos espinhosos Deixe o cérebro e o coração dormirem
Eu riria, choraria, gritaria o tom de minhas entranhas. É tanto que eu me resigno aos limites deste poema.
Traga a flauta e seu boliviano Para que a melancolia possa ser trunfada pela melancolia Dê-me, a qualquer custo, um pouco de paz.
Dimitri Merino
Hoje eu me sinto em trapos Confuso por esta previsão Será que eu serei eu mesmo no outro dia?
Lucas Viriato
PSICOLOGIA Rosana de Oliveira Guia
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Por dentro do tom por Santuza Cambraia Naves
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CD Estação Melodia. Luiz Melodia. Biscoito Fino. 2007. O novo CD de Luiz Melodia é dedicado a Oswaldo Melodia, sambista do Estácio e pai do músico, e a Wally Salomão. O repertório do álbum consiste em grande parte de sambas tradicionais, dos anos 40 aos 70, incluindo duas composições de Oswaldo Melodia, “Não me quebro à toa” e “Linda Tereza”. As exceções ficam por conta de “Nós dois”, única canção de Luiz Melodia que consta do disco (em parceria com Renato Piau), e “Choro de passarinho”, de Piau, Euclides Amaral e Rubens Cardoso, em que a letra é toda estruturada a partir de títulos de vários chorinhos, tangos e polcas conhecidos, como “Odeon”, “Flor amorosa”, “Brasileirinho” e “Tico-tico no fubá”. Entre os sambas gravados em Estação Melodia há alguns clássicos de Cartola, Ismael Silva e Geraldo Pereira, e também um que fez sucesso em 1964, “O neguinho e a senhorita”, de Noel Rosa de Oliveira e Abelardo da Silva, além de obras de músicos de tão pouca notoriedade que seus nomes e os títulos de suas músicas não constam nos dicionários especializados. Estação Melodia é primoroso, da escolha do repertório aos arranjos (a cargo de Silvério Pontes, Humberto Araújo e Alessandro Cardozo) e à interpretação singular de Luiz Melodia, que recria e atualiza os sambas antigos. O projeto gráfico do disco (Branca Escobar e Luciana César) também merece menção, com a foto de um aparelho de rádio dos anos 40 na contracapa e no encarte. Algumas faixas se destacam. A interpretação de “Chegou a bonitona”, por exemplo, de Geraldo Pereira e José Batista, evoca o ambiente das gafieiras cariocas ao jogar com o trompete de Silvério Pontes e o sax-tenor de Humberto Araújo, além, naturalmente, da ginga de Luiz Melodia. Em “Recado que Maria mandou”, Luiz Melodia captou de maneira magistral o espírito humorístico da composição de Haroldo Lobo e Wilson Batista. Finalizando o álbum, “Linda Tereza”, de Oswaldo Melodia, recorre a uma percussão afiada, a cargo de Netinho Albuquerque e Rodrigo Jesus, e a um coro com a participação de As Gatas. Estação Melodia, além do apuro formal, é um convite à dança. O disco reúne técnica musical requintada e o clima das rodas de samba e gafieiras.
mulheres-damas por Nicole O´Hara
Xerazade Tecelã das noites Das mil e uma inutilidades... Fez das letras seu banquinho de forca Sustentando os mitos
Sua vida resumida a Sussurrar ao pé do ouvido.
Junto com o poderoso Xeriar naquelas noites de frio dos excessos de xis — há quem veja um trocadilho.
Puzzles AS POTÊNCIAS DA FICÇÃO II
Cuidado! Você está lendo um texto roubado que trata de um assunto, no mínimo, duvidoso. Se for capaz de equilibrar a curiosidade e a desconfiança, prossiga. Não se trata de versão banalizada de um conto de Borges; embora pouco verossímil, esta trama envolve especialistas, doutores e integrantes do sistema editorial. Parte da história diz respeito a um livro que circula por vias consideradas plenamente legítimas, desde 1908, e vem sendo objeto dos mais prestigiosos comentários e traduções. A outra parte, publicada como continuação do mesmo livro, surge com as evidências claras da fraude. No entanto, não foi tirada do mercado, tampouco sua gênese recebeu explicação satisfatória. O primeiro volume, sobre cuja autenticidade não pairam dúvidas, revela-se tão sedutor quanto desconcertante, pois confronta a filosofia com as questões que sua tradição sempre evitou enfrentar. Já o segundo, com inequívoco apelo detetivesco e sensacionalista, jamais se tornou um best seller. O número de seus prováveis leitores não ultrapassa o círculo de seus críticos, todos inseridos na vida acadêmica. Diante do exposto, o leitor certamente estará pensando que me apropriei do estranho tema nos acasos da internet. Engano. Encantei-me com a intriga rocambolesca durante uma defesa de tese de doutorado. Como? A bibliografia erudita também tem seus momentos de suspense. A tal assinatura problemática não pertence a ninguém menos que Friedrich Nietzsche e os livros em debate apresentam-se como sua autobiografia. O primeiro é o Ecce homo, o segundo circula com o título de Minha irmã e eu. Caso se compare a respeitável fortuna crítica da autobiografia, dada por legítima, com a polêmica – ora ingênua, ora obviamente interessada – que o outro texto levantou, não se terá dúvida em rejeitá-lo como desdobramento apócrifo, composto grosseiramente. Mas... o título, Ecce homo, tomado de empréstimo à identificação bíblica do próprio Cristo, o Salvador, bem como o subtítulo capcioso – como tornar-se o que se é (fragmento de um verso de Píndaro) – podem indicar tanto um empreendimento audaz de revisão cultural, quanto um delírio de automitificação. Além do mais, sabe-se que todas as biografias de Nietzsche afirmam que Ecce homo foi escrito às vésperas do surto, diagnosticado como loucura, que manteve o autor internado ou sob a guarda da família pelo resto da vida. O delírio assusta tanto quanto atrai, porque acaba por nos liberar das regras rígidas com que a sociedade controla a emissão pública das falas e a circulação dos textos. A verdade de hoje pode ser a mentira de amanhã. Bastante liberal com as formas da sandice e da burla, o espaço literário insiste em roubar ao terreno da filosofia toda uma classe de escritos ambíguos, de caráter aforístico, alegórico ou confessional. Não lhes exige coerência, nem prova de autenticidade. Ao contrário, as dubiedades e os equívocos, os jogos de simulacro e os plágios escancarados é que dão sabor à arte da ficção. A força instigadora do nome de Nietzsche ultrapassa os acasos e interesses editoriais que ora forjam uma confissão picante – tradução de original supostamente desaparecido – ora incorporam à autobiografia canonizada trechos antes censurados dos manuscritos. Respire fundo. Relaxe. Experimente ler alguns fragmentos do Ecce homo e, se encontrar numa livraria, um exemplar de Minha irmã e eu, não se acanhe, condescenda com sua curiosidade e compre-o. Enfrente a aventura da(s) autobiografia(s) de Nietzsche. É tão eletrizante quanto a que é oferecida pelo delírio do nosso conhecido Brás Cubas. Instrui e diverte na mesma medida que o sistema de pensamento de Quincas Borba – nome que não se sabe bem se pertence ao filósofo ou ao seu cão. Marília Rothier Cardoso Como no texto da coluna de maio, continuei inspirando-me nos escritos de Eneida Souza e guiando-me pelos preciosos comentários críticos, observações e notas de Devires autobiográficos, tese de Elizabeth Muylaert Duque Estrada. Usei também, à minha moda, informações prestadas em prefácio pelo tradutor de Nietzsche, Paulo César Souza, além, evidentemente, de roubar alguma graça da verve cruel de Machado de Assis.
(sobre)vivências – dos cen’átimos (brevidades) por Carvalho dos Santos “Essas brevidades lembram aquelas árvores japonesas, as árvores japonesas, as árvores ‘bonzai’, carvalhos criados dentro de vasos minúsculos, signos e seres vivos, produtos da arte e da paciência” (Paulo Leminski)
ooo
Sou ori (cabeça), ara (corpo) e emi (respiração, o sopro vital, a parte imaterial, o espírito). O antropólogo diz: “A diferença entre um corpo vivo e um corpo morto é a presença ou ausência de emi”. O emi é a sombra das pessoas. No haicai, diz Barthes, não há interpretação, não há sombra; a escrita é o “momento de verdade”, o instante instaura — satori — sem decifração. “Na jarra de água flutua Uma formiga Sem sombra” (Seishi) O emi é inapreensível. É o “É isso” que não pode ser nomeado. A sombra que se esconde da sombra. A parte do dispêndio e do sacrifício, da entrega total, do salto nos confins do mundo. Não há espaço para as trocas econômicas, para o moderado, aquilo que pode ser controlado — descontrole —, escrita com o próprio sangue. Ao chegar ao mundo visível, carregamos conosco o ìwó (o cordão umbilical) ou aquilo que nos liga aos nossos ancestrais, à nossa linhagem. É no Àiyalé (peito de casa) que nós encontramos com os mortos de nossa família para cultuá-los. É um lugar sagrado, portanto, restrito. Os ancestrais habitam nosso dedão do pé, assim narra a tradição, assim contam as frases orais da memória viva dos anciãos.
Neguinho
Turquoise boy I must confess to you... “Turquoise boy”- Sonic Youth
Neguinho, devo dizer que eu também amo alguém que me abandonou, eu também. Também espero na calçada um rosto conhecido ou um rosto que me estenda o olhar e me dê algo que eu não sei o que é. Algo que é parecido com saciar a fome, mas não é fome o que eu tenho. Quando te vejo, sei que em nada podemos nos ajudar, porque eu sou tão da rua quanto você. Se eu te der pão, dinheiro, cigarro, neguinho, pouco fiz porque há pouco a fazer por nós além da espera. Eu sei que o chão da rua me chama tão alto que eu por pouco não decido ficar, ainda não, digo pra mim mesma, mas só tenho a certeza de sentir um dia a pedra dura sob as minhas costas aumentar. Neguinho, você me viu no dia em que ninguém veio falar comigo? No dia em que eu implorei como você faz por um trocado? Você viu? Eu fico tão só que nem a tempestade me comove mais. Me ensina a ser maltrapilha? A cheirar cola pra não precisar de nada? A roubar? A matar também? Me ensina a não querer mais ninguém, só o dia sem nada dentro? Neguinho, vou te contar que a morte me visitou. Foi numa tarde. Eu havia comido pipoca na rua, havia te visto mendigando por aí e depois voltei pra casa. Ela queria me fazer sua primeira visita, dizer que sempre estaria esperando, foi sem loucura e muito claro. Estou te dizendo: vamos morrer, neguinho, eu e você e quem não nos ama mais. Mas nós somos seus próximos, pois já esperamos, só esperamos. Ah, neguinho, quanto que eu quis te trazer pra casa, vestir você e te dar muita comida boa, mas aí eu também fui ficando mais igual a você. Eu compreendi que o nosso tesouro é essa solidão, que teima em roer agora o que está por fora, posto que acabou com o que havia por dentro. Vai se curar o que não tem remédio? Nós já ultrapassamos alguma fronteira que nos deixou crus e estrangeiros no mundo. Cadê nossa família, nossos amores? Todos não saíram com boas desculpas, graças a Deus? Neguinho, como a nossa carne é dura, como nossa alma é casta! Ah, que milagre nefasto e glorioso! Alguma bala já te atingiu? Já? Você morreu? Quantas vezes? Está vendo, não tenho razão? Como é que se mata quem já foi morto, me diz? Que engraçado! Não tenha medo, neguinho, basta se fingir de vivo às vezes e aí quem sabe você tem sua casa, sua comida, sua cama, quem sabe? Mas sempre forte, neguinho, sempre forte porque ninguém vai estar do seu lado, você e eu não temos lado, só o de fora. Vamos, neguinho, sempre esperar o que não vem, comer o que não basta. Neguinho, estou ficando muda, você quer ver? Me encontre amanhã. Estou completamente muda e sem idioma. A gente vai se falar em língua estropiada, não repare se eu nem conseguir. Posso te deixar sozinho? Posso não te ouvir mais? Não te ver mais? Tenho um plano: eu te abandono pra ver como é que é, depois fico te observando de longe, quando você puder faça o mesmo, assim tudo vai estar certo. Você vai ver que somos filhos de uma mesma maldição: a maldição do tempo que passa, maldição de quem deseja. Neguinho, a gente está se arrastando, você agüenta? Quer bater numa porta qualquer e tentar? Quer pedir, pelo amor de Deus, que nos acolham? Eu vou com você, vamos agora? Alguém que pode dar, quer nos dar? Só um pouco, nós dividimos. Nada restará. Somos ávidos filhos de Deus.
Marcelo dos Santos
Metrópole
Urbes congestionadas, Motoristas estressados, Pensamentos eclipsados de dor: Este sou eu. O conjunto destas alucinações que me rodeiam. Quando saio de casa mais cedo Enfrento as mazelas da multidão Escoradas por veículos envenenados Cujos mártires na direção Nada mais são Do que o espelho de minhas próprias Atitudes Buzinas Urros incompreensíveis Prostituição nas calçadas A música que reverbera dos quiosques Este é o som da metrópole Que mais parece um galope Do que uma canção E no meio de toda esta gente Cansada de sofrer, De temer, De correr, Do tumulto que as ruas guardam Do rugido que os transeuntes exaltam Sobrevive o cidadão intimidado O que será do amanhã, Se nada vejo no ontem e Se não me lembro do que passou Porca memória! Que me foge aos dedos Sem nem ao menos avisar Sequer alertar Para aquilo que sou: Um mísero mortal Preso a metrópole. Culpado? Inocente? Ambos? Não sei mais o que faço de minha vida Não sei o que sobra de racional pra contar O que me resta É este único desatino chamado sobrevivência Que me empurra pra frente E me faz encarar as ruas, As vielas, Os becos, Enfim, O que a pólis me der
Roberto dos Santos Queiroz Júnior
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O mistério da felicidade Leonora chegou-se para mim, a carinha mais limpa deste mundo: - Engoli uma tampa de coca-cola. Levantei as mãos para o céu: mais esta, agora! Era uma festa de aniversário, o aniversário dela própria, que completava seis anos. Convoquei imediatamente a família. - Disse que engoliu uma tampa de coca-cola. - Tá. Você já mandou buscar o bolo para cantarmos o Parabéns? Pedro, meu marido, pai da engolidora de tampinhas, tinha o poder de me irritar com seu jeito desatento. - Pedro, acorda ! A Vânia tá dizendo que a Leonora ENGOLIU uma tampa de coca-cola. Minha cunhada, Sílvia, não tinha mais paciência com o irmão e gritava para ver se surtia efeito. - Engoliu? Mas como? Pela boca? – perguntava Pedro, passando dos limites. Pelo visto, nosso divórcio seria inevitável. - Pedro, você é meu irmão, mas é um idiota. Se ela en-go-liu, é claro que foi pela boca, né ? – Sílvia estava nervosa. - Ggggente, nnnnão sssseria bom nnnós irmos pro hospppital ? Meu cunhado, Gaspar, irmão mais novo do meu marido, era gago. Isso. Você leu certo. Minha amadíssima sogra nunca soube fazer filhos. Um era lerdo (o meu marido), a outra, destemperada, e o terceiro era gago. - E vamos parar a festa da menina ? Coitadinha. Falta cantar o Parabéns – Pedro ainda não tinha entendido a gravidade da situação. - Será que nenhum dos pais dessa criançada é médico ? – eu, a única voz lúcida naquele verdadeiro zoológico, tive que me pronunciar. - Vou pegar o microfone e perguntar. Silvia foi para perto do aparelho de som e parou a música. Todas as crianças, pais, professores, garçons e palhaços da festa olharam para ela. - Atenção, todos! Minha sobrinha, a aniversariante, corre risco de vida. Vocês, crianças, podem não ter mais a doce Leonora como coleguinha. Repito: Leonora não está bem. Agora, gostaria que vocês mantivessem a calma. Existe algum médico entre nós? Repito... Ela não conseguiu repetir. O caos já estava instalado. As crianças,
sem exceção, começaram a chorar. Algumas até gritavam e corriam para o colo de seus pais. Um senhor levantou a mão: - Sou médico. Onde está a menina ? - Ali, perto daquela senhora de vermelho. A senhora de vermelho era eu. A menina que corria risco de vida era minha filha. E a louca que tinha estragado a festa era a minha cunhada. - O que houve com a menina ? - Engggoliu uma tampppa de cccoca-cola – Gaspar demorava quase duas horas para falar cinco palavras. - De plástico ou de aço? – a praticidade dos médicos me irritava. - Minha filhotinha, foi de plástico ou de metal a tampinhazinha que você engoliu ? – Pedro sempre falou com Leonora como se ela fosse uma idiota. Na verdade, o idiota era ele. Leonora olhou para cima, olhou para baixo e, finalmente, olhou para trás e soltou uma risada para um dos palhaços da festa contratado para animar as crianças. Ele, então, correu para perto de Leonora gritando: - Já ganhou, já ganhou, já ganhou! - Ganhou o quê, seu imbecil ? – perguntou Sílvia, minha cunhada, já perdendo a compostura. - Calma, Sílvia, deixa o moço falar. – eu ponderava. - Eu dei uma missão para as crianças! Hahaha! Quem contasse a melhor mentira para os pais ganharia três pontos na nossa gincana. Hahaha! Nem preciso dizer que o palhaço com sua imensa criatividade para elaborar brincadeiras altamente pedagógicas quase foi linchado pelos pais, que, irados, se despediam. Naquela noite, parei para analisar minha vida. Era casada com um idiota, que tinha uma irmã louca e outro gago; minha filha era uma menina de seis anos fria, manipuladora e mentirosa; e eu acreditava que era feliz. Como podia ser feliz naquele pardieiro? Decifrei o mistério da felicidade quando, duas semanas depois, fugi com aquele que me ensinou a não levar a vida tão a sério: Teobaldo, o palhaço.
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Frio
Não contes teus segredos. Segredos não se falam, mas podem sempre ser ouvidos. Segredos, qual armas secretas, necessitam de esconderijo. Esquece-os, de quando em quando, faz papel de tonto. Não importam as aparências, guarda o resto a sete chaves, é daí que nasce a arte. Desenha só uma parte da face, a outra, cobre-a com fina gaze.
Patriótica Aparecida? Envolta em limo, traz pesada rede ultimamente sempre em vão lançada num rio estéril, linda imagem ( vede! ) de escuro barro, mas decapitada. Peixe abundante, saciando a sede das almas por milagre — ao ser pescada também cabeça — sólida parede de um templo brava gente ergue na estrada. Brasil afora espalham devoção à negra estatueta Aparecida tropeiros adentrando no sertão. E aos pés da Padroeira enternecida farto sotaque ecoa desde então, grandiosa Pátria fé mantendo unida. Fernando Lopes de Almeida Soares
Guilherme Amado
Segredos
Bolhas Geraes
A escolha, inevitável, impávida, ereta, obrigatória. Perfurá-la, impossível, adiá-la ao nunca, impetuosa. Por todos os lados, a dúvida. Dúvida e escolha, há que se escolher. Feita a escolha, vem a dúvida e aquilo que não foi, eternamente, uma incógnita.
Uai?! Tá sabendo não? A coluna Bolhas Geraes é dedicada aos nossos leitores e colaboradores mineiros, que, desde a edição #13, recebem o Plástico Bolha em diversos pontos de Belo Horizonte. Envie também os seus trabalhos para jornalplasticobolha@gmail.com
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Paladium Ela tinha uma presença de mulher, de verdadeira mulher, de mulher feita e bemfeita. Seu olhar era sempre tão ambíguo (tinha olhos preciosos) e seu sorriso pontual – nem se adiantava nem se atrasava –; pontual e de ar aristocrático: quase uma bondosa concessão. Todos a queriam, todos a desejavam. Hefaístos inclusive. (Poupemo-lo, daqui para frente e por consideração, do suplício do seu próprio nome.) Mas houve um tempo que não era dessa maneira. Quando a conheceu, ela lhe pareceu inacessível e, como se costuma fazer com as coisas que são interditas (pelo menos num primeiro momento), H. se afastou. Mas, para sua surpresa e contentamento, ela veio falar com ele. Logo estavam metidos numa assembléia só deles, uma reunião particular e íntima, feita para poucos, para bem poucos, somente para H. Agora todos os olhares se voltavam zelosamente em sua direção, tanto por admiração quanto por litígio. Recebeu seu telefone a modo de prêmio e ouviu de sua boca que a chamasse. H. esteve nas nuvens. Mas nuvens se desfazem muito facilmente e, por assim dizer, como que por um sopro. Telefonou para ela e saíram para beber. Estiveram conversando por três horas, desde as 4 até as 7. Falaram acerca de tudo: existência, poesia, música, tentação, traição, amor. Mas fazia falta deixar de falar e H. sabia disso, porque senão a palavra se tornaria gasta, surrada e, desse modo, improfícua. Ela estava ali diante dele e, diferentemente de antes, era totalmente acessível, ou quase. Digo quase porque seu olhar nunca deixou de ser ambíguo, nunca deixou de encarnar a pitonisa de Delfos, cujas respostas eram, ao mesmo tempo, a tese e seu contrário. Contudo, havia receptividade no seu corpo e H. podia senti-lo. Ou melhor, viaa. Seu corpo se atraía em direção ao dele, imitava-o, e era como se se inaugurasse ali, pela primeira vez, cheio de cuidados, mas curioso e excitado por estrear. E seus olhos, crédulo leitor, – contrariamente ao que certa vez escreveu nosso poeta acerca do copo anônimo –, seus olhos eram ambíguos por ética, porque maior castigo seria se fossem silenciosos; e eles premeditavam os próximos
passos, supunham o que ia ocorrer, nunca foram olhos ingênuos. Ao contrário, eram olhos muito vivos: sabiam, como nenhum outro par, provocar e ser evasivos. Mas H. hesitou. Quando iam se despedir, H. desejou mais do que tudo beijá-la, abraçá-la, selar as últimas três horas não com mais palavras, senão com saliva e cera carmim. No entanto, ficou assim, imóvel, com a mirada perdida, tentando cobrar ânimo para se aproximar dela, para tocá-la, para fazê-la sua. Buscava, naqueles instantes que antecipavam a separação, uma maneira de lhe mostrar, sem contudo assustála, o tacanho que era. Não a achou. (Seu defeito, desde logo, sempre foi ser demasiado altivo, desafortunadamente virtuoso.) Afinal, a culpa não foi sempre a irmã mais nova do desejo? H. se sentia culpado de um crime que não lhe pertencia, que não era seu e que nem sequer chegaria a cometer. Um crime e uma culpa inexistentes. Vestiu o manto do bom amigo e, quando precisou desnudar-se, não soube mais como fazê-lo. H. voltou a ser o primeiro homem e se envergonhou de sua nudez, fez estrangeiro aquilo que era mais seu, condenou o que tinha de mais sincero. Seu pecado foi não ter lhe mostrado desde o princípio que mais do que sua confiança e seus conhecimentos sobre música e poesia, mais do que suas histórias e sua atenção, queria a ela, assim, simples e sem obliqüidade, ela. Os instantes passaram, a oportunidade passou e H. ficou com essa cara de quem, atrasado, vê o último trem deixar a plataforma, enquanto ela, senhora de si e da situação, repousada sobre a inteireza que se anunciava até mesmo nas suas imperfeições, ia embora com os mesmos olhos ambíguos e adivinhadores que tinha às 4 da tarde, com essa pequena mas notável diferença que agora, às 7, se podia distinguir neles, ao longe, os jardins de Canaã e todas as suas delícias que jamais haveriam de se cumprir. Oferta, promessa, desterro. Sem saliva nem cera carmim, H. chegou a essa desagradável – ainda que esclarecedora – conclusão de que as paixões, por nobres ou coxas que sejam, de uma forma ou de outra acabam se extraviando. Sempre se extraviam.
Thiago Costa Faria
Quando eu, autora, virei meu próprio texto ou Quando o feitiço virou contra o feiticeiro ou Coisa parecida... Tem gente que diz que escreve para se disfarçar, assim como o ator atua para usar diversas máscaras...será mesmo? Mostrei um texto meu a uma analista. Preciso dizer que ela é a minha analista? Acho que talvez faça toda a diferença. A experiência foi curiosa porque não me preocupei muito com o que minha analista ia pensar do texto que escrevi, mas sim com o que ela iria encontrar dentro dele. Que vestígios estariam ali escondidos? Sabia que ela leria o texto procurando alguma coisa sobre mim, alguma patologia emocional, alguma denúncia ou confissão; por isso me senti duplamente exposta – o que será que eu entreguei? Será que deixei escapar alguma coisa que, na verdade, queria disfarçar? Por que será que escrevo, afinal? Mas perguntas sem respostas terão de ficar pra outra hora. O que quero discutir aqui é o lugar incomum que minha analista assumiu ao se tornar, literalmente, leitora de sua paciente. Num pedaço de texto que muito provavelmente revelaria apenas uma sombra de sua autora para um leitor comum, a analista encontrou numa 7 só frase, uma resposta possível para as minhas noites sem sonhos. O que acontece quando conhecemos intimamente o autor ? Será que realmente podemos nos distanciar daquilo que escrevemos? O texto em si, as escolhas, as temáticas, as palavras, tudo (para um analista especialmente, creio eu) é testemunho de uma identidade, tudo é definidor. Para minha analista, pouco importaram as figuras de linguagem, os efeitos sonoros, as intertextualidades. O poeta era eu, e eu estava me entregando, me mostrando por entre os espaços das palavras e também nas próprias palavras. A analista ignorou o eu lírico – para ela, só havia a mim. E ela quis saber tudo. Quis saber se o guarda-chuva vermelho existia. Confirmou que eu, realmente, sempre suspiro. Perguntou se, de fato, eu não como suspiros. Perguntou se o barulho era a voz da minha mãe me dizendo as coisas que eu não queria ouvir... Fui embora com uma triste sensação de derrota, que não sei bem explicar. Acho que foi porque de repente meu texto se tornou revelador demais, óbvio demais, quase sem graça. Minha leitora-analista não tomou o texto para si; ela foi descascando, decifrando, limpando, podando...enquanto eu queria só que ela lesse, pensasse e, se possível, gostasse.
Isabel Wilker
Que importa um nome?
Para o Fred mudou de cara e cabelos mudou de olhos e riso mudou de casa e de tempo: mas está comigo está perdido comigo teu nome em alguma gaveta Ferreira Gullar, Poema Sujo
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Fazia tempo não nevava em Paris. Lá fora, a cidade está branca, branca. Nem me aventuro a sair. Há pessoas que sonham em ver neve – jogar bola de neve, fazer boneco de neve, amassar a neve, pisar na neve. Eu não. Detesto neve. Detesto frio. Detesto casaco, luva, ceroula, gorro, fumaça saindo da boca. Quando cheguei aqui, o frescor da juventude me ajudava a suportar o inverno. Hoje, a velhice toma conta do meu corpo: no rosto pelancudo, nas mãos trêmulas, no sono leve (insônia, melhor dizendo, pois quase não durmo, passo a noite a revirar pensamentos). E quando vejo a neve lá fora me recobro da certeza de que tenho muito mais a fazer aqui, nestes vinte e seis metros quadrados onde durmo, como, leio e, vez ou outra, assisto ao noticiário, do que lá fora. Principalmente quando a cidade está branca como hoje. Uma única vez por semana – às vezes nem isso – vou ao mercado aqui perto e abasteço a geladeira. De resto, só saio de casa para comprar pão e jornal. E quando volto, invariavelmente, sinto que o quarto está ficando impregnado de um cheiro cada vez mais forte. Suponho que o meu mesmo, que só sinto nesse momento, ao voltar com o pão e o jornal embaixo do braço. A cada dia repete-se essa sensação estranha, como se um pouco de mim (que não reconheço) fosse se desgarrando do meu corpo e ocupando o quarto. Mas hoje, ao contrário do habitual, será difícil sentir o cheiro, porque nem mesmo a fome ou a vontade de conhecer os últimos acontecimentos mundiais me animam a encarar os flocos de neve se transformando em água no meu mantô. Nada me fará pôr os pés na rua. No entanto, sei que ele está aqui e provavelmente ainda mais forte, já que a minha presença não tem dado a mais ínfima trégua. Sei que ele está aqui e quero senti-lo. Preciso senti-lo: questão de sobrevivência. Cruzo o quarto, vou ao banheiro e em seguida à cozinha, para ver se descubro o cheiro perdido em algum canto qualquer. Nada. Volto ao quarto. Nada. Saio do apartamento e fico prostrado no corredor enquanto os minutos passam. Um vizinho sai com uma pasta debaixo do braço, deve estar indo ao trabalho. Bonjour, ele diz, sem mostrar qualquer espanto ao me ver do lado de fora vestido com trajes de dormir, como se tivesse sido expulso da minha própria casa. Ele me diz bom-dia como quem não diz coisa alguma. Bonjour, repito, e espero ele descer o primeiro lance de escada para voltar ao apartamento. Nada. Não sinto cheiro algum. Parece que só funciona quando chego com o pão e o jornal. Mas ainda assim insisto. Sei que ele está aqui, como todos os dias. Sinto um leve arrepio, um certo medo de estar tão arraigado ao quarto que já nem possa distinguir nossos cheiros, como mofo em madeira úmida e guardada. Não sei se é efeito da idade, mas tenho notado que ultimamente presto muito mais atenção aos cheiros do que jamais antes. Quando chego a um lugar, é o cheiro do ambiente que determina se fico ou não. A mercearia que freqüento, escolhi pelo cheiro. Os cinemas também (não suporto cheiro de cinema novo). O mesmo acontece com as pessoas. Aliás, um dos motivos pelos quais optei de vez pelo enclausuramento e pela solidão foi o enjôo que determinados odores pessoais me provocavam. Cheguei mesmo a me deparar com situações muito desconfortáveis, tendo que inventar desculpas para deixar uma conversa ou um jantar por simplesmente não suportar o que para minhas narinas se apresentava como um
verdadeiro fedor. Por isso fico tão obcecado com o cheiro do meu quarto. Temo que ele se dissocie de mim a tal ponto que acabe me colocando para fora de casa. Tenho que encontrá-lo todos os dias, ter a certeza de que ele não me escapa. É verdade que, se não o sinto, isso significa, de alguma forma, um bom sinal: sinal de que ele não me incomoda. Mas para estar seguro, preciso ter a garantia de que ele não se liberta de mim, preciso senti-lo – uma vez por dia, que seja. Tê-lo sob o meu controle, ratificar que ele me pertence. Saio de novo do apartamento. Não encontro ninguém. E quando volto, mais uma vez, nada. Repito a operação consecutivamente. Sem sucesso. Talvez eu esteja exagerando um pouco, talvez possa esperar até amanhã ou depois, em algum momento sei que voltarei a sentir o cheiro. Mas a verdade é que sempre fui assim: com tendência à obsessão. Quando começo alguma coisa – um projeto, um discurso, um trabalho, uma arrumação ou uma simples busca por algo perdido – preciso ir até o fim. Enquanto isso, não descanso. Desisto de sair de casa: talvez, se eu fizer o movimento oposto, me aproximar mais e mais dos meus pertences, consiga encontrá-lo, porque sei – e disso tenho a certeza – que ele está em algum lugar. É só uma questão de paciência. Ponho-me a cheirar os objetos mais íntimos: o lençol, o travesseiro, a cadeira de trabalho, o teclado do computador, a toalha. Distingo cheiros, cada objeto guarda um segredo próprio. Mas nenhum é o cheiro que procuro – o meu mesmo – o cheiro que perco a cada dia. Sei que posso interromper essa busca obsessiva, deixar que o acaso me devolva o que tento em vão encontrar. Se me pegam a fungar objetos, vão pensar que estou ficando louco. Mas quem? Quem entraria na minha casa num dia como o de hoje, ainda mais assim, de supetão, sem licença? Não, não tenho razão para cessar a minha empreitada. Continuo a vasculhar meus pertences, como se estivesse querendo encontrar uma meia perdida, um par de óculos ou uma caneta. Com as narinas atentas. Procuro, procuro e: de tanto procurar, acabo achando o que não procurava. Um cheiro há muito perdido. Um cheiro que eu não sabia ainda existir. Guardado numa das gavetas do meu armário, como fotos desbotadas, como uma carta de amor muito antiga, como palavras esquecidas, mas nunca esvaídas. Um cheiro que eu não esperava encontrar, um cheiro que eu nem imaginava poder encontrar. Ele vinha da gaveta – mas de onde exatamente? De repente, entre minhas mãos que remexiam as roupas – cuecas, meias e ceroulas – percebi a textura de um pano que não poderia ser meu. Um pequeno lenço de seda bordado. Mergulhei o rosto no tecido: era de lá que ele vinha, o cheiro. Um cheiro que eu tinha sentido uma única vez na vida, numa noite há muitas noites – mas que havia me perseguido durante meses (ou terá sido mais?), tal a força com que se tinha impregnado a meu corpo. Eu tinha acabado de chegar, se não me engano. Mal falava a língua, mal conseguia me virar numa realidade que me parecia tão distinta. Era uma típica noite de inverno, dessas em que, às oito horas, temos a sensação de já ser uma da madrugada. Estava frio, embora não como hoje (ou era eu que não implicava tanto com isso?). Eu andava sem rumo pelas ruas da cidade, sem nem mesmo me preocupar em que bairro estava, se me aproximava ou me distanciava de casa. Entrava e saía dos lugares como quem não deve nada a ninguém. Nenhuma explicação. Ficava um pouco, examinava o lugar, as pessoas, às vezes tomava uma taça de vinho e em seguida partia. Foram horas repetindo o mesmo jogo. Até quando, pela primeira vez naquele dia, algo me tirou a vontade de me movimentar. Um gesto: uma mulher tira os sapatos, descansa os pés desnudos na cadeira em frente à sua e põe-se a deslizar os dedos sobre eles. Os pés completamente à mostra! Enquanto ao seu redor – no bar, nas ruas – todos se cobriam com
camadas e mais camadas de roupas. E de repente, contrastando com o ar cinza, o ambiente fechado da cidade, os pés surgiam para mim como uma espécie de salvação. Só um encontro inusitado como este – pés e mãos se roçando à mostra no inverno parisiense – poderia me frear naquela noite. Ela era muito bonita, sem dúvida, mas sua beleza não seria nada sem o gesto. Foi ele – o gesto – que me arrebatou, que me paralisou, atônito, bem na entrada do bar: e não me deixou mais sair. Mas o que faz esse cheiro aqui hoje? Depois de tantos e tantos anos, ainda guardado na gaveta? Sim, ela era bela, repito, contornos bem marcantes, contrastes bem acentuados: as cores da sobrancelha, dos olhos, do cabelo e dos cílios bem escuras; a pele, azul de tão branca. Vestia uma roupa toda preta, se não me engano, e um lenço bordado, azul, coral e verde musgo, frouxamente enroscado no pescoço. Fui pego de surpresa. E só quando isso acontece é que me dou conta do quão irremediável a vida pode ser. Eu era já prisioneiro daquela mulher e seu gesto. Mesmo antes de me conhecer, ela já me tinha em suas mãos. E a mim não restava para onde (nem como, nem por que) escapar. De tão estupefato, demorei mais do que o habitual para me sentar e pedir uma taça de vinho. Não tirava os olhos de seus pés, que por sua vez não cessavam de ser acariciados. Não tardou para que ela percebesse meu olhar caminhando por seu corpo. Mas ao invés de fechar a cara e me lançar farpas de gelo, como eu imaginava, afrouxou suavemente os lábios carnudos, feito para dizer que eu era bem-vindo. Retribuí com um largo sorriso. Se estivesse no meu país, certamente teria chegado diretamente à sua mesa, com frases feitas e propostas engraçadinhas. Mas naquela época eu ainda não sabia como me comportar em país estrangeiro. Por isso fui praticamente incitado a esperar que ela me convidasse – com um aceno – para me sentar ao seu lado. Só quando chegou a nova taça de vinho (que ela mesma pediu ao garçom) é que consegui engolir as palavras entaladas na garganta. Pedaços de palavras, na verdade, pois meu francês não era simplesmente precário, mas uma quase nulidade. E diante da bela mulher (dona deste lenço que agora seguro), não alcancei dizer mais do que Bon soir. Ela obviamente percebeu minha falta de jeito e intimidade com a língua, e deve ter sido por isso que sorriu, como se quisesse me acolher. Ou talvez estivesse apenas zombando de mim, hipótese que fiz questão de descartar rapidamente. Cada vez que ela sorria, eu sorria em dobro. E assim ficamos durante algum tempo (uma hora? Duas? Cinco minutos? Sempre o tempo, abstração inalcançável, a escorregar pelos dedos da memória). Se não me engano, tentei puxar assunto com ela, numa espécie de português em oxítono, mas não fomos muito adiante. Talvez ela também fosse uma estrangeira recém-chegada, talvez ela, como eu, não dominasse ainda o idioma. Ou talvez – e tendo a achar que era isto – não tínhamos mesmo o que falar. Bastavam nossos sorrisos e meu olhar a percorrer seus contornos, a se demorar em seus pés descalços. Faço um esforço para me lembrar (mergulho as narinas novamente no lenço bordado), mas a verdade é que provavelmente eu nunca tenha tomado conhecimento de como que, do bar, fomos aterrissar em minha casa. Depois de quanto tempo? De quantas taças de vinho? De metrô? A pé? De táxi? Fico de certa maneira incomodado com esse hiato, essa falha na memória. Esforços são muitas vezes inúteis, e, por mais que eu tente, minha lembrança não consegue preencher essa lacuna entre o bar e a casa. O que vejo agora é ela inteiramente despida a me queimar a vista. E eu, como um menino bobo, desajeitado, sem saber o que fazer com tanto corpo, com a sua carne clara pedindo para ser tocada. Nem se ela fosse brasileira eu saberia o que dizer diante da sua nudez. Nem se eu estivesse sóbrio como agora. Qualquer tentativa
de verbalização faria esvaecer o encanto que se apresentava aos meus olhos. Se eu falasse de seus mamilos rosados ou do meu desejo de ter seus seios em minhas mãos, imediatamente eles me escapariam. Se eu falasse da minha excitação pelo seu sexo, visivelmente encharcado a molhar suas coxas, não teria o direito de encharcá-lo ainda mais com a minha língua ou de recebê-la por cima de mim, faminta, a me devorar. Não pronunciei uma palavra sequer, embora milhares se atracassem na minha laringe, na tentativa de ganhar um corpo para além do meu. Deve ter sido por isso que desatei a tossir. Enquanto tossia, engasgado com a minha inabilidade, ela simplesmente sorria. Acho que foi assim a noite inteira: eu a me atrapalhar, ela a sorrir. E agora este cheiro guardado na gaveta, escondido há tanto tempo; há tanto tempo evidente. O que ele vem fazer aqui hoje, quando estava à procura do meu cheiro, não do de outrem? Este cheiro que guarda tantos outros... Cheiros de umbigo e de orelha, cheiros indecifráveis, como símbolos do seu corpo no meu. Cheiro do seu gozo se misturando ao meu, do nosso suor nos colando um ao outro (para sempre?). Eu estava ainda vestido, mas não podia esconder o meu desejo de possuí-la naquele mesmo instante. Tenho certeza de que ela sentiu o meu cheiro de sexo prestes. E, por isso, como se o tempo estivesse à nossa disposição, ou melhor, como se fosse ela mesma a dominá-lo, passou a conduzir seus gestos sem a menor pressa. Deslizou delicadamente sua mão direita sobre o meu rosto, demorando-se atrás da orelha. Com a esquerda, segurou minha nuca suavemente. Ela me exigia demais: uma paciência quase impossível. Sentia meus poros eriçados, meu corpo a querer pular em cima do seu, minha língua a querer se enroscar na sua. Quanto mais meus sentidos se aceleravam, mais ela diminuía a velocidade de seus atos. Era quase um embate: entre dois corpos estrangeiros a se conhecer pela primeira vez, entre um silêncio imposto e um turbilhão de palavras latentes. Numa noite há muitas noites: passamos horas a nos deleitar, a nos conhecer, a nos estranhar. Quantas vezes recomeçamos? Sempre a descobrir novos cheiros, novos orifícios em segredo. Não sabíamos nem mesmo nossos nomes, nossas origens, nossas histórias. Era tudo tão novo: mas também tão antigo, de uma ancestralidade incômoda. Escuto agora a sua gargalhada quando, acolhendo-a em meus braços, pus-me a falar português desatinadamente, como se expelisse todas as palavras que antes fora obrigado a engolir. Linda, gostosa, tesão. Uma enxurrada de palavras óbvias, mas que para ela certamente soavam como enigmas beirando o incompreensível. Quando me silenciei novamente, ela se virou para mim e sussurrou dentro da minha boca uma palavra na sua língua, revelando que, assim como eu, não vinha daqui. Era um som gutural que chegava carregado de um sopro quente a me atravessar o corpo. Depois, não trocamos mais uma palavra sequer. Mudos, traçamos inúmeros caminhos. Posso ainda sentir a mistura de nossos cheiros, como se nossos líquidos tivessem sido derramados na noite de ontem, frescos no meu apartamento. Mas não consigo definir quando foi que paramos (e será que paramos?), em que momento ela partiu (e será que partiu?). Quanto mais busco uma resposta, mais me afasto de uma certeza, perdido entre os rastros da memória. Já não sei o que de fato aconteceu e o que são trapaças da minha mente cansada a passar a perna em mim mesmo. Custei a entender que o tempo passa. Que nem da nossa história somos donos. E agora me pergunto se não é dela o cheiro que exalo todos os dias e que redescubro a cada vez que chego a casa. E me pergunto igualmente se não é por sua causa que estou aqui até hoje, neste mesmo apartamento, nesta mesma cidade. À espera de que algum dia ela retorne e traga consigo um nome: para que eu possa enfim continuar a viver.
Tatiana Salim Levy
Desafio poético A partir desta edição, o plástico bolha proporá sempre desafios para os amantes da poesia. O primeiro deles trata-se do exercício de tradução “às cegas” de uma língua totalmente desconhecida, o húngaro. Vejamos a seguir o poema original, e as “traduções” q u e n o s s o s c o l a b o r a d o r e s e nv i a r a m . Pa r a a p r ó x i m a e d i ç ã o, o d e s a f i o s e r á e s c r e ve r u m p o e m a s o b r e “ o s a b o n e t e ” . Todos estão convidados a trovar sobre este tema tão escorregadio, basta mandar seu poema sobre este objeto para o e-mail do jornal.
Néma taj
Nenhuma arte
A taj még alszik, néma csend honol, nem szól a madárdal a fákon, patakparton.
A arte nega asilo nenhuma consente honor nem sol a madrigaz a ficão pronto-a-portar.
A tal me assiste, Num mar de honra, Em que nem sol pode mandar Na faca que partiu.
Nesta manhã alcalina não seca o orvalho nem o sol da madrugada de fato participa.
Néhol egy gally meg-megrezzen, lágy szellö lengeti, bus nótáját énekli.
Nenhum eco de gala nega-nega grasse larga zelo longuete ônibus nota já é igual
Nem ovo de galinha Me emociona enquanto, Na laje eu leio sozinho.
Névoa sobre os galhos da manhã-amanhecendo, lago de gelo longevo, um notável silêncio.
A forras nem csobog, nem zenél, csak csendben ül a szikla tetején
A forrar nem albogue nem zelote quiçá consinta a bem útil e cíclica tatera.
Am ha jö a tavasz, ébred taj, leveszi minden szomorú zászlaját.
A um anjo de alabastro a obra de arte levada à minuta examinou zás-a-jato.
Demény Zita, grande poeta húngaro
Nenhuma tágide
Sueli Rios
Nenhum ser
Nu mar Tal
Vou às forras com o sabão, Nem sei. Em casa que se bebe álcool, A saia não pára. Mas há quem seja capaz, De se embriagar, E se lavar ao mesmo tempo. Só morando sozinho pra saber.
Letícia Katz
Nenhuma tarde
Esta não
Nas folhas nem sombra, nem mel, casca semente úmida a paisagem a emudecer As rãs e os sapos atravessam ébrios esta leveza que ninguém sussurra ou alarda.
Isabel Diegues
Tal do Magarefe
A tágide grande e altiva nenhuma cassandra venera, nenhum solo a perfilha, a fecunda e multípara.
Um grande ser alçado, nenhuma honra enviada, não só a loucura ardente partiu a pata de um falcão.
A tarde mostra auroras, nenhuma, porém, honra, nem mesmo o sol do madrigal de fantasias, a lua ao meio-dia.
o tal do magarefe com jaleco sujo quis matar o urso correu na Patagônia
Ovos galados em neve em meio ao mezanino, lagos de geléia longínquos, notáveis rebuçados iníquos.
O negror ergue galões de grande grandeza, lago de zelo longevo, nunca mais seres molhados.
Nunca eqüinos galgaram mostrando tamanha alegria, ao largo de céus longínquos, por isso, a nostalgia os enternecia.
bebeu água e amônia saiu pelado sem vergonha o frio do estado
À forra nenhum ciborgue, nenhum senil, cossacos e cassandras mil, a ciclotímica tetéia.
Um futuro não sangrento, não tranqüilo, como se Deus enviasse uma sigla sacro-sagrada.
À força não soerguia, nem zunia, os cansados e saudosos uivos da tristeza que teciam.
foi às forras congelando até dentes imagine os pertences que ele não guardou
Tenho jogado nas tavernas, ébrio, entre as tágides, recordando de leve os sonoros dislates.
Sem um beijo do rei Ám, ébrio ser, lendário mentiroso, esmoreceriam as mulheres.
Ainda há um zumbido atravancado, uma ébria tarde, de leveza mínima, murmúrios e zombarias.
escorregou e levantou mas logo derrapou e o bicho abocanhou sacudiu e o soltou
Paulo Henriques Britto
Lucas Viriato
Luiz Coelho
Luiz Carlos Nascimento
9
No ônibus
ORÁCULO
Mito, esse viajante clandestino de nosso desejo
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a Rogério Manzolillo
Em um tempo antes do tempo, reinava no mundo o Silêncio. Ruídos havia, sim, como o do vento assoviando por entre os desfiladeiros e as planícies. O ribombar do trovão também era um som estrondoso, que ensurdecia mais que o metálico e seco estrepitar do raio, riscando a imensidão do céu. Os pingos da chuva também ressoavam nas pedras, nas águas dos riachos, nas copas das árvores. E o marulhar das ondas contra a areia das praias embalava o grande Silêncio como uma cantiga de ninar. Um dia, no entanto, o silêncio desses ruídos foi abalado por um vagido alto e agudo, e o mundo grávido de silêncio encheu-se de sons: nasciam as palavras. Bem, ainda não eram propriamente palavras, mas balbucios, sons–palavras primevos. De ma… ma… a mater e matéria demorou bastante, mas aos poucos as palavras foram tomando forma, multiplicando-se e, por fim, já eram tantas que começaram a reunir-se em narrativas. Narrativas ditas ao pé do lume, recitadas em ocasiões especiais, em festas e cerimônias. Narrativas que procuravam ir além do grande Silêncio primevo, rompendo-o e dando-lhe um significado vivo: nasciam os mitos. Palavra criadora e fundadora, a palavra do mito não se deixa aprisionar por um discurso analítico, definidor e unívoco e por isso mesmo, em nossa sociedade regida por discursos conceituais, são as palavras dos poetas as que melhor conseguem expressar por meio de imagens verbais o que é o mito. Simples, complexo, claro, enigmático, lúdico, sério, o mito constela-se no jogo sempre refeito de claros e escuros, em que é ao mesmo tempo “o nada que é tudo”* . Ou verdade que oculta outra verdade, um sonhar em estado de vigília, um debruçar-se sobre o que são a imperfeição e os sofrimentos humanos, uma busca, sempre renovada, de preencher o vazio do que em cada um de nós são sombras ou desejos clandestinos. Desejo implica uma ausência, pois desejar significa “deixar de ver”. Deixar de ver o quê? Deixar de ver os astros. Astro diz-se sidus e astros, sidera; logo, de-sidera-re originariamente significava deixar de ver (os astros). Desiderium, desejo, é a busca do que não se vê, do que está ausente, do que está na sombra, na ausência da luz (dos astros). Junto com con-sidera-re, “examinar com atenção e respeito”, desiderare e desiderium pertenciam ao vocabulário dos áugures, sacerdotes romanos que viam e interpretavam a resolução divina por meio de sinais da natureza para aqueles que buscavam conhecer o futuro imediato. Considerare, desiderare e desiderium, na linguagem laica, cedo perderam seu significado transcendente, pois o homem passou a confiar mais em sua razão, e o que via e percebia pelos sentidos deixou de ser um critério seguro para o conhecimento. E o que os mitos têm a ver com essa digressão? Os mitos, como construções imaginárias, expressam esse desejo de conhecimento antes mesmo do homem começar a conceitualizá-lo em theorias. Ver e conhecer estão no cerne de muitas narrativas. Tirésias, o adivinho cego, que no entanto sabia ver o passado, o presente e o futuro; Orfeu que, ao se voltar para ver a umbra de sua amada Eurídice, perdeu-a para todo o sempre, pois violou a condição de não ver o que lhe era interdito saber; Acteão viu Ártemis banhandose em uma fonte e foi dilacerado por seus próprios cães de caça; já Perseu venceu a Medusa, pois não a olhou diretamente face a face, mas sim pelo reflexo do escudo polido; Édipo, após conhecer sua verdadeira identidade, cegou-se. Visão e conhecimento parecem constelar uma imagem inseparável no universo dos mitos. Se o homem das sociedades tradicionais, como as da Grécia e a de Roma, esta em seus primórdios históricos, antes do contato com a cultura helênica, buscava o conhecimento do futuro fora de si, em consulta a oráculos, e por meio de outros processos mânticos, a introspecção significou uma nova e radical conquista do célebre e oracular preceito délfico: “conhece-te a ti mesmo”. Essas palavras, inscritas no santuário de Apolo, significavam que o homem se conhecia pela consulta aos oráculos, pela palavra divina. A verdade era-lhe revelada. A introspecção, atitude solitária, o voltar-se sobre si mesmo, implica uma mudança de paradigma epistemológico. Não é, pois, de se admirar que o mito de Narciso nos tenha chegado via Plutarco e, principalmente, via Ovídio, poeta que nos narra, justamente (feliz coincidência?), mitos que falam de transformações, em seu poema Metamorfoses. O mito de Narciso constela, por excelência, a imagem da introspecção. Ele é, por assim dizer, o mito instaurador do paradigma da reflexão do homem que se debruça sobre si mesmo e se mira em suas próprias pupilas, no desejo de autoconsciência. Os astros são agora os olhos, que, como espelhos-astros, confrontam Narciso com ele mesmo e só com ele mesmo, pois até então nunca se vira refletido nos olhos de ninguém. A violência radical de tal confronto primevo, que exclui o olhar do outro, implica perigo e, como em Narciso, a morte. A impossibilidade de comunicar-se com o outro, com a alteridade — no mito de Narciso, duplicada na figura de Eco — impede Narciso de construir uma identidade, seja por meio do olhar, seja por meio da palavra. A era dos mitos, em que o homem tinha sua identidade assegurada por um olhar de extroversão, quando se reconhecia em seus pais e parentes, havia acabado tal, como se calou Eco, a outrora exímia contadora de histórias. E o homem ingressou no tempo da autoconsciência que sempre implica o difícil, mas indispensável, confronto com o si-mesmo e com a heterogeneidade, quer no âmbito individual, quer no âmbito sóciopolítico. E nós, homens do século XXI? Onde se situam nossos olhos-espelhos? Estamos na era da Telemorfose, como afirma Jean Baudrillard ? Será nosso espelho o espelho da banalidade, do grau zero, em que o homem experimentalmente vive a anulação de si na nulidade do outro? Que jogo especular é esse em que a ultraexposição aos olhos de câmeras onipresentes confere glória e renome, e em que a introspecção é enunciada como a “ida ao paredão”, que faz a vez de um confessionário de banalidades? O que desejamos conhecer com esses jogos? Como se vê, também nós temos a nossa Górgona-Medusa de olhar petrificador. Estamos qual Perseu em confronto com esse espelho, no qual se entrevê todo o potencial de morte que o homem carrega dentro de si. A introspecção mais do que nunca faz-se necessária, e Narciso é uma boa imagem para fazer-nos pensar na importância que atribuímos aos nossos espelhos e a nós mesmos. Finalizo com Clarice. Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu.
Miriam Sutter
Professora de Letras Clássicas da PUC-Rio * OMYTHOéonadaqueétudo./Omesmosolqueabreoscéus/éummythobrilhanteemudo-/ocorpomortodeDeus,/vivoedesnudo.//Esteque aqui aportou, /foi por não ser existindo./Sem existir nos bastou./ Por não ter vindo foi vindo/ e nos creou. // Assim a lenda se escorre/ a entrar na realidade,/ e a fecundá-la decorre./Em baixo, a vida, metade/ de nada, morre. [PESSOA, F. Mensagem. II. Os Castellos. Primeiro / Ulysses.] BAUDRILLARD, Jean. Telemorfose. Prefácio e tradução de Muniz Sodré. RJ:Mauad, 2004. LISPECTOR, Clarice. A experiência maior. IN: Para não esquecer. SP: Círculo do Livro, 1987.
Sem espaço, Sem papel, Com caneta. Escrevo meus versos, No verso de seus versos.
Edson Santana
Cartinha de quem ama Cala a boca. Não interessa se você se arrepende. Repito, fecha a boca, porque quem vai falar agora sou eu. Fiquei quieto demais. Brincadeirinha pra cá, mentira pra lá. Não gosto de gente que mente assim. Repetir inverdades necessárias é um hábito saudável, que conserva relação, respeito e até o tal do amor. Me devolve o cd, rasgue as minhas cartas, não me procure mais, assim será melhor, meu bem. As horas lentas de ciúmes que eu previa nem aconteceram. Calma aí, já te disse: tive ciúmes poucas vezes na minha vida, mas foram senhores ciúmes, de deixar triste, abatido. Se manda menina, porque nem menina tu és mais. Tem o mau-caratismo das garotinhas e a covardia das experimentadas. Esquece, gosto de você. Passe a borracha nesta minha cartinha, passe aquele batom, vista aquele vestido, o perfume daquela festinha na praia, lembra?! Esse mesmo. Relaxa... Eu também não sou boa coisa.
Camilo Pinheiro Machado
Exercício de garça tardes de transfusão que para não te espantar virava garça e a mão um ancinho de ternura saneava palavras a serem ditas e juntava teus cabelos num canto do ombro para beijar-te no pescoço fingidamente desnudo um jardim em estado líquido gasoso enquanto o rio associado aos teus lábios de batom incendiava-se de flamboyants transbordando um vermelho varrido pelos olhos para dentro de um peito sem sangue e a vida refluía e eu voava capinava peixes no rio e por mais que os arrancasse pelas raízes feéricos renasciam feito capim feito um sonho
Lasana Lukata
Entrevista por Isabel Wilker*
Entre o ator e o escritor
José Wilker é ator, escritor, diretor. Tem mais de quarenta anos de carreira, já atuou em mais de quarenta e cinco filmes, trinta e cinco novelas, e um sem número de peças de teatro. Escreveu crônicas durante cinco anos para o Jornal do Brasil, que resultaram na publicação do livro Como deixar um relógio emocionado, em 1996. Também escreveu sobre cinema para a revista Contigo por um ano. Você tem o hábito de escrever desde criança ou começou mais tarde?
Tem o hábito de escrever regularmente? Escrevo sempre, todos os dias. Às vezes por obrigação profissional, outras por simples prazer ou para não esquecer. O que o faz ter vontade de escrever? Não tenho exatamente “vontade” de escrever. É como respirar, a gente nem percebe. De repente, está escrevendo. Como funciona a escolha dos seus temas? Quando trabalhou no JB, por exemplo, e precisava escrever uma crônica por semana, como fazia? Escolho ao acaso. Escolho quando algo me chama a atenção. Quando percebo algum humor num acontecimento. Para o JB – e nessa época eu escrevia para mais dois outros meios – por conta da exigência de um texto novo a cada semana, eu usava um método um tanto quanto maluco. Escrevia uma frase qualquer e esperava que ela me conduzisse daí para frente. Ficava olhando a frase na tela do computador até que ela me ensinasse como continuar. O que mais gosta de escrever, crônica, teatro, cinema, poesia, contos....? Gosto de crônica e de teatro. Já escrevi poesia e morro de vergonha dela. Minha poesia é
As palavras são mais libertadoras. Posso continuar a fazer malabarismos com as palavras em qualquer tempo. O corpo, coitado, depois de um certo tempo, de uma certa idade, já não responde com a devida presteza e eficiência aos nossos apelos. As palavras, porém, vão se enriquecendo, ganhando novos significados com o passar do tempo.
Arquivo Pessoal
Minha memória mais antiga está numa foto na qual estou escrevendo. Ela está perdida, tenho apenas a memória dela. Estou sentado diante de uma mesa, num lugar que suponho seja o quintal das minhas tias. Escrevendo. Então, devo dizer que o ato de escrever exerce desde sempre um fascínio todo especial para mim. Eu já escrevia mesmo antes de saber escrever. Copiava letras. Juntava várias delas em grupos, apenas porque as formas delas me encantavam. Depois, lia em voz alta lhes atribuindo significados, algo como a reprodução das histórias que andavam pela minha cabeça.
O que é mais libertador? Expressar-se através do corpo (atuando) ou das palavras(escrevendo)? O que cerceia mais ou menos - a linguagem ou o corpo físico?
medíocre. Contento-me com as letras de música que escrevo para as minhas peças. Letra de música é mais fácil, basta colar algumas imagens desencontradas, um verso quase brilhante e a música se encarrega de dar sentido àquilo. Quando está trabalhando com prazo, consegue fazer as coisas com antecedência ou espera o último minuto possível para começar a escrever? A urgência ajuda ou atrapalha? Escrevo sempre no último minuto. A urgência é uma conselheira razoável. Mas, se não publico de imediato, faço centenas de revisões. No caso do teatro, por exemplo, das peças ainda não encenadas ou publicadas, faço revisões intermináveis. Minha peça O sim pelo não vem sofrendo revisões freqüentes nos últimos dez anos. Acredita que o trabalho de ator — e também de diretor — faz de você um crítico mais cuidadoso? Sem dúvida, saber do calvário do ator e do diretor me faz um crítico mais cuidadoso. Mas, também e paradoxalmente, mais rigoroso. Como ator e diretor, não me sinto confortável com a superficialidade. O mesmo vale para a crítica.
Você trabalha mais com a crônica e com a crítica. Isso aconteceu naturalmente ou foi uma escolha? Aconteceu naturalmente. Não foi uma escolha. De repente, lá estava eu fazendo aquilo. Mas, devo dizer que não me considero, não quero ser tomado como um crítico. Na verdade, escrevo sobre as minhas paixões e divido as minhas 11 paixões com os amigos que tenho, ou quero ter, e que eventualmente me lêem ou me escutam. Ser um leitor voraz fez você ter vontade de escrever? A leitura está sempre ligada com a escrita? Para escrever é fundamental ler. Não duvido do fato de a leitura ser ótima fonte de inspiração e de orientação. Algumas palavras para nós, leitores, jovens escritores e interessados em geral? Está em Drummond: “Penetra surdamente no reino das palavras”. O verso, para mim, é o resumo do melhor método de interpretação e de escrita.
* Foi com enorme prazer que dei conta desta tarefa para o Plástico Bolha. Acho que nunca tinha entrevistado meu pai formalmente, e tentei aproveitar a oportunidade como pude. Digo isso porque, além de filha, também sou fã apaixonada, e fico tímida, curiosa, deslumbrada... Fiquei nervosa por não saber o que perguntar. Tive medo de que ele não gostasse das minhas perguntas... Mas acabei por me conformar com perguntar só o que eu gostaria de saber e nada mais. O resultado está aqui, e espero que gostem!
Belíssima cidade de São Salvador
CUPIM DO BOI
a Humberto Espíndola
Nessa cidade de São Salvador — salvador não sei de quem de mim é que não é existe todo tipo de gente, todo tipo de miséria. Por entre essas ladeiras prostituídas, sujas e enlameadas existe gente, muita gente, pouca gente — que se equilibra no pão nosso de cada dia e acredita que no fim apenas tem um muro. Nessas tantas igrejas de ouro, de prata, de chumbo de pele e de suor jazem pretos pretos esquecidos no fundo da sacristia enquanto o senhor todo padre jorra a sua missa. E os esgotos
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— ah, os esgotos! restos humanos bóiam em águas salgadas na belíssima cidade de São Salvador — salvador não sei de quem de mim é que não é. Letícia Simões
Quando retiro os óculos do rosto espio, atenta, toda a cercania. Então, o mundo se revela exposto à vaga luz dos dez graus de miopia: percebo as coisas pelo que suponho. Assim, a mesa não é só uma mesa, assim meu corpo se refaz em sonho, sem nem saber se estou liberta ou presa. Meu Deus, duvido tanto do que vejo, quanto confio na vida que pressinto! As impressões me dão um tênue beijo e me conduzem pelo labirinto da solidão de quem não vê direito. No entanto, sei: somente ali eu pinto (com os pincéis lavados em meu peito, e o carmesim de um coração faminto) a tela desse meu olhar estreito, e nela, tudo aquilo quanto sinto.
Paloma Espínola
preciso um verso perfeito refeito que feito uma garça se esgaça e faz tanta graça e pirraça que como criança não cansa descansa levanta e agacha e corre e me solta um sorriso e some no seu paraíso um verso perfeito preciso Manuelle Rosa
É estranho o cupim do boi! Uma corcova, Um toutiço, Um montículo de pregas Sobre o dorso do zebu. Um pássaro pousa sobre o cupim alvo Como duna no deserto, Enquanto o touro Rumina do estômago à boca, Da boca ao rim, As gotas de sol no capim. A corcunda gordurosa Parece uma cabeça no capuz, Um muçulmano que se esconde Sob o couro Que bloqueia a luz. Há movimento de cosmo Nas ondas de pele Desse boi recurvado, Pronto para ser jogado às piranhas Em ritual de sacrifício. Na invernada, A tristeza do boi Me atinge Em punhaladas. Raquel Naveira