Vale do Jequitinhonha: Ocupação e Trabalho

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VALE DO JEQUITINHONHA Ocupação e Trabalho Organização

Maria das Dores Pimentel Nogueira



VALE DO JEQUITINHONHA Ocupação e Trabalho



Rio Jequitinhonha Foto: Lori Figueirรณ



Organização Maria das Dores Pimentel Nogueira

VALE DO JEQUITINHONHA Ocupação e Trabalho

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - UFMG PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO | PROEX-UFMG PROGRAMA POLO DE INTEGRAÇÃO DA UFMG NO VALE DO JEQUITINHONHA BELO HORIZONTE, 2013



O Vale do Rio Jequitinhonha


Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Reitor: Clélio Campolina Diniz Vice-Reitora: Rocksane de Carvalho Norton Pró-Reitora de Extensão: Efigênia Ferreira e Ferreira Pró-Reitora Adjunta de Extensão: Maria das Dores Pimentel Nogueira Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha Coordenadora: Maria das Dores Pimentel Nogueira Projeto Visões do Vale Coordenador: João Valdir Alves de Souza ©2013 Este livro foi publicado com recursos da Pró-Reitoria de Extensão da UFMG

Vale do Jequitinhonha : ocupação e trabalho / Organização [de] Maria das Dores Pimentel Nogueira. – Belo Horizonte : UFMG/PROEX, 2013. 144 p. : il., foto. ; 23 cm. 1. Trabalho – Aspectos sociais - Jequitinhonha, Rio, Vale [MG E BA]. 2. Trabalhadoras - Jequitinhonha, Rio, Vale [MG E BA]. 3. Ocupações. I. Nogueira, Maria das Dores Pimentel. II. Universidade Federal de Minas Gerais, Pró-Reitoria de Extensão. CDD 306.098151

Produção editorial: Roseli Raquel de Aguiar Assistente de produção: Dulcinéa Teixeira Magalhães Revisão e normalização de texto: Lílian de Oliveira Projeto gráfico: Andrea Estanislau Diagramação: Andrea Estanislau / Mateus Sá Foto da capa e abertura: Lori Figueiró Legenda da capa: José Caldas dos Santos, Jenipapo de Minas Produção executiva: Gaia Cultural [Cultura e Meio ambiente]


SUMÁRIO 11 Apresentação Roberto Nascimento Rodrigues

17 Lições do Vale: narrativa de uma pesquisadora Maria Aparecida de Moraes Silva

37 Mulher e trabalho na agricultura familiar do Alto Jequitinhonha Flávia Maria Galizoni Eduardo Magalhães Ribeiro

51 O processo de mecanização da agroindústria canavieira: histórico, motivações e impactos sobre os trabalhadores temporários Juliana Biondi Guanais

71 Trabalho escravo contemporâneo: grilhões modernos na vida dos trabalhadores e trabalhadoras Cândida da Costa

97 Construção de metodologias participativas com populações quilombolas: formação política e geração de trabalho e renda – dilemas e perspectivas Carlos Roberto Horta

113 A dimensão formativa do trabalho João Valdir Alves de Souza

135 Práticas inovadoras de ocupação e trabalho 137 Associação das Mulheres de Ponto dos Volantes: boas práticas de organização de mulheres 139 Ocupação, trabalho e renda: a experiência do Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV)



APRESENTAÇÃO Roberto Nascimento Rodrigues

Ocupação e trabalho são temas recorrentes quando se fala sobre o Vale do Jequitinhonha. Não sem razão. Embora sejam temas convergentes, podem servir para bem marcar a diversidade que constitui um dos traços característicos dessa que é uma das regiões de maior destaque nos cenários mineiro e nacional, seja por sua pujança cultural ou por sua carência social. De um lado, o Vale do Jequitinhonha destaca-se por uma produção artesanal única e reveladora da aura singela de um povo que parece insistir em querer nos ensinar lições de vida em comunidade cooperativa. De outro, a região é conhecidamente desprovida da geração de oportunidades de ocupação e trabalho para parcela expressiva de sua população, que se vê impelida a movimentos migratórios, ora sazonais, ora em busca aparentemente definitiva de oportunidades de obtenção de melhores ou mais adequadas condições de vida. Rica em diagnósticos socioeconômicos que apontam para possíveis causas da incapacidade recorrente de geração de ocupação, trabalho e renda, mas carente de propostas que levem a alternativas de crescimento econômico capazes de promover condições de desenvolvimento social para sua população. Carente no que diz respeito à oferta de infraestrutura indutora de bem-estar socioeconômico, mas rica em lições de vida de “uma gente que ri quando deve chorar, e não vive, apenas aguenta”. Assim pode ser tentada uma descrição do Vale do Jequitinhonha. Não bem assim, quando esses diagnósticos são baseados no que diz a população do Vale sobre seus potenciais, sobre a vocação econômica da região e sobre o que poderia ser feito para integrar esses dois ingredientes em uma receita que traga como resultado inserção produtiva e social capaz de lhes propiciar, simplesmente, desenvolvimento, se for esta a denominação correta para uma vida alegre e feliz, sem abandonar sua terra e sem abrir mão de seus valores culturais. Ao indagar sobre qual era a linha ou tônica geral de Vale do Jequitinhonha: Ocupação e Trabalho, recebi como resposta que, ao ler o sumário, ou os textos, teria uma noção dos assuntos e abrangência dos autores convidados para produzir esta coletânea. Ledo engano. Até porque a pergunta foi feita após a leitura de sumário e textos. Quando se trata

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do Vale do Jequitinhonha, nada é tão simples assim. De fato, trata-se de mais uma produção do Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha, coordenado por Maria das Dores Pimentel Nogueira, que se insere numa linha a um só tempo tênue e instigante da diversidade característica do Vale. Mas, desta feita, a coordenação de Marizinha remete o leitor a uma viagem que vai além do horizonte circunscrito ao Vale do Jequitinhonha, ao agregar textos que abordam temáticas universais sobre ocupação e trabalho. Tarefa tão difícil que a coordenadora brinda o leitor, logo de início, com um relato apaixonante e revelador daquilo que de mais puro parece povoar corações e mentes da população do Jequitinhonha, que Maria Aparecida de Moraes Silva tão singelamente denominou “Lições do Vale: narrativa de uma pesquisadora”. Maria Aparecida diz ter aprendido lições a partir dos depoimentos que coletou de mulheres residentes no Vale do Jequitinhonha, sobre suas experiências enquanto migrantes sazonais em busca de ocupação e trabalho nas atividades de colheita de cana no interior de São Paulo, para depois voltarem à região em condições de propiciar o sustento de seus familiares. Ao destacar o universo do trabalho feminino em um ambiente marcadamente povoado por homens, com o intuito de seguir os passos das mulheres “na busca do farol luminoso da justiça social”, a autora descreve as lições que com elas aprendeu sobre questões como o uso do tempo e relações de gênero, que lhes levaram a conjugar, com maior frequência, verbos como dividir, somar e multiplicar. Em seguida, Flávia Maria Galizoni e Eduardo Magalhães Ribeiro também abordam o trabalho feminino, mas sob a ótica de mulheres que exercem atividades produtivas na agricultura, no próprio Vale do Jequitinhonha. O objetivo dos autores é analisar a representação do trabalho da mulher para os membros da família em uma situação de forte migração sazonal masculina. A junção do foco desses dois primeiros artigos parece apontar para o fato de que, a despeito da sobrerrepresentação de estudos versando sobre o trabalho masculino, a inserção das mulheres do Vale do Jequitinhonha em atividades produtivas, dentro ou fora da região, constitui elemento importante, e constante, na formação da renda familiar. A esse respeito, Flávia e Eduardo enfatizam que “o total de trabalho de uma família é, quase sempre, a soma de várias jornadas: masculina, feminina, infantil e de idosos”. O texto de Juliana Biondi Guanais oferece ao leitor a oportunidade de discutir a questão da migração sazonal de trabalhadores do Vale do

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Jequitinhonha em meio ao processo de mecanização das lavouras de cana-de-açúcar, iniciado em meados dos anos 1980. A autora destaca que tal reestruturação produtiva produziu modificações importantes na atuação desses trabalhadores, uma vez que lhes impôs maior volume de trabalho em regiões de mais difícil acesso, resultando em redução da produtividade e, consequentemente, diminuição da renda. O resultado geral, segundo a autora, é um processo de redução das oportunidades de trabalho braçal, gradualmente substituído pela introdução de máquinas colheitadeiras, aliado à absorção de trabalhadores mais qualificados, geralmente mais jovens, capazes de manusear máquinas e equipamentos. Nos três artigos subsequentes, a abordagem deixa de considerar especificamente a situação vivenciada no Vale do Jequitinhonha, embora possa se enquadrar para uma análise circunscrita à região. O tema central do estudo desenvolvido por Cândida da Costa em “Trabalho escravo contemporâneo: grilhões modernos na vida dos trabalhadores e trabalhadoras” é uma discussão que pode ser remetida para exemplificar o caso de outros universos de investigação, além do Vale do Jequitinhonha. A partir da ideia do trabalho como direito humano, a autora discorre sobre concepções teóricas que remetem a um conceito particular de trabalho escravo ou forçado, abrangendo situações em que o trabalhador “é ludibriado por falsas promessas de ótimas condições de trabalho e salário». Antes de focalizar denúncias de casos específicos e não totalmente documentados, a autora considera que o trabalho escravo é um tipo de trabalho forçado, definido como obrigatório, compelido ou subjugado, concluindo que “todo trabalho escravo é forçado, mas nem todo trabalho forçado é escravo”. Na sequência, Carlos Roberto Horta apresenta uma proposta de metodologias participativas com populações quilombolas, com ênfase na formação política e geração de trabalho e renda, tendo como referência os trabalhos desenvolvidos no âmbito do Núcleo de Estudos sobre o Trabalho Humano da UFMG (NESTH/UFMG), apoiados nos princípios da pesquisa-ação-participativa. Na visão do autor, essa abordagem propicia um fortalecimento político das comunidades, permitindo vencer barreiras como a descontinuidade de ações, reforçadas por questões culturais. As sete estratégias propostas incluem entrevista qualitativa embasada na tradição oral; questionário qualitativo dirigido a lideranças locais; questionário dirigido ao grupo familiar; entrevista qualitativa para identificar as representações que se organizam em torno da comunidade quilombola; encontro local com

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diferentes atores locais; estímulo às potencialidades e à organização de subjetividade social; e encontro quilombola na sede municipal. Já a dimensão formativa do trabalho, que constitui o tema central do artigo de João Valdir Alves de Souza, tem como objetivos “explorar o conceito de formação, distinguindo-o de seus correlatos educação, escolarização, instrução e ensino”, além de “fazer uma defesa da formação pelo trabalho, incluindo aí a defesa do trabalho infantojuvenil”. Nada mais instigante e polêmico para fechar o conjunto de artigos que poderiam constituir um núcleo universal deste Vale do Jequitinhonha: Ocupação e Trabalho. Logo na introdução do seu artigo, João Valdir adverte que, “se tomarmos o trabalho como a ação humana sobre a natureza para, sob determinadas relações sociais, produzir as condições da existência, é preciso distinguir os diferentes tipos de trabalho e destinar às crianças apenas aquela porção do trabalho adequada a elas. E é preciso dizer com clareza que a campanha deve ser contra a exploração do trabalho, sobretudo da exploração do trabalho infantil, e não contra o trabalho, porque ele é constitutivo do humano”. Mais adequado, então, é recomendar ao leitor uma leitura atenta, cuidadosa e sempre contextualizada, mesmo quando o autor dedica parte da atenção ao que Marx “certamente escreveria” sobre o assunto, em defesa do trabalho infantil, mas contra a exploração do trabalho infantil. Na retomada do foco para as especificidades do Vale do Jequitinhonha, os dois textos finais apresentam relatos de práticas inovadoras de ocupação e trabalho na região. O primeiro deles descreve a trajetória de criação e consolidação da Associação das Mulheres de Ponto dos Volantes, que se dedicam a atividades de costura, além do desenvolvimento de projetos sociais. A conclusão é que “o mundo está nas mãos de quem tem coragem e sabe esperar. Ninguém da equipe levou um ‘tostão’ para casa durante três anos. Agora, a associação é autônoma, conseguimos nossa independência”. O segundo destaca a atuação do Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV), com base em uma metodologia que deriva do cruzamento entre conhecimento científico e conhecimento prático. Conclui-se que na aplicação dessa metodologia “cabe ao técnico(a) ouvir o(a) agricultor(a) e propor ações que tenham como referência o potencial e a capacidade dos(as) próprios(as) agricultores(as) em suas propriedades”. Nesse sentido, “a parceria com as universidades tem sido muito interessante, pois, somando-se o conhecimento dos acadêmicos com o dos agricultores familiares, será disponibilizado um produto da melhor qualidade”. 14


Tem sido sempre assim: ao aliar o conhecimento acadêmico àquele da população da região, o Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha invariavelmente desenvolve um produto da melhor qualidade. É o caso deste Vale do Jequitinhonha: Ocupação e Trabalho, que apresenta uma coletânea de artigos capaz de propiciar ao leitor emoção, conhecimento e inquietação em doses suficientes para convidá-lo a juntar-se à equipe nesse processo de construção coletiva de um presente melhor não apenas para a geração atual, mas também para a geração futura da população que compõe o Vale do Jequitinhonha.

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Bordados da Associação Antônio Maria das Graças, Jenipapo de Minas. Fotos: Lorí Figueiró

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Lições do Vale: narrativa de uma pesquisadora Maria Aparecida de Moraes Silva

Vou lhe falar. Lhe falo do Sertão. Do que, não sei. Um grande sertão. Não, sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas. E só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é sua fineza de atenção. Lhe falo deste Sertão que está dentro da gente. Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. Dedico este texto a duas pessoas queridas: ao poeta, Rubinho do Vale, e à pró-reitora da UFMG, carinhosamente chamada Marizinha, com as quais aprendi a maior de todas as lições: a emoção fecunda a razão.

Em 1985 estabeleci o primeiro contato com os camponeses do Vale do Jequitinhonha, ocasião em que realizava uma pesquisa com trabalhadores rurais na região de Ribeirão Preto/SP. Era um domingo do mês de junho. Fazia muito frio. Após entrevistar alguns trabalhadores de uma grande fazenda, produtora de café, obtive a informação da existência de um barracão com mineiros, situado do outro lado de um córrego, em cujas cercanias se localizava o haras do fazendeiro com cavalos premiados em concursos nacionais e internacionais. Até então, eu desconhecia a presença daqueles trabalhadores. A bibliografia pertinente ao tema tampouco fazia referência a eles. Em minhas pesquisas anteriores, encontrei muitos “boias-frias” ou “paus de araras”, residentes nas cidades-dormitórios e provenientes da área rural do estado de São Paulo, os quais vivenciavam o processo recente de expulsão do campo pela política da modernização posta em prática nos anos da ditadura militar. Para os viajantes das estradas paulistas, a imagem dos homens e das mulheres sendo transportados em carrocerias de caminhões ou trabalhando nos infinitos canaviais, laranjais e cafezais fazia parte da paisagem, sendo percebida como natural. Ainda que a imprensa veiculasse notícias sobre os inúmeros acidentes ocorridos em razão dessa forma de

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transporte, aquele não era um problema social e político relevante naquele momento para o status quo. Ao chegar ao barracão, deparei com muitas mulheres, homens e crianças que estavam do lado de fora, aquecendo-se ao sol em razão do frio intenso. De início, houve um constrangimento de ambas as partes. Afinal, éramos estranhos entre nós mesmos. De meu lado, houve um espanto e incredulidade diante do que via; do lado daquelas pessoas, pairava no ar o questionamento acerca de minha presença, inicialmente, pensada como se fosse alguém pertencente à fazenda. Passados aqueles momentos de estranhamento mútuo e dúvidas, iniciamos a conversa. Perguntei-lhes sobre as razões de estarem ali, de onde provinham, o que faziam em suas terras e assim por diante. Paulatinamente, o estranhamento foi se dissipando e fui percebendo com maior nitidez a realidade daquelas vidas diante de mim. Não gravei nenhuma conversa. Ouvi muitos relatos sobre o trabalho e, sobretudo, o sofrimento, por estarem longe de suas terras. Contudo, o registro em meu caderno de campo foi insuficiente para dar conta do indizível, do silêncio, das falas entrecortadas por soluços, dos olhares dirigidos a lugar nenhum, da miséria dos corpos, do encolhimento, da dor sentida pelos doentes e, mais ainda, da saudade da “terra da gente”, “do lugar da gente”. A impressão registrada era a de pessoas “exiladas”, fora de seus rincões, arrancadas de suas raízes. Soltas, sem lugar de pertencimento. O barracão enfeixava um quadro de miséria humana. Sua arquitetura refletia o retrato da dominação, exploração, contrastante com a arquitetura do haras, do outro lado do córrego, com seus belíssimos cavalos aureolados em vários concursos. Nos cinco “quartos”, divididos por plásticos pretos, as sessenta pessoas ali estavam acomodadas, independentemente do sexo, idade, estado civil e grau de parentesco. O critério da divisão era tão somente o quantitativo. Os fogões a lenha – em número de oito – situavam-se em frente aos “quartos”, imprimindo ao ambiente, em virtude da fumaça, um aspecto lúgubre. Não havia água encanada nem energia elétrica. A higiene corporal era feita no córrego, apesar do frio. Duas frases ouvidas foram registradas em meu caderno de campo, inúmeras vezes: “aqui não é o lugar da gente”; “aqui não é a terra da gente”. Ao sair do barracão, no final daquela manhã domingueira, fui acometida de muitas emoções; revolta diante da injustiça social experimentada por aquelas pessoas; impotência diante do fato presenciado. A partir de então, formulei um projeto de pesquisa para conhecer “a terra daquela gente” e entender por que estavam na “terra que não era daquela gente”. 18


Assim, cheguei ao Vale em 1988.1 De lá para cá, foram muitas andanças. Palestras, textos escritos publicados em revistas e livros; muitas apresentações em congressos nacionais e internacionais. Levei para incontáveis cantos do país e de lugares estrangeiros as imagens e narrativas de homens, mulheres e crianças da “terra da gente”;2 iniciei uma colaboração frutífera, que já dura mais de 20 anos, com a Pastoral do Migrante; conheci inúmeros pesquisadores que se debruçaram sobre a temática das migrações e das sociedades camponesas. E mais ainda. Aprendi várias lições transmitidas por camponesas, que, embora sendo ágrafas, tinham um conhecimento ímpar advindo de suas experiências moldadas pela vida. Lições aprendidas e, a partir de então, transmitidas a inúmeras gerações de estudantes. Lições guardadas em minha memória como verdadeiros tesouros. Sobre algumas delas, discorrerei, em seguida, sob a forma de narrativa.

Primeira lição: Mulher é como engenho, roda sem parar Ao sair do barracão, tinha a certeza de que não estava deixando para trás aquela gente, porém, aquela realidade, doravante, faria parte de minhas preocupações de pesquisa, não somente enquanto objeto de estudo, como também enquanto práxis, entendida, como ação, visando à transformação e ao compromisso ético com os sujeitos pesquisados. A execução do projeto de pesquisa, além das técnicas usuais de investigação, deveria navegar em outras águas. Tornava-se importante recorrer à antropologia, à etnografia, a fim de captar o visível e o invisível, o dizível e o indizível, os objetos e também a compreensão das subjetividades. Era necessário compreender outra economia política: a da saudade. Um dos instrumentos da metodologia da pesquisa era um questionário, visando captar o quantitativo referente aos dados da produção agrícola e também do uso do tempo, segundo os sexos. O objetivo era, mormente, verificar o uso do tempo por homens e mulheres nas distintas unidades de produção doméstica. Aos poucos, esse questionário foi se mostrando incapaz de dar conta de toda a diversidade do real. Em todo caso, como investigadora ciosa do emprego da metodologia científica, continuei aplicando-o em diversas unidades de produção, até que cheguei à roça de dona Maria, 1 -   A pesquisa foi financiada pela FUNDUNESP e CNPq. 2 -   Entre as publicações, ressalto: SILVA, 1996; 1999; 2013.

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que estava colhendo algumas espigas de milho seco. Vestia uma saia escura e possuía os cabelos protegidos por um lenço branco, amarrado à moda das demais camponesas do Vale. Após ouvir-me atentamente, iniciei o preenchimento do questionário, cujas perguntas iniciais versavam sobre o uso do tempo com horários bem definidos, segundo as distintas atividades. O objetivo da noção do uso do tempo era voltado para a compreensão do cotidiano laboral feminino, bem como a precisão da dupla jornada. De qualquer forma, o modelo tinha como base a vida das mulheres trabalhadoras urbanas e também a divisão do tempo produtivo (fora da casa) e reprodutivo (na casa). Assim, numa das colunas havia o registro de todos os horários da jornada de trabalho, desde o momento do despertar até o deitar. Na outra coluna, eram discriminadas as atividades, segundo os respectivos horários. À medida que ia respondendo às perguntas, notei que minha depoente não sabia me dizer com precisão a atividade que ela desenvolvia às seis horas ou às seis e trinta minutos. Insistia em me dizer que fazia tudo ao mesmo tempo: coava o café, cuidava das crianças e também das galinhas; varria o terreiro e limpava a casa. Lavava a roupa; preparava o almoço e depois ia para a roça com o sol a prumo. Guiava-se pelo sol. Não sabia ler nem escrever. Não possuía relógio. Seu tempo era o tempo cíclico, e não o linear da sociedade urbana e orientada por práticas capitalistas e do assalariamento dos trabalhadores. Após alguns minutos de desconforto em relação às perguntas, ela me disse: Uai, quem trabalha na roça não tem essas coisas de tempo dividido, não. Faz aqui, faz ali. Mulher é como engenho, não para de rodar.

Até aquele momento, não havia lhe dito nada sobre tempo dividido, noção cara aos estudos dessa temática. Ela, por si mesma, com sua arguta inteligência, havia chegado a essa conclusão. Com essa lição aprendi que o modelo de questionário que tinha em mãos não era o mais adequado para aquela realidade. Assim, deixei-o de lado e aprofundei a entrevista com dona Maria. Aprendi o significado do “rodar sem parar como engenho”: metáfora da jornada justaposta, do tempo não dividido, não recortado, e das múltiplas atividades desenvolvidas ao mesmo tempo, sem a cisão do espaço produtivo (roça) e do espaço reprodutivo (casa). Casa e roça, além do quintal, formavam a simbiose espacial por onde ela “rodava sem parar”. E mais ainda. A disposição das tarefas seguia o movimento da terra ao redor do sol, de forma bastante precisa. O seu tempo não era o tempo 20


cronológico do relógio, definido segundo as horas e os minutos, porém o da manhã, do meio-dia, da tarde e o da noite. Fui descobrindo pelo relato de minha depoente que, enquanto havia uma jornada justaposta para as mulheres, elas rodavam sem parar, havia uma jornada única para os homens; a divisão sexual do trabalho existia apenas em relação aos homens, que concentravam suas atividades no trabalho agrícola, e não para as mulheres. A pré-concepção da divisão sexual, no nível do discurso, em que as mulheres só trabalhavam na roça como ajuda ao trabalho do homem e por precisão, refletia as representações sociais ali existentes. Outros depoimentos foram revelando ainda que as mulheres participavam de todas as tarefas do processo de trabalho agrícola, ou seja, preparavam a terra, plantavam, carpiam e colhiam. Não havia, para os diferentes produtos, uma divisão, às vezes, concebida como natural, em que os homens preparam a terra, as mulheres semeiam e “ajudam” na carpa e colheita. Essas informações tornaram visível e real a participação das mulheres em todas as fases do processo produtivo agrícola, desmistificando as concepções de que o trabalho da roça é pesado e, portanto, é um trabalho dos homens e que as mulheres só trabalham quando há precisão. Por outro lado, a real participação das mulheres no trabalho não lhes conferia o mesmo estatuto que os homens. Ou seja, mesmo exercendo o mesmo trabalho, elas não eram consideradas iguais aos homens. Trabalho idêntico não significa igualdade social (no sentido dos gêneros) entre homens e mulheres. O trabalho não é causa da diferenciação entre homens e mulheres. Ele apenas reflete essa diferenciação que lhe preexiste, diferenciação que impregna todo o tecido social, e não apenas a esfera do trabalho. Pude, então, perceber que, além dos atributos de desqualificação de “ajuda”, “precisão” ao trabalho da mulher, presentes no interior da unidade doméstica, a troca de dias, relação costumeira entre as diferentes unidades domésticas, refletia igualmente os caracteres diferenciadores entre homens e mulheres. Havia, na verdade, uma universalização dessa diferenciação. Por isso, é necessário frisar que as relações de gênero não são relações que dizem respeito apenas à esfera doméstica, privada. E mais, não são relações que se prendem a uma ideologia como falsa consciência existente apenas nas cabeças das pessoas, como meras ideias. Muito ao contrário. São relações presentes em todas as esferas e são imbuídas de elementos pensados e reais, no sentido de que refletem o real e também o determinam. Havia, além de uma divisão sexual rígida no tocante à troca de dias, uma sobrevalorização do trabalho do homem em relação ao trabalho da 21


mulher. Segundo os costumes vigentes, até então, um dia do trabalho do homem equivalia a dois dias de trabalho da mulher. Portanto, o trabalho da mulher “valia” a metade do trabalho do homem. Em algumas comunidades, sequer os homens aceitavam trocar dias com as mulheres. Enfim, a conversa com dona Maria foi puxando o fio das relações de gênero ali existentes e muitas outras Marias me forneceram outras tantas informações sobre o mundo do trabalho feminino no Vale, acentuando e apontando as discriminações, bem como desmistificando o trabalho feminino como leve ou meramente ajuda.

Segunda lição: Não olhe para a colcha. Olhe para mim Continuando minhas andanças pelas grotas e veredas do Vale, deparei com as artesãs da comunidade de Roça Grande. Colchas, almofadas, toalhas tecidas com fios de algodão coloridos eram produzidas por mulheres jovens, inseridas no projeto da então Codevale (Comissão para do Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha), que foi extinta e substituída pelo Inde (Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais). Depois de apreciar o artesanato e entrevistar algumas tecelãs, cheguei à casa de dona Antônia, primeira tecelã de Roça Grande, que havia aprendido o ofício da tecelagem com sua avó. Descreveu-me em detalhes todos os passos de sua produção, desde o plantio do algodão até a preparação das tintas feitas com raízes e folhas de árvores das chapadas. Fazia questão de diferenciar seu trabalho daquelas outras tecelãs. Estas utilizavam tintas químicas e ela, as tintas extraídas naturalmente das plantas. Seu saber era advindo da experiência de sua avó. Logo, era um trabalho distinto, qualitativamente. Possuía a marca da primeira tecelã de Roça Grande. Tal como Walter Benjamin se referiu à marca do oleiro no vaso ao se reportar à narrativa, advinda da vida, da experiência do narrador, dona Antônia manifestava a singularidade de seu trabalho, fruto do saber narrativo – entendido não apenas como palavras transmitidas por sua avó, como também pelo ensinamento de um ofício, executado pelas mãos e pela alma. No final da entrevista, manifestei meu interesse em comprar uma das colchas feitas por ela. Ao verificar que eu contemplava o produto, ressaltando sua beleza, ela me disse:

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Eu acho mais bonito a senhora olhar pra mim, me dar valor, do que dar valor pra colcha. Por que o valor está na cabeça [...].

Inicialmente não havia compreendido o significado tão profundo de suas palavras. Confesso que fiquei constrangida diante dela. Paulatinamente, enquanto investigadora e estudiosa de Marx, vieram-me à mente os ensinamentos desse pensador sobre o valor das mercadorias – valor de uso e valor de troca. Na realidade, acabara de aprender, concretamente, o significado desses dois conceitos. A colcha não era um simples valor de troca, imbuída do fetichismo da mercadoria capitalista, porém valor de uso, que trazia a marca das mãos da primeira tecelã de Roça Grande, dona Antônia. Ao advertir-me que o valor da colcha estava nela – artesã –, e não na colcha propriamente dita, ela mostrou-me que a mercadoria, valor de uso, fruto de um trabalho concreto, dela, dona Antônia, primeira artesã de Roça Grande, não representa nada sem ela, não possui valor. Aqui, o valor da coisa só existe na cabeça do indivíduo, da possuidora da mercadoria. O valor da colcha ao existir somente na cabeça significa que ele é representado. Não existe a coisa em si. Não há aqui o fetiche da mercadoria que assume o lugar das pessoas. Não se trata de uma relação entre coisas, mas entre pessoas. O que existe é uma personalização das pessoas, e não das coisas, como no caso do fetichismo da mercadoria sob o capitalismo. A coisa só tem valor porque a pessoa o possui. É a pessoa que transmite o valor à coisa. Ao dizer que, se o valor da pessoa acabar, ele não mais será encontrado, induz à primazia, mais uma vez, da pessoa sobre a coisa. Ela, ao reclamar o valor para si, na verdade, interioriza o valor da coisa como se fosse dela mesma. Identifica-se com a coisa, seu produto, seu valor. Transmite à coisa sua representação, seu pensamento, seus símbolos, sua alma, sua vida, enfim. Mauss ([s./d.], p. 67), referindo-se ao sistema de trocas entre os indígenas maori, afirmou: “(a) ligação pelas coisas é uma ligação de almas, porque a própria coisa tem uma alma, é alma. Donde se segue que apresentar qualquer coisa a alguém é apresentar qualquer coisa de si”. A diferença entre seu trabalho e o das “meninas de Roça Grande” era assentada na concepção do valor. Para ela, as “meninas” produziam valores de troca, pois elas pensavam no dinheiro, contrariamente a ela, que se confundia com o próprio objeto. Sua identidade era transmitida à colcha, e não o contrário. Ela se encaixava na definição marxiana do ser genérico, segundo o qual sujeito e objeto formam uma simbiose, não havendo a objetivação do sujeito nem a relação de estranhamento entre o sujeito e o objeto.

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Terceira lição: Não moro sozinha. Moro com Deus Encontrei dona Maria sozinha em sua casa. Após apresentar-me e explicar-lhe as razões de estar ali, iniciei a conversa interessada em saber se além dela alguém mais residia na casa. Ao ser inquirida se morava sozinha, ela respondeu-me: “não”. Em seguida, após lhe perguntar com quem vivia, ela me disse: “moro com Deus”. A história de vida de dona Maria trouxe à tona novos elementos à compreensão das questões de gênero e das relações patriarcais daquela comunidade camponesa. Ainda em idade tenra, foi doada pelos pais a uma família de fazendeiro da região. Foi inserida como empregada doméstica e ao completar 13 anos, quando “ficou mocinha”, tornou-se amante do marido da sua patroa. Ali viveu durante mais de 20 anos e teve vários filhos com ele. Uma história de bigamia. Contou-me do tratamento hostil, da discriminação de seus filhos e das várias cenas de violência perpetradas por aquele homem. Quando ele faleceu, foi expulsa da casa pela esposa e seus filhos “foram embora”. Nada sabia sobre eles. Assim, vivia sozinha naquela casa de adobe feita por ela mesma, sem aposentadoria e vivendo da caridade dos vizinhos, pois, já idosa, não possuía mais forças para trabalhar. As histórias de bigamia se repetiram em outras entrevistas. A experiência de dona Maria não era única naquele ambiente social. O apego religioso era uma forma de sobreviver a uma realidade dura imposta por uma estrutura que havia lhe impresso um destino social do qual protagonizou como vítima. Ainda me lembro de sua figura frágil, sentada frente ao fogão, cujo fogo estava apagado, pois em sua casa não havia nenhum vestígio de alimentos. À medida que tecia sua narrativa, dirigia-me um olhar triste e, com muita frequência, cruzava as mãos sobre o tórax, num gesto de “aperto do coração”. A comovente história de vida daquela mulher transportou-me para outras épocas da sociedade patriarcal brasileira, para as relações da casa grande e senzala. No entanto, a escravidão havia terminado há mais de um século, mas suas raízes ainda não tinham sido totalmente eliminadas. Estavam ali bem fincadas à minha frente. Assim que dela me despedi, lançou-me um olhar triste, mas ao mesmo tempo questionador. Era como se ela me perguntasse sobre o que faria após ouvir sua história. Até que ponto seu passado poderia ser resgatado? Naquele momento, veio-me à lembrança uma passagem de W. Benjamin, no seu belíssimo ensaio sobre conceito da história: 24


Certamente, os adivinhos que interrogavam o tempo para saber o que ele ocultava em seu seio não o experimentavam nem como vazio nem como homogêneo [...]. Sabe-se que era proibido aos judeus investigar o futuro. Ao contrário, a Torá e a prece se ensinam na rememoração. Para os discípulos, a rememoração desencantava o futuro, ao qual sucumbiam os que interrogavam os adivinhos. Mas nem por isso o futuro se converteu para os judeus num tempo homogêneo e vazio. Pois nele cada segundo era a porta estreita pela qual podia penetrar o Messias, (BENJAMIN, 1987, p. 232).

Mergulhei numa atmosfera mística, tal como o filósofo judeu no excerto acima. Somente pessoas vivenciando situações-limite, tal como ele, em 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, quando sentia o aproximar-se da morte, em virtude da perseguição nazista. Do mesmo modo, senti que dona Maria sempre vivera numa situação-limite, numa corda bamba, entre a vida e a morte social. Por isso, a crença na presença divina era a forma pela qual mantinha o equilíbrio nessa travessia de um “viver perigoso”, nas palavras de Riobaldo, personagem do Grande sertão: veredas.

Quarta lição: A divisão da comida Na sequência das entrevistas, dirigi-me, juntamente com meus dois auxiliares de pesquisa, à casa de dona Francisca. Também estava só. Aliás, a presença de mulheres sozinhas era uma constante, dado o fato de que a maioria dos homens já havia migrado para São Paulo (corte da cana, colheita do café) ou outros estados. As mulheres dali eram conhecidas como “viúvas de maridos vivos”. Era por volta de meio-dia. Logo depois da apresentação, antes mesmo de iniciar a entrevista, ela me perguntou: vocês já almoçaram? Diante da resposta (impensável) negativa, ela me disse: vou lhes preparar algo para comer. Não reparem: só tenho mandioca no quintal. Ainda que quase lhe implorasse para não se incomodar, pois voltaríamos à cidade em seguida e lá almoçaríamos, ela preparou a mandioca para comermos. Os ensinamentos advindos de várias pesquisas com camponeses, sejam da sociologia ou da antropologia, revelam que a solidariedade 25


prevalecente nesse meio social é recortada pela solidariedade mecânica, ao contrário daquela das sociedades complexas, onde predomina a solidariedade orgânica. Essa lição, aprendi assim que iniciei meus estudos de Ciências Sociais, ao tomar contato com a sociologia de Durkheim. Mas não apenas isso. A comida preparada, resultante desse gesto de solidariedade a pessoas desconhecidas, num contexto de quase ausência absoluta de alimentos, revelou os sentimentos estruturantes da psicogênese daquela mulher frutos do meio social ao qual pertencia. Solidariedade, cooperação – palavras em desuso nas sociedades pós-modernas, dominadas pelo egocentrismo e individualismo extremados – faziam parte das práticas individuais e sociais e também da estruturação da personalidade dos camponeses. Ali não vi nenhuma criança abandonada. Ainda que as “fraquezas da terra e da gente” fossem reais e duras, o pouco ou o quase nada era dividido, compartilhado. Dona Francisca jamais soubera o que seu gesto provocou em mim. A partir dele, passei a pertencer àquela “comunidade de destino”, segundo as palavras de Ecléa Bosi. Ou seja, passei a enxergar o invisível, o não dito, o escondido, sob o manto da migração. Em vez de ver somente o trabalho, via os trabalhadores e trabalhadoras; em vez de refletir sobre a migração e suas diferentes teorias, tentei compreender os migrantes em suas buscas e esperanças. Tornei-me parceira de suas lutas por direitos mínimos, como carteira assinada, transporte e moradia adequados, salários melhores, e, mais ainda, por serem reconhecidos como trabalhadores, e não como “gente de fora”, como mercadoria barata, facilmente descartada e substituível. Tornei-me uma pesquisadora interessada não apenas na colheita de dados para futuras publicações, porém uma pesquisadora imbuída da práxis, e do pensamento crítico que procuravam ir além dos muros do gueto universitário, buscando compreender o mundo, mas também transformá-lo. Tentativa de pôr em prática uma das teses centrais de Marx, na sua crítica ao pensamento dos filósofos neo-hegelianos de seu tempo. Doravante, além da parceria com a Pastoral dos Migrantes, já mencionada, participei de inúmeros eventos acadêmicos e não acadêmicos sobre migrações e também de vários embates travados contra a superexploração dos trabalhadores, mormente aqueles referentes às Audiências Públicas, ocorridas em razão das mortes por exaustão no eito dos canaviais paulistas. Nesses encontros, novas parcerias foram se constituindo, inter allia, com a Promotoria Pública de Campinas (PRT15) do estado de São Paulo (SILVA, 2006). 26


Agnes Heller afirmava que o acaso tem uma grande importância para a história. Defendia a tese de que os acontecimentos históricos não seguem uma linha reta. Os casuais, os que não são previstos também são importantes para mudar o curso da história. O almoço na casa de dona Francisca teve esse papel para a história de minha vida enquanto pesquisadora e também em minhas práticas cotidianas. Dividir, somar, multiplicar foram verbos mais conjugados por mim, a partir de então.

Quinta lição: As Andorinhas. Nem cá. Nem lá Dona Eletriz. Ela foi a responsável pelo título do audiovisual, As Andorinhas. Nem cá. Nem lá, produzido por esta pesquisa.3 As narradoras anteriores não eram migrantes. Dona Eletriz, sim. Por isso, tomo a liberdade de reproduzir alguns trechos de sua narrativa, já publicados em outra ocasião (SILVA; MELO, 2009), a fim de dar ao leitor a dimensão da história de vida dessa mulher camponesa, migrante e cortadora de cana em várias usinas de São Paulo. Dona Eletriz nasceu no povoado de Cantagalo; trabalhou durante 14 anos nas usinas São Martinho, Santa Adélia, Balbo, Santa Eliza, São Geraldo etc., em quase todas, segundo suas palavras. Em cada usina “tirava uma safra”. A última foi na Usina Santa Eliza. Quando criança migrou, juntamente com a família, para Londrina (PR), onde o pai trabalhava na fazenda Paracatu como parceiro nas lavouras de café. Após três anos nessa fazenda, a família retornou para o Vale do Jequitinhonha. Continuaram trabalhando “nas terras dos outros”. A impossibilidade de lograr o mínimo para a sobrevivência fez com que a família migrasse definitivamente para Barrinha, cidade-dormitório da região de Ribeirão Preto (SP). Ela não acompanhou a família, pois resolvera casar-se com apenas 14 anos de idade. Continuou trabalhando no “terreno” do sogro. Depois de seis anos de casada, foi abandonada pelo marido. O motivo, segundo ela, deveu-se a uma longa doença causada por muita “fraqueza”. Ficou durante nove meses internada num hospital em Teófilo Otoni (MG), em virtude de 3 -  As Andorinhas. Nem cá. Nem lá. Inicialmente, foi produzido um audiovisual, utilizando a tecnologia do momento, sob a forma de slides, revelados em projetores. Em seguida, foi transformado em vídeo (VHS) e atualmente foi reproduzido em DVD. Com o passar dos anos, esse material, que reúne mais de 200 imagens, coletadas no Vale do Jequitinhonha e nos canaviais e cafezais de São Paulo, foi sendo reproduzido segundo o avanço das técnicas visuais (SILVA, 2007).

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problemas de “cabeça”, “de incosto”. “Eles me tiraram pra fora porque eu tinha este ‘incosto’. Meu marido, com isto, desgostou e arrumou outra e foi embora pra São Paulo.” Após deixar o hospital, foi morar no “terreno” do sogro, onde seguiu trabalhando para sustentar os filhos e ele próprio, já que se achava doente e impossibilitado para o trabalho. Descreveu esse tempo como sendo marcado por muitas dificuldades, em virtude de a terra ser fraca e, portanto, incapaz de garantir as mínimas condições de reprodutividade do trabalho. A fraqueza da terra se aliava a sua própria fraqueza, constituindo uma simbiose de despossessão e miséria. Tinha dia que eu amanhecia assim [...]. Não tinha nada pra dar para os meus filhos. Eles saíam pelos vizinhos, chegavam com um punhadinho de coisas. Outros davam um prato de comida pra eles comerem. Muitas vezes, pra não morrer de fome, eu saía pedindo. Eu pedia mandioca, ralava, pra poder fazer um mingau pra dar para os meus filhos comerem. Lá na roça, pegava folha de batata e dava pra eles.

Mediante tal situação, ela se “destinou mesmo a sair pra fora”. Foi, portanto, o quadro de extrema miséria que a forçou ao destino da saída. Apesar da saúde debilitada, de “possuir um corpo fraco” (doente), ela era o único membro da família que poderia vender a força de trabalho nas usinas. Para não deixar os filhos morrerem de fome, migrou durante 14 anos, “de lá para cá, de cá para lá, igualzinho a uma andorinha que parte em busca de pão para meus filhos”. Tirava os seis meses na safra e, na parada (entressafra), voltava para casa. Inquirida a respeito de não levar os filhos consigo, ela disse: “A senhora sabe o que é? Porque meu sogro não dava os meus filhos para mim [...]. Ele falava assim: você pode ir, eu olho os filhos para você. Eu não fico sem os seus filhos”. Essa parte do seu discurso revela aspectos importantes das relações de gênero. Pode-se inferir, por um lado, que a impedindo de levar os filhos, o sogro estava, na verdade, forçando-a a não deixá-lo só para morrer de fome, já que estava velho, incapaz de migrar e doente. Ficando com os filhos dela, ele garantiria sua sobrevivência com o dinheiro enviado por ela durante a safra e com o próprio trabalho dela no período da “parada”, mediante as funções assumidas na roça de subsistência. Ademais, é possível perceber que as razões da migração não podem ser adstritas às condições objetivas (SILVA, 2005). Uma teia de relações criadas e recriadas 28


no cotidiano vai se consolidando, a partir da organização social de gênero existente, que ratifica o poder masculino na pessoa do sogro, em virtude da ausência do marido. É essa organização de gênero que define o seu destino. Na realidade, para ela, teria sido mais fácil mudar-se definitivamente para a região de Ribeirão Preto, uma vez que seus pais ali residiam. A guarda forçada dos filhos remete aos valores presentes nas relações semióticas entre os gêneros masculino e feminino. Desta sorte, ser mãe não possui o mesmo significado de ser pai. Neste caso, o pai abandonou os filhos, indo viver com outra mulher em São Paulo, eximindo-se de qualquer função em relação à paternagem. Ao contrário, ela assumiu a maternagem, apesar das condições impostas pelo sogro. Amor, proteção e cuidado são elementos definidores do eu feminino, diferentemente do eu masculino, cujos referenciais são centrados num “ideal abstrato de perfeição”. O eu feminino está sempre referido ao ato de “cuidar de outrem” (GILLIGAN, 1991). Ao representar-se como andorinha, que parte para sustentar os filhos, enfeixa-se numa alegoria cujos elementos semióticos são pautados não pelo biológico, mas pelo social. Ou seja, o ato de criar, de cuidar dos filhos, de alimentar, é um ato social decorrente da organização social de gênero, e não da fisiologia feminina. Imbuída dessa representação, “destinou-se a sair” e foi forçada a voltar sempre porque o sogro “não deu os filhos para ela”. O que houve foi uma situação de apropriação dos seus filhos, única forma de garantir a sua volta, e, ao mesmo tempo, garantir a sua própria sobrevivência. É no jogo dessas relações que se entendem os diferentes papéis dos sujeitos desse drama. Trata-se de papéis marcados por experiências diferenciadas. Experiências definidas por um complexo de efeitos, hábitos, disposições, associações e percepções significativas resultantes de uma interação semiótica entre o eu e o mundo exterior (LAURETIS, 1987). Impregnada dessa experiência de mulher e mãe, forçada a migrar, a deixar os filhos, o resultado foi um sentimento de desmembramento. Ah! O duro era separar de meus filhos. Eu sentia, eu sentia [...]. Quando eu saía, que eu pegava a bolsa, os meus filhos iam para o mato pra não ver eu sair. Aquilo para mim era uma coisa muito triste na minha vida. Mas, eu pensava, eu tinha que ir, meu Deus. Porque, senão, o que é que eu posso arrumar para os meus filhos? Eu ia assim, sempre com outra colega, com um parente meu, com um tio, tia, uma prima. Isto foi umas três vezes. Depois eu aprendi a estrada e fui com Deus. 29


O (re)membramento só se tornava possível durante a “parada”, quando regressava. Assim, viveu durante todo esse tempo presa pela rede do (des) membramento-(re)membramento/safra-parada. Em cada um desses ciclos, perdia, paulatinamente, o pouco que ainda restava de sua força de trabalho, até não possuir mais condições para migrar. “Quando eu chego aqui, ninguém me conhece. Eu chego no couro e osso. Agora eu não aguento mais. Meus nervos estão tudo esgotados. Não tenho mais forças.” As metáforas couro e osso representam não apenas o emagrecimento causado pelo trabalho duro no corte da cana, como também o consumo do próprio corpo, através de um processo definido pela superexploração da força de trabalho. Perda das energias é o que restou para um corpo com nervos esgotados e reduzido a couro e osso. Corpo diminuído. Corpo encolhido. Todavia, foi graças a esse encolhimento, a essa morte paulatina do corpo, que ela garantiu a vida dos filhos e do sogro. Para ela, se não fosse São Paulo, seus filhos teriam morrido de fome. São Paulo configura-se como o lugar de trabalho, salário, portanto, o único meio de garantir a sobrevivência. É um lugar supervalorizado, estando abaixo apenas de Deus. No mundo dos homens, São Paulo não aparece como o lugar da superexploração de sua força de trabalho, de sua redução a couro e osso. Ao contrário. É para lá que Deus a destinou. São Paulo foi uma espécie de travessia para chegar à outra margem do rio. Afirma no final do seu depoimento que espera ter sorte no outro mundo, está esperando chegar o outro mundo para Deus recebê-la, já que neste mundo ela somente sofreu como Jesus. Como Ele, ela também carregou sua cruz. O depoimento de dona Eletriz revela a antevisão de um destino social de classe/gênero/etnia, em que, num primeiro momento, a ação do sujeito é inoperante no sentido de conseguir alguma transformação. Porém, ela, apesar de abandonada pelo marido, por ter “incosto”, ser “refém” do sogro, portadora de “fraqueza”, logrou durante 14 anos sustentar seus filhos, além do sogro, partindo e chegando, voando como uma andorinha, de lá para cá e de cá para lá. A experiência, segundo Thompson (1981), é aquilo que cada um traz, é, portanto, algo forjado durante a vida. Os homens e mulheres também retornam como sujeitos, dentro deste termo – não como sujeitos autônomos, “indivíduos livres”, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida “tratam” essa experiência em sua consciência e sua cultura [...] 30


das mais complexas maneiras [...] e, em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, através das estruturas de classe resultantes), agem, por sua vez, sobre a situação determinada (THOMPSON, 1981, p.182).

Com dona Eletriz, que em 1988 possuía apenas 37 anos de idade e estava consumida pelo trabalho nos canaviais paulistas, reduzida a “couro e osso”, aprendi a lição do “viver perigoso”, segundo a expressão de Riobaldo retratada no Grande sertão: veredas. Viver era sair do Vale, ir para São Paulo e reduzir-se a “couro e osso”, a ficar com os “nervos esgotados”. Só assim, lograria dar a vida aos seus filhos. Foi essa a forma que encontrou para agir sobre as estruturas determinantes. Para ela, viver nada mais foi do que a travessia do ir e vir em busca do mito do eterno retorno à “terra da gente”. A história de dona Eletriz, além de outras, me auxiliou a redefinir o processo migratório. Até então, muitas leituras revelavam que a migração para o corte de cana era masculina, havendo um recorte de gênero bastante claro. Os homens partiam e as mulheres ficavam na unidade doméstica, cuidando da roça e da casa. A migração de mulheres era ocultada pelas análises dos pesquisadores. Ainda mais, considerando que ela era “fraca” para um trabalho tão penoso. Seguramente, ela e tantas outras nunca foram contabilizadas pelas estatísticas oficiais. Ademais, nunca apareceram nos registros das empresas para as quais trabalharam, pois nunca foram registradas. Para essas empresas, elas nunca existiram. Hoje, passados 25 anos, deixo registrado um fragmento de sua história, de sua labuta e teimosia para viver tão perigosamente. Aprendi muitas outras lições com as camponesas do Vale. Essas que aqui foram relatadas imprimiram marcas muito profundas em mim como pesquisadora e como pessoa compromissada com a justiça social e os direitos humanos. Oxalá, elas soubessem o quanto foram lembradas por mim. O quanto delas falei, o quanto elas me inspiraram e, sobretudo, o quanto suas experiências foram transmitidas ao longo desses últimos 25 anos durante minhas tantas andanças. Experiências que equivalem a tesouros na expressão de W. Benjamin (1987). O ato de narrar revela a tecelagem da experiência, tal como numa oficina. Oficina é o lugar de transformação, lugar onde se pratica o ofício, isto é, uma ocupação permanente de ordem intelectual ou não a qual envolve certos deveres ou encargos ou um pendor natural. O sociólogo norte-americano W. Mills, na década de 1950, reportava-se à ciência social como um 31


ofício, como algo que faz parte da vida, e não simplesmente como tarefa a ser cumprida em virtude das exigências das instituições e agências financiadoras de pesquisa por meio de relatórios e publicações. Mills se referia ao cientista social como artesão intelectual. O ofício do artesão pressupõe a imersão na totalidade do processo de trabalho. Concepção, escolha do material a ser trabalhado, das ferramentas são indícios necessários do savoir faire, isto é, do métier do artesão, cujo produto é pautado pela marca de seu criador e definido por sua qualidade. Não se trata, portanto, de um trabalho alienado, fragmentado, medido pelo quantitativo e pelas marcas da impessoalidade e generalidade. Nesse sentido, há uma verdadeira fusão entre vida pessoal e intelectual, quando se trata do ofício, particularmente do artesanato científico. Tal como as artesãs da vida do Vale do Jequitinhonha, meu intento nesta narrativa foi o de seguir seus passos na busca do farol luminoso da justiça social.

Referências BENJAMIN, W. O narrador. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica. Arte e política. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1987. v. 1, p. 197-221. GILLIGAN, C. Uma voz diferente. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1991. LAURETIS, T. Tecnologies of gender. Bloomington: Indiana University Press, 1987. MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, [s./d.]. SILVA, M. A. M. O rosto feminino da migração sazonal. Travessia, CEM, ano IX, n. 26, p. 7-10, set./dez. 1996. SILVA, M. A. M. Errantes do fim do século. São Paulo: Edunesp, 1999. SILVA, M. A. M. Contribuições metodológicas para a análise das migrações. In: DEMARTINI, Z. B. B; TRUZZI, O. (Org.). Estudos migratórios: perspectivas metodológicas. São Carlos: Edufscar, 2005. p. 53-86.

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SILVA, M. A. M. As andorinhas. Nem cá. Nem lá. DVD. 17’. São Carlos, 2007. SILVA, M. A. M. Camponesas, fiandeiras, tecelãs, oleiras. In: NEVES, D. P.; MEDEIROS, L. S. (Org.). Mulheres camponesas: trabalho produtivo e engajamento político. Niterói: Alternativa, 2013. p. 163-186. SILVA, M. A. M. et al. Do karoshi no Japão à birola no Brasil: as faces do trabalho no capitalismo mundializado. Revista Nera, v. 8, série 1, p. 74-108, 2006. Disponível em: <http://www.prudente.unesp.br/dgeo/nera>. Acesso em: 6 abr. 2013. SILVA, M. A. M.; MENEZES, M. A. Migrações rurais no Brasil: velhas e novas questões. Brasília: Nead, 2008. Disponível em: <http://www.nead.org. br/memoriacamponesa/index.php?acao=leitura>. Acesso em: 6 abr. 2013. SILVA, M. A. M.; MELO, B. M. Partir e ficar. Dois mundos unidos pela trajetória dos migrantes. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana (REMHU), ano XVII, n. 33, p. 129-153, jul./dez. 2009. Disponível em: <http:// redecemis.phlnet.com.br>. Acesso em: 6 abr. 2013. THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

Maria Aparecida de Moraes Silva é professora livre-docente pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Atualmente, é professora visitante do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É pesquisadora do CNPq. Publicou vários livros e artigos relacionados ao tema do trabalho rural, sob as óticas de gênero, classe e raça/etnia, além da migração.

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Mãe e filho na produção de garapa - Minas Novas (MG), 1989 Foto: Alain Brugier

Camponesa e oleira - Minas Novas (MG), 1989 Foto: Alain Brugier


Mulher na feira - Minas Novas (MG), 1989 Foto: Alain Brugier


Maria Eliete Rodrigues Gomes - Tamanduรก, Jenipapo de Minas. Foto: Lori Figueirรณ


Mulher e trabalho na agricultura familiar do Alto Jequitinhonha1 Flávia Maria Galizoni Eduardo Magalhães Ribeiro

A mulher desde há muito trabalha na agricultura, entretanto, sua identidade quase sempre foi definida por suas atividades na esfera doméstica e estas, parte das vezes, não foram consideradas trabalho. Essa situação resultou em certa invisibilidade do trabalho feminino, no não reconhecimento pleno da trabalhadora rural, dificultando o seu acesso aos direitos previstos em lei e às políticas de desenvolvimento. O objetivo deste artigo é analisar a importância da participação feminina nas atividades produtivas em uma região de predominância de unidades familiares – o Alto Jequitinhonha, no Nordeste de Minas Gerais – e analisar a representação do trabalho da mulher para os membros da família em uma situação de forte migração sazonal masculina. É fruto de pesquisas de campo realizadas por um período que se estendeu entre 2000 e 2007. Na primeira etapa, foram realizados contatos e entrevistas com os Sindicatos de Trabalhadores Rurais dos municípios, entidades civis, religiosas, associações e movimentos sociais da região. Nessa fase foram levantados, definidos e confirmados os locais do estudo de campo. A segunda etapa compreendeu uma etnografia propriamente dita. Foi realizada buscando uma observação participante 2 com estada prolongada em três comunidades, escolhidas mediante os seguintes critérios: distribuição nas calhas do Jequitinhonha e seus principais afluentes, período histórico de ocupação, diversidade ambiental, densidade demográfica, migrações e disponibilidade de terras. O artigo é composto por três partes: a primeira faz uma breve revisão bibliográfica sobre o trabalho feminino no rural; a segunda discorre sobre o sistema de lavoura das famílias agricultoras no Alto Jequitinhonha; e a última analisa o trabalho feminino e seus espaços na agricultura familiar dessa região. 1 -   Uma primeira versão deste artigo foi publicada nos Anais da Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural, 2004. 2 -   Sobre método de observação participante, consultar Malinowski (1978).

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Agricultura familiar e o espaço do trabalho feminino Um dos poucos traços de consenso na definição teórica da agricultura familiar é o uso muito próprio que ela faz da mão de obra familiar e a sua flexibilidade ao combiná-la com recursos ao seu dispor (LAMARCHE, 1993; PLOEG, 2008). O total de trabalho de uma família é, quase sempre, a soma de várias jornadas: masculina, feminina, infantil e de idosos. Desta forma, não é explicativo, do ponto de vista da organização do trabalho, centrar a questão somente na figura masculina; é necessário entender a combinação de jornadas de trabalho de todos os membros da família para poder avaliar o produto final. Outro aspecto que especifica a agricultura familiar é que a família é ao mesmo tempo unidade de produção e consumo (CHAYANOV, 1974); e este fato é importante para podermos entender o significado do trabalho feminino na família de agricultores. Heredia (1979), pesquisando agricultores da Zona da Mata pernambucana, observou que todos os membros da família desenvolviam alguma espécie de atividade agrícola, porém os agricultores quase sempre afirmavam que mulheres e crianças não trabalhavam. Debruçando-se sobre essa aparente contradição, a autora se deparou então com a necessidade de definir a própria concepção de trabalho; percebeu que não são todas as atividades que eram qualificadas pelas famílias como trabalho: somente aquelas desenvolvidas no roçado recebiam essa qualificação. O roçado, espaço de domínio masculino, era o local da produção de bens essenciais para o consumo familiar; a casa, espaço de domínio feminino, era o local onde era organizada a distribuição dos produtos do roçado para uso da família; apesar do reconhecimento do esforço físico necessário para desempenhá-las, as atividades domésticas não eram consideradas trabalho. Isso porque, na concepção dos agricultores, elas só eram possíveis por causa do trabalho anterior no roçado. O consumo era assim subordinado à produção. Em consequência dessa hierarquia, considerava-se trabalho as atividades desenvolvidas na esfera produtiva, já as múltiplas tarefas desenvolvidas no espaço do consumo da família não eram consideradas trabalho. Heredia (1979) concluiu então que a oposição simbólica que havia entre roçado e casa era que definia o que era considerado trabalho, e não trabalho delimitando os espaços e papéis masculinos e femininos; mesmo quando as mulheres desempenhavam atividades produtivas no roçado, seu trabalho era avaliado como “ajuda” ao trabalho do homem. Garcia Jr. (1993) apontou que a tarefa de plantar desempenhada pelas mulheres no roçado era considerada trabalho se comparada com 38


suas atividades domésticas, porém, se comparado com as atividades masculinas no roçado, plantar não era considerado trabalho. Neste sentido, a qualificação do trabalho feminino era relacional, recebendo, muitas vezes, uma dupla avaliação. O significado de “ajuda” para o trabalho feminino também foi encontrado por Paulilo (1987) em comunidades rurais do Brejo Paraibano. Em estudo sobre trabalho e relação de gênero na agricultura nessa região, revelou que o trabalho era qualificado e remunerado a partir de quem o desempenhava: “leve” se fossem mulheres ou crianças, “pesado” se fossem homens. E essa qualificação pouco se relacionava com as características da atividade desenvolvida, uma podia ser tão árdua e cansativa quanto a outra. A diferença se expressava muito mais no campo da representação simbólica do que no esforço desprendido e na tarefa desenvolvida. Ribeiro (1993), pesquisando famílias agricultoras na Zona da Mata mineira, também chegou a uma conclusão parecida; de acordo com ele, os homens construíam uma parte de seu poder no trabalho. As tarefas masculinas possuíam maior continuidade, podiam ser expressas num produto final – construir uma cerca ou roçar um pasto, por exemplo –, e quase sempre apresentavam equivalente monetário; já as atividades designadas como femininas eram compostas de uma série de tarefas descontínuas: fazer comida, limpar a casa, cuidar das criações pequenas, lavar roupa etc. gastavam uma grande quantidade de esforços esparramados, que tinham pouco equivalente em dinheiro. Woortmann (1992) chamou a atenção para um fato importante nos estudos sobre trabalho feminino na agricultura, indicando que, talvez, houvesse um problema na formulação de questões de pesquisa: o(a) pesquisador(a) reproduzia um “discurso público” do grupo pesquisado que privilegiava o domínio masculino, deixando à margem o “discurso privado” em que o domínio masculino interagia com o domínio feminino, estabelecendo relações de gênero e, às vezes, complementaridade entre os gêneros.3 Essa hierarquia simbólica na construção de gênero e na representação do trabalho feminino e masculino no mundo do trabalho rural se expressou também nas construções de dados sobre esse universo. Aguiar (1984) indicou a dificuldade estatística de captar a participação do trabalho feminino na agricultura. Segundo a autora, havia um vácuo de teorias que concebessem o trabalho feminino realizado no espaço doméstico 3 -   A autora afirma que: “O próprio discurso acadêmico, pois, relega ao silêncio o ponto de vista feminino, mesmo quando as atividades das mulheres são cruciais para a reprodução social do grupo com um todo” (WOORTMANN, 1992, p. 42).

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como atividade produtiva. O conceito de chefe de domicílio escondia e diluía as atividades femininas. Os vários autores supracitados indicaram que divisão social e sexual do trabalho está na raiz dos processos de diferenciação de gênero nas famílias de agricultores. Assim, cabe entender as relações de trabalho tanto no que diz respeito ao espaço interno da família – para dessa forma compreender o papel da mulher e o do homem – quanto compreender o significado que mulheres, homens e a sociedade envolvente atribuem ao que é trabalho e a relação de poder que constroem a partir dessa definição.

Lavoura e trabalho no Alto Jequitinhonha A calha alta do rio Jequitinhonha4 está localizada no Nordeste de Minas Gerais. É uma região marcada pela unidade familiar na agricultura – aproximadamente 80% dos estabelecimentos rurais –, sistema de lavoura de pousio, forte migração sazonal, por uma produção de alimentos centrada no autoconsumo e em circuitos curtos de comercialização dos produtos agrícolas. Os terrenos familiares são pequenos, indicando uma intensa partilha entre herdeiros. O Alto Jequitinhonha tem um relevo muito específico, composto por duas gradações: grotas e chapadas. As grotas são vales de áreas úmidas propícias para a lavoura, onde historicamente as famílias de lavradores se assentaram. Chapadas são planaltos pouco férteis, com escassas fontes de água, e quase sempre receberam apropriação comunitária por famílias e comunidades que elaboraram formas muito refinadas de gestão de seus recursos da natureza. Apesar de, nas últimas décadas, esse processo de organização ter sido fortemente abalado pelo processo de expropriação da terra conduzido por empresas e governos, a combinação entre chapada e grota é um referencial importante para compreender como famílias de lavradores construíram suas unidades produtivas.5 O clima é caracterizado por duas estações muito marcadas designadas pelas famílias de agricultores de seca – o período da estiagem – e águas, que é a época das chuvas. Cada uma dessas épocas está vinculada a atividades 4 -   A área designada neste artigo por Alto Jequitinhonha corresponde à parte do Vale acima da foz do rio Araçuaí e do rio Itacambiruçu, refere-se mais precisamente aos municípios de Turmalina, Chapada do Norte, Berilo, Minas Novas, José Gonçalves de Minas, Leme do Prado, Botumirim, Cristália e Grão Mogol. 5 -   Sobre a tomada de terras no Alto Jequitinhonha ver Calixto (2006) e Ribeiro e Galizoni (2007).

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produtivas muito específicas, grosso modo: lavoura nas águas e beneficiamento da produção na seca. Nas águas a lavoura é voltada mais para as culturas anuais: milho, feijão, mandioca, cana e o andu. Quando termina o tratamento desses plantios – entre os meses de março e abril –, as famílias passam a investir mais na produção de horta e no beneficiamento de produtos da indústria doméstica rural, como rapadura, farinhas de milho e de mandioca. Na agricultura familiar do Alto Jequitinhonha o sujeito é quase sempre coletivo: a família, no interior da qual cada membro responde por uma tarefa. Ao final, o conjunto de produtos e serviços é o resultado da soma do esforço combinado que envolveu jornadas de homens, mulheres, crianças e idosos.6 Para compreender a participação do trabalho feminino na lavoura da família foi preciso compreender os trabalhos necessários para formar as roças.7 Nas etapas das lavouras o trabalho feminino estava distribuído geralmente da seguinte forma: • derrubada e roça: era um serviço masculino, que a mulher fazia com restrições se fosse viúva, separada, sozinha ou se não tivesse filhos adultos; • queimada: colocar fogo é uma tarefa masculina, mas que a mulher também podia desempenhar; já as queimadas da palhada (restos da roça do ano anterior), a mulher podia fazer sem problema, sendo inclusive uma tarefa dividida com os homens; • destoca: podia ser realizada pela mulher, mas normalmente essa atividade é classificada como masculina; • plantio: tarefa masculina e feminina, trabalho realizado em conjunto; • capina: eram feitas duas capinas, ambas realizadas em conjunto por homens e mulheres; • colheita: tarefa feminina. Pôde-se observar que as mulheres participavam ativamente do trabalho na lavoura e detinham grande conhecimento sobre as práticas produtivas. A forte migração sazonal masculina existente na região interferia 6 -   Sobre a dinâmica familiar camponesa e suas especificidade, há uma longa e diversa bibliografia. Ver principalmente: Chayanov (1974), Kautsky (1972), Garcia Jr., Heredia, Van der Ploeg (2008); sobre este tema no Jequitinhonha, consultar Ribeiro e Galizoni (2000), Noronha (2003); Galizoni (2007) e Ribeiro (2007). 7 -   O trabalho feminino no Alto Jequitinhonha aparece em uma perspectiva distinta da encontrada em boa parte da literatura sobre campesinato. Moura (1978), Woortmann (1995), Garcia Jr. (1983) e Seyfert (1985) encontraram realidades diferentes.

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nas tarefas de derrubar, roçar e colocar fogo; as mulheres arrumavam camarada (diarista) para realizar esses trabalhos quando os homens migravam, ou então elas mesmas faziam o serviço. Boa parte das vezes, a concretização dessas tarefas ocorria com a combinação dessas duas opções, porque não era sempre que a família tinha recurso para pagar camarada, assim a mulher assumia a direção e efetivação desse trabalho. Também a colheita tornou-se uma atividade quase que exclusivamente feminina, porque muitas vezes efetuada no período em que parte dos homens viaja para o trabalho temporário em outras regiões de Minas Gerais e do país. As mulheres casadas e com filhos praticamente não migravam e assumiam maiores responsabilidades no cuidado da lavoura, das criações e na manutenção da família. Uma questão que se colocou era se a valorização do trabalho feminino e sua atuação em áreas consideradas de preponderância masculina representavam alterações nas relações de poder entre homens e mulheres. Analisando a migração temporária de trabalhadores do Jequitinhonha, Martins (1986) afirma que ela só era possível com o sobretrabalho de mulheres e crianças que permanecem na terra realizando as atividades necessárias para manutenção da lavoura familiar. Eigenheer (1980) apontou que, em determinadas situações, quando havia redefinições das relações locais de trabalho, também podiam ocorrer redefinições da divisão de trabalho no interior da família e no significado do papel social entre homens e mulheres.

A dubiedade do trabalho feminino A rotina de trabalho das mulheres lavradoras no Alto Jequitinhonha era uma “lida sem fim”. Começava diariamente bem cedinho, entre quatro e meia e cinco horas da manhã, buscando água para o consumo diário da família, percorrendo, muitas vezes, uma grande distância para se abastecer; segundo as lavradoras: “Água buscada não há o tanto que chegue”. Depois vinham os outros afazeres: fazer café, arrumar a casa, molhar a horta, lavar roupa, cuidar das criações pequenas, lavar as louças, fazer o almoço e levá-lo para o marido e filhos que saíram cedo para o trabalho da roça. Levava o almoço e ficava para trabalhar a tarde toda na lavoura, enfrentando o mesmo serviço que os homens. Era também a mulher quem buscava lenha para abastecer a família durante a semana.

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É importante observar que, quando havia filhas adultas, algumas auxiliavam a mãe e outras trabalhavam junto com o pai e os irmãos na lavoura. Este foi o caso de Eva, lavradora do município de Turmalina. Quando solteira, ela trabalhava direto com o pai na lavoura, e sua irmã auxiliava a mãe nos afazeres em casa. Eva afirmou que cuidar somente da lavoura é um serviço melhor, porque era um serviço só, concentrado, com começo, meio e fim, do qual se via o resultado final materializado; enquanto o trabalho na casa era “um tanto de serviços picados”, descontínuos: serviços miúdos que, somados, representam uma gama imensa de atividades. O relato de Josina, a seguir, também é esclarecedor do espaço concreto do trabalho da mulher na jornada da família: Quando eu estava com a idade de dez anos, o meu pai morreu, nós ficamos. Eu era mais sofredora, porque tinha que ajudar minha mãe a trabalhar para criar os outros menininhos que ficaram. Eu não era a mais velha, a que era mais velha do que eu ficava dentro de casa e eu trabalhava mais minha mãe. Era tanto, que minha mãe me levava para trabalhar junto com ela para os outros; chegava lá, se fosse bastante camarada na roça, eu não aguentava trabalhar no meio deles, eles me punham para carregar água, e eu carregava água; quando chegava com a vasilha de água era a continha deles beber e eu voltava de novo, para buscar mais. Quando eu fui apanhando idade, ficando mocinha, eu sabia fazer todo serviço, eu sabia carpir, sabia plantar, sabia qualquer serviço... Roçava, apanhava coivara, depois que queimava, qualquer serviço que me pusessem: tocar roda para fazer farinha, mexer com gado... Minha vida é uma lida sem fim, eu sempre trabalhei. (Josina, lavradora, município de Cristália)

Na região pesquisada, quando alguém, homem ou mulher, queria elogiar o ânimo de trabalhar de alguma mulher, afirmava: “Fulana é muito boa de serviço, roça igual homem”. Seu João, lavrador do município de Minas Novas, ao se referir ao tanto que sua mulher trabalhava, revelou: “Ai de mim se não fosse ela, sou fraco, não tenho dinheiro para pagar camarada”. Havia o reconhecimento do trabalho feminino, ou seja, o trabalho da mulher na roça era aceito como trabalho; mas como ele era avaliado

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pelos homens? Pela afirmação citada, percebe-se que como auxiliar ao do homem, substituindo o camarada, ou em casos extremos igualando-se aos homens, mas não como um trabalho independente. E as mulheres? Como avaliam seus esforços na lavoura? Elas construíam uma identidade mais positiva de seu trabalho na esfera familiar, mas muitas vezes encontraram dificuldades de afirmá-la externamente, como em casos de aposentadoria rural. Muitas lavradoras, ao encaminharem seus processos de aposentadoria, declaravam como profissão “doméstica”, e por isso tiveram dificuldades de acesso ao benefício, o que demandou várias campanhas dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais da região para esclarecimento e sensibilização das mulheres sobre seus direitos. Havia uma avaliação contraditória do trabalho feminino na lavoura do Alto Jequitinhonha. Por um lado era valorizado tanto na perspectiva dos homens quanto das mulheres, considerado importante. Os homens afirmavam que preferiam se casar na região porque mulheres de outros lugares não se adaptariam ao ritmo de trabalho de lá. Segundo um lavrador do município de Chapada do Norte: As mulheres daqui fazem de tudo um pouco, não mexem só com uma coisa: mexem com criação, fazem cerca se precisar, buscam água, areiam panela... O homem sai para trabalhar e a mulher sabe fazer os serviços.

Era comum as mulheres afirmarem, na presença de seus maridos, que “no serviço da lavoura nenhum homem me deixa para trás”; e os homens confirmavam que o serviço da mulher é muito mais fatigante: “quando pesa pro homem, pra mulher é muito mais pesado”. Porque, além das atividades domésticas, a mulher trabalhava muito na roça, participando praticamente de todas as etapas. Por outro lado, isso representava uma sobrecarga de atividades para elas, que tinham de realizar tarefas domésticas e tarefas na lavoura; neste sentido, as mulheres unificavam em si mesmas a dicotomia casa e roça. Não se percebeu explicitamente a clássica divisão e oposição entre trabalho masculino e feminino no que diz respeito ao trabalho na lavoura e até mesmo com o gado. Inclusive, atividades consideradas em outras regiões do estado de Minas Gerais como estritamente masculinas eram realizadas por mulheres no Alto Jequitinhonha: lidar com o gado, campear, roçar o mato e até mesmo fazer cerca. Em quase todos os relatos o

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trabalho na roça parece indistinto entre homens e mulheres, com exceção da destoca, no trabalho com foice e, em alguns casos, no colocar fogo. Mas, mesmo esses serviços, quando era preciso, a mulher fazia – “a minha filha também destoca” foi uma afirmação feita por vários lavradores. O reconhecimento do trabalho feminino na lavoura não implicava mudanças significativas nas relações entre homens e mulheres. Isso porque, simbolicamente e na prática, o trabalho masculino gerava produtos e bens trocáveis e socializáveis, e o trabalho feminino, por ser fragmentado e descontínuo – e por isso mesmo mais intenso –, gerava menos produtos por unidade trabalhada (RIBEIRO, 1993). A qualificação do trabalho feminino ou masculino não se fazia pelo tanto de esforço desprendido, e sim pelo produto final. A identidade feminina ou masculina não era construída somente pelo tipo de trabalho realizado, muitas vezes os trabalhos eram qualificados posteriormente, se fossem realizados por homens ou mulheres, como indicou Paulilo (1987). Dessa forma, o trabalho feminino na lavoura era reconhecido e considerado importante, mas, quando confrontado com o trabalho temporário masculino realizado nas regiões canavieiras do interior paulista, era considerado mais “leve”, porque realizado em condições melhores que este. Dessa forma, havia uma redefinição do trabalho feminino na unidade familiar, mas também havia uma ressignificação do trabalho masculino que enfrentava a dureza de trabalhar fora, sem o conforto da família. Apesar de as mulheres trabalharem na lavoura familiar, os agricultores afirmavam que o “sustento vem de São Paulo”, ou seja, do trabalho masculino realizado em outras regiões. Nesse sentido, o trabalho na lavoura se tornava simbolicamente acessório na manutenção da família, assim como o trabalho das mulheres. Apesar das reorganizações na divisão de trabalho familiar, o trabalho masculino era considerado preponderante. Quando o homem não migrava ou, no correr do ciclo familiar, deixava de migrar, seu trabalho era reavaliado na composição do trabalho familiar e, muitas vezes, nessas situações, os trabalhos masculino e feminino eram significados como complementares, mas coordenados pelo homem. A avaliação do trabalho feminino pelos membros da família lavradora, no Alto Jequitinhonha, contava com uma dubiedade muito grande. Como a mulher participava tanto das atividades domésticas quanto das atividades produtivas na roça, sua jornada de trabalho combinava essas duas esferas. O trabalho feminino continha aspectos contraditórios porque em parte era representado como cativo e em parte como espaço de

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afirmação da identidade feminina. Cativo porque era sempre um trabalho subordinado à família e ao marido. E família, nesse contexto, significava um trabalhador coletivo. Por mais que a mulher trabalhasse, realizava suas atividades num espaço simbólico e cultural marcado, onde seu papel também era demarcado. Bison (1995), analisando mulheres migrantes do Jequitinhonha em São Paulo, demonstrou claramente a força das relações culturais: apesar de associarem o Jequitinhonha a trabalho intenso e subordinação irrestrita à família, essas mulheres dificilmente rompiam com seu lugar de origem, enviando mensalmente parte significativa de seus salários, e quase sempre acalentavam a vontade de retornar. O trabalho na lavoura representava a afirmação de uma identidade positiva para as mulheres, abrindo um leque de atuação e participação públicas para elas: elas também trabalhavam e por isso podiam se apropriar de alguns direitos construídos nessa sociedade por meio do trabalho. Por exemplo, o acesso à terra. No Alto Jequitinhonha, posse e domínio eram legitimados principalmente pelo trabalho que a família realizava na terra. Como o direito sobre a terra era construído por meio do trabalho, a mulher tinha possibilidade de ter acesso à terra porque depositava trabalho sobre ela, realizando praticamente os mesmos serviços que os homens. Mas, se a mulher no Alto Jequitinhonha tinha possibilidade de acesso à terra, este não era sem conflito. E a mulher, em casos de demanda, levava desvantagens; a não ser quando era casada, ou se, viúva ou solteira, tivesse filhos maiores que garantissem concretamente o espaço de trabalho. As mulheres lavradoras do Alto Jequitinhonha criaram, além de uma trajetória constante de trabalho, possibilidades de organização. No período pesquisado, boa parte dos sindicalizados em dia nos Sindicatos de Trabalhadores Rurais dessa região eram mulheres; a presença delas em associações e outras organizações voltadas para a saúde, água e educação era preponderante, inclusive ocupando cargos diretivos, antes mesmo que as cotas femininas se tornassem praxe. Eram as mulheres que, permanecendo na terra, reafirmavam as urdiduras familiares e mantinham canais importantes de organização comunitária. O trabalho feminino na agricultura camponesa do Alto Jequitinhonha estava envolvido em uma trama social complexa: impossível de ser abordado por um só ângulo, impossível de ser analisado em separado, sem compreender as relações familiares de produção. As lavradoras são sujeitos singulares, que trazem em suas vidas e corpos a marca do trabalho.

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Flávia Maria Galizoni é antropóloga, doutora em Ciências Sociais, professora adjunta do Instituto de Ciências Agrárias da UFMG, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Apoio à Agricultura Familiar. Eduardo Magalhães Ribeiro é economista, doutor em História, professor associado do Instituto de Ciências Agrárias da UFMG; pesquisador CNPq, bolsista Fapemig, pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Apoio à Agricultura Familiar.

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Antônio Raimundo Costa - Jenipapo de Minas (MG) Foto: Lorí Figueiró


O processo de mecanização da agroindústria canavieira: histórico, motivações e impactos sobre os trabalhadores temporários Juliana Biondi Guanais

O presente trabalho tem dois objetivos principais: analisar o processo de migração temporária para as usinas de açúcar e álcool por parte de trabalhadores rurais advindos, sobretudo, do Vale do Jequitinhonha (Norte de Minas Gerais) e dos estados do Nordeste do país; e analisar o “atual” processo de mecanização das lavouras de cana-de-açúcar, que pode ser visto como um dos resultados do processo de reestruturação produtiva pelo qual passa o setor sucroalcooleiro desde meados da década de 1980.

Alguns aspectos das migrações temporárias: em busca do assalariamento na agroindústria canavieira Antes de dar início à análise, faz-se importante abordar – ainda que de maneira breve e sintética – quem são essas pessoas que buscam trabalho nas usinas de cana-de-açúcar, de onde partem, para onde vão e os motivos que impulsionam esses deslocamentos. Em geral, os cortadores de cana são migrantes de outras regiões do país – principalmente do Nordeste e do Norte de Minas Gerais – que vão trabalhar para as usinas de açúcar e álcool localizadas, sobretudo, no interior do estado de São Paulo.1 Na grande maioria dos casos, esses trabalhadores são do sexo masculino e jovens, e acabam por se deslocar quase todos os anos a partir do mês de março (ou abril, dependendo da data do início da safra) para as cidades onde trabalharão. Os migrantes permanecem, em média, de oito a dez meses nessas localidades, residindo nos alojamentos coletivos das usinas, em pensões das “cidades-dormitórios”, ou em casas alugadas. Eles retornam para sua terra natal somente no fim de novembro ou dezembro, após o término da safra.2 1 -  É importante assinalar que, com a atual expansão dessas usinas, estas vêm se alocando em outras regiões, que não aquelas tradicionalmente utilizadas, como Mato Grosso, Rio de Janeiro, Goiás e Sul de Minas Gerais, o que acaba por alterar a cartografia dos movimentos migratórios. 2 -  A temática da migração foi bastante trabalhada em SILVA (1999) e MENEZES (2002).

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Geralmente, essa força de trabalho é recrutada pelos “gatos”, os responsáveis pela contratação dos trabalhadores em suas próprias regiões de origem. Encontrando-se destituídos de meios reais de sobrevivência em sua terra natal, e muitas vezes sem qualquer tipo de alternativa, os trabalhadores veem-se obrigados a aceitar o trabalho no corte da cana nas diferentes usinas do país por ser essa uma atividade que acaba por assegurar sua renda e, consequentemente, a sobrevivência de si e de suas famílias. Em seus estudos sobre as migrações do campo para a cidade, Eunice Durham (1984; 2004) pondera que tais deslocamentos não decorrem, em geral, de uma situação anormal de fome ou miséria; ao contrário, para a autora a migração aparece como uma resposta a condições normais de existência. “O trabalhador abandona a zona rural quando percebe que ‘não pode melhorar de vida’, isto é, que a sua miséria é uma condição permanente. Isto não quer dizer que calamidades naturais ou acidentes não sejam fatores que precipitem a emigração” (DURHAM, 2004, p. 170). Ou seja, na opinião da autora, na maioria das vezes, a migração é impulsionada por uma situação desfavorável, que é vista como permanente pelos próprios trabalhadores. Nas palavras da autora, Os migrantes explicam sempre a migração como uma tentativa de “melhorar de vida” [...] Limitam-se em geral a dizer que migraram porque “a vida lá era difícil”, “não tinha emprego”, “pagavam pouco” [...] a emigração é provocada por tensões que se manifestam no campo econômico e se traduzem em salários baixos, rendimento insuficiente da produção agrícola e falta de emprego remunerado como alternativa [...] O trabalhador abandona a zona rural ou os pequenos centros urbanos quando percebe que “não pode melhorar de vida”, isto é, que sua miséria é uma condição permanente [...] A esses aspectos negativos se opõe a expectativa positiva das possibilidades que a vida urbana na agricultura “do sul” poderá propiciar (DURHAM, 2004, p. 188).

A realidade específica dos trabalhadores rurais que buscam o assalariamento temporário nas usinas de açúcar e álcool também pode ser lida à luz das reflexões de Durham. Da mesma forma que os trabalhadores entrevistados pela autora nas décadas de 1960 e 1970, a maior parte dos 52


cortadores de cana dos dias de hoje também deixou sua região de origem em busca de emprego, emprego esse que muito dificilmente é encontrado em sua terra natal. Sem trabalho e sem remuneração, muitos trabalhadores buscam serviço em outras regiões do país, e o trabalho no corte de cana aparece como uma das alternativas. Assim, diante da necessidade de viver da venda de sua força de trabalho, os trabalhadores rurais buscam o “mundo do emprego”, que não está em seu universo local, mas em outra região. A alternativa para tais pessoas é migrar, é “ir para o Sul” (GARCIA Jr., 1989, p. 202).3 Em seu estudo, Garcia Jr. (1989) demonstrou que o assalariamento temporário nos centros urbanos (em geral no Sudeste do país) é visto pelos próprios trabalhadores rurais como uma estratégia de reprodução de sua condição camponesa. “Ir para o Sul”, como dizem os trabalhadores, tornou-se uma possibilidade para eles desde o final dos anos 1940, uma vez que o deslocamento dos homens da unidade doméstica permitia reequilibrar o orçamento familiar em ano de “inverno ruim” (variações adversas no clima e na produtividade do ciclo agrícola) ou quando houvesse necessidade maior de dinheiro. “O trabalho remunerado, no Sul, dos homens da unidade doméstica permitia obter a renda necessária para fornecer a feira4 dos membros da unidade doméstica que permaneciam no Norte” (GARCIA Jr., 1989, p. 151). Além de significar uma remuneração regular que não depende das flutuações do ciclo agrícola, para esses homens, o emprego no “Sul” representa uma renda monetária superior aos rendimentos obtidos na agricultura do “Norte” e, por isso, é muito valorizado. Assim, tanto para 3 -   É importante dizer que há todo um debate em torno dos sentidos e dos significados da migração, o qual infelizmente não poderá ser aqui reproduzido em função dos limites do presente artigo. Entretanto, faz-se necessário pelo menos delinear alguns aspectos deste debate. Para alguns pesquisadores (LOPES, 1971; SINGER, 1973; DURHAM, 1984), as migrações se resumem à transferência de força de trabalho entre as regiões menos desenvolvidas – expulsoras – e as mais desenvolvidas, onde atuam fatores de atração; ou entre setores arcaicos e modernos, de forma que os agentes sociais aparecem como seres passivos de um processo determinado exteriormente pela estrutura social, ou pelo processo de acumulação capitalista. Já para outros pesquisadores (GARCIA Jr., 1989; MENEZES, 1985; 2002), as migrações não podem ser vistas somente como resultado da inviabilidade das condições de existência dos camponeses, já que são parte integrante de suas próprias práticas de reprodução. De acordo com essa segunda interpretação, os migrantes não são agentes passivos dos fatores de “expulsão” ou “atração”, mas participam ativamente de um processo, que não é exatamente o processo migratório, mas sim o de reprodução de suas condições de vida. “Os migrantes rurais nordestinos não foram apenas reflexo de forças econômicas determinadas externamente, embora estivessem imersos nelas. Eles também foram agentes do seu próprio movimento e dessa forma, através de estratégias diversas, contribuíram na moldagem do processo migratório” (SILVA; MENEZES, 2006, p. 5). 4 -   De acordo com o autor, as feiras são o espaço onde os indivíduos negociam e adquirem produtos para o consumo da unidade doméstica a que pertencem. O consumo doméstico semanal está, portanto, materializado nas feiras. Sobre a importância das feiras para a reprodução dos trabalhadores rurais nordestinos, ver GARCIA (1984).

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quem pensa em ficar no “Norte” como para quem pensa em mudar-se de forma definitiva para o “Sul”, o assalariamento temporário no Sudeste apresenta-se como uma fase necessária do ciclo de vida (GARCIA Jr., 1989). Contudo, a despeito de ser vista pelos trabalhadores como uma das únicas alternativas de sobrevivência, a migração não deixa de estar associada a uma expectativa positiva relacionada com a possibilidade de mudança de vida. A migração traz para os agentes sociais envolvidos com ela a chance de “melhorar de vida”, de “viver com mais conforto”, e de “ganhar mais”. Nas palavras de Silva e Menezes (2006), A migração, enquanto processo, responde às necessidades materiais de sobrevivência (comida, roupa, remédios) e também às necessidades de manter vivas as ilusões (de melhoria, de ascensão social, de projetos de vida). A compreensão dessa dialética afasta os dualismos e as excludências, no sentido de que o real, o palpável, é verdadeiro; e o irreal, o invisível, é falso. As representações sociais (símbolos, imaginário) são elementos do real, portanto necessários. A ilusão é necessária e ela se apoia sobre uma base social (SILVA; MENEZES, 2006, p. 5-6).

Assim, premidos pela necessidade de sobreviver, mas sempre acompanhados de sonhos e expectativas, todos os anos, milhares de homens migram com destino às cidades em que irão trabalhar como cortadores de cana. É importante ressaltar aqui que raramente esses trabalhadores abandonam suas terras com intenção inicial de nunca mais regressar.5 Na maioria das vezes, esses homens migram com o objetivo de formar um pecúlio, isto é, uma reserva a ser aplicada em seu local de origem quando voltarem. O envio de dinheiro à família que não migrou também é outra importante motivação da migração temporária.6 Isso faz sentido se lembrarmos que em geral não é a família inteira que migra, mas somente parte dela. Como mencionado anteriormente, normalmente são os homens que se deslocam, ficando as mulheres, as 5 -   “O migrante não abandona a origem para se integrar no destino, ao contrário, a migração representa um ponto de contato permanente entre um e outro local” (SILVA; MENEZES, 2006, p. 6). 6 -   De acordo com Durham (1984, p. 210-211), “A migração e o projeto de ascensão social que a motiva são, portanto, empreendimentos familiais [...] A possibilidade de ascensão de um membro da família representa uma melhoria no nível de vida de todos, na medida em que se conserva a unidade do grupo doméstico”.

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crianças e os idosos nas comunidades de origem. A opção pela migração de poucos membros do grupo familiar se dá pelas dificuldades e pelos custos de transporte, moradia e manutenção nas regiões de destino, que implicam altíssimos gastos para os trabalhadores. O mais comum é que o marido migre primeiro, deixando a família com os demais parentes. Em alguns casos, só depois de obter uma colocação relativamente estável e minimamente rendosa é que aquele que migrou tem a oportunidade de buscar o restante da família para residir consigo (DURHAM, 1984; 2004; GARCIA Jr., 1989).7 No entanto, tanto na movimentação de indivíduos quanto de famílias, a direção do deslocamento depende, em grande medida, da tradição migratória do grupo de relações primárias original (DURHAM, 1984; 2004; MENEZES, 2002). Em geral, as pessoas migram para as localidades onde tenham conterrâneos, amigos ou parentes, ou para locais que lhes foram indicados por outros. De acordo com Durham (1984), mesmo as migrações que implicam mudanças radicais de estilos de vida “são efetuadas dentro de um universo de referência organizado nos moldes da comunidade rural. Vai-se para onde está a família do irmão do pai, os antigos vizinhos, os amigos de infância” (DURHAM, 1984, p. 135). E a migração para o trabalho no corte da cana não é diferente. Em muitos casos, aqueles que já atuaram alguma vez como cortadores de cana indicam aos amigos as usinas em que trabalharam,8 os turmeiros que os recrutaram, os locais de saída dos ônibus,9 etc. Formam-se redes de informações e de solidariedade entre os migrantes, o que permite não só a comunicação e a troca de informações entre eles, mas também o auxílio mútuo (MENEZES, 2002; NOGUEIRA, 2010). 7 -   Neste ponto, é importante mencionar que, no caso específico dos cortadores de cana, a migração da família inteira é muito difícil de ocorrer. Isso porque aqueles homens que vão trabalhar como cortadores de cana para as usinas e que levam suas esposas para residir consigo durante o período da safra são obrigados a alugar casas nas cidades de destino, já que são impossibilitados de residir nos alojamentos cedidos pelas usinas pelo fato de estarem acompanhados. Isso faz com que fique ainda mais caro se manter nas cidades de destino, uma vez que não somente o aluguel, mas todos os gastos se multiplicam pelo número de familiares que residem juntos. 8 -   A esse respeito, escreveu Durham: “É frequente o fato de possuir parentes no local que determina a escolha do destino. O migrante que abandona a zona rural [...] é levado a escolher baseado mais na proximidade das relações sociais do que na proximidade física ou compatibilidade das atividades econômicas que espera exercer. Quando o trabalhador rural se desloca à procura de emprego, segue as rotas que foram seguidas por parentes e amigos antes dele” (DURHAM, 1984, p. 137). 9 -   Os “locais de saída dos ônibus” são os lugares nas comunidades de origem em que os trabalhadores que migrarão para o corte da cana se reúnem para partir em direção às cidades em que vão trabalhar.

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O processo de mecanização da agroindústria canavieira: um breve histórico Até aqui foi apresentado de forma breve como se dá o processo de migração temporária dos trabalhadores rurais – principalmente oriundos do Norte de Minas Gerais e dos estados do Nordeste –, que todos os anos deixam seus locais de origem em busca de trabalho assalariado nas usinas de açúcar e álcool localizadas em outras regiões. Como é sabido, a lavoura de cana-de-açúcar é uma das culturas agrícolas que mais emprega trabalhadores no Brasil. Entretanto, de alguns anos para cá essa realidade vem se alterando significativamente. Sobretudo a partir de meados dos anos 2000, muitas usinas diminuíram significativamente o número de cortadores de cana contratados em função da mecanização das atividades. Mas quando exatamente se deu o início de tal mecanização? Quais as razões que justificam esse processo? Quais são as consequências e os impactos gerados sobre os trabalhadores? Essas e outras são algumas das questões que serão abordadas nesta segunda parte do presente artigo. Ao longo de seu desenvolvimento no Brasil, a agroindústria canavieira passou por vários processos de reestruturação que atingiram, sobretudo, as plantas industriais e os equipamentos (IANNI, 1984). Deve-se ressaltar que o processo de reestruturação produtiva no setor sucroalcooleiro foi amparado pelo Estado brasileiro por intermédio de subsídios e de créditos oferecidos aos usineiros, os quais tiveram suas dívidas reescalonadas. É importante mencionar ainda que, fora das empresas, a reestruturação sucroalcooleira se evidencia no movimento de fechamento de unidades produtivas, reconcentração de capitais e diversificação dos investimentos. Já no interior das frentes e ambientes de trabalho, ela se expressa na modernização tecno-organizacional com a intensificação do uso da informática, da automação industrial e da mecanização agrícola, na flexibilização da produção agrícola e industrial, na terceirização de determinadas atividades e fases do ciclo produtivo, no rigor do controle de qualidade e no redirecionamento das políticas de recursos humanos. Assentada basicamente na introdução de inovações na base técnica, desde então, a reestruturação tem buscado tornar os empresários cada vez mais aptos para enfrentar as novas regras de produção e de circulação impostas, principalmente, pelo mercado internacional, as quais estão centradas no incremento da produtividade, na melhoria da qualidade dos produtos e na redução dos custos de produção.

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Pensando em atender as exigências atuais de produtividade e qualidade impostas pelo mercado, as empresas redefinem as suas estratégias administrativas, isto é, investem seus esforços em duas direções na gestão dos recursos humanos: de um lado, racionalizam o uso de recursos introduzindo modificações nos processos de trabalho, valendo-se, principalmente, de inovações tecnológicas poupadoras de força de trabalho – a mecanização das atividades agrícolas e automatização do controle dos processos em geral; de outro lado, procuram formar um contingente de trabalhadores fixos, disciplinados, tecnicamente qualificados e, sobretudo, “envolvidos” com a produção sucroalcooleira. No caso específico do setor sucroalcooleiro nacional, as primeiras atividades a se tornarem mecanizadas foram as de preparo do solo e o plantio. Nestas, os efeitos da mecanização foram principalmente reduzir o tempo de realização das atividades e o número de trabalhadores e aumentar significativamente a intensidade do trabalho.10 A mecanização do plantio fez com que tal atividade – no passado desempenhada por homens auxiliados por animais – passasse a ser realizada a partir de uma combinação entre força de trabalho humano e máquinas. Em momento posterior – meados da década de 1960 – veio a mecanização da colheita da cana, atividade que compreende três fases interdependentes: o corte, o carregamento e o transporte da cana cortada até a usina. Deve-se destacar que a mecanização da colheita se deu lentamente e por partes, já que primeiramente ocorreu a mecanização do carregamento e do transporte da cana colhida e só posteriormente se deu a mecanização do corte, etapa central da colheita. É importante dizer que o processo de mecanização do corte da cana ocorreu por último em função das inúmeras limitações técnicas apresentadas pelas máquinas colheitadeiras da época. Como sabemos, desde sua introdução no Brasil (e até os dias de hoje), existem limites técnicos intransponíveis para a mecanização do corte, tais como a declividade e as falhas dos terrenos. Além disso, não se pode esquecer também que a colheita mecanizada pressupunha uma série de modificações por parte das usinas que iam desde o plantio até o recebimento da cana, modificações essas que, para serem postas em 10 -   Nas palavras de Alves (1991, p. 60), “As inovações mecânicas [...] afetam fortemente a redução do tempo de trabalho, dado que elas agem tanto no sentido da redução do tempo de trabalho, quanto no aumento da intensidade do trabalho. Quando as inovações mecânicas são aplicadas no plantio e na colheita, elas reduzem o tempo de produção, porque abreviam o tempo em que o produto seria plantado ou seria colhido unicamente com a força de trabalho”.

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prática, exigiam vultosos investimentos que não eram acessíveis a todas as empresas naquela época. De acordo com Alves (1991), as primeiras máquinas colheitadeiras introduzidas no Brasil datam do final da década de 1960. Entretanto, a despeito de já apresentarem um rendimento superior ao obtido por intermédio do corte manual da cana, essas máquinas ficavam restritas a um número reduzido de produtores, os quais naquela época as utilizavam somente no início da safra como forma de rebaixar os salários dos cortadores de cana, bem como ameaçá-los e pressioná-los. Essas primeiras máquinas ficaram conhecidas como “máquinas de vitrines” (GRAZIANO DA SILVA, 1980), já que entravam em operação somente no início da safra e em seguida eram substituídas pelos homens e postas “de volta na vitrine”. As razões para esse primeiro estímulo à mecanização do corte da cana são explicadas por Alves (1991). De acordo com ele, Nesta etapa, início da década de 1970, o incentivo à mecanização do corte se devia a perspectivas pessimistas quanto à existência, no estado de São Paulo, de um contingente de trabalhadores assalariados temporários, capaz de dar conta do corte sem pressionar os salários para cima. Nesta etapa, tanto o IEA quanto a Coopersucar emitiam relatórios dando conta da possibilidade de falta de braços a uma lavoura que crescia a elevadas taxas de crescimento. Porém, o processo de modernização da agricultura, no Brasil, e a dinâmica populacional se encarregaram de resolver o problema, pondo à disposição do setor um enorme contingente de trabalhadores, nas cidades dormitórios da região. O qual é anualmente acrescido de um elevado número de trabalhadores vindos de várias partes do país, principalmente do Vale do Jequitinhonha, que afluem à região e pressionam os salários para baixo. Isto significa que o incentivo à mecanização pela falta de braços para o corte, com a consequente tendência à elevação dos salários, já não se verifica (ALVES, 1991, p. 80-81).

Se a suposta “falta de braços” para a lavoura não consistiu em um problema real de fato, por que as usinas resolveram introduzir a mecanização na colheita da cana?

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Num primeiro momento, a partir de 1975, a mecanização da colheita – incluindo-se aí, como já foi dito, a mecanização do corte – acabou sendo impulsionada graças ao apoio de programas governamentais, tais como o Proálcool, os quais incentivaram a expansão e o crescimento das lavouras de cana. Em outras palavras, para que fosse possível expandir e aumentar a produtividade dos canaviais era necessário introduzir as máquinas. Não é difícil de imaginar que a introdução do corte mecânico gerou como uma das consequências a substituição dos trabalhadores assalariados pelas máquinas. Essas teriam de ser mais lucrativas, isto é, teriam de compensar os gastos que até então os usineiros despediam com os salários dos cortadores de cana. Foi nesse contexto que surgiram novos fabricantes de máquinas colheitadeiras que passaram a produzir variedades mais modernas, as quais, por sua vez, elevaram ainda mais a performance das máquinas e ampliaram as diferenças de custo do corte mecânico em relação ao manual11 (ALVES, 1991). A melhoria da performance do maquinário não se deveu somente aos avanços técnicos das máquinas, mas também à incorporação, por parte das usinas, de toda uma infraestrutura de apoio à mecanização do corte da cana. Sem essa infraestrutura – que envolveu novos equipamentos e homens – não teria sido possível aumentar de forma tão significativa a produtividade das máquinas. Alves (1991) cita exemplos numéricos: “Em 1980, verificou-se que o rendimento médio de uma colhedeira de cana atinge 200 toneladas por dia em 10 horas de trabalho, substituindo aproximadamente 30 homens/dia,12 com produção superior a 6 toneladas/dia” (ALVES, 1991, p. 82). Mas é preciso deixar claro que a mecanização da colheita não se deveu somente aos incentivos de programas governamentais. Em sua tese de doutorado, Francisco Alves (1991) deixou explícito que 11 -   “Essas novas máquinas colheitadeiras de cana permitiram elevar a produtividade das máquinas de 20 toneladas por hora em 1976 para 41 toneladas por hora em 1980 e 60 toneladas em 1987. Ao mesmo tempo, a diferença de custo do corte mecânico, em relação ao manual, se elevou de 7,2% em 1976, observado por GRAZIANO DA SILVA, para 50%, em um caso observado em 1987...” (ALVES, 1991, p. 82). 12 -   Nos dias de hoje, devido aos contínuos aprimoramentos técnicos direcionados à produção das máquinas empregadas nos canaviais, estima-se que uma colheitadeira seja capaz de substituir o trabalho de 90 cortadores de cana. Além de apresentarem índices de produtividade mais elevados dos que os dos seres humanos, atualmente as máquinas oferecem a vantagem para os empregadores de poderem trabalhar ininterruptamente, isto é, ao longo de 24 horas, fato que por si só faz com que a quantidade de cana colhida supere em muito a que é colhida no decorrer da jornada dos trabalhadores rurais.

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Através de entrevistas, realizadas com uma série de usineiros da região de Ribeirão Preto, ficou claro que a decisão de mecanizar o corte da cana não foi tomada unicamente com base na viabilidade econômica da mecanização, frente ao corte manual, numa comparação entre custos de operação da máquina [...] versus custo da mão de obra dos cortadores de cana. O que foi revelado [...] é que a mecanização do corte foi incentivada, a partir de 1984, devido às greves anuais dos trabalhadores assalariados rurais da região, que, ao paralisarem o corte, paralisavam também as usinas. Nestas condições, a mecanização do corte de cana era, segundo os usineiros, a forma de adquirirem maior poder de barganha para negociar a pauta de reivindicações dos trabalhadores, sem as unidades de produção paralisadas (ALVES, 1991, p. 84).

Essa revelação por parte dos usineiros de que a mecanização do corte da cana também foi determinada em função do ciclo de greves dos trabalhadores rurais ao longo da década de 1980 pôde ser confirmada, uma vez que os modelos de máquinas introduzidos na época – modelos esses que permitiram baixar os custos do corte mecânico em relação ao manual – já estavam disponíveis ao setor desde o final da década de 1970. Isto é, as máquinas já existiam, porém ainda não eram empregadas de forma significativa no campo até o momento em que as greves dos trabalhadores se tornaram uma ameaça frequente e constante. Se para os usineiros a mecanização do corte da cana representou crescimento da produtividade de suas lavouras, aumento de seu poder de barganha e uma das formas para pressionar e conter os cortadores de cana; para os trabalhadores ela não trouxe consequências tão favoráveis. Entre os muitos impactos sobre a força de trabalho, podemos destacar a redução do contingente de trabalhadores empregados durante a safra, a diminuição do poder de pressão dos cortadores de cana, a redução dos salários e o avanço no processo de subordinação real do trabalho ao capital (ALVES, 1991). Além de a mecanização reduzir o número de trabalhadores empregados no corte, ela reduz ainda o nível salarial médio. Isso porque é de praxe entre as usinas deixar as piores áreas de cana – isto é, as que

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têm canas menos eretas, terrenos mais íngremes, com mais declividade e acidentes – para os assalariados rurais cortarem, o que acaba fazendo com que eles tenham sua produtividade diária diminuída. 13 Como recebem por produção, ou seja, têm seu salário atrelado à quantidade de cana que conseguem cortar, quanto menor for sua produtividade, menor também serão os salários recebidos. Em contrapartida, os melhores talhões são deixados para as máquinas. Em sua tese de doutorado, Alves (1991) assim resume os impactos mais imediatos gerados a partir da introdução do corte mecanizado: A introdução das inovações mecânicas na lavoura canavieira teve quatro tipos de repercussões imediatas e mutuamente relacionadas: o primeiro foi o de redução do tempo de realização de determinadas tarefas; o segundo foi o da redução da mão de obra empregada para a realização dessas tarefas executadas pelas máquinas; o terceiro foi o de reduzir a necessidade de mão de obra residente na propriedade; o quarto sentido foi o de introduzir uma mudança qualitativa na demanda de trabalhadores, ao utilizar trabalhadores com maior grau de especialização (tratoristas, motoristas e operadores de máquinas agrícolas) e trabalhadores sem especialização (ALVES, 1991, p. 73).

O processo de mecanização da colheita não estagnou por aí. Diferentemente do que ocorria no final do século XX – momento em que, como se viu, as máquinas ainda estavam começando a entrar em cena –, atualmente, sobretudo a partir de meados dos anos 2000, percebemos que elas têm ocupado cada vez mais espaço nos canaviais. Nos dias de hoje, a mecanização, além de continuar sendo justificada pela necessidade de aumentar os níveis de produtividade agrícola das lavouras e servir como forma para diminuir o poder de pressão dos cortadores de cana, pode ser explicada por outras razões. Como temos acompanhado, a preocupação em produzir “energia limpa”, sustentável e não prejudicial ao meio ambiente está cada vez 13 -   Nunca é demais lembrar que, com a mecanização, sobram aos cortadores de cana somente as áreas impróprias ao corte mecânico, que são as piores, o que acaba reduzindo a quantidade de cana para cortar por dia.

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mais presente no discurso dos usineiros. Nesse novo contexto, a busca por uma imagem “ecologicamente correta” por parte das empresas ganha ainda mais sentido. Nas palavras de Menezes et al. (2011), Nessa busca, as empresas canavieiras têm se engajado em duas estratégias principais e inter-relacionadas: o fim da queima da cana e do corte manual. Com o fim da queima da cana, busca-se resolver a degradação ambiental causada pelas atividades do setor, que polui não apenas o ar, mas, também, o discurso do etanol enquanto combustível limpo. Com o fim do corte manual de cana, objetiva-se acabar ou, ao menos, amenizar a degradação do trabalhador e evitar casos extremos como doenças que inutilizam o trabalhador ou chegam a causar-lhe a morte. As duas estratégias deverão ser realizadas via mecanização da colheita da cana-de-açúcar (MENEZES et al., 2011, p. 63-64).

Como sabemos, para que os cortadores de cana possam atingir índices mais elevados de produtividade e para que possam executar seu trabalho sem tantos riscos, 14 na maioria das vezes as usinas queimam grande parte de seus canaviais – antes de iniciar o corte – visando à eliminação da palha da cana. Nem é preciso dizer que as queimadas dos canaviais trazem inúmeros malefícios e perigos não somente ao meio ambiente, mas também aos seres humanos.15 Algumas pesquisas atuais (SILVA, 2006; MENEZES et al., 2011) têm tentando demonstrar que todo o processo de queimada da cana acarreta a liberação de fuligem e de vários gases extremamente tóxicos e prejudiciais à saúde daqueles que vivem no entorno dos canaviais. Nas palavras de Maria Aparecida de Moraes Silva (2006), 14 -   Isso porque, quando cortam “cana crua” – isto é, aquela cana que não foi queimada, e que por isso mantém todas as suas folhas e a palha – não são raras as ocasiões em que os trabalhadores se deparam no meio dos canaviais com cobras, ratos, escorpiões, insetos e outros tipos de animais que podem vir a machucá-los. Diferentemente do que ocorre quando trabalham cortando cana queimada, já que o fogo afugenta tais animais para fora dos canaviais, diminuindo, assim, o risco de acidentes no decorrer da jornada de trabalho. 15 -   “Este processo acaba interferindo diretamente na saúde da população, pois a combustão da palha da cana libera poluentes e o principal dano é o prejuízo à qualidade do ar, e, consequentemente, da saúde, pela excessiva emissão de monóxido de carbono e ozônio, trazendo, também, danos ao solo, às plantas naturais e cultivadas, à fauna e à população” (MENEZES et al., 2011, p. 64).

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Segundo recente reportagem, os focos de queimada aumentam em mais de 1000% durante a safra na região de Ribeirão Preto. Este fato provoca vários danos à saúde das pessoas da cidade, sem contar que há o crescimento de até 50% no número de pacientes com problemas respiratórios [...] Os gases expelidos pela fuligem da cana queimada são: o carbônico, os nitrosos (sobretudo o monóxido e o dióxido de nitrogênio) e os sulforosos (como o monóxido e o dióxido de enxofre). Alguns desses gases vão para a atmosfera e podem reagir com a água, gerando ácidos nitrosos e sulforosos, que, com grande acumulação, podem gerar chuva ácida, prejudicial ao meio ambiente (SILVA, 2006, p. 112).

Só para se ter um exemplo, nos períodos de queima da cana os atendimentos médicos e as internações nos postos de saúde das cidades rodeadas por canaviais sobem muito quando comparados aos atendimentos e às internações que ocorrem nos períodos em que não há queimadas. Cortadores de cana, crianças e idosos são os mais afetados pelos efeitos nocivos das queimadas. Assim, tendo como justificativa principal a tentativa de combater tais problemas sociais e ambientais, em 2007 foi firmado no estado de São Paulo o Protocolo Agroambiental, acordo estabelecido entre a Secretaria Estadual do Meio Ambiente, a Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento e a União da Indústria de Cana de Açúcar (UNICA), o qual contou com forte apoio de várias organizações da sociedade civil favoráveis ao fim das queimadas. Isto porque tal acordo visa ao fim das queimadas nos canaviais até 2014 nas áreas passíveis de mecanização e até 2017 nas áreas não mecanizáveis. Não fica difícil perceber que nesse contexto ganha mais força o discurso pró-mecanização da colheita de cana, já que, para o corte mecanizado, não é necessário que os canaviais sejam previamente queimados. De acordo com Baccarin e Gebara (2010), Particularmente, há um interesse adicional na substituição da colheita manual, que é precedida da queimada do canavial, pela colheita mecânica de cana sem

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queimar, que é, justamente, a pretensão de se reforçar, especialmente no mercado internacional, a imagem positiva do etanol como combustível renovável e menos poluidor do que os derivados do petróleo (BACCARIN; GEBARA, 2010, p. 23).

Mas quais são os principais impactos e consequências da mecanização do setor sucroalcooleiro? Como dito acima, um dos maiores resultados da mecanização é o desemprego cada dia maior de uma parcela significativa de cortadores de cana, os quais estão gradativamente perdendo seus postos de trabalho nas usinas em função da introdução das máquinas colheitadeiras no campo. Esse desemprego acaba, por sua vez, servindo também para alterar o perfil do quadro de trabalhadores das usinas: com a introdução das máquinas, mandam-se embora aqueles trabalhadores menos especializados e pouquíssimos qualificados (os cortadores de cana) e abrem-se vagas para empregar um número maior de trabalhadores mais qualificados.16 É importante lembrar que alguns desses “mais qualificados” já foram no passado cortadores de cana, mas tiveram a oportunidade de se qualificar e assim deixar o podão para se tornarem operadores de máquinas, motoristas, tratoristas, etc., postos que exigem mais especialização e maior nível de instrução por parte de quem os ocupe. Entretanto, não podemos deixar de dizer que as chances de “qualificação” e de “reciclagem” dessa força de trabalho descartada pela introdução das máquinas não são acessíveis a todos. A despeito de já existirem algumas iniciativas no estado de São Paulo voltadas para a “qualificação” de cortadores de cana – tais como os cursos de tratoristas e operadores de máquinas que são oferecidos em vários municípios de destino dos trabalhadores por iniciativa de sindicatos, usinas e do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR) –, são poucos os trabalhadores que têm a oportunidade de fazer parte delas. 16 -   Mas não podemos deixar de perceber que o número de desempregados em razão das máquinas supera em muito o número de contratados para assumir os postos mais qualificados, uma vez que uma máquina colheitadeira substitui em média 90 cortadores de cana e exige somente uma para dirigi-la e operá-la. Nas palavras de Ramos (2008, p. 323), “Os empregos diretos, mantidos e/ou gerados por essa ocupação qualificada na lavoura, mais os que estão sendo criados pela constituição de novas usinas e destilarias, dificilmente serão suficientes para compensar a menor utilização de trabalho na lavoura canavieira em decorrência daquela mecanização, mesmo em face dos ritmos estimados de crescimento das produções envolvidas (cana, açúcar e álcool)”.

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Isso porque muitos desses cursos – além de exigirem certo nível de escolaridade muitas vezes inacessível à maioria dos trabalhadores rurais – são realizados durante o horário de trabalho dos cortadores de cana. Ou seja, para que possam frequentá-los, é preciso abrir mão de seu trabalho nas usinas, fato impensável para os assalariados rurais, que têm em seu emprego uma das únicas possibilidades de assegurar a sua sobrevivência e a de sua família. Mesmo no caso dos cursos de formação que são realizados no período noturno, após a jornada de trabalho, a participação dos cortadores de cana é pouquíssimo significativa, já que a enorme maioria não tem ânimo nem condições físicas para fazer parte de qualquer atividade formativa após um dia exaustivo de trabalho.

Considerações finais Mas e os trabalhadores que são mandados embora, o que fazem? Como ficarão e para onde irão sem o emprego nas usinas? Essas são perguntas difíceis de responder, já que tal temática é recente e as hipóteses apontadas pela literatura especializada ainda são bastante inconclusas e controversas. A despeito desta dificuldade anunciada, arrisco neste trabalho responder as questões acima colocadas sugerindo algumas possíveis hipóteses elaboradas com base em leituras e observações de campo. 1) Os trabalhadores desempregados pela mecanização da colheita da cana passam a buscar emprego em outras usinas nas quais a mecanização ainda não ocorreu de forma tão significativa – sobretudo nas unidades empresariais de menor porte, que têm um capital de giro menor e que, portanto, não podem comprar um número expressivo de máquinas para mecanizar a totalidade de sua produção agrícola, ou naquelas usinas localizadas em regiões onde a declividade dos terrenos não permite a mecanização total da colheita da cana. Esse fato ajuda a alterar de forma significativa a cartografia migratória, uma vez que os trabalhadores passam muitas vezes a se deslocar em busca de empregos em usinas de outras regiões que não as tradicionalmente procuradas. 2) Alguns daqueles que tiveram seus empregos perdidos pela mecanização passam a buscar serviço em outras culturas agrícolas sazonais, tais como as lavouras de café, laranja, tomate, cebola, batata,

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etc., que muitas vezes se localizam na mesma cidade ou na mesma região em que ficam as usinas de açúcar e álcool; 3) Uma parcela bastante significativa e cada dia maior de trabalhadores desempregados em função da mecanização da colheita da cana está buscando emprego em outros setores da economia, sobretudo na construção civil. Como sabemos, tal setor está em plena expansão no atual contexto em função das obras ligadas à Copa do Mundo de 2014, às Olimpíadas de 2016 e ao PAC (Programa de Aceleração do Crescimento, do governo federal), fato que fez com que se espalhassem pelo país afora inúmeros canteiros de obras. Por terem pouca ou quase nenhuma especialização e baixíssimo nível de escolaridade, muitos ex-cortadores de cana veem na construção civil uma nova chance de emprego. Importante ressaltar aqui que, da mesma forma que nas usinas de açúcar e álcool, os empregos conseguidos na construção civil também são altamente precários, desqualificados e insalubres, vide os inúmeros acidentes de trabalho ocorridos nos canteiros de obras recentemente e as denúncias feitas pelos próprios trabalhadores e por suas entidades de representação acerca de suas condições de trabalho, moradia e de alimentação. 4) Por fim, uma parte pouco significativa e bastante minoritária daqueles que perderam seus postos de trabalho para as máquinas busca obter maior qualificação com vistas a conseguir concorrer às poucas vagas criadas a partir da mecanização do setor sucroalcooleiro. Como se viu, nesse contexto, uma pequena fração de ex-cortadores de cana – em geral os mais jovens – procura os chamados “cursos de reciclagem”, criados com o intuito de qualificar essa força de trabalho para ocupar os novos postos criados.

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Juliana Biondi Guanais é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisadora do Centro de Estudos Rurais do IFCH (Ceres), bolsista de doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e autora da dissertação No eito da cana, a quadra é fechada: estratégias de dominação e resistência entre patrões e cortadores de cana em Cosmópolis/SP.

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Acervo Cândida da Costa

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Trabalho escravo contemporâneo: grilhões modernos na vida dos trabalhadores e trabalhadoras Cândida da Costa

Introdução A primeira questão que poderia ser colocada em cena ao se dar destaque ao trabalho escravo é justamente indagar: por que um tema do passado se torna um tema contemporâneo? Há uma dimensão empírica a nos desafiar enquanto sociedade e enquanto humanidade: a questão não só tende a perseverar, como não cessa de se sofisticar. Servidão por dívida, tráfico da pessoa humana, trabalho forçado, degradante, simulacro de inexistência de vínculos trabalhistas dentro de cadeias produtivas – novas formas são inventadas para retrair e negar os direitos e a liberdade de trabalhadoras(es) e aumentar os lucros dos capitalistas. Persiste uma percepção sobre o mundo que ainda interdita a construção de uma cultura de direitos humanos, de respeito à dignidade da pessoa humana, manifesta na continuidade de uma cultura escravagista, uma mentalidade de negação e desrespeito aos direitos trabalhistas que colabora para a prática e a manutenção do trabalho escravo no Brasil. No Brasil? Espraiemos nosso olhar. O fenômeno é mundial e assola os trabalhadores de formas variadas, através de muitos simulacros e ilusionismos que vão tomando forma no mundo do trabalho. Termos como indocumentados, imigrantes ilegais, exploração sexual internacional fazem parte de um novo repertório discursivo que muito tem a nos dizer. Atrás deles está o drama de milhões de trabalhadoras(es) escravizadas(os) e humilhadas(os). Neste artigo, tratarei do assunto apresentando elementos teóricos que nos permitem, tanto quanto possível, compreendê-lo em sua complexidade e percebê-lo em suas manifestações concretas, em nosso país e no mundo. Adoto também a ideia do trabalho como um direito humano, pois esta permite resgatar como os direitos dos trabalhadores emergiram e se firmaram sempre que, nos processos de lutas sociais, os trabalhadores e trabalhadoras – as pessoas que vivem do trabalho – reivindicaram uma vida com dignidade, enquanto condição intrínseca de sua humanidade. 71


Nesse aspecto, não há de se perder de vista que muitas das grandes revoluções, com especial atenção para o mundo moderno, foram motivadas pelas relações de trabalho, em confronto com o capital. E colocar em xeque a infinitude da exploração dos capitalistas e a resistência da classe trabalhadora na busca por melhoria de suas condições de vida.

Conceito de trabalho escravo ou forçado Trabalho forçado tem uma dupla dimensão – é expressão jurídica e fenômeno econômico. A sua exata definição foi enunciada na primeira convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) acerca da matéria, a Convenção 29, de 1930, no art. 2: a expressão “trabalho forçado” ou “compulsório” significará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob a ameaça de alguma punição e para o qual o dito indivíduo não se apresentou voluntariamente. Conforme o Relatório da OIT “Não ao Trabalho Forçado” (2001, p.10): [...] no final do século XIX, a escravidão e o comércio de escravos estavam proibidos em todo o mundo. A década de 1920 assistiu à adoção da Convenção da Liga das Nações, de 1926, sobre escravidão, seguida pela Convenção 29 da OIT (1930), sobre trabalho forçado.

Em tal período, os maiores problemas eram a imposição de trabalho forçado ou compulsório a populações indígenas durante o período colonial. Já a Convenção 105 da OIT, de 1957, sobre a abolição do trabalho forçado, na qual o Brasil figura como signatário, obriga os seus membros a suprimir e não fazer uso de nenhuma forma de trabalho forçado ou obrigatório como meio de coerção ou de educação política, seja como medida de disciplina no trabalho, de discriminação, social, nacional ou religiosa, seja como método de mobilização e utilização da mão de obra com fins de fomento econômico ou ainda como castigo por haver participado de greves. O princípio da proibição do trabalho forçado apoiou-se também no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966. Nas décadas de 1980 e 1990, ampliaram-se a conscientização e mobilização social em relação às questões de gênero, por haver um grande número de mulheres submetidas ao trabalho doméstico forçado e à exploração sexual. A proibição do trabalho escravo é norma imperativa do Direito Internacional, reconhecida por toda a comunidade mundial. No ordenamento 72


jurídico brasileiro, até o ano de 2003, quando então foi alterado pela Lei n° 10.803/2003, o trabalho escravo ou forçado é considerado crime, nos termos do art. 149 do Código Penal: Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Trata-se de redução de uma pessoa à condição análoga à de um escravo. O trabalho escravo ou forçado, contudo, segundo o conceito adotado, não será somente aquele para o qual o trabalhador não tenha se oferecido espontaneamente, mas envolve situações em que este é ludibriado por falsas promessas de ótimas condições de trabalho e salário. Essa situação, inclusive, é a que mais se verifica atualmente, como é o caso de vários trabalhadores rurais que, com promessas falaciosas, são induzidos a trabalhar em fazendas ou lavouras diversas e de trabalho de imigrantes que caem na ilegalidade.

Caracterização e formas de coação de trabalhadores em situação de trabalho escravo ou forçado Para a caracterização do trabalho escravo ou forçado, leva-se em conta que o trabalhador seja coagido a permanecer prestando serviços, impossibilitando ou obstando, sobremaneira, o seu desligamento, geralmente em locais distantes, que dificultam seu deslocamento. Essa coação poderá ser de três ordens: moral, psicológica e física. a) Coação moral: configura-se quando o tomador dos serviços, valendo-se da pouca instrução e do elevado senso de honra pessoal dos trabalhadores, geralmente pessoas pobres e com baixo nível de escolaridade, submete-os a elevadas dívidas, constituídas de maneira fraudulenta com o objetivo de impossibilitar o desligamento do trabalhador. b) Coação psicológica: quando o trabalhador é ameaçado de sofrer violência, a fim de garantir sua permanência no trabalho, sendo comum a utilização de empregados armados para exercerem essa coação e estabelecer um clima de terror entre os trabalhadores. Materializa-se, ainda, sob a forma de ameaça de abandono do trabalhador à sua própria sorte. 73


c) Violência física: além de sofrerem ameaças de lesão corporal, os trabalhadores são, efetivamente, submetidos a castigos físicos e alguns deles são sumariamente assassinados, como exemplo àqueles que almejem enfrentar o tomador dos serviços.

Formas degradantes de trabalho O art. 149 do Código Penal possibilita identificarmos várias afrontas à dignidade dos trabalhadores, tais como: 1- intermediação de mão de obra pelos chamados “gatos”;1 2- intermediação de mão de obra pelas chamadas “fraudoperativas” (designação dada àquelas cooperativas de trabalho que fraudam as relações de trabalho); 3- utilização de trabalhadores, aliciados em outros municípios e estados, pelos chamados “gatos”; submissão às condições precárias de trabalho pela falta ou inadequado fornecimento de boa alimentação e água potável; 4- alojamentos sem as mínimas condições de habitação e falta de instalações sanitárias; 5- falta de fornecimento gratuito de instrumentos para a prestação de serviços; 6- ausência de fornecimento gratuito de equipamentos de proteção individual (chapéu, botas, luvas, caneleiras etc.); 7- inexistência de fornecimento de materiais de primeiros socorros; 8- não utilização de transporte seguro e adequado aos trabalhadores; 9- não cumprimento da legislação trabalhista, desde o registro do contrato na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS); 10- não realização de exames médicos admissionais e demissionais. Há distinção entre o trabalho escravo e o degradante, já que, para o primeiro, haverá a submissão por fraude, dívida, violência e ameaça que resultem no cerceamento da sua liberdade. O trabalho escravo, pois, extrapola a violação de direitos trabalhistas e restringe o direito à liberdade individual. 1 -   Pessoa ligada a empresas agroexpoertadoras, cuja presença é muito frequente nas usinas de cana-de-açúcar, ou a algum empregado formal da usina que alicia os trabalhadores, em sua grande parte agricultores, desempregados, com promessas de salários altos em outra região do país. Essa prática está tipificada como crime no artigo 207 do Código Penal Brasileiro, que dispõe: “Aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional: Pena – detenção de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa”.

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Caracteriza-se como um tipo de trabalho forçado, este último definido como um trabalho obrigatório, compelido ou subjugado, podendo-se afirmar que todo trabalho escravo é forçado, mas nem todo trabalho forçado é escravo.2

Formas contemporâneas de escravidão Tendo como parâmetro a definição da Organização das Nações Unidas (ONU), a escravidão compreende hoje grande variedade de violações de direitos humanos. Além da escravidão tradicional e do tráfico de escravos, a escravidão moderna abrange a venda de crianças, a exploração sexual infantil, a pornografia infantil, a exploração de crianças no trabalho, a mutilação sexual de meninas, o uso de crianças em conflitos armados, a servidão por dívida, o tráfico de pessoas e a venda de órgãos humanos, a exploração da prostituição e certas práticas de apartheid e regimes coloniais. O trabalho infantil e sua consequente exploração é uma forma de escravidão contemporânea, na medida em que as crianças são submetidas a condições árduas e arriscadas de trabalho, carga horária excessiva e baixa remuneração. A exploração do trabalho infantil, em geral, causa danos permanentes à saúde das crianças e priva-as do direito à educação e ao desenvolvimento sadio e regular. Crianças submetidas a efetuar tarefa doméstica são especialmente vulneráveis a abusos sexuais e físicos de toda ordem. O tráfico de seres humanos inclui o recrutamento, o transporte clandestino, a exploração de mulheres como prostitutas e a exploração sexual organizada de crianças de ambos os sexos em numerosos países, sendo um dos mais dramáticos exemplos de escravidão contemporânea. Há denúncias, inclusive no Brasil, de vínculo entre prostituição e pornografia, particularmente envolvendo crianças para promoção e o crescimento do turismo, atraindo estrangeiros em busca de crianças e adolescentes para exploração sexual, oriunda em geral de famílias de baixa renda. A venda de crianças transfigurada como a transferência de crianças, de um lar pobre para um lar rico, pode mascarar uma situação de ganho financeiro para os pais e intermediários e caracterizar comércio infantil ilícito, de acordo com a ONU. A venda de crianças, travestida em adoções 2 -   A Convenção 29 da OIT sobre Trabalho Forçado de 1930, que dispõe sobre a eliminação do trabalho forçado ou obrigatório em todas as suas formas, admite algumas exceções de trabalho obrigatório, tais como o serviço militar, o trabalho penitenciário adequadamente supervisionado e o trabalho obrigatório em situações de emergência, como guerras, incêndios, terremotos, entre outros.

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ilícitas, é tida pela Convenção n° 182 da OIT como uma das formas mais cruéis de escravidão infantil. A servidão por dívida distinguiu-se da escravidão tradicional apenas porque a vítima está impedida de deixar a tarefa ou a terra onde trabalha até que sua dívida seja quitada. Tal servidão se caracteriza exatamente porque, apesar de todos os esforços, o trabalhador não consegue quitá-la, por tratar-se de um endividamento contínuo e perene. Adicionalmente, o débito é herdado pelos filhos do trabalhador endividado, mantendo-os sob servidão.

Incidência da escravidão de trabalhadores(as): o fenômeno no mundo e no Brasil O estudo intitulado Estimativa Global da OIT sobre Trabalho Forçado 2012 detalha as diferentes violações e a incidência nos setores da economia em todo o mundo: 4,5 milhões (22%) de trabalhadores são vítimas de exploração sexual forçada e 14,2 milhões (68%) são vítimas de exploração do trabalho forçado em atividades econômicas como agricultura, construção civil, trabalho doméstico ou industrial. A existência do trabalho escravo no Brasil apresenta-se como uma afronta direta à Constituição Federal de 1988, que tem como um de seus princípios a promoção da dignidade humana. Considerando-se que o Estado brasileiro, conforme dispõe o parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal, é signatário de Tratados Internacionais de Direitos Humanos, os quais, pelo referido parágrafo, estão revestidos de eficácia constitucional, a constatação da existência de trabalhadores escravos em nosso território significa também uma violação dos direitos humanos reconhecidos pelo Estado brasileiro. O perfil dos trabalhadores escravos é sempre o mesmo, na sua maior parte, composto por homens desempregados, que saem de suas terras em busca de um meio de subsistência para si e para seus familiares e terminam por cair nas garras do “gato”, sempre pronto, à procura de presas fáceis para serem escravizadas. Os estados com maior índice de aliciamento e fornecimento de mão de obra escrava estão localizados nas regiões Norte e Nordeste do país, sendo Maranhão e Piauí, respectivamente, os maiores cenários desse tipo de prática, seguidos do Pará, Tocantins e Mato Grosso. Os estados

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líderes têm um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixíssimo, equiparando-se, respectivamente, apenas aos IDHs dos países São Tomé e Príncipe e Ilhas Salomão. A exploração da mão de obra escrava ocorre, predominantemente, em regiões em que a agricultura está em desenvolvimento, sempre relacionada com o agronegócio. Nas regiões de cultivo monocultor, extensivas e de exportação se concentra o maior índice de trabalho escravo. É relevante destacar que a obtenção desses dados só foi possível em razão da atuação de inúmeros militantes da sociedade civil, que por anos acompanham as violações de direitos desencadeadas pela existência de trabalho escravo. O tema foi tratado de forma quase solitária pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), durante cerca de 30 anos. Essas entidades, desde a década de 1970, denunciam, inclusive internacionalmente, as recorrentes incidências da prática de trabalho forçado não só na Amazônia, como em regiões industrializadas do Sul e Sudeste do país. As informações estão presentes nos relatórios de conflito de terra divulgados pela CPT desde sua criação (1975). Foi a partir da pressão exercida pelas entidades que acompanhavam e denunciavam os casos de trabalho escravo que, em 1995, o governo brasileiro criou o Grupo para Erradicação do Trabalho Escravo. Essa medida tornou-se um compromisso de Estado e a partir de 2003 passou a ser implementada. O Grupo de Fiscalização Móvel tem realizado um papel de suma importância para o combate e a erradicação do trabalho escravo. Segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), de 1995 até 2005 foram resgatados 17.235 trabalhadores escravos, entretanto, desse total, 12.463 trabalhadores foram libertados no período de 2003 a 2005. Registra-se até 2008 a libertação de 32.783 trabalhadores, em 99 municípios brasileiros. Há, porém, uma defasagem significativa entre o número de casos denunciados pela CPT e os trabalhadores resgatados, pois entre 1990 e 2006 a CPT registrou denúncias sobre 133.656 trabalhadores escravizados, ou seja, um número quatro vezes superior àqueles que o Ministério do Trabalho conseguiu alcançar. Nos primeiros cinco anos de operações do Grupo Móvel (1995-2000), não há registros de ressarcimento de direitos, enquanto nos cinco anos seguintes foram pagos R$ 14.198.349,08 em indenizações aos trabalhadores libertados (CPT, 2009).

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Abrangência do fenômeno da escravidão contemporânea no Brasil e predominância de setores econômicos Entre 1995 e 2006, não ocorreram resgates de trabalhadores somente em cinco estados: Roraima e Amapá, na Região Norte; e Pernambuco, Alagoas e Sergipe, no Nordeste. Em todos os outros 21 estados brasileiros e no Distrito Federal, mesmo os mais ricos, o fenômeno está presente. O Atlas do Trabalho Escravo, lançado em 2009, permite entrever a amplitude e concentração do fenômeno, levando em consideração as denúncias da CPT, evidenciando que a Região Norte lidera (estado do Pará), seguida pelo Nordeste (Oeste da Bahia), Centro-Oeste (Mato Grosso) e pela Região Sudeste (Minas Gerais e São Paulo). Em 2010, foram resgatados 2.617 trabalhadores que estavam sendo explorados, de acordo com dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), do MTE. O maior número de operações foi realizado no Pará, com a libertação de 559 pessoas. Ao todo, foram 141 inspeções em todo o território nacional, que resultaram no pagamento de indenizações no valor de R$ 8 milhões. No Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo/MTE (Lista Suja do Trabalho Escravo),3 constaram 294 empresas em 2011 e 410 empresas em 2012, registrando-se aumento do número de empresas em tal condição, não obstante as sanções sofridas pelas empresas que incorrem em tal prática. Ao se verificar por setor a predominância da prática da escravidão contemporânea, o setor de agricultura se destaca, porém, outras atividades também concorrem para a existência do fenômeno, do que se infere que a mesma está disseminada na sociedade. São elas: pecuária, extração vegetal (madeira), produção de carvão vegetal, mineração, produção de tijolos/ construção civil; serviço de alimentação – restaurante; comércio, hotéis, bordéis, serviços domésticos e confecção. As denúncias dos trabalhadores que conseguem escapar são feitas normalmente à CPT e às Superintendências Regionais do Trabalho. Entretanto, a fuga não significa a redenção, pois, em razão da falta de oportunidades e do baixo nível de especialização, é comum que essas pessoas acabem sendo 3 -   PORTARIA INTERMINISTERIAL n.º 2, de 12 de maio de 2011. Art. 1º Manter, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego - MTE, o Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo, originalmente instituído pelas Portarias n.º 1.234/2003/MTE e 540/2004/ MTE; Art. 2º A inclusão do nome do infrator no Cadastro ocorrerá após decisão administrativa final relativa ao auto de infração, lavrado em decorrência de ação fiscal, em que tenha havido a identificação de trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo.

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contratadas novamente, nas mesmas condições, em outros locais com práticas similares, formando um círculo vicioso que precisa ser quebrado.

Para não dizer que só falamos do trabalho escravo no setor rural: visitando o setor de confecções/grifes É interessante este alerta ao leitor: antes de comprar sua alimentação, pergunte-se que empresa é essa; antes de comprar sua roupa: que moda é essa? Algumas grandes confecções parecem gostar do trabalho ilegal e da mão de obra escrava. O que suas práticas evidenciam?

Marca Zara: denúncia de trabalho escravo, jornada exaustiva e desrespeito aos direitos trabalhistas A situação dos trabalhadores envolvidos na cadeia de produção da marca de roupas Zara, integrante do grupo espanhol Inditex, um dos maiores do ramo têxtil, revelou uma série de condições irregulares. Foram encontrados 16 trabalhadores sul-americanos, de nacionalidade boliviana, vivendo e trabalhando em semiescravidão. Sua jornada de trabalho era cumprida entre 16 a 20 horas por dia em uma casa, onde também viviam. Sua remuneração era de R$ 2 por peça, as CTPS não estavam assinadas, sendo que cada peça produzida era comercializada por R$ 139.

Marca C&A: terceirização e exploração de mão de obra de imigrantes ilegais O Ministério Público do Trabalho (MPT) da 2ª Região (Grande São Paulo e Baixada Santista) alertou 80 fornecedores da rede de lojas C&A (holandesa) sobre a possibilidade de estarem comprando confecções de oficinas que exploram mão de obra de imigrantes ilegais latino-americanos para a produção de roupas em 2005, já que suas etiquetas foram encontradas em tais oficinas. Em algumas dessas oficinas clandestinas, foi constatado trabalho escravo, com jornada exaustiva de trabalho e contratação ilegal de imigrantes.

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Marca Gregory: jornada exaustiva, ambiente degradante de trabalho e indícios de tráfico de pessoas Durante o lançamento da coleção outono-inverno 2012 da grife de roupas femininas Gregory, uma equipe de fiscalização da Superintendência Regional do Trabalho (SRTE/SP) flagrou cerceamento de liberdade, servidão por dívida, jornada exaustiva, ambiente degradante de trabalho e indícios de tráfico de pessoas em uma oficina que produzia peças para a marca, na Zona Norte da capital paulista. O conjunto de inspeções resultou na libertação de 23 pessoas, de nacionalidade boliviana, que estavam sendo submetidas a condições análogas à escravidão.

As Lojas Marisa: subcontratação, tráfico de pessoas e servidão por dívida As Lojas Marisa, uma das maiores do ramo de confecção, terceiriza a produção de suas roupas e demais peças para várias oficinas. Uma das oficinas contratadas pela Dranys, prestadora de serviços para as Lojas Marisa, foi flagrada praticando trabalho escravo. A referida empresa teve 94,5% do seu faturamento entre janeiro de 2009 e fevereiro de 2010 resultante de encomendas feitas pelas Lojas Marisa. Na Indústria de Comércio e Roupas CSV Ltda., com sede na capital paulista, a SRTE/SP, em 18 de fevereiro de 2010, encontrou 16 trabalhadores bolivianos produzindo em condições análogas às de escravos. As irregularidades encontradas permitem configurar situação de trabalho análogo à escravidão: a) não anotação em Carteira de Trabalho e Previdência Social; b) servidão por dívida e tráfico de pessoas, pois foram apreendidos cadernos com anotações que remetem diretamente a cobranças ilegais de passagens da Bolívia para o Brasil, a “taxas” não permitidas de despesas designadas com termos como “fronteira” e “documentos” – denunciando, segundo os auditores fiscais, “fortes indícios de tráfico de pessoas” –, ao endividamento por meio de vales e a descontos indevidos; c) jornada exaustiva de trabalho, com início às 7h e se estendendo até as 21h. Também foram detectados graves problemas no campo de saúde e segurança do trabalho e condições inadequadas nos alojamentos.

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A posição, os argumentos e o discurso das empresas As empresas desconheciam a legislação internacional e nacional e foram ludibriadas pelas empresas terceirizadas, assim como os trabalhadores são enganados pelos “gatos” e seus patrões? Certamente, estamos falando de dois públicos diferentes. As empresas têm ao seu dispor assessoria contábil e jurídica, ao contrário dos trabalhadores. A grife espanhola Zara não aceitou o TAC (Termo de Ajuste de Conduta) que o MPT/SP (Ministério Público do Trabalho) propôs para regulamentar suas relações com as empresas terceirizadas nas quais foi detectada a prática de trabalho análogo à escravidão, recusou-se a pagar em torno de R$ 20 milhões por danos morais coletivos e não aceita o fim da terceirização nem da quarteirização de empresas para prestação de serviços. Ao assinar o TAC, após exigir redefinição de alguns termos, tornou-se signatária do Pacto Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo em 2011. Entretanto, para sair da Lista Suja do MTE, contestou junto ao Poder Judiciário/Justiça do Trabalho a constitucionalidade do Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo. Semelhante posição foi adotada pelas Lojas Marisa, que contestam judicialmente os critérios utilizados para inclusão das empresas na lista, os quais afrontariam os princípios constitucionais da ampla defesa, do devido processo legal, da presunção da inocência, obtendo sua exclusão da lista, ocorrida em 2010, o que tem sido contestado pela Advocacia Geral da União. A atitude da empresa levou o comitê que administra o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo a suspendê-la, tal como ocorreu com a Zara, desde 2011.4 Ainda que a empresa não tenha controle direto sobre o processo de produção, é inegável o seu poder econômico sobre a linha de produção, haja vista que a empresa subcontratada (no caso, a Dranys) destinava 94,5% de sua produção para as Lojas Marisa, já que este é o valor de financiamento obtido das encomendas da referida loja. Por outro lado, as Lojas Marisa determinavam desde a especificação dos produtos até o preço das peças, o que demonstra o total controle que exerciam sobre o processo de produção. Nota-se, aqui, o intrincado e complexo processo presente na cadeia produtiva via rede de contratação e subcontratação atravessada pela precarização das relações de trabalho. 4 -   O pacto foi criado em 2005, com 292 empresas signatárias. Desde então, 80 empresas foram excluídas da lista.

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As Lojas Marisa recorreram à Justiça, obtendo vitória em primeira instância. Para o Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT-SP), como não havia vínculo de emprego entre a Marisa e os trabalhadores da oficina, a responsabilidade não pode recair sobre a empresa. O fiscal de trabalho teria afrontado a legislação trabalhista, já que ele “extrapolou a sua competência de fiscalização ao considerar a relação de terceirização como se de emprego fosse”. Para os auditores fiscais, contudo, o que existe é a simulação de contrato de fornecimento, uma vez que a empresa mantém a ingerência sobre todos os processos que envolvem a produção. Embora tenha contestado os critérios da inclusão de empresas no cadastro do MTE (Lista Suja do Trabalho Escravo) e manifestem sua expectativa de que o Supremo Tribunal Federal considere a lista inconstitucional, as Lojas Marisa declararam que apoiam a Lista Suja e ratificam sua importância para a erradicação do trabalho escravo no Brasil. Que discurso inconsistente é esse? Não seria um discurso ambivalente para dialogar com os seus consumidores e afastar a sua imagem de uma marca associada com o trabalho escravo? As Lojas C&A, por sua vez, embora tenham recebido denúncias desde 2006, apenas em 2012 decidiram assinar Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. No setor sucroalcooleiro, o Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MPT-SP) ajuizou em outubro de 2012 sete ações civis públicas solicitando a cassação definitiva do “Selo de Responsabilidade – Empresa compromissada”, concedido pelo governo federal a sete empresas que assinaram o Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar, portanto, deveriam assegurar o cumprimento da legislação trabalhista. O MPT aponta vários problemas na metodologia usada para concessão do selo, como a falta de consulta aos órgãos de fiscalização e realização de auditorias durante as entressafras, portanto, na ausência dos trabalhadores, quando não podem ser constatadas as irregularidades trabalhistas.

Trabalho análogo à escravidão: o Sudeste encontra-se com o Nordeste O mercado de trabalho brasileiro modernizou-se sem se livrar da pesada mentalidade escravagista que ainda faz permanecer no país modalidades de trabalho escravo e de trabalho análogo à escravidão. As formas de precarização do trabalho introduzidas pela reestruturação produtiva – trabalho parcial, terceirização da mão de obra, trabalho temporário, 82


trabalho a domicílio – somaram-se à existência de um mercado de trabalho informal, no qual se localiza 28,2% da força de trabalho brasileira economicamente ativa (IBGE, 2009). Como traço marcante desse mercado, vale destacar que a precariedade coexiste com a ilegalidade (trabalho escravo e trabalho infantil). Se esse quadro desafia a ética do trabalho, mais desafiador ainda é se defrontar com a morte por exaustão, quando os trabalhadores são submetidos a jornadas exaustivas de trabalho e pagamento por produtividade. Trata-se de superexploração de trabalho exercida pelas usinas de cana-de-açúcar da região contra os trabalhadores rurais na região de Ribeirão Preto (COSTA; NEVES, 2005; COSTA, 2008; COSTA; ARANTES, 2009), interior do estado de São Paulo (envolvendo, entre outras usinas, a do grupo europeu Cosan e a Usina Maringá, do Brasil).

Os trabalhadores no eito da cana Fotos: Acervo Cândida da Costa

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A situação reportada foi denunciada pela Pastoral do Migrante do município de Guariba/SP e investigada pela Relatoria Nacional do Direito Humano ao Trabalho/Plataforma Brasileira dos Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais e Ambientais – Plataforma DHESCA Brasil, sendo relacionadas tais mortes à exaustão pelo trabalho, destacando-se nas diversas investigações realizadas:5 5 -   Segundo relatório elaborado pela Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Trabalho. Cf. COSTA; NEVES, 2005, investigação realizada em Ribeirão Preto/SP e região e Missão de Seguimento e Monitoramento em 2006 e em 2008,no âmbito da Missão Internacional sobre os agrocombustíveis no Brasil, que investigou os impactos das políticas públicas de incentivo aos agrocombustíveis sobre o desfrute dos direitos humanos à alimentação, ao trabalho e ao meio ambiente, das comunidades campesinas e indígenas e dos trabalhadores rurais no Brasil, realizada por FIAN Internacional – For theright to adequate food; MISEREOR – Obra episcopal da Igreja Católica da Alemanha para a cooperação ao desenvolvimento; EED – Evangelischer Entwicklungsdienst, Pão para o Mundo, ICCO – Organização Intereclesiástica para a cooperação ao desenvolvimento e HEKS, com a participação de delegados, Rede de Pequenos Produtores da África Ocidental (ROPPA), o Coletivo de Advogados José Alvear Restrepo e expertos independentes (www.dhescbrasil.org.br).

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a) superexploração dos trabalhadores, ocasionada por pagamento por produção, que leva os trabalhadores a produzir além de seus limites, pela jornada de trabalho de 10 horas/dia, pelas metas de produção fixadas em 10/12 toneladas por dia; pelos baixos salários, pela terceirização das atividades e pela não pesagem da produção, o que leva os trabalhadores a não ter controle da real produção do seu trabalho e da justeza do salário recebido; b) deficiência na intermediação e fiscalização das relações de trabalho, expressa na permanência de condições insalubres e periculosas no ambiente de trabalho6 (ausência de condições para armazenamento da alimentação, água inadequada, equipamentos de proteção individual em número insuficiente ou em condições inadequadas, ausência de ambulância e equipamentos de primeiros socorros) e no desrespeito à legislação nacional e aos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário (aliciamento de trabalhadores por “gatos”, intimidação dos trabalhadores, não emissão de Comunicação de Acidente de Trabalho – CAT, não pagamento integral das verbas rescisórias);

Os (as) trabalhadores(as) mutilados(as) com danos à saúde Fotos: Acervo Cândida da Costa

c) práticas antissindicais, expressa na política da empresa de ameaças aos trabalhadores que denunciam irregularidades e na recusa em contratar ex-dirigentes sindicais; 6 -   Os acidentes de trabalho nas usinas de açúcar e álcool ultrapassaram os da construção civil. Os dados do Ministério da Previdência Social são de 2006 e indicam que nas usinas ocorreram 14.332 acidentes de trabalho, contra 13.968 na construção civil (Folha Online, 5 de maio de 2008).

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d) péssimas condições de moradia e alojamentos precários.

Diante do exposto, concluímos que o conjunto das condições a que os trabalhadores estão submetidos concorre para que tanto as mortes quanto a mutilação/agravos à saúde dos trabalhadores sejam recorrentes (ver quadro 1 a seguir).7 7 -   Na legislação previdenciária brasileira, os acidentes de trabalho compreendem as lesões, as doenças profissionais, as doenças do trabalho e os acidentes de trajeto, além de outras situações previstas na legislação.

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QUADRO 1 OCORRÊNCIA DE MORTES NO SETOR SUCROALCOOLEEIRO PAULISTA (2004 a 2007) .

Nome

Idade

Causa

1

José Everaldo Galvão. Faleceu em abril de 2004, no hospital de Macatuba (SP).

38 anos, natural de Araçuaí (MG)

Parada cardiorrespiratória

2

Moises Alves dos Santos. Faleceu em abril de 2004, no hospital de Valparaíso (SP).

33 anos, natural de Araçuaí (MG)

Parada cardiorrespiratória

3

Manoel Neto Pina. Faleceu em maio de 2004 no hospital de Catanduva (SP).

34 anos, natural de Caturama (BA)

Parada cardiorrespiratória

4

Lindomar Rodrigues Pinto. Faleceu em março de 2005, em Terra Roxa (SP).

27 anos, natural de Mutans (BA)

Parada cardiorrespiratória

5

Ivanilde Veríssimo dos Santos. Faleceu em julho de 2005, em Pradópolis

33 anos, natural de Timbiras (MA)

Pancreatite

6

Valdecy de Paiva Lima. Faleceu em julho de 2005, no Hospital São Francisco de Ribeirão Preto (SP).

38 anos, natural de Codó (MA)

Acidente cerebral hemorrágico

7

José Natalino Gomes Sales. Faleceu em agosto de 2005 no hospital de Batatais (SP).

50 anos, natural de Berilo (MG)

Parada respiratória

8

Domício Diniz. Faleceu em setembro de 2005, em trânsito para hospital de Borborema (SP).

55 anos, natural de Santana dos Garrotes (PE)

Desconhecida

9

Valdir Alves de Souza. Faleceu em outubro de 2005 em Valparaíso (SP).

43 anos

Desconhecida

10

José Mario Alves Gomes

45 anos, natural de Araçuaí (MG)

Desconhecida

11

Antonio Ribeiro Lopes

55 anos, natural de Berilo (MG)

Hemorrágico pulmonar e cardiopatia dilatada descompensada

12

Josefa Maria Barbosa Vasconcelos. Faleceu em 13 de abril de 2006 no Hospital Regional de Teodoro Sampaio.

42 anos

Desconhecida

13

Juraci Santana. Faleceu em junho de 2006, em Jaborandi (SP).

37 anos, natural de Elesbão Veloso (PI)

Desconhecida

14

Maria Neusa Borges,

54 anos

Desconhecida (continua)

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QUADRO 1 OCORRÊNCIA DE MORTES NO SETOR SUCROALCOOLEEIRO PAULISTA (2004 a 2007)

(conclusão)

.

Nome

Idade

Causa

15

Celso Gonçalvez. Faleceu em julho de 2006 em Taiaçu (SP).

41 anos

Desconhecida

16

Oscar Almeida. Faleceu em setembro de 2006 em Itapira (SP).

48 anos

Desconhecida

17

José Pereira Martins. Faleceu em março de 2007.

51 anos, natural de Araçuaí (MG)

18

Lourenço Paulino de Souza. Faleceu em abril de 2007.

20 anos, natural de Axixá (TO)

Desconhecida

19

José Dionísio de Souza. Faleceu em junho de 2007.

33 anos, natural de Salinas (MG)

Desconhecida

20

Edilson Jesus de Andrade. Faleceu em setembro de 2007, em Guariba

28 anos, natural de Tapiramutá (BA)

Púrpura trombocitopênica idiopática

Infarto do miocárdio

Fonte: Ir. Inês Facioli/Pastoral Migrante Guariba/São Paulo.8

Observe-se que, entre os trabalhadores mortos, várias causas das mortes foram associadas a parada cardiorrespiratória, acidente vascular e causas desconhecidas, atingindo trabalhadores de até 20 anos de idade, de várias partes do Brasil, envolvidos no corte da cana-de-açúcar. Destes, seis são oriundos do Vale do Jequitinhonha (MG). Entretanto, inexiste legislação no Brasil sobre este tema.9 No Japão, foram 10 anos para reconhecer a existência da morte súbita no trabalho, ocasionada por sobrecarga de trabalho (karoshi), o qual é descrito na 8 -   Os dados contidos no quadro correspondem ao levantamento feito pela Pastoral do Migrante de Guariba/ SP. O Hospital Regional de Teodoro Sampaio localiza-se em SP, assim como os municípios de Pradópolis e Guariba. Embora monitore a situação dos trabalhadores migrantes, a Pastoral do Migrante de Guariba/SP não colheu todas as informações in loco, recolhendo algumas a partir de denúncias na imprensa. Em alguns casos, como os trabalhadores já chegaram mortos aos hospitais, a causa foi dada como desconhecida. 9 -   Atualmente, tramita projeto de lei (PL 234/07 no Congresso Nacional, de autoria do deputado Federal João Dado (PDT/SP) que define a atividade dos cortadores de cana como penosa, em geral, ou insalubre, se for exercida sem os equipamentos de proteção adequados, proíbe horas extras e o pagamento de salário por produção. A proposta acrescenta artigo à Lei do Trabalho Rural (Lei 5.889/73). A NR 17 não se aplica ao trabalhador rural, mas aos digitadores (trabalho repetitivo). A Portaria MTE nº 86, de 3 de março de 2005, revogou a Portaria MTb nº 3.067, de 12 de abril de 1988, e institui a NR-311, para disciplinar as condições de trabalho no meio rural, perdendo vigência as normas regulamentadoras rurais(NRRs).

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literatura sociomédica como um quadro clínico extremo (ligado ao estresse ocupacional) com morte súbita por patologia coronária isquêmica ou cérebro-vascular. Os estudos de Dal Rosso no Brasil (2006, p. 31) são elucidativos em torno da questão, embora não restritos ao trabalho no setor sucroalcooleiro, ao mostrar a relevância da jornada de trabalho sob várias perspectivas: “interfere na possibilidade de usufruir ou não de mais tempo livre; define a quantidade de tempo durante o qual as pessoas se dedicam a atividades econômicas; estabelece relações diretas entre as condições de saúde, o tipo e o tempo de trabalho executado”. A morte dos trabalhadores pode ser associada à união entre jornada exaustiva e intensificação do trabalho, forçada pelo pagamento por produtividade. O perigo dessa dupla associação é advertido por Dal Rosso (2006, p. 32): “Intensificação do trabalho e alongamento da jornada são condições que podem conviver juntas enquanto essa união não colocar em risco a vida do trabalhador por excesso de envolvimento com o trabalho”.

Desafios, dificuldades e sugestões para erradicação do trabalho escravo Há muitos desafios que precisam ser superados, envolvendo o papel do Estado, da sociedade e do Poder Judiciário, assim como do empresariado. O Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo prevê várias ações integradas entre órgãos nacionais, o que já demonstra um passo importante no sentido de envolver diversos setores do Estado e da sociedade civil no combate e erradicação do trabalho escravo. O Poder Judiciário brasileiro, frequentemente, não favorece os direitos dos trabalhadores, já que predominam posturas conservadoras e politicamente liberais entre juízes, o que figura como uma barreira na erradicação do trabalho escravo. Embora os procuradores do Trabalho denunciem a prática ilegal e sejam propostas as Ações Civis Públicas e as denúncias criminais, significativo número de magistrados brasileiros opta por desconhecer a existência do ilícito penal e trabalhista, absolvendo os acusados. Esse cenário sedimenta a impunidade, tomando como exemplo que, em 1999, 600 pessoas foram resgatadas e apenas dois responsáveis foram presos. A sanção penal tem sido insuficiente. Menos de 10% dos envolvidos em trabalho escravo no sul-sudeste do Pará,

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entre 1996 e 2003, foram denunciados por esse crime, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra. Há que se destacar ainda, enquanto obstáculo a ser enfrentado, a morosidade legislativa em torno da questão e nos indagar por que o Congresso Nacional levou 15 anos para aprovar a Proposta de Emenda à Constituição do Senado (PEC 438/01), em maio de 2012, que permite a expropriação de imóveis rurais e urbanos onde a fiscalização encontrar exploração de trabalho escravo. Esses imóveis serão destinados à reforma agrária ou a programas de habitação popular. Ainda assim, a votação só se tornou possível remetendo para o futuro a discussão de uma lei que defina o que é condição análoga à de escravo e os trâmites legais da expropriação. Que sugestões poderiam ser dadas para enfrentar a questão, ou se trata de tema insolúvel? Entende-se que o enfrentamento da situação precisa ser tomado como questão de interesse de toda a sociedade, exigindo medidas de âmbito nacional voltadas para a decisiva erradicação do trabalho escravo no território brasileiro: a) levantamento de dados sobre trabalho escravo a ser realizado em todo o país, que propiciem um quadro preciso da natureza, incidência e difusão do trabalho escravo no Brasil; b) movimento de conscientização e de pressão por meio de um programa de educação, mobilização e organização de trabalhadores escravizados; c) aumento do valor das indenizações previstas na lei e das punições dos aliciadores e proprietários de imóveis rurais e urbanos que se utilizam de trabalho escravo; d) aplicação de programas sociais como o Programa de Renda Mínima e outros; e) realização de uma reforma agrária que possibilite uma eficaz distribuição de terras na sociedade, com a desapropriação das propriedades improdutivas e expropriação daquelas com incidência de trabalho escravo; f) união de esforços para organizar os trabalhadores aliciados em vários níveis e elaborar programas de formação, reabilitação e proteção, inclusive das testemunhas, contra os aliciadores e proprietários de imóveis que usem mão de obra escrava; g) aumento da concessão de empréstimos de bancos públicos para cultivo da terra por parte de trabalhadores resgatados, garantindo-lhes a posse da terra onde eram explorados e condições de trabalho dignas; h) prisão, julgamento e punição de todos os responsáveis pelo crime de trabalho escravo; 90


i) eliminação de todas as formas de exploração do trabalho infantil; j) adoção de programa de qualificação e requalificação de trabalhadores atingidos pela mecanização das usinas de açúcar.

Considerações finais A questão central a ser encarada é como enfrentar e desconstruir mentalidades que não possibilitam a construção de uma cultura de respeito aos direitos humanos, demolir uma cultura escravagista que reinventa formas de plantar desigualdades entre os iguais perante a lei e de como reposicionar-se em um mundo no qual a destituição dos direitos sociais e o ataque frontal aos direitos dos trabalhadores firmam uma cultura de precarização dos direitos que invade o imaginário social. Cada vez mais, é necessário opor a esta tendência conservadora outra cultura na qual a globalização de direitos ganhe centralidade. Há um simulacro a ser desmascarado sobre as condições de trabalho, da qual tomamos exemplarmente o setor sucroalcooleiro, o que também nos desafia a sofisticar o conceito de trabalho escravo contemporâneo. Capatazia, humilhação no trabalho, retenção de CTPS por safra, selo social de qualidade: que modernidade é essa que consagra alianças entre o padrão moderno e arcaico de desenvolvimento presente no agronegócio mundial, sob o signo da competitividade nacional e internacional manchada pelo sangue, pela mutilação, por agravos de saúde e dor dos trabalhadores e trabalhadoras? Esta não seria a mais moderna forma de trabalho análogo à escravidão, escondendo sob a manta do trabalho formal as modalidades mais antigas de escravização dos trabalhadores? Questionamento por empresas dos critérios para existência do cadastro de empresas que praticam trabalho escravo no Brasil, morosidade e indiferença da Justiça brasileira, impunidade. Quanto tais questões têm a nos dizer a respeito de uma mentalidade refratária aos direitos e à justiça social? Os consumidores brasileiros e do mundo inteiro têm o direito de ter acesso à desconstrução do discurso ambivalente das empresas que praticam trabalho escravo fora e dentro de seus países e atestam a qualidade dos seus produtos dentro dos supermercados e adentram os seus lares. Entrementes, as empresas contestam sua inclusão na Lista Suja do Trabalho Escravo, alegando a inconstitucionalidade dos critérios de sua inclusão, não obstante sejam translúcidas, a nosso ver, as irregularidades 91


das condições e dos contratos de trabalho constatados, à luz da legislação vigente e das normativas de convivência social, segundo o direito à vida e ao trabalho. O próprio Legislativo brasileiro declarou não ter clareza sobre o que é trabalho análogo à escravidão, apesar das definições da ONU, OIT e do Código Penal brasileiro. Talvez os legisladores devessem perguntar aos trabalhadores brasileiros que trabalham de sol a sol em condições adversas de trabalho e com sua dignidade aviltada o que é preciso para ser reconhecida tal situação – eles têm muito a nos dizer: com seus rostos marcados pela desumanidade das condições em que são colocados em suas terras de origem e nas quais são obrigados a trabalhar. Para cada um deles e para cada uma delas, o trabalho como atividade de transformação do mundo, interligada com a dignidade humana e de libertação dos trabalhadores, parece uma ideia cada vez mais distante. Ou será que precisamos de mais cem anos para abolição da mentalidade e prática escravagista no Brasil?

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e revoga a Portaria MTE nº 540, de 19 de outubro de 2004. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 13 maio 2011. Seção 1, p. 9. BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda Constitucional 438/2001. BRASIL. Secretaria Geral da Presidência da República. Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar. Disponível em: <http://www.secretariageral.gov.br/.arquivos/publicacaocanadeacucar.pdf>. Acesso em: 12 outubro 2012. COSTA, Cândida da. Agronegócios no setor sucroalcooleiro e relações de trabalho: asuperexploração dos trabalhadores. Anais da III Jornada Internacional de Políticas Públicas. São Luís: UFMA; PGPP, 2008. COSTA, Cândida da. Superexploração do trabalho na lavoura de canade-açúcar. Relatorias Nacionais em Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais, Informe 2005. Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais: Rio de Janeiro, 2006. COSTA, Cândida da; NEVES, Ciani Sueli das. Relatório da missão realizada pela Relatoria nacional para o direito humano ao trabalho no período de 24 a 27 de outubro de 2005 na região de Ribeirão Preto/SP para apuração de violações de direitos humanos de trabalhadores(as) canavieiros(as). Rio de Janeiro: Plataforma DHESC Brasil, 2005. COSTA, Cândida da. As mudanças no mundo do trabalho e as novas formas de exploração dos trabalhadores; o trabalho no Brasil. In: RECH, Daniel (Org.). Direitos humanos no Brasil 2: diagnóstico e perspectivas. 1. ed. Rio de Janeiro: CERIS/Mauad X, 2007. v. 2, p. 135-164. COSTA, Cândida: ARANTES, Rivane. Relatoria do Direito Humano ao Trabalho. In: SCHUHLI, Laura B.; CARDIERI, Ligia (Org.). Desafios dos direitos humanos no Brasil e a experiência das Relatorias Nacionais em Dhesca. 1. ed. Curitiba: Terra de Direitos, 2009. DAL ROSSO, Sadi. Jornada de trabalho: duração e intensidade. Cienc. Cult.[online], v. 58, n. 4, p. 31-34, 2006.

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Cândida da Costa é doutora em Ciências Sociais e professora da Universidade Federal do Maranhão. É autora de numerosos artigos e possui vários livros publicados. Cursa atualmente o Pós-doutorado na Universidade de Brasília (UnB), no Programa de Pós-Graduação em Sociologia.

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Praรงa Teรณfilo Otoni - Serro (MG) Foto: Delmo Vilela

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Construção de metodologias participativas com populações quilombolas: formação política e geração de trabalho e renda – dilemas e perspectivas Carlos Roberto Horta

As políticas de inclusão produtiva que entraram no programa de diversos setores do poder governamental no Brasil, a partir da segunda metade dos anos 1990, procuraram responder, de início timidamente, aos processos de exclusão, perda de oportunidades de absorção pelo mercado de trabalho, desemprego, que decorriam da nova ordem econômica e de suas consequências sobre a sociedade. A economia solidária foi uma das alternativas, talvez a mais propalada entre as políticas de inclusão laboral e de geração de renda que o governo encontrou, para reduzir o impacto destrutivo que as políticas monetaristas trouxeram para o trabalho da população. Nessa área de atividades, geração de postos de trabalho, o Núcleo de Estudos sobre o Trabalho Humano da Universidade Federal de Minas Gerais (NESTH/UFMG) executou diversos projetos, mantendo sempre o olhar crítico, no questionamento às políticas de governo que geram postos de trabalho, mas não colocam os direitos dos trabalhadores, como o de se aposentarem, de terem férias e mesmo o descanso semanal remunerado. É desnecessário dizer que o adjetivo “humano” que integra o nome do núcleo implica, necessariamente, a observância do direito dos trabalhadores a terem direitos. Assim, é possível dizer que a economia solidária corre o risco de produzir ou naturalizar a precarização, o trabalho desprovido de direitos, uma vez que pode parecer um paliativo para o problema do desemprego, mas cria um problema social, a médio e longo prazos, configurando um dilema que tem repercussões concretas na vida da sociedade. Diante disso, o NESTH procurou desenvolver, testar e aplicar técnicas que encaminhassem os grupos apoiados pelos projetos a uma construção de cooperativa que tivesse condições de se desenvolver e de permanecer no mercado, mas tendo a marca da formação cidadã, ou formação política, que propiciasse a autoconstrução enquanto sujeito político coletivo dessas comunidades em fronteira de exclusão. A discussão desses princípios e das técnicas de organização dos grupos fez com que o NESTH organizasse, em 2008, um seminário internacional sobre a construção de direitos dos trabalhadores da economia solidária. 97


Já a partir de 2004, o crescimento do número de projetos na área de políticas públicas levou o Núcleo a se estruturar mais na pesquisa e na extensão, para melhor desempenhar suas funções. O NESTH, que já havia se consolidado como núcleo de pesquisa, criou, em 2005, o Observatório do Trabalho da UFMG, para ser sua vertente mais conectada às atividades de pesquisa e, em 2006, para desenvolver projetos especificamente de geração de trabalho e renda e de inclusão cidadã, criou o Laboratório de Tecnologia Social. Funcionando como dois braços, ambos passariam a ter uma permanente interação, com vistas a produzir e a desenvolver métodos e a produzir conhecimento comprometido com a questão do trabalho e da cidadania. No caso do Observatório, havia uma urgência, vinda da realidade de Minas Gerais, que é a maior província mineral do Brasil, e que tem a indústria da mineração entre as que mais provocam destruição, tanto ambiental quanto para a saúde dos seus trabalhadores e, mesmo, para a saúde da comunidade nos municípios em que as mineradoras atuam. Além disso, era preciso criar formas de organização, proteção dos trabalhadores e reconhecimento/formalização da pequena produção mineral informal, problema que atinge diversos países da América Latina. Na área da indústria da mineração, o NESTH/Observatório do Trabalho desenvolveu alguns projetos inovadores, sempre contemplando os garimpeiros e demais trabalhadores do setor, que, normalmente, vivem em condições sub-humanas, enfrentando enormes desigualdades no campo da cidadania, violência sustentada por empresas que utilizam métodos ilícitos para disputar as áreas de garimpo, entre outros problemas. Os trabalhos do NESTH nessa área tiveram início ainda em 1999, com a elaboração de projetos que vieram a se concretizar somente após 2003. É possível apontar, entre os projetos ligados à vida dos trabalhadores do setor mineral, o Projeto COOPERMINAS como inovador, uma vez que a aplicação de metodologias participativas trouxe para aqueles trabalhadores, em sete municípios do estado de Minas Gerais, melhores condições de se organizarem em associações e cooperativas e de interlocução com os poderes locais, além de maior presença junto a órgãos governamentais ligados ao setor mineral, como o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). O projeto contou com a produção de conhecimento sobre as realidades específicas de garimpeiros e de trabalhadores da extração de rochas das localidades de Coronel Murta, Araçuaí, Itinga, Joaquim Felício, Mariana, Catas Altas da Noruega e São Tomé das Letras, processo sempre participativo e acompanhado pelos trabalhadores, seguido de reuniões com a participação dos prefeitos e outras referências de poder e influência local 98


(vereadores, representantes de agências estaduais e federais ligadas ao setor mineral ou outros de procedência daqueles trabalhadores, grande parte dos quais se compõe de migrantes). Sobre esse projeto, foi produzido, além de relatórios, um filme disponibilizado no site do NESTH. Outro projeto desenvolvido no setor mineral, um dos maiores da experiência do NESTH, foi a Implantação da Agenda 21 Mineral, que trabalhou em seis municípios brasileiros: Tenente Ananias, no Rio Grande do Norte; Pimenta Bueno, em Rondônia; Campos Verdes, em Goiás; Vila Pavão, no Espírito Santo; e, em Minas Gerais, os municípios de Coromandel e Nova Era. Em quatro desses municípios, o trabalho era ligado aos garimpeiros e, nos estados de Rondônia e Espírito Santo, o projeto se realizou com trabalhadores da extração de argila e de rochas decorativas. O trabalho se desenvolveu, primeiramente, com a produção de diagnósticos geológicos e, em seguida, com a elaboração de uma cartilha por município, com esclarecimentos mais básicos sobre a questão da mineração e seus impactos sociais e ambientais naquele município. Um terceiro momento do trabalho foi a construção de outro diagnóstico, mais completo, com a participação dos trabalhadores, contemplando, além da parte geológica, a questão econômica e socioambiental. O quarto momento do projeto foi o da construção do Fórum Agenda 21 Mineral, em cada um dos seis municípios envolvidos, com representantes de todos os setores de alguma forma envolvidos com a mineração, incluindo representantes comunitários, associações, sindicatos, escolas e o poder público local. O quinto momento constou da capacitação desses fóruns locais, com a elaboração participativa de uma agenda que o fórum deveria cumprir. Característica comum a todos esses trabalhos, a utilização de metodologias participativas ganhou mais consistência nas formas de desenvolver a construção de conhecimento das comunidades, dos grupos que eram identificados como destinatários de políticas específicas, já que o conhecimento assim construído encontrava relação clara com o cotidiano dessas populações. Nos últimos seis anos, projetos do NESTH passaram a incluir a questão socioambiental enquanto decisiva e integrante da produção de políticas pelas comunidades que são trabalhadas com essas metodologias. Um dos projetos mais emblemáticos nessa área foi executado para a Prefeitura de Congonhas, em Minas Gerais, numa parceria que envolveu o NESTH e a Universidade Federal de São João del-Rei, por intermédio do seu Campus Alto Paraopeba. Trata-se da Implantação do Observatório Socioambiental de Congonhas. Esse projeto seguiu etapas semelhantes àquelas desenvolvidas para a Agenda 21 Mineral, com alguns aperfeiçoamentos no que toca aos processos de 99


envolvimento da população e no maior alcance de meios de comunicação disponíveis. O objetivo maior foi voltado para a construção coparticipada de subjetividades políticas coletivas em um município seriamente impactado por atividades de mineração e de siderurgia crescentes (o município de Congonhas tem a perspectiva de dobrar o seu número de habitantes em 25 anos, devido ao processo de aceleração do desenvolvimento econômico). Com a institucionalização desse processo, apoiado em permanente monitoramento e renovação coparticipada de informações, o objetivo será dotar a população de um instrumento para sua proteção e seu desenvolvimento na construção da cidadania. Dois outros projetos envolvem qualificação e formação cidadã relacionada com a questão ambiental: um deles se dirigiu aos trabalhadores da agricultura familiar no município de Betim, contemplando três assentamentos, e o outro vai capacitar para o trabalho em turismo um grupo de jovens quilombolas da região de Conceição do Mato Dentro, fortemente atingida pelas mineradoras. Essas comunidades quilombolas receberão qualificação para a proteção ambiental e a autossustentabilidade, com o objetivo de fortalecimento de sua identidade e de sua subjetividade política, para a prática da cidadania, de forma integrada com a capacitação para geração de renda. Trabalhar com as comunidades quilombolas, com os grupos de garimpeiros, com trabalhadores informais e com aqueles que não conseguem ser trabalhadores, os contingentes de excluídos, é algo que indica uma forte mudança em relação ao foco inicial do NESTH, que era ligado às análises do processo de trabalho na indústria, ao sindicalismo e à saúde do trabalhador. Na movimentação do foco de atenções e ações do grupo da UFMG, passar a trabalhar com as fronteiras da exclusão, principalmente em se tratando de um período de implantação de políticas neoliberais, aponta para uma identificação e envolvimento das opções teóricas e metodológicas com a efetiva história do cotidiano desses grupos. A reestruturação produtiva, associada a um conjunto de políticas voltadas para a proteção do capital financeiro e de todo um conjunto de reformas neoliberais, expõe, entre outras consequências, a exclusão e a perda de qualidade de vida das classes trabalhadoras e de vários setores populares em geral (ANTUNES, 2006). Nesse contexto, o desenvolvimento de políticas de inclusão, políticas de geração de trabalho (ainda que informal, como no caso da economia solidária), passa a se tornar mais acessível e a constituir metas que se concretizam em projetos e programas a serem executados. As transformações ocorridas na economia, no contexto da hegemonia neoliberal, resultam em mudanças que teriam, então, levado o núcleo a acompanhar uma espécie de retrocesso na vida dos trabalhadores, envolvendo 100


a sua qualidade de vida, as suas condições de conquistarem cidadania, renda digna, desenvolverem suas potencialidades e preservarem sua identidade, principalmente em se tratando de trabalhadores e de populações tradicionais. Essa transformação no foco de atenção das ações do núcleo significou que, sem que ele deixasse de estar atento aos trabalhadores do setor formal e aos movimentos sindicais, as suas ações passavam a incluir, necessariamente, aqueles que não conseguiam ser trabalhadores. São setores que, certamente, vivem dificuldades de acesso a uma cidadania completa, considerando que ter os direitos da classe trabalhadora corresponde a ter um lugar de cidadão.

Aprendendo mais com os quilombolas Os projetos quilombolas que o NESTH começou a desenvolver em 2007 construíram procedimentos metodológicos específicos junto a essas populações dos povoados resultantes de uma abolição incompleta da escravidão no Brasil. Como já foi dito antes, alguns pontos básicos dessas metodologias já haviam sido experimentados pelo núcleo, em projetos ligados a outras comunidades, como os povoados garimpeiros em Minas Gerais. Nessa vertente metodológica, a preocupação maior tem sido a de aperfeiçoar e consolidar, sempre buscando a inovação, os processos que envolvem o comprometimento das populações na busca de enfrentar os seus próprios problemas. De 436 comunidades afrodescendentes quilombolas, cadastradas pelo Centro de Documentação Elói Ferreira da Silva (CEDEFES) em 2008 no estado de Minas Gerais, 228 se localizam nas regiões do Jequitinhonha e Norte de Minas. Muitas dessas comunidades têm a sua vida afetada pela migração sazonal, que significa a ida de grande quantidade de seus trabalhadores para a lida na agricultura em outras regiões, a partir do mês de maio, com regresso em outubro ou novembro. Ao procurar conhecer e acompanhar, com a utilização de diferentes instrumentos metodológicos e a participação de pessoas das comunidades quilombolas, a realidade dessas populações, o Observatório do Trabalho da UFMG teve a oportunidade de confirmar alguns indicadores que apontam decisivamente para a precarização que atinge não apenas o trabalho e as relações de trabalho, mas se estende à qualidade e mesmo às condições de vida. Como se trata de um projeto de políticas públicas, que visa à participação da comunidade na construção do conhecimento de suas condições de existência, de suas vocações, projeções desejantes, possíveis construções de cadeias produtivas e formas de inclusão laboral, ao se focalizar a questão dos 101


migrantes, não se discutem apenas os níveis de renda anteriores e posteriores à migração sazonal, mas também aspectos do capital humano e social, possíveis qualificações obtidas na experiência migratória, por exemplo, elementos que podem contribuir para consolidar tecnologias sociais de inclusão. Assim, a pesquisa obteve informações que revelaram um quadro de migrações sazonais que afeta decisivamente a vida das comunidades e a sua própria condição de construírem sua subjetividade política coletiva, suas associações, interlocutores em igualdade de condições, do poder público, para garantirem a produção das políticas a que elas têm direito, por dispositivo constitucional referente às populações indígenas e quilombolas. No caso da migração para o corte da cana e para a colheita do café, a análise das comunidades, voltada para as repercussões nessas áreas, procura identificar em que medida a migração representa um empobrecimento ou enriquecimento para as sociedades locais, experimentando aplicação e ajuste de metodologias e tecnologias de inclusão social. O que de fato se encontrou apresenta um panorama recorrente na maioria das comunidades quilombolas daquelas regiões do estado: os métodos de imersão possibilitaram registrar uma significativa maioria de domicílios fechados entre os meses de maio e outubro/novembro, bem como significativa queda na qualidade de vida para os moradores que permanecem no local, na sua maioria, idosos, mulheres e crianças. A partir de junho, até ao final de outubro, observou-se que diminui sensivelmente o ritmo do trabalho de organização e consolidação de ações que exigem decisões, tanto da comunidade quanto das famílias, que evidenciam a ausência de seus homens em condições de trabalhar e de decidir. Em seis das 15 comunidades quilombolas do município de Chapada do Norte, por exemplo, foi necessário encaminhar para órgãos governamentais a demanda por cestas básicas, uma vez que havia sérios problemas de segurança alimentar naquelas comunidades. Ficou claro, para a pesquisa, que a remessa de dinheiro para as famílias que permanecem na comunidade acontece de forma quase insignificante. Entre os impactos mais visíveis das migrações, como já foi referido, existe alguma descontinuidade nesse processo de organização da comunidade para a defesa de seus interesses, com a ausência periódica de vários dos seus moradores, que lotam caminhões e ônibus, criando rotas clandestinas, utilizando veículos sem condições adequadas para transporte de passageiros, sobretudo a partir de maio e junho, com retorno de outubro a dezembro, na maioria dos casos. Há outros problemas que resultam das migrações: no retorno dos trabalhadores, constam informações dos agentes de saúde, quando estes 102


existem nas comunidades, com registro de alta incidência de doenças sexualmente transmissíveis, incluindo um alarmante índice de contaminação por HIV, em um dos povoados quilombolas do município de Chapada do Norte, na região do Jequitinhonha. Mas o principal impacto se associa a uma continuidade do processo de precarização e exclusão do trabalho e dos trabalhadores, que atinge de forma pesada as comunidades tradicionais (tanto quilombolas como indígenas), marcando uma sucessão de carências que tornam imprescindível a construção de tecnologias sociais de inclusão produtiva que tenham suficiente maleabilidade para se adequarem às características, às necessidades e aos desejos de cada comunidade (HORTA; COSTA; ROLDAN, 2007). Para se construírem dentro dessas exigências, os procedimentos devem estar solidamente comprometidos com a construção participativa da subjetividade social para uma projeção emancipatória (HERNANDEZ, 2005, p. 109-110). Elaborações conceituais voltadas para uma autotransformação social participam desse processo e introduzem ações localizadas de inclusão universitária para os jovens quilombolas, além de encaminhar cursos de capacitação apoiados na identificação de demandas realizada pelo projeto. Com as ações em processamento há relativamente pouco tempo, é prematuro avaliar os resultados. Outro ponto que pesa nessa busca de uma observação mais segura é o caráter quase “piloto” desses projetos. As políticas públicas para essas populações ainda não se articulam em uma estratégia de totalidade, ao mesmo tempo que a destinação de recursos para essas políticas não atende as efetivas necessidades geradas por um processo que discrimina, há séculos, as suas comunidades. Assim, um dos problemas da efetivação dos processos de inclusão dessas populações passa a ser a descontinuidade, reforçada por questões de ordem cultural, pelas questões de obstáculos articulados com a política local e até pelas mudanças de prioridades em órgãos decisórios distantes do campo de trabalho. A experiência tem mostrado que uma forma de enfrentar esses dilemas passa pelo fortalecimento político das comunidades. É compreensível que uma comunidade, seja de moradores de uma região seja de um extrato ocupacional caracterizado pela sazonalidade, tenha uma probabilidade maior de envolvimento e comprometimento na solução de seus problemas se tiver se envolvido na identificação e na discussão de alternativas sobre eles. Nas comunidades quilombolas que foram trabalhadas pelo NESTH, a utilização de metodologias participativas foi marca essencial da atuação do núcleo. 103


Construção de metodologias participativas: experiência e consolidação A utilização e o aperfeiçoamento de metodologias participativas desenvolvidas pelo Laboratório de Tecnologia Social do NESTH, junto a comunidades garimpeiras, quilombolas e a populações urbanas de áreas afetadas pela mineração, vêm passando por novos experimentos, sempre associados aos elementos de realidade que surgem no decorrer dos projetos desenvolvidos junto a essas comunidades. Neste relato de experiências, pretendemos descrever os processos de aplicação e implementação de metodologias apoiadas nos princípios da pesquisa-ação-participativa, que são utilizados também por outros grupos de pesquisadores, a exemplo do Centro de Investigaciones Psicológicas y Sociologicas de La Habana (CIPS), órgão ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia de Cuba. A experiência com metodologias participativas do NESTH avançou sensivelmente, a partir de 2007, quando tiveram início os projetos do núcleo com comunidades quilombolas. Esses projetos, na época contratados pelo governo estadual, possibilitaram a criação e a aplicação de instrumentos metodológicos específicos, voltados para o estímulo à autoconstrução de uma subjetividade cidadã dessas comunidades. A investigação-ação-participativa com essas comunidades partiu do conhecimento delas sobre a sua própria realidade, com vistas a que elas pudessem consolidar sua inclusão cidadã e ter influência efetiva e decisiva nas questões que dizem respeito a sua vida, sua identidade e seu território. A partir do planejamento das ações do primeiro projeto, “Quilombolas de Minas Gerais: resgatando raízes”, iniciado em 2007, as primeiras idas a campo sinalizaram rumo a uma construção multidisciplinar, participativa, no compromisso de que o trabalho da universidade pública fosse de fato útil para essa parcela do nosso povo, historicamente marginalizada. Buscou-se uma metodologia que, mais do que ser apenas um diagnóstico, pudesse estimular o desenvolvimento de subjetividades e espaços de participação comunitária para a transformação social. É fundamental ressaltar que o objetivo estratégico da pesquisa-ação é contribuir para o desenvolvimento da subjetividade social (subjetividade cidadã, a necessária subjetividade política dos cidadãos em uma república) das comunidades, para que elas próprias possam resolver seus problemas e dar sustentabilidade às soluções obtidas. Subjetividade social, aqui, deve ser entendida como 104


processo que estabelece pautas, modula e reordena a ação individual, grupal, como também nas diferentes escalas em que se realiza o social. Isto enfatiza as possibilidades de pensar os sujeitos em diferentes níveis do social-individual, grupal, intergrupal, organizacional, interorganizacional etc. – como atores com capacidade de ser agentes de mudança, e não meros reservatórios que interiorizam a partir de uma noção de reflexo o contexto onde se realizam (RODRIGUEZ; CARRAL; RODRIGUEZ-MENA, 2010, p. 56-57).

O trabalho se orientou pela construção dos seguintes instrumentos: 1º – Entrevista qualitativa embasada na tradição oral. Imersão no campo e aproximação com a comunidade. “Assuntar”. “Café com prosa”, “Escuta à beira do fogão de lenha”. A abordagem antropológica exerce um papel fundamental, sempre que qualquer trabalho envolva um universo com características particulares, e a antropologia desenvolveu toda uma metodologia para tratamento do outro, do diferente. Não cabe estabelecer uma longa digressão sobre a metodologia antropológica, mas apontar o que é relevante para o universo em questão. Trata-se de dar visibilidade a uma realidade, pois, até a década de 1970, não era vista a existência de uma territorialidade negra. Para garantia dessa visibilidade, a Constituição de 1988, em seu Artigo 68 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), trata de reconhecer o direito à terra aos grupos negros, considerados remanescentes de quilombos. Coube à antropologia elaborar toda uma discussão teórica pautada na noção de grupos étnicos e de identidade étnica, para o artigo ser ampliado, não permanecendo apenas a visão histórica que remetia a uma ideia de quilombo não mais correspondente à realidade existente. Essas características continuam em jogo, quando se trata de estabelecer políticas públicas para as comunidades quilombolas. Daí a necessidade desse instrumento, para que essas políticas públicas não sejam tratadas e trabalhadas numa perspectiva genérica, como muitas vezes acontece com as políticas públicas. Isto, porque, se as comunidades que a partir do Decreto 4887, de 20 de novembro de 2003, têm o seu direito garantido segundo critérios de autoatribuição, em realidade, apenas terão a propriedade, após um longo processo, durante o qual essas comunidades deverão ser visualizadas como grupos étnicos, “com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra 105


relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (Art. 3º da Instrução Normativa do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra). Não se trata aqui de garantir o direito à terra, mas de, ao levar as características apontadas tanto no Decreto 4887 quanto no Art. 3º da IN do Incra em consideração, termos como horizonte um fortalecimento da identidade étnica desses grupos, para que se situem com mais eficácia enquanto sujeitos no processo de definição do que é melhor para eles enquanto política pública. No que se refere, especificamente, à criação do instrumento organizado através do enfoque qualitativo, o que se busca é estabelecer um conhecimento sobre as comunidades onde se realiza uma apreensão da história da ocupação da terra, da organização social, dos aspectos culturais e religiosos, das relações interétnicas com seu histórico e eventuais conflitos, do relacionamento do grupo com a realidade circundante, sua autodefinição e da coletividade envolvente. 2º - Questionário qualitativo dirigido a quem faz a relação efetiva e afetiva com o quilombo, quem busca documentação, liderança, porta-voz da comunidade, professor(a) da escola, agente de saúde etc. Ao se formularem as questões, é importante que o pesquisador já tenha conhecimento advindo da observação e de informações colhidas anteriormente e já na situação de campo, bem como impressões suas. As questões são abertas, e as pessoas devem sentir-se à vontade para falar livremente. Elas devem abranger as seguintes áreas: 1. Histórico da ocupação; 2. Religião, locais sagrados, rituais; 3. Características da linguagem cotidiana local; 4. Relações interétnicas; 5. Existência de conflitos entre a comunidade e a cidade, a comunidade e os outros grupos: “A pesquisa de campo é um aspecto essencial de qualquer abordagem da pesquisa-ação. É necessário conhecer bem os contextos ambientais de toda ação particular. Isso requer uma captação sistemática dos elementos problemáticos, dos atores implicados e dos desafios de transformação de dada situação” (DIONNE, 2007, p. 69). 3º - Questionário dirigido ao grupo familiar, ao chefe do grupo doméstico. Com base nas informações recolhidas nesses dois instrumentos, os entrevistadores vão melhor preparados para conduzir a dinâmica de diálogo com o poder público e a sociedade civil do município. Dessa forma, acreditamos provocar/tornar mais transparentes os posicionamentos políticos desses agentes para o planejamento e a implementação de políticas públicas para as comunidades quilombolas. 106


4º - Entrevista qualitativa para identificar as representações que se organizam em torno da comunidade quilombola, conhecendo um pouco mais sobre as mentalidades dos diversos atores locais e posições político/ideológicas sobre ações afirmativas de valorização da identidade étnica, captando opiniões influentes no senso comum e na produção de políticas no município. Na linguagem de Michel Foucault, seria a identificação do “regime local de produção da verdade” sobre a comunidade quilombola. Aplicado aos representantes do poder público (prefeituras, órgãos como EMATER – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural), comerciantes, fazendeiros do entorno das comunidades, representantes de sindicatos rurais, diretores de escola/professores. Tem o papel de termômetro da realidade político-econômica de cada município, também fornecendo subsídios para a equipe elaborar as estratégias de aproximação, montagem e condução do Encontro Local. 5º - Encontro Local – Reunião comunitária envolvendo os diferentes atores locais em microarenas participativas, visando à validação das informações colhidas pelos instrumentos anteriores e à produção de enunciados coletivos que expressem as demandas das comunidades pesquisadas. Realizada em espaços de referência das comunidades, como escolas, igrejas, etc. A Microarena Participativa foi introduzida durante a pesquisa como recurso para explorar os limites e as potencialidades que se apresentaram a partir da aplicação dos instrumentos anteriores. Seu pressuposto é a ampla mobilização da comunidade que, por meio de visualização participativa, certifica as demandas identificadas a partir da aplicação dos questionários e entrevistas. 6º - Estímulo às potencialidades e à organização da subjetividade social. Série de encontros na comunidade, para realizar oficinas que reforcem vocações presentes ou recuperem vocações interrompidas, no sentido de fortalecimento da identidade. No decorrer dos encontros, o levantamento participativo dos problemas e das necessidades identificados pela comunidade constitui um dos focos de atenção da metodologia (COLECTIVO DE AUTORES, 2004). As reuniões incluem os diversos segmentos da comunidade, reforçando a ideia da “união” para a solução dos problemas e a busca de aproximação com as demais comunidades quilombolas do município. Nesses encontros, organizam-se os preparativos para o sétimo instrumento metodológico. 7º - Encontro Quilombola na Sede Municipal. Neste instrumento, organiza-se a ida das comunidades até a sede do município, preferencialmente em praça pública, onde elas dialogarão com 107


os vereadores, o prefeito, os órgãos de fomento, setores da administração pública local e regional. Nos preparativos, terão sido envolvidas as autoridades municipais, que participam dando apoio ao transporte das pessoas, alimentação, local para descanso, fornecimento de barracas para venda dos produtos dos quilombolas etc. Ao final do evento, as comunidades apresentam sua identidade cultural, por meio de danças, música e práticas de suas tradições que elas mantêm. Essa etapa da metodologia utilizada marca um processo de construção de cidadania e de fortalecimento de práticas, por meio dos quais os quilombolas vão passando a ter mais autoconfiança ao se dirigirem ao poder público local. Se, até relativamente poucos anos atrás, eles tinham o hábito de falar com os políticos numa postura de mais humildade, de quem estava a pedir favores, aqui eles passam a se sentir realmente “patrões” dos políticos, que é algo integrante de uma realidade política e social republicana (THIOLLENT, 1985, p. 90-95). Nos projetos em que existe o objetivo de implantação de etapas voltadas para a geração de trabalho e renda, é importante observar que, desde o instrumento número 6, já se colocam as capacitações, nas oficinas voltadas para o fortalecimento de vocações e práticas já integrantes da experiência, presente ou ancestral, nessas comunidades tradicionais. Parte-se, em seguida, para a construção conjunta de redes de apoio e gestões junto ao poder público, quando se faz necessária a sua participação, por exemplo, na construção ou recuperação de espaços para produção, comercialização, ou mesmo meios de escoamento da produção das comunidades. As novas pesquisas e ações de formação desenvolvidas pelo NESTH, se analisadas a partir das transformações no capitalismo que levaram ao aprofundamento de processos de exclusão, apontam para a preocupação de se produzir um conhecimento estrategicamente comprometido com as classes trabalhadoras. Estratégico, no sentido de se recuperar ou se construir o direito de ser trabalhador, por exemplo. A mudança do foco de atuação do núcleo acrescentou às suas práticas o objetivo de se implantar um processo participativo nas ações que visem fortalecer a autoconstrução do trabalhador enquanto portador de direitos e de acesso a bens sociais e às políticas de inclusão. Esses avanços de qualidade no que se refere à abrangência dos projetos, associando o mundo do trabalho com a questão ambiental e com a qualidade da vida, abrem ainda novos espaços para o aperfeiçoamento de práticas que consolidam a cultura da democracia.

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Referências ANTUNES, Ricardo (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006. COLECTIVO DE AUTORES. Compilador: GARCIA, Arnaldo Perez. Participacion Social em Cuba. La Habana: Centro de Investigaciones Psicológicas y Sociologicas, 2004. DIONNE, Hugues. A pesquisa-ação para o desenvolvimento local. Brasília: Liber Livro, 2007. HERNANDEZ, Ovídio S. D’Angelo. Autonomia integradora y transformación social: el desafio ético emancipatorio de la complejidad. La Habana: Publicaciones Acuario, 2005. HORTA, Carlos R; COSTA, Cândida; ROLDAN, Martha. Novas formas de exploração do trabalho e inflexões do modelo de desenvolvimento: precarização do trabalho e migração no século XXI. Revista Políticas Públicas, São Luís, Universidade Federal do Maranhão, v. 11, n. 2, p. 55-82, 2007. RODRIGUEZ, Carmen Lili; CARRAL, Roberto; RODRIGUEZ-MENA, Mario. Apuntes para el estúdio de la subjetividad em el ambito laboral: cuadernos del cips/2009 – experiências de investigación social em Cuba. La Habana: Centro Felix Varela; Publicaciones Acuario, 2010. THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 1985.

Carlos Roberto Horta é mestre em Ciência Política e doutorando em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professor no Departamento de Ciência Política da mesma instituição, coautor dos livros Globalização, Trabalho e Desemprego (Editora C/Arte, 2002) e Cenários, transformações, desafios e perspectivas no mundo do trabalho (EDUA, 2013). É coordenador do Núcleo de Estudos sobre o Trabalho Humano da UFMG e desenvolve projetos em comunidades tradicionais, na área de geração de trabalho e renda e de inclusão cidadã.

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Garimpo em Tenente Ananias (RN) Foto: Regina Ribeiro

Quilombo do Barro Preto - Santa Maria do Itabira (MG) Foto: Flรกvia Assis


Quilombo do Baú – Serro (MG) Foto: Francis Costa

Fabricação de Tambores - Santa Maria do Itabira (MG) Foto: Flávia Assis


Moagem de cana - Minas Novas (MG) Foto: Clebson Souza

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A dimensão formativa do trabalho João Valdir Alves de Souza

Introdução Nas últimas décadas tem sido feita uma intensa campanha contra o trabalho infantil. Essa campanha tem sua razão de ser, pois está cada vez mais claro que a consciência do nosso tempo se sente ferida a cada denúncia de que crianças de todas as idades ainda são violentadas por serem submetidas a exaustivas jornadas de trabalho, em atividades nocivas até mesmo para os trabalhadores adultos. O modo como essa campanha tem sido feita, contudo, corre o sério risco de formar nas novas gerações um forte sentimento de aversão ao trabalho. A ampla utilização de frases infelizes como “criança não pode trabalhar, pois lugar de criança é na escola”, além de constituir uma imagem da escola como lugar de não trabalho, entra em contradição com o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, como se verá. As consequências disso já são sentidas por toda parte: confundida com um parque de diversões, a escola tem sido vista como lugar improdutivo, onde se vai fazer de tudo, menos estudar. Porque estudar é algo muito trabalhoso. Este texto se propõe a dois objetivos: um deles é explorar o conceito de formação, distinguindo-o de seus correlatos educação, escolarização, instrução e ensino; o outro é fazer uma defesa da formação pelo trabalho, incluindo aí a defesa do trabalho infantojuvenil. A fim de evitar sobressaltos entre aqueles que condenam o trabalho infantil, adianto que será feita, também, uma discussão conceitual sobre o trabalho para ressaltar que ele tanto pode formar quanto deformar. Se tomarmos o trabalho como a ação humana sobre a natureza para, sob determinadas relações sociais, produzir as condições da existência, é preciso distinguir os diferentes tipos de trabalho e destinar às crianças apenas aquela porção do trabalho adequada a elas. E é preciso dizer com clareza que a campanha deve ser contra a exploração do trabalho, sobretudo da exploração do trabalho infantil, e não contra o trabalho, porque ele é constitutivo do humano.

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Algumas distinções necessárias Comecemos pelo próprio conceito de formação. Formação é o processo por meio do qual algo toma uma forma, seja material ou ideal, concreta ou abstrata, do mundo natural ou do social. Pronunciada de modo aberto, a palavra forma /ó/ expressa o “modo sob o qual uma coisa existe ou se manifesta” (Dicionário etimológico da língua portuguesa, p. 298). Vem daí o desejo de se reformar algo cuja manifestação expressa uma forma indesejável. Pronunciada de modo fechado, a palavra forma /ô/ expressa a estrutura sob a qual algo deve ser submetido. A formação de que se tratará a seguir diz respeito ao processo em que, pelo trabalho humano, algo ou alguém toma forma /ó/, e não o processo pelo qual algo ou alguém é submetido a uma forma /ô/. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDBEN 9394/96, reconhece na diversidade da vida social as diversas possibilidades de formação. Em seu primeiro artigo, ela diz que “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. A lei diz, ainda, que seu propósito é disciplinar a “educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, em instituições próprias” e que “a educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social”. No entanto, por tratar-se de uma lei que regula a educação ministrada nas escolas, ela deixa indistinta a relação entre educação e formação. Dizer que a “educação abrange os processos formativos” não diz nem o que é educação nem o que são os processos formativos. Como no discurso corrente já não se fazem as devidas distinções entre educação e escolarização, instrução e ensino, esses vocábulos acabam por ser tratados como sinônimos, o que traz confusão ao entendimento conceitual e muitas dificuldades na ordem prática. É claro que a educação está intimamente relacionada aos processos de formação humana, assim como ensino e instrução são seus principais elementos constitutivos e a escola, um importante lugar da sua realização no mundo moderno. Mas, se o senso comum – e até mesmo os meios acadêmicos – tem tratado tudo isso como sendo a mesma coisa, torna-se necessário fazer as devidas distinções para que não se tome um conceito pelo outro. Até mesmo a palavra educação parece ter adquirido um significado tão amplamente reconhecível que já não nos parece ser necessário perguntar o que ela é (SOUZA, 2012). Torna-se necessário, pois, distinguir esses termos para que seja possível explicitar a dimensão formativa do trabalho. 114


Formação é, então, como foi dito, um processo, e todo processo precisa ser situado no tempo. Serão destacadas, aqui, duas dimensões do conceito: uma na ordem social; a outra na ordem da personalidade.1 Uma diz respeito à sociedade; a outra diz respeito ao indivíduo. Se cada sociedade tem uma história, cada indivíduo que a constitui também tem a sua. Formação é, pois, um conceito sócio-histórico. Quando falamos em uma formação social qualquer, queremos destacar os elementos constitutivos da história de um povo, da sua organização econômica, política, social e cultural. Se queremos destacar a formação social de Minas Gerais, do Brasil ou da América Latina, temos de considerar todos os elementos históricos que entraram em jogo na configuração de cada uma dessas realidades, o que, a despeito das semelhanças que podem ser aí observadas, faz de cada uma delas uma realidade muito distinta da outra. Nesses três recortes vamos encontrar elementos culturais provenientes das três grandes matrizes da nossa formação (ameríndia, europeia e africana), mas não apenas cada uma dessas matrizes já é muito diversificada na origem, como o processo no qual se deu a fusão desses elementos no tempo, sob condições objetivas muito diferentes, gerou produto cultural muito distinto. Essa formação resultou, portanto, de todo o conjunto de fatores que constituiu a história geral e particular de cada uma dessas sociedades. Se tomarmos o conceito de formação no âmbito da personalidade, teremos algo muito semelhante tanto em relação ao processo quanto em relação ao resultado. Nesse caso, no entanto, sobretudo no mundo moderno, torna-se mais evidente o papel dos sistemas de ensino na formação da personalidade, ao mesmo tempo em que se nota ampla confusão conceitual, pois que formação, educação, instrução e ensino aparecem equivocadamente como se fossem a mesma coisa. Torna-se, pois, necessário esclarecer esses conceitos a fim de limpar o terreno e produzir uma visão suficientemente clara para evitar confusões. Observemos como o linguajar cotidiano produziu e reforça essa confusão. Todo mundo se acostumou a chamar de formatura ao ritual de encerramento de um percurso escolar. E, mesmo que se tenha claro que um curso de graduação, nos dias atuais, permite apenas uma formação inicial, ninguém deixa de festejar essa formatura e de associar efetivamente ao percurso feito uma trajetória de formação. E quanto mais nos aproximamos do nosso tempo, mais vemos atribuir-se à escola essa tarefa da formação, sobretudo quando se trata de formação profissional. Mas a centralidade que a escola adquiriu no mundo 1 -   Não será tratada, aqui, a dimensão do mundo natural, como o das formações rochosas, por exemplo.

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moderno fez dela um espaço do qual se reivindica, também, a formação do cidadão, a formação do caráter, a formação do senso ético e estético etc. Vem daí a confusão entre formação, educação, escolarização, instrução e ensino. Nem sempre, contudo, foi assim. Até o advento da escola de massa ou, pelo menos, da universalização da escola fundamental, o que variou de país para país, de estado para estado dentro de um mesmo país, ou de município para município dentro de um mesmo estado, a formação não estava associada aos processos de escolarização. O advento da escola para todos, direito do cidadão e dever do Estado, sobretudo a partir do século XIX, deslocou para a instituição escolar os processos de formação porque o modo capitalista de produção necessitou de um novo trabalhador e de uma nova personalidade ajustada às novas condições de trabalho. Mas a escola moderna não se constituiu como uma instância politicamente neutra: ela estava intimamente associada ao projeto burguês de sociedade que emergiu das revoluções burguesas que abalaram a Europa a partir do século XVII. Foi nesse contexto que se constituiu, cada vez mais intensivamente, a associação entre formação e educação e entre educação e escola, a tal ponto de não fazermos distinção, hoje, nem mesmo nos debates acadêmicos, entre educação e escolarização. Não há dúvida, contudo, de que na maior parte das vezes que falamos em educação é de escola que se fala. Ora, mas escola é lugar de instrução e ensino, não necessariamente de educação. Entre o desejo de que a escola se constitua como instituição educadora e a realidade concreta das práticas cotidianas vai considerável distância. Como já foi discutido em outro texto (SOUZA, 2012), ensino é o termo mais elementar entre todos esses em debate aqui. Ensino é o ato de tornar possível uma aprendizagem. Em princípio, qualquer pessoa dotada de alguma capacidade de discernimento é capaz de ensinar algo a alguém e, se se pode haver aprendizagem sem ensino, não há ensino que não esteja orientado a um aprendiz. Daí a referência sempre a uma relação entre ensino e aprendizagem. A escola moderna assumiu a tarefa de ensinar, mediante processos específicos, em lugares adequados e profissionais formados e treinados, aquilo que a vida doméstica já não mais comportava em função das novas exigências do mundo moderno. Ao ensino voltado para a realização de uma tarefa específica, uma aplicação imediata ou uma instrumentalização para o trabalho dá-se o nome de instrução. Instruir é dar uma utilidade prática ao ensino. Como essa sociedade moderna começou a se desvincular, cada vez mais, do ensino desinteressado, do ensino que não estivesse voltado para uma prática concreta e uma aplicação imediata, ao processo de ensino realizado 116


nas escolas deu-se o nome de instrução. A instrução pública começou a entrar na pauta dos governos e a se constituir cada vez mais como política de Estado. Fica claro, portanto, que uma coisa é o ensino e a instrução ministrados na instituição escolar, cujo conjunto de práticas pode ser inscrito no vocábulo escolarização; educação, no entanto, é coisa de outra natureza, pois que ela é uma prática social ou ação orientada por um valor (econômico, político, social, ético, estético) assumido como relevante. Se a educação supõe algum ensino e alguma instrução, ela vai muito além, pois, como apontam vários autores, de Durkheim a Paulo Freire, passando por Antonio Gramsci, Karl Mannheim e Hannah Arendt, ela nunca é neutra e sempre está assentada em uma dimensão valorativa. Daí a positividade com que a educação tem sido historicamente encarada. Leiamos Durkheim a esse respeito: Se o ensino científico não pudesse ser justificado de outra maneira, deveríamos resignar-nos a ver nele nada mais do que uma espécie de ensino inferior, mais ou menos desprovido de qualquer valor educativo. Não há dúvida, com efeito, que um ensino só é educativo na medida em que for de natureza a exercer sobre nós mesmos, sobre nosso pensamento, uma ação moral, isto é, se ele mudar alguma coisa no sistema de nossas idéias, nossas crenças, nossos sentimentos (DURKHEIM, 1995, p. 314).

A educação é uma prática social que ocorre em todas as sociedades que ora existem ou que tenham existido, com ou sem escolas, com ou sem teorias pedagógicas, com ou sem sistemas de ensino (BRANDÃO, 1995). Não é uma prática social qualquer, pois para a palavra educação deveríamos reservar, como diz Durkheim, apenas aquela que deriva de uma ação orientada por um valor e que esse valor não seja o produto de uma única mente, ainda que brilhante, mas que expresse certos estados mentais de uma determinada coletividade de sujeitos. O fato de se ter associado cada vez mais educação à escola apenas diz respeito às novas exigências do mundo moderno, cujas unidades domésticas (famílias, clãs, comunidades) se revelaram insuficientes para garantir a educação de que ele necessitava. Essa prática social, contudo, é produto de uma ação orientada por um valor, o que supõe que aquele que age o faz em nome dos mais elevados ideais que uma determinada sociedade é capaz de elaborar. A educação é, pois, uma ação. Durkheim diz que é a ação das gerações adultas sobre aquelas que ainda não estão preparadas para a vida 117


social (DURKHEIM, 2008, p. 53). Preparar para a vida social é formar as novas gerações em conformidade com determinados ideais de vida e sociedade. A dimensão formativa é o processo que constitui cada sociedade, na semelhança pelo que é comum à espécie, na diferença pelas diversas formas de educar. A escola assumiu essa tarefa no mundo moderno e construiu modos próprios para formar cidadãos e trabalhadores. Por mais importante que seja seu papel, contudo, em nenhum momento ela substituiu o trabalho no processo de formação humana.

Trabalho e escola: “você trabalha ou estuda”? Nosso vocabulário ainda está à espera de uma palavra que traduza de modo mais adequado o que se faz efetivamente na escola. Essa contraposição que situa em lados opostos o “trabalho” e o “estudo” faz da escola um lugar do não trabalho ou, no máximo, trabalha-se esporadicamente, quando o professor pede para o aluno “fazer um trabalho”. Não deixa de ser curioso como o senso comum criou historicamente uma concepção de “estudo” como não trabalho. Mas a etimologia e um pouco de história dos processos de formação social nos dão algumas boas pistas para o entendimento da questão. A palavra trabalho vem de trípãlíum, que era um equipamento utilizado na colheita de cereais, composto por três paus, e que foi convertido em instrumento de tortura. Trípãlíãre é o mesmo que torturar, isto é, submeter alguém a um castigo físico. O sentido original da palavra “trabalho”, desde tempos remotos, portanto, diz respeito ao sofrimento, à tortura e ao castigo. Ir para o trípãlíum poderia ser tanto ocupar-se das atividades manuais quanto ser torturado por não cumprir as atividades determinadas como tarefa. Essa noção de trabalho como sofrimento e castigo, no entanto, na cultura ocidental, está ligada ao mito de origem, como marca da condenação divina em algum momento após a criação. Todos conhecem o registro religioso das nossas origens conforme aparece no Gênesis. Segundo esse registro, Deus criou tudo o que existe no mundo, inclusive o homem e a mulher que deveriam nele habitar. Ordenou, contudo, que deveriam desfrutar do paraíso, mas não poderiam comer do fruto proibido. Não conseguindo evitar a tentação, a mulher provou do fruto e dele fez provar também o homem. Como decorrência dessa desobediência, Deus puniu a todos e os condenou a ganhar o pão com o suor do rosto. Vejamos a descrição bíblica. 118


Disse também à mulher: “multiplicarei os sofrimentos do teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio”. E disse em seguida ao homem: “porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e em pó te hás de tornar” (GÊNESIS 3, 16-20).

Mais que sofrimento e castigo, portanto, o trabalho aparece aí como expiação da culpa, o preço pago pela desobediência às ordens do criador. Esse mito de origem, tão extraordinariamente bem retratado no Gênesis (gênese, gen, gene, geração, genética, origem), constitui um dos primeiros registros do modo como a produção material da vida exige uma força externa coagindo sobre nossas vontades individuais, cuja tendência natural é ao ócio e não à ação. Como afirma Freud, [...] expressando-o de modo sucinto, existem duas características humanas muito difundidas, responsáveis pelo fato de os regulamentos da civilização só poderem ser mantidos através de certo grau de coerção, a saber, que os homens não são espontaneamente amantes do trabalho e que os argumentos não têm valia alguma contra suas paixões (FREUD, 1974, p. 18).

Se o trabalho está associado a sofrimento e castigo, algo que não se realiza sem fortes coerções externas, uma pressão da civilização e fonte de mal-estar, a palavra “escola”, vulgarmente conhecida como “lugar de estudo”, tem sentido bem diferente. Originária do latim schõla, que por sua vez deriva do grego skholé, escola significava “descanso, repouso, lazer, tempo livre; estudo; ocupação de um homem com ócio, livre do trabalho servil, que exerce profissão liberal” (HOUAISS, p. 1.206). Ainda que este autor traga a informação de que, com a evolução semântica, o termo schõla deixou de ser sinônimo de ócio e lazer, significando, isso sim, “que, deixando de parte as demais ocupações, as crianças devem dar-se aos estudos próprios de homens livres”, permaneceu nas expressões do linguajar cotidiano a oposição entre trabalho e estudo. “Você trabalha ou estuda”? “Você trabalha e estuda”? 119


Assim como houve mudança semântica relativamente à palavra escola, também houve significativa mudança em relação ao entendimento social do que seja o trabalho. A principal contribuição para essa mudança vem de João Calvino, teólogo protestante do século XVI, um dos grandes nomes da Reforma religiosa operada na Europa de então e expandida para todo o mundo. A principal referência para a compreensão dessa mudança é a obra seminal de Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, de 1904. Nela, Weber se ocupa em explicar as mudanças mentais operadas por uma nova concepção teológica, que, em vez de ver o trabalho como sofrimento e castigo, apontava a riqueza acumulada como recompensa pelo esforço e labuta incessantes e o resultado desse processo como um indício de manifestação da Graça divina. Para os calvinistas, o trabalho dignifica e enobrece o homem. Ao trabalho, portanto, porque o ócio é o maior e o pior de todos os pecados. Apesar de longa, vejamos a bem elaborada leitura feita por Sérgio Paulo Rouanet sobre a questão. Não há quem não conheça hoje em dia a teoria weberiana sobre o papel da Reforma protestante na gênese da modernidade capitalista. Para Weber, como se recorda, existe uma relação entre o ascetismo de algumas orientações protestantes, como a dos puritanos ingleses, inspirados em Calvino, e o aparecimento de uma ética econômica que favorece o trabalho, como forma de evitar as tentações mundanas, e estimula a poupança, pois o luxo e o consumo ostensivo revelam uma preocupação condenável com os bens materiais. O trabalho incessante, necessário para evitar uma ociosidade culpada, associado à extrema austeridade nos hábitos de consumo, pode levar à riqueza. Esta não é um mal em si, pois o pecado está na fruição dos bens terrestres, não em sua aquisição. Ao contrário, a atividade aquisitiva, fundada no sacrifício e impondo a renúncia ao prazer, não pode deixar de ser bem-vista por Deus. De resto, a riqueza tem um valor psicológico importante: adepto da doutrina da predestinação, o empresário calvinista não pode nunca saber se pertence ou não ao número dos eleitos, e o trabalho intenso, abençoado pela prosperidade, pode ser uma prova de ter sido escolhido pela graça divina. Examinando não somente a teologia de Calvino e Lutero, mas as recomendações pastorais contidas nos livros de devoção da época, como os de Baxter e de Wesley, Weber 120


está convencido de que essa doutrina, pregada nos púlpitos e ensinada nos manuais piedosos, contribuiu para formar um tipo de personalidade ajustada às exigências da acumulação capitalista. Filtrada pelos sermões, a teologia transformou-se em ética, que levou a uma organização racional caracterizada pelo estrito planejamento de todas as atividades, pelo aproveitamento integral do tempo, pela dedicação incondicional ao ofício, ao Beruf, e esse estilo de vida “racional” acabou se convertendo num dos suportes mais importantes do processo de racionalização. Foi por essa via que a Reforma, como constelação ideal, veio a funcionar como um poderosíssimo veículo de modernização (ROUANET, 1993, p. 123).

Se adiantarmos três séculos em relação à época da Reforma, vamos encontrar o modo capitalista de produção bastante consolidado, submetido a intensos processos de modernização, e muitos autores se esforçando para entender as novas formações sociais que se constituíram a partir das Revoluções burguesas. Entre esses autores, além dos já citados Max Weber e Émile Durkheim, está Karl Marx, o mais conhecido e notório crítico desse modo de produção, mas, também, aquele em cuja obra o trabalho adquire maior centralidade. Para Marx, a nobreza e a dignidade do trabalho, contudo, não se assentam no argumento religioso de manifestação da Graça divina, mas no fato de ele ser o elemento central da constituição do humano. Em outras palavras, o homem se fez homem pelo trabalho.

Trabalho, educação e formação humana Marx, é claro, fez uma crítica severa do trabalho sob o capitalismo. O problema, no entanto, não está no trabalho em si, mas nas relações sociais de produção que submetem os trabalhadores a brutal exploração. Era fácil perceber que, sob o escravismo e a servidão, o trabalhador era explorado, no primeiro caso porque ele não era sequer proprietário de si mesmo e no segundo porque estava ligado a um senhor por laços de servidão. Teoricamente, no capitalismo, o trabalhador é livre para vender sua força de trabalho, mas é exatamente por desvendar os mecanismos da mais-valia que Marx encontra os argumentos para dizer que sob o capitalismo o trabalhador continuava a ser explorado. Mas não havia, contudo, outra forma de superar essas relações de exploração, senão pelo trabalho. E, assim como em muitos outros 121


autores do seu tempo, para Marx, o trabalho é a categoria central tanto para entender a vida em sociedade quanto para transformá-la. Entendido por esse prisma, o trabalho não é expiação da culpa, nem a manifestação da Graça divina; ele é a ação dos homens sobre a natureza para, na relação com outros homens, produzir e reproduzir as condições materiais e ideais da existência. Essa ação pode ser mais ou menos autônoma, o que se refere ao componente de controle que tem sobre ela aquele que age. Ela é uma ação calculada, pensada, planejada, orientada por um ideal. Na modernidade, o mundo social deixa de ser visto como desígnio divino e passa a ser visto como produto da ação humana. Se ele é produto da ação humana, é possível que o resultado seja decorrente de um projeto? Se é, qual é o projeto que temos para o futuro e qual é a ação que devemos realizar para que esse projeto se torne realidade? Ao criticar o trabalho na sociedade burguesa, Marx não apenas apontava os limites que o sistema impunha à realização dos trabalhadores, como também destacava que, sob aquelas condições, o trabalho havia se tornado fonte de alienação. Em vez de fator de libertação e afirmação do homem, naquilo que há de mais elevado na sua humanidade, o trabalho nada mais fazia do que submetê-lo a uma condição de inferioridade. Alienado do processo de trabalho, o trabalhador perdia o controle sobre o que fazia e como fazia; alienado do produto do seu trabalho, ele perdia a capacidade de apropriar-se do que produzia; em decorrência dessas formas de alienação, ele estaria desprovido da sua própria condição humana, já que trabalhar para reproduzir a espécie e as condições de reprodução da força de trabalho era próprio dos animais, e não do homem livre (MARX, 1978). Ainda que essa crítica fosse severa, Marx não via outra possibilidade de superação da alienação senão pelo trabalho. O que deixava os trabalhadores em situação de desvantagem não era um dado da natureza, mas um determinado conjunto de circunstâncias históricas. E se a vida não era resultado de um desígnio divino, mas de formação histórica, a questão-chave para Marx era apontar para o tipo de ação que expressasse um projeto, já que esse homem em ação deveria se constituir como sujeito da sua própria história. Se havia algo de fundamental na natureza humana era o fato de que, diferentemente dos outros animais, o trabalho se manifestava como produto da ação criativa. Ao fazer analogia entre o trabalho humano e o do animal, Marx destaca a diferença crucial entre um e outro. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua 122


colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador (MARX, 1985, p. 202).

É claro que os animais trabalham e tanto o castor que constrói diques quanto os animais domésticos que estão a serviço do homem, desde tempos imemoriais, realizam significativas mudanças no mundo natural. Mas o primeiro só age em obediência ao que está inscrito no seu código genético e os outros agem por condicionamento. Nada se compara ao trabalho humano, em que os trabalhadores, mesmo submetidos a condições deploráveis de trabalho, sempre têm a potencialidade da criação e a capacidade de transmiti-la às novas gerações. Segundo Carlos Lerena Marx colocou o trabalho e o mundo da produção no centro de suas formulações, incluída a que faz da educação e da escola. [...] Para Marx, não se trata de idealizar o trabalho, mas de convertê-lo na chave de compreensão da realidade: o homem chega a ser homem em virtude do desenrolar-se de sua atividade no trabalho, isto é, graças à sua atividade prática. Através dela produz a sociedade e se produz a si mesmo (LERENA, 1991, p. 121).

Ao analisar as relações de trabalho, Marx destaca três momentos fundamentais da sua organização: o artesanato, a manufatura e a grande indústria (Cf. SOUZA, 2009). Nas sociedades onde predomina a produção artesanal, a população vive praticamente em torno e em função da coletividade. A divisão do trabalho somente existe na sua forma mais primária, separando caçadores e coletores, os que plantam e os que preparam a comida, o trabalho masculino e o trabalho feminino etc. O artesão independente, que faz seus produtos para levar ao mercado, é o responsável pela fabricação deles. Ele prepara a matéria-prima, realiza todas as etapas da fabricação e comercializa o produto na feira. Não constava do projeto de sociedade de Marx o retorno da produção ao artesanato e ele não nutria grande simpatia por esse processo produtivo. No entanto, reconhecia no artesão alto grau de autonomia na realização do trabalho, pelo menos enquanto não estivesse seu produto submetido ao mercado capitalista. É o artesão quem decide o que fazer, o quando fazer e 123


o como fazer. A educação, nesse caso, é uma ação predominantemente de natureza prática, uma vez que o aprendiz necessita aprender a dominar todo o processo de produção, inclusive desenvolvendo novas ferramentas que porventura venha a utilizar na fabricação do seu produto. É muito valorizada a figura dos mestres de ofício, que são os guardiões dos saberes e dos modos de praticá-los. Esses saberes, passados de geração a geração (não por um movimento automático, mas pela ação de sábios educadores), referem-se tanto aos modos de transformar matéria-prima em produto quanto aos valores, aos hábitos e aos costumes que são preservados pela tradição. Predomina, portanto, uma educação informal, isto é, que não tem um tempo determinado para se realizar ou um currículo específico para orientar a relação ensino-aprendizagem. Educa-se pela prática, entre praticantes, num processo em que as relações domésticas, familiares e do grupo de parentesco costumam ser suficientes para formar o novo ser social. Historicamente, contudo, à medida que mais artesãos aumentam a produção de mercadorias e os excedentes permitem ampliar o comércio, mudanças sucessivas vão acontecendo no modo de produzir. Alguns produtores enriquecidos pelo comércio se fixam nas cidades nascentes e, em vez de fazerem eles mesmos os produtos, passam a comprar as ferramentas, as matérias-primas, os cômodos onde possam trabalhar e a pagar um salário em troca do trabalho dos outros. Emerge e se constitui, dessa forma, o trabalho parcelado, dividido, especializado, assalariado, e os burgueses – habitantes dos burgos, as cidades – começam a comprar a força de trabalho – capacidade física e intelectual – daqueles que não conseguem ter o seu próprio negócio. O trabalhador livre, vendendo sua força de trabalho no mercado, foi uma das condições fundamentais da existência do modo capitalista de produção, porque a individuação é o componente básico do liberalismo econômico. O trabalho parcelado, em que cada trabalhador cuida apenas de uma etapa da fabricação do produto, é o elemento que constitui a divisão técnica do trabalho. Para Marx, antes mesmo da maquinaria, o que revoluciona, verdadeiramente, a produção de mercadorias é a adoção em larga escala do trabalho parcelado, uma vez que os trabalhadores se especializam na realização de apenas parte do processo produtivo. A divisão técnica do trabalho, por sua vez, produz significativas mudanças na educação, pois ela passa a exigir do trabalhador uma aprendizagem ligada às atividades específicas que ele vai realizar. Ainda que o aprendiz esteja ligado diretamente ao processo produtivo, sua educação passa a exigir o desenvolvimento de habilidades particulares e peculiares em função dessa nova organização do trabalho. Essa é a fase de predomínio da manufatura, isto é, trabalho feito à mão ou 124


com a utilização de ferramentas simples. A escola começa a ser considerada importante lugar da educação, onde todos não apenas devem ir aprender a ler, escrever e contar, mas, sobretudo, formar uma nova sensibilidade relativamente a esse mundo novo da produção. A manufatura revolucionou a produção ao modificar a forma de produzir mercadorias, isto é, pelo parcelamento das tarefas e entrega de cada uma delas a um trabalhador especializado. Essas transformações se aprofundaram nos séculos seguintes, com a Revolução Industrial, que combinou a mudança no modo de produzir com a introdução da maquinaria na grande indústria. Além da divisão técnica do trabalho e do uso crescente da maquinaria, a grande indústria submeteu o trabalhador à máquina e ao dono dos meios de produção. Marx fez uma severa crítica a essa divisão do trabalho porque ela não permite a todos os trabalhadores desenvolverem suas potencialidades criativas. Ele atribuía grande importância tanto ao trabalho manual quanto ao trabalho intelectual. O grande problema, para ele, era que, na sociedade capitalista, aqueles que se ocupam do trabalho manual estão impedidos de se dedicarem ao trabalho intelectual. Conforme analisa Carlos Lerena: A escola reproduz a separação entre trabalhadores intelectuais e trabalhadores manuais, assim como reproduz a subordinação da ciência ao capital. Separado do trabalho produtivo, o estudo, como operação de mero cultivo pessoal e de passiva acumulação não pode fazer senão reproduzir a cisão entre teoria e prática (LERENA, 1991, p. 131).

Não era pela escola, portanto, que Marx via a possibilidade de mudanças significativas. Se a escola burguesa era parte do aparato da superestrutura do modo de produção capitalista, ela pouco ou nada poderia fazer senão reproduzir a ideologia do sistema no qual está inserida. Aliás, a escola havia se constituído como componente fundamental desse sistema. Para Marx, portanto, a mudança do sistema não passa pela escola, mas pela desestruturação do modo de produção capitalista. Seu desiderato era a realização plena dos homens tanto naquilo que se refere às condições materiais de existência quanto no que se refere à sua realização intelectual. Para Marx, o homem educado é o homem livre e o homem livre é aquele que prescinde da tutela ideológica, seja ela política ou religiosa. Marx está entre os autores que fizeram severa denúncia da exploração do trabalho infantil. Mas é certo que ele não aprovaria, caso presenciasse 125


nos dias atuais, a intensa campanha contra o trabalho infantil. Certamente ele escreveria algo semelhante ao que escreveu sobre os trabalhadores que, em protesto contra as condições de trabalho, quebravam as máquinas, naquele movimento que ficou conhecido como ludismo.2 Segundo Marx, esses trabalhadores não sabiam distinguir a máquina em si dos usos que delas eram feitos. Do mesmo modo, Marx diria, então, que a luta não é contra o trabalho infantil, mas contra a exploração do trabalho infantil. Para Marx, trabalho é toda ação humana que resulta do uso da capacidade física e intelectual para agir no mundo. O homem, como ser no mundo, se faz homem pelo trabalho. E essa aprendizagem deve começar desde tenra idade. Ela é parte constitutiva da formação do humano. Em um livro bem documentado intitulado Educação, saber, produção em Marx e Engels, Maria Alice Nogueira faz ampla discussão sobre o modo como esses autores trataram da relação entre educação e trabalho. E o que ganha destaque na análise é como o trabalho constitui o elemento fundamental da formação humana, ou, em outras palavras, trata-se da análise da dimensão formativa do trabalho. Segundo a autora, o Relatório Oficial do Congresso de Genebra, o primeiro da Associação Internacional dos Trabalhadores, realizado em 1866, “constitui o único texto em que Marx toma, explicitamente, a educação por assunto e tema central de reflexão” (NOGUEIRA, 1990, p. 147). Pode parecer estranho às mentalidades sensíveis do nosso tempo que alguém faça de modo tão explícito a defesa do trabalho infantojuvenil. Essa defesa, contudo, somente se sustenta se esse trabalho estiver associado à dimensão formativa, como, aliás, está presente na legislação brasileira que trata da defesa da infância. Ironicamente, há uma incrível semelhança entre o texto de Marx e o que estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990). Ressalvados o recorte de classes e a idade mínima de 9 anos recomendada para a entrada no mundo do trabalho produtivo, é exatamente o que está nessa lei que Marx defendia. Segundo ele: Numa sociedade racional, qualquer criança, desde os nove anos, deve ser um trabalhador produtivo, assim como nenhum adulto, de posse de todas as suas faculdades, pode-se isentar dessa lei geral da natureza. Se quisermos 2 -   Liderados por Ned Ludd, na primeira metade do século XIX, trabalhadores ingleses quebravam máquinas em protesto porque viam na mecanização a fonte do desemprego e da miséria que acompanhava a formação do capitalismo.

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comer, é preciso trabalhar, e não somente com o nosso cérebro mas também com as nossas mãos (Marx apud NOGUEIRA, 1990, p. 147-148).

Marx considera adulta toda pessoa que completou 18 anos. O Estatuto considera criança a pessoa “até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade” (Lei n.º 8.069, Art. 2.º). No Art. 60, o Estatuto afirma que “É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos, de idade, salvo na condição de aprendiz”. Não estabelece, contudo, qual é a idade para começar a aprender pelo trabalho, mas o Art. 64 afirma que “Ao adolescente até quatorze anos de idade é assegurada bolsa de aprendizagem” e o Art. 65, que ao “adolescente aprendiz maior de quatorze anos são assegurados os direitos trabalhistas e previdenciários”. Segundo Marx, não havia motivos para se ocupar das crianças e jovens das classes abastadas, porque “se a burguesia e a aristocracia são negligentes em seus deveres para com seus descendentes, é um problema delas”. Sua preocupação era com as crianças e jovens das classes trabalhadoras, porque, além de socialmente desprotegidas, eram elas que precisavam dominar as ferramentas da transformação. Seria desejável que as escolas elementares começassem a instrução das crianças, antes da idade de nove anos. Mas, no momento, só devemos pensar nas medidas absolutamente necessárias para contra-arrestar as tendências de um sistema social que degrada o operário, a ponto de torná-lo um mero instrumento para a acumulação do capital; e que, fatalmente, transforma os pais em mercadores de escravos que vendem os seus próprios filhos. O direito das crianças e dos adultos deve ser defendido, uma vez que eles não podem fazê-lo por si mesmos. É, portanto, dever da sociedade agir em seu nome (Marx apud NOGUEIRA, 1990, p. 147-148).

Ora, o que pretende o Estatuto senão proteger as crianças e os adolescentes das arbitrariedades tanto sociais quanto familiares? Essa lei estabelece como limite entre crianças e adolescentes a idade de 12 anos. Algo semelhante ao que Marx havia feito. Como não seria justo tratar a todas da mesma maneira e inseri-las do mesmo modo no mundo do trabalho, crianças e jovens de ambos os sexos foram divididas em três categorias, 127


por idade, e a cada uma dessas categorias deveria ser atribuído um tipo de atividade em tempo rigorosamente controlado. A primeira categoria compreende as crianças entre nove e 12 anos, a segunda, as de 13 a 15 anos, e a terceira, os jovens de 16 e 17 anos. Propomos que a utilização da primeira categoria em qualquer tipo de trabalho, na fábrica ou a domicílio, seja legalmente restrita a duas horas diárias; a da segunda categoria a 4 horas, e a da terceira a seis horas. Para a terceira categoria, deve haver uma interrupção, de pelo menos uma hora, para refeição e recreação (Marx apud NOGUEIRA, 1990, p. 147-148).

Assim como Freud, para quem “as massas são preguiçosas e pouco inteligentes” (FREUD, 1974, p. 18), para Marx, a miséria não deixa muita margem para uma boa utilização da capacidade intelectual e a luta contra essa ignorância deve ser tratada como política de Estado. Isso não é nenhuma novidade, porque desde a primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a de 1789, considerava-se “que a ignorância, o esquecimento e o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos Governos”. Como foi dito, o homem educado é o homem livre, e o homem livre é aquele que está livre da tutela ideológica, seja ela política ou religiosa. Mas a educação não é um produto da natureza, e sim um processo social, cuja construção depende do modo como os homens estabelecem relações entre si. Diz Marx: O trabalhador não age livremente. Frequentemente, ele é muito ignorante para compreender qual é o verdadeiro interesse do seu filho, ou as condições normais do desenvolvimento humano. No entanto, a parte mais esclarecida da classe operária compreende plenamente que o futuro da sua classe e, por conseguinte, da espécie humana, depende da formação da geração operária que cresce. Ela compreende, antes de mais nada, que as crianças e os adolescentes devem ser preservados dos efeitos destruidores do sistema atual. E isto só pode se realizar pela transferência da razão social em força social; o que, nas circunstâncias presentes, só pode ser feito através de leis gerais impostas pelo poder do Estado. Ao imporem tais leis, as classes 128


operárias não estarão fortalecendo o poder governamental. Ao contrário, elas estarão transformando o poder dirigido contra elas, em seu agente. O proletariado fará, então, através de uma medida geral, aquilo que ele tentaria, em vão, realizar através de uma profusão de esforços individuais (Marx apud NOGUEIRA, 1990, p. 147-148).

Ao falar de educação, Marx dedicou poucas palavras à escola. Sua concepção de educação passa necessariamente pelo modo como analisa o trabalho, e é nele que estão efetivamente os elementos materiais da formação humana, conforme muito bem analisa Miguel Arroyo (1991). Marx não seria partidário de uma escola de tempo integral, a menos que parte desse tempo estivesse efetivamente ligada a alguma atividade produtiva. Sua defesa é de que toda tarefa do pensamento desperta maior interesse e permite maior aprendizagem se ele estiver ligado a uma atividade prático-concreta. Toda a sua discussão sobre educação passa necessariamente pela indissociável união entre a dimensão prática do trabalho e o exercício intelectual levado a efeito para a compreensão dos seus processos, numa palavra, a praxis. A essa união entre prática e reflexão sobre a prática deveria se somar a educação física como componente importantíssimo na formação de um corpo física e intelectualmente saudável. Enquanto o Estatuto diz que é “proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz”, Marx dizia que isso era válido tanto para crianças quanto para adolescentes. A sociedade não pode permitir nem aos pais, nem aos patrões, o emprego de crianças e adolescentes para o trabalho, a menos que se combine o trabalho produtivo com a educação. Por educação nós entendemos três coisas: 1) educação mental; 2) educação corporal, tal qual é produzida pelos exercícios ginásticos e militares; 3) educação tecnológica, compreendendo os princípios gerais e científicos de todos os processos de produção e, ao mesmo tempo, iniciando as crianças e os adolescentes no manejo dos instrumentos elementares de todos os ramos industriais (Marx apud NOGUEIRA, 1990, p. 147-148). 129


Além desse entendimento de que a educação deve estar relacionada à dimensão intelectual, corporal e tecnológica, Marx entendia também que a cada fase do desenvolvimento da criança e do adolescente deveria corresponder um tipo particular de ação educativa. Exatamente o que estabelece o inciso II do Art. 63: a “atividade compatível com o desenvolvimento do adolescente” é um princípio que deve ser obedecido pela formação técnico-profissional. Marx defendia, ainda, que crianças e adolescentes deveriam ser protegidos das ocupações que pudessem trazer risco à sua saúde e às condições normais de desenvolvimento. Segundo ele: À divisão das crianças e adolescentes em três categoriais, de nove a 18 anos, deve corresponder uma marcha gradual e progressiva em sua educação mental, física e tecnológica. [...] Fica subentendido que o emprego de criança ou adolescente, entre nove e 18 anos em qualquer tipo de trabalho noturno, ou em qualquer ramo industrial que possa acarretar efeitos nocivos para a saúde, deve ser severamente proibido pela lei (Marx apud NOGUEIRA, 1990, p. 147-148).

Comparemos agora com o que está estabelecido no Art. 67 do Estatuto: Art. 67. Ao adolescente empregado, aprendiz, em regime familiar de trabalho, aluno de escola técnica, assistido em entidade governamental ou não-governamental, é vedado trabalho: I- noturno, realizado entre as vinte e duas horas de um dia e as cinco horas do dia seguinte; II- perigoso, insalubre ou penoso; III- realizado em locais prejudiciais à sua formação e ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social; IV- realizado em horários e locais que não permitam a freqüência à escola.

Grande parte da bibliografia sobre a educação em Marx e em outros autores de filiação marxista centra-se nessa dimensão formativa do trabalho. Ele é o elemento-chave da transformação da realidade e se se quer transformar o mundo é pelo trabalho que isso será feito. Esse é um tema

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amplamente abordado por Miguel Arroyo em um sofisticado texto em que analisa os elementos materiais da formação humana. Trata-se de texto polêmico, em que o autor suspeita de muitas das mais importantes contribuições intelectuais sobre o tema em questão. Dentre essas contribuições contestadas estão aquelas que se sustentam na “negatividade do trabalho” (Harry Braverman, Edgar de Decca) e aquelas que veem algo educativo apenas na resistência às manifestações deformadoras do trabalho (Michael Aplle, Hennry, Henry Girroux e Paul Willis). Enquanto os primeiros veem o trabalho moderno como um princípio destrutivo, deformador e antipedagógico, os outros põem o educativo não no trabalho produtivo, mas sim na resistência a ele. Sobre a negatividade do trabalho, Arroyo cita Edgar de Decca, para quem, “de todas as utopias criadas a partir do século XVI, nenhuma se realizou tão desgraçadamente como a sociedade do trabalho” (ARROYO, 1991, p. 182). Após criticar uns por pretenderem girar para trás a roda da história e outros pelo romantismo com que pretendem ver a resistência ao capitalismo, Arroyo faz uma firme defesa da “positividade educativa do trabalho moderno”, destacando os elementos materiais da formação humana. A formação politécnica que os trabalhadores modernos têm acumulado, o conhecimento das bases científicas e tecnológicas da produção e a capacidade de trabalhar com o cérebro e com as mãos, a onilateralidade que vêm desenvolvendo, têm vindo mais do trabalho e da inserção na produção fabril que da escola. [...] Qualquer saudosismo e qualquer caminho de volta às formas passadas de trabalho como o ideal do trabalho formador é utopia, como é utopia sonhar em novos conteúdos politécnicos na escola, ou no aumento das capacidades teóricas e práticas para salvar o trabalhador da deformação da produção capitalista (ARROYO, 1991, p. 209).

Isso não nos impede, é claro, de discutir o papel da escola e tentar fazer dela um lugar atrativo e relevante para a educação dos nossos alunos. Mas as próprias concepções de trabalho e escola (“você trabalha ou estuda?”) que circulam no senso comum deixam claro o quanto a escola está distante do grande ideal de reconstrução social que ela mesma ajudou a construir.

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Conclusão Em conclusão ao que foi discutido neste texto, quero destacar apenas três aspectos. O primeiro é que a distinção conceitual apontada anteriormente figura tanto como um exercício de ordem teórica quanto de ordem prática. O principal objetivo dessa distinção é destacar que a educação é uma prática social revestida de uma dimensão valorativa, independentemente da natureza dos valores que orientam a ação daqueles que reivindicam para si a tarefa de educadores. Ela nunca é neutra e, por isso mesmo, tem sido cada vez mais associada a uma positividade, pois que o mundo moderno tem sido visto como projeto humano, e não como desígnio divino. Quanto mais se acentua a dimensão de projeto e o entendimento de homem como sujeito da história, mais a educação é vista como parte constitutiva desse projeto. Se a educação é uma prática social, entendida como um conjunto de ações orientadas por diferentes valores, a formação é o processo que põe em jogo os diversos atores. O segundo é que, apesar de os processos de escolarização terem sido apontados como os principais elementos constitutivos da formação, sobretudo profissional, não podemos desconsiderar que é o trabalho, como expressão da ação humana sobre a natureza, seja ele manual seja ele intelectual, o que nos constitui humanos. É o trabalho produtivo e criativo, que se faz pela união da capacidade física e intelectual, como processo social e histórico, que nos distingue de todas as outras espécies. Há trabalhos que deformam. Para eles contamos com a capacidade intelectual de criar máquinas para executá-los. Seria, contudo, ilusão achar que a luta por transformação social não passe pelo trabalho. O terceiro é que esse trabalho e seu valor na constituição do humano deve ser aprendido desde tenra infância. Contrapor trabalho e escola e dizer que “criança não pode trabalhar, pois lugar de criança é na escola” não vai nos levar a lugar algum, a não ser construir uma imagem negativa do trabalho e contribuir com isso para a formação de uma geração avessa ao trabalho. Tem sido comum criticar as unidades domésticas por forjar trabalhadores susceptíveis, desde cedo, à exploração nas ocupações insalubres. Mas se o sujeito trabalhador formado nessa unidade doméstica tem como destino essas ocupações insalubres, a luta não é contra a unidade doméstica, mas contra a exploração do trabalhador nessas atividades. A luta a ser travada não é contra o trabalho infantil, mas contra a exploração do trabalho da criança.

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Referências ARROYO, Miguel G. Revendo os vínculos entre trabalho e educação: elementos materiais da formação humana. In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Trabalho, educação e prática social: por uma teoria da formação humana. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. BÍBLIA SAGRADA. 175. ed. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2007. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. 33. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 23 mar. 2013. CUNHA, Antonio Geraldo. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010. DURKHEIM, Émile. A evolução pedagógica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. Petrópolis: Vozes, 2008. FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1974. HOUAISS, Antonio. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. LERENA, Carlos. Trabalho e formação em Marx. In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Trabalho, educação e prática social: por uma teoria da formação humana. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. MARX, Karl. Manuscritos de París. México: Grijalbo, 1978. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Difel, 1985. v. 1.

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NOGUEIRA, Maria Alice. Educação, saber, produção e m Marx e Engels. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1990. ROUANET, Sérgio Paulo. Mal-estar na modernidade: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. SOUZA, João Valdir Alves. Introdução à Sociologia da Educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. SOUZA, João Valdir Alves. Educação. Presença Pedagógica, v. 18, n. 105, p. 64-70, maio/jun. 2012. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 11. ed. São Paulo: Pioneira, 1996.

João Valdir Alves de Souza é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em Educação pela mesma instituição e doutor em Educação pela PUC-SP. É professor associado de Sociologia da Educação da Faculdade de Educação da UFMG.

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Práticas inovadoras de ocupação e trabalho

Seminário Vale do Jequitinhonha: Ocupação e Trabalho - Proex/UFMG 2012 - Belo Horizonte (MG) Fotos: Lori Figueiró

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Seminário Vale do Jequitinhonha: Ocupação e Trabalho - Proex/UFMG 2012 - Belo Horizonte (MG) Fotos: Lori Figueiró


Associação das Mulheres de Ponto dos Volantes: boas práticas de organização de mulheres Resolvemos criar uma oficina de costura em Ponto dos Volantes. Mas como criá-la, se todas as mulheres eram casadas, ninguém trabalhava fora e não tínhamos uma renda para custear essa oficina? Foi então que obtivemos ajuda das técnicas do Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), que redigiram um projeto de arte e cultura para pedir ajuda ao prefeito. Ele, porém, informou sobre a impossibilidade de fornecer recursos sem que prestássemos um serviço ao município. Recebemos, então, o adiantamento com a responsabilidade de fundar a oficina de costura e confeccionar os uniformes de alguns setores da prefeitura. Era essa a nossa forma de pagamento. Aceitamos sem saber muito bem o que estávamos fazendo. Éramos 25 mulheres quando assumimos o compromisso. A ideia surgiu em 2005, mas o dinheiro para começarmos – R$ 5 mil – só veio dois anos depois. Com esse recurso, foram compradas três máquinas semi-industriais. Coube à prefeitura pagar o aluguel do galpão onde trabalhávamos. Tivemos, também, um curso de serigrafia que durou dois dias e nos capacitou para confeccionar os uniformes. Foram seis meses de trabalho sem remuneração até conseguirmos entregar os uniformes. Todos elogiaram nosso trabalho e, em função disso, surgiram diversos pedidos de uniformes, principalmente de lojas. Mas de repente as máquinas estragaram, pois eram semi-industriais e não suportaram a carga de trabalho. Nesse momento, de 25 mulheres, restaram apenas 11. Decidimos comprar uma máquina industrial a prazo no valor de R$ 3 mil. Com o dinheiro dos uniformes, conseguimos pagá-la. Toda a receita que tínhamos até então era gasta com a própria produção, logo, não tínhamos lucro algum. Depois de quase um ano e meio, só restavam sete mulheres na equipe. O prefeito sugeriu que buscássemos a inserção no Programa de Combate à Pobreza Rural (PCPR), por meio de um projeto para o financiamento da construção da nossa sede. Quando decidimos tentar o programa, saiu mais uma colega. A essa altura, éramos apenas seis. E os pedidos não paravam de chegar. Como precisávamos, ainda, de um terreno para a futura sede, procuramos alguém que o financiasse, para que pagássemos mês a mês, porque à vista era impossível. Conseguimos com o dono de um depósito de materiais de construção, que tinha interesse em nos vender material quando fôssemos construir. Compramos o terreno sob esse compromisso. Pagamos R$ 3 mil de entrada e R$ 12 mil em oito meses. Somente depois de três anos fomos 137


contempladas pelo programa e conseguimos R$ 40 mil para a construção da sede própria. Realizamos a construção, a inauguração e a prestação de contas, além de conseguirmos adquirir mais maquinário, que atualmente corresponde a dez máquinas. Hoje, também desenvolvemos projetos sociais e participamos de conselhos, sempre dando nossa contribuição social. O mundo está nas mãos de quem tem coragem e sabe esperar. Ninguém da equipe levou um “tostão” para casa durante três anos. Agora, a associação é autônoma, conseguimos nossa independência.

Fala: Roseane Borges dos Santos Andrade e Laudiana Barboza da Silva Borge Transcrição: Caio Ribeiro Paranhos

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Ocupação, trabalho e renda: a experiência do Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV) O Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV), associação sem fins lucrativos criada em 1994, pauta-se no interesse dos próprios agricultores e agricultoras organizados no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Turmalina, voltando-se para a discussão, formulação e realização de atividades adaptadas às características sociais, econômicas e ambientais da região. Tendo por base uma metodologia que envolve agricultores e agricultoras enquanto sujeitos das ações, desde o planejamento até a avaliação, a experiência que o CAV tem desenvolvido nos últimos anos – e que tem dado bons resultados – deriva do cruzamento entre conhecimento científico e conhecimento prático. Esse método de trabalho tem caráter emancipador e sustentável e visa construir condições favoráveis para que, paulatinamente, os agricultores atendidos possam traçar seus próprios destinos de forma independente, com a presença cada vez menor da entidade, que então poderá expandir suas atividades até locais ainda não abrangidos. Nessa direção, cabe ao técnico(a) ouvir o(a) agricultor(a) e propor ações que tenham como referência o potencial e a capacidade dos(as) próprios(as) agricultores(a) em suas propriedades. O CAV e as comunidades rurais construíram e vêm consolidando propostas que agregam melhoria às condições de vida, com a necessária atenção à conservação e ao uso sustentável dos recursos naturais do semiárido. As iniciativas atualmente desenvolvidas voltam-se, também, ao incentivo da produção de excedentes e a sua comercialização por meio do fomento de canais que se apoiam na solidariedade e que valorizam modelos sustentáveis de produção. Nesse sentido, fomenta ações de Economia Popular Solidária a partir da participação em feiras livres nos municípios de Turmalina, Veredinha e Chapada do Norte. Uma vez que o CAV trabalha com agricultores(as) familiares, considera fatores como a produção e a venda. Ao resgatar a história, o Centro de Agricultura Alternativa percebeu que já existiam estratégias sustentáveis, que são as feiras livres, um espaço de venda e troca de produtos e saberes. Na feira de Turmalina, participam os cerca de 170 integrantes da Associação dos Agricultores(as) Familiares Feirantes de Turmalina (AFTUR). Em Veredinha, participam 115 membros da Associação dos Agricultores(as) 139


Familiares Feirantes de Veredinha (Afave). Já em Chapada do Norte, a Associação dos Agricultores(as) Familiares Feirantes (Afachap) é formada por 62 associados(as). O apoio dado pelo CAV às ações de Economia Popular Solidária diz respeito à organização do espaço da feira livre e feirantes. Em Veredinha, por exemplo, auxiliou na negociação com o poder público para implantação do Ponto de Apoio para atendimento aos feirantes. Além disso, auxilia na organização da infraestrutura das feiras, com a aquisição de sacolinhas, forros de bancas, cestos, materiais de divulgação, gaiolas para frangos, entre outros. Também orienta a emissão do Cartão do Produtor Rural. O CAV mantém, pelo menos, mais quatro frentes de trabalho: 1) Acompanhamento técnico às propriedades; 2) Fundo Rotativo Solidário; 3) Apoio à comercialização; 4) Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). O primeiro, acompanhamento técnico às propriedades, envolve o planejamento anual e o acompanhamento das atividades das associações de feirantes; a elaboração e o planejamento de cronograma produtivo; e as visitas técnicas às propriedades. Com o avanço tecnológico, esse trabalho vem tomando corpo no sentido da ocupação, trabalho e renda. É nesse campo que os (as) agricultores(as) vêm evoluindo cada vez mais, tanto financeiramente como no conhecimento. No eixo da produção, acreditamos que é necessário ter o domínio da preservação do solo e da água; no beneficiamento, é preciso ter qualidade para atender às exigências do consumidor; na venda, os (as) produtores(as) têm de conhecer a política do mercado globalizado, para uma efetiva ação local, visto que os concorrentes estão em todos os lados. Mais uma estratégia na produção é a capacitação de produtores(as) com vistas ao domínio dos arranjos produtivos. Entre as ações que envolvem o Fundo Rotativo Solidário, o CAV atua na orientação para a elaboração de projetos do fundo e, ainda, realiza visitas de avaliação e acompanhamento dos projetos aprovados. Em 2012, foram apoiados 86 projetos em Turmalina, 58 em Veredinha e algumas dezenas em Chapada do Norte; realizada a compra conjunta de 580.360 toneladas de esterco aviário. Já o apoio à comercialização envolve pesquisa de mercado em Turmalina, Veredinha e Chapada do Norte; assessoria continuada às associações de feirantes; visitas às feiras livres aos sábados, e apoio ao acesso a mercados institucionais, como o PAA e o PNAE, que compõem a quarta frente de atuação do CAV. Em relação ao PAA/PNAE, o CAV realizou o monitoramento do PAA 2012. No valor de 143.333,02, o projeto atendeu a 14 instituições e envolveu 32 agricultores. Além do apoio para a elaboração de propostas para o

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PNAE, o CAV auxiliou na elaboração do PAA 2013, que visava atender a 31 instituições dos municípios de Turmalina e Veredinha e, aproximadamente, 70 associados. O CAV, juntamente com os(as) agricultores(as) dos municípios de Turmalina, Veredinha e Chapada do Norte, tem identificado um conjunto significativo de desafios a serem enfrentados visando à efetiva “ocupação, trabalho e renda”. Entre eles, destacam-se: legislação imprópria ao (à) agricultor(a) familiar, principalmente quando se trata da Indústria Doméstica Rural, porque tem o mesmo tratamento das grandes agroindústrias do país; e o baixo nível de escolaridade e a falta de uma política educacional adequada aos (às) moradores(as) do Vale. Todavia, em quase duas décadas de atuação, o CAV tem identificado que a formação de grupos de interesse, quer para o debate, quer para a ação, contribui para efetivar a “ocupação, trabalho e renda”. Olericultura, apicultura, fruticultura, piscicultura, entre outros, são exemplos de grupos de interesse que podem ser implantados. A metodologia desenvolvida pelo Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica, aprimorada a cada nova ação, considera que as discussões e ações jamais devem ter um tratamento generalizado, pois isso tira o foco e o interesse dos envolvidos. Retomando o início deste texto, está claro que os bons resultados da atuação do CAV em muito se deve ao cruzamento entre o conhecimento científico e o conhecimento prático. Nesse sentido, a parceria com as universidades tem sido muito interessante, pois, somando-se o conhecimento dos acadêmicos com o dos agricultores familiares, será disponibilizado um produto da melhor qualidade.

Boaventura Soares de Castro Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV) Edição: Angela Zamin

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Rio Jequitinhonha Foto: Lori Figueirรณ



Impresso em papel Off Set 90g/m² Imprensa Universitåria da UFMG Primavera de 2013



O trabalho não é causa da diferenciação entre homens e mulheres no Vale do Jequitinhonha. Ele apenas reflete essa diferenciação que lhe preexiste, diferenciação que impregna todo o tecido social, e não apenas a esfera do trabalho. Há, na verdade, uma universalização dessa diferenciação. Por isso, é necessário frisar que as relações de gênero não dizem respeito apenas à esfera doméstica, privada. E, mais, não são relações que se prendem a uma ideologia como falsa consciência existente apenas nas cabeças das pessoas, como meras ideias. Muito ao contrário. São relações presentes em todas as esferas e são imbuídas de elementos pensados e reais, no sentido de que refletem o real e também o determinam.

Maria Aparecida de Moraes Silva


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