Organização
Maria das Dores Pimentel Nogueira
VALE DO JEQUITINHONHA Cultura e Desenvolvimento
VALE DO JEQUITINHONHA Cultura e Desenvolvimento
Organização Maria das Dores Pimentel Nogueira
VALE DO JEQUITINHONHA Cultura e Desenvolvimento
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - UFMG PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO | PROEX-UFMG PROGRAMA POLO DE INTEGRAÇÃO DA UFMG NO VALE DO JEQUITINHONHA BELO HORIZONTE, 2012
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Reitor: Clélio Campolina Diniz Vice-Reitora: Rocksane de Carvalho Norton Pró-Reitora de Extensão: Efigênia Ferreira e Ferreira Pró-Reitora Adjunta de Extensão: Maria das Dores Pimentel Nogueira Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha Coordenadora: Maria das Dores Pimentel Nogueira Projeto: Visões do Vale Coordenador: João Valdir Alves de Souza ©2012 Este livro foi publicado com recursos da Pró-Reitoria de Extensão da UFMG
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Vale do Jequitinhonha: Cultura e desenvolvimento. / Maria das Dores Pimentel Nogueira [org.] – Belo Horizonte: UFMG/PROEX, 2012. 190 p. : il. ; 23 cm. 1. Arte popular - Jequitinhonha, Rio, Vale [MG E BA]. 2. Artesanato Jequitinhonha, Rio, Vale [MG E BA]. 3. Minas Gerais – Cultura. I. Nogueira, Maria das Dores Pimentel. II. Universidade Federal de Minas Gerais, Pró-Reitoria de Extensão. CDD- 306.098151
Produção editorial: Roseli Raquel de Aguiar Assistente de produção: Dulcinéa Teixeira Magalhães Revisão e normalização de texto: Lílian de Oliveira Projeto gráfico: Andrea Estanislau Diagramação: Andrea Estanislau / Mateus Sá / Eloah Roberta Capa: Presépio de Helena Siqueira Torres em São Gonçalo do Rio das Pedras / Vale do Jequitinhonha / Minas Gerais. Foto: Lori Figueiró Aberturas de capítulos: Fotos de Lori Figueiró Produção executiva: Gaia Cultural [Cultura e Meio ambiente]
SUMÁRIO 7 Apresentação 9 Prólogo - Os papéis da cultura e da extensão universitária Alberto Ferreira da Rocha Junior
IDENTIDADE E PATRIMÔNIO CULTURAL 22 Vale do Jequitinhonha: a emergência de uma região Mateus de Moraes Servilha
51 A municipalização da proteção do patrimônio cultural de Minas Gerais Carlos Henrique Rangel
64 Patrimônio material e imaterial no Vale do Jequitinhonha José Pereira dos Santos
ARTESANATO, ECONOMIA E CULTURA 72 Arte e vida no Vale: a prontidão dos homens lentos Maria Teresa Franco Ribeiro
82 Artesanato e políticas públicas Maria Dorotéa de Aguiar Barros Naddeo
94 Artesanato e cultura no Vale Ulisses Mendes
99 Associativismo: uma possibilidade de fomento ao artesanato do Vale do Jequitinhonha Renata Vieira Delgado Naiane do Santos Mendes
AS MÚLTIPLAS EXPRESSÕES DO VALE 110 Histórias orais: linguagem de desejos Vera Felício
123 Jequitinhonha – música e vida Rubinho do Vale
143 Uma visão teatral do Vale Fernando Limoeiro
A CONSTRUÇÃO DE UM MOVIMENTO CULTURAL 148 Geraes: uma história do Jequitinhonha Tadeu Martins
169 As mudanças de rumo na trajetória do Festivale ao longo do período 1985-2006 Luís Carlos Mendes Santiago
177 Arte e mobilização social: celebração da cultura popular e da identidade do Vale do Jequitinhonha Márcio Simeone Henriques
APRESENTAÇÃO O Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha completa, em 2012, 16 anos de atuação na Região Nordeste mineira. Concebido como um programa de desenvolvimento regional com forte articulação interdisciplinar com a população da região, hoje ultrapassa o número de 120 ações realizadas, entre programas, projetos, cursos e eventos. Organizado em seis áreas de atuação – desenvolvimento regional e geração de ocupação e renda, cultura, comunicação, meio ambiente, educação e saúde –, o programa demonstra o compromisso da UFMG com o desenvolvimento econômico, social e cultural do país, enfrentando os desafios de atuar em uma região com tão graves desigualdades. Para cumprir esse compromisso, que é intransferível, o Programa Polo mobilizou dezenas de professores, técnicos e centenas de estudantes com o conhecimento, a capacidade, a disposição e o comprometimento numa ação que integrou a extensão, a pesquisa e o ensino com resultados extremamente efetivos e positivos. As equipes consolidam em sua atuação as diretrizes que orientam o programa: a necessidade da incorporação do conjunto da população do Vale na condição de potenciais promotores, indutores e beneficiários do desenvolvimento econômico, social e humano. Desse modo, a população para a qual o programa se destina interfere efetivamente nos rumos do processo, redefinindo metas, participando, criticando. Ou seja, a população do Vale não é um sujeito passivo, é um sujeito que a cada momento nos ensina. E, nesse confronto entre saberes acadêmico e popular, todos aprendem um novo conhecimento, tanto os acadêmicos quanto a população. Busca-se apreender a realidade em sua totalidade, assim a inter e a transdisciplinaridade ocorrem de fato, integrando profissionais e alunos de diferentes áreas do conhecimento na abordagem dessa realidade. A diretriz constitucional de indissociabilidade entre ensino, extensão e pesquisa torna-se aqui uma estratégia, pois na articulação entre extensão e pesquisa procura-se viabilizar a relação transformadora entre universidade e sociedade. Em sua atuação o Programa Polo vem buscando contribuir para a autonomia dos municípios, promovendo a qualificação dos recursos humanos locais e disponibilizando para as comunidades os conhecimentos, as técnicas e as metodologias que a Universidade detém. “Assim, o laço que une e articula as diversas intervenções na e sobre a região, é a explícita tentativa de dotar a sociedade local de instrumentos
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conceituais e materiais que permitam a essa mesma sociedade afirmar sua dignidade e identificar suas possibilidades emancipatórias” (Relatório FINEP, 2002). Na área da cultura e comunicação, em especial, que são objetos desta publicação, o Programa Polo Jequitinhonha vem trabalhando articulado ao movimento cultural do Vale, qualificando jovens na área das mídias, os artesões na organização e gestão de seus processos criativos e de venda de seus objetos de arte; no suporte aos grupos culturais e às organizações não governamentais; na realização de eventos; nas questões ligadas ao patrimônio material e imaterial, na proposição e discussão de políticas públicas. É nesse contexto que a Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Minas Gerais, por meio do Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha, tem a satisfação de apresentar o livro Vale do Jequitinhonha: Cultura e Desenvolvimento. Trata-se do terceiro volume da coleção que reúne os conhecimentos apresentados e discutidos no evento anual Visões do Vale, com o objetivo de ampliar a visibilidade, a reflexão, o debate, o questionamento e a divulgação de múltiplos olhares e leituras sobre a cultura do Vale do Jequitinhonha. O livro traz em seu prólogo uma reflexão sobre extensão universitária e cultura e está estruturado em quatro partes, que abordam respectivamente a questão da identidade e do patrimônio cultural; o artesanato, a economia e a cultura; as expressões culturais do Vale por meio dos relatos orais, das músicas e do teatro; o rico processo ímpar de construção de um movimento cultural popular. Os textos aqui reunidos, mesclados pela ciência e pela emoção, são de professores, extensionistas e pesquisadores de várias universidades e instituições públicas; de artistas-músicos, artesãos, contadores de histórias e cientistas da região. Fascinantes, os textos mostram que se pode fazer ciência e produzir conhecimento por meio da extensão, com rigor científico e paixão. Maria das Dores Pimentel Nogueira
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PRÓLOGO Os papéis da cultura e da extensão universitária Alberto Ferreira da Rocha Junior Este texto é dedicado a Edison Corrêa, Eunice Nodari, Lúcia Guerra, Marizinha Nogueira, Ney Cristina de Oliveira, Targino Araújo Filho e a dois grandes amigos: Isabel Azevedo e Gustavo Vidigal.
Preâmbulo Minha avó materna – a pernambucana Odila de Sousa – gostava de contar e inventar estórias e adivinhas. Aprendi com ela a gostar de ouvir e de contar estórias. Durante quatro anos – de agosto de 2004 a julho de 2008 –, exerci o cargo de Pró-Reitor de Extensão e de Assuntos Comunitários da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), o que implicava, na época, acumular a coordenação geral do Inverno Cultural da UFSJ, cujas 18ª, 19ª, 20ª e 21ª edições estiveram sob minha responsabilidade.1 Em julho de 2007, para a realização da 20ª edição do festival, quando homenageamos a própria cidade de São João del-Rei, que fora eleita Capital Brasileira da Cultura, foi construída uma ampla tenda sobre o Córrego do Lenheiro, que atravessa o centro da cidade. Nessa tenda aconteciam eventos variados: palestras com escritores (o falecido Moacyr Scliar nos deu a honra de sua presença e de sua palavra, tendo, para isso, de enfrentar um gigantesco caos aéreo na época), espetáculos de música, apresentações teatrais, atividades lúdicas para crianças, etc. Considerando-se que o maior afluxo de público ocorria no período noturno, o controle da entrada de pessoas no espaço era realizado apenas à noite, enquanto no período diurno tínhamos um serviço de segurança apenas dentro da Tenda. Numa tarde daquele Inverno agitado, parado à entrada da Tenda, com o crachá de coordenador geral do evento pendurado no pescoço, observava
1 - Também ocupei o cargo de Pró-Reitor de Extensão da UFSJ de 30 de março a 6 de junho de 2011, quando fui o responsável pela coordenação geral do 24º Inverno Cultural da UFSJ.
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uma apresentação do Projeto Movimento Hip Hop del-Rei,2 com algo em torno de duzentos espectadores acompanhando o evento, quando uma senhora me perguntou se ela poderia entrar. Respondi que sim e aproveitei para dizer que todos os eventos do Inverno Cultural eram gratuitos e que ela poderia assistir a qualquer um desde que a lotação não estivesse esgotada. A pergunta, no entanto, me marcou. Claro que eu poderia ter dado a impressão de que estava ali vigiando a entrada e saída de pessoas, mas como não havia grades, não havia nenhum tipo de segurança, considerava tratar-se de um evento que não possuía nenhuma característica de elitização. Jamais imaginei, portanto, que alguém pudesse se sentir impedido de entrar na Tenda. E é por esse sentimento que quero começar.
O desafio de romper uma barreira simbólica Identifico o ocorrido à entrada da Tenda como uma barreira simbólica. Creio que nesse momento importa menos estabelecer responsabilidades e culpar indivíduos ou instituições e mais criar estratégias para uma transformação da realidade universitária e social. É preciso criar frestas nessas barreiras que impedem pessoas em geral de frequentar os espaços da universidade pública, teatros, monumentos históricos, museus e outros espaços considerados impróprios para grupos sociais de baixo poder financeiro. É preciso perceber que não é apenas a universidade que se constrói segundo a velha imagem da torre de marfim, mas que, como numa espécie de círculo vicioso e pernicioso, a população das periferias e de baixo poder econômico possui dentro de si uma barreira simbólica que a impede de frequentar e de apropriar-se de espaços públicos considerados inadequados para e por ela mesma. Em 2008, também durante o Inverno Cultural, uma exposição com curadoria da artista plástica Liliane Dardot exibiu, graças à gentileza do Instituto Cultural Clara Nunes, objetos pessoais da cantora. A exposição, longe de ser a exibição rígida de itens museológicos, convidava o visitante a deixar suas marcas, ainda que efêmeras, num elemento fundamental para São João del-Rei, para Clara Nunes e para Liliane Dardot: a areia – a dos tapetes das ruas, a do mar e a da obra de arte passageira respectivamente.
2 - O projeto apresentou o grupo de dança de rua Ritmo em Rua e o grupo de rap IDP (Ideologia da Paz). GUIA de eventos do 20º Inverno Cultural da UFSJ, 2007.
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Para visitar a exposição, todos devíamos tirar os sapatos. E o que significava esse gesto? O estar descalço trazia à lembrança a notícia de um tempo em que possuir sapatos e calçá-los não era possível para qualquer pessoa: apenas aquelas de grandes posses poderiam fazê-lo, e andar descalço era sinônimo de barbárie, de falta de civilidade.3 De certa forma, o simbolismo dos sapatos e dos pés descalços fala sobre essa barreira. Para alguns grupos sociais, seria necessário ter um calçado mais caro para entrar no Teatro Municipal de São João del-Rei, num museu, na universidade. A extensão universitária tem um papel fundamental nesse contexto, pois, por meio de sua atuação, pode-se paulatinamente desconstruir essa barreira simbólica e simultaneamente criar um espaço de construção do conhecimento tecido pela diversidade, pelo rigor e pela dispersão. Diversidade fundamental do ponto de vista da necessidade do defrontar-se com o outro e com nossa finitude radical; rigor acadêmico no modo de produzir conhecimento e no conteúdo produzido, substituindo assim a noção de objetividade científica;4 e dispersão no sentido da disseminação e da difusão do saber, ou seja, ação de permitir que o saber, enquanto curiosidade, prazer, desejo de transformação, capacidade de imaginação, convívio com o incompreendido, possa espraiar-se. Antes de prosseguir, é importante observar que, diferentemente do que alguns defensores da extensão universitária propõem, creio ser totalmente indesejável uma situação limite em que a extensão desapareceria. Em defesa de tal desaparecimento, muitos invocam afirmações de Boaventura de Sousa Santos, imaginando uma universidade em que a extensão universitária seria desnecessária, pois as ações acadêmicas seriam realizadas com a incorporação natural dos princípios norteadores da extensão (SANTOS; ALMEIDA FILHO, 2008). Creio que essa opinião ilustra uma visão que acredita e deseja um mundo harmonioso, uno, homogêneo, paradisíaco talvez. Não se trata aqui de condenar uma utopia. Trata-se antes de não desejar uma universidade 3 - Lembro aqui um trecho do livro de VELLOSO (1988, p. 24): “para impor o seu modelo civilizatório ao restante da sociedade brasileira, as nossas elites não hesitam em lançar mão do aparato repressivo do Estado. É criada, então, uma lei que obriga a todos os cidadãos o uso do paletó e sapatos. Argumenta-se ser essa a única maneira de acabar com o abuso e o despudor dos que ‘andavam de pés no chão e em mangas de camisa’”. 4 - Trata-se aqui de observar que o conhecimento é sempre produzido em situação e nunca de modo imparcial e ingênuo. Não se trata de uma defesa do subjetivismo na produção do conhecimento, mas do reconhecimento de que, por estarmos sempre em situação, a produção do saber não conseguiria estar desligada do mundo dos valores nem das lutas de poder.
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com esse perfil. Como já disse em outras oportunidades, a universidade deve estar fundamentada no princípio da indissociabilidade entre extensão, ensino e pesquisa (ROCHA JUNIOR, 2008). Enfatizo geralmente a ideia de que não estamos assentados em três pilares e, sim, num único princípio, que é o da indissociabilidade. Contudo, isso não é sinônimo de apagamento das diferenças entre esses três tipos de produção de conhecimento em âmbito universitário: o ensino, a pesquisa e a extensão. A indissociabilidade não deve ser uma etapa de um processo cuja finalidade longínqua seria a fusão dos três. É justamente no embate entre esses três tipos de produção de conhecimento que a universidade se fortalece. Portanto, há que se preservar os três e guardar suas diferenças. É o próprio Boaventura quem diz: [...] a área de extensão vai ter num futuro próximo um significado muito especial. No momento em que o capitalismo global pretende funcionalizar a universidade e, de fato, transformá-la numa vasta agência de extensão ao seu serviço, a reforma da universidade deve conferir uma nova centralidade às atividades de extensão (com implicações no curriculum e nas carreiras dos docentes) e concebê-las de modo alternativo ao capitalismo global, atribuindo às universidades uma participação ativa na construção da coesão social, no aprofundamento da democracia, na luta contra a exclusão social e a degradação ambiental, na defesa da diversidade cultural. (SANTOS; ALMEIDA FILHO, 2008, p. 52, grifos nossos)
Enfatizo aqui a expressão utilizada por Boaventura: nova centralidade. Não é meu intuito comprovar que o cientista social português mudou de opinião ou foi mal interpretado anteriormente. Apenas reitero que não é desejável o desaparecimento da extensão universitária em prol de uma espécie de cena paradisíaca em que tudo será perfeito e harmônico. Não defenderei aqui a necessidade da centralidade da extensão universitária. Parece-me, no momento, mais desafiador pensar a universidade como ambiente de formação,5 no qual a produção de conhecimento se dá no embate da pesquisa, da extensão e do ensino. O que é, pois, a extensão universitária? 5 - Sobre a ideia de universidade enquanto “ambiente de formação”, refletirei mais adiante.
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Extensão universitária Até o presente momento, a definição que tem sido utilizada com pequenas modificações, a depender do caráter do documento de que consta, é a definição resultante do I Encontro de Pró-reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, realizado em Brasília nos dias 4 e 5 de novembro de 1987: A extensão universitária é o processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre a universidade e a sociedade. A extensão é uma via de mão-dupla, com trânsito assegurado à comunidade acadêmica, que encontrará na sociedade, a oportunidade da elaboração da práxis de um conhecimento acadêmico. No retorno à universidade, docentes e discentes trarão um aprendizado que, submetido à reflexão teórica, será acrescido àquele conhecimento. Este fluxo, que estabelece a troca de saberes sistematizados/ acadêmico e popular, terá como consequência: a produção de conhecimento resultante do confronto com a realidade brasileira e regional; e a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da universidade. Além de instrumentalizadora deste processo dialético de teoria/prática, a extensão é um trabalho interdisciplinar que favorece a visão integrada do social.6
Para além das discussões certamente necessárias acerca de termos e de conceitos utilizados na definição, como “via de mão-dupla”, “extensão como articuladora de ensino e pesquisa” e a relação entre práxis e teoria, parece-nos claro que é preciso enfatizar o caráter de produção de conhecimento da extensão universitária. Se, por definição, a extensão é um processo que solicita a participação da comunidade externa à universidade, sua finalidade última não é transformar a sociedade, mas
6 - Esta definição pode ser encontrada no link “Documentos” na página da Rede Nacional de Extensão Universitária (www.renex.org.br) e também em NOGUEIRA (2000, p. 11).
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produzir conhecimento, formar alunos, cuja atuação na sociedade como um todo, incluindo-se aí sua atuação profissional, traga em si alguns princípios como o respeito à diversidade, a sistematização rigorosa e crítica do conhecimento e a consciência do papel social que pode desempenhar enquanto disseminadora desse conhecimento. Um aspecto a ser enfatizado a partir da definição básica de extensão universitária é a produção de conhecimento com a comunidade. As noções de “via de mão-dupla”, de “relação bilateral com os outros setores da sociedade”7 e de “relação multilateral com os outros setores da sociedade”8 trazem a extensão universitária para a proximidade do lugar do antropólogo. Se comparada ao ensino e à pesquisa, é a extensão universitária que traz em sua própria definição a relação com o diferente, com o outro, em suma, a relação com a alteridade.9 É no ambiente da extensão universitária que podem ser realizados projetos e programas em que a produção de conhecimento é feita juntamente com a comunidade. Com isso, quero sublinhar a ideia pouco enfatizada de que existem, novamente de acordo com as diretrizes estabelecidas pelo Fórum de Pró-reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras (FORPROEX), cinco diferentes tipos de ação extensionista: programas, projetos, cursos, eventos e prestação de serviços.10 Se cursos, eventos e a prestação de serviços podem ser considerados ações extensionistas, quando lidam necessariamente com um público que não pertence ao espaço da academia, é, em geral, no âmbito dos projetos e
7 - Esta expressão foi bastante utilizada durante algum tempo e figurou em alguns editais lançados pelo MEC, como no item 9 do edital PROEXT 2009. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/ editalproext2_2009_6.pdf>. Acesso em: 14 mar. 2012. 8 - Esta expressão aparece pela primeira vez no edital PROEXT 2011, publicado pelo MEC, e que pode ser acessado em <http://portal.mec.gov.br/index.php?Itemid=490&id=12243&option=com_ content&view=article>. Acesso em: 14 mar. 2012. 9 - É evidente que a relação com a alteridade também pode estar presente no ambiente de pesquisa e de ensino, mas talvez seja justamente na extensão que essa relação pode propiciar experiências mais férteis. 10 - Existe aqui uma pequena divergência em relação a alguns documentos produzidos pelo próprio FORPROEX. Os documentos mais antigos, como o segundo volume da Coleção Extensão Universitária, intitulado Sistema de dados e publicado em 2001, apresentam seis ações de extensão, sendo a última delas a “produção e publicação”. Posteriormente, o volume seis da mesma coleção, intitulado Extensão universitária: organização e sistematização, publicado em 2007, afirma: “embora não sejam consideradas ações de extensão – na realidade, o processo de sua produção é parte da implementação da ação de extensão, gerando-as como resultado – as publicações e outros produtos acadêmicos de extensão devem ser registradas e relatadas” (FÓRUM, 2001, v. 2, p. 43). No portal da Rede Nacional de Extensão (www.renex.org.br), o segundo volume da Coleção Extensão Universitária não está disponível por ter sido substituído justamente pelo volume seis. A informação consta do próprio Portal. Acesso em: 01 set. 2011.
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dos programas que o conhecimento é construído de modo multilateral.11 É fundamentalmente nesse âmbito que se pode vivenciar a alteridade. Ou seja, é quando nos defrontamos com o saber produzido pelos diferentes grupos sociais e, consequentemente, com os valores que são atribuídos ao que o grupo produz ou possui que o conhecimento produzido em âmbito universitário pode abrir-se a certo descentramento do poder.12
Extensão e cultura Pequena digressão. A partir da gestão do então ministro da Cultura Gilberto Gil e durante a gestão de seu sucessor Juca Ferreira, o Brasil pôde construir uma política nacional de cultura que transpirava uma visão mais democrática e acolhedora das diferenças e divergências. Um exemplo bastante eloquente é o da própria organização administrativa do Ministério da Cultura, que, antes da gestão de Gilberto Gil, era dividido em secretarias relacionadas às diferentes linguagens artísticas e posteriormente passou a abrigar secretarias como a da Cidadania Cultural e a da Identidade e Diversidade. Houve, pois, uma guinada na própria concepção de cultura, que deixou de ser sinônimo de arte e passou a acolher as mais diferentes manifestações expressivas, transpirando uma visão antropológica de cultura. Passaram a ser valorizadas, fomentadas, protegidas e incentivadas manifestações de grupos indígenas, quilombolas, ciganos, da população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), de idosos, de pessoas com sofrimento mental, etc. Considerando-se que a extensão universitária, diferentemente da pesquisa, divide-se em oito áreas temáticas,13 e não em disciplinas ou áreas e 11 - Há na própria prática da extensão universitária uma hierarquia entre os cinco tipos de ação extensionista, que coloca no topo da escala os programas e talvez os eventos e, sobretudo, as prestações de serviço na base da escala. Essa hierarquia não é defendida em nenhum texto, mas aparece de modo sub-reptício. Efetivamente, os programas, pelo seu caráter multidisciplinar, pela sua sistematização e abrangência, têm, com frequência, um efeito acadêmico mais potente. Não se deve menosprezar, porém, os efeitos de formação intelectual e cultural dos eventos e das prestações de serviço. Neste último caso, no FORPROEX já houve discussões acerca do caráter extensionista (ou não) da prestação de serviços. 12 - Certamente, é ilusório imaginar que haverá uma situação da qual esteja ausente todo e qualquer tipo de hierarquia ou de relação desigual entre grupos sociais. Apenas chamo a atenção para a possibilidade de um ambiente (o dos projetos e programas de extensão universitária) em que os diferentes grupos e/ou indivíduos estejam conscientes de que o saber ali produzido não é necessariamente a verdade a ser repetida por todos. 13 - As oito áreas são: educação, trabalho, meio ambiente, saúde, tecnologia e produção, direitos humanos e justiça, comunicação, cultura.
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subáreas de conhecimento, creio que é justamente a área da cultura que oferece um campo fértil para a extensão universitária. As áreas temáticas da extensão foram pensadas justamente como territórios que necessitam da interdisciplinaridade para serem devidamente compreendidos. No entanto, parece-me que a cultura pode ser compreendida enquanto um eixo transversal em relação às outras áreas. Ao estudar a cultura de um grupo social, seja ele da dimensão que for, as ações desenvolvidas por qualquer uma das áreas temáticas podem ser mais eficazes. De modo muito geral, chamo aqui de cultura os valores atribuídos pelos grupos sociais a produtos gerados pelos seres humanos ou a aspectos naturais e fisiológicos. Assim, ao estudar a cultura de um grupo, deparamo-nos com questões conflitantes como identidade, tradição, preservação, contemporaneidade, poder, diferenças, desigualdades. O primeiro desafio que um estudioso da cultura enfrenta, sobretudo se não estiver nos grandes centros urbanos, é tratar da cultura sem deixar-se enquadrar nos dois estereótipos mais comuns e que não deixam de se transformar numa espécie de barreira simbólica entre a população: cultura como sinônimo de arte e cultura como sinônimo de manifestação tradicional. Em suma, quando se pensa em cultura, a associação mais frequente é com a arte. Ou seja, um pequeno município do interior de Minas Gerais só terá cultura se tiver manifestações de linguagens artísticas como teatro, música, dança, literatura, etc. Ou então se possuir algum tipo de produto ou evento tradicional: artesanato em tecido, em cerâmica, madeira, ou festas que remontam a períodos há muito passados – caráter de ancianidade –, tanto algo que se preserva há muitas gerações quanto algo que havia se perdido e que a população retoma no presente. É necessário enfatizar que a cultura, como a própria palavra diz, está relacionada ao cultivo e que não é possível a cultura florescer sem um cuidado cotidiano. Nesse sentido, a infraestrutura e o aspecto material como um todo são de fundamental importância para a cultura: desde os barracões de uma escola de samba até as tintas e lápis de cor, desde um teatro equipado até o material reciclável, desde uma sala para exposições até um violino ou um tambor confeccionados com perícia. A cultura trabalha com a imaginação e, como diria Sartre, sem a imaginação viveríamos imersos no mundo tal como ele se nos apresenta. É justamente a imaginação, portanto, a cultura como um todo, que nos permite desejar e sonhar um mundo diferente daquele em que vivemos.
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Êxodo A extensão deve ser compreendida como um ambiente de formação do aluno. Aqui a ideia de ambiente contrapõe-se à ideia de espaço. Em vez de pensarmos a situação de aprendizagem como um lugar vazio que será preenchido com atores sociais, conteúdos e ações, de pensarmos a situação de aprendizagem como um espaço abstrato que possui certos elementos de pano de fundo, podemos compreender essa situação enquanto ambiente, aproximando-nos da ideia de que estamos sempre em situação, ou seja, há uma relação de interdependência entre os elementos presentes no ambiente, sem que um esteja em primeiro plano e outros como pano de fundo. Além disso, considerar que há uma formação dos integrantes de um projeto de extensão significa reconhecer que o fundamental não está na aquisição de conteúdos que, por princípio, devem ser questionados e podem ser superados. Com isso não pretendemos desmerecer a aquisição de conteúdos que é seguramente parte necessária da produção de conhecimento e imprescindível em época tão dinâmica e veloz como a nossa. Apenas reiteramos a ideia de que a tarefa daqueles que trabalham em uma universidade é formar indivíduos e a formação é sinônimo de cultivo de atitudes e de posturas, trata-se de cultivar modos de se situar na sociedade, nos grupos sociais. Há ainda grandes desafios no âmbito da extensão e da cultura. No horizonte da política educacional e da organização institucional, destaca-se indubitavelmente a necessidade de uma interlocução no Ministério da Educação (MEC) que não esteja submetida aos valores defendidos pelos ocupantes dos cargos de coordenadores e secretários. Ou seja, por mais que nas universidades a extensão universitária esteja consolidada, falta ainda no MEC a institucionalização desse eixo de formação que é a extensão. Esse lugar torna-se imprescindível para o avanço das conquistas da extensão universitária. A ideia, defendida por muitos, de uma agência de fomento à extensão universitária, seja ela resultado de uma transformação das agências de fomento à pesquisa seja resultado da criação de um novo órgão de governo, é importante sobretudo pelo que representa em termos de necessidade de construção conjunta de uma cultura extensionista. A criação de uma instância reguladora da extensão universitária superior às Instituições de Ensino Superior (IES), e não apenas financiadora, estimulará os próprios extensionistas a pensar a extensão e a estabelecer parâmetros, critérios e práticas avaliativas em consonância com as características da extensão universitária.
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Assim, vislumbramos o desafio da criação de parâmetros apropriados para que a extensão universitária possa fazer parte de planilhas de distribuição orçamentária tanto em cada instituição quanto no MEC. Por fim, indicamos aqui, apenas a título de exemplo, uma experiência ainda inicial, mas que demonstra bem o terreno fértil em que se encontra a extensão universitária. Trata-se da necessidade de se pensar um modo próprio de avaliação das ações de extensão. Mergulhados em questionários, gráficos e tabelas, cuja importância não questiono aqui, esquecemos que talvez nossos instrumentos de avaliação estejam solicitando uma nova postura de nossa parte. Como identificar – e o que interessa identificar – os resultados a respeito de uma ação extensionista na comunidade? Em que medida um questionário elaborado pela equipe do programa/projeto permite um contato com os resultados obtidos? E o que pode ser obtido? Na Universidade Federal de Ouro Preto, existe um projeto intitulado Mambembe – música e teatro itinerante, coordenado pela profa. Neide Bortolini,14 que tem investido, ainda que timidamente, na avaliação do resultado de suas apresentações teatrais com novas intervenções teatrais nas comunidades. A proposta parece-me corresponder às exigências de um projeto de extensão da área de cultura: para avaliar uma experiência teatral num grupo social, nada melhor que uma nova produção teatral nesse mesmo grupo. Se isso nos deixa sem um parâmetro objetivo que nos permitiria avaliar em nível nacional a produção de caráter extensionista, é também verdade que nos incita a uma atitude investigativa que percebe como cada instrumento utilizado re-vela sentidos inesperados.
Referências FÓRUM de Pró-reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras. Sistemas de dados e informações. Base operacional de acordo com o Plano Nacional de Extensão. Rio de Janeiro: NAPE/UERJ, 2001. (Coleção Extensão Universitária, v. 2.) GUIA de eventos do 20º Inverno Cultural da UFSJ, 2007. 14 - O projeto conta com duas publicações sobre suas experiências. No caso, referimo-nos a texto publicado pela aluna Manuela Pereira (2009) que relata o retorno à comunidade como forma de avaliação dos resultados do projeto.
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NOGUEIRA, Maria das Dores Pimentel (Org.). Extensão universitária: diretrizes conceituais e políticas. Belo Horizonte: PROEX/UFMG; Fórum Nacional de Pró-reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, 2000. PEREIRA, Manuela. Reflexões sobre o Teatro de Rua: Mambembe, em “O barão nas árvores”. In: BORTOLINI, Neide das Graças de Souza (Org.). Recriações: a trajetória do Mambembe – música e teatro itinerante. Ouro Preto: Editora da UFOP, 2009. p. 227-244. ROCHA JUNIOR, Alberto F. da. Cultura: valores da diversidade. In: ROCHA JUNIOR, Alberto F. da (Org.). Cultura e extensão universitária: a produção de conhecimento comprometida com o desenvolvimento social. São João del-Rei, MG: Malta, 2008. p. 6-13. SANTOS, Boaventura de Sousa; ALMEIDA FILHO, Naomar. A universidade no século XXI: para uma universidade nova. Coimbra: Almedina, 2008. VELLOSO, Mônica Pimenta. As tradições populares na ‘belle époque’ carioca. Rio de Janeiro: FUNARTE; Instituto Nacional do Folclore, 1988.
Alberto Ferreira da Rocha Junior, ou Alberto Tibaji, é professor da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) desde 1993. Doutor em Artes pela Universidade de São Paulo desde 2002, é docente do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSJ, no qual orienta projetos sobre Teatro, Acervos e Patrimônio. Foi pró-reitor de extensão de 2004 a 2008 e em 2011. Coordenou projetos de pesquisa financiados pela Fapemig e pela Finep e coordenou dois editais nacionais de extensão e cultura com financiamento da Petrobras e do Ministério da Cultura. Foi representante da Andifes no Conselho Nacional de Políticas Culturais do Ministério da Cultura (MinC).
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Jorge de Souza Silva e família, comunidade de Tamanduá, Jenipapo de Minas.
IDENTIDADE E PATRIMÔNIO CULTURAL
Vale do Jequitinhonha: a emergência de uma região Mateus de Moraes Servilha
Introdução Ao receber o convite para a produção deste trabalho, iniciei, como de praxe, as primeiras reflexões que balizariam os recortes temáticos e teóricos que me possibilitariam contribuir minimamente com o debate acerca das perspectivas atuais do movimento cultural do Vale do Jequitinhonha. Tema amplo, de difícil abordagem, a partir do qual muitos caminhos poderiam ser trilhados, tanto quanto os objetivos a serem alcançados. Muito temos produzido acerca do Vale do Jequitinhonha. E quando digo “nós”, falo de muitos, refiro-me a acadêmicos, artistas, militantes socioculturais, jornalistas, políticos partidários. Tantos somos os que estamos, apesar de certas vezes discordantes, “num mesmo barco”, debruçados ao objetivo de, mais do que tudo, compreendermos, afinal, o Vale do Jequitinhonha. Esse caminho coletivo nos é aqui a referência, o ponto inicial, certos momentos como pano de fundo, que permeará as reflexões presentes neste artigo. Como primeiro passo a ser dado, escolhemos um duplo questionamento, que pretende, ao final das análises apresentadas, tornar-se uma única questão, um pensamento não fragmentável. O que é o Vale do Jequitinhonha? Quem são os produtores de uma busca constante por respostas e esclarecimentos acerca do Vale do Jequitinhonha?
Analisar o Movimento Cultural do Vale do Jequitinhonha significa, acima de tudo, na perspectiva deste trabalho, a busca pelo entendimento acerca da “emergência de uma região”. Um espaço, uma determinada área da superfície terrestre, que, ao longo de um conjunto de processos sociais, se torna uma região. Não falamos aqui de um espaço natural, uma bacia hidrográfica, a bacia do Rio Jequitinhonha, mas de uma região produzida a partir de constructos sociais, um espaço geográfico. Hoje, depois de tanto sobre essa região dizermos, naturalizou-se aos nossos ouvidos o discurso de sua existência. Alguns questionamentos tornam-se aqui imprescindíveis. Que especificidades do Vale do Jequitinhonha 22
fizeram/fazem dele uma região? Que fronteiras, ao dividirem o espaço, produzem a separação entre o Vale do Jequitinhonha e outros espaços? Perguntamo-nos, em questionamento basilar: “O Vale do Jequitinhonha sempre existiu?”.
Condições históricas para a “emergência” de uma região A região, enquanto conceito acadêmico, esteve/está presente na vida e na produção da geografia, percorrendo uma trajetória teórica, conceitual, epistemológica e metodológica cujo surgimento se inicia concomitantemente com o início do pensamento geográfico enquanto conhecimento científico moderno. A região esteve/está no cerne da produção geográfica, muitas vezes vista como seu tema e objeto central, outras como um conceito a ser superado. O que define a região? Sabemos ser esta uma pergunta com muitas respostas. Relação entre a parte e o todo, o particular e o geral, o singular e o universal, o idiográfico e o nomotético ou, em outros termos, num enfoque mais empírico, entre o central e o periférico, o moderno-cosmopolita e o tradicional provinciano, o global e o local... são muitas as relações passíveis de serem trabalhadas por trás daquilo que comumente denominamos questão ou abordagem “regional” (HAESBAERT, 2010, p. 9).
O debate acerca do conceito de região está presente em diversas áreas do saber, podendo ser abordado de diferentes, certas vezes complementares, formas. Ao que tange as perspectivas geográficas, o conceito de região historicamente se relaciona à compreensão acerca das diferenciações entre áreas, partes diferenciadas de um todo do espaço geográfico. A compreensão acerca dos processos que delimitam fronteiras no espaço nos obriga a análise de semelhanças e diferenças segundo duas questões, entendidas aqui como centrais. Semelhanças e diferenças são categorias carregadas de subjetividade, cujas delimitações não podem prescindir do olhar de um observador. Independentemente do método utilizado para encontrarmos diferenças e semelhanças e, por conseguinte, delimitarmos as partes de um todo, diferentes pontos de vista produzirão diferentes regiões. Como nos aponta Hartshorne (1978, p. 18), nesse caso, “similaridade não é oposto de ‘diferença’, mas uma simples generalização na qual as diferenças consideradas de menor relevância são postas de lado, e realçadas as que forem julgadas de maior importância”. 23
Um segundo ponto: não podemos compreender identidades sem, simultaneamente, ou por vezes anteriormente, analisarmos alteridades. Não podemos compreender uma parte do todo sem analisarmos outras partes do mesmo e, em muitos casos, o mesmo. Isso nos exige, ao buscarmos a compreensão de uma área no espaço geográfico, uma análise multiescalar, em outras palavras, um olhar para além da “região” que buscamos delimitar, caracterizar ou conhecer. “É preciso ir mais longe e reconhecer que nenhuma parte da Terra possui em si mesma a sua explicação. O jogo das condições locais só se descobre com alguma clareza à medida que a observação se eleva acima delas” (LA BLACHE apud BAULIG, 1982, p. 70). Para debatermos o Movimento Cultural do Vale do Jequitinhonha, faz-se necessária uma análise que não se limite à “fronteira” regional, assim como à temática cultural. Cabe-nos analisar uma região, uma parte do espaço geográfico, que, ao se diferenciar e/ou ser diferenciada, se revelou resultado da ação de atores socioespaciais determinados, assim como de arranjos e contextos socioculturais específicos. Compreendermos a história da “emergência” do Vale do Jequitinhonha enquanto “região” é fundamental para, se desejarmos, refletirmos sobre o seu futuro. Até meados do século XX, o Brasil, assim como Minas Gerais, caracterizava-se por uma ocupação dispersa do território, produzindo, dessa forma, diferenciações socioespaciais marcadas por, entre outras questões, distâncias locacionais, dificuldades de locomoção e contatos e pelo desenvolvimento de centros urbanos que se potencializavam como centros de poder político e social. O projeto estatal brasileiro de modernização, iniciado nos anos 1930, potencializa-se ao longo das décadas de 1950 e 60, trazendo Minas Gerais como um dos centros propulsores desse novo modelo social. João Pinheiro, na primeira metade do século XX, e Juscelino Kubitschek e Israel Pinheiro, em meados, estão entre aqueles que se dedicaram ao “sonho” de uma Minas e um Brasil modernos, urbanos e industrializados (CHACON, 2005). Um país, pensava-se, de olhos para o futuro, de costas para um passado marcado, em especial, pela colonização, pelo atraso, pela necessidade de progresso. Um país em processo histórico, ainda, de construção de elementos, simbólicos e narrativos, em busca de sua unidade nacional. Unidade socioespacial, seja esta nacional, seja regional, pressupõe a necessidade de dois processos concomitantes: 1. Integração/coesão territorial; e 2. Identidade/sentimento de pertencimento coletivo. Ambos processos complexos, imersos em conflitos e relações de poder. 24
Desde sua independência, o Brasil busca os caminhos para a construção e difusão de uma identidade nacional. Como nos alerta Ortiz (2003, p. 9), “a luta pela definição do que seria uma identidade autêntica é uma forma de se delimitar as fronteiras de uma política que procura se impor como legítima”. Interesses do Estado e de determinados setores/grupos sociais serão estampados na busca pela construção/invenção do “brasileiro”, através do trabalho, em especial, de artistas e intelectuais. Áreas emergentes como centros de poder (político e simbólico) passam a incorporar o restante do país a partir de suas interpretações, marcadas pelos interesses de específicos grupos sociais, assim como pelos seus projetos de civilização e nação. Historicamente, constrói-se uma dicotomia no Brasil entre Sul e Norte, em que ao primeiro caberia o papel de direcionar os rumos políticos do país, tendo em vista seu potencial civilizador; diferente do segundo, adjetivado (pelo primeiro) enquanto atrasado, mestiço, bárbaro, indolente e inerte (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011). O Norte brasileiro (por muito tempo englobando o que hoje conhecemos como Nordeste) passa a ser significado e estereotipado a partir de temas e imagens como a seca, o cangaço, as revoltas messiânicas, a miséria, o passado. O sertão brasileiro torna-se tema de intelectuais e artistas de abrangência nacional. Alguns nele visualizaram o futuro que não se quer, um popular marcado pelo “antimoderno”, um contraespelho, a alteridade referência cuja superação seria imprescindível para a conquista de uma nova nação, um Brasil moderno. Outros enxergavam no sertão a essência do povo brasileiro, uma área afastada e, consequentemente, protegida das influências litorâneas europeias. Olhar para seu interior na busca pelo “verdadeiro país”, pela alma nacional, pelas essências e raízes de nossa identidade constituía-se no encontro do Brasil consigo próprio. O sertanejo torna-se, a partir dessa perspectiva, o “herói nacional” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011). A categoria “sertão” está profundamente arraigada na cultura brasileira, seja no senso comum, seja no pensamento social ou ainda no imaginário do povo. Referência espacial e mítica, o sertão tem se constituído em categoria essencial para se pensar a nação brasileira (ALENCAR, 2000, p. 1).
O que podemos apontar de mais relevante nesse debate para este trabalho é o processo/mecanismo sociocultural coletivo de estigmatização do “outro” para a construção de “minha” valorização social. A primeira 25
“geoidentidade” da modernidade, segundo Quijano (2005), foi a “Americana”, construída pelos colonizadores como representação do primitivo e selvagem para, a partir dessa, a invenção da identidade “Europeia”, marcada pela ideia de civilização. Segundo Albuquerque Júnior (2011), as representações negativas acerca do Norte brasileiro são produzidas por grupos sociais do Sul para, a partir destas, produzir o discurso de São Paulo enquanto o centro civilizador brasileiro. O estado de Minas Gerais viveu, a partir da década de 1950, a intensificação de seu processo de integração e modernização. João Camilo Penna, integrante do grupo que trabalhou com o governador do estado Israel Pinheiro durante seu governo (1966-71), relata-nos: Em Minas Gerais, um estado com vários recursos naturais, vivia um povo pobre. A paisagem era desoladora, isolada em regiões ilhadas, e o mineiro, morando entre montanhas, ouvindo dizer que ao longe havia o mar; vocacionando para a liberdade a buscava em seu isolamento. Dr. Israel quis quebrar esse círculo e trabalhou para romper solidões com estradas e comunicações (PENNA, 2005, p. 293).
A integração territorial do estado passava a se tornar elemento central da política e da busca pela “modernidade” de Minas Gerais. Como já dissemos aqui, a busca pela unidade socioespacial pressupõe dois processos centrais indissociáveis: a coesão territorial e a identidade coletiva. Necessitava Minas, portanto, da articulação de políticas que materializassem a integração de suas áreas mais distantes, pensadas a partir de um centro articulador, a capital, associadas à construção de um sentimento de pertencimento de sua população às expectativas de um novo estado, uma Minas moderna. A capital, Belo Horizonte, torna-se o espaço referência do futuro que se quer, enquanto regiões marcadamente rurais tornam-se o espaço referência de um passado a ser superado. O sertão mineiro deveria ser incorporado a uma nova política. Quando utilizamos tal conceito, referimo-nos a uma área delimitada no espaço? Onde está o sertão? Se para Guimarães Rosa (2005), o “sertão é dentro da gente”, para os projetos políticos civilizatórios produzidos pelos centros de poder, onde se encontra o sertão? O termo sertão não se refere, historicamente, a espaços bem determinados, a uma área com fronteiras e características geográficas bem definidas, trata-se de uma “ideologia geográfica”.
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Na verdade, o sertão não é um lugar, mas uma condição atribuída a variados e diferenciados lugares. Trata-se de um símbolo imposto – em certos contextos históricos – a determinadas condições locacionais, que acaba por atuar como um qualificativo local básico no processo de sua valoração. Enfim, o sertão não é uma materialidade da superfície terrestre, mas uma realidade simbólica: uma ideologia geográfica. Trata-se de um discurso valorativo referente ao espaço, que qualifica os lugares segundo a mentalidade reinante e os interesses vigentes neste processo. O objetivo empírico desta qualificação varia espacialmente, assim como variam as áreas sobre as quais incide tal denominação. Em todos os casos, trata-se da construção de uma imagem, à qual se associam valores culturais geralmente – mas não necessariamente – negativos, os quais introduzem objetivos práticos de ocupação ou reocupação dos espaços enfocados. Nesse sentido, a adjetivação sertaneja expressa uma forma preliminar de apropriação simbólica de um dado lugar (MORAES, 2002-2003, p. 13).
Um projeto modernizador de Minas Gerais significava, entre outras coisas, a apropriação simbólica e material do “sertão mineiro”, a ser ocupado por novas práticas socioespaciais para fins de sua incorporação a um processo de reordenamento do território do estado, em construção. À luz dos processos vividos pelo estado a partir da metade do século XX, podemos dizer que na história de Minas Gerais, nunca antes o estado havia possuído condições materiais, científicas e técnicas, através da realização de diagnósticos e planejamentos, assim como da capilarização de órgãos e instituições públicas, para almejar, concretamente, o controle de seu território. Tecnologias e técnicos estavam “disponíveis” para que o estado pudesse, enfim, colocar em prática um projeto de produção de uma unidade territorial. De acordo com Côrrea (1986, p. 49), [...] no capitalismo as desigualdades regionais constituem, mais do que em outros modos de produção, um elemento fundamental de organização social. Em muitos casos, a ação decorrente do planejamento regional proporcionou um relativo progresso e uma maior integração da região
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ao modo de produção capitalista, quer dizer, a região sob intervenção planejadora passa a ficar sob maior controle do capital e de seus proprietários.
As diferenças socioespaciais estariam, segundo muitos, ameaçadas pela homogeneização fruto da globalização capitalista. O que vemos é o contrário. Há um aprofundamento de diferenças e desigualdades regionais, segundo novas lógicas, interesses e mecanismos de controle e integração territorial. Através do conhecimento sistematizado, produto, em especial, do avanço da cartografia, de diagnósticos e de métodos quantitativos (sensos mais eficientes, por exemplo), intervenções do Estado (ou legitimadas pelo Estado) buscam a incorporação de regiões a interesses estaduais, nacionais e/ou internacionais. Regiões passam a cumprir novos papéis em uma divisão territorial do trabalho em processo de reordenamento, passando, dessa forma, a serem inseridas de forma sistêmica a relações em novas escalas. Como se diz, hoje, que o tempo apagou o espaço, também se afirma, nas mesmas condições, que a expansão do capital hegemônico em todo o planeta teria eliminado as diferenciações regionais e, até mesmo, proibido de prosseguir pensando que a região existe [...] ao contrário, pensamos que [...] o espaço se torna mundial, o ecúmeno se redefine, com a extensão a todo ele do fenômeno da região. As regiões são o suporte e a condição de relações globais que de outra forma não se realizariam (SANTOS apud HAESBART, 2010, p. 58).
O espaço, pensado e incorporado segundo a lógica de centros de poder, recebe novas diferenciações, novos recortes regionais. Como controlar e incorporar áreas que não conhecemos? Em Minas Gerais, diagnósticos são produzidos por órgãos estatais (em especial, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE e, a partir de 1969, a Fundação João Pinheiro – FJP) para que a totalidade do território do estado seja conhecido e novas áreas possam “revelar” seus potenciais econômicos (lê-se recursos naturais e humanos) a serem incorporados a uma política de desenvolvimento estadual. O que nos vale refletir aqui como questão central é o processo de unificação do mercado intra e inter-regional que, apesar de discursivamente homogeneizador, em vez de abolir particularismos, produziu, como 28
alerta Bourdieu (2007), estigmas negativos. Regiões distantes (não apenas geograficamente)1 dos centros econômicos e políticos sofrem ao longo dos processos de integração socioespacial um processo de valoração social, quase sempre negativa, e, muitas vezes, com o objetivo de adequação das realidades regionais à divisão territorial do trabalho, planejada por grupos hegemônicos via Estado. Para que uma integração seja possível, espaços, enfatizaremos aqui aqueles adjetivados como “sertão mineiro”, devem ser estigmatizados para fins de que, por alteridade, a capital e os novos centros urbanos se legitimem como o modelo sociopolítico por excelência. Para que eclodam novos sentimentos de pertencimento regional/nacional, uma nova “relação entre olhar e espaço trazida pela modernidade e pela sociabilidade burguesa, urbana e de massas” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 46) fundamenta-se. Para que uma Minas moderna floresça, novas regiões devem ser, e serão, produzidas.
O Vale do Jequitinhonha: a “emergência” de uma região Assim como o Nordeste brasileiro, o termo Vale do Jequitinhonha, enquanto uma região geográfica, é instituído a partir da criação de um órgão estatal.2 Em 1964, é criada a Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha (Codevale). Não é raro encontrarmos produções bibliográficas que negritam tal período como a “redescoberta” do Vale do Jequitinhonha, região que teria permanecido “esquecida” e isolada do restante do estado desde a decadência da mineração e, posteriormente, do algodão. Ribeiro (1993; 2008), em sua importante análise acerca desse período de “esquecimento”, questiona, de forma enfática, o que classifica como o “mito do isolamento”, ou o “mito do feio adormecido”. Como pensar uma região sem história por quase um século e meio, estagnada e fechada em si mesma? Nesse período, não
1 - O conceito de perto e longe não se resume a uma distância física, assume um significado político: perto é o que se encontra bem consolidado pelo poder e longe é o “vir a ser”. Sobre o tema sugerimos a leitura de Corrêa e Rosendahl (2004) e Geiger (2004). 2 - “O termo Nordeste é usado inicialmente para designar a área de atuação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), criada em 1919. Neste discurso institucional, o Nordeste surge como a parte do Norte sujeita às estiagens e, por essa razão, merecedora de especial atenção do poder público federal. O Nordeste é, em grande medida, filho das secas” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 81).
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ocorreram transformações, não houve momentos de maior ou menor contato com regiões vizinhas? O Vale vivia autarquicamente? Não necessitava comprar nada, não dispunha de produtos para comercializar? (RIBEIRO, 2008, p. 88)
Tais reflexões foram de suma importância para a produção deste trabalho. Tentaremos ir além. Defenderemos aqui a necessidade de novas indagações a partir das acima elencadas. O Vale existia antes da criação da Codevale? O que particularizava e individualizava o Vale do Jequitinhonha para que possamos considerá-lo, no século XIX, uma região? A superação do “mito do isolamento” do Vale do Jequitinhonha não nos permite a ponderação de que se encontrava inserido numa teia de relações econômicas, sociais e culturais com outros espaços, inclusive não somente do estado de Minas Gerais? Uma bacia hidrográfica, a bacia do Rio Jequitinhonha, permite-nos classificá-la enquanto uma região geográfica a priori? Em suma, o Vale do Jequitinhonha, enquanto região governamental e região identitária (temas analisados à frente), pode ser considerado uma região antes mesmo de que tais processos sociais e políticos ocorram? Tratamos aqui, antes de tudo, da emergência de uma região. Não debatemos aqui as transformações que levaram essa região a ser novamente visibilizada, tampouco analisamos aqui uma região que sofre modificações o longo do processo de modernização do estado de Minas, sequer uma região que, após ser descoberta por diagnósticos estatais e meios de comunicação, torna-se nacionalmente conhecida por sua miséria. Debatemos aqui a emergência de um novo recorte regional. Analisamos aqui a “invenção” de uma região.
Fragmentações de uma região natural: a bacia do Rio Jequitinhonha Historicamente, a bacia do Rio Jequitinhonha foi, por séculos, ocupada por populações indígenas. Podemos afirmar aqui, com convicção, e com os poucos argumentos que as páginas deste trabalho nos possibilitam, que tal área, tal bacia, se subdividia em diferentes territórios, habitados e vividos por povos com diferentes costumes, valores e práticas sociais. Não podemos encontrar, nesse período, uma unidade entre as áreas que compunham a bacia do Rio Jequitinhonha. Sequer a unidade identitária, hoje nomeada por nós “indígena”, existia no Brasil pré-colonial. A identidade 30
“Índio” é uma generalização, um conceito homogeneizador de alteridades produzido por colonizadores com objetivos de dominar diferentes povos a partir de um olhar eurocêntrico que se buscava superior (QUIJANO, 2005). A chegada de portugueses à bacia do Jequitinhonha produziu uma fragmentação, ainda maior, dessa área. Após a descoberta de diamantes, o Distrito Diamantino é criado e isolado do restante do país. Estabelece-se ali uma diferenciação geográfica a partir da instituição, por parte do Império português, de um território bastante definido. O Distrito Diamantino se particulariza em relação à parte significativa da bacia, tendo em vista o isolamento produzido pela Coroa. Paralelamente, encontramos similaridades, sob a ótica do garimpo de diamantes, entre muitas localidades distribuídas ao longo da Serra do Espinhaço.3 Parte considerável da bacia do Rio Jequitinhonha permaneceu por longo tempo “protegida” de projetos portugueses. O território dos boruns resistiu ao avanço das bandeiras, somente sendo “conquistado” com o decreto da “Guerra Justa” de D. João VI, em 1808 (MORENO, 1999; SOARES, 2010). Podemos afirmar que, ao longo da bacia do Rio Jequitinhonha no século XVIII, coexistiram dois territórios distintos: um ainda controlado por povos indígenas e outro sob o controle do Estado português. O norte da bacia do Jequitinhonha estava, nesse período, inserido em trocas socioeconômicas com parte da bacia do São Francisco com o sul do estado da Bahia.4 Podemos encontrar algum elo entre as áreas acima citadas? Sem dúvidas sim. Os rios, principalmente o Jequitinhonha, tiveram grande importância e papel no processo de ocupação humana no Vale, nos mais diferentes momentos, principalmente a partir do século XIX (SERVILHA, 2006). Através dos “caminhos que andam” (QUEIRÓZ, 1999), certa integração da bacia do Rio Jequitinhonha se fez. Bandeiras se interiorizaram pelas águas e, após a sedentarização de muitos, canoeiros se tornaram os principais transportadores, ao longo do rio, de mercadorias, informações, notícias e saberes. Povoamentos e aglomerados urbanos em formação encontraram no Rio Jequitinhonha (também no Araçuaí) a possibilidade
3 - “A Serra do Espinhaço é uma cadeia montanhosa localizada no planalto Atlântico, estendendo-se pelos estados da Bahia e Minas Gerais”. Fonte: www.wikipedia.com.br. 4 - No início do século XVIII, parte significativa da bacia do Jequitinhonha pertencia ao estado da Bahia. “A mineração dos diamantes alcançava colossal importância. Isso concorreu para que, pela Resolução Ultramarina de 13 de maio de 1757, se incorporasse Minas Novas à Comarca de Serro e ao Governo de Minas, ou melhor, o distrito diamantino, compreendendo, então, desde Serro até Minas Novas, para policiar melhor a cobrança dos quintos, alargando assim o âmbito da derrama nas Minas Gerais. A incorporação se deu pelo decreto de 26 de agosto de 1760” (JARDIM, 1998, p. 72).
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de trocas “interlocais”. Podemos dizer que nesse momento um binômio é produzido, o “canoeiro-tropeiro”. A bacia do Rio Jequitinhonha é uma área de grande extensão, o que nos faz inferir que as canoas que circulavam pelos rios maiores, em especial o Jequitinhonha e o Araçuaí, não eram suficientes para atender as demandas e necessidades de superação do isolamento local existentes em inúmeras comunidades. As tropas se constituíram, então, no mecanismo que articularia a bacia, produzindo trocas, contatos, entre diferentes localidades. Em determinados momentos, tropas e canoas eram parte de um mesmo processo. Tropeiros oriundos de incontáveis povoados da bacia se deslocavam para a beira do Rio Jequitinhonha para, com canoeiros, trocar seus produtos. Tal binômio possibilitou, entre outras coisas, a circulação de mercadorias produzidas ao longo da bacia a grandes distâncias. Apesar de afirmarmos aqui a presença do Rio Jequitinhonha como um vetor de integração da bacia, em especial a partir do binômio apresentado, constatamos que esta não se demonstrou tão significativa para a organização espacial da bacia quanto as fragmentações produzidas pelas dificuldades de locomoção e contatos entre localidades distantes. Temos, dessa forma, uma bacia recortada por relações em escala local, que encontravam, no rio, seu principal mecanismo de articulação de distantes povoamentos ao longo da bacia. Somado a isso, temos a abstração de uma divisão entre bacias hidrográficas que não necessariamente corresponde a fronteiras culturais, sociais e econômicas bem definidas. Tropas não se limitavam a percorrer áreas exclusivamente pertencentes à bacia do Jequitinhonha, pelo contrário, nas áreas mais distantes ao Rio Jequitinhonha, definiam seus trajetos segundo a posição dos centros urbanos mais próximos e influentes. Parte da bacia a oeste das margens do rio se relacionava com a bacia do Rio São Francisco e parte da bacia a leste, com as do Rio Mucuri e/ou Rio Doce. Após o declínio da mineração, e em seguida do algodão, poucos relatos temos de processos e arranjos socioeconômicos e socioculturais que relacionem a bacia do Jequitinhonha a outras áreas do país.5 Isso produziu 5 - Fontes mostram o surgimento e desenvolvimento, nesse período, de cidades como Araçuaí, Jequitinhonha e Almenara, assim como processo de migração ao longo da bacia do Jequitinhonha. Parte da população migra das áreas de mineração decadente à procura de novas descobertas minerarias ou de outras oportunidades de renda, seja nos povoamentos em desenvolvimento, seja na agricultura e/ou pecuária. O norte da bacia recebe descendentes de mineradores, assim como migrantes da Bahia à procura de terras propícias à pecuária (RIBEIRO, 1993; SILVA, 2007).
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o discurso de seu isolamento, que, posteriormente, reforçou, por sua vez, a compreensão de certa homogeneidade e coesão regional. Segundo Ribeiro (2008, p. 88), [...] com o fim do período de exportação do algodão, o Jequitinhonha passa a enviar sua produção agropecuária para os mercados vizinhos, perdendo assim o fluxo comercial mais significativo com os grandes centros econômicos do país e do exterior. Seria em grande parte este processo que alimentou a concepção de isolamento e estagnação do Vale, que faz sentido do ponto de vista de quem o enxerga a partir daqueles centros. Durante toda a segunda metade do século XIX e primeira do segundo, sua tropas se dirigiam para os centros de comércio das regiões vizinhas em Minas ou para cidades baiana próximas.
Uma bacia isolada e homogênea, ao olhar dos centros econômicos, era, na verdade, fragmentada por diversas áreas cujas relações se estabeleciam com diferentes espaços vizinhos.6 Quando imaginamos que a região é redescoberta a partir da criação de Codevale o fazemos a partir da ilusão de sua preexistência. Albuquerque Júnior (2011, p. 89) nos alerta, ao debater a história do Nordeste brasileiro, que a [...] história regional retrospectiva busca dar à região um estatuto, ao mesmo tempo universal e histórico. Ela seria restituição de uma verdade num desenvolvimento histórico contínuo [...]. A região é inscrita no passado como uma promessa não realizada, ou não percebida; como um conjunto de indícios que já denunciavam sua existência ou a prenunciavam. Olha-se para o passado e alinha-se uma série de fatos, para demonstrar que a identidade regional já estava lá.
O que buscamos aqui refletir é a existência ou não da região do Vale do Jequitinhonha antes de sua delimitação e institucionalização a partir do recorte geográfico proposto pela criação da Codevale, seja em 6 - Sobre esse tema recomenda-se Ribeiro (1993), em que um levantamento histórico apresenta tais relações com profundidade e detalhamento.
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função de uma possível coesão/integração espacial regional, seja pela existência de uma consciência regional. Não, a chamada história do Vale do Jequitinhonha não existe, enquanto particularidade, antes do surgimento de tal órgão estatal e dos processos desencadeados por ele. A literatura já produzida acerca da “história do Vale do Jequitinhonha” aborda processos históricos que não nos permitem a compreensão de um recorte regional a priori, mas sim, e muitos autores contribuíram muito para isso, o entendimento de elementos que, no decorrer do tempo, possibilitaram a emergência de uma nova região.7
Nasce uma região administrativa Em meados do século XX, destaca-se a atuação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), fundado em 1938, no trabalho de conhecer, diagnosticar e mapear as diferenças socioespaciais do território brasileiro. De acordo com Penha, a criação do IBGE refletia dois aspectos principais: De um lado a importância que os levantamentos estatísticos e a pesquisa geográfica poderiam desempenhar na administração do imenso território brasileiro em processo de integração socioespacial; e de outro, a necessidade de atender às demandas por uma rigorosa sistematização de informações geográficas do território brasileiro, exigida para o desenvolvimento industrial. (PENHA apud BATELLA; DINIZ, 2005, p. 63)
A busca de unidade revela fragmentações, visibiliza diferenças, aponta obstáculos para uma integração desejada. “Descobrir” o Brasil perpassava, nesse sentido, pela compreensão da diversidade socioespacial brasileira, tanto quanto pela sua sistematização de forma a propiciar condições reais para a construção de um projeto nacional. Na primeira divisão do território brasileiro em microrregiões, as “zonas fisiográficas”, Minas Gerais vê nascer, em 1941, um recorte espacial institucional.
7 - Destacamos aqui os relevantes levantamentos históricos produzidos Luis Santiago (1999), Maria Nelly Lages Jardim (1998) e Ricardo Ribeiro (1993).
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01 - Baixo Médio Jequitinhonha 02 - Zona Parnaíba – Rio Grande 03 - Urucua 04 - Médio Jequitinhonha 05 - Triângulo Mineiro 06 - Rio Doce 07 - Mata 08 - Itaçambira 09 - Alto Jequitinhonha 10 - Metalúrgica 11 - Campos da Mantiqueira Mineira 12 - Sul 13 - Oeste 14 - Alto Médio São Francisco 15 - Alto São Francisco 16 - Montes Claros 17 - Mucuri
Figura 1 – Zonas fisiográficas de Minas Gerais segundo o IBGE - 1941 Fonte: BATELLA; DINIZ, 2005.
As zonas fisiográficas eram definidas com base em critérios socioeconômicos e, entre as 17 produzidas pelo IBGE no estado de Minas Gerais, encontramos, pela primeira vez, as microrregiões do “Alto Jequitinhonha”, do “Médio Jequitinhonha” e do “Baixo Médio Jequitinhonha”. Não há, ainda nesse momento, a “revelação” do Vale do Jequitinhonha enquanto região diagnosticada, pelo contrário, a sua bacia é apresentada fragmentada em cinco diferentes zonas no estudo. Além das três referidas acima, áreas da bacia se inserem na zona fisiográfica “Montes Claros”, assim como na “Itacambira”. Na década de 1950, uma crise devasta rebanhos bovinos de um boi conhecido como tipo Jequitinhonha, chamando a atenção do governo estadual, em período administrado por Bias Fortes. Em 1957, em decorrência desse fato, um grupo de pesquisadores é criado para realizar um estudo geográfico da área atingida, publicado, em 1960, com o título de “Estudo Geográfico do Vale do Médio Jequitinhonha” (GUIMARÃES, 1960).8 Tal diagnóstico apresenta uma vasta gama de problemas ambientais, sociais e, em especial, econômicos e influencia a apresentação, por parte 8 - Interessante analisarmos o recorte espacial de Guimarães (1960), cujo estudo engloba os municípios presentes no “Médio Jequitinhonha” e no “Médio Baixo Jequitinhonha” – “zonas fisiográficas” delimitadas pelo IBGE em 1941, já citadas.
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de Murilo Badaró,9 da Emenda Constitucional na Assembleia Legislativa, em fevereiro de 1964, que cria a Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha – Codevale (SILVA, 2007). Assim, estudos e análises acerca de um problema específico – a crise bovina do começo da década de 1950 – tornam-se subsídio, científico e político, para a criação de uma agência de desenvolvimento regional. A bacia do Vale do Jequitinhonha torna-se uma região delimitada política e administrativamente, com características analisadas segundo interesses estatais (nem sempre públicos). Uma “região-devir” (HAESBAERT, 2010), uma “região-plano” (CASTRO, 1992), uma articulação proposta a partir de atores e racionalidades específicas que buscam, via políticas estatais, a regionalização do território nacional. Estava criada uma “região-problema”. Estava criada aí, e em especial a partir daí, a região do Vale do Jequitinhonha. Novos diagnósticos acerca da “região” são produzidos. “O Vale do Jequitinhonha é uma das regiões mais pobres de todo o Estado, apesar das possibilidades em recursos naturais que apresenta” (Codevale apud RIBEIRO, 2008, p. 93). Um novo plano de desenvolvimento (II Plano Mineiro de Desenvolvimento Econômico e Social) apresenta novamente a região como pobre e, ressaltamos aqui, como homogênea em sua pobreza. “A região VII [Vale do Jequitinhonha] é caracterizada como ‘área problema’ em Minas Gerais, ‘bolsão de pobreza’ do Estado mineiro” (Codevale/Incra apud RIBEIRO, 2008, p. 93-94). Apesar da profunda heterogeneidade encontrada na bacia do Rio Jequitinhonha (diferenças nos processos históricos de ocupação, na vegetação, no clima, nos arranjos econômicos, tanto quanto socioculturais) e das semelhanças entre áreas da bacia e outras áreas do estado (como bacia do Mucuri e São Francisco), o Vale é visto como uma região, uma especificidade no espaço, um recorte no mapa. E qual seria a especificidade a representar e legitimar tal invenção? A pobreza. Ao questionarmos, com razão, a associação entre o Vale do Jequitinhonha e a pobreza, precisamos ter clara aqui a indissociabilidade entre espaço e miséria presente nos discursos que inventaram a região. Ainda em 1969, ano em que a Codevale já havia sido criada, o IBGE publica uma nova regionalização do país, apontando, novamente, a diversidade socioespacial da bacia do Rio Jequitinhonha. 9 - Murilo Badaró foi “presidente do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais BDMG [...]. Ex-deputado, ex-senador, autor do Projeto de Emenda que criou a Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha – Codevale, em 1964. Nasceu em Minas Novas, no dia 13 de setembro de 1931” (SILVA, 2007).
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46 01 - Sanfranciscana de Janúaria 02 - Serra Geral de Minas 03 - Alto Rio Pardo 04 - Chapadões do Paracatu 05 - Alto Médio São Francisco 06 - Montes Claros 07 - Mineradora do Alto Jequitinhonha 08 - Pastoral de Pedra Azul 09 - Pastoral de Almenara 10 - Médio Rio das Velhas 11 - Mineradora de Diamantina 12 - Teófilo Otoni 13 - Pastoral de Nanuque 14 - Liberlândia 15 - Alto Parnaíba 16 - Mata da Corda
17 - Três Marias 18 - Bacia do Suaçuí 19 - Governador Valadares 20 - Mantena 21 - Pontal do Triângulo Mineiro 22 - Uberaba 23 - Planalto de Araxá 24 - Alto São Francisco 25 - Calcário de Sete Lagoas 26 - Belo Horizonte 27 - Siderúrgica 28 - Mata da Caratinga 29 - Bacia do Manhuaçu 30 - Divinópolis 31 - Espinhaço Meridional
32 - Mata de Ponta Nova 33 - Vertente Ocidental do Caparaó 34 - Furnas 35 - Formiga 36 - Mata de Viçosa 37 - Mata do Muriaé 38 - Mogiana Mingina 39 - Campos da Mantiqueira 40 - Mata de Ubá 41 - Planalto de Poços de Caldas 42 - Planalto Rio Grande 43 - Alto Rio Grande 44 - Juiz de Fora 45 - Mata de Cataguases 46 - Alto Mantiqueira
Figura 2 – Microrregiões homogêneas de Minas Gerais segundo o IBGE - 1969 Fonte: BATELLA; DINIZ, 2005
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Em tal recorte regional, surgem, na bacia analisada, as regiões: “Mineradora do Alto Jequitinhonha (7)”, “Pastoral de Pedra Azul (8)”, Pastoral de Almenara (9)”, “Mineradora de Diamantina” (11) e “Alto Rio Pardo (3)”. Apesar de haver se tornado uma região atendida por uma agência de desenvolvimento criada exclusivamente para delimitá-la e “desenvolvê-la”, o recorte “Vale do Jequitinhonha” ainda não estava devidamente naturalizado. Somente em 1973, um estudo de regionalização, produzido pela Fundação João Pinheiro, criada em 1969, aponta o Vale do Jequitinhonha como uma das regiões para fins de planejamento de Minas Gerais (BATELLA; DINIZ, 2005).
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01 - Triângulo/Alto Paraíba 02 - Noroeste 03 - Jequitinhonha 04 - Alto São Francisco 05 - Metalúrgica Campos das Vertente 06 - Rio Doce 07 - Zona da Mata 08 - Sul de Minas
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Figura 3 – Regiões para fins de planejamento de Minas Gerais segundo a Fundação João Pinheiro - 1973 Fonte: BATELLA; DINIZ, 2005.
Não nos é suficiente aqui a compreensão dos processos administrativos estatais que produziram recortes espaciais no estado institucionalizando regiões, mas, em especial, como estas foram, ou não, incorporadas à vida da população do estado como uma escala de vivência, significação e identidade. Para compreendermos o processo histórico que emergiu e consolidou o Vale do Jequitinhonha enquanto uma invenção espacial, é necessária a análise dos processos que o produziram e difundiram enquanto uma consciência regional.
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Do orgulho sertanejo à consciência regional O Vale do Jequitinhonha é o produto de uma divisão, di-visão (BOURDIEU, 2007), tornando-se um espaço caracterizado, em especial, por elevados índices de pobreza e pela seca. Trata-se de uma região “inventada” a partir da “descoberta” de sua pobreza e, concomitantemente, do discurso de sua superação, produzido e articulado, em especial, pelo Estado. Discursava-se sobre o fim da pobreza regional, mas não sobre o modelo socioespacial produtor de tais condições. O Vale do Jequitinhonha emerge enquanto uma região distante dos grandes centros e adquire uma caracterização valorativa negativa com a qual “aprende” a conviver ao longo de décadas. O projeto de uma “Minas moderna”, para conquistar unidade, legitimidade e dizibilidade sociais, necessita de espaços e práticas sociais que, à luz de novas teorias, representem o indesejável. Para que o “novo” floresça, é preciso estabelecer o “velho”. Para que um novo futuro se vislumbre, é preciso (re)delimitar/(re)inventar o passado, ou melhor, um presente associado, diretamente, ao passado. Para que determinados espaços, grupos e perspectivas sociais se tornem a representação do positivo, é necessário, em contraposição, a produção de referenciais negativos basilares. Apontaremos aqui quatro classificações valorativas negativas centrais a partir das quais o Vale do Jequitinhonha é inventado e significado.10 1. Uma região tipicamente rural, que sofre o estigma “urbano etnocêntrico” que a qualifica enquanto atrasada, atraso, resíduo a ser superado pelo desenvolvimento e progresso. 2. Uma região inserida (em parte) no semiárido nordestino brasileiro, que recebe a valoração de “sertão”, estigmatizada socialmente negativamente (por uma característica natural) enquanto área a ser dominada, transformada e agregada. 3. Uma região interiorana, que sofre, simultaneamente, todas as valorações produzidas pelo processo de ocupação territorial brasileiro, que possui como uma de suas marcas centrais a litoralização do poder político em detrimento do interior do país (que se estruturou em grande parte através de elites oligarquias regionais), espaços antagônicos aparentemente desarticulados, mas partes de um mesmo sistema econômico, político e cultural.11 10 - Sobre o conceito de “estigma” recomenda-se Goffman (2008). 11 - “No modelo litoral/interior, ou litoral/sertão, a dialética não é propriamente a da rivalidade de pretendentes, uma vez que as duas partes contêm semelhanças e desigualdades, são ‘contrários’ numa unidade: a nação brasileira” (GEIGER, 2004, p. 173).
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A produção de estigmas regionais no Brasil é uma das peças de um sistema, construído a partir de alianças entre elites regionais e centrais, com o propósito central de expropriação das potencialidades regionais (humanas e naturais) canalizadas para projetos políticos interessantes a poucos (CASTRO, 1992; OLIVEIRA, 1981). O processo de emergência do Vale do Jequitinhonha enquanto região não foi diferente. A insistência com que a questão social do Vale do Jequitinhonha centralizada na elevação dos níveis de renda evidencia como uma aliança entre rótulos e números quer imputar atributos negativos a uma sociedade, tais como ausência de atividade econômica significativa, fraco dinamismo dos atores envolvidos, tradicionalismo, de modo que a expansão de atividades fundadas no lucro capitalista se tornem o remédio par excellence para o desenvolvimento, trazendo enfim, vida para onde supostamente existem apenas um povo moribundo e uma terra agonizante. (MOURA, 1988, p. 5, grifos do autor)
4. Chegamos aqui ao quarto, último, e mais significativo, estigma valorativo negativo diferenciador/criador/qualificador da região analisado (vale ressaltar a transversalidade e complementaridade de todos). Na década de 1970, o Vale do Jequitinhonha recebe um “adjetivo regional”. O título “Vale da Miséria”, utilizado, ainda hoje, por muitos para caracterizar a região, foi-lhe atribuído, no que se tem registro, em 1974 pela Organização das Nações Unidas (ONU).12 Porém, mais do que apontar uma data para a invenção de um título, cabe-nos a análise dos processos e mecanismos por meio dos quais tal adjetivação foi difundida e (re)significada. Muitas foram as regiões produzidas por diagnósticos e regionalizações estatais em Minas Gerais. O que fez do Vale do Jequitinhonha uma região apropriada por grupos sociais, como poucas no país, que perceberam nela uma escala central de sua vida social coletiva? Quais as particularidades dos processos que fizeram dessa região administrativa uma identidade coletiva?
12 - Informação de João Valdir Alves de Souza, bacharel-licenciado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Educação, professor de Sociologia da Educação na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador da história cultural do Vale do Jequitinhonha, extraída do site www.onhas.com.br.
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Segundo Bourdieu (2007, p. 125), “o estigma produz a revolta contra o estigma. [...] É, com efeito, o estigma que dá à revolta regionalista ou nacionalista, não só as suas determinantes simbólicas mas também os seus fundamentos econômicos e sociais, princípios de unificação do grupo e pontos de apoio objectivos da acção de mobilização”. Racionalidades produzem contrarracionalidades. Estigmas produzem “contraestigmas”. Esse raciocínio é vital para caminharmos na direção da compreensão do(s) movimento(s) percorrido(s) pela(s) identidade(s) regional(is) do Vale do Jequitinhonha e de seu(s) processo(s) de (re)significação. Refletimos aqui uma luta pelo “direito à identidade”, em outras palavras, a disputa entre diferentes interesses e grupos sociais referentes à produção simbólica de identidades socioculturais e socioespaciais coletivas. Disputas por significação de “si” e do “outro”, imersas em relações verticalizadas de poder. Centros de poder político possuem o poder de poder dizer (BOURDIEU, 2007), nas palavras de Silva (2009), o poder de incluir/excluir (estes pertencem, aqueles não pertencem); de demarcar fronteiras (nós e eles); de classificar (bons e maus, puros e impuros, desenvolvidos e primitivos, racionais e irracionais); de normalizar (nós somos normais, eles são anormais). Na primeira metade do século XX, um sentimento contraestigma já podia ser percebido em intelectuais/escritores naturais do Norte do estado de Minas Gerais, em resposta ao estigma de “sertão” e “sertanejo” enquanto, respectivamente, um espaço e um povo avesso ao progresso. Em texto de Otacílio Lisboa, que viveu em diferentes localidades da bacia do Rio Jequitinhonha, escrito em 1932, percebemos uma unidade em torno da ideia de questionamento dos elementos estabelecidos arbitrariamente ao sertão e ao povo sertanejo. A maioria daqueles que não conhecem o sertão supõe que o Norte de Minas é uma região quase deserta, estéril, povoada de animais ferozes e alguns milhares de tabaréus, sem a menor idéia de progresso e civilização. Entretanto, essa parcela setentrional de Minas, embora humilde e silenciosa, está desmentindo com fatos e algarismos bastante positivos em nossos trabalhos de estatística estadual, esse baixo conceito, essa chinesice que dela fazem aqueles que não a conhecem ou que, muito da indústria, procuram aviltá-la e reduzi-la à condição de simples glebas dos tempos coloniais.
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O sertão mineiro dispõe, felizmente, de todos os recursos com que se amassam e amoldam os múltiplos aspectos do engrandecimento de um povo, e mais alguma cousa que vale incalculável tesouro: sinceridade de convicções e esse elevado e pouco excedido sentimento de probidade tão comuns à quase totalidade da gente sertaneja. (LISBOA apud RIBEIRO, 2008, p. 93, grifos do autor)
Ressalta-se aqui a consciência regional de Lisboa a partir da qual ainda não podemos perceber a distinção do Vale do Jequitinhonha do restante do Norte de Minas. Não há, nesse período, uma identidade “jequitinhonhense”, mas uma compreensão da unidade do “Norte” e da “gente do sertão”. Percebe-se, nesse momento, a potencialização de uma dicotomização entre Norte e Sul do Brasil, onde o Nordeste surge, a partir de 1910, como uma nova região, diferenciando-se do Norte a partir da ideia de seca, miséria e atraso. Tal dicotomização (Norte/Sul) desloca-se para Nordeste/ Sudeste, imprimindo um novo “mapa” político para o país. Afirmamos aqui que o sertão, área geograficamente indefinível, se torna uma consciência identitária para uma parcela significativa da população brasileira. Em Minas Gerais não foi diferente. Uma consciência construída em torno do Norte de Minas e do sertão enquanto espaço afetivo será consolidada e, posteriormente, fragmentada possibilitando a emergência uma nova dicotomia: Centro/Vale do Jequitinhonha.13 De sertão a Vale do Jequitinhonha? Não seria bem esse o percurso construído. O Vale do Jequitinhonha passa a se tornar uma diferenciação espacial, mas ainda parte de um sertão. Torna-se uma região referência na visibilidade e dizibilidade dos aspectos negativos do sertão, um instrumento didático e eficaz na difusão social dos males produzidos pela ausência da modernidade. Ao longo do tempo, o recorte estatal produzido a partir da criação da Codevale é descoberto e incorporado enquanto um elemento discursivo e imagético estratégico. Meios de comunicação, em especial jornais impressos, se debruçarão na aventura jornalística de “divulgação” de uma região.14 Políticos, sejam estes oriundos de municípios inseridos na região delimitada ou não, constroem discursos em torno da ideia de superação de sua miséria, angariando adeptos, apoiadores e, em especial, votos a 13 - A cidade de Belo Horizonte está localizada na região estatal “Central” na maioria das regionalizações produzidas no estado de Minas Gerais. 14 - Sobre essa temática recomenda-se ler Silva (2007).
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partir da tão proclamada “redenção do Vale”.15 A ideia de um vale de misérias atrai incontáveis pesquisadores em busca de uma realidade regional unitária e particular a ser desvelada. Diagnósticos estatais, reportagens midiáticas, discursos políticos, pesquisas científicas, diferentes mecanismos sociais articulam ideias, fatos, estatísticas e imagens em torno da produção de uma diferenciação socioespacial. Atraso e miséria tornam-se marcas históricas de uma região que acabara de surgir. Uma bacia onde encontramos diferentes biomas naturais (cerrado, caatinga e mata atlântica) e uma enorme diversidade de realidades socioespaciais, socioculturais e socioeconômicas torna-se homogênea aos nossos olhos, representada pela repetição de imagens da seca, de notícias da fome e de índices de pobreza. Cabe ao pensamento lembrar aos homens que muito da credibilidade de certas noções deriva apenas da repetição, e que os estereótipos e as categorias redutoras que emergem das verdades naturalizadas nos limitam ao invés de nos favorecer (AGRA DO Ó, 2011, p. 27).
Uma região, assim como sua população, é estereotipada. Se, de um lado, diagnósticos, pesquisas científicas e reportagens jornalísticas imprimiram discursos e imagens que se tornaram a “verdade” sobre um espaço, diferenciando-o a partir de seus males e homogeneizando-o a partir de um olhar míope, surgem, de outro, discursos, imagens e perspectivas destoantes. Estigmatizado, tenho de me descobrir, me reinventar, me dizer. “Somos pobres como nos dizem?” “Não há riquezas no Vale do Jequitinhonha?” “Somos exclusivamente miseráveis?” A pobreza tratada como valor intrínseco e absoluto se reflete na qualificação da região como tal, vista como isolada e característica e homogeneamente pobre. Preferimos aqui uma visão relacional da pobreza. Como nos aponta Sahlins (1974, p. 42), “a pobreza não é uma certa relação de bens, nem simples relação entre meios e fins; acima de tudo é relação entre pessoas. A pobreza é um estatuto social, invenção da civilização”. O discurso da “pobreza jequitinhonhense” se torna alicerce na história da região para duas racionalidades (e práticas a partir delas) centrais. 15 - Nesse momento, a região recebe, concomitantemente ao título de “Vale da Miséria”, o adjetivo, produzido em especial por discursos políticos, de “Vale da Esperança” (SILVA, 2007).
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Uma, construída por alguns grupos socioeconômicos (não apenas da região) que, a partir do discurso regional, angariam recursos governamentais para investimentos, por vezes em forma de isenções via Estado, em empreendimentos produtivos. Outra, construída a partir dos interesses desses grupos (e utilizadas por eles estrategicamente), caracterizada pela produção de uma baixa estima social, pessoal e coletiva na “população regional” (populações locais), que legitima projetos de intervenção desenvolvidos “de cima para baixo”. “Somos ‘sertanejos’, ‘rurais’, ‘interioranos’ e ‘pobres’ (os mais pobres do Brasil!), não possuímos, portanto, capacidade, qualificação e saberes para resolver nossos problemas e modificar nossa tão discursada pobreza material.” Artistas e militantes socioculturais não satisfeitos com os estigmas sofridos historicamente pelo sertão, assim como pela recém-associação de sua região natal (nesse momento já uma região estatal) exclusivamente a uma pobreza absoluta, passam a se organizar coletivamente em busca da construção e difusão de um “contradiscurso”, de um novo olhar para o Vale do Jequitinhonha, de novas significações e adjetivações regionais.16 Novos fatos, ideias e imagens são acionados por novos atores sociais para fins de autorreconhecimento e legitimação de diferentes qualificações valorativas da região, de mostrar “outros Vales”. O Vale da religiosidade e da cultura populares, o Vale da cultura afro-brasileira, o Vale da cultura indígena, o Vale das folias de reis, do congado, da viola, das benzedeiras e rezadeiras, dos canoeiros, da oralidade, do “sentimento de comunidade”, dos cantos de domínio público, das lavadeiras, dos boiadeiros, dos mutirões, das festas nas ruas, da viola, do artesanato. A partir do recorte espacial definido pela bacia do Rio Jequitinhonha, artistas, grupos de cultura popular e militantes socioculturais se articulam em torno de um movimento em escala regional ressignificando, valorizando e fomentando trocas e intercâmbios entre grupos e vivências populares, produzindo, através de uma “realocação escalar”, a regionalização de manifestações até então vividas e percebidas como locais/municipais/comunitárias. Surge uma região identitária, significada pela arte e pela articulação de movimentos e entidades culturais. Emerge, a partir da construção e difusão de novos olhares para o Vale do Jequitinhonha, uma consciência regional: o “Vale da Cultura”. 16 - Não nos será possível aqui, infelizmente, o aprofundamento merecido acerca da história do movimento cultural do Vale do Jequitinhonha. Sabemos, entretanto, que outros artigos o farão neste livro com enorme propriedade e relevância.
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A arte de se reinventar “Precisamos inventar o Brasil que queremos” Darcy Ribeiro
O termo “Vale do Jequitinhonha” refere-se, simultaneamente, a uma região natural: o vale da bacia do Rio Jequitinhonha; uma região estatal; o Vale do Jequitinhonha institucionalizado a partir da criação da Codevale; e uma região identitária: o Vale significado por um movimento cultural regional. O processo histórico de emergência de uma região está imerso em disputas, materiais e simbólicas, que envolvem, concomitantemente, diferentes mentalidades, representações e práticas sociais produtos/produtoras de recortes espaciais. Não analisamos, neste trabalho, diferentes espaços geográficos, mas um espaço recortado e significado a partir de diferentes, certas vezes contraditórios, certas vezes complementares, atores sociais. Não há neste trabalho o objetivo de “desconstrução” do Vale do Jequitinhonha enquanto região, mas da desnaturalização de sua existência a priori, assim como da visibilização de conflitos em torno de sua delimitação/significação/adjetivação. O que é o Vale do Jequitinhonha? Quem são os produtores de uma busca constante por respostas e esclarecimentos acerca do Vale do Jequitinhonha? Olhando para o passado da região, percebemos ser impossível respondermos tais indagações senão de forma complementar. O Vale do Jequitinhonha são muitos, tantos quantos são os diferentes olhares, representações e compreensões de seus diferentes atores sociais; tantos quantos somos nós em busca de respostas. Não buscamos aqui uma resposta única e não nos aflige tal impossibilidade. Nosso objetivo aqui é outro, o levantamento de uma reflexão, um desafio identitário. Como, a partir de um sentimento de pertencimento comum, determinados grupos sociais podem se conhecer, se compreender, se transformar, se emancipar e determinar seu futuro? Disputas em torno da delimitação de uma identidade envolvem mais do que uma “simples” construção afetiva parece nos sugerir. A identidade, tal como a diferença, é uma revelação social. Isso significa que sua definição – discursiva e lingüística – está sujeita a vetores de força, a relações de poder. [...] Elas não 45
convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas. Não se trata, entretanto, apenas do fato de que a definição da identidade e da diferença seja objeto de disputa entre grupos sociais assimetricamente situados relativamente ao poder. Na disputa pela identidade está envolvida uma disputa mais ampla por outros recursos simbólicos e materiais da sociedade. A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais (SILVA, 2009, p. 81).
Dedico este trabalho àqueles que, com enorme mérito, se coletivizaram e, após quatro décadas de mobilização, foram capazes de produzir novos olhares, perspectivas e sensibilidades acerca do Vale do Jequitinhonha para além de discursos homogeneizadores da região a partir do signo da miséria. Poucos foram os espaços geográficos estigmatizados no Brasil cuja consciência regional, fruto, muitas vezes, de arbitrária construção ideológica, resultou na organização de tantos em torno de um desejo comum sonhado e, em especial, vivenciado: o “redizer minha terra natal”. Entretanto, não podemos aqui nos furtar a uma última consideração. Como nos alerta Albuquerque Júnior (2011, p. 31), [...] não se combate a discriminação simplesmente tentando inverter de direção o discurso discriminatório. Não é procurando mostrar quem mente e quem diz a verdade, pois se passa a formular um discurso que parte da premissa que o discriminado tem uma verdade a ser revelada. [...] Tentar superar este discurso, estes estereótipos imagéticos e discursivos [...], passa pela procura das relações de poder e de saber que produziram estas imagens e estes enunciados clichês [...]. Pois tanto o discriminado como o discriminador são produtos de efeitos de verdade, emersos de uma luta e mostram os rastros dela.
A história da emergência do Vale do Jequitinhonha enquanto região ainda está para ser contada. Esperamos contribuir aqui com apontamentos iniciais para que possamos, coletivamente, ampliar nossa compreensão da realidade. Não há passado que nos impeça de repensarmos nosso futuro. Pelo contrário, cabe a todos nós o direito de reinventarmos nossa história, de 46
encontrarmos incertezas no antes “já certo”, de redescobrirmos o novo no antes velho, de desnaturalizarmos o presente para, só assim, reinventarmos o futuro. Sonharmos um novo Vale, para além de fronteiras impostas, como muitos o têm feito, nos possibilita sonhar um mundo novo. Desnaturalizando fronteiras podemos redescobrir o espaço, o mundo, nossa região, nosso lugar no mundo, “nosso Vale do Jequitinhonha”. Somente desnaturalizando existências, ideias e conclusões herdadas podemos inventar, segundo novas regras e horizontes, o mundo que queremos. Precisamos inventar o Vale do Jequitinhonha que queremos.
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Mateus de Moraes Servilha é bacharel e licenciado em Geografia pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), mestre em Extensão Rural pela mesma instituição, doutorando em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor de Geografia Humana na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e autor dos livros O vôo de Lelo (infantil) (Editora UFV, 2006) e Arte que nem sei (poesia) (Editora Multifoco/Selo Terceira Margem, 2010).
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A municipalização da proteção do patrimônio cultural de Minas Gerais Carlos Henrique Rangel
Minas Gerais desponta no país com a implementação de políticas visando à preservação do patrimônio cultural, passando pela criação, em 1971, do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA-MG) até a redefinição dos critérios do repasse da cota-parte do ICMS aos municípios mineiros definidos a partir de 28 de dezembro de 1995, com a criação da Lei nº 12.040/95. Essa lei determinou, de fato, a descentralização das políticas públicas, já que, por meio dela, o município que investe em educação, meio ambiente, agricultura, saúde e patrimônio cultural, entre outros critérios, recebe repasse financeiro referente a cada um desses itens separadamente. A Lei nº 12.040/95, modificada pela Lei n° 13.803/2000 e pela Lei n°18.030/2009, completou 16 anos de existência e nesse percurso tem realizado e despertado um grande interesse e uma participação maior da comunidade local nas políticas implantadas pelo poder público municipal, favorável à preservação e à conservação do seu patrimônio cultural.
Precursores da proteção do patrimônio cultural A preocupação com a proteção do patrimônio cultural em nosso país remonta aos tempos coloniais, quando em 1742 o conde das Galveias, D. André de Melo e Castro, manifestava-se contra a transformação do Palácio das Duas Torres, construído pelos invasores holandeses na cidade do Recife, em um quartel, além de denunciar outras decisões prejudiciais ao patrimônio cultural de Pernambuco. No século seguinte, o conselheiro Luís Pedreira do Couto, ministro do Império, ordenou aos presidentes das províncias que tivessem cuidados especiais na restauração dos monumentos, protegendo as inscrições neles gravadas. A partir dos primeiros anos do século XX, ocorreram várias manifestações em defesa do patrimônio cultural. Em 1914, o engenheiro português Ricardo Severo e seu grupo, adeptos da arquitetura neocolonial, realizaram
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visitas às cidades com reminiscências coloniais, colhendo material para seus documentos. Já em 1916, os intelectuais Alceu Amoroso Lima e Rodrigo de Melo Franco conheceram o Barroco Mineiro e perceberam a necessidade de proteger esse valioso patrimônio colonial. Alceu Amoroso Lima, em matéria publicada na Revista do Brasil, edição de setembro/outubro de 1916 (“pelo passado nacional”) alertou sobre a necessidade de preservar o patrimônio das antigas cidades coloniais mineiras então em situação deplorável devido à descaracterização e ruína. Em viagens realizadas a Minas Gerais em 1919 e 1924, os modernistas, acompanhados do poeta Blaise Cendrars, tiveram o primeiro contato com a arte colonial e com os modernistas mineiros. Com exceção de Mário de Andrade, que já visitara Mariana em 1919, os outros modernistas não conheciam Minas Gerais. Vieram para Minas: Blaise Cendrars, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Dona Olívia Guedes Penteado, Tarsila do Amaral, entre outros. Em 1920, Mário de Andrade publicou na Revista do Brasil textos em defesa do patrimônio mineiro. A arte colonial mineira passou a ser vista pela vanguarda intelectual carioca, paulista e mineira como primeira manifestação cultural tipicamente brasileira. O conservador de antiguidades clássicas Alberto Childe, em 1920, elaborou, a pedido do professor Bruno Lobo, presidente da Sociedade Brasileira de Belas Artes, um anteprojeto de lei em defesa do patrimônio artístico nacional. Sua preocupação maior, no entanto, era com os bens arqueológicos. Em 3 de dezembro de 1923, o deputado pernambucano Luis Cedro apresentou um projeto que visava organizar a proteção dos monumentos artísticos. Em 20 de maio de 1924, Dona Olívia Penteado, preocupada com os roubos, vendas do acervo das igrejas mineiras e com o estado de conservação desses bens culturais, criou em Tiradentes a Sociedade dos Monumentos Históricos do Brasil. A primeira reunião contou com a presença de René Thiollier, do presidente de Estado Carlos Campos, de José Carlos de Macedo Soares, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Paulo Prado e Cendrars. Cendrars é encarregado de redigir os estatutos da Sociedade dos Monumentos Históricos do Brasil, cuja finalidade era “A proteção e a conservação dos monumentos históricos do Brasil: Igrejas, palácios, mansões e casas particulares dignas de interesse (móveis, objetos e obras de arte, pinturas, estátuas, livros e arquivos, prataria, etc.)”. 52
No seu artigo III diz: Fazer decretar uma lei para a Classificação e a Conservação dos Monumentos Históricos: a) Classificação dos monumentos históricos; b) Inventário dos monumentos históricos (móveis, objetos, obras de arte, pinturas, estátuas, livros e arquivos); c) Interdição absoluta de exportar os objetos que constarem do Inventário dos Monumentos Históricos; [...] e) Conservação dos Monumentos Históricos; f) Interdição absoluta de efetuar qualquer trabalho de reconstrução, reparação, de transformação ou restauração nos monumentos históricos classificados; g) Qualquer trabalho de reconstrução, reparação, transformação ou restauração a se efetuar num Monumento Histórico classificado será objeto de uma solicitação por escrito; [...] Art. V. Ação do Comitê de Iniciativa em cada Estado: [...] d) Ocupar-se igualmente da arte popular sob todas as suas formas: pinturas, esculturas, arte da mobília e caseira, músicas, canções e danças; e) Organizar festas populares tradicionais nos diferentes estados (carnaval, festas religiosas); f) Arte culinária; g) Interessar-se particularmente pelos vestígios da arte indígena e por todas as manifestações dos negros; h) Colecionar tudo o que concerne à Pré-História. [...] (CALIL, 2006, p. 77-88)
A Sociedade não vingou. Ainda em 1924, o poeta Augusto de Lima apresentou algumas propostas ao Congresso em defesa do patrimônio cultural nacional, mas não foram aprovadas. O jurista mineiro Jair Lins, em 1925, organizou um anteprojeto com o mesmo propósito, também não aprovado pelo Congresso, mas que posteriormente serviria de base para o Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, elaborado por Rodrigo de Melo Franco. Em 1926, Oswald de Andrade preparou, para a Presidência da República, um esboço para a criação de uma repartição destinada à proteção do patrimônio cultural: 53
DEDEPAB – Departamento de Organização e Defesa do Patrimônio Artístico do Brasil Finalidade: Salvar, inventariar e tombar o patrimônio nacional, riquezas artísticas espalhadas pelo território brasileiro. “Considerar monumentos públicos e proteger como tais as principais realizações arquitetônicas da Colônia e os sambaquis, necrópoles e demais vestígios da nossa pré-história.” (CALIL, 2006, p. 77-90).
Nos anos de 1926, 1927 e 1928, foram criadas Inspetorias Estaduais de Monumentos Históricos em Minas Gerais, Bahia e Pernambuco respectivamente. Convidado pelo ministro da Educação Gustavo Capanema, Mário de Andrade elaborou uma proposta de projeto, datada de 24 de março de 1936, para a criação de um serviço de patrimônio artístico nacional. O documento reúne um único conceito: arte, manifestações eruditas e populares. Infelizmente, tais inovações não foram consideradas, mais tarde, na preparação do Decreto-Lei n° 25 de 1937, que vai efetuar a proteção ao patrimônio cultural nacional. Como foi relatado, é perceptível a influência do patrimônio cultural existente em Minas Gerais na tentativa de implantação de políticas públicas favoráveis à proteção do patrimônio cultural brasileiro.
A criação da proteção do patrimônio cultural em nível nacional e em Minas Gerais Os intelectuais modernistas, fascinados com a homogeneidade das cidades do período colonial que preservavam praticamente intacto o seu acervo arquitetônico e artístico do século XVIII, abraçaram a causa da preservação. Graças ao empenho desses expoentes da intelectualidade brasileira dos anos 1920, foi instituído, em 1936, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), por meio de ato do presidente Getúlio Vargas de 13 de abril daquele ano, que estabelecia sua criação provisória. O SPHAN foi criado definitivamente pela Lei Federal nº 378 de 13 de janeiro de 1937. Art. 46. Fica creado o Serviço do Patrimonio Historico e Artístico Nacional, com a finalidade de promover, em todo o Paiz e de modo permanente, o tombamento, a conservação, 54
o enriquecimento e o conhecimento do patrimonio historico e artístico nacional. § 1º O Serviço do Patrimonio Historico e Artístico Nacional terá, além de outros orgãos que se tornarem necessarios ao seu funccionamento, o Conselho Consultivo. § 2º O Conselho Consultivo se constituirá do director do Serviço do Patrimonio Historico e Artistico Nacional, dos directores dos museus nacionaes de coisas históricas ou artísticas, e de mais dez membros, nomeados pelo Presidente da República. (BRASIL, 1937)
O atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) foi regulamentado pelo Decreto-lei nº 25 de 30 de novembro de 1937. Este órgão de proteção, sustentado pelo Instituto do Tombamento e sob a direção do Dr. Rodrigo Melo Franco de Andrade, empreenderá a proteção dos grandes núcleos históricos e dos monumentos mais expressivos de nossa cultura até os anos 1970, superando dificuldades e se consolidando. Em abril de 1970, o encontro de governadores realizado em Brasília definiu que estados e municípios deveriam compartilhar a proteção do patrimônio de expressão local, criando os seus órgãos de preservação: 1- Reconhecem a inadiável necessidade de ação supletiva dos Estados e Municípios à atuação federal no que se refere à proteção dos bens culturais de valor “nacional”. 2- Aos Estados e Municípios também compete, com a orientação técnica da DPHAN, a proteção dos bens culturais de valor regional. 3- Para a obtenção dos resultados em vista, serão criados onde ainda não existir órgãos estaduais e municipais adequados, articulados e devidamente com os Conselhos Estaduais de Cultura e com a DPHAN, para fins de uniformidade da legislação em vista, atendido o que dispõe o art. 23 do Decreto-Lei 25, de 1937. (COSTA, 1970)
Em Minas Gerais, a proteção do rico acervo do estado coube ao IEPHA-MG, fundação integrante do Sistema Estadual de Cultura criada em 1971 com atribuição básica de “preservar o patrimônio cultural do Estado”, empreendendo a identificação, o registro, a fiscalização e a restauração dos bens culturais tangíveis e, a partir de 2002, dos bens imateriais. 55
Ao longo dos seus quarenta anos de existência, o IEPHA-MG cumpre com relativa desenvoltura as suas funções de proteger, gerenciar e estudar/pesquisar o patrimônio cultural de Minas Gerais. No entanto, o número reduzido do seu corpo técnico e a grande extensão territorial do estado, aliada à diversidade do seu acervo cultural, cedo demonstraram a necessidade de parcerias para o desenvolvimento dos trabalhos. Em 1983, foi criado pela instituição o programa Política de Atuação com as Comunidades (PAC), cujo principal objetivo é romper com o paternalismo estatal. A política de atuação do PAC partia do pressuposto de que todo bem cultural é “uma referência histórica necessária à formulação e realização do projeto humano de existência”. A condição necessária, para que este modo de atuação funcione plenamente, é a de que as comunidades locais possam se assenhorar, não apenas de seus valores culturais, mas também, dos tributos que lhes escapam das mãos [...]. Deste modo, a criação e o desenvolvimento de entidades locais, encarregadas pelo patrimônio local e sustentadas pelas próprias comunidades, aparece como variável estratégica, capaz de equacionar o problema da deterioração do acervo cultural de Minas. Uma das metas fundamentais da Política de Atuação com as comunidades do Iepha/MG é, precisamente, a de fomentar a criação e o desenvolvimento daquelas entidades. Neste sentido, cumpre-lhe oferecer às comunidades locais subsídios para que possam se organizar de modo adequado. (IEPHA-MG, 1983)
Ainda nos anos 1980, foi criada a Superintendência de Desenvolvimento e Promoção (SDP) do IEPHA-MG, que, entre outras atribuições, responsabilizou-se pelas ações comunitárias e assessoria aos municípios. Entretanto, os trabalhos desenvolvidos pela SDP, como a criação de um Caderno Técnico com conceitos e diretrizes para a proteção do patrimônio cultural e uma Cartilha do Patrimônio Cultural, por exemplo, atingiram resultados insatisfatórios. Na década seguinte, em 1994, o IEPHA-MG criou o Projeto Educação, Memória e Patrimônio e um ano depois desenvolveu o projeto Memória de Minas. Contudo, essas iniciativas não passaram de pilotos e novamente não surtiram o efeito desejado. 56
Nos anos seguintes, ações isoladas foram empreendidas em trabalhos de pesquisa para tombamento, inventário e restauração de imóveis protegidos pelo tombamento. No entanto, essas ações não se traduziam em projetos efetivos da instituição, refletindo muito mais a disposição de alguns técnicos. Quanto à criação de instituições locais de proteção do patrimônio cultural, a situação continuou basicamente a mesma até o final de 1995, quando o governo estadual, seguindo orientação da Constituição Brasileira de 1988, criou mecanismos de incentivos aos municípios que promovessem a proteção do seu patrimônio cultural.
O ICMS Patrimônio Cultural A Constituição Federal determina que 75% do Imposto sobre a Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS) dos estados devem ser repassados aos municípios de acordo com o volume de arrecadação e que os 25% restantes devem ser repassados conforme regulamentação aprovada por lei estadual. Em 28 de dezembro de 1995, o governo mineiro sancionou a Lei nº 12.040/95, que estabeleceu a redistribuição do ICMS com novos critérios. São considerados os seguintes itens: população, área territorial e receita própria de cada município, investimentos em educação, saúde, agricultura, preservação do meio ambiente e do patrimônio cultural. No caso da variável patrimônio cultural, coube ao IEPHA/MG a elaboração e implantação dos critérios para o repasse dos recursos do ICMS aos municípios. No texto da Lei nº 12.040/95 (depois 13.803/2000), em seu anexo III, foi publicada a tabela de pontuação que define como critérios básicos ações e políticas culturais como a criação de Conselho Municipal do Patrimônio Cultural, de um departamento ou órgão afim para cuidar do patrimônio cultural local e, principalmente, a proteção dos bens culturais por meio do instituto do tombamento nas categorias Núcleos Históricos (NH), Conjuntos Paisagísticos (CP), Bens Imóveis (BI) e Bens Móveis (BM), nos três níveis: federal, estadual e municipal, sendo que os bens tombados pelo IPHAN e pelo IEPHA-MG recebem uma pontuação maior de acordo com sua categoria. Outras ações também foram valorizadas e aprimoradas ao longo dos anos, como o planejamento e a realização de inventário de proteção do acervo cultural local e projetos de educação patrimonial, a proteção dos bens culturais imateriais e a criação de fundos municipais de proteção do patrimônio cultural. Todas essas exigências legais e técnicas deveriam seguir as normas e metodologias criadas e utilizadas pelo IEPHA-MG. 57
O Conselho Curador do IEPHA-MG e depois o Conselho Estadual do Patrimônio Cultural (CONEP) procuraram sempre aprimorar as normas relativas à distribuição do ICMS e ao longo dos anos aprovaram nove resoluções/deliberações, modificando os critérios de repasse da cota – parte do ICMS cultural aos municípios mineiros. Para a formação e orientação técnica dos agentes culturais municipais, foram produzidos manuais e apostilas, distribuídos em cursos de formação que se tornaram rotina da instituição. Em 12 de janeiro de 2009, foi aprovada pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais a Lei n.º 18.030, que dispõe sobre a distribuição da parcela da receita do produto da arrecadação do ICMS pertencente aos municípios, substituindo a Lei n.º 13.803. Pela nova lei, em seu anexo II, novos critérios foram determinados para o ICMS Patrimônio Cultural, contemplando, além dos itens já consagrados, a proteção do patrimônio imaterial e a criação do Fundo Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural e sua utilização. O resultado dessa política de redistribuição de recursos e municipalização da proteção do patrimônio cultural é que, a partir de 1996, os municípios passaram a ter uma motivação a mais para preservarem o patrimônio local. Se antes havia poucos Conselhos Municipais de Proteção do Patrimônio Cultural e o governo estadual não tinha a noção exata de quantos bens protegidos existiam, a situação se reverteu a tal ponto que hoje são mais de 700 conselhos e mais de 3.500 bens culturais tombados e registrados, além de outros 30.000 bens inventariados. Seguindo a legislação, metodologia e os critérios adotados pelo IEPHA-MG, os municípios estão implantando, de maneira gradual, uma política de preservação do patrimônio cultural adequada às características de cada comunidade, compartilhando as responsabilidades com o estado e a União. Essa padronização da metodologia da proteção dos acervos do estado, se, por um lado, facilita a análise do material apresentado ao IEPHA-MG, por outro, inibe a tendência (bastante insipiente existente anteriormente nos poucos municípios que possuíam proteção local) de simplificarem a legislação e os trabalhos técnicos, quando existem. A tão sonhada parceria municipal na proteção do patrimônio cultural finalmente se efetivou e está se consolidando em todo o estado, até mesmo nas regiões mais pobres. O IEPHA-MG passou, de fato, a atuar em todo o território mineiro – alcance inimaginável nos anos anteriores a 1995 –, divulgando, ensinando seus trabalhos e dividindo sua experiência.
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Se antes o atrativo era o recurso que o município receberia se participasse do ICMS Patrimônio Cultural, percebeu-se que gradativamente os conselhos e as equipes técnicas começaram a atuar com determinação na valorização e proteção do seu acervo cultural, criando um marketing próprio de divulgação: cartilhas, fôlderes, banners, cartões-postais, leis de incentivo, fundos do patrimônio, visitas orientadas, promoção de cursos, palestras e seminários. Paralelamente, o campo de trabalho aberto favoreceu o surgimento de dezenas de empresas de consultoria técnica que vêm atuando junto às prefeituras visando ao atendimento das exigências das deliberações. Se por um lado essas empresas prestam um grande serviço de divulgação da política do ICMS Patrimônio Cultural, por outro, elas adiam a autossuficiência dos municípios para promoção e desenvolvimento da gestão do seu patrimônio cultural. Importante frisar que essas empresas estão se especializando cada vez mais e no futuro poderão atuar na proteção do patrimônio cultural em todo o país. Devido ao ICMS Patrimônio Cultural, o IEPHA-MG possui atualmente informações históricas e arquitetônicas com fotografias e plantas sobre mais de 3.500 bens protegidos pelos municípios nas categorias Núcleos Históricos, Conjuntos Arquitetônicos e Paisagísticos, Bens Imóveis, Bens Móveis e Bens Imateriais, e mais de 30.000 fichas de bens inventariados, algo impensável 17 anos atrás. A continuidade desse processo de criação e operação das estruturas municipais de proteção do patrimônio tem um grande efeito multiplicador, permitindo a preservação do rico acervo cultural do estado e servindo ao mesmo tempo de estímulo financeiro aos municípios.
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Historiador, Carlos Henrique Rangel começou sua carreira no IEPHA-MG no Setor de Pesquisa em 1984. De 2004 a 2007, dirigiu a Superintendência de Desenvolvimento e Promoção, desenvolvendo a política de municipalização através do ICMS Patrimônio Cultural. De 2007 a 2010, foi diretor de promoção, onde deu continuidade aos trabalhos de municipalização, promoção e difusão do patrimônio cultural, realizados no período em que ficou à frente da antiga Superintendência de Desenvolvimento e Promoção.
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Anexos Tabela 1 Pontuação dos municípios desde o surgimento do ICMS Patrimônio Cultural (1996-2011)
Ano
Municípios
1996
106
1997
122
1998
167
1999
233
2000
186
2001
218
2002
335
2003
351
2004
457
2005
392
2006
586
2007
630
2008
660
2009
645
2010
705
Fonte: Fundação João Pinheiro
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Tabela 2 ICMS PATRIMÔNIO CULTURAL Valores repassados aos municípios (1997-2010) Exercício
Total do Repasse
1997
R$ 9.030.781,46
1998
R$ 13.059.563,00
1999
R$ 14.131.825,60
2000
R$ 16.859.334,35
2001
R$ 18.364.967,00
2002
R$ 20.954.460,89
2003
R$ 24.321.056,15
2004
R$ 28.749.378,53
2005
R$ 33.962.569,30
2006
R$ 37.065166,48
2007
R$ 41.184.964,07
2008
R$ 48.634.751,46
2009
R$ 45.420.055,12
2010
R$ 55.324.160,17
Fonte: Fundação João Pinheiro
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Patrimônio material e imaterial no Vale do Jequitinhonha José Pereira dos Santos
O patrimônio histórico e cultural do Vale do Jequitinhonha destaca-se por sua diversidade e singularidade e engloba cidades históricas como Diamantina, Minas Novas, Chapada do Norte, entre outras, além de monumentos, tradições, festas, música, dança e artesanato. Esse patrimônio configura um conjunto de manifestações que constitui uma das expressões mais ricas da cultura mineira e brasileira. Sabemos, entretanto, que apenas Diamantina é declarada Patrimônio Cultural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). É ela quem dá ao Vale do Jequitinhonha esse reconhecimento de história e de patrimônio. Durante nove anos, estive à frente da Secretaria Municipal de Cultura de Araçuaí (quando ainda era secretaria); ocupei também o cargo de presidente do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural. Por diversas vezes, estive à frente de lutas importantes para a preservação do que restou do patrimônio cultural da nossa cidade, envidando esforços para que edificações importantes não fossem ao chão, tombadas literalmente, como aconteceu. Travamos uma luta com o poder econômico, com empresas de médio e grande portes, e confesso que estas jogaram abaixo grande parte da nossa história. O trabalho do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA-MG) é exemplar com relação à Lei Robin Hood (lei de retomada de um novo processo de redistribuição mais justa dos recursos do ICMS nos municípios mineiros); entretanto, os prefeitos do Vale ainda não têm o mesmo respeito e carinho com o nosso patrimônio. Hoje, se fizermos um levantamento junto às prefeituras, podemos observar que alguns prefeitos autorizam gastos com verba do ICMS Cultural para a realização de micaretas e outros eventos tidos como “culturais”, alegando investimentos em eventos do aniversário da cidade, e infelizmente deixando para trás a preservação de seus acervos, de suas ruas históricas, de suas demandas para com o patrimônio (que não são pequenas). Como secretário de Cultura, sempre imaginei uma forma de o Estado determinar aos prefeitos como utilizar os recursos da Lei Robin Hood, fazendo com que houvesse apenas investimentos no patrimônio cultural, mais
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precisamente com restauração de imóveis, imagens, com educação patrimonial e outras ações. Sonho com uma lei realmente exclusiva para este fim. Temos um potencial fantástico no Vale do Jequitinhonha quanto ao nosso patrimônio histórico. Fico muito feliz quando vou a municípios como Jequitinhonha e Minas Novas e encontro uma situação completamente diferente de Araçuaí. Isso prova que existem políticas de preservação sim, em cidades que fazem uma leitura diferente quanto ao patrimônio cultural. O que hoje vejo é que, além deste patrimônio material, o Vale produz uma riqueza sem fim, e que é passada de geração para geração. O artesanato, por exemplo, é uma forma de se manter acesa a chama de uma herança do nosso valioso patrimônio imaterial. Hoje vemos que cada região do Jequitinhonha tem uma característica diferente, peculiar de cada mestre, e que é passada por pais e avós. Quando o Festival de Cultural Popular do Vale do Jequitinhonha (Festivale) surgiu na região – e o primeiro aconteceu em Itaobim, em 1980 –, o evento era para ser um momento da música. Mas, no ano seguinte, uma das primeiras manifestações populares a acontecer no Festivale foi a feira de artesanato. A proposta do Festivale era atuar política e culturalmente, visando transformar a realidade. E por aí foi: música, artesanato, literatura, teatro, grupos de Congado, fazendo a arte brotar através do povo. Em Araçuaí, quando Frei Chico chegou ao Vale, foi morar no Palácio Episcopal. Segundo ele, naquela época (na década de 1970), as paredes do seu quarto eram vizinhas com as da cozinha. Havia uma cozinheira que se chamava Maria Filomena de Jesus, a popular “Filó”. Dizia Frei Chico que, enquanto Filó fazia o almoço, cantava algumas músicas que ele admirava muito. Uma das primeiras canções que ouviu foi a “Tirana da Rosa” e pediu que ela cantasse de novo e perguntou de quem eram aquelas músicas. Segundo ele, Filó dizia: “Pra quê, Frei? Estas músicas são feias. Estas músicas quem me ensinou foi minha mãe, ela aprendeu com minha avó...”. E Filó cantava a música para Frei Chico: Subi no pé da roseira, ô rosa tirana Para ver se te avistava, a há Ô rosa... A rosa pra ser cheirosa, ô rosa É de ser de Alexandria, a há Ô rosa...
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Segundo Frei Chico, a partir dali ele começou a pesquisar, com a ajuda de Filó, um conjunto de músicas da nossa cultura popular, que mais tarde vieram a fazer parte do grande repertório do Coral Trovadores do Vale. A grande amiga e colega do Frei Chico, e também responsável por grande parte do nosso patrimônio imaterial do Vale do Jequitinhonha, foi Lira Marques. A Lira, em parceria com o Frei, catalogou centenas de músicas, rezas e outros saberes da nossa cultura popular. Ainda tomei conhecimento de que, quando o Coral Trovadores do Vale foi fundado, alguns integrantes queriam cantar músicas do Roberto Carlos e da Wanderléa, que faziam sucesso naquela época, na década de 1970. Porém, o Frei Chico dizia: “Nós vamos cantar aquilo que verdadeiramente é nosso”. Todo o Vale tem um encanto diferente e peculiar, cada região tem uma particularidade com relação ao nosso patrimônio cultural material e imaterial. Em certa ocasião, uma psiquiatra francesa veio ao Brasil para realização de várias palestras no Rio de Janeiro, São Paulo e em Belo Horizonte, e segundo fiquei sabendo ela exigiu da organização dos eventos que fretassem um avião para que fosse a Araçuaí... Tudo porque ela queria conhecer uma grande artista chamada Noemisa Batista. Naquela época, uma jornalista da Rede Globo Minas entrou em contato comigo para que eu pudesse levá-la a Santo Antônio de Caraí, zona rural da cidade de Caraí, onde mora a Noemisa e onde também morava um dos grandes Ulisses do Jequitinhonha, o Ulisses Pereira. No Vale eram dois grandes Ulisses: o Pereira, de Caraí, que já se encontra fazendo esculturas no andar de cima, e o Mendes, de Itinga, que felizmente ainda se encontra entre nós. Quando conheci a psiquiatra dra. Christine, ela mostrou-me um grande catálogo de arte de Paris que apresentava os artistas do sertão do Vale Ulisses Pereira e Noemisa Batista. Ficamos um dia inteiro naquela região conhecendo as obras desses artistas que em suas particularidades encantavam pessoas de cidades europeias e outras partes do planeta, demonstravam muita simplicidade e encantavam seus visitantes. Existe por aqui uma diversidade de valores do nosso patrimônio que deveria realmente ser tombada pelo IEPHA-MG e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), mas há que se ter muito tempo para se conhecer tanto... Sei que o tombamento de festas como a de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte, proposto pelo IEPHA, servirá como grande exemplo para que as Irmandades do Rosário das cidades do Vale
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do Jequitinhonha repensem as suas festas para que possam preservá-las e mantê-las livres da intromissão de eventos que nada têm a ver com elas. Também defendo que a nossa música seja tombada como patrimônio imaterial. E neste sentido devo admitir que os Trovadores do Vale precisam passar por esse processo de tombamento, pois reconheço que todos os grupos e corais que gravam cantigas da cultura popular do Jequitinhonha acabam bebendo na fonte desse grande coral parafolclórico. Eu particularmente produzi a gravação de dois discos com o Coral Nossa Senhora do Rosário e o Coral Araras Grandes, ambos de Araçuaí. Algum tempo depois, o Coral Meninos de Araçuaí, com a coordenação do grupo Ponto de Partida e a participação de Milton Nascimento, encantaram a Europa com algumas dessas canções do Jequitinhonha pesquisadas pelos Trovadores. Certa vez, conheci um maestro do Rio de Janeiro que tem o grande sonho de escrever partituras para todas as músicas pesquisadas por Frei Chico e Maria Lira Marques. O acervo é imenso, e sei que um grande projeto foi desenvolvido para essa finalidade. Quando participei do projeto Vale, Vozes e Visões, da Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, a convite da ex-secretária Eleonora Santa Rosa, pude perceber no Palácio das Artes um evento que valorizou de fato artistas como Zefa, Lira, D. Isabel, os dois Ulisses e todo o Vale de uma maneira geral. Foi a primeira vez que vi uma equipe inteira da Cultura do Estado aproximar-se daqueles que fazem cultura no Vale. Sabemos que a nossa riqueza material e imaterial existe sem mesmo acontecer a participação do Estado. É por esta razão que o Jequitinhonha é imortal quando se fala de arte popular, de patrimônio cultural imaterial. Apenas solicitamos a atenção do Estado no que diz respeito às políticas de preservação do nosso patrimônio e da cultura de forma geral. Penso que elas têm de ser construídas conosco, lá no Vale, para que possam realmente surtir efeito positivo. Em 1994, participei de um projeto muito interessante que foi a produção de um espetáculo teatral que falava do Vale do Jequitinhonha, e que mostrava ao país as mazelas da nossa região e as nossas riquezas. Desse processo nasceu o espetáculo cênico-musical chamado Jequiticanta. Durante quase 10 anos viajamos o Brasil e alguns países latino-americanos mostrando, de fato, o Vale do Jequitinhonha. O espetáculo mostrava os cantares, os saberes, os costumes, as rezas que fazem parte do nosso cotidiano. Recebemos dezenas de prêmios em vários festivais de teatro, nacionais e internacionais. A peça denunciava os falsos políticos, que aparecem por lá angariando votos e desaparecem após as eleições,
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e mostrava a nossa riqueza através dos brinquedos e das brincadeiras, do congado, do artesanato e da simplicidade do povo do Vale, que é peculiar. Quando montamos o espetáculo, fizemos uma apresentação inicial para Frei Chico e Lira, e estes diziam-nos que tinham a certeza de que mostraríamos ao país inteiro os êxtases e as mazelas do Vale do Jequitinhonha. Na verdade, o espetáculo era nós mesmos. Nós contávamos ao povo a nossa história, a história de cidadãos do Jequitinhonha. Por isso éramos tão reais e tão perfeitos. Em uma cena que falava das viúvas de maridos vivos, por exemplo, usávamos uma música que foi gravada no primeiro disco dos Trovadores. Uma lavadeira cantava: “o dinheiro de São Paulo é dinheiro excomungada, foi o dinheiro de São Paulo, minha nega, que levou meu namorado”. E a outra respondia: “o garimpo do berilo é também excomungado, foi o garimpo do berilo minha nega que levou seu marido”. A música, passada de geração para geração, de domínio público, encanta e conta a nossa história. Num dos momentos mais lindos do espetáculo, cantamos uma outra cantiga pesquisada por Lira e Frei Chico, que fala da pobreza de uma forma tão encantadora que resolvemos inseri-la no espetáculo. Cantávamos assim: Ô vida triste é a vida da pobreza, Ó vida alegre é a vida da riqueza Nas horas certas, tem a cama e tem a mesa Eu quero dormir um sono No colo de uma princesa, ai, ai.
Toda esta riqueza do nosso patrimônio imaterial é mantida e preservada pelos Trovadores do Vale e outros corais, bem como por grandes artistas como Lira, Zefa, Dona Isabel, Ulisses Mendes, Zezinha e tantos outros que ainda se encontram no anonimato. A todos nós, cabe a grata tarefa de orientar e cuidar, com zelo e carinho. Neste sentido, o Centro Cultural Luz da Lua está na sua quinta edição do K-iau em Cena: o Festival Nacional de Teatro de Araçuaí. Todos os anos temos a apresentação de peças teatrais do Brasil e do exterior, e junto a tal programação também mostramos aos grupos que vêm de fora a força da nossa rica cultura popular, da riqueza do nosso patrimônio imaterial. São apresentações dos Tamborzeiros do Rosário, do Coral Trovadores do Vale, Nossa Senhora do Rosário e outros, além dos grupos de Congado da região.
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Aproveito também o ensejo para comunicar que o nosso querido Frei Chico está organizando a publicação de um dicionário que contém mais de cinco mil verbetes dedicados à cultura imaterial do Vale do Jequitinhonha, que brevemente será lançado. Quero dizer também que a tarefa do Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha é muito sublime e que não poupa esforços para divulgar e fazer crescer a cultura do Vale do Jequitinhonha. Obrigado à grande amiga Marizinha, ao Márcio Simeone e a todos que, como eu, carregam o Jequitinhonha no coração e que são defensores imediatos desta cultura. Amigos, existem coisas que às vezes passam despercebidas e que a gente não consegue expressar no papel, às vezes nem verbalmente. É o meu caso quando falo do Vale. Desculpem-me se estou deixando algo para trás. Obrigado pela oportunidade de estar aqui e falar em nome do Jequitinhonha.
José Pereira dos Santos é coordenador, idealizador e fundador do Centro Cultural Luz da Lua, Cineclube Luz da Lua e Teatro Noêmia Santos/Araçuaí-MG, ator e diretor teatral; fundador do Grupo Teatral Vozes; produtor cultural, oficineiro e palestrante especializado na área cultural, assessor cultural, produtor musical. É idealizador e coordenador do Projeto Cinema no Sertão – premiado pela Funarte e pelo Ministério da Cultura – e coordenador do Projeto K-iau em Cena: Festival Nacional de Teatro de Araçuaí-MG.
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Bonecas de Adriana Gomes Xavier, comunidade Coqueiro Campo.
ARTESANATO, ECONOMIA E CULTURA
Arte e vida no Vale: a prontidão dos homens lentos1 Maria Teresa Franco Ribeiro
As visões do Vale: possibilidades de caminhos Visões do Vale: o título do evento levou-me a refletir sobre os sentidos do encontro e os sentidos da palavra “visões”. Título que nos convida a novas percepções do mundo, a novas ou a diferentes representações que assomam aos olhos e aos espíritos e, ainda, a conexões com diversos futuros possíveis, imagináveis ou não. O título já nos propõe mais de uma questão: o que é o Vale do Jequitinhonha para aqueles que ali experimentam o exercício do cotidiano, do labor, da arte, da seca, do sertão, da vida integrada à “natureza”? O que é o Vale para aqueles que o veem como um objeto de estudo, como territórios a serem transformados em realidades tão distantes da almejada pelas populações locais? Foi a partir dessas questões e das lembranças, com todos os seus significados, da minha vida de estudante de Economia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), turma de 1977, que construí algumas reflexões sobre a economia do artesanato como possibilidade de desenvolvimento. O Vale, para a minha geração, foi um espaço de encantamento: Diamantina, as serestas, os cantos de viola, as “Marias” de barro: um lugar de fortalecimento da alma, da criatividade. O Vale é o coração de Minas, território da diversidade, de “opinião” e “sabença”. Compreender a sua complexidade exige a compreensão do modo como esse espaço foi incorporado, submetido e subjugado à lógica hegemônica do desenvolvimento capitalista. O espaço não é “reflexo da sociedade”, ele é a sociedade. As formas espaciais hão de ser produzidas, portanto, como o são todos os outros objetos, pela ação humana (CASTELLS, 1983, p. 23). O desenvolvimento, ou os desenvolvimentos, o que seriam? Que significados teriam e para quem? Karl Marx (2011) afirmou que o capitalismo é uma fo ma histórica, datada, ou seja, nunca existiu anteriormete e, além disso, não é a última forma de experiência social, econômica e política, como nos quer fazer crer o discurso neoliberal. Para Marx, o capitalismo é a pré-história do 1 - Agradeço a Cristina Borges pela cuidadosa revisão e as discussões e leitura poética de Adriana Melo.
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desenvolvimento. O desenvolvimento seria uma experiência em que os homens seriam livres para desenvolver sua criatividade, suas potencialidades. Uma experiência de vida em que a riqueza não seria um fim em si mesmo, mas um meio para produzir bons cidadãos. O conceito de desenvolvimento precisa estar, portanto, totalmente alinhado à compreensão da ética como inclusão e à consciência da importância da formação de sujeitos críticos e participativos. Num momento em que, comandado pelo capital financeiro, o capitalismo passa por uma de suas mais desafiadoras crises, o “velho filósofo” ainda nos inspira, apontando-nos a importância da autorreflexão da humanidade sobre as suas circunstâncias, sobre a sua história. É momento de refletir sobre as nossas próprias práticas, essas que nos fazem sentir menos, que nos fazem sentir solitários e desencantados e que muitas vezes nos cegam em relação aos outros e ao que convencionamos chamar natureza. Essas práticas e sentimentos carecem de utopia e de esperança. É dessa perspectiva que a minha leitura sobre a economia do artesanato do Vale do Jequitinhonha me anima a olhar para caminhos de esperança, para a humanização da vida, para o espaço da poesia. Possibilidades que nos permitem ver e reconhecer a diversidade cultural, social, política e econômica dos lugares e que nos trazem a perspectiva de outras economias, de outras trajetórias de desenvolvimentos, diversas, específicas, particulares. Assim é que trago reflexões sobre a natureza do artesanato e das relações sociais que ele estimula e tece. Inquietações sobre as possibilidades que essas economias podem representar para a construção de espaços mais dignos cujas relações sejam mais afetuosas, mais criativas e mais solidárias.
Economia do artesanato: sentidos socioespaciais da vida O que seria a economia do artesanato senão o conjunto de práticas e ações articuladas à arte em um determinado espaço-tempo? Pensar isso não envolveria a história, a geografia, a antropologia, as artes em geral? A ciência moderna fragmentou os saberes, como se as disciplinas pudessem dar conta da complexidade das relações sociais, políticas e econômicas. Como se a compreensão dos processos pudesse se dar sem a compreensão de sua complexidade, sem a completude das relações humanas em seus espaços, no lugar em que a vida é tecida e transformada. No espaço do cotidiano.
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Para que a ciência seja permanentemente reinventada, de modo a construir o exercício da democracia e da liberdade, transformando os seus limites disciplinares em fronteiras a conhecer, é necessário, também, que sejam reinventados os próprios sujeitos do saber: “[...] a ampliação das fronteiras do saber estimula a reflexão acerca da própria formação dos sujeitos do saber” (HISSA, 2011, p. 44-48). Nesse sentido, o desafio não está apenas nos conteúdos dos conhecimentos, mas também nos sujeitos do conhecimento. É preciso religar o que foi fragmentado, apreender a complexidade dos processos de desenvolvimento, acolher as “sabenças” do Vale e de todos os espaços, indistintamente. É preciso acolher os saberes destituídos de “cientificidade”. Saberes e espaços repletos de sabedorias e significados. Assim, cada espaço terá uma trajetória específica de desenvolvimento, fruto da sua história, das relações que os homens estabeleceram e estabelecem com a “natureza” e entre si. O artesanato, assim como todas as outras expressões da arte e da cultura do Vale, é também uma expressão da economia, do movimento da vida em sua materialidade e espiritualidade. Todas essas são experiências que podem nos ajudar a construir outras economias, outros sentidos de desenvolvimento. Cada modo de produção tem seu espaço particular. Nas sociedades primitivas, por exemplo, o espaço e seu uso (mítico e material) são indistinguíveis enquanto espaço social e físico. Assim como esses espaços, o espaço, o território do Vale do Jequitinhonha, é produto e produtor de suas materialidades, das expressões das suas artes e de seus ofícios e das diversas histórias, tantas vezes sequer registradas nas cartografias oficiais. O artesão exerce uma arte ou um ofício manual por sua conta, sozinho ou auxiliado por membros da sua família e por um número restrito de companheiros ou aprendizes. Com a ajuda de ferramentas e mecanismos caseiros, visa produzir peças utilitárias, artísticas, recreativas, instrumentos de trabalho – com ou sem fim comercial. O artesão estabelece assim uma relação bastante próxima com o que designamos “natureza”, uma relação de cumplicidade. Com o advento do capitalismo, as fábricas, inicialmente espaços de arte, transformam-se em espaços de produção de mercadorias, e os trabalhadores perdem o controle dos meios de trabalho. O capital, como sistema totalizante, produz as alienações, as fetichizações e os estranhamentos tanto na esfera da produção quanto na esfera do consumo. Produção e consumo, intermediados pela distribuição, são momentos distintos de um mesmo processo. 74
O acirramento da velocidade dos processos de produção e de consumo impostos pela radicalização da modernidade, sob a égide do capital financeiro, produz “cegueiras”, invisibilidades. Já não percebemos o outro como parceiro, mas como uma ameaça, como um competidor, um rival. O que importa é a produção de valor de troca, que move o consumo exacerbado. Os artesãos do Vale são, portanto, símbolos de resistência, símbolos da prática de uma outra economia, a expressão de toda uma vida de relações, teimosa e tenaz, que se opõe à abstração exigida pela operação sistêmica da concepção hegemônica mercantil. O homem do presente e sua concepção de humanismo são confrontados pelo “homem lento”, que realiza, de maneira irreversível, a defesa da cidadania e da democracia social em direção ao cotidiano e aos lugares do Outro (RIBEIRO, 2005).
Os homens lentos do Vale: a tradução da “sabença” Para Henri Lefebvre, apenas o valor de uso pode transformar as lutas de apropriação em caminhos para a transformação do território em construto coletivo (LEFEBVRE, 1969). No mesmo sentido, Pierre Bordieu afirma que apenas a vida de relações, de interações solidárias, pode resistir à volatilidade dos investimentos, uma vez que a troca por elas gerida é simbólica e, portanto, sustentada em linguagens e valores (BORDIEU, 1994). Nessas trocas, através da experiência concreta do compartilhamento, o valor de uso predomina sobre o valor de troca. É o valor de uso que orienta a ação do “homem lento” – categoria político-filosófica construída pelo geógrafo Milton Santos. O “homem lento” é aquele que desvenda os recursos indispensáveis à vida. A partir desses sujeitos, homens lentos, surgem as potencialidades mediadoras do território e uma compreensão renovada da própria política. É a partir deles que se potencializa uma outra globalização. Para Milton Santos, a cidade é o palco dos mais diversos atores: homens, firmas, instituições que nela vivem e trabalham conjuntamente (SANTOS; SILVEIRA, 2001). Alguns desses atores movimentam-se segundo tempos rápidos e outros, segundo tempos lentos, de tal maneira que a materialidade, muitas vezes aparentemente unívoca, revela-se múltipla a um olhar mais minucioso, uma vez que é atravessada por todos esses atores e as suas diferentes lógicas, os seus diferentes tempos e ritmos. Tempo rápido é o tempo das firmas, dos indivíduos e das instituições hegemônicas. E tempo lento é o tempo das firmas, dos indivíduos e das instituições hegemonizadas. Como ressalta Milton Santos, economia pobre trabalha nas áreas onde as velocidades são lentas. Quem 75
necessita de velocidades rápidas é a economia hegemônica, são as firmas hegemônicas comandadas pela lógica da reprodução do capital. O espaço é considerado uma instância da sociedade, assim como a instância econômica e a instância cultural-ideológica. Isso significa que, como instância, ele contém e é contido pelas demais instâncias, assim como cada uma delas o contém e é por ele contida. As empresas mais poderosas escolhem os pontos do espaço que consideram instrumentais para a sua existência produtiva, para o exercício da sua racionalidade. Trata-se de uma modalidade de exercício do seu poder. O resto do território torna-se, então, o espaço concedido às empresas menos poderosas. Os primeiros seriam, do ponto de vista da produtividade, da competitividade, “espaços luminosos”, enquanto o resto do território seria composto por “espaços opacos”. Os espaços luminosos do Vale são, por exemplo, aqueles vinculados às atividades agropecuárias e florestais, às atividades que fazem parte da cadeia produtiva das indústrias, às atividades de mineração, siderurgia, metalurgia, indústria de maquinário, construção de fábricas de automóveis – além de outros setores que utilizam ferro/aço como matéria-prima. São atividades que alimentam a lógica mercantil e o modelo de desenvolvimento vigente. Mas, como nos lembram Laschefski e Zhouri, existem também no Vale sujeitos e grupos sociais que não aderem e não se alinham a esse modelo, que se sentem ameaçados pelas obras do chamado “desenvolvimento” e não desejam a transformação abrupta dos seus modos de vida, enraizados e entrelaçados às condições ecológicas locais (LASCHEFSKI; ZHOURI, 2011). Esses grupos não são necessariamente contrários ao desenvolvimento vigente, como apontam esses autores, mas almejam um desenvolvimento que abrigue as condições do lugar, os desejos e as expectativas próprios de suas comunidades. Desejam e precisam resguardar o seu tempo e as suas racionalidades. Eles sabem que, no bojo dos interesses e conflitos, os “espaços opacos” tendem a se transformar em espaços invisibilizados ou capturados pela lógica mercantil. Ao fazer sobressair o valor de troca das mercadorias em detrimento do seu valor de uso, o modelo hegemônico de desenvolvimento subordina, de forma destrutiva, as relações homem-natureza, indivíduo-sociedade e mercado-solidariedade. A tecnologia passa a definir a forma de apropriação da natureza, as relações de solidariedade se diluem no contexto da valorização da competição e do individualismo. E o mercado, ícone da racionalidade moderna, transforma-se na instituição mais forte, no discurso da mídia. Discurso que não se sustenta diante de uma 76
análise cuidadosa do domínio das trocas inter e entre empresas e do suporte dado pelos Estados ao grande capital. A expansão desse modelo de desenvolvimento produz novas cartografias, com redes de lugares, empresas, fluxos crescentes de capitais e sujeitos, e, simultaneamente, produz espaços de exclusão, territórios invisíveis, “cartografias omissas”. Adriana Melo, em sua leitura dos lugares sertão, afirma que essas cartografias de lugares omitidos, invisibilizados, põem em xeque um modelo de desenvolvimento e de produção do conhecimento que simplifica e fragmenta a compreensão das dinâmicas socioespaciais e humanas contemporâneas (MELO, 2011). A leitura dessas novas cartografias não pode ser feita a partir dos modelos dicotômicos de conhecimento que traduzem os espaços e lugares como desenvolvido/subdesenvolvido, moderno/atrasado, Norte/Sul, etc. Essas categorias precisam ser reinterpretadas à luz das novas dinâmicas dos sentidos dos movimentos dos tempos-espaços. Espaços opacos, omitidos ou invisibilizados proliferam-se nas periferias, nas encostas, nas margens dos “espaços luminosos”. O capital incorpora e/ou exclui relações e territórios de quaisquer naturezas segundo as suas necessidades. Olhar para o sertão do Vale através da sua cultura popular nos faz ver diversos contrapontos às “ausências” e “carências” ali presentes. O artesanato representa o cerne das identidades, das relações e articulações políticas e dos diversos processos de socialização dos conhecimentos, dos saberes. Essas expressões de criatividade evidenciam as formas de se relacionar com a “natureza” e com o sagrado. A expansão da forma mercantil hegemônica produz, por um lado, a destruição e/ou a precarização da força de trabalho, a degradação crescente do meio ambiente na relação metabólica entre homem-natureza, a exacerbação do consumo, do egoísmo, o abandono da solidariedade e da ética (a degradação dos valores e das instituições). Por outro lado, produz também espaços de resistência, como esse da economia do artesanato do Vale, que se revela através da valorização do valor de uso e de toda a sua carga de subjetividade. Esses espaços ultrapassam o pensamento dicotômico pobreza/riqueza e servem de referência a novas formas de viver. O artesanato do Vale sinaliza a necessidade de acolhermos outras formas de apropriação do lugar onde vivemos, outras formas de refletir sobre esse lugar e sobre estar e atuar nele, ser. Esse é o sentido do desenvolvimento. Para Marx, a verdadeira riqueza seria alcançada através da universalidade das capacidades, dos gozos, da realização absoluta das aptidões criadoras dos indivíduos (MARX, 2011). 77
Os olhares do Vale: de fora e de dentro Para os que estão “de fora do Vale”, cuja visão é amalgamada pela lógica mercantil, o Vale é o espaço da pobreza, lugar opaco a ser transformado. Espaço de “amarras, censuras, ausência de liberdade, rotas retas, trilhos que nos levam para lugares já conhecidos, metodologias ou caminhos de pesquisa que antecipam resultados ou que recolhem os dados necessários à corroboração de resultados previamente antecipados” (HISSA, 2011, p. 44-48). Esse olhar de fora não reflete, necessariamente, os significados dessas comunidades. O lugar e a condição social dos sujeitos do Vale associam-se a outros valores, como o parentesco, a ancestralidade, os laços de afetividade, e não apenas às condições materiais. O ser é mais importante que o ter. A riqueza dos que estão “embaixo” é a prontidão dos sentidos. É essa prontidão que, ao lado da busca dos bens materiais finitos, cultiva a procura de bens infinitos, como a solidariedade e a liberdade (SANTOS, 1998). É na esfera das contrarracionalidades hegemônicas, chamadas de irracionalidades, produzidas pelos que estão “embaixo”, que se consegue escapar ao totalitarismo da racionalidade dominante. Os que escapam são aqueles que, conectados com suas histórias e com suas utopias, resistem e insistem em transformar o barro e outros materiais em expressão de arte e de “sabença”. Essas experiências constituem para nós um campo fértil, capaz de potencializar a construção de uma ciência libertadora, uma ciência-saber, como aponta Cássio Hissa (2011, p. 25). A ciência-saber realizaria a incorporação das vivências e experimentações de mundo pelos sujeitos do conhecimento. Ciência-saber possibilitada pela ecologia dos saberes, pelo diálogo entre diferentes racionalidades.
A economia do Vale pelos sujeitos do Vale A maneira de levar a vida, a maneira de lidar com o outro, define um medo, uma ameaça ou uma possibilidade. Segundo Milton Santos, “os futuros são muitos... dependerão dos arranjos diferentes, segundo nosso grau de consciência, entre o reino das possibilidades e da vontade” (SANTOS, 1998). Buscando compreender melhor o modo de vida do Vale, deparei-me com outros artesãos, os artesãos da palavra. E do contexto rico e diversificado da poesia do Vale, escolhi um texto que expressa o valor e a riqueza
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poética da economia dessa região. A poesia do Vale é a expressão da sua economia e do diálogo da palavra com todas as formas de expressão cultural, simbólica, social e política. Jequitinhonha Branco Di Fátima Eu sou da terra do Jequitinhonha de homens fortes e corajosos, melindrosos na arte de viver. Eu sou da terra de lavradores e lavadeiras do Bicho da Fortaleza. Terra Rubinho do Vale. Eu sou da onde cantam os tambores a dança do Fanado. Da terra do Congado da Taquara Banda do povo suado de Deus João do povo do Rosário. Eu sou da terra de homens de garra de casas de pau a pique das noites de lua cheia de poesia e cantoria. Eu sou do mundo das águas da rua São José, do largo do Amparo, da praça da Matriz. Sou da terra de feiticeiros da garapa e rapadura das lendas de onças pintadas dos causos a beira da fogueira das Vesperatas e poetas do muro. Eu sou da terra do Bom Sucesso das Folias de Reis, das cordas que falam das roupas de crochê, do artesanato de barro. Eu sou mineiro, das calças amarradas com imbira, das mãos calejadas pela labuta da vida, do pó da poeira, do Vale da vida... “do verde, verso e viola”.2
2 - Extraído de: <http://lecampolal.blogspot.com.br/>. Acesso em: 20 out. 2011.
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Maria Teresa Franco Ribeiro é graduada em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em Desenvolvimento Rural pelo Centro de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrícola da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) e doutora em Economia pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Fez o pós-doutorado em Paris III – Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine (IHEAL) no campo da Geografia. É professora associada III na Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (UFBA), ensina e pesquisa na área de Desenvolvimento, Território e Ciência e Tecnologia.
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Artesanato e políticas públicas Maria Dorotéa de Aguiar Barros Naddeo
Contextualização Os primeiros registros sobre políticas públicas para o setor artesanal no Brasil são da década de 1950, quando foi realizado o primeiro estudo quantitativo de artesãos no Nordeste, com o objetivo de transformar o artesanato em atividade profissional. Nos anos 1960, outros estudos foram realizados, identificando que os artesãos do Ceará e da Bahia apresentavam maior capacidade produtiva e, consequentemente, a comercialização dos produtos ultrapassava os limites locais da produção.1 Na década seguinte, o governo federal, sob o regime militar, por meio do Decreto n° 80.098,2 de 8 de agosto de 1977, instituiu o Programa Nacional de Desenvolvimento do Artesanato (PNDA), sob a supervisão do Ministério do Trabalho, “com a finalidade de coordenar as iniciativas que visem à promoção do artesão e a produção e comercialização do artesanato brasileiro”. Dois anos depois foi publicado o Decreto n° 83.290,3 de 13 de março de 1979, que estabelecia a Classificação de Produtos Artesanais e Identificação Profissional do Artesão. O PNDA tinha como objetivos:4 I. promover, estimular, desenvolver, orientar e coordenar a atividade artesanal em nível nacional; II. propiciar ao artesão condições de desenvolvimento e autossustentação por meio da atividade artesanal; 1 - BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. O Dia do Artesão. Brasília: Programa do Artesanato Brasileiro, 2008. Disponível em <http://www.mdic.gov.br/sitio/interna/ interna.php?area=4&menu=2047>. Acesso em: 30 out. 2011. 2 - BRASIL. Decreto n° 80.098, de 08 de agosto de 1977. Institui o Programa Nacional de Desenvolvimento do Artesanato e dá outras providências. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF, 9 ago. 1977. 3 - BRASIL. Decreto n° 83.290, de 13 de março de 1979. Dispõe sobre a Classificação de Produtos Artesanais e Identificação Profissional do Artesão e dá a outras providências. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF, 14 ago. 1979. 4 - BRASIL. Decreto n° 80.098, de 08 de agosto de 1977. Institui o Programa Nacional de Desenvolvimento do Artesanato e dá outras providências. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF, 9 ago. 1977.
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III. orientar a formação de mão de obra artesanal; IV. estimular e/ou promover a criação e organização de sistemas de produção e comercialização do artesanato; V. incentivar a preservação do artesanato em suas formas da expressão da cultura popular; VI. estudar e propor formas que definam a situação jurídica do artesão; VII. propor a criação de mecanismos fiscais e financeiros de incentivo à produção artesanal; VIII. promover estudos e pesquisas visando à manutenção de informações atualizadas para o setor. Além disso, previa uma Comissão Consultiva do Artesanato, composta por representantes de dez órgãos do governo federal que tinham interface com o artesanato, que deveriam “programar, em seus orçamentos anuais, os recursos necessários à organização, implantação e desenvolvimento do Programa Nacional de Desenvolvimento do Artesanato, de acordo com as respectivas atividades setoriais”.5 Nos anos 1980, em decorrência das políticas públicas inspiradas nas questões trabalhistas, foram criadas organizações de artesãos em todo o país, surgindo os sindicatos entre as associações e grupos informais. Um destaque nesse processo foi a valorização dos aspectos culturais. Nesse período foram iniciados programas de qualificação do artesão e de comercialização do produto artesanal, associados à elaboração e divulgação de calendário de eventos do setor.6 No governo Collor, por meio de um decreto7 sem número, de 21 de março de 1991, foram revogados o Decreto n° 80.098/77 e os artigos 1º, 2º, 3º, 5º e 8º do Decreto n° 83.290/79, bem como foi instituído o Programa do Artesanato Brasileiro (PAB), no âmbito do extinto Ministério da Ação Social, sob a supervisão da Secretaria Nacional de Promoção Social, “com a finalidade de coordenar e desenvolver atividades que visem valorizar o artesão brasileiro, elevando o seu nível cultural, profissional, social e econômico, bem assim desenvolver e promover o artesanato e a empresa artesanal”. O PAB contava com “recursos provenientes do orçamento do Ministério da Ação 5 - Artigos 5º e 6º do Decreto n° 80.098/77. 6 - (MDIC/PAB, 2008). 7 - BRASIL. Decreto de 21 de Março de 1991. Dispõe sobre a Classificação de Produtos Artesanais e Identificação Profissional do Artesão e dá a outras providências. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF, 22 mar. 1991.
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Social e de outras fontes alternativas”. Possuindo cinco artigos, no 3º estava previsto que o Ministério da Ação Social expediria as instruções necessárias à execução do disposto no decreto, sem prever nenhuma outra diretriz. A mudança repentina da finalidade do decreto que estabeleceu as diretrizes para o setor artesanal entre 1991 e 1995 gerou uma série de impactos que repercutem até hoje. Analisando o conteúdo da legislação que vigorou durante o regime militar e a que foi instituída pelo governo civil que o sucedeu, percebem-se um empobrecimento e a inclusão da expressão empresa artesanal sem uma definição do seu significado. Além de associar a atividade artesanal à assistência social, perdeu-se a possibilidade de aprimoramento dos objetivos do PNDA que, ainda hoje, contemplariam as principais necessidades demandadas pelos artesãos. No governo FHC foi publicado o Decreto n° 1.508,8 de 31 de maio de 1995, transferindo a subordinação do PAB para o Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo, que foi sucedido, em sua competência, pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). O teor do decreto foi mantido, sendo que a única alteração feita foi a transferência da subordinação do programa. Três anos depois, no âmbito do Programa Comunidade Solidária,9 que tinha “por objeto coordenar as ações governamentais voltadas para o atendimento da parcela da população que não dispõe de meios para prover suas necessidades básicas e, em especial, o combate à fome e à pobreza”, foi criado o projeto Artesanato Solidário. O projeto tinha como objetivo incentivar o artesanato de tradição em comunidades de baixa renda. No início, foram executados seis programas emergenciais de desenvolvimento local para combater a pobreza em regiões afetadas pela seca. Depois de 42 ações em diferentes comunidades da Região Nordeste e do Norte de Minas Gerais, passou a ser uma organização da sociedade civil em 2002, após a mudança do governo.10 Apesar disso, não havia um trabalho compartilhado entre o projeto Artesanato Solidário/Programa Comunidade Solidária e o PAB/MDIC. 8 - BRASIL. Decreto n° 1.508, de 31 de maio de 1995. Dispõe sobre a subordinação do Programa de Artesanato Brasileiro, e dá outras providências. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF, 1º jun. 1995. 9 - BRASIL. Decreto Nº 1.366, de 12 de janeiro de 1995. Dispõe sobre o Programa Comunidade Solidária e dá outras providências. Câmara dos Deputados, Legislação Informatizada, Publicação Original. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1995/decreto-1366-12-janeiro-1995426118-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 30 out. 2011. 10 - Artesanato Solidário: tradição e desenvolvimento. Disponível em: <http://amaivos.uol.com.br/ amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=7204&cod_canal=39>. Acesso em: 30 out. 2011.
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Em 1997 foi criado o programa de artesanato no Sebrae, que devido à sua grande capilaridade e disponibilidade de recursos consolidou a sua atuação no setor, abrangendo comunidades em todo o país com definição de estratégias e diretrizes próprias de atuação. Um dos marcos dessa atuação foi a publicação do Termo de Referência do Programa Sebrae de Artesanato,11 em 2004, com lançamento no Palácio do Planalto. Em 2010 o Termo de Referência foi reeditado.12 Nos governos Lula e Dilma, o PAB foi mantido sem alterações na sua fundamentação legal, trazendo como única novidade a sua transformação, em 2006, em programa orçamentário: Programa 1016 Artesanato Brasileiro. Percebe-se, no entanto, que o enfoque empresarial dado ao setor artesanal durante o governo Collor permaneceu. Nos últimos 12 anos ocorreram inúmeras discussões entre as instituições sobre qual seria a melhor posição do artesanato: permanecer no Desenvolvimento Econômico? Ou retorná-lo para o Trabalho? Transferi-lo para a Cultura? Ou para o Turismo? Ou seguir para a Secretaria da Micro e Pequena Empresa, caso seja criada? O fato é que ainda hoje não se chegou a um resultado, e os defensores de cada corrente contribuíram para a proliferação de iniciativas de atendimento do setor, em diversos órgãos, sem o estabelecimento de uma coordenação central. Reflexo disso são as intervenções realizadas sem articulação entre si, sobrepondo-se em diversos pontos do país, sem gerar resultados satisfatórios aos seus beneficiários. Pode-se concluir que alguns problemas dificultaram a implantação de ações que consolidassem o setor artesanal enquanto segmento econômico presente em todo o território nacional. Entre outros, destacam-se: i) a falta de informações atualizadas sobre o setor, em âmbito nacional; ii) a inexistência de uma base conceitual; iii) a falta de marco legal; e iv) a falta de uniformidade das estruturas administrativas e gerenciais para atendimento do setor artesanal mantidas pelos governos estaduais, associada à descontinuidade das ações. Visando criar as bases necessárias para o desenvolvimento de políticas públicas adequadas para o setor artesanal, os gestores do PAB 11 - A primeira edição do Termo de Referência do Programa Sebrae de Artesanato foi o resultado do trabalho de uma equipe organizada pelo Sebrae Nacional composta por: Durcelice Mascêne, Edson Fermann, Eduardo Barroso Neto, Maria Angélica Monteiro dos Santos, Maria Dorotéa de Aguiar Barros Naddêo, Patrícia Salamoni,Vinícius Nobre Lages e Wanessa Nemer. 12 - SEBRAE. Termo de Referência: atuação do Sistema SEBRAE no Artesanato. Brasília: Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, 2010. Disponível em: <http://www.sebrae.com.br/setor/ artesanato/acesse/biblioteca-on-line/termo-de-referencia-artesanato-2010>. Acesso em: 31 out. 2010.
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(que integravam o Departamento de Micro, Pequenas e Médias Empresas), no período de 2007 a 2009, empreenderam as seguintes ações: I. Implementação do Sistema de Informações Cadastrais do Artesanato Brasileiro – foi desenvolvido para agregar uma base nacional de dados do setor artesanal: dados dos artesãos, de suas organizações, das instituições que apoiam o setor, dos resultados das atividades de comercialização de produtos, do registro de produtos por tipologia, entre outros. O Sistema permitia a transferência das bases preexistentes nos estados, para atualização no novo perfil. Os dados deveriam ser coletados e inseridos no Sistema pelas Coordenações Estaduais do Artesanato, indicadas pelos governos estaduais. II. Elaboração de base conceitual do Artesanato Brasileiro – objetivo de estabelecer uma nomenclatura para a instituição de legislação regulamentar do setor e subsidiar o Sistema de Informações Cadastrais do Artesanato Brasileiro. Pretendia-se, por meio dela, possibilitar a compreensão e percepção, de forma sistemática, do comportamento das variáveis do setor, relevantes para a definição de rumos e estratégias das políticas públicas e criação de parâmetro para planejamento das ações governamentais no país e no Mercosul. A base conceitual foi estruturada em sete seções: i) Conceitos básicos; ii) Tipologias; iii) Classificação; iv) Características; v) Produtos; vi) Técnicas de produção artesanal; e vii) Matérias-primas. Até o início de 2010 estava ainda em processo de construção. III. Construção do Plano Nacional de Capacitação – iniciativa técnico-institucional do Programa do Artesanato Brasileiro em parceria com as Coordenações Estaduais de Artesanato. Além da capacitação dos técnicos que atuam nos setores responsáveis pelo setor artesanal nos órgãos governamentais estaduais e federais, estava prevista a capacitação de multiplicadores em todas as Unidades Federativas, visando criar as condições necessárias para o atendimento das demandas dos artesãos. No Plano foram definidos os fundamentos metodológicos e o ciclo de intervenção, utilizando a aprendizagem vivencial como referência.
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IV. Revisão das estratégias de mercado – proposta de consolidação e ampliação dos canais de comercialização dos produtos artesanais, visando à geração de novas oportunidades de trabalho e ao aumento de renda no setor. A elaboração de Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM) para exportação e sua integração no Mercosul constituíam a pauta das reuniões do PAB com as Coordenações Estaduais do Artesanato. Por meio da ação “Estruturação de Núcleos Artesanais”, que permite a construção e/ou reforma de espaços nos municípios, era, também, alternativa de acesso ao mercado, disponibilizada às organizações de artesãos. Nos núcleos, além da produção coletiva e do desenvolvimento de cursos de capacitação, havia a possibilidade da comercialização dos produtos dos artesãos do município. Com a realização dessas ações pretendia-se: i) identificar os artesãos e criar mecanismos de diálogo entre os governos e suas organizações para levantar as necessidades do setor e definir as políticas públicas, de forma participativa; ii) implantar um sistema de informações que permitisse a permanente atualização de dados sobre o setor para fundamentar as ações governamentais e institucionais; iii) definir estratégias e diretrizes nacionais para o fomento do setor, utilizando nomenclatura unificada; e iv) gerar os fundamentos necessários para a definição de marco legal adequado ao setor artesanal. Em processo simultâneo, o Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios, previsto na Lei Complementar nº 128/2008,13 e vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, sob a coordenação da Secretaria de Comércio e Serviços, tratou da implementação dos processos referentes ao registro dos empreendedores individuais. A Lei Complementar nº 128/2008 “cria condições especiais para que o trabalhador conhecido como informal se torne um Empreendedor Individual legalizado – EI”. O EI é o empresário individual, a que se refere o artigo 966 do Código Civil, que tenha auferido receita bruta, no ano-calendário 13 - BRASIL. Lei Complementar nº 128, de 19 de dezembro de 2008. Altera a Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, altera as Leis nº 8.212, de 24 de julho de 1991, nº 8.213, de 24 de julho de 1991, nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, nº 8.029, de 12 de abril de 1990, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.receita.fazenda.gov.br/legislacao/leiscomplementares/2008/ leicp128.htm>. Acesso em: 30 out. 2011.
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anterior, até R$ 60.000,00,14 optante pelo Simples Nacional, que tenha até um empregado, não possuindo mais de um estabelecimento e nem participe de outra empresa como titular, sócio ou administrador. Entre as 467 atividades enquadráveis no EI estão: • • • • • • • • • • • • • • • •
artesão artesão artesão artesão artesão artesão artesão artesão artesão artesão artesão artesão artesão artesão artesão artesão
de bijuterias; em borracha; em cerâmica; em cimento; em cortiça, bambu e afins; em couro; em gesso; em louças, vidro e cristal; em madeira; em mármore, granito, ardósia e outras pedras; em metais; em metais preciosos; em outros materiais; em papel; em plástico; em vidro.
Partindo do pressuposto de que uma quantidade expressiva dos artesãos brasileiros exerce suas atividades informalmente, de forma individual, a edição da lei possibilitará a sua formalização. Esse artesão pagará, mensalmente, o valor fixo mensal de R$ 32,10 (comércio ou indústria), que será destinado à Previdência Social e ao ICMS ou ao ISS, e obterá as seguintes vantagens: (i.) (ii.) (iii.) (iv.)
legalização de sua atividade; acesso a crédito, devido à comprovação de renda; possibilidade de emissão de notas fiscais; e acesso aos benefícios previdenciários (salário-maternidade; auxílio-doença, acidente e reclusão; aposentadoria por invalidez, por idade e especial; e pensão por morte).
14 - BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Empreendedor Individual, entenda o que é. Disponível em: <http://www.portaldoempreendedor.gov.br/modulos/entenda/oque. phpv>. Acesso em: 5 maio 2012.
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No entanto, muitos artesãos que ao longo dos anos se organizaram em associações e cooperativas, com o objetivo de instituir uma representação formal que regularizasse sua produção e consolidasse seus produtos no mercado de forma profissionalizada, caso optem pelo EI, alterarão suas relações, substituindo uma estrutura coletiva de trabalho, fundamentada em ações cooperadas, numa estrutura individual. Além disso, os artesãos com faturamento anual superior a R$ 60.000,00 não são contemplados pelo EI. Pelo exposto, o EI configura-se como solução parcial para o setor artesanal. Dessa forma, é necessária a construção de uma legislação específica e adequada, que estabeleça condições para o seu fomento, resguardando e valorizando seus aspectos culturais e sociais. Após a mudança dos gestores do Departamento de Micro, Pequenas e Médias Empresas e do PAB, em 2010, foi publicada, através da Portaria nº 29,15 de 5 de outubro de 2010, “a base conceitual do artesanato brasileiro, na forma do Anexo, para padronizar e estabelecer os parâmetros de atuação do Programa do Artesanato Brasileiro – PAB em todo o território nacional”. Cabe esclarecer que o texto não sofreu as correções e os ajustes necessários para sua publicação. Atualmente, aguarda-se o resultado da tramitação do Projeto de Lei nº 865,16 de 31 de março de 2011, que altera a Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003, e dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, cria a Secretaria da Micro e Pequena Empresa, cria cargo de Ministro de Estado e cargos em comissão, e dá outras providências”. Caso essa secretaria seja criada, conforme artigo 2º do referido projeto de lei, serão transferidas as seguintes competências: I. referentes a microempresa, empresa de pequeno porte e artesanato do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior para a Secretaria da Micro e Pequena Empresa; e II. referentes a cooperativismo e associativismo urbanos, do Ministério do Trabalho e Emprego para a Secretaria da Micro e Pequena Empresa.
15 - BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior – Secretaria de Comércio e Serviços. Portaria nº 29, de 5 de outubro de 2010. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF, n. 192, 5 out. 2010. Seção 1, p. 100/102. 16 - BRASIL. Projeto de Lei nº 865, de 31 de março de 2011. Altera a Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, cria a Secretaria da Micro e Pequena Empresa, cria cargo de Ministro de Estado e cargos em comissão, e dá outras providências. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitac ao?idProposicao=496725>. Acesso em: 30 out. 2011.
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Este movimento, no entanto, manterá o Programa do Artesanato Brasileiro no escopo empresarial, como empreendedor individual ou micro e pequena empresa. Por outro lado, oito projetos de lei relativos ao setor artesanal tramitaram no Congresso Nacional, desde os anos 1990. A maioria deles tratou da “profissão de artesão”, diferentemente do enfoque empresarial mantido pelo governo federal nos últimos 16 anos.
Projetos sobre a profissão de artesão apresentados ao Congresso Apesar de prevalecer o entendimento de que seria fundamental envolver os artesãos e suas organizações nos processos de discussão, grande parte das instituições deparava-se com a dificuldade de identificar e localizar o artesão e seus representantes, devido à sua dispersão e à falta de um cadastro que facilitasse o contato. No final da década de 1980, até o início da década de 1990, simultaneamente à implantação de medidas governamentais para o fomento do setor, houve uma significativa movimentação dos artesãos, criando diversas entidades de representação de âmbito estadual, e foi articulada a União Nacional dos Artesãos. Até 1995, artesãos de diversos estados se mobilizaram para intervir na tramitação de projetos de lei no Congresso Nacional. A partir daí as organizações de artesãos foram perdendo fôlego, em contrapartida ao avanço da participação dos técnicos das instituições que se tornaram “porta-vozes” dos seus interesses, construindo uma ampla rede de instrutores, consultores e prestadores de serviços que passaram a substituir os artesãos nas discussões e iniciativas de desenvolvimento de políticas públicas para o setor artesanal. A partir de 1990, tramitaram e foram arquivados sete projetos de lei no Congresso Nacional.17 São eles: 1. Projeto de Lei nº 5.580, de 1990, de autoria do deputado Afif Domingos, que “dispõe sobre o exercício da profissão de artesão e dá outras providências”. O projeto foi arquivado nos termos do artigo 105 do Regimento Interno; 17 - QUEIROZ, Ângelo Azevedo. A legislação existente no Brasil que dispõe sobre a profissão de artesão, e os projetos sobre a matéria apresentados no Congresso. Brasília: Câmara dos Deputados, 2004. 13 p. fac-símile.
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2. Projeto de Lei nº 1.089, de 1991, de autoria do deputado Avenir Rosa, que regulamenta a profissão de artesão. Essa proposição foi arquivada pelo término da legislatura, embora tenha recebido parecer favorável do relator da Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público; 3. Projeto de Lei nº 1.847, de 1991, de autoria do deputado Samir Tannus, que “dispõe sobre o exercício da profissão de produtor artesanal e dá outras providências”. O projeto foi arquivado pelo término da legislatura; 4. Projeto de Lei nº 3.096, de 1992, de autoria do deputado Clóvis Assis, que “dispõe sobre as associações ou cooperativas de trabalho artesanal e dá outras providências”. O projeto foi arquivado nos termos do artigo 105 do Regimento Interno; 5. Projeto de Lei nº 1.311, de 1995, de autoria do deputado Paulo Rocha, que “regulamenta a profissão de artesão e dá outras providências”. Esse projeto foi rejeitado pela Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público e arquivado; e 6. Projeto de Lei nº 3.926,18 de 2004, de autoria do deputado Eduardo Valverde, que “institui o Estatuto do Artesão, define a profissão de artesão, a unidade produtiva artesanal, autoriza o Poder Executivo a criar o Conselho Nacional do Artesanato e o Serviço Brasileiro de Apoio ao Artesanato e dá outras providências”. Conforme estudo do consultor legislativo Ângelo Azevedo Queiroz, tratou-se de um projeto de mais fôlego (possui 21 artigos, distribuídos em quatro capítulos e um anexo que lista as atividades artesanais). 7. No âmbito do Senado Federal, existiu o Projeto de Lei nº 57, de 2002, que “dispõe sobre a profissão de artesão”. O projeto mereceu parecer contrário da Comissão de Assuntos Sociais e foi arquivado. O Projeto de Lei nº 3.926, de 2004, de autoria do deputado Eduardo Valverde, foi arquivado em 31 de janeiro de 2011. Foi o melhor projeto que tramitou no Congresso Nacional. Ainda assim, apresentava alguns problemas: 1) o projeto de lei era quase uma cópia do “Decreto nº 41, de 2001, 18 - BRASIL. Projeto de Lei nº 3926, de 07 de julho de 2004. Institui do Estatuto do Artesão, define a profissão de artesão, a unidade produtiva artesanal, autoriza o poder executivo a criar o Conselho Nacional do Artesanato e o Serviço Brasileiro de Apoio ao Artesanato e dá outras providências. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=260275>. Acesso em: 30 out. 2011.
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da Legislação de Portugal, que veio definir o Estatuto do Artesão e da Unidade de Produção Artesanal, tanto pela sua técnica legislativa, pela extensão e disposição de seus comandos normativos (capítulos e seções), como pelos conceitos que adotou”;19 e 2) no projeto de lei não havia nenhuma referência ao enquadramento do artesão na Previdência Social, um dos temas de maior interesse dos artesãos. Em 2006, a deputada Perpétua Almeida apresentou o Projeto de Lei nº 7.388, de 2006,20 oitavo a ser apresentado, que “dispõe sobre a regulamentação da profissão de artesão e cria o dia nacional do artesão”. Ele tramitou simultaneamente ao Projeto de Lei nº 3.926, de 2004. Comparando os dois textos, verifica-se que o PL nº 7.388/2006 possuía o mesmo teor do outro, apresentando 14 artigos em contraposição aos 21 artigos do PL nº 3.926/2004, além de conter alguns artigos com redação idêntica. A diferença entre os dois tratava-se da instituição do Dia Nacional do Artesão, em 19 de março. Em 29 de agosto de 2011, a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados remeteu o PL nº 7.388/2006 ao Senado Federal, através do Of. nº 225/11/ PS-GSE. Verifica-se, no entanto, que a redação final apresentada pelo relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, deputado Mauro Benevides, restringiu-se à instituição do Dia Nacional do Artesão, suprimindo todos os artigos que definiriam um marco legal para o setor artesanal.
Conclusão O artesanato está na pauta de discussão de instituições e organizações de todo o país e é objeto dos seus projetos há mais de 20 anos. No entanto, esses “são elaborados sem a participação dos artesãos [...]. Mesmo quando ocorre alguma colaboração no levantamento das necessidades das comunidades artesãs ou na própria elaboração dos projetos incentivados, isto não necessariamente implicará sua participação decisória”.21
19 - QUEIROZ, Ângelo Azevedo. A legislação existente no Brasil que dispõe sobre a profissão de artesão, e os projetos sobre a matéria apresentados no Congresso. Brasília: Câmara dos Deputados, 2004. 13 p. facsims. 20 - BRASIL. Projeto de Lei nº 7.388, de 1º de agosto de 2006. Dispõe sobre a regulamentação da profissão de artesão e cria o dia nacional do artesão. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=331859>. Acesso em: 30 out. 2011. 21 - FREEMAN, Claire Santanna. A cadeia produtiva da economia do artesanato. Rio de Janeiro: E-livre, 2010. Disponível em: <http://www.gestaocultural.org.br/livros-online-economia-da-cultura.asp>. Acesso em: 30 out. 2011.
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Tanto no Vale do Jequitinhonha quanto no restante do território nacional, são realizadas intervenções junto aos artesãos por diversas instituições, sem articulações entre si, sobrepostas e apresentando resultados pontuais. Persiste, ainda, a falta de políticas públicas que contribuam de fato para o fomento da atividade artesanal, levando em consideração suas peculiaridades e o seu reconhecimento enquanto atividade econômica de base cultural. Corroborando Freeman, o Estado talvez esteja investindo em ações parcialmente inclusivas, negando ao artesão a oportunidade de desenvolver habilidades em gerir e procurar soluções próprias, o que sustenta um processo dirigido e submisso, que desarticula processos de desenvolvimento da autogestão entre os artesãos e os mantém lentos e passivos. Observando os resultados de trabalhos institucionais junto aos artesãos, percebe-se a uniformização dos produtos, invertendo o processo de criação para o atendimento das “demandas de mercado”. Cabe esclarecer que hoje prevalece o entendimento de que o valor do produto artesanal no mercado se deve à sua identidade cultural e à sua diferenciação dos produtos em grandes séries. Depois de todas as experiências e informações acumuladas até aqui, pode-se concluir que existem diversas alternativas para o fomento do artesanato no país. A articulação e o diálogo entre os diversos atores que atuam no setor artesanal são necessários para se definir que caminho será trilhado. Mobilizar o artesão, criando as condições necessárias para que tenha acesso às informações e possa participar da formulação das políticas públicas do seu interesse, talvez seja a iniciativa de maior relevância neste momento. As redes sociais e as tecnologias da informação facilitam processos dessa natureza e favorecem o desencadeamento de um movimento que promova ampla discussão, mais clara e objetiva; a criação de uma plataforma de trabalho em âmbito nacional que possibilite o reconhecimento da relevância do artesanato e do artesão em todas as suas dimensões: econômica, social, cultural e ambiental, entre tantos outros aspectos transversais; e dê o impulso necessário para o desenvolvimento e a efetivação de políticas públicas adequadas.
Maria Dorotéa de Aguiar Barros Naddeo é especialista em Desenvolvimento de Cooperativas, Educação Ambiental e Metodologia do Ensino Superior. É diretora executiva da Fundação Matutu e diretora da Canela de Ema. Foi coordenadora-geral de Micro, Pequena e Média Empresa Industrial e Artesanal e diretora substituta do Departamento de Micro, Pequenas e Médias Empresas/Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior de 2007 a 2010. No Sebrae/MG, entre 2000 e 2005, coordenou o Programa de Artesanato. 93
Artesanato e cultura no Vale Palestra Ulisses Mendes
É um prazer estar aqui no grupo, me sinto em família. Como diz Tadeu Martins, o artista, o artesão, quando se reúne, se encontra, se sente agrupado na sua própria família. Nós, artistas e artesãos, a gente goza dos dois lados, parentescos culturais e também nossa família. Quando começamos a descobrir a cultura popular do Vale Jequitinhonha, que já existia há muito e muitos anos, eu fazia o artesanato em Itinga, e depois comecei a “sair pra fora” pra vender o artesanato. Acreditei que aquilo dava mesmo para a sobrevivência. E foi dramático até o jeito de eu relatar esse lado cultural meu, porque eu comecei em 20 de março de 1979; sou profissional desde essa época, nunca mais eu parei pra fazer outra atividade, vivo de arte. Mas por que essa data? Porque o Rio Jequitinhonha inundou as cidades todinhas, Araçuaí e Itaobim, etc. A enchente foi muito traumática devido a uma seca prolongada que teve e, quando choveu, choveu demais; e o rio saiu alagando tudo e todas as cidades. Enquanto o povo chorava, eu me divertia com a beleza das águas rolando sobre as casas, entortando, pois casa de pau a pique que não caiu, se envergava, se entortava. E as de adobe caindo. Enquanto o povo chorava, eu andava com uma canoinha em volta das ruas e até fiz uma música, na época cantava o próprio costume, a convivência da gente. A cultura da gente é isso, “nós cantamos” nós “mesmos”, fazemos os versos, fazemos os cantos sobre casos da nossa própria vida. Então comecei a fazer cabaninhas de pau a pique imitando a lembrança da inundação de 1979. Em Araçuaí descobri os outros artesãos, aí acreditei que não estava sozinho, que tinha gente fazendo artesanato igual a mim. Parece que a natureza manda a gente pra certa missão e você tem que cumprir aquilo. A partir daí comecei a fazer as esculturas criticando a situação do Vale. O Vale para mim não era pobre, o Vale era bonito. Aqueles costumes, os hábitos, o jeito de o homem pobre viver e contar caso sem ter vergonha de nada. Isso pra mim é riqueza cultural. Também comecei a cantar e fazer músicas falando da vida do homem do campo. A primeira música que inscrevi no Festivale tive o prazer de concorrer com Rubinho do Vale, Paulinho Pedra Azul, Tadeu Franco, só fera da música popular, e lá estava eu com minha violinha. Ô dó! Então cantei a música “O filho do lavrador”, que é uma crítica social, pois, naquela época, o homem do campo era jogado de lado, não tinha apoio 94
político, realmente tudo o que eles tinham era como se fala no Vale: só tem como herança a claridade do sol e da lua”; e criei uma peça baseada nisso. Retirante da seca foi uma das primeiras peças que criei vendo uma família que passava com sacos nas costas, a pé. Passou lá perto de casa, acampou, no outro dia seguiu pra Coronel Murta. E também minha mãe contou uma história que realmente aquilo me fixou mais a ideia de fazer a peça Retirante da seca. Minha mãe saiu “mais” minha avó, “mais” meu avô, “mais” outro irmãozinho de Itinga a Fronteiras dos Vales, que naquela época chamava Pampam, mais ou menos 180 quilômetros. Então eles fizeram essa caminhada entrando de Itinga a Ponto dos Volantes, de Ponto dos Volantes a Santana, a Joaíma, de Joaíma a Felisburgo. Minha mãe conta que quando estava quase chegando a Itinga deixou uma panelinha de barro cair da cabeça dela. As mulheres lá têm muito “equilibro” na cabeça, “solta” a trouxa, o pote na cabeça, uma arte de sobrevivência, aí essa panelinha caiu. Com isso bolei a Retirante da seca. Cristo sertanejo é uma peça que montei baseada no bordão das mulheres que “diz”: “Minha vida é cruz que carrego”. Ah, esse filho vivo carregando uma cruz, mas de uma forma alegre, cultural. Depois fiz A mulher do fogão, uma peça que repercutiu muito. Em seguida fiz a A mulher do marido vivo, quem já ouviu falar da “Viúva do marido vivo”? A viúva do marido vivo são mulheres que ficam no Vale pros maridos “ir” pra São Paulo, pro corte de cana, pra Goiás e Mato Grosso. E naquela época não tinha telefone celular. O telefone fixo, só alguns. Um dia, o marido da Alzira ligou pra ela, já tinha três anos que não vinha à cidade. – Alô, mulher! – Prepara os quartos que estou indo com quatro amigos. Ela: – O quê, marido? – Prepara os quartos que estou indo com quatro amigos. Ela: – O que você está falando, marido? – Prepara as camas, mulher. Então é o costume, os quartos são as camas. Esse foi o primeiro telefonema em Itinga no Vale Jequitinhonha. E também uma peça muito bonita que repercutiu bem foi Tropeiro de cantiga. O primeiro Festivale que Rubinho ganhou com a música “Juro eu sou assim tropeiro de catinga que mudou de vida pra ser cantador...”. Aí eu falei “que peça bonita, uma história bonita dessa não posso perder”. Então 95
bolei o Tropeiro de cantiga, que é um burrinho e um homem sentado na garupa tocando uma viola. Hoje o caminhão tomou esse espaço do tropeiro, das canoas, aí o tropeiro foi cantar com saudade. O pessoal inventa seus próprios cantos através da saudade. O camponês do Vale do Jequitinhonha, ele se inspira diante da sua convivência. Eu aprendi muito com homem do campo, sou pesquisador da cultura do homem do campo. Eu preciso ir lá, o dia que não vou à zona rural eu não trabalho bem. No Rio de Janeiro, um dia, eu estava expondo num shopping. Me coloquei todo caipira, cinto de fivelão, bota de couro, camisa xadrezinho e chapéu de couro na cabeça, no shopping center no Leblon. Uma organização muito benfeita do pessoal do shopping. E chegou uma família, umas mocinhas, olhavam pras peças e olhavam pra mim e eu disfarcei um pouquinho pra elas ficarem à vontade. Aí uma falou assim: “Olha, mãe, como ele está do jeitinho das peças dele”. Aí menina vai e arrisca uma pergunta: – Posso fazer uma pergunta? Falei: – Pode. – Você é de onde? – Do Vale do Jequitinhonha. – É longe? – É longe, daqui lá é longe. – Como são vocês lá? Eu falei: – Lá, menina, nós somos uma população muito grande, tudo assim mais ou menos do jeito que você está vendo. Nesse dia saiu uma notícia no Jornal do Brasil, do estado do Rio de Janeiro. Saiu um destaque falando assim: “Arte que vem da fome”. Isso me feriu muito, até chamei o pessoal lá da organização; eu falei: “Quero direito de resposta nisso aí, porque realmente a gente não está pedindo esmola, nós estamos aqui vendendo arte”. O pessoal disse: “Não, você não tem direito de resposta porque quem deu essa entrevista aí foi o presidente da Codevale, e vocês, artesãos, não podem dar essa resposta não”. A vida da gente continuava com os coronéis, chegou um fazendeiro lá em casa um dia e, vendo lá os caipiras na prateleira, os sertanejos, disse: “Você tem que fazer aqui, rapaz; é um cavalo bem bonito, imitando um cavalo de raça com o moço na garupa montado, elegante, de chapéu social na cabeça, roupa de terno”. 96
Eu falei: – Vem cá, o senhor vai me comprar essa peça? – Não, estou te falando porque deve ficar muito bonito. Aquilo me fez sentir ofendido com meus tropeiros e meus sertanejos caipiras. Eu falei: – Tudo bem, vou fazer a peça pro senhor, quer ver? – E fiz a peça. O pacto com diabo. Eu fiz o cara social com a maleta na mão, aquele símbolo do dinheiro na maleta. E o cavalo? A cara do cavalo... nunca vi capeta na minha vida, mas desenhei o capeta. O pessoal fala que o capeta é chifrudo; coloquei dois chifres nele. Falam que é bocudo, que é carrancudo, eu falei: – Vou fazer desse jeito... o pessoal fala que é. Aí fiz, no lugar da cara do cavalo fiz a cara de uma pessoa, com presas, com dentes dando aquele sinal que vai levar esse cara pro inferno, e o resto do corpo era cavalo. Do outro lado fiz um tropeiro com o cavalo com cara de um anjo. A mulher assim, olhando pro céu, e um sertanejo montado em pelo no cavalo, com machadinho na mão. Mas foi muito bonito esse cenário. E chamei o sujeito pra ver a peça. – Vem cá, já fiz. – Você já fez? – Já fiz, vamos lá ver. Quando ele chegou lá em casa que ele viu as duas peças. O que ele me pediu apresentado no Pacto com o diabo e a resposta que era o homem do campo indo pro céu. O burguês indo pro inferno e o sertanejo indo pro céu. Aí ele falou: – Não é assim que pedi pra você fazer não, rapaz. Falei assim: – Quando o senhor pediu “pra eu fazer o burguês dessa forma, eu só enxerguei esse cenário aí, é assim que enxerguei. Essa peça está no site “Arte do Vale”, tem lá eu contando esse causo. Então a cultura do Vale é essa, a gente passou por muita dificuldade mesmo sobre criticar e consertar o Vale do Jequitinhonha. O Vale do Jequitinhonha hoje está desenvolvido, mas foi através da música, da poesia, do artesanato e muita luta mesmo da gente se reunindo pra fazer os movimentos culturais. Os poetas falando nas suas poesias e nós falando no barro, e os cantadores na música e com isso estamos fazendo 30 anos de movimento cultural. Eu até me orgulho de eu mesmo estar resistindo a esse tanto de tempo. Pois viver de arte esse tanto de tempo não é brincadeira, porque muitos colegas meus já desistiram. Eu já pensei em desistir também, 97
quando penso em desistir chega um convite desse aí, como esse seminário. Isso que alimenta a gente. Nasci de uma família de foliões, muitos foliões contadores de catira pessoal, garimpeiro que viveu lá nas margens do Rio Jequitinhonha; o meu pai era garimpeiro de diamante e pescador. E subia rio acima lá pra Coronel Murta, andava 100 quilômetros, 150, 200 quilômetros rio acima e rio abaixo. Nessa semana passada eu fui a Almenara, de Itinga a Almenara de moto, lá a gente beira o Rio Jequitinhonha, é bonito, e eu olhando o Rio Jequitinhonha e pensando assim: – Meu Deus! Meu pai passou aqui de canoa, o rio dando aquelas voltas. Só de asfalto 152 quilômetros de ida e volta e esse pessoal vivia essa vida na maior tranquilidade. A gente lutou muito pra poder manter essa cultura até onde a gente está conseguindo trazer hoje. Chamamos vocês, Terezinha e Marizinha, de anjos da guarda da gente, porque incentiva a manter a arte da gente e a continuar fazendo e contando esses causos. Em minha oficina de técnica, a gente conta esses causos interessantes que aprendemos dos nossos avós.
Ulisses Mendes, “cronista da Cerâmica do Vale do Jequitinhonha”, é dono de um discurso articulado sobre o papel do artista na sociedade atual. Líder comunitário atuante, foi um dos fundadores da Federação das Entidades Culturais e Artísticas do Vale do Jequitinhonha (FECAJE), que até hoje, junto às entidades associadas, tem sido o elo que mantém vivo o sonho de se fazer cultura popular no Vale e, acima de tudo, cumpre o papel de conscientizar a opinião pública sobre os valores e as tradições da região. Foi também um dos fundadores da Associação Comunitária de Itinga, sua terra natal, liderando-a por 15 anos e combatendo, principalmente, o ‘‘coronelismo” em seu município. Fala com veemência sobre as dificuldades enfrentadas pelos mais pobres que se dedicam à agricultura. Participa de seminários, ministra palestras e oficinas de cerâmica divulgando a cultura e o estilo de moldar, pintar e queimar o barro no Vale Jequitinhonha. Aprendeu a trabalhar o barro com seus parentes, que à época faziam potes, bulhões e objetos utilitários. Em sua obra, privilegia as cenas dramáticas da vida rural. Cada peça tem uma história, cada peça é um personagem: os retirantes da seca, a parteira, a lavadeira, o caipira, sertanejo, o caçador, o vaqueiro e os lavradores crucificados. A maneira peculiar como traduziu o sofrimento dos trabalhadores do campo tornou seus “crucificados” uma referência da arte do Vale Jequitinhonha. 98
Associativismo: uma possibilidade de fomento ao artesanato do Vale do Jequitinhonha Renata Vieira Delgado Naiane do Santos Mendes
O Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha, por intermédio da Pró-Reitoria de Extensão, reafirma, desde 1996, a presença da Universidade no Vale do Jequitinhonha. O programa trabalha nas perspectivas interdisciplinar e transdisciplinar, por meio do estabelecimento de parcerias com instituições de ensino superior do estado e programas governamentais; da qualificação de recursos humanos locais; do envolvimento de alunos de diversas graduações e pós-graduações da UFMG no programa; da integração das atividades de ensino, pesquisa e extensão e da relação transformadora entre universidade e sociedade. Os projetos que compõem o programa estão alocados em seis eixos de atuação: cultura, comunicação, educação, meio ambiente, saúde, desenvolvimento regional e geração de ocupação e renda. Esta última área e a cultura têm o artesanato como uma de suas principais bases. O trabalho com o artesanato do Vale do Jequitinhonha inicia-se como uma das primeiras ações do Programa Polo Jequitinhonha, em princípio na busca de conhecimento sobre as manifestações culturais da região, em que, de imediato, destacam-se as produções do rico artesanato em cerâmica, tecelagem, bordados, madeira, couro, trançado, entre outros. Em 2000 foi realizada a primeira Feira de Artesanato do Vale do Jequitinhonha, durante a realização de evento acadêmico da UFMG hoje chamado Semana do Conhecimento. A partir de 2002, a coordenação do Programa decidiu pela realização da feira na primeira semana de maio, que antecede a comemoração do Dia das Mães, por ser um período excelente para comercialização do artesanato – em suas diversas modalidades – e produtos de agroindústria (mel, queijo, doce, conservas, etc.) da região do Jequitinhonha. A feira vem sendo realizada ininterruptamente, chegando em 2011 à sua 12ª edição. No início da década de 2010, foi realizado o projeto Diagnósticos socioeconômicos: novo paradigma, coordenado pelo prof. Roberto Nascimento Rodrigues, que possibilitou o levantamento das principais dificuldades dos artesãos. Entre elas, foram identificadas dificuldade: na organização em grupos 99
de produção, associações e cooperativas; em conquistas de locais para venda de seus artesanatos, incluindo a participação em feiras; na divulgação de seus trabalhos; e, em algumas comunidades, na obtenção de matéria-prima. Com base nesse diagnóstico, foi elaborado o projeto Artesanato Cooperativo: fortalecimento do associativismo para o desenvolvimento da produção artesanal no Vale do Jequitinhonha, aprovado no Programa de Extensão Universitária (PROEX) / Cultura 2008.
Projeto Artesanato Cooperativo O projeto Artesanato Cooperativo, por meio do Programa Polo, desde 2008 vem criando oportunidades para que os artesãos repensem suas práticas artesanais, busquem opções para a comercialização e obtenção de matéria-prima, organizem-se em associações ou cooperativas e busquem oportunidades e alternativas necessárias para melhoria do trabalho e, consequentemente, da qualidade de vida. O projeto abrange 44 associações de artesãos de 22 municípios do Baixo, Médio e Alto Jequitinhonha, envolvendo, aproximadamente, 900 artesãos. Sempre buscou alcançar seus objetivos através do trabalho conjunto. Sua proposta de atuação é dividida em duas linhas de ações: uma voltada à Feira de Artesanato na UFMG, buscando atender às demandas relacionadas a ela; e a outra voltada às demandas apresentadas pelos artesãos. Desde seu início, o projeto busca manter proximidade com as associações e prefeituras municipais. Para facilitar esse vínculo permanente, foram escolhidas três cidades, denominadas cidades-polo, que são visitadas pela equipe do projeto periodicamente. São elas: Itaobim, para atendimento aos municípios do Baixo e Médio Jequitinhonha; Turmalina e Diamantina, para atendimento aos municípios do Alto Jequitinhonha. Essa estratégia facilita a locomoção e o encontro de artesãos das associações participantes, o que favorece a participação em reuniões da maioria das associações envolvidas no projeto. As viagens às cidades-polo têm duração de uma semana e, normalmente, cumprem as seguintes atividades: os dois primeiros dias são dedicados à cidade-polo, onde ocorre uma reunião geral e visita(s) à prefeitura, a associação(ões) e artesãos. Nos dias restantes, ocorrem visitas às prefeituras, associações e aos artesãos dos municípios mais próximos ao polo. Depois desses contatos e de uma série de reuniões realizadas, algumas demandas foram identificadas e a continuidade do projeto tem permitido a
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sua resolução. Entre as mais significativas estão aquelas relacionadas ao associativismo e à manutenção das relações interpessoais e administrativas de uma associação. Sobre o associativismo, os artesãos demonstram necessitar, principalmente, de esclarecimentos sobre: suas funções e benefícios; constituição e legalização de associações e fortalecimento das associações. Perante dificuldades administrativas, eles demandam capacitações em contabilidade, em planejamento e gestão, na divulgação dos trabalhos e comercialização, na identificação e preparação de lideranças, na elaboração de projetos para captação de recursos em diversas fontes de financiamento, no aprimoramento das técnicas artesanais e na melhoria de qualidade e preço do produto. Considerando o artesanato um setor fundamental para geração de renda, o trabalho desenvolvido pelo projeto Artesanato Cooperativo busca contribuir para a solução dessas demandas por meio do fortalecimento e da atuação autônoma das associações, capacitando-as para que resolvam os principais problemas relativos à sua manutenção, produção e à comercialização de seus produtos. Outra meta estabelecida pelo projeto é a preparação das associações para a busca de recursos nas mais variadas fontes de financiamento, promovendo, assim, sua capacidade de planejamento, gestão e estabelecimento de relações com os financiadores.
Associativismo Um importante objetivo do projeto é, por meio do associativismo, incentivar o fazer artesanal e tem como princípios o exercício da cidadania, o fortalecimento do artesanato e a afirmação da identidade cultural dos moradores do Vale do Jequitinhonha. O Instituto de Desenvolvimento Social de Portugal criou em abril de 2001 o Guia do Associativismo, que define: O Associativismo é a expressão organizada da sociedade civil, apelando à responsabilização e intervenção dos cidadãos em várias esferas da vida social, e constitui um importante meio de exercer cidadania. Trata-se de um movimento no qual as pessoas se agrupam, em torno de interesses comuns, constituindo associações, entidades com personalidade jurídica e com objetivos de inter-ajuda e cooperação. (PORTUGAL, 2001, p. 5, apud, LIMA, 2010, p. 22).
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A organização em associações pode trazer muitas vantagens, que vão além das relacionadas aos ganhos econômicos, pois visam defender os interesses de um determinado grupo. Em suma, é uma maneira de formalizar a união de pessoas com interesses comuns que buscam melhores condições de vida e de produção. Além disso, os ganhos eventualmente obtidos deverão ser investidos na própria associação. No caso de uma associação de artesãos, podem ser utilizados, por exemplo, na melhoria ou obtenção de uma sede, na compra de equipamentos, nas despesas com participações em feiras, em investimentos de cursos de capacitação para os associados, etc. Quando reunidos em um grupo fortalecido e bem estruturado, os cidadãos podem obter conquistas nos âmbitos político e social, melhorando de fato sua qualidade de vida com a geração de ocupação e renda. O associativismo promove, ainda, os artesãos, pois, ao adquirirem o status de associados, tornam-se gestores de suas atividades e dominam o processo produtivo e econômico de seus artesanatos.
Feira de Artesanato do Vale do Jequitinhonha na UFMG A Feira de Artesanato do Vale do Jequitinhonha na UFMG, que em 2011 comemorou sua 12ª edição, é realizada sempre no mês de maio, na semana que antecede o Dia das Mães, na Praça de Serviços do Campus Pampulha, onde ocorre grande circulação de pessoas. Tem o objetivo de fomentar o artesanato das associações envolvidas no projeto, proporcionando a elas condições de exposição e comercialização de seus trabalhos. A partir de 2008, com a implementação do PROEX e atendimento das demandas dos artesãos, foi desenvolvido um projeto especial para a feira, que tem contribuído significativamente para seu resultado e consolidação. Como forma de incentivo ao associativismo e à inclusão de um maior número de artesãos na feira, foi decidido que, a partir daquele ano, só participariam dela associações de artesãos, e não mais artesãos autônomos. Assim, o layout dos espaços destinados à venda dos artesanatos também foi reelaborado, organizado por municípios e devidamente identificado com banners, dando maior destaque às associações. A programação cultural, realizada pela Diretoria de Ação Cultural/UFMG, passou a ter parceria com a equipe do projeto Artesanato Cooperativo, que sugere artistas e representantes da cultura popular do Vale para as apresentações que acontecem durante toda a semana. 102
Várias atividades fazem parte da programação da feira e têm o objetivo de ampliar a divulgação dos trabalhos artesanais; proporcionar um intercâmbio entre os saberes acadêmicos e os saberes populares dos artesãos; atuar no reconhecimento e na valorização do trabalho dos “mestres de ofício” – artesãos e artesãs que se tornaram referência do fazer artesanal em suas comunidades. Entre as atividades realizadas, destacamos as oficinas oferecidas para a comunidade em geral e ministradas pelos artesãos, como a confecção de peças em cerâmica, trabalhos feitos no tear, bordados, trançados em geral – de modo a demonstrar as técnicas artesanais utilizadas nos trabalhos expostos para venda; e oficinas de qualificação e ampliação do conhecimento artesanal direcionadas aos artesãos, realizadas na Escola de Belas Artes. As homenagens aos mestres de ofício e seus municípios acontecem desde 2009. A cada ano, a equipe elege dois municípios para serem destaques na feira, sendo que a escolha dos mestres é feita de forma coletiva entre os organizadores e as associações. Com a colaboração dos patrocinadores e apoiadores, tem sido possível criar um espaço especial para homenagear os municípios e seus mestres. Em 2009, foram homenageados o mestre Ulisses Pereira, ceramista da comunidade de Santo Antônio, município de Caraí, in memoriam, representado por sua esposa, Dona Maria Alves Silva; e a mestra Nildete Mendes Maciel (Dona Duquinha), do município de Turmalina. Em 2010, foram homenageadas a mestra Josefa Alves dos Reis (Zefa), que faz artesanatos em madeira, residente do município de Araçuaí; e a mestra Ana Fernandes de Souza (Ana do Baú), ceramista do município de Minas Novas. Em 2011, foram homenageadas Dona Elzi Gonçalves Pereira (Dona Zizi), paneleira do município de Jequitinhonha, distrito de Guaranilândia; e Dona Geralda Leite Sena, fiandeira do município de Francisco Badaró. Nem todos os mestres puderam estar presentes durante todo o período da feira, devido a debilitações relacionadas à saúde, mas para todos eles foram produzidos filmes documentais sobre suas trajetórias artesanais. Estes são exibidos durante toda a semana no estande de seu município de origem, com a promoção de atividade formal de apresentação dos mestres à comunidade universitária, exibição de seus documentários e premiação simbólica. A equipe do projeto acompanha a feira em tempo integral, criando assim um espaço para observação e diálogo com os artesãos. Além disso, acontecem dois fóruns de discussão e avaliação com todos os representantes das associações que participam da feira. O trabalho de divulgação tem sido ampliado a cada ano. Em 2011, foi realizada uma parceria com o projeto Suporte de comunicação, também 103
integrante do Programa Polo Jequitinhonha, para concepção da identidade visual, comunicação e divulgação da feira. Foram realizadas divulgações em jornais e TV, entrevistas em redes televisivas e de rádio. Foram criadas várias peças gráficas (banners, flyers, cartazes, pôsteres) e vídeo. A equipe do projeto acredita que essa parceira contribuiu muito para o aumento significativo das vendas de 2011, que alcançaram o valor de R$ 170.000,00. A Feira de Artesanato do Vale do Jequitinhonha da UFMG é considerada pelos artesãos uma das mais importantes das que participam, tanto no que se refere à lucratividade quanto à experiência de trocas entre os artesãos de diversos municípios, a convivência no campus da universidade. O gasto das associações com a feira na UFMG é baixo ou até inexistente, uma vez que as articulações do projeto com as prefeituras dos municípios e patrocinadores permitem viabilizar transporte, alojamento, alimentação e assistência à saúde dos artesãos durante a estadia destes na capital e no espaço para exposição e venda de seus trabalhos.
Guias Em atendimento a solicitações dos artesãos participantes na Feira de Artesanato, foram elaborados guias para serem distribuídos gratuitamente às associações com o objetivo de orientá-las. Em 2009, foi elaborado e distribuído às associações o Guia de oportunidades para associações e artesãos, do qual constam informações sobre políticas de financiamento para o artesanato, listagem das instituições que trabalham na região, feiras e exposições em Minas e no Brasil e editais de financiamentos. A partir de 2010, surgiu a proposta de construção do Guia para associações – roteiro para constituição e legalização de uma associação de artesãos, o qual passou a ser desenvolvido pelos estudantes de graduação envolvidos no projeto, por meio de pesquisas teóricas, orientações de profissionais, consultas periódicas aos artesãos, orientações junto ao Ministério Público e órgãos governamentais envolvidos no processo de formalização de associações e cooperativas. O Guia para associações busca incentivar o associativismo e a economia solidária e explicita, principalmente, um conjunto de informações importantes para constituição, legalização e consolidação de uma associação. Sua abordagem é clara e objetiva, adequando, na medida do possível,
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a linguagem e editoração ao público-alvo de leitores, que em sua maioria possui pouca escolaridade. O projeto gráfico foi elaborado de forma a valorizar o artesanato e os artesãos do Vale do Jequitinhonha, utilizando-se cores características dos trabalhos da região e fotografias que ilustram e enriquecem seu conteúdo, em sua maioria de artesanatos trazidos à 12ª feira. O Guia apresenta as principais diferenças, vantagens e desvantagens entre constituir associações e cooperativas; explicita os princípios do associativismo, os direitos e deveres dos associados; as etapas para formação de uma associação; orientações sobre a elaboração do estatuto social, regimento interno, livros-diário, livro de presença, livro de atas das assembleias, de atas do conselho fiscal, de atas das reuniões da diretoria, de atas do conselho consultivo. A primeira versão foi apresentada em reuniões nas três cidades-polo. As sugestões foram incorporadas e uma nova versão foi apresentada aos artesãos durante a 12ª Feira, a qual foi analisada e modificada, posteriormente, com o acréscimo de algumas sugestões apresentadas por eles. A elaboração do Guia foi marcada pelo diálogo, proporcionando uma rica troca de saberes e experiências entre artesãos, técnicos e universitários de diversas áreas de graduação: Ciências Sociais, Artes Visuais, Pedagogia, Letras, Cinema de Animação e Artes Digitais. A prática contribuiu consideravelmente para a compreensão das relações sociais, gerando, assim, reflexões ricas e amadurecimento a todos. Após o lançamento do Guia para associações – roteiro para constituição e legalização de uma associação de artesãos no seminário Visões do Vale VI, em 2011, também está previsto seu lançamento nas cidades-polo, contemplando maior participação das comunidades locais.
Conclusão O referido projeto de extensão tem sido fundamental para ampliar o entendimento do conceito de associativismo, o fortalecimento das relações entre artesãos e, consequentemente, a promoção do artesanato do Vale do Jequitinhonha. Uma de suas metas é o incremento e a consolidação do caráter cultural identitário do fazer artesanal. Com questionários aplicados, reuniões realizadas e elaboração de diagnósticos participativos que relatam a melhoria de alguns problemas
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enfrentados pelas associações, citados no presente texto, podemos afirmar que as ações do projeto incentivaram os artesãos a se fortalecerem em um sistema cooperado de produção e a buscarem alternativas e possibilidades de comercialização dos produtos e de captação de recursos. A organização em associações trouxe aos artesãos, além de ganhos econômicos, uma relação de respeito mútuo e de confiança entre os associados, pilar de sustentação de uma associação. Entre as associações envolvidas, observamos que algumas alcançaram avanços significativos quanto a sua organização no que diz respeito às relações interpessoais, às relações com órgãos municipais, demais parceiros e até mesmo entre associações de um mesmo município. Várias delas, hoje, estão capacitadas a se candidatar e firmar convênios com órgãos públicos e a iniciativa privada. Algumas que estavam fechadas foram reativadas e outras se encontram em processo de legalização. Observamos, portanto, que melhorar essas relações é de extrema importância para alavancar o movimento associativista, estabelecendo-se contatos e acordos saudáveis e mútuos também entre associações próximas, unidas para mudanças e conquistas de resultados como o desenvolvimento econômico regional e social e maior visibilidade da produção artesanal da região. A relação entre a área econômica da cultura e a extensão universitária é promissora. Sua continuidade garantirá que os resultados cresçam da dedicação e esforço da equipe e do investimento direcionado para a ação.
Referências FRANÇA, Bárbara; BARBOSA, Érica; CASTRO, Rafaelle; SANTOS, Rodrigo. Guia de economia solidária: ou porque não organizar cooperativas para populações carentes. 1. ed. Niterói: UFF, 2008. FURIATI, Terezinha Maria et al. Guia de oportunidades para associações e artesãos. Disponível em: <www.ufmg.br/polojequitinhonha>. Acesso em: 15 out. 2011. HENRIQUES, Márcio Simeone. Ativismo, movimentos sociais e relações públicas. In: KUNSCH, Margarida M. K.; KUNSCH, Waldemar L. (Org.). Relações públicas comunitárias: a comunicação em uma perspectiva dialógica e transformadora. 1. ed. São Paulo: Summus, 2007. p. 92-103.
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HENRIQUES, Márcio Simeone; MAFRA, Rennan Lanna Martins; BRAGA, Clara Soares; SILVA, Daniela Brandão do Couto e (Org.). Comunicação e estratégias de mobilização social. 1. ed. Pará de Minas: Gênesis, 2002. 92 p. HENRIQUES, Márcio Simeone; WERNECK, Nísia Maria Duarte (Org.). Visões de futuro: responsabilidade compartilhada e diálogos com a comunidade. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. 112 p. LISBOA, T. C.; BONASSI, S. A. O associativismo como estratégia competitiva no varejo: um estudo de caso na AREMAC – AM – Associação Regional de Material de Construção da Alta Mogiana. Revista Eletrônica da Administração – Facef, v. 2, n. 3, 2003. Disponível em: <http://www.facef. br/rea/edicao03/ed03_art03.pdf>. Acesso em: 15 out. 2011. OLIVEIRA, Claudia Ribeiro. Repercussão do conhecimento adquirido em oficinas de artesanato nas finanças familiares dos artesãos e artesãs do Vale Jequitinhonha. 2007. Monografia. Faculdade de Ciências Econômicas/ Centro de Pós-graduação e Pesquisa em Administração, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007. Disponível em: <http://www.ufmg.br/ proex/documentosdb.php>. Acesso em: 17 out. 2011. PORTUGAL. Ministério do Trabalho e da Solidariedade. Instituto para o Desenvolvimento Social. Guia para o associativismo. Lisboa: IDS, 2001.
Renata Vieira Delgado é graduanda em Cinema de Animação e Artes Digitais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e em Educação Artística pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Atua como bolsista no Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha/PROEX-UFMG. Naiane dos Santos Mendes é graduanda do curso de Pedagogia da UFMG e bolsista na Diretoria de Ação Cultural/UFMG.
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Festa do Rosário em São Gonçalo do Rio das Pedras.
AS MÚLTIPLAS EXPRESSÕES DO VALE
Histórias orais: linguagem de desejos Vera Felício “A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.” Gabriel García Marquez
Há algum tempo, especificamente, 25 anos atrás, descobri o denso significado das histórias orais. Aconteceu quando, a caminhar pelas estradas então vermelhas e poeirentas do Vale do Jequitinhonha, desejava conhecer e ouvir os velhos contadores de uma região por muito tempo desconhecida por suas manifestações de arte, mas bem conhecida pelas questões sociais e dificuldades. Problemas estes que, herdados do processo de colonização, permaneceram graves e, atravessados pelo abandono governamental, castigaram a população no correr do tempo. O trabalho de pesquisa tinha a intenção de registrar histórias, casos, adivinhas, provérbios e romances que são contados à beira do fogão de lenha, no calor das fogueiras de bate-papo, nas reuniões comunitárias e festas religiosas. O objetivo era obter um corpus da literatura popular da região, a fim de entender como fora moldado, no inconsciente de inúmeras e diversas gerações, o histórico espaço-tempo vivenciado e determinado por conflitos entre os setores dominantes em busca de cargos e privilégios, ou entre estes e as camadas dominadas: escravos, homens livres e desclassificados sociais. Buscava-se caracterizar, nos contos orais, como se inscreveram, na memória do povo, as agruras vividas por seus ascendentes e de que forma foram transmitidas as experiências, dores, conselhos, advertindo-se quanto às consequências, presentes ainda no longo sofrimento da região. Perante a complexidade cultural observada, instigava-me a identidade daquela gente que se mantinha forte, alegre, receptiva e solidária no enfrentamento de inúmeras dificuldades. Pretendia-se compreender e analisar, nessas histórias, como se contou a distorção social e a recidiva permanente da concentração de renda. Base sólida, a história do Vale gerou interesse, assim como a tradição herdada de avós e bisavós tornou-se motivo de orgulho e âncora para os grupos populacionais. Aquilo que se ouviu e leu passou a ser recriado e modificado pela imaginação, permitindo aos descendentes que se lancem, com dignidade e força, no desejo de conquista de futuro melhor. Os que não tiveram acesso ao ouro, ao diamante e à educação 110
apossaram-se da palavra. E palavra é ato, um ato inicial criador que autoriza contar o passado a fim de viver desejos, sonhos e, na visão do que foi narrado, garimpar a viva esperança de transformar o verbo das novas gerações. A palavra-ato mescla contos universais com mitos e características históricas, transmutando as histórias, os casos, as fábulas e lendas conforme o modo particular de ver, pensar e agir. E estes nunca serão repetidos à letra, como anteriormente ouvidos, e modificam-se em função de um objetivo e de experiências pessoais do contador. Ao ouvi-los, conheci muitos narradores: homens e mulheres magros, de pele enrugada, queimados pelo calor e pelo sol do trabalho diário. Suas atividades não se resumiam em lavrar a terra seca, plantar, moldar bonecas, esculpir figuras míticas, tecer colchas ou bordar toalhas. Trabalhar é contar, porque no trabalho conjunto partilham-se vivências, histórias de vida, lembranças de repartir problemas e escutar mágoas de cada dia. Parceria que brota naturalmente na forma solidária de dividir empecilhos, conflitos urgentes e questões pessoais. Todos sabem que, quaisquer que sejam as dificuldades, elas serão pensadas, compartilhadas e resolvidas em socialização fraterna do grupo. Contar histórias é reunir amigos e conhecidos em casa e, enquanto houver lugar, todos que desejam participar são convidados. Nessa relação existe simetria e igualdade, ali estão os conhecidos, os íntimos, e os narradores se sentem à vontade. Quando terminam suas histórias, incitam os ouvintes a assumirem a voz, tomar o centro da reunião e também contar “Entrou numa perna de pinto, o rei me contou cinco, você me conta quatro”. Fórmulas vão em busca de cúmplices ao ato de narrar. Estranhos provocam tensão e dicotomia: gente de fora e gente da terra, língua oral e língua escrita, iletrado e letrado. O narrador, que se orgulha do lugar que ocupa e de seu saber, percebe a urgência de determiná-lo. Consciente do papel que exerce como detentor de reminiscências inscritas no passado, ele se dirige aos pesquisadores, ao término de sua narrativa: “Essas ocês tem pra levá pros outro. Sei caso pra disgrama, mas hoje num posso mais, tenho que dá umas volta por aí.” Visitantes? Amigos? Casos à parte! Contar histórias é arte e ouvi-las é mergulhar fundo nos contos do maravilhoso: contos de exemplo, de adivinhação, contos de encanto e contos escatológicos com a missão única de espantar cansaço e tristeza. Cantar romanceiros instiga a memória, contar lendas e fábulas faz-se necessário para a continuidade de uma cadeia de contadores, cujo objetivo é atar sua comunidade à origem, aos costumes, aos hábitos, às normas e histórias. Garante-se, assim, que os jovens continuarão a tradição 111
e contando estarão reproduzindo narrativas de seus avós e mantendo a cadeia de transmissão de valores, a genealogia do grupo no ato de resguardar o viver dos antepassados, a memória e a tradição do grupo social. A vida árdua, o espaço que os velhos ocupam através da experiência e cabedal de conhecimentos sempre é reconhecido e acatado, entretanto, a sua fragilidade sugere dia a dia a terrível proximidade da morte. A ameaça confere aos patriarcas um papel respeitado e a indiscutível autoridade. Aprendi nesta companhia o valor daquele saber adquirido no árduo trabalho diário e no constante contato, tanto com o bem da natureza quanto com o significativo desafio de estar frente a frente com uma variedade de obstáculos e impedimentos sociais. Aprendi a humildade, aprendi mais ainda o que é ser amigo-companheiro, um amigo fraterno e solidário. Neste aprendizado de ouvir e saber, deparei-me com as teses de Walter Benjamin quanto à memória e ao narrador: A reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração. Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si. Uma se articula na outra, como demonstraram todos os outros narradores, principalmente os orientais.1
O Benjamin que nos aponta a impossibilidade de toda experiência coletiva na modernidade e, consequentemente, de toda tradição e de toda palavra comum. Não sou especialista, apenas interlocutora do filósofo naquelas teses que se referem ao narrador clássico e que nos mergulha na análise dos significados de experiência e vivência, na arte de contar. A mim fiz estas questões: o que é contar história? O que significa o contar? Serve isso para alguma coisa? Por que se perde aos poucos a capacidade de reunir e contar? Busquei respondê-las, no Jequitinhonha, ao observar pessoas que acreditam em convívio e em longas conversa nas quais experiências são trocadas. Percebi, então, os fios motivadores que quebram vidas solitárias e criam relacionamentos fraternos naqueles momentos de contar lembranças, do falar de trabalho, e de trocar casos e histórias de ensinamento. 1 - BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 211.
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Hoje, entendo que, na região natal, garimpei o que me parecia familiar, coisas de aprendizado do coração: raízes cujas radículas me enraizavam no largo espaço do Vale do Jequitinhonha, através das histórias que ressoavam na memória, em um desejo intuitivo de pensar o futuro e cotejá-lo com o passado a fim de responder aquelas questões: quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? O que faço aqui? Entendi, então, que a “andança” pelo Vale era o meu aprendizado e se algumas respostas ali houvesse nunca conseguiria codificá-las. Ali existia diante de meu olhar uma enorme diferença de realidades e de formas de viver a vida. Formas de um grupo social, senhor de um entendimento próprio e único de confrontar a existência. A perplexidade foi minha companheira durante todo o trajeto de pesquisa e trabalho nas dez cidades da região. Durante cinco anos em que me debrucei a ler e analisar as narrativas recolhidas, senti, aprendi e amei o Vale. “O seguinte é esse que segue: falo porque vi e vivi e posso provar.” Na patente oralidade e no tom incisivo e categórico desta frase frequente, nas falas dos contadores, obriguei-me a entender seus sentidos. Sempre ouvida nas reuniões de contar, expressa um pensamento moral e determina à comunidade uma observância de bons costumes e de cumprimento dos deveres com o grupo social. O narrador demonstra nela sua autoridade e coloca seus objetivos: a recordação é base da tradição e todos são responsáveis por repassá-la geração a geração, devem contar histórias, experiências significativas e mitos da comunidade. Aquele que detém a voz é memória viva, seu compromisso fundamenta a unidade, uma vez que “fala porque viu, viveu e pode provar”. Sua figura faz-se mítica e somente ele determinará o momento de passar a voz ao elo imediato, ao contador que o segue. A cadeia de narradores permanecerá então contínua, um após o outro, no espaço e no tempo. O povo do Vale é capaz de expressões culturais vivas, dinâmicas, e orgulha-se de seu saber, da arte que domina e do papel único que exerce na comunidade. Sua cultura estruturou-se, há muito tempo, como resistência à ordem estabelecida. Na atividade mnêmica, preservaram-se histórias a serem contadas e recontadas que ligam e religam experiências atuais ao hoje concreto do narrador, naquele momento vivo de contar. Símbolos estão sempre presentes em narrativas orais que desejam dar conselhos e lições para o viver. Escolhi duas histórias: “A pedra de ouro”, contada por Joaquim Soares Ramos, de Minas Novas, e “O mestre do mio”, contado por Américo Gonçalves, de Turmalina. Os contos têm um conteúdo
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ideológico e apresentam a reflexão dos que se sentem responsáveis pelos hábitos e costumes da comunidade. E, enquanto líderes respeitados, procuram adequar o grupo às mudanças sociais e aos novos valores, em um trabalho intenso para que não desapareçam os comportamentos da tradição. Contos orais, no contexto, exercem a função de ensinar jovens, na intenção de conciliar o muito novo e o extremamente antigo, cujas características maleáveis permitam, na essência, serem arranjadas e moldadas com os sistemas da tradição. Os contos de Seu Joaquim refletem preocupação quanto às mudanças por que passa a organização hierárquica patriarcal. Comportamentos e outros moldes de uma vida moderna minam, de maneira paulatina, o sistema em que nasceram e ainda tentam viver; por isso buscam adequar-se e absorver o necessário para admitir algumas novidades e evitar o desaparecimento dos seus tradicionais hábitos e valores. Dessa forma procuram manter o que lhes foi ensinado e evitar a invasão maior de comportamentos novos, próprios das grandes cidades. “A pedra de ouro” conta-nos que um pai viúvo muito velho e já sem forças era amparado pelo respeito e obediência de seus três filhos. Um dia, um homem bem vestido passa pela roça onde os rapazes trabalhavam, perguntando-lhes qual a razão de vida tão dura e sem perspectiva de melhoria. Demonstra a eles que, permanecendo presos à velhice de um pai inútil, nunca iriam obter meios para alcançar poder e riqueza. Influenciados pela sedução do forasteiro, os filhos largam o pai entregue à própria sorte e saem juntos, mundo afora, em busca de uma vida melhor. Na estrada encontram o mesmo homem, que lhes oferece um mundão de ouro e ensina-lhes o lugar da pedra de ouro. Os irmãos deixam-se dominar por uma enorme ambição de ter sozinho o tal tesouro e, cada um em separado, tramam a morte um do outro, para que a pedra tenha um só dono. Assim divididos, terminam por se destruir, assassinados, por eles mesmos, todos os três. A narrativa expressa nas funções de seus personagens uma intenção educativa e moral: o pai, patriarca e autoridade, por ser viúvo, não tem a seu lado o arrimo natural: a mulher. Os filhos, herdeiros dos seus bens e do poder, deveriam, em primeiro lugar, cumprir seus deveres filiais; só após a morte do progenitor teriam direitos. Os três rapazes, ao ouvirem a lábia mentirosa do capeta, caem em sua cilada e, ao abandonar o velho pai, cometem grave falta. Castigados, vão pagar o pecado no fogo do inferno. No conto de Seu Joaquim, configura-se a ideia de que um pai vivo detém, ainda que velho e sem forças, o legítimo poder e como tal deve ser amado, respeitado, obedecido e cuidado até o fim de sua existência. Contrariar a norma significa atrair o castigo divino. 114
No Vale, percebe-se a relevância da intertextualidade, os textos contados organizam-se sobre outros, em um jogo de espelhos bastante significativo. Os contadores deixam claro que as narrativas se ancoram no saber estatuído, seu conhecimento é obtido em obras literárias e, mesmo quando analfabetos, referem-se sempre aos antepassados mais aquinhoados, proprietários de bibliotecas e senhores de “boa leitura.” Recontadas, encontrei narrativas do maravilhoso universal, contos portugueses, romances, dramas teatrais, lendas e mitos modificados, invertidos a fim de atender aos objetivos concretos dos contadores. “A pedra de ouro” assemelha-se no enredo ao conto “O tesouro”, de Eça de Queiroz, e similares também são as funções dos elementos do texto: no lugar da pedra de ouro, um cofre de muitas chaves; no lugar da cachaça do Vale, o vinho, o veneno e o fogo da morte serão substituídos pelas espadas; e o nome-família dos fidalgos de Medranhos aproxima-se a Mendanha, distrito de Diamantina. Os contos de Seu Américo Gonçalves devem ser lidos como forma encontrada de ensinar às novas gerações os caminhos de resistência, os meios de transformação do futuro, consequentemente, de mudança social. Na palavra do contador, as possibilidades de ascensão passam pelo domínio da língua e só através do conhecimento a comunidade alcançaria o saber necessário a uma ascensão. Ao iniciar nova história avisa: “Ah! essa história é do mestre do mio, é de estudo, essa eu aprendi de um livro, né? Ele tá guardado por aí mesmo”. O mestre do milho é o professor de meios mágicos e sua magia promove a mutação da pobreza em riqueza. A origem ideológica é base da classificação social e fica clara a oposição que o contador faz entre Europa e o interior. As diferenças de cultura e civilização de cidade e campo simbolizam a situação de superioridade do país colonizador em relação à colônia: Lá bem longe, lá pás Oropa afora, havia ua cidade e havia um mestre do incanto qu insinava tudo, todo incanto do mundo, né? E lá no interiô, La no sito, tinha um home cua grande famia muito pobre, famia grande, e tinha um minino muito inteligente, o fio dele, que aprindia tudo quanto há.2
No Hemisfério Norte, reside o mestre, elemento da sociedade civilizada, culta, senhora do saber, do poder e da palavra; no Sul, a diferença, o menino esperto, inteligente, afastado do centro, portanto, inculto, 2 - Na linguagem do contador: do texto “O mestre do mio”.
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incivilizado. Menino que precisa de mestre para adquirir palavra, ciência e progresso. Entretanto, o mestre prestidigitador esconde do aluno o sortilégio que lhe permitiria ter um saber semelhante ao seu. O menino precisa ser mais esperto do que o mestre, a fim de conseguir roubar do livro, a ele interditado, a fórmula mágica de ganhar saber, dinheiro e poder. Aprende-se a importância fundamental da peça de metal usada em cavalos e encenada como recurso mágico – o freio – que o pai não deveria vender ao mestre, quando ambos disputam o filho transmutado em belo cavalo. Essa peça, colocada na boca, torna-se a trava punitiva, símbolo do jugo e do impedimento à fala e ao uso da palavra. Transgredido o proibido, a desmedida ambição do pai provoca a sujeição do menino e outros danos que são causados a ele pelo mestre antagonista. É através de outra criança que o cavalo herói recebe a ajuda indispensável à salvação. Essa criança tira-lhe o freio da boca e concede-lhe a oportunidade de utilizar os meios mágicos do livro roubado ao mestre. Livre para usar a palavra, o protagonista enfrenta o adversário com as mesmas armas. Metamorfoseia-se em peixe, rola, anel e bago de milho e assim consegue fugir e ganha guarida e proteção da donzela. O confronto entre as personagens desenvolve, na trama, um jogo de sentidos em que a palavra, com a vitalidade de seus símbolos, se impõe. O milho é a palavra, de saber e de domínio. Importa-nos ainda o valor confiado à linguagem, mola mestra de contos e da filosofia de vida do narrador. A palavra significa, em sua óptica, o meio mágico para mudar a estrutura social. O acesso à linguagem é ameaça às classes privilegiadas, que, por essa razão, a tornam oculta e encerrada em livros, palavras de acesso difícil e sempre restritas a um círculo limitado. A versão do velho e do novo, em suas implicações culturais, questiona a prevalência, na maioria das vezes conservadora, que contos orais transmitem de geração em geração. O dialogismo inscrito no conto dá a medida de avaliação dos valores e parece-nos uma proposta de rever antigos conceitos e imagens, em uma abertura narrativa que permite assimilação de novas ideias e de valores atuais. A arte de contar do Vale do Jequitinhonha é uma prática constante. A produção das narrativas sofre a influência do grupo e do ambiente onde são contadas. Assim, modificações necessárias são feitas nas histórias de acordo com o momento vivido e a experiência, os saberes e as habilidades daquele que narra. Prática de memória, de resistência, os contos traduzem a intenção de informar e ensinar. O Vale, em sua constante mudança, possui um encanto e carisma que enlaça os viajantes. Aqueles que passo a passo o percorrem e o conhecem e, incautos, sorvem o mistério dos contos, 116
o encanto de danças e canções, são fisgados. E assim os nossos dias, os meses e os anos vão passando, e tudo o que passamos se vai como um conto que se conta. Tomo, portanto, a liberdade de repetir a fala dos meus velhos amigos, contadores do Vale do Jequitinhonha: O seguinte é esse que segue: falo porque vi, ouvi, vivi e posso provar.
Vera Felício é mestre em Letras (Literatura Brasileira) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professora aposentada da PUC Minas. É autora de O artesão da memória no Vale do Jequitinhonha (Editora UFMG / Editora PUC Minas); “O Vale vale quanto pesa”, texto publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais (edição especial em homenagem ao Vale do Jequitinhonha. Belo Horizonte, Secretaria do Estado de Cultura de Minas Gerais, n. 11, 2006).
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Anexos A pedra de ouro Num vilarejo longínquo vivia um homem viúvo já bastante velho e sem forças para trabalhar, que tinha três filhos jovens e muito obedientes que faziam todo o trabalho da família, inclusive a lavoura. Um dia os rapazes estavam trabalhando na roça, quando apareceu um homem desconhecido, olhou-os e disse: – Bom-dia! – Bom-dia! – Os meninos estão trabalhando? – É, a gente tá trabalhando, porque nosso pai tá bastante avançado na idade, coitado, não pode fazer mais nada. Agora a gente é que cuida dele. O homem pensou um pouco e disso: – Vocês são uns trouxas! Saiam pelo mundo, procurem outro trabalho. Se ficarem junto de seu pai a vida toda, não vão conseguir nada. Depois que vocês o deixarem, ele dá um jeito. – E despediu-se deles e saiu. Os rapazes refletiram sobre aquilo: – Ô rapaz, aquele homem é que tá certo. A gente não vai conseguir nada se ficar aqui só trabalhando para tratar de nosso pai. Vamos embora. É como o homem falou: depois que a gente sumir, nosso pai dá um jeito. E então os três jovens partiram, deixando o velho sozinho. Depois de muito viajarem, passando por uma mata, lá do fundo ouviram um grito. – Ôooo! Venham cá, ôooo! Se vocês querem ver o laço do capeta, venham aqui! Os rapazes pensaram bastante e decidiram: – Vamos lá pra ver como é que é esse laço do capeta. Caminharam bastante no interior da mata, até que, de repente, se defrontaram com o mesmo homem com o qual haviam conversado na roça. – Vejam, esta pedra de ouro é para vocês. Se vocês tivessem ficado com seu pai, teriam conseguido esta fortuna? Nunca! Mas agora, tudo isto é de vocês. Os rapazes tentaram obstinadamente apanhar a pedra, que estava presa ao chão. Insistiram, relutantes: inútil; nenhum deles conseguia. Depois de várias tentativas frustradas, um deles teve uma ideia: – Ô, rapaz, se a gente bebesse uma cachaça, conseguia pegar essa pedra.
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– Pois é mesmo, moço. Olha, tem uma venda aqui perto. Vamos em dois, enquanto um fica aqui vigiando a pedra. Então, enquanto dois dos rapazes estavam a caminho da venda, o outro, que ficou vigiando a pedra, engendrava um plano para ficar sozinho com a riqueza: – Quando eles chegarem aqui com a cachaça, boto fogo neles, bebo a cachaça e fico com a pedra só pra mim. Perto do botequim, um dos moços sentiu vontade de fazer cocô e, enquanto este entrou no mato, o outro foi depressa até a venda, comprou a cachaça e um veneno, que misturou à bebida, voltou e encontrou-se com o irmão, antes que ele pudesse chegar à venda. – Uai, cê já foi lá? – Já, moço, fui lá, já comprei e já tô de volta. Toma aqui um pouco. E deu a garrafa ao irmão, que, com vontade, a virou garganta abaixo, caindo morto no mesmo instante. O outro imediatamente apanhou a garrafa, pôs a tampa, guardou-a no embornal e seguiu, planejando: – Chegando lá, dou a cachaça ao outro mano e, quando ele cair, fico com a pedra. Enquanto isso, o rapaz que ficou vigiando a pedra pensava a mesma coisa: – Logo que eles chegarem aqui, deito fogo neles, bebo a cachaça e fico com a pedra pra mim. Então, quando o jovem foi chegando com a cachaça, o irmão ateou-lhe fogo, matando-o. Em seguida lançou-se sobre o embornal, apanhou a garrafa e sorveu de um só gole a cachaça envenenada, caindo duro e teso com a garrafa na mão. Assim, morreram os três, e o laço do capeta permaneceu no meio da mata.
Transcriado por Adriana Melo (Oficina de Texto – FALE/UFMG) a partir de transcrição da narrativa oral “A peda de oro”, do Vale do Jequitinhonha.
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O mestre do encanto Lá bem longe, numa cidade da Europa, vivia o mestre do encanto que ensinava tudo, todas as magias do mundo. E no interior, em um sítio, vivia um homem cuja família, muito grande e extremamente pobre, esperava de um dos filhos, menino de notável inteligência, a solução para aquela vida miserável que até então levava. – A gente tá muito pobre, mulher. Vou mandar esse nosso filho, que é muito inteligente, lá para cidade onde mora o mestre dos encantos, pra ver se ele aprende alguma coisa que faça nossa vida melhorar. – Tá bem! Quando o menino chegou à cidade, hospedou-se na casa do mestre, que começou a lhe ensinar todos os encantos do mundo. E tudo o que o mestre ensinava o menino aprendia com muita facilidade. Havia apenas um livro sobre o qual o mestre não fazia nenhum comentário, tampouco permitia que seu aluno o folheasse. Curioso, o menino pensava: – Meu mestre me ensinou tanto encanto! Por que será que ele não me ensina o que tem naquele livro? Um dia, quando o mestre saiu de casa, o menino aproveitou a oportunidade e, ansioso, foi depressa apanhar o livro. E, só de folhear aquele livro, o menino aprendeu todo o encanto que ele continha. Então, sentiu-se satisfeito, vislumbrando a possibilidade de voltar para casa: – Puxa! Descobri uma maneira de meu pai ganhar dinheiro! E assim que o mestre chegou, o menino disse: – Mestre, tô com muita saudade de meu pai, por isso quero ir embora. – Mas você ainda não aprendeu nada! – O que aprendi é o bastante. Assim, despediram-se, e o menino partiu, levando a boa notícia à casa do pai: – Pai, aprendi um encanto pra fazer o senhor ficar rico! Mas, pra dar certo, tem de seguir direitinho os passos: vou me transformar num cavalo já arreado, o senhor monta em mim e vai até a cidade. Chegando lá, meu mestre vai saber que eu sou o cavalo e vai querer me comprar pra dar cabo de minha vida. Então, o senhor pede muito dinheiro pelo cavalo, mas o freio não pode ser vendido por dinheiro nenhum. É que o encanto estava no freio. Assim, o menino transformou-se num lindo cavalo marchador. O pai montou e eles iniciaram viagem. Quando chegaram à cidade, ao passearem 120
pelas ruas, foram vistos pelo mestre, que, reconhecendo o menino no cavalo encantado, perguntou ao pai: – O senhor quer me vender este cavalo? – Não. Não vendo! – Por favor, vende! Pago bem! E ofereceu uma grande quantia e foi aumentando a oferta até que o pai do menino, seduzido por tanto dinheiro, decidiu vender o cavalo. – Quero o freio também! – O freio não vendo! Mas o mestre foi oferecendo cada vez mais dinheiro. O pai, então, não resistiu: ávido pela riqueza, ignorou o acordo que havia feito com o filho e vendou o freio. Ao ver aquilo, o cavalo abaixou a cabeça e ficou muito triste. O pai do menino apanhou o dinheiro e voltou para casa. O mestre calçou esporas, embora não fosse necessário, e montou no cavalo. Passeando pelas ruas durante todo o dia, cravava com violência os calcanhares na barriga do animal, que, dolorosamente ferido, sangrava muito. Um amigo do mestre, que observava aquela cena, pensou: – O que será que aconteceu com o mestre? Ele deve estar angustiado. Como é que pode maltratar um cavalo tão bom como aquele? Vou chamá-lo para tomar um café, assim o animal poderá descansar. – Mestre, vem cá. Vamos tomar um café e descansar um pouco. Cansado, o mestre desceu do cavalo e pediu a um menino que segurasse o animal, enquanto ele tomava o café na casa do amigo. Observando que o cavalo olhava o tempo todo para um riacho que passava à porta da casa, o menino pensou: – Esse cavalo tá com sede! Vou tirar o freio pra ele beber água. E no instante em que o menino tirou o freio, o cavalo se transformou em peixe e pulou no riacho, desaparecendo. O mestre, ao perceber o que tinha acontecido, veio correndo lá de dentro: – Onde está o cavalo? Atônito, com o freio na mão, o menino disse: – Pensei que ele tava com sede, tirei o freio, ele virou peixe e sumiu no riacho. O mestre, então, tomou a forma de um mergulhão e pulou no riacho, perseguindo o peixe que, ao se ver em perigo, transformou-se numa rola e voou. Imediatamente o mestre virou gavião e perseguiu a rola. Enquanto isso, num luxuoso sobrado perto dali, uma moça bordava, com a janela de seu quarto aberta. Então, fugindo do gavião, a rola entrou pela janela e, na forma de um anel, acomodou-se no dedo da moça, que, 121
percebendo que se tratava de encanto, continuou a bordar. O gavião entrou em seguida, retomou a forma humana e dirigiu-se à moça: – Quer me vender esse anel? – Não posso! Foi presente de meu pai. – Por favor, vende! – O mestre insistiu. Temendo que o pai visse aquele homem em seu quarto, a moço cedeu, com muito pesar. Mas, ao retirar o anel do dedo, deixou-o escorregar e, para sua surpresa, ele se transformou numa grande quantidade de milho. Então o mestre tomou a forma de um galo e começou a comer os grãos. Entretanto, o grão no qual o menino havia se transformado ficou escondido debaixo do vestido da moça. Depois de ter comido todo o milho do quarto, o galo ainda olhou ao redor para ver se havia mais. Então, o último grão de milho, que era o menino, virou uma raposa e comeu o galo, retomando em seguida a forma humana. Aturdida com tanta magia, a moça exclamou: – E agora, o que é que eu faço com você aqui?! – Eu viro uma pedra e você me joga na rua. Assim que a moça atirou a pedra pela janela, o menino retomou a forma humana e, ferido, sentindo muitas dores, voltou à casa do pai. – Pai, olha como estou! O senhor não cumpriu nosso acordo. O mestre quase me matou! Assim que se recuperou dos ferimentos, o rapaz voltou para a cidade, onde algum tempo depois se casou com a viúva do mestre. Hoje ele vive lá, está rico e é conhecido por todos como o mestre do encanto.
Transcrito e adaptado por Adriana Ferreira de Melo (Oficina de Texto – FALE/UFMG).
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Jequitinhonha – música e vida Rubinho do Vale
Uma riqueza do Jequitinhonha foi descoberta há mais de 250 anos pelos caçadores de pedras preciosas, ouro e diamante; e o rio ao longo desse tempo quase morre de sede, como disse o poeta. Há mais de 150 anos outra riqueza do Jequitinhonha foi descoberta pelos caçadores de fazendas de gado, derrubadores de matas e perseguidores de índios. Há 50 anos mais uma riqueza do Jequitinhonha foi descoberta pelas usinas metalúrgicas, as caçadoras de carvão do eucalipto que tomaram conta de uma imensidão sem fim de chapada. Há 50 anos a riqueza da mão de obra barata dos pobres do Vale foi descoberta pelos caçadores de gente, os gatos, compradores do suor semiescravo que foi ser derramado nas usinas e plantações de São Paulo e Mato Grosso. As riquezas dos rios e das pedras, da terra e do pasto, do carvão e da mão de obra barata não conseguiram impedir o surgimento das viúvas de maridos vivos,1 das andorinhas nem de lá nem de cá,2 mas também não conseguiram conter a verve dos poetas do barro, dos tambores, das violas e das palavras. Então, há 40 anos uma nova riqueza começa a aflorar, a ser descoberta e despertada, vindo à tona pelas mãos dos artesãos e trovadores, em versos, peças, melodias de rezas e batuques. Índios deixaram suas marcas nas Bandas de Taquaras e dos Coquís, tão distantes na geografia e tão próximos na história. Há 200 anos negros de Minas Novas festejam sua fé em Nossa Senhora do Rosário cantando e tocando tambores pelas ruas da cidade. Assim também acontece em Araçuaí, Serro e outros lugares. A música do Vale, como boa parte da música do mundo, tem um forte traço religioso. Se quem canta seus males espanta, quem canta reza duas vezes, quem reza busca Deus e, se Deus liberta, então quem canta liberta. 1 - Viúvas de maridos vivos: mulheres que ficam no Vale enquanto os maridos trabalham nos canaviais de São Paulo e outros estados. 2 - As andorinhas nem lá, nem cá: documentário baseado na pesquisa da prof. dra. Maria Aparecida de Moraes Silva, sobre a situação social dos camponeses migrantes do Vale do Jequitinhonha para o corte de cana na região de Ribeirão Preto, em São Paulo.
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Deve ser por isso que modinha e seresta, beira-mar e batuque resistem, sobrevivem e se projetam em corais, cantadores e cantadeiras do Vale do Jequitinhonha. Certamente a arte liberta e o homem nasceu para ser livre e feliz. Trago comigo uma perplexidade quando procuro entender como a história de um povo, marcada por agressões, fugas e até mesmo guerras, pode gerar uma memória tão suave, livre de rancores e uma cultura de paz como a que reina nas cercanias do Jequitinhonha. Eis a riqueza do Jequitinhonha que precisa ser mais conhecida e amada, principalmente pelo povo do Vale, divulgada por quem tem acesso aos meios de divulgação, cultuada por quem compreende a profundidade de uma obra de arte e mais respeitada por quem deveria protegê-la e, pelo contrário, tenta amordaçá-la com a fragilidade da sua própria couraça ou cegá-la com as vendas de uma cultura alienante, massificada e passageira. Eis a riqueza, para mim, mais bela do Jequitinhonha, abstrata e concreta, resistente e frágil, que brota de livre e espontânea vontade, como resultado da mesma mistura que formou a rica diversidade da cultura brasileira. Riqueza construída por um processo lento, através de séculos, que não pode ser tratada como mero objeto de decoração, embora muitas vezes seja decorativa, que deve ser estudada, mas também retribuída por quem tem o Vale como fonte de pesquisa. Deve haver retribuição ao desprendimento dos construtores de um saber que muitos querem saber. A música do Jequitinhonha ou a musicalidade do Jequitinhonha está inserida nesse movimento antigo e moderno que vem sendo observado por simpatizantes e pesquisadores. Eu sou um simples observador que vem há mais de 30 anos viajando pelo Vale, tentando conhecer o indecifrável. É comum a divulgação da música do Vale focada nos artistas, compositores e cantores que têm acesso aos meios de comunicação, que moram em cidades grandes e fazem shows e sucesso. Prefiro pensar na música do Jequitinhonha voltando meu olhar para o canto do povo, dos negros do Rosário e dos foliões de Reis, dos corais de Araçuaí, Itaobim, Itinga, Virgem da Lapa, Veredinha, etc. Estes fazem uma música que me agrada muito, é coletiva, é de resistência, que denuncia preconceitos e explorações e chama o povo para se ajuntar porque se não a cultura morre. E, se morrer, morre parte da história e morre o próprio povo. Como diz Frei Chico, cultura é vida, canta-se quando nasce, canta-se para viver e canta-se também para morrer. A cultura não morre de morte morrida, pois quando morre um mestre seus ensinamentos ficam. O que mata a cultura é a doença da alienação que a indústria cultural tenta incutir na mente de todos nós. 124
Mas no Vale tem Lucianos, Tadeus, Liras e tantas pessoas instrumentos de transformação e instrumentista da cidadania, espalhadas por todos os lugares, e isso nos dá esperança. Incentiva os novos e dá reconhecimento aos mais velhos. A música do Jequitinhonha é uma mistura que vem de portugueses, índios e africanos, paulistas, mineiros e baianos, tropeiros, canoeiros e vaqueiros. Avião subiu Subiu Avião desceu Desceu Veio dar notícia ao Brasil Que a Alemanha Perdeu
Quem ensinou esse canto para D. Generosa para ela ensinar ao Frei Chico? E quem ensinou para quem ensinou D. Generosa? Aprendi dançar Vilão, aprendi dançar Vilão Não foi nessa terra não, não foi nessa terra não Aprendi com a alemoa, aprendi com a alemoa Da terra dos alemão, da terra dos alemão
Se isso fosse cantado no Sul do Brasil, talvez seria mais compreensível, mas no Vale... Um detalhe, na região de Teófilo Otoni, Vale do Mucuri, tem muitos alemães, em Rubim tem uma família descendente de alemães. É assim, uma cantiga popular viaja o mundo. Ninguém sabe quem inventou, onde e quando. Alguém inventou, mas não tem dono. É do mundo, é do povo, é minha, é sua, é de todos e não é de ninguém. Acho que é de Deus, é da natureza, é como a água, o sol, as estrelas, as flores, as palavras. E as melodias brotam, brilham, e assim brilha e navega a cultura do Jequitinhonha. Beira-mar da Lira Beira-mar novo, ei, morena Eu sozinho é quem sabia Esta lira vai, baiana Eu sozinho é quem sabia Esta lira vai, baiana. Ai, ai 125
Aprendi com os canoeiros, ei, morena Lá no largo da Vigia, esta lira vai, baiana Lá no largo da Vigia, esta lira vai, baiana. Ai, ai...
Vigia é Almenara, está por ali, e o Ceará? Samba dos três rapazes Ai, baiana Tua despedida é que me fez chorar Ai, baiana Tua despedida é que me fez chorar Bate o pandeiro, violão e a caixa Agora o samba vai recomeçar Bate o pandeiro, violão e a caixa Agora o samba vai recomeçar É o samba dos três rapazes Toada do samba do Ceará É o samba dos três rapazes Toada do samba do Ceará (Da pesquisa de Luciano e do coral Araras Grandes de Araçuaí) Beira-mar Beira-mar beira-mar novo Foi só eu é quem cantei o beira-mar Adeus, dona Adeus riacho de areia Rio abaixo, rio acima, tudo isso eu já andei Ô beira-mar Adeus, dona; adeus, riacho de areia Procurando amor de longe que o de perto eu já deixei Ô beira-mar Adeus, dona; adeus, riacho de areia (Da pesquisa de Frei Chico e Lira Marques)
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Certamente, Frei Chico e Lira Marques aprenderam essa cantiga nos arredores de Araçuaí. O velho Pinaco, um trovador de Rubim, no Baixo Jequitinhonha, canta um “Beira-mar” bem parecido com este. Mais adiante vou falar desse cantador. O poeta Geovane Figueiredo, conhecido como Nenguinha, um trovador de Jordânia, cidade do Baixo Jequitinhonha, morreu recentemente e deixou uma obra musical interessante, forte, lúdica e às vezes triste. Eu tive a honra de produzir um CD com parte de sua obra, no qual vários cantores da região interpretaram suas canções. Ele me falou de um canoeiro afamado que saía de Belmonte e subia até Araçuaí. Levando canoa cheia e trazendo canoa cheia. Era Tatalô, moço forte, bonito e conquistador. Veja que pérola ele compôs para descrever Tatalô. Despedida (Beira-mar de Tatalô) Geovane Figueiredo Adeus, morena! Eu vou embora Adeus, morena! Eu vou embora Adeus, até outro dia êê Eu quero ser canoeiro Vou levar minha canoa lá pras bandas do sequeiro Se você quiser ir comigo enfrento qualquer perigo Amor não custa dinheiro Eeeeeeeeeeee No Vale do Jequitinhonha, no Vale do Jequitinhonha Onde a canoa gemia Deslizando mansamente lá pras bandas da Bahia Belmonte, Canavieira, adeus, morena trigueira! Adeus, até outro dia Eeeeeeeeeeeeeee Tatalô na sua canoa, Tatalô na sua canoa Quando cantava beira-mar Mulher solteira fugia, as casadas só não ia Com medo de apanhar Eeeeeeeeee Belmonte, Canavieira Adeus, morena trigueira! Mascote e Jacarandá Eeeeeeeeeeeee
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É de Geovane a música “Jequitinhonha”, com seu parceiro Carlos Dobêla, do Salto da Divisa, que hoje mora em Eunápolis, na Bahia. Jequitinhonha Carlos Dobêla e Geovane Figueiredo Jequitinhonha, eu conheço a sua história Tá na memória, vou contar pro mundo ouvir Do olho d’água onde tudo principia Ligando Minas-Bahia vai descendo por aí Seu leito é rico, tem imensos cabedais Seu vale é lindo, tem riquezas e muito mais As cachoeiras lá no salto da Divisa Eram lindas maravilhas que ficaram nos anais Tombo da Regeira, Canta-galo e da Neblina Jequitinhonha, sua história me fascina Tombo da Regeira, Canta-galo e da Neblina Jequitinhonha, cachoeira me fascina Jequitinhonha dos mistérios e da poesia Das balsas, das travessias, das lendas e livusias Havia uma luz que se apagava e se acendia Vovô disse é cabedal, mistérios, vovó dizia É livusia Santo-Nego? É cabedal Maria! Jequitinhonha que fascina e arrepia Tombo da Regeira, Canta-galo e da Neblina Jequitinhonha, sua história me fascina Tombo da Rejeira, Canta-galo e da Neblina Jequitinhonha, cachoeira me fascina Jequitinhonha entre vales e colinas Deslizando entre as campinas Cidades, vilas e prados Em cada porto uma lenda, uma história Que ficará na memória dos lindos anos dourados
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É livusia Santo-Nego? É cabedal Maria! Jequitinhonha que fascina e arrepia Tombo da Regeira, Canta-galo e da Neblina Jequitinhonha, sua história me fascina Tombo da Regeira, Canta-galo e da Neblina Jequitinhonha, cachoeira me fascina
Os tropeiros vieram das regiões das minas, pela Estrada Real, até o Serro Frio. Os tropeiros de Itamarandiba, Berilo, cruzavam as chapadas com destino a Diamantina, Montes Claros e Teófilo Otoni. Outros tropeiros vieram da Bahia, região de Vitória da Conquista, Jussiape, para Rubim, Almenara, Jacinto e outras paragens. Eu até conheci alguns desses tropeiros, todos viraram boiadeiros e fazendeiros, compradores e vendedores de gado. Lembro-me de outros tropeiros da minha infância, tinham poucos burros, às vezes faziam arrancharia próximo da minha casa. Deve ser por isso que a cantiga “Tropeiro” cantada pelos Trovadores do Vale me encantou tanto, cheguei a fazer uns versos para ela. Tropeiro Adaptação de Rubinho do Vale Você me chamou tropeiro Eu não sou tropeiro não Sou arrieiro da tropa, Marcolino O tropeiro é meu patrão Os tropeiros vêm chegando Vêm pedindo arrancharia Chama o dono da fazenda, Marcolino Pra ouvir nossa cantoria Mantimentos e tecidos Nossa tropa vem trazendo Milho, arroz, feijão, farinha, Marcolino Sal, açúcar e querosene
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Nossa tropa pega a estrada Vai na frente o madrinheiro O sincerro já cantou, Marcolino Vamos viajar o dia inteiro Viva os tropeiros e as tropas Nos tempos de temporais Rio cheio é perigoso, Marcolino Deus proteje os animais
Esse movimento dos tropeiros me remete ao compositor baiano Elomar Figueira de Melo, cuja obra exerce influência em muitos compositores do Vale. Há uma grande ligação do linguajar dialetal de Elomar com o canto e a vida do povo Jequitinhonha. Embora a obra de Elomar use um palavreado mais arcaico, muito do que relata no seu cancioneiro parece se passar nas quebradas do Jequitinhonha, no árido sertão de Virgem da Lapa ou nas parambeiras,3 roças e brejos da minha infância na fazenda Boa Esperança, Bom Jardim do Jacinto. Eu não tenho a categoria, catiguria ou cartilogência, como diz o jequitinhonhês de Tadeu Martins, para discutir a vernaculidade elomariana, nem conhecimento linguístico para me aprofundar no universo desse compositor, mas como apreciador e gostador de tudo que fala do meu sertão, muita coisa da música de Elomar me encanta e me faz construir uma ponte, uma ligação pequena, um mata-burro provisório numa estrada Definitiva 4 entre Minas e Bahia, ou passadiço entre dois quintais de culturas parecidas. É um tanto arriscoso fazer comparações, mas muita coisa me chama a atenção na obra de Elomar. Nomes dos vaqueiros, comidas, serviços, crenças, várias passagens me transportam para o mundo dos violeiros da minha infância. Quero relatar aqui a ligação de uma música desse compositor com uma cantiga do velho Pinaco, o trovador de Rubim de que falei anteriormente. A música de Elomar fala de um amor e de um cantador que tem medo de cantar parcela porque é perigosa e o sujeito pode morrer cantando ela.
3 - Parambeiras: pirambeiras, perambeiras ou precipícios. 4 - Definitiva: estrada que liga Diamantina a Salto da Divisa e Porto Seguro (BA).
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Tropeiro Elomar Eu sô cantadô de coco Eu num canto parcela Parcela é feiticêra Eu corro as légua dela Ai, ai, ai, ai, Chegano num lugá Adonde têja ela Eu vô me adisculpano E dano nas canela Daindá, daindá, daindá Cunhici um cantadô Distimido e valente Qui mangava do amô E zombava a fé dos crentes Mais um dia ele topô Nos batente dua jinela Com o bicho do amô Mucama pomba e donzela E o cantadô aos poco Foi se paxonano pru ela Inté qui um dia ficô lôco De tanto cantá parcela E hoje véve pela istrada Rismungano qui a culpada Foi a mucama da jinela Daindá, daindá, daindá Eu sô cantadô de coco Apois quem canta parcela Corre um risco São Francisco Morre doido cantano ela Daindá, daindá, daindá (Fragmentos do 5º canto: Das Violas da Morte, do Auto da Catingueira)
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Certo dia, o velho Pinaco cantou para mim uma cantiga e disse: isso é uma parcela. E falava da morte. A morte chegou numa casa Domínio público - Adaptação Pinaco Eu vou m’imbora daqui, quero sair avoando Mas a morte chegou numa casa Não quero que ninguém fale q’eu saí daqui chorando Mas a morte chegou numa casa matando sem dá trabai E eu conheço o ferreira pela pancada do mai Mas ocês magina e pensa vai doer na consciênça Que daqui hoje eu não sai Quem mata os outros vai preso, a morte mata e num vai Sinhora dona dos ovos, cê me vende ou me dá um Mas a morte chegou numa casa Que eu estou de amor novo não posso andar de jejum Mas a morte chegou numa casa matando sem dá trabaio Eu conheço o ferreira pela pancada do mai Mas ocês magina e pensa vai doer na consciênça Que daqui hoje eu não sai Quem mata os outros vai preso, a morte mata e num vai Lá vai uma lá vai duas lá vai três pelas primeira Mas a morte chegou numa casa Lá vai quatro lá vai cinco lá vai seis por derradeira Mas a morte chegou numa casa matando sem dá trabaio E eu conheço o ferreira pela pancada do mai Mas ocês magina e pensa vai doer na consciênça Que daqui hoje eu não sai Quem mata os outros vai preso, a morte mata e num vai
Tem uma composição de Pinaco em que ele sai da lógica da rima e da métrica, muda totalmente de assunto, precisa fechar o verso, é um típico artesão das palavras, e entra quase no surrealismo do mestre Ulisses Pereira de Caraí.
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O Col de Mel (O Collor de Mello) Pinaco O Col de Mel prometeu se Deus mandasse chuva Ia fazer um bom salário pra aposentado, pensionista e viúva A Gameleira é dos Machado, Gira Mundo é Costa Abreu Mas Col de Mel prometeu se Deus mandasse chuva Eu correndo um boi preto montado no meu cavalo Ele ia fazer um bom salário pra aposentado, pensionista e viúva Se a conversa fosse certa o Brasil ia virar uma uva O presidente Col de Mel mas é um nobre cidadão Ele tem uma bala no rife pra atirar na inflação Mas eu dou o doce depois dou o fel O presidente Col de Mel é um nobre cidadão Não pode comprar o boi pelo tamanho do chifre Pra atirar na inflação ele adotou a miséria e atirou na nação Col de Mel presidente é home do pé ligeiro Ele armou uma cilada pra pegar os fazendeiro Ainda sendo valentão na hora de morrer sente Col de Mel presidente é home do pé ligeiro Noite é melhor de que dia pra quem anda de massada Ele armou uma cilada pra pegar os fazendeiro E deu uma volta nos banco e bloqueou todo o dinheiro
O credo da cachaça revela com bom humor a proximidade do profano com o sagrado e uma boa reza ajuda a cachaça a descer melhor. Credo da cachaça Pinaco Eu creio em Deus pai da cachaça feita do pau da cana Nascida no frio da terra e criada no sol Padeceu no facão, foi morta no engenho Sepultada no coxo Sob os poder da lata desceu ao inferno do alambique E subiu os céus do capelo Cachaça! Com oito dia de feita queira receber senhor bucho? Recebo sim, senhor. Então entra e sai sem dá trabai 133
Com dinheiro de papel e moeda de prata Rosa me leva saudade me mata Feita nessa freguesia de Catajás Deixando o que Deus fez desmanchado Judiando com o juízo dos próximos, amém Pelo sinal do bico real Só não bebo mais que me faz mal Com essa mão eu pego no copo, com a outra eu levo na boca Só não bebo mais que a cachaça é pouca Quando nasce o povo canta, quando batiza o povo canta Quando trabalha o povo canta e quando sofre o povo canta Quando casa o povo canta e quando morre o povo canta
“Meu avô contou pro meu pai que contou pra mim, eu conto pro meu filho que vai contar pro filho dele”, diz o índio Maxacali. Já ouvi isso na música de Carlos Farias, Bilora e outros cantadores do Mucuri. As meninas cantadeiras dos corais também dizem: “Minha bisavó era índia, pegaram ela no laço e meu bisavô era escravo”. O canto que canta hoje veio dos seus antepassados e essas cantadeiras vão deixar para seus filhos, netos e bisnetos. Os cantos de trabalho estão presentes na hora do trabalho, na hora da festa e da cantoria. Do boiadeiro, do tropeiro, do canoeiro, etc. Conoeiro Cantada pelo coral Trovadores do Vale – de Araçuaí. Canoeiro, canoeiro Que que trouxe na canoa Trouxe ouro e trouxe prata, trouxe muita coisa boa Quem não me conhece chora, Miquelina ei Que fará quem me quer bem, Miquelina ei Sou negociante, sou principiante Comprador de ouro e diamante Tanto eu compro ouro como compro gado Só não dou dinheiro porque não tem trocado
No vale a fé se mistura com a farra. Novamente o profano e o sagrado juntos. O coral Nossa Senhora do Rosário canta: 134
Levantei de madrugada pra varrer a Conceição Encontrei Nossa Senhora com seu raminho na mão Eu pedi ela um raminho, ela me disse que não Eu tornei a lhe pedir, ela me deu seu cordão...
O mesmo coral também canta: Ô Dona da casa, que tem pra me dá? Garrafa de pinga e docim de araçá.
Quando morre alguém na roça, a sentinela é movimentada, principalmente se a família do finado tem um pouco de gado, porco e galinha no terreiro. Enquanto uns rezam e outros choram dentro de casa, o namoro, a farofa e a cachaça correm frouxos lá fora. O dono da casa que receber uma folia deve ter preparado os biscoitos, café, bolo e até jantar, sem esquecer a oferta, que pode ser desde um pouco de dinheiro, leitoa, até um bezerro, para o leilão no dia da festa. Agora, se não tiver algumas rodadas de pinga da boa para os foliões depois do Reis, ou seja, depois da reza, aí é desfeita das grandes. Mas como sempre tem algumas rodadas da água que boi não bebe, a folia anima cada casa e segue sua estrada, cantando para Deus menino, sem perder a fé, mas de olho na farra também. Do Vale veio o canto de Déa Trancoso e a viola de Wilson Dias, o canto de Célia Mara que faz sucesso na Europa e a bossa nova de Wesley Pioest que pouca gente conhece; ele ficou mais com a poesia. Veio também as canções engajadas e corajosas de Gonzaga Medeiros como “No Jequi tem onha” e “Pega a faca, Jesus” – essa do primeiro Festivale e a outra gravada por mim no meu primeiro LP, em 1982. Desse poeta registro aqui a música “Sonho de ouro”, da qual sou meio parceiro e que poderia ter sido feita n’outros tempos em Diamantina. Sonho de ouro São pedras são Minas Gerais Diamantinas São gemas tão raras e joias tão finas O ouro no ventre do solo Fortuna no parto das minas O brilho nos olhos dos homens, faceiras meninas
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São pedras brotando do ventre do chão Jorrando das veias de minha ilusão É o brilho do sol no lençol Forrando a esperança no meu coração O mundo debaixo dos pés do garimpeiro-peão A estrela de ouro brilhando na testa Luzindo o caminho que ainda me resta Garimpar pelas minas da vida Brincos de ouro e diamante Enfeitar a mulher dos meus sonhos Meu lindo brilhante
Numa outra vertente, acompanhando a mídia que não era tão agressiva quanto hoje, o Vale do Jequitinhonha teve muitos conjuntos de baile influenciados pela música de sucesso do rádio. Bons instrumentistas e compositores surgiram desse movimento nos anos 1960. Quero citar o conjunto Os Caras de Pau, formado por músicos de Almenara, Jequitinhonha e Joaima, do qual fez parte o compositor e produtor musical Eustáquio Sena, que foi parceiro de Paulo Sérgio, ídolo da Jovem Guarda. Eustáquio chegou a ser diretor da Som Livre, da Rede Globo. Também foi desse conjunto um excelente guitarrista, Luizinho, que tocou durante anos nos bares de Belo Horizonte, ex-funcionário da Escola de Química da UFMG. Festivais aconteceram nessa época com a roupagem desse tempo. Em 1972, um grande festival com convidados nacionais aconteceu em Pedra Azul, organizado por Saulo Muniz, da dupla Tom e Salim. Tom é Heitor de Pedra Azul, que mora hoje na França; e Salim é Saulo Laranjeira. No mesmo ano aconteceu em Almenara um importante Festival da Canção, com participação de Paulinho Morais, hoje Paulinho Pedra Azul. Jurmel Dutra, da cidade de Rubim, foi o vencedor desse festival. Jurmel foi para São Paulo tentar a carreira, enfrentou as pressões e dificuldades do mundo artístico e morreu em 1975 naquela cidade. Nildo e Foca Sena participaram das bandas Arco-Íris e Os Humildes, de Almenara, fizeram muitos bailes e belas apresentações na região, montaram o espetáculo Homens do Sol, com projeções de imagens da cultura do Jequitinhonha e paisagens da região. Em 1989, aconteceu em Itaobim o encontro de compositores do Vale do Jequitinhonha, Procurados, dizia Tadeu Martins e outros idealizadores do encontro, “eles são procurados porque fazem música no Vale do Jequitinhonha 136
e são desconhecidos do grande público”. Em tempos de ditadura militar, perseguição de comunistas e de quem levantasse a voz contra o regime, o cartaz dos Procurados chamou a atenção e fez de Itaobim uma referência cultural. Lá aconteceu o primeiro Festivale, o terceiro e vai acontecer o trigésimo em 2012. O show Onhas do Jequi, no Grande Teatro do Palácio das Artes, em Belo Horizonte, em 1984, contribuiu para divulgar nomes como Paulinho Pedra Azul, Saulo Laranjeira, Tadeu Franco, Frei Chico, Lira Marques, Gonzaga Medeiros e eu. É marcante a presença do rio e da terra, do trabalho e das lutas, dos sonhos e esperanças do povo do Vale nas canções dos seus artistas. Muitos compositores saudaram e continuam saudando o Jequitinhonha nas suas canções. Destaco aqui algumas músicas: • “O rio e o Vale”, de Luciano Camargo, da cidade de Medina, que morreu recentemente. • “Despertar”, do letrista e cordelista Tadeu Martins e da qual sou parceiro. • “Jequitivale”, de Mark Gladston, Verono, compositor e cantor de Minas Novas. Esse artista também foi embora antes do combinado, como diz Rolando Boldrim. • “No jequi tem onha”, de Gonzaga Medeiros. Essas canções revelam a intensidade das poesias musicais dos artistas do Vale, pessoas comprometidas com a cultura e com a vida do povo. O rio e o vale Luciano Camargo Jequitinhonha que nasce em Diamantina Corre pelo vale e chega até o mar Trazendo esperança ao Vale terra santa, Jequitinhonha Diamantina, Itaporé, Itinga, Itaobim, Jequitinhonha Almenara, Salto da Divisa, corta a 101, Jequitinhonha Ê canoeiro, ê canoa Vamos navegar
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Vale do amor, minha paixão Jequitinhonha, tu és canção O Rio e o Vale, o Vale e o Rio Jequitinhonha, tu és Brasil Ê canoeiro, ê canoa Vamos navegar
Despertar Tadeu Martins e Rubinho do Vale São 52 cidades perdidas no sertão mineiro Terra esquecida Terra explorada Altar da superstição e riquezas, pedras que brotam do chão Ribuçado de sangue e beleza De suor, de alegria e tristeza De esperança, de força e firmeza Olha um povo trabalhador Que começa a despertar e sonha Lutar pela libertação da terra do sol Acorda, Jequitinhonha Chá de jalapa pro sangue Chá de São Caetano pra abortar Chá de raça e coragem Pra tornar verdadeiro esse sonho De liberdade e vida
Jequitivale Mark Gladston - Verono Você que anda com o pé rachado E com a palha atrás da orelha 138
Com a aba do chapéu na testa E se vira da noite pro dia Você que banha no Fanado E que tira ouro de bateia Que faz da vida uma festa E adora falar poesia Desculpe, seu doutor Mas receba os cumprimentos meus Eu fico com a filosofia Do mestre João de Deus A saudade me maltrata E me faz olhar no calendário Pra ver se faltam poucos dias Pra ouvir o tambor do rosário Vale que vale cantar Vale que vale viver Vale do Jequitinhonha Vale, eu amo você
No jequi tem onha Gonzaga Medeiros Conta, conta, cantador Conta a história que eu pedi Dizem que o jequi tem onha Conta as onhas do jequi Este vale fedeu biba No tempo dos coronéis Era uma vez “Vai Torano” “Fortaleza” e “Quartéis” Os dedos caíram todos Mas ainda vivem os anéis Sua vó é feiticeira Passa n’água sem molhar Quero ver a sua vó Uma água benta passar 139
Pra curar as chagas mil Corroendo esse lugar Justiça no Vale é tanta Como a carne nos pastéis Com milhões, gato pingado E um milhão só tem mil réis E o povo espera sentado Pela inversão dos papéis Aqui tem, dizem todos Um dente de coelho Tem cabeça de porco enterrada aqui No jequi tem um peixe É o tal peixe-boi Chifrando, estraçalhando A taquara do jequi... Tinhonha No jequi tem, no jequi tem No jequi tem onha No meio das onhas do jequi Tem muita vergonha
Um importante projeto foi feito recentemente, com o nome de Nosso canto Vale mais Jequitinhonha, contendo um CD com 300 músicas de 40 artistas, quase todos do Jequitinhonha, uma revista com informações sobre cada artista, coordenado por Neilton Lima, produção do Vale Mais – Instituto Sociocultural do Jequitinhonha – através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura, com apoio do Polo Jequitinhonha UFMG. O projeto encaminhou esse material para muitas rádios da região. Dos cânticos das Lavadeiras de Almenara e dos corais de Araçuaí ao Saulo Laranjeira, passando por Zeca Colares, violeiro de Botumirim radicado em São Paulo; pela sofisticada composição de Arlindo Maciel, de Minas Novas; o cantor e compositor Dr. Vagner Santos, de Rubim e professor da Escola de Odontologia da UFMG; até desaguar na bela música contemporânea de Pedro Morais, de Belo Horizonte, mas que tem um pé em Minas Novas. Não posso deixar de citar o belo LP Notas de viagem do Jequtitinhonha, de Leri Faria e Melão, de Uberaba e Belo Horizonte, respectivamente. Esse 140
disco foi feito através do Projeto Jequitinhonha, um grupo de artistas de várias áreas viajou pelo Jequitinhonha em 1979 e produziu, além desse disco, filme, telas, livros, com destaque para a participação do poeta Adão Ventura, da cidade do Serro. É um tanto quanto complexo escrever sobre a música do Jequitinhonha, pois importantes movimentos musicais bem anteriores a esses aconteceram na região, desde a música erudita de orquestra e bandas de Diamantina, Serro, Minas Novas, dos tempos áureos da mineração, música essencialmente religiosa, até as serestas que hoje embalam as vesperatas em Diamantina. Não somente essa parte mais antiga e erudita, como também a música popular e folclórica do Jequitinhonha vem sendo estudada por pesquisadores, historiadores, antropólogos e folcloristas, como Frei Chico, prof. José Moreira de Souza e Tadeu Oliveira. Quero mergulhar na poesia de Cláudio Bento (Jequitinhonha), Mariana Botelho (Padre Paraíso), Wesley Pioest (Rubim), no “Fanadês Jequitinhonhês Minerês” de Carlos Mota (Minas Novas), nos violões de Rubens Espíndola (Joaíma), Ivo Pereira (Diamantina) e Miguel Mota (Rubim), nos tambores de Araçuaí, Minas Novas, Serro e outras serras. E, mesmo sem entender, muito menos querer explicar de onde vem o poder criativo desse povo, poder cantar melhor e honrar essa terra chamada Jequitinhonha. E vou, como diz o Geraldo Vandré: Os amores na mente As flores no chão A certeza na frente A história na mão Caminhando e cantando E seguindo a canção Aprendendo e ensinando Uma nova lição
Tudo que faço aqui pode ser nada mais que hipóteses e conjecturas. Datas não são tão corretas e também não posso ser acadêmico. Fui apenas deixando fluir o que vinha na minha memória desses anos dourados, uns vividos, outros escutados e, como um contador de causos, tentei contar-lhes algumas histórias. Agradeço aos amigos e amigas do Polo Jequitinhonha da UFMG pelo convite para participar deste Visões do Vale e pela oportunidade de me fazer rememorar, repensar e refletir sobre a minha função de artista e cidadão. 141
Encerro aqui meus riscos e rabiscos com um trecho do poeta Gonzaga Medeiros, o mesmo que disse “o rio morre de sede” e outras pérolas poéticas: Nós somos o Vale Nós valemos mais pelo que somos e menos pelo que temos. Valendo assim e assim sendo, sempre valeremos.
Belo Horizonte, outubro de 2011
Rubinho do Vale é compositor e cantor da cidade de Rubim. Nasceu na roça, na região do Bom Jardim, município de Jacinto. Estudou Engenharia Geológica na Escola de Minas da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), mas não concluiu o curso. Foi estudar sua terra por outros ângulos e aspectos. Gravou o primeiro LP em 1982 e hoje tem vários discos lançados, sendo alguns dedicados às crianças. O Vale do Jequitinhonha é sua maior fonte de inspiração. Em dezembro de 2003, recebeu do ministro da Cultura Gilberto Gil e do presidente Lula a Medalha da Ordem do Mérito Cultural. Esta é a maior condecoração do governo brasileiro aos artistas e intelectuais do Brasil pelo reconhecimento da sua obra.
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Uma visão teatral do Vale Fernando Limoeiro Aos meus alunos e companheiros do Vale.
Mais do que uma análise e uma visão, este texto é um depoimento. Sempre fui e sempre serei um homem a serviço do teatro e que faz um teatro a serviço do homem e da história. O palco é meu circo mágico e minha tribuna; o que nele enceno é por necessidade, por cidadania plena, sem jamais perder a poesia e o crivo da estética. Meus atores estão nas favelas, nos sertões, nas pequenas cidades do interior do Nordeste, de Minas, do Brasil. Gente que quer aperfeiçoar a expressividade e tem fome e desejo de expor sua criatividade, mas não tem acesso ao conhecimento básico das técnicas de representação. Artistas que precisam tomar consciência de que é preciso potencializar seu corpo e sua voz, posto que o corpo, a voz e a energia cotidianos não servem para a arte teatral. Para eles e por eles fui além das salas de aula da universidade e me tornei professor e aprendiz. Vim de uma formação de teatro popular de mobilização, buscando instigar a cidadania plena no agreste de Pernambuco, e até hoje, como coordenador do Programa Polos de Cidadania, em que dirijo a Trupe a Torto e a Direito, venho fazendo um teatro com esta função estética e política. Seguindo o postulado do grande Bertolt Brecht: “educar divertindo e divertir educando”. Foi este perfil que me levou ao Vale, onde permaneço atuando até hoje. Minha trajetória como homem de teatro no Vale começou no início dos anos 1980, nas importantes Jornadas Culturais de Capelinha, atendendo ao convite da agitadora cultural Geralda (Preta), estende-se por vários Festivales e chega até hoje com a implantação do Teatro de Bonecos Popular Brasileiro Mamulengo, com o Grupo Murion de Padre Paraíso. Em todo esse tempo, não fiz outra coisa a não ser trocar e levar meus conhecimentos como professor de improvisação e interpretação teatral do Centro Teatro Universitário da Universidade Federal de Minas Gerais (TU-UFMG) para todos aqueles que usavam o palco como seu meio de expressão. Sem um mínimo de conhecimento técnico, a manifestação teatral perde em conteúdo e forma. Minha preocupação central sempre foi a de conscientizar a necessidade da disciplina, ética e técnicas básicas, para o florescimento e maior aproveitamento do talento e da criatividade latentes nos artistas amadores e profissionais de teatro dessa região tão rica em 143
manifestações artísticas e folclóricas. É ideologicamente prazeroso saber do efeito multiplicador que se pode obter num trabalho desta natureza. Como homem formador de artistas para o sagrado e árduo ofício teatral, sempre fui muito rigoroso nos meus cursos intensivos, extraindo e obtendo desses jovens o melhor, para não dizer o mais surpreendente resultado. Motivados, muitos desses jovens vieram buscar formação teatral no TU-UFMG e demais escolas de teatro de Belo Horizonte. Minha fama de mestre durão e exigente muitas vezes foi confundida com prepotência; é que o rigor incomoda (a começar pela pontualidade) e toda aprendizagem verdadeira nos tira da zona de conforto. Meu trabalho é o de lapidação, de extrair o melhor da expressividade e criatividade de cada aluno. É gratificante sentir nas aulas abertas os resultados da aprendizagem básica dominada pelos talentosos alunos do Vale em tão curto espaço de tempo, pois os cursos em sua grande maioria são intensivos (carga horária de 35 horas-aula). Para isso, é necessário trabalho duro e muitas vezes com críticas quase nunca confortáveis, mas visando sempre ao aperfeiçoamento. É desastroso para o teatro confundir amadorismo com falta de rigor cênico. Teatro pode e deve ser feito em qualquer espaço, mas sem nunca perder o conhecimento, a “artesania”, a criatividade e o rigor estético. Martelava e insisto nessa tomada de consciência em todos os meus cursos no Vale e Brasil afora. Só deve fazer teatro quem gosta de mergulhar na condição humana. Um grupo de teatro deve ser um espaço para cultura, criatividade, troca de conhecimento, exercício da disciplina e do comprometimento. Em todos estes anos como possível mestre, dramaturgo e encenador, tenho me movido pelas regiões mais carentes de Minas e do meu país. A Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Minas Gerais (PROEX-UFMG), através da mestra Maria das Dores Pimentel, companheira de luta na Campanha de Lixo e Cidadania, reconhece isto. Um trabalho desafiador com vários grupos de cidades do Vale, em que, partindo de um esquete básico, adaptávamos o texto para sua realidade e criávamos juntos um espetáculo de rua. Todos os grupos que participaram deste projeto nos deram grande retorno, comprovando o já reconhecido potencial criativo do Vale. Meus ex-alunos, os atuais e os futuros alunos sempre me dão a certeza de que vale a pena investir nesses jovens artistas e artesãos da cena. Talento e cantares enchem o Vale de poesia, é para eles e com eles que quero aprender, trocar e ensinar. Sinto que os corais com afinada musicalidade, com repertório abrangente, mas sem perder as raízes, adquiriram qualidade e forte teatralidade, assim como os espetáculos de vários grupos já apresentam um resultado cênico com notada evolução 144
técnica. Diz o poeta que “o artista tem que estar onde o povo está”. É isso que faço no Vale, enquanto me for permitido e me sentir útil, como agora, implementando o Teatro Popular de Bonecos, o Mamulengo, com o Murion. Em troca, vou aprendendo e me deliciando com os poetas, os demiurgos como mestre Antonio do Tambor, com atores, cantores e artesãos do Vale, que alimentam minha alma com a supremacia da beleza. É com eles que troco a aprendizagem do coração. E o que se aprende com o coração costuma permanecer.
Fernando Limoeiro é professor e diretor do Centro Teatro Universitário da UFMG e coordenador do Programa Polos de Cidadania da Faculdade de Direito da UFMG.
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Rio Jequitinhonha, Coronel Murta /Jequitinhonha
A CONSTRUÇÃO DE UM MOVIMENTO CULTURAL
Geraes : uma história do Jequitinhonha Tadeu Martins
Quero, em primeiro lugar, agradecer aos professores João Valdir e Marizinha Nogueira pelo convite para participar do seminário Visões do Vale, que tive a honra de acompanhar em edições anteriores. Eu sou de Itaobim, município situado no coração do Vale do Jequitinhonha, e fui convidado para falar sobre o Geraes, um dos mais importantes veículos de comunicação do Vale, que ajudou na organização política e cultural do povo da nossa região. Como sou contador de “causos”, vou começar contando uma pequena história. Na noite de 10 de abril de 1977, domingo de Páscoa, vários estudantes que foram passar a Semana Santa em Itaobim tentaram viajar para Belo Horizonte. A empresa Gontijo tinha as linhas Salto da Divisa/Belo Horizonte e Almenara/Belo Horizonte, insuficientes para atender a demanda do Médio e Baixo Jequitinhonha. Nos feriados prolongados como Carnaval, Semana Santa, 7 de Setembro, Natal e Réveillon, os ônibus saíam lotados das duas cidades e nunca sobravam lugares para quem estava em Jequitinhonha, Itaobim ou Padre Paraíso. Viajar dessas três cidades para Belo Horizonte era uma verdadeira maratona. Tínhamos de fazer um “pinga-pinga” até Teófilo Otoni, de Teófilo Otoni a Governador Valadares e dali a Belo Horizonte, de ônibus ou de trem. A viagem podia durar bem mais de 24 horas. Naquela noite, não conseguimos viajar. Na manhã de segunda-feira, 11 de abril de 1977, Aurélio Silby, José Alberto e eu viajamos de Itaobim para Teófilo Otoni, almoçamos em Teófilo Otoni, viajamos à tarde para Governador Valadares e conseguimos viajar de trem para Belo Horizonte, onde chegamos no dia 12 de abril. Aurélio Silby estudava Economia na PUC Minas, trabalhava na Caixa Econômica Federal e era presidente do Diretório Acadêmico de Economia da PUC Minas. José Alberto, o Zé Lobo, estudava em cursinho pré-vestibular e trabalhava na Construtora M. Roscoe. Eu estudava Engenharia Química na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), era professor de Química em cursos pré-vestibulares e militante do movimento estudantil, com trabalhos prestados ao Grêmio da Engenharia Química, ao Diretório Acadêmico da Engenharia e ao Diretório Central dos Estudantes da UFMG, principalmente na área cultural. Naquela demorada viagem de volta para Belo Horizonte, conversamos muito sobre a triste realidade do Vale do Jequitinhonha, conhecido 148
apenas como Vale da Miséria, Vale da Fome ou Vale do Marcha a Ré. No balanço dos ônibus e do trem, foi arquitetada a ideia de se fundar alguma organização capaz de contribuir para o desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha. Era preciso criar uma forma de melhorar a comunicação entre as cidades, o que ajudaria a estabelecer instituições populares organizadas, como associações e sindicatos, e a reforçar o trabalho das poucas que já existiam, como alguns Sindicatos de Trabalhadores Rurais e a Associação dos Artesãos de Araçuaí. Um mês depois, em meados de maio de 1977, o Aurélio me procurou dizendo que havia conversado com George Abner, um pedra-azulense estudante de Jornalismo na PUC Minas, e que ele se interessou em conversar sobre o projeto. Aurélio e George eram militantes de uma organização política clandestina, o Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP). Em 29 de maio de 1977, um domingo, Aurélio, George e eu nos encontramos na casa do George, no bairro Prado. Ali discutimos a ideia de se criar um jornal que abordasse a situação política do Vale do Jequitinhonha e que circulasse em Itaobim e Pedra Azul. Saindo dali, procurei o pernambucano de Caruaru e filho adotivo de Itaobim Carlos Castilim Figueiredo, estudante de Sociologia na UFMG. Irrequieto e muito inteligente, Carlos estudou Medicina na UFMG, abandonou o curso depois de dois anos, passou no vestibular de Economia, estudou um ano e se transferiu para Sociologia. Anarquista por natureza, ele preferia descobrir o caminho fazendo a caminhada. Em junho de 1977, houve uma primeira reunião com os quatro que seriam os criadores do jornal Geraes, Aurélio, Carlos, George e eu. Era preciso arregimentar mais pessoas do Vale que estivessem dispostas a colaborar naquela caminhada. Convidei mais quatro itaobinenses que se animaram com a ideia: João Lefú, Julinho Soares, Zé Lobo e Jansen Chaves. Nos cursinhos onde eu lecionava, havia muitos alunos do Vale e consegui levar alguns deles para o Geraes. A primeira reunião mais ampla do grupo começou no Bar Veia Poética, na Rua Guajajaras, quase esquina com a Rua da Bahia, e foi encerrar no Bar New Hamburger, na Avenida Augusto de Lima com Espírito Santo. Naquela época, o Brasil vivia sob o regime do medo, uma ditadura militar implantada em 1º de abril de 1964, dura, cruel e assassina. A discussão política era proibida, as pessoas tinham medo de se envolver em qualquer movimento, todos sabiam de casos de prisão, tortura e até morte de estudantes que ousaram contestar a ditadura militar. Por isso, a primeira reunião foi aquém da nossa expectativa. Além dos nomes já citados aqui, outras pessoas participaram da reunião, mas a maioria se 149
comprometeu a colaborar desde que seus nomes não aparecessem em nenhum lugar no futuro jornal. Voltamos ao ponto de partida, apenas os quatro seriam os fundadores do veículo de comunicação e mais os colaboradores João Lefú, Zé Lobo e Jansen Chaves. Como os sonhos não podiam morrer, aproveitamos a reunião improdutiva para perceber que pessoas de outras cidades do Vale ficaram muito animadas com a ideia. Isso nos ajudou a ampliar os horizontes, sonhando com um jornal que circulasse não só em Itaobim e Pedra Azul, mas em várias cidades do Vale do Jequitinhonha. Era preciso escolher um nome para o jornal e cada um ficou de levar sugestões na reunião seguinte. Ela aconteceu em agosto de 1977 na casa de Carlos Castilim Figueiredo, no bairro Floresta. Aurélio, Carlos, George, Zé Lobo, Jansen e eu analisamos uma lista de 19 nomes, que eu e Jansen anotamos em um guardanapo de cozinha. Por maioria, foram escolhidos dois nomes para o futuro jornal: Queimada e O Jagunço. O George Abner não gostou dos nomes, alegando que “queimada” era prejudicial à terra e “jagunço” era uma realidade que o jornal lutaria para fazer sumir da nossa região. Alguns dias depois, inspirado pelo LP de Milton Nascimento, George sugeriu o nome que foi aceito por todos: Geraes.
Figura 1 – Lista de 19 nomes pensados para o jornal, anotados em um guardanapo de cozinha por Tadeu Martins e Jansen Chaves
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A partir de agosto de 1977 existia uma ideia e um nome, mas sem qualquer estrutura para começar o projeto. Foi assim que Aurélio, Carlos, George e eu partimos para a luta. Nós queríamos um jornal alternativo, que mostrasse o Vale do Jequitinhonha e o seu povo, que incentivasse a sua organização e a sua luta por melhores condições de vida. Começamos a viajar pelo Vale em busca de parceiros, visitamos sindicatos de trabalhadores rurais, igrejas, professores, estudantes e alguns políticos do então Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Poucos aceitaram participar. Todos concordavam com a ideia, mas o medo da ditadura militar falava mais alto. Dos quatro, Aurélio Silby era o único que tinha carro, um Passat branco, que passou a ser a condução para o Vale do Jequitinhonha. Aurélio e eu, que tínhamos emprego fixo e salário melhor, “patrocinamos” as primeiras viagens. Era preciso conhecer o Vale do Jequitinhonha e o seu povo. Conhecer as poucas organizações populares que existiam. Sair das generalidades e conhecer de fato as estruturas políticas dominantes, os políticos picaretas e as instituições dos latifundiários, já que precisávamos combatê-los. Foi um período fértil de discussões políticas internas: Aurélio e George, militantes do MEP; Carlos Castilim e eu, que sonhávamos uma vida melhor para os brasileiros, não éramos filiados em partidos legais ou clandestinos. Foi um longo processo de aprendizado. Todo e qualquer assunto era discutido à exaustão. Nós nos formamos e nos informamos para futuramente levar informação e formação política para o Vale do Jequitinhonha. Viajamos muito, sempre com a ideia de conhecer melhor a realidade e de criar núcleos de sustentação em cada cidade visitada. O tempo passava e ainda não tínhamos como concretizar o sonho. Em novembro de 1977, Aurélio, João Lefú e eu viajamos para Itaobim. Lá havíamos conseguido um grande parceiro para a ideia, o professor João Pereira dos Santos, meu ex-aluno e amigo. Aproveitando o feriado, Aurélio e eu viajamos para Pedra Azul, para conhecer Lodônio Figueiredo, indicado por George para conduzir os destinos do Geraes em Pedra Azul. Viajamos no carro do Aurélio. Chegando ao entroncamento de Pedra Azul, paramos em um bar para um lanche e encontramos um jovem magro e cabeludo, com uma mochila de lona, que acabara de descer de um ônibus vindo de São Paulo. Como ele ia para Pedra Azul, resolvemos lhe dar uma carona.
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Falante, ele disse ser pedra-azulense, morava em São Paulo, onde era dono de um bar, segundo ele um ponto de encontro de muitos artistas. Do entroncamento até Pedra Azul, cerca de 15 quilômetros, falamos de política e cultura. Ele se entusiasmou com a ideia do jornal Geraes. Depois disso, só fomos reencontrar aquele jovem caronista em Minas Novas, no Festivale de 1983, quando a semente já havia dado muitos frutos. O jovem era Saulo Pinto Muniz, conhecido como Saulo Laranjeira, apelido herdado do seu bar em São Paulo, o Fulô de Laranjeira. Passamos muitas horas com o Lodônio, que nos mostrou muitas fotos de Pedra Azul e adjacências. Grande figura, bom fotógrafo, politizado e impaciente com mudanças lentas, Lodônio acreditava que podíamos partir para uma organização política, que, se necessário, iria para a luta armada. No fundo, essa ideia passava pela nossa cabeça, pois era preciso derrubar a ditadura sangrenta que massacrava o povo brasileiro. Voltamos mais animados de Pedra Azul. Em Itaobim, Aurélio, João Lefú e eu nos encontramos no Bar do Araújo, na Praça Afonso Martins, e redigimos um texto pedindo apoio financeiro para a criação do jornal Geraes. A maior parte do texto foi do João Lefú, que o escreveu na primeira página de um livro de ouro. Nascia ali a viabilização do jornal. Com aquele livro nas mãos, Aurélio, João Lefú e João Pereira visitaram o empresário José Fernandes Ribeiro, dono do frigorífico Maisa, que foi o primeiro a colaborar. Conseguimos também apoio do meu avô, Afonso Martins e depois procuramos outros itaobinenses que também contribuíram com pequenas quantias. Em Belo Horizonte, com o livro de ouro nas mãos, Carlos Castilim e eu procuramos deputados, vereadores, jornalistas e pessoas reconhecidamente do campo político da esquerda. Com aquelas contribuições tínhamos o sonho, a ideia e o dinheiro para começar o trabalho. Esse livro de ouro do Geraes deve estar hoje nos arquivos da Federação das Entidades Culturais e Artísticas do Vale do Jequitinhonha (Fecaje). Com a grana arrecadada, partimos para o registro do jornal Geraes. Para registrá-lo, precisávamos de um endereço, um jornalista formado e um proprietário para o jornal. George Abner, único jornalista do grupo, passou a assinar como jornalista responsável e Carlos Castilim teve a coragem de dar o seu nome como proprietário do jornal e o seu endereço para ser a sede oficial do Geraes, consciente de todos os riscos que corria. Assim, foi registrado no Cartório Jero Oliva, sob número 633 – Livro B-1, o jornal Geraes, com sede administrativa no bairro Floresta, em Belo Horizonte. 152
Vencida aquela etapa, começamos a discutir as matérias que deveriam sair no exemplar número zero do Geraes. Era uma verdadeira aula de democracia, nenhum dos quatro tinha poder, apenas o poder de convencimento para emplacar as matérias que indicava. Aprovadas as indicações, discutimos qual o enfoque deveria ser dado a cada matéria. Às vezes, uma palavra gerava minutos de discussão. Não estávamos ali para brincadeiras, tínhamos um sério compromisso com o povo do Vale do Jequitinhonha, região que passou a ser o norte das nossas vidas. Naquele momento da história brasileira, os grandes veículos de comunicação, os mais comprometidos com os destinos do Brasil, como a Folha de S.Paulo, Estado de São Paulo, revista Veja, O Pasquim e Jornal Movimento, eram censurados, vigiados e tiveram jornalistas presos. A grande maioria dos jornais da chamada grande imprensa fazia o jogo da ditadura militar para sobreviver ou era defensora dos generais, fazendo o que os ditadores mandavam, buscando assim uma forma de crescimento. O Brasil estava mergulhado na violência, em prisões ilegais, torturas, assassinatos de opositores políticos, e nada era divulgado. Lendo um jornal como o Estado de Minas, a impressão que se tinha era de que o Brasil andava às mil maravilhas. Para os militares, era melhor que o povo não soubesse daquelas atrocidades. As emissoras de televisão eram todas vendidas aos interesses dos militares. A Rede Globo teve o auge do seu crescimento naquele período, fazendo concessões, ajudando a promover os governos militares, desde o início do golpe militar. Tudo era escondido do povo brasileiro. A ditadura militar havia se instalado no Brasil em 1º de abril de 1964 e teve os seus piores momentos nos governos dos ditadores Costa e Silva e Emílio Garrastazu Médice. Em 1978, quando nasceu o jornal Geraes, já havia melhorado um pouco, mas ainda existia a violência contra quem não concordava com os desmandos da ditadura. Se a grande imprensa era censurada e se parte dela estava a serviço dos generais, existiam no Brasil os chamados jornais alternativos, independentes ou da imprensa nanica, que tinham coragem para falar a verdade, mesmo que fosse nas entrelinhas. Estes foram os modelos usados para se criar o Geraes: jornais Movimento, O Pasquim, De Fato e Em Tempo. Esses periódicos sofriam as mais grosseiras perseguições, seus jornalistas eram presos, torturados, mas continuavam firmes no princípio de ter compromisso com a verdade e com o povo. Eles contribuíram muito para o fim da ditadura militar, que só foi enterrada de fato em 1984. 153
Quando estávamos às voltas com as matérias para o primeiro exemplar do Geraes, o jornal Estado de São Paulo publicou uma série de reportagens sobre o Vale do Jequitinhonha, escritas pelo jornalista Ricardo Kotscho. Aquelas reportagens foram um ponto de partida, e na nossa edição de estreia são encontradas várias citações dessa série. Para criar a logomarca do Geraes, eu e o Carlos Castilim discutimos uma ideia e a apresentamos ao meu tio Manoel Soares, um dos grandes artistas plásticos e compositores que o Vale do Jequitinhonha já gerou. Déo Soares, irmão de João Lefú, não só aceitou criar a logomarca, como passou a assinar junto com Carlos Castilim a coluna Clic, página cultural, com charges e textos. Para ajudar a criar um projeto gráfico para o Geraes, procuramos dois grandes companheiros, jornalistas, que editavam um jornal alternativo em Belo Horizonte, o Jornal dos Bairros. Eles eram da diretoria do Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais e foi lá que receberam Aurélio, George e eu, para nos ajudar a diagramar e distribuir as matérias nas páginas da edição número zero. Os dois jornalistas que auxiliaram na escolha de uma cara apresentável para o Geraes foram José Amaro, o Zinho, que foi chefe da Assessoria de Comunicação do prefeito Patrus Ananias e que hoje é gerente da Rede Globo Minas; e o Nilmário Miranda, que foi deputado estadual, deputado federal, ministro e candidato a governador de Minas Gerais. Dois valorosos companheiros, combativos, sérios, que mereceram cada degrau conquistado na escada da vida. Com todo o material nas mãos procuramos a Gráfica e Editora Batangüera, situada na Rua Jacuí, no bairro Floresta, dirigida pelos jornalistas Miguel Ângelo e Marco Antônio, que foram também pacientes professores na criação do jornal e cúmplices, quando foi preciso esconder da Polícia Federal uma edição do Geraes que seria apreendida. Assim, em março de 1978 chegava ao Vale do Jequitinhonha o jornal Geraes, o mais importante veículo de comunicação já editado naquela região, que aos trancos e barrancos ajudou a criar uma identidade para o Vale, ajudou a elevar a autoestima daquele povo. O Geraes, jornal tabloide, formato 37 x 27 centímetros, impresso em preto e branco, com tiragem de três mil exemplares, viveu sete anos: de março de 1978 a julho de 1985. Cerca de 180 pessoas fizeram parte dessa história, militantes e colaboradores de todas as cidades do Vale do Jequitinhonha.
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Figura 2 – Primeira edição do jornal Geraes, de março de 1978
O Vale do Jequitinhonha Que região era aquela que tanto nos fascinava, que nos levou a dedicar uma parte das nossas vidas a estudá-la, compreendê-la e a buscar formas de organização social capazes de jogar por terra os nomes que ela levava, que tanto nos entristecia, Vale da Miséria, Vale da Fome ou Vale da Marcha a Ré? Para nós o Vale era uma região rica, de povo empobrecido pela exploração política. Na verdade, a exploração política daquela região começou no período em que Portugal só queria as nossas riquezas. Naquela época, o poder em Minas Gerais era exercido em Vila Rica (Ouro Preto) e o Vale do Jequitinhonha, com o seu potencial de garimpos de ouro, diamantes e pedras preciosas, não poderia se desenvolver muito, para não oferecer perigo. Cidades como Serro (1.700), Diamantina (1.713) e Minas Novas (1.730), já eram destaque na vida do Brasil. Para os governantes de então, a região era importante, mas não poderia se desenvolver. Para o Vale, eram mandados apenas soldados, que tinham a tarefa de garantir a proteção de minas e garimpos, impedindo o contrabando das riquezas minerais. O Vale foi deixado de lado, era apenas uma fonte de riquezas para a Coroa portuguesa. De lá tiravam tudo e nenhum benefício era dado em troca, nem mesmo uma pequena melhoria 155
na infraestrutura. Por outro lado, era uma região tão importante que alguns inconfidentes, como Padre Rolim e Tiradentes, estiveram ali buscando apoio para a luta pela libertação do Brasil. O Vale do Jequitinhonha ocupa quase 15% do território de Minas Gerais e é a região banhada pelo Rio Jequitinhonha e seus afluentes. O rio nasce no Pico do Itambé, na cidade do Serro, e deságua no mar na cidade de Belmonte, na Bahia. Região rica em ouro, diamante, pedras preciosas, granito, estanho, grafite e vários outros minerais, de terra fértil, com grande vocação para a fruticultura. O êxodo era imenso, os filhos do Jequitinhonha se espalhavam por outras regiões de Minas Gerais e pelas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Conhecendo tudo isto, era difícil aceitar a pobreza do povo que ali habitava. Havia um grande desequilíbrio social, de um lado uns poucos latifundiários, coronéis de terras e de poder eleitoral, e do outro a grande maioria do povo: lavradores, camponeses, pequenos produtores rurais, pequenos comerciantes e trabalhadores, empobrecidos e explorados, que aceitavam como vontade divina os seus destinos, “assim estamos porque assim Deus quis”. Em 1978, quando o Geraes nasceu, existia um órgão do Governo de Minas Gerais, a Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha (Codevale), encarregada de planejar e executar projetos para o seu desenvolvimento. Apesar da boa vontade e da dedicação dos dirigentes e, principalmente, dos funcionários da Codevale, a instituição não tinha dotação orçamentária para implantar políticas que realmente contribuíssem para o desenvolvimento da região. O nosso povo, sabiamente, dizia: “Aqui, a Codevale não acode, nem vale”. Nas 52 cidades da região, todos os prefeitos e a quase totalidade dos seus vereadores eram comprometidos com a ditadura militar. Nunca se uniram para reivindicar propostas concretas que contribuíssem para o desenvolvimento da região. Só havia pequenas obras, pequenos favores e ausência total de planos mais ousados para retirar a região do atraso em que vivia. Coronéis políticos como Hormínio Almeida (Pedra Azul), Epaminondas Cunha Melo (Jequitinhonha), Afonso Martins (Itaobim), Cunha Peixoto (Salto da Divisa), João Antunes (Diamantina) e Hugo Lopes (Turmalina) gastavam o seu dinheiro patrocinando a eleição de deputados, que em troca lhes davam prestígio e apoio político. Todos se orgulhavam de serem conhecidos, respeitados e recebidos em Palácio pelos governadores, quando bem quisessem. Muitos eram humanistas, caridosos, mas todos eles pagavam muito caro pelo prestígio e poder que tinham. E conseguiam apenas migalhas para a região, ajudavam muito os seus correligionários
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políticos e tinham o poder de trocar delegado, transferir policiais e nomear diretoras de escolas e órgãos públicos locais. Os coronéis políticos do Vale eram diferentes daqueles de outras regiões do Brasil. Numa época em que a corrupção era imensa, em que os governos militares ajudavam os seus apadrinhados a crescerem financeiramente, nenhum dos coronéis do Vale ganhou dinheiro com o exercício da política. Alguns venderam fazendas e gado para ter prestígio e poder. Pode-se sugerir aos sociólogos e antropólogos que pesquisem sobre aqueles coronéis políticos do Vale do Jequitinhonha, que atuaram entre 1950 e 1980. É um assunto com potencial para uma excelente obra. Fica registrada a sugestão, vale a pena aprofundar-se nesse tema. A ditadura militar acabou com todos os partidos políticos então existentes no Brasil. E, para parecer que existia uma democracia no país, criaram dois novos partidos. As eleições no Vale não ofereciam surpresa, ganhavam sempre os candidatos da Arena, partido do governo ditatorial. Na maioria das cidades nem existia o MDB, o partido de oposição. O Geraes não foi bem recebido pelos políticos da região. Muitos até tentavam fingir que estavam apoiando a ideia, mas corriam da equipe do jornal como diabos correm da cruz. Para o Geraes, entrevistá-los era muito difícil, mas em outros jornais da região eles pagavam para serem entrevistados. A nossa equipe já foi ameaçada ou expulsa de algumas cidades onde estava levantando dados e/ou fazendo entrevistas, como aconteceu em Berilo, com os companheiros George Abner, Clênio Salviano e Guty Antunes. O povo do Vale do Jequitinhonha nos acolheu muito bem. Povo hospitaleiro, bom de prosa, bom de causos, criativo e alegre, apesar dos pesares. Com o decorrer do tempo, a equipe do Geraes, que começou pensando até em luta armada, percebeu que a cultura era a arma para trabalhar com aquele povo. Aprendemos muito com o povo do Vale do Jequitinhonha. Entre artesanato, violas, tambores, sanfonas, batuques e muitos sonhos, plantamos muitas sementes no coração daquele povo e colhemos gratidão e carinho. Aurélio, Castilim, Jansen e eu brincávamos muito quando viajávamos pelo Vale, dizendo que estávamos criando a “FÊJILÊ” – Força Jequitinhonhense de Libertação – que haveria de implantar a “República Independente do Jequitinhonha”. O Geraes ajudou a criar sindicatos, associações de classe (pedreiros, lavadeiras, artesãos) e muitas entidades culturais no Vale do Jequitinhonha. Em 3 de novembro de 1979 o Geraes realizou em Itaobim o I Encontro de Compositores do Vale do Jequitinhonha, evento que reuniu 22 compositores,
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vindos de 15 cidades da região. O encontro foi um importante passo para a história cultural do Vale do Jequitinhonha e isso se deveu ao sucesso do cartaz do evento. Quando pensamos em sua criação, observei um cartaz que era usado pela ditadura militar para tentar prender os valorosos brasileiros que lutavam contra a opressão, e que eles chamavam de terroristas. Copiei o cartaz da ditadura, sob o título “Procurados”, e colocamos fotos de alguns compositores que participariam do evento. Quando afixamos os cartazes em postes, comércio e muros, em Belo Horizonte e no Vale, o povo não lia o texto, e dizia que nós estávamos sendo procurados pela polícia. A repercussão foi tão grande que fomos entrevistados por todos os canais de TV de Belo Horizonte e todos os jornais impressos publicaram matérias sobre o encontro.
Figura 3 – Sob o título “Procurados” e parodiando cartaz usado pela ditadura militar, este foi o meio de divulgação elaborado para o I Encontro de Compositores do Vale do Jequitinhonha
O evento, que ganhou o nome de “Procurados”, foi o ponto de partida para a criação do Festival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha (Festivale), que nasceu em Itaobim, em julho de 1980, e ajudou a mudar a história cultural do nosso Vale. O Festivale foi idealizado para ser o ponto de encontro de todas as áreas do fazer cultural da região. Como autor do projeto, eu queria que ele acontecesse todos os anos em Itaobim, e defendi esta tese que, felizmente, foi vencida pela proposta do Aurélio Silby, de que o evento deveria circular pela região. Assim nasceu o Festivale, que acontece no mês de julho, cada ano em uma cidade do Vale. 158
O Festivale possibilitou o surgimento de novas lideranças e de artistas como Célia Mara, Gonzaga Medeiros, Paulinho Pedra Azul, Rubinho do Vale, Saulo Laranjeira, Tadeu Franco e tantos outros que hoje se apresentam nos palcos do mundo. Só na área musical o Festivale revelou mais de 80 artistas, que hoje têm discos gravados. O Vale da Miséria se transformou no Vale da Cultura. Jequitinhonha, o Vale de um povo que aprendeu a fazer da arte o retrato vivo das suas lutas e esperanças. O Geraes e o Festivale viraram temas de monografias de graduação, dissertações de mestrado e teses de doutorado em universidades de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Pernambuco e Brasília, o que, sem dúvida alguma, ajudou o Vale do Jequitinhonha a ser mais conhecido. Eu fui o único a guardar uma coleção completa do Geraes e era sempre procurado pelos autores desses trabalhos acadêmicos, o que fez nascer o projeto de disponibilizar em livro todas as edições do periódico. Em novembro de 2010, 25 anos depois da última edição do Geraes, Aurélio Silby, Carlos Castilim, George Abner e eu viajamos novamente pelo Vale, com o objetivo de colher material para uma edição especial do jornal, que foi lançada em Belo Horizonte, no Restaurante Maria das Tranças, em 26 de maio de 2011.
Figura 4 – Edição especial do Geraes, elaborada por Aurélio Silby, Carlos Castilim, George Abner e Tadeu Martins 25 anos após a última publicação, com lançamento em maio de 2011
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A proposta de lançamento da edição especial do Geraes foi abrir espaço para se rediscutir a região e a busca de caminhos para o seu desenvolvimento. A edição especial foi anexada às demais edições do jornal, para compor o livro Geraes, a realidade do Jequitinhonha, que foi distribuído para escolas, bibliotecas, entidades culturais, secretarias municipais de Cultura e de Educação e sindicatos do Vale do Jequitinhonha, bem como para os quase 180 companheiros que fizeram parte do Geraes. Esta é uma história que precisava ser contada. Esperamos que o livro seja útil para o povo da região e para todos aqueles que querem conhecer um pouco mais a vida de uma das mais expressivas regiões de Minas Gerais. Que possa contribuir para uma maior reflexão sobre o Jequitinhonha e o seu povo, e que ajude os mais jovens a trabalhar para melhorar a qualidade de vida, o que só acontecerá com uma verdadeira união do seu povo, em torno de projetos sérios para a região. As viagens pelo Vale, a edição especial do Geraes e o livro só se viabilizaram com projeto aprovado pela Lei Federal de Incentivo à Cultura, numa parceria que fizemos com a Associação de Desenvolvimento de Projetos (ADP) e com patrocínio do Banco BMG.
Figura 5 – Capa do livro Geraes, a realidade do Jequitinhonha, composto por todas as edições do periódico
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Hoje, quando percorremos o Vale do Jequitinhonha, percebemos que o Vale passou a ser conhecido e respeitado pelo valor do seu povo e pela sua cultura; e que, se muito foi feito, ainda existe muito por fazer, pois o cenário cultural é muito triste, a região desconhece os seus valores culturais, e, só para dar ideia da massificação, predominam o axé, o breganejo e o funk nos eventos da região, tanto os organizados pelas prefeituras quanto os organizados pelos produtores culturais. Podemos afirmar que quatro fatores impedem o real desenvolvimento da nossa região: 1 – A picaretagem política O Vale ainda é um verdadeiro laboratório para políticos picaretas, deputados estaduais e federais que querem ganhar as eleições a qualquer custo. Viajam para o Vale e compram prefeitos, vereadores e outras lideranças. Infelizmente, no Vale do Jequitinhonha os votos são vendidos por cabos eleitorais e o povo fica a comer poeira na estrada da democracia, sem defensores, pois a região vota em centenas de candidatos, de quase todas as regiões do estado, exceto do próprio Vale. Os deputados são os verdadeiros condutores da vida política do Vale, impedindo que os prefeitos se unam, para evitar que surjam lideranças regionais capazes de vencer uma eleição para deputado estadual ou federal. Essa falta de união dos prefeitos da região é uma tristeza. É inadmissível, por exemplo, que até hoje não tenha acontecido uma única reunião entre os prefeitos das cidades ribeirinhas do Rio Jequitinhonha para discutir os problemas do rio e para buscar soluções através do trabalho integrado de todos eles. Claro que a implantação do voto distrital ajudaria a amenizar ou mesmo resolver essa triste situação. Os outros problemas são decorrentes dessa falta de representatividade política da região. 2 – O êxodo A nossa região vê, a cada censo, uma diminuição da sua população. Os filhos do Vale se espalham pelo mundo em busca de uma vida mais digna. Só para se ter uma ideia: as cidades de Teófilo Otoni, Governador Valadares, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo, juntas, têm hoje mais filhos do Vale do que a própria região. Oferta de trabalho é o que
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precisamos para mudar essa triste situação. Ouvindo os vale-jequitinhonhenses, muitas são as sugestões para gerar emprego e renda, e aqui destacamos duas: 1. uma indústria de produção de vidro, capaz de abastecer o mercado de Minas e do Brasil. As areias do Jequitinhonha são especiais e a sua localização facilitaria o escoamento da produção. 2. um trabalho turístico capaz de trazer o desenvolvimento, a partir de quatro grandes roteiros: cachaça, artesanato, eventos e ecologia. 3 – BR-367: a estrada principal Juscelino Kubitschek de Oliveira, o JK, nasceu em Diamantina e na sua trajetória política, entre outros cargos, foi prefeito de Belo Horizonte, governador de Minas Gerais e presidente da República. Como presidente do Brasil (1956-1961), ele planejou uma estrada capaz de alavancar o desenvolvimento da sua região natal e, para justificar o investimento, que não seria pequeno, ele a defendeu como uma estrada turística, seguindo ao longo do Rio Jequitinhonha, para unir dois grandes monumentos turísticos brasileiros. E JK materializou o seu desejo, construindo a estrada que corta o Vale do Jequitinhonha, que hoje se chama BR-367, ligando Diamantina a Porto Seguro (BA). A rodovia tem 733 quilômetros de extensão e se divide em 17 trechos: Trecho
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Distância
Diamantina – Couto Magalhães de Minas
31 km
Couto Magalhães de Minas – Entroncamento Turmalina
135 km
Entroncamento Turmalina – Turmalina
31 km
Turmalina – Minas Novas
26 km
Minas Novas – Chapada do Norte
20 km
Chapada do Norte – Berilo
21 km
Berilo – Virgem da Lapa
26 km
Virgem da Lapa – Araçuaí
30 km
Araçuaí – Itinga
42 km
Trecho
Distância
Itinga – Itaobim
30 km
Itaobim – Jequitinhonha
65 km
Jequitinhonha – Almenara
50 km
Almenara – Jacinto
50 km
Jacinto – Salto da Divisa
46 km
Salto da Divisa - Itagimirim (BA)
44 km
Itagimirim – Eunápolis (BA)
23 km
Eunápolis – Porto Seguro (BA)
63 km
Quase 60 anos depois, do sonho de JK, a BR-367 continua inacabada, sem asfalto em mais de 100 quilômetros, com pontes de madeira; e mesmo o trecho asfaltado, na sua maioria, continua em estado precário. Isto ocorre no território mineiro, pois a estrada é muito boa no trecho baiano. A vergonha é tanta que o governo da Bahia, por sua conta e risco, asfaltou um grande pedaço da estrada em território mineiro. Da divisa da Bahia até o centro da cidade de Salto da Divisa (MG), inclusive, algumas ruas da cidade foram asfaltadas pelo governador da Bahia, chamando à responsabilidade o governo de Minas, para investir naquela importante rodovia, que une o Vale e dá acesso às praias do sul da Bahia. No 24º Festivale, na cidade de Araçuaí, no dia 29 de julho de 2006, mais de mil pessoas, entre artistas, políticos, professores, artesãos, diretores de várias instituições, e público presente no evento, indignados com esse descaso político, com a falta de vontade política dos governantes, de desrespeito ao povo do Vale, assinaram a Carta do Jequitinhonha, que foi encaminhada ao presidente Lula, ao governador Aécio Neves e ao ex-ministro Nilmário Miranda, então candidato ao Governo de Minas. Solução que é bom, até hoje “neca de pitibiriba” (“nadinha de nada”, como diz o nosso povo). 4 – A falta de um mapa Estamos perdendo a nossa identidade. Em março de 1978, quando foi criado o jornal Geraes, o Vale do Jequitinhonha era definido pelas estruturas burocráticas e administrativas
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do estado de Minas Gerais como uma região composta por 52 municípios, com 71.552 quilômetros quadrados de extensão territorial, ocupando 14,5% do estado. Para se “responsabilizar pelo planejamento e acompanhamento de projetos e ações” que ajudariam no desenvolvimento da região, o governo de Minas, por meio da Lei Constitucional nº 12, de 6 de outubro de 1964, criou a Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha (Codevale). Para atender aos interesses de políticos locais e de deputados, foram criados mais 28 municípios no Vale do Jequitinhonha, sendo quatro em 1992 (Lei nº 10.704, de 27 de abril de 1992) e 24 em 1995 (Lei nº 12.030, de 21 de dezembro de 1995). Para substituir a Codevale, foi criado em 2002 o Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas (Idene), e no governo Aécio Neves mais uma instituição apareceu com os mesmos objetivos das anteriores, com o pomposo nome de Secretaria de Estado Extraordinária para o Desenvolvimento dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri e do Norte de Minas (SEDVAN). Hoje, o Vale do Jequitinhonha não existe oficialmente. Cada instituição apresenta um mapa diferente para a região. Só o governo de Minas tem três mapas diferentes em uso, fazendo a região variar de 53 a 74 municípios, quando na verdade são 80. Pode parecer uma questão menor, mas não é. Um povo que não conhece a sua terra, não pode contribuir para o seu desenvolvimento. A solução desse problema deve ser cobrada também dos políticos locais, os prefeitos que administram os municípios, pois eles são o primeiro instrumento político-administrativo de ligação com o estado. E esta solução é necessária, pois, sabendo quais são de fato os municípios da região, facilitaria uma melhor organização política entre as entidades da sociedade civil, prefeitos e vereadores para cobrar ações concretas dos governos estadual e federal. Essa indefinição, em nossa opinião, é mais um descaso político com o Vale do Jequitinhonha, que mostra não ser tão importante para o governo de Minas. Se o governo enxergasse o Vale com outros olhos, esta situação já teria sido resolvida. Queremos a definição do nosso mapa, pois hoje o Vale tem 80 municípios: 1. Almenara 2. Angelândia*
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3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27. 28. 29. 30. 31. 32. 33. 34. 35. 36. 37. 38. 39. 40.
Araçuaí Aricanduva* Bandeira Berilo Berizal* Bocaiuva Botumirim Cachoeira de Pajeú Capelinha Caraí Carbonita Chapada do Norte Comercinho Coronel Murta Couto Magalhães de Minas Cristália Datas Diamantina Divisópolis** Felício dos Santos Felisburgo Francisco Badaró Franciscópolis* Fruta de Leite* Grão Mogol Guaraciama* Indaiabira* Itacambira Itamarandiba Itaobim Itinga Jacinto Jenipapo de Minas* Jequitinhonha Joaíma Jordânia José Gonçalves de Minas* Josenópolis*
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41. 42. 43. 44. 45. 46. 47. 48. 49. 50. 51. 52. 53. 54. 55. 56. 57. 58. 59. 60. 61. 62. 63. 64. 65. 66. 67. 68. 69. 70. 71. 72. 73. 74. 75. 76. 77. 78.
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Leme do Prado* Malacacheta Mata Verde** Medina Minas Novas Monte Formoso* Montezuma** Nova Porteirinha* Novo Cruzeiro Novorizonte* Olhos D’Água* Padre Carvalho* Padre Paraíso Pai Pedro* Palmópolis** Pedra Azul Ponto dos Volantes* Porteirinha Riacho dos Machados Rio do Prado Rio Pardo de Minas Rio Vermelho Rubelita Rubim Salinas Salto da Divisa Santa Cruz de Salinas* Santa Maria do Salto Santo Antônio do Jacinto Santo Antônio do Retiro* São Gonçalo do Rio Preto Senador Modestino Gonçalves Serranópolis de Minas* Serro Setubinha* Taiobeiras Turmalina Vargem Grande do Rio Pardo*
79. Veredinha* 80. Virgem da Lapa (*) Municípios criados em 1995. (**) Municípios criados em 1992. Fonte: Instituto de Geociências Aplicadas(IGA)
Em 1979, o grande menestrel Rubinho do Vale musicou um poema meu falando do Jequitinhonha, que ainda está valendo para os dias atuais. A música “Despertar” ganhou alguns festivais e está registrada em um dos seus discos: São cinquenta e duas cidades perdidas no sertão mineiro terra esquecida, terra explorada altar da superstição e riqueza de pedras que brotam do chão rebuçado de sangue e beleza É todo um povo acomodado que começa a despertar e sonha lutar pela libertação da Terra do Sol Acorda, Jequitinhonha! Chá de jalapa pro sangue Chá de são-caetano para abortar Chá de raça e coragem pra tornar verdadeiro esse sonho de liberdade.
No meu livro O martelo da dominação, defendo a tese da corrente do desenvolvimento, experiência de vida que aplicamos no Geraes e no Festivale e precisa ser reaplicada hoje no Vale do Jequitinhonha: “o desenvolvimento só pode ser conseguido se ele for puxado por uma corrente que tem quatro elos, e precisam estar dispostos em uma ordem lógica, conhecer, gostar, defender e divulgar”. Precisamos fazer com que o povo do Vale conheça a região, a sua história, suas riquezas, suas potencialidades, suas lendas, seus mitos, seus valores, pois é só quem conhece que gosta. É preciso fazer com que o povo goste do Vale do Jequitinhonha, pois é só quem gosta que defende. 167
É preciso defender uma maior organização social, cultural e política no nosso Vale, defender os seus valores, pois é só quem defende que divulga. Precisamos divulgar o Vale do Jequitinhonha para os quatro cantos do mundo, pois só quem divulga com a razão e o coração é capaz de ajudar a desenvolver. Viva o Vale do Jequitinhonha!
Tadeu Martins, natural de Itaobim, no Vale do Jequitinhonha, foi um dos fundadores do jornal Geraes e idealizador do Festivale. Produtor cultural, escritor, contador de causos e folclorista, publicou 84 folhetos de cordel e tem 10 livros editados, dois deles lançados nos Estados Unidos. Gravou o CD Causos, cordas e cordéis e percorre o estado de Minas Gerais há oito anos como apresentador do projeto Causos e Violas das Gerais, do SESC-MG.
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As mudanças de rumo na trajetória do Festivale ao longo do período 1985-2006 Luís Carlos Mendes Santiago
Explicações necessárias O que vou dizer aqui tem um caráter de depoimento, já que sou filiado à instituição que organiza o Festival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha (Festivale), a Federação das Entidades Culturais e Artísticas do Vale do Jequitinhonha (Fecaje), na qual tenho tido uma participação que, apesar de secundária, discreta e mesmo esporádica, tem certa constância. Cheguei inclusive a participar de duas diretorias da entidade, devo confessá-lo, sem maiores empenhos, devido às dificuldades de transporte, pois as reuniões acontecem em cidades distintas, algumas delas situadas a centenas de quilômetros de onde resido, Pedra Azul, mas sempre comprometido e militante. Com relação aos Festivales dos quais não participei, no período 1986-1991 e um ou outro de 1991 para cá, lançarei mão das informações contidas em um livro que escrevi, O vale dos boqueirões, volume um, publicado em 1999, no capítulo intitulado “O movimento cultural”, mesmo porque não há muita bibliografia sobre o assunto. Também utilizarei a edição fac-similar do jornal Geraes, lançada em 2011 e que inclui uma 25ª edição, lançada no mesmo ano, em cujas referências utilizarei o número de capa da edição citada; bem como algumas fontes da web. A escolha do formato de depoimento para esta exposição tem duas causas principais. Primeiro, pelo fato de que estou irremediavelmente identificado com o Festivale, o que impede um distanciamento crítico do objeto de estudo. A segunda causa é a falta de bibliografia sobre o evento. Outra característica do presente trabalho é que não citarei o nome das pessoas envolvidas na organização do evento, o que obedece também a duas razões: a primeira é que, quando se menciona alguns nomes, corre-se sempre o risco de esquecer outros nomes; e a segunda é para não ferir suscetibilidades. Eventualmente, apenas, mencionarei o nome de algum artista, cuja apresentação tenha sido significativa, sem desdouro dos demais, pois muitas vezes não pude assistir aos shows, mesmo estando presente, pois estava cansado de uma longa jornada de atividades e precisava acordar cedo no dia seguinte, para outra jornada. Essa escolha de umas poucas apresentações artísticas que me pareceram significativas 169
não está livre de certa arbitrariedade, já que o que nos parece significativo depende, no presente caso, de uma série de fatores pessoais, institucionais e históricos (inclusive da história subsequente do movimento cultural).
O movimento cultural do Vale do Jequitinhonha até 1985 O movimento cultural do Vale do Jequitinhonha surge, em parte, como movimento de resistência ao regime militar (1964-1985), embora a história do Vale do Jequitinhonha seja pródiga em movimentos culturais desde os tempos coloniais, conforme se pode perceber pelo rico patrimônio material e imaterial de cidades como Serro, Diamantina, Minas Novas, Grão Mogol e Chapada do Norte. Um movimento cultural autodenominado “do Vale do Jequitinhonha” vai surgir apenas com o jornal Geraes, embora uma “cultura do Vale do Jequitinhonha” já tivesse sido detectada por artistas, antropólogos, jornalistas, colecionadores e marchands (SANTIAGO, 1999, p. 297-298, 326-327 e 335). Com certeza já havia uma noção de pertencimento ao Vale do Jequitinhonha, mas, no mais das vezes, pontual, e mesmo latente. Foi o Geraes que criou uma rede de reportagem e de resistência que envolvia cidades de todas as regiões do Vale (até hoje relativamente isoladas umas das outras). Embora todas as edições, desde o número 0 (março de 1978), tenham sido propriamente editadas em Belo Horizonte, no cabeçalho do jornal, até a edição de nº 15 (julho de 1982), o local que aparecia era sempre “Vale do Jequitinhonha”. Foi o jornal Geraes que realizou, em Itaobim, em 3 de novembro de 1979, o primeiro (e ao que nos parece até hoje único) Encontro de Compositores do Vale do Jequitinhonha, ao qual se seguiram shows com músicos do Vale e que tocavam música do Vale na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte (9 de dezembro), Teófilo Otoni (13 de janeiro de 1980), além de shows marcados para Almenara, Pedra Azul e Diamantina (em fevereiro e março) e um grande festival marcado para julho, em Itaobim (GERAES, 2011, s.e., n. 8, a. 2, p. 8). Esse grande festival recebeu o nome de Festivale e foi também um grande sucesso, sendo até hoje, 31 anos depois, realizado. As cinco primeiras edições do Festivale aconteceram em Itaobim, Pedra Azul, novamente em Itaobim, Minas Novas e Araçuaí. Já nessas primeiras edições, o evento deixara de ser puramente de cunho musical, para inserir também o artesanato, os grupos de religiosidade popular, além de congregar artistas de outras áreas. 170
O Festivale de 1985 a 2006 Até 1985, a trajetória do Festivale esteve inextricavelmente ligada à do jornal Geraes, cujo último número da primeira fase foi publicado justamente em julho de 1985, sendo que o primeiro número da segunda fase do Geraes foi publicado, conforme já ficou dito, em 2011, mantendo boa parte do quadro editorial original. É sintomático que o Geraes tenha deixado de ser publicado justamente com a instituição de uma nova ordem, propriamente civil, no país, que foi a “Nova República”. Sintomática nessa última edição é o poema “Nova República, bom dia!”, de Murilo Antunes, do qual destacamos os seguintes versos: Bom dia, República nova, novíssima, República dos sonhos, sereníssima República (ANTUNES, 1985, p. 6)
Com o retorno à democracia, a heroica imprensa nanica dos anos de chumbo perdeu a sua razão de ser. O caso mais célebre dessa crise na imprensa nanica é o do jornal O Pasquim, que, mesmo ainda sendo editado por muito tempo, perdeu a sua verve revolucionária, pois já não precisava mais digladiar com a censura. Lembrando que, pela sua tiragem, distribuição e duração (até 1991, com 1.072 edições, conforme se vê no verbete da Wikipédia), O Pasquim não pode ser considerado propriamente nanico; mas, como o próprio nome do periódico indica, era baseado em publicações de cunho não comercial e é, ainda hoje, referência para esse tipo de publicação. Sem a publicação do Geraes, o Festivale vai paulatinamente perdendo seu vínculo com a capital mineira. No processo de interiorização da organização desse evento, que ainda se encontra em andamento, desempenham importante papel os Encontros de Entidades Culturais do Vale do Jequitinhonha, ou “Encontrões”, organizados originalmente pelo Movimento de Cultural Popular do Vale do Jequitinhonha (MCPJ), que tinha à frente os mesmos editores do jornal Geraes. O primeiro desses encontros aconteceu entre 28 e 30 de abril 1984, na cidade de Jequitinhonha,1 e esse evento já teve 63 edições ao longo dos últimos 27 anos (o 63º aconteceu 1 - GERAES, n. 18, a. 7, fev. 1984, p. 7, onde o encontro é anunciado; lembrando que existe outra edição de número 18, anterior a essa; certamente nos enganamos ao afirmar que esse primeiro encontro aconteceu nos mesmos dias (28-30) do mês anterior, março. Cf. SANTIAGO, 1999, p. 346 e 364.
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em Araçuaí, em 26 e 27 de novembro de 2011).2 A principal função dos Encontros Regionais tem sido a de envolver as populações locais na organização do Festivale, mas é inegável que essas dezenas de encontros têm debatido inúmeros problemas tanto no nível municipal quanto regional, além de fortalecer a coesão do movimento cultural do Vale, que abarca, ou tenta abarcar, uma região pouco coesa em outros aspectos, como o rodoviário, o econômico, o educacional, etc. Embora já contassem com o patrocínio do governo estadual, o VI e VII Festivales, de 1985 e 1986, realizados em Salinas e Almenara, ainda aconteceram em locais fechados, porém o VIII Festivale, realizado no Serro, em julho de 1987, trouxe importantes inovações, começando pelos shows, agora realizados ao ar livre e abertos ao público. Outra inovação foram as oficinas, nas várias áreas do saber artístico, cultural e tradicional; e, talvez devido à realização das oficinas, a duração do evento também mudou, passando de três ou quatro dias para uma semana. Essas três inovações – shows gratuitos em espaços abertos, oficinas e duração de uma semana – desde então, foram incorporadas a todas edições subsequentes do evento (SANTIAGO, 1999, p. 363). O IX Festivale aconteceu em Virgem da Lapa (1988) e a décima edição em Rubim (1989). Porém 1990 (ano do XI Festivale, na cidade de Diamantina) foi ano eleitoral e os Festivales que acontecem em anos de eleições são especialmente complicados, pois, por ser evento que necessita do apoio das esferas municipal e estadual, não faltam autoridades que tentam usar o palco do Festivale como palanque eleitoral, além das desavenças entre as facções locais, que durante as campanhas se tornam ainda mais agudas e acabam (essas rivalidades) interferindo na realização do evento. O certo é que o nome, ou marca, se preferirem, do Festivale, foi utilizado em campanhas de diferentes partidos e coligações, em Diamantina, naquele mês de julho de 1990, durante a realização do Festivale (SANTIAGO, 1999, p. 363-364). Os agentes culturais que participavam do evento, seja na organização seja na condição de participantes, certamente se indignaram, mas ainda não foi no XI Festivale que foi criada a Federação das Entidades Culturais e Artísticas do Vale do Jequitinhonha (Fecaje), e sim no Encontrão, que aconteceu logo em seguida, na cidade de Taiobeiras, para avaliar o evento. Surge, assim, no segundo semestre de 1990, a Fecaje, entidade que desde então toma as rédeas, ou seja, passa a ser a gestora do Festivale. Mas a organização ainda estava centrada em Belo Horizonte SANTIAGO, 1999, p. 366). 2 - FREIRE, Ângela Gomes. “Comunicado”. Disponível em: <http://www.fecaje.org/index>. Acesso em: 14dez. 2011.
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O XII Festivale, na cidade de Jequitinhonha, foi memorável. Quem participou recorda-se, entre outras coisas, de um concerto para enxadas regido pelo músico Babilak Bah na praia do rio que dá nome ao Vale e à cidade SANTIAGO, 1999, p. 364). No XIII Festivale, realizado em Bocaiuva em 1992, tive a oportunidade de assistir a uma inesquecível apresentação do mestre Zé Coco do Riachão, na praça em frente à igreja do Bonfim, em cuja torre se aninhava uma imensa coruja branca, que fazia revoadas ruidosas durante a apresentação (se me permitem esse rápido devaneio poético). Assisti também à apresentação de um quinteto, composto, se bem me lembro, por violão, violino, viola de arco, violoncelo e bandoneón, executando peças de Johann Sebastian Bach, em primorosos arranjos do argentino naturalizado mineiro Rufo Herrera.3 A partir do XIV Festivale (Minas Novas, julho de 1993), os conflitos entre um grupo de Belo Horizonte e um grupo de moradores do Vale começam a ficar mais evidentes. A partir desse ano, parece-me, as pessoas do Vale passam a participar da organização do evento de forma mais decidida, porém, o Festivale perde um pouco da sua vocação vanguardista (SANTIAGO, 1999, p. 370-371). Se no XIV Festivale a tônica foram os conflitos internos na entidade e na organização como um todo, o XV Festivale, em Salto da Divisa (1994, também ano eleitoral), e o XVI, em Carbonita (no ano seguinte), acontecem sob a égide da política, que, entretanto, perde espaço nas edições seguintes. Afinal, trata-se de terreno escorregadio, no qual, a cada passo, arrisca-se suscitar melindres, sobretudo nas pequenas localidades, onde a política é indissociável da vida pessoal (família, emprego, círculo de amizades, etc.). O XVII Festivale, de 1996, o segundo realizado na cidade de Jequitinhonha, já não teve a mesma ênfase política, embora aquele ano fosse de eleições municipais, talvez por causa disso mesmo (SANTIAGO, 1999, p. 371). De qualquer forma, as eleições municipais de 1996 geraram um impasse que comprometeu a realização do XVIII Festivale, cujas negociações com as prefeituras para a escolha da cidade que sediaria o evento tiveram início apenas em outubro, após a apuração dos votos. A prefeita Cacá, de Araçuaí, prontificou-se a dar o suporte para a realização do Festivale ali, mas o movimento cultural local, alegando que não havia tempo suficiente para preparar um evento condigno, não aceitou a proposta da Fecaje, inviabilizando a sua realização SANTIAGO, 1999, p. 373-374). 3 - SANTIAGO, 1999, p. 367; a partir desse parágrafo, mais informações são, em grande medida, retiradas da memória, ainda que ancoradas no texto que escrevemos.
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Portanto, o Festivale não aconteceu em 1997, criando um perigoso precedente e dando início a uma séria crise que, embora já bastante atenuada, continua até hoje. Em 1998, o XIX Festivale aconteceu em Itinga e conta-se que foi dos mais memoráveis. Em 1999, o evento aconteceu em Jordânia e, em 2000, novamente em Bocaiuva. Em 2001, novos problemas, sobretudo na captação de recursos, impedem, pela segunda vez, a realização do Festivale. Em 2002, o XXII Festivale é realizado em Pedra Azul, aos trancos e barrancos, com recursos bastante reduzidos. Em 2003, o Festivale aconteceu em Medina, em condições um pouco melhores. O de 2004, em Salinas, também depara com problemas financeiros e, em 2005, o Festivale fica mais uma vez, a terceira, sem acontecer. Em 2006, o Festivale corre novamente o risco de não acontecer, o que comprometeria a própria continuidade do festival iniciado 27 anos antes, em 1980. Porém, é nos momentos de crise que se descobre a força e a coesão dos grupos, e a Fecaje contou ainda com apoios importantes. A empresa Cria! Cultura conseguiu inserir o Festivale em programa da multinacional Avon Comésticos; e, faltando apenas 45 dias para o início do evento, a Fecaje conseguiu o imprescindível apoio da Prefeitura e da Câmara Municipal de Araçuaí, assim como do bem organizado movimento cultural da cidade, que nove anos antes (em 1997), se negara a ser correalizador do Festivale. Foi outro Festivale extraordinário, o de 2006, em Araçuaí, com notável participação da comunidade, além de um bom nível de engajamento e comprometimento por parte dos militantes do movimento cultural do Vale. Mas o momento que guardo com mais carinho na memória foi uma procissão em Itira, antigo Pontal (distrito de Araçuaí), formada pelos índios das nações Pankararu e Pataxó, da vizinha aldeia Cinta Vermelha / Jundiba, pelos agentes culturais do Festivale e pelos moradores de Itira. Essa procissão saiu do pequeno porto fluvial da localidade, situado na confluência do Rio Jequitinhonha com seu principal afluente, o Rio Araçuaí, e subiu a ladeira em direção à igrejinha do Senhor Jesus da Boa Vida.
Problemas ainda enfrentados pela organização do Festivale De 2006 para cá, o Festivale tem conseguido uma estabilidade muito relativa, com o risco de não realização do evento renovado a cada ano. Nesse atual período, ou fase, de relativa estabilidade, afora a instabilidade relativa, encontro dois sérios problemas na realização do evento:
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1) Depois de Araçuaí, temos o XXV Festivale, em Joaíma (2007), o XXVI, em Capelinha (2008), o XXVII, em Grão Mogol (2009), o XXVIII, em Padre Paraíso (2010), e o XXIX, que aconteceu em 2011 em Jequitinhonha (cidade que completa os duzentos anos de sua fundação), sendo que o XXX Festivale está previsto para julho de 2012, em Itaobim. Se excetuamos Capelinha e Grão Mogol, ambas caracterizadas por uma situação econômica privilegiada se comparadas com as demais cidades da região (Capelinha por polarizar uma região progressista e Grão Mogol graças ao ICMS gerado pela usina de Irapé), temos, em um período de sete anos (2006-2012), o evento acontecendo em um raio que não chega a duzentos quilômetros, em um vale que tem mais de mil quilômetros de extensão, mas dotado de uma rede rodoviária a todas as vistas insuficiente. Isso indica que a participação efetiva na organização do Festivale está centrada em um só setor do Vale do Jequitinhonha, com um nível de participação menor das demais regiões. 2) Já vimos que o Festivale, nos últimos anos, perdeu parte de seu caráter vanguardista. Isso se deve, em parte, à sua popularização, uma vez que, cada vez mais, recebe os moradores da região, respondendo aos anseios desse público. O público do Festivale também é cada vez maior, com predominância crescente dos mais jovens, para os quais as vanguardas são pouco palatáveis. Essa popularização chegou a tal ponto que a organização do evento não pode mais convidar certos artistas da região, que, em espetáculos a céu aberto, reúnem um público tão reduzido que chega a ser vergonhoso, gerando uma situação constrangedora tanto para o artista quanto para a organização e para o próprio público. Os grupos populares de cultura, os chamados grupos “folclóricos”, também têm sido prejudicados pelo tratamento preferencial dado aos espetáculos musicais de nomes já reconhecidos, que atraem grande público.
A título de conclusão: duas propostas Finalizando o texto, apresentamos duas propostas para a solução dos problemas acima relatados, mas sem ter como garantir o seu sucesso. Peço desculpas aos leitores e editores, porque, enquanto integrante do movimento cultural, não há como dividir, neste ponto, o militante do pesquisador. Para o primeiro problema apresentado, da centralização da militância em uma região relativamente reduzida, a solução é que se realizem
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reuniões, os Encontros de Cultura, ou Encontrões, nessas regiões menos envolvidas na organização do Festivale. Com relação ao segundo problema, de uma popularização “pasteurizadora”, minha sugestão é uma redução no formato do Festivale como um todo, com menos oficinas e, sobretudo, uma redução drástica no número de grandes espetáculos musicais, para diminuir as proporções do evento e consequentemente os custos, que têm inviabilizado sua realização, em repetidas ocasiões. Há que se dar menos ênfase nos espetáculos dispendiosos e mais espaço para as manifestações da cultura propriamente popular, que refletem tradições seculares, bem como para manifestações inovadoras, que propõem novas releituras da tradição.
Referências ANTUNES, Murilo. Nova República, bom dia! Geraes – A realidade do Vale do Jequitinhonha, n. 23, a. 7, p. 6, jul. 1985. FREIRE, Ângela Gomes. “Comunicado”. Disponível em: <http://www.fecaje. org/index>. Acesso em: 14 dez. 2011. GERAES: A REALIDADE DO VALE DO JEQUITINHONHA. Organização de Aurélio Silbner, George Abner e Tadeu Martins. ed. fac-similar. Belo Horizonte: Neoplan, 2011. SANTIAGO, Luís. O vale dos boqueirões: história do Vale do Jequitinhonha. Almenara: Edição do autor, 1999. v. 1. WIKIPÉDIA – A enciclopédia livre. “O Pasquim” (verbete). Disponível em: <pt. wikipedia.org/wiki/O_Pasquim>. Acesso em: 14 dez. 2011.
Luís Carlos Mendes Santiago é mestrando em História pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), onde trabalha em projeto sobre o mandonismo, sob a orientação da professora Carla Maria Junho Anastasia. Tem vários livros publicados, com destaque para a série O vale dos boqueirões – História do Vale do Jequitinhonha, da qual já foram editados quatro volumes.
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Arte e mobilização social: celebração da cultura popular e da identidade do Vale do Jequitinhonha Márcio Simeone Henriques Meu coração bate forte de alegria Quando vai chegando o dia da folia começar Eu vou pro Vale passar a semana inteira Numa festa brasileira de cultura popular Eu vou de ônibus eu vou de trem, me espera meu bem O vale é um pouco longe devagar eu chego lá
Estamos no penúltimo fim de semana de julho de 2010 e a movimentação na cidade de Padre Paraíso, Nordeste de Minas Gerais, começa a se intensificar. Pessoas de várias cidades do Vale do Jequitinhonha ou mesmo de outras localidades de Minas e do país, jovens em sua maioria, começam a se instalar nos alojamentos montados em escolas ou nas poucas opções de acomodação disponíveis. Terá início, no domingo, o 28º Festival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha (Festivale).1 Padre Paraíso, em Minas Gerais, é uma cidade pequena, que conta 18.852 habitantes.2 É cortada pela BR-116, a Rio-Bahia, distante da capital 542 quilômetros. É um dos lugares por onde se entra na região do Vale do Jequitinhonha. O Vale ocupa uma área de 79 mil km2, com população de aproximadamente 900 mil habitantes, composto por 52 municípios, na Região Nordeste do estado. É uma das regiões de menores índices de desenvolvimento econômico e social de Minas e do Brasil. Por isso tem sido reconhecida muitas vezes como o “Vale da Miséria”, o que, no entanto, contrasta com suas riquezas naturais e culturais. Se considerarmos especialmente a cultura popular, o Vale do Jequitinhonha apresenta ao mesmo tempo uma grande diversidade de manifestações e uma identidade que vem sendo construída – e reconhecida – ao longo das últimas décadas, graças a um movimento cultural atuante que começou a projetar a região no estado e no país. É nesse cenário que surge o evento que analisaremos neste texto. Suas características peculiares de mobilização o tornam interessante e, guardadas as suas proporções, podemos reconhecer o seu grande impacto. 1 - Trecho da música “Festivale”, de Rubinho do Vale. 2 - Realizado entre 25 e 31 de julho de 2010.
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Em Padre Paraíso, por exemplo, estimou-se uma circulação total de 2 mil forasteiros no período de uma semana. Isso significa quase 11% da população do município, uma população flutuante que demanda serviços e gera movimentação econômica no local. A organização do evento – a Federação das Entidades Culturais do Vale do Jequitinhonha (Fecaje) – contabilizou 510 inscritos em 15 oficinas, 66 músicas concorrentes no Festival de Música Coral Nossa Senhora do Rosário, 20 poetas e poetisas concorrentes na Noite Literária Adson da Silva Costa, 78 artesãos de 41 cidades participantes da Feira de Artesanato Mestre Ulisses Mendes, 1.231 pessoas acomodadas nos alojamentos do Festival (com fornecimento de café da manhã). A logística do evento contou ainda com o fornecimento de 2.571 refeições diárias.3 Analisar o Festivale em seu caráter mobilizador significa reconhecer a sua dimensão política. Visto como um movimento popular, sua trajetória ao longo dos anos acompanha os dilemas políticos vividos pelas entidades e por seus agentes. Quando se comemoram três décadas de Festivale, várias questões desafiam o movimento, exigem reposicionamento em relação às suas causas e a própria redefinição do evento.
Três décadas de mobilização cultural no Jequitinhonha A movimentação política e cultural que deu origem ao Festivale teve início ainda no final da década de 1970. Alguns jovens estudantes universitários oriundos do Vale, então residentes em Belo Horizonte, incomodados com a identidade pejorativa ligada às condições de miséria pela qual era conhecida a região, iniciaram uma mobilização política para reposicionar o Jequitinhonha e discutir ideias e estratégias de ação. Em pleno momento de abertura política, em que o país ainda vivia sob o regime militar, toma forma um movimento com o objetivo de criar núcleos políticos para a difusão da causa que esses jovens vislumbravam. Em março de 1978, o grupo cria uma publicação, o jornal Geraes, para ser o porta-voz desse movimento.4 A grande extensão do Vale, as grandes distâncias entre as cidades e povoações, com dificuldades de acesso e comunicação, criavam obstáculos à formação de uma rede mobilizada 3 - Dados do Censo 2010 – IBGE. 4 - Dados da Fecaje.
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desses núcleos. Foi necessária uma intensa circulação pela região, distribuindo o jornal e estabelecendo as discussões pouco a pouco. Dessas andanças emergiu como fator mais importante de identidade (e essencial à mobilização) a cultura popular. Poetas e compositores foram se agregando à rede de contatos do movimento e, não por acaso, descobre-se aí a força da cultura como resistência popular. A formação histórica do Jequitinhonha mesclou as inúmeras influências culturais de brancos, negros e índios de forma bastante peculiar. As manifestações populares, de caráter religioso ou não, estão enraizadas na vida da população de toda a região. Dessa primeira mobilização acabou surgindo a iniciativa de realizar um encontro de compositores, em novembro de 1979, na cidade de Itaobim. O entusiasmo com a realização desse encontro, que contou com 22 compositores de 15 cidades, fez com que se anunciasse a realização, naquela mesma cidade, no ano seguinte, de um Festival de Música – ao qual se denominou Festivale – Festival da Canção Popular do Vale do Jequitinhonha. O evento logo revelou vários talentos, que se projetaram no cenário nacional, como Paulinho Pedra Azul, Tadeu Franco, Saulo Laranjeira e muitos outros.5 Surgiu, com isso, o Centro Cultural do Vale do Jequitinhonha (CCVJ), responsável pela organização do Festivale. Em 1983, um racha no movimento fez com que surgisse outra entidade, o Movimento de Cultura Popular do Jequitinhonha (MCPJ), responsável pela edição do Geraes. Esse movimento promoveu em 1984 o I Encontro de Entidades Culturais do Vale do Jequitinhonha, na cidade de Jequitinhonha. Foi um momento importante da mobilização das diversas associações e movimentos existentes na época. O CCVJ continuaria a ser o organizador do Festivale até que as duas entidades novamente se unissem, em 1987. Agora, desaparecido o Geraes, nova entidade, denominada Centro Cultural e Artístico do Vale do Jequitinhonha (CCAVJ), encarrega-se da promoção do Festival e do Encontro de Entidades Culturais. Também nessa ocasião a articulação cultural tornou-se mais ampla e, em 1987, o festival tomou uma dimensão maior, incorporando não só o certame musical. Assim, toma a forma que tem até hoje, em que se congregam as mais diversas manifestações: teatro, artesanato, dança, literatura, manifestações populares tradicionais. Passa a ser realizado em sete dias, com a promoção de cursos e oficinas, da 5 - O jornal era impresso em Belo Horizonte e foi editado até 1985. Respondiam pela sua edição Tadeu Martins, Aurélio Silby, George Abner e Carlos Albérico Figueiredo e possuía diversos correspondentes em cidades da região. Tinha uma temática essencialmente política.
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Noite Literária6 e de uma intensa programação artística com artistas e grupos do Vale e convidados.7 Em 1990, surge nova entidade que congrega instituições do movimento e até hoje se encarrega do Festivale: a Federação das Entidades Culturais do Vale do Jequitinhonha (Fecaje). Até os dias de hoje o Festivale veio se consolidando como grande evento de cultura popular e como momento principal de congregação de pessoas e grupos que compõem o movimento cultural do Vale.
A busca dos elementos comuns: a identidade construída Como vimos, a história de Festivale permite-nos destacar o seu caráter mobilizador. Entendemos a mobilização social como “uma reunião de sujeitos que definem objetivos e compartilham sentimentos, conhecimentos e responsabilidades para a transformação de uma dada realidade, movidos por um acordo em relação a determinada causa de interesse público” (BRAGA; HENRIQUES; MAFRA, 2004, p. 36). Isso inscreve os processos de mobilização num terreno essencialmente político. O ponto de partida do movimento deixava clara a intenção de buscar interferir nos destinos políticos e econômicos, denunciando a situação de exclusão e opressão da região, por meio de estratégias para a comunhão da causa e de uso de recursos de visibilidade. Para isso era necessário criar fatores capazes de, a um só tempo, gerar possibilidades de identificação e reconhecimento da própria população – dispersa num vasto território – e algo que fosse possível projetar para fora do Vale que expressasse essa identificação. Não obstante as enormes diferenças entre as várias localidades e microrregiões, era preciso construir uma base comum de entendimento. Os jovens idealistas que tomaram para si a iniciativa mobilizadora perceberam a necessidade de denunciar as injustas condições de vida e de inserção da região no cenário geopolítico de Minas e do Brasil, como ponto forte de identificação entre as várias localidades e, além disso, uma insatisfação comum com a visão externa projetada como “Vale da Miséria”. Era preciso, então, criar as condições para a proposição pública da causa primeiramente entre a própria população local. No entanto, colocar 6 - O primeiro Festivale teve duração de três dias, 90 canções inscritas de compositores de 14 cidades. A música vencedora foi “Ave Cantadeira”, de Paulinho Pedra Azul. 7 - Momento reservado ao festival de poesia, um concurso no qual os poetas se apresentam e encenam sua obra.
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em movimento esses públicos locais exigiria maior esforço no sentido de encontrar ainda outros elementos que justificassem e marcassem simbolicamente essa identidade comum da população. E esta foi alcançada inicialmente através dos compositores e poetas e, pouco a pouco, expandida com o encontro das diversas manifestações populares. A difusão inicial da causa, fora do circuito dos meios de comunicação, ocorreu de forma heroica e os relatos dos pioneiros povoam até hoje o imaginário dos participantes do movimento. A primeira estratégia de visibilidade, como dissemos, foi um jornal. Mas mesmo a sua publicação não bastava para cumprir a meta de coletivização tão ambiciosa, que envolvia todo o Vale e, fora dele, toda uma parcela de população deslocada pelas migrações para os grandes centros e ainda públicos sensíveis capazes de compreender as denúncias, envolver-se com a causa e efetivamente apoiá-la publicamente. As grandes barreiras em transportes e comunicações nessa época exigiram um esforço do grupo mobilizado em alcançar as várias cidades, tendo o Geraes como uma carta de apresentação, sensibilizando as pessoas e recrutando adeptos.8 Segundo Souza (2010, p. 63), o Vale do Jequitinhonha “é uma região extremamente diversificada, tanto pela historicidade de sua ocupação quanto pela caracterização do quadro geográfico e das atividades que aí tiveram lugar”. Não obstante tais diferenciações, é possível entrever muitos aspectos comuns, ligados às influências de negros e índios, à religiosidade popular, aos fazeres artesanais, à produção familiar de subsistência, às formas de sociabilidade comunal. As manifestações de arte popular, em seu forte cariz de resistência, davam bom suporte à formação de um terreno comum no qual a própria região pudesse se reconhecer. Com efeito, a iniciativa de congregar essas manifestações fez surgir para o próprio Vale uma identidade cultural, que, reflexivamente, passou também a alimentar os próprios artistas com elementos fortes do imaginário local. Pode-se dizer que a estratégia de visibilidade para fora do próprio Jequitinhonha se completou em seguida através do Festivale. Essa combinação entre o movimento político do Geraes e a articulação artística e cultural, sem dúvida, foi a responsável pela construção identitária que 8 - Este grupo também se muniu de bastante ousadia para a época. Por exemplo: para percorrer com um show várias cidades, em 1981, fizeram a divulgação por meio de um cartaz polêmico que, com o título “Procurados”, apresentava os participantes em uma série de retratos 3 x 4, numa alusão aos ativistas que, na clandestinidade, eram procurados pelo regime militar.
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subsistiria até hoje,9 apesar de a unificação como território geopolítico ter-se dado na década de 1960.10 Ainda como festival de música, o Festivale começa a obter sucesso em projetar uma nova imagem, buscando o reposicionamento desejado. Esse desejo, de voltar-se para uma identificação própria da população local, mas também de busca de reconhecimento externo, estava expresso no projeto inicial, por meio de quatro elos: “conhecer, gostar, defender, divulgar”. Daí para frente, a projeção de vários artistas, ao longo do tempo, servirá para alavancar externamente o movimento: Paulinho Pedra Azul, Rubinho do Vale, Saulo Laranjeira, Carlos Farias, Pereira da Viola, entre outros. Consideramos que essa expressão representou um manifesto difuso, não escrito, que passou, de certo modo, a guiar simbolicamente o movimento. Desde o slogan que passou a acompanhar o evento – inicialmente, no primeiro Festivale “Vida, vale, verso e viola” e depois modificado para “Vale, vida, verde, versos e viola” – os exemplos são muitos, retirados, por exemplo, das músicas dos cantores do Vale, como estas: Jequitinhonha / Braço do mar / Leva esse canto pra navegar/traz do garimpo / pedra que brilha/mais que a luz do luar / Jequitinhonha / jequitibarro / mete essa unha, tira da terra / vida talhada com as mãos.11 Vi muita gente subir / Vi muita gente descer / Metade de um povo pedir / E um povo inteiro a sofrer / Hoje eu canto pra não chorar / Tô cansado de esperar / Vi muita gente chegar / Vi muita gente partir / Trazendo nada de lá / Levando as coisas daqui / Dizendo pro meu pessoal / Essa terra já virou teima / De dia tá no jornal e / De noite tá no cinema / Povo vivendo de teima / Povo teimoso... / Povo que vem lá de fora / Trazendo a sabedoria / Avisa lá que aqui chora / Vivendo e vendo agonia.12 9 - Com respeito, especificamente, ao papel do jornal Geraes nessa formação de identidade, sugerimos a leitura de Ramalho e Doula (2009). As autoras mostram em sua análise que, com efeito, o Geraes teve um papel preponderante na criação de uma unidade simbólica identificável pela representação compartilhada do homem do Jequitinhonha, por uma representação política de resistência e, num segundo momento, pelo reconhecimento da cultura popular como um fator importante a ser explorado. 10 - Para efeito de atuação da Companhia de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha (Codevale), foi delimitado oficialmente em 1966 como sendo constituído à época de 52 municípios (SOUZA, 2010, p. 15). 11 - Trecho da música “Jequitinhonha”, de Lery Faria e Paulinho Assumpção, popularizada na interpretação de Paulinho Pedra Azul. 12 - Trecho da música “Voz do Jequitinhonha”, de Rubinho do Vale.
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Mas se é possível identificar com clareza a causa que deu origem a tal mobilização, por certo a persistência do Festivale no tempo – três décadas – exige uma visão dinâmica da própria causa, ou seja, com as mudanças sociais, políticas e culturais operadas nesse período, transformam-se também tanto a causa como as formas de vínculo dos atores que a sustentam. As condições políticas e econômicas do país e do Vale do Jequitinhonha de hoje não são, obviamente, as mesmas de quando se iniciou o movimento. Até porque o próprio sucesso do Festivale como evento mobilizador interferiu – positivamente – nesse processo e construiu, de fato, novos elementos de identidade cultural e um imaginário muito forte. Mais especificamente, podemos destacar dois fatores que têm interferido no próprio festival, como resultado dos dilemas vividos pelo movimento que o sustenta. O primeiro é a intensa profissionalização da produção cultural, um fenômeno que altera as características iniciais de um evento com maior grau de espontaneidade e improvisação. A captação de recursos, por exemplo, por meio de leis de incentivo à cultura e de editais, requer um planejamento e uma estruturação institucional que se choca com a dinâmica do movimento. O segundo é a mudança rápida da oferta de comunicação e alteração dos recursos de visibilidade disponíveis. De meados da década de 1990 para cá, as cidades do Vale começam a ter acesso mais disseminado à televisão, proliferam as rádios locais, ampliam-se as ligações telefônicas e surgem a cobertura de telefonia celular e a Internet. Isso, por um lado, facilita as conexões do próprio movimento, mas, por outro, ao quebrar o isolamento, aumenta a oferta informacional, amplia o acesso a manifestações culturais muito diversificadas e institui um desafio de integrar as novas gerações – não necessariamente interessadas na preservação das antigas manifestações populares, mas, elas próprias, muito ativas e criativas, ao reelaborar suas formas de expressão. Mesmo assim, o Festivale continua sendo um ponto importante de interseção, ao congregar o movimento cultural e reafirmar a identidade construída. É aguardado com expectativa e tratado como algo importante no contexto do Vale do Jequitinhonha.
Três dimensões da mobilização social no Festivale Os eventos culturais como ato mobilizador, no sentido que aqui utilizamos, devem-se realizar em três dimensões complementares: festiva,
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espetacular e argumentativa (MAFRA, 2006).13 Por isso, um evento como o Festivale não se circunscreve a uma simples celebração ou a um produto cultural. Precisa ser examinado em relação ao processo comunicativo que opera com a função de coletivização (posicionar publicamente a causa do movimento e convocar os sujeitos à participação) e de vinculação (gerar e manter vínculos dos sujeitos com a causa e com o projeto mobilizador) (HENRIQUES, 2010). Por ser um festival, a primeira dimensão é bastante evidente. Seu objetivo de ser o momento e o espaço de congregação do movimento, reunindo as entidades e os seus geradores, bem como simpatizantes, pretende reforçar, por meio da celebração, os laços de união dos vários atores já engajados, bem como criar as condições para atrair novos participantes. A festa é o momento de celebrar os vínculos, reafirmar a importância da união e de compartilhar sentimentos comuns, “instaurando uma participação mais livre por convivialidade” (MAFRA, 2006, p. 82). O poema “Traço de união”, de Gonzaga Medeiros, poeta da região, um “manifesto” sempre presente de algum modo no contexto do Festivale, explicita essa importância: Há que se tramar uma nova junta, há que se juntar os homens e as mulheres numa tropa só. há que se apertar os laços, há que se laçar os homens e as mulheres sem usar o nó. É preciso traçar o abraço, é preciso crescer o traço sem mais demora; carece juntar as pontas, carece tramar a união logo agora.
13 - Tomamos aqui para análise as três categorias propostas por Rennan Mafra (2006). Recomendamos leitura mais detalhada sobre as formas de operação das três dimensões apontadas, especialmente no que diz respeito às formulações estratégicas do projeto mobilizador que o autor analisa, no caso, uma expedição que percorreu o Rio das Velhas, em Minas Gerais.
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Antes que se vá o sol, que se disperse a tropa e se apague o traço, que se destroce a junta e se desfaça o laço, cedo, sem fazer alarde, antes que tarde há que se dar o abraço.14
A dimensão espetacular relaciona-se diretamente à demanda por visibilidade do movimento. Para Mafra (2006, p. 81) Trata-se da “criação de um âmbito extraordinário, encenação e tentativa de visibilidade pública”. Num primeiro sentido, o festival pretende gerar uma grande “interferência” na cidade onde se realiza. As cidades são escolhidas atualmente através da proposição de suas candidaturas à Fecaje. A articulação entre o movimento cultural local e o poder público municipal é, atualmente, fator importante para a escolha da cidade. Ocorre aqui uma situação proporcionalmente semelhante à escolha de sedes de Copa do Mundo ou Olimpíadas: uma avaliação acerca das condições de suporte pelo próprio movimento local, a infraestrutura oferecida pela cidade, a condição que a prefeitura tem de arcar com vários custos do evento (principalmente provimento de infraestrutura), os equipamentos culturais disponíveis etc. Os próprios municípios veem na realização do Festivale uma boa oportunidade de alcançar maior visibilidade, de atrair atenções e de trazer manifestações artísticas e culturais que não são rotineiramente oferecidas à sua população. Essa intervenção, de fato, ocorre com grande impacto. Dada a pequena dimensão das cidades em que se realiza, o festival alcança por si só uma grande visibilidade, pela grande movimentação de pessoas, pela participação de pessoas da cidade nas oficinas e pela grande variedade de atrações que se realizam nas ruas, principalmente à noite. Um segundo sentido refere-se à projeção externa desejada. Para alcançar os públicos da própria região do Vale do Jequitinhonha e ainda além, o evento requer uma presença tanto em mídias locais (das várias cidades da região) quanto em veículos de alcance estadual e nacional. Isso demanda uma atenção especial a uma estrutura mais profissionalizada de comunicação que faça circular a informação não apenas na própria cidade que recebe o festival e entre os seus participantes. No âmbito das mídias locais, é grande 14 - MEDEIROS, Gonzaga. Traço de união. 1. ed. Belo Horizonte: Arte Quintal, 1991.
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o desafio, para vencer as distâncias e a dispersão. A maioria das cidades não conta com veículos de imprensa escrita, há pequena cobertura jornalística de televisão. Entretanto, a proliferação de emissoras radiofônicas locais desde meados da década de 1990 gerou condições para que este se tornasse um instrumento importante para a divulgação. A partir de 2003, com o 22º Festivale, o trabalho com as emissoras de rádio da região foi inserido como elemento importante não apenas para anunciar o evento, mas como cobertura, realçando a sua dimensão espetacular. Desde então, uma estrutura de assessoria de comunicação produz boletins radiofônicos diários durante a semana do evento. No início eram veiculados por meio de link telefônico, em cadeia simultânea (no primeiro ano entraram em cadeia 15 emissoras); em 2009 e 2010 a maioria das emissoras passou a receber o programa pela Internet (na edição de 2010 participaram da rede 16 emissoras). Já o desafio de promover uma visibilidade ampliada, para fora do Vale, requer mostrar o Festivale como um produto cultural, ressaltando seus aspectos espetaculares, capazes de despertar a atenção das mídias em âmbito estadual e nacional. Também sob esse prisma, uma estrutura mais profissionalizada veio se mostrando cada vez mais imprescindível.15 Entretanto, são reiteradamente observadas a cada edição do Festivale as limitações e dificuldades em conquistar esses espaços de visibilidade. A competição por esses espaços e a demanda de que o evento não seja abordado somente como um produto/espetáculo, mas também em suas outras dimensões mobilizadoras, são sempre um grande desafio imposto à comunicação do evento.16 A terceira dimensão, argumentativa, pelo seu caráter político, não pode em nenhuma hipótese ser desconsiderada. O sentido mobilizador não se completa se o evento contemplar somente as outras duas dimensões. Esta dimensão permite uma possibilidade de “instaurar uma relação dialógica entre os sujeitos a partir do debate público” (MAFRA, 2006, p. 82). Entram em jogo as possibilidades de compartilhamento efetivo de infor15 - No Festivale de 2003, na cidade de Medina, por uma parceria da Fecaje com o Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha, da Universidade Federal de Minas Gerais, foi realizada uma assessoria de comunicação colaborativa: estudantes do curso de Comunicação Social proporcionaram antecipadamente atividade formativa de jovens da cidade para a realização do trabalho de comunicação do evento. Durante o Festivale, todo o trabalho de assessoria foi realizado por esses jovens com o acompanhamento da equipe de universitários. O mesmo processo ocorreu nas edições de 2009 (Grão Mogol) e 2010 (Padre Paraíso). Sobre esse processo, recomendamos a leitura de Henriques e São Pedro (2004) e Bechelane e Siffert (2010). 16 - Sem contar, também, que as características do evento (popular, com maior grau de espontaneidade) e a limitação de recursos não condizem com a contratação de serviços profissionais (que não estão disponíveis na própria região).
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mações, de conhecimentos e de responsabilidades em relação aos destinos do próprio movimento. Observamos que essa dimensão se manifesta no Festivale de duas formas distintas. A primeira tem a ver com a sustentação do próprio festival dentro do movimento cultural do Vale. A entidade promotora, sendo uma federação de entidades, realiza a cada ano dois outros eventos, os chamados “Encontrões”, que possibilitam momentos de troca argumentativa. Ao reunir essas entidades e os representantes do movimento, fazem, nesses momentos, o planejamento do festival e a sua avaliação posterior (respectivamente no primeiro e no segundo semestres). Nessas ocasiões, são discutidas não apenas as questões operacionais do festival, mas são tomadas importantes decisões de caráter político, como a escolha do tema determinada edição. Para o 28º Festivale, em Padre Paraíso, foi escolhido o tema “Juventude, Cidadania e Identidade Cultural”. A segunda inserção da dimensão argumentativa é a promoção de espaços de discussão dentro do próprio evento, com debates e palestras. Em 2009, foram realizados debates sobre educação, cidadania e diversidade, além de reunião com artesãos. Em 2010, a programação contou com debates sobre a própria temática escolhida, seguida de passeata pelas ruas da cidade.
Considerações finais: os dilemas do evento mobilizador Agora nos transportamos para um dia quente de outubro de 2010 na cidade de Felisburgo, no Baixo Jequitinhonha. Ali se realiza o Encontro das Entidades Culturais do Vale do Jequitinhonha (o “Encontrão”), promovido pela Fecaje, que tem entre seus objetivos fazer a avaliação do 28º Festivale. Nas discussões emergem as muitas contradições vividas na mobilização, as dificuldades na promoção de um evento desse porte e dessa natureza, seus impactos nas cidades que o acolhem, as questões próprias aos desdobramentos atuais da causa (ou das causas) do movimento. Ali se vê, de fato, uma dinâmica que sustenta um evento com caráter mobilizador e daí surgem os grandes desafios: como pensar a identidade cultural do Vale dentro dessa dinâmica, como inserir as novas gerações numa causa que se renova, se reposiciona, como manter os delicados equilíbrios na vinculação com os públicos (tanto os geradores do movimento como os demais que buscam envolver), como garantir a sua sustentação financeira, sempre precária. Importante ponto a ser considerado é a manutenção das características mobilizadoras do evento, porém dentro de um enquadramento mais contemporâneo, que exige, de outro lado, certa profissionalização. Seus promotores 187
são chamados a fazer isso sem deixar de perder os laços de solidariedade, sem esvaziar de sentido a reafirmação do Jequitinhonha como um lugar de riqueza artística e cultural e sem perder a memória dos primeiros tempos de luta. Participar dessa experiência tem-nos proporcionado visualizar a importância das estratégias de comunicação para mobilização social. Estas não se limitam à promoção e divulgação: estendem-se a todo um processo de trocas, negociações de sentido, formulações simbólicas, que compõem a luta por visibilidade e reconhecimento na arena pública e vão criando e recriando a representação da identidade do Vale. A necessidade de expressar tudo isso é o que alimenta, ainda hoje, a criação dos artistas, inspira os poetas da região – arte do povo simples que busca lugar para existir.
Referências BECHELANE, Sâmia; SIFFERT, Bráulio. Comunicação colaborativa no Festival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha: metodologias em processo. In: CONFERÊNCIA BRASILEIRA DE MÍDIA CIDADÃ; CONFERÊNCIA SUL-AMERICANA DE MÍDIA CIDADÃ, 6.; 1., 2010. Anais... Pato Branco/ PR: Fadep, 2010. Disponível em: <http://www.unicentro.br/redemc/2010/ Relatos/Comunica%C3%A7%C3%A3o%20colaborativa%20no%20Festival%20de%20Cultura%20Popular%20do%20Vale%20do%20Jequitinhonha%20-%20metodologias%20e.pdf>. Acesso em: 15 maio 2012. BRAGA, Clara S.; HENRIQUES, Márcio S.; MAFRA, Rennan L. M. O planejamento da comunicação para a mobilização social: em busca da corresponsabilidade. In: HENRIQUES, Márcio S. (Org.). Comunicação e estratégias de mobilização social. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. HENRIQUES, Márcio S. Comunicação e mobilização social na prática de polícia comunitária. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. HENRIQUES, Márcio S.; SÃO PEDRO, Emanuela de A. Comunicação e mobilização para a cultura do Vale do Jequitinhonha. In: ENCONTRO DE EXTENSÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 7., 2004. Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2004. Disponível em: <http://www.ufmg. br/proex/arquivos/7Encontro/Comunica9.pdf>. Acesso em: 1º jun. 2012.
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MAFRA, Rennan L. M. Entre o espetáculo, a festa e a argumentação: mídia, comunicação estratégica e mobilização social. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. RAMALHO, Juliana P.; DOULA, Sheila M. O Jequitinhonha nas páginas do jornal Geraes: cultura e territorialidade. Contemporâneos - Revista de Artes e Humanidades, Viçosa, Universidade Federal de Viçosa, n. 4, maio-out. 2009. SOUZA, João Valdir A. de. Mineração e pecuária na definição do quadro sociocultural da região do Termo de Minas Novas. In: HENRIQUES, Márcio S.; SOUZA, João Valdir A. de. Vale do Jequitinhonha: formação histórica, populações e movimentos. Belo Horizonte: PROEX/UFMG, 2010. p. 25-70. TORO, Jose Bernardo; WERNECK, Nísia Maria Duarte. Mobilização social: um modo de construir a democracia e a participação. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
Márcio Simeone Henriques é doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais e professor do Departamento de Comunicação Social da mesma instituição. Participante do Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha como coordenador da área de comunicação e de várias pesquisas e projetos como Agência de Comunicação Solidária no Vale do Jequitinhonha, Suporte de Comunicação do Programa Polo, mapa da mídia do Vale do Jequitinhonha.
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Impresso em papel Off Set 90g/m² Imprensa Universitåria da UFMG Setembro de 2012
A movimentação politíca e cultural que deu origem ao Festival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha (Festivale) teve iício ainda no final da década de 1970. Alguns jovensOestudantes universitários do Vale, então em Belo Horizonte, trabalho não é causa daoriundo diferenciação entreresisdentes homens e mulheres no incomodados com a identidade pejorativa associada às condições de midéria pela Vale do Jequitinhonha. Ele apenas reflete essa diferenciação que lhe qual era conhecida a região, iniciaram uma mobilização política para reposicionar o preexiste, diferenciação impregna todo Em o tecido social, e Jequitinhonha e discutir ideias e que estratégias de ação. um momento denão abertura apenas a esfera do trabalho. na verdade, politíca em que o país ainda vivia sobHá, o regime militar, uma tomauniversalização forma um movimento com odessa objetivo de criar núcleos para a difusão da causa que esses jovens diferenciação. Porpolíticos isso, é necessário frisar que as relações vislumbravam . não dizem respeito apenas à esfera doméstica, privada. de gênero
E, mais, não são relações quepublicação, se prendem a umaGeraes, ideologia como Em março de 1978, o grupo cria uma o jornal para ser ofalsa porta-voz existente apenas do nasVale, cabeças das pessoas, como meras desseconsciência movimento. A grande extensão as grandes distâncias entre as cidades e povoações, de acesso e comunicação, constituíam obstáculos à ideias. com Muitodificuldades ao contrário. São relações presentes em todas as formação de uma rede mobilizada desses núcleos. Foi necessária oara intensa circulação esferas e são imbuídas de elementos pensados e reais, no sentido de pela região, distribuindo o jornal e estabelecendo as discussões pouco a pouco. Dessas que refletem o real e também o determinam. andanças emergiu como fator mais importante de identidade (e essencial à mobilização) a cultura popular. Poetas e compositores foram se agregando à rede de contatos do movimento e, não por acaso, descobre-se aí a força da cultura como resistência popular. Maria Aparecida de Moraes Silva
Esta história é um dos temas abordados neste livro, que teve como ponto de partida o seminário Visões do Vale VI, realizado em novembro de 2011. Acadêmicos, militantes, músicos, artesãos, contadores de história, todos se envolveram numa discussão profícua sobre a questão da cultura e do desenvolvimento no Vale..