VALE DO JEQUITINHONHA
Juventudes, participação política e cidadania.
Organização Maria das Dores Pimentel Nogueira
VALE DO JEQUITINHONHA
Juventudes, participação política e cidadania.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - UFMG PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO | PROEX-UFMG PROGRAMA POLO DE INTEGRAÇÃO DA UFMG NO VALE DO JEQUITINHONHA BELO HORIZONTE, 2014
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Reitor: Jaime Arturo Ramírez Vice-Reitora: Sandra Regina Goulart Almeida Pró-Reitora de Extensão: Benigna Maria de Oliveira Pró-Reitora Adjunta de Extensão: Cláudia Andréa Mayorga Borges Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha Coordenadora: Maria das Dores Pimentel Nogueira Projeto Visões do Vale Coordenador: João Valdir Alves de Souza ©2014 Este livro foi publicado com recursos da Pró-Reitoria de Extensão da UFMG Vale do Jequitinhonha :juventudes, participação política e cidadania / Organização Maria das Dores Pimentel Nogueira. – Belo Horizonte :UFMG/PROEX,2014. 140 p. :il. Foto., color. ; 19 cm. ISBN 978-85-88221-48-2 1. Juventude – Aspectos sociais - Jequitinhonha, Rio, Vale[MG E BA]. 2. Juventude e condições sociais - Jequitinhonha, Rio, Vale[MG E BA]. 3. Extensão universitária . I. Nogueira, Maria das Dores Pimentel. II. Universidade Federal de Minas Gerais, Pró-Reitoria de Extensão. III. Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha. CDD 305.230981
Produção editorial: Roseli Raquel de Aguiar Revisão e normalização de texto: Maria de Loudes Costa de Queiros (Tucha) Projeto gráfico: Andrea Estanislau e Mateus Sá Diagramação: Mateus Sá Capa: XIII Festival de Férias de São Gonçalo do Rio das Pedras, Jan/2010 - Lori Figueiró Aberturas: XIII e XIV Festival de Férias de São Gonçalo do Rio das Pedras, Jan/2010 e 2011 - Lori Figueiró Página 98: Jovens de Itaobim, noite de exibição do vídeo ”Relatos da Namoradeira”, 2014 - Julia Eliazar Brito. Página 139 e 139: III Encontro de comunicadores do Vale do Jequitinhonha - Itaobim, 23 a 25 de Jan/2014 - Tomás German Produção executiva: Gaia Cultural [Cultura e Meio ambiente]
SUMÁRIO 8 Apresentação Maria das Dores Pimentel Nogueira
14 As antessalas das jornadas de junho no Brasil em 2013: configurações da contestação social de jovens urbanos no Brasil contemporâneo Igor Thiago Moreira Oliveira
38 Juventude, memória e saberes intergeracionais no Vale do Jequitinhonha/MG Rodrigo Ednilson de Jesus
54 Comunicação, mobilização social e participação política de coletivos juvenis do Médio Vale do Jequitinhonha Márcio Simeone Henriques
78 Projeto Casa da Juventude Lia Queiroz
82 Sucessão e formação da juventude rural do Vale do Jequitinhonha Kênia Fabiana Cota Mendonça Áureo Eduardo Magalhães Ribeiro Flávia Maria Galizoni
98 Uma juventude rural Conceição Aparecida Luciano
114 O que dizem os jovens? Laura Nayara Pimenta
120 Constituição histórica dos direitos de cidadania João Valdir Alves de Souza
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Apresentação
A Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Minas Gerais, por meio do Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha, tem a satisfação de disponibilizar ao público mais uma publicação da série Visões do Vale. A atuação da Universidade na região remonta a algumas décadas. No entanto, por meio do Programa Polo Jequitinhonha, que se constitui como um programa de desenvolvimento regional, essa atuação se tornou mais orgânica, pois busca articular, de forma interdisciplinar, ações de diversas unidades acadêmicas da própria universidade, de outras instituições de ensino superior, e de representantes dos poderes públicos nas esferas federal, estadual e municipais. Mas, especialmente, o que sempre se buscou foi a articulação com a população do Vale, representada por seus movimentos sociais, seus grupos culturais e artísticos, os produtores rurais, as lideranças que trabalham em prol dos direitos de crianças, jovens e mulheres, além de uma grande diversidade de instituições sociais e culturais. Segundo Roberto Nascimento Rodrigues, coordenador da área de Desenvolvimento Regional e Geração de Ocupação e Renda do Programa, “A ideia é que o desenvolvimento econômico do Vale só tem sentido se incorporar, efetivamente, em suas várias instâncias, a capacidade produtiva de toda a sua população. Assim, o Polo Jequitinhonha pauta-se na constatação da necessidade de incorporar o conjunto da população do Vale na condição de potenciais promotores, indutores e beneficiários do desenvolvimento econômico, cultural, social e humano” (2002). Os projetos que compõem o Programa estão alocados nos seguintes eixos de atuação: Cultura, Comunicação, Direitos Humanos, Educação, Meio Ambiente, Saúde e Desenvolvimento Regional e Geração de Ocupação e Renda. Uma das ações do Programa é o Seminário Visões do Vale, que tem como objetivo principal reunir extensionistas, pesquisadores , acadêmicos, representantes do Vale do Jequitinhonha e agentes governamentais para discutir questões e problemas importantes para a região. Nesses seminários já foram discutidas questões relativas ao meio ambiente,
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à saúde, à ocupação e ao trabalho, ao desenvolvimento e sustentabilidade, à cultura, dentre outros. Em 2013 foi realizado o VIII Seminário Visões do Vale sobre a temática da juventude, abordando aspectos de sua participação política e cidadania, suas dificuldades nos setores da educação, da formação profissional, do trabalho, da migração sazonal para lavouras de cana, café e frutas; sua participação em movimentos culturais e de comunicação na região. Enfim, suas dificuldades, seus sonhos e anseios, tão comuns a qualquer jovem do país, mas agravados pela convivência em um território árido, que sofre as consequências de décadas de equívocos de planejamento e ação governamental. Em 2013, VIII Seminário Visões do Vale, foi dividido em duas etapas: a primeira ocorreu na cidade de Turmalina, integrando a programação do Festival da Canção, o Festur, e contou com a participação de um grande número de jovens de diferentes municípios da região. A segunda etapa ocorreu em Belo Horizonte, na UFMG, no Campus Pampulha. Além das mesas temáticas e espaços de discussão acerca do tema central e das características, problemas e potencialidades do Vale do Jequitinhonha, o Seminário também contou com apresentações de trabalhos de pesquisa e extensão sobre o Vale. Constituiu-se como um espaço para o debate, o diálogo e a realização da necessária crítica sobre o que é fazer pesquisa e extensão no Jequitinhonha, além de discutir o significado de tudo isso para a academia e para a população local. O livro aqui apresentado traz os temas tratados durante o Seminário de forma comprometida com a questão das juventudes, no mundo, no Brasil e no Vale do Jequitinhonha. A ideia de juventudes, no plural, corresponde ao reconhecimento de uma realidade muito diversificada que envolve os jovens. Para além de reconhecer um segmento populacional mais ou menos definido, o olhar sobre os jovens precisa abarcar uma dinâmica social que é própria em cada tempo e em cada lugar, ou seja, em sua historicidade. Compreender a juventude em sua diversidade é um desafio e também assim o é numa região como o Vale do Jequitinhonha. Para compreender as relações de sua população jovem com o mundo é preciso vê-la ao mesmo tempo em seu contexto peculiar. Assim, há sonhos, formas de sociabilidade e dramas comuns a qualquer jovem, mas também singularidades. Seu ambiente não é dos grandes centros urbanos, tampouco continua a ser essencialmente rural, no sentido tradicional. As possiblidades de formação, de organização, de intervenção nesse ambiente e de comunicação têm sido, nos últimos
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anos, substancialmente alteradas, mas isso não se faz necessariamente acompanhar pelas oportunidades de efetivar sua cidadania. Foi no intuito de levantar essa problemática que o Visões do Vale, além de reunir para debate especialistas e pessoas envolvidas com as políticas públicas para as juventudes, levou à Turmalina também muitos jovens da região. Em vários projetos do Programa Polo Jequitinhonha a presença de jovens muito ativos e mobilizados há bom tempo vem sendo notada e começa a dar forma a um processo político inovador. Assim, não só ao longo dos debates do Seminário eles tiveram também a palavra, mas puderam debater suas inquietações, falar sobre alguns dos principais temas que os afetam em grupos de trabalho e na plenária final da fase de Turmalina. Essa expressão e esse diálogo são inspiradores. Igor Thiago Oliveira aborda as contestações sociais juvenis na contemporaneidade no mundo e no Brasil, e evidencia a importância da participação dos jovens em assembleias populares, manifestações e na luta por políticas públicas, tendo como exemplo as manifestações de junho de 2013, que ocorreram em todo o país e que tiveram os jovens como protagonistas. O tema por ele abordado no seminário foi “Juventude e participação política no Brasil contemporâneo: entre a irrupção visível e os subterrâneos cotidianos”. A discussão trazida por Rodrigo Ednilson é a articulação entre os temas juventude, memória e os saberes intergeracionais no Vale do Jequitinhonha. Aborda o sentimento de pertencimento ao Vale, manifestado de forma natural por seus moradores em tantas e tão diversas situações. “Onde se ensina, ou se aprende a ser e a se sentir do Vale?”, indaga o professor. Três textos apresentados são fruto de pesquisas realizadas com juventudes da região. Márcio Simeone realizou a pesquisa “Da tutela ao empoderamento: comunicação e mobilização social de públicos juvenis no Médio Vale do Jequitinhonha”, desenvolvida entre 2011 e 2013, em cinco municípios do Vale, abordando as questões de emponderamento juvenil com base em alguns coletivos da região. Registra como recorrentes as preocupações dos jovens em relação ao vínculo entre cultura e política, à dependência dos coletivos do poder público e à utilização do teatro como veículo de expressão popular no Vale. Conceição Luciano apresenta os resultados de sua pesquisa sobre os jovens rurais discutindo os aspectos e os problemas da emigração da região para trabalhar em lavouras de café ou canaviais. Aponta as
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mazelas dos jovens migrantes “entre o cá e o lá”, a exploração do trabalho e do ser humano, a interrupção forçada dos estudos, entre migrações temporárias ou permanentes. Kênia Mendonça apresenta os resultados de sua pesquisa sobre o tema “Sucessão e formação da juventude rural do Vale do Jequitinhonha”, onde discute assuntos como a agricultura e a tradição do conhecimento transmitido entre gerações pelas famílias, o processo de capacitação dos jovens, o abandono de estudos para dedicação ao trabalho remunerado, a migração sazonal dos jovens para estudar e a importância da qualidade na educação básica e superior na região para assegurar que os jovens não percam os vínculos e permaneçam no Vale. Uma visão do Vale, de quem trata cotidianamente com os jovens, vem na voz de Lia Queiroz, que discute o tema da juventude frente à desigualdade social do Jequitinhonha, apontando a falta de oportunidades, respeito à juventude e ausência de políticas públicas para os jovens do Vale. Mostra o papel da Casa da Juventude de Itaobim e a importância da atuação do Programa Polo Jequitinhonha junto com a população de lá. O texto de Laura Pimenta traz a voz dos jovens do Vale presentes ao seminário que apresentaram as características, desafios e potencialidades das juventudes da região. do Jequitinhonha. Ali ficaram patentes a importância da participação das juventudes em movimentos e grupos culturais para combater os diversos tipos de preconceitos e também as preocupações dos jovens quanto ao problema das oportunidades de estudar e trabalhar na própria região. A discussão abordou a falta de abertura de espaços de participação para eles. Por fim, fecha-se o livro com um texto de João Valdir Alves de Souza abordando a constituição histórica dos direitos humanos, estabelecendo uma ligação entre os temas abordados no seminário realizado em 2013 e aquele que será realizado em 2014, onde se tratará a questão dos direitos humanos e da cidadania no Vale do Jequitinhonha. Com esta publicação, o Programa Polo Jequitinhonha reafirma, mais uma vez, sua proposta, seu compromisso e sua efetiva atuação dialógica com a população do Vale e as comunidades com as quais trabalha. Reafirma-se também como uma ação exemplar de extensão universitária, comprometida com o impacto acadêmico na formação de seus alunos e o impacto social no meio onde atua.
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Tal como em outras publicações da Série Visões do Vale, aqui tem lugar o diálogo de saberes, na perspectiva defendida por Santiago Castro-Gómez, segundo o qual é necessário haver espaço na academia para a convivência de diferentes tipos de conhecimento, contribuindo para um intercâmbio cognitivo entre as epistemes ditas científicas com outras formas culturais de produzir conhecimento, os saberes que interpretam a realidade como um conjunto interdependente de fenômenos (2007).
Belo Horizonte, primavera de 2014
Maria das Dores Pimentel Nogueira coordenadora do Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha, coordenadora do projeto Visões do Vale. Pró-Reitora Adjunta de Extensão da UFMG-Gestões 2002 a 2006 e 2010 a 2014.
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As antessalas das jornadas de junho no Brasil em 2013: configurações da contestação social de jovens urbanos no Brasil contemporâneo Igor Thiago Moreira Oliveira
Neste texto, trata-se de ações coletivas e movimentações sociais protagonizadas por jovens na contemporaneidade. As características e formas de ser das ações coletivas juvenis, aqui apontadas, emergiram nas chamadas jornadas de manifestações, em junho de 2013, durante a Copa das Confederações. Uma jornada de movimentações que certamente ficará na história como um levante da juventude por uma “refundação” ética da sociedade brasileira. Certamente esse novo movimento social demanda e demandará esforço de análise ainda por muito tempo. Mas já se pode afirmar que as formas de manifestação e de expressão utilizadas, suas características e suas demandas são muito semelhantes às analisadas aqui neste texto, apontando para certa linha de continuidade e amadurecimento tanto das formas de participação quanto ao seu conteúdo de contestação. Os coletivos e a Praia da Estação, no caso específico de Belo Horizonte, bem como todas as mobilizações e movimentos citados neste artigo, podem ser entendidos como uma “pré-história” do que acontece nas ruas brasileiras. E é importante afirmar tal história, para não reforçar uma ideia que vem sendo difundida: a de que o “gigante acordou” ou “ a juventude acordou”, como se toda essa mobilização fosse totalmente espontânea e sem relação com uma história anterior. Parcelas da juventude já estavam “acordadas” há muito tempo e vinham tentando fazer públicas suas denúncias. O que se presencia agora é uma junção de variáveis históricas que estimularam a eclosão desse movimento, agora de massas. Em que isso vai dar, somente a história poderá nos dizer. Mas pode-se afirmar que, mais uma vez, tal como em 1968 ou, querendo-se ir mais longe, também em 1848, com a conhecida “Primavera dos Povos”, na França e Europa, a juventude cumpre um papel renovador, de colocar em questão a ordem social, seus valores, sua ética e apontar para a utopia de uma sociedade mais justa e fraterna. Baseando-se nos coletivos juvenis de contestação social na cidade de Belo Horizonte, o objetivo aqui é compreender as formas de ser das 15
movimentações contemporâneas de contestação social protagonizadas por jovens, perceber suas principais características, sua malha constitutiva, sua forma de ser, suas motivações, contestações e críticas. Ou seja, procurou-se perceber o que as ações coletivas juvenis podem dizer e indicar a respeito de tendências e características das movimentações sociais na contemporaneidade de maneira geral. Nos últimos vinte anos, pelo menos, a sociedade brasileira e as de todo o globo têm experimentado novas formas de participação na vida sociopolítica e novas configurações da contestação social. Os jovens aparecem no contexto contemporâneo como um dos sujeitos mais visíveis nessas novas configurações dos agenciamentos coletivos. Essas novas configurações da contestação social na contemporaneidade podem ser mais bem compreendidas tomando-se como referências “fundantes” três acontecimentos: o levante Zapatista de 1994, em Chiapas (México), a organização dos Fóruns Sociais Mundiais na década de 2000 e os protestos internacionais contemporâneos contra a ordem do capital global.1 Esses três eventos, cada um com sua especificidade e repercussão própria, marcam de certa forma a constituição de um tipo de imaginário rebelde em nosso tempo. Nessas novas configurações da contestação social, para alguns movimentos e/ou para algumas perspectivas teóricas, a transformação ativa do presente desloca a construção futura do socialismo, o cotidiano, as ações cotidianas se tornam espaço e tempo de transformações. A ação direta praticada pelos contestadores contemporâneos tende, assim, a ultrapassar as mediações políticas da ação dos partidos de esquerda. O amálgama entre as novas formas de contestação social contemporâneas e as novas tecnologias da comunicação da informação delineia esse cenário, fazendo emergir fenômenos como ciberativismo. Como exemplos dessas novas formas de movimentação social e agenciamento coletivo, temos: carnavais de protesto nas ruas, bicicletadas contra o monopólio do uso do automóvel, ocupações de imóveis abandonados com posterior transformação em centros sociais e moradias coletivas, realização de feiras de trocas livres, construção de rádios livres, criação de coletivos e iniciativas de vários matizes, organização de “dias sem compras”, organização de populações sem-casa, lutas em defesa dos direitos dos animais, lutas antiprisões e contra os hospitais/prisões psiquiátricos, bloqueio de ruas nos encontros dos grandes organismos 1 - Os protestos contemporâneos a que me refiro são os conhecidos “Dias de Ação Global”, articulados pela Ação Global dos Povos (AGP). Mais informações em: AÇÃO Global dos Povos (AGP). Disponível em: <www.agp.org>. Acesso em: 6 jun. 2011.
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internacionais gestores do capital, movimento de software livre, ativismos na rede mundial de computadores, pequenas sabotagens contra as grandes “marcas”, ocupações múltiplas de espaços públicos nas cidades com o objetivo de tornar visíveis problemas e conflitos sociais, utilização das novas tecnologias da comunicação/informação para criação de meios alternativos de comunicação (mídia alternativa) e criação, reprodução e disseminação de artefatos culturais do dissenso, flyers, vídeos, sons, textos, imagens, etc. (ORTELLADO; RYOKY, 2004; LUDD, 2002; SOUSA, 2002).
Mundialização do capital e contestações sociais juvenis na contemporaneidade Ao se vislumbrar, de qualquer ângulo, o processo globalizatório atual, percebem-se as tensões, contradições e complexidades que o período histórico da expansão sem limites do capital coloca para as configurações societárias contemporâneas. As mutações provocadas pela etapa histórica contemporânea apontam para novas dimensões configuradoras das formas de ser e existir no planeta, tanto em vista dos processos de individuação como das movimentações sociais. [...] olhemos para o mundo real que habitamos, para facear a nós mesmos, mas em nossa configuração concreta de individualidades postas e expostas, moventes e movidas de uma história que está desembocando na universalização de um modo de ser e existir. É evidente que estou apontando para o processo de globalização. Somos, queiramos ou não, saibamos ou não, gostemos ou não, os homens desse processo, agentes e pacientes, beneficiários ou vítimas, somos e não podemos deixar de ser a humanidade presente no momento em que a lógica do capital cumpre sua lei mais essencial e imanente, cobrindo o planeta com sua face e com suas formas de vida, de um lado rebrilhante, doutro, para dizer o mínimo, inquietante (CHASIN, 2000, p. 2).
Baseando-se nas reflexões de Chasin, percebe-se que as movimentações antiglobalização revelam, dão visibilidade, questionam e se insurgem contra o que o autor chama de a “face” no mínimo “inquietante” do processo globalizatório contemporâneo. 17
A questão é que esse mesmo processo permeado de tensões e contradições possui, nas palavras de Chasin, outra face “rebrilhante”, que pode ser entendida como responsável pelo desenvolvimento dos meios materiais e de vida – inclusive a globalização das comunicações – que, de certa forma, conformam a existência das próprias movimentações e de seu questionamento. Ambas as “faces” da globalização, “a rebrilhante” e a “inquietante”, conformam em permanente tensão as novas formas das culturas juvenis e, consequentemente, das movimentações sociais protagonizadas por jovens. A questão a se pensar é justamente perceber que o processo de globalização do capital oferece o mote para o surgimento de movimentos de contestação a suas dinâmicas, como oferece também as bases materiais e subjetivas da existência desses mesmos movimentos. E ainda: esse mesmo processo globalizatório pode ser lido como o responsável pelo surgimento de culturas globais, de formas de interação e comunicação humanas globais, etc. Nesse sentido, pode-se afirmar que o mesmo processo de globalização, questionado e contestado pelos jovens por ampliar e aprofundar as relações capitalistas em todo o mundo, permite também, por outro lado, a existência de trocas simbólicas e de informação que delineiam as culturas juvenis contemporâneas e, como consequência, a relação dessas culturas,2 que é o que interessa compreender aqui, ao se abordar o cenário mais amplo de contestação global. O movimento antiglobalização, ou a “globalização da resistência”, possui sua razão de ser e existência na própria dinâmica do processo de globalização capitalista. Daí os movimentos dizerem que “nossa resistência será tão global como é o capitalismo” (CHRISPINIANO, 2002, p. 18). Esse processo de mundialização da resistência encontra ressonância nos processos globais de formação das culturas humanas e, especificamente, das culturas juvenis. Feixa (1998) define as culturas juvenis em duas dimensões: uma mais ampla e outra mais restrita: En un sentido amplio, las culturas juveniles se refieren a la manera en que las experiencias sociales de los jóvenes son expresadas colectivamente mediante la construcción de estilos de vida distintivos, localizados fundamentalmente en el tiempo libre, o en espacios intersticiales de la vida institucional. En un sentido más restringido, definen la aparición de ‘microsociedades juveniles’, con grados significativos de autonomía respecto 2 - Feixa (1999) define as culturas juvenis em relação a formas de expressão coletivas que definem estilos de vida. Poderíamos pensar em “culturas juvenis ativistas” como aquelas em que os estilos de vida ou os modos coletivos de expressão têm relação com questionamentos da ordem social por parte dos jovens.
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de las ‘instituiciones adultas’, que se dotan de espacios y tiempos específicos [...]. Su expresión mas visible son un conjunto de estilos juveniles ‘espetaculares’, aunque sus efectos se dejan sentir en amplias capas de la juventud (FEIXA, 1998, p. 84).
Concordando-se com Feixa que em sentido mais amplo as culturas juvenis implicam a construção de estilos de vida conectados a experiências sociais dos jovens e que, em sentido mais restrito, as culturas juvenis têm a ver com a constituição de “microssociedades juvenis”, autônomas das instituições e lógicas do mundo chamado “adulto”, pode-se refletir sobre esses processos de construção das culturas juvenis em um período histórico como o da globalização contemporânea, marcado pela intensa interação, comunicação e fluxos informacionais. A relação entre culturas juvenis e globalização é assim analisada por Costa: [...] o estudo e a pesquisa das culturas juvenis são inseparáveis da análise dos processos ligados tanto à globalização da cultura, quanto à produção do imaginário, à circulação e à produção de localidades”. E, ainda: “Em Appadurai (1999), uma das marcas do processo de globalização é que vivemos em um mundo de fluxos caracterizado por objetos em movimento, os quais incluem ideias e ideologias, pessoas, bens, imagens, mensagens, tecnologias e técnicas” (COSTA, 2006, p. 11). Costa (2006) diz também a respeito do lugar do imaginário na produção das subjetividades e na produção das formas de ser jovem no mundo contemporâneo. Esse imaginário juvenil, marcado pelos processos dinâmicos de intercâmbio cultural e simbólico propiciados pela globalização, aponta para tendências de conformação das culturas juvenis referenciadas e constituídas por processos de intercâmbio cada vez mais globais e com grande influência na produção dessas mesmas culturas nas localidades onde é seu efetivo território de atuação. Pode-se apontar que, com o surgimento do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e dos movimentos antiglobalização, tenha se delineado um imaginário de contestação social “produtor” de novas subjetividades que caracterizaram as formas de ser jovem contestador/ativista na contemporaneidade. A partir do tema da resistência juvenil contemporânea, Freire Filho (2007) e Freire Filho e Cabral (2008) articulam um balanço crítico dos estudos sobre juventude e estudos culturais, de Birmingham aos dias de hoje, para analisar os significados da insurgência dos jovens contemporâneos, especificamente daqueles engajados num dos coletivos mais destacados nas jornadas contemporâneas de contestação social e na conformação da AGP: o Reclaim the Streets (RTS), de Londres. 19
Na análise dos grupos contestadores juvenis contemporâneos, Freire Filho (2007, p. 177) aborda as diferenças entre esses e aqueles analisados pelos Estudos Culturais britânicos em 1960 e 1970.3 Se nos grupos analisados pelo Centre Contemporany of Cultural Studies (CCCS)4 – Teds, Mods, Skinheads – o cerne da resistência juvenil marcava a dimensão cultural – ou melhor, marcava a disputa simbólica, a “guerrilha semiológica” contra os dispositivos culturais hegemônicos –, na contemporaneidade a questão da resistência passa também pela disputa política direta, pela prática cotidiana da contestação no olho das ruas. O autor afirma que os movimentos contemporâneos anticapitalistas, antiglobalização ou anticorporações protagonizados por jovens a partir do final da década de 1990 trazem a dimensão dos questionamentos macropolíticos para os movimentos juvenis. Em vez de somente se conformarem em torno de questões identitárias, culturais e/ou micropolíticas, os jovens protagonistas de certa “cena contestatória contemporânea” parecem direcionar sua contestação em direção a aspectos sociais mais amplos e gerais. Ao estudar a juventude contestadora contemporânea, Sousa (2002, 2004) aborda outros aspectos da questão. As formas organizativas de contestação social na contemporaneidade, segundo a autora, tendem a não se preocupar em tornar-se um espaço organizado com identidade única, e, sim, criar espaços de articulação e encontro de diferentes organizações, grupos e indivíduos que possuam convergências, mesmo que mínimas, sobre a questão da emancipação social. A prática da ação direta e autônoma sem intermediários institucionais desvinculada das formas tradicionais de participação em partidos políticos, sindicatos, etc., a horizontalidade como princípio organizativo não hierárquico e a autogestão como ideal regulatório da prática, são outros elementos comuns, ou cuja tendência de serem encontrados nesses grupos e movimentos é mais comum (SOUSA, 2002). O caráter anticapitalista delineia uma natureza antissistêmica para a contestação social contemporânea juvenil: “O anticapitalismo é outro princípio que orienta a agenda política dos jovens desses grupos ativistas. Consideram que o capitalismo humanizado não conseguirá perder sua face de opressão, alienação e exclusão, e questionam o sistema [...]” (SOUSA, 2002, p. 458-459). Ainda segundo Sousa (2002), a ação que se pretende anticapitalista dos jovens trafega entre as esferas do global e do local: pensam a realidade da mundialização e agem localmente por meio de diversas iniciativas, 3 - Trata-se do Centre Contemporany of Cultural Studies, o CCCS, da Universidade de Birmingham. 4 - Cf. HALL; JEFFERSON, 1993.
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como a construção de rádios livres e comunitárias, ocupações de imóveis abandonados, carnavais de protesto, ações culturais e políticas nos espaços públicos das cidades, boicote a produtos e serviços das grandes corporações etc. Essas ações e iniciativas constituem formas não convencionais e não institucionais de participação política, ao mesmo tempo em que são, elas mesmas, uma ampliação da própria política. A autora define o campo de ampliação da política baseando-se nas ações dos jovens contestadores como de natureza contrainstituinte. O alargamento do campo político relativo à contestação social juvenil contemporânea coloca questões que estão para além da estreiteza dos pequenos cálculos políticos, da racionalidade estratégica política e das técnicas de administração e poder. Ainda segundo Sousa (2002), as emoções, sentimentos, interesses e protestos constituem a matéria-prima de uma política que recupera seu “valor de uso”. Pode-se inferir daí que a questão política colocada nesses termos abarca questões relativas à dimensão das subjetividades dos sujeitos, de suas necessidades, desejos e anseios. Já Feixa (2002a), analisando a realidade dos movimentos contemporâneos de contestação social na Espanha influenciada diretamente pelas jornadas antiglobalização, chama a atenção para as características do que define como “novíssimos movimentos juvenis”, em contraposição aos conhecidos novos movimentos sociais das décadas de 1970 e 1980, e para o desafio conceitual e analítico colocado pela complexidade mesma das sociedades contemporâneas – era digital e período agudo de mundialização – das quais esses movimentos fazem parte.5 Assim como Freire Filho (2007, 2008), Feixa (2002a) percebe, entre as características desses movimentos, o “retorno” de reivindicações materiais e gerais dos movimentos sociais clássicos em oposição à tendência de agrupamento em torno de construções identitárias presentes nas culturas juvenis das décadas de 1970 e 1980. Feixa aponta elementos centrais dessa diferenciação: combinação da parafernália festiva carnavalesca com formas agudas de boicote às grandes corporações capitalistas e superação das fronteiras identitárias (gênero, classe, raça, território e idade) dos movimentos anteriores. A tendência é que as formas organizativas contemporâneas de contestação social, como os “dias de ação global”, por exemplo, escapem às formas organizativas microculturais compactas, estáveis e com fronteiras bem definidas. Nas movimentações contemporâneas 5 - A questão a respeito dos desafios conceituais e analíticos colocados pelos movimentos contemporâneos será abordada ao longo do trabalho.
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de contestação social, as diversas demandas específicas (de gênero, de classe, de raça, etc.) parecem, segundo o autor espanhol, confluir para uma dimensão mais ampla, qual seja, o próprio questionamento ético da sociedade em seu conjunto. A imagem com que se pode pensar talvez não seja mais correspondente àquelas das dimensões fechadas das chamadas “tribos urbanas”, cada qual com sua configuração específica e particular, e sim a imagem de redes de movimentos que se intercruzam subjetiva e objetivamente. Sobre o uso das novas tecnologias da comunicação e informação, Feixa indica que elas também são elementos importantes para caracterizar as formas de organização e luta dos movimentos juvenis de contestação social contemporâneos.
Os impactos dos protestos antiglobalização e das novas configurações da contestação social no Brasil Pode-se refletir sobre os impactos decorrentes dos protestos globais contra o capital mundializado baseando-se nos coletivos juvenis no Brasil. Tais impactos intensificaram e/ou reforçaram o surgimento de formas organizativas juvenis distintas daquelas que podem ser identificadas como de tipo tradicional – partidos, sindicatos, movimento estudantil, etc. As referências construídas com base no levante zapatista, do movimento antiglobalização e dos grupos e coletivos que conformaram a AGP, inspiraram jovens ativistas urbanos e os impulsionaram a criar ou a reforçar tipos complexos e difusos de agenciamentos. A cultura da autonomia e a autogestão forjada no fogo dos protestos e redes insurgentes globais inspirou a constituição de “novas comunidades instáveis de dissenso artístico, social e político” (FREIRE FILHO; CABRAL, 2008, p. 184). Dentre essas formas organizativas juvenis contemporâneas, pode-se destacar uma forma bastante presente nesse contexto do dissenso juvenil contemporâneo: os autodenominados coletivos. Entende-se por “coletivos” os agenciamentos, associativismos e agrupamentos de jovens ativistas e jovens produtores de cultura em prol de um ou mais fins. Os jovens se agrupam em coletivos geralmente por afinidade/ideais, ou por relações afetivas, ou por questões identitárias, ou por todos esses elementos juntos. A natureza de determinado coletivo, ou seja, os motivos, objetivos e interesses que conformam determinado agenciamento, indicam, ainda,
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a natureza dos agrupamentos. A organização dos coletivos também é marcada pela autonomia, autogestão e horizontalidade – inspiração dos movimentos antiglobalização. Outro aspecto dos coletivos a ser ressaltado é o da flexibilidade e fluidez da participação engendrada em seus interiores. Os compromissos, acordos, normas e regras são autodeterminados pelos indivíduos que neles participam. Não há rigidez nem fidelidade participativa. A relevância do indivíduo – dos desejos e necessidades individuais – no interior de um coletivo aponta para reflexão, de um lado, de formas de agenciamento mais flexíveis e “líquidas”, distintas das organizações da esquerda tradicional e, de outro, formas de ser – fluidas e igualmente líquidas – da individualidade contemporânea (BAUMAN, 2001). O fenômeno dos ‘coletivos’, forma de associação entre artistas e militantes cada vez mais recorrentes no Brasil, tem alcançado aos poucos nitidez e visibilidade. Segundo informava matéria do jornal Folha de São Paulo, em abril de 2003 (Folha de São Paulo, 6 abr. 2003. Mais!, p.49), os coletivos formados por artistas plásticos pipocavam em várias cidades do país. Em janeiro de 2005, a revista Carta Capital publicou uma reportagem que tinha como tema o coletivo Sabotagem e suas ações subversivas de pirataria de livros e textos fora do domínio público (Carta Capital, 26 jan. 2005, p. 58-59). Na internet, uma primeira pesquisa pela palavra ‘coletivo’ no Google resulta em centenas de ocorrências (FREIRE FILHO; CABRAL, 2008, p. 184).
No texto Nome: coletivos, senha: colaboração, publicado na seção “Intervenção” do extinto site Rizoma.net, segundo Ricardo Rosas os coletivos contemporâneos expressam indícios de mutações profundas que estão ocorrendo nas esferas social e tecnológica. As lógicas da cooperação, colaboração, autonomia, organização em redes e contestação social, constituintes dos coletivos contemporâneos, sinalizam, por parte dos jovens ativistas, novas formas de organização e recriação das ações coletivas de dissenso nas sociedades contemporâneas, formas distantes, de certo modo, das formas e instituições tradicionais. O autor ressalta que, mesmo tendo sua origem desde o período da Revolução Francesa, o fenômeno dos coletivos contemporâneos e, especificamente, sua materialização no Brasil guardam uma especificidade:
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O que diferencia a atual voga de movimentações coletivas no Brasil é o caráter político de boa parte delas, assim como o uso que muitas fazem da internet, seja via listas de discussão, websites, fotologs e blogs ou simplesmente comunicação e ações planejadas por e-mail. [...]. [...] o atual beco sem saída do neoliberalismo parece haver despertado a consciência de vários grupos no Brasil, que passaram a criar fora das instituições estabelecidas com performances, intervenções urbanas, festas, tortadas, filmagens in loco de protestos e manifestações, ocupações, trabalhos com movimentos sociais, culture jamming e ativismo de mídia (ROSAS, 2008).
Assim, pode-se pensar sobre o fenômeno dos coletivos como “malhas subterrâneas”, pouco visíveis, de agenciamentos juvenis que transitam por diversos matizes sociais do dissenso, contestação, crítica, criação e produção cultural alternativa. Dentre os principais eixos de atuação dos coletivos no Brasil atualmente destacam-se os seguintes:6 coletivos de mídia independente – blogs, sites, rádios livres, jornais, vídeos, áudios, etc.;7 coletivos de produção e troca de software livre; coletivos de abolição animal e veganos;8 coletivos contra o consumo mercadológico que organizam lojas livres onde nada se compra e tudo 6 - Esses eixos são indicados com base em meu conhecimento prévio e vivência e em uma rápida pesquisa na internet. 7 - Um exemplo paradigmático desses coletivos de mídia é o Centro de Mídia Independente (CMI). “O CMI Brasil é uma rede de produtores e produtoras independentes de mídia, que busca oferecer ao público informação alternativa e crítica de qualidade que contribua para a construção de uma sociedade livre, igualitária e que respeite o meio-ambiente. A ênfase da cobertura é sobre os movimentos sociais, particularmente, sobre os movimentos de ação direta (os ‘novos movimentos’) e sobre as políticas às quais se opõem. A estrutura do site na internet permite que qualquer pessoa disponibilize textos, vídeos, sons e imagens, tornando-se um meio democrático e descentralizado de difusão de informações” (CENTRO de Mídia Independente. Disponível em: <www.midiaindependente.org>. Acesso em: 6 jun. 2011). Conhecido internacionalmente como “Indymedia”, o CMI nasceu com o objetivo de coordenar a cobertura jornalística alternativa dos protestos de Seatlle em 1999 e se espalhou depois por todo o mundo. Sobre o CMI Brasil, ver o estudo de Caires (2010). 8 - Coletivos que lutam contra qualquer forma de domínio da espécie humana sobre as outras espécies animais no planeta. Muitos desses coletivos promovem ações de boicote a indústrias e produtos que utilizam qualquer componente ou ingrediente de origem animal, ações contra experimentações científicas que utilizam animais, campanhas de libertação dos animais, momentos de produção e consumo coletivo de alimentos sem origem animal, como as chamadas “verduradas”, etc. Já os veganos, praticantes do “veganismo”, são aqueles que não consomem qualquer produto de origem animal – alimentos, vestuário etc. Todos aqueles que se envolvem com as causas da libertação animal são veganos, mas nem todos os veganos podem ser considerados ativistas da causa abolicionista animal.
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se troca;9 coletivos anarquistas que se envolvem com movimentos populares, como o movimento dos sem-teto, por exemplo; coletivos de edição e divulgação de livros sobre literatura libertária, autores anarquistas, poetas marginais, autores desconhecidos, e até mesmo de autores que participam desses mesmos coletivos e que não possuem, ou não desejam, uma vinculação com os mercados tradicionais de difusão cultural; coletivos de estudo e discussão de literatura libertária e anarquista; coletivos de trocas e difusão de materiais “pirateados”, filmes, músicas, livros, quadrinhos e materiais culturais alternativos; coletivos que organizam protestos lúdicos e ações de desobediência civil;10 coletivos feministas, coletivos de combate ao racismo; coletivos que organizam as bicicletadas ou massas críticas11 e que questionam as formas de mobilidade urbana; coletivos que discutem as transformações urbanas – segregação espacial, gentrificação, etc., e que protagonizam ações e intervenções nas cidades que questionam as dinâmicas de produção do espaço urbano;12 coletivos que promovem shows de bandas punks e bandas independentes, e/ou que promovem eventos anticulturais;13 coletivos de body art;14 etc. A diversidade de temas, ações e formas de atuação dos coletivos expressa uma característica marcante deles, bem como aponta para uma pulverização de iniciativas que delineia a complexidade da experiência desses jovens. Outro ponto importante a ser destacado é que, muitas vezes, um mesmo coletivo pode organizar e orientar sua ação para mais de uma demanda ou questão e, ainda, coletivos distintos – de matiz contestatório ou produção cultural distinto(a) – podem conformar redes de ação e solidariedade. 9 - Na sequência do texto, reporta-se a um desses espaços de trocas livres de objetos – um espaço de não consumo mercadológico – de Belo Horizonte. 10 - Um exemplo de protesto lúdico realizado por coletivos libertários em Belo Horizonte foi o chamado “Dia sem Compras”, que será mencionado mais a frente. Outro exemplo de protesto lúdico e de ação de desobediência civil é própria Praia da Estação, objeto deste estudo. 11 - Movimentos que questionam a forma hegemônica de mobilidade urbana baseada na utilização do automóvel e da própria organização das cidades e da produção do espaço urbano em razão desse meio de transporte. As ações desses coletivos se inserem no campo simbólico, de onde promovem intervenções urbanas mediante o uso da bicicleta. Em Belo Horizonte, a Massa Crítica – inspirada no movimento mundial “Critical Mass” – ficou conhecida como “bicicletada”. Aborda-se essa iniciativa na sequência do texto. 12 - A história da Praia da Estação tem relação direta com esses coletivos, como se verá. 13 - A ideia de “anticultura” tem a ver com uma ressignificação dos movimentos contraculturais das décadas de 1960 e 1970. A anticultura é de inspiração anarquista, anticapitalista e de questionamento profundo dos processos culturais hegemônicos das sociedades contemporâneas. Dois exemplos significativos de iniciativas no campo anticultural em Belo Horizonte foram o Coletivo Gato Negro e o Carnaval Revolução, que igualmente serão bordados mais à frente. 14 - Coletivos de intervenção e performance artística corporal e de promoção de transformações corporais. Um exemplo de atuação desses coletivos é a realização de eventos de “suspensão” (que consistem em performances em que os corpos são suspensos por ganchos presos a pele dos indivíduos), eventos de body piercing, tatuagens e marcas corporais.
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Muitas vezes essas redes de coletivos extravasam a dimensão local, a dimensão da cidade e se estendem por outras cidades e até mesmo por cidades de outros países.15 Ao observador desses agenciamentos, chama também atenção a ocupação de espaços físicos por parte desses jovens a fim de abrigar um ou mais coletivos, uma ou mais iniciativas ou redes de coletivos.16 Feixa (2002a, p. 93) define esses espaços como “espaços liberados”: En estos espacios liberados se constituyen tiempos y espacios distintos a los de la sociedad más amplia, las discontinuidades entre el tiempo y el espacio laborale y de ocio, el rescate del espectáculo circense como expresión cultural; la mezcla entre ocio y compromiso, la misma comunicación con diferentes latitudes del planeta, así un ejemplo de cómo se generan estos espacios y tiempos que rompen con los establecidos.
Espaços de dissenso, de sociabilidades, tempos e formas outras que não as hegemônicas do mercado, esses espaços podem tanto servir de plataforma que abrigue em rede vários coletivos – um espaço que sirva como um “guarda-chuva” de coletivos e iniciativas, bem como de referência para os jovens libertários e contestadores de determinada localidade, como dito – como podem servir também de referência e/ou “abrigo” para jovens libertários que, de localidade em localidade, transitam por “espaços liberados”. Dentre esses espaços, há aqueles que cumprem dupla função: servem tanto para a constituição de redes de coletivos ou de iniciativas libertárias, como para local de moradia. Nesse sentido, estamos a falar das Okupas/Squats, ou centros sociais, que efetivamente são casas e construções abandonadas ocupadas por jovens nos grandes centros urbanos, o que aponta para um questionamento social do mercado imobiliário pelos jovens, bem como para a concentração da propriedade imobiliária nas cidades.17 15 - Um exemplo de uma rede de coletivos é o portal “Bicicletada”, que reúne informações de coletivos que organizam bicicletadas em todo o Brasil (cf. BICICLETADA. Disponível em: <www.bicicletada. org>. Acesso em: 6 jun. 2011). 16 - Como exemplos desses espaços, podem ser citados o Centro (anti) cultural Gato Negro, que existiu em Belo Horizonte, e o Espaço Ystilingue, que ainda existe. Ambos serão abordados posteriormente. 17 - O termo squat é utilizado para definir as ocupações de imóveis abandonados nas cidades por jovens. Já o termo okupa define a ocupação como qualifica os ocupantes e é mais usado na Espanha e na América Latina. Na Espanha e na Itália, também é muito comum o uso do termo equivalente a “Centros Sociais oKupados”, o que revela de forma mais clara o caráter das ocupações. A grafia do “K” em vez do “C” para okupas e okupados é influência da cultura punk e é uma marca simbólica do movimento.
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Imaginemos um exemplo hipotético que expresse a complexidade, o hibridismo e a maleabilidade desses coletivos e “espaços liberados”: podemos ter a situação da existência de um coletivo de abolição animal que naturalmente se envolva com a questão da produção, troca e consumo de alimentos sem ingredientes de origem animal, promovendo feiras de alimentos produzidos de forma coletiva, e que se envolva também com coletivos de mídia alternativa, ou que possam se servir de “espaços liberados” junto a outros coletivos para desenvolverem e organizarem suas ações – ou, ainda, que seus participantes morem em Okupas. Exemplos concretos também podem ser citados para melhor compreensão dessas questões. O Squat 13 de janeiro ou o coletivo J- 13,18 da cidade de Curitiba – coletivo que completou cinco anos em 2012 –, é um exemplo da diversidade de temas que um mesmo coletivo pode abrigar. Seus participantes vivem em uma casa ocupada, uma Okupa, desenvolvem trabalhos de mobilização e solidariedade com os sem-teto na região metropolitana de Curitiba, atuam em causas como a do transporte público e intolerância antifascista, praticam o veganismo e difundem a causa da abolição animal – e ainda formam uma banda punk.
FIGURA – Imagem sobre as comemorações de dois anos de existência do Squat J-13. Fonte: MÍDIA Independente. Disponível em: <http://prod.midiaindependente.org/pt/blue// 2009/01/437606.shtml>. Acesso em: 13 out. 2011.
Esse exemplo permite abordar mais um aspecto da cena contemporânea de contestação social juvenil expressa por esses novos agenciamentos, que é justamente a questão do intercruzamento e da justaposição entre as dimensões do cotidiano – do estilo de vida, da micropolítica, da resistência cultural cotidiana, etc. – e a dimensão dos questionamentos macropolíticos. 18 - Sobre o coletivo J-13, ver MÍDIA Independente. <http://prod.midiaindependente.org/pt/ blue/2012/01/502197.shtml>. Acesso em: 19 jan. 2012.
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Muitos dos coletivos, ou melhor, muitos dos jovens que participam dos coletivos contemporâneos, pendulam – ora com mais força para um lado, ora com mais força para o outro, dependendo do contexto de oportunidades de ação em que estão inseridos – entre as escolhas cotidianas do dissenso (o que se compra, o que se ouve, o que se come, o que se veste, onde mora, como se relaciona, como concebe o corpo, como se relaciona com o mundo do trabalho, com a família, com a escola, etc.) e entre a articulação coletiva de protestos, boicotes, participação em movimentos de questionamento mais amplo etc. Os coletivos e seus participantes sinalizam para um complexo enredo do dissenso juvenil em que cotidiano e questões sociais mais amplas, invisibilidade e visibilidade, micro e macro por vezes conformam amálgamas e outras vezes se distanciam. Esse pendular entre a contestação no cotidiano e a contestação social mais geral/antissistêmica aponta também para certa maleabilidade e reconfiguração dos referenciais e concepções norteadoras por parte desses jovens. Está-se a falar das reconfigurações que o anarquismo ganhou na contemporaneidade da parte dos protagonistas da cena contestatória contemporânea. Esses processos de ressignificação e reconfiguração do anarquismo não são exclusivos dos jovens atuais, pois “desde os anos 1960 teriam existido canais de acesso e atração entre os anarquistas e a juventude”,19 atração essa reforçada depois com o surgimento do movimento punk no final dos anos 1970 e início dos 1980 (LIBERATO, 2006, p. 105). Percebem-se essas novas configurações da contestação social protagonizadas por jovens em Belo Horizonte partindo de uma movimentação emblemática: a Praia da Estação.
Um breve histórico da Praia da Estação Em 9 de dezembro de 2009, o prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda, publicou o polêmico Decreto n. 13.798, proibindo eventos de qualquer natureza na praça da Estação, a contar de 1º de janeiro de 2010. 19 - Essa é uma questão que abre uma janela ampla para todo um período histórico de efervescências e experiências sociais que impactou o mundo ocidental. O Maio de 68, a Revolução Sexual e dos comportamentos, o Rock, o Movimento Hippie e Pacifista, os Panteras Negras, as experiências libertárias etc., compõem toda uma quadra histórica de transformações sociais. Um exemplo que pode ser mencionado de experiência que aproximou o anarquismo da juventude e que muito tem a ver com várias formas de agenciamentos contestatórios juvenis atuais, foi o grupo conhecido como Provos, surgido na década de 1960 na Holanda e que promovia Happenings nada convencionais nos espaços públicos de Amsterdam. Sobre os Provos, ver: GUARNACCIA, 2001.
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O mesmo decreto justificava a proibição de eventos na referida praça alegando a dificuldade, por parte do poder público municipal, de limitar o número de pessoas em eventos realizados no local, bem como garantir a preservação do patrimônio público que, ainda segundo o decreto, vinha sendo depredado em decorrência dos últimos eventos ocorridos naquele local. Tal ação por parte da prefeitura e, especialmente, a utilização da palavra proibição no referido decreto representaram o estopim da movimentação que, um mês depois, se transformou na Praia da Estação. Quatro dias após a publicação do decreto, surgiu a primeira iniciativa de reação a ele por meio da internet, com a criação de um blog. O blog Vá de Branco continha, em sua primeira postagem, quatro flyers com um chamado para um “protesto em prol da cultura na praça da estação” a ser realizado no dia 7 de janeiro de 2010. Concomitantemente à criação do blog, outros sítios e blogs divulgaram o chamado, 20 e e-mails foram disparados para determinadas pessoas, comunicando a respeito do protesto contra o decreto e contendo links de acesso ao blog Vá de Branco. 21 Segundo relato publicado no blog Pedreira na Vidraça no dia 7 de janeiro de 2010, cerca de 50 pessoas responderam ao chamado do Vá de Branco e compareceram à Praça da Estação a fim de realizarem o protesto. Naquele momento, segundo o mesmo relato, os presentes deliberaram por constituir um movimento apartidário em prol da cultura belo-horizontina, assim como se discutiu sobre questões e processos vivenciados pela cidade, como, por exemplo, a questão da gentrificação22 de “limpeza social” do Centro de Belo Horizonte visando à preparação para a Copa do Mundo de 2014. Unidos estavam ali os indivíduos e grupos pelo chamado de protesto. Uma senda de contestação sobre os rumos da cidade se abriu 20 - Ver o blog Pedreira na Vidraça (Vá de branco! 16 dez. 2009. Disponível em: <http:// pedreiranavidraca.blogspot.com/2009/12/va-de-branco.html>. Acesso em: 19 jan. 2012) –, que publicou um chamado para o Vá de Branco no dia 16 dez. 2009 – e aos sítios Centro de Mídia Independente – Brasil (Protesto em prol da cultura na Praça da Estação. 15 dez. 2009.disponível em: <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2009/12/460996.shtml>. Acesso em: 3 jul. 2011) e Cidade Democrática (Proibição de eventos na Praça da Estação. Disponível em: <http://www. cidadedemocratica.org.br/topico/543-proibicao-de-eventos-na-praca-da-estacao>, 5 jan. 2010. Acesso em: 3 jul. 2011), que publicaram chamados para esse mesmo ato, o primeiro como artigo e o segundo como resposta a uma postagem sobre o decreto. 21 - O blog VÁ de branco está disponível em: <http://vadebranco.blogspot.com/>. Acesso em: 3 jul. 2011. 22 - Do inglês gentrification – enobrecimento de uma área da cidade, expressão muito utilizada pelos jovens ativistas.
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com esse encontro. Tudo estava incerto e por acontecer. Um novo encontro entre esses grupos e indivíduos para definição de ações futuras foi marcado para acontecer quinze dias após esse primeiro protesto. No entanto, outro chamado inesperado circulou na Internet alterando esse planejamento inicial e abrindo a possibilidade para que acontecesse a Praia da Estação. Antes mesmo que acontecesse a segunda reunião do Vá de Branco que daria seqüência ao protesto contra o decreto foi postado um chamado no dia 13 de janeiro de 2010 no site CMI-Brasil 23, um chamado também anônimo, para a realização de uma ação de ocupação da Praça da Estação que alteraria o rumo das ações até então planejadas no protesto Vá de Branco. Esse chamado indicava a realização do que seria a primeira Praia da Estação. Intitulado Praia na Praça da Estação, o chamado foi disparado em listas de e-mails militantes e ativistas, em blogs e sites. Surgia, então, a Praia da Estação. A primeira Praia da Estação ocorreu em 16 de janeiro de 2010. A ocupação lúdico-festiva da Praça da Estação ou o protesto-festa contra o Decreto n. 13.798 ocorreu na esteira do chamado que circulou pela internet: Aí teve a primeira praia uma semana depois desse Vá de Branco. Essa primeira praia tipo... apareceu muita gente mesmo, foi coisa de centenas de pessoas, teve gente que contou no informal, talvez a aparição de umas trezentas pessoas. E aí teve duas coisas marcantes assim, que foi a possibilidade de um encontro muito festivo, né? E mesmo assim no meio da festa foi possível tipo juntar uma roda de conversa, coletar contato das pessoas e retomar o tema do que é que estava acontecendo, o que que levava uma proibição tão... brusca assim, tão fria, né... sem consulta nenhuma, a estar ali caindo sobre um dos símbolos, vamo dizer, né? Eu acho que o que tenha reunido tantas pessoas é a simbologia que a praça carrega, talvez... a localidade dela no centro da cidade (NÔMADE, 2011). 23 - MÍDIA Independente. Praia na Praça da Estação de Belo Horizonte contra o decreto do prefeito Márcio Lacerda. Disponível em: <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2010/01/462799. shtml>. Acesso em: 3 jul. 2011.
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Ao dizer sobre a quantidade de pessoas presentes, Nômade já traz apontamentos de que os chamados e textos que circularam pelos e-mails, blogs e sites, como forma de mobilização e informação, surtiram efeito. As razões que o entrevistado indica para a reunião de um número expressivo de pessoas, segundo ele, têm a ver com o apelo afetivo que a Praça da Estação e o decreto que a envolvia, como símbolos das manifestações públicas na cidade, exerceram sobre aqueles primeiros participantes da Praia da Estação. A forma do chamado e da mobilização, anônima e sem lideranças, indicou o caráter de horizontalidade e fluidez organizativa que a Praia da Estação assumiu. [...] a praça serviria como esse espaço de convivência, de manifestação, de circulação, de encontro, então, a praça era nossa praia e o que o decreto estava fazendo era justamente isso, estava cerceando o direito dos cidadãos, das pessoas da cidade, desse encontro, da livre manifestação, da livre circulação, da livre experimentação, enfim, tirando das mãos da população um espaço que era dela por direito, né? [...] e essa coisa da praia pegou né? Porque era uma ocupação efetiva do espaço público que legalmente estava proibido de ser ocupado. E foi ocupado de uma forma lúdica, através de uma intervenção urbana, de forma artística e pacífica de alguma maneira, e com todo esse caráter simbólico, político em torno, é... aí aconteceu que pegou, pegou, no dia da primeira praia se esperava a movimentação, a convocação aconteceu basicamente através de e-mail, dessas ferramentas na internet e no boca a boca, claro, e apareceu um número expressivo de pessoas nessa primeira praia (BARROS, 2011).
Rafael Barros também revela as razões da movimentação ressaltando a dimensão de ocupação de um espaço público cujo direito de usufruto pelos cidadãos foi violado pelo decreto do prefeito, segundo os participantes da Praia da Estação. Nesse mesmo relato, o entrevistado chama a atenção ainda para o número expressivo de pessoas presentes na primeira Praia da Estação e da internet como meio principal de divulgação e mobilização para a mesma.
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A primeira Praia da Estação marcou uma ocupação lúdicocarnavalesca da praça, das muitas que ainda viriam acontecer por, pelo menos, mais seis meses, onde os jovens puderam desfilar sua irreverência, ironias, protestos e contestações contra o decreto, o executivo municipal e os rumos de desenvolvimento da cidade. Trajes de banho, sombrinhas (uma delas, colorida, viraria o símbolo da Praia da Estação), guarda-sóis, caixas de isopor, cangas, toalhas de banho, boias, cadeiras de praia, protetores solares, peteca, bola, adereços carnavalescos, faixas, cartazes, manequim com a foto do prefeito, músicas, instrumentos musicais e até um caminhão-pipa compuseram o cenário da primeira “Praia” e delinearam a natureza estética e simbólica daquele protesto. Nada foi organizado coletivamente de forma antecipada. Apenas o chamado na internet parece ter impulsionado jovens, grupos e indivíduos, cada qual com sua forma e de seu jeito, a compor aquele mosaico de ativismo, encontro, festa e protesto. Os indivíduos, por conta própria, levaram toda parafernália para a Praça da Estação, bem como confeccionaram faixas, cartazes, compuseram músicas, fizeram vídeos, flyers e toda a sorte do que poderíamos chamar de artefatos culturais do dissenso. Após esses primeiros acontecimentos, por mais seis meses ininterruptos em 2010, ou seja, de janeiro a meados de junho daquele ano, os jovens protagonizaram a ocupação praieira da Praça da Estação em Belo Horizonte, trazendo o questionamento sobre o autoritário decreto estabelecido pela prefeitura a respeito do uso daquele espaço público, bem como sobre questões ligadas ao desenvolvimento e à produção da cidade de maneira geral. Após esse período inicial em 2010, o que se percebeu, acompanhando a cena na cidade, foi que a movimentação não “morreu na Praia”. Pelo contrário, a experiência da movimentação praieira foi ponto de partida direto e indireto para o surgimento de novos agenciamentos coletivos e movimentações. A Praia da Estação iria reaparecer até mesmo em outros contextos e situações: outras movimentações e agenciamentos se apropriaram do formato praieiro para conformar suas ações e ocupar espaços públicos, dando visibilidade a suas contestações e questionamentos. O blog e a lista de e-mails Praça Livre BH – mais o blog do que a lista – continuaram sendo utilizados ativamente como “antena parabólica”, meio de comunicação entre os ativistas e forma de tornar visíveis questões relacionadas à cidade e ao poder municipal.
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A oposição à atual administração municipal por parte da sociedade civil, tornada visível com a Praia da Estação, ganhou contornos ainda mais nítidos com o surgimento, em junho de 2011, do movimento contra o prefeito Márcio Lacerda, o Movimento Fora, Lacerda. Tal movimento teve uma importância significativa no debate eleitoral municipal de 2012, sendo reconhecido como uma das principais forças de oposição política em Belo Horizonte à reeleição do atual prefeito. Outra influência direta da Praia da Estação foi o ressurgimento do carnaval de rua em Belo Horizonte. Após a aparição do Bloco da Praia, que saiu no carnaval de 2010 na cidade, surgiram progressivamente, nos anos subsequentes, 2011 e 2012, uma infinidade de novos blocos carnavalescos protagonizados por jovens e não jovens que, de algum modo, transitaram pela Praia da Estação. Em 2012, Belo Horizonte, certamente, vivenciou um carnaval de rua como há muitos anos não acontecia. Marchinhas de carnaval com letras irreverentes que ironizavam e debochavam do poder e dos costumes da “tradicional família mineira” foram compostas aos montes. A solidariedade com movimentos sociais, ou até mesmo a conformação de uma rede de solidariedade ativista em Belo Horizonte, parece ter-se fortalecido após a experiência praieira. As mobilizações dos jovens ativistas contra o desalojamento de famílias sem-teto ocupantes de terrenos na cidade constituem uma das expressões mais visíveis desses laços de solidariedade entre os ativistas que transitam pelas movimentações sociais em Belo Horizonte.
Conclusão Partiu-se da ideia de que os eventos históricos ocorridos em fins do século XX e início do século XXI, especificamente o levante Zapatista de Chiapas, em 1994, os Fóruns Sociais Mundiais e os protestos de rua anticapitalistas e antiglobalização, dentre outros, marcaram de maneira indelével as novas configurações da contestação social na contemporaneidade e, especialmente, as ações coletivas juvenis contemporâneas: formas de organização horizontais e em rede; conformação de redes de solidariedade; predomínio da ação direta; carnavalização do protesto e utilização intensa dos recursos simbólicos; emergência das individualidades e/ou das subjetividades individuais nas movimentações e ações
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coletivas; utilização intensa das novas tecnologias da comunicação e informação; distanciamento das instituições e formas tradicionais de protesto; mobilização e participação; distanciamento da institucionalidade; composição interna heterogênea; simbiose entre as dimensões do afeto, desejo, razão e necessidade; dentre outras características. Pode-se afirmar, portanto, que esse contexto contemporâneo da contestação social-global e de resistência ao capital na sua fase de mundialização influenciou sobremaneira a forma de ser das ações coletivas juvenis e dos ativismos urbanos protagonizados por jovens no Brasil. Os princípios, as teorias, as formas organizativas da contestação social juvenil urbana brasileira passaram, de certa forma, a ser delineadas a partir desse “novo” cenário e emergiram de maneira ainda mais visível nas chamadas jornadas de protesto em junho de 2013.
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SOUSA, Janice Tirelli Ponte de. Os jovens anticapitalistas e a ressignificação das lutas coletivas. Revista Perspectiva, Florianópolis, v. 22, n. 2, p. 451470, jul./dez. 2004. Disponível em <http://www.ced.ufsc.br/nucleos/nup/ perspectivas.html>. Acesso em: maio 2009. STIRNER, Max. O único e sua propriedade. São Paulo: Martins Fontes, 2009. VÁ de branco. Disponível em: <http://vadebranco.blogspot.com/>. Acesso em: 3 jul. 2011.
Igor Thiago Moreira Oliveira é graduado em História pela UFMG (2006), mestre em Educação pela UFMG (2012). Atualmente, cursa o doutorado em Educação pela mesma universidade. É membro do Observatório da Juventude da Faculdade de Educação da UFMG, onde atua em projetos e pesquisas. Atua também em projetos de formação de professores junto ao grupo de pesquisa e extensão Territórios, Educação Integral e Cidadania (TEIA) da Faculdade de Educação da UFMG.
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Juventude, memória e saberes intergeracionais no Vale do Jequitinhonha/MG Rodrigo Ednilson de Jesus
Jequitivale1 Verono Você que anda com o pé rachado e com a palha atrás da orelha Com a aba do chapéu na testa e se vira da noite pro dia. Você que banha no fanado e que tira ouro de bateia Que faz da vida uma festa e adora falar poesia. Desculpe, seu doutor, mas receba os comprimentos meus Eu fico com a filosofia do mestre João de Deus. A saudade me maltrata e me faz olhar no calendário Pra ver se faltam poucos dias pra ouvir o tambor do rosário. Refrão Vale que vale cantar Vale que vale viver Vale do Jequitinhonha Vale, eu amo você.
1 - “Jequitivale é uma música que acabou se tornando o hino do Vale do Jequitinhonha, com uma letra que conta a vida do povo que no Vale habita. Essa música tão conhecida foi escrita por um homem que começou sua curta carreira com o nome de Mark Gladston. Ele nasceu em Minas Novas, tinha formado em psicologia, mas possuía o dom da música. Logo abandonou a profissão em que tinha formado e resolveu trocar de nome artístico, passou a se chamar o tão conhecido Verono. A carreira de Verono teve um grande incentivador: Rubinho do Vale. Foi ele quem deu o seu empurrãozinho para colocar Verono no mundo musical. Mark Cladson, ou Verono, como é conhecido, morreu no dia 21 de outubro de 2006, depois de fazer um show em Virgem da Lapa, quando aconteceu um grave acidente no veiculo em que ele estava. Verono se foi, mas conseguiu deixar na sua música uma parte de sua vida (LINCON, 2009).
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Para muitos moradores do Vale do Jequitinhonha2, localizado na região nordeste do Estado de Minas Gerais, a canção apresentada na epígrafe deste ensaio é considerada o hino do Vale do Jequitinhonha. Escutei tal canção pela primeira vez durante o Festival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha (Festivale)3, realizado em 2010, na cidade de Padre Paraíso. Cantada a plenos pulmões por um grupo de jovens – com idade variando entre 20 e 25 anos – reunidos em um bar da cidade, a canção me seduziu imediatamente. Talvez por isso, por essa sedução, mas também pela emoção com que cantavam tal canção, a canção Jequitivale foi a primeira lembrança que me veio à mente ao receber o convite para escrever este texto sobre juventude, memória e saberes intergeracionais no Vale do Jequitinhonha. Todavia, começar este artigo com essa bela canção não facilita em nada a empreitada de articular, em um mesmo texto, campos temáticos que raramente têm sido articulados: juventude e memória. Certamente tal lacuna teórica se deve, ao menos em parte, à crença socialmente compartilhada de que os mais velhos são portadores exclusivos da memória. É possível observar tal tendência – a de identificar os mais velhos como fontes privilegiadas de memória – em inúmeros trabalhos cujo objetivo é resgatar ou reconstruir a memória de um período, de uma comunidade, de um movimento cultural ou de uma manifestação popular (LOPES; ARAÚJO; CONDURU, 2009). Tal crença, decerto, não é despida de lógica, já que no âmbito de inúmeras manifestações populares no Brasil, com destaque especial para as matrizes indígenas e afro-brasileiras, os mais velhos ocupam lugares privilegiados na manutenção das tradições e das memórias da coletividade. Ao apresentar uma crítica a essa visão hegemônica sobre os guardiões da memória, não pretendo desconsiderar a importância dos mais velhos 2 - “O Vale do Jequitinhonha é uma região situada no nordeste do Estado de Minas Gerais. São 80 (oitenta) municípios espalhados numa área de 85.467,10 km², o que equivale a 14,5% do Estado. O Vale divide-se em três regiões: Alto Jequitinhonha (região de Diamantina, próxima à nascente do rio), Médio (região de Araçuaí) e Baixo Jequitinhonha (região de Almenara, próxima à foz, no sul da Bahia). O Alto e o Médio Jequitinhonha situam-se na porção ocidental da BR 116 e o Baixo Jequitinhonha, na porção oriental” (GUERRERO, 2009). 3 - “Tudo começou em 1980. Desde então, o Festivale – Festival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha – reúne anualmente artistas, cantadores, atores, folcloristas e inúmeros apreciadores da cultura para uma grande festa popular. São feiras de artesanato e folclore, cursos, oficinas de teatro, artes plásticas, regadas com muita música, teatro e dança. O Festivale foi idealizado no final dos anos 70, com o objetivo de manter e preservar a cultura do Vale do Jequitinhonha, através do jornal Geraes, criado em março de 1978 por jovens universitários residentes em Belo Horizonte, ‘filhos do Vale’, e integrados ao movimento estudantil, que incluíam Aurélio Silby, Carlos Figueiredo, George Abner e Tadeu Martins. A proposta colocada pelo jornal era: ‘dar voz e vez aos trabalhadores da região e mostrar o homem do Vale, suas realizações, seus sonhos e sua luta por melhores condições de vida’” (FESTIVAL..., 2003).
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para a transmissão das culturas e tradições populares. A intenção é apenas propor um alargamento nessa concepção, possibilitando a incorporação dos jovens como sujeitos portadores de memória. Este é, portanto, o objetivo com este ensaio: apresentar e defender a ideia de que, no contexto do Vale do Jequitinhonha, os jovens, assim como as crianças, podem ser vistos como portadores de memórias coletivas; herdadas das gerações mais velhas, mas ressignificadas no tempo presente.
Falando sobre memória De acordo com Silva K. e Silva M. (2006), a memória está nos alicerces da própria História, por vezes podendo ser confundida com o documento, com o monumento e com a oralidade. Apesar dessa antiguidade, os autores destacam que só recentemente, a partir da década de 1970, os historiadores da Nova História começaram a trabalhar com o termo “memória”. A partir desse período, o conceito de memória passou a ser objeto de reflexão e de conceituação de diferentes áreas do conhecimento (da Filosofia, da Sociologia, da Antropologia e, principalmente, da Psicanálise), o que transformou o conceito em alvo de intensas controvérsias teóricas. Sem desconsiderar esse contexto de controvérsias, que pode ser compreendido com a leitura de Silva K. Silva M. (2006), explicito aqui a concepção de memória que orientou este trabalho: Segundo Jacques Le Goff, a memória é a propriedade de conservar certas informações, propriedade que se refere a um conjunto de funções psíquicas que permite ao indivíduo atualizar impressões ou informações passadas, ou reinterpretadas como passadas (SILVA K.; SILVA M., 2006, p. 419).
Tal definição, já tornada clássica no campo de estudados sobre memória, coloca em destaque o fato de que a memória pode ser vista como a reconstrução de um passado mais ou menos recente, produzido em determinados contextos coletivos. Por outro lado, enfatize-se que não há nada em tais definições que restrinjam seu significado às gerações mais velhas ou justifiquem a utilização do termo “guardiões da memória” sempre associados à população mais velha de nossas sociedades (LOPES; ARAÚJO; CONDURU, 2009). 41
Não quero com isso defender a ideia de que os jovens possuem mais conhecimentos que os mais velhos. Isso seria um grande equívoco. Nós, humanos, tendemos a acumular, ao longo da vida, memórias, saberes sobre o mundo, sobre as pessoas e sobre as experiências. Na área da Educação, esse processo é nomeado “contínua aprendizagem e acúmulo de memórias, de educação”. Como alerta Brandão (1981), durante toda a vida estamos imersos em processos educativos que, é preciso dizer, não se restringem aos conteúdos aprendidos nos espaços escolares, mas invadem todos os espaços sociais pelos quais transitamos. Para nos tornarmos pais, mães, maridos, tios, artistas, trabalhadores do campo ou da cidade, etc., precisamos aprender constantemente. Precisamos, portanto, realizar um duplo movimento: 1) reter certas informações transmitidas pelas gerações mais velhas e 2) atualizar informações passadas, reinterpretando-as no presente. Nesse sentido, nunca paramos de aprender. Mas assim como é verdade que nós, adultos, estamos por toda vida submetidos à necessidade de aprender (CHARLOT; MAGNE, 2000), passamos a vida toda com a possibilidade aberta de ensinar coisas a outras pessoas e gerações. Se essa dupla condição – de quem aprende e de quem ensina – se aplica a nós, adultos, insisto na ideia de que ela também se aplica às crianças e aos jovens. Quem afinal, nunca aprendeu com um filho, um sobrinho ou um irmão mais novo como usar o controle remoto digital recém-lançado ou mesmo recebeu um auxílio, de um filho, sobrinho ou conhecido que, apesar de mal ter-se alfabetizado em língua portuguesa, já consegue compreender todas as orientações daquele jogo de videogame que foi recém-lançado em inglês? Entretanto, antes de aprofundar essa ideia de que os jovens são portadores de memórias – saberes transmitidos desde o passado, mas ressignificados no presente –, é necessário enfrentar certas representações negativas sobre os jovens de hoje que, produzidas e reproduzidas historicamente, acabam dificultando encarar os jovens, sobretudo os jovens do Vale, como portadores de saberes, de cultura e de memória.
“Na minha época a juventude era...” De acordo com Dayrell, Jesus e Lopes (2009), é comum ouvirmos referências aos jovens atuais utilizando como referência os modelos idealizados de jovens das décadas de 1960 e 1970.
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Aqueles que observam por este ponto de vista, tendem a diagnosticar a juventude atual como uma geração apática e despolitizada, que pouco ou nada faz para alterar o estado das coisas. Esta avaliação expressa uma inegável nostalgia em relação aquele tempo e aquelas formas de atuação (DAYRELL, JESUS; LOPES, 2009, p. 167-168).
Em inúmeras oportunidades, ao conversar com professores da educação básica sobre a temática de juventude, observei esse sentimento de nostalgia que, ao associar seu tempo de juventude a características exclusivamente positivas, fazia uso reiterado da expressão “na minha época”. Por oposição, tais profissionais tendiam a olhar para os tempos atuais, e para os jovens deste tempo, baseando-se em características hegemonicamente negativas. Como estratégia para acessar as representações desses professores sobre os jovens de sua época e os da contemporaneidade, utilizei, nessas oportunidades, frases referentes aos jovens e à juventude de maneira geral. Reproduzo-as a seguir: 1. A nossa juventude adora o luxo, é mal-educada, despreza a autoridade e não tem o menor respeito pelos mais velhos. Os nossos filhos hoje são verdadeiros tiranos. Eles não se levantam quando uma pessoa idosa entra, respondem aos pais e são simplesmente maus. 2. Não tenho mais nenhuma esperança no futuro do nosso país se a juventude de hoje tomar o poder amanhã, porque esta juventude é insuportável, desenfreada, simplesmente horrível. 3. O nosso mundo atingiu o seu ponto crítico. Os filhos não ouvem mais os pais. O fim do mundo não pode estar muito longe. 4. Esta juventude está estragada até ao fundo do coração. Os jovens são maus e preguiçosos. Eles nunca serão como a juventude de antigamente... A juventude de hoje não será capaz de manter a nossa cultura.
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As reações à leitura dessas frases foram as mais variadas. Todavia, um sentimento de identificação sempre se destacava entre os presentes. Ainda que apresentando certos senões em relação às frases apresentadas, geralmente identificadas como posições radicais, os presentes tenderam a concordar com os diagnósticos feitos pelos autores das frases. Quando questionados sobre a autoria das frases, tenderam a atribuí-las aos pais, avós, tios ou amigos mais velhos. Poucos admitiram a possibilidade de eles mesmos terem dito algo dessa natureza. Ao serem confrontados com o período exato em que tais ideias foram proferidas, a maioria dos presentes ficou bastante surpresa. • a primeira é de Sócrates (470-399 a.C.); • a segunda é de Hesíodo (720 a.C.); • a terceira é de um sacerdote do ano 2000 a.C.; • a quarta estava escrita em um vaso de argila descoberto nas ruínas da Babilônia e tem mais de 4 mil anos de existência. Em geral, dois tipos de reação foram observados após a revelação da origem de tais frases: a primeira, que tendia a reforçar a ideia de que nada mudou nesse longo período histórico e que a juventude de hoje é tão degrada quanto à de outrora. O segundo tipo de reação – à qual me filio – defendia a ideia de que as opiniões expressas nas frases citadas acima, e que ainda hoje produzem ecos, refletem um conflito geracional que se pode observar desde tempos imemoriais. Essa segunda perspectiva sustenta, ainda, que o fato de uma geração olhar as gerações mais novas com base nos próprios valores, nas suas escalas de importância, nos seus códigos de significados, enfim, no lugar deles no mundo, explica, em grande medida, tais conflitos geracionais. Essa perspectiva adultocêntrica, que pode ser observada no primeiro tipo de reação, continua bastante enraizada no imaginário coletivo contemporâneo e parece dificultar ver os jovens para além da perspectiva da falta, da ausência. De acordo com Dayrell e Jesus (2013), a vitalidade do imaginário coletivo de que as instituições escolares modernas são lugares privilegiados para que os jovens “se tornem alguém no futuro” cumpre um papel de reforço a esta visão: a de que os jovens não seriam alguém no momento presente. Marcados pela ausência, os jovens estariam, portanto, presos a um eterno vir a ser, preparando-se para “ser alguém na vida” após a passagem para a vida adulta.
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Onde se aprende/ensina a ser, ou a se sentir, do Vale? Essa visão de que as escolas representam os lugares exclusivos de “se tornar alguém na vida” representa uma dificuldade também para o reconhecimento da vitalidade da cultura popular, sobretudo no contexto do Vale do Jequitinhonha. Hoje em dia, a ideia de que o único lugar em que se aprende é na escola e que os que não a frequentaram sabem pouco da vida continua ganhando adeptos. É fato incontestável que a escolarização vai ganhando hoje cada vez mais importância nas sociedades modernas (JESUS, 2006; FERNANDES, 2005; HENRIQUES, 2001). A obtenção de um bom emprego, geralmente, está associada ao nível de escolaridade que se obteve ao longo da vida e, indiretamente, o nível de escolaridade obtido pelos seus pais ou responsáveis. No entanto, é preciso insistir na ideia de que a educação é algo muito mais amplo do que a escola. Como disse em outra parte do texto, aprendemos a todo o momento e em vários lugares. No curto período em que morei em Teófilo Otoni4, três anos, tive a oportunidade de observar que o Vale do Jequitinhonha em si é uma escola. Durante as inúmeras festas das quais participei nas cidades de Itaobim, Jequitinhonha, Araçuaí, Medina, Padre Paraíso, etc., fiquei bastante impressionado com a possibilidade de observar, nos comportamentos, hábitos e dizeres dos jovens do Vale, as tradições, valores e jeito de ser dos mais velhos. Adicionalmente, chamava-me a atenção a capacidade, expressa por jovens das diferentes cidades do Vale do Jequitinhonha, algumas delas citadas, de se identificarem todos como “do Vale.” Mesmo conhecendo pouco o funcionamento do sistema escolar nas cidades do Vale do Jequitinhonha, penso que esse aprendizado dos comportamentos, das tradições e de uma identidade “do Vale” não se dá exclusivamente nas escolas. Em outras palavras, não acredito que se aprende a “ser alguém do Vale” exclusivamente nas escolas. Diante dessa consideração, é lícito perguntar: Mas, afinal, onde se aprende/ensina “a ser, ou a se sentir, do Vale”? 4 - “Teófilo Otoni encontra-se situada no nordeste do Estado de Minas Gerais, no Vale do Mucuri, e é considerada centro macrorregional. O Vale do Mucuri possui 27 municípios: Águas Formosas, Ataleia, Bertópolis, Campanário, Carlos Chagas, Catuji, Crisólita, Frei Gaspar, Fronteira dos Vales, Itaipé, Itambacuri, Jampruca, Ladainha, Malacacheta, Machacalis, Nanuque, Ouro verde de Minas, Pavão, Pescador, Poté, Serra dos Aimorés, Teófilo Otoni, Umburatiba e mais quatro municípios que foram criados em 1995: Franciscópolis, Novo Oriente de Minas, Santa Helena de Minas e Setubinha. O Município é composto por cinco distritos: Pedro Versiani, Crispim Jacques, Rio Pretinho, Mucuri e Topázio” (PREFEITURA DE TEÓFILO OTONI. Dados gerais. Disponível em <http://www.teofilootoni. mg.gov.br/pmto/sobre/dados-gerais/>. Acesso em: 16 set. 2014).
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Em uma enquete despretensiosa, realizada com alguns amigos jovens de uma rede social, recebi inúmeras respostas que revelam algumas das formas e dos lugares onde se aprende a ser/sentir do Vale5. Transcrevo algumas delas: Se aprende em tudo, seja na riqueza cultural, na força e alegria do seu povo! Nas mãos de quem molda o barro, transformando em arte traços de sua vida cotidiana! Se aprende nas cantigas, nas danças, que resistem ao tempo e preserva a história dessa gente guerreira! (Lucimara Ferreira, 15 set. 2014). [...] Posso dizer que eu aprendi a me sentir do Vale com sua gente hospitaleira que nos recebe sempre com um sorriso. Acredito que agente aprende a se sentir do Vale convivendo nele, vivenciando tudo o que nos tem a oferecer, crescemos e aprendemos muito nesse Vale (Stefanne Ferreira, 15 set. 2014). Nas cores restauradas pelas telas do Gildásio, no arrepio que sobe ao escutarmos as canções de Pereira da Viola, nas figuras dos artesões de Jequi, com as lavadeiras de Almenara e na força das cantigas de Araçuaí em uma troca constante de sorriso, poesia, aconchego onde não se aprende a ser, mas nos encantamos e orgulhamos em SER deste rico Vale (Ana Clara Guedes, 15 set. 2014).
Além desses comentários, recebi outros que, apesar de sintéticos, definiram de modo maravilhosamente denso o que é ser e se sentir do Vale: no Vale! – diziam eles. Interessante pensar que tal resposta se aproxima bastante daquela que eu mesmo havia formulado como hipótese antes de tornar tal pergunta pública: nas ruas, pensava eu. Justamente nas ruas, espaços que, nas grandes cidades brasileiras, têm se convertido em sinôni5 - Agradeço especialmente aos amigos que responderam a esta singela enquete virtual: Claudilene da Costa Ramalho, Edma Ferreira da Silva, Stefanny Elias Silva, Cris Sabino, Maria Aparecida Santos Queiroz, Thaisa Martins, Lucimara Ferreira, Vilmar Oliveira, Geziane Mattos, Venícios Oliveira, Jefferson Gomes, Elisânea Lima, Rômulo Silva, Ana Charnizon, Diego Soares Ferraz, Denise Morais, Mariana Madureira, Luciângela Amanda Reis, Gladiston de Araújo, Jô Pinto, Marcus Vinícius Costa, Alessandro Borges Araújo, Leandro Gomes, José Pereira, Cândida Coelho, Valdeir Silva, Matheus Victor, Rita Capdeville e Aline Aguilar.
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mo de perigo, maldade e deseducação. “É preciso tirar os jovens da rua”, defenderão alguns, reforçando o lugar deseducativo em que se converteram as ruas, ao menos em parte do imaginário coletivo. Não quero ser leviano ao defender a ideia de que a violência não se tornou fenômeno presente nas grandes, médias e pequenas cidades do Vale do Jequitinhonha, e que tal fator, como nas grandes metrópoles brasileiras, ajuda a explicar o meio das ruas. Todavia, penso, e observo isso nas festas populares que têm lugar nas várias cidades do Vale do Jequitinhonha, que as ruas ainda podem ser compreendidas como espaços abertos de educação, de ensino e aprendizagem. Afinal, fora das ruas, como seria possível ensaiar as tradicionais quadrilhas juninas, julinas e agostinas? Como seria possível acompanhar os tradicionais cortejos do “Boi de Janeiro” que invadem as ruas de várias cidades do Vale? E as Folias de Reis? O que seriam delas sem as ruas? De acordo com Leite (2012), as tendências em designar as ruas como espaços de deseducação não são novas em nossa história, já que a separação construída entre experiência social e conhecimento foi um dos alicerces para erigir as instituições escolares como espaços exclusivos da transmissão dos saberes acumulados pela humanidade. Para elucidar seu ponto de vista, a autora recorre a Arroyo (2011, p. 116): O currículo é tratado como se fosse possível a separação entre experiência e conhecimento. A produção do conhecimento é pensada como um processo de distanciamento da experiência, do real vivido, o real pensado seria construído por mentes privilegiadas através de métodos sofisticados, distantes do viver cotidiano, comum. Logo, o conhecer visto como um processo distante do homem e da mulher comuns, do povo comum; distante até do docente que ensina o povo comum. Todos eles – povo, mestres – são vistos como incapazes da produção do conhecimento porque estão atolados na sobrevivência, no real vivido. Consequentemente, serão apenas capazes de produzir o saber da experiência comum, do senso comum.
Retomar o potencial educativo das ruas, portanto, é reconhecer também os processos educacionais que, no contexto do Vale, possibilitam a aproximação entre mulheres, homens, jovens, crianças, idosos, negros, indígenas, brancos, etc. Possibilita perceber, também, como nos revela o 47
depoimento de Ana Clara Guedes, que é, justamente, por meio das tradições culturais, presentes nas diferentes cidades, vilarejos e grotas do Vale do Jequitinhonha, e da memória de longa e de curta duração, que os mais jovens aprendem e ressignificam o sentido de Ser do Vale. A memória contribui para a construção de identidade porque nos possibilita elaborar os conceitos de si e de nós em oposição ao conceito de outros. Conhecer a experiência da comunidade proporciona às crianças (e aos jovens) o acesso a um passado comum, construído pelas histórias dos que chegaram antes, presenciaram e participaram de mudanças. Compartilhar essas experiências leva as crianças a integrar o narrado à sua própria memória e nessa articulação se tecem as memórias coletivas das comunidades, fortalecendo-se o sentido de identidade (KESSEL, 2003, p. 128).
Os jovens não são bons em preservar a cultura! Uma breve mirada nas manifestações culturais do Vale do Jequitinhonha, sobretudo aquelas de caráter coletivo, nos permite observar que entre as centenas de manifestações da região, muitas são compostas apenas, ou majoritariamente, por jovens. Ainda que assumindo o risco de esquecer coletivos importantes, alguns podem ser citados: Meninos de Araçuaí, Grupo de Percussão Conexão Afro Quigemm, Coral Ouro de Minas de Itaobim, Coral Vozes do Jequitinhonha da Cidade de Jequitinhonha, Coral Nós de Minas de Coronel Murta, Coral Ribeirão de Areia de Jenipapo de Minas, Coral Flor da Terra de Francisco Badaró, Coral Flor de Lís de Itinga, Coral Vozes de Alagadiço de Coronel Murta, Coral Bem te vi de Virgem da Lapa, Companhia de teatro Ícaros do Vale de Araçuaí, etc. Mesmo entre aqueles grupos vistos como mais tradicionais, com presença majoritária de adultos, é possível observar a participação intensa de crianças e jovens, sejam como integrantes do grupo, sejam como acompanhantes das apresentações. É o caso dos diferentes Bois de Janeiro, de Itaobim, de Pedra Azul ou Jequitinhonha, ou das Folias de Reis de Joaíma e a Folia do Bairro Arraial dos Crioulos, em Araçuaí. Dito isso, é desnecessário reafirmar minha convicção de que, no Vale, os mais jovens são os principais responsáveis por oxigenar a cultura popular 48
e reinventá-la periodicamente. Além disso, a intensa participação juvenil em coletivos artístico-culturais da região pode ser vista como uma demonstração incisiva de que a cultura popular do Vale não está ameaçada de extinção, em razão da pretensa incapacidade das novas gerações de manter a cultura, como temia o autor da frase gravada no vaso babilônico de 4 mil anos. Mas se por um lado afirmo que os jovens são elementos ativos da cultura popular do Vale do Jequitinhonha, reafirmo a ideia presente no título desta seção: os jovens não cumprem bem o papel de preservar a cultura. Talvez seja esse o aspecto da experiência juvenil com a cultura que gere tamanha inquietação nas gerações que os precederam. Isso quer dizer que, apesar de aprenderem tradições culturais por meio das experiências aprendidas com as gerações mais velhas, geralmente em espaços publicamente abertos a várias gerações, os jovens tendem a ressignificar a cultura, alteram-na e constroen outras formas de transmitir saberes às novas e também às mais velhas gerações. Nesse sentido, em vez de conservar as tradições, os jovens a transformam. Pude presenciar parte dessa tensão entre a manutenção e a reinvenção das memórias e das tradições populares, no mesmo Festivale em que fui seduzido pela canção Jequitivale. Na ocasião do 28° Festivale, em Padre Paraíso, a equipe do Observatório da Juventude da UFMG organizou um Fórum das Juventudes, ao longo do primeiro dia de festival. Lembro-me de que uma das questões amplamente discutidas naquele momento dizia respeito às demandas por rejuvenilização do festival, apresentadas por muitos jovens de diferentes cidades. Uma das bandeiras concretas desse grupo era a abertura do Festivale a intervenções culturais mais contemporâneas, como os jovens mesmo nomeavam. Tenho notícias de que ainda hoje, 2014, essas demandas são vistas com reservas, como que ameaçadoras do espírito original da cultura popular do Vale: Nós, jovens reunidos no Encontro das Juventudes, realizado durante o 28ª Festivale na cidade de Padre Paraíso, viemos expressar, por meio desta carta, as principais reflexões e propostas feitas em torno da temática ‘Juventude, Cidadania e Identidade Cultural’, eixo central do Festival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha, edição 2010. Vindos de diferentes cidades do Vale do Jequitinhonha, reconhecemos a existência e a força de uma cultura popular, capaz de gerar uma identidade cultural, o que não elimina a diversidade de expressões culturais existentes nas 49
diferentes cidades do Vale. Ao mesmo tempo, reivindicamos o reconhecimento de nossas expressões culturais próprias que geram uma identidade juvenil, que ao invés de se opor, dialoga e reinventa a própria cultura popular do Vale.6
Nota-se, portanto, que o conflito geracional que se anuncia neste episodio se localiza, justamente, na tensão entre manutenção e reinvenção da cultura e das tradições populares. Não se trata, entretanto, de um conflito que paralisa a cultura popular do Vale, mas um conflito que carrega a potencialidade de fazer emergir zonas de negociação. Um conflito que carrega em si mesmo o germe do novo.
Considerações finais Como procurei argumentar ao longo deste ensaio, esses são alguns dos elementos que me fazem acreditar que os jovens do Vale são legítimos portadores da memória coletiva e das tradições populares produzidas no Vale. São representantes não de uma memória nostálgica, ancorada no passado e resistente a mudanças. Podem até ter herdado tal memória saudosista, mas, como dizia George Bernard Shaw7 “tudo o que os jovens podem fazer pelos velhos é escandalizá-los e mantê-los atualizados”. Considerando que o conteúdo dessas memórias presentes nos jovens pode ser considerado saberes intergeracionais, repassados pelas gerações mais velhas, mas atualizadas no presente, somos forçados a admitir que o papel esperado das gerações mais velhas de transmitir os saberes acumulados pelas gerações passadas tem sido realizado a contento no contexto dos valores. Por outro lado, o papel atribuído às novas gerações de representar a mudança também tem se realizado satisfatoriamente, ainda que não sem conflitos. De acordo com o que procurei argumentar aqui, os lugares privilegiados de transmissão desses saberes são os espaços públicos, mesmo sem desconsiderar a importância dos processos intergeracionais de trocas de saberes realizados no âmbito dos ambientes domésticos. As festas, cantorias, almoços e reuniões que se realizam nos quintais, ou nos terreiros domésticos, são também espaços privilegiados de ensino e aprendizagem coletiva. 6 - DOCUMENTO..., 2010. 7 - GEORGE Bernard Shaw (escritor irlandês – 1856-1950). Disponível em: <http://kdfrases.com/ frases/atualizado>. Acesso em: 15 set. 2014.
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Por fim, a troca de saberes que se tem lugar nas cantigas, nas danças, que resistem ao tempo, como nos diz Lucimara Ferreira, pode ser vista como uma das principais responsáveis por algo que mais me encanta na história do Vale do Jequitinhonha: a capacidade de construir uma identidade regional de resistência, que transcende gerações e espaços físicos e que permite aos filhos da terra e a alguns estrangeiros se reconhecerem como gente do Vale, que vale justamente por ser do Vale. Afinal, quem é do Val vale, quem não é do Val não vale nada. Finalizo este ensaio citando um depoimento de um filho do Vale que, ao mesmo tempo em que me apresentou os Vales, se fez meu irmão: Pergunta difícil, não conseguirei responder ainda, mas vou laçar uma chuva de Idéias: Se aprende a ser em alguns Lugares do Vale. Acho que essa resposta pode estar muito ligada a um imaginário sobre o próprio Vale do Jequitinhonha, ou a uma identidade cultural da região. Difícil não fazer uma relação direta com a palavra resistência, mas resistência a quê? Penso que a um esforço, uma força para viver ou sobreviver diante de limitações, resistência à escassez, resistência à opressão e de forma muito mais clara hoje, resistência a um subjulgamento. Pensando nisso, acho que o aprender a ‘ser’ do Vale pode ser muito mais refletido em locais onde essa resistência é mais exigida. No meu caso, precisei sair do Vale para problematizar a minha ‘sersência’ do Vale, mas conheci pessoas que precisaram estar no Vale para se sentir do Vale, mesmo sem ter nascido em uma das cidades localizadas na região. Acho que me descobri Ser do Jequitinhonha estando com outros retirantes do Vale em terra alheia, mais do que se estivesse em algumas cidades da região (Marcus Vínicius Costa, 16 set. 2014).
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Rodrigo Ednilson de Jesus, é professor adjunto da Faculdade de Educação da UFMG e coordenador do programa Ações Afirmativas na UFMG.
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Comunicação, mobilização social e participação política de coletivos juvenis do Médio Vale do Jequitinhonha Márcio Simeone Henriques
Este vasto território mesorregional a nordeste do Estado de Minas Gerais, o Vale do Jequitinhonha, mostra-se uma região de enorme diversidade humana, além de abrigar diferentes paisagens e climas e apresentar distintos fatores de desenvolvimento econômico e social. Apesar de tamanha diversificação, tem sido reconhecida uma unidade, pautada, sobretudo, em pontos comuns de sua formação histórica e nos traços culturais mais tradicionais de sua população e, arrisca-se dizer, pelo seu trágico destino de dominação econômica e política. Assim, ao se olhar para a gente que ali habita, se de um lado as generalizações devem ser evitadas, de outro vários elementos comuns que se referem àquela ideia de unidade (perceptível tanto dentro quanto fora do Vale) podem ser reconhecidos. Essa construção histórica de um Vale do Jequitinhonha é uma formação histórica de enorme importância política, afinal, ele tem como um de seus principais sustentáculos a resistência e a negação peremptória da miséria e da dominação como seu imutável e inexorável destino. Em meio às contradições, rudemente expostas sob o calor do semiárido pelas grandes distâncias e inúmeras ausências, estão os jovens, sempre cheios de esperanças e de desesperanças. Nessa realidade, muitos só veem como solução a saída à procura de melhores chances. Mesmo que se veja a força da migração (forçada) como destino futuro, não estamos impedidos de ver o ímpeto transformador dos jovens de atuar em busca de condições melhores nesses locais. Em minha experiência de vários anos atuando com jovens em várias cidades da região em projetos de extensão universitária, por meio do Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha, trato de focalizar a juventude sob uma abordagem ligada à emancipação e à autonomia, visando a uma ação protagonista em relação a causas de interesse desse público específico. Em todo o período, que soma 14 anos, foi-se estabelecendo com clareza a relação entre as possibilidades de comunicação e as possibilidades de intervenção cultural e política, especialmente para a população jovem. Já no momento em que se pesquisava o perfil da mídia local no Médio Vale era possível notar o crescente envolvimento de jovens com atividades na
internet (criação e manutenção de sites e blogs). Na pesquisa, realizada entre 2007 e 2008, em sete municípios do Médio Vale1 (HENRIQUES M.; HENRIQUES A.; CASTRO, 2007) constatou-se que a maior parte dos radialistas da região era de jovens (considerada a faixa etária de 15 a 24 anos). Vários deles estavam à frente das emissoras, mas um grande contingente compunha um corpo de locutores/apresentadores e que, além dessa função no rádio, tendiam também a realizar serviços de locução em geral, de difusão por carros de som, de gravação de spots publicitários, de promoção e apresentação de eventos, de cerimonial. Alguns também se dedicavam à elaboração de outros produtos de comunicação como informativos impressos (para as prefeituras, igrejas, etc.). Também nessa época, ao participar do processo de mobilização social para o Plano Diretor Participativo da cidade de Virgem da Lapa, chamou-me a atenção a adesão de jovens da cidade à participação virtual nas discussões, proposta por meio de comunidade do Orkut. Pesquisando com maior profundidade esse tipo de participação, viu-se ali, embora de forma embrionária, uma possibilidade de engajamento dessa população por outras vias que não as convencionais (HENRIQUES; MATTOS, 2008). Ao lado disso, observa-se na região a constituição de um forte movimento cultural que busca, há três décadas, gerar um reposicionamento político do Vale. Esse movimento, reunindo artistas e estudantes, que desde então buscavam recusar o rótulo aplicado ao Jequitinhonha de “vale da miséria”, teve seu desdobramento lógico numa mobilização que buscou evidenciar uma identidade cultural própria da região, gerando, assim, um dos maiores festivais de cultura popular do país – o Festivale. Esse festival itinerante, nascido como um festival de música, incorporou-se em seguidas manifestações artísticas variadas (teatro, artesanato, dança, literatura) e tornou-se o principal elemento de congregação e de projeção dessas expressões peculiares. Também foi intensa a movimentação para congregar as iniciativas de teatro amador e popular, com a criação da Associação dos Grupos de Teatro do Vale do Jequitinhonha (Agrutevaje), que realiza também um festival itinerante (Festeje – Festival de Teatro do Vale do Jequitinhonha). O que chama a atenção na trajetória desses eventos é a majoritária participação da juventude nas delegações que acorrem de várias cidades. É comum que os grupos de teatro, de dança, de música e corais tenham grande participação de jovens e que tais grupos procurem apresentar nos 1 - Araçuaí, Virgem da Lapa, Itinga, Medina, Ponto dos Volantes, Itaobim e Padre Paraíso.
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festivais temáticas ligadas às questões próprias do Vale: exaltação à sua cultura tradicional, denúncia de problemas sociais e econômicos, sátiras políticas, etc. Esse movimento veio gerando novos grupos culturais em várias cidades. Esses fatos foram sinalizando a mobilização de coletivos juvenis em vários lugares, criando e aproveitando possibilidades de expressão coletiva e de participação e interferência em questões publicamente relevantes no nível de cada localidade e também na região. Desse modo, minha atenção foi despertada para as relações comunicacionais existentes na formação desses coletivos e na compreensão de suas possibilidades políticas de ação em seus contextos locais. Entende-se que, sob esse prisma, entram em jogo inúmeros elementos que poderiam ser esclarecidos por um estudo em profundidade, dos quais se destacam, inicialmente, quais são e como se constituem as principais causas mobilizadoras desses jovens e quais os recursos comunicacionais de que esses grupos dispõem para se inserir na cena pública e para gerar identificação e manter vínculos no processo de mobilização social (HENRIQUES, 2004). Além disso, em coerência com o que se veio buscando compreender acerca da comunicação em processos de formação de públicos e de mobilização social, é importante investigar a interação que esses coletivos buscam com outros públicos e as condições de conversação sob as quais se dá para eles o processo de coletivização de suas causas (HENRIQUES, 2010). Dessa forma, a pesquisa empreendida entre 2012 e 2013 2 tomou essa dupla sinalização – – do engajamento em atividades ligadas à comunicação e da participação juvenil no movimento cultural do Vale como indícios para evidenciar as possibilidades de ação mais autônoma e protagonista dos jovens. A questão do protagonismo juvenil é complexa, mas, em geral, evoca a capacidade do jovem de pensar e intervir de forma autônoma e criativa sobre os problemas de sua realidade (STAMATO, 2009). Frequentemente posta em termos de autonomia e emancipação, traduz uma expectativa de participação ativa desses sujeitos. É evidente que essa expectativa se dá, de certo modo, limitada pela mediação de variadas instituições (e para além da família e da escola). Assim, um primeiro problema que se apresentou foi o de identificar as oportunidades de engajamento e mobilização mais autônomos, de iniciativa dos próprios jovens da região. 2 - A pesquisa Da tutela ao empoderamento: comunicação e mobilização social de públicos juvenis no Médio Vale do Jequitinhonha foi realizada com auxílio do CNPq e com a colaboração do Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha.
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Cumpre notar que a comunicação tem sido considerada um fator importante de empoderamento dos jovens – especialmente no que se refere às suas capacidades expressivas, bem como ao acesso público às mídias, uma vez que por meio desse processo se pode alcançar uma esfera de visibilidade na qual as diversas questões possam ser postuladas e postas à consideração de outros públicos. Vários projetos realizados na região por universidades ou ONGs buscaram, nos últimos anos, capacitar jovens para uso de diversas mídias e para lhes ampliar os meios de expressão. Além disso, a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA Brasil) tem procurado incentivar a criação da Rede de Jovens Comunicadores do Semiárido Brasileiro, na perspectiva de formação de comunicadores populares. No Vale do Jequitinhonha, a Cáritas Brasileira tem promovido, no âmbito das dioceses de Araçuaí (Médio Vale) e Almenara (Baixo Vale), encontros periódicos com jovens comunicadores da região. Assim, tais projetos e instituições têm sido mediadores, tanto quanto as próprias entidades culturais do Vale, para a formação desses jovens e para o estímulo (maior ou menor) ao seu protagonismo.
Um olhar sobre as juventudes Os diversos estudos sobre a população jovem, nas suas abordagens disciplinares, têm procurado apontar a necessidade de políticas públicas específicas para esse segmento e aprofundar a compreensão sobre suas expectativas, suas formas de socialização e de comportamento, sua inserção no mundo do trabalho, etc. Não é fácil delimitar com precisão o que seja a juventude como condição inerente a indivíduos que se encontram numa faixa etária determinada, uma vez que a ideia mais genérica e abstrata de “jovem” tende a ser associada a estilos de vida e também às variáveis formas culturais de transição para a idade adulta, geralmente correspondendo a uma entrada tanto na vida produtiva quanto reprodutiva (NOVAES; VITAL, 2005). Entretanto, a necessidade de compreender um contingente populacional nessas circunstâncias acaba por estabelecer pelo menos algum recorte etário em razão dos objetivos de estudo ou de formulação de políticas. No caso desta pesquisa, optou-se por identificar coletivos com participação majoritária de pessoas entre 15 e 24 anos3. Não houve preocupação, nesse momento, com 3 - Considera-se, aqui, a faixa de idade definida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística para efeito do estudo (cf. IBGE, 1999)..
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uma discussão mais aprofundada sobre as várias concepções de juventude, deixando isso para desdobramentos futuros, mas aponta-se que, em consonância com esses estudos correntes sobre a população jovem, acredita-se na pertinência de não se referir apenas à “juventude”, mas a “juventudes”, reconhecendo a diversidade de situações existenciais, a complexidade de formas sob as quais a população jovem se mostra, se associa, estrutura suas vivências e se apresenta como objeto de estudo ou de políticas no mundo atual (SPOSITO, 2003) que tornam impossível fixar padrões determinísticos sobre a condição juvenil (DAYRELL, CAROLINA, 2006). Os movimentos dessa população em termos políticos costumam ser mal compreendidos. De um lado, é sempre destacável o vigor dos jovens em termos de proposição de mudanças sociais; há uma percepção de que os apelos por mudanças costumam surgir da insatisfação das novas gerações com o estado das coisas e deposita-se uma esperança transformadora nos jovens. Por outro lado, são também frequentes algumas percepções de que a juventude atual se mostra menos engajada que as gerações anteriores, menos preocupada com as questões sociais e políticas, mais apática (e pode-se complementar: mais individualista, mais hedonista e uma série de outras críticas que são endereçadas costumeiramente aos jovens). Prefere-se, no entanto, colocar sob suspeita essa concepção de uma população jovem passiva e despolitizada. Novaes (2007), baseando-se em seus estudos sobre participação social dos jovens, busca desmistificar as visões simplificadoras sobre a questão, apontando que não há evidências suficientes de que há menor participação deles em algum tipo de ação coletiva do que em gerações passadas e propõe que “é preciso atentar para as novas apropriações e linguagens que renovam a política e (re)inventam possibilidades do(a) jovem de hoje estar e agir no espaço público” (NOVAES, 2007, p. 100). As recentes ondas de protestos em vários países do mundo e também no Brasil desafiam de todo modo a visão de passividade dos públicos juvenis. É provocadora a hipótese dessa autora de que há uma nova e peculiar interseção entre o discurso da cidadania e a expressão do sentimento de solidariedade, que se manifesta em novos espaços, além dos lugares tradicionais da política. Vários estudos têm perseguido essa linha de raciocínio, evidenciando a importância das novas articulações desses públicos que se dão por meios muito variados e incluem uma politização das suas expressões artísticas e culturais (como o movimento hip hop, por exemplo) e de uma intensa conexão pelos novos meios digitais.
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Em termos de mobilização social, isso nos coloca diante da situação em que as novas configurações da sociabilidade e da construção das experiências subjetivas estão relacionadas a novos modos de formação e movimentação dos públicos e, em consequência, de um fazer político. Como observa Melucci (1989, 1996), os movimentos sociais contemporâneos assumem uma forma de redes de solidariedade, de pequenos grupos imersos na vida cotidiana, com fortes conotações culturais, com múltiplas associações, uma militância breve e parcial e que alternam momentos de latência e visibilidade. Nelas, o envolvimento pessoal e a solidariedade afetiva são condições para a participação. Podem ser descritas como “uma alteração morfológica na estrutura da ação coletiva” (MELUCCI, 1989, p. 61). É, portanto, um desafio, entender tais processos, especialmente no que se refere ao contingente de população jovem, compreendendo quais são as suas formas e estratégias de comunicação para se darem a ver e inserir suas causas nos espaços públicos. As novas formas de ação política às quais nos referimos são particularmente visíveis nos grandes espaços urbanos. Diversos coletivos juvenis se constituem, se articulam e se movimentam, cada vez mais se apropriando dos recursos de conexão digital e reelaborando continuamente suas próprias visões do espaço público. No entanto, a realidade peculiar de uma região como a do Vale do Jequitinhonha chama a atenção para as condições em que a população jovem pode constituir-se e movimentar-se como públicos, formando opiniões, interferindo efetivamente no processo político local e, para além disso, conectando-se a outros públicos mobilizados em dimensões extralocais. Essa condição prefere-se considerar como intermediária entre a urbana e a rural, já que neste estudo pretendeu-se abranger uma população que vive em zonas urbanas, mas de municípios pequenos, realidade que não corresponde nem às dos grandes centros, tampouco às do espaço tipicamente rural.
Identificação e caracterização dos coletivos juvenis Escolheu-se abordar na pesquisa cinco cidades do Médio Vale do Jequitinhonha: Araçuaí, Itaobim, Itinga, Jequitinhonha, Padre Paraíso e Ponto dos Volantes. Nessas cidades, em investigação exploratória, identificou--se a ocorrência de coletivos juvenis (formalmente institucionalizados ou não), compostos majoritariamente por pessoas com idade entre 15 e 60
244 anos, nos quais fosse possível identificar claramente a proposição de alguma causa social e alguma atuação política (conversações e discussões sobre questões políticas diversas – especialmente sobre problemas da própria cidade – realização de atos públicos e de campanhas mobilizadoras –, participação em instâncias formais de discussão e deliberação – especialmente em conselhos gestores de políticas públicas –, participação em partidos políticos, atividades de monitoramento da gestão pública etc.). Uma vez completado esse levantamento, foram feitos estudos de caso com os coletivos mais expressivos, com o objetivo de analisar em profundidade suas condições de mobilização e, numa última etapa, utilizou-se a técnica de grupos focais (um em cada cidade) reunindo membros desses grupos para discussão acerca da visão que esses jovens têm da política e dos seus principais temas mobilizadores. Dessa maneira, o escopo da pesquisa foi definido após a identificação dos coletivos como mostrado na TAB. 15: TABELA 1 Coletivos considerados no escopo da pesquisa. Cidade
Grupos
Araçuaí
3
Itaobim
3
Itinga
4
Padre Paraíso
3
Ponto dos Volantes
2
Total
15
Fonte: Elaborada pelo autor.
Quanto ao perfil desses grupos de acordo com os critérios escolhidos (fundados ou liderados por jovens na faixa etária escolhida ou que pelo menos tivessem participação majoritária de jovens e participação destes em âmbito de decisão no coletivo), obteve-se o que se segue na TAB. 2: 4 - As cinco cidades possuem uma proporção média em torno de 18% da população nessa faixa etária, segundo dados do Censo de 2010 (cf. IBGE, 2010) 5 - Foram detectados, ainda, outros 11 coletivos juvenis e descartados para o estudo de caso, por motivos vários. Destes, 1 se mostrou praticamente inativo há pelo menos um ano, 7 eram grupos no âmbito de projetos sociais e/ou educativos que não contavam com a participação dos jovens na decisão de suas ações e 3 não tinham participação majoritária ou muito expressiva de jovens na faixa abordada.
61
TABELA 2 Perfil dos coletivos sob os critérios escolhidos. Participação majoritária de jovens e participação no âmbito de decisão
12
Fundados/liderados por jovens (até 24 anos)
3
Fonte: Elaborada pelo autor.
Na perspectiva da caracterização dos 15 grupos identificados e selecionados para este estudo, procurou-se estimar o número total de participantes mediante o cruzamento de relatos de suas lideranças e de alguns membros mais expressivos (foi dentre estes que os participantes foram escolhidos para entrevistas em profundidade na etapa posterior). Não foi tarefa fácil e sabia-se que isso teria de ser feito por estimativa. As contas de cada informante não batiam, pois ora eram levadas em conta pessoas que já não participavam com frequência ou que estavam fora da cidade –, mas mantêm algum vínculo, ora não. De todo modo, procurou-se computar o número de pessoas que costumavam participar de atividades com maior frequência e foi feita para cada grupo uma lista de nomes, à falta de documentos ou listas oficiais. Também foi necessário o cuidado de verificar alguns casos em que membros de um coletivo também atuavam em outro (ou outros), o que é bastante comum, principalmente nas menores cidades, realizando um expurgo dos dados em duplicidade. Na TAB. 3 sintetiza-se esse dado, bem como é apontado o número de entrevistas em profundidade que se conseguiu realizar: TABELA 3 Estimativa do número total de participantes e entrevistas realizadas. Grupos
Araçuaí
3
68
18
Itaobim
3
48
12
Itinga
4
24
9
Padre Paraíso
3
37
8
Ponto dos Volantes
2
28
7
Total
15
Fonte: Elaborada pelo autor. 62
Estimativa
Cidade
Entrevistas
participantes
205
54
Do total dos grupos, apurou-se também de quem foi a iniciativa de sua formação, resultando o que se mostra na TAB. 4: TABELA 4 Iniciativa de formação dos coletivos. Igreja
6
40,0%
Projeto social de ONG
5
33,4%
Projeto social poder público
1
6,6%
Iniciativa de escola ou professor(es)
1
6,6%
Iniciativa autônoma liderada por jovem(ns)
2
13,4%
Fonte: Elaborada pelo autor.
Também essa categorização não é simples, já que alguns projetos sociais de ONGs possuem estreita vinculação com os grupos de jovens da Igreja Católica, além de financiamento de grupos católicos ou mesmo inspiração religiosa nessa vertente. Isso evidencia substantiva maioria nesse perfil. As iniciativas consideradas autônomas em sua formação foram aquelas em que não houve uma ligação original com as instituições identificadas, sendo propostas pelos próprios jovens (com liderança de pessoas na faixa até 24 anos no momento da criação). É curioso notar que ambas as iniciativas detectadas possuíam em comum o fato de seus membros terem participado em alguma outra iniciativa ou mesmo em algum dos outros grupos identificados. Isso evidencia uma possibilidade de empoderamento, com a mobilização dos outros grupos. De todo modo, não se pode dizer que eles se destacaram totalmente dessas outras fontes, já que muitos seguiam sendo apoiados por estas outras instituições de alguma forma (Igreja, ONGs, poder público e escola). Outro aspecto a destacar na geração e na atuação desses coletivos é o fraco papel tanto da escola como do poder público em todas as cidades pesquisadas. No caso do poder público, a principal fonte é o Projovem (uma reformulação do antigo projeto Agente Jovem e um dos eixos do Programa Nacional de Inclusão de Jovens). Voltado principalmente para jovens em situação de risco social, tem como objetivo expresso favorecer o protagonismo dos jovens, mas não é declarado como uma fonte significativa para a geração de coletivos mais empoderados nessas cidades. Isso não significa que não seja atuante. Nessas cidades, no entanto, 63
é a articulação extrainstitucional (via participação dos próprios integrantes do Projovem em projetos sociais de ONGs ou nos grupos religiosos) que favorece a geração de coletivos mais preocupados com as questões da cidade, ou seja, mais politizados, e não o Projovem por si mesmo 6. Um dado importante sobre isso aparece na TAB. 5, em que se evidencia a caracterização de vínculos dos 54 entrevistados, dos quais um terço declara participação no Programa: TABELA 5 Vinculação dos membros dos coletivos abordados. A partidos políticos
4
7,40%
A grupos religiosos
35
64,80%
Ao Projovem
18
33,30%
Nenhuma dessas vinculações
13
24,00%
Fonte: Elaborada pelo autor.
Como se pode observar, o principal fator de participação vem do pertencimento a grupos religiosos, ou seja, de grupos de jovens de inspiração católica. Foram encontrados numerosos grupos de jovens de outras religiões, especialmente evangélica pentecostal, mas que, no entanto, não atuavam especialmente em questões da cidade, senão raramente, nem em manifestações artístico-culturais (dedicam-se principalmente à oração e a trabalhos caritativos). Também há inúmeros grupos religiosos católicos que também se voltam quase exclusivamente à caridade e à oração. Porém, vê-se que na maioria dos grupos de jovens católicos há certa politização e um estímulo a atividades artísticas diversas. Deve-se considerar a forte influência católica que se exerceu historicamente na formação de movimentos sociais, derivadas das Comunidades Eclesiais de Base e de uma atuação ainda hoje junto a estes movimentos e também a continuidade das manifestações artísticas populares ligadas a esta tradição (canto, dança, teatro e artesanato, principalmente). Quanto ao tipo de atividade que exercem, é notável a constituição desses coletivos como grupos culturais, como demonstrado na TAB. 6: 6 - Há pelo menos em dois casos a participação de responsáveis pelo Projovem atuando também nas outras frentes, tanto em ONGs quanto em grupos religiosos.
64
TABELA 6 Tipo de atividade principal dos coletivos abordados. Grupo de teatro
6
Coral
3
Grupo de ação política
3
Grupo de comunicação
2
Grupo de afirmação cultural
1
Fonte: Elaborada pelo autor.
Quando se mapeou mais especificamente a vinculação de cada entrevistado com atividades culturais nas quais estavam envolvidos, o resultado demonstrou a predominância do teatro (em muitos casos o envolvimento com o teatro se dava concomitantemente ao envolvimento em outras manifestações artísticas e culturais), como se vê na TAB. 7: TABELA 7 Vinculação com atividades culturais no âmbito dos coletivos. Teatro
52,2%
Coral
19,3%
Artesanato
11,4%
Manifestações tradicionais
5,0%
Produção audiovisual
4,2%
Nenhuma
7,3%
Fonte: Elaborada pelo autor.
Identificados os coletivos que seriam abordados, o estudo feito em profundidade obteve um conjunto amplo e significativo de dados sob vários aspectos. Aqui optou-se por apresentar em resumo a consolidação de alguns dados para o conjunto desses grupos nas cinco cidades abrangidas e para tanto foram escolhidos: a) a participação formal em instâncias deliberativas – particularmente nos conselhos de políticas públicas – e o perfil de mobilização que apresentam; e (b) temas que os jovens consideravam relevantes, o que evidencia as formas como problematizam sua própria inserção na cidade e na região.
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A participação e a mobilização social Na fase exploratória da pesquisa, escolheu-se como indicador importante a participação de jovens nos conselhos de políticas públicas do município. Essa participação é facultada por lei a partir da idade de 18 anos. O objetivo, portanto, foi verificar se essa inserção está de algum modo relacionada à participação desses jovens nos coletivos abordados. Todos esses dados foram colhidos em julho de 2012. Também aqui se pode incorrer em alguma imprecisão, dado que algumas cidades não dispõem de dados exatos sobre a composição de todos os conselhos (ou às vezes sobre a idade dos participantes). Em algumas cidades os dados estão consolidados pelo poder público, em outras a apuração foi mais trabalhosa, prevendo o levantamento manual na lista de cada um dos conselhos. De toda maneira, delimitou-se para o estudo a participação nos seguintes conselhos: Educação, Direitos da Criança e do Adolescente, Saúde e Assistência Social, que funcionam em todas as cidades abrangidas. Esses dados foram importantes para que fosse feita nova verificação quando da realização das entrevistas na segunda fase, quando se pôde apurar quais desses participantes eram membros dos coletivos analisados.7 Assim, foi possível identificar do número total já apurado uma parcela de pessoas vinculadas de algum modo aos grupos estudados, como sintetizado na TAB. 8: TABELA 8 Participação de jovens em conselhos de políticas públicas. Vinculados aos
Cidade
Total
Araçuaí
4
2
Itaobim
0
0
Itinga
1
1
Padre Paraíso
3
2
Ponto dos Volantes
2
1
Total
10
6
coletivos
Fonte: Elaborada pelo autor. 7 - Não se encontrou instalado em nenhuma das cinco cidades um Conselho Municipal de Juventude, embora em quatro delas já tivesse surgido a proposta à época desta apuração (Araçuaí, Itaobim, Itinga e Padre Paraíso).
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O resultado geral demonstra baixa participação de jovens na faixa de 18 a 24 anos. Dos dez participantes detectados, dois participavam em mais de um Conselho simultaneamente e três eram funcionários do poder público municipal. A maior participação era nos conselhos de Educação e, em seguida na Assistência Social e na Saúde. Para os seis jovens que possuíam vínculo com os coletivos identificados, a maioria deles (4) não demonstrou ser essa vinculação a motivadora de sua atuação (e dois eram ali representantes do poder público e não da sociedade civil). Assim, essa conexão era bastante frágil, não se podendo afirmar categoricamente que representassem os interesses e ações dos seus respectivos coletivos (senão indiretamente). Alguns dos entrevistados (mais especificamente dois em Araçuaí e um em Itaobim) se referiram particularmente à importância de ter representantes jovens e de seus coletivos nessas instâncias. Vários dos entrevistados declararam que costumavam acompanhar discussões realizadas pelos conselhos quando promoviam as conferências, como será visto adiante. Não se verificou nenhum caso de membros desses coletivos, na faixa até 24 anos, exercendo algum tipo de mandato político (ressalvando-se que essa apuração foi feita antes das eleições municipais de 2012) ou exercendo algum cargo de confiança no poder público. Quanto às ações de mobilização dos coletivos, indagou-se os entrevistados sobre manifestações recentes das quais tinham participado, de modo a identificar algumas das causas que defendiam. A manifestação mais lembrada foi a movimentação pela implantação dos campi da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), ocorrida entre 2011 e 2012. Pode-se notar que essa causa envolveu todas as cinco cidades abrangidas, com maior destaque para Itaobim e Araçuaí (cidades que postulavam sediar o campus). De fato, até 2012 foi essa a causa de maior mobilização, com a realização de vários atos públicos na região e intensos debates (ver GRÁF 1). Os entrevistados afirmaram não apenas sua participação no movimento, mas também que esse foi um assunto de debates e de posicionamento nos próprios coletivos, por ser de alto interesse dos jovens. Gráfico 1 – Manifestações recentes das quais os coletivos participaram. Campos UFVJM Drogas Asfaltamento da BR Exploração sexual infanto-juvenil Problema da água/copanor Outros
42%
15% 12% 6% 3% 2%
Fonte: Elaborada pelo autor. 67
Outro tema de cunho regional que mobilizou principalmente jovens de Araçuaí e Itaobim foram manifestações pelo asfaltamento da BR-367. Trata-se de uma questão, no entanto, que não possuía um apelo tão grande para os jovens quanto a implantação da universidade e que não ganhou tanta repercussão. Foram manifestações pontuais, mas que foram lembradas, já que constituem uma causa sempre reiterada. Da mesma forma, a mobilização em torno do enfrentamento à exploração sexual infanto-juvenil foi lembrada principalmente pelos entrevistados moradores das cidades no eixo da rodovia BR-116 (Padre Paraíso, Ponto dos Volantes e Itaobim), bastante conhecido pelo problema, mas que também se verificava nas outras duas cidades. A penetração dessa causa é grande e dois motivos podem explicar: um é o desgosto pela repercussão nacional de reportagens que denunciam o Vale, principalmente no trecho da BR-116 pelos altos índices desse tipo de prática (visto por muitos como um estigma) e outro pela vinculação de muitos dos jovens dos coletivos com as ONGs que se voltam para esse enfrentamento ou com o Projovem, bem como para situações de risco social e para esta, especialmente. Os coletivos que são grupos teatrais declararam a importância da causa e seu envolvimento por meio da apresentação pública de esquetes sobre o tema. Quanto às mobilizações contra as drogas, apesar de terem sido citadas com frequência, verificou-se que foram também pontuais, de iniciativa de escolas ou do Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd), de competência da Polícia Militar juntamente com escolas. Os entrevistados apenas registraram sua participação em alguma atividade desse programa ou em passeatas organizadas no âmbito dessa iniciativa. Ainda mais pontual foi a citação de manifestação contra a Copasa Serviços de Saneamento Integrado do Norte e Nordeste de Minas Gerais (Copanor), a companhia de saneamento que atende a municípios da região, mas que não foi detalhadamente especificada. Não se registrou a iniciativa de nenhum desses coletivos em propor e coletar petições públicas. No entanto, vários dos entrevistados se declararam signatários de abaixo-assinados como para o asfaltamento da BR367 e para a implantação do campus da UFVJM. Alguns poucos também revelaram que já assinaram petições on line para causas diversas, mas nenhuma causa específica da localidade.
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As temáticas de interesse O mapeamento com base nas entrevistas permitiu ver as questões com as quais os coletivos mais se preocupam, ao se agrupar a frequência de alguns termos mais apontados, inscritos na FIG. 1: FIGURA 1 – Temas proeminentes na preocupação dos grupos, segundo os entrevistados. Oportunidades
Saúde Meio Ambiente
Educação Lixo
Comunicação
Cultura
Exploração Sexual
Violência
Fonte: Elaborada pelo autor.
Embora não tenha sido possível uma apuração categorizada, o simples mapeamento de temas mais recorrentes já fornece alguns indícios das preocupações mais significativas que os entrevistados declararam sobre a atuação dos seus coletivos, o que serviu também de referência para a análise da etapa posterior, com os grupos focais. Quase todas as falas demonstraram uma preocupação com educação, mas é bastante sintomático que houvesse a predominância do conjunto educação-cultura-exploração sexual-violência. De fato, as formas de atuação caminham mesmo nessa direção e vê-se a grande influência das instituições (religiosas e projetos sociais de ONGs na formação desse discurso). Embora se tenha dado um tom bem positivo à formação das causas dos grupos, a questão da violência aparece de modo reiterado, embora não seja um dos maiores problemas “da cidade”. Destaque-se a questão do lixo, pois aparece com frequência, não necessariamente ligada a outras questões
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ambientais mais amplas. Interessante notar que a comunicação comparece, mas de modo isolado, como preocupação, pois há dois coletivos cuja questão central estava na expressão do jovem pelos meios de comunicação. Outros termos citados foram: preconceito, pobreza, identidade e situação da mulher. De toda maneira, os entrevistados assumiram que esses temas são frequentemente abordados em conversas no cotidiano dos coletivos, ou seja, há uma pauta, mesmo que não sistemática, de preocupações políticas que perpassam todos os grupos, em maior ou menor medida. De todos, os que mais se preocupam em tematizar ordinariamente as questões entre seus membros são os grupos de teatro e os de comunicação. São eles também os que dão maior amplitude ao conjunto dos temas e claramente possuem uma intenção de influenciar diretamente a opinião de outras pessoas ou grupos, tanto na cidade quanto na região, vendo-se de algum modo como elementos multiplicadores e de conscientização. Do mapeamento das possíveis preocupações dos grupos, passou-se a investigar nos grupos focais os temas de maior preocupação que seriam demonstrados pelos jovens em discussão. Observe-se que os grupos focais foram realizados um em cada cidade e contaram com a participação de membros de cada um dos coletivos abordados na localidade. Tendo sido uma discussão coletiva e mais livre, dois assuntos se apresentaram de modo significativo em todas as cinco dinâmicas realizadas: A) Preconceito e discriminação – No correr da discussão os jovens pontuaram o que consideravam como discriminação e, embora tenham citado as discriminações raciais e religiosas, acentuaram particularmente questões comportamentais e de orientação sexual como as de maior preocupação. Em graus variados entre cada cidade, os grupos também se referiram ao preconceito que sofre o próprio Vale do Jequitinhonha, com frequência apelidado de “Vale da miséria”. B) Oportunidades educacionais – Este tema ocupou grande espaço quando os grupos foram instigados a declarar as questões com as quais mais se preocupavam. Como reflexo das controvérsias em torno da implantação dos novos campi da UFVJM, o problema da oferta de ensino superior na região foi dominante, mas também apareceu com força a importância de ampliar as oportunidades de ensino técnico. Segundo eles, todos os coletivos colocaram essa
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questão na pauta de suas discussões e seus membros procuraram se envolver nas mobilizações locais (e na disputa entre cidades) pela implantação da Universidade, seja em atos de protesto, seja em discussões através das redes sociais. Os outros temas mais significativos tiveram predominância em um ou outro grupo e procuramos identificá-los indicando mais precisamente onde sua ocorrência se deu de forma mais significativa, interferindo no tom das discussões. Aqui listamos em ordem de importância, conforme o contexto dos grupos: A) Trabalho e renda (Padre Paraíso, Itinga e Ponto dos Volantes) – Embora seja uma preocupação recorrente no Vale do Jequitinhonha, especialmente para os jovens, nas duas cidades maiores, Araçuaí e Itaobim, os grupos não acentuaram esse problema como uma preocupação em suas discussões e na sua mobilização. Em geral, essa preocupação aparece atrelada, de algum modo, a dois aspectos importantes de discussão: a da oferta de oportunidades educacionais e ao problema das migrações (da saída dos jovens em busca de oportunidades fora da localidade). B) Migração – Padre Paraíso, Itinga e Ponto dos Volantes – Os coletivos juvenis se ressentem da sua pouca estabilidade em função do problema das migrações, tanto as sazonais (para trabalho em outras cidades ou estados em colheitas de diversos produtos) como a saída do jovem em busca de estudo e trabalho em outros lugares (sejam eles de qualquer condição social). Esse, no entanto, é um tema que se entrecruza com os problemas fundamentais de oportunidade de educação e de trabalho. Mesmo assim, ocupou uma parte significativa das discussões, sempre num tom negativo, mesmo reconhecendo-se que ultimamente há um volume maior daqueles que retornam à cidade após estudos e também que já tem sido possível cogitar a alternativa de ficar na própria cidade ou na região, estudando e trabalhando. C) Cultura – Padre Paraíso, Itinga e Itaobim – Dadas as características dos coletivos, ligados em geral a atividades artístico-culturais, a questão da cultura foi colocada como tema político relevante.
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No entanto, não foi a questão predominante na discussão, como se esperava, embora tenha aparecido uma problematização sobre políticas públicas para a cultura, financiamento e apoio do poder público. Em alguns casos, a discussão sobre o tema da cultura se deu em relação à importância da afirmação da identidade cultural do Vale, à falta de espaço para as novas expressões culturais fora do âmbito das manifestações tradicionais e a preocupação com uma “boa cultura” (uma cultura que seria mais “genuína”, em contraposição a manifestações impostas “de fora”). Nesses pontos se capta uma ambiguidade entre a preservação de uma cultura tradicional do Vale e o desejo de inovação (que não encontra muito espaço e repercussão). D) Lazer – Padre Paraíso e Itaobim – A questão do lazer para os jovens foi pouco mencionada. De modo geral, apontou-se a pouca oferta de lazer atrelada à necessidade de maior oferta cultural e esportiva. E) Problemas ambientais – Padre Paraíso, Itinga e Ponto dos Volantes – A menção a problemas ambientais também não foi muito expressiva, mas recaiu em problemas pontuais (especialmente de água, saneamento, lixo e mineração). F) Espaço público da cidade – Padre Paraíso – Foi um tema que gerou significativa discussão apenas em uma cidade, mas apareceu de forma tópica nas demais. A preocupação maior foi com o uso do espaço público atrelado às questões de lazer e de cultura. Alguns aspectos sobre urbanização foram apontados. De modo geral, o que se reforçou foi uma preocupação mais forte dos jovens com as oportunidades tanto educacionais quanto de trabalho e renda. Na maior parte do tempo, no entanto, ficou quase ausente uma abordagem da violência, ao menos diretamente, talvez por não desejarem alimentar ainda mais as percepções estigmatizadas da região. Mas é fato que, mesmo assim, o problema da violência entrecruza os demais e pontua outras discussões. É compreensível que dentre os temas haja grande interesse imediato no problema da oferta de oportunidades educacionais e de ocupação na cidade e na região (e também reflete uma questão pública recente acerca da implantação dos campi universitários).
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Mas observou-se que essa discussão evoluiu pouco além desse interesse imediato e, com exceção da campanha pela localização da UFVJM, não se tornou uma causa mobilizadora.
Algumas considerações A maior parte da exploração in loco para identificação dos coletivos juvenis se deu por meio de conversas informais, e isso se revelou naquele primeiro momento muito interessante para compreender as várias visões sobre a ação juvenil nas cidades e levantar outras hipóteses adicionais para o estudo. Tais observações permitiram algumas primeiras impressões mais gerais sobre a situação, com destaque para a dificuldade de encontrar coletivos mais organizados sem ligação, em sua iniciativa, com instituições (igreja, poder público, ONGs e projetos sociais). A maior parte da mobilização juvenil não se mostrou com iniciativa autônoma, mas algumas delas conquistaram autonomia de ação, mesmo que parcial. Interessante notar que várias dessas iniciativas encorajam a autonomia dos jovens e seu empoderamento, mas poucas são as iniciativas que sobrevivem de modo efetivamente autônomo. Principalmente em conversa com as ONGs, é comum manifestar-se um incômodo das lideranças em relação à sobrevivência e à conquista dessa autonomia dos grupos. Outro ponto notável é que um obstáculo comumente relatado à sobrevivência dos grupos (e também à sua autonomia) é a alta rotatividade deles. Isso tende a ser explicado por dois fatores: as rápidas mudanças de gostos e de interesses dos jovens e a alta taxa de migração, principalmente na faixa dos 18 aos 20 anos, para estudar e/ou trabalhar em centros maiores (embora também se aponte a migração sazonal para trabalhos na agricultura como um empecilho). Enquanto o primeiro fator é apontado como algo mais geral (comum à “juventude dos nossos tempos”, vista como dispersa em função da vida moderna), o segundo possui características específicas em cada cidade, sendo um problema mais acentuado em Itinga, Ponto dos Volantes, Itaobim e Padre Paraíso e menos em Araçuaí (provavelmente pelo porte da cidade e por ter maiores oportunidades). De toda maneira, não foi raro encontrar grupos que se colocaram como pouco atuantes no momento (ou praticamente inativos), mas mesmo assim ainda preservando sua identidade e os vínculos – por
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exemplo, grupos de teatro que nesse período não se dedicavam a produzir, ensaiar e apresentar nenhuma peça. Mesmo assim, observou-se que esses coletivos tendiam a se reunir em torno de sua identidade própria para outros objetivos, o que evidenciou uma ligação política e uma preocupação com as questões da cidade que merecia ser observada nas entrevistas em profundidade. Quanto à coletivização de causas sociais por esses coletivos, nenhum dos grupos estudados possuía uma causa específica ou central, mas um envolvimento amplo e difuso com várias causas que consideravam importantes e que eram tratadas de um viés artístico-cultural. A totalidade dos grupos encontrados e que foram enquadrados nos critérios da pesquisa possuía algum tipo de atuação cultural, o que corroborou a noção que se tinha na atuação prévia nestas cidades. Importante observar que a questão da cultura, como se observou pelo perfil dos grupos, é um fator de politização – não somente pelas manifestações dos grupos serem principalmente artístico-culturais, como também pela relação que estabelecem entre política e cultura. Essa relação é bastante peculiar e derivada da história de resistência cultural que aplicou uma identidade forte ao Vale. Destacam-se aqui três elementos que surgiram com mais força na discussão, em todos os grupos, que evidenciam esse aspecto: A) Recorrência ao discurso do “Vale da Miséria” como justificativa para a ação – É reiterada entre os jovens a negação do estigma de “Vale da Miséria”, sob o qual, na opinião deles, o Vale do Jequitinhonha passou a ser conhecido. Foi persistente o discurso de que era preciso mostrar o que o Vale realmente é, e esse tipo de fala sempre é relacionado à riqueza da cultura popular da região. B) O teatro como veículo de expressão política popular – É forte entre os jovens o discurso da cultura de resistência que vem do movimento cultural do Vale. Há uma visão comum de que a expressão teatral é um meio de difusão cultural da identidade do Vale, como também é um meio de politização de temas e de conscientização da população. Mesmo os coletivos que não eram grupos teatrais consideraram o recurso a esse tipo de expressão como um dos mais importantes para a resistência cultural e para a conscientização.
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C) Dependência do poder público – A expressão cultural é vista como dependente do poder público, mas isso foi pouco problematizado em geral pelos coletivos. Ficaram patentes dúvidas sobre o financiamento de ações e de produtos culturais e sobre o papel do poder público nesse sentido, s obre os “preconceitos” e as “discriminações”. Embora tenham tocado em diversos tipos de preconceito, fica também evidente em todas as discussões realizadas que se sentem discriminados por serem do Vale do Jequitinhonha. Em algumas situações, isso compõe até mesmo uma baixa autoestima ou, ainda de modo mais forte, certo estigma. Tanto é assim que houve relatos de jovens que afirmaram omitir sua cidade de origem a pessoas de fora, bem como a constância da referência ao “Vale da Miséria” como fonte desse estigma coletivo que se deseja intensamente superar.
Por certo, a delimitação feita nesta apresentação da pesquisa reflete apenas uma parte do que foi abordado e do que foi possível captar e compreender, mas o propósito foi situar e caracterizar as experiências de alguns públicos juvenis mais organizados como forma de buscar pistas sobre sua ação política. Tudo isso denota ao mesmo tempo a existência de alguns impulsos mobilizadores, importantes naquele contexto, e a fragilidade que ainda persiste em termos de uma inserção efetiva no circuito da comunicação pública em âmbito local. Não obstante os avanços nesse sentido, não há que desconsiderar a persistência de uma cultura política tradicional e das difíceis condições de vida como obstáculos muito significativos à participação política dos jovens.
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Márcio Simeone Henriques é professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutor em Comunicação Social pela UFMG e coordenador do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Mobilização Social e Opinião Pública (MOBILIZA). Coordena a Pesquisa Da tutela ao empoderamento: comunicação e mobilização social de públicos juvenis no Médio Vale do Jequitinhonha, com o apoio do CNPq. Participa do Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha, em diversos projetos de extensão universitária.
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O projeto casa da juventude Lia Queiroz
Apesar de todos os avanços significativos que tivemos no Vale do Jequitinhonha, ainda temos muitos desafios a vencer. Evidencia-se para nós que aqui vivemos e labutamos que a desigualdade social, em todos os aspectos, tem impacto predominante na vida da nossa juventude. A desigualdade do saber, do ter e de oportunidades. No Vale, a responsabilização dos jovens ao completarem a maioridade no sustento da família tem criado uma limitação de seu projeto de futuro. Apesar da exclusão e da subordinação dos jovens na década de 1950, eles sonham e elaboram estratégias para a realização dos seus projetos, e um grande desafio a ser vencido é a evasão escolar. O jovem abandona a escola para ir para o mercado de trabalho com o objetivo de suprir suas necessidades básicas e precisa, nesse redemoinho, buscar qualificação para competir com igualdade no mercado de trabalho. Ainda convivemos com um sistema educacional ineficaz e um modelo político de assistência desigual que privilegia alguns e outros ficam à mercê da própria sorte, pois não têm como prioridade a juventude. Daí surge o fenômeno de violência, que tem elevado o número de homicídios envolvendo a adolescência e a juventude. A realidade tem mostrado que a maioria das vitimas é pobre e negra. Muitos jovens estão vulneráveis a essa cultura de violência. Acabaram com o circo, Mas veja toda a plateia Assistindo à covardia E aplaudindo, Sem ideais, sem ideias, O espetáculo da ironia, Vivendo a loucura de vidas, Com bem menos poesia. Mataram o circo. Estão matando a alegria! É nesse contexto que o projeto Casa da Juventude atua de forma permanente, com um programa de desenvolvimento comunitário cuja proposta central é criar condições para romper o ciclo de violência, com intervenção 79
direta na violência sexual vivenciada pelas crianças, adolescentes e jovens da região. Busca-se, por meio da articulação das politicas públicas com a comunidade e outras entidades do Vale, garantir o direito fundamental de proteção, possibilitando qualificação profissional e condições de trabalho e renda. A participação das crianças, dos adolescentes e dos familiares cresce com o fortalecimento do protagonismo infantojuvenil e a presença deles em diversos seminários, audiências públicas, conferências e campanhas de combate ao abuso e à exploração sexual. O trabalho se desenvolve e se aprimora no sentido de promover a garantia dos direitos das crianças, adolescentes e familiares, bem como a profissionalização de pessoas de toda a comunidade que, após concluírem os cursos ofertados, conseguem melhorar a renda familiar. Os encontros de formação, com o objetivo de resgatar os valores sociais, culturais, morais, religiosos e de recuperação da autoestima das crianças, dos adolescentes e de suas famílias são estratégias fundamentais na intervenção das causas que influenciam para que eles saiam do quadro de vulnerabilidade social em que se encontram. Para tanto, o projeto Casa da Juventude tem trabalhado ativamente na formação das crianças, adolescentes e jovens, principalmente no que tange ao protagonismo infantojuvenil e familiar, incentivando o empoderamento e o resgate dos laços de convivência familiar e comunitária, para que tenham outra perspectiva de vida, sem práticas ilícitas, e à exploração sexual, que os destroi como pessoas e ainda acaba com o pouco que lhes resta dos laços familiares e da autoestima, tão fragilizados pela desigualdade e violência social. Assim, o projeto tem galgado avanços significativos dentro e fora da área de abrangência, dados os resultados dos trabalhos desenvolvidos no sentido de fortalecer os espaços de participação na comunidade e motivar as pessoas a participarem democraticamente das decisões por meio do trabalho de sensibilização e de formação ideopolítica. O objetivo é fortalecer a participação dos adolescentes, jovens e pais nos espaços públicos para que acompanhem as discussões realizadas, motivando-os ao questionamento do processo político, social e comunitário. Com a nossa parceria KNH/Brasil e a parceria firmada com o Polo de Cidadania da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com o suporte técnico, foi possível realizar várias ações, como a construção da peça teatral Nem tudo está perdido, que foi apresentada em várias cidades do Vale, mobilizando e sensibilizando a sociedade em geral sobre a necessidade de combater o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes. 80
Em parceria com o Pólo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha foi criado o Núcleo de Comunicação, que utiliza os instrumentos do audiovisual, rádio, Web, etc. Temos conseguido mobilizar adolescentes jovens no resgate cultural, na articulação e na utilização das redes sociais para o enfrentamento da violação de direitos humanos. Em parceria com a rede local e a UFMG, foi realizado o seminário regional com foco no abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, com a participação de 20 cidades e 450 atores, buscando alternativas de melhoramento. O sentido é pactuar para avançar na consolidação das políticas públicas. Vamos continuar no fortalecimento desse protagonismo, propiciando aos adolescentes, jovens e adultos acesso aos instrumentos de legalidade normativos à profissionalização, no intuito de ampliar-lhes as possibilidades e a inserção no mercado formal de trabalho, bem como envolvê-los nas decisões e motivá-los a participar ativamente dos movimentos sociais, políticos, culturais, tão necessários para a dignidade humana... Que viva a utopia... Que viva a realidade... Que viva a construção...
Lia Queiroz é missionária responsável pela “Casa da Juventude” de Itaobim
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Sucessão e formação da juventude rural do Vale do Jequitinhonha Kênia Fabiana Cota Mendonça Áureo Eduardo Magalhães Ribeiro Flávia Maria Galizoni
O senhor João Toca diz que em seu terreno planta quase de tudo um ‘mucadinho’: banana, cana, hortinha, café, feijão de duas qualidades – corda e arranque –, andu – em todas as variedades –, milho e mandioca. Sua fala expressa os diversos alimentos que fazem parte das refeições diárias de tantas famílias. Entretanto, nem todos brasileiros sabem que são os(as) agricultores(as) familiares, como esse senhor, os responsáveis por abastecer parte do mercado de alimentos e matéria-prima do país. Estudo publicado revelou que a agricultura familiar no Brasil é responsável pela produção de 70% dos alimentos (MDA, 2012). Contudo, apesar de sua importância, de sua expressividade na produção agrícola e de sua capacidade de interação com outras atividades econômicas e sociais, observou-se que a partir da década de 1990, os(as) filhos(as) de agricultores(as) têm deixado a unidade familiar para encontrar oportunidades mais promissoras de geração de renda fora do meio rural. Diversas pesquisas realizadas na Região Sul do país sobre o tema “sucessão” vêm demonstrando que a transição demográfica, a masculinização e o envelhecimento dos(as) agricultores(as), o intenso processo migratório, as maiores possibilidades de escolarização, a maior integração cidade-campo, a insatisfação com o ganho obtido na agricultura, a penosidade e a imagem negativa do trabalho agrícola têm gerado o esvaziamento do meio rural. Contudo, sabe-se que a qualificação técnica do agricultor acontece, principalmente, na família. É no fazer-aprender que os(as) filhos(as) de agricultores(as) familiares tornam-se qualificados(as) para exercer as atividades relacionadas ao campo. O saber é passado de pai para filho(a), sendo esse conhecimento renovado e atualizado. São saberes profundamente ambientalizados, adaptados à minúcia do território e pouco replicáveis. Logo, se os(as) filhos(as) de agricultores(as) abandonarem o meio rural, a cultura fundamental e adquirida no campo como agricultores poderá desaparecer, deixando, assim, limitadas as possibilidades da produção. Diante disso, é primordial que a sociedade e o poder público definam programas públicos de incentivo ao agricultor familiar, que se adaptem às 83
peculiaridades dos territórios e que sejam capazes de despertar o interesse dos(as) jovens para sua realização profissional e pessoal num meio que eles(as) conhecem e que pode ser valorizado com seu trabalho. Tema tão relevante como a ocupação do espaço rural não pode ser deixado sob a responsabilidade somente das forças do mercado. Em face das questões expostas, o objetivo geral com esta pesquisa foi verificar se os(as) jovens do alto Jequitinhonha permanecerão na profissão de agricultores(as) familiares. Partindo do objetivo geral, mais detalhadamente, pretendeu-se identificar o “padrão” de sucessão na agricultura familiar, os mecanismos formais (escola) e tradicionais (familiares e comunitários) de capacitar o(a) jovem e verificar se a transição demográfica interfere no processo sucessório. Com o propósito de atingir os objetivos propostos, os dados qualitativos e quantitativos analisados na pesquisa foram coletados em 2007, por meio de entrevistas focalizadas na família ampliada, que investigava a história de formação, migração e sucessão vivida por 40 casais que correspondiam a 10% dos(as) agricultores(as) familiares dos municípios de Turmalina e Veredinha, no alto Jequitinhonha. As informações abrangeram três gerações vinculadas a uma mesma terra: i) marido, mulher e irmãos, para compreender o acesso à terra do sítio, a sucessão passada e o plano da futura sucessão; ii) os pais, para compreender a lógica de acesso à terra e a presença de eventuais padrões sucessórios; iii) os filhos, para compreender a sucessão em processo. Os casais pesquisados foram amostrados intencionalmente seguindo indicações de organizações rurais, distribuídos entre as diversas áreas agrícolas dos municípios e obedecendo aos critérios de prática agrícola, moradia rural e descendência. A amostra foi distribuída proporcionalmente ao número de estabelecimentos familiares existentes em 1996 no município de Turmalina – do qual Veredinha então era distrito – com base nos dados sistematizados Incra/FAO (INCRA; FAO, 2000) sobre agricultura familiar dos municípios. Além disso, a amostra seguiu a proporcionalidade dos grupos definidos pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf): Grupo B, renda familiar anual bruta até R$ 2 mil; Grupo C, renda familiar anual bruta entre R$ 2 e R$ 14 mil; Grupo D, renda familiar anual bruta entre R$ 14 e R$ 40 mil (ORTEGA; SÓ, 2005). Foi feita correção na amostra do Grupo D em face de modificações apontadas pelas agências de crédito e extensão rural no perfil da distribuição entre 1996 e 2006. Além dos casais, foram entrevistados(as) 40 filhos(as) de agricultores, amostrados pelos mesmos critérios usados para escolher os casais. 84
No total, foram entrevistados (1) 40 casais de agricultores com idade entre 30 e 71 anos e (2) 40 jovens filhos(as) de agricultores com idades entre 12 e 25 anos, sendo 20 rapazes e 20 moças. Os entrevistados forneceram, ainda, informações sobre os (3) 141 filhos(as) e os (4) 282 irmãos(ãs) do homem e da mulher que formam o casal, e os (5) 115 irmãos(ãs) dos(as) 40 filhos(as) de agricultores(as) pesquisados, conforme exposto no TAB. 1. Para facilitar a compreensão do texto, os grupos (1) e (4) foram denominados “adultos”; os grupos (2), (3) e (5), “jovens”. TABELA 1 Total dos indivíduos sobre os quais foram coletadas informações na pesquisa, Turmalina e Veredinha, 2007. Categoria
Entrevistados (as)
Que informaram sobre
Cônjuges (membros do casal)
40 casais ou 80 indivíduos
141 filhos(as) desses casais
Filhos
40 moças e rapazes
115 irmãos(ãs) desses jovens
Total
120
538
282 irmãos(ãs) desses casais
Fonte: Pesquisa de campo, 2007.
Assim, neste estudo são apresentadas a análise e a discussão dos resultados sobre a formação e sucessão dos(as) jovens rurais do alto Jequitinhonha e, quando necessário, realizam-se comparações entre as duas gerações analisadas: “adultos” e “jovens”.
Formação do jovem rural Como seus pais, os(as) jovens rurais do Vale do Jequitinhonha adquiriram o conhecimento – sobre o trabalho na terra, a lida com animais, a produção de cachaça, farinha de milho e/ou mandioca, açúcar mascavo e rapadura; artesanato – com seus familiares. Esses ensinamentos são realizados no fazer-aprender e começa desde muito cedo, mesmo que algumas das técnicas de trabalho tenham sido modificadas. Esses jovens (90%) trabalham com a família, realizando quase todos os serviços da roça, da comercialização à fabricação de produtos. A idade média em que se iniciaram no trabalho é 10 anos. Contudo, afirmam que desde que começaram a andar já acompanhavam a família na realização dos trabalhos: 85
Desde de novinho, né? Desde que me entendi por gente, mexi com ele [pai] direto. Cortava coisa pro queijo, ia pro curral mais ele, tirava um leitinho, pouquinho, mas tirava. Ia pra roça, levava comida pra ele na roça (Elizeu).
Semelhantemente a seus pais, os(as) jovens também aprenderam os serviços da roça com a família [pai, mãe e irmãos(ãs)]. Entretanto, 17,5% dos(as) entrevistados(as) incluíram, ainda, a figura dos avós. Quanto à troca de experiência com as pessoas das comunidades, os(as) jovens (59%) relataram ter aprendido alguma técnica de trabalho com agricultores(as) vizinhos(as), tais como: fazer remédios fitoterápicos, sabão ou trabalho em argila (artesanato); técnicas de plantio; manejar motor de engenho; técnicas de cuidados com o solo e preservação de nascentes. Eles consideram que a convivência com a comunidade é fundamental para a manutenção do(a) agricultor(a) familiar, visto que fortalece os laços de amizade, ao mesmo tempo em que a troca de conhecimentos possibilita melhor desempenho no trabalho. Os(as) jovens (72,5%) relataram que gostavam da comunidade onde moravam porque era um lugar calmo, tranquilo, sem violência, sem poluição, onde era possível sentir liberdade e ter maior contato com a natureza; 27,5% deles afirmaram que as pessoas eram o principal atrativo da região. Um jovem diz: Gosto muito da região: do jeito do povo! Essa simplicidade e esse jeito amigo das pessoas, você não encontra lá fora (Paulo). Quanto à participação dos jovens em organizações que atuam no meio rural, verificou-se que o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) foi citado por 10% dos(as) jovens; o Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV), por 25%; a Associação de Promoção ao Lavrador e Assistência ao Menor de Turmalina (APLAMT), por 20%; a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (Emater), por 20% e as Associações Comunitárias, por 10%. Esses(as) jovens (57,5%) acreditam que essas organizações poderiam contribuir para a permanência deles como agricultores(as) familiares. Citam como medidas possíveis: fornecimento de adubos, sementes e ferramentas a baixo custo; cursos que possibilitem o aprimoramento dos conhecimentos e que os tornem capazes de cultivar novos produtos, modificar a lavoura de forma que aumente a produtividade na agricultura e lhes permitam vender no mercado com maior rentabilidade; técnicas de manejo que não degradem o meio ambiente; palestras que os informem sobre máquinas e insumos agrícolas, conscientizando a sociedade eles(as) mesmos(as) da importância da agricultura familiar. 86
Diante do exposto, percebeu-se que a família continua sendo a principal base de formação do(a) jovem rural: Uso muito pai e mãe como espelho, suporte para trabalhar na terra (José Alves). E é, principalmente, com os ensinamentos transmitidos pela família que são capazes de desempenhar, sozinhos(as), qualquer atividade na lavoura.
Educação formal do jovem rural Os(as) jovens apresentaram escolaridade média de 6,9 anos, sendo que os que cursaram somente um ano possuíam idade inferior ou igual a 7 anos. Esses dados confirmam que o padrão de frequência escolar alterou-se nitidamente quando comparados ao de seus pais e tios(as), o que pode ser justificado pela maior oferta de escolas públicas na região e pela maior valorização da escola para a formação. Percebeu-se, ainda, que as mulheres nas duas gerações possuíam o nível escolar maior que a dos homens, como mostrado no GRÁF. 1. GRÁFICO 1 – Comparação da média de anos de escolaridade entre as duas gerações de agricultores(as) familiares. 8 7
Média de anos de Estudo dos Jovens
6 5
Média de anos de Estudo das Jovens
4 3
Média de anos de Estudo dos Pais e Tios
2 1 0 MENOR RENDA
MÉDIA RENDA
MAIOR RENDA
Média de anos de Estudo das Mães e Tias
Fonte: Pesquisa de campo, 2007.
Nas pesquisas realizadas nas comunidades, foi possível verificar que várias delas possuem escolas que oferecem até o quarto ano, sendo que a prefeitura oferece transporte escolar aos alunos para as sedes urbanas. A maioria dos(as) jovens rurais (95%) estudou pelo menos dois anos em escolas das 87
comunidades, tendo depois passado a estudar na sede do município em escolas da prefeitura, estado ou em Escola Família Agrícola (EFA). A existência das EFAs são fatores que contribuíram para o aumento da escolaridade, uma vez que adotam a pedagogia da alternância, na qual os(as) jovens(as) passam duas semanas no estabelecimento agropecuário da família e duas semanas na escola. A metodologia utilizada permite que os conhecimentos adquiridos trabalhando no terreno dos pais sejam articulados com os conhecimentos da área técnica – geral e humana – aprendidos na escola. Os estudantes das EFAs realmente aplicam no terreno familiar os conhecimentos adquiridos nessas instituições: Vou passando para o pai como deve fazer e melhorou produção (Angélica). Relataram que nas EFAs aprenderam a trabalhar com horta, fruticultura (banana e laranja), apicultura, agroindústria (polpa de frutas, padaria e análises de custos), bem como técnicas de adubação, prevenção de pragas, preservação do solo e do meio ambiente. Destaque-se, ainda, que a pedagogia adotada por essas escolas permite que os(as) jovens continuem seus estudos e também participem da composição do orçamento familiar, além de reduzir o processo de aculturação que experimentam quando estudam nas escolas tradicionais ou “da cidade”: Na EFA está tudo ligado ao meio rural, dá para usar. Já a escola tradicional desenraíza, foi feita para a cidade, só mostra a questão empresarial do campo e depois que vai para cidade o jovem perde o interesse pela roça (Anderson).
As EFAs, portanto, buscam atender às necessidade educacionais dos(as) filhos(as) dos agricultores(as) familiares, uma vez que lhes proporcionam uma educação com base na realidade deles(as), além de desencadear um processo de reflexão que lhes permitem transformar essa realidade.
Destinos do jovem rural Dos(as) jovens entrevistados, 36% eram estudantes, com idades entre 7 e 22 anos e todos(as) eram solteiros(as). Desses, 69% trabalhavam na roça com a família, 4% estudavam em outros municípios de Minas Gerais e 27% não exerciam atividades na agricultura. Permanecem no meio rural porque ainda não têm definido o destino deles(as). 88
Quando questionados se desejavam se tornar agricultores(as), 70% desses(as) jovens responderam afirmativamente, sendo as respostas baseadas em razões afetivas: Roça é gostoso porque está perto da família, dá mais energia e animação; é calmo, sem muitos riscos; faz parte da vida da gente; lida mais com a natureza; é um lugar em que sentem a vontade, o ar é mais puro. Um deles comentou: Sou apaixonado pelo campo, sempre estou acompanhando [os pais, tios(as) e avós], dando sugestão, participando no dia-a-dia do negócio da família. Eu sou louco por isso aqui! (Paulo). As respostas que vieram em sentido contrário (30%) apontam para a ausência de condições para o desenvolvimento das pessoas, que é traduzido por ganho pouco e trabalho muito pesado. Para esses jovens é possível viver do trabalho da agricultura familiar. Um deles comentou: É possível viver da roça. E é possível viver bem! Acho que a gente não pode sonhar em ficar rico, mas alimentação boa, qualidade de vida, saúde e manter filhos num colégio bom, isso é possível (Paulo). Os(as) jovens consideram que as maiores dificuldades do(a) agricultor(a) familiar são o tamanho da terra, os solos cansados, a existência de pragas, a falta de água, a desvalorização dos produtos vindos da zona rural pelos consumidores, a falta de informação e de apoio ao agricultor (cursos), a falta de infraestrutura das estradas que dificulta o escoamento da produção, a dificuldade de comercialização dos produtos, a falta de incentivos fiscais do governo e de estrutura em geral (maquinários e ferramentas). Para avaliar entre os(as) jovens quais permanecem no campo, foi preciso excluir do total pesquisado aqueles que ainda são estudantes. Isolando esses, foi possível comparar os principais destinos das duas gerações estudadas. Com base nesse procedimento é possível afirmar que, na geração dos pais, 44% permaneceram ocupados na agricultura familiar. Na geração jovem, os(as) filhos(as), excluindo aqueles que ainda estão estudando e, portanto, não têm seu destino decidido, 32% permanecem ocupados no rural como agricultores(as) familiares. Existe, portanto, entre uma e outra geração, uma redução percentual de 27%, uma diminuição relevante no número de agricultores(as) familiares na geração jovem1. Houve, ainda, o incremento no número de filhos(as) de agricultores(as) familiares trabalhando em ocupações urbanas, tais como: agentes de saúde, borracheiros, açougueiros, domésticas, donas de casa, vendedores, comerciantes, mecânicos, dentre outras. 1 - Para o cálculo do percentual de redução do número de agricultores(as) familiares entre as duas gerações, utilizou-se: [(% de agricultores irmãos(ãs) homens e mulheres que formam os casais)] – [(% de agricultores irmãos(ãs) dos(as) jovens)]: [(% de agricultores irmãos(ãs) homens e mulheres que formam os casais)] X 100%.
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Percebeu-se, ainda, que a média de idade e anos de estudo pouco variaram em razão da ocupação desempenhada pelos(as) jovens, ou seja, tanto os(as) jovens que desempenham atividades agrícolas, como os(as) que atuam no mercado de trabalho urbano, receberam praticamente o mesmo nível de instrução formal: média de 6,9 anos de estudo. Diante do exposto, percebeu-se que não existe uma definição apriorística do perfil escolar de quem sairá ou continuará na agricultura familiar, visto que a intenção de sair e morar fora do meio rural convive com a vontade de permanecer residindo na localidade de origem. Contudo, é preciso deixar claro que são jovens em fase de transição e que as “escolhas” sobre o caminho que vão seguir serão traçadas com o tempo. Um prognóstico, portanto, torna-se difícil.
Sucessão do jovem rural Foram analisados os dados sobre o processo sucessório dos(as) filhos(as) dos 40 casais entrevistados e encontraram-se três situações distintas: (1) famílias com vago horizonte de sucessão; (2) famílias que estão preparando seus(suas) sucessores(as); e (3) famílias sem sucessor(as), conforme mostrado na TAB. 2. TABELA 2 Síntese do processo sucessório das 40 famílias pesquisadas. FAMÍLIAS
Vago horizonte
SITUAÇÃO
QUANTIDADE
Filhos(as) menores de 10 anos
5
Filhos(as) entre 10 e 17 anos
3
Famílias constituídas de filhos ou filhos trabalhando em ocupações urbanas
6
Preparando
Sucessores definidos
8
sucessores(as)
Sucessores(as) não definidos(as)
15
Sem sucessores(as)
-
3
Total Fonte: Pesquisa de campo, 2007.
90
40
Notou-se que 14 das 40 famílias analisadas encontravam-se em vago horizonte de sucessão, sendo que 5 delas referiam-se àquelas famílias cujos filhos(as) têm idade inferior a 10 anos, o que torna difícil depreender qual ou quais dos(as) filhos(as) tornarão sucessores(as) da unidade de produção. Em três famílias, apesar de os(as) filhos(as) terem idade superior a 10 anos, chegando até os 17 anos, eles(as) nunca trabalharam na terra com os pais, e a transmissão do conhecimento do trabalho pela família é fundamental para que ocorra a sucessão. Não que estes(as) jovens não possam vir a se tornar agricultores(as), mas por se tratar de jovens empenhados a estudar; é possível que estejam buscando, por meio da educação formal, ingressar no mercado de trabalho urbano. Diz um pai: Porque quando começa a aprender [o trabalho da roça] mais velho, ele [filho(a)] acaba perdendo um pouco mais de tempo; quando começa mais novo, já cria mais inteligente (Senhor João Toca). Já com as seis famílias restantes, verificou-se que são famílias constituídas somente por filhas ou famílias cujos filhos (homens) encontram-se trabalhando em ocupações urbanas, tanto no município quanto fora dele, restando somente as jovens no terreno familiar. Contudo, notou-se que as famílias preferiam os homens para possíveis sucessores da terra e profissão dos pais. Somente em uma das famílias entrevistadas a filha foi indicada como possível sucessora da unidade de produção; entretanto, esta é incentivada pelos pais a estudar e ficar como sucessora somente no caso de as oportunidades externas não serem favoráveis. Entretanto, essa jovem mostrou-se disposta a dar continuidade ao empreendimento familiar: Gosto de mexer mais com agricultura, aqui na roça. Parece que a roça dá mais alegria pra gente, a gente tá mexendo, parece que tá dentro dela assim [...] dá mais interesse da gente plantar (Júnia). Na segunda situação – famílias que estão preparando seus sucessores –, encontraram-se dois arranjos: aquelas que já têm definido seus sucessores (8 famílias) e aquelas que ainda não os(as) definiram (15 famílias), dada a trajetória dos(as) filhos(as). No primeiro arranjo, os sucessores (homens) já tinham sido definidos e estavam trabalhando no terreno familiar. No segundo arranjo, ou seja, aquelas 15 famílias que ainda não definiram seus(suas) sucessores(as), observou-se que o número de filhos(as) por casal eleva-se de 3,1 para 6,2, comparado com o primeiro
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arranjo. O maior número de filhos(as) implica, num primeiro momento, maiores possibilidades de escolha dos(as) sucessores(as), mas coloca, também, a família em situação mais delicada. Nesse caso, todos(as) os(as) filhos(as) são preparados pela família para a sucessão da unidade de produção. Entretanto, a família ainda não é capaz de definir qual(is) dos(as) filhos(as) será(serão) os(as) sucessores(as), visto que, além de os pais estarem em pleno vigor produtivo, os(as) filhos(as) ainda estão em fase de construção da trajetória de vida, sendo, na maioria, solteiros(as), possuindo idade média de 20 anos, residindo e trabalhando no terreno familiar. Por fim, a última situação – famílias sem sucessor(a). Foram encontradas três famílias nessa situação, sendo uma de agricultores(as) de maior renda e duas de menor renda. No primeiro caso, a família é constituída por duas filhas que estudam no município de Ouro Preto e cursam Farmácia e Engenharia de Minas. No segundo caso, família de agricultores(as) de menor renda sem sucessores(as); observou-se que em uma delas os dois filhos (um homem e outra mulher) trabalhavam em empregos urbanos; na segunda família, a única filha era incentivada a estudar e procurar outra ocupação fora do meio rural. Diante do exposto, percebe-se que existem famílias que estimulam os(as) filhos(as) a trabalhar na roça e outras que os(as) motivam a encontrar ocupações no mercado de trabalho urbano.
Considerações finais Os mecanismos tradicionais de capacitação da geração jovem continuam sendo os mesmos da geração dos pais, ou seja, a socialização do conhecimento é realizada por todos os membros da unidade familiar: pai, mãe e irmãos, incluindo a figura dos avós. Além da troca de saber e experiência que ocorre na família, observou-se, ainda, que os membros das comunidades, as organizações governamentais e não governamentais e a migração sazonal constituíram-se importantes vetores de aprendizado e inovação. Os dados da pesquisa mostraram que a média de 6,9 anos de estudos da geração jovem é quase o dobro da média de anos de estudo 3,5 da geração dos pais. Esse fato indica que as políticas públicas voltadas para universalização do acesso à educação, principalmente a
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partir da década de 1990, quando começou a vigorar a Constituição de 1988, tornando a educação um direito de todos e dever do Estado e da família, vêm atingindo seu objetivo e contribuindo para a elevação do nível de escolaridade da população do meio rural. Diferentemente dos resultados das pesquisas realizadas no Sul do país (ABRAMOVAY et al., 1998; SILVESTRO, M. L. et al . , 2001 ; ANJOS; CALDAS, 2005, p. 661-694), no alto Jequitinhonha não se verificaram discrepâncias significativas entre o nível de educação formal por sexo, renda ou ocupação. As moças apresentaram aproximadamente um ano de estudo a mais que os rapazes, a diferença do nível de escolaridade dos(as) jovens filhos(as) de agricultores(as) familiares com maior média e menor renda é também inferior a um ano e tanto os(as) jovens que exercem atividades voltadas para o meio rural quanto urbano têm praticamente o mesmo acesso à educação. Abramovay et al. (1998) observaram, ainda, que o acesso à educação formal não constitui um elemento de estímulo ao abandono do meio rural; o o que foi observado, também, no alto Jequitinhonha. Nessa região, a educação é tida como um meio encontrado pelas famílias de agricultores(as) de garantirem futuro para os(as) filhos(as) diante das dificuldades do setor agrícola. Se para a geração dos pais o estudo era visto como uma forma de herança, para a geração jovem, com o aumento das possibilidades de estudo, ela é um patrimônio disseminado. Existe uma consciência clara por parte dos(as) agricultores(as) e filhos(as) da importância da educação formal para o exercício da atividade rural. Entretanto, é fundamental que a educação formal seja aliada ao saber técnico qualificado que foi aprendido ao longo da vida no campo pelos(as) agricultores(as) e que são transmitidos aos(às) filhos(as). Iniciativas como as das EFAs são fundamentais para a fixação do(a) jovem no campo, visto que integra as diversas disciplinas com a realidade do(a) jovem agricultor(a). Em vista disso, é preciso que as escolas das áreas rurais debatam a possibilidade de ajustar seu perfil e adaptem seus programas e conteúdos à especificidade cultural e à satisfação das necessidades da população do meio rural. Quanto ao processo migratório, não foi observada nenhuma mudança significativa: filhos(as) continuam migrando na mesma proporção que seus pais. Contudo, a geração jovem migra definitivamente com maior escolaridade e qualificação formal para os mesmos destinos e empregos.
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Para as duas gerações rurais estudadas no alto Jequitinhonha, observou-se que a “escolha” de sucessores para as unidades familiares de produção não obedeceram a nenhum “padrão” etário, de gênero ou de escolaridade. Tornaram ou podem tornar-se sucessores(as) os(as) filhos(as) mais velhos(as), os(as) do meio ou os(as) mais novos(as), com maior ou menor nível de escolaridade. Observou-se que nessa região tornar-se sucessor é uma escolha. Os(as) filhos(as) que sucedem os pais trazem consigo a responsabilidade de resguardar a memória familiar ligada à terra herdada. Diferentemente do que apontam as pesquisas realizadas no Sul do país, em que a posição do sucessor é vista pelo jovem como prisão (WOORTMANN, 1994), ou que a profissão de agricultor perdeu o caráter moral que já teve no passado (MELLO et al., 2003, p. 11-24), na região estudada os(as) jovens manifestaram o desejo de construir o destino profissional na agricultura familiar e mostram-se ligados à tradição dessa organização social. Contudo, a baixa rentabilidade do setor agrícola pode interferir na decisão do(a) jovem continuar ou não no meio rural. Portanto, é preciso que sejam desenvolvidos programas públicos e que estes sejam capazes de proporcionar melhoria da renda dos(as) agricultores(as), facilitando a produção e a comercialização dos produtos rurais. Diante disso, os pais parecem ser mais flexíveis e até incentivam os(as) filhos(as) a buscar oportunidades de trabalho fora do meio rural. Os estabelecimentos que apresentaram menores rendas foram aqueles onde os pais mais estimulavam os(as) filhos(as) a procurar ocupações no mercado urbano, mesmo que isso signifique ausência de sucessor em sua terra. Um aspecto da transição demográfica que pode interferir na permanência do(a) jovem no campo é o aumento da longevidade dos pais, uma vez que se observou o aumento na expectativa de vida da população rural no alto Jequitinhonha, como de resto em todo o país. Assim, a sucessão pode ser, como se observou em campo, postergada, uma vez que os pais permanecem saudáveis e ativos mesmo anos depois de aposentados. Entretanto, as renda advinda das aposentadorias permite aos(as) agricultores(as) segurança para investir, inovar e melhorar os
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sistemas produtivos, ao mesmo tempo a alocação de parte relevante da renda familiar no idoso reforça a tradicionalidade das relação internas da família (RIBEIRO et al., 2007, p. 229-251). Na maioria das famílias entrevistadas, percebeu-se o interesse dos(as) jovens em continuarem exercendo as atividades de seus pais, mesmo que para isso tivessem que trabalhar em ocupações urbanas e na agricultura. Diferentemente da conclusão de Silvestro et al. (2001)5, que afirmaram que os jovens do oeste de Santa Catarina não mencionaram a possibilidade de a unidade familiar se tornar num local de residência para uma possível ocupação urbana. No alto Jequitinhonha, 15% das 40 famílias entrevistadas não registraram a presença permanente de jovens residindo nas unidades familiares de produção. Esse percentual mostrou-se superior ao registrado por Silvestro et al. (2001) no oeste de Santa Catarina, onde existem 12% dos estabelecimentos familiares sem a presença permanente neles de jovens. Entretanto, na região estudada, em somente 7,5% das famílias não houve a presença de possíveis sucessores, percentual 4,5 vezes menor que o encontrado em quatro localidades do Rio Grande do Sul (ANJOS; CALDAS, 2006, p. 186-212); em 34% de unidades familiares de produção não existiam sucessores potenciais. Os dados da pesquisa no alto Jequitinhonha mostraram, também, que, quando se compara a geração dos pais com 44% de ocupados na agricultura e a geração jovem com 32% ocupados na unidade de produção familiar, percebe-se que ocorreu uma queda de 27% de jovens permanecendo no meio rural. Entretanto, não é possível afirmar que essa redução do número de ocupados no meio rural de uma geração para outra tenha deixado propriedades vazias, visto que nesses estabelecimentos rurais pode existir ao menos um(a) filho(a) dando continuidade à profissão dos pais. Contudo, pode-se afirmar que no alto Jequitinhonha permanecerão no meio rural os(as) jovens com maior educação formal e um pouco mais envelhecidos(as), dada a própria longevidade dos pais, entretanto, mais bem preparados(as) e maduros(as) para enfrentar os desafios que encontrarem pela frente.
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SILVESTRO, M. L.; ABRAMOVAY, R.; MELLO, M. A.; DORIGON, C.; BALDISSERA, I. T. Os impasses sociais da sucessão hereditária na agricultura familiar. Florianópolis: Epagri; Brasília, DF: Nead/Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2001. Disponível em: <http://www.nead.org. br>. Acesso em: 23 fev. 2007.
WOORTMANN, E. F. Herdeiros, parentes e compadres. São Paulo: Hucitec, 1994. 336 p. Kenia Fabiana Cota Mendonça é graduada em Ciências Contábeis pela UFMG (2005), mestre em Administração pela Universidade Federal de Lavras (2008), professora da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, bolsista de extensão com interface em pesquisa do CNPq e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Desenvolvimento Territorial do Vale do Mucuri. Áureo Eduardo Magalhães Ribeiro é graduado em Economia pela Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG (1979). É mestre (1986) e doutor (1997) em História pela Universidade Estadual de Campinas e professor do Instituto de Ciências Agrárias da UFMG. Flavia Maria Galizoni é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1988), mestre em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (2000), doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2005) e professora na UFMG.
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Uma juventude rural1 Conceição Aparecida Luciano
Quando começa ou termina a juventude? Essa pergunta vem sendo feita por vários pesquisadores do tema em diversos lugares ao longo dos anos. Idade, maturidade, relações de dependência e de autonomia foram alguns critérios construídos para se tentar chegar a um maior acordo sobre o termo. Somam-se a isso os aspectos temporais, culturais, sociais, econômicos e políticos, que serão fundamentais na construção das singularidades do que vem a ser jovem. Assim, não se fala mais em juventude, mais em juventude(s), como condição para marcar as diferentes inserções do ser jovem no mundo. Talvez esse seja o primeiro acordo entre os pesquisadores. Essa perspectiva, segundo Castro (2009), trouxe um olhar da diversidade para além dos cortes etários, ou apesar deles, caminho que contribuiu para fugir da homogeneidade nos debates estabelecidos sobre juventude no Brasil, nas décadas de 1980 e 1990. Neste artigo, trata-se de uma realidade específica: os jovens rurais, categoria ainda em construção, cortadores de cana do Vale do Jequitinhonha, que migram sazonalmente para as usinas de várias localidades do Brasil. Esses jovens trazem grandes especificidades quando comparados aos jovens urbanos. A primeira delas é o papel exercido pela família na transmissão dos saberes na lida da terra. Aprendem a profissão desde cedo: aprendi a trabalhar na terra quase brincando; ia levar comida pro pai e lá mesmo ficava (Reginaldo, 2013). Para esses jovens, as relações familiares e locais ainda têm papel preponderante na formação e socialização, e o passado ainda tem um grande peso nas escolhas e nos projetos que serão feitos ao longo da vida, assim como as possibilidades de realização. Se a estrutura de distribuição de terras, como disse Wanderley (2009, p. 24), é a responsável maior pelo bloqueio à reprodução social dos jovens, ela não pode ser considerada a única. Com isso não se quer despolitizar a questão agrária no país, a concentração de terras e a prioridade para o modelo da monocultura de exportação, mas, de “construir um discurso único com aparência de democracia” (OLIVEIRA 1 - Este trabalho é um recorte da dissertação sobre a migração dos jovens do Jequitinhonha para o corte de cana, cujo propósito foi compreender a trajetória da escola e do trabalho na vida desses jovens. A pesquisa foi realizada nas comunidades de Cajamunun e Água Suja, em Chapada do Norte, além das andanças com o Serviço Pastoral do Migrante pelo Jequitinhonha.
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JÚNIOR 2001, p. 56), invisibilizando sonhos, e com isso outras opções possíveis para essa juventude que não passem, necessariamente, pela permanência na terra. Nem todo filho de agricultor deseja ser agricultor; assim, tem-se que tirar-lhes a carga de serem os responsáveis pela continuidade da unidade familiar de produção. Para os jovens que querem permanecer na terra, porém, que o façam com condições dignas de existência. Nesse sentido, como disse Carneiro (1998, p. 66) a juventude rural carrega o grande dilema campo-cidade, o que a coloca no centro das grandes transformações sociais no meio rural. Migração, trabalho e “educação” são elementos importantes para a compreensão das especificidades dessa condição juvenil na atualidade. A migração não pode ser concebida somente como um meio para escapar das restrições locais, mas é também o caminho para a realização de outros sonhos. Como disse Velho (1999), os sujeitos trazem não somente as determinações econômicas e sociais de seu grupo de origem, mas também a força criadora de novos trajetos, ampliados pelo contato com outros espaços e grupos sociais por meio da migração e outras formas de socialização. Compreender a juventude rural como categoria implica analisar o espaço de reprodução social no qual se constitui e as tensões e rupturas que apontam para diferentes possibilidades de socialização, assim como perceber que nas trilhas da migração são várias as opções. Dessa forma, em vez de tomar a migração juvenil como um problema a ser combatido, é preciso compreender seus diversos trajetos e tentar apreender as pistas deixadas nos caminhos. “É preciso apostar num sujeito migrante que tenha algo a dizer do seu movimento e das questões que o impulsionam a mudar” (OLIVEIRA JUNIOR, 2011, p. 56). Existem jovens que vão para ficar, outros que saem para estudar, que podem ou não retornar, outros que vão trabalhar em comunidades na mesma região, assim como aqueles que vão e voltam, que ficam entre o cá e o lá até tomarem um rumo definitivo, ou não.
Os jovens do Jequitinhonha “entre o cá e o lá” Os jovens sempre foram considerados atores importantes na literatura sobre migração no Brasil. Remetendo-se à descrição do processo migratório no Jequitinhonha, vê-se o peso considerável dos jovens na saga de abertura e conquista de novas terras no relato dos autores, assim como em várias outras frentes de trabalho no Brasil. Se num passado não muito distante eles tiveram um papel fundamental na continuidade e reprodução 100
da agricultura familiar camponesa no Jequitinhonha, esse processo vem se alterando ao longo dos anos, e a migração deixou de ser simplesmente a dicotomia entre a migração definitiva e a temporária. O que se percebe é que entre uma migração e outra, definitiva e a temporária, novos arranjos vêm sendo construídos pelos sujeitos participantes desse processo. Assim, nunca se saberá ao certo até que ponto uma migração pode ser considerada verdadeiramente definitiva e até que ponto uma migração tida como temporária não passe a ser permanentemente cíclica. Nesses rearranjos, o espaço rural deixa de ser o espaço por excelência da produção, reprodução camponesa, como disse Wanderley (2007). Dentre os vários autores que estudaram o processo migratório no Brasil, José de Souza Martins foi o que mais de perto estudou a migração sazonal no Jequitinhonha. Sua obra foi relevante para o entendimento dessa migração tão marcante no Vale. “Migração está com ritmo definido, dominadas e ritmadas pelo tempo cíclico das estações do ano, do plantio do crescimento e da colheita dos produtos agrícolas” (MARTINS, 1986, p. 45). Porém, modificações vêm ocorrendo nessa migração sazonal, ritmada pelo tempo da natureza, com o prolongamento cada vez maior dos jovens migrantes na região de destino. Os jovens estão saindo cada vez mais cedo e voltando cada vez mais tarde. Saem no mês de março e voltam no mês de dezembro; em muitos casos voltam para o Jequitinhonha para passar as festas de final do ano com a família, saindo novamente para novos empregos temporários no período de verão nas praias, para vender cangas, picolés, chapéus, etc., retornando quase na época de migrarem novamente para as usinas. Como muitos disseram, empregam-se em outros lugares para não “ficarem parados”. Nessa perspectiva, o salário do operário já não recria a sua condição de camponês, como disse Martins (1991). Diferentemente do que ocorreu com a geração anterior, em certo modo de vida, a agricultura aparece cada vez mais como escolha entre outras possibilidades, inclusive a migração. O êxodo rural faz parte dos recursos não controlados pelos pais e dos quais os jovens podem dispor na montagem de suas estratégias de vida (DURSTON, 1997, p. 59).
Essa mobilidade da nova geração campo-cidade e campo-usina, em um constante ir e vir para trabalhar, em tempos cada vez mais longos, não afetou os laços mantidos com a família e com a rede de parentela da comunidade. O que se constatou é que a perspectiva do retorno “para casa” está 101
sempre presente, tanto na materialidade das casas construídas como na fala dessa juventude, mesmo com o tempo alongado no destino. A referência da casa na roça continua sendo o local de origem; não somente a casa dos pais, mas as muitas casas que foram construídas pelos filhos que moram em São Paulo e que ainda têm o desejo do retorno.
O lugar de morada Expostos, cada vez mais, a condições degradantes e de grande exploração da força de trabalho, esses jovens criam novas representações sobre a vida rural, a qual passa a ser revalorizada em suas falas quando comparada ao trabalho nas usinas. Assim, a roça passa a ser o momento não somente do trabalho esporádico, mas o lugar da família, da tranquilidade, do churrasco com os amigos, do descanso e do lazer. É bastante revelador que, de todos os jovens entrevistados, somente um não tinha construído uma casa no terreno dos pais. A casa como o lugar de pertencimento, o lugar para onde voltar, o lugar de fincar raízes nesse mundo incerto da migração permanentemente temporária. Saem porque não tem trabalho na região, não por vontade. O desejo maior de ter um trabalho nos arredores e poder voltar, pelo menos nos finais de semana, é uma fala que permeia os discursos desses jovens. Trabalhar perto de casa, ficar próximo da família,dos amigos, usufruir a paz e tranquilidade da roça e ainda fazer uma plantação, mesmo que pequena, é o ideal de vida. A “combinação do melhor dos dois mundos”, como disse Wanderley (2007, p. 33). Mesmo passando nove ou mais meses fora da região de origem, a roça continua sendo o desejo do projeto de vida futuro, principalmente quando o local de comparação é São Paulo. Ah, se eu pudesse ficar aqui, se tivesse serviço, eu não trocaria esse lugar por nada! (Jaime, 25 anos). Cê sai e pode largar a casa aberta, vai em tudo que é casa, agora fora daqui cê num tem liberdade como tem aqui, mesmo com pouco divertimento (Reginaldo, 23 anos). [...]aqui não precisa esquentar a cabeça;em são Paulo a violência é tão grande que a gente sai na porta e num sabe se vai entrar pra dentro (José Silva, 28 anos). 102
Se a roça é o melhor lugar para se viver, o impedimento de tal sonho é porque ela também tem suas mazelas. Não terem acesso ao emprego e a cursos profissionalizantes foram os maiores impedimentos para continuarem na roça. Como retratou Wolf (1970) a terra deixa de ter a dupla função da economia e do lar, e passa a ser o desejo do lugar de morada não mais da agricultura, pois tirar o sustento da terra é algo fora de questão na percepção desses jovens, não pela dureza do trabalho, e, sim, pelas dificuldades em produzir e tirar renda da terra. “Essa transformação que vem ocorrendo ao longo das gerações só se dá à medida que é enfraquecida a viabilidade dos sistemas tradicional de adaptação ecológica e equilíbrio econômico”, como disse Durhan (1983, p. 98) e junto com o ela? a reivindicação de acessos a direitos até então desconsiderados, como condições para poderem acessar novas tecnologias, como celular e computador, praticamente impossível na grande maioria da zona rural brasileira. Outro ponto recorrente nas falas, a seca como consequência da variação climática, foi posta como impedimento da agricultura e a grande responsável pelo declínio da produção agrícola. Agora a natureza, também, com sua parcela de culpa. Contra a natureza a gente num pode (Reginaldo, 23 anos). [...] e todo ano é esse pensamento de ficar e num voltar mais. Tenho vontade de ficar aqui, mais não dá. Por quê? Tudo atrapalha né, o tempo seco e agora o principal: o emprego (Jaime, 25 anos).
Nessas condições, com a diminuição da terra, o enfraquecimento e a queda de produtividade, a melhoria das condições de vida somente pode se dar com a integração cada vez maior ao mercado de trabalho que ofereça maiores oportunidades. Soma-se a isso uma demanda cada vez mais crescente de produtos industrializados eletroeletrônicos e de alimentos. De acordo com Martins (1986, p. 50), o migrante vive uma duplicidade de socializações, a marginalidade de duas relações sociais diversas entre si. Na origem, a falta de condições de realização com o fruto do seu trabalho, no destino relações de trabalho e de vida cada vez mais precárias. É sempre o que vai voltar a ser e não o que é. A demora desse reencontro é o que define a migração temporária. É migrante temporário porque se considera fora do seu lugar, fora de suas relações sociais e que, no limite, não se considera dentro mesmo quando está (MARTINS, 1986, p. 50). Uma travessia permanentemente inconclusa, que talvez se realize logo na frente ou talvez não. 103
O trabalho na cana Os jovens da região em estudo vão para as usinas de São Paulo, da Bahia, do Mato Grosso e de Goiás empregarem-se no corte da cana. “Vão tirar safra”, como dizem na região, percorrendo os mesmos caminhos trilhados pelos pais e avós, com percursos e inserções profissionais pouco modificadas. Continuam como aqueles a ocuparem os postos mais precarizados do mercado de trabalho no Brasil, que exigem pouca escolaridade, quando comparados à média nacional. Ficam com o que sobra como diz Silvio, 28 anos: Motorista é um servicin... em vista do que a gente faz, né? Aqueles que nunca pegou no pesado, igual o que a gente fala, o pesado é o serviço da gente. Porque quem tem um estudo vão caçar serviço melhor, o que sobra a gente pega.
Dos jovens entrevistados, nenhum tinha ultrapassado o Ensino Fundamental. 2 Isso os faz ter uma inserção precoce e precária no mercado de trabalho. Como se percebe pelo relato dos jovens, todos foram para a “panha” do café, entre os 14 a 17 anos. Alguns jovens relataram ter adiantado mais que um ano na data de nascimento para ingressar no mercado de trabalho, pois, de acordo com a Constituição Federal de 1988, somente jovens acima de 16 anos podem ser admitidos no regime integral de 8 horas, de acordo com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Esses jovens, mais que seus pais ou avós, têm vivenciado um apelo maior para o consumo. Os vínculos com a terra se tornam cada vez mais precários,e somente o trabalho, a ocupação remunerada, permite a esses jovens o acesso a bens cada vez mais mercantilizados. É, também, pelo trabalho que eles adquirem as roupas de “marca”, tênis, óculos, moto e todos os itens que os fazem pertencer a determinado grupo social, nesse caso marcado também por um jeito de ser e de se vestir, de se apresentar ao mundo. É pelo trabalho que se viabilizam os projetos pessoais e familiares, inclusive de pertença a uma juventude, como disse Dayrell (2007). 2 - Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2012), 70% dos novos empregos formais, gerados no Brasil em 2010, foram ocupados por pessoas com Ensino Médio completo, sendo que 23% da População Economicamente Ativa (PEA) juvenil (16 a 29 anos) não completou o Ensino Fundamental.
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O futuro depende do trabalho aqui e agora, e para esses jovens o futuro começa bem mais cedo. Nesse caso específico, o acesso aos bens será garantido pelo trabalho nas usinas e o aumento cada vez maior da produção no corte de cana. Como foram socializados no trabalho da roça, desde pequenos esses jovens se tornam especialistas no manuseio da enxada, sendo seus corpos talhados para o serviço árduo, Novaes (2011). Esse preparo, segundo o autor, favorece-os no manuseio do podão, tornando-os trabalhadores altamente produtivos para o serviço estafante do corte da cana. Somam-se a isso, elementos culturais que fazem da força física um sinônimo de masculinidade, que tem forte apelo entre os mais jovens. Ganhando por produtividade, esses jovens acionam todas as suas forças físicas, habilidades e resistência para alcançar bons níveis de produção, o que os qualifica perante os empreiteiros, 3 gestores e empresários, o ideal para maior produtividade nas usinas. Para o corte manual da cana, ser jovem e migrante são dois atributos altamente valorizados pelos empreiteiros. Essa valorização advém da própria condição assumida pela força física na disposição para o trabalho, mas especialmente pela representação e desejo que esses jovens têm de “ser alguém na vida” e pela consciência de aproveitar ao máximo a saúde para o trabalho, porque ela é transitória. [...] Mais o que a gente preocupa mais é com a forma de ganhar o pagamento, né? Tem que ter saúde boa, alimentação. A gente preocupa mais é com saúde e alimentação. Se tiver ganhando bem a gente se vira com a alimentação. Tem que ter uma boa assistência médica que a gente precisa (Silvio, 28 anos).
Acrescente-se que, morando em alojamentos nas usinas e vigiados 24 horas por dia, esses jovens estão totalmente voltados para o trabalho, o que os torna potencialmente mais produtivos (NOVAES, 2011). 3 - Em princípio das décadas de 1970, a forma de contratação ocorria com a intermediação dos chamados “gatos” e seus rendimentos provinham de uma parte do salário dos migrantes. Mesmo com a proibição legal a esse tipo de intermediação os “gatos”, hoje “empreiteiros” continuam atuando, mesmo que disfarçadamente, antecipando-se ao setor de Recursos Humanos (RH) das usinas. Às vezes eles próprios fazem parte dos RH das empresas e ganham pela produção dos trabalhadores que levam. Daí a seleção de jovens já serem feitas no local de origem.
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Só que o modo que era lá o alojamento, eles deixavam a gente lá preso, eles num deixava a gente ir pra lugar nenhum, eu vim embora também, uai. Eu num tava na cadeia não, uai. (José Silva, 28 anos).
Submetidos às novas formas de gestão e organização do trabalho, esses jovens subordinam-se à lógica da eficiência e da produtividade. São superexplorados na produção, precisam cortar, no mínimo, 10 toneladas de cana por dia, para se manterem empregados, sendo que na década anterior, de seus pais, a média variava de 4 a 6 toneladas. Na safra de 2008, pagou-se pela tonelada da cana cortada em torno de R$ 3,00. Esse preço permite uma diária de R$ 30,00, cortando 10 toneladas de cana por dia. Daí a necessidade de intensificar o ritmo de trabalho. Esses jovens produzem, hoje, uma média de 10 a 20 toneladas-dia em condições de trabalho cada vez mais desumanizadas. O ritmo de trabalho é alucinante,4 os trabalhadores ultrapassam os limites físicos, o que torna o trabalho na roça leve quando os jovens fazem a comparação. Os problemas de saúde, acidentes e mortes nos canaviais são recorrentes e muito presentes na fala dos jovens entrevistados. Vixe, a gente tá aqui na lavoura é brincando, lá, na cana, a boca é quente. Eu já vi muita gente chegar lá a primeira vez e num dá conta de ficar. No corte de cana eu já vi gente morrendo assim, oh, do meu lado (José Silva, 28 anos).
Os movimentos repetitivos a que estão sujeitos causam sérios problemas de saúde, como mãos inchadas, tendinites, bursites. As dores no corpo são insuportáveis, mas com elas ou sem elas é preciso fazer a produção, caso contrário há a demissão e, assim, o medo de não ser contratado para a safra do ano seguinte. “Fazendo da produtividade um desafio diário”, como disse Novaes (2009, p. 121). Outro fator é a dificuldade em calcular a produção do dia. O ganho é determinado pela metragem, pelo peso e pelo tipo da cana cortada. Tonelada não é o calculo feito por eles). 4 - “Em 10 minutos o trabalhador derruba 400 quilos de cana, desfere 131 golpes de podão, faz 138 flexões de coluna, num ciclo médio de 5,6segundos em cada ação. O trabalho é feito a temperaturas de 27°C, com muita fuligem no ar, e ao final do dia terá ingerido mais de 7,8 litros de água, em média, desferido 3792 golpes de podão e feito 3994 flexões com rotação de coluna. A carga cardiovascular é alta, acima de 40%, em momentos de pico os batimentos cardíacos chegam a 200 por minuto” (NOVAES, 2009, p. 121)
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No final do dia você já tem uma base de quanto tá ganhando. Às vezes cê corta muita cana e na hora do peso é pouco porque a cana é leve. Quem trabalha no corte de cana já tem o olhar apurado pra saber quanto tirou no final do dia (Hamilton, 23 anos).
Mas nem sempre há correspondências entre o cálculo do cortador de cana e da empresa. É um cálculo complexo, cheio de variáveis, às vezes difícil de ser entendido pelos trabalhadores que estão habituados à lógica econômica do roçado e do trabalho na terra. Na cana tudo é diferente. No ar, sempre paira a suspeita de roubo nas medições, porém a reclamação pode implicar em advertências, ‘ganchos’ e demissões (NOVAES, 2009, p. 121).
Esses sentimentos ficam mais aterrorizantes quando se anuncia o fim do corte manual da cana,5mesmo que em seus depoimentos os jovens digam que sempre haverá trabalhador cortando cana, dada a existência de lugares inacessíveis à entrada das máquinas, como em topos de morro e áreas mais arenosas. Já não é rara, porém, a chegada de ônibus ao Jequitinhonha trazendo de volta jovens “descartados” antes do término da safra, por não cumprir as metas de produtividade determinadas pelas usinas, por problemas de saúde ou mesmo pela compra de uma nova colheitadeira. Foram vários os relatos de jovens indo trabalhar na fábrica de gesso em Belo Horizonte, no Rio Grande do Sul vendendo cangas nas praias, assim como na construção civil, em Angola. A redução de empregos no corte manual da cana vai afetar diretamente esses jovens, pois é o fim de um nicho de mercado, como disse Novaes (2009), que absorve jovens com pouca escolaridade. Guanais, em estudo com os jovens trabalhadores do corte de cana no interior de São Paulo, relata a nova condição advinda com a mecanização: 5 - “O estudo do perfil das usinas mostra que a área de colheita manual no país, hoje, é de 75,7%. São Paulo, com o maior índice de mecanização do Brasil, abrange 67,2% de colheita manual. Nas regiões Norte e Nordeste do país, 97,4% dos canaviais têm colheita manual. Isto mostra que a mecanização preconizada para 2014 está longe de realizar” (NOVAES, 2005, p. 113).
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[...]não podemos deixar de dizer que as chances de ‘qualificação’ e de ‘reciclagem’ dessa força de trabalho descartada pela introdução das máquinas não são acessíveis a todos. A despeito de já existirem algumas iniciativas no estado de São Paulo voltadas para a ‘qualificação’ de cortadores de cana – tais como os cursos de tratoristas e operadores de máquinas que são oferecidos em vários municípios de destino dos trabalhadores por iniciativas de sindicatos usinas e do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) –, são poucos os trabalhadores que têm a oportunidade de fazer parte delas... Pois, além de exigirem certo nível de escolaridade muitas vezes inacessível à maioria dos trabalhadores rurais – são realizados durante o horário de trabalho dos cortadores de cana. Para que possam frequentá-los é preciso abrir mão de seu trabalho nas usinas (GUANAIS, 2013, p. 64).
Soma-se isso a nenhuma visibilidade desses jovens na agenda governamental. Se a juventude rural já se ressente do lugar ocupado na hierarquia das demandas juvenis, pode-se dizer que a juventude dos trabalhadores da cana é recorrentemente ignorada. La invisibilidades uno de los aspectos más nefastos de La exclusión social, y a que su vez contribuye a perpetuar la exclusión (DURSTON, 1998, p. 7). Se são invisíveis não são considerados nas políticas públicas. São invisíveis até nos seus percursos migratórios, pois a migração temporária, como disse Martins (ano 2012), é a forma mais dramática de migração porque ela não aparece nem nas estatísticas, pois para o IBGE migrantes são aqueles que nascem em um município e moram em outro. Desconhece-se, assim, a realidade de uma grande população de jovens rurais, tanto na origem, como no destino, sendo duplamente invisibilizados. São trajetórias marcadas pela precariedade de direitos. Começaram a trabalhar cedo e estudaram em escolas públicas precárias que desvalorizam os seus saberes porque os desconhecem. Não detêm o capital cultural “legitimado”, altamente valorizado das classes médias, tampouco o tempo livre dessas classes para incorporar qualquer forma de conhecimento, seja ele, técnico, científico ou outro. Essa falta é compensada com extraordinário esforço pessoal e aceitação de todo tipo de exploração.
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Já na cana dependendo Cê tira até R$ 1.000,00, e pouco. Tem uns que já tira mais mió, tira R$2.000,00, e pouco, esforça mais, né? A gente segura mode não esperdiçar porque o trabalho é difícil, perigoso e cansado, se quiser adquirir alguma coisa...! (Reginaldo, 23 anos).
Isso talvez explique a capacidade de trabalho desses jovens, muitas vezes superando o próprio limite do corpo. Como disse Souza (2010), fazem parte do que ele chamou, com muita propriedade, de “batalhadores brasileiros”. Enfrentam corajosamente as condições adversas e muitas vezes cruéis do mercado de trabalho. Quando tá querendo construir alguma coisa esforça mais. Enquanto tá aguentando trabalhar, porque depois que ficar mais velho, mesmo que a pessoa num esteja numa idade avançada, dependendo do trabalho que ele realizou pra trás, ele não aguenta mais. Olha o meu pai... (José Silva, 28 anos).
O sonho de construir um patrimônio e garantir um futuro, que sabem não tardará a chegar se continuarem no trabalho braçal da cana faz com que produzam muito, comprometendo até mesmo a saúde. Isso faz com que o patrimônio construído na origem seja fruto do aumento cada vez maior e desumano da produtividade sem limite, até a exaustão, de um serviço duro, desvalorizado e pesado: Corte e cana pra mim não é profissão. Ali cê num tá trazendo nada, cê só tá gastando sua energia, gastando sua coluna. Profissão é ocê aprender pra trabalhar em qualquer lugar. Assim, é melhor pra gente trabalhar especializado, né. Igual a gente aqui, a gente aqui não tem profissão nenhuma! (Silvio, 28 anos).
Como relatam Marinho e Cover (2012, p. 102), o “corte da cana” é representado como uma passagem demarcada no tempo e no espaço, num tempo renovado ou não em cada safra, e com um prazo certo para acabar, pois cada cortador, por questões de saúde e competitividade, migrará no máximo até os 40 anos de idade. Mesmo que os jovens se autoidentifiquem
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como cortadores de cana, é sempre uma definição provisória, que pode mudar no ano seguinte. O desejo de mudar de profissão é sempre o sonho de futuro. Mesmo que a realidade mostre o contrário e o fatalismo se faça presente. Vou ficar igual meus irmãos, andando pra lá e pra cá. Voltando todo final de ano (Adão, 21 anos). Mas, enquanto esse futuro não chega, os jovens migrantes do Jequitinhonha vão tecendo sonhos e realizando os desejos com os recursos adquiridos no trabalho árduo dos canaviais. Desejos estes realizados, em parte, pela compra de uma terra, como José Silva, que, contrariando todas as adversidades, realiza a construção de um tanque de criação de peixes para incrementar a produção e garantir uma renda a mais na roça. Caso a roça não se viabilize ou não seja o desejo, as casas já foram construídas, pois mesmo que não encontrem trabalho nos arredores quem sabe depois de tantas idas e vindas tenham garantido um aposento e, se Deus permitir, saúde para fazer uma rocinha, mesmo que pequena, para renovar o saber da lida da terra nunca esquecido.
Considerações finais Ao narrarem suas trajetórias, percebe-se que esses jovens vão em busca de melhores condições de vida e que essa melhora é muito difícil na realidade do local de origem. Acrescente a isso o fato de saírem de suas comunidades em condições desiguais de escolaridade quando comparados à média nacional, para competir por uma vaga no mercado de trabalho nas grandes cidades. A escola não contribuiu para melhorar a inserção no mercado de trabalho desses jovens, que continuam exercendo as mesmas profissões que seus pais, irmãos e avós, que, assim como eles, em sua maioria, não ultrapassaram o Ensino Fundamental. A democratização do ensino não atingiu as áreas rurais e nesse sentido a escola não faz parte do universo cultural desses jovens. Outro fator é terem começado a trabalhar muito cedo, sendo alguns com 14 anos. Executam trabalhos estafantes que demandam longo tempo fora da região, impossível de ser conciliado com o calendário escolar. O retorno à escola regular como condição a uma profissionalização é praticamente inexistente na fala dos jovens e, em nenhum momento, é percebida como uma política pública de responsabilidade do Estado; antes é uma responsabilidade individual. Houve relatos de jovens que
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fizeram cursos profissionalizantes em São Paulo e somente depois de pago e concluído o curso ficaram sabendo que para se candidatarem a uma vaga precisavam ter o ensino médio. Daí as demandas por cursos como de pedreiro, motorista, profissões que podem ser exercidas em qualquer lugar, inclusive na região de origem, e exigem pouca escolaridade. Pois, a escola foi muito precária em suas vidas, talvez por isso eles não tenham muitas ilusões, pois já foram frustrados uma vez. Formados no trabalho da terra, não tiveram seus saberes reconhecidos pela escola. Foram socializados em duas profissões desmerecedoras de status social, como disse Novaes (2009). Na origem, a lida na roça; no destino, a “panha” do café, a construção civil e o corte de cana, etc. Mesmo assim, permanece o sonho de morar na roça e tudo que ele simboliza: a tranquilidade, a família, os amigos e o pertencimento. Mais que quaisquer outros, esses jovens têm pressa, pois precisam garantir o máximo de bens no menor tempo possível, por saberem de antemão que a profissão que exercem tem um tempo curto de duração, já que demanda muito da força e da saúde deles, e quanto mais produzirem, maiores serão os ganhos. Essa é a lógica perversa do trabalho por produção. Talvez isso explique, em parte, a rapidez com que constroem casas, adquirem terrenos, comprem carro ou moto. As comunidades estão repletas de trabalhadores ainda jovens que não conseguem mais serviços em razão da exaustão no corte de cana. Como disse Pereira (2011), são trabalhadores que foram privados de executar movimentos básicos em suas casas, como acender um fogo, varrer um quintal, porque não conseguem mais se abaixarem por problemas de coluna. Há uma invisibilidades desses jovens no país. Percebê-los é o primeiro passo para estabelecer um diálogo e ouvir suas demandas. Valorizar o saber secular que trazem da lida com a terra e reconhecer que são jovens valentes, inquietos, batalhadores, criativos e que carregam sonhos possíveis de realização.
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Conceição Aparecida Luciano é graduada em Ciências Sociais pela UFMG com mestrado em Educação e Inclusão Social na mesma universidade. Morou no Jequitinhonha e trabalhou no Campo Vale (Centro de Assessoria aos Movimentos Populares do Vale do Jequitinhonha) com agricultores familiares. Atualmente trabalha no PNUD/MDA, no Programa Garantia Safra. Foi professora de Sociologia do curso de Tecnólogo em Segurança Pública da PMMG.
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O que dizem os jovens? Laura Nayara Pimenta
Menino que nasce no chão do Jequitinhonha, Coberto pelo verde do mato Que brinca descalço na rua Joga bola de gude, toma banho de rio. Um dia esse menino cresceu. Se tornar então, um jovem cheio de sonho, Querendo transformar o mundo em meio às revoluções, Feito uma águia está pronto para alçar voo. Braullier Pereira. Antologia Poética do Vale do Jequitinhonha
Não há como se pensar na juventude sem pensar na necessidade de revoluções e questionamentos que este período traz. Os hormônios correm nas veias, o mundo se abre aos olhos e o peso e as incertezas da vida adulta começam a fazer parte do cotidiano destes jovens. Estas incertezas são ainda mais fortes na juventude do Vale do Jequitinhonha, que sente na pele as dores e as belezas de ser jovem em uma região cercada pela seca e pela pobreza, mas rica em cultura e potencial humano. Na tentativa de apreender a voz dessa juventude e de discutir questões relacionadas à sua participação política e cidadania, a primeira etapa do VIII Seminário Visões do Vale, na cidade de Turmalina, reuniu cerca de 120 participantes de todo o Vale – boa parte deles jovens – e realizou, ao final do evento, uma plenária que evidenciou uma rica discussão de temas como diversidade, desigualdade, migrações, participação política e educação. Participaram desta plenária os membros dos coletivos juvenis Quingemm e Ícaros do Vale de Araçuaí, Grupo de Teatro de Itinga (GRUTI), Núcleo de Audiovisual de Padre Paraíso (NAVIPP), Companhia de Teatro Murion de Padre Paraíso e representantes pedra-azulenses da Rede de Jovens Comunicadores do Semiárido Mineiro.
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Alguns pontos importantes emergiram dessa plenária, principalmente no que se refere às questões mais sensíveis para a juventude do Vale do Jequitinhonha. A questão do preconceito e da discriminação dos jovens, tanto no nível pessoal como no nível social foi um ponto de forte discussão. Para Willian Nascimento, coordenador executivo do Centro de Defesa do Direitos da Criança e do Adolescente do Vale do Jequitinhonha (Cededica-Vale) e representante da Rede de Jovens Comunicadores do Semiárido Mineiro, esse problema é visto como um obstáculo à maior participação dos jovens. Nas palavras de Willian, se analisarmos a história do Vale do Jequitinhonha, veremos que o coronelismo foi uma realidade durante décadas na maioria das cidades. Desta forma, a história, os símbolos e a identidade sociocultural destes lugares ao longo dos anos, foram contados a partir de um olhar elitista, o que influenciou e influencia diretamente nas relações de poder entre os indivíduos. Os municípios têm dificuldade de reconhecer a importância dos bairros periféricos, e seus respectivos elementos, na construção da história. É neste contexto de invisibilidade e crise de pertencimento que crescem e vivem a maioria dos jovens da região. Desta forma, discutir a participação das juventudes do Vale em qualquer processo, requer antes de tudo, superar esta visão elitista e vertical. Voltado para o âmbito dos espaços de discussão e garantia de direitos, acrescenta-se outro entrave: a visão adultocêntrica. Além de serem vistos como “lugares para poucos”, estes espaços quase sempre não propõem metodologias, que facilitem e fomentem a participação juvenil. Assim, todas estas situações contribuem para que os jovens se afastem cada vez de discussões que dizem respeito às próprias juventudes.
A fala de Willian ratifica o pensamento do grupo de discussão sobre desigualdade e diversidade, que, durante a plenária, apresentou a importância da participação da juventude em movimentos e grupos culturais para combater os diversos tipos de preconceitos encontrados em seus
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municípios. Segundo os participantes deste grupo “a diversidade gera a desigualdade” e os problemas de preconceito e discriminação podem servir como obstáculo à maior participação da juventude O coordenador executivo do Cededica-Vale, afirma que a criação de instrumentos para a garantia de direitos da população juvenil não é expressiva diante da demanda crescente. É notória (e triste) a falta de investimento em políticas públicas voltadas para este público na região do Vale. Esta ausência, aliada a outros fatores, tem contribuído cada vez mais para o aumento de problemas que atingem diretamente os jovens, como a violência, as doenças sexualmente transmissíveis, a falta de ensino superior, a dificuldade de inserção no mercado de trabalho, dentre outros fatores. Diante destas dificuldades, principalmente no que diz respeito à educação e trabalho, a migração se apresenta como uma oportunidade de ascensão social e econômica. “Popularmente, sair das cidades em direção às grandes metrópoles é subir na vida”, diz Willian. Para o grupo de discussão“Juventudes e migração”, que se reuniu antes da plenária, os principais motivos que estimulam a migração dos jovens para fora do Vale do Jequitinhonha sãoa violência e a busca por melhores condições de emprego e de estudo.Sair do Vale é como um movimento quase natural, enraizado no pensamento da população jovem. Contudo, nos últimos anos, a vinda de algumas instituições de ensino superior, principalmente no formato de “Educação a Distância”, vem se mostrando como uma oportunidade de mudança deste cenário, mas ainda de forma muito tímida. Ainda que a questão da violência não tenha sido amplamente discutida nos grupos de trabalho e durante a plenária, não se pode desconsiderá-la. Durante o seminário apareceu de modo significativo a discussão do problema relativo à falta de mobilidade interna às cidades do Jequitinhonha por causa da organização de gangues juvenis. Os jovens de Itaobim relatam ter muito medo de sair à noite ou frequentar alguns lugares, mesmo durante o dia. Eles afirmam que a cidade é dividida em territórios de duas gangues rivais – o que pode estar relacionado com a alta incidência de homicídios – e transitar nesses territórios pode gerar problemas com os membros das gangues. O problema da violência também se fez presente pela percepção de que tem diminuído, mesmo nas cidades pequenas, a convivência mais próxima entre as
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pessoas e tem aumentado significativamente as ocorrências de violência dentro das escolas. Também se mencionou a dificuldade e o medo de falar sobre as situações de violência e discuti-las, seja na escola, seja em outros ambientes. Outra questão bastante discutida na plenária foi amobilização social e a participação política dos jovens. Como dito anteriormente, os participantes afirmam a importância do envolvimento da juventude em movimentos sociais e grupos de manifestações culturais, como grêmios estudantis e coletivos artísticos, e do papel da escola em criar espaços de debates públicos. A discussão abordou a falta de abertura de espaços de participação para os jovens e a falta de preparo das escolas para isso, sendo importante que os jovens participem de movimentos culturais para o desenvolvimento pessoal e superação de barreiras. Embora os espaços de discussão de políticas públicas nas escolas sejam reduzidos, decorrendo em um empobrecimento da participação dos jovens, essa situação começa a ser revertida com a retomada dos grêmios estudantis. O militante estudantil pedra-azulense, Tales Bandeira Arrudas (15 anos), afirma que Mesmo com sua imensa importância para os estudantes e também para as escolas, os grêmios estudantis ainda são uma realidade bem distante do Vale. Não que seja por falta de interesse de nós, estudantes, mas sim porque, em geral, os nossos gestores escolares, e nossos educadores, não nos incentivam a participar de coisas do tipo, não nos mostram o tanto que um grêmio estudantil pode fazer de diferente no nosso espaço escolar. Mas esse cenário vem mudando. Em Pedra Azul, por exemplo, já existem militantes do movimento estudantil que participam de eventos e de espaços de diálogos entre jovens da nossa cidade e também da nossa região. Acredito que para que isso se torne realidade em todo o Vale do Jequitinhonha, nós, enquanto militantes já conhecedores das transformações positivas que um grêmio estudantil pode trazer até mesmo para nossa cidade, devemos levar essas experiências para outros lugares.Unir, capacitar e fortalecer o movimento estudantil no vale.
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Esses depoimentos e as falas dos participantes do evento dizem um pouco dos anseios e inquietações da juventude do tão controverso Vale do Jequitinhonha. Como todo jovem, eles buscam sua liberdade, seus direitos e suas formas de expressão, seja por movimentos estudantis, seja por coletivos artísticos. Todavia, não adianta esses jovens falarem sem serem ouvidos. Que seus gritos não sejam silenciados, essa é a maior busca dessa juventude.
Laura Nayara Pimenta é mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da UFMG e cocoordenadora do Suporte de Comunicação do Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha.
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Constituição histórica dos direitos de cidadania João Valdir Alves de Souza
Introdução: um olhar retrospectivo “Direitos humanos” e “cidadania” são temas recorrentes no nosso fazer pedagógico. Por isso mesmo, considero da maior relevância trazê-los a esse evento, que discute juventude e participação política. Como é de praxe prestar atenção em determinadas datas marcadas por números “redondos”, destaco algumas delas e aponto a tensa e complexa relação entre a dimensão conceitual dos termos centrais que trago a debate (direitos humanos e cidadania) e o processo histórico que pôs em curso a tentativa de realizá-los. Em 2013, portanto, ocorreram os 25 anos da “Constituição Cidadã” (Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988) e tudo o que ela significou em termos de tradução legal da luta por direitos de cidadania no Brasil; os 45 anos do “Ato Institucional n. 5”, o tristemente famoso AI5, de dezembro de 1968, e tudo o que ele expressou, na ordem prática, a supressão de direitos civis e políticos; os 65 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, e tudo o que ela pretendeu em termos de universalidade na reivindicação por direitos; e os 224 anos (225, em 2014) da primeira Declaração dos Direitos do Homem, a de 1789, e tudo o que ela trouxe de novidade para o contexto moderno do antigo debate sobre a cidadania. Ao trazer essas questões para debate, destaco cinco elementos importantes e nem sempre lembrados: a cidadania é um conceito historicamente em construção; a cidadania não é um dado, é uma conquista; os direitos de cidadania constituem um valor cada vez mais universal; a cada direito corresponde um dever; cidadania e democracia são legítimas aspirações ao bem comum. Tento, nas páginas seguintes, apontar alguns dos modos como essa construção tem-se efetivado – ou não – ao longo dos últimos três séculos. O entendimento dessa construção exige, necessariamente, trazer ao centro da reflexão três ingredientes conceptuais básicos do projeto civilizatório da modernidade: os ideais de universalidade, de individualidade e de autonomia. A análise dessa temática, realizada no Visões do Vale VIII e agora publicada neste livro, já foi apresentada em outras publicações (SOUZA, 1996; SOUZA, 2007).
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Direitos de cidadania: um tema controverso O debate sobre educação e sobre a relação entre educação e cidadania é carregado de clichês. Dentre todos os clichês sobre educação, o que a associa à formação do cidadão é um dos mais generalizados e, ao mesmo tempo, dos mais inconsistentes. Há até mesmo uma frase recorrente que parece servir de resposta universal a todos aqueles que, questionados sobre o assunto, têm pouco ou nada a dizer sobre ele: a tarefa da educação é “resgatar a cidadania”. Ora, a ideia de resgate remete à recuperação de algo perdido. Resgata-se o soldado que, em batalha, se perdeu do grupo e foi capturado pelo inimigo; resgata-se um objeto que, por acidente ou propositadamente, foi parar no fundo do poço; resgata-se aquele dinheirinho que ficou em um fundo de aplicação até o limite das possibilidades do seu possuidor. Falar em “resgatar a cidadania”, portanto, soa como se ela tivesse existido entre nós, ficou perdida em algum lugar do passado, e nós, agora, sentindo falta dela vamos lá para trazê-la de volta. O debate sobre a relação entre educação e cidadania, contudo, é bem mais complexo. Dentre as dificuldades de compreender as reais relações entre educação e cidadania está o fato de o próprio conceito de “cidadão” – como quase todos os conceitos do campo das ciências sociais – sofrer mudanças ao longo do tempo e de ele ser de difícil aplicação universal a realidades tão diferentes ao redor do globo nos nossos dias. Apesar de sua origem na Antiguidade, é na Idade Moderna que esse conceito adquire o sentido atual, isto é, um ideal que orienta uma ação ou um conjunto de ideias que tiveram, de fato, forte impacto na orientação das lutas políticas por democracia e reivindicação de direitos. Entre o elevado ideal e a conquista efetiva de direitos, contudo, a distância pode ser longa. A noção de cidadania, referida ao indivíduo sujeito a deveres, mas sobretudo portador de direitos, é bastante antiga. Mas é somente a partir do século XVIII que ela se torna universal, isto é, passa a ser reivindicada para todos os indivíduos indistintamente. Na Grécia Antiga, os cidadãos se reuniam em praça pública, na polis, para deliberar sobre o destino deles. Entretanto, cidadãos eram apenas os homens livres, e a democracia grega excluía a absoluta maioria da população, isto é, os escravos, os jovens, os velhos e as mulheres. Além de universal, essa nova noção de cidadania trazia outro elemento fundamental: exigia que os regulamentos da vida social resultassem da
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vontade coletiva e fossem expressos em leis. Isso quer dizer que o povo deveria ser soberano para decidir sobre o destino dele. No novo contexto de democracia que então se constituía, essa vontade coletiva ou soberania popular poderia se expressar diretamente pelo povo reunido em assembleia ou por meio de representantes eleitos pelos próprios cidadãos. Com o tempo, prevaleceu nas repúblicas modernas a democracia representativa, que consiste em atribuir aos cidadãos – sociedade civil – a tarefa de escolher aqueles que comporão o governo – sociedade política – num contexto de livre estabelecimento de pactos e contratos, isto é, acordos estabelecidos diretamente pelo povo ou por seus representantes reunidos em assembleia. O ato inaugural dessa nova forma de organizar o poder certamente pode ser remetido à primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, nos primeiros momentos da Revolução Francesa. Ela tenta expressar, em norma jurídica, os ideais de liberdade, igualdade, universalidade, individualidade e autonomia sobre os quais tanto se fala. Na época em que foi elaborada, os Estados Unidos já tinham proclamado a sua independência e instalado a República. Recuperando alguns princípios da Declaração de Direitos de Virgínia (DECLARAÇÃO..., 1982a),1 de 1776, os legisladores franceses escreveram no preâmbulo da sua Declaração: Os representantes do povo francês, constituídos em Assembléia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento e o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos Governos, resolveram expor numa declaração solene os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, presente constantemente a todos os membros da comunidade social, os lembre, sem cessar, de seus direitos e seus deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e os do Poder Executivo, podendo ser, a todo momento, comparados com a finalidade de toda instituição política, sejam mais respeitados; a fim de que as reclamações dos cidadãos, fundadas, doravante, em princípios simples e indiscutíveis, contribuam sempre para a manutenção da Constituição e para a felicidade de todos. (DECLARAÇÃO..., 1982b). 1 - “Declaração de direitos feita pelos representantes do bom povo da Virgínia, reunidos em plena e livre convenção; direitos que pertencem a eles e à sua posteridade, como base e fundamento de governo.”
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Não é o caso de fazer aqui uma análise exaustiva dos artigos da Declaração, mas certamente será útil destacar alguns dos elementos presentes em alguns deles, sobretudo aqueles relacionados aos ingredientes conceptuais do projeto civilizatório da modernidade, ou Ilustração, conforme analisado por Rouanet (1993): a universalidade, a individualidade e a autonomia. Primeiramente, tomemos a universalidade, um dos mais elevados ideais trazidos pela modernidade. Rouanet afirma que o projeto civilizatório visava todos os seres humanos, independentemente de fronteiras nacionais, étnicas ou culturais. Desde então, muito trabalho tem sido realizado na tentativa de fazer com que todos os homens se reconheçam como iguais. É precisamente isso que está escrito no primeiro artigo da Declaração: Art. 1º. Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais não podem fundar-se em nada mais do que na utilidade comum (DECLARAÇÃO..., 1982b).
Em outras palavras, há um fundamento de liberdade e igualdade entre todos no que se refere aos direitos, e as distinções somente são justificáveis se estiverem a serviço do bem comum. Os primeiros artigos da Declaração consistem em postular esses direitos, expressá-los com toda a clareza possível e instigar a todos os homens para que, em luta cotidiana, tentem realizá-los. Nos nossos dias, tornou-se senso comum dizer que todos são iguais, mas afirmar, no final do século XVIII, que “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos” não era pouca coisa, uma vez que ainda predominava a concepção de que eles eram naturalmente desiguais. Não podemos nos esquecer, contudo, de que uma coisa é o que está na cabeça dos filósofos e revolucionários que nos legaram essa herança iluminista orientadora de um tipo particular de ação no mundo e outra é verificar como, no cotidiano das práticas, homens e mulheres comuns atuam no mundo e constroem as representações sobre os outros e sobre si mesmos. O que a Declaração traz, no artigo, é fundamental a esse respeito: Art. 2º A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.
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No artigo 4º, afirma-se: Art. 4° A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudicar outrem; assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites senão os que garantem aos demais membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos. Esses limites só podem ser determinados pela Lei (DECLARAÇÃO..., 1982b).
Liberdade é termo complexo, de definição quase impossível. Segundo Meireles (1977, p. 81), é uma “palavra que o sonho humano acalenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. Mas podemos tomar algumas referências para a sua compreensão. Desde a baixa Idade Média, a cidade começou a ser vista como o lugar da liberdade. No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels (1977) afirmam que é dos servos da Idade Média que vieram os burgueses, isto é, os habitantes dos burgos, trabalhadores livres que começaram a vender sua força de trabalho num mercado em constante expansão. O mundo urbano, desde então, passou a ser visto como o lugar de homens livres. Mas era uma liberdade muito limitada, sobretudo a liberdade de pensar, como se verá. Para além do ato de vender livremente a força de trabalho, a liberdade era, também e fundamentalmente, o grito contra a servidão e a escravidão. Mas voltemos ao segundo artigo da Declaração que, além do direito à liberdade, postula também o direito à propriedade, à segurança e a resistência à opressão. Depois de Marx ficou fácil fazer a crítica à propriedade, sobretudo à propriedade privada burguesa. No final do século XVIII, entretanto, reivindicar direito à propriedade significava, antes de tudo, lutar pelo mais elementar direito civil, isto é, que os homens fossem inclusive proprietários de si mesmos. Assim como a luta pela liberdade dos servos, a luta contra a escravidão tinha, a partir de então, fundamentos jurídicos para os quais se buscava legitimidade. Cidadão era, então, aquele que tinha capacidade de adquirir posse (BUFFA, 1983). A luta pela segurança é outro ponto fundamental da Declaração, a qual se liga a uma das mais sólidas e consistentes noções de contrato social no contexto do Estado Moderno, que é o contrato sugerido por Thomas Hobbes. Segundo Oliveira (1993, p. 19),
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para ele (Thomas Hobbes), a vida natural do homem é marcada pela igualdade fundamental e universal, uma vez que a natureza humana fez todos iguais, de onde deriva a esperança comum de atingir os mesmos fins. Ora, precisamente essa igualdade natural vai provocar os conflitos na vida humana, pois, querendo mais de um a mesma coisa, é impossível que os vários a atinjam, o que vai tornar-se fonte de inimizade entre os homens. Daí, conclui Hobbes, a condição natural do homem é tremendamente lastimável, porque marcada basicamente pela preocupação da autoconservação, em última análise, pelo medo, pulsão fundamental da vida humana. A vida natural dos homens nada mais é do que um estado permanente de guerra: o homem é assim, naturalmente, inimigo de todo homem, e em virtude disso sua vida é solitária, pobre, embrutecida e curta. A natureza fez os homens capazes de autodestruição, estado miserável da absoluta insegurança.
Segundo Hobbes, a natureza humana é marcada pelas pulsões, isto é, no estado de natureza os homens são egoístas, o que estabelece a luta de todos contra todos, expressa na frase “o homem é o lobo do próprio homem”, exaustivamente repetida. Nesse lastimável estado de autodestruição e insegurança, o medo da morte violenta e da ausência das coisas necessárias à preservação da vida leva os homens a abdicarem de parte desse egoísmo, porque eles compreendem a necessidade do autocontrole como meio de sobrevivência da própria espécie. Pelo bom uso da razão, eles estabelecem as bases de um contrato social, formando o Estado – o Leviatã – como instância à qual entregam a responsabilidade pela garantia das normas, dentre elas a que justifica o uso da força quando necessária ao exercício do controle. Dois séculos depois, Max Weber formulou sua célebre definição do Estado segundo a qual ele é a instância que detém o monopólio legítimo do uso da força (WEBER, 1995). Na tentativa de exercitar esse controle, há uma diferença fundamental que demarca a modernidade em relação a todas as épocas anteriores. Há o deslocamento da concepção de mundo como desígnio divino para uma concepção de mundo como construção humana, sujeito, portanto, a uma regulação estabelecida pelos próprios homens em ação. E esse é, talvez, um dos maiores dilemas da modernidade, isto é,
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estabelecer uma equilibrada correlação entre regulação e emancipação. Em outras palavras, o desafio é estabelecer os mecanismos reguladores da vida em sociedade, fazendo dessa regulação instrumento de emancipação humana, e não de fortalecimento da opressão de uns sobre os outros. A Declaração é clara a esse respeito quando define o que é a Lei, em seu artigo 6º: Art. 6 º A Lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm direito a participar pessoalmente, ou através de seus representantes, de sua formação. Deve ser a mesma para todos, quer quando protege, quer quando castiga. Todos os cidadãos, sendo iguais diante dela, têm igual direito a todas as dignidades, cargos e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção a não ser a de suas virtudes e de seus talentos (DECLARAÇÃO..., 1982b).
Esse esforço de estabelecer princípios universais, apesar de serem contrariados pelas condições concretas com que a realidade se manifesta, expressa a necessidade de, ainda hoje, termos sempre em mente o desafio incessante posto para a educação em nome da formação do cidadão. Além dessa dimensão da universalidade, devem considerados, considerados também, os outros dois ingredientes conceptuais do projeto da modernidade: a individualidade e a autonomia. A individualidade é outro conceito de difícil apreensão no processo civilizatório. Essa é uma grandiosa tarefa levada a efeito por autores do porte de um Dumont (1993), que estuda a gênese do indivíduo no mundo cristão, e de um Elias (1994), que traça o percurso da história ocidental para analisar como se constitui a individuação. Na modernidade, contudo, a individualidade significava precisamente a afirmação de indivíduos livres, portadores de direitos “naturais e imprescritíveis” que devem ser considerados e respeitados na constituição da sociabilidade e da vida política. Inicialmente, o Estado moderno assume a tarefa de estabelecer os mecanismos reguladores da ordem social punindo, se necessário, os transgressores. Mas o que se visualizava para o futuro eram os próprios indivíduos se autocontrolando, isto é, absorvendo os controles externos pela internalização da norma transformada em hábito. Essa é a tarefa que Durkheim (2001) esperava da educação e
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que Elias (1994) apontava como ponto central dessa passagem para a modernidade, isto é, do sentimento de culpa, cujo acerto de contas estaria remetido para o Juízo Final, ao sentimento de vergonha em que o transgressor precisa prestar contas frente a frente com seus semelhantes. Esse não é um movimento que se dá de uma hora para a outra. No mundo medieval, o indivíduo só existia como produto da matriz coletiva, seja a aldeia, seja o reino, seja a Igreja. Quando o indivíduo ousava fugir às determinações impostas pelo meio em que vivia, as punições eram severas, como demonstra a sangrenta história da Inquisição. Lutero, por época da Reforma protestante, por meio da defesa do livre-arbítrio, desencadeou a luta pelas liberdades individuais. Mas a luta de Lutero se resumia à defesa da liberdade de crença do fiel. Com o desenvolvimento do capitalismo, esse livre-arbítrio converte-se na defesa da livre iniciativa, do indivíduo empreendedor e da livre concorrência, o que permite as condições concretas de “liberação” do indivíduo, condição necessária à existência do próprio capitalismo. Vem daí o termo liberal, a partir do qual se formula a doutrina do liberalismo, expressando o modo como o capitalismo se apropria da individuação. Segundo Oliveira (1993, p. 20), “esse ‘primado do indivíduo’ sobre a comunidade social e política é o axioma fundamental da teoria política dos tempos modernos”. E a autonomia? Segundo Rouanet (1993), a autonomia significava que os indivíduos deveriam ser aptos a pensar por si mesmos, sem a tutela da religião ou da ideologia (autonomia intelectual), a agir no espaço público como membros participantes e ativos do contrato social (autonomia política) e a adquirir, pelo seu trabalho, os bens e serviços necessários à sua sobrevivência (autonomia econômica). A ideia de autonomia está intimamente associada à de individualidade. À autonomia intelectual se associa um dos mais elevados ideais da educação, isto é, aquilo que é exaustivamente ensinado e repetido até pelas crianças do jardim de infância: que cabe à educação formar cidadãos livres, autônomos, críticos, etc. Segundo Rouanet (1993), o objetivo básico da autonomia intelectual era libertar a razão do preconceito, ou seja, da opinião sem julgamento. Esse desejo de autonomia está lá na Declaração, nos artigos 10º e 11º, expressando, principalmente, a luta contra a Inquisição, cuja história de obras e autores queimados em praça pública já vinha de longa data.
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Art. 10º Ninguém deve ser importunado por suas opiniões, inclusive religiosas, desde que sua manifestação não altere a ordem pública estabelecida pela Lei. Art. 11º A livre organização dos pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode, pois, falar, escrever, imprimir livremente, sob a ressalva de responder pelo abuso desta liberdade, nos casos determinados pela Lei (DECLARAÇÃO..., 1982b).
À autonomia política se associa a participação do cidadão no contrato social, que, a partir de então, deveria governar todas as ações humanas, ainda que não houvesse um único modelo de contrato ou uma única forma de organização do poder. Segundo Rouanet (1993), na vertente liberal clássica, como propunham Montesquieu, Voltaire e Diderot, a Ilustração limitava-se a propor um sistema de garantias contra a ação arbitrária do Estado. Mas numa vertente democrática, como a de Rousseau, “a Ilustração considerava que era insuficiente proteger o cidadão contra o governo: era necessário que ele contribuísse para a formação do governo ou, mais radicalmente, fosse ele próprio o governo” (ROUANET, 1993, p. 17). Mas a ideia-chave da autonomia política é que a socialização e a instituição de normas para o agir humano são obras dos próprios homens, atividades da sua capacidade racional. Mais uma vez, citando Oliveira (1993, p. 20): Não se trata mais de acolher normas pré-existentes e predeterminadas, mas está em jogo aqui o próprio ato instituidor de normas. A responsabilidade do homem não é mais responsabilidade ‘diante das normas’, mas responsabilidade ‘para as normas’: o homem sente-se agora responsável pela articulação do universo normativo que fundamenta incondicionalmente seu agir no mundo. Muda assim a postura do homem diante das tarefas de sua vida, melhor dizendo: é só aqui que a vida deixa de ser apenas a efetivação de uma norma externa já estabelecida e torna-se propriamente tarefa: a moralização através dos atos da razão.
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Resta, ainda, a autonomia econômica. Enquanto no preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (DECLARAÇÃO..., 1982b) afirmava-se “que a ignorância, o esquecimento e o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos Governos”, a Enciclopédia é cristalina na denúncia da miséria humana: Há poucas almas suficientemente firmes para não serem abatidas e envilecidas pela miséria. [...] A miséria é a mãe dos grandes crimes; são os soberanos que fazem os miseráveis, e eles responderão neste mundo e no outro pelos crimes que a miséria tiver cometido (apud ROUANET, 1993, p. 19).
O sonho humano de uma ordem social em que todos pudessem satisfazer suas necessidades de vestuário, alimentação e moradia vem desde, pelo menos, Rousseau, que imaginava uma ordem de igualdade relativa em que “ninguém fosse tão pobre que precisasse vender-se nem tão rico que pudesse comprar os outros” (apud ROUANET, 1993, p. 19). A emergência do trabalhador livre, vendendo sua força de trabalho num mercado cada vez mais amplo, parecia ser a solução para todos os problemas de ordem econômica, apesar de a realidade não ter-se revelado muito mais animadora do que já havia demonstrado ate então: A efetivação desse direito fundamental acontece à medida que o indivíduo trabalha e, assim, impondo-se à natureza, faz-se senhor de bens. O trabalho é a fonte constitutiva da posse individual dos bens necessários à autoconservação. Uma vez que o homem não é pensável sem a propriedade, esta é um direito natural, já que condição insuperável da efetivação do ser-homem, e a apropriação individual dos bens, à medida que torna efetivo o fim da vida humana, é a base do bem comum, portanto a exigência ética fundamental. A economia emerge assim como a mola principal do progresso na vida humana, que consiste precisamente no avanço do que agora constitui seu único fim: a satisfação de necessidades (OLIVEIRA, 1993, p. 22).
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Temos, pois, que o projeto civilizatório da modernidade trazia para o terreno da luta política os antigos sonhos de liberdade e emancipação humana e atribuía aos próprios homens a tarefa de construir o sentimento de todos pertencerem à universalidade do humano, individualizados como pessoa e autônomos como cidadãos portadores de direitos.
A construção da cidadania: uma luta incessante Mais de dois séculos já se passaram desde a primeira Declaração. Nesse período houve conquistas e retrocessos no que se refere aos direitos de cidadania, e os julgamentos a esse respeito são os mais diversos possíveis. Rouanet (1993, p. 11), por exemplo, é severo no seu diagnóstico: o projeto civilizatório da modernidade, a Ilustração, está em crise no mundo inteiro e, no Brasil, “estamos vivendo a revolta antimoderna que hoje grassa no mundo se jamais termos vivido a modernidade”. E não se trata de uma crise conjuntural ou pontual, mas de um questionamento ou rejeição total dos princípios e valores da Ilustração: Como a civilização que tínhamos perdeu sua vigência e como nenhum outro projeto de civilização aponta no horizonte, estamos vivendo, literalmente, num vácuo civilizatório. Há um nome para isso: barbárie (ROUANET, 1993, p. 11).
O exercício levado a efeito por Rouanet consiste em apontar o modo como o ideário do projeto civilizatório da modernidade se materializou ou não no liberal-capitalismo, tal qual se consolidou nos dois séculos seguintes, e no socialismo, que pretendeu levar adiante a disputa pela hegemonia econômica, política e cultural a partir do final do século XIX. O balanço geral a que ele chega não é dos mais alentadores, uma vez que o resultado do seu diagnóstico é que os elevados ideais da Ilustração foram sendo sistematicamente solapados ao longo dessa trajetória. Esse é um balanço não muito diferente daquele realizado por Berman (1982) ao ler os modernistas do século XX. Diferentemente de Berman, porém, que está interessado em voltar aos modernistas do século XIX, tentando buscar neles as referências para ler as modernidades do século XX,
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Rouanet volta ao século XIX para tentar recuperar os próprios elementos constitutivos da modernidade, numa tentativa de levar adiante a cruzada pela emancipação humana. De fato, não faltam motivos para afirmar, no que se refere à formação do cidadão, que há quase tudo por ser feito. Existem, é verdade, notáveis conquistas dos direitos de cidadania em diversos países, sobretudo com experiências que permitiram avanços significativos no modo de vida de grande parte da população, traduzidas em aumento da média de idade, indicadores de saúde, educação e segurança, aquilo que permite classificar as diversas sociedades de acordo com um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Mas apesar de as relações de servidão serem vistas como algo que compõe a memória de um passado distante, cálculos recentes ainda apontam a existência de mais de 27 milhões de escravos no mundo (COCKBURN, 2003). Além disso, não se pode esquecer das atrocidades vividas no século XX, muitas das quais se tornaram mundialmente visíveis e denunciadas, como o nazismo, o maoísmo, o fascismo e o stalinismo. Terminada a Segunda Grande Guerra foi necessário, mais uma vez, lembrar a todos os povos que todos os homens são iguais e livres em dignidade. E essa continua sendo uma das mais nobres tarefas da educação e das lutas sociais, isto é, difundir para todo o mundo que não há mais lugar para os campos de concentração, o racismo, a exclusão social, a xenofobia, etc. Esse foi o propósito que norteou a elaboração da Declaração Universal dos Direitos do Homem, pela Organização das Nações Unidas (ONU). Essa Declaração foi promulgada a 10 de dezembro de 1948, ainda sob os escombros da Segunda Guerra. Ainda que a própria ONU não esteja livre das contradições reais vividas pelos países que representa, sua Declaração é um instrumento norteador dessa luta incessante pelos direitos humanos e contra a opressão. Da mesma forma que os representantes do povo francês recomendaram que sua Declaração estivesse “presente constantemente a todos os membros da comunidade social” para lembrá-los “sem cessar, de seus direitos e seus deveres”, também a Assembléia da ONU recomendou, no preâmbulo, que seu texto “fosse disseminado, mostrado, lido e explicado principalmente nas escolas e outras instituições educacionais, sem distinção nenhuma baseada na situação política dos países ou territórios.” No seu artigo VII, a Declaração diz que “todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei.” No artigo
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XIX, diz que “todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão”. E, ainda, no artigo XXIII, algumas recomendações que merecem ser transcritas por inteiro: 1 – Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis ao trabalho e à proteção contra o desemprego. 2 – Todo homem, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. 3 – Todo homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. 4 – Todo homem tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses (DECLARAÇÃO..., 1982c).
Torna-se claro, portanto, que uma coisa é reconhecer direitos e expressá-los em lei e outros documentos oficiais. Coisa diferente é efetivar esses direitos. Entre o formal e o real há longas distâncias a percorrer e muitas batalhas a travar. E isso depende de intensa luta política, mobilização de interesses e enfrentamento de pesadas relações de força. De qualquer forma, deve-se notar que os ideais de cidadania se constituíram com base em demandas por aquilo que veio a ser chamado de direitos civis (direito à vida, à liberdade de ir e vir, à autonomia do pensamento), direitos políticos (direito de fazer parte do contrato social, isto é, de votar e de ser votado e de expressar livremente seus interesses, suas bandeiras políticas) e direitos sociais (direito de participar da distribuição da riqueza socialmente produzida). Na velha Europa, como analisa Marshall (1967, p. 66), esses direitos foram se constituindo historicamente, sendo que a luta pelos direitos civis caracterizou o século XVIII, a conquista dos direitos políticos caracterizou o século XIX e os benefícios sociais constituíram a temática principal dos movimentos sociais da virada do século XIX para o XX.
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No Brasil, entretanto, essa trajetória não pode ser vista dessa maneira. No final do século XIX, o mais elementar direito civil, a liberdade, não existia para grande parte da população em decorrência da escravidão ainda existente. Quanto aos direitos sociais e trabalhistas, ironicamente, sua maior conquista se deu sob a ditadura Vargas, por ocasião do Estado Novo. Quanto aos direitos políticos, é necessário lembrar, somente a Constituição de 1988 garantiu a universalidade do voto, ou sufrágio universal, após longos anos de ditadura, cujo símbolo maior é o AI5, de 1968. Quanto aos direitos econômicos, eles não existem hoje para significativa parte de brasileiros que estão abaixo da dignidade humana, como a própria imprensa tem sido pródiga em denunciar. Isso faz com que se evidencie, entre nós, a sensação de crise de que fala Rouanet (1993), isto é, o fato de não terem se realizado minimamente alguns dos elevados ideais da Ilustração. Não é difícil perceber que a educação, em vez de direito, continua sendo um privilégio. Mais fácil, ainda, é perceber que a lei, que deveria ser a mesma para todos, tem validade, de fato, apenas para alguns. Além de gerar expressões de natureza cômica, como “todos são iguais perante a lei, mas uns são mais iguais que outros”, ou, “aos amigos tudo, aos inimigos os rigores da lei”, esse cenário gera, também, um profundo descrédito na política, chegando-se a confundir a defesa dos Direitos Humanos com a “defesa de bandidos”, como vulgarmente o senso comum tem se referido ao tema.
Conclusão Torna-se evidente, portanto, que o centro da discussão situa-se em tratar a cidadania não como uma doação generosa de alguém, mas sim como uma conquista, uma dura conquista, à qual todos nós somos chamados a participar. Desde o século XVIII que a luta pela cidadania é uma constante nas reivindicações de trabalhadores e excluídos. Se nem todos ainda atingiram o status de cidadão é porque, apesar da vontade, as contradições da realidade ainda não o permitiram. Entre a proclamação da cidadania para todos e sua efetivação como um dado da realidade há um longo caminho a percorrer. Entender como se estruturam as relações de poder, sejam elas de poder econômico, político, cultural ou ideológico, pode contribuir bastante para a identificação dos fatores que têm impedido que essa construção se 134
efetive. Para que esse entendimento seja possível, uma educação de elevada qualidade é o pré-requisito fundamental. Como afirma Marshall (1967, p. 73), o direito à educação é um direito social de cidadania genuíno porque o objetivo da educação durante a infância é moldar o adulto em perspectiva. Basicamente, deveria ser considerado não como o direito da criança freqüentar a escola, mas como o direito do cidadão adulto ter sido educado. [...] A educação é um pré-requisito necessário da liberdade civil.
Claro está que, nesses duzentos anos, o modo de produção capitalista consolidou-se, ampliou-se a consciência das desigualdades socioeconômicas, a burguesia transformou-se de classe revolucionária em classe conservadora, a luta por transformação social e política foi deslocada para o movimento socialista, a escola modificou-se muito com o tempo, novos projetos sociais e pedagógicos sempre estão vindo à tona, etc. Não há como negar, porém, que, apesar de antiga, a luta por direitos continua mobilizando pessoas em todas as partes do mundo em defesa de um projeto de sociedade menos desigual. Essa luta continua em vários espaços sociais e deve servir de horizonte para os homens e mulheres que têm esperança, pois democracia e cidadania não constituem um dado, e sim uma conquista. A luta por direitos civis, políticos e sociais continua a mobilizar pessoas dos mais diversos espectros ideológicos. Nesse contexto, a educação figura como um direito de cidadania, ao mesmo tempo em que constitui uma condição necessária para que sejamos capazes de entender o que está em jogo na difícil luta pela conquista de direitos.
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João Valdir Alves de Souza é bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela FAFICH/UFMG (1990), mestre em Educação pela FAE/UFMG (1993), doutor em História e Filosofia da Educação pela PUC/SP (2000) e professor associado de Sociologia da Educação na Faculdade de Educação da UFMG.
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Impresso em papel couchê 90g/m² Tipografia utilizadas, Bookman Old Style e DIN Pro Fotos nas entradas de capítulos tratadas com retículas Imprensa Universitária da UFMG Primavera de 2014
No Vale, a responsabilização dos jovens ao completarem a maioridade no sustento da família tem criado uma limitação de seu projeto de futuro. Apesar da exclusão e da subordinação dos jovens na década de 1950, eles sonham e elaboram estratégias para a realização dos seus projetos, e um grande desafio a ser vencido é a evasão escolar. O jovem abandona a escola para ir para o mercado de trabalho com o objetivo de suprir suas necessidades básicas e precisa, nesse redemoinho, buscar qualificação para competir com igualdade no mercado de trabalho. Lia Queiroz