Polichinello - Nº16

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re v ista literĂĄria

amor fati


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Polichinello nยบ 16 | Dez anos | Amor fati


Polichinello ISSN: 21781230 | Nº 16

Núcleo Editorial

Nilson Oliveira Izabela Leal João Camillo Penna Alberto Pucheu Ricardo Pinto Souza Ney Ferraz Paiva Ramon Cardeal Evandro Nascimento

Editora de Arte Eliane Moura

Revisão

Dayse Barbosa

Imagens

Gianguido Bonfanti

Distribuição Lumme Editor

Contato

revista.polichinello@gmail.com Tiragens 500 Exemplares Belém (PA) Outubro de 2014

Polichinello

Dez anos


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Polichinello nยบ 16 | Dez anos | Amor fati


AMOR FATI AMOR AO DESTINO Nilson Oliveira

indice

Desertado ao ofício (de copistas) na direção das experiências que só o aberto proporciona, Bouvard e Pécuchet ingressam nos prazeres (bucólicos) de uma vida outra, na qual o tempo é convertido em exercício de instrução, numa aventura pelos saberes, os mais diversos, entre os quais, astronomia, arqueologia, pedagogia, jardinagem, hidroterapia, ginástica, veterinária, conservas, historia, literatura, filosofia, etc. Mas, ao longo de 20 anos, falham em todas as investidas, não conseguindo concluir nada sobre tantos e diversos assuntos, declinando numa situação-limite cujo efeito é o retorno ao ofício primeiro: “E os personagens encomendam de um carpinteiro uma escrivaninha dupla e se põem a copiar manuais, manuscritos, anúncios, documentos, cartazes, livros, muitos dos quais eles tentaram primeiro se apropriar pela experiência e colocando-os à prova do real. Eles copiam, classificam, ordenam, eles tornam-se os livros” Mas isso, o retorno em si, acontece, paradoxalmente, numa virada cujo postulado consiste numa aceitação: sem rebelião, sem revolta, o puro sim. Afirmação no limite de uma ação na qual o sim consiste, apesar de tudo, numa aceitação ao destino: “Certo dia eles topam com o fragmento de um relatório confidencial, feito pelo médico local, que os caracterizava como imbecis inofensivos. Perguntando um ao outro o que fazer, logo decidem: “nada de reflexões, copiemos”. A aventura de Bouvard e Pécuchet, nesse recorte, nos remete a uma imagem cuja borda (a cena do retorno) nos faz pensar nos possíveis entre escrita e destino, num processo de justaposição, dobra para uma experiência intensiva, experiência com a escrita, movimento que não cessa e pelo qual se deflagram os mais diversos dos acontecimentos. Essa é a parte que nos afeta e, a um só tempo, a imagem que partilhamos nesta edição da Polichinello: o amor à literatura. Ou seja, a compreensão da escrita como prática em retorno cuja direção é o sem fundo do escrever. Experiência viva, combate num plano que se bifurca em linhas várias: por entre o neutro, pelo fora, no rastro do inominável. Experiências que não cessam de ser a intimidade de seu eterno nascimento. Falamos, portanto, do AMOR AO DESTINO - AMOR FATI. Falamos da escrita como vontade intensa de pertencimento ao mundo (do escrever), vontade transfiguradora e criadora que deseja afirmar a vida apesar das suas contingências mais estranhas e difíceis: apesar de tudo, AFIRMAR. Apesar de tudo, ESCREVER. Pois “escrever é uma questão de devir, sempre inacabado, sempre em vias de fazer-se. É um processo, quer dizer, uma passagem de vida que atravessa o vivível e o vivido”. E nessa passagem entre escrita e destino, retorno e devir, chegamos à nova edição da Polichinello. Algo especial para nós, pois com esse novo sopro alcançamos o decênio. É a resistênciapolichinello. Dez anos de confluências, acertos e erros; algo possível tão somente pela força dos afetos, sobretudo pela vontade-em-comum (vontade de encontro) de movimentar a escrita literária. Açãocom-amigos: amizade como categoria, amizade como condição para pensar. Ação-plural, com, pautada na direção de uma experiência entre a literatura e o pensamento. E nessa direção partirmos, com um tema em vibração com os Dez anos de circulação da revista. Tema de afirmação, pois se trata de um ciclo de resistência que, através da sua maneira plural, se espraia no coração da literatura, inclinando-se pelo mais diverso das maneiras do escrever, afirmando a polissemia de experiências que gravitam no interior da Polichinello (inclusive para além [ou aquém] da própria literatura), apostando na literatura, a apesar de tudo.


“Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida”.

Amor Fati | Amor ao destino

Polichinello nº 16 | Dez anos | Amor fati

Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres | 1998. p, 26

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BONFANTI E AS MÁSCARAS DOLOROSAS Wilson Coutinho

Gianguido Bonfanti pertence a essa fa­mília de pintores, na qual não se deve excluir, no Brasil, a úl­tima e sensacional fase de Ibe­rê Camargo. A obra de Bonfan­ti veio nascendo lenta, combi­nando pesquisa, imensa cora­ gem para desagradar e severa ética profissional, que encabu­la pelo rigor ascético. É, afinal, um artista. (...). Pinta cenas desoladas de sexualidade, cheias de vazio e morte. Quando aprofundou esse te­ma radical e violento, usava violetas, vermelhos e azuis exibindo virtuose em veladu­ras. Poderia mexer com o nos­so gosto americano, tal eram o estilo francês, elegância for­mal e romantismo das suas te­las. O tema, porém, adaptava-se ao acabamento dos seus pincéis, mas poderia estar em contradição, exatamente, de­vido ao exemplar acabamen­to. Bonfanti alterou sua paleta para negros, ocres, azuis, es­capando da luminosidade in­terior das telas passadas. Nes­ta fase a luz escorreu por todo o quadro, tornando a cena se­xual mais fria e mais terrível. Moveu-lhe também (...) outra ambição corajo­sa: recuperar, contemporanea­mente, o autorretrato, sem cair em artimanhas: a fotografia e técnicas digitais. Usa tinta óleo e nos deixa a nostalgia da tere­bintina. Passo a passo pode-se ver a sua evolução nos autorretratos (...) até os seus rápidos movimen­tos circulares do pincel e a im­ piedade em autorretratar-se, criando verdadeiras máscaras dolorosas. É o óleo chegando a três passos do inferno.

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Excerto do texto – Gianguido Bonfanti: a mostra de um grande artista que desafia o conformismo na contracorrente da arte atual – de Wilson Coutinho publicado em (10 /01/ 2003 - O Globo - Segundo Caderno) decorrência da exposição (33 obras de Gianguido Bonfanti) no Museu Nacional de Belas Artes / RJ.

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A obra de Bonfanti (...) é um imenso desafio para a crítica, para o gosto e para o conformismo da atual arte. Bonfanti é grande artista e sua ética, fora do comum: não abre mão de sua verdade para agradar a ninguém.

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A FERA

O CALDEIRÃO

Max Martins

Max Martins

Aos sessenta anos-sonhos de tua vida (portas que se abrem e fecham fecham e abrem carcomidas) ferve

Das cavernas do sono das palavras, dentre os lábios confortáveis de um poema lido e já sabido voltas

a gordura e as unhas das palavras seu licor umbroso, teus remorsos-pêlos Ferve e entorna o caldo, quebra o caldeirão e enterra teu faisão de jade do futuro teu mavioso osso do passado

para ela – para a terra maleável e amante. Dela de novo te aproximas e de novo a enlaças firme sobre o lago do diálogo, moldas novo destino

Agora que a madeira e o fogo de novo se combinam e o inimigo n° l já não te enxerga ou vai-se embora varre a tua cabana e expõe ao sol tua língua tua esperança tíbia o tigre da Coréia na parede

Firme penetra e cresce a aproximação conjunta E ocupa um centro: A morte, a fera da vida te lambendo

E lícito tomar agora a concubina E despentear na cama a lua escura, o ideograma

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Do livro Para ter onde ir | 1992

Max Martins (1926-2009). Belém-PA. Poeta, autor de “Anti-Retrato” (1960). “H’Era” (1971). “O Risco Subscrito” (1980). “Caminho de Marahu” (1983).

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Do livro Para ter onde ir | 1992

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BEATITUDE E SOFRIMENTO Clément Rosset

Aquele que tem muita alegria deve ser um homem bom: mas talvez não seja o mais inteligente, embo­ra alcance aquilo a que o mais inteligente aspira com toda sua inteligência. O viajante e sua sombra

Tomo emprestado ao comunicado de Henri Birault, no colóquio Royaumont sobre Nietzsche, em 1964, o termo “beatitude” para definir o tema central da filosofia nietzscheana.1 Provavelmente, do mesmo modo, outros termos conviriam: alegria de viver, gáudio, júbilo, prazer de exis­tir, adesão à realidade, e ainda muitos outros. Pouco im­porta a palavra, aqui é a ideia ou a intenção que conta, de uma fidelidade incondicional à nua e crua experiência do real, a que se resume e se singulariza o pensamento filosó­fico de Nietzsche. Vá lá, pois, “beatitude”, Seligkeit, a quem nós conviremos de conceder a honra de representar tal pen­samento, de ser, em suma, seu embaixador devidamente credenciado. Sem dúvida, hoje não é mais necessário mos­trar, como era de praxe há uns quinze anos atrás,2 em que o tema da beatitude está de acordo com os conceitos reco­nhecidos como fundamentalmente nietzscheanos pelo que tinha, então, valor de “tradição”: o super-homem, o eterno retorno, à vontade de potência. E antes em uma tarefa in­versa que um comentador de Nietzsche deveria agora tra­balhar: mostrando, ao contrário, como esses conceitos es­tão de acordo com o tema da beatitude, em que são expres­sões ou variações mais ou menos diretas deste. Pois é se, e somente se, um conceito diz respeito a uma beatitude abso­luta, que ele pode ser reconhecido como especificamente nietzcheano. Os temas do super-homem, do eterno retor­no, da vontade de potência - dos quais se sabe desde muito tempo que, se estão no centro de alguma coisa, é no centro de um livro que não existe por nunca ter sido escrito - só tem sentido enquanto constituem expressões tardias e arriscadas da beatitude, tema central e constante do pensa­ mento de Nietzsche, eu diria, de bom grado, tema único.

O primeiro desses textos, o aforismo 276, intitulado “Para o ano novo”, se apresenta na forma de um voto de ano novo contendo instruções intelectuais válidas para to­dos os anos por vir e para tudo o que seu autor, que tam­bém é seu destinatário, será suscetível de pensar em segui­da. Esse voto de ano novo, que Nietzsche faz a si mesmo, consiste em uma intenção geral de estar doravante de acor­do com tudo o que existe, de viver como amante incondi­cional de uma realidade considerada sob os auspícios de uma necessidade tão óbvia que ela poderá dali em diante prescindir de fundamento, de qualquer espécie de “perti­nência”: “Cada vez mais quero aprender a ver a necessida­de nas coisas como a Beleza em si: assim, serei um daqueles que embelezam as coisas. Amor fati: que isso seja doravante meu amor! Não entrarei em guerra contra a feiúra; de modo algum acusarei, nem mesmo os acusadores acusarei. Desviar o olhar: que esta seja minha única negação! E, afinal de con­tas: quero, a partir de qualquer momento, ser tão-somente pura afirmação.”3 16

O segundo texto, o aforismo 277 intitulado “Providên­cia pessoal”, consiste em uma espécie de radicalização das teses otimistas de Leibniz. Pois o mundo aparece aí não apenas como o melhor dos mundos possíveis, consideran­do-o em geral, mas ainda como o melhor dos mundos, con­siderando-o

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Os três primeiros aforismos do Livro IV da Gaia ciência – livro com o subtítulo Sanctus Januarius, “São Januário”, e escrito durante um inverno eufórico em Gênova – dão uma ideia bastante precisa e bastante complexa do que é a beatitude em Nietzsche.

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O terceiro texto dessa série que abre o Livro IV da Gaia ciência, o aforismo 278, se intitula “O pensamento da mor­te” e desenvolve, sobre este assunto já muito remexido, um dos temas aparentemente mais batidos: enquanto o pensa­mento de seu desaparecimento iminente envolve de todos os lados e a todo instante a vida do homem, chamando sem descanso a morte, este recusa perpetuamente essa presença ameaçadora, pensa e age como se não houvesse morte. Nada, no entanto, aqui que se inspire nas considerações conhecidas sobre a fraqueza especificamente humana que consiste em a pôr entre parênteses o pensamento da morte ou em “rejeitá-la”, no sentido psicanalítico do termo, nem nos

célebres desenvolvimentos de Pascal sobre o diverti­mento (“Os homens não tendo podido curar a morte, a mi­séria, a ignorância, acharam melhor, para serem felizes, não pensar nisso”). Pois a conclusão do aforismo, e sua razão de ser, parte num sentido exatamente inverso, Nietzsche inscrevendo na consciência humana o fato de sua negligên­cia acerca da morte: “Como é estranho que a única certeza, a única sina comum não tenha tido quase nenhum império sobre os homens e que aquilo de que eles estão mais afasta­dos é de se sentir como uma confraria da morte! Fico feliz em ver que os homens não querem absolutamente pensar o pensamento da morte! E gostaria muito de fazer alguma coisa para tornar-lhes o pensamento da vida ainda cem ve­zes mais válido!” Há aqui uma reversão completa de pers­pectiva em relação à filosofia tradicional. Segundo esta úl­tima, o pensamento da morte é tal que ele desvaloriza, sem recurso, o pensamento da vida - por isso os homens têm interesse em se contentar em viver sem pensar demais nele. Mas, segundo Nietzsche, o pensamento da vida é tal que torna inofensivo, e isso com todo conhecimento de causa, o pen­samento da morte. Essa neutralização do pensamento da morte – que as análises de Freud anunciam, porém melhor, pois de modo mais geral, sobre o poder triunfante do humor –, já perten­ce, em parte, ao que chamarei de o segundo registro do pen­samento nietzscheano: registro essencial, pois imediatamen­te próximo do primeiro, já que indissociável do tema da beatitude. Com efeito, esta implica sempre, em Nietzsche, o reconhecimento e a aceitação de todos os pensamentos, inclusive e sobretudo daqueles que lhe são aparentemente os mais rebeldes. Reconhecimento, aceitação, mais precisa­mente: ingestão. Sabe-se que Nietzsche raciocina frequente­mente em termos de ruminação e de ruminantes; o pensa­mento da digestão o ocupa mesmo tão materialmente que ele teve o cuidado, em Ecce homo, de nos dar muitos deta­lhes sobre o regime alimentar que ele fez para si próprio no curso de sua vida, e ao qual ele atribui uma parte importan­te da qualidade de sua vida e de sua obra. Mas há duas espécies de ruminantes, em Nietzsche: os que ruminam sem parar, mas não conseguem digerir (caso do homem do res­sentimento), e os que ruminam e digerem (caso do homem dionisíaco). Maus e bons ruminantes. Interpreta-se geral­ mente: o mau ruminante não tem acesso à felicidade, pois é prisioneiro do pensamento da infelicidade, o bom ruminante acede à felicidade, pois sobrepuja o pensamento da infelici­dade, consegue digeri-lo. Mas não é exatamente isso que pensa Nietzsche em matéria de ruminação. Olhando de mais perto, a repartição dos papéis é bastante diferente: o bom ruminante tem acesso a um só tempo à felicidade e à infelici­dade, e a sina do mau ruminante é de não ter acesso nem a uma nem a outra. Pois ele ignora a felicidade, já que não con­segue digerir a infelicidade, mas ignora também a infelici­dade, já que, precisamente, não consegue digerir o pensa­mento dela. O homem da felicidade tem acesso a tudo, e especialmente ao conhecimento da infelicidade; o homem da infelicidade não tem acesso a nada, e sequer ao conheci­mento de sua própria infelicidade. Como o pensamento da vida inclui o pensamento da morte, do mesmo modo e de maneira geral o pensamento da felicidade – a beatitude – implica um profundo e incomparável conhecimento da in­felicidade: conhecimento em que consiste o que chamo aqui de o “segundo registro” do pensamento nietzscheano, tes­temunho e companheiro fiel do primeiro. Este segundo registro do pensamento nietzscheano, isto é, o relatório completo da infelicidade passada, presente e por vir, concerne o que Nietzsche, durante toda a sua vida e isso desde O nascimento da tragédia, designou com o nome de “trágico” e associou ao “dionisíaco”, o primeiro sendo a condição necessária do segundo. Não há alegria alguma que não seja sentida – quero dizer, obviamente, provada, posta em evidência – pelo conhecimento da pena: essa associação de ideias está no âmago de tudo o que Nietzsche sente e pensa, ela é o fundamento de sua filosofia. Fundamento que poderia ter por divisa a fórmula do poeta Furius Antias, que Nietzsche cita segundo Aulu-Gelle, no prefácio do Cre­ púsculo dos ídolos: Increscunt animi, virescit volnere virtus, “a ferida estimula e torna a dar coragem” – a menos que se prefira o oitavo aforismo das Máximas e sátiras que servem de introdução à mesma coletânea: “Na escola bélica da vida: o que não me mata me fortalece.” Na verdade, quase toda a obra de Nietzsche deveria ser invocada para ilustrar essa aliança secreta, selada por Nietzsche desde O nascimento da tragédia, entre a infelicidade e a felicidade, o trágico e o jubiloso, a experiência da dor e a afirmação da alegria. Cita­rei aqui apenas, de memória, alguns aforismos de Para além do bem e do mal. Aforismo 212: “Um filósofo – se hoje pudes­sem haver filósofos - seria coagido a pôr

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em particular, e mesmo o considerando unica­mente em cada um de seus instantes, fosse ele o pior, ou em cada uma das criaturas que o compõem, fosse ela a menos favorecida pelo que Nietzsche chamaria de a sina, e Leibniz, de a economia dos bens implicada pela harmonia univer­sal: “Agora, com efeito, o pensamento de uma providência pessoal se apresenta a nós da maneira mais invasiva, e ele tem para si o melhor porta-voz, a aparência, já que nos é tangível que todas as coisas, absolutamente todas as coisas que nos advêm, tornam-se constantemente favoráveis a nós. A vida de todo dia, de cada hora, parece não querer mais ou­tra coisa senão confirmar por novas provas esta tese: quer se trate de qualquer coisa, do mau como do bom tempo, da perda de um amigo, de doença, de calúnia, da carta que não chegou, de um pé pisado, de uma olhadela numa revis­ta, de um contra-argumento, de um livro aberto ao acaso, de um sonho, de uma fraude: o acontecimento se revela imediatamente ou logo depois, como alguma coisa que não podia deixar de acontecer – pleno de sentido profundo e de lucro, precisamente para nós!” O que aparece aqui como uma generalização nietzscheana do otimismo leibniziano não acontece, naturalmente, sem um desmentido último de Leibniz. Pois, enquanto Leibniz atribui a Deus a organiza­ção da providência geral, Nietzsche atribui ao “acaso”, concebido como princípio ateísta, ou melhor, como antiprincípio, o mérito dessa providência pessoal que vela pela sorte de cada um em particular: “Bem – quero dizer: apesar de tudo isso – deixemos os Deuses em paz e do mesmo modo os gênios servis, e contentemo-nos em supor que nossa pró­pria habilidade prática e teórica na interpretação e coorde­nação dos acontecimentos terá alcançado aqui seu ponto culminante. Não presumamos demais da destreza de nossa sabedoria se por vezes a maravilhosa harmonia que se for­ ma ao tocar nosso instrumento tem que nos estupeficar: harmonia de uma ressonância perfeita demais para que ousemos atribuí-la a nós mesmos. Na realidade, aqui e ali alguém toca conosco - o acaso: ele leva nossa mão no mo­mento oportuno, e a mais sábia providência não poderia inventar música mais bela do que aquela que então chega a nossa insensata mão.” Seria um contra-senso ler nestas li­nhas a expressão de um desencanto último, de uma desilu­são no sentido “moral” do termo (pois há efetivamente neste texto de Nietzsche uma vontade de desiludir, mas isso no sentido intelectual, de acabar com uma ilusão supérflua e alheia à economia propriamente nietzscheana da felicida­de): como se o pensamento de uma providência pessoal acrescentasse à experiência da beatitude, enquanto que, de fato, e ela que corre o risco de operar ali, aos olhos de Nietzsche, um nítido corte. E isso, mais uma vez, não em razão de uma pretendida vaidade de Nietzsche, que teria por efeito turvar a experiência da felicidade a partir do momento em que se devesse agradecer a um deus qualquer. Não há pensador algum que tenha tanto quanto Nietzsche prestado homenagem à existência, nem feito questão a esse ponto de lhe render graças e justiça. Nietzsche não rende homenagem a Deus pela existência, porque ele estima, com razão ou sem ela, que o pensamento de Deus é um pensa­mento insuficientemente grato, pensamento meio-grato, que precisa da caução divina para disfarçar os múltiplos incon­venientes ou “deficiências” ligadas à existência. E nisso Nietzsche se opõe muito a Leibniz, mas somente porque ele é, se se pode dizer, ultraleibniziano, insólito e incorrigí­vel “ultra” do otimismo que pensa, em suma, que se Leibniz precisou de Deus, foi porque não era o bastante otimista, porque não acreditava o bastante na felicidade. De modo geral, aliás, Nietzsche liga o ceticismo não ao desaponta­mento, e sim a uma superabundância de felicidade (e nisso também, é óbvio, seu ceticismo não tem exemplo nem pre­cursor na história da filosofia, especialmente na história da filosofia cética). É o que vemos neste notável aforismo do Crepúsculo dos ídolos, a propósito de Carlyle, sobre o qual voltarei a falar mais adiante: “A ânsia de uma fé poderosa não é a prova de uma fé poderosa, é antes o contrário. Quan­do se a tem, pode-se se dar o luxo do ceticismo - se está bas­tante certo, bastante firme, bastante sólido, bastante com­prometido para isso.”4

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Resumo, para terminar, as conclusões, que essa rápida leitura de alguns aforismos de Nietzsche permite, a partir de agora, chegar. No que concerne à beatitude, podemos dizer que ela é, em Nietzsche, o pensamento fundamental, em torno do qual se organizam e se hierarquizam os outros pensamentos; sabemos também que ele consiste em uma adesão pura e incondicional ao real, que não passa pelo pensamento de uma providência, nem, é claro, de uma filo­sofia da história, mas implica, em compensação, um conhe­cimento do trágico. No que diz respeito ao conhecimento do trágico, sabemos que ele não é considerado por Nietzsche como uma mutilação da alegria, uma parte de beatitude subtraída a ela mesma pelo efeito do sofrimento, mas consti­tui, ao contrário, um acréscimo de gáudio que prevalece so­bre o sofrimento, como o pensamento da vida prevalece sobre o pensamento da morte, apresentando-se assim como um teste de beatitude, uma “prova” no duplo sentido do termo, de provação e de prova – ou seja como uma experiên­cia crucial, no sentido de Bacon. A título de argumento recí­proco e complementar, Nietzsche não cansa de repetir que todo pensamento que não é imbuído de conhecimento trá­gico, que tenta desviar da evidência da morte, do efêmero, do sofrimento, dá, inelutavelmente, lugar a filosofias-remédios, como a ontologia eleata ou a metafísica platônica, cha­madas menos para dar conta da existência do que, incansa­velmente, para testemunhar contra ela.

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AMOR FATI Adam Colin Chambers

Tradução: Eclair Antonio Almeida Filho

a isabel livre desejando nada senão o desejo de viver, enquanto provamos um sentimento que se forma antes de formas e figuras, fluidos momentos antes dos primos traços de pensamento, antes que digamos “pare!” nossos corpos nada além de um molde de que saltaremos dentro de... uma casa em paz, mutável e movente...

Clément Rosset (1939, Barneville-Carteret, França). Filósofo francês, autor de: “O Princípio da Crueldade” (RelumeDumará). “Alegria Força Maior” (Relume-Dumará).

sem nos prometer nada senão prazeres que nunca findam... as únicas “verdades” que sabemos... um amor do destino, ou destino e amor, ou ambos... o que está abaixo é a esperança – esperanza a mais bela palavra no mundo a única que sei...

1. «De la bé 2. atitude chez Nietzsche», in Nietzsche, Cahiers de Royaumont, Minuit, 1967, p. 13-28. 3. Idem, p. 13. 4. Todas as citações de Nietzsche serão tiradas das traduções fran­cesas que fazem parte das Oeuvres Completes, de Nietzsche, publicadas pela Gallimard conforme o texto original estabele­cido por G. Colli e M Montinari.[Os textos em português, quan­do não foram traduzidos diretamente da referida tradução fran­cesa, foram tirados de Nietzsche, coleção “Os Pensadores”, Edi­tora Nova Cultural Ltda., trad. de Rubens Rodrigues Torres Fi­lho, N. T.]. 4. “Incursões de um extemporâneo”, Af. 12.

Adam Colin Chambers (B.A, McGill)

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a grandeza do homem, a noção de ‘grandeza’, na extensão e na diversi­dade do espírito, na totalidade feita de multiplicidade: fi­xaria até mesmo a posição e o valor de um homem confor­me a amplitude e a diversidade do que ele pode suportar e assumir.” Aforismo 225: “A disciplina do sofrimento, do grande sofrimento – não sabeis que somente essa disciplina criou todas as elevações do homem até agora? Aquela ten­são da alma na infelicidade, que faz crescer sua força, seu arrepio à vista do grande ir-ao-fundo, sua inventividade e bravura no carregar, aguentar, decifrar, utilizar a infelici­dade, e tudo o que sempre lhe foi dado de profundeza, de segredo, de máscara, de espírito, de ardil, de grandeza -não lhe foi dado sob sofrimentos, sob a disciplina do gran­de sofrimento?” Aforismo 270: “Pode-se quase classificar os homens segundo a profundeza que pode alcançar seu sofrimento.” Ao que é preciso acrescentar, se se deseja ser completo mesmo no mais sumário, uma fórmula de Ecce homo, terceiro aforismo do prefácio: “Quanto de verdade suporta um espírito, quanto de verdade ousa um espírito? Isso se tornou para mim, cada vez mais, o autêntico medi­dor de valor”; o sétimo aforismo do prefácio de 1886 ao Viajante e sua sombra, que faz da “vontade do trágico e do pessimismo” a única garantia contra “o que há de aterrori­zante e de problemático em qualquer espécie de existên­cia”; e enfim, o aforismo do Crepúsculo dos ídolos, acima cita­do, sobre a maneira original que Nietzsche concebe a rela­ção do ceticismo e da fé.

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Silvana Tótora

Sessenta anos. Repasseio meu corpo para sentir as forças, os afetos e as potências que o atravessa. São estas pulsões de vida que impedem o corpo de congelar-se no organismo, ou ser capturado na identidade de um sujeito substancializado no “Eu”. A matéria como pluralidade de forças e potências é insubmissa e transvasa a forma; resiste, re-age, rende-se ao jogo de forças desiguais em que umas dominam as outras num vai e vem sem fim. O corpo pode mutilar-se, ser destroçado, resistir ou subjugar-se ao enlace dos dispositivos de poder que o disciplina, dociliza, moraliza e controla. Velhice é destinação, e não cronologia ou castigo para aqueles que não obedeceram aos modelos alardeados. Envelhecemos com a idade, mas nos tornamos velhos por um acontecimento singular, delicado e nada ruidoso; audível para orelhas pequenas e seletivas. Apreendê-lo requer um aprendizado único, sutil e imperceptível ao público majoritário, sejam eles poucos ou muitos. Estes últimos são aqueles sedentos de fórmulas prontas e um sentido para a vida. De que aprendizado se trata? Da invenção experimental na imanência da vida. A vida escorre pelo corpo e reúne este fragmento do acaso que nos produziu. Afinal, somos o fruto fortuito de uma multiplicidade de forças em relação que, numa luta desigual de suas potências, impulsiona a vida. Sem finalidade, sem causa. Puro acaso. Urge agarrar este presente da fortuna e fazer dele destino ou necessidade: amor fati. Amor fati. Amor ao destino Amor à necessidade... Pathos afirmativo por excelência Um Sim incondicional à vida

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Com todas as dores sofrimentos alegrias Como não bendizer a velhice quando se toma a perspectiva da vida? Espinosa, Nietzsche e Deleuze num encontro estelar, por mim provocado, com a poesia de Manoel de Barros e Hilda Hilst, aproximaram-se desta perspectiva da vida. Eles encontraram para si os seus próprios remédios, exprimível na criação filosófica e poética, e se recusaram a servir aos doutores duvidosos. Médicos, pastores, psicólogos e outros profissionais de saúde distanciam-se do fluxo da vida quando se empenham na propagação de modelos de cura para os males da existência ou do “peso dos anos”. Os discursos de cientificidades suspeitas, ou não, povoam as diversas mídias, com destaque para a televisiva e digital, difundindo a chamada qualidade de vida, a busca do conforto e do bem-estar. A população adere a este receituário na esperança da longevidade e de uma “velhice ativa”. Entendase por “velhice ativa” os domesticados consumidores do mercado de planos de saúde, da indústria dos cosméticos e da boa forma e demais parafernálias do rejuvenescimento. Esses considerados ativos têm frenética avidez por novidades e por ocupação do tempo. Eles temem a solidão e a doença. Neles a longevidade não corresponde à intensidade da vida, mas tão somente uma extensão do tempo cronológico. A velhice pode também avizinhar-se da fealdade, doença e dos juízos pessimistas, conforme Nietzsche asseverou na “Aurora” (aforismo 409). É preciso estar atento ao recurso nietzschiano do emprego de diversos sentidos, ou deslocamento de perspectivas, no uso de um termo. Esta correlação

tão depreciativa da velhice não deixa de ser a outra face do ideário atual de “velhice ativa”. Trata-se de uma concepção que se sustenta pela negatividade. Ativa, hoje, é a velhice que contrasta com a fealdade, a doença e o pessimismo. Nietzsche em outro aforismo da “Aurora” (§ 542) é impiedoso contra um tipo de velhice que acomete o pensamento filosófico e os filósofos. Trata-se da perda de força da criação e um trabalha para perpetuar-se. Abusando da metáfora poética ele afirma: “A velhice como a noite, ama disfarçarse de uma nova e atraente moralidade e sabe humilhar o dia com os vermelhos do crepúsculo e o silêncio apaziguador ou nostálgico”. Neste caso, a velhice pode significar uma fadiga do pensamento e o desejo de fixar-se num dado sistema legado à posteridade sob a guarda de uma instituição ou de seus discípulos. O pensamento deixa de fruir numa luta incessante, na imanência da vida, para cristalizar-se num personagem que se autocontempla acima da obra de sua vida. “Velhice ativa”, Velhice e tristeza, “Velhice monumento” são variações de tipos de velhice que reputo decadentes, porque sem força para criar além de si mesma. Velhice, contudo, pode sinalizar a “grande saúde” nietzschiana (Gaia Ciência, § 382) - aquela que se adquire e se sacrifica a cada momento - que tira proveito da própria doença como antídoto ao conforto e a conservação do si. Nietzsche, na companhia do filósofo Heráclito e do deus Dioniso, não teme as forças transbordantes que rompem os limites fronteiriços e brincam com o lado mais terrível da existência. Um gosto pela solidão nutre as almas transbordantes. A velhice pode ser o momento da vida em que nos desobrigamos das responsabilidades com o trabalho, dos compromissos impostos, e, assim, podemos desfrutar do prazer da nossa própria companhia e da simples existência. Uma velhice artista não se põe acima da sua obra a fim de preservá-la, mas, a maneira da criança brincalhona, constrói e destrói com a inocência do puro jogo do devir. Há intensidade na experimentação de um tempo que não passa, e neste instante tudo pode acontecer. Oh doce sensação de um tédio profundo que vibra no compasso das batidas do coração! Poetas e artistas não temem a solidão, mas a desejam. É preciso encontrar a graça na sua própria companhia e se alimentar de uma solidão povoada. Pode-se também desfrutar da solidão a dois que se unem não por suas carências, mas para partilharem intensidades transbordantes. Nada comunicam para se entregarem ao silêncio bruto e pulsante dos corpos. Podemos contrapor à dita “velhice ativa”, anêmica de vida, outra concepção de velhice que faça convergir o trágico com uma ética afirmativa do amor fati. Trata-se de um Sim dionisíaco à vida com tudo que ela tem de grande, de abismo, de dores, sofrimentos, alegrias, doenças... O trágico é justamente a recusa da moral ou qualquer similar artístico, religioso, filosófico ou científico que se alimente da negatividade, do pessimismo, da morbidez no julgamento da vida, com base em modelos ideais de natureza metafísica. A ciência positivista também é uma forma de metafísica invertida que se põe fora dos fluxos da história e da vida. Os doutores da finalidade da existência tentam confundir o trágico com o pensamento decadente por eles apregoado. Estão sempre a postos como salvadores de uma pretensa universalidade da natureza humana. Zaratustra identifica nestes chamados “grandes homens” o maior perigo. Eles se denominam de bons e justos cujo móvel é a punição dos indesejáveis. Ora, justa é a vida: eis a dimensão trágica da noção de justiça. Baseados nessa concepção, o filósofo Heráclito afirma a inocência do devir e Nietzsche, além do bem e do mal. Qual o sentido da vida? É não ter nenhum sentido. A vida é pura necessidade. Eterno repetir do devir sem causa e sem finalidade. Ora, estar à altura deste pensamento trágico, que não consola e sim provoca, é tornar-se um afirmador da velhice. Diferentemente do pensamento moral, o pensador trágico nada quer corrigir, nem separar o corpo do espírito, e, sim, fazer das adversidades uma potência de invenção artista. Muitos podem chegar a uma idade avançada, mas poucos são os que chegam à velhice. Posta nesse sentido, rompemos com uma concepção naturalista da velhice ou com qualquer ideia de curso contínuo ou evolução linear da vida. Muitos morrem com a idade avançada sem nunca terem deixado a infância ou a tutela da família, do Estado ou qualquer outra comunidade leiga ou religiosa. À pergunta o que é a velhice, substituímos por outra inspirada em Espinosa: o que pode a velhice?

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VELHICE E AMOR FATI | POÉTICA DA VIDA

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Com essa questão introduzimos uma avaliação sobre as implicações para a vida de uma determinada concepção de velhice e de envelhecimento. A velhice experimentada como multiplicidades de vivências, sensações, forças, afetos e intensidades fortes demais, explode os limites do organismo e pode roçar a vida e imprimir no corpo as marcas discretas da morte. Muitos de idade avançada não se tornam velhos, por isso não experimentam a velhice, nem a vida nem a morte. Tudo é uma questão de perspectiva e de devir, pois não existe uma velhice ideal, ou substantivada na identidade do sujeito velho. Experimentar a velhice é poder deslizar sobre os problemas, sofrimentos, dores e doenças como artistas que inventam saídas alegres. Tornar a vida necessária não é sublimação, ou resignar-se; ao contrário, é não acusá-la ou praguejar a existência ou os viventes, tampouco projetar modelos idealizados. Há uma grandeza na afirmação da velhice. A fim de fazer fugir os modelos impostos ou aceitos torna-se imperiosa uma arte para artistas. Trata-se de aprender com eles a deslocar perspectivas, e empreender um pathos da distância que possibilita rir de si mesmo, do pessimismo dos moralistas e do otimismo da maioria com as “maravilhas” do mercado. Nada mais desconcertante para a seriedade dos pregadores de finalidade da existência como também dos corretores da vida – que vendem felicidades em pílulas de autoajuda – do que um espectador trocista ou um sátiro. Nietzsche foi um mestre na criação de personagens cômicos. Escolho a companhia dos que recreiam com as palavras no seu poetar. A solidão entortada pelo riso das invencionices de Manoel de Barros e sua velhez como devir criança. A paixão de Hillé em “A obscena senhora D”, de Hilda Hilst, que aos sessenta anos se enfia debaixo da escada na companhia de um porc[o]a –porco invertido é corpo. Às vezes ela abre a janela e inventa “rouquidões, grunhidos coxos [e usa] a máscara de focinhez e espinhos amarelos”. O riso e a dança de Zaratustra após morder a serpente do niilismo. Ele rompe o fio que liga a melancolia da juventude, a seriedade dos adultos, a tristeza da velhice para torna-se criança. Estes artistas criam personagens que brincam e são mestres em deslocar perspectivas. Eis um modo de atingir a velhice em que o trágico é igual à alegria do amor fati. Velhice Vida [D]obra de arte de uma existência Deixei de brigar com os ventos Para navegar em todos os mares

BIBLIOTECA DOS DESTINOS Giorgio Agamben

I APOSTILA Tradução: Selvino José Assmann

II IDEIA DA VERDADE Tradução: João Barrento

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Silvana Tótora. Professora e pesquisadora do Núcleo de Arte Mídia e Política (Neamp) ambos da PUCSP. Publicou em diversas revistas ensaios sobre velhice, Nietzsche, Deleuze, Foucault, Manoel de Barros, Hilda Hilst, Kafka e Lúcio Cardoso.

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I. Apostila

II. A ideia da verdade

Na Teodicéia, Leibniz justificou o direito do que foi contra o que podia ser e não foi, com um apólogo grandioso, mas terrível. Prolongando a história de Sexto Tarquinio, narrada por Lorenzo Valia no seu diálogo sobre o livrc-arbítrio, ele imagina uma imensa pirâmide de ápice resplandecente, e cuja base desce até ao infinito. Cada um dos inúmeros apartamentos que compõem tal “Palácio dos destinos” representa um destino possível de Sexto, a que corresponde um mundo possível, que, no entanto, não se realizou. Em cada um deles, Teodoro, que a deusa Atenas transportou por encanto para o palácio, contempla uma existência possível de Sexto “cm um só golpe de olhar, como acontece em uma representação teatral”. “Ingressou em outro apartamento, e eis um novo mundo e outro Sexto... Os apartamentos formavam uma pirâmide e tornavam-se mais belos à medida que, subindo para o ápice, representavam mundos melhores. Alcançaram finalmente o lugar mais elevado, que terminava a pirâmide, e era o mais esplêndido de todos; com efeito, a pirâmide tinha um início, mas não se via o seu fim; tinha um verdee, mas nenhuma base, pois esta se alargava ao infinito. Isso acontece - explicou a deusa - porque entre uma infinidade de mundos possíveis, existe um que é o melhor de todos, do contrário Deus não poderia tê-lo enado; mas não há nenhum que não tenha abaixo de si um menos perfeito: por isso a pirâmide desce sem fim “

Scholem escreveu um dia que há qualquer coisa de infinitamente desconsolador na doutrina da ausência de objecto do conhecimento supremo, tal como é ensinada nas primeiras páginas do Zohar, e que constituí, de resto, a lição última de toda a mística. Nessas páginas, no limite extremo do conheci mento, aparece o pronome interrogativo O quê? (Mah), para lá do qual não há já resposta possível: “Quando um homem interroga, procurando discernir e conhecer, grau após grau até ao último, atinge o Quê? ou seja: Entendeste o que? Viste o que? Buscaste o que? Mas tudo contínua tão impenetrável como ao princípio.” Mais íntimo e oculto é, no entanto, segundo o Zohar, o outro pronome interrogativo, que assinala o limite superior dos céus: Quem? (Mi). Se o Quê? é a pergunta que interroga a coisa (o quid da filosofia medieval), o Quem? é a pergunta que se dirige ao nome: “O impenetrável, o Antigo, criaram isso. E quem é isso? E o Quem?... Como é, a um tempo, objecto de pergunta, indesvendável e fechado, chama-se-Ihe Quem? Para lá dele não há mais perguntas... Existente e inexistente, impenetrável e fechado no nome, não tem outro nome senão Quem?, aspiração a ser desvendável, a ser chamado por um nome.”

Não c uma experiência fácil, para o autor, entrar em semelhante Biblioteca, porque a seriedade de um pensamento se mede sobretudo na relação com o passado. Ao autor não se permite, como acontece com o demiurgo leibniziano, voltar a visitar o palácio dos livros possíveis, para “entregar-se ao prazer de recapitular as coisas, e confirmar a sua escolha, da qual não pode deixar de se regozijar”. Na tradição crítico-filosófica em que este livro conscientemente se inscrevia no momento da sua primeira edição (1977), uma obra valia, de fato, não só pelo que efetivamente continha, mas também pelo que nela havia ficado em potência, pelas possibilidades que havia sabido conservar (“salvar”), para além do ato (e que, neste, viviam como tarefa). Portanto, nesta perspectiva, precisamente é séria a relação com o passado que não o transforma simplesmente cm necessidade, mas que sabe repetir (retomar, segundo a intenção kierkegaardiana) a sua possibilidade - inclusive e sobretudo a possibilidade de não ser (ou de ser dc outra maneira), ou seja, a contingência. O ato de criação não é, na realidade, segundo a instigante concepção corrente, um processo que caminha da potência para o ato para nele se esgotar, mas contém no seu centro um ato de descriação, no qual o que foi e o que não foi acabam restituídos à sua unidade originária na mente de Deus, e o que podia não ser e foi se dissipa no que podia ser e não foi. Este ato de descriação é, propriamente, a vida da obra, o que permite a sua leitura, sua tradução e sua crítica, e o que, em tais coisas, se trata cada vez mais de repetir. Exatamente por isso, contudo, o ato de descriação, a despeito de toda perspicácia irônica, foge sempre, em alguma medida, do seu autor, e só desta maneira lhe consente continuar escrevendo.

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A tentativa de apreender integralmente este núcleo des-criarjvo em toda criação, para encerrar definitivamente a sua potência, só pode levar o autor à cessação da escritura ou ao suicídio (Rimbaud e Michelstaeder), e a obra, à sua canonização. E muito arnscada, para quem escreve, a relação com o passado, ou seja, com o abismo do qual lhe provém a possibilidade que ele mesmo é. (Se o autor, no caso do presente livro, ainda está escrevendo, e cm que medida, na esteira e na urgência das possibilidades que este lhe havia aberto, é algo que outro, melhor do que ele, partindo dos livros sucessivos, poderá julgar.) A vida do autor coincide, nesta perspectiva, com a vida da obra, e julgar as própnas obras passadas é o impossível que só a obra ulterior inevitavelmente cumpre e procrastina.

É certo que o pensamento, uma vez atingido o limite do Quem?, deixa de ter objecto, chega à experiência da ausência de objecte último. Mas isto não é desconsolador, ou melhor, é-o apenas para um pensamento que, tomando uma pergunta por outra, continua a perguntar Quem?, lá onde não só já não há respostas, como também não há perguntas. Verdadeiramente desconsolador seria o conhecimento último ter ainda a forma da objectualidade. É precisamente a ausência de um objecto último do conhecimento que nos salva da tristeza sem remédio das coisas. Toda a verdade última formulável num discurso objectivante, ainda que na aparência feliz, teria necessariamente um carácter destinal de condenação, de um ser condenado à verdade. A deriva em direcção a este definitivo fechamento da verdade é uma tendência presente em todas as línguas históricas, a que a filosofia e a poesia obstinadamente se opõem, e na qual encontram alimento, tanto o poder significante das linguagens humanas, como a sua inelutável morte. A verdade, a abertura que, segundo um oros platónico, é própria da alma, fixa-se, através da linguagem e na linguagem, num último e imutável estado de coisas, num destino. Nietzsche tentou escapar a este pensamento pela ideia do eterno retomo, pelo sim dito ao instante mais atroz, quando a verdade parece fechar-se para sempre num mundo de coisas. O eterno retomo é, de facto, uma última coisa, mas ao mesmo tempo também a impossibilidade de uma última coisa: a eterna repetição do fechamento da verdade num estado de coisas é, enquanto repetição, também a impossibilidade desse fechamento. Na formulação insuperável de Nietzsche, o amor fati, o amor do destino. Este monstruoso compromisso entre destino e memória, no qual aquilo que só pode ser objecto de recordação (o retorno do idêntico) é vivido todas as vezes como um destino, é a imagem distorcida da verdade, que o nosso tempo não consegue dominar. Porque a abertura da alma – a verdade – não se abre sobre o abismo de um destino infinito, nem se fecha na eterna repetição de um estado de coisas, mas, abrindo se num nome, ilumina apenas a coisa e, fechando-se sobre ela, apreende ainda a sua própria aparência, recorda-se do nome. Este difícil cruzamento entre dom e memória, entre uma abertura sem objecto e aquilo que não pode ser senão objecto, é a verdade na qual, segundo o autor do Zohar, o justo encontra a sua morada: “O Quem? é o limite? superior do céu, o Quê? o limite inferior. Jacob recebe-os a ambos em herança, foge de um limite para outro, do limite inicial Quem? para o limite final Quê?, e mantém-se no meio”.

Giorgio Agamben (Roma, 1942) é um filósofo italiano, autor obras que percorrem temas que vão da estética à política. Seus trabalhos mais conhecidos incluem sua investigação sobre os conceitos de estado de exceção e homo sacer.

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Podemos imaginar que também para os livros existe uma “Biblioteca dos destinos” semelhante, em cujas infinitas prateleiras estào conservadas as variáveis possíveis de cada obra, os livros que poderíamos ter escrito se, a um certo ponto, algo não tivesse decidido em favor do livro que acabou sendo escrito e publicado. O livro real ocupa aqui o ápice de uma pirâmide, em que os inúmeros livros possíveis se precipitam de andar em andar até o Tártaro, que contém o livro impossível, que nunca poderíamos ter escrita

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DO AMOR ONTOLÓGICO

A SUBMERSÃO PRIMITIVA

Marcelo Ariel

Evandro Nascimento Através do Amor , os mortos ressuscitam Rumi

(Abertura) Preciso alcançar o que é maior do que o nome no teu corpo, esse nome provisoriamente gravado em tua imagem-sem-a-vertigem-da-presença,ainda não é você, apesar de evocar o mistério que está muito acima do silêncio, mistério que tenta tocar de leve na superfície desta ‘ vidraça de surpresas’ como diz o poema de `Paul Eluard com o qual estou conversando agora, somente na destruição de um refúgio, no destroçamento de um farol, reside aquilo que é maior do que o nome, a nudez da solidão subindo os degraus da morte, a esperança em sua obsessiva luta contra a saudade, na implosão das paredes do tédio, nestes lugares interiores que migram devagar para o exterior, inomináveis como a alegria da chegada que faz do amor e da liberdade, rios paralelos é que ouço o teu verdadeiro nome , se for capaz de esquecer o meu. O fato é que o amor move o Sol e etç., O sol do amor não dorme e talvez isto explique porque o amor afaste o sono em quem está longe daquilo que ama, exposto sozinho ao poder de seus raios ‘de solidão’ , sem que a sombra acolhedora de outro corpo possa protegê-lo de tanta realidade. (Largo-Andante) Amo tua imagem congelada , luz congelada que é a prova de que até o ‘parado’se move, se no sonho tua imagem é mais real do que a realidade, é este rei que divide em dois o tempo de uma vida, que anuncia o câmbio dela para este outro sonho onde agora estou acordado ( Scherzo) A lembrança do seu rosto , me visita através da luz de um céu, coração aberto tocado pelo Sol : morada final de todos os que amam , na memória do mundo, a morte deste Sol é inconcebível porque jamais a veremos, tão curta é a duração do nosso sonho que finda, evocando a finitude de tudo,até da Estrela, mas há outra maior, outro Sol que nasce na memória do infinito e penetra nesse esquecido paraíso que é o mundo, impelido pela amorosa força que também deseja unir dois corpos a uma mesma Alma, sigo carregando dentro do peito esta certeza, acalmando e alegrando meu espirito, que pela tarde vaga, tocando já nesta Alma, mesmo que ninguém a veja

Desço os degraus de água - com os pés em desacerto - até as entranhas cinzentas do abismo líquido que anda. Plânctons invisíveis roçam minha superfície corpórea e comprimem maliciosamente meus músculos de virilidade, lançando-me à mobilidade infinita de voluptuosas correntes aquáticas. Sinto-me próximo dos movimentos graciosos das ariranhas, que abrem suas vísceras como o fruto rubro de exposição mais íntima, num doce aceno à ardência dionisíaca de algum passante fortuito. Há ali uma incandescência libidinosa que irradia a energia repassada há muito pelos mais reluzentes espelhos primitivos. Vou seguindo acorrentando-me às cálidas correntes...

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(Opus) O mel, o desabrochar de uma rosa, a chuva, quase tudo na natureza obedece uma arquitetura da espera, até o relâmpago, êxtase das nuvens e ventos, espera o momento do encontro no tempo, o amor, sobrenatureza que anima a natureza dos amantes, que são como vento e luz habitando uma casa de ar e água, também é uma tessitura de esperas paradoxais , porque aquilo que esperamos e está vindo também está em nós. Assim aguardo que seja cancelada na noite do tempo, do outro lado do ser, vossa ausência para que a quase apagada vertigem da próxima manhã se converta em dupla presença. (intermezzo) Talvez o amor não se relacione com o tempo e seja mesmo uma onírica transfiguração do espaço, amantes entram no espaço do sonho, onde o tempo abstrato e o cronológico estão em oposição. A violência extrema, dicotômica do tempo cronológico, onde o ser é ofuscado por uma irreal fragmentação do ser através das restrições da névoa da memória, servem apenas para ofuscar as possibilidades de fusão do ser com a Alma do mundo, que o amor anuncia como um ultradevir, o amor é um agente do tempo-eternidade e só nesta temporalidade muito próxima do onirismo pode o amor se expandir até seus ilimitados espaços de corpo algum, objeto nenhum e forma sem forma.

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Marcelo Ariel (1968). Poeta, performer e dramaturgo. Autor do livro “Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio”.

Evandro Nascimento (PA). Escritor e tradutor.Foi interlocutor e amigo de Augusto Monterroso e Severo Sarduy.

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MÍTICOS Contador Borges

O CÉU DO ARIZONA

GÓTICO Para Tula e Sebastian Para Patricia Aguille

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Assim fez Mary, mulher de Shelley, erguendo o monstro da tempestade. Não era só um monstro, era a matriz do gênero, não cabendo nos livros dos olhos e da vida: tão demasiado humano que os humanos se esconderam do que viram. Mas o monstro, disse Mary, é o lado soberano que cada um tem dentro, bebendo láudano e adormecendo: um oceano em taça craniana, o coração de Shelley saltando ao jorro das lembranças na tumba ensolarada da gaveta. Assim fez Dante Gabriel Rossetti com o corpo morto da mulher enrolado em poemas: o cadáver deve tê-los virado do avesso, pois ao desenterrá-lo o poeta-viúvo notou que o sentido já não era o mesmo e os cabelos cresceram vermelhos.

Contador Borges. Poeta, dramaturgo, ensaísta e tradutor. Autor de “A Sombra da Lua” (2011, Lumme) e “A cicatriz de Marilyn Monroe” (2012, Iluminuras). Atualmente faz Pós Doutorando em Letras pela Université Paris Diderot sob supervisão da professora Evelyne Grossman, pesquisador do Centre d’Etudes et de Recherces Interdisciplinaires de I’UFR Lettres, Arts, Cinéma (CERILAC).

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Enquanto eu olhava o céu do Arizona, os escorpiões entraram na sala, sem pedir licença, como soldados brandindo armas nada amigáveis, imagino, por mais que isso seja um costume local. E você ainda me informa que sua avó quer aprender francês antes de ir para a clínica de recuperação. O que posso fazer? Não compreendo a língua dos animais peçonhentos, se é que com eles se pode esgotar as vias de negociação ou agitar a bandeira da paz antes da batalha final. De monstros só conheço os seres jurássicos de meu jogo de armar trancados no armário da primeira infância. Para piorar o telescópio quebrou neste sábado, e só dá para ver a olho nu o vermelho sujo da lua no eclipse de vergonha pelo que fazem na terra. A lua é um imenso brilhante no território ianque. Mas não há como sonhar com ela sem tornar ridículo o poema diante dos pulos histéricos de Armstrong. “Com mil crateras, o que fazer agora?” O resto da noite erramos nas ruas sem neve num frio de não sei quantos graus fahrenheits. “Vamos voltar”, você disse, “já passam das dez e se não comerem logo os cães vão latir sem parar”. Mas cães não ligam para lua, geopolítica ou relações de força e nem querem saber como se diz sol em francês. Pode ser que se assustem com lobos e escorpiões, mas não como eu e você.

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RELATO DO VIZIR ASSAF

Amor Fati

Alfred Jarry

Marcia Tiburi

O anjo da morte appareceu ao meu senhor com seis faces, co’as quaes elle recolhe as almas dos habitantes d’Oriente, d’Occidente, do céo, da terra, dos paizes de Jadjudi e Madjudi e do paiz dos crentes. E mostrou ao meu senhor sua sexta face. Ora, os djinns que trabalham no templo a cortar os metaes silenciosamente co’a pedra samur fornecida pelo corvo, escutarão a queda do corpo do propheta ao piso da salla de crystal, e não quererão acabar a construcção. Elles veem meu senhor erecto entre as muralhas transparentes, apoiado em seu cajado de cedro; e si o anjo lhe leva a alma n’esta posição, o piso luminoso vibrará, attingido pelo corpo terrestre, tão sómente apoz a ruptura do cajado, corroido pelos vermes. E, talvez, o templo será acabado. Aconselhei ao meu senhor que sustentasse suas palmas co’uma vêrga d’oiro incorruptivel, afim de que os djinns o soubessem eternamente erecto na salla de crystal. Todavia, o propheta não quer, de nenhum modo, impedir que os vermes desmintam uma eterna mentira, e o anjo preparou o envelope de sêda verde em que será insufflada su’alma, confiada a um passaro verde que a levará ao tribunal dos anjos Ankir e Menkir. Mas elevei meus olhares ao céo, e a rainha Balkis, esposa de Salomão, que por elle abjurou o culto ao sol, consentirá em confiar sua propria alma ao anjo que a insufflará no envelope de sêda verde, e o anjo da morte, sob qualquer fórma com que appareça, receberá uma alma envelopada para oferecel-a ao passaro Simurg, pois que a alma deve alcançar o paraizo dos crentes pela região do ar e do fogo; e um corpo astral para o barqueiro monstruoso, que o transportará atravez do paiz dos pantanos. Assim Salomão viverá em corpo e alma até ao acabamento do templo.

África, janeiro de 2014. Sonho com R. mas R. não aparece no sonho. R. é uma ideia distante. Estamos na África, de qualquer modo. Sempre estivemos na África, não preciso dizer. De um lado, pelo caminho da esquerda, ouço latidos e sei que há um foco de ebola. Do outro lado, à direita, está R., ou melhor, sua ideia. Do outro lado, sempre do outro lado, é assim que R., no caminho transversal a seguir, anda no leito de um riacho seco, como a vida. R. acorda, ao meu lado, transformado em um escaravelho, como o monstro de Kafka. Pergunta-me, por entre gosmas e cartilagens, se posso parar de falar em Nietzsche por alguns dias. Respondo que não. Leio um parágrafo das Considerações Extemporâneas e ele se acalma. Mas aviso, para a renovação de seu desespero, que Nietzsche bate à porta e vou deixá-lo entrar. Como não se deve fazer com alguém que já morreu, lembro incomodada. R. me diz, insistindo ao exaspero, que não abra a porta. Tento, mas não posso ouvi-lo. Do outro lado, sua voz é pura imaginação. Uso minha impotência para me proteger, a impotência é a inimiga mais poderosa da imaginação, não preciso explicar. R. fica revoltado e tenta virar-se, mas sua forma corporal atual não permite que se mova como quer. Abro a porta e vejo que não era Nietzsche, mas um cão. Deixo o escaravelho terminar sua dança angustiada tentando erguer-se do chão. R. saiu da cena deixando para trás um rastro de folhas secas. Eu perco a audição para sempre. R. me acorda contando o sonho. O cão pertencia a Nietzsche, como Argos a Ulisses, diz-me desviando o olhar. Por não saber ouvir o animal, a culpa há de me devorar por séculos intransponíveis, ele ameaça, enquanto dou de ombros riscando o silêncio com o barulho de um fósforo. O cão sabia que eu estava doente e que morreria logo, era seu alerta. A vida é um caminho errado, continua a falar pesaroso, tentando livrar-se das folhas amareladas que não sumiram depois do sonho. Percebo nas palavras de R. que, como Nietzsche, o que ele anuncia é sua viuvez. Não me impressiono. Os homens, como R., como Nietzsche, sempre anunciam a própria viuvez. Certos de que a vida é um caminho errado, eles tentam de tudo para parecer o contrário. R. evoca o silêncio batendo na madeira. A madeira do meu caixão. A vida é sonho, descubro conversando com Calderón, com quem almocei no dia anterior. Calderón tem muitos filhos e também ele vive de anunciar a própria viuvez. O sonho é apenas um detalhe. Não sabe que eu e sua mulher temos um caso. É nossa pequena vingança. O cão está finalmente morto. Não sabemos como, mas padeceu sob o vírus do ebola. Descubro, observando os pelos molhados de sangue, que o cão continua a ser o Amor Fati, enquanto R., cheio de compaixão, recolhe o cadáver.

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Alfred Jarry (Laval-1873 | Paris-1907) foi um patafísico poeta, romancista e dramaturgo francês. Autor de: “Ubu Rei” (1896). “Amor Absoluto” (1899).

Marcia Tiburi. Doutora em filosofia. Professora da Universidade Mackenzie e colunista da Revista CULT. Autora de Filosofia em Comum (Record). Magnólia (Bertrand Brasil). O Manto (Record). Olho de Vidro – A Televisão e o Estado de Exceção da Imagem (Record).

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Tradução: Eclair Antonio Almeida Filho & Odulia Capelo

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O NASCIMENTO É A MORTE Philipe Lacoue-Labarthe

Tradução: Bruno Duarte

Viver é uma morte, e a morte é também ela uma vida. Hölderlin, In lieblicher Bläue

A memória de Sarah

Este mecanismo das cenas, por mais arcaico que seja, foi tornado visível desde há muito pelos mitógrafos e pelos etnólogos: é o da citação d o s planos ou das sequências míticas, pensados como modelos de existência e indutores de comportamento. Mas é preciso não esquecer que toda a moral clássica, antiga ou moderna – de Plutarco a Montaigne ou a Rousseau e a Nietzsche – foi fundada sobre a meditação dos exemplos (os «homens ilustres») ; e que a ética cristã, que se reclamava da “vida dos Santos”, acabou por se resumir na Imitação de Jesus Cristo. Foi em plena consciência que o profeta da morte de Deus intitulou a sua autobiografia Ecce Homo. Não é certamente absurdo pôr a hipótese de que esse mesmo fenómeno é constitutivo da «Literatura» enquanto tal. A origem da literatura seria, também ela, imemorial. Com a única diferença, todavia, de que ela se apoiaria numa recordação ainda mais impossível, mesmo se constitui o seu reverso exacto, do que a impossível recordação do nascimento: a recordação da morte. Disso daria testemunho – exemplarmente, parece-me – Artaud. Em todo o caso, o da célebre «Conferência no Vieux-Colombier». Duas «cenas primitivas» dominam, é provável, o Ocidente. E a sua literatura. Ou o Ocidente como Literatura.

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São ambas instaladas – para sempre – pelos poemas homéricos. É a cena da cólera (Aquiles, A. Ilíada); e é a cena da experiência literalmente: da travessia de um perigo – um termo marítimo, como sabemos (Ulisses, A, Odisseia). O Ocidente é colérico e aventuroso, experimental, mesmo no momento em que se torna cristão e no qual cresce, precisamente contra o mito grego, a cólera do Deus bíblico (e dos profetas). Ou em que o destino do

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á «cenas primitivas»: é sabido, ou reconhecido, desde Freud. Pelo menos. Elas são matriciais: rememoradas, reelaboradas ou reconstituídas, e mesmo simplesmente inventadas, por efeito de uma espécie de retroprojeção - elaboradas, portanto –, elas dão forma a ou ditam um destino singular ou colectivo. Uma vida é, do mesmo modo que uma civilização, a repetição – a «reação», no sentido estrito – dessas cenas inaugurais ou, mais exactamente, imemoriais, se entendermos por esse qualificativo o que ele deveria significar: elas são anteriores à própria memória, da qual são na verdade a possibilidade mais precisa; e, por isso mesmo, a impossibilidade: a devastação do esquecimento. Qualquer existência - o fado de existir, ou que há existência - é a recordação daquilo de que não existe, por definição, nenhuma recordação: o nascimento.

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Espírito, que ele considera como o seu Destino – senão mesmo o próprio Destino – se chama travessia do deserto, e retorno: a si, a casa (Ítaca é uma terra prometida). Ou ainda: paixão, morte e ressurreição. «No lugar onde se encontra o perigo, abunda também aquilo que salva»: foi Hölderlin que o disse, ele que via em Kant «o Moisés da (sua) nação». Mas Hegel e Schelling teriam con­sentido na máxima, eles que definiam a filosofia (o pensamento ocidental), desde a sua mais remota ori­gem, como a «Odisseia da consciência». Seja como for, qualquer um deles era devedor dessa sabedoria de Lutero: «Mesmo Deus está morto». Retomarei este ponto. A cena da cólera diz respeito à Justiça, e portanto ao juízo: o final, segundo a escatologia judaica e cristã (que não é forçosamente o «messianismo»). Artaud torna a representá-la, essa cena, sob a invocação do mártir (da testemunha exemplar) que ele elegeu: Van Gogh, «o suicidado da sociedade». Isso tem por nome, ainda assim fora de qualquer acaso, Para acabar de vez com o juízo de Deus. Entenda-se com clareza: há juízo, mas para acabar de vez com o juízo. Juízo final do «Juízo final», fim do «reinado dos Fins». Artaud protesta e exige, como Aquiles (ou Job), uma compensação. É a tentativa de, na veemência e na revolta – a “santa cólera” –, consumar a espoliação teológico-metafísica, o furto da alma. Uma cólera assim é comparável à de Nietzsche, igualmente dolorosa, igualmente patética. Mas talvez com maior dureza. Exige-se que tenha fim – por fim – o despojamento, a desapropriação. Nietzsche rejubilava, Artaud passa um martírio. A sua questão não é, em absoluto: quem sou eu?, nem mesmo: estarei ainda vivo? (Estas são, no fundo, questões infantis, e narcisistas.) A sua questão é: por que razão me «forçaram» a ser? Por que razão me arrancaram (é uma das suas palavras)? E é a questão da morte – do nascimento. A experiência de Ulisses não é ela própria uma mera navegação; nem mesmo a do furor do retorno. Ela culmina na travessia da morte, a descida aos Infernos – um topos obrigatório, doravante, para toda a grande literatura (ocidental), de Virgílio e Lucano a Dante ou a Joyce, e a Broch. O trecho denomina-se, tecnicamente, nékuia: o herói decide-se no sentido dos mortos – o «passo para-além», como diz Blanchot – atravessa «esse não muito profundo regato calunia­do, a morte» (a frase é de Mallarmé): Estige, Aqueronte. Ele reaparece. Ele reaparece, mas para se descobrir incrédulo por ter reaparecido. Por essa razão, ele diz (narra), ele escreve: sabe que está mor­to, e é a própria Ciência. O mito de Orfeu expressa unicamente isso, e é o mito da origem da poesia, isto é, da arte. (Não pensem que tudo isto seja apenas uma abstracção, reservada ao exame literário ou filosófico. A própria história está sujeita a descrições deste tipo: de Gaulle, em 1940, tratou-se de uma cólera; e Miterrand, em 1981, da descida para junto dos mortos. A sujeição simbólica não apresenta falhas).

A cena está absolutamente enquadrada: é a mais antiga, a mais velha. Artaud comenta-a assim (é, por assim dizer, sem frase: unicamente um murmúrio: «não vociferar», como ele diz): O electrochoque que me fez morrer foi o terceiro. Eu tinha adormecido penosamente com a descarga da corrente e recordo-me de ter andado às voltas por um tempo indeterminado, esgazeado como uma mosca no interior das minhas próprias goelas, em seguida sentira-me a morrer e a rebentar sobre os meus próprios restos, mas sem chegar a separar-me totalmente do meu corpo. Eu oscilava no ar como um balão preso, per­guntando a mim próprio de que lado estava o caminho, e se o meu corpo chegaria alguma vez a acompanhar-me nele (...) Tinha chegado a esse ponto da luta, quando um estalido brusco me fez soçobrar na superfície, e voltei a mim no quarto em que o eletrochoque me tinha fulminado. Disseram-me depois que o Dr. Ferdière, julgando-me morto, tinha ordenado a 2 enfermeiros para transportarem o meu corpo para a morgue, e que só o meu despertar, nesse momento, me tinha salvo.

Artaud volta a representar toda a cena. Ele volta a representá-las todas, na realidade. O que significa; todas as mortes. A de Montaigne caindo do cavalo (Essais, II, 6, De l’exercitation); a de Rousseau, que a repete (Rêverie du promeneur solitaire, II); a de Chateaubriand (Mémoires d’outre-tombe); a de Rimbaud (Une Saison en Enfer), ou a de Mallarmé quando declara: «a destruição foi a minha Béatrice», e confidenciando ao seu amigo Casalis: «Agora posso dizer que estou totalmente morto». E tantos outros, até ao Blanchot de L’lnstant de ma mort. A impossível experiência da morte é a autorização da literatura, e não existe nenhum escritor preocupado com a sua essência que não esteja, desde sempre, já morto. De outro modo, que teria ele a dizer de importante? Escrever é dizer como se está morto. E isso é o próprio pensamento, que não consiste em espantar-se pelo motivo de que «eu sou», mas sim em ser agitado pelo motivo de que «eu já não fui». A morte é algo como o imperativo categórico do pensamento, da literatura. Hegel transformou essa necessidade num sistema. Mas Artaud proferiu-a na mais extrema dor, e isso tem o nome de poesia.

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Esta ponderação elementar firma-se apenas na leitura dos blocos de notas preliminares de Artaud para a «Conferência no Vieux-Colombier», pronunciada (não necessariamente «vociferada») a 13 de Janeiro de 1947. Num dos três blocos de notas trazidos por Artaud para essa ocasião, se é que aos podemos fiar na transcrição apresentada por Paule Thévenin (mas, após alguma reflexão, é possível fazê-lo), é possível ler que Artaud morreu crucificado, no Gólgota, há dois mil anos. Artaud foi O Cristo: «Mesmo Deus está morto». Trata-se certamente de um «delírio». O Doutor Ferdière, que o «trata», diz-lhe isso mesmo. Passo a citar: - (Isto, sussurrado) Saberá você, Senhor Artaud, que nome tem o delírio que consiste em tomar-se por certo grande personagem histórico a quem cingimos a individualidade? - Terás enlouquecido, psiquiatra imbecil, e de onde te veio a ideia que eu me tomava por Jesus Cristo? O que te disse, e repito, foi apenas que eu, Antonin Artaud, 50 medidas, recordo-me do Gólgota. Recordome disso, da mesma maneira que me recordo de estar no hospício de Rodez no mês de Fevereiro de 1943 sob o efeito de um electrochoque que me foi imposto contra a minha vontade.

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- Se você estivesse morto, já não estaria aqui. - Eu estou morto, verdadeiramente morto, e a minha morte foi medicamente comprovada. E em seguida regressei, como um homem que regressaria do além? E recordo-me também desse além.

Philippe Lacoue-Labarthe (Tours -1940 | Paris-2007). Filósofo crítico literário e tradutor francês.

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I

Alfredo Fressia

Martín Gambarotta

Tradução: Adalberto de Oliveira Souza

Tradução Ana Amália Alves

Dorme sob o firmamento a flora paciente do inverno. Durmo também em meu quarto de pobre. Do lado cego do travesseiro, O outro Alfredo treme de frio, é uma asa ou uma sombra que prendi com alfinetes entre as folhas de um ervário, um insone aprisionado nas nervuras, meu fantasma transparente. Que farei contigo, Alfredo? Lá fora passará um dromedário pelo orifício da agulha, um milagre, a longa ladainha de teus santos para escapar do labirinto, tocar o infinito ferido pela flecha na constelação do Sagitário e sempre a tartaruga em teu poema ganhava a corrida. Sobrevivo a cada noite como um potro celeste nutrido com alfafa e com estrelas enquanto, tu, Alfredo, tens o odor de ervas secas na gaveta abarrotada de segredos. Esqueço de ti ao despertar, continuo minha busca obstinada no palheiro do mundo te encontro no travesseiroespetado no outro lado de meu sonho.

Um quarto onde o espaço do teto é igual ao do piso que por sua vez é igual ao de cada uma das quatro paredes que delimitam um lugar sobre a rua. A fumaça se desloca à sua mente vazia, não sabe quem é e o primeiro pensamento “um cachorro que se dá conta que é cachorro deixa de sê-lo” volta a fazer parte do sono porém aparece, difusa, a floreira: uma chaleira amassada com plantas no centro da mesa: dois cavaletes sustentando uma tábua de madeira - então acorda. As manchas de óxido no céu a cor da luz sobre as coisas, o céu que se retrai e é óxido borrado entre seus olhos e cai dormido de novo, porém aparece uma ordem na matéria desperta. A localização lúcida do lugar no dia, o ruído o corpo pulsando, a ruína de uma ideia que corre por uma rede de nervos, palavras de aço contidas em um sopro: um orifício cabeça de alfinete numa cavidade do coração.

Alfredo Fressia (Uruguai, Montevidéu, 1948). Poeta, tradutor e ensaísta . Recentemente recebeu o Premio Bartolomé Hidalgo do Uruguai. Autor de Canto desalojado (Lumme) É editor da revista de poessía La Otra, México. http:// alfredofressia.blogspot.com/

Poema “1” do livro Punctum de Martín Gambarotta (Buenos Aires: Mansalva-Vox, 2012)

Martín Gambarotta (1968 Buenos Aires) é poeta e jornalista argentino. Punctum (1996), livro onde consta esse poema, ganhou o “I Concurso Hispanoamericano Diario de Poesía”, em 1995.

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ALFREDO E EU

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ALEJANDRA PIZARNIK Tradução: Vinícius Nicastro Honesko e Davi Pessoa Carneiro

LANTERNA SURDA (1966) Os ausentes sopram e a noite é densa. A noite tem a cor das pálpebras do morto. Toda noite faço a noite. Toda noite escrevo. Palavra por palavra eu escrevo a noite.

CONTEMPLAÇÃO Morreram as formas apavoradas e não houve mais um fora e um dentro. Ninguém estava escutando o lugar porque o lugar não existia. Com o propósito de escutar estão escutando o lugar. Dentro de tua máscara relampejava a noite. Te atravessam com grunhidos. Te martelam com pássaros negros. Cores inimigas se unem na tragédia.

NA OUTRA MADRUGADA

FIGURAS E SILÊNCIOS Mãos crispadas me confiam ao exílio. Ajuda-me a não pedir ajuda. Querem me anoitecer, vão me fazer morrer. Ajuda-me a não pedir ajuda. 42

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Vejo crescer diante de meus olhos figuras de silêncio e desesperadas. Escuto cinzas, densas vozes no antigo lugar do coração.

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CAMINHOS DO ESPELHO (1962)

I E sobretudo olhar com inocência. Como se nada tivesse acontecido, o que é certo.

XI Ao negro sol do silêncio as palavras se bronzeavam.

II Mas a ti quero olhar até que teu rosto se distancie de meu medo como um pássaro da borda afiada da noite.

XII Mas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou sozinha e escrevo. Não, não estou sozinha. Há alguém aqui que treme.

III Como uma menina de tez rosada em um muro muito velho subitamente apagada pela chuva.

XIII Mesmo que diga sol e lua e estrela me refiro a coisas que me sucedem. E o que eu desejava? Desejava um silêncio perfeito. Por isso falo.

V Todos os gestos de meu corpo e de minha voz para fazer de mim a oferenda, o ramo que abandona o vento no umbral. VI Cobre a memória de tua cara com a máscara daquela que serás e assustas a menina que foste. VII A noite dos dois se dispersou com a neblina. É a estação dos alimentos frios. VIII E a sede, minha memória é da sede, eu embaixo, no fundo, no poço, eu bebia, recordo. IX Cair como um animal ferido no lugar que iria ser de revelações. X Como quem não quer a coisa. Nenhuma coisa. Boca cosida. Pálpebras cosidas. Me esqueça. Dentro o vento. Tudo fechado e o vento dentro.

XIV A noite tem a forma de um grito de lobo. XV Delícia perder-se na imagem pressentida. Eu me levantei de meu cadáver, eu fui em busca de quem sou. Peregrina de mim, fui até aquela que dorme em um país ao vento. XVI Minha caída sem fim a minha caída sem fim onde ninguém me aguardou pois ao olhar quem me aguardava não vi outra coisa que eu mesma. XVII Algo caía no silêncio. Minha última palavra foi eu mas me referia à aurora luminosa. XVIII Flores amarelas constelam um círculo de terra azul. A água treme cheia de vento. XIX Deslumbramento do dia, pássaros amarelos na manhã. Uma mão desata trevas, uma mão arrasta a cabeleira de uma afogada que não cessa de passar pelo espelho. Voltar à memória do corpo, hei de voltar a meus ossos em duelo, hei de compreender o que diz minha voz. De “Extracción de la piedra de la locura”, publicado em 1968 com poemas de 1962-1968

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Alejandra Pizarnik (1936 - 1972) Escritora e poeta argentina.

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IV Como quando se abre uma flor e revela o coração que não tem.

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MARCA D’ÁGUA

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Acordas (tarde), levantas-te (quase às cegas), fazes café (sem açúcar). Passaste toda a noite em branco, assombrado pelos teus demônios, e apenas conseguiste escrever umas poucas linhas, que temes ler à luz do dia (e fazes bem). Abres espaço na mesa para apoiar a xícara de café. Quiçá ligas o radio. De costas para a janela que dá para o pátio, sentas-te. Não sei o que acontece com o corpo quando adota essa posição nem que forças secretas se desatam sob a tensa imobilidade da carne, mas sei que aí tem lugar uma vida que não se parece à vida tal como a conhecemos (e quiçá uma morte que não acaba). Falo de uma falha no homem, no animal que é o homem, e que é o mais profundo ascendente da sua humanidade. O olho, que durante séculos respondeu às necessidades da caça, dilata a pupila e se abandona a um exercício de contemplação sem objeto, sem conceito, sem fim; a coluna, cuja função fora em tempos manter o corpo ereto para abarcar melhor o horizonte, cede ao peso da cabeça e se curva sobre o papel; a mão, forte no punho, se abre para acolher os ditados da inspiração. Pela escritura o homem se expõe sem reservas, deixando atrás o domínio da necessidade, para explorar a forma possível do seu desejo. Aí não é nada, não quer nada, não pode nada, mas ao mesmo tempo encontra em si todos os sonhos do mundo (Pessoa). Sempre foi e continua sendo um mistério para nós o que acontece com o corpo quando adota essa posição. Enquanto isso, fazes marcas sobre o papel, pequenas marcas negras sobre o papel, como cagadinhas de inseto, passas o dia nisso. As marcas esgotam páginas inteiras. As páginas se acumulam sobre a mesa, como o pó. Alguma vez souberam despertar algum interesse (foi fugaz). Hoje apenas ocupam lugar (cada dia ocupam mais lugar), fieis ao mutismo do mínimo de matéria que exige a rebeldia da tua imaginação. Andas preocupado por esse fenômeno, mas o que vais fazer? Voltar a escrever para os editores, frequentar os círculos literários, tudo isso te tomaria tempo. Escrever também toma tempo. Tu tens o teu tempo. O teu tempo apenas, não tens mais. Se alguém se oferecesse para fazer isso por ti, o deixarias fazer, não te importaria sequer que esse alguém se atribuísse todo o crédito, que usurpara o teu nome. O teu nome é ninguém. Mas não há ninguém. Em algum momento a escritura exigiu que não houvesse ninguém, também. Sabemos que o mundo faz pouco caso da nossa paixão pela literatura e pelo pensamento. A escritura surgiu na história como uma forma de levar o registo da administração do Estado e, fora disso, parecera passar bem sem ela. Quatro mil e quinhentos anos não mudaram o fundamental: os signos que entrelaça um indivíduo na solidão do seu quarto podem encontrar nas nossas sociedades uma caução quando do que se trata é de ocupar os momentos de ócio, mas continuam sem ser admitidos como uma exploração, uma busca (do homem antes do homem, da pletórica riqueza do universo). Os volumes que abarrotam as nossas bibliotecas, e que sem descanso compulsam os especialistas nos seus gabinetes, são menos uma forma de culto que um modo de legitimar essa exclusão. E, não obstante, tu e eu seguimos escrevendo. Na casa não se ouve outra coisa que o rasgar da lapiseira vencendo a resistência do papel, a duras penas vencendo a resistência do papel, uma respiração afogada que dobra a tua (quase inaudível). Encontras-te no coração secreto da solidão, mas não estás só. Se pelo menos estivesses só. Vozes espectrais ressoam na tua cabeça, tomam o controle da tua mão, dão-te e tiram-te o fôlego. Teu corpo é como um campo de batalha, onde as intuições e as ideias de outros muitos homens avançam e retrocedem. Tu limitas-te a levar o registo desses movimentos. Mesmo que tentasses, não terias forças para silenciar uma única voz, para barrar a entrada de nenhuma coisa, para conduzir a escritura a

uma intimidade sem intrusões. O deserto no qual te adentraste é um deserto povoado de miragens. Não há preço mais alto que a solidão, e a escrita não aceita menos que isso, não pode. Exige do escritor uma solidão tão grande que é o próprio escritor quem não está. Escrever é estar fora de si. Enganam-se, portanto, aqueles que pensam que escrever é um meio de fugir do mundo e subtrair-se à seriedade da vida para moldar outro mundo e outra vida, à vontade. Se o poeta se asfixia no mundo (quando falar já não faz mais sentido, quando não adianta), não é no alto da noite, na solidão da sua habitação, perante a folha em branco, que encontra uma atmosfera fácil, porque aí o poeta quase não respira – é, antes, inspirado (desvelado por uma ideia obsessiva, que não consegue tirar da cabeça, sobre a qual não pode deixar de escrever). A inspiração, ou o entusiasmo, como diziam os gregos, é a forma clássica de assinalar a dependência total do escritor em relação à escritura. Poeta não é meramente quem faz versos: é aquele que é visitado pela musa, aquele que ganha o seu favor, e que, sem reservas, se entrega de corpo e alma a ela. Ninguém pode simplesmente sentar-se a escrever. Juan Gelman dizia: “Escrevemos poesia quando ela nos visita, quando vem a senhora, quando bate à nossa porta, depois de ter ido para a cama com meio mundo; então há que abrir-lhe a porta, e aí escrevemos (ou somos escritos por ela, que é o melhor)”. O escritor só existe como possibilidade da escritura, sofre a sua gravitação, é vitima dos seus impasses, paga os seus excessos, e muitas vezes não lhe sobrevive. Vais até o espelho, que te devolve a imagem do teu rosto com uma verdade descarnada, na qual não te reconheces. Mais tarde, de novo curvado sobre a tua mesa de trabalho, o papel em branco te sugerirá variações não menos falazes. A elas dedicaste toda a tua vida. De longe, alguém que te observasse quiçá teria pena de uma vida assim (mas de longe todos os animais parecem moscas). Ligas a luz. A noite caiu sem que notasses. Aceitaste a escritura como destino, nunca tiveste opção. Não é algo do qual devas lamentar-te: quando falamos de destino, não há um melhor que outro. Gostas de dizer que, fora de escrever, e não muito bem, nunca soubeste fazer outra coisa. Isso te salva. Sem essa distância irónica, o amor ao destino é uma forma da loucura. Quando a noite chegue ao seu ponto mais alto, e não consigas conciliar o sonho, vozes sem sombra desgarrarão em ti também essa certeza. Estás habituado a isso, a que o chão se abra aos teus pés, a que o teto te caia em cima. Sem perder a compostura, tateando, na penumbra que rodeia tudo ao teu redor, buscarás a garrafa que escondes na última gaveta da mesa. Depois, lentamente, entre um trago e outro, escreverás esta página, e quiçá mais uma, e mais uma, até que tu ou o teu corpo se deem por vencidos. Mas tu, por favor, não te dês por vencido.

Eduardo Pellejero (Argentina, 1972) é professor de Estética na Universidade Federal de Rio Grande do Norte. Atualmente desenvolve uma pesquisa no domínio da filosofia (política) da arte.

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Eduardo Pellejero

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É ASSIM QUE DEVE SER FEITO

nossos corpos anunciando catástrofes iminentes: colisão de navios, queda de meteoros, revoada de aves de rapina, nuvem de gafanhotos, maremotos, clarões no horizonte

Claudio Willer

nossos corpos atravessando a noite contando histórias um para o outro, lendas egípcias e narrativas de punhais nossos corpos recobertos pelo sal carregado por um vento de maresias nossos corpos explodindo como grandes sóis bêbados

nos encontrar e ficarmos juntos nesta hora mais inexplicável clarões de incêndios distantes refletindo-se em nossas peles nossos gritos de prazer chicoteando as esferas da noite nossos gritos de prazer explodindo pela madrugada afora nossos uivos de prazer ecoando pelas ruas desta cidade agora adormecida e esta confusão de pedaços de corpos todos gritando o mesmo nome selvagem espalhados sobre a colcha nossos corpos druídicos formando círculos mágicos sinalizando o reinício dos tempos nossos corpos que se precipitam como os regatos que escorrem pela encosta da montanha buscando seu rápido destino final nossos corpos de vísceras entrelaçadas redescobrindo a pulsação das galáxias nossos corpos no turbilhão do galope de potros bravos à beira-mar nossos corpos com seus relâmpagos rompendo o calor denso da noite na selva tropical nossos corpos de muitas vozes, muitas vozes que se confundem nossos corpos sobre os quais viajamos como navegantes em busca da Terra Prometida nossos corpos recobertos de inscrições que passamos dias e noites tentando decifrar nossos corpos entregues a um êxtase canibal nossos corpos percorrendo os labirintos do prazer e suas alamedas ladeadas por tufos de azaléia elétrica nossos corpos de bruma, mapa de penugens, texto sânscrito nossos corpos pisoteando o braseiro da memória dançando animados por um batuque que sai do centro da terra nossos corpos mergulhando na água transparente de um lago gelado no desvão de uma gruta calcária nossos corpos embarcando em uma nave especial feita de palha trançada nossos corpos investidos de seus plenos poderes, salvo-condutos para qualquer viagem, licença para voar, passaporte para o delírio nossos corpos suando gotas de fogo que escorrem por nossas costas nossos corpos sombrios e úmidos nesta hora de fetos arborescentes e samambaias, agora liquefeitos contra os filtros do crepúsculo, transparentes como uma profecia nossos corpos amarelos, azuis, laranja, cor de camaleão enlouquecido estampado contra as paredes do tempo 48

nossos corpos impressos em milhares de figurinhas coloridas que são distribuídas entre adolescentes dos subúrbios

nossos corpos trêmulos diante da descoberta de seus mananciais subterrâneos nossos corpos vibrando como bandeiras de tribos nômades tremulando ao vento nossos corpos transformados em horizonte de nenúfares e fogos-fátuos nossos corpos pulsando na infinita dimensão das enxurradas de sangue em nosso emaranhado de veias e da sequiosa vegetação dos nossos baixos-ventres nossos corpos de litania, saga, giesta heróica, narrativa de amantes atados a penhascos de beira-mar nossos corpos revelando a verdadeira história dos furacões, do vento quente ao deserto, da lava escorrendo pelo dorso do vulcão nossos corpos em convulsão como se mortalmente feridos, latejando como chagas abertas nossos corpos úmidos e exaustos no meio dos lençóis nossos corpos transformados em ovos luminosos suspensos sobre a cama nossos corpos que nos ensinam a morder, chupar, beijar e trepar nossos corpos irremediavelmente presos dentro de uma nuvem de cheiros de corpos nossos corpos inteiramente recobertos de olhos atentos como aves de rapina planando milhares de metros acima do solo nossos corpos de longos dedos que se transformam em zagaias africanas a serem atiradas contra o sol nascente nossos corpos de silvos alucinados ecoando na medula dos ossos nossos corpos incansáveis operários erguendo as catedrais da noite nossos corpos parados na margem leste do rio da história, olhando o curso das suas águas lamacentas que balançam preguiçosas carregando casas, troncos e pedaços de embarcações nossos corpos participantes de estranhas reuniões em clareiras sob a lua cheia nossos corpos estabelecendo alianças e pactos secretos na calada da noite, sussurrando sob as cobertas formulando planos para explodir obeliscos e estátuas eqüestres, falsificar identidades nossos corpos rabiscando muros com inscrições anunciando a próxima temporada de orgias nossos corpos pronunciando as palavras sagradas, o agora, mais, põe, vem, mais, com a certeza messiânica de um orador agitando as massas nossos corpos preparando um gigantesco patuá de uma magia negra das mais pesadas para desviar o rumo da história e acabar de vez com a barbárie capitalista nossos corpos anarquistas defendendo a formação de sociedades igualitárias regidas unicamente pelo princípio do prazer nossos corpos com suas sacolas de escorpiões famintos, luas trêmulas, ventos que ressecam a pele em paisagens de dunas movediças nossos corpos cheios de reentrâncias, escadarias de pedra recobertas de musgo, esquinas tão cheias de mistério quanto uma cidade-fantasma invadida por um bando de bêbados altas horas da noite nossos corpos recostando-se mansamente na beira de um lago, sentindo a água na temperatura da pele, deitando-se e sendo recobertos aos poucos pelas folhas que vão caindo das árvores ao redor nossos corpos elípticos, cordas tensas prontas para disparar as flechas incendiárias do prazer

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pouca gente é capaz de fazer tudo isso que fizemos

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nossos corpos rolando abraçados sobre este chão de cílios vibratórios que recobrem a terra, esse balão luminoso que pisca na neblina túneis de borracha cega abrem-se para receber nossos corpos armários em chamas rolam pelas escadarias um arco-íris tenta executar os passos finais de um balé ele tropeça e cai desabando sobre as encostas da Serra da Mantiqueira explodindo em um caleidoscópio de cores as montanhas racham-se fontes de água quente jorram contra as nuvens sobre um palco de cartolina azul sapateiam três dançarinas nuas com suas botas vermelhas uma vitrola distante toca In a Silent Way de Miles Davis um montão de papel picado é jogado para o alto multidões rezam orações sem sentido um avião se transforma em gota d’água e fica suspenso no céu os navios da noite chegam mais perto eles já dobram a barra do porto suas luzes piscam já se ouve a música das festas nos conveses duas mil lavadeiras batem peças de roupa em suas tábuas em uma praia na margem direita do rio Araguaia no fundo do quarto há uma porta ela se abre para uma escada de ferro em caracol pela qual descemos

Claudio Willer é poeta, ensaísta e tradutor. Autor de “Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia, ensaio” (Civilização Brasileira, 2010). “Geração Beat” (L&PM Pocket, coleção Encyclopaedia, 2009); “Estranhas Experiências” (Lamparina, 2004). Tradutor de “Lautréamont - Os Cantos de Maldoror, Poesias e Cartas” (Iluminuras, nova edição em 2013) e “Uivo e 50outros poemas” de Allen Ginsberg (L&PM Pocket, nova edição em 2010).

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para penetrar no bojo deste cometa alucinado dos nossos corpos

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Eduardo Sterzi

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Em qualquer ato de linguagem, haverá sempre um intervalo – de maior ou menor amplitude – entre o significante e o significado (“apenas um outro significante dado como literal”, um interpretante). A virtude da melhor poesia moderna está em nos convencer de que esse intervalo se situa entre a letra e a coisa, entre o texto e o mundo. Quanto mais afastadas a letra e a coisa, mais a letra tenderá a tornar-se ela mesma uma coisa (e o texto, um mundo). As palavras transformam-se, como notou Sartre, em “palavras-coisas”. Podemos recordar Roman Jakobson, que definiu a “função poética” da linguagem como o “enfoque da mensagem por ela própria”. Depois de um Rimbaud, a lírica levou ao paroxismo essa oclusão que constitui a essência de toda a poesia. Todo bom poema gira sobre seu próprio eixo. Não obstante, simultaneamente, realiza sua translação ao redor do sol negro da realidade. Que translação – translatio – seja o sinônimo latino de metáfora é algo que não devemos esquecer. Mallarmé atribuiria a rotação autista e autotélica do poema à “magia” da palavra poética. Jakobson oferece uma explicação menos esotérica. Recorda que há dois modos básicos de arranjo no comportamento verbal: seleção e combinação. A seleção funda-se na equivalência (semelhança e diferença, sinonímia e antonímia); a combinação, na contigüidade. A “função poética” manifestase quando o princípio de equivalência do eixo de seleção projeta-se sobre o eixo de combinação. As analogias entre sons, imagens, conceitos e até mesmo padrões sintáticos – em suma, certas figuras – passam a determinar a disposição das palavras na seqüência. Para Jakobson, a poesia, ao destacar o aspecto material da linguagem, inevitavelmente aprofunda a diferença entre signos e objetos. Contudo, o predomínio da função poética sobre a função referencial “não oblitera a referência, mas torna-a ambígua”. Sendo assim, o poema lírico continua representando o mundo, porém o faz sempre de modo alusivo, enigmático. A dimensão do enigma depende, em parte, do autor – de suas intenções, de seu domínio dos meios expressivos –, mas, sobretudo, do momento histórico que lhe cabe viver e de sua capacidade de responder a ele. Murilo Mendes assumiu como lema pessoal o título de um de seus livros: “Poesia liberdade”. Tomara outro, teria sido mais exato: “Mundo enigma”. Afinal, sua poesia nasce do desconcerto diante de um século pontuado por ditaduras, guerras, genocídios, e da intuição de que tais fatos e a anunciada catástrofe total, o Juízo Final atômico, não passam de conseqüências quase inevitáveis de um processo histórico que já vinha se desenrolando desde, pelo menos, meados do século XIX, e ao qual os artistas foram especialmente sensíveis. Com a expressão “mundo enigma”, Murilo sublima, pela paronomásia (a figura central da poesia, segundo Jakobson), o “mundo inimigo” que dera título a uma seção de seu primeiro livro. A ambivalência inerente a toda poesia, e especialmente à poesia sublime, adquire, para Murilo Mendes e os artistas seus contemporâneos, um inegável sentido histórico. Eles sabem que o mesmo Zeitgeist gerou uma arte eminentemente libertária e acelerou a iminente derrota da civilização frente à barbárie. Supõem que talvez haja algo mais do que uma mera coincidência cronológica entre as tensões econômicas e políticas que culminaram nas ditaduras européias e latino-americanas e nas duas guerras mundiais e, de outra parte, os romances de Joyce, os poemas de Eliot, as pinturas de Picasso, as partituras de Stravinsky. Horrorizam-se com a constatação de que sua própria arte é, simultaneamente, crítica e, em certa medida, celebração desse estado de coisas. O mundo moderno transformouse no “luogo onde parlare è duro”, mas mesmo as “rime aspre e chiocce”, previstas por Dante e conquistadas verdadeiramente por Baudelaire, revelaram-se incapazes de dar conta de sua carga de horror. A percepção do mundo como enigma faz do poema o enigma supremo. O constrito objeto feito de palavras debruça-se sobre o mundo como um espelho fosco e retorcido, num movimento que denota, simultaneamente, maravilha e terror, atração e repulsa, abertura e fechamento.

Talvez o sentido da poesia de Murilo Mendes só se revele para quem penetre o mais fundo possível na extrema ambivalência do verso que diz: “Eu sou terrivelmente do mundo”. Podemos reduzilo, numa primeira leitura, a uma oposição entre “eu” e “mundo”. Entretanto, “sou terrivelmente do” não denota somente oposição, mas também, acima de tudo, pertença. Esta decodificação, todavia, também não abrange a plenitude de seu sentido. Na linguagem ordinária, “sou ... do” significa, com menores ou maiores matizes, “pertenço a” ou “faço parte de”. Na linguagem poética, não: a palavra cintila; sua etimologia, seus usos passados e suas múltiplas conotações encontram-se em estado de veemente presentidade. O verbo “ser” – central na gramática dos idiomas indo-europeus e, desde Parmênides, pedra de toque de todo o pensamento ocidental – é, a rigor, irredutível. Indica, antes de tudo, que algo existe. Se uma voz, num poema, diz “sou terrivelmente do mundo”, não somente encontra-se no mundo, mas é, e é terrivelmente. O terror (palavra recorrente em Murilo) converte-se na essência desse modo de ser. O poeta e sua poesia só mantêm seus vínculos com o mundo na medida em que são terrivelmente. O verso citado pertence a “O poeta nocaute”, do livro O visionário, composto na década de 30. O restante do poema deixa inequívoco o sentido histórico da palavra “mundo”: trata-se de um mundo de telégrafos e vitrolas, das cidades e das multidões, dos “sistemas técnicos aperfeiçoadíssimos”, de revolução na Rússia e assassinatos em massa na China; em suma, o mundo contemporâneo do poeta. Sabemos disto porque “O poeta nocaute”, se comparado com os melhores poemas de Murilo Mendes, é, por assim dizer, demasiadamente “literal”, declarativo. Em alguns versos, pode-se perceber que a intenção do autor foi documentar uma determinada situação que o afligia. Vez por outra, essa intenção interfere no desenvolvimento do poema, conferindo-lhe, se não uma rigidez cadavérica, uma palidez um tanto suspeita. Harold Bloom, refletindo sobre a dinâmica agonal da influência na poesia pós-iluminista, a revisão dos poemas anteriores que o “efebo” precisa fazer para se tornar um verdadeiro poeta, chega à conclusão de que “o significado literal é um tipo de morte”. A concordância integral com a palavra do precursor frustraria o texto tardio em sua pretensão de originalidade. São os tropos – as figuras – que permitem ao poeta escapar dessa aniquilação poética. Uma leitura extravagante do “Grafito na lápide dum alfaiate grego” demonstra que essa noção não era estranha a Murilo: O tempo rodando com sua foice Corta o meu trajo, Atrai a tesoura de Átropos. Não se trata apenas de uma reflexão sobre a vida e a morte, mas, no limite, uma reflexão sobre a poesia, sobre a linguagem figurativa. “Átropos” não seria, pois, somente a mais terrível das parcas – aquela que, com sua tesoura, corta o fio da vida. Seria sobretudo a não-figura, a-tropos: como lembra Robert Graves, seu nome denota “a que não pode ser desviada ou eludida”. Bloom não aceita uma dialética entre arte e sociedade, mas apenas entre arte e arte; por isso mesmo, talvez sua teoria nos auxilie a pensarmos acerca das estratégias textuais de uma poesia cuja relação com a realidade social é assumidamente transfiguradora. Lembremos uma correção que o próprio Bloom faz à sua ideia de que o significado de um poema é sempre um poema precedente. Ele observa que “atos, pessoas e lugares, para que sejam utilizados por poemas, devem eles próprios ser tratados antes como se já fossem poemas, ou partes de poemas”. Seguindo a postulação de Bloom, podemos dizer que a sociedade, tal como configurada num determinado momento histórico, só pode aparecer no poema se for tratada como um “poema” precedente, do qual o poeta deve desviar-se pela elaboração e pelo arranjo das figuras. Em termos menos esotéricos: o poeta, ao escrever o novo poema, deve fantasiar uma espécie de “grau zero” da figuração, em que os “atos, pessoas e lugares” que deseja representar apareçam da forma mais literal possível, ou, num esforço de imaginação um pouco mais complexo, deve especular sobre como um outro poeta, real ou imaginário, teria figurado o tema em questão. É fácil entender por que esse procedimento é necessário na teoria de Bloom: uma figura só

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SER TERRIVELMENTE DO MUNDO: POESIA, HISTÓRIA, ENIGMA

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[...] se revelam-se como duradouras precisamente aquelas obras cuja verdade está mais profundamente enraizada em seu conteúdo objetivo, no transcurso dessa duração os realia apresentam-se tão mais claramente ante os olhos do observador quanto mais se vão extinguindo no mundo. Mas com isso, o conteúdo objetivo e o conteúdo de verdade, unidos num princípio, aparecem separando-se com a duração da obra, porque o último se mantém sempre igualmente oculto quando o primeiro sai à luz. Para todo crítico posterior, a interpretação do chamativo e estranho do conteúdo objetivo converte-se, por consequência, cada vez mais em premissa. [...] Se, para usar uma comparação, se quer ver a obra em crescimento como uma fogueira em chamas, o comentarista está frente a ela como um químico; o crítico como um alquimista. Enquanto para aquele só restam como objeto de sua análise madeira e cinzas, para este só a chama mesma conserva um enigma: o enigma do vivo. Assim, o crítico pergunta pela verdade, cuja chama viva segue ardendo sobre os pesados lenhos do que foi e as leves cinzas do vivido. Como observa Jeanne Marie Gagnebin, essa concepção de crítica como “mortificação das obras” (como o próprio Benjamin dirá no estudo sobre o Trauerspiel) contraria “toda boa vontade hermenêutica que se esforça por manter o calor da imediatidade”. Portanto, se queremos preservar 54a imediatez do encontro com a obra como o cerne de nossas “narrativas de intuição” (expressão de

George Steiner a propósito da crítica), devemos passar à revisão do conceito de “conteúdo de verdade” feita por Theodor W. Adorno. Vejamos um fragmento dos “Paralipômenos” de sua Teoria estética, o qual apresenta um exemplo esclarecedor: O espírito das obras de arte não é o que significam, não é o que querem, mas o seu conteúdo de verdade. Ele poderia circunscrever-se como o que nelas aparece enquanto verdade. O segundo tema do Adágio da Sonata em ré menor, op. 31, nº 2 de Beethoven não é nem uma melodia simplesmente bela – há, certamente, melodias mais vigorosas, mais perfiladas e também mais originais –, nem se caracteriza pela sua absoluta expressividade. Apesar de tudo, a entrada desse tema pertence ao que há de mais imponente e aí se delineia o que é possível chamar o espírito da música de Beethoven: esperança, com um caráter de autenticidade, fenômeno estético, que ele encontra ao mesmo tempo para lá da aparência estética. Este fenômeno que se manifesta para lá da sua aparência é o conteúdo de verdade estético; o que na aparência não é aparência. É certo que, também para Adorno, o conteúdo de verdade não coincide com a experiência imediata. No entanto, como observa o filósofo, só pode desvelá-lo quem intui a obra inicialmente como “aparição”. A sua proposta de uma “reflexão segunda”, que ultrapassa uma hermenêutica tautológica cujo objetivo é descobrir a intenção ou o significado, transforma a crítica num “vaivém rapsódico” entre a consideração do “interior” e do “exterior” da obra. “Alguém que não compreende o aspecto puramente musical de uma sinfonia de Beethoven compreende-a tão pouco como alguém que aí não percebe o eco da Revolução Francesa”, assevera Adorno. “A experiência só não basta, é preciso que ela seja alimentada pelo pensamento.” Esta máxima deixa implícita uma completa reversão: o pensamento só não basta, é preciso que ele seja alimentado pela experiência. Num primeiro instante, o pensamento dá consigo mesmo como que perdido no deserto da experiência. Aos poucos, aqui e ali, vai discernindo formas. Finalmente, encontra um verdejante oásis em que pode fartar-se do líquido inebriante – e, portanto, imobilizador – do significado. Porém, se ele se detiver aí, jamais chegará à terra prometida da história. Afinal, o conteúdo de verdade é “historiografia inconsciente”. É a “cristalização” da história nas obras. Ao desnudar o conteúdo de verdade, o crítico converte aquela “realidade indeterminada” de que falava Mukarovsky numa figura determinada, numa “constelação” (termo caro a Benjamin e Adorno) na qual refulge a imago de uma época, sua projeção fantasmagórica mas impressiva. No poema, essa imago só coincide com a verdade quando não é algo imposto pelo autor. “A história”, frisa Adorno, “é imanente às obras, não é nenhum destino exterior, nenhuma avaliação flutuante.” Em resumo: devemos experimentar o poema como se fosse sempre a primeira vez, mesmo cientes, todavia, de que não o é e não pode sê-lo; o sentimento resultante dessa inapelável posterioridade (se a leitura, como queria Barthes, comporta uma sorte de jouissance, talvez produza, consequentemente, um humor semelhante à tristeza post-coitum) é o sentimento da história, cristalizada na obra, revelando-se a nós, seduzindo-nos, mas, por fim, subtraindo-se à nossa posse. Daí que, nos estudos literários, saber conferir inteligibilidade aos textos é tão importante quanto saber preservar ou mesmo restituir sua quota original de enigma.

Eduardo Sterzi. Escritor e professor de teoria literária na UNICAMP. O presente texto resulta de pesquisas realizadas com auxílio do CNPq num primeiro momento e da FAPESP e do FAEPEX num segundo.

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pode desviar-se em relação a outra figura, um ato de linguagem só pode desviar-se em relação a outro ato de linguagem, e nunca em relação à realidade tal como ela efetivamente é. (Quem sabe seja a consciência desse fato que diferencie o poeta autêntico, mesmo aquele mais comprometido com um protesto frente à realidade, de um redator de manifestos e documentos vazados em versos.) Podemos examinar essa questão por outro ângulo. Já dizia Jan Mukarovsky que “a arte é capaz de caracterizar e de representar uma determinada ‘época’ melhor do que qualquer outro fenômeno social”. Porém, a obra jamais é “testemunho direto” ou “reflexo passivo”: conforme observou o crítico tcheco, citando o exemplo dos poetas ditos “malditos”, ela entretece uma relação “metafórica” ou “oblíqua” com a realidade. Mukarovsky não o assinala, todavia está propondo uma concepção fundamentalmente retórica da obra de arte – a obra é, em nossos termos, não apenas constituída por figuras, mas é ela mesma uma “figura”. Essa figura (metáfora) que é a obra refere-se, segundo Mukarovsky, a uma “realidade indeterminada” – “o contexto total dos chamados fenômenos sociais”. Ora, a idéia de Bloom, segundo a qual o novo poema se desvia em relação a um hipotético poema precursor, nos oferece a possibilidade de compreendermos a indeterminação da realidade como sendo, na verdade, uma sobredeterminação. Bloom prevê esse aparente paradoxo: “O sentido literário tende a se tornar mais indeterminado à medida que a linguagem literária se torna mais sobredeterminada”. A vantagem é que, deste modo, podemos mais facilmente chegar ao significado do poema, que seria o poema precursor. O tema, afinal, como bem nota Mukarovsky, é somente o “eixo de cristalização” sem o qual a significação, constituída pela estrutura inteira, permaneceria vaga. Essa última concepção, construída no âmbito da semiologia, aproxima-se bastante do conceito de “conteúdo de verdade”, proposto por Benjamin e desenvolvido por Adorno, embora este pressuponha uma superação da estrutura. Na abertura de seu ensaio sobre As afinidades eletivas, escrito entre o verão de 1919 e o outono de 1921, Benjamin distinguiu entre o “conteúdo objetivo” (Sachgehalt) de uma obra de arte, meta do comentário filológico, e o “conteúdo de verdade” (Wahrheitsgehalt), meta da crítica filosófica por ele praticada. Eles não existem isoladamente: “A relação entre ambos é determinada por aquela lei fundamental da escritura segundo a qual o conteúdo de verdade de uma obra, quanto mais significativa seja, estará tão mais discreta e intimamente ligado a seu conteúdo objetivo”. É curioso observar que, antecipando Bloom, Benjamin estabeleceu uma ligação entre a estranheza de uma obra e sua sobrevivência para além de seu tempo de criação (mas, saudavelmente, não equacionou essa sobrevivência e a inserção no cânone: o que há de vivo na obra, sua historicidade, é também, para Benjamin, o que determinará seu perecimento futuro). Mais intrigante ainda é o fato de ter apresentado esse conúbio como a passagem mediante a qual o crítico pode chegar ao “conteúdo de verdade”:

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malaysia airlines, voo MH17 Marília Garcia

um boeing 777 da malaysia airlines saiu de amsterdã para kuala lumpur com 298 pessoas a bordo na última quinta-feira 17 de julho de 2014 um boeing 777 da malaysia airlines saiu do aeroporto schiphol às 12h15 (hora local) e estava em voo cruzeiro quando caiu na vila de grabovo no leste da ucrânia um avião em voo cruzeiro não está subindo nem descendo um avião em voo cruzeiro está numa altitude pré-determinada

os enormes pedaços do boieng 777 da malaysia airlines se espalharam por um campo de trigo na vila de grabovo ao leste da ucrânia um relógio é visto no local da queda do boeing 777 na ucrânia nesta sexta-feira (18) 56

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a malaysia airlines disse que o plano de voo original era chegar a 35 mil pés sobre o espaço aéreo ucraniano mas o controle de tráfego ucraniano instruiu os pilotos a ficarem a 33 mil pés de altitude

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a malaysia airlines disse que o avião que operava o voo MH17 tinha um histórico de manutenção em ordem a malaysia airlines disse que sua última revisão fora no dia 11 de julho a aeronave entrou em operação em 1997 e tinha 75.322 horas de voo

desde marco o espaço aéreo sobre a ucrânia estava fechado desde março não era possível voar abaixo de certa altura

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suspeita-se que o boeing 777 da malaysia airlines tenha sido abatido por um míssil de terra-ar quando atravessava em voo cruzeiro o espaço aéreo ucraniano o boeing 777 da malaysia airlines caiu na vila de grabovo no leste da ucrania região ocupada por separatistas

um morador da região disse que os corpos caíram do céu após a explosão do avião

a chanceler da alemanha angela merkel disse que um cessar-fogo é necessário no leste da ucrânia: “há muitas indicações de que o avião foi derrubado” ela disse

um dos comissários do voo MH17 foi vítima da tragédia porque pouco antes tinha trocado de voo com um colega a mulher deste comissário que também era comissária da malaysia airlines em março tinha escapado do voo MH370 desaparecido no sul do oceano índico depois de fazer uma troca semelhante com uma colega

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o leste da ucrânia está sob controle de separatistas pró-rússia e há meses os separatistas pró-rússia estão em confronto com as forças do governo de kiev nos últimos dias os separatistas derrubaram 2 aviões militares ucranianos

a malaysia airlines divulgou as nacionalidades das pessoas a bordo do MH17 -189 holandeses - 44 malaios (incluindo 15 tripulantes) - 27 australianos - 12 indonésios - 9 britânicos - 4 alemães - 4 belgas - 3 filipinos - 1 canadense - 1 neozelandês - 4 pessoas ainda não tiveram sua nacionalidade identificada.

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um relatório preliminar confidencial da inteligência dos estados unidos disse que o míssil que teria atingido o voo MH17 provavelmente foi disparado por separatistas pró-rússia que estão no leste do país

a malaysia airlines disse que o plano de voo do MH17 foi aprovado pela eurocontrol a eurocontrol é responsável por determinar as rotas de aviões civis no espaço aéreo europeu

no momento da queda do voo MH17 um avião presidencial levava o presidente putin do brasil para a rússia o avião presidencial tinha uma rota semelhante à rota do voo da malaysia airlines as duas aeronaves cruzaram o mesmo ponto e o mesmo corredor com menos de uma hora de diferença a uma altitude de 10.100 m o avião presidencial estava no local às 16h21 e o avião da malaysia airlines às 15h44 60

“ele esteve aqui pela última vez há cerca de um mês. ele nos disse há pouco que tinha trocado com um colega para o voo de retorno amsterdã-kuala lumpur”

as mensagens incluídas em sites dos rebeldes – e rapidamente apagadas – e as conversas interceptadas pelos serviços de segurança ucranianos dão a entender que o avião pode ter sido derrubado por engano pelos insurgentes que teriam confundido o boeing 777 com um avião militar ucraniano foi o que disse a france presse

a malaysia airlines disse que a rota usada pela aeronave é comum a malaysia airlines disse que um avião de outra companhia aérea realizava o mesmo trajeto no momento do acidente.

Marília Garcia nasceu no Rio de Janeiro, em 1979. Autora dos livros “20 poemas para o seu walkman” (Cosac Naify, 2007), “Engano geográfico” (: 7letras, 2012) e, no prelo, “Um teste de resistores”, a ser publicado pela 7letras em agosto. Atualmente mora em São Paulo e trabalha com tradução.

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um avião não cai por acaso mas pode cair por engano

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ELOGIO À ARTE DE GIANGUIDO BONFANTI Ney Ferraz Paiva

ÁGUA-FORTE E PONTA-SECA SOBRE PAPEL QUASE CINEMA A Gianguido Bonfanti

pintura é crime vandalismo pinta-se a sangue-frio pra matar mais uma vítima seja você seja quem for eis a linguagem do poeta enquanto não entra pro mercado comercial do tráfico da prostituição do pixo você é só mais um turista um acadêmico talentoso enquanto não tiver desossado uma mulher branca em busca do que o corpo sabe da pintura do poema da fotografia você é apenas um analfabeto das ambiências espaciais realidades alternativas fantasias equestres do poema acaba por cair nos dicionários no latim na água elementar que corta a cidade sensação pop ícone de estilo arranca aplausos da plateia o mais falso elogio sem jamais ter pintado bigodes à Mona Lisa poesia mata em público não deixa nada morrer naturalmente acabado o ciclo das combinações possíveis Medeia volta a ressurgir num quarto totalmente escuro

mãos por todos os lados feito pênis rabo garfo pra pegar com a boca com a mesma facilidade à vontade com grande luxo ou nenhuma classe se você quiser comer sem deixar ou evitar nada num lance de amor & vício o osso a cor o orifício o cão o arroto o livro o palitar descarado do umbigo o que tem de mais fértil no interior do globo terrestre sem nome nem cicatrizes o que não se pode medir se você quiser passar a fronteira do que resta vir o ventre animal da vida a pele infame suja ínfima

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você mordido comido ali no silêncio & na sombra

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Ney Ferraz Piva (PA). Poeta e artista visual.

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ESPELHO MORTO Maura Lopes Cançado

Ando deveras muito preocupada com o que se passa ao meu redor. Não que tema morrer; em vez disso, sinto medo de me ver eternizada em bloco de pedra, ou mesmo continuar como estou: esperando, esperando, apenas esperando salvar-me dos rostos quadrados, fugir e encontrar pessoas com as quais possa falar, sem que minhas palavras se percam no vácuo, inúteis. Porque vivo sozinha num mundo cada vez mais estranho, fantástico, monstruoso. Não que as coisas tenham se modificado tanto. Desde menina este encarceramento me sufoca, minha coragem foi sempre formada do desejo de evasão, o desespero de fuga deu-me forças até hoje. Ignoro mesmo se existe um lugar onde se movam pessoas e esta dúvida pode ser a causa da crescente inquietação que me domina, pois ameaça ruir minha única esperança. Não: tudo se agravou mesmo depois da morte do espelho.

Volto ao quarto e me deito sob os cobertores, enquanto outra se veste rápida, precisa, para chegar na hora exata à primeira aula do Curso de Geologia. (Ocupamos as duas o mesmo quarto.) Antes de sair, faz ginástica. Conseguiu desenvolver de tal modo os músculos das pernas que, por várias vezes, julguei entrar um edifício inteiro pelo quarto, em sua construção exótica: pilares gigantescos sustentando pequeno tronco, enquanto a cabeça rodava, bola, distante e pequena como a cabeça de um alfinete. Após a ginástica arruma, sempre rápida, precisa, a metade do aposento que lhe pertence, jogando, debaixo e mesmo sobre minha cama, grandes pedras, por ela colhidas diariamente nas praias. Pedras personalíssimas, quase vivas, que já me tomam a metade do leito. Encolho-me sob os cobertores, as pedras ocupando sempre mais espaço, atiradas pela intrépida criatura: mecânicarápida-organizada. Gostaria de impedir que meu corpo se expusesse diariamente a estas pedradas. Não vejo solução, já que deitar-me sob os cobertores é a maior proteção por mim encontrada. Se abandonar o quarto, enfrentando olhares antropófagos nas ruas, corro o risco de, ao voltar, achar toda a cama tomada. E me sentiria impossível argumentar com as pedras, eu que sou destituída de qualquer senso de organização, mesmo iniciativa.

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Não que me ache conformada. Tentei protestar uma vez mas a estudante continuou, solene, limpando os móveis. Depois, sem pressa, meteu-me uma grande pedra na boca, deixando tranqüila o quarto. Mais tarde, escutei-a relinchando na sala para as outras, que eu cacarejo demais e não sei marchar. Não a compreendi. Ainda assim fui possuída de grande raiva, tomei de uma arma esquecida por uma delas na cadeira, tentei atingi-la nas costas. Não consegui e terminei amarrada em trouxa dentro de meu próprio cobertor, onde passei dois dias. Ao libertar-me, grunhiu qualquer coisa, como sentir pena dos meus compromissos. Que ignoro quais sejam.

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Não costumo sair de casa. Os dias são distantes, depressa, e quase nunca há sol. Habito um apartamento de andar térreo, um pouco escuro, ainda durante o dia, luxuoso e antigo, onde moram três outras criaturas. Ignoro porque moramos juntas. Conheço-as há pouco tempo. São mais ou menos parecidas com as que tenho visto, apesar de sabê-las mais perigosas - decerto pela proximidade. (Na verdade, gostaria de me mudar. Conheço, porém, a inutilidade das mudanças.) Falam demais, andam constantemente armadas, usam com ferocidade os dentes. Estão sempre gordas de razão. Esqueci-me de dizer que são mulheres, estas tremendas criaturas. Apesar deste detalhes, uma delas deixou crescer vasto bigode, que a tornou um pouco mais simpática, ocultando-lhe as presas, fortes, ameaçadoras. Ao levantar-me de manhã, para ir à cozinha fazer meu café, encontro-a, articulando a possante mandíbula, no trabalho pertinaz da primeira refeição. Cumprimento-a delicadamente, esforçando-me em parecer afável. Tenho por resposta o rosnar ameaçador de como se protege a caça. Nem sempre consigo tomar até o fim o meu café. A criatura rosna impaciente, às vezes uiva, dançando pela cozinha, dando-me a impressão de grande exagero na sua manifestação, creio, de alegria.

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Como já disse, evito sair à rua. Os edifícios me ameaçam, as mãos frias do vento me sufocam. Além dos olhares assassinos e da velocidade; pessoas enormes deslizam ruidosas pela cidade, conduzindo dentro delas outras pessoas. Posso vê-las quando arrisco meu olhar assombrado pelas janelas dos seus ventres. Não prefiro coisa alguma. No entanto, saio às vezes, principalmente à noite. Vem buscarme um ser que desconheço - embora venha buscar-me. Mostra-me os dentes, parece quase sempre irritado, joga-me porta a fora como se eu fosse um saco de abóboras. Costuma também relinchar, mostrando toda ferocidade nos dentes brancos. Nas ruas, busca proteger-me. Apesar de já me haver deixado sozinha, entregue às feras, habitantes de um certo subúrbio. Este ser talvez me quisesse dizer algo. Vejo-o luzente, vestido de alumínio, brilhando de noite à minha frente. Não seria sua maneira de rir? Indago-me se essa lata possui um coração. Além dele, visita-me, não se para quê, outra criatura, um pedaço de tronco fino de árvore. Sentado à minha frente, discorre longamente sobre pulgas, galinhas e percevejos. Depois do quê, sai sem se despedir, encolhido em sua própria casca, morena, rugosa. Ruas fervilham. Duelos se dão e todo instante. Mulheres se odeiam, beijando faces umas das outras. Muitas enxertam carne de vaca nas nádegas. Nem por isso perdem o jeito mau e duro de andar. Mostram as presas, se as olhamos dão constantes coices. Homens comem ávidos, o hálito podre provocando náusea. Mas é então que as fêmeas se agitam de todo, coiceam e relincham, movendo caudas e crinas. O asfalto queima. Encolho-me no apartamento, sofrendo a presença das três horrendas criaturas. Gostaria de viver sozinha, ou pelo menos possuir um quarto, onde não me atormentassem tanto. Móveis animados passeiam o dia todo pelo aposento. Ouço ruídos esquisitos. Tudo se tornou demais difícil depois do crime da futura geóloga, assassinando o espelho com uma pedrada. Considero esse crime a maior desgraça em minha vida, inútil, calada, vazia.

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Foi o espelho a única criatura humana que conheci. Desde a infância habituara-me a ele e não havia como temê-lo. Vê-lo diariamente, minha grande aventura. Contemplava-lhe a figura trêmula, hesitante, de olhos escuros, amáveis. O espelho possuía de medo o rosto branco. Tinha de medo o rosto. Aquele belo rosto quase sempre triste levou-me a admitir, em algum lugar, outros rostos, outras pessoas, outros medos, outras lágrimas. Esqueci-me de dizer que, se nenhuma dessas criaturas parece alegre, nenhuma também se mostrou ainda triste. É deveras sombrio. Existe em tudo grande ordem. Jamais vi alguém subir correndo uma escada, saltar dois ou mais degraus. Fazem-no um por um, meticulosos. Sou obrigada a seguir o que se estabeleceu ou desperto cólera. Começo a perder a noção do tempo. Acompanhando o crescimento do espelho acompanhei meu próprio crescimento. Vendo-o se transformar, tive consciência de minha infância perdida. Cada vez mais o espelho se tornava adulto, o que me obrigava a admitir-me também assim. Já não sei, mas talvez eu esteja quase velha. Tenho chorado muito. As caras de cimento armado acusam meu rosto molhado de deterioração. Mas é que tenho chorado. Diariamente tomo entre as mãos a caixa onde estão os restos mortais do meu amigo. E sofro. Sozinha, sem outro rosto, outra esperança, é-me impossível voltar a acreditar.

A PALAVRA MUITO ALÉM DA LOUCURA Célia Musilli

No fim da década de 1950, Maura Lopes Cançado, internada num hospício, escreve um diário. Durante cinco meses, de outubro de 1959 a março de 1960, dedica-se a relatar tudo o que acontece ao seu redor, misturando a dor da sua condição psicótica a descrições do ambiente lúgubre em que vivia: “O hospício é árido e atentamente acordado, em cada canto, olhos cor-de-rosa e frios, espiam sem piscar.” A referência aos olhos é uma alusão ao ambiente vigiado do Hospital Gustavo Riedel, no bairro do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, onde os portões eram trancados, os muros altos, todos cumpriam uma rotina rígida e as internas eram controladas por tratamentos que incluíam os eletrochoques, além de doses maciças de medicamentos. O diário, publicado pela primeira vez em 1965, pela José Olympio, recebeu um título curioso: “Hospício é Deus”. Ao escrevê-lo, Maura saltou o muro do manicômio e ganhou reconhecimento como autora. A imagem dos olhos – ou do olhar – trespassa o livro como símbolo da vigilância institucional e também do testemunho da autora. Ver e contar torna-se neste período sua principal atividade; ela transforma a escrita num estímulo cotidiano e, ao mesmo tempo, num instrumento de denúncia. A situação de ser vista e vigiada, assim como de olhar e relatar, articula-se com o título do seu segundo livro: “O Sofredor do Ver”, publicado em 1968, também pela José Olympio, e que só teve uma segunda publicação em 2011, pela Confraria dos Bibliófilos do Brasil, reunindo doze contos, sendo que alguns remetem a situações e personagens do manicômio. “Hospício é Deus”, seu livro mais conhecido, mostra a intensidade da sua escrita, aliando a angústia a um grande potencial literário. Trata-se da força expressiva de quem faz outra leitura do mundo, plasmada por uma percepção dilatada das coisas mas sem perder a lucidez, embora no diário faça uma auto-representação da louca, dando voz a si mesma e a suas companheiras de hospício. O livro é um documento de época que mostra o tratamento dispensado à loucura, uma situação trágica tendo em vista os tratamentos dolorosos e até desumanos. A autora faz uma crítica feroz ao sistema psiquiátrico em vigor no período de seus internamentos que foram muitos, já que passou a vida entrando e saindo de manicômios até falecer em 1993, aos 63 anos. O interessante nos seus livros é que não se trata apenas de “escrita de denúncia,” abordada em muitas pesquisas, mas da expressão de ideias num plano simbólico que se articula como uma espécie de “inconsciente da obra.” Maura utiliza muitas imagens e metáforas, recursos ainda mais presentes no livro de contos “O Sofredor do Ver”, que considero sua grande obra, com uma linguagem que se distancia dos lugares comuns. Não à toa o crítico Assis Brasil, um dos poucos - senão o único crítico renomado a analisar com mais profundidade seus contos - a considerava uma revelação literária dos anos 50/60. No prefácio ao livro “A Nova Literatura – O conto III”, ele elenca uma série de autores que considerava importantes, Maura está entre eles. Ainda assim, é pouco conhecida, pouco estudada, o número de teses e dissertações sobre sua obra é pequeno e a crítica praticamente a ignora. Comparo seus livros a caleidoscópios, repletos de imagens literárias que descobrimos girando de um lado a outro, sendo possíveis muitas leituras. Para fazer esta abordagem, o surrealismo torna-se um parâmetro interessante, não para classificar Maura como “autora surrealista”, mas para notar em sua escrita os traços surrealistas que em algumas pesquisas são identificados apenas de passagem, sem o aprofundamento ou uma explicação capaz de distinguir essa característica. Na sua obra encontrei o encantamento da linguagem surreal, aquela que tira faíscas das palavras, iluminando novos sentidos por aproximações inusitadas como nos títulos de seus livros: “Hospício é Deus” e “O Sofredor do

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A terceira criatura é tirana - e muito boa pessoa. Proibiu-me mover rápido a cabeça para os lados, temendo que o ar sinta-se demais agredido. Assim, ando pelo apartamento buscando ver sempre o que está à minha frente. Se me viro, faço-o com delicadeza. Esse cuidado me traz em constante tensão. É uma mulher pequena, rosto quadrado, cabelos duros de torre; vai sempre ao cabeleireiro. Costumo confundi-la com os objetos da casa.

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Maura às vezes é de tirar o fôlego. Um caminho é tomar sua escrita pela ótica da eficácia estética, porque não basta ser louco, como muitos apontam como sua característica relevante, tem que escrever bem, fazer literatura, e isso ela fez magistralmente. Sua obra às vezes requer um cruzamento com seus dados biográficos, onde se encontram alguns de seus motes de criação: ela transformava colegas de manicômio em personagens de contos, ficcionalizava suas histórias. Não dá para ignorar este aspecto de imbricamento, alguns de seus contos são melhor compreendidos a partir de seu diário porque há uma transposição de situações de uma obra realista para sua obra ficcional. No entanto, embora o estigma da loucura pese muito sobre Maura, sua obra ainda requer interpretações não sob um ponto de vista psicopatológico, mas literário. Há muito a se descobrir e dizer sobre ela. Uma autora versátil Maura Lopes Cançado escreveu em diversos gêneros, é autora de poemas, contos e também do diário que se caracteriza como “escrita de si.” Dividiu espaço com intelectuais como José Louzeiro, Carlos Heitor Cony, Assis Brasil e Ferreira Gullar ao publicar alguns de seus contos no “Suplemento Dominical do Jornal do Brasil” – SDJB – considerado um caderno literário de vanguarda entre os anos 50 e 60. Até por isso, em alguns momentos seu diário apresenta traços jornalísticos como a criação de manchetes para dar conta do cotidiano do hospício. Ela escreve em letras garrafais: “EXTRA! EXTRA! O CRIME DA GRAVATA NOVA!”, mostrando não só verve de repórter como uma boa dose de humor. Apesar do sofrimento, encontra-se em seus textos uma versão de humor negro, caro a alguns surrealistas. Ela também se valia da ligação que tinha com o Jornal do Brasil – onde publicava contos, mesmo estando internada – e da amizade com jornalistas como condição que lhe conferia prestígio, como autora era vista de outro modo no manicômio, gozava de um status e isso, às vezes, transparece como motivo de orgulho em seus textos. Foi através da condição de autora que adquiriu uma nova identidade, não sendo “apenas um prefixo no peito do uniforme” como descreve em “Hospício é Deus” os internos que formavam a massa da loucura. A literatura a colocava em outro plano, remetendo ao conceito de arte como “organização da experiência”, valorizado por críticos como o norte-americano I.A. Irving e Antonio Cândido. Em matéria de gêneros Maura é eclética, escreveu como quem mexe no dial de um rádio. Os amigos jornalistas frequentemente são citados no seu diário para formular críticas ou como motivo de orgulho por contar com pessoas consideradas influentes, dependendo do momento ou da circunstância, da cumplicidade ou da decepção. Quando a situação ficava difícil, ela chamava Reynaldo Jardim – editor do Suplemento Dominical e um dos primeiros a valorizar sua obra – ou queria falar com Ferreira Gullar, Alice Barroso e outros conhecidos para quem telefonava. Já o livro de contos que se encontra esgotado, pode ser considerado uma raridade que revela muito sobre Maura. Um dos seus contos mais conhecidos, “No quadrado de Joana”, traz uma personagem catatônica, cuja obsessão é andar em linha reta no pátio do hospício. Outro conto, “Introdução a Alda”, é dedicado a uma colega do manicômio cujo verdadeiro nome era Auda. Este o conto parece uma espécie de “bula” que os médicos deveriam conhecer para desvendar as emoções delicadas de uma psicótica, coisa difícil de acontecer no hospital em que Maura vivia. Já “Espiral Ascendente” traz uma experiência real: a autora ao encenar uma peça de teatro no papel de Ofélia – a personagem de Shakespeare - numa apresentação ao ar livre, tirou a roupa, postou-se no alto de uma pedra e ameaçou jogar-se de uma cachoeira, situação que bem lembra o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud que pretendia implodir os limites entre o real e o simbólico em busca de encenações autênticas e sem fronteiras que aproximassem arte e vida. Maura se deu a este “luxo” cênico, num momento tão complexo quanto arriscado que acabou transportando para a literatura. 70

A inclusão da loucura Na “História da Loucura”, Michel Foucault mostra que o estigma da doença tornou a insanidade um campo fechado que, ao longo dos séculos, fascinou e amedrontou muita gente. A loucura seria uma experiência próxima da morte, capaz de oferecer uma peculiar liberdade que também nos instiga, nos espreita e nos faz livres, justamente por transpor os limites da compreensão racional. Maura é um dos tantos exemplos de escritores, filósofos e poetas que tiveram suas obras atravessadas pela “noite da loucura”. Há estruturas e imagens nos seus textos que nos colocam diretamente diante dessa experiência, uma construção artística que oscila entre a racionalidade e seu transbordamento. Uma relação importante que se pode fazer a partir do título de seu diário “Hospício é Deus” é interpretá-lo, em seu teor provocativo, como um título que reúne dois grandes temas filosóficos: Deus e a loucura que nos proporcionam, à primeira vista, uma ideia de incompreensão e complexidade, um abismo que se abre diante da grandiosidade. Uma imensidão que não é só seu enigma como sua explicação. A simbologia na obra de Maura é muito forte, assim como o atrito das palavras, combustão que pode nos levar a uma abordagem surrealista. Fora isso há o aspecto da vigilância porque Maura era vigiada e, de certa forma, também vigiava o hospício, fazendo dele um tema constante. Comparo sua escrita à linguagem cinematográfica, sua experiência a um reality show, como se Maura ligasse no hospício uma câmera 24 horas, vendo e relatando tudo. Ela mesma diz muitas vezes que está inserida num contexto, num ambiente “que só o cinema seria capaz de mostrar”. Isso revela muito da sua obsessão pela linguagem perfeita, que capte a realidade em detalhes. Além disso, revela nos contos uma forma de olhar bastante original, o verbo “ver” permeia toda sua obra, tanto que escreveu um livro e um conto homônimo intitulados “O Sofredor do Ver”. Num trecho de “Hospício é Deus”, ela descreve a loucura fundida com a condição feminina: “Nós, mulheres despojadas, sem ontem nem amanhã, tão livres que nos despimos quando queremos. Ou rasgamos os vestidos (o que dá ainda um certo prazer). Ou mordemos. Ou cantamos, alto e reto, quando tudo parece tragado, perdido. [...] Nós, mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades - em excesso de liberdade”. Nos seus escritos, o “ser mulher” está próximo de uma região de loucura, onde é possível rir plenamente, existir sem tempo, ir em frente apesar da flagrante contradição de ser prisioneira, resistir livre, no prazer e na sensualidade, ainda que esteja apartada do mundo. Acredito que para Maura, a literatura é realmente a representação desta liberdade, o leimotiv que a fez manter-se viva. No diário, ela também cita o Dr. A, um psiquiatra negro que foi seu grande amor no hospício, assim como fala do pai – com quem manteve uma relação meio edipiana – do ex-marido, do ex-sogro, do filho Cesarion, mas os homens figuram mais como dados biográficos, pois ela mantém sua atenção sobre personagens femininas. Como mulher, se expressa de forma muito sensual no diário, era vaidosa, narcisista, maquiava-se bem, exibia as pernas, gostava de ser vista e admirada, colocando-se de “forma artística” no manicômio, a ponto de dançar no telhado. Mas a condição feminina estava introjetada nela sem que isso se relacione a uma busca de emancipação, era naturalmente independente e rebelde. Numa entrevista ao jornalista João da Penha, da revista Escrita, nos anos 70, Maura fala dos gêneros sem fazer diferença entre homens e mulheres, sem arroubos feministas. O que não deixa de ser um feminismo exemplar, uma igualdade já assimilada que nem sequer observa as diferenças. Nesta entrevista, ela diz que não se expressa como mulher, mas como ser humano. É importante ressaltar que Maura, além de autora, foi uma pessoa criativa que deu margem também a muita ficção em torno da sua vida, como no caso de um episódio comentado pelo jornalista e escritor José Louzeiro num artigo que relaciona a loucura de Maura a um incidente com um avião na juventude. Maura, quando jovem, fez curso para tirar o brevê e ganhou da mãe um avião Paulistinha, um luxo do qual podia usufruir porque era filha de um fazendeiro muito rico de Minas. Este incidente – o avião teve que fazer um pouso de emergência e causou alguns estragos numa cidadezinha do interior – chegou a ser visto como sintoma de loucura, de um surto, mas a própria Maura diz no diário que quem pilotava o avião naquele dia era um amigo, não ela, que era apenas passageira. Não é possível

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Ver”. Trata-se de literatura sofisticada, às vezes complexa ou quase inescrutável a ser lida com todos os sentidos, buscando na recepção uma pulsação que acompanhe sua criação.

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Acredito que a primeira obrigação de quem analisa a obra de um louco seja lhe devolver a palavra, o direito de se expressar com legitimidade. No caso de Maura há um documento que pode ajudar a fazer prevalecer sua palavra: o diário “Hospício é Deus”, considerado um relato lúcido. Devolver-lhe a palavra é o que venho tentando desde que encontrei o primeiro artigo sobre ela em 2009 e o desdobrei numa pesquisa que não abarca tudo o que se pode ainda dizer sobre sua obra. A loucura como a literatura são territórios sem fim.

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Célia Musilli é jornalista, poeta, cronista e mestre em Teoria e Crítica Literária pela Unicamp. Tem os seguintes livros publicados: Londrina Puxa o Fio da Memória ( Letra d’Água/ 2004); Sensível Desafio, poesia (Atrito Art/ 2006); Todas as Mulheres em Mim (Atrito Art e editora Kan/ 2010)

E O MUNDO NÃO SE ACABOU... Andréa Catrópa (seção de livro inédito de poemas)

a cabeça doce de sua mãe tem cabelos nas ventas e pensa em receitas saudáveis ou açucaradas e jamais resolve essa contradição complementar, é fato entre doce salgado, o que pode o que deve, o que quer ou não a cabeça de sua mãe doce pretende ser também saudável mas quando lhe ataca a dor de cabeça fica fraca doida obsessiva (assoma-se sua vontade Insubordinada) ela pensa em cristalizar-se na calda fumegante que borbulha no tacho como uma forma edulcorada de suicídio ela pensa em perseguir com sua colher de pau alguns meninos meninas malvadas promete anota em seu caderno secreto de receitas pensamentos fazer litros de cicuta amarga tornar-se doce mãe terrorista cozinheira que persegue escroques na falta de heróis que o façam ela fode e pare e nutre todo um berçário que crescerá em sua escola

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defender nenhuma versão sobre fatos de sua vida como verdade absoluta, porque a vida de Maura foi bastante fragmentada e há muitas informações desencontradas sobre ela. Mas é possível observar que é frequentemente alimentam-se fantasias em torno da vida dos loucos, a lenda é sempre mais fascinante que a realidade, mas tendo em vista seu próprio relato sobre o incidente com o avião, creio que se deva levar em conta também o que ela diz e não só o que dizem sobre ela, embora a Maura “escritora e louca” seja uma personagem e tanto. Pesava ainda sobre ela o fato de ser homicida porque matou uma colega de quarto numa clínica psiquiátrica, nos anos 70. No julgamento foi considerada inimputável porque teria praticado o crime durante um surto.

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deslocamentos

voem ) palavras não se domam com o sofrimento do corpo a insistência do gesto e os caminhos (onde abrimos linhas? no papel na tela na cabeça de quem desdobramos caprichosos os versos, não vê? ninguém vem, mademoiselles et monsieurs, ao menor espetáculo da terra) estamos batendo cabeças tu e eu, je et moi même, alucinada alteridade do espelho estamos rasgando o protocolo a superfície plácida da prata sangrando as grossas paredes da cela lá vem ela, a bailarina, seu último golpe o passo britadeira funde pontas pernas e chão é o último recurso a máquina do tempo que emergindo da página abre a porta para o espaço

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vamos pensar naqueles que nascem e mamãe tão louca de sol os chama de rio ou chuva pensar conceber aqueles que não sabem de édipo ou grécia porque não conhecem o pai a lei e o chão não se traduz no preço da passagem em tempo dividido pela velocidade eu penso agora nos meninos de olhos verde floresta flancos das montanhas e cifras são tetas bem cheias das vacas cascos miúdos das cabras o leite néctar supremo mamãe animal estranho disparou este coração em seu colo meus olhos viam as nuvens em seus braços primeiro precipício a luta entre o amor e a queda

Andréa Catrópa. Doutora em Teoria Literária na FFLCH-USP e sua pesquisa foi na área de crítica contemporânea. Foi uma das organizadoras da Antologia “Vacamarela 17 poetas brasileiros do XXI” (2007) e publicou o livro de poemas “Mergulho às avessas” (Lumme Editor, 2008).

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ser bailarina na página é tarefa que não acaba nunca muitos pensariam nas pegadas delicadas (outros em pés torturados – a crueldade do gesso, a necessidade de que ossos

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50 TESES SOBRE ESCRILEITURA

15. A Escrileitura se mantém apartada dos cânones explicativos e esclarecedores da leitura e da escrita científicas, impostos apenas aos anjos e aos mortos.

Sandra Mara Corazza

16. Age afirmativamente a Escrileitura que digere espumantes e sofre da emissão de ares; agem reativamente as leituras e escritas científicas, que totalizam um mundo referente, pacífico e ordenado.

LISTA DAS TESES Abaixo sucedem as 50 teses: 1. Práticas de Escrileitura, sem crer que um determinado tipo de leitura e de escrita, como o Científico, traz felicidade à humanidade. 2. Tão rara como a paixão amorosa, a Escrileitura é região pantanosa para o mito narcísico, egos equilibrados e associação à verdade. 3. A Escrileitura participa dos benefícios do próprio medo à autocatatonia complacente. 4. A Escrileitura tem muita cautela com a auto-depreciação. 5. Como a Escrileitura não é realizada nem por amor nem por ódio, não se queixa nem dá queixa; não recrimina nem insulta; não se idealiza, desvalorizando outras escritas e leituras. 6. As leituras e escritas diferentes da Escrileitura não são, por esta, julgadas como mais ou menos originais, adequadas ou produtivas; pois quem é que sabe se elas querem ser resgatadas da sua invalidade? 7. A Escrileitura não vive o drama do relacionamento impossível com a escrita e a leitura originárias perdidas. 8. Liberdade da angústia, nas relações da Escrileitura com os precursores.

18. A ciência da Escrileitura é só uma: a da criação críptica. 19. Preferindo hieróglifos, antes do que o logos, a Escrileitura extermina os atos de ler e de escrever moribundos. 20. Tanto mais interessante quanto menor for o dogma, a Inscrileitura só não é apupada pelos inducados da Inducação. 21. Sem abrigo natural, mobiliário confortável e decoração funcional, a Escrileitura habita o horror do desespero. 22. Possuindo duas faces, a Escrileitura as mantém voltadas para um nada de segurança. 23. A Escrileitura paralisa o gênio contemplativo. 24. Não parece ter sido provado, por argumentos racionais ou irracionais, que a Escrileitura tenha qualquer qualidade pela métrica ou pela estática. 25. Encontrando-se desprovida de função determinada, no contexto onde é lançada, de certeza da bemaventurança e de harmonia entre os seus elementos, a Escrileitura é carente e excluída. 26. Por não encarnar nem exemplificar; mas, antes, por traduzir ideias; nem por isso, a Escrileitura fica dispensada de pagá-las com a própria vida. 27. Desde que é da função que nasce o órgão, livre é a Escrileitura da literalidade. 28. A Escrileitura incursiona e experimenta novos territórios, ao reler a tradição e reescrever a bagagem. 29. Aqueles que ensinam a doutrina do texto científico não são os mesmos que exercem a lógica paradoxal ou da sensação. 30. Equivocam-se aqueles que tomam a Escrileitura enquanto comissionada. 31. Se é que pode ser dito algo a seu favor, a Escrileitura é dispendiosa. 32. A maior parte do povo está sendo ludibriada pela escrita e pela leitura, autodenominadas científicas; e que são baratas, como todas as promessas.

9. Citações, na Escrileitura, não são o resultado de melancolia mórbida.

33. A Escrileitura não aumenta o seu valor com o tilintar das moedas na bancada ou com a secreção da bile negra do prestígio científico.

10. Nenhuma necessidade de a Escrileitura atribuir autoridade ao texto ou à correlata identidade do sujeito que lê e escreve.

34. Diante do tirânico juízo científico sobre as suas partes abjetas, que a rebaixa ou liquida, não há indicativos de qualquer contrição ou arrependimento da Escrileitura.

11. Assunção, pela Escrileitura, dos riscos de ler e de escrever; da perdição na infinita multiplicidade dos sentidos e das línguas; do abismar-se no sem-sentido; do silenciar definitivo da morte.

35. Serão condenadas por toda a Eternidade, juntamente com seus Mestres e Juízes, aquelas leituras e escritas salvas para publicação pelos Pareceres de Indulgência Científica.

12. A graça da Escrileitura é destinar-se à falência interpretativa.

36. Os Pareceres de Indulgência remetem as escritas e leituras científicas à satisfação cristalina, ao perdão total e à salvação redentora.

13. Para manter sua energia e tensão vitais, à Escrileitura interessam: a bossa, o compasso, a escada, a balança, a ampulheta, o sino, o caco, o morcego, o arco-íris, o quadrado mágico, o putto, o aqueduto, o trampolim, o spiritus phantasticus. 76

17. Semeada pelos Ministros e Vigias da leitura e da escrita científicas, a cizânia com a Escrileitura é como a vida: baixa e alta, triste e alegre, cheia e vazia, espiritual e material, divina e infernal.

14. A Escrileitura possui uma natureza aérea, pneumática, plumária.

37. Qualquer Escrileitura padece de clivagem na estrutura, em decorrência da culpa pecaminosa, que lhe é atribuída pelos Pareceres de Indulgência Científica. 38. A misericórdia distribuída pelos Pareceres de Indulgência aguça a consciência da Escrileitura acerca

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Com um desejo ardente de trazer a verdade sobre a Escrileitura à luz, as 50 teses seguintes serão defendidas nas catedrais de WITTCAPESBERG, CHEPPENQUE e VANNPÉDY, sob a presidência da necromanceira Warhammera Warga de Wolwea y WHASANSA, Mestra Trolla das Artes, MestrA Orca da Sagrada Misosofia, MestrA Uruka dos Heroscapers e Professora doutora Goblina de Comunicação Oficial das mesmas. Ela solicita que todos os que não puderem estar presentes para com ela disputar verbalmente, façam-no por escrito. E BEM ESCRITO. In nomine domini nostri excelsi vocationem. Amém.

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da sua situação anômala, declarada e assumida de antropófaga.

AUTO RETRATO. TEMPO E MEMORIA

39. Até mesmo para os mais doutos leitores e escritores científicos é difícil exaltar, perante todo o povo, a liberalidade das indulgências, mesmo que argutas, dadas por seus Pareceres.

Giselda Leirner

40. A Escrileitura desdenha a distribuição das indulgências científicas; e, mesmo, as odeia, quando há ocasião para tanto.

41. As indulgências, que asseguram publicação qualificada, são pregadas, por todas as comissões e comitês científicos, para que o povo as julgue preferíveis à Escrileitura. 42. A aquisição de indulgências inviabiliza a equiparação da Escrileitura às leituras e escritas científicas. 43. Dando textos aos pobres ou emprestando-os aos necessitados de Espírito, a Escrileitura procede melhor do que se comercializasse indulgências científicas. 44. Através da Escrileitura, cresce o amor aos textos e eles se tornam potentes; com as indulgências, o texto queda prisioneiro da obrigação de escrever e de ler cientificamente ou refém dos Pareceres. 45. Quem despreza a Escrileitura, para lidar e gastar com indulgências científicas, obtém somente a ira do povo. 46. Se a Escrileitura não tiver ideias em abundância, conservará só as necessárias para o texto; e, de forma alguma, desperdiçará recursos com as indulgências científicas. 47. A Escrileitura não compra piedade e não aceita clemência científica; por isso, não perde o temor de escrever e ler. 48. Antes de a Escrileitura acatar os interesses e critérios dos Comissários de Indulgências, prefere reduzir a cinzas o seu texto, em vez de edificá-lo com pele, sangue, carne e ossos.

Quando o horror do absurdo se apodera de nós e a voz não sai Só o grito preso entre os dentes moles do esforço Tudo destruído de uma só vez As notas leves de tempos idos e carcomidos. Uma carcaça risonha e seca me espreita. Só Hendel, Mozart, Vivaldi Não me enganam mais. Hoje é hoje. Sempre o fim. A cada minuto o fim. O vazio absurdo, um grande buraco aberto no ventre do Mundo. Os esforços, rememorações Algo tem que brotar deste vazio, que não seja outro vazio

49. Vã é a confiança na purificação da Escrileitura, por meio dos Pareceres de Indulgência Científica; mesmo que aquela desse a sua alma como garantia. 50. São amigos da Escrileitura aqueles que, outrora e hoje, esculpem palavras, ideias, imagens e signos; são seus inimigos todos os Profetas das Indulgências Científicas e os com eles condescendentes; os quais sejam excomungados e amaldiçoados por todo o sempre.

Uma tentativa de organização. Onde nada se organiza. Na poesia na musica, uma tentativa at the still point of the turning world. La está a dança. Quisera conhecer a dança inteira, do seu começo ao fim, procurar o que ? Não consigo nem por um segundo desembaraçar o pensamento. Se me fosse dado um segundo apenas de clareza, de entendimento. Nada se explica. As palavras são tentativas. Tudo continua sem conhecimento. Não consigo nem intuir. Tudo me escapa, a não ser a sensação de perda e de perplexidade Por que? A única coisa que posso fazer é perguntar.

Oh, herege, para qual Escrita e leitura pendes? Olha a força da injusta tirania científica sobre o século; olha o desinteresse cruel pelo mundo artista; olha a incapacidade de amar o perigo; olha a inibição de toda atividade e sentimento de auto-desapego ; olha a força da claridade metódica sobre as coroas dos mártires intelectuais! Deixa, escrileitor, simplesmente, que leiam e se escrevam os teus textos! E a Porta do Inferno, o Trono da pesquisa e o Sistema universitário nada poderão contra ti!

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Sandra Mara Corazza. Professora da UFRGS

Leirner, Giselda (SP). Artista plástica e escritora. Expôs várias mostras individuais e coletivas, no Brasil e no exterior. É autora de “A Filha de Kafka” (Massao Ono, 1999 e Gallimard, 2005). “Nas Águas do Mesmo Rio” (Ateliê, 2005). “Naufrágios” (Editora 34, 2011)

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TODO O CÉU CONCENTRADO NO REFLEXO DE UM BALDE D’ÁGUA Cecilia Cavalieri

MATINÊ PERDIDA DE UMA EXPRESSÃO BONITA DO ODYR & DE UMA CANÇÃO LINDA DOS SMASHING PUMPKINS Fabiano Calixto

à direita um bezerro morre à esquerda o jatobá rebrota tudo sobra sobre o chão gramado que devolve banha como sabão & espuma para a água tudo volta: a mão, o pano, a lâmina [tão íntima da virilha e que agora cumpre seu ofício sobre o rosto marcado pelo infinito azul-pesado do céu] atrás está tudo à frente o medo laranja no horizonte e esplende em nossa silueta atlântica de nuca fresca e pele lisa e seca como o avesso de um balde

foi tudo tão passageiro como passos de pássaros no telhado como um f mal desenhado no caderno de caligrafia da terceira série você com seu vestido vermelho hálito de drops de menta perfumando tantas dúvidas e um sorrisinho modernista de nascença como um contrabando uma contradança eu, com meu tênis velho camiseta desbotada do ac/dc dois ou três carinhos de colibri um minuto de silêncio por minuto no peito uma lua cheia na carteira vazia foi tudo tão passageiro aquela canção do Frank Valli a soda com limão e gelo o bolo de brigadeiro a festa junina no nosso quarteirão os amigos que já não estão mais nem aí nem aqui o copo cheio de tônica e gim a coleção de gibi

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Cecilia Cavalieri​[São Paulo, 1984​] é artista visual radicada no Rio de Janeiro ​e mestre em processos artísticos contemporâneos pela UERJ. Participou de exposições no ​Rio de Janeiro,​Florianópolis, Brasília, Bergen e Berlim. Trabalha com fotografia, vídeo​e instalação em narrativas que investigam o corpo fragmentado, a natureza como vazio/falta, a experiência-limite da modernidade e a construção do sujeito por meio de seu apagamento​. Este poema compõe o livro “Corpo de Criança” [ainda sem editora, mas previsto para 2015].

foi tudo muito passageiro mesmo com cinquenta fichas a ligação sempre caía e chorávamos escondidos cheios de dor e uísque sob a concha do orelhão e a nossa oração era dois mil enigmas nos lábios de amianto de uma esfinge

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e nele eu mergulho o pano de espremer sobre seus cabelos e aparo com tesoura cega os centímetros mortos de dias tão felizes

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O APARTAMENTO DO OITAVO ANDAR SEM VOCÊ

na pista esperávamos as lentinhas para poder alimentar o amor que morava na gente como um cão sob a marquise mora no rosto da chuva o primeiro beijo veio a navio o coração disparado o calor suando frio foi bonito, foi tudo muito bonito (na verdade, foi bonito pra caralho) e passageiro como Sessão da Tarde e pipocas bolinhos de chuva e catapora como os sapos que a tempestade traz para ninar o nosso naufrágio tudo muito passageiro, sim mas nunca frágil continuamos lendo nossa saudade em cada lenda e fomos cada qual por sua trilha nós todos, tombados pelo patrimônio histórico das coisas do coração hoje vemos a areia da vida surfar no abismo de uma ampulheta que vai daqui até as estrelas

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você sempre esteve aqui olhando a noite por esta janela cantando baixinho “Ol’55” aquela canção que fazia você lacrimejar e, minhas mãos nas suas, mesmo com meu astigmatismo que transformava toda a luminária noturna num só borrão azul e azul, jamais precisei de um telescópio para observar o cosmo que, nestas noites inesquecíveis, morava em seus olhos (só as estrelas podem virar as costas para a morte, você dizia enquanto o súbito tumulto de um abraço apertado nos acalmava) faz tanto tempo já agora olho, com a alma perdida nalgum posto de gasolina abandonado, essas nuvens lá longe com seu nostálgico rubor de amantes guardados em milhares de fotografias num compact disc que em breve nenhuma máquina mais abrirá e seremos, como a carne que um dia nos cobriu os ossos, levados pelo silencioso trem de carga do esquecimento

Fabiano Calixto nasceu em Garanhuns (PE), em 1973. É doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, USP. Publicou Algum (edição do autor, 1998), Fábrica Alpharrabio Edições, 2000), Um mundo só para cada par (Alpharrabio Edições, 2001), Música possível (CosacNaify/7Letras, 2006), Sangüínea (Editora 34, 2007), A canção do vendedor de pipocas (7Letras, 2013), Para ninar o nosso naufrágio (Corsário-Satã, 2013), Equatorial (Tintada-China, 2014) e Nominata morfina (Córrego/Corsário-Satã/Pitomba, 2014). Os poemas aqui publicados fazem parte de Fliperama, seu livro de poemas em preparo.

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a matinê perdida domingo tecnicolor deitando sol em nossos sonhos (o velho domingo e sua gravata florida agora, apenas uma orelha de livro, uma ferida mertiolatada)

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Luciana Brandão Carreira. Maria Gabriela Llansol testemunhou no dia 02 de outubro de 1981, num dos seus vários diários: “Não há Literatura. Quando se escreve só importa saber em que real se entra, e se há técnica adequada para abrir caminho a outros” (Llansol, 2011a, p.52). Ao se referir sobre o próprio estilo, ela também escreveu no dia 30 de maio de 1979: “Destituo-me da literatura, e passo para a margem da língua (...) tal é a árvore genealógica da literatura portuguesa (...) vivo para escrever e ouvir e, hoje, fui um dos primeiros leitores de Na casa de Julho e Agosto; tão profundamente me sensibilizou o texto que, depois de me ter esquecido o que ia dizer, ou seja, escrever a seguir, me sentei no banco verde do jardim, junto de Prunus Triloba, a reflectir que me devia perder da literatura para contar de que maneira atravessei a língua, desejando salvar-me através dela” (Llansol, 2011a, p.12). Transpor os limites da linguagem significa engendrar o ilimitado pelas bordas do discurso, insinua Maria Gabriela. Essa modalidade de texto, que aponta ao lugar vazio da morte enquanto abismo da significação, indica o topos de onde uma genuína invenção pode surgir, através da criação de uma nova retórica. Quando é preciso dizer mas não se tem meios para fazê-lo, forja-se essa novidade, capaz de modificar o corpus social por meio de sua potência poética. Assim, novos significantes são criados e estilos inovadores reconhecidos, tanto quanto gêneros literários são rompidos e limites discursivos ampliados. Textos concebidos frente ao vazio da produtividade correspondem ao que se admite no discurso literário como Escrita Feminina1, mesmo quando o sujeito da enunciação é um homem. Uma escrita de Gozo, diria Barthes. Ao meu ver, textos que dizem respeito ao que Jacques Lacan apontou em sua lição sobre Lituraterra, em seu Seminário 18 (1971) - De um discurso que não fosse do Semblante. Trata-se de uma escrita que advém a partir de uma posição discursiva aberta ao feminino, ao Gozo feminino. Uma abertura para a transgressão, tentativa de se ir além dos limites da língua, do corpo e da narrativa. Numa trilha além do prazer, além do princípio do prazer. Esse “a mais” que diz respeito ao “além” do gozo feminino é circunscrito pelos limites da linguagem, indicando a existência de uma modalidade textual que se produz nas bordas do discurso, mas não fora dele. Por isso podemos articulá-los como textos-limite, caracterizando uma literatura de borda, escritos que tangenciam um litoral e margeiam o gozo: Lituraterras. Ou, como testemunha Llansol, textos concebidos na margem da língua. Uma textualidade que se dirige ao que Barthes nomeou como Escritura, num além em relação à Literatura. Roland Barthes, em seu ensaio O prazer do texto [1973], assinala que o texto é um corpo erótico. Ele também afirma que os ritmos literários correspondem aos ritmos corporais, que advêm a partir do trabalho realizado com a linguagem, cuja matéria prima é a palavra poética colocada em ato. O ritmo de determinados textos deriva desse compasso (ou desse pulso) corpóreo, reconhecido na leitura, na alternância ocorrida entre tempos de pausa e suspensão e os momentos em que a experiência de ler se faz veloz e desenfreada.

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As entonações e o timbre musical também refletem a nostalgia de um momento mítico, desde sempre perdido, em que os prazeres se fariam sentir de maneira irrestrita e ilimitada, a partir do gozo com o primeiro amor, a mãe. Quando o sopro da voz materna é murmúrio na pele do bebê, a linguagem de Eros se faz repercutir na sensualidade do toque entre os corpos. Para Barthes ([1973]1997) o texto é também o lugar dos ritmos respiratórios, onde “a pulsão inscreve a sua pulsação, mimetizando eroticamente os movimentos criadores de um outro corpo erótico, nascido desse sopro do desejo”

(Brandão, 1995b, p.57). A sensualidade investida no texto pode ser sentida nas palavras de Barthes quando ele descreve a relação amorosa, portanto erótica, entre o escritor e seu leitor. E ainda, entre o escritor e o seu próprio texto. E mais, entre o texto e o seu escritor. Ele chega a propor a ideia de que existe um desejo da própria escrita, uma vez que o escritor vive sob a exigência da obra. Ainda em seu livro O prazer do texto ([1973]1997), ele nos apresenta essa ideia de que o texto deve dar provas ao escritor (bem como ao leitor) de que ele (o texto) é o desejante da escrita. Somente assim se atinge o que ele chama de Escritura, uma vez que nem todos os textos provocam prazer. Alguns, por ele chamados de textos de gozo, provocam inquietação, “o texto que o senhor escreve tem de me dar prova de que ele me deseja. Essa prova existe: é a Escritura. A Escritura é isso: a ciência das fruições da linguagem, seu kamasutra (desta ciência, só há um tratado: a própria escritura)” (Barthes, 1973, p.11). O que é a Escritura para Barthes? Numa resposta curta e direta: a escritura é o kama-sutra da linguagem. Para ele, “a linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo. A emoção de um duplo contato: de um lado, toda uma atividade do discurso vem, discretamente, indiretamente, colocar em evidência um significado único que é “eu te desejo”, e liberá-lo, alimentá-lo, ramificá-lo, fazê-lo explodir (a linguagem goza de se fazer tocar a si mesma); por outro lado, envolvo o outro nas minhas palavras, eu o acaricio, o roço, prolongo esse roçar, me esforço em fazer durar o comentário ao qual submeto a relação” (Barthes, 1997, p. 64). Barthes se posiciona de um modo novo em face à crítica literária de sua época, ao propor que um texto nem sempre é lugar de prazer. Para além dos textos confortáveis e idílicos, há essa Outra escrita, que aponta, ao contrário, a um lugar de desconforto, próprio ao gozo que se vive na experiência do unheimlich. Textos assim se erguem numa íntima relação com a morte, com a morte enquanto ruptura. Por isso costumam ser vertiginosos. Eles demandam uma posição diferente de seus leitores (portanto, de seus críticos). Inicialmente dragados pelo turbilhão que tais textos suscitam, há todo um trabalho necessário de descolamento e separação por parte do leitor, que advém muitas vezes somente depois que ele é levado pelo texto a escrever. É preciso que ele suporte um tempo de simbiose amorosa e mimetismo com o objeto amado – o texto, que também é objeto de desejo – para que, no desenlace dessa paixão, a crítica se faça com alguma verdade. Barthes se refere a essa experiência com tal rigor que considera impossível proceder a uma leitura/escrita “de fora” do texto. É preciso escrever/ler “de dentro” do texto; nele, em seu interior, confundido com o escritor que inicialmente o concebeu. Talvez por isso a crítica tradicional muitas vezes os considerem textos herméticos, inanalisáveis e sem lugar... “o escritor de prazer (e seu leitor) aceita a letra; renunciando ao gozo, tem o direito e o poder de dizê-la: a letra é o seu prazer; está obsedado por ela, como estão todos aqueles que amam a linguagem (não a fala), todos os logófilos, escritores, epistológrafos, linguistas; dos textos de prazer é possível portanto falar [...] a crítica versa sempre sobre os textos de prazer, jamais sobre os textos de gozo [...]. Com o escritor de gozo (e seu leitor) começa o texto insustentável, o texto impossível. Este texto está fora-de-prazer, fora-da-crítica, a não ser que seja atingido por um outro texto de gozo: não se pode falar ’sobre’ um texto assim, só se pode falar ‘em’ ele, à sua maneira, só se pode entrar num plágio desvairado, afirmar histericamente o vazio do gozo ( e não mais repetir a letra do prazer)” (Barthes, 1973, p.31-32). Assim como que para Barthes existem duas modalidades textuais − quais sejam, textos de gozo e textos de prazer −, para Lacan existem duas modalidades de amor. Uma dessas modalidades corresponde ao amor no senso comum, entendido como uma relação de proporcionalidade entre os amantes, que, exemplarmente encenado pelo amor cortês, faz barreira ao inconsciente e suplência à inexistência da relação sexual. O laço entre o leitor e os textos de prazer poderia ser pensado nessa perspectiva. Tal modalidade de amor é uma expressão subjetiva do gozo fálico, que visa à obtenção de sentido tributária da miragem complementar da unidade, indicada, desde Freud, quando ele discorre sobre o narcisismo, pois a unidade do ego abrange essa ilusão de completude com o Outro. No amor

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E O SEXO E A ESCRITA NÃO SERIAM OS DOIS NOMES DA MESMA AÇÃO?: O QUE MARIA GABRIELA LLANSOL NOS ENSINA SOBRE O CORPO PULSIONAL.

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No contraponto desse laço amoroso há outra modalidade de amar, que se aproxima da dimensão do que Lacan nomeou como gozo feminino ou gozo suplementar, que não tem reciprocidade ou proporcionalidade. Ao invés de conferir sentido e encobrir a falta, esse amor, ao contrário disso, faz furo no sentido e desvela a falta imaginariamente encoberta. Os textos de gozo provocariam como efeito esse tipo de enlace. Trata-se de uma experiência que se deixa sentir na fruição de um gozo que afeta o corpo: um gozo para além do falo, conforme Lacan salienta na lição do dia 20 de fevereiro de 1973, no Seminário Encore2 ao esclarecer o estatuto de ð femme. Uma vez que A mulher não existe – pois sobre esse A é preciso fazer incidir a barra do recalque, o que se experimenta desse gozo se torna possível justamente porque algo dele se falicizou, e porque há sempre um resto do gozo que não se deixa apreender3. O árduo trabalho com a linguagem efetuado pelo escritor, frente a essa voragem de um gozo desmedido, provoca consequências. Barthes refere-se a ele como um processo que leva à extenuação, em que “por fim, o texto pode, se tiver gana, investir contra as estruturas canônicas da própria língua (Sollers): o léxico (neologismos exuberantes, palavrasgavetas, transliterações), a sintaxe (acaba a célula lógica, acaba a frase). Trata-se, por transmutação (e não mais somente por transformação), de fazer surgir um novo estado filosofal da matéria linguageira; esse estado inaudito, esse metal incandescente, fora da origem e fora da comunicação, é então coisa de linguagem e não uma linguagem, fosse esta desligada, imitada, ironizada” (Barthes, [1973] 1997, p.42-3). Essa extenuação levaria ao grão da voz? Pensamos que sim. Ainda com Barthes em O prazer do texto: “se fosse possível imaginar uma estética do prazer textual cumpriria incluir nela: a escritura em voz alta. Esta escritura vocal (que não é absolutamente a fala), não é praticada, mas é sem dúvida ela que Artaud recomendava e Sollers pede. Falemos dela como se ela existisse. Na antiguidade, a retórica compreendia uma parte olvidada, censurada pelos comentadores clássicos: a actio, conjunto de receitas próprias para permitirem a exteriorização corporal do discurso: tratava-se de um teatro de expressão, orador-comediante ’exprimia’ sua indignação, sua compaixão, etc. A escritura em voz alta não é expressiva; deixa a expressão ao fenotexto, ao código regular da comunicação; por seu lado ela pertence ao genotexto, à significância; é transportada, não pelas inflexões dramáticas, pelas entonações maliciosas, os acentos complacentes, mas pelo grão da voz, que é um misto erótico de timbre e linguagem, e pode portanto ser por sua vez, tal como a dicção, matéria de uma arte: a arte de conduzir o próprio corpo (daí a sua importância nos teatros extremo-orientais). Com respeito aos sons da língua, a escritura em voz alta não é fonológica, mas fonética; seu objetivo não é a clareza das mensagens, o teatro das emoções; o que ela procura (numa perspectiva de gozo), são os incidentes pulsionais, a linguagem atapetada da pele, um texto onde se possa ouvir o grão da garganta, a pátina das consoantes, a voluptuosidade das vogais, toda uma estereofonia da carne profunda: a articulação do corpo, da língua, não a do sentido, da linguagem” (Barthes, [1973]1997, p. 85-86. Os grifos são meus). A escrita em voz alta, diz Barthes, condensa eroticamente o timbre e a linguagem. Podemos ler essa escrita por ele proposta de mãos dadas com Lacan, uma vez que é do lado do que há de mais real na linguagem que Lacan situa a escrita. O grão em pauta corresponderia a esse irredutível, entre heterogêneos? Um grão-letra, que litura a terra. Ao mesmo tempo em que conserva o que há de mais real na fala (o timbre da voz) ele faz litoral com o fenotexto, com a linguagem que se abre ao universo de todas as representações. Um misto erótico, entre saber e gozo. Em Lituraterra Lacan assinala que a letra demarca o litoral entre heterogêneos, não sem indicar a possibilidade de um atravessamento nesse ponto limite entre o real e o simbólico. Heteróclitos, saber e gozo não se misturam, mas coexistem. 86

O corpo erógeno é um espaço que somente existe quando circunscrito por um bordejamento, para que assim a pele – enquanto tecido de linguagem – possa vestir a carne da qual também somos

feitos. Podemos dizer que essa pele/borda coloca em relação o ‘dentro’ e o ‘fora’ que nos liga ao mundo, moebianamente, conectando a linguagem que igualmente nos constitui à realidade ‘interna/ externa’ sem a qual não existimos – fato que nos possibilita investir numa vida em relação com os outros, por via dos laços amorosos passíveis de serem feitos. Desde Freud nos foi dito que o ato de escrever coloca em evidência a dimensão sexual da escrita, enquanto ato sexual, que apenas se realiza porque implica o corpo do Outro – do Outro com ‘O’ maiúsculo. Nesses termos, o ato de escrever equivale ao ato de fazer amor com a palavra e o seu limite – com a palavra em seu limite ... “logo que o escrever, que faz com que um líquido flua de um tubo para um pedaço de papel branco, assume o significado de copulação, ou logo que o andar se torna um substituto simbólico do pisotear o corpo da mãe terra, tanto o escrever como andar são paralisados porque representam a realização de um ato sexual proibido” (Freud, [1926]1976, p. 110). Marcada pela impossibilidade, a escrita que pisoteia a página branca no momento original em que um texto é concebido é marcada por uma impossibilidade. Afinal, como asseverou Lacan, “tudo o que é escrito parte do fato de que será sempre impossível escrever como tal a relação sexual” (Lacan, 1972-1973, 1985, p. 49). Roland Barthes (1953) certa vez declarou que o ato de escrever é um ato erótico forte, cujo principal efeito, oriundo da escritura, é a fadiga amorosa de quem precisa insistir, sempre e reiteradamente, em escrever. Por isso, também para Barthes, escrever é uma necessidade inconciliável. Por qual motivo? Porque a cada vez é necessário relançar o desejo, pois a repetição, conseqüente dessa insistência, deriva da pulsão de morte, atestando a existência de algo inassimilável, vindo do real. Dito tudo isso, voltemos mais uma vez aos diários de Maria Gabriela Llansol, escritora que privilegiadamente indica as relações entre corpo erógeno e escritura. Quando os escrevia, dizia que os seus livros eram “atravessados por uma corrente erótica fortíssima (...) por uma corrente libidinal”, o que a levou a se referir ao ato de leitura como o seu “sexo de ler” (Llansol, 2011d, p. 57). Tal como Freud, a escritora equipara o ato sexual ao ato de escrever, ponderação claramente verbalizada na anotação redigida num de seus diários: “E o sexo e a escrita não seriam os dois nomes da mesma ação? (Llansol, 2011b, p.19). Indagada a respeito dos motivos pelos quais era levada a escrever, certa vez respondeu: “Por que escrevo? Escrevo para testemunhar o que os meus olhos expectantes veem, a minha escrita é isso, o meu sopro” (idem, p.48). E no limiar da palavra, mais uma vez Maria Gabriela Llansol e a primazia da voz escrita, em textos de gozo e insistência: “a voz não está fora do texto. A voz não está dentro nem fora do texto... ao mesmo tempo é uma voz extremamente corpórea, é muito objetal essa voz. E, quando ela fala, ela provém de um corpo real que sabe perfeitamente qual é a sua experiência, o que viveu... digamos que ela traz as marcas de sua própria existência...” (Llansol, 2011d, p. 49-50).

Poeta, escritora, ensaísta, psicanalista e psiquiatra. Autora dos livros ENTRE (Editora Verve, 2014) e OS TEMPOS DA ESCRITA NA OBRA DE CLARICE LISPECTOR – no litoral entre a literatura e a psicanálise (Editora Cia de Freud, 2014).

1 O termo Escrita Feminina foi cunhado pela psicanalista e ensaísta Lucia Castello Branco. 2 Na versão francesa do seminário Encore (Lacan, 1999) encontramos tais desdobramentos especialmente entre as páginas 92 e 98. Em sua tradução para o português, com o titulo Mais, ainda (Lacan, 1985), entre as páginas 97 e 104. 3 Quando Lacan propõe que Deus é La femme ( A Mulher, que não existe), ele assim o faz acentuando que A mulher está do lado do ser, comparecendo como gozo do Outro. Com a barra do recalque colocada sobre esse ð (ð femme), indica-se a divisão de uma mulher entre dois gozos: o gozo fálico e o gozo feminino. O gozo fálico limita o gozo do Outro, o que possibilita que este último seja, após uma torção, vivenciado como gozo feminino.

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fusional, trata-se, então, de um laço que busca a complementaridade entre o amante e o amado, obturando imaginariamente a falta, através da ilusão narcísica de reciprocidade.

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ARREBENTAÇÃO

Milton Meira

Mauricio Chamarelli Gutierrez

Risco pontos de fuga. O espelho é uma ilha de olhos cravados no tempo de cada imagem construída em silêncio, água e orvalho se fartando em rugas onde cada página escrita tem a seiva de um texto inacabado que vai acirrando imagens de um rastro de rio em constante movimento. Ponto de fuga, espelho Ilha de olhos, póstumo pó após o sono Água e orvalho em um fundo branco Cravado em sombras!... Silêncio e fuga, rugas Rima lavrada em um rastro de páginas Rastro de um rio acirrando imagens do imaginário. Nesse rastro de sombras cravadas no tempo a imagem também é projetada através do silêncio no momento que se olha de novo aquele fundo branco atrás do espelho depois de muitos atalhos percorridos na construção da fuga onde a percepção do in-finito está diante dos olhos. Pontos de fuga, espelhos... Ilhas de olhos, atalhos atravessados no tempo Água e orvalho em um fundo branco Cravado em sombras! No silencio a fuga, rimas Lavradas em um rastro de páginas Rastro de um rio acirrando imagens em silêncio.

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Milton Meira (PA). Poeta e arquiteto.

lembro daquela vez esse caminho em que por três ou quatro vezes você me cutucava pra mostrar a Lagoa da Conceição e eu só tarde demais virava o rosto pra ver a sua cara de quem achava inconcebível eu não ter visto aquelas águas que relampejavam por entre casa e árvores acho que eu ando distraído meio bêbado pensando em outra lagoa você vai dizer era preciso muito esforço pra não ver aquela beleza na noite em que você me cutucava bêbado pensando que o que é bonito às vezes é melhor deixar invisível e que bonito é não ter visto a lagoa calma como um espelho quebrado entre árvore e casas agora eu vi agora eu vi – eu disse como uma criança de cinco ou seis anos animada por descobrir uma coisa quando você já tinha deixado pra lá, claro pensando talvez naquele mar iluminado pela lua coroando a trilha com medo de cobras (depois viria aquela notícia cortando a gente ao meio pois é, aqui se morre e é sempre sem porquê como eu achando que podia morrer na quebradeira do mar ou na trilha com medo de cobras então era isso o que a gente ia ver na praia um vasto cemitério vivo vai e vem de almas penadas agora eu vi, agora eu vi

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RUA DE ATALHOS

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Mauricio Chamarelli Gutierrez nasceu no Rio de Janeiro em 1984, escreveu Corpo Tênue (2006) e Largo (2010). Mora hoje em Florianópolis. O trecho acima faz parte da série Paisagem do Desterro.

MINEIROS John Berger

Tradução: Susana Guerra e Eduardo Pellejero

Quando se derrota uma causa justa, quando se humilham os valentes, quando homens colocados à prova no fundo das minas são tratados como lixo, quando se cagam sobre o nobre e os juízes na corte acreditam mentiras e aos caluniadores se lhes paga por caluniar com salários que poderiam manter as famílias de uma dúzia de mineiros em greve, quando os policiais gorilas, com os seus bastões ensanguentados, se encontram, não no banco dos acusados, mas na lista das condecorações, quando se desonra o nosso passado e se desprezam as suas promessas e sacrifícios com sorrisos de ignorância e maldade, quando famílias inteiras chegam a suspeitar que aqueles que exercem o poder são surdos à razão e a toda suplica e que não há forma de apelar em parte nenhuma, quando pouco a pouco compreendes que apesar das palavras que possa haver no dicionário, apesar do que diga a rainha ou informem os correspondentes parlamentares, apesar da maneira na qual o sistema se autodenomine para mascarar a sua desvergonha e egoísmo, quando pouco a pouco compreendes que Eles se propuseram quebrar-te, se propuseram quebrar a tua herança, tuas destrezas, tuas comunidades, tua poesia, teus círculos, teu lar e, no possível, também os teus ossos, quando finalmente a gente compreende isso, também pode ouvir, soando dentro da sua cabeça, a hora dos assassinatos, da vingança justificada. Nos últimos anos, durante noites sem dormir, em Escócia e Gales do Sul, em Derbyshire e Kent, em Yorkshire, Northumberland e Lancashire, muitos ouviram, estou seguro, deitados reflexivos nas suas camas, a chegada dessa hora. E nada poderia ser mais humano, mais terno, que uma visão assim: os imisericordiosos executados sumariamente pelos misericordiosos. A palavra ternura é a que nos é entranhável e a que Eles nunca podem entender, porque não conhecem o seu significado. Essa visão está surgindo em todo o mundo. Os heróis vingadores agora são imaginados e esperados. Já são temidos pelos imisericordiosos e benditos por mim e quiçá também por ti. Eu faria todo o possível para proteger esse herói. Porém, se durante o tempo que estivesse dando-lhe refúgio me dissesse que gostava de desenhar, ou, supondo que fosse uma mulher, me dissesse que sempre quis pintar, mas nunca teve oportunidade ou tempo para fazê-lo, se isso acontecesse, acho que lhe diria: Olha, se queres, é possível que possas conseguir de outra maneira o que te propões, uma maneira com menos repercussões nos teus camaradas e que se preste menos à confusão. Não posso dizer-te o que faz a arte nem como o faz, mas sei que a arte algumas vezes julgou os juízes, exortou os inocentes à vingança e mostrou ao futuro o sofrimento do passado para que não fosse esquecido. Sei também que quando a arte faz isso, qualquer que seja a sua forma, os poderosos a temem, e que entre o povo e essa arte corre por vezes um rumor e uma lenda porque dá sentido àquilo que não podem dar as brutalidades da vida, um sentido que nos une, porque, no fundo, é inseparável de um ato de justiça. Quando funciona assim, a arte converte-se no lugar de encontro do invisível, do irredutível, do perdurável, da coragem e da honra.

John Berger (1926, Highams Park, Londres) é um crítico de arte, romancista, pintor e escritor inglês.

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a tempestade vindo a cavalo uma pequena luz na ilha do campeche outra que devia ser um barco de pesca marte no céu ou um avião e aquele escuro imenso batendo batendo batendo agora eu vi que se enganou aquele povo há um só deus de mar e mundo morto e um só mundo escuro e morto onde rebenta todo osso todo esforço onde se dobra o mundo em fundo morto odor de alga morta um leito só de cascos frios e todo antepassado todo insepulto todo querido todo rebento todo não nascido e agora eu vi que aquilo lá era a Joaquina e o morro que separa o Pântano da Armação nem tão longe assim e aquele escuro imenso quebrando a gente ao meio sem dar notícia então era isso o que eu não queria ver escondendo os olhos por detrás de casa e árvores perdido entre notícias de outro mar como se não ver atrasasse um pouco não mais poder ver como se o mar fosse não vê-lo o pacto silencioso de não vê-lo repetindo agora eu vi agora eu vi agora eu vi até que não).

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QUARTA-FEIRA

TÍTULOS SALVOS NAS NUVENS

Leonardo Gandolfi

Luiz Guilherme Barbosa

para António Lobo Antunes

Querido querido, este este é é o o lado lado ruim ruim do do meu meu amor amor. O o tempo tempo desaparece desaparece. Ou ou fica fica resumido resumido a a um um ponto ponto onde onde todos todos os os outros outros pontos pontos, antes antes dispostos dispostos horizoltamente horizontalmente, acumulam-se acumulam-se indiferenciados indiferenciados. Preciso preciso saber saber de de tudo tudo. Não não preciso preciso saber saber de de tudo tudo. Fazer fazer da da memória memória uma uma agulha agulha e e do do seu seu passado passado um um furo furo. Ou ou quem quem sabe sabe, o o contrário contrário. O o lado lado ruim ruim do do meu meu amor amor. Aliás aliás previno previno que que isto isto não não é é agenda agenda nem nem diário diário, é é apenas apenas uma uma nova nova versão versão, a a mais mais recente recente, do do jogo jogo de de sete sete erros erros que que dedicarei dedicarei a a Ricardo Piglia e e à à teoria teoria do do iceberg iceberg de de Hemmingway.

Há, senão nas nuvens, nas outras palavras as palavras que faltam. Que falte a próxima obra (o próximo romance, o próximo poema, que nome tenha), é o que se chama tempo. Ou quando. Que falte a próxima frase, que se chame murmúrio. E se chama silêncio, dizem, não faltar palavras. Ou seja, quando. Leitor apaixonado de António Lobo Antunes dificilmente passa do título dos seus livros. A hipnose sintática que há neles os faz obra além da obra. E a série de livros a cada ano ou dois os torna performance além de romances. Eu, que dificilmente passo do título dos seus livros, anoto sugestões para os próximos, e aguardo. Na desesperança de quem jamais previu exato o título, espero errar em público. Sou leitor. Este que ama o destino das letras, desde o esforço contra o trocadilho (que chamam de fala) até a desconfiança quanto ao canto delas, o leitor. Como tal, leio, no título que vem, uma obra. Nomes de livros que não se escreveram. Não houvesse um livro não escrito sob cada título, não haveria obra.

Dissertação sobre a insônia Não pises nas águas desses rios História natural Até quando o mar não vem 92

Leonardo Gandolfi, 1981, é autor de No entanto d’água (7letras, 2006) e A morte de Tony Bennett (lumme editor, 2010).

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Onde tocar quando o corpo apaga

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A outra morte de Roberto Carlos

Fervem os braços da piedade

Que fazer do amigo na enseada

De tudo ao meu amor antes Mel de marimbondos

Pouco soubemos aonde ir

Cartilha dos navegantes Na praça com os gatos da Abissínia

Congresso internacional do medo

Quando os orangotangos choram De cancro e miragem

Amar só está quando quer

O beijo se faz sem mar Lamento dos papéis

Não lê quem Aliás são desvalidos

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Não falarei de lêmures Diáspora das chuvas Quem esteve nu ao longo dos dias A lua vem da Ásia 94

Luiz Guilherme Barbosa é crítico literário e professor do Colégio Pedro II. Cursa o doutorado em Teoria Literária na UFRJ.

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A ESCRITA E A MEMÓRIA Marcelo Jacques de Moraes

Quando lemos um romance de Marguerite Duras, sobretudo aqueles, que não são poucos, em que ela encena de maneira mais ou menos explícita elementos de seu passado – a infância e a adolescência na Indochina, a experiência da guerra, o alcoolismo, as relações amorosas –, é difícil evitar a especulação sobre as relações entre vida e obra, entre biografia e romance. Tanto mais difícil na medida em que a própria escritora sempre se referiu ao seu processo de criação numa perspectiva que associa necessariamente a escrita a uma espécie de vertigem que envolve o corpo e a memória, e em que o jato da inspiração – a despeito de toda racionalidade e de toda inteligência elaborativa – desempenha um papel que está longe de ser insignificante. Diz ela, por exemplo, em Escrever, de 1993: “É isso a escrita. É o movimento do escrito que passa pelo corpo. Atravessa-o. É daí que se parte para falar destas emoções tão difíceis de dizer, tão estranhas e que, no entanto, de repente, se apoderam de você.” Ou ainda: “O escrito, isso chega como o vento, e isso passa como nenhuma outra coisa passa na vida, nada mais, exceto ela, a vida.”

Pois, de um lado, o leitor encontra nesses manuscritos passagens de uma fluência narrativa que parece realmente servir, mais do que a um projeto literário, à pura e simples preservação de um material que encontraria sua força justamente em seu despudor algo catártico, algo confessional. Quase como um diário íntimo. Como, aliás, escreve Duras, depois da evocação das relações familiares nos anos de Indochina e do chinês que se tornaria 40 anos depois o protagonista de O amante: “Tem-se o direito de se perguntar por que escrevo estas lembranças, por que exponho condutas as quais previno que me desagradaria que fossem julgadas. Sem dúvida para colocá-las às claras, simplesmente; tenho a impressão [...] que as desenterro de uma areia milenar. Faz apenas treze anos que aconteceram [...] Nenhuma outra razão me faz descrevê-las, senão esse instinto de exumação. É muito simples. Se eu não as escrever, vou esquecê-las pouco a pouco.”

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Mas o que é fundamental é que, de outro ponto de vista, em vez de consolidar o mito Duras, os textos do livro, se confrontados àqueles que seriam publicados mais tarde, parecem antes mostrar o modo como a construção e a ambivalência desse mito são fruto do laborioso trabalho de escrita da autora. Basta comparar as versões da famosa cena da travessia de balsa entre Sadec e Saigon, em que a adolescente Marguerite teria, aos 15 anos, conhecido o chinês que se tornaria seu primeiro amante: à narrativa prosaica do Caderno rosa marmorizado de 1943 (“Léo era nativo, mas vestia-se à francesa, falava francês perfeitamente, estava voltando de Paris. (...) Usava um grande diamante no dedo e vestia-se com um tussor de seda crua. (...) Léo me disse que eu era uma moça bonita. – Você conhece

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Assim, na esteira das pistas fornecidas pela própria Duras, e também, é claro, do enorme sucesso de público e de crítica de O Amante, de 1984 – cuja segunda tradução brasileira, de Denise Bottmann, recebe nova edição neste ano de 2012 –, proliferaram as biografias e depoimentos de toda sorte sobre a escritora, e a reflexão crítica em torno de sua obra se debruçou cada vez mais sobre as nebulosas fronteiras entre a narrativa autobiográfica e a ficcional. É nesse contexto que, em 2006, os Cadernos da Guerra, traduzidos no Brasil em 2009 por Mario Laranjeira, foram publicados na França. Parte importante dos arquivos doados em 1995 pela escritora ao IMEC (Instituto Memórias da edição contemporânea), os quatro pequenos cadernos que compõem o livro, redigidos entre 1943 e 1949, e que ela própria havia reunido e conservado com esse título, contêm esboços significativos de textos de forte cunho autobiográfico e publicados anos mais tarde – além do próprio O amante, Barragem contra o Pacífico, de 1950, e A dor, de 1985 (estes também já traduzidos por aqui, mas infelizmente esgotados) –, e poderiam ser lidos simplesmente no registro de confirmação dessa tendência crítica.

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Um outro aspecto interessante e que chama a atenção na confrontação das versões é a longa diatribe contra o General de Gaulle e seu catolicismo, produzida no calor do fim da guerra, em 1947, e bastante atenuada na versão de A dor publicada em 1985. Sinal, talvez, de uma tentativa de distanciamento em relação ao engajamento do momento histórico efetivamente vivido. Eis, por exemplo, uma passagem do texto do Caderno Edições do século XX que foi suprimida na edição publicada posteriormente: “[De Gaulle] crê em Deus, em suas obras e pompas. Sofre por não falar claramente dele em seus discursos. A diferença entre de Gaulle e Hitler é que de Gaulle acredita na transubstanciação. Fala diretamente ao coração dos católicos. [...] Nenhuma diferença a não ser a diferença do mito de base. Além-Reno o Arianismo. Aqui, Deus. [...] Tudo que soube fazer foi mandar o povo para o abatedouro.” Não se pode, contudo, negar que em muitos momentos o leitor é surpreendido pela constatação de que, no próprio processo de composição desses textos, Duras já se tornava Duras. Provam-no algumas passagens retomadas quase integralmente, como este trecho cortante que, praticamente inalterado, seria o início de A dor, narrativa que expõe a expectativa do retorno de Robert Antelme, marido da escritora, dos campos alemães ao final da guerra: “Defronte à lareira. O telefone está ao meu lado. À direita, a porta da sala e o corredor, ao fundo do corredor: a porta de entrada. Ele poderia voltar diretamente, tocaria a campainha na porta de entrada: ‘Quem está aí?’ ‘Sou eu.’ Poderia igualmente telefonar logo que chegasse a um centro de trânsito: [...] Não haveria sinal precursor. Ele telefonaria logo que chegasse. São possibilidades. Ele volta de qualquer modo. [...] Não há razões particulares para que não volte. Não há razões para que volte. É possível que ele volte. Ele tocaria a campainha: ‘Quem está aí?’ ‘Sou eu.’” Talvez porque o próprio processo de, permanentemente, reescrever lhe tenha ensinado a solidão essencial de abismar-se na memória, Duras escreveria, na apresentação dessa versão de 1985: “Não tenho a mínima lembrança de havê-lo escrito.” E pouco adiante: “Encontrei-me diante de uma fenomenal desordem do pensamento e do sentimento em que não ousei tocar, e em relação à qual a literatura me envergonhou.” Parece-me que o que esses Cadernos da Guerra nos mostram, quando os contrapomos a textos que vieram depois, como O Amante, é que é exatamente desse trabalho de desordenação do pensamento e do sentimento que se ocuparia desde o início a atrevida literatura de Marguerite Duras.

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Marcelo Jacques de Moraes. Professor de literatura francesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tradutor e pesquisador do CNPq.

FRAGMENTO AMOROSO Solange Rebuzzi (Eles não eram um só. Nem pretendiam ser.) Na horizontal e fora do crepúsculo Ela inventou um homem alado. Sussurrou: O que sobe de teus lábios não consigo alcançar. Estás sentado longe e em teus pés vejo mistério. Algo liricamente anotado em meu olhar se acende cada vez que chegas perto. Estás guardado na dimensão da música que escutas. Nasce pelas paredes da casa um tom que conhece o mar, o rio, as plantas dos jardins por onde circulam os segredos mais antigos. Uma textura na pele, uma ranhura e um laço que não é feito ao acaso.

Havia nesta dimensão do amor um registro suave e denso. (Havia e ainda há um agradecimento.)

Solange Rebuzzi, escritora e psicanalista.

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Paris? Eu disse que não, corando.”), sucede-se a economia cinematográfica de O amante, no texto definitivo de 1984, com o uso do verbo no presente e a multiplicação – quando não o embaralhamento – dos pontos de vista pelo uso da terceira pessoa, procedimentos que se tornaram frequentes nos textos de maturidade da escritora. Vejamos a retomada da cena nessa versão tardia – Duras já tinha 70 anos quando a publicou – na tradução de Denise Bottmann, que restitui com mestria a sofisticada simplicidade do original: “O homem elegante desceu da limusine, ele fuma um cigarro inglês. Olha a jovem com chapéu masculino e sapatos dourados. Aproxima-se devagar. Visivelmente intimidado. De início não sorri. De início oferece um cigarro a ela. A mão treme. Há essa diferença de raça, ele não é branco, ele deve superá-la, por isso treme. Ela lhe diz que não fuma, não, obrigada. Não diz mais nada, não diz me deixe em paz. Ele sente menos medo. E diz que parece estar sonhando.”

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Chiu Yi Chih e Irael Luziano – LOZ

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Quando nos deparamos com as obras de arte, pensamos frequentemente que existe um sentido obscuro por detrás daquilo que vemos. É como se tudo estivesse presente num domínio de puras intuições, onde o pensamento daquele que fez a obra pudesse ser “decifrado” numa fórmula intelectual. Somos tentados a especular sobre a intuição original do autor como se houvesse uma incógnita vagando na sua mente criativa. Ora, isso não ocorrerá justamente em virtude do esquecimento da própria camada sensível da obra? Por que desejamos tanto capturar um sentido obscuro e esquecemos de considerar a forma visível de sua concretude? Nesse sentido, qual é a razão de concedermos uma ênfase maior à representação da obra do que à sua própria forma expressiva? Será possível lançarmos um olhar diferenciado sobre o fenômeno da expressividade – uma vez que a arte é uma forma de metacorporificação segundo nossa concepção – sem que exista uma separação entre a forma sensível e o seu conteúdo significativo, e mais, sem que ocorra um fosso entre a subjetividade do artista e a sua própria obra concretizada? Como podemos então evitar esse dualismo que provoca a cisão entre a subjetividade estética e o próprio mundo em que ela se encontra? A subjetividade estética não está situada enquanto corporeidade expressiva diante da paisagem de sua criação, enquanto modo de imanência nas fronteiras do mundo? De certo modo, quando o artista realiza uma obra, ele não pensa em algo que esteja fora daquela forma esteticamente trabalhada. O artista não constrói uma “ideia” num plano abstrato, não a formula numa esfera de representação constituída por outras ideias igualmente abstraídas do campo sensorial. Geralmente consideramos que o artista se engaja nessa empreitada, imaginando que ele, consciente de sua ideia, vai aplicá-la posteriormente à uma forma específica. Nosso hábito nos força a olhar um quadro com o objetivo de decifrar seu sentido para além do que está ali pintado. Seria equivocado pensar que o sentido da obra se revelasse num espaço puro do pensamento. Ora, se existe algum sentido na arte, ele deve ser percebido na própria tessitura carnal da obra tanto quanto no processo metacorporificante daquele que agencia a sua criação. É por meio de tal imanência que o artista cria e desdobra os elementos materiais de sua composição. O artista não realiza a sua obra fora do campo sensorial em que está situado. Por isso, mesmo que ele quisesse se assumir como um sujeito não-sensível, não-corpóreo, isso jamais será efetivamente possível. Isto porque a percepção da sua corporeidade é o primeiro dado concretamente visível. Sob esse prisma, ele tanto não recusará sua corporeidade como também não deixará de perceber as possíveis interconexões que esta mesma poderá adquirir no seu processo de metacorporificação junto com as outras corporeidades. Desse modo, ele não poderá criar as suas obras fora do contexto sensível, desconsiderando a processualidade dos acontecimentos que o circundam, e nesse caso, ele se assemelha a um ser potencialmente mais expressivo que nós – não porque se encontre numa condição de “gênio” ou num isolamento espiritual – mas porque, acima de tudo, ele é um ser em estado imersivo. Em outras palavras, ele assumirá cada vez mais para si mesmo aquilo que conceitualmente concebemos como seu estado ontológico primordial, isto é, aquela condição de fluidez intrínseca ao ser-amante do mundo. Assim, tal acontecimento se tornará apenas perceptível não devido às suas idiossincrasias românticas, mas sim pelo fato de coabitar com suas múltiplas potencialidades imanentes. Daí por que justamente o consideramos um ser aisthetikós (ser percipiente). Em grego, a palavra aisthetikós que deriva do substantivo aísthesis (percepção) significa “aquele que possui a potência de perceber”. Trata-se do modo de assumir a sua corporeidade enquanto processo metacorporificante. Isso quer dizer que o artista se torna aisthetikós na exata medida em que percebe as diversas interconexões agenciadas pela sua relação com as outras possíveis corporeidades. Ele se vê como imenso “satélite” de tal forma a se modular como agente constituinte/constituído pelas diversas metamorfoses nas quais se opera a transformação radical da percepção (aísthesis). É por isso que o seu primeiro contato com a matéria se encaminha para uma transmutação da realidade sensível. Ao realizar tal operação, ele reconfigura o mundo e as suas significações culturalmente dadas. Vemos assim uma metacorporificação criativa, uma espécie de reconfiguração daquela linguagem que utilizamos diariamente em nossos gestos e enunciações.

Nesse sentido, o aisthetikós é aquele que remodela e reestrutura todas as significações já existentes de tal modo a permitir que outras significações possam se atualizar. Em virtude da potencialização de seu ato de perceber, ele maquina numa dimensão transmaterializadora de novas relações. São metacorporificadas visualidades nunca vistas, tactilidades nunca tocadas, como numa espécie de telescopia das estruturas imperceptíveis. Por meio desse ato transmaterializador onde cada elemento criado se torna permeável aos fluxos interconectivos, torna-se possível a remodelação das categorias de tempo e espaço. Pois, sabemos que tanto o tempo como o espaço são condições determinantes sem as quais não é possível qualquer percepção sensível. Por isso, em tal aísthesis amplificada, o que se vê não é tanto a supressão de tais categorias senão a própria reconfiguração do momento presente no qual se performatiza todo acontecimento sensível. Nesse processo de transmaterialização, a duração do presente se metacorporifica, torna-se palpável, adquire contornos porosos, arrasta consigo um peso temporal radicalmente mais denso e volumoso do que aquele medido pelo relógio cotidiano. Assim, quando imergimos num tempo dilatado, percebemos sinestesias em variação, vórtices, formigações, modulações de metacorporeidades. Ao atravessarmos campos, fronteiras e limites, cada momento de nossa percepção se multiplica topograficamente. É evidente que a percepção (aísthesis) se alarga através de um sistemático descentramento de si mesmo, através de uma extrusão pela qual o corpo se trespassa e se impregna de múltiplas temporalidades. Altera-se o conceito de tempo, que deixa de ser apreendido como mera sucessividade mecânica e passa a existir como textura sinestesicamente pulsional. Em lugar de ser objeto de mensuração analítica, ele é perceptível pela sua fluidez, porosidade e presença. Nessa aísthesis dinamizadora, o tempo se torna fluente, real, duração viva e cheia de imprevisibilidades. Do mesmo modo, o espaço na sua acepção conceitual, ao invés de ser percebido como simples extensão constituída por altura, comprimento e largura, passa a ser visto como tecido impregnado pelas metacorporeidades e relações transmaterializantes. É nessa dimensão que a corporeidade como modulação existencial passa a ser afetada pelas múltiplas forças germinativas do mundo circundante. Habitar o espaço significa não somente ocupar um volume inerte estruturado por medidas exatas, mas também se interrelacionar com um território de sensações, sinestesias, forças, atrações, repulsões e presenças. Tal inerência à matéria de nossas próprias percepções nos conduz à experiência fundamental da percepção estética onde tudo se enreda e se desenreda em novelos, formas, linhas, cores e concavidades. É assim que posso me considerar um ser percipiente, não entendido a partir da operação autorreflexionante da consciência, senão mesmo através da experiência radical de extrusão de mim mesmo. Sou lançado e arrastado para fora. As cores me invadem, os cheiros me intoxicam, as carnes me enternecem. Nesse fenômeno radical, tudo é percebido em infindáveis curvaturas: as sonoridades submergem com as minhas vísceras, as pulsações interiores se misturam com o ambiente ruidoso. A percepção deixa de ser um ato de consciência isolada. Tudo se crava e se desencrava nas interconexões. É nesse sentido que as coisas se entrelaçam com meu corpo enquanto estruturas metacorporificáveis. Não há separação entre meu corpo e o processo de autoconsciência. Aquilo que designo como “meu modo de estar consciente” não se desvincula do fenômeno perceptivo das metacorporeidades. Meu corpo não somente deixa de ser um esquema abstrato de medidas e mensurações, como também passa a ser visto como vasto universo de instituições, signos, valores, memórias transpessoais, tessitura de conexões, cidades, neurônios, linguagens, ossos e pensamentos. Os espaços se entrelaçam. Os tempos se tornam simultaneidades. Labirintos se entrecruzam no meu pensamento. São como zonas cavernosas, involuções dançantes que atravessam o campo da minha aísthésis. Fios espessos e ásperos como que entretecidos e redobrados. As coisas se percebem em mim: eu que sou apenas um elo de conexão entre infinitas redes de possibilidades. É nessa dimensão de interconectividade que meu corpo age, interage e se assume enquanto forma híbrida, multiplicada, não mais como centro soberano de suas percepções fugazes, senão como efeito de um processo mais complexo de subjetivação onde mecanismos heterogêneos, máquinas sociais e técnicas, territórios geográficos ou existenciais contribuem para a amplificação da subjetividade estética.

O artista chinês Chiu Yi Chih e o artista brasileiro Irael Luziano uniram suas propostas estéticas e criaram o LOZ que realiza um conjunto de obras em escultura, performance, poesia e vídeo em torno da “Metacorporeidade”.

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AÍSTHESIS E METACORPOREIDADE

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ESTÉTICADÂMICA

esquecer a própria língua e assimilar todas as outras para encontrar no mal falar destas a pronúncia exata daquela para chegar ao idioma máximo somatório de todo o intraduzível no confronto das discrepâncias onde uma palavra que é a mesma em tantas línguas inventa aquela que não está em nenhuma: foi preciso seguir o português de trás para frente no caminho inverso até sua origem me apaixonar mais por fonemas que por gente descobrir que a língua está mais nos palavrões que nas gramáticas: e agora da raiz de toda deslembrança buscar pela fala sem origem de um idioma sem origem para viver fora de qualquer lugar como as vezes a vida parece vivida fora de nós: porque a história de nossa língua é a história dos nossos amores e entre eles e o esquecimento das palavras praticamos o sotaque dos banguelas

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Márcio-André é escritor, tradutor, artista sonoro e visual nascido no Rio de Janeiro e radicado na Espanha. Publicou Intradoxos (2007) e Ensaios Radioativos (2008) e fundou o coletivo, revista e editora Confraria do Vento. Deu aula de escrita criativa na Universidade de Coimbra e recebeu, em 2008, a bolsa FBN. Com textos traduzidos para mais de dez idiomas e presente em inúmeras publicações internacionais, fez leituras em alguns dos principais festivais europeus, latino-americanos, dos EUA e Canadá. Em 2007, realizou uma “leitura suicida” nas ruínas da cidade fantasma de Prypiat, Chernobyl.

Flávio Castro

céu réstia fogofátuo trâmites trêmulos grau zênite zarcão ser série anãrvore arcoforma

réplicas suturas

toquetotêmico regrapocalíptica íris breve branca branda neutra

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Márcio-André

Flávio Castro nasceu em Porto Alegre (RS) em 1966. Reside no Rio de Janeiro desde novembro de 1992. É autor do livro AUDITO (CL Edições, 2009) e INAUDITO (Editora 7 Letras, 2013).

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Victor Sosa Tradução: Eclair Antonio Almeida Filho

Ao vencedor, darei de comer maná escondido, e lhe darei uma pedra branca, e na pedra escrito um nome novo, o qual ninguém conhece senão aquele que o recebe. Apocalipse, 2:17

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Vencer é ter nome. Ter pedra ou casa entre a língua. Em mineral a espada como Jorge – deus do ferro e da guerra–, como Ogum. Ter nome é vencer o inominado, o monte amorfo ou calcário e entre dentes agarrar-se à razão. Nomear é caça ante a coisa e símbolo, e do escroto esperma batismal. Mas nome sempre é novo. Alonga-se irrepetível, alusivo a si sem sinonímia. Faz-se e com o que assenta arranca, arde. Aí traça impredizível. Por isso Sou –disse o que é– quem Sou, que a mim ninguém me nomeia. Maná é um nome oculto que se come. A palavra, sem mastigar: eucaristia. Chamo-me Pedra –disse a pedra –, chamo-me João –disse o teólogo–, chamo-me Magdalena –em um tremor pensou a penitente–. Mas onde o nome novo ou em que glifo? Como sem luz de quasar incubá-lo para que imaterial sue em seu pedra? Que suba, só, novo. Um nome novo é puro, um nome puro sopro, ingrávido maná sem manancial. Um nome –digamo-lo de forma que se entenda– não é, ou é o que não é, ou sempre êxodo.

Víctor Sosa. Nasceu em Montevidéu (Uruguai) em 1956, mas reside na Cidade do México desde 1983. Professor da Universidade Iberoamericana (México DF). Autor de: Sunyata (1992). El Oriente en la poética de Octavio Paz (2000). Recebeu o Premio Internacional de Poesia Jaime Sabines (2012). No Brasil tem vários livros publicados pela Editora Lumme.

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Os meninos retornam da morte. Mastigam tulipas. Entre suas secas, verdes bocas, encarnadas, sucosas tulipas. Retornam das tumbas, e em suas mortalhas dentes, lácteos dentes, presos como opacos camafeus. “Os meninos retornam da morte!”, grita múltipla mãe. E saltam de suas moradas, desde o luto, dolentes as matrizes das mães; saltam às raízes do retorno regando secos lodos. Secos seios jorrando tulipas, úmidas mães correm; artríticos os pés sobre a zarza, os tão chilreantes clitóris descalços, sucosos, encarnados, que em mães maná corre. “Retornam da morte!”, dizem com seus braços regressando como velozes ceibas as mulheres: “Os meninos hoje retornam!”, e suam por seus dentes, por seus caídos dentes, tulipas. Manam meninos de tumbas, saltam como em desmame da morte, como um maná inúmeros os meninos, pálidas tulipas encarnadas. Com seus lácteos escrotos, opacos camafeus, manando uretras úmidas as mães, as dolentes matrizes entre suas verdes bocas regressando: “Os meninos retornam da morte!”, “Os meninos hoje retornam!”. Ilusas ceibas, secas, da morte.

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O DESTINO É DEMASIADO

I

Paulo Sposati Ortiz

Diogo Cardoso

Mergulhe na imensidão azul, e o sol se quebrará: pequeno manual de magia. Enquanto a vassoura espalha o perfume da morte, EU CONTINUAREI, Entrelaçado por uvas e eras, porque a noite também tem a sua noite.

Por duas vezes gritei e o que saia de minha boca eram raízes extremas. Duas vezes, não mais que duas. Da primeira, sete aves visitaram-me os lábios e com a certeza de quem assassina, comi-as todas. Farto, sentei as raízes em minha desolação. Não podia mais ser grito, não podia – queria apenas o silêncio perpétuo dos ânus venais. Isso foi há muito tempo, quando ainda os deuses nasciam com os pés atados à terra e as árvores eram tecidas de carnes mortas infantis. Da segunda, padeço ainda hoje das raízes saídas do sexo e do sonho impossível dos voos de pássaros dos quais sinto toda a fome.

Mergulhe, enquanto o sol se quebra e os detetives morrem. Boca negra, conheço-me da borda da piscina para dentro. Se eu mudasse de vida, os mágicos seriam esquecidos. Mergulhe na imensidão azul Do sol de tua palavra: De lá,

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Paulo Sposati Ortiz (31 anos, Vila Mariana–SP) formou-se em Letras/Linguística pela USP. Escreve nos blogs C.I:P.A. (Centro Internacional: Poesia Amanhã) (coletivo) e A diferença do fogo (pessoal), claro que inspirado no livro em mãos, e publica ensaios e poemas em Cronópios, Mallarmargens, dEsEnrEdoS (virtuais), Grito Cultural e Polichinello (impressos). Além de ter feito parte da 41ª e 54ª edições como convidado, foi curador em 2013 das Quintas Poéticas da Editora Escrituras.

Diogo Cardoso é graduado em Letras pela Universidade de São Paulo. Participou de diversos projetos literários, dentre eles o sarau Faça pArte, em parceria com o departamento de cultura de São Bernardo do Campo, Leitores itinerantes, sob curadoria de Tarso de Melo e foi um dos curadores do projeto Clarice Lispector.

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Não se regressa nunca.

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Vinícius Nicastro Honesko

Em um jantar próximo ao Campo Zan Degolà, em Veneza, certa vez ouvi de um filósofo que um dos lugares imperdíveis de se visitar era a Igreja de San Salvador. Uma tradição lendária conta que as origens dessa igreja remontam ao século VII e a história de sua construção estaria ligada a um sonho que o então bispo São Magno teria tido. De acordo com essa tradição, o próprio Cristo teria aparecido no sonho do bispo para indicar-lhe o lugar preciso da edificação de uma igreja que deveria ser dedicada a ele, o salvador do Mundo. Ainda que o meu companheiro de jantar sempre dissesse que as igrejas mais bonitas do mundo estavam em Veneza, a indicação de San Salvador não se deu especificamente pela sua beleza como um todo (digo que não era das mais lindas da cidade), mas pela beleza específica de uma tela que lá se encontra: a Annunciazione de Tiziano. Num fim de tarde qualquer, talvez alguns dias depois do jantar, fui visitar a igreja. Entrei, corri os olhos pela nave central, vi vários fiéis (sempre idosos) que se preparavam para a missa e, com discrição, procurei pelo quadro. Quando me aproximei dele, tive um susto com suas dimensões: era muito maior do que eu imaginava. Parei diante daquele que, de fato, era um dos mais belos tizianos que tinha visto e fiquei procurando pela assinatura, uma vez que no mesmo jantar o filósofo tinha me contado algo interessante sobre o quadro. Disse que quando Tiziano - que, à época da pintura da Annuciazione, já contava uns bons 75 anos - terminou esse quadro olhou para ele e, ao invés de assinálo com o seu tradicional “Titianvs fecit” (feito por Tiziano), pôs fim à obra com um “Titianvs fecit fecit”. O reforço do fazer na assinatura teria se dado porque o pintor acabara por considerar aquela como a sua obra prima. É certo que o Tiziano da Annunciazione já não se enquadrava nos esquemas pictórios de seus contemporâneos (e algumas teses são levantadas: a senilidade e as ideias religiosas que não estavam em pleno consenso com as propostas da Igreja e da contra-reforma em curso). Não são mais as imagens plenas de um cromatismo vibrante e com delineamentos precisos, mas em tonalidades de ocre, um pouco obscuras e com traços rápidos e imprecisos. E é interessante que no período final de sua vida ele tenha tido a inspiração para decidir qual a sua obra prima. A despeito da beleza do quadro, ainda diante dele comecei a pensar em toda a configuração mítico-narrativa tanto da história bíblica quanto daquela que diz respeito à fundação da igreja. Ainda dentro de San Salvador, eu me indagava sobre as relações que podia fazer com as imagens que foram criadas a partir do episódio bíblico da anunciação: o trecho do evangelho de Lucas no qual o anjo Gabriel é enviado por Deus para anunciar a Maria que ela iria dar à luz o Filho do Altíssimo. O espanto com o qual Maria diz que isso não seria possível, uma vez que não conhecia homem, é rebatido pelo anjo com a afirmação de que o Espírito Santo viria sobre ela e lhe cobriria com sua sombra, e daí a filiação divina do Cristo. Lucas, no entanto - e essa omissão me deixa curioso -, não fala nada sobre aceitação do esposo da virgem, José. É no evangelho de Mateus que lemos como José, ao saber da gravidez da esposa com quem ainda não havia tido relações sexuais, resolve não denunciá-la publicamente (o que a ela acarretaria a pena de morte), mas repudiá-la em segredo, até decidir que atitude tomar. Nesse período o anjo do senhor teria aparecido para José durante um sonho para lhe contar a verdadeira história da gravidez e também o projeto divino que estava em questão: o nascimento do filho de Deus concebido pelo Espírito Santo. José, portanto, de alguma maneira interpretou seu sonho com uma ação: em favor do nascimento do salvador do mundo; e séculos mais tarde o bispo S. Magno interpretaria seu sonho, com o mesmo salvador do mundo, também fazendo algo, isto é, construindo a igreja na qual eu me encontrava naquele momento. Assim, Joseph fecit, Magnum fecit e Titianus fecit fecit. Diante de um sonho, era preciso fazer algo. 108

Hoje, já alguns anos depois desses eventos, comecei a ler um texto muito interessante que de pronto me fez pensar em toda essa história (tanto nas tradições de narrativas oníricas, quanto nas minhas passagens

por Veneza). Trata-se do primeiro escrito publicado de Michel Foucault: a introdução ao livro “Sonho e Existência”, do psiquiatra suíço Ludwig Binswanger. O jovem filósofo, que à época, 1954, contava 28 anos, começa o prefácio alegando que, ao contrário do que acontece com prefácios, não pretende traçar o caminho feito por Binswanger, mas apresentar uma forma de análise que dê condições para entender o que estava em jogo no livro que apresentava. O jovem Foucault começa seu texto a partir de uma coincidência - o mesmo ano de publicação, 1900, de duas fontes importantes de Binswanger: A interpretação dos sonhos, de Freud, e as Investigações fenomenológicas, de Husserl - e, então, procede à confecção do texto que pretende situar a obra do psiquiatra bem como exibir ideias originais, como que no papel de jovem pesquisador que pretende expor-se ao público. Talvez um ponto chave do texto de Foucault seja aquele no qual bota em questão o método de interpretação freudiano dos sonhos. Ele afirma que em Freud “a linguagem do sonho é analisada somente na sua função semântica; a análise freudiana deixa na sombra sua estrutura morfológica e sintática. A distância entre a significação e a imagem somente é preenchida na interpretação analítica por um excedente de sentido; a imagem na sua plenitude é determinada por sobredeterminação. A dimensão propriamente imaginativa da expressão significativa é de todo omitida.” Isto é, Freud teria desconsiderado as leis próprias do mundo imaginário e suas estruturas específicas, já que imagem (onírica, nesse caso) é mais do que o cumprimento imediato do sentido, e as leis de sua formação não são exatamente significativas, como as leis do mundo não são decretos de uma vontade (uma vontade divina). Ou seja, com Freud uma verdade anteciparia a significação daquela imagem da seguinte maneira: sobre o divã as imagens oníricas do paciente irão esbarrar na sua interpretação - na palavra - que exibiria sempre uma espécie de restauração de um estado arcaico anterior, de um desejo originário (cristalizado no fantasma do trauma originário - o qual, na leitura que Foucault faz de Freud, não seria uma emanação das imagens analisadas, mas um elemento exterior a elas e que para elas conferiria significação). Diz Foucault: “Freud fez habitar o mundo do imaginário com o Desejo assim como a metafísica clássica tinha feito habitar o mundo da física pelo querer e pelo entendimento divinos: teologia das significações na qual a verdade se antecipa em relação à formulação e a constitui inteiramente.” Em Freud, portanto, a análise dos sonhos é pautada por um critério externo ao movimento do sonho, de modo a nunca conseguir dar à imaginação do sujeito (paciente) a possibilidade de desmantelamento dessa imagem originária, desse Desejo que se realizaria no sonho. Em outras palavras, a constante restauração dessa imagem impediria o movimento próprio aos sonhos e à capacidade do próprio sujeito, isto é, o acesso a uma imaginação em movimento, que não se fixa numa única e verdadeira imagem, mas que abre ao sujeito a capacidade criativa (melhor dizendo: o que eu, sujeito, posso fazer com minha imaginação? Como posso desmontar e reconstruir essa imagem de maneira a sentir-me possuidor de liberdade?). E qual a razão dessas críticas de Foucault a Freud terem me remetido às minhas memórias de Veneza? Por que, hoje, quase 5 anos depois, parei para pensar em toda a trama desses eventos? Em várias respostas pensei: talvez tenha sido por que, ao ler Foucault, comecei a me indagar sobre as minhas possibilidades imaginativas (sobre de que modo, marcados como estamos pelos estereótipos psicanalíticos depois de mais de 100 anos, parece que nos tornamos incapazes de compreender nossas imagens de uma outra maneira que não aquela atrelada à simbologia da fixidez, à cristalização de fantasmas); talvez, como bom ex-religioso, por ter, diante dessas lembranças, refletido sobre a questão dos sonhos daqueles personagens histórico-míticos: isto é, como os sonhos de S. Magno e José (e, talvez, até mesmo o Tiziano tenha se deixado levar pelas imagens oníricas para compor de um modo novo no fim da vida - e há quem diga que o último Tiziano já é precursor de certo expressionismo ao modo Kokoschka) mais do que os colocarem defronte aos seus fantasmas originários os levaram à prática de uma ação decisiva para suas vidas, a um ato criativo (claro que não perco de vista a exemplaridade mitológica dessas narrativas bíblicas ou episcopais); porventura, também, tenha sido apenas ao ler na introdução de Foucault o nome Ludwig Binswanger, cujas iniciais marcavam as bases dos grandes talheres de prata com os quais comíamos naquele jantar em Veneza. De fato, a anfitriã da noite tinha acabado de desenvolver um trabalho sobre a história da psiquiatria tendo como um dos centros do seu trabalho a obra de Binswanger. Contou-me ela que, certa vez, numa visita que fizera à

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MUNDUS EST FABULA: DE SONHOS E ANUNCIAÇÕES

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Em meio a tantas referências, a tantos acasos, não tinha como me furtar a um ligeiro sorriso de satisfação: eu, um jovem interiorano, comendo, como num sonho, com talheres que já estiveram em bocas de personalidades que marcaram o século XX. Mas, como a vida, isso era apenas mais um acaso. Pode ser que o outro convidado daquele jantar, o filósofo, também tenha pensado em tantos acasos que aconteciam naquele instante, pois não sabia que o jogo de talheres pertencera a Binswanger e, de fato, toda sua produção intelectual tinha como referentes em maior ou menor medida Freud, Heidegger, Warburg e Foucault. Se fantasmas poderiam existir, na minha imaginação estavam todos ali, naquele jantar próximo ao Campo Zan Degolà. Em todo esse contexto a questão imaginativa da interpretação dos sonhos à qual Foucault faz menção está plenamente em curso nessas minhas divagações sobre jantares, igrejas, sonhos, pinturas e ideias. Como colocar tudo em movimento, como tentar jogar com outros tempos e, sobretudo, com as imagens que preenchem a memória. Tudo é uma questão de como montar essas imagens e as reconfigurar numa nova constelação de sentidos para o presente (e nada mais warburguiano do que isso). Acho que o modo apaixonado com o qual o filósofo me falava da Annunciazione de Tiziano pode ter suscitado em mim, ainda em San Salvador, esses pensamentos sobre como os sonhos podem fazer mover as paixões dos homens. Trazer aqui, à consciência, toda trama desses acontecimentos passados não me faz compreendê-los mais ou melhor; de fato, sinto que diante dessas minhas imagens (esses desejos realizados em sonho ou numa viagem), como de qualquer outra imagem (uma obra de arte renascentista ou uma fotografia contemporânea), não posso permanecer parado, como que a fixá-las nos quadros de uma memória inerte, mas que me inquieto, que tento achar outras formas de reagrupálas, outros critérios a partir dos quais analisá-las. Enfim, coloco-me na posição em que o talvez ganhe força, em que as relações - inventadas, criadas - possam ser sempre possíveis, em que eu possa encarar minhas imagens não para as deixar reinar - numa espécie de “é impossível de ser diferente” -, mas para destroná-las e com elas brincar, tal como uma criança o faz com qualquer objeto, numa história que se reinventa a cada instante.

Carambolas na piscina Ana Amália

Para Carol Dall’Antonia

Nadando, meninas Suor molhado de água - doces Boiam as duas sempre só as duas. O mesmo castanho cabelos escurecidos - das árvores. Ela menor ia até o fundão Eu não. A mãe jovem e loira Carambolas às mãos na borda - não vai no fundão, não. Frutas arremessadas Boiam muitas molhadas brilham Cloro nas estrelas amarelas Azedas. Carambolas colhidas da água Ela lambuzada Eu lambendo a mão Piscina de chácara. Sol de domingo Carambolas boiam no azul vibrante Tínhamos estrelas durante o dia E as comíamos. Ana Amália, Londres 2013

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Vinícius Nicastro Honesko. Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atualmente em estágio pós-doutoral no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

Ana Amália Alves (1984 Marília/SP) escreve e traduz poesia e ficção. Mestre em Estudos Culturais da América Latina pela King’s College London, atuou como professora visitante - supervisora de tradução literária no programa de Mestrado em Translating Popular Culture da City University London.

Polichinello nº 16 | Dez anos | Amor fati

casa de Binswanger em Kreuzlingen, ganhara de presente de um descendente do médico aquele jogo de talheres. Ora, para mim era curioso pensar que estava comendo em talheres com os quais por certo haviam comido Binswanger e seus amigos - dentre os quais o próprio Freud, Heidegger, Martin Buber ou mesmo um de seus ricos pacientes, Aby Warburg.

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LANCE DE DADOS

SOBRE ÁGUAS E ARREBENTAÇÕES

Daniel Lopes

Keyla Sobral

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Daniel Lopes escreve para diversos sites e revistas de literatura e filosofia. Publicou a coletânea de contos “Pianista Boxeador” e o romance “Fruta” (edita o blogue) www.pianistaboxeador21.blogspot.com

O mergulho e a falta de respiração. Me apaixonei de pronto, imediato. Instantâneo. Ela veio deslizando sobre as águas, corpo esguio e levemente salgado. Nas águas barrentas do Marahú. A orquídea solitária pousada no ombro. O corpo súrfico. Esse era um sinal de alerta. O risco. A experiência. A beijei suave no meio de uma construção, cheia de poeira, tinta e cal. E ela me disse: se jogue nas águas da Bahia, mas prometa por favor não se afogar. É necessário ainda a sua volta.

Polichinello nº 16 | Dez anos | Amor fati

Cada lance de dados mergulha mundos na Sombra. Tudo o que se desvela, vela algo latente. O caminho que tomo agora, suprime o fato de que poderia ter ido por outro caminho. No entanto, de certa forma, em alguma dobra do tempo, estou no caminho velado que agora se desvela, velando o anterior. E também estarei no outro caminho... E no outro... E no outro... E no outro. Até que só me reste o resultado do primeiro lance de dados. E novamente estarei nesta estrada da qual jamais escapei... E depois na outra... E na outra... E ainda na outra, feito um rato de gaiola percorrendo sua roda, tendo a ilusão de que sai do lugar. Que estou dizendo? Um lance de dados afirma todas as possibilidades de uma vez. Se jogo os dados duas vezes, o fato de ter dado o número 5 na primeira, não exclui o fato de que o 5 possa vir a dar novamente, e novamente, e novamente. Para continuar com a imagem do rato e da roda, o rato poderia nunca ter estado na roda, porque os lances se seguem e afetam o ponto de lançamento uns dos outros. Para Heidegger é o Ser quem se dá a desvelar, quem joga os dados e sabe o resultado, o que nos aparece como acaso é na verdade destino, plano do Ser. Quando as possibilidades se esgotarem, elas tornarão a se repetir, como numa equação cristalina. Isso nos leva aos dois ensinamentos do mestre Zaratustra, que ensina primeiro o eterno retorno do mesmo, o que livra o homem do seu maior ressentimento, o ressentimento contra a morte, e o libera para o segundo ensinamento de Zaratustra, o além-homem, aquele que diz Sim. Os dados são lançados, ninguém os lança, não há sujeito ou escolha, o acaso não é o meio pelo qual o Ser, ou o Espírito se dão a conhecer. Estes são os maus lances de dados que se inscrevem nas mesmas hipóteses. Aqui, o próprio acaso é o fim, o Ser, Ser-Acaso, e mantem os dados girando numa velocidade tão grande que os próprios dados se desintegram, desprendem-se os pontos pretos, restam raios, fluxos e o branco, soma de todas as cores. Lá onde se espera o diferente, pode vir a repetição; onde se espera a repetição, pode vir eternamente o diferente. Os dados não caem ordenadamente, primeiro o 1, depois o 2, depois o 3, o 4, o 5, o 6. Podemos jogar os dados 12 vezes e nas doze vezes cair o número 1, ou o número 1 pode não cair em nenhuma delas. Voltando ao eterno retorno, o Sim só vale se for um Sim à transitoriedade, um Sim à plena transitoriedade: Amor Fati. O ser é unívoco, se diz sempre de uma mesma maneira sobre todas as coisas, mas o que essa boca fala é a própria diferença, a única coisa permanente é a mudança, o devir. Império do fantasma e do simulacro. O Idêntico é a própria diferença, não espera a repetição de uma mesma identidade, mas de uma singularidade pré-individual. Repete-se, mas o que se repete já é outra, a diferença em estado selvagem. Talvez o Sim aqui seja aquele Sim a que Nietzsche tenha chegado somente em Ecce Homo, quando afirma ter sido Alexandre, o grande, numa das vezes em que passou pela Terra. Fica algo de Dionísio em Alexandre, algo de Alexandre em Napoleão, algo de Napoleão em Nietzsche, mas, ao que me consta, Alexandre não tinha bigodes. Já Belchior... Um Nietzsche brasileiro seria ainda mais nietzscheano. Jamais acreditaria num deus que dançasse a valsa vienense, só acreditaria num deus que dançasse samba. E Camus completa: É preciso imaginar Sísifo feliz.

Keyla Sobral (PA). Artista visual, editora e fundadora da revista eletrônica Não-Lugar (www.naolugar.com.br).

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NÃO HÁ RIO

GUARDO-ME SILÊNCIO

Vasco Cavalcante

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guardo-me silêncio lua, avessa luz céu, duras estrelas vias do amor, vastos alicerces estendem-se deito ali, onde tudo é ouro, rio estende, mar excede

Vasco Cavalcante (Belém-PA). Um dos fundadores do grupo de poesia alternativa Fundo de Gaveta, que se manteve na ativa entre os anos 1981 e 1983. Tem poemas publicados na revista virtual “ZUNÁI - Revista de poesia & debates”, e em várias edições da revista literária “Polichinello”. Em 2012 participou da plaquete: “Desvio para o vermelho: treze poetas brasileiros contemporâneos”. Estará lançando em 2014 seu livro de poemas “SOB SILÊNCIO”.

Polichinello nº 16 | Dez anos | Amor fati

não há rio sob meus pés, espelhos de limo e areia profundezas apagam luzes, estrelas um eco a céu aberto retém o limo nas retinas nada me atém nada perdura sou afeito às utopias

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NO LUGAR EM QUE A VIDA PULSA Bianca Coutinho Dias

Um escritor - que estabelece essa relação singular com a linguagem - sabe capturar o nome na ponta da língua, o momento em que a escrita se abre em buraco pelo qual escoa a representação do mundo. Nesse encontro com o vazio, a impotência da linguagem tem como efeito a própria escrita infinita de um corpo diante do irrepresentável com que se defronta. É dessa experiência extrema do sujeito falante que nasce a escrita como mise au silence. Movido pelo que não é capaz de ser escrito, o escritor inscreve sua marca no mundo. Das ruínas e escombros ele extrai a beleza difícil e o imprevisto, a partir do que resta da linguagem esgarçada pelo que a excede, até chegar à fala do indizível.

Marguerite Duras, a quem Lacan dedicou um texto, definiu no livro “Escrever” o que sempre foi para ela esse ato: “[Escrever] é isto que é desconhecido de si, de sua cabeça, de seu corpo. Nem mesmo é uma reflexão. Escrever é uma espécie de faculdade ao lado, paralela à pessoa, uma outra pessoa que surge e avança, invisível, dotada de pensamento, de cólera”. Nessa espécie de rasgo e de risco permanente, Duras nos remete ao pulsional como força que anima a sua escrita e que aponta para as relações entre corpo e linguagem. Na escrita se é outro, um outro de si que se evidencia a partir da impossibilidade de se dizer tudo. Ela escreve apesar do desespero, escreve com o desespero e bordeja o vazio, confirmando a afirmação de Lacan de que toda arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno de um vazio. No Seminário dedicado a James Joyce, Lacan desdobra seu interesse pela escrita e o irrepresentável. A arte de Joyce, com sua escrita enigmática, fascina o psicanalista ao levá-lo a um ponto de embaraço. É a partir desse limite real que Lacan dá um passo a mais, apresentando uma nova concepção de sintoma - que grafa como sinthoma - numa conjunção entre letra e gozo. Seu fascínio por Joyce advém justamente do modo como o escritor utiliza a linguagem, construindo uma escrita em que o jogo de letras revela o lapso, o furo onde se funda a finalidade da escrita: escrever aquilo que não pode ser escrito. As palavras em Joyce chegam como um impasse, naquilo que elas podem guardar de inquietação e vazio, de vida e morte, forjando o “objeto perdido”. A escrita se torna o buraco por onde o gozo escorre e pode se alojar, chuva da linguagem que captura o incapturável e cria uma marca, um rastro, um sulco. Escrita que é, portanto, letra - esse conceito que permite a Lacan sofisticar a noção de real e fortalecer a afirmação de que há uma língua particular para cada sujeito que escreve.

Talvez o poeta seja aquele que pressinta, desde sempre, que a palavra é impotente para responder a nossos questionamentos mais fundamentais sobre nós mesmos e para garantir uma comunicação sem resto, uma cópula perfeita com o outro. Desse pressentimento angustiado surge a poesia - tentativa de tocar um mais além da linguagem, acolhendo a intransponível e radical solidão de cada um. Contornando a ferida aberta no próprio corpo está a palavra, limiar onde se atritam a medida e a desmedida. No devir do corpo e no corpo em devir, Marguerite Duras diz: “Escrever, é isso que se alcança. Isso ou nada”. Tal como Primo Levi descreveu o indizível nos campos de concentração, sabendo que a língua comum não basta para dizer da experiência desmedida. Ou como Paul Celan, que inventou uma poesia à altura dessa não-metáfora absoluta que é Auschwitz, o infigurável da morte. Uma poesia que sabe da fragilidade humana e que abriga também o indizível, o irrepresentável, insistindo nessa tentativa tão precária quanto potente de tentar dizer algo que possa nos deslocar novamente para a vida. Se Nietzsche instituiu o “amor fati”- esse amor ao destino - Lacan fala do “c’est ça “- é isso. Quando se chega ao “é isso” não há mais recuo diante do furo da linguagem. Ao contrário, está aí a função da letra que não se furta de evidenciar algo de radical na linguagem e de extrair da escrita suas conseqüências mais potentes implicadas no tratamento do impossível pelo contingente. “Amor fati” - afirmar a vida naquilo que cabe à escrita literária: lá onde o inexprimível se revela, sustentar a violência da linguagem, mergulhar no vazio siderante da falta e no abismo, e fazer emergir daí o silêncio e um resto impossível de traduzir.

Por escrito a vida condensa-se, desfaz-se para refazer-se. Esgarçando a linguagem, levando-a ao limite, apreendendo-a como ponto de falha na língua, as palavras contornam esse nada do real. Para trazer isso à tona, é necessário um escritor ou um poeta, que possa atuar a partir de seu savoir faire com a língua e sustentar a escrita como escritura - lugar onde as palavras não são usadas como instrumento, mas postas em evidência (encenadas, teatralizadas).

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A letra escreve a diferença e desfruta o que essa verdade tem de inacessível, apaga para melhor escrever, rasura sobre o que não está lá, cria a literatura. Como em Pascal Quignard, onde o literário é, antes de mais nada, coisa escrita. É escrita literária: aquilo que na/da linguagem não é discurso, mas silêncio e, como tal, resiste, rompe, desarticula o discurso e as significações comumente partilhadas.

Bianca Coutinho Dias. Psicanalista lacaniana, crítica de arte, coordenadora do núcleo de investigação em arte e psicanálise do Instituto Figueiredo Ferraz.

Polichinello nº 16 | Dez anos | Amor fati

No lugar em que a vida pulsa, lugar afeito ao informe, ao incompleto, ao precário, uma escrita pode instalar-se. Entre o corpo e aquilo que não se pode representar, surge essa escrita, que é, segundo Jacques Lacan, uma “sulcagem” da imagem - rasura, corte, risco, tropeço no real, ponto de ruptura ou de transbordamento, mas também litoral de onde pode advir o sujeito como uma invenção a ser sustentada permanentemente. Através do corpo textual, esse sujeito acaba por inventar seu próprio corpo e, nesse movimento, constituirá sua verdade, sempre fictícia, mas que determinará sua diferença.

Entre aquilo que se escreve - a ferro e fogo - e a vivência da coisa quase indizível, silenciosa entre nossos corpos, segredada aos nossos abismos, está o contato do homem com a linguagem: essa aberração que nos humaniza, esse despertador para o trágico. Nos resta assumir essa condição e desnaturalizar a existência, não resvalar no banal e encarar a natureza em sua beleza convulsiva a nos interrogar sempre. Escrever na urgência do estilete que rasga a carne, nessa estabilidade precária onde se encontra a palavra, avançando sem garantias, movendo no fracasso da língua a invenção singular que traz o impossivel à tona, apreendendo - no silêncio entre uma e outra palavra - uma linguagem de sobrevivente, que emerge do encontro com a violência e o vazio do mundo, e faz da palavra uma forma de partilha do sensível, aquilo que Rancière afirma como o encontro com o irrepresentável que desconcerta todo o pensamento.

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Marcia Barbieri Fragmento II

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Mergulhei a cabeça até o fundo, até me misturar com o líquido, até perder o ar, até não ver mais as borbulhas, não escutar o estalo da minha pele contra a água, até o barulho não fazer mais sentido. Até nada mais fazer sentido. Até todas as notas se fundirem em um único uivo, um grunhido desesperado. O carvalho fendido. O peixe morto boiando acima do meu riso. A outra orelha do silêncio. O silêncio amarelo sujo e pastoso. O eco redundante das palavras. Círculos e círculos e babas escorrendo em direção ao peito e nada foi dito. Um zumzumzum de ignorantes. Em todas as rodas de conversa nada mais do que a função vazia e enfática da linguagem. A mesmice corroeu todas as papilas gustativas. Era penoso manter um diálogo porque as conversações não passavam de uma tabela, estavam ali, nítidas todas as perguntas e todas as respostas com pequenas variações, era fazer um x e depois outro x e depois x e depois outro, não era possível errar ou se confundir, tudo era muito claro, os pensamentos e os pensadores de toda a humanidade estavam ali, era um jogo, uma análise combinatória. E na minha mente todo esforço era inútil, não havia como sair do fosso que cavamos. Eu saia preocupada em como me afastaria do silêncio se tudo me levava até ele. A traqueia atravessada pelo arpão do arcanjo. A amídala inchada de devaneios. O homem dominou a palavra e a palavra o enforcou. Da onde tiraria outro fôlego¿ Se tivesse duas mãos apertaria a garganta da humanidade para escutar seus gritos, seus gemidos. A boca escancarada de Deus, a língua obcecada impregnada do universo. Salivei uma gosma seca, arenosa, como se tivesse fumado maços e maços de cigarro, recordei a finitude da minha carne, a curva perigosa da anca, os meus buracos desviando a atenção dos homens, as estrias indicando o caminho - todas as trilhas levam ao abismo e ninguém sabia disso - os pelos encravados gerando abscessos, as assimetrias me humanizando. O casco é a parte mais frágil de mim. E todo meu corpo é casco. A imperfeição me aproximou dos idiotas e também me aproximou dos seres degenerados, constantemente me sentia atraída pelos dementes, não tenho vergonha de assumir e arrisco dizer que os idiotas se entregavam com mais torpor ao prazer. Eu não me recordava da degeneração enquanto seus pelos pubianos roçavam meu clitóris. No entanto, esse era um homem diferente, nem degenerado, nem demente, ele Era, com a falência do verbo. Conheci esse homem fissurado, ele era um e era dois, era um jogo binário e juro que preferia jamais tê-lo visto, não era fácil conviver com ele, pois ele era o pólo negativo e o pólo positivo dentro de um pedaço limitado de matéria. Olhava dentro de suas pupilas e era eu lá dentro, distorcida, helicoidal, hermafrodita. Era líquido e sólido. Ele era alfa, mas também era ômega. Poderia rir e chorar simultaneamente, com uma mão ressuscitava e com a outra afogava os desesperados. Causava pena e ódio. Era homem e possuía uma vagina: LINDA, GRANDE, a mais perfeita que já vi, um racho, um rasgo, uma fenda, um pseudoburaco, o saco escrotal generoso orbitava ao redor da sua coxa dura. Tinha um oco rosado no meio das pernas. Um polvo estraçalhado na pélvis. Uns lábios genitais que pendiam e se aproximavam do joelho. O que o tornava tão próximo a mim... Por isso, talvez eu fosse tão conivente... Porque também me incomodava essa carne despencada, quase roçando a angústia. Talvez por isso eu me via através dele. Eu me sentia uma planta enxertada, hibrida. Uma planta sem raiz fixa. Seus seios desconjuntados infecundos caiam por cima de sua cavidade torácica. E nenhuma criança jamais se alimentaria daqueles peitos imundos. Era um privilégio conhecer o duplo, poucos tiveram essa oportunidade, a maioria morrerá à míngua sem

nunca ter conhecido seu duplo. Era um espelho sem moldura que se apresentava a minha frente. Sinal de sorte, alguns tolos diziam. As pessoas falam o que lhes vem à cabeça, os dementes não possuem filtro, não sabem quando devem se calar. Gosto dos seres silenciosos e brancos que pendem durante as manhãs frias e trazem suturas na face, o peixe morre pela boca, o homem se acostumou a criar aftas, feridas alastram seu palato, morde a isca, mas não a engole, a deixa entalada até escorrer fatigada/ fatiada pelo esôfago. Cisão, li essa palavra em alguma narrativa e nunca mais esqueci. Uma palavra triste, que traz desgraça no miolo. Era apegada a pequenos desafetos, por isso alimentava as baratas os besouros os escaravelhos que encontrava na escuridão-esgoto-armadilha dos seus lábios. Não matava piolhos ou carrapatos, os enterrava vivos. Cindida, era assim que eu era desde o começo, quando o vi através do espelho do fundo, no começo ele era apenas um ponto preto, pequeno, difuso, um borrão. Eu era bipartida quando a baba povoava o queixo, quando ainda não tinha a noção de que as coisas se dividiam em períodos e a minha coluna vertebral ainda se prolongava em um rabo. Às vezes, ainda sinto dores no rabo, como se meu cóccix não tivesse fim, um apêndice do mundo. Ninguém precisa escutar essa conversa fiada, eu sei. Colo o ouvido na parede. Gosto desses cochichos, o som dos insetos devorando o barro. Prendo a respiração para escutar melhor. Um pernilongo adormece na minha cara – desassossego – entra pelo meu nariz e sai pela minha boca. Atravesso a minha atenção para o outro lado. O som me desperta. Um barulho de faca afiando a pedra. O aço amortecendo o sonho da rocha coalhando o chão decantando a vida, as células povoam os rios, surgem os primeiros seres autótrofos. Vidros moídos com as mãos inábeis de um louco. Loucos detestam outros loucos. Identificação. Os sanatórios foram exterminados, não havia espaço para tantos dementes, o mundo agora é o verdadeiro hospício, sem grades de proteção, sem camisas de força. Caminhamos nus e ninguém ousa nos punir. Durmo e sonho com a polução do universo sujando as feridas do meu útero. Chupo seus dedos, um a um, como suas mãos. O dedo era um só (penso na solidão das masturbações) e eram múltiplas as impressões digitais. Homens refratários. Olho minha face de relance. Meu perfil traz a tristeza fatiada.

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A PUTA

Marcia Barbieri (SP). Autora de “Anéis de Saturno” (Clube de Autores). “As mãos mirradas de Deus” (editora Multifoco).

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MOFO Suelen Carvalho

porém ainda pulsantes. Parte estava em armários. Livros e revistas ficavam em prateleiras. Nenhuma ordem, apenas caixas e etiquetas de identificação pelo chão. O espaço deste quarto já se esgotara e muitas coisas já estavam sendo colocadas nos outros compartimentos da casa, na sala e nos corredores. Ravena não tinha mais lugar para tanto, precisava desocupar. A decisão significava também reavaliar o que serve carregar com a vida e o que é necessário deixar para trás como questão de sobrevivência. Naquela manhã, com Solange, ela encarou aquele monstro e sabia que uma decisão drástica precisava ser tomada. - Vamos jogar fora todos os jornais. - Que bom dona Ravena! Já vai um monte de mofo junto. - Todos os livros, revistas e os álbuns de foto ficam. - Então, as caixas de brinquedos podemos doar?

Por isso, nesses dias de faxina, Ravena sempre estava acompanhada de Solange, sua diarista há muito anos. A maranhense de vinte e quatro anos, vinda ainda criança para Belém, era considerada uma ótima arrumadeira e impiedosa quando o assunto era jogar entulho fora. Parecia milagre, pelas suas mãos tudo ganhava ordem e arejo. Quem a via não poderia acreditar que Solange fosse capaz de influenciar as decisões da advogada Ravena. A menina negra e pequena, não media um metro e meia. Era magra, com feições de anjo, que seriam mais evidentes se não alisasse os cabelos naturalmente encaracolados. Já era adulta, mas com compleição de criança. E quando indagada sobre o que deve ser jogado fora, era categórica e firme. - Isso junta muito mofo, faz mal pra saúde. Com a desculpa da ‘vida saudável’, Solange já tinha conseguido induzir Ravena a se desfazer de poucas coisas, como algumas revistas, roupas que tinha usado muito, sapatos. Nada além disso. Mas sabia que chegaria o momento em que a patroa teria que escolher entre acumular e conseguir caminhar dentro da própria casa. Ainda tinha o problema do mofo, o grande inimigo das memórias de Ravena. Vencer a umidade não era tarefa fácil para quem gosta de guardar, ainda mais em Belém. Cansou de encontrar papeis molhados e bolorentos. Tentava salvar alguma coisa com o secador de cabelo, mas nem sempre funcionava. A água estava no ar, consumindo tudo, não havia escapatória. Produtos antimofo, giz, receitinhas da tia da amiga da prima, dicas da avó, desumidificador. Quase nada amenizava o avanço das matérias orgânicas invisíveis em decomposição. De janeiro a maio era bem pior, porque a chuva não cessava e a atmosfera da cidade estava sempre irrigada. Até a pele parecia envolvida por um orvalho pegajoso. Mesmo assim, Ravena guardava de tudo e em grande volume: cartas das primas durante a adolescência, brinquedos da infância, a anágua da avó morta há uma década, o cordão umbilical dos dois irmãos menores, os arranjos de patchouli das festas juninas, as provas nota dez dos anos do primário, as apostilas do pré-vestibular, os ingressos de cinema e shows musicais, guardanapos de papel decorados de restaurante, pedras das praias que pisou. Sem contar as revistas, fotos, livros, jornais...

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O apartamento de Ravena tinha dois quartos grandes e a sua suíte. Um quarto estava sempre pronto para algum hóspede. Dificilmente era ocupado, nem mesmo por parentes distantes que chegavam à cidade para o Círio em outubro. O outro funcionava como um grande arquivo do passado dela, cheio de coisas de um tempo feliz e passageiro, que encobertavam os restos mortais de memórias inaceitáveis,

- Mas os brinquedos... - Dona Ravena, eles ocupam muito espaço e ficam aí fechados. Imagina o tanto de menina que não tem uma boneca! – Solange apelou para a culpa e assim convenceu Ravena, que por nunca ter tido filhos, ficava comovida com qualquer menção à carência infantil. - É verdade... - Vamos começar? – perguntou Solange. - ... Começaram então a tirar todos os jornais com matérias especiais e fotos do Roberto Carlos, organizados em pastas pretas com folhas de plástico. Eram mais de quatro caixotes de televisão 14 polegadas. Desde a década de 1980, Ravena não era mais tão fanática e a coleção ia de 1962 a 1982, quando o Rei lançou o disco com a música Fera Ferida. Apesar de lamentar ficar sem aqueles recortes, não foi tão difícil jogá-los fora. - A senhora gostava mesmo de Roberto Carlos, né dona Ravena? - Eu era louca por ele, mas depois passou. Era da idade. - A senhora não teve namorado nessa época também? - Solange ousou perguntar, para matar uma curiosidade de anos, mas ficou com a face contraída e apreensiva na expectativa da resposta da patroa. Diria sim ou não, tranquilamente, ou repreenderia o intrometimento da diarista? - Ah, tive alguns namorados, mas nunca gostei de homem no meu pé. Gosto de ser livre – disse Ravena, acreditando que a autossuficiência disfarçaria o tom amargurado em sua voz ao tocar no assunto. Solange refletiu sobre qual tipo de liberdade acredita que tem uma pessoa que guarda tanta coisa velha. Uma mulher que carrega tanto peso, não pode ir muito longe. Ela não esquecia à toa, talvez por esse motivo dê um jeito de acumular o tempo que viveu, mas não passou. Tudo isso fez Ravena lembrar o rompimento com o irmão Luís, que a mantinha afastada da família há mais de quinze anos. Elas continuaram a abrir caixas e encontrar coisas antigas, como a camiseta de algodão amarela com o mascote da copa de 1986, no México, uma máquina de escrever Olivetti, um telefone a disco Ericsson branco, a lembrança da primeira comunhão, o contive da festa de quinze anos, papeis de carta em branco, contas de luz do antigo apartamento kitnet, a faixa de miss de 1976. Mesmo cinquentona, como a chamavam os colegas de trabalho, Ravena conservava uma beleza tenra, como a pele morena do rosto e o brilho dos cabelos. Tudo que ela conquistou na vida, como um emprego público estável e bom salário, investiu em si, em um bom apartamento no Umarizal, carro do ano, viagens, roupas caras e elegantes, academia e tratamentos de beleza e bem-estar. Até agora não tinha cedido a cirurgias plásticas, mas não descartava

Polichinello nº 16 | Dez anos | Amor fati

Todo dia de limpeza geral em casa, o mesmo drama: desocupar espaço para as coisas novas. Porém, como definir o que tem mais ou menos valor? Como escolher o que vai ou não parar no lixo? A mulher de cinquenta e dois anos que desde a faculdade vivia sozinha, não sabia tomar essas decisões. Causava o mesmo abalo de quem é obrigado a condenar alguém a morte, conhecendo a inocência do réu.

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a possibilidade. Ainda conseguia manter as curvas e o tônus da pele sem parecer esticada. - A senhora foi miss, dona Ravena! – admirou-se Solange enquanto levava para o corredor caixas de coisas que seriam descartadas.

literatura menipéia e literatura brasileira alberto lins caldas

- Por que o espanto já? – retrucou Ravena.

- Isso foi só uma brincadeira em uma festa de amigos. Só – cortou a conversa. Algumas coisas, ela separou em uma caixa de madeira decorada com madrepérola, como o umbigo dos irmãos, deixado pela mãe, a anágua da avó, a faixa de miss, os convites de aniversário e primeira comunhão. Outras, como a camiseta, o patchouli, as provas e apostilas de escola, ingressos, guardanapos e pedras, jogou fora. A máquina de escrever e o telefone seriam doados junto com os brinquedos para o Movimento de Emaús. Ravena sentiu muita vontade de chorar. Rever aquelas coisas, que de alguma forma eram lixo, era cortante na memória. Seu próprio lixo, ela se sentia. Aos poucos o quarto foi ficando arejado e Ravena um pouco mais leve. Ela percebeu que muitas coisas poderiam ser feitas para afastar os fantasmas e aproximar as pessoas. Porém, sentia cordas que amarravam suas pernas e a impediam de passos à frente. Foi quando, em uma das caixas, encontrou um envelope amarelado, manchado pelo longo período em que fora guardado para uma ocasião adequada. Antes de abrir, já lembrou do que se tratava: um cartão de pedido de desculpas, mas em branco. Ela, então, foi levada há pelo menos vinte anos atrás, quando o tinha comprado. Em Florença, na Itália, na saída do Uffizzi, Ravena parou para comprar souvenirs na livraria própria do museu. Ela procurava uma reprodução qualquer do Nascimento de Vênus, de Botticelli, comprou algumas lembranças para os parentes e amigos especiais. Em uma seção que nada tinha de artístico, viu um cartãozinho em que uma figura estranha, um boneco gordo com um dos olhos machucado e roxo por ter levado um soco, fitava o interlocutor e dizia em uma balão “Ricominciamo”. No momento, não tinha para quem pedir desculpas ou perdão, mesmo assim o desenho simpático a convenceu a levá-lo para casa, seria usada certamente em alguma oportunidade futura. Afinal, na vida não faltam circunstâncias onde a única coisa que cura é um pedido de perdão. No caso do cartão, impressionou entender que quem estava pedindo para ‘começar de novo’ era quem estava ferido. Naquela manhã, quando esvaziar armários, limpar o mofo e jogar muito lixo fora significava um exorcismo da memória, do passado, ao encontrar o cartão jamais utilizado, entendeu como um pedido singelo como o daquele bonequinho bastaria para sanar toda a angústia encravada no peito. Pegou o cartão, escolheu um livro aleatório na estante e o enfiou entre as páginas. Pensou em qual situação da vida vai estar quando sem querer encontrá-lo novamente. Não gravou o nome do livro.

*. a experiência da tradição não pode mais nos dar nem os frutos da tradição nem a tradição dos frutos: nem a massa tradicional nem a negação da tradição: mas nos resta o gesto vital e fundador de enfrentar o horror com todas as armas da literatura. o viver continuado na “máquina tribal” (a nossa tribo, o “ocidente”, o “capitalismo”, a “cristandade” – isso agora mundo) despotencializa a força da narrativa por despotencializar, antes, a força, ou melhor, no nosso caso, a narrativa da força, deixando só o usufruto, o consumo ruminante de mercadorias e das forças já fracas tornadas suco de laranja. a força da narrativa se tornou também e só um suco de laranja, uma mercadoria aguada pro consumo de classes médias loucas por água com açúcar. a narrativa da força foi passando, não é mais força narrada, mas força fraca, força vencida, a última força, “o fim das forças”. o poema, em toda sua grandeza épica, trágica, narrativa, carnal e dramática passou pela entrega ao nada de nada do suco de laranja. prosa se tornou best seller e a poesia, essa coisinha patética e tolamente egóica, se tornou pastiche de um “eu” esgotado inteiramente no século xix e ainda continuando por inércia ridícula ou paródica, essa coisa q não existe sem algo maior ao seu lado. num mundo de forças fracas, forças reativas – criar uma narrativa da força, criar uma força da narrativa, é um feito doloroso e profundamente alegre. a força da narrativa só se potencializa quando produz e é ativamente a narrativa da força, força menipéia, dionisíaca, vital – esse passo além do mercado. mas é preciso estar dentro, diante e com as forças e não apenas inventando uma força, delirando forças. a classe média, enquanto “classe produtora de intelectuais e artistas”, olha de longe a força criadora do existente, como aquele q olha e não sabe o q acontece, sendo apenas descritor, jornalista e sociólogos travestidos de escritor. a força da narrativa decai a níveis mínimos. o afastamento do poemata das potências de produção do existente levam o poema a ser apenas um recado, um textículo, uma mensagem, uma prosa aguada, algo degustável, algo apenas algo, uma poesia (essa coisinha desgastada e de “funcionário público”). nada disso pode se tornar literatura, poema, senão numa dobra de força, numa torção violenta e perversa criando outra perspectiva. um gesto de mudança e diferença não é feito pela crítica, pela teoria, pelo saber, mas pelo reposicionamento prático na vida, do corpo na escrita da vida, essa vida mais profunda q não se confunde com a “minha vida” nem a “nossa vida”, mas com os fluxos mais profundos do viver nosso. uma torção da coragem e da indignação, uma torção de enfrentamento. ***

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Suelen Carvalho (PA). É jornalista, finaliza o seu primeiro romance.

*. o espírito do “diálogo socrático” é o estofo dessa da dimensão menipéia e dionisíaca q, sendo essencialmente dialógica, se contrapõe ao plástico monologismo da oligarquia das letras (a literatura brasileira) e do lócus de inspeção. não é somente a “genealogia” da literatura menipéia, mas sua condição inescapável {como dizia ortega, “esta crítica de las costumbres vigentes, esta flagelación de la sociedad (...) con fiero ojo de cazador furtivo. (...) Le mueve el rencor. (...) en su forma extrema una literatura corrosiva, compuesta con puras negaciones” (ortega y gasset, vol. II: 121): o ressentimento tenaz, a ferocidade, a intratabilidade, a busca cruel e carniceira, a negação radical: sem concessão, sem negociação, sem consentimento, sem transação, sem cumplicidade}: sua trama, mesmo podendo se fazer fora da forma tradicional de diálogo, busca “dar a luz”, partejar o real não percebido, o real disperso em tempo e discurso, fazer o outro encontrar tanto seu programa pessoal (como, quando, por q, pra q, pra o q, pra quem fomos inscritos, tornados

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- Estou espantada não, a senhora é muito bonita, só não sabia que já tinha desfilado – tentou se justificar.

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*. a literatura menipéia não é feita pra alegrar o rei; alisar governos e instituições; satisfazer amigos e companheiros; receber prêmios depois de cantarem em pé e emocionados o nossohino; completar e dignificar o trabalho da repartição; realizar a lógica do senhor com a palavra dos servos; descansar leitores; enriquecer mercadores e mercados; criar espaço na mídia ou realizar vocações: é parte vital da busca pessoal, terrorista, masturbatória, de compreensão e interferência na existência. o escritor {funcionário, membro da oligarquia das letras} desaparece pra se tornar um parresiata, um libertino: a parrhesia é sua língua e sua meta. *. a literatura não ta/não se encontra na língua, no povo, na tradição, na nação, no cânone, na cultura, mas entre-nós: se faz numa ação contra, em coagulações momentâneas de ficção, transversais de negatividades. sua forma de existência é de interstício {cavidade, abertura, fenda, fissura, fragmento, fratura, fresta, frincha, greta, racha, rachadura, resquício, rombo, ruptura, vazio}: entre-nós, o q penetra e reúne, o q rearticula pra ser, o q se esvazia pra se tornar, o q se torna por não ser, logo, traz o além de nós: o antes, o agora e o depois: o tempo como adensamento vivo da virtualidade: literatura é diálogo {o q não cessa, o q não para no limite, o q não aceita nem cede}. *. pôr em disputa as perspectivas: essa disputa requer uma forma: essa forma deve ser dialógica, fragmentar, polidimensional, hipertexto em sua efetividade: o resultado é guerrilha, articulações do disperso, deixando de haver “a sociedade” pra se chegar à virtualidade, bem fora dos discursos dos escritores q são sempre o melhor da teoria e o péssimo ridículo da prática. *. não somente o confronto de pontos de vista, de corpos, de sexos, de tempos, de explorações, de ideias, mas articulações conflituosas das multiplicidades em devires da virtualidade, unindo os nódulos perversos, possibilitando a consciência do disperso e da alteridade, mas não pro “conhecimento” ou o prazer, e sim pro arsenal da negatividade. *. forma flexível: forma-confronto: mutável, misturando, con-fundindo e penetrando todos os gêneros: presença do humor, do riso, do ridículo, do farsesco, da paródia, da paranoia, do grotesco {mas não pra fazer rir, pro prazer sutil do rei, pro deleite gordo dos q podem, dos q têm tempo}: forma geral livre das limitações espacio-temporais, da história, da dimensão jornalística do imediato: liberta do simples memorialismo: não se prende à verossimilhança ou usa ela contra ela mesma: não cai na descrição bairrista dizendo q é universal ou global: invenção temática e filosófica criando hipertexto onde se experimenta a articulação do inarticulado {o articulado é a ideia schopenhaueriana e o desarticulado é o real}, provocando a verdade, os sentidos, a vida social, as naturalizações e universalizações.

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*. dimensões da forma menipéia: reordenamento: palimpsesto: escrever sobre outro texto, com outro texto, reordenando seus materiais, sua forma, suas palavras e imagens: corpo de aranha infestado por ovos de vespa: articulação entre tempos, corpos, intertextos, vidas diversas: método cinematográfico, técnica onírica, interferência e substituição: a ordem a ser seguida depende das escolhas pessoais: partes separadas se unem e juntas se separam: a estrutura nasce da reorganização virótica da outra: fundir personagens: separar em muitos um só personagem: misturar falas: substituir elementos: desdobramento do q ta dobrado e dobramento do desdobrado: condensação, distensão, retesamento, exageração, deslocamento, permutação, montagem: cortar, separar, unir: juntar planos, reestruturar cenas, criar sequencias nos vazios, esvaziar os cheios: cortar e recompor com sutileza, com lentidão, com violência, com suturas visíveis e invisíveis: não há corte errado: um novo sentido é construído durante a escrita do outro texto: o tempo é refeito: a reordenação cria nova sequencia e novas relações entre o “texto matriz” e o novo texto, q se tornam entre si tão distantes ou tão próximos quanto com qualquer outro texto: um texto se escreve sobre outro texto ao sabor da leitura-escrita: palavras chamam frases, denunciam ideias, atraem imagens, mistura parágrafos sobre parágrafos: o resultado é sempre o q se escreveu, não sobre o q se escreveu: o texto é somente pré-

texto: a superação hegeliana da paródia, da matriz, da tradição enquanto encontro real dum enfrentamento. *. seres no limiar, em situações limites, em dimensões psicológicas, éticas e morais “anormais”. aquilo q destrói a integridade: o duplo, a loucura, o sonho, o campo de concentração, a tortura, a doença, a velhice, a coisificação, a exploração: mas tudo pra criar e recriar o hipertexto q é o real: não é criar o espetáculo dos horrores, mas desvendar o horror do espetáculo. *. “violação dos discursos”, a “palavra inoportuna”, a franqueza, o des-mascaramento, a profanação, o desrespeito: “contrastes agudos”, passagens bruscas: “gêneros intercalados”, fusão de discursos, “multiplicidade de estilos”, estilos da multiplicidade, per-furação dos limites tornando tudo, toda estabilidade, relativo. tudo é “levado ao extremo”. pra desvendar, por exemplo, os tons pastosos, senhoriais, bacharelescos e servidores da Literatura brasileira é preciso levar eles até seu limite, suas contradicções, suas temporalidades viciadas, suas harmonias de tumor não percebido. *. na literatura menipéia a essência do diálogo socrático, com sua dimensão irônica e a maiêutica, permanecem como matéria constitutiva, não como elemento descartável. não são “origem”, superados depois. são dimensões fortes: o encontro, o confronto, com a própria consciência, com a dos outros, com o mundo; a luta contra crenças, desejos, naturalizações; explorações, humilhações; a luta por uma cada vez mais clara consciência. a ironia não é jogo engraçado e sutil, mas demolição, enfrentamento; não é catarse, estilo, espiritualidade, mas compreensão do turvo, do equívoco, da dor, da distância entre nós. a maiêutica continua com sua força de parturiar (a Literatura pastoreia) a consciência (uma das principais “funções” da literatura), fazendo aparecer os programas básicos da singularidade e da virtualidade. essa literatura é libertina: não esconde o escravo, a escravidão, o horror das explorações, dos preconceitos numa boa escrita, num “bem escrever”, num “contar bem uma história”, numa confusão primária e ideológica entre aparência e tempo, não escreve pro “meu bom leitor”. *. ironia é denuncia, é exposição das monofonias, das dualidades satisfeitas, é sutileza q, ao “dizer uma coisa por outra”, não deixa de enfrentar, de con-testar essa coisa: é recusa à toda aquiescência, a toda passividade. a ironia socrática questiona o outro, o mundo e a si mesmo, aceitando o outro até o momento de fazer com q ele mesmo encontre seu fundamento vazio, suas crenças no ar, seus sentidos feitos por um mundo mutável, onde nós mesmos somos nódulos discursivos. ironia sem crítica, sem ação corrosiva, sem chicote na mão, sem guerrilha, sem vírus pra infestar sistemas, sem negatividade radical não é ironia, é exercício de estilo, é jornalismo, é crônica: “é para você, leitor amigo”. *. a literatura menipéia é incômoda; ela sempre tem razão porq não tem partido, facção, grupo, bando: sua razão é contra todos; nem vencidos nem vencedores; sua acidez, sua cólera, sua indignação, seu ataque, seu terrorismo se dá contra racionais e irracionais, escravistas e abolicionistas, republicanos e monarquistas, ruralistas e metropolitanos, direitas e esquerdas, modernistas e anti-modernos, comunistas e capitalistas, nazistas e anti-nazistas, negros e brancos, judeus e árabes, homens e mulheres, amigos e inimigos, teistas e ateus, pós-modernistas e nacionalistas. *** *. a Literatura brasileira, ao não passar por uma tempestade dionisíaca, por um riso realmente cínico e menipaico, longe do riso educado, medroso e frio de machado de assis, deixou de abrir e manter aberto a perspectiva da literatura: como a língua espanhola com dom quixote, a francesa com gargantua, a inglesa com morus, sterne, swift (daí o não-mistério de joyce). a língua portuguesa com camões e vieira, com camillo e eça, com alencar, machado, graciliano e guimarães rosa, não conseguiu ultrapassar o limite ecumênico, o limite descritivo, moral, religioso, historiográfico, memorialístico e, essencialmente, jornalístico. daí o aguado de todos os seus “enfrentamentos”, o pouco das suas invenções, na verdade, todos com um contar histórias dentro da ordem do estado, do povo e das crenças. um enfrentamento impotente, uma ação entre amigos no horizonte do leitor e do estado nação.

alberto lins caldas autor de: “experiência e narrativa” (edufal, maceió, 2013). é editor da revista digital “zona de impacto”.

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persona) quanto o próprio real enquanto virtualidade social sem perder sua essência ficcional: a sátira {a oferenda de vários frutos}, a paródia, o drama, a tragédia se unem pra “tornar patente” o viver. vai em busca de nódulos perversos, monofônicos, monodimensionais, lineares pra expor, pra se expor, tornando visível o q não é visto, mas é vivido como natural, social, pessoal, histórico ou divino. a teatralização interna {por personas, planos de oposição, temporalidades, radicais alteridades em autêntico confronto} é sua arma polifônica contra a voz única q não representa muitas outras vozes e posições, outros corpos e experiências: é uma voz q não se esconde, mas se revela e se supera.

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FRAGMENTOS

IV

Ramon Cardeal

“As visões dos sonhos são a semelhança das coisas, e o espelho e o sonho se podem comparar: A imagem de um homem diante de seu próprio rosto.” Eclesiástico, 34,3 “Tranquilidade, entrando profundo na rocha pela voz da cigarra” Matsuo Basho “Toda noite uma fada perfuma meu sonho fantástico com os mais frescos, mais ternos hálitos” Gaspard de la nuit, Aloysius Bertrand

I ...a realidade é imemorial e escuro é o esquecimento e a recordação um átimo de luz. II - Floresceu em uma cidade famosa por suas escolas de magos, filósofos e artistas. Foi um prestigiado oniromante e a busca da ciência de interpretar os sonhos o levou a incontáveis viagens. Visitou os mais renomados mestres da onirocrícia, mas também bebeu com os adivinhos charlatões das feiras e os aedos das praças públicas. Conheceu a miséria e a fortuna e terminou seus dias em uma residência sublime, hoje em ruinas, em cujo frontispício mandou cunhar a seguinte invocação: Que os ventos da noite guiem meu barco durante o dia e que os sonhos manifestem em mim a sabedoria, para que o ascender e o sucumbir seja apenas satisfação!

Também um escravo disse: - Sonhei que era um verme vivendo embaixo da terra sob as raízes e depois de muitos anos virei em um inseto voador, a zunir de uma felicidade indescritível. A forma de verme vivendo a maior parte da vida sob a terra na penumbra significa a penosa vida de escravo. A forma de inseto voador sibilando significa que os méritos conduzem a liberdade, a felicidade e morte livre. V - Ao cair da noite, dominadora dos homens e dos deuses, como bem cantou Homero, a luz da lâmpada bruxuleou como se dissesse: Meditar na cigarra que para cantar apenas uma semana, e morrer, passa anos e anos em estado de larva – a ninfa silenciosa. A luz apagou e ao adormecer também, um oniromante, sonhou viver em fase de ninfa nutrida do húmus e das seivas dos caules e depois de inúmeros anos virou um inseto adulto com asas extravagantes, de um canto agudo, apenas gozo. Acordou sobressaltado e depois o sono veio e sonhou novamente o mesmo sonho, varias vezes o mesmo sonho. Os sonhos demostram fases da vida de trabalho, cansaço, prazer e felicidade, mas também são as vozes desconhecidas, silêncio omisso que tudo sopra, saber que tudo habita, saber sem saber, oráculo interno que grita: Não há a nada a decifrar. Ao dormir o homem descansa como na morte. A existência continua, mesmo após a morte, no mundo. Ao dormir continuamos nos projetando no sonho, no mundo. Fluxo constante. Nossa vida não é a nossa vida e nosso corpo não nos pertence e nosso pensamento é um pensamento outro. Somos o fora de nós, somos o enigma inseto que ensina deixar tudo mais ser o que sempre foi: êxtase.

III

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Um rico ancião um dia confessou: - Sonhei ser um inseto em forma de larva de olhos enormes vivendo em um mundo subterrâneo, frio e escuro, me alimentando da seiva de raízes. Permaneci nessa forma durante muito tempo, parecia uma eternidade, mas estava contente e acostumado com meu esquisito aspecto. Oque parecia ser meu único destino em um átimo se transformou. De repente me vi em um mundo de luzes e asas enormes nasceram de minhas costas e eu já era um belo inseto que estridulava uma música belíssima atraindo inúmeras fêmeas e fui invadido por um prazer indescritível até que acordei. A forma larval em um subterrâneo significa toda a vida de trabalho e cansaço empregada apenas para a sobrevivência. A forma de inseto com asas, a música e luzes atraindo as fêmeas significa que quando temos mais do que o suficiente é preciso usufruir de maneira prazerosa tudo o conquistado e o mais breve possível, pois com a idade avançada não há tempo a perder.

Ramon Cardeal (PA). Poeta e tradutor. Autor de O Estrangeiro e outros andarilhos (edições IAP, 2012)

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AO MAX MARTINS, A CRÍTICA EXPANDIDA Élida Lima

“Um dos maiores e mais secretos poetas brasileiros.” António Cabrita, 20023

AO POEMA, O ENFRENTAMENTO | Pinçado de uma fala de João Cezar de Castro Rocha2 Crítica e crise são, etimologicamente, palavras irmãs. A palavra análise também partilha o mesmo campo semântico, de origem grega. Toda atitude crítica gera uma crise, porque toda atitude crítica é uma atitude de questionamento dos próprios pressupostos, ou deveria ser. Uma análise que não produz crise não é suficientemente crítica. A crise produzida pelo ato crítico deveria ser uma crise do sujeito do conhecimento, e não do objeto. A crise da crítica literária contemporânea é derivada de certo encastelamento da produção acadêmica, que parte do princípio de que sua tarefa é a avaliação de objetos. Mas a tarefa da crítica é a reavaliação contínua de seus próprios desígnios críticos e teóricos a partir do enfrentamento com uma nova obra. À CRÍTICA, O COLORIDO Colorida. Assim é nomeada a crítica desejada por Alberto Pucheu no livro Pelo colorido, para além do cinzento – A literatura e seus entornos interventivos, termo cunhado em referência a certa crítica cinzenta de Antonio Candido, que, em 2004, propõe que “a crítica é cinzenta, e verdejante o áureo texto que ela aborda”. Mas não é nova essa crítica criadora. Disseram-me certa vez: “Fazem isso todos os bons ensaístas.” Eduardo Portella (UFRJ) já havia escrito em 1970 o seu essencial Fundamento da investigação literária, em que reafirma que “crítica é criação” e censura, por sua vez, “a crítica que, na sua orgia operativa, recusa, corta, aquelas manifestações que transbordam os seus instrumentais: os abismos do texto”. A crítica colorida aparece, ainda, como crítica expandida, em Alberto Pucheu (UFRJ) e Roberto Corrêa dos Santos (UERJ), conceito que um gosta de dever ao outro, numa produção constante de simpatias e intensidades1 onde, em tudo, está em jogo uma crítica expandida. Alberto Pucheu enxerga em seu próprio livro intitulado Roberto Corrêa dos Santos: o poema contemporâneo enquanto o “ensaio teórico-crítico-experimental”, enquanto realiza, desde os anos 1990, o “poema expandido”, “poema teórico”, uma “teoria poética que contém fluidas imagens”, o “conceito experimentante”, consonante em Guattari: “O problema, portanto, não é o de construir pontes entre campos já constituídos e separados uns dos outros, mas de criar novas máquinas teóricas e práticas capazes de varrer as estratificações anteriores e estabelecer as condições para um novo exercício do desejo.” O conceito experimentante vivifica-se numa “escrita teórica pautada pelas proposições livres”. A crítica expandida é, portanto, requisitante de experimentações. E, se “deixar em liberdade o pensamento é voltar ao ritmo”, com Octavio Paz lembramos que uma escrita teórica pautada pelas proposições livres é, então, uma escrita poética. Pucheu nos conta que trabalhos com essa nova configuração crítica, experimentais como as proposições livres, “vão conquistando suas modalidades flexíveis de uma maneira inteiramente órfã no Brasil”. 1 Se Pucheu, em 2010, escreve que “admira a grandeza da obra teórica-crítica-poética-experimental de Roberto Corrêa dos Santos, chamada por ele também de poema”, Roberto Corrêa menciona, em 2007, “a graça pujante da teoriapoema-drama-filosofia-prosa que Alberto Pucheu, em hábil bailado, coreografa”.

Foi de maneira inteiramente órfã que Cartas ao Max2 propôs uma crítica da obra de Max Martins que se apresentou como carta, como narrativa, como bilhete, como conversa, como entrevista, como convite, como autorização, como poema, uma crítica multigêneros; e é com menos orfandade que essa obra, vinda de diferentes lugares, encontra o paradigma do poema expandido e uma filiação ancestral ou irmandade tardia com a crítica expandida, colorida e dramática de Pucheu e Roberto Corrêa, e ancoramento a-metodológico nos estudos de Eduardo Portella, que, desde 1970, é contundente: “uma crítica não criativa não pode ver a criação”. Um estudo prático de poesia, um estudo filosófico, um estudo crítico, um estudo clínico, um estudo patológico, afirmativo, enfim, um estudo artístico de poesia. Como autoriza Roberto Corrêa dos Santos, o fazer poético expandido pode abarcar arte, ensino e clínica, já que “as revelações afrouxam a vida”, tornando-a mais respirável, mais livre. Um estudo marcado pela investigação do ser poético. Essa é a exigência de um pensamento contemporâneo. “Será a apreensão do objeto por uma linguagem consciente de si?” Um projeto experimental que procura claramente, como sugere Pucheu, “desmanchar o cerceamento do método”4. Com o rigor dos estados inéditos, a crítica expandida é o desejo de linguagem eclodindo na relação com a obra. Uma crítica que não pretende explicar Max Martins, mas revelar um Max Martins ao leitor. “Digo revelação e não explicação, porque se for uma explicação teremos deixado de ver e ouvir para só entender”, como nos ensina Octavio Paz, em seu veraz manifesto poético O arco e a lira. Como é possível produzir essa escrita expandida e suas revelações? Roberto Corrêa dos Santos pinça, preciosamente, o caráter desse fazer, ao escrever a introdução para o “quase manifesto” – como classificado, pelo próprio autor, o livro Pelo colorido, para além do cinzento – A literatura e seus entornos interventivos – de Alberto Pucheu, : “Uma obra de escrita da crítica que tenha por norte dois grandes signos: a simpatia (o afetuoso aproximar-se do que seja da ordem do afirmativo) e a intensidade (o árduo operar, dando-se com todo o corpo).” Se ingressar no livro, como quer Pucheu, “é aceitar o traço traumático colocado pelo escritor desde a abertura da linha inicial”, fazer uma crítica expandida da obra de Max Martins é encarnar as marcas da vidapoesia e de sua doação com todo o corpo, vendo e ouvindo, entregando-se ao árduo operar dos estados inéditos e afirmando os devires no corpo-texto. Não ir direto aos fins, mas, construindo um novo corpo, fazer da escritura um meio sem fim. O que está em jogo não é senão o desejo do crítico, não mais atrapado pelo conhecimento. Uma crítica capaz de criar o seu próprio gênero, um gênero singular, como espera Deleuze: “o filho monstruoso”;3 fruto do encontro da potência na leitura com a potência latente na obra do autor: se é carta, se é tratado, se é performance textual, de toda maneira, é “crítica instauradora de um acontecimento favorável à aparição da potência”5.

2 Lima, Élida. Cartas ao Max: limiar afetivo da obra de Max Martins. São Paulo: Invisíveis Produções, 2013. 3 “Eu me imaginava chegando pelas costas de um autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e no entanto seria monstruoso. Que fosse seu era muito importante, porque o autor precisava efetivamente ter dito tudo aquilo que eu lhe fazia dizer. Mas que o filho fosse monstruoso também representava uma necessidade, porque era preciso passar por toda espécie de descentramentos, deslizes, quebras, emissões secretas que me deram muito prazer.” Deleuze, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

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“Minha poesia tem uma relação muito veemente com a vida. É poesiavida, vidapoesia.” Max Martins, 20001

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AO MAX MARTINS, A CRÍTICA EXPANDIDA

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A preocupação da minha obra em relação à recepção da obra de Max Martins é fazer viver o gesto expansivo de sua poesia ao tocar nele por meio de palavras. Afinal, “as redes que pescam palavras são feitas de palavras”, como nos ensina Octavio Paz. Dar a ver a expansão presente nessa poética criadora e, ao mesmo tempo, requerer o movimento expansivo para a crítica literária, enquanto o realiza expansivamente (“meios sem fins”) na liberdade própria da escrita. Requerer para a crítica literária certos gestos presentes na poesia de Max Martins: o contorno existencial, a doação criadora, o segredo, as portas abertas, a expansão. O jogo de espelhosrebatimentos entre a poesia expansiva em Max Martins e a necessidade contemporânea de uma crítica expandida está em função do valor da escritura enquanto potencializadora da capacidade de afirmação da vida. Dar a ver a expansão presente na crítica criadora e, ao mesmo tempo, requerer para a leitura do poema e da poética de Max Martins (de sua vidapoesia) não apenas o texto, mas também o entretexto; não o jogo de palavras, antes, o jogo existencial; não apenas a ludicidade, mas as funções lúdicas que restauram o mito; não apenas a imagem, mas a expansão da imagem, a imagem capaz de agir (“Reverdece Roma”), a imagem-cauda em sua função ancestral; a poesia como clínica de si e do mundo4, requerer tudo isso para a leitura, a leitura não do poema, mas de suas marcas encarnadas, de seus devires. Enxergar, com a crítica expandida, que, como coloca Portella, “sem se colocar a questão da estrutura geradora dos signos”, da leitura, não há escritura, não há poema. Com o momento em que Max Martins está cada vez mais explorado, mas enquanto ele permanece secreto; com a extremamente lúcida e urgente, porém ainda rara, ainda combatente, crítica expandida; a crítica (a leitura) precisa dar sua contribuição não apenas ao contemporâneo, mas ao atemporal, assim como contribuem a poesiavida/a vidapoesia de Max Martins e o arcabouço filosófico da diferença/ da subjetividade/da experiência que dão vozes à nossa crítica (literária brasileira) expandida. Dar sua contribuição ao atemporal, criar, doar, fazer a vida ganhar contorno e visibilidade quando confrontada com os dispositivos de poder em curso em um determinado período histórico. Como imaginar uma contribuição da crítica expandida para a história da recepção da obra de Max Martins enquanto o mesmo requer para o poeta o título de um dos mais secretos poetas brasileiros? Vale dizer que não se trata de fazê-lo conhecido por poucas ou por muitas pessoas (considerando o quanto pode ser conhecido um poeta), mas se trata de poder resguardar os seus segredos, de encontrar meios (criar meios) para resguardar a pergunta do poema. Que Max Martins possa continuar secreto para um número cada vez maior de leitores é uma progressão com potencial, fatalmente, revolucionário. Ter nas mãos um objeto que se torna mais secreto quanto mais se o explora e poder fazer de Max Martins, com a crítica expandida, um segredo que só aumenta.

Como a poesia expansiva e a doação criadora presentes em Max Martins podem não contaminar a crítica literária? Somente uma crítica convidativa à experiência poderia continuar a doação vinda de Max e cuja marca só pode ser elaborada pela criação de novas máquinas teóricas e afetivas, mas da qual não é possível se desvencilhar. E, se “as coisas doadas devem estar sempre em movimento”,8 doar o que pode ser doado dessa poesia, a tigela vazia, com Max, insistente: “a pá / nas minhas mãos vazias”. Doar a continuidade do gesto, doar a doação, doar a liberdade às forças da existência, doar o entretexto, doar um criador ao leitor.

Notas Coimbra, Oswaldo; Martins, Max. Uma inesquecível conversa com Max Martins. Entrevista realizada com o poeta Max Martins no Núcleo de Artes da UFPA. Belém, 2000.

I

Qual é o espaço da crítica de ficção e de poesia hoje? Claudio Daniel, João Cezar de Castro Rocha (UERJ), Claufe Rodrigues, Marcos Strecker e André Vallias. Mesa. Itaú Cultural, 2011.

II

III

Cabrita, António. Dosier Amazónica. v. 1. In: Construções portuárias. Porto: Cooperativa de Trabalhos Gráficos, 2002.

IV

Pucheu, Alberto. Giorgio Agamben: poesia, filosofia, crítica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010.

Pucheu, Alberto. Roberto Corrêa dos Santos: o poema contemporâneo enquanto o “ensaio teórico-críticoexperimental”. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2012.

V

Rolnik, Suely. Pensamento, corpo e devir. Uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 2, mar. 1993.

VI

“Que faço desse dia que me adora / pegá-lo pela cauda, antes da hora / vermelha de furtar-se ao meu festim?” Faustino, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

VII

VIII

Hyde, Lewis. A dádiva: como o espírito criador transforma o mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

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Fazer ver, com Max e a crítica, que “o que o pensador transmite, então, não é um saber, mas um aprender, um criar”.6 Max Martins transmitiu o seu aprender e o seu criar em sua poesiavida e em sua vidapoesia, como assegura o amigo de infância e companheiro de estudos, o filósofo Benedito Nunes, em ensaio intitulado “Max Martins, mestre-aprendiz”: “Para ele, cultivar a poesia significa estudá-la, e estudá-la, cultivar o conhecimento do mundo através dela. Esse cultivo estudioso se tornou, menos como erudição livresca do que como um ato de atenção à vida, o capítulo quase único da biografia do poeta.” Se a poesia tornou-se o capítulo quase único da biografia do poeta e se “a crítica cuida do livro que poderia ter sido feito”, como cuida Pucheu, esse estudo que “pega na cauda”7 da poesia e do pensamento de Max Martins é um livro (que poderia ter sido feito e) que “está em fazimento agora mesmo no texto crítico”. Se o poeta propõe a experiência, o crítico propõe, na escrita expandida, uma experiência que eclodiu da primeira (como o título de um dos livros de Max): O ovo filosófico.

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4 “O escritor não é doente, mas médico, médico de si próprio e do mundo.” Deleuze, Gilles. A literatura e a vida. In: Crítica e clínica. 1. ed. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: 34, 1997.

Élida Lima é escritora, poeta e ensaísta. É autora do livro de poesia ‘Voados’ (edição da autora, 2009) e ‘Cartas ao Max: limiar afetivo da obra de Max Martins’ (Invisíveis Produções, 2013), livro de fronteira entre poesia e crítica literária.

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Gianguido Bonfanti (SP-1948) Pintor, gravador, desenhista, ilustrador, cenógrafo.

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Filho do também pintor Gianfranco Bonfanti, cursa desenho sob orientação de Poty Lazzarotto, entre 1962 e 1969. Neste ano, ingressa na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, e cursa artes plásticas no Festival de Inverno de Ouro Preto, Minas Gerais. Em 1971 viaja para a Itália, onde passa dois anos estudando na Accademia di Belle Arti di Roma [Academia de Belas Artes de Roma]. De volta ao Brasil em 1974, frequenta ateliê de gravura em metal na Escolinha de Arte do Brasil, no Rio de Janeiro, sob orientação de Marília Rodrigues. Entre os anos de 1976 e 1979, realiza ilustrações para os periódicos Pasquim, Opinião, revista Ele & Ela, Jornal do Brasil e para o livro Sangue, Papéis e Lágrimas, de Doc Comparato. Realiza cenário para a peça As Gralhas, de Bráulio Pedroso, e projeta o teatro construído no Centro Cultural Cândido Mendes. Este período é também marcado por uma profunda crise existencial que tem seu auge em 1978. Até esta época, Bonfanti recusa-se a fazer uso da cor, limitando-se a desenhar e a gravar. Quatro anos depois, realiza sua primeira exposição de pinturas e desenhos coloridos. Inicia atividade como docente na década de 1980, lecionando na Escola de Artes Visuais do Parque Lage - EAV/Parque Lage, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC/RJ, na Faculdade da Cidade e na Casa de Cultura Laura Alvim, no Rio de Janeiro. Participa do Panorama de Arte Atual Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo - MAM/SP, em 1974, 1977 e 1980; duas edições do Salão Nacional de Arte Moderna - SNAM e três edições do Salão Nacional de Artes Plásticas, no Rio de Janeiro, entre 1974 e 1981;e de individuais, como no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - MAM/RJ e no Museu de Arte Contemporânea - MAC/PR.

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Imagens | Gianguido Bonfanti

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