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Entrada segundo a perspetiva bíblica
Até onde estamos dispostos a viver a vida em pleno? Qual é a medida dos nossos compromissos? Alguma vez pensaste se há algo neste mundo em troca do qual estejas disponível a entregar a tua vida?
Talvez nunca nos encontremos numa situação em que tenhamos de entregar a vida para salvar algo ou alguém, mas certamente já nos encontramos em situações de ter de renunciar a alguma coisa que desejamos ou que consideramos valiosa para salvaguardar outro valor E não é arriscado pensar que renúncias repetidas ao longo do tempo podem acabar por nos fazer sentir que estamos a trocar a vida por aquilo a que nos estamos a entregar A verdade é que o amor que sentimos por alguma coisa ou por alguém é o que move as nossas fibras íntimas para podermos concretizar a entrega e a renúncia O amor mobiliza-nos e, por amor, somos capazes de grandes sacrifícios
O que parece paradoxal é que essa mesma renúncia ou entrega – embora, no fundo, signifique desprendermo-nos ou deixar qualquer coisa, uma morte em certo sentido nos faz sentir vivos, chegando mesmo a ter uma vida renovada e mais plena do que se tivéssemos guardado para nós aquilo que entregamos. Ao que parece, despojar-nos ou morrer para alguma coisa... dá-nos vida, faz nascer algo de novo. Esta experiência, em suma, vai configurando em nós uma vida «eucarística», uma vida entregue, uma vida capaz de dar vida entregando-se, renunciando, morrendo para alguma coisa
Percorrendo as páginas da Bíblia, encontraremos numerosas vidas que germinaram a partir de uma renúncia, de um despojo, de um morrer para qualquer coisa «Em verdade vos digo que esta viúva pobre deitou no tesouro mais do que todos os outros; porque todos deitaram do que lhes sobrava, mas ela, da sua penúria, deitou tudo quanto possuía, todo o seu sustento» (Mc 12, 43-44)
A vinda de Deus ao mundo, a reconciliação e a possibilidade de Ele se fazer homem deu-se graças à entrega de uma mulher, de Maria. Ela, no seu «dar-se», no seu «sim» que nos granjeou a salvação, deixou tudo, abandonou nas mãos do Pai toda a sua vida, todos os seus projetos, sem outra certeza que não fosse a sua esperança colocada no autor do convite. «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38).
Os Evangelhos narram-nos os encontros de Jesus com os primeiros discípulos, o chamamento que lhes dirige e o modo como eles, «deixando tudo, o seguiram», nascendo para uma nova existência, para uma nova situação nas suas vidas. «Trazidas as barcas para terra, deixando tudo, seguiram-no» (Lc 5,11). «Eles, tendo deixado na barca seu pai Zebedeu com os jornaleiros, seguiram-no» (Mc 1, 20)
A experiência da entrega é sempre um despojamento, um deixar morrer, que supõe entrar num processo de dor que não nos será poupado Ninguém que tenha arriscado tudo, que tenha dado o melhor de si, poderá dizer que o fez sem dor ou sem sofrimento O sofrimento, mesmo que não seja procurado, é como que o efeito não desejado da entrega A vida de Maria, José e Jesus não foi pobre em dissabores José não só tomou a seu cargo o Menino e sua Mãe, renunciando aos seus projetos e assumindo um mistério que não conseguia chegar a entender, mas, com generosidade e entrega, assumiu dificuldades e contradições que não lhe foram inferiores Perante os perigos que ameaçavam a vida do Menino, «Ele, levantando-se de noite, tomou o Menino e sua Mãe e retirou-se para o Egito. Lá esteve até à morte de Herodes» (Mt 2, 14-15).
Os Evangelhos relatam-nos o último momento comunitário de Jesus com os seus discípulos, no qual toda a entrega e toda a renúncia cobram o seu sentido último, onde tudo o que o Senhor viveu atinge o seu ponto culminante «Ele, que amara os seus que estavam no mundo, levou o seu amor por eles até ao extremo. (...) Levantou-se da mesa, tirou o manto, tomou uma toalha e atou-a à cintura. Depois deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha que atara à cintura» (Jo 13, 1 4-6) «Enquanto comiam, tomou um pão e, depois de pronunciar a bênção, partiu-o e entregou-o aos discípulos dizendo: "Tomai: isto é o meu corpo". Depois, tomou o cálice, deu graças e entregou-lho. Todos beberam dele. E Ele disse-lhes: "Isto é o meu sangue da aliança, que vai ser derramado por todos"» (Mc 14, 22-24)
Estes dois relatos são apenas duas faces da mesma moeda: neles, Jesus dá-se a si mesmo, fica entre nós para ser alimento que dá vida, pão que se parte e se partilha. A Eucaristia é entrega e serviço. Jesus viveu-o e exprimiu-o desse modo, com gestos, com palavras e com toda a sua vida. É assim que nos devemos entregar e partilhar com os nossos irmãos, se quisermos fazer parte da Eucaristia com Jesus Cristo. Como? Com o estilo de Jesus, colocando-nos ao serviço, estando aos pés das necessidades dos nossos irmãos, ajudando-os nas suas dificuldades Jesus é a maior entrega de amor, é o cume de todos os sacrifícios e de todas as renúncias, em quem todos nós somos convidados a dar-nos, a partilhar a sua entrega, a ser filhos com o Filho, participando na sua missão Assim como partilhamos a sua vida e o acompanhamos no seu caminhar, somos convidados também ao momento chave da identificação com o Mestre, o momento da cruz, da entrega, de acolher o sofrimento não desejado, não querido e não procurado
À maneira de Jesus, somos convidados a configurar-nos também com Ele nesta parte da sua vida na terra, perseverando nas nossas lutas, de olhos postos n’Ele, que nos abriu o caminho da entrega que dá vida Nessa certeza de que Ele caminha para a Paixão, de que Ele ganhou para nós a vida para sempre, podemos escolher acompanhá-lo no caminho com as nossas dificuldades e com os nossos sofrimentos, para que, unidos à sua Paixão, o Pai os ressuscite e os torne fecundos Deixa que Cristo conquiste o teu coração, Ele que por ti caminha para a Paixão; fica com Ele e entrega a tua vida para que Ele a pregue no seu madeiro
● «Esta pobre viúva deu mais que todos os outros… pois ela deitou, do seu necessário, tudo o que tinha para viver» (Mc 12:43-44)
● «Depois, tomou um pão, deu graças, partiu-o e deu-lho, dizendo: "Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim"»(Lc 22:19)
● «Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1:38)
● «Rogo-vos, pois, irmãos, pela misericórdia de Deus, que ofereçais os vossos corpos como hóstia viva, santa, agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual» (Rm 12:1)
●«Eis que venho, para fazer, ó Deus, a tua vontade» (Hb 10:7-13)
«Tomai, Senhor, e recebei toda a minha liberdade, a minha memória, o meu entendimento e toda a minha vontade, todo o meu ter e o meu possuir; Vós mo destes, a Vós, Senhor, o restituo; tudo é vosso, disponde a toda a vossa vontade; dai-me o vosso amor e graça, que esta me basta» (EE 234)