a coisa em si [ano-II.n-I.2020]

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a coisa em si 2020 . ano 2 . nĂşmero 1 . Ponto de Cultura Casa Rosa


/ EDIÇÃO _ Patrimônios Culturais: Direito, Memória e Cidadania Capa: Cine Iris, 1950. Foto de J. Pinto.

¨ Sumário \ Expediente * Redes Sociais ................................................................... 3 A casa e suas narrativas .................................................................... 4 O Portão ........................................................................................... 6 Quarto-Museu ................................................................................... 8 Registros de um século .................................................................... 14 Da casa ao redor ............................................................................. 20 Da ideia ao descuido ......................................................................... 24 Desmoronamento ............................................................................ 26 A lembrança retorne à terra, de onde veio ......................................... 27 Nota Pública .................................................................................... 28 Planta baixa do Fortim ...................................................................... 30


a coisa em si 2020 . ano 2 . número 1 . Ponto de Cultura Casa Rosa

Apresentação O suplemento cultural a coisa em si é uma publicação independente do Ponto de Cultura Casa Rosa _ Memorial Virginia e Carlos Mattos. Sua finalidade é difundir o conhecimento guardado desde a década de 50 na casa onde residiu a família Mattos. O acervo é formado por livros, cartas, documentos e registros históricos sobre Capivari e suas inúmeras famílias, acontecimentos que marcaram a vida cultural e política do município.

Expediente Coordenação_ Maria Augusta Bastos de Mattos João Augusto Bastos de Mattos Revisão_ Maria Augusta Mattos Diagramação_ Bruno Bossolan

Ponto de Cultura Casa Rosa


A casa e suas narrativas

Maria Augusta Mattos

A Casa Rosa, por tanto tempo moradia e incubadora de ideias e encontros para conversas, brincadeiras e debates, está agora nesta fase de transformação em centro de cultura e memória, adaptando seus espaços. A sala da casa continua sendo o lugar da acolhida, das conversas, do deslumbramento com um espaço inesperado em uma cidade que hoje se esconde atrás de muros, afasta-se do centro urbano, e reduz ou mesmo extingue os seus quintais. A sala da Casa Rosa vê a rua e por ela é vista, abre-se para o quintal (flores e jabuticabas), abarca – como se estivesse de braços abertos – os três quartos. Por um de seus lados, se entra na biblioteca com escrivaninhas, livros e mais livros, jornais, notícias arquivadas, cartas selecionadas, pesquisas terminadas, começadas ou apenas esboçadas, textos datilografados ou manuscritos. Pelo outro lado, chega-se à cozinha, o lugar responsável pelos cafés, sucos, biscoitos e geleias. Nesta fase da Casa Rosa, não há sentido em se alterar a sala, a biblioteca e a cozinha – trio responsável pelo convívio. É nesse espaço que se desenrolam as atuais rodas de leitura mensais. No entanto, alguns espaços estão sofrendo alterações

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para possibilitar o desenvolvimento de atividades culturais. Desse modo, um dos três antigos quartos foi destinado a exposições temporárias de material do próprio memorial e a mostras eventuais de artistas e pesquisadores locais. A edícula no meio do quintal, carinhosa e originalmente chamada de Domus Piri (por estar em frente à renitente pereira centenária) cederá um de seus cômodos para o desenvolvimento de laboratórios e oficinas. É interessante pensarmos que esse espaço, antes da construção da edícula, dava lugar a um barracão – um cômodo único com porta e janela maiores na frente e porta e janela menores atrás –, o qual, ainda no tempo de D. Jovita do Lago e do prof. Olympio de Carvalho, abrigava uma fa-

mília. Depois, já tendo como proprietários a família Mattos, servia como depósito de material, cozinha alternativa (já que lá havia um fogão de lenha), espaço para brincar de “casinha”. Nesse barracão havia, de notável, um grande caixote de madeira onde se jogavam todos os papeis já desenhados, escritos, reescritos e, finalmente, descartados; era ali também o destino dos jornais lidos, que, depois, eram levados ao açougue do Bebé Colaneri ou do Raimundo de Gois, reutilizados então para embrulhar as carnes. Também ali recolhiam-se os tubos vazios de pasta de dente, pois eles continham chumbo, material que era doado ao Hospital do Câncer, para ser vendido e reciclado, por obra de uma campanha de sensibilização das crianças pela incansável D. Carmen Eannes Dias Pru-


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dente: o assim denominado “Clubinho do Siri”. Eram tempos em que se reciclava sem que houvesse necessidade de campanha governamental, pois o consumo desenfreado não fazia parte do horizonte, não se imaginava nem de longe que, poucos anos mais tarde, viveríamos numa sociedade altamente sugadora e autodestrutiva. Pois bem, um dia o barracão caiu... No seu lugar se construiu a Domus Piri. O construtor foi o sr. José Wolf (Seu Zelão), de ascendência suíça. E aí o novo espaço passou a abrigar novamente adultos e crianças, atividades e brincadeiras. Pois bem, o barracão caiu... e o que havia dentro dele teve que encontrar novo espaço: um “barracãozinho” foi au-

mentado, outro fogão a lenha foi construído. Afinal, onde guardar os jornais para trocar nas vendas? Onde fazer o doce de laranja no mês de junho e um bife na chapa de vez em quando? Agora, na nova fase, continuamos com um pequeno barracão para depósito de material de jardinagem e de limpeza nos fundos da casa, mas parte dele foi readaptado, passando a ser a nossa “Reserva Técnica”, ou seja, o espaço destinado a guardar os papéis, papéis, papéis... Como se vê, não há muita originalidade no uso dos espaços da casa, seja como morada, seja como centro de memória e de cultura; eles servem ao convívio, à brincadeira, à produção, à preservação da história.

Do mesmo modo que olhamos para o interior da casa e ressaltamos nela o que ali se leu, ali se produziu e o que ali se faz até hoje, assim também queremos olhar para a cidade de Capivari e recuperar o que ela foi, dando porém lugar ao que ela é hoje e ao seu potencial. Queremos fazer brilhar a ligação dos habitantes com a cidade que construíram, com a cidade que os acolheu, com a cidade em que vivem, enfim. Da casa para a cidade, a mesma estrela a nos nortear: a busca da nossa história, a recuperação de nossas memórias, a preservação da identidade capivariana. Conhecendo-nos e conhecendo a cidade, não mais seremos estranhos em terra estranha.


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PORTÃO

Em memória de Antonio Carlos Bastos de Mattos, o Tonio

quantas vezes se abriu para o espanto do absurdo, da curiosidade, do já sabido? se a Casa Rosa é centenária, quantos passaram por ti sem ao menos saudá-lo o nhéque da ferrugem ocasionado por chuviscos, chuvaradas e tantas notícias que entristecem o peito? quantos, atônitos em desespero, famintos pela caridade, não se puseram a procurá-lo em palmas para clamar por alimento? famílias, visitas, amigos, conhecidos, estranhos, no dia a dia da história te realocaram na simples função do abre-e-fecha, mas és resiliência em posição de sonhador, altivo se mantém. tu, guardião dos significados, não só dos livros, dos contos, do jardim, da memória familiar, da infância pulsante em levezas distantes, mas dos limites inseridos pelas mãos, enobrece a passagem dos que se borboletam. tu, que por tanto tempo se abriu para o regozijo em saudade, não mais fecharás, és proibido de atentar contra a esperança. és tua função, não de portão, mas de onisciente dos confins, zelar pela manifestação do propósito: manter a vida em gerúndio. O desenho que utilizamos para representar a Casa Rosa foi criado pelo Tonio, Antonio Carlos Bastos de Mattos. Publicado originalmente no livreto “Falhas do Grande Aurélio” (Org. Carlos Lopes de Mattos e filhos), o portão é atemporal e representa muito mais do que os limites do território, ela simboliza a busca pela ascensão. A poesia é de autoria do poeta Bruno Bossolan.


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A dúzia da General Osório E Deus nos deu essa família adorada que muito viveu nesta rua e muito nesta casa que pareceu preparada para nós. Joãozinho e Maria roubaram bolinhos da boa velhinha que os fritava junto a seu gato e viu nele o ladrão de seus bolinhos – “Chip, chip, meu gatinho, não coma os meus bolinhos”. Nesse sonho de uma casa grande para encher de crianças nos aproximamos da dona da casa que parecia estar à nossa espera. Tudo conseguimos juntando alguns poucos bens e a ajuda do vovô Alípio que nos emprestou uma quantia e depois de algumas cotas pagas, perdoou nossa dívida e ficamos donos desta casa cheia de história, lembranças e saudade. Da rua sossegada onde na calçada as crianças brincavam de amarelinha nas grandes pedras lisas (pedras varvito de Itu) ou até no meio da rua ainda pacata. Como é diferente de hoje com seu trânsito incessante, dia e noite: ônibus para vários bairros ou outras cidades e os inumeráveis carros que tornam a General Osório um grande estacionamento diurno. Virginia Bastos de Mattos

(...) As lembranças do mundo exterior nunca hão de ter a mesma tonalidade das lembranças da casa. Evocando as lembranças da casa, adicionamos valores de sonho. Nunca somos verdadeiros historiadores; somos sempre um pouco poetas, e nossa emoção talvez não expresse mais que a poesia perdida. (BACHELARD, 1993, p.25) BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.


CAMA INFANTIL DE GRADE Inicialmente de Margarida Rubião Meira (Margot, nascida em 1902), filha de Margarida Álvares Rubião Alves Meira (Margaridinha) e de Domingos Rubião Alves Meira (Dr. Rubião Meira, médico, reitor da USP de 1939 a 1941). Margaridinha a deu para Francisca Guimaraens, tia de Virginia, para ser usada por outra sobrinha (Berenice Soares, que nascera em 1914). A caminha está na Casa Rosa desde 1955, dada por Berenice. Data estimada de fabricação: 1905. Colcha em piquê. CAMA-DE-VIÚVA PATENTE Comprada na fábrica, no Bom Retiro (em São Paulo), para o casal, quando a família se mudou para a Casa Rosa, em 1953. Colcha em piquê. GUARDA-ROUPA e CRIADO-MUDO Do jogo do noivado de Ivoneta Guimarães (prima de Virginia) e Dr. Luiz Amêndola, que se casaram em 30 de junho de 1924. Espelho bisoté. CÔMODA Comprada em Cascadura, de 2ª mão, quando o casal morava em Quintino (também subúrbio do Rio de Janeiro), em 1944/45. ARCA Dada por Francisca Guimaraens, para sua irmã Maria Luiza Soares, em 1915, com o enxovalzinho da recém nascida Virginia. Logo depois foi enviada para a Fazenda Campo Alegre (Barra Mansa - RJ), onde Virginia e seus pais moraram por um ano. MALA DE VIAGEM Do pai de Virginia, Desembargador Benedito Alípio Bastos (1883-1959), que obteve o título em 1951. Esta é, pois, a data provável da mala. MALETA De Carlos Lopes de Mattos, usada por ele na sua vida de estudante e de professor.


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CAMA INFANTIL DE GRADE CAMA-DE-VIÚVA PATENTE

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GUARDA-ROUPA MALA DE VIAGEM

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CÔMODA

CRIADO-MUDO

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e d s o r t s i g Re J o ão

1. Registros da Casa Rosa Os registros do cartório de imóveis de Capivari informam que os primeiros proprietários da Casa Rosa foram Osório Pires de Melo e sua mulher Zulmira de Barros de Melo. Pode ser uma informação incompleta, pois talvez fossem precários esses registros antes de determinada época. No primeiro registro pertinente à casa, seu endereço era Rua Marechal Osório, nº 35 – o nome da rua foi depois alterado para General Osório, corrigindo assim o fato histórico de que Osório nunca chegou ao marechalato, e a numeração também foi mudada, pois atualmente o número da casa é 239. Em 1911, o casal Zulmira e Osório vendeu a propriedade para Francisco Antônio Ferraz de Arruda. Este ficou pouco tempo com o imóvel, pois em 1916 Ana Elisa de Almeida (possivelmente sua viúva) vendeu-a para Olímpio Rodrigues de Carvalho, que era nascido em São Pedro por volta de 1879, e havia se casado em Rio das Pedras, em 1905, com Jovita do Lago, natural de Limeira. A casa que Seu Olímpio, professor de música, e sua mulher Dona Jovita, professora, haviam comprado não tinha o tamanho e a forma da Casa Rosa atual. Antigos capivarianos (como Dona Nilza Busato de Morais Barros) contavam que conheceram a casa ainda de porta na rua, sem o acesso pelo terraço como acontece hoje. A porta de entrada localizava-se onde hoje está a janela da direita de um conjunto de três janelas que iluminam o escritório. Entrava-se pois na casa bem junto à propriedade de Seu Juqui-

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nha (José Augusto) Mader e de sua mulher Dona Tita (Marieta), vizinhos de baixo, casa em que hoje mora seu neto Celso Augusto dos Santos Mader. Nessa época a casa comprada por Seu Olímpio ficava encravada entre duas propriedades de Seu Juquinha Mader: a de baixo (onde Seu Juquinha morava com a família) e de cima, de número 51 (na numeração antiga). Visando ampliar sua residência, Seu Olímpio comprou em 1921 o terreno de número 51 de seu vizinho. Isso possibilitou que ampliasse a construção, edificando uma casa em estilo eclético que é a mesma que foi adquirida em 1953 por Carlos e Virginia Mattos – e que se mantém com o mesmo aspecto até hoje. Não se conhece a data precisa do término dessa reforma, mas havia, numa pequena laje que atravessa um rego de água na entrada do terraço, uma anotação no cimento: 1933, o que talvez situe a obra mais ou menos nessa época. 2. Os primeiros moradores conhecidos Pouco se sabe a respeito da vida de Osório e Zulmira Melo, os primeiros proprietários registrados da Casa Rosa. Osório, nascido em 21 de maio de 1875 e batizado oito dias depois na Matriz de São João Batista, era filho de Francisco Antônio de Melo e neto de André de Melo, um dos primeiros povoadores de Capivari, que dá nome a uma tradicional rua da cidade. O pai de Osório, Francisco, teve 15 filhos, dentre os quais Raimundo e Ezequias Pires de Melo, e Luís Gouveia de Melo, de forma que entre os sobrinhos de Osório constam nomes como


Francisco Lobo de Melo, casado com Araceli Mader (filha do Juquinha Mader citado acima), e Oscarlino Lobo de Melo, casado com Olga Giovanetti. Zulmira, que em solteira tinha o sobrenome Barros de Melo, era nascida possivelmente na década de 1870, pois seus pais, Alexandre Leite de Almeida Barros e Brasília Fernandes de Pádua Melo, haviam se casado em 12 de março de 1872 na Matriz de São João Batista. Pelo lado paterno, Zulmira era prima de Auta de Almeida Campos (que, casada com Teófilo Ribeiro de Melo, foi mãe do Laerte Ribeiro de Campos) e de Jonas de Almeida Campos (que, casado com Bárbara Coelho de Campos, foi pai de Dahino e de Maria, que foi professora no Ginásio de Capivari – a saudosa Dona Maria de Inglês). Esses são os dados que se conhecem do casal. Não há registro de que tenham tido filhos, e a única data relativa ao casal que se conhece até o momento é a de nascimento de Osório, em 1875. Na falta de dados, podemos ser criativos. Mas, para deixar claro que estamos deixando os dados históricos e entrando no reino da ficção, vamos passar para novo item. 3. Uma vida imaginada Podemos imaginar que Osório tivesse um

pequeno sítio nos arredores da cidade – afinal, a atividade rural ainda era a tônica da sociedade capivariana no começo do século XX. Saía com sua carroça todas as manhãs, mal raiava o dia. Nas manhãs de inverno, às vezes a neblina era intensa – os capivarianos mais antigos se lembram bem das cerrações do inverno. O sítio era voltado para a produção de cana, mas alguma agricultura de subsistência deveria haver também, milho, feijão, mandioca, produtos que Osório dividia com um casal de roceiros que vivia no local. Às vezes se matava um porco, cuja carne dava para o consumo de muitos dias. Do sítio Osório trazia leite, e complementavam sua dieta com ovos das galinhas que Zulmira criava no quintal de casa. Nos dias festivos, se matava uma galinha. E, às vezes, Zulmira comprava uma carne de boi no açougue do Mercado, na praça central. No mais, a vida do casal era modesta. Zulmira cuidava das flores no fundo da casa, e regava as jabuticabeiras e outras árvores de fruta. Festas eram apenas as religiosas, e, a menos das ocasiões especiais, o casal dormia cedo. Raramente compravam um corte de fazenda, para fazer um vestido ou um terno.

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Casa Rosa_1953


Esboรงo da planta baixa da Casa Rosa, desenhada pelo arquiteto Gerson Franchi - 2019.

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Casa Rosa_2020


Localização da Casa Rosa

Vista aérea de Capivari, década de 60. Autor desconhecido.


Localização da Casa Rosa


Vista aĂŠrea de Capivari, 1939. Autor desconhecido.


Da casa ao redor

Bruno Bossolan

O trabalho da Casa Rosa tem muitas frentes, mas é guiado por apenas uma palavra: Preservação. Da memória oral aos relatos antigos que se somam ao pequenos papeizinhos guardados, a casa é ancorada na paciência da análise de tudo o que a permeia. Uma casa erguida para habitar guarda o que a família pondera, seja um móvel de herança, um cartão de alguma data especial ou uma receita que passa entre as gerações. Mais do que habitar, a relação do indivíduo que se acolhe na construção toma um sentido cultural, de costumes e gostos, de estímulos de acolhimento. Ali, na intimidade, a casa reúne os inúmeros rituais do cotidiano, contrapondo o hábito dos transeuntes. Quando se recebe visitas, passar um café não é mais só para se alimentar ante a labuta do dia, é um rito de boas-vindas ao inesperado. A habitação, então, envolve os sentidos em sobrevivência e travessias, pequenos portais para dimensões individuadas. De uma casa para outra casa, os indivíduos levam seus estímulos intelectuais e gustativos como forma de partilha, transformando a individuação em um aglomerado de salvaguardas. O cuidado de si passa para o outro, e assim a cidade é iluminada pelas recordações. Mas quando dividimos a carga, não é só a boa aventurança que ganha o protagonismo, as misérias também esgarçam e pululam diante desses imóveis ordenados em quadras. A cidade, formada pelas influências culturais, guarda os caminhos de histórias que nos comovem, seja pela aflição ou pelo amor. Nessa relação histórica entre o indivíduo, a construção e a memória, o sentimento de apreço e respeito do imaterial pela taipa e sua arquitetura vinga como uma enorme veia pulsante, dando sentido à magia de residir. Diante disso, trabalhamos também para evidenciar que a nossa memória está se arruinando sem a proteção pública e particular, deixando a cidade aos desprazeres de uma “arquitetura do apagão”, onde a história é demolida para se solidificar construções sem identidade, sem afetividade, sem a representação multicultural do que somos. Há apenas demolição com o seu mais vil fundamento: esquecer. Para expandirmos o assunto da Casa Rosa ao redor, trazemos aqui o triste exemplo de um Patrimônio Histórico Municipal que está, a duras penas, mantendo-se resiliente em sua função de guardar a Memória: o Fortim da Praça José Zuza. Mas uma outra construção histórica, que abrigou o teatro Rinque, depois chamado de Teatro São João, e por fim o Cine Iris, foi demolida no início da década de 50, e é justamente essa construção que escolhemos para ilustrar a capa desta edição d’a coisa em si. Não encontramos registros que datem a construção, apenas uma referência no livro “Capivari - Histórico da fundação e fatos desde fins do século 18 até 24 de junho de 1932” - de J.Almeida Grellet, de que ela é anterior ao ano de 1885. O prédio, quando foi demolido, tinha cerca de 70 anos.


Porém, não foi só o antigo Cine Iris que se reduziu a pó pela modernização do espaço público: o antigo Mercado Municipal e o Coleginho também restam apenas na memória fotográfica de um tempo em que Eduardo Maluf (que utilizou o pseudônimo de Homero Dantas), um dos mais importantes poetas e historiadores de Capivari, se empenhava com ferocidade em defender nossas raízes de discursos banais e imediatistas, principalmente os ancorados na pressa de um tempo onde ninguém observava o que consumia. E esse tempo parece que perdura até hoje, não? Em uma foto icônica da derrubada do Mercado Municipal, a tristeza de Eduardo é nítida e desoladora. O Mercado Municipal tinha o formato de uma ferradura e sua frente dava para a rua Regente Feijó, que posteriormente, naquele trecho, se transformou no calçadão entre as Praças Rodrigues de Abreu e Cesário Motta Jr. O Coleginho, com frente para a mesma rua, ficava ao lado direito do Mercado Municipal.

Vista da parte traseira do Mercado Municipal (pela altura, provavelmente a fotografia foi tirada de dentro do prédio onde funcionaram a Câmara Municipal, Prefeitura e sala inicial da Biblioteca Municipal), construído em 1886 na mesma praça Rodrigues de Abreu e demolido nos anos 60. A fotografia é de 1941. Autoria desconhecida.

Vista da lateral - na rua Bento Dias - do Mercado Municipal, onde também aparece o Coleginho (1884 - 1961) e a Matriz de São João Batista, de 1820, ao fundo. Ano e autoria da foto desconhecidos.


Lateral do Mercado Municipal. Ano e autoria desconhecidos.

Apoiado na mesa, ร ngelo (Lucas) Castro Neves, e ao fundo, Eduardo Maluf, poeta e diretor do Museu Histรณrico e Pedagรณgico Cesรกrio Motta Jr. Ano e autoria desconhecidos.


Antiga Prefeitura e Câmara Municipal, localizada na Praça Rodrigues de Abreu, em 1950. Autoria desconhecida.

O mesmo prédio acima, demolido em 1966. Autoria desconhecida.


Da ideia ao descuido

Bruno Bossolan

Lei nº 60 - 1948 Artigo 1º Fica a Prefeitura Municipal autorizada a instalar uma Biblioteca Pública Municipal. Artigo 2º A referida Biblioteca será instalada em sala apropriada e exclusivamente para tal fim. Artigo 3º A Prefeitura Municipal elaborará o requerimento interno da Biblioteca. Artigo 4º O cargo de Bibliotecário será exercido pelo Arquivista-Almoxarife, com os atuais vencimentos. Artigo 5º Fica a Prefeitura Municipal autorizada a providenciar a aquisição da verba necessária em ocasião oportuna. Artigo 6º Esta lei entrará em vigor na data da sua publicação, revogando-se) as disposições em contrário. Esta lei foi promulgada pelo Sr. Prefeito, Dr. Sebastião Armelin, em 9 de dezembro de 1948. Eu, auxiliar de Secretário, transcrevi a presente Lei. Júlio Capóssoli Capivari, 3 de dezembro de 1949.

A criação de uma Biblioteca Pública em Capivari se deu tardiamente, no início da década de 60, no governo de Miguel Simão Neto, porém a Lei que viabiliza a sua criação é de 1948. Para se ter ideia da população sem acesso à informação, na época a cidade tinha aproximadamente 28 mil habitantes, de acordo com os dados demográficos do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), sem contar os habitantes das Villas Rafard e Mombuca, e nenhum espaço público de incentivo à leitura, apesar dos vultos literários que aqui viveram. Além disso, a lei para a criação da biblioteca é de três anos após a criação do Ginásio Municipal... talvez uma coisa tenha levado à outra. Apesar da criação de um espaço para leitura, não houve a criação do cargo de bibliotecário, sendo o arquivista do almoxarifado responsável pela nova sala de livros, o que demonstra certo improviso em uma medida imediatista.


Almir Pazzianotto Pinto

Prefeitura Municipal em 1950 (abrigo da primeira biblioteca)

A lei que cria o cargo de bibliotecário surgiu somente 11 anos depois, aos 23 de dezembro de 1960. Inicialmente, a biblioteca foi alocada no antigo prédio onde funcionava a Prefeitura, até ser demolido. Da década de 60 ao início de 2020, a Biblioteca Municipal passou por pelo menos 7 imóveis, sendo eles: Coleginho; Sobrado na esquina da XV de Novembro com a Barão do Rio Branco (o antigo prédio, obra do construtor Amâncio Trindade, foi irremediavelmente desfigurado), onde atualmente o imóvel é utilizado por uma relojoaria; “Creche” na travessa Padre Bento; Imóvel localizado na rua Regente Feijó, onde funcionou a autarquia SAAE (Serviço Autônomo de Águas e Esgotos), na rua Regente Feijó; Fortim do Fórum e Cadeia, junto ao Museu Histórico e Pedagógico Cesário Motta Jr. (que se encontra interditado desde 2012 com graves problemas estruturais); Imóvel na esquina da XV de Novembro com a Tiradentes, onde funcionou de julho de 2014 até o final de 2019, e por fim no antigo prédio onde funcionou a ASAS (Associação Serviço Assistência Social), localizado na rua Madre Valéria. Porém, o último lugar citado não está, até a publicação deste suplemento cultural, aberto à população. De acordo com o levantamento realizado em janeiro de 2019, o acervo da biblioteca conta com mais de 28 mil livros, entre literatura, gibis e obras infanto-juvenil.


desmoronamento Construído em 1908, o Fortim localizado na Praça José Zuza abrigou, primeiramente, a Cadeia e o Fórum. Os detalhes de sua arquitetura representam, de acordo com o arquiteto capivariano Gerson Franchi, a efervescência da República para se sobrepor aos ideias Imperialistas com sua Força Policial. Outros dois prédios semelhantes ao de Capivari foram construídos nas cidades de Porto Feliz e Monte Mor. Na época, o Escritório Ramos de Azevedo também trabalhava para o governo republicano e foi o responsável pela construção. O mesmo escritório foi responsável por importantíssimas obras na cidade de São Paulo, como o Mercado Municipal, a Casa das Rosas e o Theatro Municipal. Além disso, o escritor Júlio Ribeiro, que residiu em Capivari e escreveu seu célebre romance “A Carne” na cidade, também cita o escritório Ramos de Azevedo em seu livro. Segue abaixo o trecho:

“Voltaria para a cidade... não, iria São Paulo, fixar-se-ia aí de vez e compraria um terreno grande em um bairro aristocrático, na Rua Alegre, em Santa Efigênia, no Chá, construiria um palacete

elegante, gracioso, rendilhado, à oriental, que sobressaísse, que levasse de vencida esses barracões de tijolos, esses monstrengos impossíveis que por aí avultam, chatos, extravagantes, à fazendeira, à cosmopolita, sem higiene, sem arquitetura, sem gosto. Fá-lo-ia sob a direção de Ramos de Azevedo, tomaria para decoradores e ornamentistas Aurélio de Figueiredo e Almeida Júnior”. Na pesquisa in loco que fizemos, comparando os fortins como eram e no que se tornaram, o de Capivari foi o que menos sofreu alterações na sua arquitetura original. O reconhecimento do Museu Municipal por parte do Estado se deu em dezembro de 1957, quando o Governador do Estado, Jânio Quadros, por meio do decreto 30.324 autoriza a instalar o Museu Histórico e Pedagógico Cesário Motta Jr. na cidade. O MHP de Capivari foi o quinto criado no estado de São Paulo, e seu nome foi uma homenagem de Vinício Stein Campos a Cesário Motta Júnior, que viveu em Capivari (uma das praças localizadas no centro leva seu nome) e

é reconhecido pela sua atuação como médico, educador e político. O Museu foi aberto à população pela primeira vez em 1958, quando ainda era localizado no Paço Público (Praça Central) e só anos depois, em 1966, foi transferido para o Fortim. Porém, já em 1944, a concretização de uma “galeria de lembranças” na cidade se deu pela iniciativa de Vinício Stein Campos, quando ele liderou um grupo para resgatar antigas fotos e objetos de valor histórico. Um dos vultos mais importantes da cidade, o poeta Eduardo Maluf, foi o responsável pelo acervo e diretor do museu por mais de 30 anos, desde a criação até sua morte, em agosto 1988. Desde os anos 80 o prédio já apresentava problemas estruturais, como rachaduras, infiltrações e goteiras. Em algumas ocasiões passou por pequenas reformas, mas nenhuma que garantisse seu pleno funcionamento. Houve grande movimentação de tratores e caminhões ao lado do Fortim depois de 2010, quando se deu a demolição de um outro Mercado Municipal e a construção do Terminal Rodoviário. Após essa movimentação, rachaduras surgiram e, em março de 2020, uma parede lateral desmoronou.


A lembrança retorne à terra, de onde veio Bruno Bossolan

eis a esmo, esmiuçado existir tu, que do peso do mundo carregava a história em maciços escritos, cai-te aos solavancos na memória do apego ao pó. tu, que resguardou punidos, viu julgar assassinos, ao coroar-te com a remissão dos serviços, sucumbe aos pecados da cristandade absorta. tu, que ainda deve guardar as urnas indígenas, herança tupi do nosso dialeto caipira,

fruto do atentado monárquico contra a cultura nativa, também se tornará o túmulo de fragmentos memoriais. tu, que com o tempo manteve abraço-amigo para salvaguardar o carinho das lembranças, não sonha mais em ser eterno, já se aceitou estorvo. tu, velho guardião, anseia receber o longânime perdão quando a última telha confrontar a terra vermelha de uma afásica cidade.


Diante do triste e preocupante cenário, na semana seguinte ao ocorrido, a Casa Rosa manifestou-se, no dia 20 de março, com a seguinte nota.

O Ponto de Cultura Casa Rosa - Memorial Virginia e Carlos Mattos vem por meio desta esclarecer sua atuação social enquanto equipamento (espaço) cultural independente localizado em Capivari (SP). Todos nós capivarianos acompanhamos com muita apreensão a interdição, que se deu a partir de 2013, do prédio da Praça José Zuza (antiga Cadeia Pública, antigo Fórum e, mais recentemente, abrigando a Biblioteca Pública e o Museu Cesário Motta). Como a proposta de trabalho da Casa Rosa é pautada na pesquisa histórica e no resgate da memória local, iniciamos em agosto de 2019 os estudos para a confecção de nosso suplemento cultural ‘a coisa em si’ de número 6, que leva como tema “Patrimônios Culturais: Direito, Memória e Cidadania”, e acabamos por vivenciar em meio à pesquisa, mais precisamente no dia 4 de março último, o incidente da queda parcial de uma das paredes laterais do prédio. O imóvel já apresentava deteriorações de outras décadas, mas não tão graves e aparentes como as imensas rachaduras recentes. Diante disso, enquanto Ponto de Cultura reconhecido pelo Governo Federal, dialogamos com espaços culturais da área de museus e arquivos de nossa região. Nesse período, o Arquiteto Gerson Franchi - que já foi perito em um processo do Museu Histórico e Pedagógico Cesário Motta Júnior, o 5º MHP criado no Estado pelo capivariano Vinício Stein Campos - nos contatou para mobilização e intervenção no referido assunto. O Arquiteto Gerson realizou um laudo técnico pela parte externa do prédio (porque o mesmo se encontra interditado pela Defesa Civil), indicando medidas protetoras imediatas, com a devida urgência do escoramento interno e externo e cobertura de lona, para que se evitem novos danos nas fundações, paredes e estruturas da cobertura pelas intempéries naturais como chuva, vendavais e tempestades, e também oscilações do solo devido ao alto fluxo de veículos pesados ao redor do danificado prédio. Também solicitou o acionamento do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) da USP para a realização de estudos sobre todo o dano causado e o que precisa ser feito para o restauro. Vale aqui ressaltar que essa ação articulada por fazedores de cultura e aceita pela Promotoria de Justiça não é sobre o jogo de culpabilização entre as esferas governamentais e emblemáticos apontamentos, mas sim sobre a responsabilidade social com o erário público, com o nosso patrimônio histórico e com a nossa memória afetiva, pois os direitos culturais da sociedade devem ser respeitados, principalmente no que tange o acesso ao conhecimento, que é negado porque o acervo museológico está inacessível à população desde a interdição do prédio, em 2013. O prédio em questão é considerado, documentalmente pelo Ministério Público, Patrimônio Histórico e Cultural do Município. O processo está tramitando no Tribunal de Justiça de São Paulo, com as últimas movimentações na data de hoje, 20 de março.


As medidas de escoramento do Fortim foram tomadas poucos dias depois e o trabalho para a preservação do Patrimônio Histórico Cultural de Capivari continua. Esperamos que muito em breve o prédio seja restaurado e possamos novamente gozar do direito de visitarmos um Museu. ARQUIVO CASA ROSA

ARQUIVO CASA ROSA


O arquiteto Gerson, gentilmente, doou para o acervo da Casa Rosa as plantas originais do Fortim que ele desenhou em 1991, a pedido do Ministério Público. ARQUIVO CASA ROSA

ARQUIVO CASA ROSA


ARQUIVO CASA ROSA

ARQUIVO CASA ROSA


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o homem tem que ser pensado como um dardo atirado no Ser Carlos Lopes de Mattos


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