Jornal Plástico Bolha #21

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plástico bolha envolvendo palavras

Distribuição Gratuita

Ano 3 - Número 21 - Maio/2008

CEM TROCADILHOS!

Vestidos

Nenhum ser humano é uma ilha, se diz por aí; e, no entanto, quantas vezes não nos encontramos solitários, com os pés atolados na areia, jogando mensagens engarrafadas ao mar? É por isso que o plástico bolha está aqui! Uma verdadeira ponte de comunicação que rompe a inércia do cotidiano e nos permite fazer contato, ver o que se passa na cabeça dos demais e, quem sabe, até mesmo trocar de ilha — sem trocadilhos...

os véus transparentes colocados nos edifícios em construção — uma teia, uma túnica de tarrafa, mosquiteiro de berço — não os protegem do medo nem da morte por despencamento apenas invertem o processo da chegada, estão vestidos antes de nascerem. Bruna Beber

Heinz Lange

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NESTA EDIÇÃO marina colasanti

alice sant’anna

nastassja pugliese

ana paula kiffer

felipe carvalho dos santos heinz

langer

pedro

leal

marlon

rivero

joÃo lima

johnnatan luiz coelho

carlos santana jr. franco

renata varella

renato

santuza cambraia naves

carolina maria de jesus

barbara hansen

andrÉ telles do rosÁrio bruna beber

antonio mattoso

milene portela nascimento letÍcia simÕes

pedro braga nogueira

raÏssa degoes

paloma espÍnola

neto

gisela gold andrÉ

preger

pedro carnÉ gregÓrio duvivier leonardo

marona

paulo renato porto filho


Bolhetim

O QUE TEM DE SER TEM MUITA FORÇA

O PROCESSO DE REVISÃO DO JORNAL Quando iniciamos o plástico bolha, ofereci-me para fazer a revisão. Tenho experiência na tarefa e vi que muito do material recebido, apesar do corretor ortográfico do Word, trazia erros que, é claro, não poderiam estar no jornal. Revisar (rever, corrigir, alterar, sugerir) é, antes de tudo, uma atividade que requer atenção, paciência, algumas gramáticas e dicionários e olhos de lince, prontos a detectar problemas de acentuação, regência, concordância, sem falar da famigerada crase, do temido ponto e vírgula, dos ignorados hífens. Como o volume de textos é grande, convidamos alguns alunos de Letras para formar a equipe de revisão e, hoje, Rubiane Valério, Gabriel Matos e Rafael Anselmé são os olhos precisos que, vigilantes, apontam as

Por isso, a cada manhã, os olhos da cidade abrem-se nas janelas para receber o sol, as moças acordam e perfumam os seios, flutuam nas salas, deslizam nas calçadas, os gatos conversam com os fantasmas das casas, as empregadas limpam os vestígios do dia, os homens calculam a geometria dos gestos, os carros costuram a urdidura das ruas,

alterações necessárias. Trabalhamos de maneira virtual, trocando e-mails (no mundo da Internet é assim, para o bem e para o mal) — cada um usa uma cor para dar sua opinião. Os textos “coloridos” voltam para mim, que os revejo, batendo o martelo nos casos de sugestões divergentes (o que não é raro em português), e os envio ao editor. Fazemos o possível para não alterar o estilo do texto e, quando necessário, enviamos as dúvidas e propostas ao autor, sempre visando a que o material saia na sua melhor forma. Nesse trabalho solitário, rodeados de Cegallas, Becharas, Aurélios e Houaisses, somos leitores privilegiados — por sermos primeiros — dos textos publicados no Plástico Bolha. Uma leitura PLOCT!

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Este texto foi escrito para dar uma idéia aos leitores de como funciona a revisão do jornal. Mas aproveito para agradecer à equipe que, sempre alerta, me ensina, a cada edição, que a próxima pode ser melhor. Marilena Moraes envie suas dúvidas, críticas e sugestões para jornalplasticobolha@gmail.com ---------------------------------------------------------------------------------------

Entre muitos outros lugares você encontra o plástico bolha em: — Agosto Butiquim - Rua Esmeralda, 298, Prado, BH (MG) — Livraria Timbre - Shopping da Gávea, Loja 221, Gávea (RJ)

enquanto eu, aqui neste quarto, evoco a voz da tia-avó pontuando o mistério: o que tem de ser tem muita força... Por isso o sangue pulsa, a fruta cresce, o corpo busca. Por isso envelhecemos. Por isso os peixes sabem a fundo aquilo que não sabemos, e os prédios sobem e os ventos mudam, e os pássaros – ah, os pássaros – os pássaros cantam para toda a luz que dança por cima das águas: para os amantes, os loucos, as crianças, enquanto tia Zezé se balança na cadeira de palha, sussurrando aos ouvidos da minha infância: o que tem de ser tem muita força. Paloma Espínola

— Modern Sound - Rua Barata Ribeiro, 502, Loja D, Copacabana (RJ)

Múltiplos olhares para Maio 68 40 anos depois

Dia 19/05 - 16h às 19h

1968 / Glauber Rocha Quartier Latin Mai68 / Colette Weibel

Dia 20/05 - 16h às 20h

Terra em transe / Glauber Rocha

Dia 21/05 - 16h às 18h Geração 68 / Simon Brook

Carlos Heitor Cony Paulo Oneto Vladimir Palmeira Ivana Bentes Orlando Senna Silvio Tendler Barbara Freitag Jorge Mautner Jorge Vasconcellos Sergio Paulo Rouanet

PUC/Rio - Auditório Pe. Anchieta Rua Marquês de São Vicente 225 Gávea ENTRADA FRANCA

plástico bolha produzido pelos alunos de Letras da PUC-Rio

Editores Lucas Viriato Paulo Gravina Editora Assistente Marilena Moraes Conselho Editorial Luiz Coelho Gregório Duvivier Isabel Diegues

Tiragem: 8.000 Impresso na CUT Graf Distribuído no Rio de Janeiro, em Niterói e em Belo Horizonte

Comissão Avaliadora Constanza de Córdova Carlos Andreas Tomé Lavigne Nadja Voss Mauro Rebello Isabel Wilker Edson Santana Manoela Ferrari Cristiane Mendes Roberta Rubinstein

Coordenação Thiago Bento Lucas Viriato

Equipe Márcia Brito Beatriz Pedras

Revisão Marilena Moraes Rubiane Valério Rafael Anselmé Gabriel Matos

Agradecimentos Luisa Noronha Cláudio Alves da Silva Ana Luiza Assunção Fábio Muller Mary Viriato

Envie seus textos para jornalplasticobolha@gmail.com


Poema de Espelhos Esses pensamentos obscuros Insolentes, amorais tangenciam minha carne. Fome de viver quando a noite nos parece tão próxima. Quem sabe a pureza de uma rosa faça-me renascer sob as asas de uma fênix sobre as cinzas do desejo. (Essa liberdade em chamas) Tudo parece maior do que realmente é. Os meus desejos são apenas sombras de ilusões. Tão curtos os dias. Tão longas as horas. A felicidade se dissolve em pequenas gotas contra o vento. (E eu continuo sem rumo) Manchei com sangue minhas paredes para ter certeza de que ainda estava viva. Quis gritar — se perdeu. Quis fugir — me perdi. Quis sonhar — acordei. Talvez viver — esqueci. Letícia Simões

Exilado em solo conhecido ou Perdão, Gonçalves Dias Minha terra tem escritores que dão nó na cabeça de qualquer um. Minha touca de nós, meu tecido interentrelaçado, a cada nó um significado. Meu retrato de país multirreferenciado, um orgulho de pisar o mesmo solo de tantos cérebros inspirados. Minha terra tem pessoas que foram daqui mandadas embora, e que saudade, que maldade... Uma nostalgia avassaladora. A minha pátria é a melhor, a melhor de todas. Meus sentimentos exacerbados e o eu chegando ao céu mais azul de todos, e as palavras se extraviaram... Pastiche, paráfrase ou paródia? Pára tudo! Minha terra tem filhos desesperançados, desesperados ante a morte e angustiados por nunca mais voltar a sentir o perfume da terra e das plantas, da natureza, das pedras... Aquelas mesmas que foram daqui levadas, mas, ora pois, para cá foram trazidas tantas outras maravilhas. Maravilha de dúvida: benefício ou contaminação? De longe tudo é mais belo, mas vamos ver mais de perto, bem de perto, no interno; vamos engolir, devorar e mastigar e fazer à nossa maneira. O bacalhau com ketchup internacional, invasor à moda brasileira. Minha terra tem mulheres e paixões e amores e dores, ai, quantas dores. Um erótico natural, um corpo de mulher, muitas escravas, uma sinhá, uma Diniz, muitas Kellys Keys, o feminino achando o seu lugar. Mas, além da fronteira, também tem belezas, naquele seio outros seios tão lindos, facilidades bem-vindas, que no mar de cá já não sei se quero voltar a navegar. Minha terra tem variedade, encantamento e horror, e uma dor censurada, que AI, nem 5, 5 séculos me farão esquecer. Rápido passam escândalos, malas involuntárias, cuecas recheadas, contas sem dono, cheques sem assinaturas, assombrosos fantasmas públicos. Tem estado e não-estado, tem algo de paralelo, e ao mesmo tempo óbvio. Tem povo sem cara, sem governo, e governo que não quer povo, só o novo, o novo dindo, a nova mansão, o novo mandato. Não se sabe quens mandam e desmandada a terra em que tudo se planta, colhe-se na Suíça ou nas ilhas paradisíacas, com palmeiras de folhas verdes, um “must”, in God we trust. Minha terra, mas, minha terra, ai, quando de você me canso, é que penso no remanso, no bom de aqui estar. Porque quando olho pro lado é que vejo um rosto, dois, dez rostos de esperança, e uma terra ainda criança com uma barriga d’água, uma senhora pança de sonhos pra realizar. Se a terra ainda é menina, perdoa um pouco, releva e ensina, confia, que tudo há de prosperar. O progresso ainda é uma listra fina, mas vamos acreditar que se cumpra essa boa sina. E, se por aqui continuarem assaltando as minas, não haverá mais ordem; o jeito será largar essa vida cretina, cantar um tango e passar a concordar que Brasília é, é sim, cidade dos cafundós da Argentina.

Milene Portela

Banca da PUC Tel.: 2512-7109

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Por dentro do tom

por Santuza Cambraia Naves Entrando na conversa sobre o fim da canção (1)

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O fenômeno do fim da canção tem sido anunciado por algumas personalidades. Chico Buarque, por exemplo, em entrevista à Folha de São Paulo (26/12/2004), argumentou que talvez a canção “seja um fenômeno do século 20”, cuja trajetória foi assim descrita: “Noel Rosa formatou essa música nos anos 30. Ela vigora até os anos 50 e aí vem a bossa-nova, que remodela tudo”. O estilo musical do rap, segundo Chico, seria de “certa forma uma negação da canção tal como a conhecemos” e talvez “o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou”. Chico, ao fazer esta declaração, parece partir do pressuposto de que se trata de um processo irreversível, de que o momento atual é o da predominância das vozes das periferias. E se o fenômeno do rap lhe desperta interesse é pelo seu significado social, e não propriamente como “artista e criador”. Excluindo-se, portanto, desse processo não só por questões geracionais e de classe como também por ver-se de certa forma como discípulo de Tom Jobim ao tomar a canção como um artesanato, Chico não vê outra saída senão a de “refazer da melhor maneira possível” aquilo que já fez ao longo de sua carreira. Apesar de não compartilhar com Chico a visão de um processo irreversível com relação ao fim da canção, concordo com as ênfases por ele colocadas nas composições de Noel Rosa e nas posteriores da bossa-nova, mostrando-as como representativas de experiências em que a canção alcança a sua plenitude. Nos casos citados, privilegia-se no processo de composição a correspondência conceitual entre música e letra, chegando-se mesmo a operar de maneira inusitada, no terreno menos nobre do “popular”, com procedimentos metalingüísticos. Nota-se a adoção desta técnica em “Gago apaixonado”, samba de Noel Rosa de 1931 que exige do intérprete a habilidade de gaguejar musicalmente, fazendo jus ao teor da letra, e em “Desafinado” (1958) e “Samba de uma nota só” (1960), músicas de Tom Jobim e Newton Mendonça que se tornaram paradigmáticas do momento heróico de criação do estilo bossa-nova por se estruturarem a partir de correspondências perfeitas entre música e letra, na medida em que uma e outra se comentam reciprocamente. Entro nesta conversa, entretanto, para dizer que, no caso brasileiro, a canção perde a sua autonomia com a tropicália. Não pretendo afirmar com isso que a conjunção música-letra se mostre capenga em sua versão tropicalista. Muito pelo contrário, a relação íntima, até “isomórfica”, que Augusto de Campos, em Balanço da bossa (São Paulo, Perspectiva, 1968) atribui à canção bossa-novista também é observada na canção tropicalista, mas se estende, neste caso, aos arranjos, às capas dos discos, às performances. O que então estou dizendo é que é impossível entender a canção tropicalista somente a partir dos seus elementos poético-musicais, embora eles se realizem de maneira complexa, recorrendo a procedimentos intertextuais e dialogando assim com a literatura, as artes plásticas, o cinema e o teatro. É que a canção tropicalista só se realiza completamente não apenas através da voz (e de outros transmissores musicais) como também do corpo, já que os tropicalistas assumem radicalmente o palco através de diversas máscaras e coreografias. A estética tropicalista opera com um conceito único, fazendo então com que música, letra, arranjos, imagem artística, capas de discos, cenários e outros elementos mantenham entre si uma correspondência estreita. Com relação aos arranjos, é importante observar que os instrumentos musicais utilizados atuam também como alegorias: não é só a sonoridade específica do instrumento que é relevante, mas também o que ele significa e representa no contexto em que é utilizado. Assim, ao adotarem a guitarra elétrica — proveniente do rock e do iê-iê-iê — num cenário musical marcado por posições nacionalistas exacerbadas, os tropicalistas assumem uma atitude de incorporação da cultura de massa e do elemento estrangeiro; de maneira semelhante, ao incluírem violinos em suas orquestrações, mostram-se receptivos à sonoridade kitsch num momento de valorização do conceito de bom gosto introduzido pela bossa-nova: voz contida, violão acústico, percussão discreta e palco nu. O processo de desconstrução da canção foi aqui analisado através do uso da voz, do corpo e de outros recursos na estética tropicalista. Na próxima coluna, este tema será retomado a partir dos procedimentos intertextuais adotados pelos músicos baianos.

Puzzles

Agostinho de Hipona, o santo boêmio É... nunca imaginei que escreveria um texto sobre Santo Agostinho fora das aulas de religião. Bem, sendo ainda mais sincera, nunca imaginei que eu fosse querer escrever uma linha sequer sobre ele, que foi motivo de pesadelo e revolta durante os duros anos de meu ensino básico. Não sou católica — apesar de primeira comunhão e batismo — e jamais gostei de me confessar — menos ainda de rezar o terço. Também, pudera! Os padres me davam medo. Eu não entendia por que, depois de confessar meus pecados infantis — daqueles que toda criança saudável comete —, eu tinha que rezar não-sei-quantas Ave-Marias e não-sei-quantos Pai-Nossos. É claro que eu nunca terminava. Rezava um de cada e olhe lá. Acho que só me confessei duas vezes na vida. Parei de ir à igreja tanto por falta de paciência quanto por perceber que aquilo ali não era um remédio contra minhas mentiras. Deveria haver um outro caminho. O tempo passou e, aos 16 anos, li O Anti-Cristo, de Nietzsche. Foi uma revelação. Passei a mentir muito mais, acreditando na potência do falso e na incapacidade dos outros de receber a facada da afiada lâmina da verdade. Eu detestava Santo Agostinho e todos os seus amigos santos. Mas quanto mais eu queria distância, mais a presença desses elementos cristãos se destacava. Resolvi, enfim, encarar a tarefa de estudá-los, entendê-los e absorvê-los ao meu modo. Ofereço-lhes, portanto, alguns pedaços de minhas... quer dizer, das confissões de Santo Agostinho. Uma das coisas mais interessantes que descobri na biografia de Aurélio Agostinho foi que ele era africano. Tudo bem, eu sabia que o local de nascimento chamava-se Tagaste, mas para daí juntar A com B e perceber que ele era africano e que poderia, por isso, ter sido negro de cabelo black-power, só com a ajuda de Rosselini (aliás, vejam o filme Agostini di Hipona – faz dormir, mas vale pelo exercício de desconstrução das imagens que formamos sobre a época e sobre os homens da Igreja). Esses e outros casos me fizeram imaginar o santo como uma pessoa muito mais interessante do que aquela rígida figura pintada pelos freis do colégio onde estudei, lá no Leblon. Nascido no século IV, no dia 13 de novembro de 354, Aurélio teve, na juventude, um grupo de amigos com os quais gostava de andar pelas ruas fazendo escárnios, zombando dos outros e roubando frutas de plantações particulares. Quando conta sobre seu passado, ele se mostra indignado com as represálias que recebia: “o que nós gostávamos de fazer era brincar e éramos castigados por isso, e por pessoas que se comportavam do mesmo modo que nós. Mas a diversão dos homens mais velhos é chamada de ‘trabalho’, enquanto que as crianças, quando realizando sua própria diversão, são punidas por ela”. O livro Confissões narra o processo pelo qual passou até compreender suas próprias frustrações, inquietações e irritações e transformá-las em meras expressões de sua natureza humana, por ter desenvolvido um senso de equilíbrio, contentamento e estabilidade. Na adolescência teve relações com diversas mulheres, até que se estabilizou e permaneceu durante 16 anos com a mãe de seu filho, Deodato. Mas, pelo fato de ela ser de classe mais baixa, o relacionamento foi interrompido. Agostinho aceitara uma oferta de casamento arranjado que, teoricamente, lhe traria grandes benefícios. Mas não deu certo e em pouco tempo se separou e abandonou a carreira de professor universitário, alegando problemas de saúde. Logo após foi batizado pelo Bispo Ambrósio de Milão e se recolheu para escrever seus trabalhos. Na verdade, por meio de Confissões, Agostinho conseguiu se libertar de suas compulsões luxuriosas. Viciado em sexo e nos prazeres da carne, ele não conseguia mais gozar nas práticas das quais se tornou escravo. Ele diz: “um escravo não pode desfrutar daquilo que o escraviza”. Para se desprender, Agostinho trilhou um caminho a que, muitos séculos depois, Barthes também se entregou: “Mas, e se o conhecimento for, ele mesmo, delicioso?” Ambos concordam que um texto que dá prazer não fala necessariamente de sexo. O prazer que Agostinho passa a encontrar nos estudos, na escrita e na leitura é mais duradouro do que uma garrafa de vinho e uma noite com boas comidas e belas mulheres. Agostinho não nega a alegria advinda dessas práticas. Ao contrário, define o pecado como uma busca compulsiva de objetos que são bons em si mesmos, mas que, por outro lado, são incapazes de, sozinhos, satisfazer tanto a infinitude dos desejos quanto o desejo de infinito. Neste percurso, diz ele ter encontrado um objeto que o estimula provocando uma sinestesia quase física, que movimenta o sangue e os sentidos: Deus, o maior dos conceitos abstratos. Interessante é que ele passa a valorizar sentidos menos óbvios, mais sutis, como os “olhos da mente” e os “ouvidos do coração”. Nesse tempo de ascetismo voluntário, volta para África e colhe maior inspiração para sua redação. Tão logo retorna, sua mãe morre e, um pouco depois, ele perde o filho. Passa os anos seguintes imerso em tarefas da Igreja, onde cria relações que o fortalecem depois das perdas. Foi ordenado padre; tornouse bispo em 395. Foi santificado em 430. Agostinho de Hipona ou Santo Agostinho foi bispo da Igreja Católica e terminou a vida como um santificado doutor. Foi responsável por misturar o platonismo à doutrina católica, espalhando na imaginação dos fiéis as idéias puras de “céu” e “inferno”. Sua filosofia se mostrou um denominador comum entre os pensamentos dos epicuristas, estóicos, céticos e de neoplatonistas como Plotino e Porfírio, além de diferentes correntes da ortodoxia cristã – como os maniqueus, por exemplo. Mas o que muitas vezes passa ao largo da leitura das Confissões é a sedução causada pelo uso da primeira pessoa. Sedução por vezes demagógica, que inebria o leitor com seus silêncios, suspensões, angústias e auto-proibições. Sem se dar conta ou mesmo com intencionalidade, o uso político que bispos descendentes fizeram dos livros de Agostinho, inaugurou na Igreja a prática de estratégias excludentes e autoritárias. O uso moralizante das Confissões, tornando regras de comportamento as práticas que Agostinho descobriu serem valiosas para ele, minimizou o poder e a fertilidade da obra. Agostinho nunca postulou o ascetismo e o celibato, mas sua influência foi forte o bastante para fazer da atitude “assexuada” uma prática valorizada pela Igreja. Ao que me parece, é importante chegar mais perto, penetrar na história, se envolver, investigar a vida e a obra tanto de Agostinho quanto de seus chatos amigos santos para compreender a constituição das doutrinas em sua origem cercana para, talvez, descobri-los nem tão chatos assim. Desse modo, penso podermos adquirir instrumentos mais adequados para decantar as misturas venenosas de uma religião dogmática. Confesso que, na minha vida, tão importante quanto aprender a separar idéias sólidas de líquidos intelectuais menos densos foram aquelas santas tardes de arruaça no laboratório de Química da escola, onde a bureta e a pipeta nos faziam pensar em tudo, menos na fórmula do ácido sulfúrico.

Nastassja de Saramago A. Pugliese

mestranda em filosofia pela UFRJ


(sobre)vivências – dos cen’átimos (brevidades) por Felipe Carvalho dos Santos

Atrás da parede quem sabe, ao alcance das mãos: um embrulho.

entardeseres o sujeito é um desenho na areia que já é levado pelo vento e dissipa (Michel Foucault)

De um encontro fortuito com uma cigana, de nome Sâmara, cheguei às letras e esbarrei na tarefa de escrituração da narrativa oral — e, somente alguns anos depois, notei a diferença entre escrever e narrar. A escrituração aparece aqui como registro do corpo sonoro e gestual. É certo que fui trazido para a literatura por um movimento mágico ou, noutras palavras, minha vida de escritor é, num mesmo tom, uma cadência mística e artística. No mestrado, deparei-me com um tal Buru, ou Glauburu, mais conhecido como Glauber Rocha. Nesse encontro, tornamo-nos grandes amigos; por ora, estamos separados, devido ao nosso caráter intempestivo. É claro que a faísca se desprendeu de nosso encontro e me vi impulsionado a tomar partido diante das contundentes afirmações do cineasta escritor. Sou solar e o meu amigo é estelar. Quando dei por mim, estava enleado em ensaios, poemas, cartas, e-mails, contos, roteiros e crônicas. Observei que muitas vozes assinavam os escritos, muitos encontros e desencontros in(ex)surgiam — uma dupla agitação: ventos internos e externos arrastavam a linguagem. Tamanho caos pôde ser organizado e nomeado como um “processo criativo”, ou as etapas da vida de um escritor, os bastidores de sua escrita. E foi Buru quem me ensinou que somos, por certo, muitos. Aquele que escreve não é um sujeito pleno — nem plano —, tampouco estabelece planos, pois estes se perdem como areia levada pelo vento. E foi então que enxerguei uma única saída: compartilhar meu corpo da escrituração com outros corpos também ansiosos por manifestar-se. Nascem, assim, as comunidades — comunicações — e as experiências são vivenciadas — ou (sobre)vividas. Ouço-sinto as vozes-corpos e elas se materializam na escrita. Sou antena e agente da escrituração — num mesmo instante plural e autobiográfico. Não há separação, arte e pensamento caminham lado a lado, num só movimento — passo a passo, tudo em sincronia. Brotam na folha de papel imagens, imagens como impressões — jamais se congelam num conceito — como um líquido que jorra da garrafa espatifada no chão.

alegria Um pássaro voa: até o limite do céu, sua liberdade. culpa Insiste em ficar, mesmo lavada na máquina, a mancha na roupa. depressão Peso insuportável: o de amarrar os sapatos, levantar os olhos. Pedro Leal

mulheres-damas

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por Ana Paula Kiffer

www.claudiaroquettepinto.com.br

Raïssa Degoes

Diria a vida como quem diz silenciosa A palavra frágil Ágil Ardil de corpos de copos tardes infindáveis Crepúsculo de terra sem deuses Céu que adensa sobre a cabeça Infatigável Atroz Aqueles que não têm histórias.

expectativa

O site da poeta Cláudia Roquette-Pinto impressiona já no início pelo design gráfico e pelo acompanhamento sonoro. Nele, a poeta abre o coração em alguns de seus poemas publicados e inéditos e com várias entrevistas, inclusive a que ela concedeu ao plástico bolha, na edição # 7.

vale o clique!

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Bolhas Geraes Coisa de mineiro Esta cidade está disfarçada de dois milhões de habitantes e Cautelosamente Estende seu corpo na Serra do Curral Mas Dona Dirce, que às cinco horas da manhã está no ponto de ônibus, nem sonha que ela é Belo Horizonte E que Belo Horizonte pinta e borda em sua vida Mas Dona Dirce, mineira que é, Ao ver o sol acariciando as costas da Serra Esquece o salário bem mínimo e Diz: — Ê trem bonito, sô!

Poema com inspiração

Má notícia Meu coração dispara Diz: pára! Não adianta, já amo.

Pela manhã Em pouso urbano, no meio dos concretos e incertos caminhos da cidade, a alegria toma café E discute economia esperando o metrô A alegria é capital.

Às vinte e duas horas do dia dezessete de setembro de dois mil e sete Um homem alto com cabelos negros corpo cansado e olhos febris Aproximou-se do papel Ferindo-o com tinta vermelha impacientemente O ocorrido se deu graças à existência de uma moça distinta de pele morena, olhos negros, cabelos lisos e sorriso-poesia Aquele homem tinha um quê de pintor.

Quatro poemas de Johnnatan Nascimento 6

A coluna Bolhas Geraes é dedicada aos nossos leitores e colaboradores mineiros, que recebem o plástico bolha em diversos pontos de Belo Horizonte. Envie também os seus trabalhos para jornalplasticobolha@gmail.com

maio

Coração de acrílico Li um conto do Drummond, chama “Coração segundo”, no qual o personagem não agüenta mais ficar sensível a cada situação que vê ou que ouve, e ficar sofrendo por cada perda, por cada coisa que o abale. Resolve, portanto, substituir o coração velho de guerra por um segundo novinho em folha. Como o cara lá de cima ainda não deixou a gente clonar aquele coração cheio de sentimento, ele teve que fazer um de acrílico mesmo. Acrílico que era justamente pra não sentir o que o outro sentia. Surgia uma promessa de leveza no ar. E lá foi ele passando pelas ruas, vendo coisas que antes o chocavam, ouvindo outras que antes o mobilizavam e... nada. O sorriso continuava. Até que, um dia, as doenças físicas que antes o comoviam nos outros, começaram a aparecer no moço. E os brinquedos, que ele dava às crianças de posse de seu coração velho de guerra, começaram a ser recusados por elas. Parece que essa tal promessa de leveza não supria os momentos de felicidade que os vínculos trazem. Coração velho pode estar capenga, mas vive dizendo que a gente tem que fazer vínculos pra viver melhor. Coração de acrílico é pra se bastar. E coração que não se envolve fica vazio de história pra contar, prato cheio pros bichinhos infectuosos se alojarem. Agüentou não. Pediu de volta o antigo.

Gisela Gold

essa voz que escapa como fiapo estria na pele imperceptível pinga no vidro e derrama, maio chega na ponta dos pés com dias curtos e correntes de ar. por pouco não despenca (outono é ponte) e desafina, mas maio se mantém meio bambo na corda, se espirra cambaleia, em maio dá vontade de dormir até mais tarde. Alice Sant’Anna


Diariamente Era o fim da tarde. Chovia fino, quase uma névoa, como se somente para cobrir a forte luz do poente que inebriava as ruas de um laranja demodé. Apesar de ter trilhado aquele mesmo caminho por anos a fio, não sabia decerto aonde ir. Talvez ao metrô, talvez à parada de ônibus, talvez ao simpático estabelecimento no qual tivera alguns dos melhores momentos que a cafeína pôde lhe propiciar nos últimos tempos. Decide pelo café. Adentra. Apesar de ser um habitué, pela freqüência com que aparecia por lá, não foi reconhecido por nenhum dos funcionários do local. Talvez por estar sempre com pressa, talvez pelo fato de seu relógio funcionar numa velocidade que beirava a subsônica... Não. Não era o tempo. Apenas não se deixava conhecer, vivia uma vida superficial demais para que qualquer um soubesse mais do que o seu nome e sobrenome por meio de seus cartões e de seus papéis timbrados. Fazia questão de espalhá-los por todos os cantos, como se saber que ele era o doutor Francisco Machado Lemos Duarte, CEO (e nunca diretor ou presidente, achava que esses brasileirismos redundantes menosprezavam seu talento profissional) da Duarte & Kisilewicz Advogados Associados, fosse o suficiente. Se escondia atrás de um título comercial, que, por ironia, levava o seu próprio sobrenome, na esperança de que isso pudesse dar uma certa grife a si mesmo. Um, dois, três. Sentou na terceira mesa, no canto direito. Sentiu o aroma familiar do acarpetado que revestia as paredes, uma mistura sutil de café torrado com uma combinação nonsense de aromas diversos de fumo. Era o seu lugar favorito. Aspirou esta mistura, e tentou imaginar que pessoas e que histórias haviam passado por aquele lugar, que sentimentos poderiam ter deixado tais marcas, quase imperceptíveis, em algo tão prosaico quanto um carpete. Habituado a se envolver com as vidas alheias, por um átimo ensaiou viver estas histórias. Antes mesmo que seu cérebro se desse conta, desistiu. Faz sinal para o garçom bem-vestido. “Sebastião”, lê em um pin na altura de sua lapela. Observa sua fisionomia. O conhecia de rosto. Presume que seja nordestino. Internamente, arrisca o Ceará. Pede-lhe o cardápio. É prontamente atendido. Analisa. Talvez um mocha. “Não, muito complexo”. Complexidade era a última coisa que queria naquela

hora, inclusive para as suas papilas gustativas. Talvez um chocolate quente. Também não, muito romântico para um fim de tarde solitário. Talvez um café preto, forte, enérgico. “Esse muito menos, senão não durmo”. Lembra que pode recorrer às suas pílulas, mas se convence de que não vale a pena. Um cappuccino. Perfeito. A combinação brilhante entre o romantismo do cacau, o choque realístico do café, a amabilidade do leite e a complacência da canela em pó. Pede creme à parte, para coroar a sua melancolia. Fez o pedido. Aguarda. Tira do bolso interno de seu paletó um maço de Benson & Hedges mentolado. Pede um cinzeiro, e é prontamente atendido mais uma vez. Acende um cigarro. Sente-se aliviado com o frescor do toque de menta, e relaxado pelo efeito da nicotina. Recorre à refrescância para deixar seus pensamentos mais leves. O que ele tinha feito de errado? Nada. Sempre no horário, sempre cumprindo os prazos, sempre presente nas reuniões, sempre brilhante nas audiências. Se pergunta o motivo de tamanha decepção. Acabara de perder o seu maior cliente, e com ele, a última possibilidade de recuperação de seu escritório. Depois de tanto suor, depois de tanto trabalho, depois de tanta luta por anos a fio, teria de se acostumar a ser empregado, a obedecer ordens mais uma vez, como em sua época de recém-formado. Afinal, não tem mais energia para se lançar em um concurso qualquer do Estado. Discorre mentalmente sobre o nome que lhe deu solidez por tanto tempo. Saca do paletó um cartão de visitas. “Duarte & Kisilewicz Advogados Associados”, lê. “Duarte & Kisilewicz Advogados Associados”, pensa. Imagina o futuro. Imagina quem será, sem a chancela da D&K. Absorto em seus pensamentos, não nota que seu cappuccino esfriava a olhos vistos na mesa, à sua frente. Mais uma tragada, olha o adoçante; bah, de que adianta manter a forma numa hora dessas? Pega o açucareiro. Uma colher, duas, três, mexe, prova, está bom. Gostoso. Vislumbra os sabores. Separa-os mentalmente. Conjuga-os mais uma vez. Engole. Pode sentir a bebida morna descendo pela garganta, sentese vivo com a temperatura. Puxa a última tragada, bebe o último gole. Olha o relógio. Não vira o tempo passar. Pede a conta. Sebastião a traz, mais uma vez prontamente. Não olha o valor, não tinha costume de se preocupar com esses pormenores. Abre a carteira, escolhe o cartão de crédito. O Platinum? O Corporate? O do programa de fidelidade? O da conta conjunta?

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Escolhe o Corporate. A D&K lhe devia ao menos um café, por vinte e tantos anos de trabalho árduo. Ele o junta à sua conta, se lembra de observar o valor. Quatro reais e quarenta e cinco centavos, quase cinco com o adicional do serviço. Frugal. Pensa em quão importante são mais quarenta e cinco centavos para o decerto cearense Sebastião. Espera a fatura. Assina e devolve, e recebe do garçom seu recibo. Agradece. “Obrigado a você, seu Francisco!”. Levanta. Abre a porta. Olha para a rua. Não quer voltar para casa, não quer dar a notícia para a mulher, não quer ver seu olhar de compaixão, não quer negar aos filhos a vida que sempre lhes deu. Sai. Acostumado a sempre procurar ganhar tempo, segue quase que instintivamente o caminho da estação do metrô. “Pra quê?”, se pergunta. Caminha até o ponto de ônibus. Não quer chegar rápido em casa, quer postergar uma notícia que sabe, invariavelmente, terá de ser dada. Olha a linha. 157, ar-condicionado. Pede o ponto, sobe, paga blasé à jovem cobradora com uma nota de vinte. Recebe e confere o seu troco, e se senta na quinta fileira, à sua direita, para observar a paisagem. Sente-se triste. Abandonado. Com frio. Mas vai passar. Como tudo em sua vida. Às seis e meia, Tião (como é conhecido Sebastião de Jesus) sai do serviço. Como em todos os dias, se despede com a cordialidade da qual se revestia para viver. Considera amigos a todos do café, da servente ao simpático chefe, um senhor aposentado à busca de uma ocupação sincera. Está contente por poder estar mandando algum dinheiro para a mãe, no interior da Paraíba. Pega o ônibus, antevê a face feliz dos cinco filhos e da mulher, que, imagina, o aguardam em casa. Não tem levado uma vida muito 7 fácil, acumula dois empregos, mas com certeza vive melhor do que com a mãe, em sua terra natal. Espera, em pé. Não havia lugar onde sentar. Pensa em quão mais fácil deve ser a vida do senhor que servira por último no trabalho. Se encosta, tenta cochilar, a cabeça no apoio. Está cansado. Uma hora e quinze depois, chega em casa, num subúrbio afastado. A rua não tem iluminação. Abre a porta, os filhos correndo ao seu encontro. Beija-os um a um na testa. A mais nova lhe confessa que estava “com saudades, papai”. A mulher coloca o café recém-passado no coador sobre a mesa tubular. Sorri. É feliz.

Carlos Santana Jr.

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Q UA RT O D E D E S P E J O Trechos do diário de

Carolina Maria de Jesus Estes são trechos do diário de Carolina Maria de Jesus, moradora da favela do Canindé, em São Paulo, catadora de lixo e mãe de três filhos. Transcrevemos suas palavras letra por letra, desconsiderando o fato de que ela escreve fora da norma culta e no ano de 1955, antes da Reforma Ortográfica. Todo o diário está publicado no livro Quarto de Despejo, que nomeia a coluna.

20 de julho de 1955

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Deixei o leito as 4 horas para escrever. Abri a porta e contemplei o céu estrelado. Quando o astro-rei começou despontar eu fui buscar água. Tive sorte! As mulheres não estavam na torneira. Enchi minha lata e zarpei. (...) Fui no Arnaldo buscar o leite e o pão. Quando retornava encontrei o senhor Ismael com uma faca de 30 centimetros mais ou menos. Disse-me que estava a espera do Binidito e do Miguel para matá-los, que êles lhe expancaram quando êle estava embriagado. Lhe aconselhei a não brigar, que o crime não trás vantagens a ninguem, apenas deturpa a vida. Senti o cheiro do alcool, disisti. Sei que os ébrios não atende. O senhor Ismael quando não está alcoolizado demonstra sua sapiencia. Já foi telegrafista. E do Circulo Exoterico. Tem conhecimentos bíblicos, gosta de dar conselhos. Mas não tem valor. Deixou o alcool lhe dominar, embora seus conselho seja util para os que gostam de levar vida decente. Preparei a refeição matinal. Cada filho prefere uma coisa. A Vera, mingau de farinha de trigo torrada. O João José, café puro. O José Carlos, leite branco. E eu, mingau de aveia. Já que não posso dar aos meus filhos uma casa decente para residir, procuro lhe dar uma refeição condigna.

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Terminaram a refeição. Lavei os utensílios. Depois fui lavar roupas. Eu não tenho homem em casa. É só eu e meus filhos. Mas eu não pretendo relaxar. O meu sonho era andar bem limpinha, usar roupas de alto preço, residir numa casa confortável, mas não é possivel. Eu não estou descontente com a profissão que exerço. Já habituei-me andar suja. Já faz oito anos que cato papel. O desgosto que tenho é residir em favela. ... Durante o dia, os jovens de 15 e 18 anos sentam na grama e falam de roubo. E já tentaram assaltar o empório do senhor Raymundo Guello. E um ficou carimbado com uma bala. O assalto teve inicio as 4 horas. Quando o dia clareou as crianças catava dinheiro na rua e no capinzal. Teve criança que catou vinte cruzeiros em moeda. E sorria exibindo o dinheiro. Mas o juiz foi severo. Castigou impiedosamente. Fui no rio lavar as roupas e encontrei D. Mariana. Uma mulher agradavel e decente. Tem 9 filhos e um lar modelo. Ela e o espôso tratam-se com iducação. Visam apenas viver em paz. E criar filhos. Ela tambem ia lavar roupas. Ela disse-me que o Binidito da D. Geralda todos os dias ia prêso. Que a Radio Patrulha cançou de vir buscá-lo. Arranjou serviço para êle na cadêia. Achei graça. Dei risada!... Estendi as roupas rapidamente e fui catar papel. Que suplicio catar papel atualmente! Tenho que levar a minha filha Vera Eunice. Ela está com dois anos, e não gosta de ficar em casa. Eu ponho o saco na cabeça e levo-a nos braços. Suporto o pêso do saco na cabeça e suporto o pêso da Vera Eunice nos braços. Tem hora que revolto-me. Depois domino-me. Ela não tem culpa de estar no mundo. Refleti: preciso ser tolerante com os meus filhos. Êles não tem ninguem no mundo a não ser eu. Como é pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar. Aqui, todas impricam comigo. Dizem que falo muito bem. Que sei atrair os homens. (...) Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo.

Depressão Hoje, eu não saio daqui Nem que me pague Nem que me peça Nem por amor Renata Varella

Tabaco Noite de outono, sexta-feira, São Paulo. Despeço-me de meu Real numa padaria de esquina. Um maço. Na varanda do oitavo andar a cidade é sonho passado. Teto baixo, nuvens escuras e garoa fina. No chão os anúncios, fios, postes, lâmpadas, faróis, frenéticos. Enquanto consideramos sobre a vida eu mais meu comparsa. Titia Jagger faz suas simpatias pelo estéreo. 13 cigarros. R. Magritte

Rasgamos cuidadosamente o tecido de asfalto e tumulto de carros de Brasil. Desta vez em cinco dançamos sentados. Nos dirigindo, o suíngue. Acendem um cigarro. São 10, ainda. Reconheço e me cumprimentam olhos, mãos, bocas e ouvidos das antigas. E meus pés cruzam tranqüilos a multidão. Atrás de mais combustível, encontro uma paixão do passado que beija seu namoradinho. Uma cerveja. 6 cigarros. Perfeito! A alquimia perfeita o som e a celebração! E todos esticam seus músculos oculares. Dentro de mim todo o Delírio! É preciso celebrar! E meus pés desenham o caminho. E meus pés percutem o chão. Marcam, rítmicos, irônicos, elétricos, congraçamentos. Danço, Viver é o prazer supremo! (e já são 4, os no maço). A última boca que a minha boca poderia seivar é ida. Comigo só eu, e distante demais pra tocar instantes mais sutis. Risco de giz a pista vazia. 2 cigarros, só tenho mais outro, e um insuportável bafo. O último cigarro escorre-me dos dedos para o bueiro. E o fecunda. Nasce o Sol. De volta à pacata vida, compro um novo maço.

André Telles do Rosário


Desafio poético Nesta edição, os leitores do plástico bolha foram desafiados a escrever um soneto italiano. Esta é uma das formas mais clássicas da poesia, compondo-se de dois quartetos e dois tercetos rimados. Veja abaixo seis amostras de quem topou participar do desafio. Para a próxima edição, o desafio será temático: escrever um poema sobre um bairro ou sobre uma cidade. Nossos leitores estão convidados a trovar Copacabana, a Tijuca, a Lapa ou, por que não?, o Rio de Janeiro inteiro. Os leitores de BH e de outras cidades também podem participar, com suas respectivas localidades. Basta enviar seu poema para: jornalplasticobolha@gmail.com.

Água aguardar

Ramo de rosas

Soneto prático

Aguardar um verso, a calmaria Indefinida até que um espelho d’água Reflita algo preciso como a mágoa, E ora vago como uma sombra pia.

a mudez da palavra que te veste em si nua — grande cartilha agreste de nuances nonsense, se insinua oblíqua nos lábios, meu lápis sua

quando não há mais qualquer coisa após o que vivemos juntos, a não ser o fim, com a tragédia de sabê-lo fim, e a certeza da dor, atroz,

A tempestade. A imagem; felonia. Intermitência, simbolicamente a praga; Luz a perder-se. Metáforas mais vagas. É necessário preterir, queria.

língua nas virilhas, significado das armadilhas — ambíguas carícias nas ancas, essas ilhas tão entrelinhas fingidas desde as margens com hiatos

quando você e eu formamos nós e nossos nós não podem desatar-se, antes que os nós acabem por cegar-se e de berrar percamos nossa voz,

Recorre-se aos distúrbios no oceano como símbolos ordenados num plano. Aguardar um verso torna-se um verso.

(casaco de pele de textos, sílabas feitas com retalhos, tons, narrativas tônicas, teu clitóris, minha vírgula)

por mais que doa e que nos caia o céu sobre os olhos abertos, e os meus rasguem-se de dor e feito papel

Meditar é tornar do porvir O presente. Da hipótese auferir A tese. Ter da metade o terço.

do meu verbo pacato, que demora no teu seio, guardando das histórias no olhar, a sintaxe da hora assídua.

chovam corpos picados sobre os seus, por amor mesmo, e para ser fiel, é preciso saber dizer adeus.

Pedro Braga

Luiz Coelho

Gregório Duvivier

Recompor do dia

Calendário das horas

Farol

Onde a onda vem o eco se estende e cala o rechão feito horizonte espelhado. Sob os pés e os tatuís perfurado, o continente em fresta a areia inala.

Quem é que vê o desespero imóvel Deste dia enclausurado no tempo? Quem é que assiste o agonizante e lento Instante decomposto no improvável?

Abro a porta que no espelho inexiste, E no mergulho horizontal se anuncia Com uma beleza intensamente triste O doce sussurro presente na harmonia.

Brilha o ocaso na América do Sul, e as luzes então tecem suas teias: Resplandecem as ruas suas veias de um sangue que desfaz-se em tinta azul.

Ferido mortalmente pelo Efêmero O momento, silente em si, desaba E rasga o sonho que perdido andava À luz do dia num sofrer sincero

Um murmúrio encantador que admite Em muitas ondas uma salvação vazia Oferecidas apenas à vida que suplique E se purifique em sua própria liturgia.

A noite não é bela como o dia: Farfalhando, explodem as veias, sobra o céu, que pelas paredes se esguia,

Só sabe da distância o que delira De presença, com angústia e com medo Da queda, no altiplano da paixão

Alçado na pira das palavras sagradas, A vida oferecendo para ser queimada, Uma centelha é riscada sob o lençol.

escorre seco, chora e se desdobra, buscando o alvorecer da luz que espia por dentro desse céu que a torna obra.

Quem é que à noite cândida suspira? Quem é que tem a dor como segredo E o sofrimento como coração?

Às chamas submeto-me num instante E a miragem de toda a paixão cortante Vejo esfacelar-se de meu novo farol.

Marlon Riviero Franco

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a morte da mãe

ORÁCULO

Gota d’água, um diálogo possível com Medéia ou Pharmácia de Manipulação Deixe em paz meu coração que ele é um pote até aqui de mágoa (Chico Buarque)

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ou gàr ... khaíron tis autôn toumòn algyneî kéar impune , ninguém dentre eles fará sofrer meu coração (Eurípides 395 ... 398)

Está em cartaz, até 25 de maio, no Teatro Carlos Gomes, o musical em dois atos GOTA D’ÁGUA, peça inspirada no caso especial Medéia, uma adaptação de Oduvaldo Viana Filho para a tragédia homônima de Eurípides. O programa foi exibido pela rede Globo de televisão em 1973, dirigido por Fábio Sabag e protagonizado por Fernanda Montenegro. Posteriormente, Paulo Pontes transformou Medéia em um musical, convidando Chico Buarque de Hollanda tanto para composição das músicas e letras quanto para a adaptação. O espetáculo estreou no Rio de Janeiro, em 1975, estrelado por Bibi Ferreira. Em 431 a.C., no entanto, Eurípides obteve o terceiro lugar no concurso trágico com a encenação de MEDÉIA, que tem como fonte o mito dos Argonautas e a busca do Velocino de Ouro. Os concursos de tragédias na Grécia consistiam de uma tetralogia, três tragédias inicialmente de assunto correlatos, posteriormente de temática independente e um drama satírico. Em Gota D’Água, os autores transferem a ação para um conjunto habitacional de periferia no Rio de Janeiro. Reis, princesas, descendentes de deuses hábeis no conhecimento do phármakon transformam-se agora em pobres subempregados, lavadeiras, biscateiros, macumbeiros e gigolôs. Mais uma vez o mito revela sua atemporalidade e universalidade como um relato sempre renovado por múltiplas ressemantizações. Aqui caberia uma breve digressão sobre phármakon, do qual se mostram exímias conhecedoras tanto Medéia quanto Joana. Originalmente, o phármakon era uma planta de uso medicinal e mágica que alterava a substância de um corpo. Sua tradução consagrada é veneno, droga e também remédio. Sua natureza, sendo ambivalente, participa do duplo i.e. tanto benigno, salutar e curativo quanto maligno, nocivo e mortífero. Jacques Derrida aponta que “o phármakon, mesmo usado para fins terapêuticos como um remédio, não é inofensivo”. Por um lado, Eurípides caracteriza Medéia como depositária de uma sabedoria (sophía) dos venenos, ressaltando principalmente seus efeitos; por outro, Chico e Paulo Pontes apresentam Joana manipulando-os, uma clara referência à Medéia de Sêneca, filósofo e poeta latino do séc. I d.C. Estamos, portanto, diante de duas envenenadoras consumadas, pharmakeútriai. Os autores introduzem na fábula um conflito inexistente em Eurípides, a inadimplência dos moradores da Vila do Meio-Dia devida aos juros e à correção monetária crescentes; por isso, a ação dramática é retardada em poucos dias. Para desenvolver esse novo conflito, os autores criaram novas cenas envolvendo sobretudo Creonte de Vasconcelos, o proprietário dos imóveis da Vila do Meio-Dia; o sambista Jasão de Oliveira, seu futuro genro, e os moradores sob a liderança de mestre Egeu. Temos, assim, dois conflitos paralelos: um coletivo e social, a dívida dos moradores, e outro individual e passional, o despejo e a traição de Joana, conflitos esses cujo desfecho ocorrerá respectivamente na véspera e no próprio dia do casamento de Jasão e Alma, filha de Creonte. Medéia e Gota D’Água em seu primeiro ato apresentam a mesma seqüência das ações à exceção do conflito dos inadimplentes. No segundo ato, porém, verificam-se algumas inversões em relação à tragédia de Eurípides, cujo sentido veremos abaixo. Em Medéia, Egeu, rei de Atenas, se compromete, por meio de juramento, a receber, em sua cidade, Medéia, que tendo conseguido o prazo de um dia de Creonte, rei de Corinto, envia os filhos com dádivas para a nova esposa de Jasão, um véu e uma coroa ungidos com phármakon. Ao vesti-los, morrem a princesa e o rei em sua tentativa frustrada de salvá-la. Por tê-los matado e incriminado os próprios filhos, Medéia agora se encontra diante de uma aporía (< a-póros sem passagem), uma impossibilidade de encontrar passagem, um impasse. Se não matar os filhos, serão mortos pelos Coríntios. Após alguns momentos de hesitação, sacrifica-os no interior do palácio, por serem vedadas aos olhos do espectador as cenas de morte no teatro grego. Etimologicamente, teatro é o espaço por excelência consagrado à visão. A solução do conflito não ocorre na ação, mas via um deus ex machina, o Sol, que oferece seu carro para a fuga da neta, já que um “Deus acha passagem (póros) para o inesperado” Eur., Med., 1418. Medéia substituiu os filhos pelo objeto de seu ódio, o marido que a ultrajara. Existe uma clara homologia entre a vítima sacrificada, seus filhos e aqueles por quem ela os substitui e visa atingir, Jasão. Em grego, a vítima sacrificada denomina-se pharmakós, aquele que serve de vítima expiatória, o remédio personificado. Já em Gota D’Água, Mestre Egeu não consegue de maneira nenhuma impedir que Creonte de Vasconcelos despeje Joana — portanto, fracassa como adjuvante. Joana também obteve algo de Creonte um dia, mas os bolinhos envenenados, presente para noiva de Jasão, não chegam até seu destinatário, Alma. Creonte, o antídoto contra o veneno, intercepta e neutraliza ação de Joana: conseqüentemente, não se confirma a estratégia da vingança. Vitorioso em seu segundo e decisivo embate, Creonte expulsa das bodas os filhos de Jasão. Traída pelo marido, abandonada pelos vizinhos e vencida por Creonte, Joana encontra-se também em uma situação de aporia. Hesita em matar os filhos. Quando os meninos reclamam de fome, Joana toma a decisão final, “gota que falta pro desfecho da festa”: oferece os bolinhos aos filhos; em seguida, ingere um bolinho também, porque compreendeu “que o sofrimento de conviver com a tragédia todo dia é pior que morte por envenenamento”. Todas essas inversões em relação à tragédia de Eurípides refletem, a nosso ver, a intenção dos autores de ressaltar a queda de Joana. Em Gota D’Água sequer existe possibilidade da resolução do conflito por meio de um deus ex machina. Joana sucumbe a um sistema inexorável de juros e correção monetária, representado pela prepotência de Creonte. O phármakon, a pharmakeútria e o pharmakós se confundem em Joana, que morre de seu próprio veneno. O auto-sacrifício é sua única passagem, sua única saída. Trinta e três anos depois, já que uma geração não conhece o texto senão por leitura, torna-se mais do que necessário, aqui no Rio de Janeiro, uma nova montagem da peça. A atual direção de João Fonseca, tendo Izabella Bicalho à frente do elenco, enfatiza o caráter musical do texto a tal ponto que o diretor insere em seu espetáculo outras canções do repertório de Chico Buarque, embora algumas especialmente compostas para peça já tenham ganhado autonomia e encontrado interpretação singular na voz de alguns dos melhores cantores da MPB. Gota D’Água sobrevive imune ao tempo, conservando seu vigor original, o que revela, a fortiori, o toque de gênio. Ousaria dizer, finalmente, que o texto já se encontra entre os clássicos de nossa dramaturgia.

Antonio Mattoso

Professor de Letras Clássicas da PUC-Rio

olhos doloridos sob a cama de mogno. bocas tremidas no escuro dos passos: chega o corpo. te vejo tão calma, nariz de algodão. há gentes na sala, a madeira é de lei. silêncios repartidos entre hienas beatas sob conchas de mão. te vejo tão calma, não vejo ninguém. tua gripe passou? não me respondem. destilam mensagens teus cílios de lança: meu peito não capta. teu calor ainda na cama, me deito vazio. reza quem finge que ama, paredes no cio e moscas nos teus cílios. Leonardo Marona


Entrevista por André Preger

O que nos contam as fadas

MARINA COLASANTI. O jornal plástico bolha foi recebido pela escritora, contista e tradutora para uma conversa mágica sobre a natureza dos mitos e da criação literária. Nela, a autora nos conta da sua infância e das suas fontes de inspiração para escrever contos de fada. Tudo regado a muito prilimpimpim! Qual é a sua relação com a leitura?

historiador da arte, autor de vários livros, era importante nos ambientes das artes do país. O que era assombroso para mim era apreender esse novo país. O jardim era mais assombroso do que a casa porque era uma selva tropical, ia até os pés do Cristo; meu irmão e eu ficávamos soltos ali o dia inteiro, fazendo altas explorações. Foi assombroso; a entrada nos trópicos foi pela natureza; na casa se falava italiano, os empregados todos eram italianos. Entrei no Brasil aos poucos, sem ter que mudar logo de idioma, mas entrando nesse universo vegetal. Incrível, não é?! Mas essa casa aparece muito. Num segundo período, a casa estava vazia; minha mãe já havia morrido, minha tia Gabriella, dona da casa, já tinha ido para a Itália. Éramos meu irmão e eu sozinhos na casa, com um casal de empregados; foi uma vivência completamente diferente. A casa aparece muito no meu livro de estréia, Eu sozinha, um livro esgotado, fora de comércio há muitos anos.

Sou européia, de uma família leitora; nunca pensei que uma casa pudesse não ter livros. Os móveis da minha imaginação: uma casa precisa de um fogão, de um colchão e das estantes, o resto a gente dá um jeito; mas eu nunca pude pensar em uma casa que não tivesse esses três elementos. Não tenho nenhuma lembrança do primeiro livro ou de ter sido alfabetizada para a leitura. É clara a lembrança de eu ser alfabetizada para a escrita, mas é como se eu já soubesse ler. Porque os livros sempre estiveram dentro da minha vida, eles fazem a costura; eles não têm uma entrada, são o meu fluxo no mundo. Como começou a produzir literatura infantil?

A questão do mito está muito presente, se não na concepção, na confecção dos contos de fada. Como o mito entra em sua vida? Entra em minha vida por leitura e muito cedo, aos seis, sete anos, quando li uma coleção adaptada para a juventude, muito bem adaptada; era para jovens de 13 anos ou mais, eu era bem menor. Talvez, até por isso, tenha sido uma leitura tão sedutora, tão fantástica. Li as grandes obras da literatura e li mitos gregos. Li entre 7 e 8 anos, e foi uma leitura para toda vida. Uma vez que você transita pelos mitos gregos, nunca mais sai. Não conheço ninguém que tenha feito isso. Mitologia é uma coisa muito intensa. Quando trabalho a mitologia uso a reescritura, uma retomada dos mitos, e eu trabalhei assim nos meus minicontos, num processo comandado pela razão. Quando trabalho os mitos nos contos de fada, não estou me debruçando sobre os mitos feitos, não estou procurando mitos existentes. Eventualmente eu posso esbarrar em alguma coisa que já existe, mas isso é porque... é o inconsciente coletivo. Isso existe, a gente convive com isso, que aflora. Mas o conto de fada é em si uma narrativa de estrutura mitológica, de extração profunda, vem das camadas mais fundas do inconsciente. Ele é o único produto — e o diferencio entre todos os outros produtos literários — que não recorre à razão. Os contos têm uma carga mitológica, mas injetada propositadamente por mim, é uma carga que aflora porque evidentemente somos esponjas mitológicas. Estamos encharcados de mitologia: a religião, a filosofia, tudo, você vai procurar, as raízes estão lá nos mitos. Então, você deixar aflorar de muito fundo, bem mesmo. As primeiras versões dos contos de fada na Europa Medieval são bem assustadoras, não são? A versão original de Chapeuzinho Vermelho é assustadora. São, sim... As versões são estupendas, inclusive, a variante do Chapeuzinho Vermelho. Mas o que assusta na estrutura — estou falando em âmbito estritamente pessoal porque não conheço outros autores de contos de fada, pois são muito poucos os que escrevem contos de fada como projeto literário — não é só o que acontece; de repente a história te apresenta um recurso que

Como é sua experiência com poesia (que sei que é pequena, mas muito relevante)?

Márcia Brito

É preciso esclarecer que, em termos de mercado, os contos de fada são considerados literatura infantil, mas eu os vejo como um gênero específico. Comecei pelos contos de fada por uma questão técnica, do jornal. Era a época da ditadura, o Jornal do Brasil editava o Caderno I (infantil) e eu trabalhava na redação do Segundo Caderno. Fiquei encarregada da edição do Caderno I por causa da prisão da editora, Ana Arruda Callado. Por ética, não fiz nenhuma modificação; mas foi difícil, porque é pouco prático usar o sapato dos outros. Num dado momento, faltava matéria (eu conto o fato porque essa história vai nos corrigir mais além), e tive que produzir alguma coisa. Peguei a máquina (era máquina!) e escrevi um conto que era para ser a remontagem da Bela Adormecida; mas acabei escrevendo um outro conto, Sete anos e mais sete; fiquei boquiaberta, eu tinha feito uma coisa dificílima! Contos de fada são dificílimos e não é uma literatura que possa ser dominada pela razão, é uma literatura que tem que vir de outras regiões. Fiquei muito encantada, não sabia como tinha acontecido. Tive que descobrir o processo e escrevi o meu primeiro livro, Uma Idéia toda azul; a partir daí escrevi também literatura infantil.

pode ser assustador. O que assusta é a intensidade, a surpresa, é você dizer: “De onde apareceu isso? De onde vem?” Não é uma história que você comande, é uma história que você segue. Você lança a história e a segue; ela é que coloca você no percurso. A senhora é uma espetacular tradutora de italiano. Como chegou à sua célebre tradução do El Gattopardo, de Tomasi de Lampedusa? Sou tradutora há muitos, muitos anos. Comecei a traduzir no início da minha vida de jornalista e gosto muito de traduzir. Traduzi coisas muito bonitas, como Kawabata, Pappini, entre outros. Traduzi bastante, mas diminuí a carga como tradutora por uma questão muito simples: a tradução é mal paga e ela me impede de escrever para mim enquanto estou escrevendo para ela; enquanto traduzo, não escrevo; as duas coisas somadas tornam a questão um pouco improdutiva; mas, depois do Il Gattopardo, traduzi Pinocchio, por exemplo, a pedido meu. Assim, de vez em quando, abro mão e faço uma tradução boa. Tradução é uma coisa maravilhosa, mas parece um castelo medieval que, em algum momento, vai abrir uma tampa e você vai cair na boca dos crocodilos, porque é cheia de armadilhas. Mas é uma coisa muito bonita, é uma atividade para perfeccionistas, para miniaturistas, você fica em cima, borda, borda, borda... O livro está pronto e você continua atravessando o livro todo não sei quantas vezes. É uma atividade muito bonita; lamento que, no Brasil, seja tão desvalorizada. A senhora falou muito bem da metáfora do mergulho nos contos medievais. Gostaria de falar sobre a senhora assustada com o castelo medieval do Parque Lage. Morar lá a marcou muito, não foi? Você sabe que essa experiência está presente na minha poesia, está em vários livros, está nas crônicas; acaba de estar presente em um livro publicado no ano passado, Minha Tia me Contou, com histórias que mesclam realidade e ficção; é uma novela pontuada por cinco histórias contadas por uma tia, grande cantora lírica, que me foram contadas por minha tia, Gabriella Bezanzoni Lage, dona do Parque Lage. Então é um livro mezzomezzo, mezzo ficção, mezzo realidade. Quando fui morar lá, não fiquei muito assombrada com a casa, porque eu vinha da Itália onde as casas, as vilas, os castelos estão em toda parte. Minha avó morava num apartamento gigantesco, cheio de peças de arte; no centro histórico de Roma. Meu avô era um

São apenas dois livros... Cheguei muito tarde à poesia, fiz o percurso inverso; todo mundo faz muita poesia quando é jovem e depois até larga. Eu só fiz quando era criança, na Europa. Mas depois não fiz mais, porque cada vez mais a poesia me encantava; me casei com um poeta. Até isso também atrasou; era muita ousadia fazer poesia sendo casada com um poeta já com crachá, carteirinha estabelecida na praça. Era um risco muito grande, fora que era um risco de quebração de cara, num momento em que eu já estava com a minha carreira mais ou menos organizada. Mas tenho a impressão de que exerci a poesia dentro da prosa e, quando ela aconteceu, já estava pronta, porque era a poesia que eu queria fazer. Não tive que sair procurando o rumo da minha poesia. Quando lhe abri a 11 porta, ela já estava lá como queria ser. Eu diria que a poesia fica exatamente entre os contos de fada e a literatura (os contos, a ficção, os ensaios), porque ela, embora faça recurso, e tem que fazer, ao inconsciente, à emoção, tem uma linguagem que é a linguagem dos contos de fada, mas não estou interessada em fazer uma poesia que fale do amanhecer, dessas coisas. Desejo fazer uma poesia a serviço de uma idéia. Uma crítica, uma observação, um olhar diferente sobre o mundo, ou apenas um olhar. Então ela não é dissociada da razão, como são os contos de fada; ela é fortemente associada à razão. Porque para fazer só lirismo, não preciso da poesia; tenho os contos de fada. A poesia me serve exatamente para injetar um olhar crítico, um olhar de uma pessoa que se posiciona no mundo, que tem uma voz, algo a dizer. E quer dizê-lo de uma maneira especial. Qual seria o seu conselho para o jovem estudante de Letras, que se interessa por literatura, que gostaria de escrever? Qual o caminho? É claro que para ser escritor é necessário ter um talento, como é necessário em qualquer atividade. Um talento específico. Mas, aos jovens, sempre digo: “Vocês precisam ter absoluta certeza de que é isso que querem fazer; têm que ser muito tinhosos, é uma profissão para gente tinhosa”. Ou seja, tem que se agarrar nessa profissão e ficar, porque num país como o nosso ela é uma profissão de médio curso ou longo. De longo prazo. Você começa a ter os frutos no meio do caminho, sobretudo, já chegando ao fim. Porque é uma profissão cumulativa. A não ser que você seja um gênio absoluto — e isso ninguém pode prever, embora muita gente já nasça achando que é. Se você não for um gênio absoluto, a probabilidade é que o primeiro livro não o leve muito longe, não dê dinheiro. Então você vai precisar de um segundo, de um terceiro e você vai fazendo suas idéias. No Brasil, só agora oferecem nas universidades cadeiras para se formar um escritor. Antes, todo escritor tinha que inventar a roda. Era muito trabalhoso. Então, é uma profissão para quem está decidido a ficar nela, porque a tendência é ela ejetar as pessoas. A pessoa faz um livro, é um sacrifício danado, e luta para conseguir um editor, mais um sacrifício danado, aí não tem distribuidor e fica tudo em casa. Ou então tem distribuidor, mas o livro não foi comprado, não apareceu na mídia. Aí, a pessoa desiste. Saiba de antemão que este é o percurso normal; o resto é uma eventualidade.


12

Enciplexo

Criança

sexo em ângulo convexo preâmbulo complexo reflexo o pêndulo no óvulo convexo eu, trêmulo perplexo ridículo sem nexo crepúsculo já baixo — copulo a deixo ósculo ulo luxo

Hoje cruzei a esquina do mundo. Experimento as mãos de velho veludo e o pulso responde sacoleja o coração desbotado. Ainda era criança quando amava o teu corpo pequeno. Neles sempre tuas mãos, baças telúricas: uma se assenta em um joelho, firme. E o teu peito o teu peito. Antes a tua luz, os teus cachos caindo em chuva sobre os ombros primavera esperada: teu flanco tua perna de mulher por um triz. Hoje te ofereço meu sorriso sem fósforo te imponho o eixo arbitrário da minha pelve e a tua boca vai se abrindo, estranha e velha cicatriz e sem fingimento toda te acendes. Liga-te a vida se não te apagas. Imagino a vida que há de vir do oculto do teu ventre nadando em teu lago tão distante na gema de todo teu caos. Imagino-te mãe, ah tão violentamente imagino-te mãe. João Lima

Bárbara Hansen

Carnavalesca O sax ainda injeta ciúme nas minhas veias, outros metais estendem a melancolia no salão vazio, mas os músicos não estão mais lá. Só estão as serpentinas desacordadas, as toalhas desalinhadas, as mesas meio despidas, a memória de um perfume doce, o coração disparado, o fantasma do que não houve. Purpurina pousada no pescoço, riozinho de suor azul descendo dos olhos que riem, corpo aberto até os dentes, ela já vai longe, de volta à rua, a me trair com o lado bom da vida. Renato Nogueira Neto


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