REVISTA PASSAGENS REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO – UFC UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
Reitor Jesualdo Pereira Farias Diretor do Instituto de Cultura e Arte Custódio Luís Silva de Almeida Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Silas José de Paula Publicação Semestral ISSN 2179-9938
REVISTA PASSAGENS
Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação – UFC
Editorial É hora de retornar! O retorno é, determinadas vezes, mais cansativo. Nesse caso, será tão prazeroso quanto. Não queremos tornar essa viagem de volta em uma questão conceitual. Nem queremos questionar as identidades das artes, em suas mais valorosas contribuições. Na verdade, foi uma forma encontrada de dividir temas tão distintos em duas edições. Se a “Passagens” de Ida foi um caminho sinuoso por outras artes, com várias escalas, o caminho de volta será mais tranquilo, sem muitas conexões. A ideia não é diferenciar uma arte de outra, ou fazer valer distinções entre elas. Esses trechos foram emitidos de acordo com a diversidade das temáticas abordadas pelos próprios autores. Não é intenção tornarmos essa diversidade em uma tônica dominante, afinal, sabemos que a imagem contemporânea trabalha todas essas linguagens da forma mais democrática possível. Em um mundo globalizado no qual estamos inseridos, falar em cinema puro é um equívoco. No entanto, temos que considerar que o audiovisual tem uma linguagem própria, particular. Essa foi a ideia central para a divisão em duas edições. O “vai e vem” de Serras da Desordem enfatiza esse espírito e tem tudo a ver com excesso de informação e visibilidade. O corpo, assim como os afetos, também está presente na obra de Naomi Kawase. A polêmica sobre a política dos autores também é levada em consideração, assim como a geografia dos filmes e questões utópicas e migratórias do sertão nordestino. São temáticas que, num primeiro momento, parecem desconexas, mas que têm uma forte relação com a imagem contemporânea. Esperamos que essas “Passagens” de Ida e Volta tenham sido tão prazerosas quanto foi a organização desses trabalhos. E se a sua viagem for tão rica quanto a nossa, o resultado não poderia ser melhor: lugares distintos e paisagens maravilhosas! Sejam bem-vindos. Beatriz Furtado, Marcelo Dídimo e Riverson Rios.
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O “VAI-E-VEM” EM SERRAS DA DESORDEM
Bernardo Teodorico Costa Souza Mestre em Multimeios pelo Instituto de Artes da Unicamp bernardotcs@hotmail.com
A Partir De Serras...: Desordem Serras da Desordem é um filme que, não sem razão, foi citado em uma série de veículos do circuito especializado como merecedor de atenção particular (entre os artigos, apresentações em congressos, livros e revistas, podemos citar Ismail Xavier, Daniel Caetano, Consuelo Lins, Andrea França, André Brasil, dentre outros diversos pesquisadores). Ele vem contribuir para um campo dos estudos de cinema que, sob a rubrica de “documentário”, em muito se tenciona sobre o caráter siamês da imagem cinematográfica; uma cabeça de Meliès e um corpo de Lumière1. Este filme, através de operações múltiplas, dá lugar à existência desse monstro; nos provoca colocando o cinema sob holofotes para que sua existência dupla e bestial se faça evidente: um “cine-monstro”2. Através de procedimentos que lançam mão das imagens como recurso a evocar a história (operação abstrata de ordenação dos eventos no decurso do tempo), Serras da Desordem está ancorado em algo que o extrapola, fora-de-campo e peso de realidade a prender o filme no continente do cinema que chamamos de documentário, ao mesmo tempo em que dele escapa, fazendo da própria História a personagem da ficção que desenvolve. Buscamos aqui, através deste artigo, problematizar alguns procedimentos do filme evitando sustentarmos-nos sobre às convencionais categorias de apreensão da 1
COMOLLI, 2008, p. 90 Comolli usa dessa expressão para designar os filmes nos quais “o mais vivo da energia cinematográfica circula entre os dois pólos opostos da ficção e do documentário, para entrecruza-los, entrelaçar seus fluxos, invertê-los, fazê-los rebater um no outro. Correntes contrariadas dando belos cine-monstros (...)” (2008, p. 90) 2
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imagem cinematográfica (“ficção documental”), tentando, desta forma, apresentar o filme sob uma pespectiva diferente daquelas que até agora o abordaram. Em 2008, enquanto o filme em questão ainda transitava no circuito comercial de cinema, um texto apresentado no XVII encontro da Compós (LINS e MESQUITA, 2008) fazia indicações possíveis para a apreciação de Serras da Desordem, bem como para outros 3 filmes, tratando essas 4 produções contemporâneas (Serras da Desordem, de Andrea Tonacci, 2006; Santiago, de João Moreira Sales, 2007; Juízo, de Maria Augusta Ramos. 2007 e Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, 2007) como “obras que dissolvem distinções tradicionais entre ficção e documentário e ampliam as possibilidades criativas do cinema brasileiro”, e “problematizando uma questão pouco discutida na criação audiovisual contemporânea: a crença do espectador diante das imagens no mundo”. O gesto ambíguo de “crer, não crer, crer apesar de tudo”, que intitula o texto das autoras e é apontado por elas como viés central para a análise de Serras da Desordem e dos outros 3 filmes, encontra sua referência na abordagem de Jean-Louis Comolli no que diz respeito à dimensão espetacular intrínseca ao dispositivo cinematográfico desde sua emergência e à relação do espectador com essa dimensão, expressa em seu desejo/medo3. Ele nos diz: Em todas as épocas as sociedades se formaram, impuseram-se a seus sujeitos e transmitiram-se por representações, mas em seu início as representações cinematográficas adquiriram ao mesmo tempo o grau de realidade e a potência imaginária, capazes de fazer a sociedade que elas representam se voltar para o espetáculo (COMOLLI, 2008, p. 92). É que o ato da crença entrelaçado na relação cinematográfica não é um gesto simples. Falei do medo do primeiro espectador. Esse medo anima a crença. Acreditar da medo. Medo faz acreditar. Trata-se, para o espectador, de ao mesmo tempo gozar da potencia do cinema e dela se proteger. Acionamento de toda uma cadeia de denegações. Sei muito bem que é apenas uma imagem, mas mesmo assim quero a coisa... sei muito bem que não é o trem de verdade, mas mesmo assim... Isso até a denegação da imperfeição, pois uma representação cinematográfica nunca alcança a plenitude de uma ilusão sem manchas ou falhas (ibid., p. 94).
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COMOLLI, 2008, p. 94-95 2 | Mar 2013 | vol 2 |
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O texto das autoras, referenciado nas colocações de Comolli, apresenta os quatro filmes que aborda como obras que interferem na operação de “denegação” 4 do espectador que, para Comolli, é intrínseca à experiência cinematográfica. O texto afirma: Já um certo tipo de cinema faz da incerteza e da oscilação entre a crença e a descrença a condição essencial do espectador. Uma instabilidade que o obriga a se confrontar com os seus limites e perceber que “a posição de controle é insustentável, tanto no cinema quanto na vida” (Comolli, 2004, p. 418). Uma premissa simples descartada pela maior parte das produções midiáticas talvez por conter possibilidades de evidenciar para o espectador o fato de que ele pode, sim, ser manipulado a todo instante, de que não há absolutamente nada nas imagens que garanta sua veracidade ou autenticidade, de que tudo pode ser simulado, e que saber disso já é, no mínimo, um bom ponto de partida para compreender melhor o que se passa à nossa volta. O que não quer dizer que a imagem não valha nada: ela pode mentir, falsificar, simulando dizer a verdade, mas pode também ser associada a outras imagens e outros sons para fabricar experiências inéditas, complexificar nossa apreensão do mundo, abrir nossa percepção para outros modos de ver e saber. As imagens são frágeis, impuras, insuficientes para falar do real, mas é justamente com todas as precariedades, a partir de todas as lacunas, apesar de todos os riscos, que é possível trabalhar com elas. (LINS e MESQUITA, 2008, p. 10)
A rica perspectiva de Comolli na qual o trecho acima se referencia corre aqui o risco de ser tomada como armadilha; se entendermos as operações paradoxais de desejo do espectador apenas como jogo a ser desvelado por “um certo tipo de cinema” (evidenciar como o espectador é manipulado, já que “as imagens são frágeis, impuras, insuficientes para falar do real”), retornaremos de imediato à dicotomia da qual tentamos fugir (real/ficcional, verdade/mentira) e que Comolli substitui pela dualidade “campo – fora-decampo”, e traremos à tona a tão infértil problemática de um recorte do mundo operado pela linguagem (as imagens como representação arbitrária de um real)5. Tomaremos então, nesse começo da problematização de Serras..., um trecho desse texto já citado de Lins e Mesquita como contra-modelo para nossa abordagem, 4
Expressão psicanalista que confere síntese entre crença e descrença. Sobre esse privilégio da desconstrução narrativa como ferramenta analítica, Fernão Ramos realiza uma dura critica, situando tal abordagem como um infértil paradigma hegemônico do campo teórico contemporâneo (RAMOS, 2005, p. 177-184). Texto que reaparecerá sobre outro enfoque no capítulo 3. 5
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realizando um exercício que, se não goza de cumplicidade com a bibliografia com a qual dialoga, será necessariamente esclarecedor para nosso entendimento do problema. A sinopse do filme diz: Carapirú é um índio nômade que após escapar do massacre de seu grupo familiar em 1977, no Maranhão, passa a perambular sozinho pelas serras do Brasil central. Em novembro de 1988, ou seja, 10 anos depois de deixar sua aldeia, Carapirú foi encontrado pelo sertanista Sydney Possuelo, quando convivia com uma família em Santa Luzia, sertão da Bahia, a 2000 Km de distância do ponto de partida. Levado para Brasília, Carapirú torna-se manchete nacional e centro da polêmica entre antropólogos e lingüistas quanto à sua origem e identidade. Sua identificação como integrante da tribo Guajá ocorre por intermédio casual de Tiramukõn, um jovem intérprete, órfão de 18 anos, resgatado dos maus tratos de um fazendeiro 10 anos antes. Novamente, o destino surpreenderá os personagens desta história real: Carapirú e Tiramukõn reconhecem-se como pai e filho, ambos sobreviventes do massacre de 1977, ambos acreditando-se mutuamente mortos. O filho leva o pai para o posto e aldeia indígena onde vive com a família, mas a vida na nova comunidade não está mais de acordo com a vivência da liberdade nômade de Carapirú. Na tênue linha divisória entre ficção e documentário, Serras da Desordem recria o passado de Carapirú e o cotidiano dos índios Guajá antes do massacre, seu percurso e a convivência com a família que o acolheu na Bahia, onde foi finalmente encontrado. Nesta recriação, os personagens são interpretados pelas pessoas que viveram as situações narradas. O filme mostra também a chegada de Carapirú a Brasília, e o retorno ao habitat natural. Paralelamente, cenas ilustram “o progresso” ocorrido no país na década em que Carapirú enfrentava sua jornada solitária.6
Essa longa sinopse é, de certa forma, reforçada nas palavras do texto citado apresentado na Compós, que, após descrever o trajeto de Carapirú anterior ao filme, diz: Já que Carapirú, protagonista da história real, interpreta seu próprio papel no passado, duas camadas constantemente interagem: Carapirú é ator, agente da ficção (na encenação do passado), e é "ele mesmo", objeto do olhar “documental” do filme (no presente). Cada uma das cenas de "reconstituição" implica também em reencontro (bem presente) com aqueles que Carapirú conheceu 20 anos antes, em sua jornada pelo Brasil central. Em cada situação, portanto, no sertão da Bahia ou em Brasília, estamos sempre a nos perguntar, a ajustar o canal: Carapirú está fazendo seu papel no passado ou está sendo elemesmo no presente? A ambigüidade, permanente, entre pessoa e personagem, tem como efeito o reforço da alteridade de Carapirú, a indevassabilidade de sua experiência, nunca "revelada" ou acessada por inteiro. (LINS e MESQUITA, 2008, p. 5 - grifo nosso)
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Extraído do site oficial do filme http://www.serrasdadesordem.com.br/pages/sinopse.php (grifo nosso) 4 | Mar 2013 | vol 2 |
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Na intenção de explicação sintética, essa sinopse, assim como o trecho do texto, reduz, talvez em nome de um caráter didático, a complexidade que esse filme abrange, recortando sua totalidade sob uma velha dicotomia que opera nas prateleiras fílmicas: o corte entre ficção e documentário7. Perguntemos-nos, o que seria a “ficção” e o “documentário” nessa sinopse, qual o começo e fim de um e de outro? A sinopse nos sugere bem claramente um corte, um ponto de (bi)polarização. Enquanto os dois primeiros parágrafos aludem a uma narração verídica que parece não manter relação alguma com o objeto que apresenta, descrevendo um passado fixo e objetificável sem nele interferir, o parágrafo final sugere uma atuação por sobre essa realidade fixa (e não a sua perversão); ela (passado fixado) agora seria apenas o modelo referencial sobre o qual se constituiria sua negação, a ficção. Segundo a sinopse, bem como o texto de Lins e Mesquita, o filme “reconstituiria” um passado, tratando-o como um (passado) objetificável. “Re-estabeleceria” um extrato objetivo do mundo e, sobre ele, as “pessoas” o “interpretariam”, se convertendo em “personagens” (ficcionais agora). Ao voltarmo-nos para a escolha das palavras que descrevem a relação do filme com memória e história é possível perceber que, na análise em questão, a oposição entre documentário e ficção se calca na relação entre História e mise-en-scène: Re-encenar a História equivaleria, então, a ficcionalizá-la. Esse caminho para se abordar Serras... não apenas nos parece pouco fértil, como configura um obstáculo àquilo que acreditamos ser central no filme e propomos aqui como referência para sua abordagem: sua relação com a desordem do passado e da História. Se a necessidade de uma descrição através dos termos “documentário” e “ficção” parece inevitável, acreditamos que, dissolvidas as categorias dicotômicas de passado e presente na mise-en-scène de Serras... (empreendimento ao qual dedicamos 7
Vale lembrar que o velho bordão da crítica que trata esse tipo de filme como “obras que dissolvem distinções tradicionais entre ficção e documentário”, ao mesmo tempo em que sugere um novo horizonte para o cinema, se apóia nas muletas clássicas da terminologia especializada (bem como na distinção dos grupos de pesquisa e mesas de congressos da área). Recria um fantasma para depois exorciza-lo, pensa esse tipo de experimentação como o atravessar de fronteiras e não a criação independente delas. 5 | Mar 2013 | vol 2 |
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algumas das páginas a seguir), se dissolverá também a aplicabilidade das noções ontológicas de “documentário” e “ficção” ao filme. As Múltiplas Imagens Que Se Fazem No Filme Caso a narrativa do filme, em acordo com a sinopse e texto citados, tratasse da história de Carapirú, esta tomada como realidade prévia a ser “re-constituída” (a parahistória do filme), poderíamos pensar essa narrativa em um regime de imagens o qual Deleuze chama de “orgânico”. Nesse regime, a narração (narração verídica) (...) se desenvolve organicamente, segundo conexões legais no espaço e relações cronológicas no tempo. Certamente o alhures poderá avizinhar-se do aqui, e o antigo do presente; porém essa variabilidade dos lugares e dos momentos não põe em questão as relações e conexões, determina antes seus termos ou elementos, tanto assim que a narração implica uma investigação ou testemunhos que a referem ao verdadeiro. (DELEUZE, 2007, p. 163)
Tomada a associação que Deleuze faz dessa narração a um “sistema do julgamento”, podemos dizer que essa suposta narrativa investiria não apenas na investigação da verdade, mas, poderíamos dizer, na investigação do real. Desta forma o filme transitaria sempre sobre um fundo histórico (tomado como verdade/real) e sobre ele se desenvolveriam seus processos narrativos. A noção ontológica de real que fundamenta a concepção clássica de documentário seria, num passe de mágica, substituída pela de história.8 Como queremos demonstrar, esse “fundo histórico” não aparece como referência para a narrativa de Serras... e, portanto, não nos serve de estratégia para a descrição ou análise do filme mas, antes, as atrapalha. Se começarmos por pensar o filme dividido, um enredo separado das articulações de imagem e som (o primeiro erro ao qual poderíamos incorrer), perceberemos que Serras da Desordem contém em si uma série de histórias (e não uma História): a história do índio Carapirú de 1977 (ano do ataque) até seu retorno à reserva dos “Avá Guajá”; a história do índio Carapirú que encena eventos passados; a história de um 8
Como ilustração desse exemplo nos textos de teoria podemos citar o célebre livro de Bill Nichols cuja abordgem repousa sobre a noção ontologica de “mundo histórico” (NICHOLS, 2005). 6 | Mar 2013 | vol 2 |
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reencontro de Carapirú com as pessoas de um passado; a história do filme sendo feito (Tonacci em cena); a história do país de 77 (e mesmo antes – a imagem de Carlos Marighella, assassinado em 1969) até 88... até a data do filme, 2006, etc. A inscritura de uma história sobre a outra, como realizado em Serras..., impede que apenas uma se imponha como ponto de referencia para a narrativa. Todas essas histórias se pronunciam no decorrer filme, procuram se estabilizar, se fixar como a identidade da narração, para em seguida serem atravessadas por outras histórias, por outras narrações.
“Serras Da Desordem” Como Poesia Essas sobreposições na narração cinematográfica que, para Pasolini, em analogia à literatura, aparecem como uma passagem da prosa para a poesia, constituindo “pseudo-narrativas” (através de uma estratégia que ele nomeia “subjetiva indireta livre”),9 é o que ele toma como marco expressivo dos “novos cinemas” na década de 1960. A formação de uma ‘língua da poesia cinematográfica’ implica, por conseguinte, a possibilidade de criar, pelo contrário (do cinema clássico, como língua de prosa) pseudo-narrativas escritas na língua da poesia: a possibilidade, em suma, de uma prosa de arte, de uma série de páginas líricas, cuja subjetividade será garantida pelo uso do pretexto da ‘subjetiva indireta livre’: onde o verdadeiro protagonista é o estilo. (PASOLINI, 1982, p. 151) (...)Trata-se pois do momento em que a linguagem, seguindo uma inspiração diferente e talvez também mais autêntica, se liberta da função e se apresenta enquanto ‘linguagem em si própria’: estilo”. (Ibid., p. 149)
Referenciando-se ao modelo da literatura (narrativa direta e indireta), Pasolini resume o cinema em dois tipos de imagens, a “subjetiva” e a “objetiva”: o que a personagem vê e o que a câmera vê, respectivamente. Em analogia ao recurso literário da “narrativa indireta livre”, Pasolini descreve o que ele chama de “subjetiva indireta livre” como técnica comum a esses filmes que emergiam na década de 1960; um recurso onde
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“Cinema de Poesia” in PASOLINI, 1982. 7 | Mar 2013 | vol 2 |
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uma inevitável indiscernibilidade contaminaria o que a câmera vê e o que a personagem vê, criando situações expressivas “onde o verdadeiro protagonista é o estilo”. A novidade expressiva dos “novos cinemas”, como apresentada por Pasolini permite, se transferida para o campo do cinema documentário, substituir o problema que o norteava até então.10 A oposição realidade/ficção, expressa na dualidade “sujeito/objeto” (enunciador e referente) e que constituía a base do cinema clássico como cinema de prosa, desaparece no cinema de poesia para dar lugar a outros termos: “subjetivo” e “objetivo”. De forma sucinta, basta dizer que aquilo apresentado por Pasolini ultrapassa o problema que norteava o cinema (tanto no domínio da ficção como do documentário) como prosa: sua adequação a um modelo de verdade que orientaria a narrativa. Essa reflexão sobre o cinema nos termos de Pasolini nos permite, então, um entendimento das imagens representação”.
cinematográficas que não a habitual “política da
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Retomando a oposição de Pasolini entre o cinema de prosa e o de poesia, Deleuze nos apresenta dois regimes de imagem que dela decorrem: o orgânico (“descrição orgânica” e “narração verídica”), aquele cuja inadequação à narrativa de Serras... já apontamos, e o cristalino (“descrição cristalina” e “potencias do falso”) que, agora podemos dizer, a ela corresponde. Enquanto o regime orgânico/cinético, que corresponderia ao cinema de prosa, se orientaria por uma verdade/identidade, o regime cristalino/crônico, assim como o cinema de poesia (“uma série de páginas líricas”), se daria pelos processos de falseamento, onde a mutação do personagem, que agora se apresenta como um vidente/falsário, expõe uma incessante multiplicidade onde a forma fixa da verdade é substituída pelas transformações do falso e a identidade que se resumia em “eu=eu” se substitui por “eu=outro”. Ao considerarmos que as diversas histórias/narrativas que aparecem em Serras... fundem a imagem de determinados personagens e determinadas temporalidades, 10
É Deleuze quem redireciona o problema que Pasolini levanta no cinema de ficção para o “cinema de realidade” (DELEUZE, 2007, p. 179-186). 11 Francisco Elinaldo Teixeira, repassando o “cinema de poesia” de Pasolini sob o olhar de Deleuze em “Imagem Tempo”, demonstra como num panorama histórico a abordagem teórica brasileira do documentário negligenciou essa perspectiva se mantendo numa abordagem calcada na oposição real/ficção, sujeito/objeto: uma “política da representação” (TEIXEIRA, 2004) 8 | Mar 2013 | vol 2 |
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nota-se então que, o entrecruzamento dessas narrações, sob a égide da relação passado presente, sugere uma nova possibilidade ao filme no que diz respeito à relação com a História. Eis que o tempo vem converter qualquer possível narração verídica nas “potencias do falso”: o Carapirú do passado, de um plano a outro, se metamorfoseia no Carapirú da memória, em um “Carapirú Nannok”12 (caricatura da identidade indígena), no Carapirú do presente, em um Carapirú fabulador... enfim, em um falsário. “Por toda a parte são as metamorfoses do falso que substituem a forma do verdadeiro” (DELUZE, 2007, p. 165). Para melhor ilustrar esse processo, retomemos o trecho de Serras... descrito no texto de Lins e Mesquita (os encontros e encenações), mas agora sem a “política da representação” que sustenta a distinção entre “documentação do presente e reconstituição do passado” (LINS e MESQUITA, 2008, p. 5).
Transformações/Falseamento Do Personagem As cenas onde Carapirú se depara com as pessoas que, só deduziremos depois, compuseram seu passado (os camponeses do interior da Bahia), são marcadas pelas transformações deste como personagem (e não oscilação entre “pessoa” e “personagem”): Um primeiro personagem os encontra; planos gerais, encenação em 35mm preto e branco Um segundo personagem os encontra; câmera na mão, sem encenação em DV colorido - “(...) aqui ó.... as fotos. Quando ocê tava mais nós.” - “rapaz... olha! Cê nem pensava mais de vim aqui, né?!” Os camponeses re-descrevem o encontro do primeiro personagem; depoimentos/entrevista, voz off, fotografias. 12
Ao tomar o personagem de Flaherty como imagem análoga à de Carapirú no filme, me refiro aos comentários de Ismail Xavier (in CAETANO, 2008) acerca da seqüência de abertura do filme de Tonacci, na qual a imagem do “outro” se apresenta sob o fascínio pela diferença técnica. 9 | Mar 2013 | vol 2 |
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- “Mas tiraram foi muito retrato!” (voz off e fotografias) O personagem que agora aparece nas fotografias que preenchem a tela já não é nem o primeiro nem o segundo, mas um que até então não nos fora apresentado. Se não sabemos quem é esse ator, o que é uma informação extrínseca ao filme, ele nos aparece como um mutante, como vários personagens, que vão convergindo (e se mutiplicando) à medida que o filme se desenvolve. Se é possível fazer a associação do primeiro ao segundo personagem, é porque, e somente porque, o desenvolvimento do filme estabelece essas conexões, ligando um personagem que, agora, é atrelado a uma temporalidade, a outro personagem, outra temporalidade (o 1º ao passado e o 2º ao presente). Cai por terra a oposição analítica entre ator e personagem que só foi possível porque o filme os construiu, enquanto personagens (sempre). Transformações/Falseamento Do Tempo-História Se esses diferentes personagens evocam agora diferentes temporalidades (o que foi forjado pela narrativa), assim como na mudança entre os personagens, muda o tempo. Cai também por terra a linearidade histórica (substrato realista) como referência para a análise. Dessa forma o primeiro personagem, do passado, não resiste em se transmutar em um segundo, o personagem do presente, este último, com seus gestos e mímica se comunica, repetindo os gestos e comunicação de um evento que agora pressupomos já ocorrido. É novamente lançado no tempo, situando o passado e o presente em um campo instável, dissolvendo a concepção polarizadora e dicotômica de passado e presente, propondo o tempo como um “sempre-entre”, onde a narrativa da história não para de atualizar-se.13
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Sobre esse procedimento poderíamos tomar como referência a obra de Jean Rouch, na qual, já em Jaguar (1967) ou Moi un Noir (1959) a encenação ganha o caráter de happening e o encenar (como reprodução) é substituído pelo “acontecer”. 10 | Mar 2013 | vol 2 |
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Está então demonstrado nosso primeiro ponto: a impossibilidade de pautar a abordagem do filme numa horizontalidade histórica como referencia intrínseca a este, posto que, nos processos narrativos do filme (e é nestes que vamos nos ater), a história não é horizontal/linerar/contínua. Transformações/Falseamento Da Materialidade Narrativa Demonstrado esse primeiro ponto, podemos agora notar que, além do estratagema dramatúrgico do “repetir/encenar como se fosse o passado” e da “auto mise-enscène”, o filme se serve de uma série de recursos para “jogar”14 com o tempo. Dentre estes recursos há um que se destaca e nos aparece como central tanto para a narrativa de Serras... quanto para os desdobramentos teóricos que queremos extrair desta. Serras... se serve, ao longo de toda a sua duração, de uma complexa heterogeneidade de materiais audiovisuais. Essa oscilação na materialidade que compõe o filme vai de antigas fotografias, jornais impressos, áudio de reportagens, imagens de arquivos televisivos e fragmentos de outros filmes, até diferentes suportes na gravação – 35mm colorido, 35mm monocromático, vídeo digital, vídeo analógico, etc. Essas diferentes imagens/materiais atuam umas sobre as outras. Elas se intercalam no filme de tal forma que a segunda imagem sempre opera uma modulação no sentido evocado pela primeira, fazendo o paradigma referente a um tipo específico de mídia/formatação15 se entrelaçar com o tipo de mídia/formatação da imagem seguinte. Essa estratégia, que nos conecta diretamente com o princípio de montagem como produção de sentido no cinema (Kuleschov), opera uma constante fuga na narração, submetendo-a a uma série de metamorfoses. Assim como o personagem de Carapirú, ela se converte em uma identidade para, em seguida, falseá-la e lançar-se em uma outra. Quando a narrativa ameaça se estabilizar, ela se transforma, lançando-se num jogo de ziguezague no qual o sentido atribuído a uma imagem está sempre à mercê 14
A expressão “jogar” é aqui utilizada sem se perder de vista sua ligação com o “representar”, explícita em línguas como o inglês (to play), o francês (jouer) ou o alemão (spielen). 15 A referência aqui diz respeito aos clichês aos quais é possível atrelar determinadas estilísticas – por exemplo: DV em câmera na mão em longos planos seqüência = documentário contemporâneo sob o horizonte de um “cinema verdade”; 35mm PeB em fusão com 35mm colorido = alusão à memória ou sonho, etc. 11 | Mar 2013 | vol 2 |
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daquelas que a sucederão, e a história à qual somos remetidos, às histórias que sobre esta virão se inscrever. Um constante devir da história como inscrição do tempo. A “Ressignificação” Da História Pelas Imagens Em “Serras Da Desordem” Ao acompanharmos as proposições da “Nova História”16 no que diz respeito à matéria bruta do historiador, é possível pensar as obras cinematográficas e fragmentos fílmicos não apenas como registro material do mundo visível, mas como documentos reveladores de discursos específicos, de expressões culturais e ideologias17. Os diversos arquivos18 fílmicos re-montados/“ressignificados”19 pela narrativa de Serras da Desordem, segundo a descrição feita sobre sua materialidade narrativa, propõem não apenas um diálogo entre imagens de um passado e de um presente, mas também um diálogo entre formas discursivas da história, entre uma identidade narrativa e outras tantas. Essa ressignificação dos diversos materiais audiovisuais presentes em Serras..., se pensarmos os fragmentos reutilizados como documentos históricos, extrapola apenas uma atualização das funções narrativas de obras anteriores e as ressignifica enquanto documentos, agregando ao seu sentido originário um novo sentido contextual, contemporizando a imagem do passado, ao mobilizar as posições culturais do espectador desses “fragmentos do passado” a serviço de uma exegese que condiciona determinado discurso cultural em um tempo e um espaço, a uma interpretação cultural proveniente de um discurso cultural de um tempo e espaço distintos.20 Subjuga o passado à sua constante e inevitável reinvenção pelo presente.
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Como referência Cf. BURKE, 1992. Como referência ao uso do cinema como recurso do historiador Cf. FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1992. 18 Jacques Derrida (Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. p.1116) nos lembra da origem da expressão “arquivo”, recolocando, através da etimologia da palavra (arkhê arkheion), sua conexão direta com autoridade hermenêutica e poder político. 19 BERNARDET, 2002. 20 Lembremos-nos que, para essa nova interpretação, fruto de uma fusão de temporalidades e sentidos, é necessário que o espectador conheça de antemão os sentidos iniciais agregados ao fragmento reutilizado. 17
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Sobre
esse
processo,
que
na
teoria
cinematográfica
é
comumente
problematizado sob a noção de Found Footage, sigamos com uma citação de Wlliam C. Wees, que diz: Enquanto o espectador vê imagens que foram criadas em outra época, com outro propósito e por outra pessoa que o autor do filme que está contemplando nesse momento, é também consciente da discrepância existente entre o contexto original e o atual, tanto da apresentação como de recepção. Isto abre um espaço interpretativo, conformado pela forma do filme, mas que preenche a resposta do espectador à forma e ao conteúdo da obra. O resultado é um diálogo ativo com – em vez de consumo passivo de – representações visuais do passado (WESS, 2000, p. 71 apud WEINRICHTER, 2009, p. 16).
O que queremos demonstrar é como Serras da Desordem re-articula, então, esses documentos, refazendo seus sentidos (e, assim, sua própria materialidade) em um jogo “intertextual”, para fazer, como fazem os historiadores, novas amarras de sentido e uma nova narrativa do passado: (re)compor/narrar a História. Tomemos o exemplo da inserção em Serras da Desordem de um fragmento de um dos filmes de Major Thomas Reis acerca das famosas expedições de Rondon21. Ao comungar com as sequências do filme, esse plano sugere novas “leituras” históricas para a relação entre populações ameríndias e as forças estatais. A intenção propagandista que visava a apresentação cênica do índio como cidadão integrado, vestido e na sala de aula, exemplo ilustre de processo civilizador no interior do país,22 reaparece agora, na precariedade do ensino público que o filme descreve, como tensão/dominação entre culturas. Ou a inserção do trecho de Iracema: uma transa amazônica de Jorge Bodanski e Orlando Senna,23 na montagem de Serras..., que narra a construção da transamazônica e o passar de 11 anos no Brasil (77 a 88). Essa inserção não apenas atualiza o filme de Bodanski e Senna por conjugá-lo com uma das conseqüências contemporâneas da transamazônica (a situação indígena no Brasil – e a história de Carapirú, índio vivo, cuja maior parte da família foi exterminada), como o situa numa perspectiva cinematográfica 21
“Ao redor do Brasil: Aspectos do interior e das fronteiras brasileiras” – Thomas Reis 1932. Aqueles que se interessarem por maiores detalhes na construção das imagens das expedições de Rondon Cf. TACCA, Fernando de. A imagética da comissão rondon. Campinas: Papirus, 2001. 23 Sobre a relação entre Serras da Desordem e Iracema, uma transa amazônica, no contexto que aqui mais nos interessa, Cf. FRANÇA, Andrea “O cinema entre a memória e o documental” (in Revista Intexto nº 19 V.2, 2008) no qual a autora ressalta as conexões estabelecidas entre os dois filmes no que concerne à problemática memória-história. 22
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histórica que o põe em um patamar de diálogo com Serras da Desordem (a forma dramatúrgica e a utilização de não atores). Em “A subjetividade e as imagens alheias: Ressignificação” (in BARTUCCI, 2002, p. 21-43) Bernardet aborda o filme de montagem com “imagens de arquivo” como um “vaivém entre a vida e a morte”, um processo simultaneamente construtivo e destrutivo. Destruição porque a significação que este plano tinha originalmente será perdida, ou no mínimo alterada. Vida, porém, porque ganhará nova significação ao ser inserido na nova montagem. Uso o termo ressignificação para designar este processo.( BERNARDET, Jean-Claude, in BARTUCCI, op. Cit. p. 32)
Esse “vive-morre”, que acomete as “imagens de arquivo” na montagem, configura
exatamente
o
que
tratamos
em
algumas
páginas
acima
por
“transformações/falseamentos”, as potências falsificantes que insistem em inscrever uma história sobre a outra, e mais outra, e assim por diante. Esse
narrar
do
passado,
seja
pelas
mutações
do
personagem
ou
“ressignificações” pela montagem, vem, através de um procedimento de transformações temporais (um jogo de vai-e-vem), assim como no ato de fabulação, atualizar o passado, como se o colocasse na instância mítica, uma espécie de “mitopraxis” (SAHLINS, 2001), fazendo uma mescla entre uma história passada e a sua narração atual. Uma espécie de História em transe, uma “História-por-vir”. É dessa constante transmutação operada por Serras da Desordem que este retira sua maior força, seu experimentalismo, aquilo que acreditamos ser a contribuição maior desse filme. Em Serras..., a história é o produto da narrativa fílmica, é a mescla dos sentidos que o filme agencia sem se prender a algo que o apoiaria como tese ou fundamento, mas se lançando à história, fazendo-a, em si mesmo, um devir-história. Mais do que pensar em como transita de uma categoria à outra ou como se faz crível ou não, talvez valha a pena pensar Serras da Desordem como um filme que exemplifica não um corte transversal entre ficcional ou documental, mas um filme que extrapola tais categorizações ao propor uma nova inscritura do tempo; ao propor o próprio tempo como objeto fílmico. Eis seu trunfo.
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Para melhor entender esse trunfo, vale lembrar a célebre frase de Godard (1989) que, mesmo pelo desgastante uso que a converteu em clichê, é, ainda, atual: “Sempre pensei que o que se chama de documentário e o que se chama de ficção fossem para mim dois aspectos de um mesmo movimento, e é a sua ligação que cria o verdadeiro movimento.”(GODARD, 1989, p. 162 apud DELEUZE, 2007, p. 187) É acompanhando essa perspectiva de Godard que Tonacci, em entrevista a Daniel Caetano (CAETANO, 2008, p. 127), ao ser questionado sobre uma frase que havia dito (“os filmes não serem as pedras no riacho, mas o espaço entre elas.”) respondeu: “É... A gente usa muitas palavras, mas está sempre tentando falar do movimento”. É submetendo a “verdade”/História ao tempo que nos é permitido ver que esta se encontra sempre em movimento.
Referências Bibliográficas BERNARDET, Jean-Claude. “A Subjetividade e as Imagens Alheias” in BERTUCCI, Giovanna (ORG.) Psicanálise, Cinema e Estéticas de Subjetivação. Rio de Janeiro, Imago, 2002. BURKE, Perter (org.). A Escrita da História, Novas Prespectivas. São Paulo: Editora Unesp, 1992. CAETANO, Daniel (org.) Serras da Desordem. Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2008. COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder. A inocência perdida: televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editota UFMG, 2008 DELEUZE, Gilles. Cinema II – A imagem-tempo, São Paulo: Brasiliense, 2007. LINS, Consuelo e MESQUITA, Claudia. “Crer, não crer, crer apesar de tudo: a questão da crença nas imagens na recente produção documental brasileira”. In: XVII Encontro Nacional da Compós, 2008, São Paulo. Anais do XVII Encontro Nacional da Compós. São Paulo : Compós/UNIP, 2008. NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus Editora, 2005. PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo Herege. Lisboa, Assírio & Alvim, 1982. RAMOS, Fernão Pessoa. “A cicatriz da tomada: documentário, ética e imagem-intensa”. in: 15 | Mar 2013 | vol 2 |
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______. (Org.) Teoria contemporânea do cinema, v.2. Documentário e narratividade ficcional. São Paulo: SENAC, 2005. SAHLINS, Marshall. Ilhas de história, Rio de Janeiro, Jorge Zahar. 2001 TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. (org.) Documentário no Brasil - Tradição e Transformação. São Paulo, Summus Editorial, 2004. WEINRICHETER, Antonio. Metraje encontrado:la apropriación en el cine documental y experimental. Pamplona: Fondo de Publicaciones del Gobierno de Navarra, 2009.
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TUDO A VER: o império da visibilidade total como sintoma contemporâneo Marcio Acselrad Doutor em Comunicação pela UFRJ macselrad@gmail.com Tudo a ver A contemporaneidade, misto de todas as eras anteriores acrescida de algumas características inéditas, surge sob a égide dos mídia e das novas tecnologias visuais. Tratase de uma mudança na esfera do olhar e da simulação, diversa da revolução moderna, trazida à tona pela razão e pela representação. O mundo da visibilidade plena tem como um de seus marcos a possibilidade de considerar o planeta como um todo, coetânea à ideia de que esta nossa morada pode ser provisória. Olhar a Terra como um todo, ver “as tais fotografias em que apareces inteira”, como cantou Caetano, nos dá a dimensão artificializante que marca a contemporaneidade. Hannah Arendt é testemunha inaugural desta mudança. Em A condição humana, descreve a reação diante do lançamento do primeiro satélite artificial a orbitar o planeta. A principal sensação não foi, ao contrário do que se podia esperar, a de alegria triunfal, nem de orgulho nem de assombro, mas de “alívio ante o primeiro passo para libertar o homem de sua prisão na terra”. (ARENTD, 1995) Doravante o próprio planeta em que vivemos deixa de ser um habitat natural para ser uma possibilidade entre outras. Parece que, livrando-se da morada terrestre, o homem se livra também de tudo o que incomoda, de toda a materialidade inerente à vida humana, inclusive e principalmente do incômodo e imprevisível contato com o outro. Enquanto não nos livramos da provisória morada terrestre, vamos nos locupletando de visão. O excesso de informação não é necessariamente um bem, da mesma forma que o excesso de imagens não torna a visibilidade mais perfeita. Muita informação pode cegar, assim como muita luz também não ilumina. “Tudo que é demasiadamente iluminado, obscurece”, lembra Ciro Marcondes. (MARCONDES, 2000)
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Por vezes o excesso de informação provoca mais a dispersão do que o centramento. Passando ininterruptamente de imagem para imagem, de meio para meio, de canal para canal, de site para site, o homem corre o risco de não reter nada, de dispersar-se por diferentes pensamentos e esquecer-se de si. “A visão”, diz Baitello, “saturada com as intencionalidades da luz, tornou-se a princípio um sentido habilitado apenas para as superfícies iluminadas”. (BAITELLO, 2000) Desta forma, surge uma tendencial perda da sensibilidade para o que não se dá a plena luz. Tudo o que se manifesta no crepúsculo, no limiar, nas entrelinhas da experiência da visão (e do pensamento) se perde irreversivelmente para um olho (e um cérebro) treinados para perceber apenas o que se mostra, o que se evidencia. Assim sendo a experiência fundamental do esclarecimento, qual seja, a interpretação, fica relegada a segundo plano. Num universo semiótico restrito a seu aspecto imagético de pura obviedade, a tridimensionalidade e os demais sentidos são hiper-reduzidos. Nada a ver Quando vai descrever a cegueira a que seus personagens subitamente se vêem entregues, o romancista José Saramago não fala de escuridão ou de ausência mas do curioso mergulho “numa brancura tão luminosa, tão total, que devorava, mais do que absorvia, não só as cores, mas as próprias coisas e seres, tornando-os, por essa maneira, duplamente invisíveis”. (SARAMAGO, 1995) Parece estar justamente descrevendo a sociedade contemporânea, em que a visão ganha uma força tal que seu excesso transforma-se em sua ausência. Saramago mostra que é a própria sociedade que está doente, uma vez que relega os cegos ao abandono da própria sorte e ao ostracismo social. Aquele que não vê o que todos vêem não merece compartilhar o pão ou a comunidade. A alusão é tão mais poderosa quando nos lembramos que, na antiguidade, cabia aos cegos como Tirésias o papel de ver o que ninguém mais era capaz de enxergar, inclusive o futuro. Com a leitura infindável, já em muitos casos substituída pelo fruir de velozes imagens-clichês, menos trabalhosas de adquirir e mais difíceis ainda de reter, corre-se o risco de ter a atenção tornada instável, a opinião maleável ao sabor dos acontecimentos, o 2 | Mar 2013 | vol 2 |
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desejo cambiante dependendo do objeto que ora se observa e da novidade que ele apresenta (ou diz apresentar). Tudo isto reunido resulta na enorme dificuldade de a crítica se exercer, visto que para tal é imprescindível uma instância fixa, um ponto qualquer de onde se possa observar, mas que não seja ele mesmo parte do observado. Já se acreditou que a razão fosse capaz de desempenhar tal papel. Hoje as dúvidas quanto a esta pertinência são muitas. A era da mediatização generalizada O que está em jogo são noções como as de temporalidade e visibilidade. A mediatização generalizada a que somos expostos incessantemente provoca uma nova relação com o tempo em que tudo tende a se reduzir à simultaneidade, ao predomínio do instante, ao aqui e agora. A história deixa de fazer sentido posto que nada temos a aprender com o passado que o presente não nos ensine melhor e mais velozmente. Não há mais superação cronológica ou critica operando uma aproximação progressiva da verdade. E não parece haver espaço para uma superação deste processo, visto como irreversível. Não devemos, portanto ser nostálgicos. A verdade está perdida para sempre, temos que nos contentar com o puro fluir do presente, das imagens que se substituem sem cessar. Temos? Nosso mundo não gosta da lógica nem da coerência racional. Ele está submetido a outro modelo: o da comunicação por imagens, da fluidez incessante, da informação volátil. O mundo das imagens, o mundo da mídia, é instantâneo e incoerente, seu motor é mesmo a instantaneidade, um mundo rápido e desmemoriado, mundo do zapping e do flash; mundo em que as opiniões são ao mesmo tempo extremamente móveis e frágeis, em que sustentar firmemente uma lógica de pensamento ou uma identidade qualquer é difícil, visto como anacrônico. A crítica da sociedade comunicacional invade de incertezas o real e denuncia as estratégias da ilusão. O real não há mais, dizem. Desapareceu, esvanecendo-se por trás de uma avalanche de imagens que se substituem umas às outras sem cessar. Simulacro de simulacro de simulacro. É a derrocada da ordem simbólica, a proliferação de informações sem conteúdo substituídas por mais informações sem conteúdo e que, em seu movimento incessante, criam uma ilusão de real. Mesmo as imagens que poderiam ser ferramentas de
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conscientização e reflexão, que tentam se afastar do perigoso clichê, acabam paradoxalmente reforçando a noção de distanciamento. A banalização da violência, da guerra ou da fome, com a qual aprende-se a conviver através dos noticiários, não permite a concretização de ações políticas. Ao contrário, parece aumentar a distância entre atores e público, entre quem padece e quem assiste. A famosa foto da menina vietnamita correndo nua pode ter contribuído para o fim de uma guerra, porém mais de vinte anos depois tomou-se um clichê entre outros. Mesmo uma obra fotográfica como a de Sebastião Salgado, cujo objetivo é alertar para a situação de miséria de boa parte dos habitantes do planeta, pode provocar um efeito contrário ao esperado. O choque diante das fotos não é tão grande quanto a chocante situação de impotência de quem as vê e o distanciamento dos que são vistos. Quando tudo se reduz ao ver, a ação torna-se praticamente impossível. Ver e entender A separação entre visibilidade e entendimento, entre ver e enxergar, gera um círculo vicioso em que a mídia se auto-referencia sem necessidade de uma baliza externa. Baitello mostra que o maior sacrificado neste processo de redução é o próprio corpo, que tem sua complexidade de sentidos e experiências reduzida a mais simples e passiva delas, o mero olhar
esvaziado.
Este
esvaziamento
da
experiência
plena,
substituída
pela
bidimensionalidade e pela reprodutibilidade da imagem, é decorrente das mudanças tecnológicas ocorridas ao longo do século vinte. Em uma era tecnológica, a aura não povoa mais a imagem, como alertava Benjamin, uma vez que não há mais autenticidade, nem separação possível entre original e cópia. Isto não implica, no entanto, a perda de toda a capacidade de o entendimento se dar mas, ao contrário, obriga ou ao menos convida à produção de novas experiências cognitivas. Neste sentido a tecnologia possibilitaria uma nova compreensão do mundo, desmistificada e renovada, permitindo um novo olhar que prescinda da condição aurática e que ultrapasse a dicotomia entre original e cópia.
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A perversão televisiva: uma nova forma de censura Como contrapartida da exacerbação da imagem no mundo midiático, temos o surgimento de uma nova forma de controle e dominação, uma nova modalidade de censura. Em plena era da comunicação e da circulação de informações, uma era que se apregoa livre, a censura, uma das grandes inimigas do pensamento esclarecido, reaparece com nova roupagem. Trata-se do paradoxal fenômeno da “censura democrática”, que teria surgido quando a televisão tomou a dianteira dos acontecimentos, passando a ditar as normas do mundo midiático e determinando o que era e o que não era acontecimento. (RAMONET, 1999) Mudanças várias no modo de difundir notícias já estavam em curso desde meados do século dezenove. Quando a literatura se torna uma indústria, dando surgimento à forma folhetinesca, mais afim ao gosto das classes menos abastadas; quando a imprensa atinge tiragens enormes de seus jornais, tornando a informação um direito de todos e não apenas dos ricos; quando o rádio se populariza em todo o mundo nas primeiras décadas do século vinte, já ficava evidente que a sociedade de massas seria bem diferente daquela que a antecedeu. Porém os efeitos que a televisão iria produzir nas práticas jornalística e cultural são incomparavelmente maiores e mais intensos do que tudo que a antecedeu. De novidade ela passa a complemento e daí, rapidamente, ao centro das atenções de toda uma geração que não precisa nem saber ler para usufruir (ou ao menos para assistir) as maravilhas (e os terrores) da vida moderna. A perversão televisiva resume-se ao fascínio pela imagem, onde só o visível é digno de importância. O que não tem imagem não é televisável, portanto não existe midiaticamente. A nova forma de censura dá preferência especial a cenas fortes, imagens que apresentam situações bizarras, violentas e/ou humorísticas e que, se possível, envolvam pessoas conhecidas. Há aqui uma curiosa aproximação entre dois extremos, uma indiferenciação entre imagens que inspiram dor ou sofrimento e outras que convidam ao riso. Do ponto de vista do espetáculo, humor e horror são intercambiáveis. O conteúdo de tais situações ou sua importância para a compreensão da realidade são, no mais das vezes, irrelevantes. “A imagem oblitera o som e o olho suplanta o ouvido”. (RAMONET, 1999)
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Esta ideia remete a fenômenos como o marketing, responsável pela apresentação estética de uma mensagem, pela transformação de toda e qualquer informação em algo palatável e acolhedor. Trata-se, pois, de um veículo bem adequado aos nossos tempos, em que opiniões pessoais são reduzidas a meros rebatimentos de fluxos complexos advindos de variadas partes da sociedade, inclusive e principalmente dos próprios mídia. O mundo que se vem formando, alerta Berardi, afasta-se vertiginosamente do ideal iluminista já que nele “a força dos automatismos tecno-sociais (cognitivos, relacionais, financeiros, produtivos) é infinitamente superior à força da vontade política”. (BERARDI, 1999) A nova censura se efetiva na medida em que certas realidades estão proibidas de produzir imagens, que é o meio mais eficaz de ocultá-las. Se não há imagem, não há realidade: é como se o fato não tivesse ocorrido. Ramonet fala da relação estabelecida entre guerra e imagem. A guerra do Vietnã teria sido suficiente para que os estados maiores das forças armadas compreendessem que imagens poderiam ter um efeito devastador sobre a opinião pública. Desde então, sempre que se quis diminuir a importância de uma ação militar qualquer tratou-se de realizá-la o mais longe possível dos holofotes midiáticos. Foi assim com as invasões de Granada e do Panamá e, mais recentemente, com a guerra do Golfo, reduzida a um videogame com efeitos visuais mas ‘sem sangue e sem mortes’. Por outro lado, exemplos não faltam de que, quando o objetivo era aumentar a importância de um evento, tratou-se de realizá-lo diante do olho eletrônico da mídia. Onde andam os intelectuais? No século dezoito surge e se desenvolve um novo personagem, cuja presença será decisiva para os acontecimentos que se seguiram: o intelectual, alguém que se valia do poder da escrita, tornando públicas suas ideias através de panfletos, livros, jornais, peças de teatro e quaisquer outros meios possíveis, um misto de filósofo e ativista político. Lepape mostra como Voltaire representa com perfeição este personagem de certa forma inaugural da modernidade. (LEPAPE, op. cit.) Nessa época os jornais eram povoados de personagens variados como advogados, literatos, políticos e outros, mas o profissional da comunicação, o jornalista propriamente dito, ainda não havia feito sua entrada neste cenário. Ciro
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Marcondes define esta etapa como a era do jornalismo iluminista, em que a função do jornal era antes esclarecer do que obter lucros. (MARCONDES, op. cit.) Aos poucos, no entanto, percebe-se que começa a haver uma separação entre intelectuais e jornalistas, principalmente a partir do processo de profissionalização dos últimos. Esta separação não é sempre evidente e entre os jornalistas ainda há muitos que trazem consigo características do intelectual. Bourdieu chega a utilizar o termo ‘intelectualjornalista’ para tratar desta figura híbrida que ainda habita, mesmo que de forma marginal, as redações. (BOURDIEU, 1997) Como principais semelhanças temos que ambos lidam com palavras e que ambos buscam, através delas, um contato com a sociedade. Mas as semelhanças parecem terminar por aí pois, devido principalmente às mudanças ocorridas no mundo do jornalismo, hoje vemos um progressivo afastamento entre os dois tipos. Se o intelectual visa antes de mais nada alterar e aprimorar a vida social, buscando conscientizar seus leitores, o jornalista, embora também possa ter este objetivo em mente, precisa se sujeitar ao sistema em que está inserido, o sistema midiático, com suas leis e restrições próprias. Bourdieu analisa os diversos graus em que o jornalista pode se inserir no contexto midiático, com níveis diferenciados de autonomia. Esta irá depender da posição do órgão de imprensa em que trabalha em relação aos demais, numa gradação que vai de um polo comercial extremo, em que a única preocupação é o mercado, a um polo intelectual, em que ainda não são privilegiados tão somente aspectos empresariais do jornalismo; da sua posição dentro do jornal ou do órgão de imprensa, do seu salário e, enfim, de sua capacidade de produção autônoma da informação. A comunicação moderna transformou-se em uma grande indústria que mescla informação e entretenimento por vezes em doses desiguais. Assim sendo o jornalista raramente é dotado da liberdade necessária para se exprimir. Tem compromissos com uma empresa que, em maior ou menor escala, precisa obter lucros. O produto de seu trabalho, seja ele uma reportagem ou uma coluna opinativa, irá inevitavelmente ser transformado em mercadoria e precisa, portanto, condicionar-se a esta circunstância. Como consequência teremos fenômenos impensados há um ou dois séculos atrás, como a supermidiatização. Quando Voltaire levantou como bandeira política a defesa do 7 | Mar 2013 | vol 2 |
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huguenote Calas ou quando Zola defendeu o judeu Dreiffuss, acusado de traição, precisaram de muita tinta e muito esforço para que suas mensagens pudessem surtir efeito, penetrar no âmago do pensamento social e alterar o modo como as pessoas pensavam. A dificuldade era tanto maior porque se tratava, afinal de contas, de homens isolados. Lepape descreve Voltaire como “um escritor perdido no fundo de uma província fronteiriça, tentando reabrir um processo sem ter competência legal ou profissional para tanto”. (LEPAPE, op. cit., p. 227) Surgia, assim, o intelectual, aquele que só dispõe da pena como ferramenta de conscientização. Pela primeira vez utilizava-se o termo ‘publicidade’, pela primeira vez apelava-se para a então nascente ‘opinião pública’. Paradoxos da mediatização generalizada Hoje parece ocorrer o contrário, quando acontecimentos como a morte de Diana, o julgamento de O. J. Simpson e o caso extraconjugal do ex-presidente Clinton caminham por conta própria, não como sugestão de pauta mas como pauta obrigatória, e a opinião pública converte-se em uma força poderosíssima e anônima, dada a mudanças de humor repentinas e por vezes violentas. Isto se toma ainda mais evidente na atual etapa do desenvolvimento dos meios de comunicação, uma vez que eles passam a integrar uma única e complexa rede de intrincadas conexões. Pensar a mídia hoje implica em pensá-la como um todo sistemático. Os meios funcionam juntos, em cadeia, uns imitando e complementando os outros. Assim seu domínio não é vertical e hierárquico, como os poderes constitucionalmente estabelecidos, mas horizontal, reticular, consensual. Ainda se pode discutir se a mídia é o quarto ou o primeiro poder. O que não se discute é a amplitude e dimensão deste poder, tão sutil e penetrante que nele se misturam as instâncias pública e privada ao ponto da indiscernibilidade. (GUARESCHY, 1991) “A morte de Diana”, diz Ramonet, “desencadeou um enorme soluço mundial”, um caso inaugural de agenda setting planetário em tempo real. E no entanto esta catarse global assemelha-se mais a um conto de fadas macabro do que a um fenômeno político; um soluço, sim, mas que nada muda nem pretende mudar, um caso extremo de invasão de privacidade em que se confundem os responsáveis pela investigação acerca da vida privada de uma figura pública com os responsáveis por sua morte. 8 | Mar 2013 | vol 2 |
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O jornalista aqui se encontra em situação delicada: não pode deixar de noticiar o acontecimento, o que faria com que perdesse leitores. Deixa de ser o sujeito e passa à posição de objeto da ação, tornando-se refém do acontecido. A relação mercadológica deixa evidente sua supremacia. É preciso noticiar o que ninguém noticia, buscar o furo, mas é também necessário noticiar o que todos noticiam, não ficar de fora. É preciso acusar os paparazzí que teriam assassinado a princesa, mas é também necessário publicar suas fotos. Com o enorme desenvolvimento dos diversos meios de comunicação e principalmente com a exacerbação da cultura da imagem um efeito colateral inesperado passa a ser cada vez mais experienciado indistintamente por todos quantos habitem esta sociedade. Passamos a coabitar mais e mais com máquinas que apelam para a imagem: câmeras, filmadoras e demais dispositivos de vigilância. A convivência com a própria imagem e a alheia, restrita aos espelhos e retratos nas sociedades tradicionais, passa a ser uma constante e, como consequência, novos modos de visibilidade se instauram. A imagem perde assim sua sutileza, seus meandros de luz e sombra, tornando-se explícita, integral, transparente. Como consequência sobre a produção de novas subjetividades, tem-se que, paralelamente ao fenômeno da invasão de privacidade, em que celebridades se vêem mais e mais acossadas pela sede de informação do público e dos veículos da mídia, surge o fenômeno da evasão da privacidade, em que pessoas comuns lutam por tornar-se, ainda que por breves instantes (os famosos quinze minutos de Andy Warhol, hoje reduzidos por vezes a quinze segundos) também elas alvo das câmaras e dos flashes. A celebridade instantânea, sem sentido ou razão de ser, comprova a tese de que “nada faz tanto sucesso quanto o sucesso”. (VERÍSSIMO, 2002) Experimentamos hoje uma perversão da premissa sofística segundo a qual parecer (e aparecer) é superior a ser e em que a forma prescinde de conteúdo. Temos aqui mais um exemplo de que mostrar nem sempre é sinônimo de esclarecer, de que iluminar às vezes obscurece, obnubila e prejudica a compreensão. “Há na exibição total de si algo de infamante, de excessivo, de desagregador”, diz Olgária Matos. (MATOS, 2000) Tanto nos fenômenos de invasão quanto nos de evasão de privacidade vemos uma tendência muito presente e paradoxal: a desaparição do sujeito como princípio de ação coincide com a exacerbação da subjetividade. No mesmo momento em que deixa de existir 9 | Mar 2013 | vol 2 |
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como instância interior plena e consciente, o sujeito atinge seu apogeu como ícone e simulacro, como pura figuração, tentativa de preencher o vazio deixado pela saída de cena da razão. Quando a referência deixa de ser o jornal impresso e passa para as mãos da televisão, quando a imagem passa a ter a primazia e o entretenimento se mescla irreversivelmente à informação, torna-se cada vez mais difícil identificar claramente a separação entre a imprensa dita séria e a imprensa sensacionalista. Esta oposição, sobre a qual será constituído o campo jornalístico no século dezenove, tem hoje seus contornos cada vez mais indefinidos. Um mesmo órgão de imprensa é capaz de estampar em suas páginas (ou nas chamadas de um telejornal) notícias de relevância lado a lado com fofocas, importantes decisões governamentais dividindo espaço com casamentos e separações de celebridades. Com o surgimento do que Ramonet chama de ‘imprensa people’, fica cada vez mais difícil identificar os órgãos de imprensa que merecem crédito, que prezam pela objetividade acima de tudo e que buscam informar e esclarecer o leitor. O leque de abrangência se abriu em demasia. Um princípio de legitimação tal como o reconhecimento pelos pares, intelectuais e/ou jornalistas, não é suficiente para um veículo de mídia, qualquer que seja. Sem as concessões que agradam a maioria e que se materializam no número de leitores, ouvintes ou espectadores, em última instância, sem a aceitação por parte do mercado, dificilmente um veículo, por mais bem intencionado que seja, resiste e consegue transmitir suas mensagens. No Brasil isto fica evidente quando vemos a força de um neologismo criado a partir do nome de uma empresa de aferição de audiência: Ibope não é sinônimo de qualidade, mas de sucesso. A informação torna-se descontextualizada, dependendo cada vez menos da ordem política em que se insere. Quando a imagem supera o discurso, quando a visibilidade é mais importante que a interpretação, a emoção passa a ser a principal ferramenta de que dispõe o jornalista. Atingir o público é preciso, fazer com que pense não é preciso. Considerações finais Mas não se deve simplificar demasiadamente as coisas. A mídia é certamente uma ferramenta poderosa e o jornalista assume tanto a função de sujeito quanto de objeto deste 10 | Mar 2013 | vol 2 |
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sistema de poder. Mas o controle dos meios de comunicação não pode ser suficiente para produzir espíritos apaziguados. Se assim fosse não haveria voz alguma a se levantar contra ele e viveríamos em uma sociedade catatônica como a de “1984”, de Orwell. O que se vê, ao contrário, é que o sistema não é à prova de criticas e os próprios jornalistas se preocupam em apontar suas falhas e abusos. Exemplos podem ser encontrados entre jornalistas da grande imprensa, como o próprio Ignácio Ramonet e, no Brasil, Alberto Dines, Zuenir Ventura, Luis Fernando Veríssimo, Millôr Fernandes entre outros; e fora dela, em vários sites como o Observatório da Imprensa e o No.com.br. A influência da mídia sobre a população é grande, mas não é absoluta e muito menos um fenômeno simples, como acreditavam os criadores da ‘teoria da agulha hipodérmica’. Hoje é sabido que a recepção é parte importante do processo comunicacional e que ela nem sempre padece de passividade crônica. E apesar disto, o pensamento crítico está em crise. Esta, no entanto, não é decorrência de uma ausência. Ao contrário, talvez nenhuma outra época tenha sido tão atravessada por críticas. Todos criticam. Jornalistas criticam, intelectuais criticam, mesmo o homem comum aprendeu a criticar. O problema é que a crítica não parece mais fazer diferença. Já está a tal ponto incorporada à sociedade do espetáculo que esta não mais a teme. A crítica está sob controle. Tudo está sob controle. Fala-se demais, é verdade, mas isto parece surtir cada vez menos efeito. Referências Bibliográficas ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. BAITELLO, N. “O olho do furacão” In: Encontro Nacional de Pós-Graduação em Comunicação - COMPÓS, Brasília, 2000. BERARDI, F. “Notas sobre o conceito de cibernáutica”. In Lugar Comum: estudos de midia, cultura e democracia, n. 8, NEPCOM, UFRJ, maio-agosto 1999. BOURDIEU, P. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. GUARESCHI, P. (coord) Comunicação e controle social. Petrópolis, Vozes, 1991.
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COMO ORGANIZAR BONS ENCONTROS? Sobre os afetos e os corpos em Shara, de Naomi Kawase
Camila Vieira da Silva Mestre em Comunicação – Universidade Federal do Ceará (UFC)
Primeiro plano. A câmera lenta percorre o espaço silencioso de um aposento escuro, enquanto aparecem os créditos iniciais. De maneira flutuante, entre panorâmicas e travellings, ela se desloca de baixo para cima, para o lado esquerdo, captando tudo o que está a sua frente e dentro da sala, das paredes com estantes repletas de objetos de madeira à lâmpada apagada ao centro. Sai pela porta, fixa a atenção numa claraboia, segue pelo corredor. Enquanto escutamos ao longe duas vozes que dialogam: “- Vai funcionar? – Sim, é só carvão” –, a câmera continua a se deslocar pelo corredor, gira para o lado direito e mostra o detalhe da janela do aposento ao qual acabara de sair. Como se tateasse aquela parede, a câmera continua caminhando até chegar à porta de um novo aposento, semelhante ao anterior. Aproxima-se, mas não chega a entrar. Do lado de fora e pelas janelas abertas, mostra os objetos interiores: prensas de madeira e ferro, caixotes, papéis, uma balança. Pelo vidro de uma das janelas, é possível visualizar o reflexo de um jardim e dois garotos agachados. A câmera novamente vira para a direita, levanta-se para seguir o rastro da luz do sol, que se intensifica e ilumina o telhado. Em seguida, enquadra um plano de conjunto do jardim da casa, onde estão os dois garotos que – só posteriormente saberemos – são os irmãos gêmeos Shun e Kei, lavando as pernas sujas de tinta e carvão. As vozes dos dois podem ser ouvidas agora com maior clareza. Quatro minutos já se passaram. Nenhum corte interrompeu ainda o plano sequência, que agora se detém na imagem dos dois garotos por alguns segundos, mantendo os personagens ao centro do quadro, que permanece oscilante. De repente, um dos irmãos olha pra frente e, numa rápida sucessão de atos, levanta-se, exclama “Shun!” e sai correndo por um dos corredores da casa. Imediatamente, Shun o segue. A câmera também não hesita em 1 | Fev 2013 | vol 2 |
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segui-los. Um silêncio invade a cena, seguido pelo som repetitivo de algo semelhante a um sino. Seguindo os passos ligeiros de Shun na perseguição ao irmão, a câmera põe-se a correr vertiginosamente, capturando rastros de imagem a sua frente, pelos corredores estreitos da casa, atravessando cortinas e portas, até chegar ao exterior da casa. Primeiro corte, aos 5 minutos e 8 segundos. Segundo plano. Shun ainda corre atrás do irmão, pelas ruas do bairro. Do detalhe dos pés de Shun, o plano se abre, deixando ver o garoto e seu irmão mais ao fundo, correndo em zigue-zague pelas ruas estreitas, dobrando esquinas, tocando nos enfeites das casas, circulando entre as árvores de um jardim, ao som do canto das cigarras. Em seguida, a câmera desiste de acompanhar os garotos e os observa de longe, com uma velocidade lenta. Ao fundo, podemos perceber que Shun olha para trás, como se instigasse a câmera – e, consequentemente, o espectador – a se manter correndo e assim não perdê-los de vista. Mas os dois irmãos saem de quadro, que deixa ver o balanço das folhas das árvores ao vento. Ouvimos novamente o ressoar do sino. Segundo corte, aos 6 minutos e 37 segundos. Terceiro plano. O bater do sino continua. Seguindo as regras deste jogo de mise-enscène, a câmera opta por continuar a perseguir os garotos pelas ruas, até que Kei dobra uma esquina. Quando Shun faz o mesmo, Kei já não está mais lá. No corredor, Shun diminui o passo. A câmera para e, aos poucos, anda para frente. Shun olha ao redor, mas não encontra o irmão. Um vento forte bate em seus cabelos. Shun olha para cima e a câmera faz o mesmo movimento, em um delicado contra-plongée. Em seguida, acompanha os lentos passos de Shun, que volta pelo mesmo caminho, agora ocupado pelos pais e seus amigos. A mãe de Shun, Reiko, o vê sozinho e logo pergunta por Kei. Shun olha para trás. O pai Taku insiste: “Vamos, responda!” Terceiro corte. “Ele se foi”, diz Shun, com o semblante assustado. “O que você quer dizer com ‘se foi’?”, pergunta a mãe, com o olhar fixo no filho, que permanece atordoado e sem palavras. Novo corte. A câmera agora foca, em primeiríssimo plano, o rosto de Shun, ainda assustado e observando a conversa dos pais, que decidem procurar Kei. Escutamos uma voz feminina – talvez da mãe – perguntar: “Será que os deuses levaram Kei?” Fade-out. Em pouco menos de 10 minutos, com os três planos-sequência e mais dois planos curtos descritos acima, somos introduzidos ao filme Shara (Sharasojyu), terceiro longa2 | Fev 2013 | vol 2 |
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metragem da japonesa Naomi Kawase, realizado em 2003 e filmado em Nara, a cidade natal da cineasta e antiga capital do Japão. Nesta sequência que inicia o filme, Kawase constrói um prólogo sobre o desaparecimento, como elemento modulador que irá perpassar ao longo de todo o filme. Se compreendermos que “a própria matéria do filme é o registro de uma construção espacial e de expressões corporais”1, o jogo intenso entre a ausência e a presença em Shara envolve não só o mero registro de corpos que aparecem e desaparecem num determinado espaço, mas a compreensão do cinema como um corpo que lida com o invisível – algo que apenas é sugerido, que ainda não podemos ver, mas está ali de alguma forma. De um estado inicial de sono ou embriaguez, a câmera-corpo de Shara deixa-se levar pela curiosidade de olhar para o interior da casa de Shun e Kei, como se estivesse disposta a detectar fendas, fissuras, pelas quais se pode violar um segredo – o desaparecimento de um dos irmãos. Em vez de uma curiosidade passiva – que apenas aguarda os acontecimentos se desenrolarem à sua frente –, uma curiosidade ativa torna-se cada vez mais aguçada e penetrante. Ao fazer parte do jogo de perseguição desencadeado no início por Shun ao alcance de Kei, esta câmera-corpo absorve intensas nuances sentimentais de curiosidade, a ponto de querer ver por dentro da imagem, de esquadrinhar uma intimidade. “A partir desta vontade de olhar para o interior das coisas, de olhar o que não se vê, o que não se deve ver, formam-se estranhos devaneios tensos...” (BACHELARD, 1990, p. 7). Trata-se de colocar em cena aquilo que se deixa ver e aquilo que não se vê, mas se sente – a dor que a família de Shun vivencia, mesmo cinco anos depois do desaparecimento de Kei. Além do interesse ótico de profundidade – de querer ver o íntimo –, há, sobretudo, um interesse de superfície – de tatear um estado de coisas à flor da pele – a ponto de construir no/com o filme toda uma poética da tatibilidade. Não se desvela em nenhum momento o motivo pelo qual Kei desapareceu, mas como esse desaparecimento afeta os corpos dos membros da família, como eles podem superar a dor e continuar suas vidas. A superficialidade aqui importa como “um atributo de cinema
1
Cf. a citação de Eric Rohmer, cineasta e ex-redator-chefe dos Cahiers du Cinéma, feita por Antoine Baecque
em COUTRINE (org), 2008, p. 481.
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em que não nos apetece aquilo que simboliza ou remete à, mas aquilo que, em si mesmo, no grafismo imanente da imagem, é uma presença”2. A questão primeira é: o que podem estes corpos diante do desaparecimento do outro, de algo imponderável que os invade e que, ao mesmo tempo, lhes escapa? Esta problemática considera a famosa pergunta de Espinosa – o que pode o corpo?3 –, que implica a ética de uma diferente concepção de indivíduo, que dispõe de um direito natural com base em tudo aquilo que pode seu corpo4. As afecções – que, para Espinosa, são as paixões e as ações – de um corpo determinam seu conatus – a singularidade que cada um tem de afetar e ser afetado – e, por sua vez, o conatus é também a procura do que é útil em função das afecções que o determinam. Todos os corpos se relacionam. Bons encontros produzem um aumento de potência dos corpos, enquanto maus encontros produzem uma diminuição da potência de agir dos mesmos. Espinosa reforça a concepção de que a razão nos possibilita organizar bons encontros, para que possamos evitar procurar aquilo que nos é útil ao acaso e assim nos perdermos em afecções passivas que nos separam da nossa potência de agir. No entanto, a razão não representaria qualquer privilégio da condição humana, mas sim os afetos. Se os homens vivessem sob a direção da Razão, cada um usufruiria deste direito sem dano algum para outrem. Mas, como eles estão sujeitos aos afetos, que ultrapassam de longe a potência, ou seja, a virtude humana, por isso são muitas 2
Cf. BRAGANÇA, Felipe. Filmar, hoje, um corpo (em alguns atos). Junho de 2007. Revista Cinética.
http://www.revistacinetica.com.br/filmarumcorpo.htm. Acessado em 08/03/2009. 3
Segundo DELEUZE (1968, p.1), a pergunta de Espinosa “não implica em nenhuma desvalorização do
pensamento em relação à extensão, mas somente uma desvalorização da consciência em relação ao pensamento”. Isso quer dizer que Deleuze defende um certo tipo de pensamento, nesse caso, o pensamento do corpo e não da Razão. 4
Segundo tal princípio, não haveria nenhuma diferença entre o sábio e o insensato, o razoável e o demente, o
forte e o fraco, na medida em que “um e outro se esforçam igualmente em se conservar, tem tanto direito quanto potência, em função das afecções que preenchem atualmente seu poder de ser afetado” (DELEUZE, 1968, p. 1).
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vezes arrastados em sentidos contrários e são contrários uns aos outros, quando têm necessidade de mútuo auxílio (ESPINOSA, 1979, p. 249) 5.
A câmera-corpo de Shara convida o espectador a mergulhar no universo do filme, a partir dos afetos dos personagens e de seus próprios afetos, sem necessariamente recorrer a uma atenção intelectual. Que tipo de pesquisa sensória esta câmera-corpo estabelece com os corpos dos personagens e com seus afetos transbordantes? A escolha da câmera na mão não é apenas coerente com a história que está sendo narrada, mas principalmente com a estratégia de Kawase6 em concentrar a atenção do espectador à instabilidade do vivido e de seu fluir constante. Ao apontar corpos em cena que estão em constante relação, o filme aciona uma “estética do fluxo”, que não se reporta exatamente à velocidade e aos fluxos de informação proporcionados pelas novas tecnologias midiáticas, mas diz respeito àquilo que o crítico da revista francesa Cahiers du Cinéma, Stéphane Bouquet7, compreende como uma possibilidade diferente de se pensar a linguagem cinematográfica na contemporaneidade: por meio de sensações, que desencadeiam uma multiplicidade de estados possíveis, a partir de uma série de procedimentos que exploram a relação corpo/espaço dentro de uma experiência do tempo como atmosfera. Shara deixa se envolver pela superfície da imagem, o gasoso da imagem, que se percebe através da materialidade de uma fala, de um olhar, de um gesto. Aquilo que é invisível da imagem a atravessa como uma disposição sensorial. Desde o primeiro plano sequência descrito acima, o filme começa com aquilo que vai propor em todo seu percurso: entregar-se a um arejamento de planos, que não petrifica algo que está suspenso.
5
Cf. ESPINOSA. Ética, parte IV, proposição XXXVII, escólio II.
6
Podemos atribuir este crédito também à direção de fotografia de Yukata Yamasaki, que colaborou em vários
filmes do cineasta japonês Hirokazu Kore-eda. 7
Cf. BOUQUET, Stéphane. “Plan contre flux”. In: Cahiers du Cinéma, n. 566, março de 2002. Paris: 2002,
pp.46-47.
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Compondo uma topografia coreográfica e gestual, a câmera passeia pelos espaços, escorre horizontalmente em panorâmicas, recua e avança com seus travellings. São movimentos de exploração dos corpos e dos espaços, evidenciados principalmente nas sequências em que os personagens se deslocam – como é o caso dos passeios de bicicleta de Shun e Yu ao voltarem da escola; a corrida dos dois, pouco antes do parto de Reiko; a dança de Yu no Festival de Basara, uma festa local organizada pela comunidade. São cenas em que a câmera acompanha os corpos em movimento, mantendo uma distância mais ou menos inalterada em relação a eles, mas que também decide, às vezes, afastar-se por alguns instantes para mover-se ao redor, examinando os espaços8. A maneira como a câmera filma os corpos em suas relações com o mundo possibilita pensar um tipo de cinema que compreende seus personagens não pelo que eles são – não existe, em Shara, uma intenção definida de construção psicológica dos personagens –, mas pela forma como eles atuam em determinado espaço e estabelecem encontros com outros corpos, a partir de uma construção dramatúrgica física carregada de sensorialidade. “O corpo como começo e fim expressivo, não como meio da ação ou sinal de algo além dele ou sob”9. Mais do que proporcionar julgamentos, as ações dos personagens desencadeiam afetos. Novamente a teoria dos afetos de Espinosa deve ser levada em consideração. Para que possamos compreender melhor esta relação, é preciso esclarecer a diferença que o filósofo estabelece entre afecções e afetos. Para Espinosa, as afecções são paixões e ações determinadas, que proporcionam transformações ou marcas corporais. Os afetos são as variações, as passagens ou transições de um estado do corpo afetado a uma potência de agir maior ou menor do que aquele em que se encontrava.
8
Cf. LÓPEZ, Jose Manuel. Shara y lo in/visible. Revista Tren de Sombras. N. 3. Abril de 2005.
http://www.trendesombras.com/num3/critica_shara.asp. Acessado em 08/03/2009. 9
Cf. BRAGANÇA, Felipe. Filmar, hoje, um corpo (em alguns atos). Junho de 2007. Revista Cinética.
http://www.revistacinetica.com.br/filmarumcorpo.htm. Acessado em 08/03/2009.
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Há tantas espécies de alegria, de tristeza e de desejo e, consequentemente, de todos os afetos que desta são compostas, como a flutuação da alma, ou que dela derivam, como o amor, o ódio, a esperança, o medo, etc., quantas as espécies de objetos pelos quais somos afetados (idem, p. 210)10.
Dentro de seus limites, o homem deve esforçar-se por provocar bons encontros que aumentem ao máximo sua potência de agir. Se os afetos tristes nos conduzem ao grau mais baixo de nossa potência – em que estamos alienados da nossa potência de agir e entregues aos fantasmas da superstição, do rancor, do ressentimento e às mistificações dos tiranos –, cabe a nós experimentar afetos alegres por meio de bons encontros. Trata-se de um problema ético, na medida em que nossa potência de agir se fortalece a partir da capacidade que acionamos para produzir encontros alegres11. Após o prólogo que apresenta o desaparecimento de Kei, o filme dá um salto temporal de cinco anos. A família Aso parece manter normalmente sua rotina de vida, na antiga cidade de Nara. Shun tem agora 17 anos, estuda e gosta de pintar quadros. O pai Taku mantém o tradicional ofício de confeccionar tintas artesanais e coordenar o Festival de Basara, cujos preparativos começam a ser pensados. A mãe Reiko está grávida e cuida das tarefas domésticas. No entanto, aos poucos, percebe-se que, em pequenos acontecimentos do cotidiano, a ausência de Kei ainda é sentida por toda a família. A partir daí, o filme passa a ser a expressão intensa dos esforços de cada personagem em organizar, cada um a seu modo, encontros alegres, apesar de uma fatalidade ter marcado suas vidas. Não se trata da conservação de um afeto triste, mas de uma aprendizagem que
10
Cf. ESPINOSA. Ética, parte III, proposição LVI. Em transcrição de um curso sobre Espinosa em
Vincennes, aula de 24 de janeiro de 1978, Deleuze esclarece que “o afeto não se reduz a uma comparação intelectual das idéias, o afeto é constituído pela transição vivida ou pela passagem vivida de um grau de perfeição a outro, na medida em que essa passagem é determinada pelas idéias; porém em si mesmo ele não consiste em uma idéia, ele constitui o afeto” (Tradução de Francisco Traverso Fuchs, obtido no site Deleuze web,
http://www.webdeleuze.com/php/texte.php?cle=194&groupe=Spinoza&langue=5,
08/03/2009). 11
Cf. ESPINOSA. Ética, parte III, proposição XI.
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envolve o confronto com a dor inevitável de um acontecimento passado, sem sucumbir ao ressentimento ou à culpa. Como argumenta Deleuze, em seu curso sobre Espinosa: Sem dúvida este esforço tem limites: seremos sempre determinados a destruir certos corpos, nem que seja para subsistir; não evitaremos todo mau encontro; não evitaremos a morte. Mas nós nos esforçamos de nos unir ao que convém com a nossa natureza, de compor nossa relação com relações que se combinam com a nossa, de reunir nossos gestos e pensamentos à imagem de coisas que concordam conosco. De um tal esforço nós estamos no direito de esperar, por definição, um máximo de paixões alegres. Nosso poder de ser afetado será preenchido em tais condições que nossa potência de agir aumentará. E se perguntarem em que consiste o que nos é mais útil, vemos bem que é o próprio homem. Pois o homem, em princípio, convém em natureza com o homem.[...] Assim, o esforço de organizar os encontros é de início o esforço de formar a associação dos homens sob relações que se compõem (DELEUZE, 1968, p.3).
Pode-se compreender que Shara coloca em evidência as capacidades dos corpos em aumentar suas potências de agir. Na cena em que alguém – talvez um policial – comunica a Taku que possivelmente foram encontrados os restos mortais de seu filho, o diálogo acontece fora-de-campo, enquanto a câmera centra-se em Shun, que escuta a conversa no piso superior da casa. Até o desfecho, o filme mantém esse sentido ético de preservação do corpo e da história de Kei: seus restos mortais e seu possível enterro são deixados de fora da diegese do filme. Ao ouvir a conversa, Shun tenta sair de casa, mas Taku o impede, como se obrigasse o filho a enfrentar a dolorosa perda do irmão. Há toda uma orientação budista implícita nesta sequência. No budismo, o corpo é o lugar da dor, do sofrimento, pois está sempre envolvido na ação do tempo. Enquanto matéria, o corpo é efêmero, sujeito ao desgaste, tão impermanente quanto tudo aquilo que o cerca. O sofrimento surge dessa limitação. Diferente do cristianismo que busca uma justificação do sofrimento por meio do pecado e da culpa, o budismo apenas afirma que o corpo é capaz de sofrer e que é preciso enfrentar o sofrimento. Nietzsche chegou a reconhecer no budismo a superioridade em relação ao cristianismo.
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O budismo é cem vezes mais realista que o cristianismo. (...) O budismo é a única religião autenticamente positiva que a história nos mostra, (...) ela não diz ‘luta contra o pecado’, senão, dando total razão à realidade, diz ‘luta contra o sofrimento’. Deixa atrás de si – e isso distingue-o profundamente do cristianismo – esse logro de si próprio, que são as concepções morais; coloca-se, para falar a minha linguagem, para além do bem e do mal (NIETZSCHE, 2001, p. 53).
Aqui o sofrimento não depõe contra a vida. Pelo contrário, faz parte dela. Se os budistas lidam com “uma excessiva sensibilidade que se exprime por uma requintada capacidade de sofrer” (idem, ibidem), Nietzsche leva até as últimas consequências suas considerações sobre o sofrimento. Ao compreender o corpo como pluralidade unânime e a hipótese da alma como estrutura social dos instintos e afetos12, Nietzsche dissolve a pretensa distinção alma/corpo, pois a alma seria parte do próprio corpo. Cabe considerar alma e corpo a partir do que sofrem, ficando expostos e marcados pela contingência, pela diversidade de regularidades e acasos, de acertos, descobertas, vicissitudes e fracassos. Resumidamente, por meio de todo e de cada querer opera uma pluralidade de forças, de sentimentos, referentes tanto aos estados e coisas com as quais elas se relacionam a partir do seu encontro, habitando o corpo e em meio a situações nas quais ele se insere, como às sensações fisiológicas que se experimentam de diferentes modos através dos movimentos corporais exigidos pela ação do querer (JARA, 2003, p. 82).
Não é à toa que Taku abraça seu filho com uma força dura e violenta, gesto que, aos poucos, acalma Shun. É preciso eleger e levar a cabo uma escolha forte, que, no caso da família Aso, se efetiva na passagem da “obscuridade” para a “luz” – em uma das cenas mais belas de Shara, Taku escreve estes dois kanji (ideogramas) em uma lona, na presença de Shun e Reiko. Se a vida é uma pluralidade de forças, o homem forte, abundante de forças, é aquele que cria, que dá valor e tem o poder de agir. Age e valora a partir de si. 12
Cf. aforismo 12 de NIETZSCHE. Para Além do Bem e do Mal: Prelúdio de uma Filosofia do Futuro, São
Paulo: Companhia das Letras, 1992.
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Através da criação de uma pintura – motivo de aproximação entre pai e filho –, Shun procura distanciar-se da lembrança de seu irmão, ao criar-lhe um rosto por meio de um retrato pintado. É uma memória ativa, que funciona pela vontade e pela faculdade ativa do esquecimento, e não uma memória doente, que não consegue se livrar de uma lembrança. Trata-se também de um processo de autoafirmação: o rosto imaginado de Kei por Shun também acaba sendo seu próprio rosto. Esta relação implica a atenção dada pelo filme à questão do duplo. O título original Sharasojyu remete ao nome de uma árvore simbólica para o budismo. Quando Buda alcançou o nirvana, ele descansava entre duas árvores sharasojyu. Segundo Naomi Kawase, em entrevista concedida a Cahiers du Cinéma, este elemento exerce fundamental importância no filme. No budismo, Sharasojyu é também o símbolo do par, do duplo. É por isso que recorri a este símbolo para narrar a vida dos dois irmãos, Shun e Kei, que eram como dois espelhos que se refletiam um ao outro no início e também para sugerir todos os grandes dualismos que ordenam o mundo (a vida e a morte, a obscuridade e a luz, o passado e o futuro, etc.) e sobre os quais o filme é construído (KAWASE, 2004, p. 23)13.
Por meio da jovem e doce Yu, vizinha e amiga de infância, Shun encontra um corpo para preencher o vazio deixado pelo desaparecimento do irmão. Ela também enfrenta a melancolia de um passado obscuro. Em outra cena filmada por um travelling pelas estreitas ruas de Nara ao entardecer, a mãe de Yu, Shouko, revela-lhe não ser sua mãe biológica, resguardando as palavras como se fosse uma narrativa de conto de fadas que começa com “era uma vez...”. Um passado distante que necessita ser esquecido para a afirmação da vida.
13
Tradução minha do seguinte texto: “Dans le bouddhisme, Sharasojyu est aussi le symbole de la paire, du
couple. C’est pourquoi j’ai eu recours à ce symbole pour raconter la vie dês deux frères, Kei et Shun, qui étaient comme deux miroirs se reflétant l’un l’autre au début, et aussi pour suggérer tous les grands dualisme qui ordonnent lê monde (la vie et la mort, l’ombre et la lumière, le passe et l’avenir, etc.) et sur lesquels le film est construit”.
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É, na sequência do Festival de Basara, que Yu exterioriza toda sua potência de vida. Ela dança e comanda o desfile de sua companhia de bailarinos, com seu corpo de movimentos enérgicos e olhar desafiante, em uma dança de pura celebração e êxtase dionisíaco, de uma fisicalidade úmida – a ponto de provocar uma chuva torrencial –, assemelhando-se ao final de Zatoichi (2003), longa-metragem do também japonês Takeshi Kitano. Na sequência final, o parto de Reiko também configura um momento de êxtase, de celebração da vida, em que todos os personagens participam: Taku, Shun, Yu e Shouko colaboram para que a mãe Reiko dê a luz a um novo corpo. Acompanhando a respiração e o suor dos corpos envolvidos, a câmera afasta-se aos poucos logo após o nascimento do bebê, até sair pelos corredores da casa e, em seguida, sobrevoar a cidade de Nara em um envolvente plano panorâmico. Uma experiência aventurosa de fidelidade à terra, ao mundano, em que a vida é vontade, querer ultrapassar, querer ir além.
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Fábio.
Outros
corpos.
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CONSIDERAÇÕES SOBRE AUTORIA E CRIAÇÃO NO CINEMA Laécio Ricardo de Aquino Rodrigues Doutorando em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas e professor do Bacharelado em Cinema da UFPE
1. Introdução1 Parece contraditório insistir na ideia de autoria numa modalidade artística como o cinema, que pulveriza a atividade criadora em diversos setores, delegando-a a múltiplos indivíduos que, embora mantenham entre si um diálogo contínuo, possuem relativa autonomia em suas respectivas áreas2. No entanto, apesar do entrave levantado pela diluição do processo criativo, o debate se mantém fértil nesta arte, inspirando entusiastas e críticos. Este ensaio recapitula o tema com o objetivo de instigar novas reflexões. O trajeto tem início com uma revisão da “política dos autores”, defendida nos anos de 1950 pelos jovens críticos da revista francesa Cahiers du Cinéma (críticos que se converteriam nos expoentes da Nouvelle Vague3). Em seguida, mapeio algumas objeções a tal posicionamento, bem como o que dele reside de fértil, para propor reconsiderações inspirado no sociólogo Norbert Elias. 2. A Política dos Autores: o papel dos “Jovens Turcos” Embora tenha defendido sistematicamente a condição de autor para alguns cineastas, a geração de críticos do Cahiers liderada por Truffaut e Godard nunca formalizou suas reflexões em obra teórica de fôlego. O que se pode apreender de suas propostas são as considerações que acompanham seus textos publicados na famosa revista fundada por 1
Uma versão mais concisa deste trabalho foi publicada nos anais do “1º Congreso da Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual” (Asaeca), realizado na cidade de Tandil, em 2009. Embora mais robusto, é preciso ressaltar que o presente artigo ainda não se encontra finalizado. RODRIGUES, Laécio Ricardo de Aquino. Como Pensar a Autoria na Criação Cinematográfico? In: MOGUILLANSKY, Marina, MOLFETTA, Andrea, e SANTAGADA, Miguel. (org.). Teorías Y Práticas Audiovisuales. Buenos Aires: Editorial Teseo, 2010, p. 567-579. 2 Basta pensarmos nos múltiplos cargos de direção comuns à atividade cinematográfica, cada um com forte poder de decisão em suas áreas: cineasta, diretor de arte, de fotografia, de elenco, produtor executivo... 3 François Truffaut, Jean-Luc Godard, Eric Rohmer, Claude Chabrol e Jacques Rivette, por exemplo. 1 | Fev 2013 | vol 2 |
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André Bazin. Devido à inexistência de formulação abrangente, as ideias do grupo foram agrupadas na expressão “política dos autores” ou politique des auteurs (Buscombe, 2005), termo que se consagrou nas décadas seguintes4. No Brasil, estudo pioneiro sobre a influência dos redatores do Cahiers (geração que ficou conhecida pelo ambíguo epíteto de jovens turcos) e a repercussão local de suas ideias, foi publicado por Jean-Claude Bernardet, em 1994. Embora peque pela ausência de referências precisas, seu livro será peça importante nesta revisão inicial. Lembra-nos ele que, na tradição francesa que antecede à “política”, a ideia de autoria no cinema era debitária das reflexões sobre autoria na literatura – respeitado o paralelo, muitas vezes era o roteirista o profissional incensado como criador. Na revisão proposta pelos jovens turcos, a experiência cultural que modelará o conceito de autor cinematográfico ainda será a literária; porém, é o cineasta que emergirá como o “criadorescritor” e o filme, seu provável romance. No entanto, não deve o cinema se transmutar em literatura: a nova geração dos Cahiers defende uma arte mais livre da trama, do enredo e da narrativa; vinculada, portanto, às especificidades cinematográficas (os elementos plásticos, a encenação, a composição dos planos). Para eles, os valores literários dignos de serem incorporados pelo cinema são os valores morais (Bernardet, 1994, p. 9 a 18), precisamente o controle criativo que se atribui ao escritor e o prestígio deste artista numa cultura de forte tradição literária como a francesa – lembremos que os jovens críticos, e futuros cineastas, estão às voltas com a tarefa de conferir legitimidade ao cinema5 (Buscombe, 2005, p. 281 e 282). Inerente a este aspecto da definição está o preceito romântico do autor como aquele que infunde seu sangue à obra e que vivencia a experiência do ato criador solitário e, não raro, doloroso (típico da literatura oitocentista)6. A política dos autores rememora 4
A imprecisa designação “Teoria do Autor” é um equívoco do americano Andrew Sarris traduzido no artigo “Notes on the Auter Theory in 1962”, publicado em Film Culture, em edição do inverno de 1962-1963 (Buscombe, 2005, p. 281). 5 Contudo, mesmo defendendo uma dissociação dos elementos da prática literária, os jovens turcos, seja como críticos ou realizadores, não conseguiram se restringir às especificidades fílmicas. Seus textos se amparavam em parâmetros literários (enredo, personagens e conflitos) e seus filmes, não raro, preservavam a diegese (1994). 6 Para Buscombe, os textos dos Cahiers traziam implícita a noção de “centelha divina”, “que separa o artista dos mortais comuns, que distingue o gênio do “artesão” (2005, p. 284). 2 | Fev 2013 | vol 2 |
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Bernardet, ecoando ensaio de Truffaut publicado em 1957, é a apologia do sujeito que se expressa, uma concepção que nega o cinema enquanto arte coletiva – no tumulto do estúdio, é possível o isolamento criativo. Para tanto, os jovens turcos defendem uma centralização da atividade cinematográfica: para impor seu ímpeto artístico, o diretor deve conciliar as funções de roteirista e produtor; preceito que, embora ingênuo, foi incensado pela Nouvelle Vague e alguns dos Novos Cinemas. (1994, p. 22 a 26). Segundo a “política”, o verdadeiro autor seria aquele que faz reverberar sua matriz ou metáfora obcecante ao longo de sua obra. Esta mesma interioridade, em outros textos, é denominada de temática plena ou metafísica, termos que não contribuem para lhe conferir precisão. A matriz dificilmente se vislumbra no primeiro filme, embora este já contenha seu germe; a tarefa do cineasta-autor, então, é decantá-la ao longo de sua trajetória (Bernardet, 1994, p. 28 a 35). Buscombe confirma que “a noção de unidade produzida pela personalidade do autor é central na posição do Cahiers; mas é tornada mais explícita por seu apologista americano, Andrew Sarris” (2005, p. 284). Tal apologia impõe questões que não encontram respostas fáceis na politique: a matriz faz da obra um sistema fechado e coeso? Tudo está contido no primeiro filme, mas em potência? A obra, portanto, tem por função concretizar a promessa esboçada na estreia? Os filmes precedentes profetizam os posteriores e estes aprimoram os anteriores? Por conseguinte, “escreve-se” sempre o mesmo filme? Na “política”, papel crucial é conferido à crítica cinematográfica. Uma vez que o artista nem sempre consegue verbalizar a inspiração que norteia sua arte, caberia a crítica analisar sua obra e verificar as similitudes que ratificarão a força criativa de seus filmes, indicando suas metáforas obcecantes. Abro um parêntese para compartilhar o que me parece uma dupla suspeita: ao mesmo tempo em que a redação do Cahiers tenta legitimar a arte cinematográfica e a autoria, verifica-se igualmente um esforço de valorização da crítica. Ora, à época, os jovens turcos ocupavam precisamente o cargo de críticos (seus textos, portanto, são uma defesa do posto que exerciam nesta cadeia e das ideias alavancadas por eles sob tal condição); um decênio depois, o mesmo grupo se consagraria como cineastas, adotando tais preceitos. Haveria aqui a escavação de um duplo terreno?
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Um aspecto surpreendente na “política” é o fato dos jovens turcos terem articulado suas ideias não somente a partir do legado dos grandes realizadores europeus (Rossellini, Renoir, Bresson, Bergman), mas, sobretudo, por meio da análise da obra de cineastas de Hollywood. Não apenas Welles e Fritz Lang, incensados no Velho Mundo, mas também Howard Hawks, Nicholas Ray e Alfred Hitchcock, nomes que dividem opiniões. Para Bernardet, esta singularidade possui claras motivações: ao mapear o “ego” e a autoria num ambiente que tradicionalmente os rechaçava, e em produções comerciais, tratavam os jovens turcos de conferir legitimidade às suas ideias; ou seja, a vitória da criação em “território inimigo” atestaria suas convicções (1994, p. 36 a 45). Porém, tal entusiasmo perde força quando avaliamos o método empregado nas análises. Para identificar a matriz dos cineastas hollywoodianos e fundamentar suas hipóteses, Truffaut e os demais restringiam seu diagnóstico a um grupo específico de filmes – quando alguma produção não expressava a suposta matriz, era descartada. O gesto seletivo (aproveitar o que é pertinente e desprezar as exceções) nega um modelo que define a obra como decantação da matriz e o criador como aquele que sempre reverbera suas metáforas. Por outro lado, tal gesto também rasura a legitimidade do crítico: como considerar válido um trabalho analítico que se pretende de conjunto, mas que se revela excludente? Para Buscombe, a proposta dos jovens redatores do Cahiers estimulara um apartheid no campo cinematográfico: de um lados teríamos os criadores autênticos, do outro, meros artesãos ou realizadores. Para além das rivalidades expressa por tal dicotomia, o predomínio da visão romântica que incensa os “cineastas verdadeiros” também enfrenta resistências pelos seguintes motivos: elege a personalidade como critério de valor e de classificação de uma obra; pressupõe que o gênio independe do tempo, do espaço e do contexto histórico; despreza as influências do tecido social e dos fatores econômicos no ato criador e na dinâmica cultural (2005, p. 286 a 290). Considero ingênua esta visão do artista como oposto à sociedade e o único responsável pelos sentidos da obra – espécie de sujeito pleno que realiza sua expressão autoral mesmo em ambiente hostil e que, exatamente por isso, é valorizado. Contra esta posição, mas também não favorável à visão que decreta o triunfo das estruturas sobre o indivíduo, dirijo minhas colocações no próximo bloco. 4 | Fev 2013 | vol 2 |
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3. Por uma reclassificação do autor e do sujeito Gostaria de apresentar a primeira crítica que o conceito de autoria defendido pelos jovens turcos enfrentou a partir dos anos de 1960, período de grande politização no campo da produção cultural. Num quadro internacional de expansão dos regimes ditatoriais na América do Sul, de descolonização africana e de fortalecimento das esquerdas no Velho Mundo, a prática de um cinema autoral – desconectado da urgência da luta de classes e preso às interioridades de seus criadores – é vista como alienação e excentricidade (Bernardet, 1994, p. 155 a 162). No lugar da militância e do debate político, sobressair-seia em tais obras a individualidade e o gênio do cineasta-autor encastelado. Esta produção fechada sobre si, hermética, se distanciava da necessidade de um “cinema de intervenção”, que somente seria alavancado com a defesa de uma arte voltada aos interesses coletivos. Emblemático desta crítica é o texto de Solanas e Getino, intitulado “Hacia um Tercer Cine” (1973), que defende a transição para um novo cinema, expressão das transformações históricas em vigor, em oposição à produção hollywoodiana (estéril, capitalista e voltada ao espetáculo) e à politique (de mentalidade burguesa, niilista, mistificadora). No entanto, o manifesto da dupla não atinge o cinema de autor em seu preceito nuclear (a visão do artista romântico, decalque do sujeito moderno); sua crítica consiste numa recusa do intelectualismo e das aspirações pequeno-burguesas presentes na obra dos autores. Com cores mais sofisticadas, oposição semelhante é manifestada por Pasolini (1981) ao analisar a ascensão do “cinema de poesia” na obra de diretores influenciados pela politique des auteurs. De início, pois, o italiano elogia o vigor estético do chamado cinema de autor. Todavia, ante sua institucionalização e posterior esvaziamento crítico, termina por censurá-lo; além de debochar do esteticismo demasiado e febril de alguns filmes, Pasolini identifica na estrutura diegética destas produções a inclusão de personagens-pretextos, tipos neuróticos ou desviantes, que serviriam para externalizar as angústias individuais dos diretores e ratificar suas visões de mundo burguesas. Assim, longe de promover qualquer revolução social, tal arte, aos olhos do italiano, teria o estatuto de um cinema da reprodução.
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Outra crítica aos jovens turcos pode ser vislumbrada no ensaio de Teixeira sobre o processo criativo de Júlio Bressane. Se os redatores do Cahiers defendem que cada filme de autor é expressão das marcas pessoais e intransferíveis da criação que consubstanciam um estilo a ser sempre maturado (ênfase na continuidade, unidade e fidelidade a si), Teixeira argumenta, amparado na cinematografia de Bressane, que a verdadeira criação pressupõe reinvenção e ousadia e, não, estagnação ou lealdade a um estilo e matriz temática (1999). De sua análise, despontam duas observações: vida e obra devem ser dissociadas (a criação artística não se confunde com a biografia – ela é transmutação e não reprodução da emoção vivida); o estilo é devir criador (qualquer cristalização implica em necrose do autor). Um questionamento mais rigoroso do autor, todavia, resultou da ascensão do antihumanismo francês da vertente estruturalista (Lévi-Strauss, Barthes, Lacan e outros), que negava a primazia do sujeito moderno consagrada pelo Iluminismo e sua celebração da razão triunfante. No lugar do sujeito pleno e dotado de autonomia, fonte de suas representações e de seus atos, teríamos um sujeito conformado na multidão, determinado por estruturas que lhe antecedem e que se impõem a ele (a língua, a religião e o inconsciente, por exemplo), disciplinado por poderes que lhe escapam e saberes que legitimam tais práticas de dominação. Por esta visão, o homem contemporâneo despontaria como uma instância de reprodução de discursos que preexistem a ele – ele não é um fomentador destes discursos e saberes, mas uma caixa de ressonância a ecoá-los voluntariamente ou não. A ascensão da posição estruturalista, metaforizada na provocativa declaração da “morte do homem”7, representou um severo golpe no conceito de autor esboçado pelo Cahiers. Questionado o sujeito moderno, fragilizava-se sua personificação no campo das artes – o autor. Se, pelo homem, transitam discursos que lhes são externos e estruturas que norteiam sua subjetividade, perde força o conceito de “gênio romântico” e sua condição de criador iluminado, sem conexão com o tecido histórico – que acredita ser livre das interdições sociais. Recusa-se a versão da inspiração como ato isolado, denuncia-se o culto do autor moderno como mistificação (alguém cuja assinatura se converte em grife para orientar leituras, lotar cinemas e organizar prateleiras) e decreta-se sua “morte”. 7
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 6 | Fev 2013 | vol 2 |
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Esta última e ousada sugestão desponta em ensaio demolidor de Roland Barthes (1988), no qual o francês destaca a escrita como a destruição de toda e qualquer voz individualizada enquanto mescla heterogênea – um texto não é feito de uma linha de palavras, que libertam um sentido único e teológico, mas um espaço de dimensões múltiplas, um tecido de citações proveniente de diversas culturas, e que entram umas com as outras em diálogo, paródia ou contestação. Um campo aonde vem se perder toda e qualquer identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve. O único poder do escritor, assevera Barthes, é o de misturar as escritas, de contrariá-las umas às outras, de modo a nunca se apoiar numa delas. Tradicionalmente, a explicação da obra é sempre procurada do lado de quem a produziu, como se a obra fosse a confidência única do autor. Mas, sugere Barthes, a linguagem que ali fala não é personificação do autor e não é este quem controla os sentidos do texto; tal multiplicidade apenas se reúne no leitor. A unidade de um texto, dessa forma, não estaria na sua origem, mas no seu destinatário impessoal. Foucault, cujo vínculo à corrente estruturalista é ambíguo8, nos convida a perscrutar o conceito de autor (na realidade ele usa o epíteto função) e suas conexões históricas, em texto inspirado em seu procedimento genealógico. Para ele, a ascensão desta função, como hoje a conhecemos, está vinculada a um contexto jurídico e institucional específico. Ela não se exerce de modo uniforme em todas as épocas e civilizações, despontando num contexto de forte individualização na história das ideias e saberes, período em que se configuram os direitos autorais e o mercado de circulação da produção cultural (1992, p. 33). Mas, se o autor é uma construção histórica, impreciso é o conceito de obra. Uma obra é o que escreveu o autor? Será que tudo o que ele disse ou deixou atrás de si faz parte de sua obra? (Foucault, 1992, p. 37 e 38). Trata-se de um problema teórico e técnico: “Como definir uma obra entre os milhões de vestígios deixados por alguém?” (p. 38). E quando um texto não possui autoria reconhecida pode ser considerado uma obra? O questionamento ironiza o esforço da crítica, que não tolera o anonimato, a ausência de datas ou das
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Traços estruturalistas são evidentes nos textos inicias de Foucault. Contudo, sua obra pós-1975 revela novos pontos de inflexão. Sua vinculação ao estruturalismo é recorrente, mas também é fácil encontrar interlocutores que a questionem; o próprio Foucault recusou enfaticamente tal enquadramento. 7 | Fev 2013 | vol 2 |
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circunstâncias que levaram à produção do texto9. Para Foucault, assim como para Barthes, a identificação de um autor responde ao esforço da crítica em impor um “fechamento” para o texto, em “congelar” seus sentidos. Por isso, Barthes dirá que o reino do autor é também o reino do crítico (1988). Afinal, um trabalho assinado não se confunde com um texto anônimo – sua recepção exige outro estatuto e sua circulação, outro trajeto. Influente no contexto do pós-Guerra, a abordagem estruturalista também sofreu revezes a partir dos anos de 1970. Seu anticientificismo e sua rejeição à noção existencialista de uma liberdade humana plena, pautada na defesa de que a conduta individual é orientada por estruturas, constituíam para muitos uma abordagem conservadora, negativista e determinista, que afastava dos homens a possibilidade de assumir as rédeas históricas. Uma síntese desta crítica encontra-se numa afirmação de Lucien Goldmann em debate com Foucault, após a conferência deste último sobre o autor: “as estruturas não descem à rua”; isto é, “nunca são as estruturas que fazem a história, mas os homens, ainda que a ação destes tenha sempre um caráter estruturado e significativo” (Foucault, 1992, p. 80). Para Stephen Heath, um esforço de recuperação do conceito de autor deve pressupor um deslocamento desta problemática para a teoria do sujeito. E, no caso do cinema, qualquer proposição precisa levar em conta as múltiplas especificidades da produção fílmica (2005, p. 298). Esforcemo-nos por reformular o lugar do sujeito. Goldmann concorda com Foucault que o indivíduo não é o autor último de um texto (1992). Ou seja, ele admite que a criação tem uma dimensão social; mas se nega a condenar o sujeito moderno, propondo sua substituição por um sujeito trans-individual – que concilia em si as dimensões social e individual, que se constitui nas suas interações sociais e na sua experiência singular. Uma posição semelhante pode ser vislumbrada no estudo de Norbert Elias sobre Mozart, cujo subtítulo é inspirador para o tema deste ensaio – “sociologia de um gênio” (1995) –, bem como em seu livro “A Sociedade dos Indivíduos” (2001). Comecemos pelo último volume. Nesta obra, Elias argumenta que a polarização indivíduo e sociedade, 9
As observações de Foucault se dirigem principalmente aos campos literário e científico. Isto não nos impede de expandirmos suas colocações para outros setores criativos, a exemplo do cinema. 8 | Fev 2013 | vol 2 |
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cristalizada em muitas teorias, é falsa. Para o autor, a necessidade de realização das inclinações pessoais não se opõe às obrigações que devemos cumprir enquanto integrantes da vida social. Segundo Elias, os indivíduos estão ligados entre si por um fenômeno de dependência recíproca, dispondo de uma margem até onde podem agir livremente de forma a não comprometer o equilíbrio do quadro social em que se encontram inseridos (2001). Elias reconhece que as redes de interdependência atravessam a existência individual (é na vida social que se forma a individualização, que os sujeitos se diferenciam). Tal processo, contudo, não é tão determinista. Para ele, a imagem da sociedade é reticular: nossas vidas se entrecruzam num quadro de influências recíprocas e as ideias que manifestamos resultam das múltiplas interações de que participamos (2001). Sua sociologia, portanto, recusa as interpretações que privilegiam o excesso de subjetividade na conduta individual, mas também não ratifica as abordagens deterministas (estruturalismo, por exemplo). Exemplar desta relação é seu estudo sobre Mozart (1995), que tenta esclarecer o fracasso profissional do músico, apesar do seu inquestionável talento. No livro, acompanhamos o duelo entre uma subjetividade artística em luta para aflorar versus a repressão social de seu tempo – Mozart teria sido um visionário numa sociedade que ainda não concebia a ideia de artista autônomo, que cria conforme suas aspirações. Sua índole se opunha ao habitus10 da aristocracia e às regras da corte, que exigiam dos compositores total subordinação – uma estrutura que sufocava a “genialidade”. Embora tenha sido educado na tradição da corte, Mozart sempre nutriu ressentimento pelos ritos da aristocracia. Tinha convicção de sua superioridade musical e não aceitava limitações. Lutou para ser um artista autônomo numa época que não comportava independências – era um gênio numa sociedade que desconhecia este conceito romântico e não permitia singularidades (1995). Ao mesmo tempo, desejava ter seu talento reconhecido pela corte – exatamente o tipo de sentimento que caracteriza um outsider (ser dependente do reconhecimento do grupo que o oprime).
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Para o conceito de habitus, sugiro a leitura dos seguintes livros: ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001; ELIAS, Norbert. Os Alemães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. 9 | Fev 2013 | vol 2 |
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Mozart tentou driblar a hierarquia aristocrática num momento em que tal manobra não era admitida – apesar do heroísmo, sua margem de ação foi restrita. Para Elias, Mozart se arriscou em demasia. O passo ousado e individual o conduziu à maturidade artística, mas sinalizou sua tragédia social. O reconhecimento definitivo despontaria na posteridade, quando o habitus burguês se torna hegemônico, redefinindo a relação do artista com o público. Considero a leitura de Elias rica para repensarmos as noções de sujeito e de autor, livre de maniqueísmos. Para o sociólogo alemão, o homem não é absolutamente autônomo nem socialmente determinado em suas decisões – as escolhas dos indivíduos comportam margens de autonomia. A criação musical, se nos detivermos no exemplo de Mozart, é modulada por ações individuais e determinismos. Também o conceito de gênio é revisado por Elias, não se restringindo à figura do indivíduo dotado de grande sensibilidade ou talento nato; o gênio é aquele que encontrou estímulos e condições de aprimorar seu talento, alguém cujo processo de maturação não escapa aos laços de reciprocidade social11. Creio que esta revisão do conceito de gênio redimensiona a ideia do autor e da criação, sem recair na falácia romântica ou na anulação estruturalista. Pelo menos em sua dimensão subjetiva, o problema que o “gênio romântico” suscita não é o seu direito instituído à propriedade privada das ideias12, mas sua suposta condição de criador iluminado, sem conexão com o tecido histórico. Individual ou em parceria, a criação possui forte dimensão coletiva – imersos na vida social, os autores são influenciados por milhares de ideias e imagens que se encontram em trânsito. A criação resulta de um diálogo entre sua sensibilidade estética e esta pluralidade de informações dispersas e dissonantes. Talvez pudéssemos estabelecer a analogia de um autor-parabólica, que capta esta infinidade de sinais e, através de sua experiência singular, ressignifica tudo na forma de arte, estabelecendo uma síntese criativa. Teria ele direito de assinar uma obra que possui dimensões sociais? Minha posição tende a ser afirmativa. É fato que a criação tem componentes sociais, mas a apreensão destas tensões passa pela sensibilidade singular de um ou mais indivíduos, que funcionam 11
Os livros de Elias revelam um chão histórico de fôlego e surpreendente erudição. Todavia, apesar da análise de sociabilidades que nos são aparentemente distantes, seus livros travam um diálogo com o presente, possibilitando um entendimento da vida social contemporânea. 12 Não é pretensão deste ensaio mergulhar no debate sobre direitos autorais ou propriedade intelectual. 10 | Fev 2013 | vol 2 |
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como síntese do processo. Tal tarefa, convenhamos, não é pouca coisa. Poder-se-ia argumentar que também a sensibilidade estética do autor possui matriz social – em sua formação, ele trava um diálogo com uma longa tradição, com a qual precisa se familiarizar para questioná-la ou aprimorá-la. Mas é preciso levar em conta que tamanha herança é igualmente ressignificada e contaminada pela experiência particular deste indivíduo – experiência esta que difere completamente das trajetórias (também singulares!) dos cânones que lhe inspiraram. Poderíamos pensar o mesmo para o empreendimento científico: um pesquisador sempre parte de uma bagagem e referencial herdado de sua tradição acadêmica (um componente social forte), mas é legítimo reconhecer seu esforço individual em levar à frente a tocha do conhecimento, propondo novos eixos de investigação. Para o artista, vale igualmente o reconhecimento por insistir em não recuar frente à aventura da criação. Equivocada, creio, é a ideia romântica de autor cristalizada pelo senso comum, não o reconhecimento da autoria na criação (de que existe empreendimento individual na arte). Sobre o processo criativo, cabe também desmistificar um mito perpetuado pela crítica, que insiste em procurar unidades e em estabelecer comparações na obra de um autor. A unidade não é preceito para a criação, que comporta perfeitamente fases, rupturas e contradições. Como argumentou Teixeira (1999), criar é ousar e se reinventar, recusando estagnações. A coerência pode existir, mas ela não é categoria fundamental da criação – cada obra existe em si e não necessariamente em relação umas com as outras. Mas, ao insistir no reconhecimento da autoria no processo criativo (ao valorizar o empreendimento individual na atividade artística), não desejo ratificar a visão consagrada do autor como “senhor da obra”. Sem aderir ao radicalismo de Barthes (1988), reconheço o leitor igualmente como autor – sua fruição é que legitima a criação, lhe confere sentidos, a ressignifica (a recepção não pode ser controlada por “aquele que assina” o trabalho). No entanto, creio que esta assinatura pode acionar modos de recepção no espectador – seria, por exemplo, indexador de formas de apreensão ou indicador de leituras. Lembremos que, para o público, o autor não é um anônimo, mas uma autoridade legitimada pela crítica, concordemos ou não. No caso da produção cinematográfica, poderíamos estabelecer um paralelo, reconhecendo a “assinatura” do cineasta como índice de referencialidade para o espectador, sugerindo modos de recepção de sua obra (e não de controle!). 11 | Fev 2013 | vol 2 |
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Neste segmento, me inspirei em Elias para propor uma revalorização do sujeito/autor e flexibilizar a crítica estruturalista do conceito de “gênio”, sem negá-la. Gostaria de finalizá-lo com uma citação de André Bazin, que se aproxima das considerações de Elias. Espécie de mentor dos jovens turcos, Bazin nem sempre compartilhou do entusiasmo da “política”. Surpreende aqui sua intuição para perceber, ainda nos anos de 1950 e em oposição a seus pares, a complexidade do processo criativo e a dinâmica social que age sobre o indivíduo. A evolução da arte ocidental em direção a uma maior personalização deve definitivamente ser vista como um passo à frente, mas apenas na medida em que essa individualização continue sendo apenas uma perfeição final e não pretenda definir a cultura. Neste ponto, devemos lembrar o lugar-comum irrefutável que todos aprendemos na escola: o indivíduo transcende a sociedade, mas esta encontra-se irrevogavelmente dentro dele. De modo que não pode haver uma crítica definitiva do gênio ou do talento que não leve em conta o determinismo social, a combinação histórica de circunstâncias e o embasamento técnico que em grande medida o determinam. (Bazin apud Buscombe, 2005, p. 285, grifos originais).
4. As dimensões sociais da criação no cinema Para Stephen Heath, como mencionei, a defesa de uma teoria do sujeito, no lugar do insistente debate sobre o autor, permite uma melhor apreensão do binômio sociedade/indivíduo no processo criativo. A ideia de autor, tal como postulada pelos jovens turcos, definia a obra como unidade circunscrita ao indivíduo e desvinculada de pressões ideológicas. Uma teoria do sujeito, por outro lado, convida o investigador a avaliar o contexto histórico-social do artista, bem como a heterogeneidade de estruturas que agem sobre este e o próprio filme, sem descartar as margens de autonomia do criador (sua contribuição singular). O equívoco maior da “política”, portanto, seria desconectar o filme de suas influências sociais e desconsiderar as teias ideológicas que delineiam as subjetividades criadoras (2005, p. 298 e 299). Deste modo, para Heath, o processo investigativo pode se concentrar em duas vertentes: orientar-se mais por uma análise estrutural ou enveredar por uma avaliação estilística, ressaltando suas respectivas ênfases na atividade artística. Entregar-se à pesquisa estilística implica, sobretudo, mapear o que existe de subjetivo na criação, restringindo-se à 12 | Fev 2013 | vol 2 |
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assinatura do artista e aos procedimentos que lhe são peculiares: seus recursos expressivos, seus efeitos de estilo. No caso do cinema, corresponderia à identificação de uma câmera evocativa de “fulano”, uma iluminação típica de tal cinematografia, o uso simbólico de determinada cor, a preferência em desenvolver personagens femininas, a predileção por narrativas fragmentadas ou pela diegese tradicional, sua filiação à ficção ou ao documentário (ou o desejo de fundir tais categorias), dentre inúmeras outras “marcas autorais”. É válido ponderar se estes efeitos de estilo não resultam de uma herança social (e aqui retomaríamos a crítica estruturalista em potência máxima); porém, como ressaltei, não descarto a singularidade do criador neste processo, o sujeito que, contaminado pelos discursos e ideias dispersos no mundo, produz sua síntese original. Como neste ensaio não me propus analisar uma cinematografia específica, no lugar de ponderar sobre os procedimentos estilísticos de um diretor (e ressaltar sua contribuição individual à criação), gostaria de direcionar a investigação para um breve mapeamento das possíveis instâncias de interdição social na atividade cinematográfica. E aqui restringir-meei ao que é específico desta prática, não me preocupando com os laços de sociabilidade que igualmente modelam o indivíduo (a vida familiar e escolar, a religião, gênero e etnia... enfim, tudo o que norteia sua “visão de mundo”). Evidentemente, este diálogo que aproxima cinema e sociedade também tem implicações na formação da subjetividade do cineasta. Serão rápidas as considerações apresentadas. Arte de elevado custo, de múltiplas etapas e que emprega mão-de-obra numerosa e qualificada, um filme inevitavelmente é fruto de uma força-tarefa. Sua inserção num contexto comercial, nos conduz a duas pressuposições: a concepção da obra não pode ser completamente desvinculada das expectativas do mercado, sob risco de não encontrar um público; a produção precisa compensar os investimentos estatais ou privados nela empregados. É precipitado afirmar que um fracasso comercial pode condenar um jovem diretor ao ostracismo (através de editais ele pode levantar recursos para novos projetos), mas não restam dúvidas de que o êxito lucrativo tem sido uma prerrogativa do cinema industrial. Desta observação, despontam duas fortes instâncias de interdição na criação: de um lado, o mercado (rede exibidora, público, emissoras de TV, locadoras); do outro, a força dos investidores (setor privado e, indiretamente, as estatais que regulam a política de 13 | Fev 2013 | vol 2 |
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editais), justificada quase sempre pela queda de braço entre diretores e produtoresexecutivos. Esta pressão pode, por vezes, promover ou justificar mudanças de estilo, contradições e rupturas na trajetória de um artista, e mesmo na execução de um único trabalho, independentemente do anseio individual. Assim, restringir o estilo unicamente à individualidade é um equívoco – a obra também é concebida a partir de condições determinadas (Bernardet, 1994, p. 164 a 166). Por fim, Edward Buscombe nos remete a três questões relevantes. Dada a contundência dos meios de comunicação na sociedade contemporânea, e a imprecisão sobre seus efeitos sociais, qualquer produção cultural que acione este aparato difusor, ou dele dependa, carece de ponderações sobre suas possíveis implicações. A criação, portanto, não deve prescindir de um juízo sobre os valores e ideologias por ela incensados. Por outro lado, o cinema, como qualquer arte, trava uma relação dialética (mútua influência), mas incerta, com o contexto sócio-histórico que circunscreve sua realização. Portanto, ele interage com as contradições e tendências de seu tempo. Mas como mensurar a “contaminação” dos desenvolvimentos tecnológicos, das transições políticas e econômicas, e dos choques ideológicos sobre a criação? Resta uma ressalva: antes de conferir o selo de originalidade a um cineasta, é preciso discernir em que medida sua obra é um diálogo que alavanca a tradição artística ou apenas a reproduz. Todos os filmes, assevera Buscombe, são influenciados pela história do cinema; é preciso, pois, ponderar a dimensão desta herança, uma vez que algumas obras têm uma relação íntima demais com outras (2005, p. 293 e 294). Assim, uma vez que o processo criativo dialoga com a tradição, ele não pode ser tão fechado e centralizado no indivíduo, como pressupunha a politique des auteurs. Em outros termos, não se deve subestimar a prática intertextual que, em diferentes níveis, fecunda a prática artística. Referências Bibliográficas A Política dos Autores – Conjunto de entrevistas publicadas no Cahiers Du Cinéma com cineastas como Roberto Rossellini, Fritz Lang, Orson Welles e Jean Renoir, dentre outros. Lisboa: Assírio e Alvim, 1976.
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BARTHES, Roland. A Morte do Autor. In: O Rumor da Língua. São Paulo: Brasiliense, 1988. BERNARDET, Jean-Claude. O Autor no Cinema. São Paulo: Brasiliense/Edusp, 1994 BUSCOMBE, Edward. Idéias de Autoria. In: RAMOS, Fernão (org.). Teoria Contemporânea do Cinema. Volume 1. São Paulo: Editora Senac, 2005. ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. _____________. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. _____________. Mozart – sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. _____________. Os Alemães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. ELIAS, Norbert e SCOTSON, John. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1992. _________________. O que é um autor? 2a. edição. Lisboa: Vega, 1992. HEATH, Stephen. Comentários sobre Idéias de Autoria. In: RAMOS, Fernão (org.). Teoria Contemporânea do Cinema. Volume 1. São Paulo: Editora Senac, 2005. PASOLINI, Pier Paolo. O Cinema de Poesia. In: Empirismo Hereje. Lisboa: Assírio e Alvim, 1981. SOLANAS, Fernando e GETINO, Octavio. Hacia um Tercer Cine. In: Cine, Cultura e Descolonización. Buenos Aires: Siglo XXI, 1973. TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. Autor e Estilo no Cinema. In: Cinemais – Revista de Cinema e outras Questões Audiovisuais, julho/agosto de 1999, nº 18, Rio de Janeiro.
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GEOGRAFIAS DE CINEMA: O lugar das memórias no filme “A Vila”
Antonio Carlos Queiroz Filho Doutor em Geografia pela UNICAMP carlosqueirozfilho@hotmail.com
1. GEOGRAFIAS DE CINEMA: EDUCAÇÃO VISUAL E MEMÓRIAS ESPACIAIS Olhamos para uma imagem, dela surgem outras. A sensação de naturalidade com que realizamos essas ligações “entre-imagens” é resultante daquilo que chamamos de educação visual. Somos educados cotidianamente a dar sentido às imagens que vemos. São esses sentidos que nos apoiam no entendimento dos filmes. Mas não só deles. Ao voltarmos nossa atenção para o espaço que é grafado pelo cinema, percebemos que nele estão adensados sentidos que nos darão possibilidade de, mobilizados pelas suas imagens e sons, caminhar por essas geografias, a um só tempo, pessoais e coletivas. Esse adensamento de sentidos ocorre porque quando assistimos a um filme, realizamos o movimento de atribuirmos a essas imagens, significados. Por isso a importância de uma pesquisa com imagens. Não só porque elas pautam nossas ações no mundo contemporâneo1, mas também pelo risco de confundirmos a sensação de tranquilidade, de calmaria com que certos significados saltam dessas imagens como se isso fosse natural, coisa dada. Coutinho (2003) nos explica que: Uma imagem nunca é sozinha, sugere sempre mais do que se apresenta à visão; extraída de um cenário maior que lhe dá origem, é um recorte e contém, de 1
Almeida (1999) explica que o cinema é um “Artifício que produz um conhecimento real e práticas de vida. Grande parte do que as pessoas conhecem hoje e entendem como verdadeiro, só o conheceram por imagens visuais e verbais”. (p. 56)
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alguma forma, mais elementos do que aqueles que podemos vislumbrar no recorte que as câmeras são obrigadas a realizar. (p. 127)
Cortar, recortar, colar. Processo aparentemente simples, mas quando aquilo que está sendo cortado, recortado e colado são imagens, o resultado é, certamente, outro, como nos situa Almeida (In: Coutinho, 2003), quando afirma que: “Imagens que foram cortadas, coladas e colocadas em seqüência, editadas para apresentarem-se em movimento estético e político. Imagens fantásticas que encantam ou assustam enquanto fazem e refazem a memória”. (p. 12) Memória é aqui tomada como conhecimento, ideia que temos das coisas, a sensação de estarmos localizados no universo cultural, do qual fazemos parte, é sempre uma construção presente no universo cultural disposto à humanidade. Essa memória nunca é, para nós, passado, nostalgia, celebração, dada à recuperação do perdido. Nas palavras de Walter Benjamin (1997, p. 104-105, In: COUTINHO, 2003): Nunca podemos recuperar o que foi esquecido. E talvez seja bom assim. O choque do resgate do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, forçosamente deixaríamos de compreender a nossa saudade. Mas é por isso mesmo que a compreendemos, e tanto melhor, quanto mais profundamente jaz em nós o esquecido. (p. 79)
O “esquecimento” é uma forma [política] de conhecimento sobre o mundo e, pelo cinema, afirma Almeida (1999), conhecemos “[...] conforme os caminhos que a imaginação escolher” (p. 23). Essa é a força da imagem, imagens do cinema. São elas que, além das imagens da televisão, por exemplo: [...] governam a educação visual contemporânea e, em estética e política, reconstroem, à sua maneira, a história dos homens e sociedades. São imagens e sons da língua escrita da realidade, artefatos da memória. (ALMEIDA, 1999, p. 02) Aqui estamos lidando com as memórias espaciais. O qualificativo dado serve para dizer desse movimento associativo que realizamos com as imagens do filme e outras mais, porém, localizando-os no universo das grafias e pensamentos sobre o espaço. (MASSEY, 2008) Há um termo para isso: Geografias de Cinema. (OLIVEIRA JR., 2004, OLIVEIRA JR., s/d.) Ele foi criado para dizer daquilo que seriam os estudos e os encontros
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com a dimensão espacial na qual os personagens de um filme agem. O propósito é lançar luzes sobre as preocupações geográficas contemporâneas, tomando o cinema, via educação visual da memória, como produtor de conhecimento e, por conseguinte, mediador das nossas relações com o mundo e das “grafias” – linguagens – que fazemos dele, sendo o próprio cinema uma delas. No artigo O que seriam as geografias de cinema? Oliveira Jr (s/d) explica que: As geografias de cinema, frutos de interpretações subjetivas e de pesquisa das imagens e sons fílmicos, buscam desliteralizar as interpretações habituais dadas a estes filmes... por isso terminam sendo uma proposição educativa, além de poética, das obras do cinema. (p. 06)
E continua: Para que estas geografias de cinema não sejam somente reverberações subjetivas, é preciso dizer onde o sentido que nos ficou do filme acontece. Pesquisar as imagens e sons fílmicos e ver se elas e eles lhe revelam ser verdadeiro o que se intuiu primeiramente. Em seguida, ver de que modo elas o fazem. Enfim, é preciso pesquisar as imagens e sons para descobrir onde elas nos geraram o sentido que nos ficou, o território no qual localizamos os personagens, a geografia na qual estes vivem e agem. É preciso pesquisar as imagens e sons para descobrir se nesta pesquisa elas irão gerar ratificações ou retificações... afinal, as geografias de cinema, sejam elas quais forem, devem estar no filme, terem sido produzidas pelo cinema. (p. 07)
A realização desse percurso nos permitiu dizer que assistir a um filme é uma experiência geográfica, o que, de certo modo, alerta a geografia contemporânea para as implicações advindas da atenção dada à linguagem e ao cinema e das geografias que ali são gestadas. 2. SOBRE O FILME “A VILA”: GEOGRAFIAS DE MEMÓRIAS A câmera avança silenciosamente. Uma cadeira caída ao chão. Luzes acesas que não iluminam. O piso sujo, empoeirado. Um enfeite solitário, desprendido da sua capacidade de adornar, agora lamenta por aquela incerta paisagem. É justamente a imagem do abandono, aquela que termina esta cena:
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A partir desta cena, surge a dúvida nos habitantes do pequeno vilarejo sobre a permanência/continuidade daquele lugar. Rodeados por uma floresta povoada por monstros, o tratado de fronteira feito entre eles havia sido quebrado. Depois da floresta, as cidades, também ditas como “lugar do mal”, deixam pequena vila com outro questionamento também: para onde ir? Essa relação entre cidade-floresta-vila foi apresentada para os espectadores como sendo uma oposição entre bem e mal, simbolizadas pela vila e cidade, tendo a floresta como elemento separador. Porém, a própria imagem do abandono redefine essa ideia de separação. Advindo da possibilidade de se perder o vilarejo, de deixá-lo para trás, o sentimento de partida como fuga forçada faz com a vila se ligue à cidade via memória dos Anciãos. Vamos percebendo, na sequencia das cenas, que deixar a vila seria, para eles, realizar o mesmo movimento que os havia levado a criar a vila. Como aceitar uma nova fuga? Sob essa situação de ameaça, há o movimento de “preservar” aquele local, ficando ali. O que acontece neste instante é uma aproximação entre esses dois mundos – a vila e a cidade – até agora nitidamente separadas pela floresta e pelo conjunto de significados que definia o modo de olhar e de se relacionar com ela. O que o filme fez, até então, foi caracterizar, para o espectador, a vila como lugar bucólico, prazeroso, familiar, seguro, amoroso, inocente. Todas as tensões que penetraram esse espaço tiveram a função narrativa de criar a sensação da existência de uma 4 | Fev 2013 | vol 2 |
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maior densidade nesses valores ali dentro primados, o que reforça a ideia dada por esse território de que há uma situação de oposição à cidade: a vila como sua forma contrária. Através das imagens do dia-a-dia, do modo de lidar com o entorno e da própria organização interna, a vila vai se mostrando como espaço em que suas crenças, desejos e sonhos são, propriamente, o inverso de tudo aquilo que ela nega, como numa espécie de “espelhamento” da cidade: isso é o que eles [Anciãos] querem, de certo modo, ser. O que acontece no filme a partir de agora, é uma alteração no modo de contar a história. O foco, que eram as imagens do bem, muda e a caracterização da vila continua, porém, por meio daquilo que ela nega, mas que está dentro dela mesma enquanto memória: a cidade como lugar do mal. É uma maneira dada pelo próprio filme de adensar sentidos para o entendimento daquilo que a vila preza como valor e o que ela rejeita. Ou seja, de dizer o que a vila é por meio de tudo aquilo que ela não é. Um dos personagens principais do filme, Noah, inquieto e chorando, bate à porta de Lucius. Sua visita tem a ver com o anúncio do casamento entre Ivy e Lucius. A cena é carregada de tensão. Nesse momento, acontece um close facial no filme, que não é o primeiro, mas que, pelo fato dele acontecer com os dois personagens e em sequência, nos chama mais atenção do que o close anterior [quando Noah coloca bagas vermelhas na mão de Ivy]. Ismail Xavier, em A Experiência do Cinema (1983), diz que “O close-up dirige a atenção do espectador para aquele detalhe que, num ponto, é importante para o curso da ação”. (p. 58) e continua explicando que “Na tela, a ampliação por meio do close-up acentua ao máximo a ação emocional do rosto, podendo também destacar o movimento das mãos onde a raiva e a fúria, o amor ou o ciúme, falam em linguagem inconfundível” (p.47). O close coloca o espectador em contado direto com esses dois personagens. Noah é o que nos chama mais atenção. Visto de perto, observamos o momento em que os ambos são colocados na mesma disposição de ângulo, de posicionamento de câmera:
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Na sequência em que suas faces nos são apresentadas com tanta intimidade, lidamos com o movimento realizado até agora no filme: o da criação da imagem da insanidade, da loucura e da desrazão como características do personagem, o qual seria o mobilizador da grande tensão que se instalaria na vila. É no close e na disposição das duas imagens, uma após a outra, que olhamos para a relação desses dois personagens e entramos em contato com a crise que se instalaria, a partir dessa cena, no interior da vila: Noah comente um crime. Essa é a “radicalização” da crise e é o que permitirá o cruzamento da floresta, até então proibida a passagem. Ivy solicita a seu pai a permissão para realizar a travessia. A partir disso, o filme vai anunciar a pequena vila, como uma invenção. O pai, antes de permitir a ida de Ivy até as cidades revela o segredo que criou aquele lugar e explica:
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Sr. Walker Não tenha medo. É apenas uma farsa. Não tenha medo. Havia rumores sobre criaturas nesta floresta. Está em um dos livros de história que eu lecionava nas cidades. Ivy O grito vindo da floresta? Sr. Walker Nós criamos aquele som. Ivy A Cerimônia da Carne? Sr. Walker Nós nos afastamos e um Ancião é designado. Ivy Os treinos também são uma farsa? Sr. Walker Não queríamos que ninguém fosse às cidades, Ivy. (...) Não há ninguém nesta vila que não perdeu alguém, que não tenha sentido profunda perda a ponto de questionar a própria vida. É uma escuridão que eu gostaria que você não conhecesse. O pai de Ivy “mapeia” a floresta para ela, indicando o caminho a ser seguido. Ele foi contestado pelos outros Anciãos. Primeiro, sua própria mulher, depois, os demais:
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Esposa Você está pensando em ir às cidades. Diga-me que estou errada. Você fez uma promessa Edward, como todos nós, de nunca mais voltar. É uma barganha dolorosa, mas nada de bom vem sem sacrifício. Estas palavras são suas. Não quebre a promessa. É sagrada. Sr. Walker É um crime o que aconteceu com Lucius. (...) Sra. Clark Concordamos em nunca voltar. Nunca. Sr. Walker Qual foi o propósito de partirmos? Não nos esqueçamos que foi por esperança de algo bom e correto. Sr. Robert Não deve tomar decisões sem nós. Foi longe demais. Sr. Walker Sou culpado, Robert. Tomei uma decisão de coração. Não posso encarar ninguém e ver o mesmo olhar que vejo em August sem justificativa. É muito doloroso e não posso agüentar. Sra. Clark - Você comprometeu tudo o que fizemos.
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Sr. Walker Quem você acha que continuará esse lugar, esta vida? Você vai viver para sempre? Nosso futuro depende deles. É em Ivy e Lucius que este estilo de vida continuará. Eu arrisquei. Espero que sempre possa arriscar tudo pela causa justa. Se não tomássemos essa decisão, não seríamos mais inocentes. No fim é isso que protegemos aqui – inocência. Não estou disposto a abrir mão disso. A partir desse diálogo, nos é mostrado a vila como o lugar de memórias. Ela contém a cidade, muito mais presente nela mesma do que se imagina. Negar a cidade, resumindo-a nos acontecimentos trágicos sofridos por cada um, não impediu, por exemplo, que a violência ultrapassasse as “barreiras” criadas por eles. Um dos elementos simbólicos mais significativos dessa contaminação entre cidade e vila é a existência de pequenas caixas nas quais os Anciãos guardam suas memórias sobre a vida além-vila de cada um. Vimos as caixas tomando o centro da imagem, em dois momentos no filme. Primeiramente, elas aparecem sempre fechadas, como, por exemplo, quando Sr. Nicholson conversa com Lucius.
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Ele aponta para sua caixa, referindo-se a ela como algo que está ligado às suas tristezas passadas, as quais haviam sido deixadas fora da vila e que agora parecem tê-lo encontrado. Ele pergunta: Sr. Nicholson Você sabe como um cão pode farejá-lo? [...] Você pode fugir da tristeza, como nós. A tristeza o encontrará. Ela pode farejá-lo.
Numa outra situação, Lucius está conversando com sua mãe e aponta para a caixa e diz que ela esconde os segredos daquele lugar. Ele pede para que ela seja aberta e sua mãe nega, dizendo que ali estão guardadas suas recordações. Ali, elas estão seguras. Chegado o ápice da narrativa fílmica, nos é revelado o que tem dentro delas: as caixas são a cidade na sua forma mais simbólica.
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Fotografias e recortes de jornais: memórias da cidade. Memórias que mantinham, ao mesmo tempo, escondidas e acesas, as lembranças dos acontecidos com eles. As caixas e aquilo que elas guardavam eram os alicerces da pequena vila, sua origem, seu mito fundador. São essas memórias que dão condição de existência para a vila. Estamos lidando aqui com a noção proustiana de memória. Para Proust, a memória reconstrói o real, junto com ele próprio. Jacy Alves de Seixas (In: BRESCIANI e NAXARA, 2004) explica melhor essa concepção, quando diz: Há em Proust a noção de uma otimista memória construtivista. [...] A memória age “tecendo” fios entre os seres, os lugares, os acontecimentos (tornando-os mais densos em relação a outros), mais do que recuperando-os, resgatando-os ou descrevendo-os como “realmente” aconteceram. Atualizam o passado – reencontrando o vivido “ao mesmo tempo no passado e no presente” –, a memória recria o real; nesse sentido, é a própria realidade que se forma na (e pela) memória. (p. 51)
Sob essa perspectiva, passamos a entender que as experiências tidas pelos Anciãos, na cidade, foram “trazidas” por eles para dentro da vila, na forma de “persistências”, colocando esses dois locais, pretensamente antagônicos, numa condição de mistura e contaminação. Por isso, essas memórias não são “passado”, no sentido cronológico. Elas estão, aparentemente, em um passado, quando olhamos para a vila e nela identificamos práticas que se ligam à experiência de vida dos Anciãos, quando eles viveram na Cidade, mas elas estão no presente da imagem e do espectador, que realiza a ligação entre esses dois locais fílmicos. Para Milton de Almeida (s/d)2, a memória Esquecida ou fragmentada em pequenos lembretes, ela está todo o tempo fazendo-se presente aqui e ali, nos pensamentos e ações deste ou daquele grupo. Pequenos pontos coloridos que aparecem e desaparecem em dobras agitadas pelo vento da história. No sem-tempo da memória, ela é aquilo que aumenta sem mudar de tamanho, pois não o tem. (p. 03)
Esse é o movimento que a própria narrativa do filme faz com essas memórias, para nós espectadores: aumenta seu tamanho. Para os demais habitantes da vila, salvo os Anciãos, elas estão lá sem se fazer perceber como moradoras. Elas pautam o modo de vida, as práticas sociais, os valores que vieram da cidade e são invertidos, para assim caberem na pequena vila. Novamente, Jacy Alves de Seixas diz que: 2
Cf.: texto disponível em: < http://www.ced.ufsc.br/~nee0a6/encalmeida.PDF> 11 | Fev 2013 | vol 2 |
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A memória é ativada visando, de alguma forma, ao controle do passado (e, portanto, do presente). Reformar o passado em função do presente via gestão de memórias significa, antes de mais nada, controlar a materialidade em que a memória se expressa (das relíquias aos monumentos, aos arquivos, símbolos, rituais, datas, comemorações...). (p. 42)
E continua dizendo que “A memória é, portanto, algo que ‘atravessa’, que ‘vence obstáculos’, que ‘emerge’, irrompe: os sentimentos associados a este percurso são ambíguos, mas estão sempre presentes”. (p. 47) Os Anciãos transformaram a dor, a violência e a ganância – experiências vividas por eles na cidade – em esperança e inocência como fundamentos de um novo modo de vida para o interior da vila. Essas experiências indicam o caminho percorrido para conseguir fazer existir a vila quando eles ainda estavam na cidade. A agonia coletivizada criou um sentimento de identificação entre eles. Desse movimento em que uma emoção muito forte confere identidade a um grupo, Pierre Arsant (In: BRESCIANI e NAXARA, 2004) utiliza o “ódio” como aquilo que irá mobilizar um grupo qualquer. Para o autor, “O ódio recalcado e depois manifestado cria uma solidariedade afetiva que, extrapolando as rivalidades internas, permite a reconstituição de uma coesão, de uma forte identificação de cada um com seu grupo”. (p. 22) Na vila, os sentimentos são outros: medo, amor, dúvida... Arsant cita ainda Freud, que afirma ser possível apenas em algum mundo utópico o desapego por inteiro desses “ressentimentos”. Na vila, eles não poderiam deixar de existir. Esse “ressentir” (sentir de novo) é a base para o movimento de identificação do grupo que, na vila, se transformaria nos Anciãos. Deles saíram os desdobramentos normativos que deram sustentação à vila. Arsant (In: BRESCIANI e NAXARA, 2004) diz ainda que: Para um grupo, a ideologia política, designando claramente os alvos do ódio e do desprezo, pode fornecer aos membros do coletivo um reforço da auto-estima e da segurança interior. [...] ao mesmo tempo que equilibra este vínculo pela difamação das nações rivais. (p. 24-25)
A Cidade que está além-floresta ocupa esse lugar de “nação rival”, não como um inimigo declarado que se coloca em estado iminente de confronto direto, mas por ser imagem do desprezo e descrédito, por ser sim, o outro lado. Estar do outro lado – Fora –
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não quer dizer que, de alguma maneira, não exista permeabilidade no Dentro – na vila – e isso o filme vai nos mostrando com sua narrativa. Na sequência, é a fotografia do grupo que deu existência à vila, a primeira a sair da caixa. De cima, a câmera avança até fazer com que ela preencha toda a tela. Ela é, no tempo de exibição do filme, anterior à formação da vila, mas nos mostra ser de uma época posterior àquela em que fomos remetidos ao olharmos para o interior da vila nas primeiras cenas.
Os costumes, vestimentas, a maneira como o cotidiano era preenchido, nos aludiam a um tempo outro que esse da fotografia, em que as roupas, os cortes de cabelo e a predominância do marrom, parte do carro que aparece no canto, nos sugerem uma época posterior àquela vivida na vila. Ela é, por assim dizer, mais recente, mais “moderna”. São duas temporalidades contidas em duas espacialidades. As fotografias e os jornais não estão no passado, pois as épocas que elas remetiam fazem o caminho inverso da cronologia: do mais antigo para o menos antigo. Elas presentificam a cidade na vila, sendo as próprias imagens dessa cidade. A memória é, portanto, produto e produtor daquilo que define o pequeno vilarejo não mais como lugar coeso, estável, mas como território híbrido de segurança e ameaça: território como mistura. Se pensarmos para além-filme, qual é o lugar ocupado pelas memórias na constituição das geografias produzidas na contemporaneidade? Algumas pistas: território como política e pensamento. Pensamento como território e política. Política como pensamento.
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REFERÊNCIAS ALMEIDA, Milton José de. Cinema: arte da memória. Campinas: Autores Associados, 1999. _______________. As Idades. (s/d) Disponível em: < http://www.ced.ufsc.br/~nee0a6/encalmeida.PDF> Acesso em: 15/03/2008. BRESCIANI, Stella e NAXARA, Marcia [Org.] Memória e (Res)Sentimento: indagação sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004. COUTINHO, Laura Maria. O estúdio de televisão e a educação da memória. Brasília, Plano Editora, 2003. MASSEY, Doreen. Pelo Espaço: uma nova política da espacialidade. Trad. Hilda Pareto Maciel e Rogério Haesbaert. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
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OLIVEIRA JR., Wencesláo Machado. Geografias de Cinema: outras aproximações entre as imagens e sons dos filmes e os conteúdos geográficos. In: VI CONGRESSO BRASILEIRO DE GEÓGRAFOS. Goiânia, Anais do VI Congresso Brasileiro de Geógrafos, 2004. p. 122. _______________. Algumas Geografias que o Cinema Cria: as alusões, os lugares e os espaços no filme Cidade de Deus. In: X ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA, São Paulo-SP. Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina, 2005. p. 1-24. _______________. O que seriam as geografias de cinema? [s/d] Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/atelaeotexto/revistatxt2/wenceslao.htm> Acesso em: 26 de junho de 2006. XAVIER, Ismail [Org.] A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
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CINEMA, ASPIRINAS, URUBUS, PERAMBULAÇÃO, FABULAÇÃO, ENCONTROS E ALTERIDADE Marcelo Dídimo Souza Vieira Professor Adjunto do Instituto de Cultura e Arte da UFC mdidimo@hotmail.com Érico Oliveira de Araújo Lima Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFC ericooal@gmail.com
Introdução A relação entre utopia e migração – principalmente intermediadas pela presença do sertão – tem força ao longo da história do cinema brasileiro. É nas utopias que os personagens encontram motivação para os impulsos migratórios. Talvez a materialização mais comum dessa tríade corresponda à estrutura, já utilizada aos montes, que comporta a história de famílias (ou indivíduos) que rumaram em direção à cidade grande na tentativa de fugir das mazelas do sertão, como em Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. Dessa forma, motivados pela utopia de uma vida melhor, que entra em contradição com as condições impostas pelo sertão, tais personagens se põem ao processo de migração com a esperança de que o mesmo represente, em suas vidas, o processo de redenção. Em Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), de Marcelo Gomes, essa tríade em vários aspectos é mantida. O destaque do filme recai sobre a presença de dois personagens que se cruzam e estabelecem um vínculo justamente em decorrência de suas utopias individuais. Ranulpho é o sertanejo que deseja ir embora de sua terra, local onde só vê miséria e isolamento. Johann é o alemão que transita pelo interior do Brasil e vai demonstrando, aos poucos, o fascínio pela terra em que está não necessariamente por seus aspectos particulares, mas por esses não se assemelharem à imagem que conserva de seu próprio universo de partida, a Alemanha. Um deles já está em movimento, o outro almeja o mesmo, 1 | Fev 2013 | vol 2 |
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mais que tudo. Em suas cabeças, a migração funciona como uma tentativa de pôr em prática sonhos e transpor inquietações que os acompanham e estão ligados, direta ou indiretamente, aos ambientes dos quais partiram. Quando o diretor de Cinema, Aspirinas e Urubus, Marcelo Gomes, foi questionado sobre a presença da luz estourada que preenchia a tela por completo no início do filme, deu a seguinte resposta: Eu queria construir o sertão da minha memória afetiva, o sertão que eu lembro das minhas viagens desde pequeno, que me causavam uma impressão muito grande, aqueles silêncios espaciais e aquela luz que parece que vai furar as pálpebras. Eu imaginei que esse alemão, vindo de um clima temperado, chegando no sertão pela primeira vez, vai ter esse problema de fotofobia, vai ver o sertão superexposto. Mas você tem o sertanejo que está fugindo da miséria, do sertão que é quente, árido e seco, ele só consegue ver isso. Então é a visão desses dois personagens que impregna a paisagem. E é essa luz branca que passamos três meses no laboratório pesquisando. Foi uma longa pesquisa até chegar a ela.1
É interessante notar que Gomes não atribui o conceito da luz branca apenas à representação de Johann daquela realidade, como poderia se pensar a priori. A escolha da luz também carrega um significado para as pessoas que moram ali, das quais Ranulpho se destaca por suas características tão peculiares. Mas principalmente, a luz branca possui um papel extremamente pessoal do diretor, o de construir um olhar particular sobre um espaço já tão revisitado. E é nesse momento que a tríade construída pelo filme, apesar de semelhante, mostra notórios sinais de distinção no que se refere à velha relação sertãoutopia-migração. É a partir do encontro entre dois personagens, dois universos, duas realidades impulsionadas por utopias ao mesmo tempo tão parecidas e diferentes, que os elementos traçados por Cinema, Aspirinas e Urubus se desdobram e se ressignificam. O sertão ainda é quente, as utopias ainda são redentoras e as migrações, utópicas. Todavia, o olhar de Gomes em relação ao seu próprio universo segue um ritmo extremamente particular – assim como as trajetórias dos personagens – que dá espaço para os personagens se 1
Disponível em: http://www.omelete.com.br/cinema/omelete-entrevista-o-diretor-de-cinema-aspirinas-e-urubus/, publicado no dia 10 de novembro de 2005. Último acesso: 14 de março de 2011.
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mostrarem sem a pressão de arcos dramáticos ou contratos sociais. É um ritmo próprio, que por estar em uma estrutura já tão conhecida, revela-se extremamente pertinente na construção de uma realidade sincera, real e palpável. Encontros inesperados Promover encontros. Na relação de uma imagem a outra, de um afeto a outro, de um personagem a outro, Cinema, Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes, 2005) faz com que mundos se toquem, tempos se revolvam, regimes de imagem e de historicidade se interpelem. A migração está em cena no filme de Gomes, não só como tema de uma narrativa, mas como princípio condutor das imagens, dispositivo para percorrer um sertão que se inventa. É um problema desencadeado pelo realizador para investigar a postura dos corpos em um mundo, para pôr em trânsito um universo já visitado por outros – o sertãoidéia já investigado esteticamente por diferentes tradições cinematográficas, o sertão-lugar que já foi espaço para vidas tantas, secas e férteis, andantes e permanentes, individuais e coletivas. O cinema depara-se com o real para inventar mundos possíveis, relacionar o vivido, o visível e o dizível. Invenção de formas de olhar e de dizer, a arte cinematográfica mesma move-se pelos tempos e espaços, abre-se ao imponderável dos encontros entre as imagens de mundos. Assim, pois, uma questão pode ser formulada: o que o cinema põe em movimento ao fazer mundos se encontrarem? Na caminhonete do alemão Johann (Peter Ketnath), circulam afetos, compõem-se quadros de sociabilização e tateios do conhecimento mútuo. O vagar do carro pela estrada organiza imagens, articula modalidades de encontro com o outro, níveis de relação com o sertão. O nordestino Ranulpho (João Miguel) é um dos viajantes que o estrangeiro encontra. As motivações e origens de cada um são reveladas aos poucos, em diálogos de poucas palavras e, por vezes, de incompreensão. “Vem de onde?”, pergunta, de forma direta, Ranulpho – “Da Alemanha” é o que responde Johann. Não compreendeu, desentendimento que não é só de ordem lingüística, mas se liga, sobretudo, à relação particular que cada um estabelece com as formas de enunciar o mundo e de dizer sobre si. O que Ranulpho queria dizer, ele explica na mesma cena: “Não de onde é, de onde vem.” Finalmente, o alemão consegue fazer a própria resposta corresponder à dúvida do outro 3 | Fev 2013 | vol 2 |
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viajante: “Do Rio de Janeiro”, responde. De lá Johann vem vendendo aspirinas, parando em diversas cidades do país, com exibição de filmes que fazem a propaganda do produto. Mas ele, de fato, é da Alemanha; de lá ele veio primeiro, de lá escapou – quis fugir da violência, da segunda guerra mundial, em que um homem tinha que matar outro homem. Johann passa, então, a buscar realização não só na fuga, mas na perambulação. Já Ranulpho, ele contará em outro momento, é da cidade de Bonança, mas tampouco é de lá que vem. Há tempos, já vem de lugar nenhum, buscando saídas, formulando desejos. O que importa para ele é aonde quer ir: ao Rio de Janeiro, promessa de vida nova, diferente do espaço de desconforto em que vive. Ranulpho, como a Hermila de O Céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006), sente-se deslocado com o sertão, com as pessoas; tem um desejo por outras possibilidades de estar no mundo, uma aposta em uma mudança de espaço como forma de transformar a vida. No filme de Aïnouz, essa correspondência não estava completamente assegurada; será preciso ver em que chave Gomes articula a utopia de evadir-se, o sonho com outro lugar. No encontro de Johann e Ranulpho, o cineasta opera o contato de mundos. Os dois migrantes, errantes, veiculam sentimentos, formas de ver e de dizer, modos de esquadrinhar o espaço e o tempo. Há, em cada um, sertões diferentes, porque é na forma que os personagens são afetados pelo sertão que Gomes vai encontrar uma enunciação possível. Nos atos de fala dos dois constantes interlocutores, vislumbram-se projetos de vida, vontades de mundo. A conversa vai ser, no filme, um dos procedimentos de reunir universos, de encenar o encontro como dispositivo de enquadrar corpos, lugares e temporalidades. É todo um jogo de interações que a conversa no cinema pode mover, já observou Deleuze (2007). Na articulação das formas de dizer o outro e de ser dito, de projetar lugares no futuro e de elaborar discursos sobre o passado e o presente, os atos de fala são característicos da medida em que se acredita no mundo e do nível de abertura que se opera na construção de relações. É conforme as relações de força na conversa, ainda segundo Deleuze, que se estabelecem sentimentos e interesses no entre-dois. Já não são as estruturas exteriores que determinam a conversa, posto que ela mesma conduz o encontro e faz-se corresponder na interação.
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O característico da conversa é redistribuir o que está em jogo, e instaurar interações entre pessoas que supomos dispersas e independentes, e que atravessam a cena aleatoriamente: tanto assim que a conversa é um rumor contraído, e o rumor, uma conversa dilatada, que revelam, ambos, a autonomia da comunicação ou da circulação. Desta vez, não é a conversa que serve de modelo à interação, é a interação entre pessoas separadas, ou numa única e mesma pessoa, que é modelo para a conversa. O que poderíamos chamar de sociabilidade, ou “mundaneidade” num sentido bem geral, jamais se confunde com a sociedade: trata-se das interações que coincidem com os atos de fala, e não de ações e reações que passam por eles segundo uma estrutura prévia. (DELEUZE, 2007, pp. 273-274)
Uma mundaneidade é colocada em questão na conversa que faz interagirem dois estrangeiros. Se é possível falar no surgimento de uma amizade entre desconhecidos, o que tem relevo primeiro no encontro de Ranulpho e Johann é o próprio processo de estabelecimento da interação, é a situação mesma do puro encontro, do puro tocar de mundos. Nos termos deleuzeanos, já não se têm mais situações que se prolongam em ações. O encadeamento das imagens no filme de Gomes não dá a ver esquemas sensório-motores, mas situações em que a própria imagem e o próprio som carregam sentido. A experiência ótica e sonora pura, particular da imagem-tempo, permite a Cinema, Aspirinas e Urubus operar migrações na dimensão mesma da imagem, desencadeadora de perambulações pelo espaço do sertão, e na dimensão mesma do som, autônomo e veículo de atos de fala de personagens com vontade de mundo. Há entradas e saídas de cena que pontuam um processo de inventário de um universo. Na circulação dos que passam, no trajeto dos que vagam, no encontro com os que permanecem, a câmera esquadrinha fluxos, acompanha singularidades que povoam a cena como habitam o mundo. Como na cena em que Johann para o carro na estrada e pergunta o caminho da pequena cidade de Triunfo. Na conversa curta, com um interlocutor de poucas palavras, o alemão oferece ao final uma carona: “Vai pra lá ou pra cá?”. Ao que o outro, aparentemente no meio de um nada, responde: “Vou ficar por aqui mesmo”. E há o personagem também indecifrável que, pouco depois de entrar no carro, pede em alvoroço: “pare o carro, homem!” – ele sai com uma espingarda e vai em direção ao extracampo, às pressas. Johann não espera: é difícil saber o que move o outro, ele só sabe o que o impulsiona.
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O carro de Johann está sempre aberto a receber esses fluxos, esses personagens flutuantes, que não são representações de tipos, nem caricaturas de gestos. Personagens opacos. São seres que estão ou que perpetuamente vêm a ser: difícil investigar o que são, pois o cinema de Gomes não é das essências, mas da passagem, do devir de espaços e personagens. Logo, já não se trata mais de transcender o que está em cena para remeter a esferas mais gerais, na lógica da metáfora e da alegoria; o que se busca é imanência, na tentativa de encontrar o que é próprio dos encontros, das imagens e das experiências de vida. Xavier (2000), ao comparar posturas e tradições cinematográficas diferentes, aponta para certa recorrência no cinema atual, mais voltado para mentalidades e posturas particulares. Segundo ele, era a experiência nacional que estava em jogo nos embates estético-políticos do Cinema Novo, sertão e favela como espaços que transcendiam em direção a uma idéia do nacional-popular. A imagem buscava compor conjuntos, organizar totalidades. A leitura de Xavier dá ênfase à idéia de alegorias, “aptas a condensar o complexo, esquematizar os agentes, compor um mundo imaginário capaz de resumir, sem perder expressão, as regras do jogo” (2000, p.109). Ainda segundo o autor, na singularidade dos encontros encenados em filmes brasileiros a partir dos anos 90, não há generalização de um projeto de nação, mas investigação de aspectos pontuais relacionados aos sujeitos. São “os 'encontros inesperados' que a migração ou o espaço da cidade oferecem meio por acaso” (2000, p.109) elementos condutores das narrativas de obras cinematográficas contemporâneas. [Uma] face do cinema contemporâneo tem sido a reiteração do motivo do encontro de dois estrangeiros singulares que, em princípio, estão marcados por uma radical alteridade, mas que se interceptam mutuamente num momento que termina por marcar decisivamente suas vidas. […] O característico aqui não é o fato de que tais encontros sejam exclusivos do mundo moderno, mas de se criar um quase gênero do cinema atual, sinalizador de um “humanismo” multicultural de tipo distinto daquele mais clássico, que envolvia encontros em que a relação entre os dois indivíduos era pautada pelo que eles representavam enquanto membros de uma etnia, de uma classe social, de uma nacionalidade. Agora há casos em que interessa mais justamente o que não decorre diretamente dessa “representatividade” de cada um; instala-se uma relação oblíqua entre os atributos das personagens e o eixo do conflito em que estão inseridos. (XAVIER, 2000, pp. 117-118)
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Baile Perfumado (Lírio Ferreira, 1997) ia nessa linha, ao encenar os contatos do libanês Benjamin Abrahão com o cangaceiro Lampião. Assim como no filme de Gomes, o próprio cinema, enquanto produzido ou exibido na narrativa, estabelecia aproximações entre grupos e entre sujeitos. Mas são abordagens estéticas diferentes as de Ferreira e de Gomes. O universo pop e o sertão marcado pelo hibridismo, pelo verde e por volumes de água em Baile Perfumado estabelecem uma relação com a realidade com nuances bem diferenciadas em relação à paisagem mais seca, aos silêncios dos personagens e à cadência da câmera de Cinema, Aspirinas e Urubus. O motivo do encontro, observado por Xavier, precisa ser investigado esteticamente, a própria migração desencadeadora de relações compõe imagens diferentes conforme o arranjo específico efetuado pelos realizadores: se há um motivo, há também diferentes formas de orquestrá-lo e fazê-lo ressoar imageticamente. Havia também encontros nas narrativas do Cinema Novo. Ainda que a ênfase de Xavier busque flexionar a comparação em termos do que era alegórico nos filmes dos anos 1960 e do que hoje permanece como pontual e singular, podem-se propor abordagens que ponham em relevo a dimensão coletiva e política do encontro cinemanovista, sem que isso implique considerar menos políticos ou menos utópicos os encontros singulares do cinema contemporâneo. Pode-se tensionar um pouco: até que ponto a leitura pela chave da alegoria dá conta da experiência estética do Cinema Novo, como matriz e tradição de um cinema que se embate com o mundo hoje? São os personagens de filmes-chave do período figuras, representações de classe? Em que medida as imagens, no contexto de um cinema moderno, encontram-se na dimensão da representação? Retomar as inquietações da geração cinemanovista pode oferecer uma composição de leituras possíveis do trabalho de Marcelo Gomes em Cinema, Aspirinas e Urubus. O diretor encontra-se com a história, ao encenar encontros no sertão de 1942; encontra-se com o cinema, ao remeter à imagem possibilidades de fabulação; encontra-se com a vida, ao buscar nos relatos do tio-avô, Ranulpho Gomes, a matriz para inventar a própria escritura de mundos possíveis. Pondo em trânsito o sertão, o realizador busca formas de expressão pela imagem e pelo som. É preciso agora propor novas questões, novas inflexões para mover o pensamento: que imagens estão em jogo na invenção de sertões possíveis? Que 7 | Fev 2013 | vol 2 |
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implicações tem a idéia de um sertão em trânsito na postura cinematográfica de Cinema, Aspirinas e Urubus? Perambulação, fabulação O sertão em trânsito de Cinema, Aspirinas e Urubus é uma passagem. Não é somente como a cidade de Iguatu em O Céu de Suely, também lugar de passagem. Pois lá ainda havia um centro em torno do qual se organizavam as imagens, enquanto no filme de Marcelo Gomes, as imagens estão mais sujeitas a um imponderável, ao desconhecimento quanto ao que se tem pela frente na estrada, ao que se tem adiante no curso da própria vida, a quem e ao que é possível encontrar. Pode-se ser picado por uma cobra, como acontece a Johann, pode-se ter de cuidar do outro, o que passa a fazer Ranulpho enquanto o companheiro de viagem está doente, pode-se receber a notícia de que o Brasil entrou em guerra com a Alemanha, mudança para a vida do alemão, pode-se receber de presente um carro e partir para mais imponderabilidades, o que acontece a Ranulpho ao final do filme. Vagar é abertura à incerteza, como era em Vidas Secas, mas ao contrário do que acontecia no filme de 1963, a perambulação na obra de Gomes não ocorre porque a sociedade abandonou esses sujeitos. A opção de evadir-se é aposta ativa de que será possível encontrar uma realização. Não se trata, então, somente da necessidade material, embora essa possa também estar presente em Ranulpho, mas a questão é sobretudo de um desejo, de uma inquietação da ordem dos afetos. Afetos que se explicitam e se constroem na passagem. Ranulpho pontua o desconforto com o sertão, na postura inicial de quem rejeita a própria terra, “um buraco”, e as pessoas que nela vivem. “Esse povo”, ele diz ao referir-se em determinado momento aos habitantes do sertão. Ao ser indagado por Johann – “Esse povo que o senhor está falando, o senhor também faz parte dele, não é?” –, ele só responde com um gesto e um “mais ou menos”, um meio termo; em verdade, é ainda uma indecisão, uma ambigüidade na constituição de Ranulpho, que ainda se revolve num entre. O discurso do sertão como atraso, do sertanejo como povo “mesquino, do tempo do ronca” aparece constantemente na fala de Ranulpho. A relação dele com o lugar é de negação, resistência ao pertencimento, ênfase na própria diferença em relação aos outros. Ele lamenta a seca, a 8 | Fev 2013 | vol 2 |
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miséria, o atraso. O sertão é um mundo para Ranulpho, mas é outro para Johann, diferença exposta quando o nordestino pergunta ao alemão: “O que é que o moço acha de interessante num lugar tão miserável como esse?... Aqui é seco e pobre” – ao que Johann responde: “Mas pelo menos não caem bombas do céu”. Era com relação à própria terra que Johann sentia desconforto, e desbravar o Brasil como estrangeiro era para ele já uma realização. No pôr-se em movimento, longe da guerra, pode-se encontrar uma crença maior nas possibilidades da vida, potencializada pelo que há de dinâmico no trânsito, no conhecimento de outro lugar, no encontro de outro mundo. O sertão é, para Johann, a segurança diante do perigo das bombas, numa leitura mais imediata, mas é também abertura à descoberta, a um mundo em que se pode acreditar. Assim, o filme abre-se à heterogeneidade de pontos de vista para inventariar o mundo, para enunciar o visível. À medida que se acumulam os encontros, formas distintas de ser afetado pelo sertão entram em jogo. No trânsito, isso vai ser expresso pela composição dos corpos em cena, pois se acrescentam personagens aos dois habituais interlocutores: são dois mais um em geral. É assim quando Jovelina (Hermila Guedes) entra na caminhonete para pegar uma carona no caminho seguido por Johann e Ranulpho. Um cruzamento de caminhos, mais um encontro. Mas Jovelina só vai seguir até certo ponto, desce bem antes de Triunfo, já adianta. Ela tem uma história, é uma das poucas personagens que pegam carona e estabelecem diálogo mais elucidativo do que se passa na própria vida. O novo encontro que aí se opera é um acréscimo de afeto, de ponto de vista sobre o sertão, de olhar para o mundo. Mais um recurso de composição, a entrada em cena de Jovelina insere uma perspectiva feminina, tensiona os desejos dela com as crenças deles. E esses afetos passam sempre pelo interior do carro, lugar da maior proximidade, da fotografia mais definida, diferente do excesso de luz que há do lado de fora; é o carro o condutor e potencializador de relações, de um entre, do toque de mundos. O dentro e o fora estão em jogo aí, na relação do que vive no mundo e da parcela que é enquadrada pela câmera, das vidas dispersas pelo sertão, múltiplas, e das vidas que passam pela cena, que entram no carro de Johann. Mas ainda não é só o carro que tem o privilégio dos encontros. Ele constitui-se como recurso fundamental da mise-en-scène, mas há também situações em outros espaços. 9 | Fev 2013 | vol 2 |
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Como a cena do almoço, em que conversam Johann e Ranulpho, sempre com os adendos de “seu” José, senhor responsável pelo estabelecimento. É mais uma vez uma construção em três, os dois protagonistas em primeiro plano, e o novo personagem ao fundo, de pé, sem estar sentado à mesa, sem partilhar integralmente do diálogo que se estabelece. Ele apenas pontua momentos da conversa e permite vislumbrar novos mundos, novos níveis de relação com o sertão, como aquele que sublinha a tranqüilidade do lugar e não se queixa da terra. O que ele teme são “as feras” da Amazônia, para onde vão os soldados da borracha. E é também fora do carro que se processam relações entre mundos distintos. Vai ser o encontro do arcaico com o moderno, das novidades trazidas pelo viajante com os habitantes das pequenas cidades. O cinema é modernidade viva que desloca a rotina das pequenas comunidades sertanejas; o medicamento milagroso, “fim de todos os males”, como é vendida a aspirina, também insere elemento novo; a propaganda, sua linguagem, suas promessas, os mundos que cria, é tudo uma ponte que se dissocia do regime de temporalidade habitual. Na tela, elemento de encantamento, as imagens das grandes metrópoles do Centro-Sul prometem um país do futuro, as cachoeiras promovem a idéia de um Brasil maravilhoso, a felicidade é associada à tranqüilidade que se pode obter após tomar uma aspirina. O mundo moderno parece um dado inquestionável e irrevogável nas imagens exibidas a céu aberto nas pequenas cidades, uma chamada à saída do atraso. Não parece à toa que justo a cidade buscada por Johann ao longo de boa parte do filme chama-se Triunfo. Lá onde se encontram as pontes maiores com a ideologia do moderno, professada, sobretudo, pelas lideranças locais, por uma espécie de novo coronel do sertão. O discurso do progresso entra aí pela mediação de homens que se empolgam com a presença do estrangeiro e de suas ferramentas, no entusiasmo com os contatos com um mundo novo. Será possível, mais adiante, pensar essas relações numa chave que remonta ao mito desbravador do período de colonização, ao contato entre culturas e povos distintos. O que interessa, por enquanto, é o tensionamento arcaico/moderno operado nos encontros de Cinema, Aspirinas e Urubus. Na possibilidade de migrar mundos instaurada pelo filme, o sertão já não é mais isolado, pois para ele dirigem-se diferentes linhas de força, nele se relacionam distintas temporalidades. Ainda que Ranulpho reitere a miséria e o atraso, há
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novas variáveis que vão se acumulando na sucessão de imagens, na passagem operada pelos fluxos do filme. A fronteira entre o arcaico e o moderno já era também presente em O Dragão da maldade contra o Santo guerreiro (Glauber Rocha, 1969), obra de período histórico em que eram a modernização conservadora e seus limites pontos de embate para a arte cinematográfica. A relação possível não poderia passar pela negação do moderno nem pela exaltação deste. O que se expunha era a própria contradição, pelo exacerbamento do conflito com a tradição e pela incorporação de signos da modernidade na estética e na cena fílmicas, como já observou Xavier (1993), ao analisar a mudança de tom dos filmes da segunda metade da década de 1960, diante do recrudescimento do regime militar e da ideologia do progresso encampada pela propaganda oficial. É nesse sentido que o filme realizado por Glauber em 1969 será uma “reflexão do cineasta sobre a modernização do país e seus efeitos” (1993, p.162). A chegada de Antônio das Mortes à pequena cidade de Jardim das Piranhas, palco da encenação de O Dragão da maldade, já anuncia o universo sertanejo que Glauber propõe: Em Jardim das Piranhas, o sertão encontra os sinais do tempo novo: Antônio chega de Rural Willys – não mais a pé como o caminhante solitário de Deus e o Diabo ou o ícone que abre o próprio O Dragão da maldade; os caminhões, a estrada, o posto de gasolina e a oficina estão próximos, a fazer o contato do sertão com o mundo da cidade. Ouve-se o rádio, existe na praça o bar Alvorada com os emblemas da fachada do palácio em Brasília. Não estamos no sertão de Deus e o Diabo, microcosmo fechado a compor um mundo de interações sociais orgânico, coeso. Aqui, o sertão já não se põe no centro, revela seus limites e reconhece todo um mundo para além de suas fronteiras, mundo de onde vem toda uma série de novidades que minam pela base a tradição. (XAVIER, 1993, pp.164-165)
O contato entre um país do futuro e outro do passado também foi mote para filmes do período convencionalmente classificado como retomada do cinema brasileiro, segundo observa Nagib (2006). A autora observa, no entanto, nova tônica nesse cruzamento, com uma circularidade de certos filmes em torno de um centro vazio, de modo que uma noção de zero afirma-se, “ao mesmo tempo como anúncio e negação da utopia” (2006, p.61). Um Brasil é desbravado por realizadores que, ao remeterem-se a elementos da tradição cinematográfica dos anos 1960, encaminham-se mais para uma proximidade temática do
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que efetivamente estética. “Sem serem obras radicais, esses filmes remetem, de um ou outro modo, a momentos de radicalismo do cinema brasileiro” (2006, p.65). Nos “zeros da nação”, para usar a chave de análise de Nagib, cineastas dos anos 1990 buscam berços de “brasilidade”, desbravam o vazio para trazer um país distante dos grandes centros urbanos e pô-lo em contato com elementos modernos. Em Central do Brasil (Walter Salles, 1999), esse movimento em direção ao centro vai traduzir-se na “euforia da pátria reencontrada” (2006, p.67). Na procura pelo pai empreendida pelo menino Josué, configuram-se uma ação interna à narrativa, de encontro com origens, e uma atitude do próprio cineasta, envolvido na história do cinema, na “busca da pátria nordestina perdida no passado do cinema novo, destinada a oferecer filiação histórica ao cineasta atual” (2006, p.71). Mas esse movimento acaba envolvido na reiteração de certo distanciamento, já problematizado em relação à postura da produção industrial brasileira dos anos 1950: o sertanejo é o Outro, o sertão é distante, palco de mitos, religiosidade e também certa pureza. Empreendido o movimento da cidade para o sertão, prevalece o exótico no universo do interior nordestino: A seca e a miséria no Nordeste de origem se apresentam, assim, como detalhes pitorescos, que não acarretam conseqüências na vida de seus habitantes nem pedem intervenção no presente. Na verdade, o filme, como um caso exemplar de sua época, em lugar de propiciar identificação de um país, evidencia pelo olhar distanciado e a citação, a própria impossibilidade de se reencenar o projeto nacional. A utopia só se realiza como ausência, reencontro hipotético com um pai, chamado Jesus, que jamais se materializa e é apenas concebível enquanto ficção ou mito. Para tornar verossímil esse pai/pátria improvável, a narrativa envereda pelo melodrama e os personagens se deslocam do universo moderno e repleto de ameaças da estação central para o isolamento seguro e confortável do Brasil arcaico, perfazendo assim o movimento contrário dos migrantes brasileiros reais. (NAGIB, 2006, p.72)
Esse sertão “imune ao tempo e aos males da modernidade”, “iconografia do passado, com função apaziguadora no presente” (2006, p.76), é bem diferente do universo de O Dragão da maldade e de obras mais contemporâneas, como O Céu de Suely, Árido Movie (Lírio Ferreira, 2005) e o próprio Cinema, Aspirinas e Urubus. O filme de Lírio Ferreira rejeitava o isolamento do sertão no conjunto de seus procedimentos, que aproximam o litoral do interior e estabelecem uma ponte que vai de São Paulo à pequena cidade de Rocha, passando por Recife. Elementos pop, música eletrônica e certo clima de
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aventura compunham um sertão de misturas, em que novas e antigas práticas convivem, em que a tradição permanece, mas manifestada sob novos aspectos. Mas, como ressaltado acima, a estética de Ferreira é diferente em relação à de Gomes: no lugar da música eletrônica, ouvem-se em Cinema, Aspirinas e Urubus canções da própria época, numa textura sonora de rádio antigo; enquanto a imagem de Árido Movie carrega-se de velocidades, ações e reações de ritmo acelerado, o regime imagético é outro no trabalho de Gomes, mais atento à espera, à observação, a situações puras em que se intensifica a dimensão mesma do tempo. São diferentes também as imagens da seca na comparação entre os dois filmes. Elas estão no percurso de Ranulpho e Johann, vislumbram-se estratégias de sobrevivência da população, promovem-se encontros com a paisagem árida, e é também da seca, ainda que não só dela, que Ranulpho tenta fugir. Já o sertão de Lírio Ferreira, verde em Baile Perfumado, é seco em Árido Movie, e em torno da falta de água e das previsões de chuva giram elementos da narrativa. Mas não há muitas estratégias diante das carências, e o foco recai sobre as famílias tradicionais e seus jogos de poder para manter os privilégios. A ênfase é, então, na permanência, já que “não há previsões de mudanças”, como diz o homem do tempo e protagonista do filme, Jonas – a dimensão utópica aí já não tem muita força. Isso é diferente tanto em Cinema, Aspirinas e Urubus quanto em O Céu de Suely, filmes de personagens que se movem e se inquietam por ainda acreditarem em possibilidades de transformação. São filmes em que se vislumbra maior crença no mundo, em que a imagem não pretende dar conta do conjunto nem oferecer soluções, mas abrir caminhos, fazer irromper da cena desejos que são potentes. No filme de Aïnouz, Hermila parte em um ônibus, continuando seu movimento. Em Gomes, os personagens também prosseguem caminhadas, em busca de constituir os próprios destinos. Johann parte de trem em direção à Amazônia, Ranulpho assume a caminhonete e segue viagem. Não há certezas, mas indicação de que a busca prossegue, de que as vidas foram deslocadas e se puseram em devir. O foco que tanto Gomes quanto Aïnouz dão às particularidades, ao privado, não é menos político ou menos utópico que a estética cinemanovista. Há, pelo contrário, um 13 | Fev 2013 | vol 2 |
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tensionamento do político em jogo aí, daquilo que se pode propor como gesto estéticopolítico. Pois há micropolíticas, contidas nas formas utilizadas pelos indivíduos em sua relação com o mundo, em suas decisões de vida, de ocupação de espaços e de enunciação. Cineastas como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Ruy Guerra já se encaminhavam, nos anos 1960, para a problematização da idéia de um só povo. Passavam ao que Deleuze (2007) pontua como a falta do povo, a impossibilidade de dirigir-se a algo já dado e encontrado pronto na sociedade. “Se o povo falta, já não há consciência, evolução, revolução, é o próprio esquema da reversão que se revela impossível. Não haverá mais conquista de poder pelo proletariado, ou por um povo unido e unificado” (2007, p.262). A transição para essa concepção, reconhecerá Deleuze, era lenta e envolvia embates dos realizadores com as próprias visões de mundo. A questão era formulada pelo cinema moderno, o problema e a fratura eram explicitados. O cinema contemporâneo, nas posturas de filmes como Cinema, Aspirinas e Urubus e O Céu de Suely, torna-se, então, um “cinema de minorias”, consciente de que há vários povos, que não devem ser unidos, “pois o povo só existe enquanto minoria, por isso ele falta. É nas minorias que o assunto privado é, imediatamente, político” (Deleuze, 2007, p.262). O devir minoritário, que já era formulado em Fabiano, ganha nova força em Ranulpho e Johann, em sua perambulação e em sua fabulação. “A única história que sei contar é a minha” – é o que Ranulpho responde a Johann, quando solicitado a contar uma história. Nessa impossibilidade de dar conta de um universo amplo, está o reconhecimento da força do devir minoritário. O monólogo de Ranulpho, com olhar que confronta a câmera, será aí momento de invenção de um povo, na história contada sobre a trajetória de um nordestino (o próprio contador da história ou não) que vai ao Centro-Sul do país e depara-se com preconceitos e estereótipos. Mais adiante, ele dirá a Johann que nunca foi ao Rio de Janeiro, nunca saiu do sertão. Mas a questão que importa já não é mais a verdade dos acontecimentos que se passaram ou não ao personagem, pois o falso também tem potência, já destruído qualquer modelo de verdade, retomando Deleuze. O que o cinema deve apreender não é a identidade de uma personagem, real ou fictícia, através de seus aspectos objetivos e subjetivos. É o devir da personagem real quando ela própria se põe a “ficcionar”, quando entra em “flagrante delito de
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criar lendas”, e assim contribuir para a invenção de seu povo. A personagem não é separável de um antes e de um depois, mas que ela reúne na passagem de um estado a outro. Ela própria se torna um outro, quando se põe a fabular sem nunca ser fictícia. (DELEUZE, 2007, p.183)
Ranulpho fabula. Dessa história que ele conta, ele retira forças para afirmar-se, no retorno, ou na ida pela primeira vez, ao Rio de Janeiro, para resistir à vergonha e à infâmia. Johann também resiste, sobretudo à morte que é a guerra, e no devir da estrada tenta encontrar vida. Os dois irão fabular juntos quando, embriagados, concebem a situação hipotética de um encontro dos dois na guerra, em lados contrários e, portanto, em confronto que implicaria a morte de um pelo outro. Com espingardas imaginadas, granadas fictícias, eles brincam, fingem, jogam com o imponderável dos acontecimentos. Na cena, o que está em questão é novamente uma resistência à destruição que põe em conflito os indivíduos, pois a imagem do encontro entre Johann e Ranulpho suscita crença nas possibilidades do mundo. As conversas na estrada, os contatos de mundos e o trânsito pelo sertão ganham nova força no filme de fabulação de Gomes, que encontra em Ranulpho e Johann seus “intercessores”, no conceito de Deleuze: O autor dá um passo no rumo de suas personagens, mas as personagens dão um passo rumo ao autor: duplo devir. A fabulação não é um mito impessoal, mas também não é ficção pessoal: é uma palavra em ato, um ato de fala pelo qual a personagem nunca pára de atravessar a fronteira que separa seu assunto privado da política, e produz, ela própria, enunciados coletivos. (DELEUZE, 2007, p.264)
Nesse movimento de intercessão, a postura cinematográfica de Cinema, Aspirinas e Urubus atravessa dimensões de vivência individuais, e isso não implica perda de potência política – o gesto utópico e, mais ainda, fabulador, é questão de relevo na obra. Não se está mais em pauta a construção de um projeto nacional, dirigido a um povo suposto, mas a busca por inventar esse povo na própria imagem, pelo movimento que relaciona o gesto artístico do autor com os atos de fala e as posturas dos corpos dos personagens na cena fílmica. O encontro com o sertão em trânsito é menos um desvendamento de um Brasil profundo e pitoresco que um esquadrinhamento de espaços e tempos para inventar mundos possíveis.
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O mito desbravador e um olhar externo sobre o Brasil Choque de culturas. No encontro operado entre os mundos de Johann e Ranulpho, há também a dimensão de um contato entre práticas e valores culturais diferentes. Em plena década de 1940, não há dois mundos que poderiam ser mais contrastantes que a Alemanha industrial – a qual se prepara para a guerra – e o sertão do nordeste brasileiro. Duas realidades que ora divergem, ora se completam, mas que pouco a pouco se definem em meio ao processo do encontro. De um lado, há o avanço tecnológico e a possibilidade de ascensão material, mas também há a violência bélica e a degradação de valores. Do outro, o atraso, a precariedade social a que está sujeita a população, mas também há a natureza pura, o diálogo simples e as relações humanas. São características múltiplas que nascem no acompanhamento dos personagens, com impressões vinculadas às próprias disposições dos corpos no mundo, ao lugar onde esses seres habitam. Sendo assim, não parece à toa que Gomes tenha escolhido como primeira imagem de seu filme a luz branca que ocupa a tela em sua totalidade, impedindo a visualização de qualquer outra coisa. É a luz do sol, a luz dura que castiga a terra e marca de forma incisiva a vida daquelas pessoas, luz que compõe o cenário natural pelo qual Johann vai perambular. Mas não apenas isso. O estourado inicial da imagem ajuda a construir uma idéia daquilo que é novo e, portanto, estranho aos olhos. É uma luz que não apenas é forte, mas justamente por ser forte – e diferente –, acentua muito bem a diferença de mundos, o contraste de costumes e das formas de pensar. É a luz do desconhecido, do exótico, do distante, ao que Johann a partir desse momento está sujeito. É a luz da diversidade humana. Os primeiros momentos do filme acompanham Johann em sua busca pela cidade de Triunfo. Ele dirige sozinho seu caminhão ao som do rádio local. Suas ações são vagas, como se tateasse um percurso adequado ou coerente para seguir; como se construísse seu próprio caminho em meio ao sertão. Consulta mapas, pede orientação de pessoas que vê na estrada. Avança de forma cada vez mais profunda na terra. Johann não conhece bem o lugar que explora, fica claro que sua relação com esse espaço vai sendo construída aos poucos, movida por um desejo de estar em movimento. É nesse momento que a cena em que se depara com uma porteira tem grande potência. Para seguir em frente, é necessário que 16 | Fev 2013 | vol 2 |
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Johann desça do caminhão, abra a porteira e volte a dirigir. A porteira, então, é mais um elemento que Johann precisa ultrapassar para alcançar Triunfo. Nesse momento, a câmera se mantém sempre próxima do personagem, uma aproximação que adentra na própria diegese do filme. Assim, o ambiente que se constrói aos nossos olhos assemelha-se ao que Johann vê: uma aparência de homogeneidade nos aspectos físicos e geográficos, que será problematizada pelo próprio painel humano composto pelo filme. Há cactos, estradas de terra e o sol quente, pouco importa para que lado se olhe. Johann toma banho em meio ao sertão sem qualquer pudor ou preocupação de estar sendo visto. Não há vínculos ainda com o local, não há relações estabelecidas de contato. As pessoas parecem se apresentar a Johann sempre da mesma maneira, simplesmente estão ali, inseridas naquele lugar, prontas para pegar uma carona ou tirar uma dúvida. Elas surgem, num primeiro momento, de forma brusca e uniforme, como o próprio desconhecido. Mesmo a entrada de Ranulpho na trama nasce assim, sem maiores preparações. Se os nordestinos – e num contexto maior, os brasileiros – apresentam-se como um povo culturalmente diferente ao que Johann está acostumado, o contrário também pode ser dito. O alemão, a começar pela sua aparência e sotaque, destaca-se dos habitantes locais. Não raramente, recebe olhares de curiosidade e admiração, frutos de uma sociedade que não está acostumada à presença natural de pessoas oriundas de outras terras. Não é à toa que, depois de Johann ter negociado a venda de suas aspirinas para um empresário local, este exclama: “eu quero brindar a proeza desse alemão autêntico que veio lá do outro lado do mundo pra trazer o futuro pra nossa cidade”. Pouco importa que posição ocupava Johann em sua própria terra. O simples fato de ser alemão já significa bastante aos olhos do empresário. Bem por isso Ranulpho retruca: “Tá todo mundo admirado com o moço. Parece até que ninguém nunca viu um estrangeiro antes. Ê, povinho besta”. Essa relação do brasileiro com aquele que vem de fora é analisada por Xavier (2000), quando o autor discute o cinema brasileiro nos anos 90. Ao citar O Que É Isso, Companheiro? (Bruno Barreto, 1997) e Como nascem os anjos (Murilo Salles, 1996), Xavier destaca a posição do estrangeiro (norte-americano) nos dois filmes em questão como os detentores da razão e do bom senso: 17 | Fev 2013 | vol 2 |
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O Gabeira imaginário do filme e o embaixador definem uma relação que consolida a imagem diferenciada de ambos diante dos outros, confirmando a vítima como a figura mais serena do episódio, espécie de voz da razão que aconselha, dá palpites certos e compreende melhor o que se passa. [...] Nos dois filmes, trata-se de um americano lúcido, exemplo de civilidade, em situação de cárcere, a observar compreensivamente brasileiros nada serenos se ameaçando e se matando. (XAVIER, 2000, p. 118)
É nesse processo de encontro que Johann estabelece de vez sua posição como estrangeiro. É ele quem possui o aparato tecnológico, as novidades de quem vem de fora, um exemplo particular de um contexto muito mais amplo de dependência tecnológica do Brasil para com outros países. O alemão dirige um caminhão, traz consigo películas cinematográficas, projetores, aspirinas... é certa idéia civilizatória sendo levada ao interior do nordeste. São possibilidades de avanço e progresso sendo introduzidas pelas ações de Johann. Mas não sem um preço. O alemão está ali para vender seus produtos, para convencer as pessoas de que a aspirina é completamente necessária às suas vidas. Não é difícil estabelecer uma ligação entre as atitudes de Johann e a prática do escambo, muito comum nos primeiros anos de colonização. Ainda que não se possa conectar de vez as duas práticas – principalmente pelo caráter exploratório dos anos 1500 e pelas motivações distintas em ambas as situações –, o fato é que ao longo de Cinema, Aspirinas e Urubus ocorre uma série de “trocas de mercadorias”, que se realizam tanto no campo dos produtos materiais como também no âmbito do conhecimento e da abstração. Talvez o maior exemplo dessa troca seja o uso do dispositivo cinematográfico para vender aos habitantes locais o produto da aspirina. O fascínio causado pela presença de uma projeção de imagem em movimento, algo nunca visto antes pela maioria dessas pessoas, é tamanho que muitas delas se dispõem a dar seu dinheiro não apenas pela aspirina, mas também para poder vislumbrar novamente a projeção cinematográfica. Johann sabe bem que a presença do cinema naquelas vilas causaria fascinação, tal como causou a exibição de A chegada do trem à estação, dos irmãos Lumière, na Paris de 1895. A diferença é que, em Cinema, Aspirinas e Urubus, o cinema já existia há quase cinqüenta anos. Da mesma forma, Ranulpho aprende pouco a pouco a operar a máquina cinematográfica ou a dirigir o caminhão de Johann, conhecimentos que nascem graças ao 18 | Fev 2013 | vol 2 |
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contato com o estrangeiro – e esse conhecimento é passado apenas para Ranulpho porque ele de fato conquistou a afeição pessoal do alemão; o restante da população continua em posição de consumir, de dar e receber e de ingerir o cinema e a aspirina. E há também a comida enlatada que Johann compartilha com Ranulpho. Prática, a comida surge como mais um elemento industrial desconhecido pelos nordestinos. Entretanto, diferentemente do cinema, o produto não encanta nem traz o fascínio a Ranulpho, muito pelo contrário. O nordestino claramente despreza o gosto da comida préfeita, do produto que está incrustado de artificialismo. É por isso que pede “comida de verdade”, ou seja, “comida de panela”. Nesse caso, há a valorização daquilo que é da terra, que é natural e primitivo. Johann é apresentado então à carne de bode, ao arroz e à farofa. A troca se inverte e é o alemão quem se põe a conhecer especiarias novas, a provar o gosto da natureza e das relações que surgem daí. Esse distanciamento dos sertanejos para com as novidades civilizatórias é visto de modo ambíguo. Para Ranulpho e o empresário, por exemplo, esse distanciamento desdobrase em um equivalente atraso. Aquele espaço encontra-se deslocado do mundo, seja em temos de tempo – quantos anos o cinema demorou para chegar ali? –, seja em termos de espaço – segundo Ranulpho, “ali nem guerra chega”. Já Johann consegue visualizar nesse quadro uma certa permanência da pureza, dos relações singelas que as pessoas estabelecem entre si e entre o ambiente, afinal de contas, “pelo menos aqui não caem bombas do céu”, diz ele. Essa tensionamento entre o espaço primitivo – sertão – e o espaço civilizado – cidade urbana, Europa – já é recorrente na cinematografia brasileira. Luiz Zanin Oricchio discorre sobre essa relação quando analisa Central do Brasil. A cidade é o lugar da violência, no qual uma pessoa pode ser friamente assassinada sob o olhar indiferente de todos. É onde crianças são raptadas e servem para o comércio de órgãos, talvez a forma mais hedionda do potencial criminal humano. O campo – o sertão, no caso – funciona como exata contrapartida e seria uma espécie de reserva moral da nação. É o lugar da pobreza digna, da solidariedade, dos valores profundos que se foram perdendo em outras partes, mas lá estão preservados, como num sítio arqueológico da ética nacional. (ORICCHIO, 2003, pp. 137-138)
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O sertão, então, passa a ser construído como uma esfera dos bons costumes, um lugar idealizado não pela falta de atribuições negativas, mas pela maneira de lidar com elas. Não é à toa, por exemplo, que a descrição feita por Oricchio se assemelha bastante com o que Montaigne falou sobre a sociedade indígena na sua época, ainda no século XVI. Esses povos não me parecem, pois, merecer o qualitativo de selvagens somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua simplicidade primitiva. As leis da natureza, não ainda pervertidas pela imisção dos nossos, regem-nos até agora e mantiveram-se tão puras que lamento por vezes não as tenha o nosso mundo conhecido antes, quando havia homens capazes de apreciá-las. (MONTAIGNE, 1972, p. 102)
A conotação do “bom selvagem” passa a ser importante para que se possa entender o encanto que Johann tem sobre esta terra. Entretanto, não é assim que o próprio Ranulpho se vê na maior parte do tempo. Na cena em que estão comendo carne de bode, por exemplo, Ranulpho comenta: “Aqui no Brasil, nem guerra chega”. O senhor nordestino que servia a comida comenta: “Chega não. Nosso Brasil é bom demais. Calmo.” Pelos mesmos motivos, o sertão consegue ser visto tanto com desdém como por admiração. Enxergamos em nossa terra as piores mazelas da humanidade, mas nos orgulhamos de como, de alguma forma, lidamos com elas. Oricchio, ao analisar o filme Eu, tu, eles (Andrucha Waddington, 2000), discute bem essa construção da visão que o brasileiro tem sobre ele mesmo. Às vezes somos uma nação que não gosta de si mesma, com complexo de viralata, um Narciso às avessas que cospe na própria imagem, como dizia Nelson Rodrigues. Em outras, vivemos no alto-astral desmotivado, na alegria obrigatória, na mitologia de país moreno e malemolente. Essa ciclotimia, essa mudança súbita de humor, que vai de um extremo a outro sem meio-termo, da euforia à depressão, talvez seja o que melhor nos caracteriza. (ORICCHIO, 2003, p. 140)
Nesse sentido, Cinema, Aspirinas e Urubus tenta expor uma fratura: internamente, na visão de personagens da própria narrativa fílmica, há diferentes Brasis, diferentes sertões. Por um lado, o interior nordestino seria o lugar vítima no que diz respeito a diversas questões sociais e culturais: não acompanha os avanços, é marcado por atraso, 20 | Fev 2013 | vol 2 |
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miséria, fome, desigualdade social; e o Brasil é um país periférico, à margem das grandes discussões e acontecimentos, onde “nem a guerra chega”. Mas há também a visão de que somos um país sincero, intenso, acolhedor, apreciado por quem vem de fora, entusiasmado com suas próprias conquistas futebolistas e carnavalescas, onde o povo é muito mais valorizado do que as estruturas sociais e políticas que deveriam servi-lo. O filme de Marcelo Gomes dialoga com tudo isso, não apenas com os extremos, mas com tudo o que está entre eles. Resta-nos apenas observar e tentar refletir sobre como uma região tão complexa e indefinível do globo pôde ser espaço de conciliação entre duas utopias individuais, que já não focam tanto a dimensão coletiva; enfim, todo o percurso feito por esses personagens diziam mais a eles mesmos que aos grupos a que poderiam pertencer. A necessidade de se manter em movimento, menos do que a negação da qualidade de um lugar, impulsionam o filme. “Atribuímos um certo romance aos lugares remotos” (Carl Sagan, 1994, p.2). São os romances particulares de Johann e Ranulpho que os movem, que são responsáveis por todos esses processos de encontros e descobertas. As migrações fazem parte de uma utopia individual que os fazem circular pelo sertão, rumo a terras desconhecidas, ou espaços previamente conhecidos em suas imaginações. Considerações finais Perambuladores, fabuladores, desbravadores, Johann, Ranulpho e o próprio diretor vivem um sertão em trânsito, uma passagem dos mundos que se tocam, desejos de outra vida. Gomes dá-se personagens intercessores para extrair das inquietações individuais a fabulação de um povo por vir. O motivo do encontro, organizado em torno da conversa, é dispositivo que desencadeia uma sociabilização, modulada como uma mundaneidade, uma relação estabelecida seja no aspecto cultural, seja na dimensão das formas de enunciar o que se apresenta no percurso. São os atos de fala em Cinema, Aspirinas e Urubus invenções de lugares para os sujeitos, formas de operar o sensível e mover a vida. É essa uma forma de as imagens instaurarem deslocamentos no cinema, pôr universos em devir. O sertão de Gomes é uma invenção estética, que passa por um mergulho nas intensidades do espaço, das histórias e das vontades dos seres. Inventar é 21 | Fev 2013 | vol 2 |
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reconhecer que o mundo não está dado, que para articular o dizível e o visível na imagem, é preciso formular a questão do olhar como um problema estético, um olhar que, na observação cuidadosa, não reproduz o real, mas o coloca num estado de flutuação e incertezas. Pois a postura cinematográfica do filme não é a de quem postula caminhos, estabelece o que é certo ou errado nas ações dos personagens ou o que eles devem fazer a cada momento: Cinema, Aspirinas e Urubus enuncia, sem pregar, desbrava, sem dominar, acompanha vidas, sem submetê-las a esquemas. Nesse processo de inventar o sertão, o filme de Marcelo Gomes tem a sua volta filmes contemporâneos e uma tradição cinematográfica que ecoa sem determinar a estrutura geral da obra. A modernidade estética de filmes do Cinema Novo, como Vidas Secas, abre possibilidades para abordagens, para formas de aproximar-se do sertanejo e de seu universo. A perambulação do filme de Nelson Pereira dos Santos surge mediada pela contemporaneidade do olhar, já mais detido nas potências de fala das minorias, da resistência contida no devir minoritário. É uma postura que passa por modulações e elaborações na produção recente. Junto a O Céu de Suely, sobretudo, Cinema, Aspirinas e Urubus busca trabalhar os desconfortos dos sujeitos, as relações do indivíduo com o mundo, ligando o assunto privado à política, já não mais no sentido macro, mas na dimensão menor, das potências do indivíduo desejante. Das imagens que movem. Dos silêncios que carregam afetos. Dos mundos que se tocam. Dos personagens que fabulam. Nosso percurso para pensar Cinema, Aspirinas e Urubus busca articular as potências que partem do filme, ele mesmo o fio condutor de nosso pensamento. As inflexões que desenvolvemos, as curvas que fizemos, os retornos que tomamos têm como linha originária o trabalho realizado por Marcelo Gomes. Acreditamos na importância metodológica desse percurso, que se dobra e desdobra, sempre na busca pelas modulações que emanam do objeto em estudo. Operar conceitualmente a obra fílmica é mais do que buscar respostas, mas tentar estabelecer ligações, propor novas perguntas, debater-se com o próprio objeto analisado. Assim, pois, o filme pode aparecer, não instrumentalizado pela análise, mas trazido para uma conversa. Aqui a proposta é pensar com o filme, caminhar pelos passos do realizador na constituição de um pensamento
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com imagens, na pesquisa estética de um olhar, um ouvir, um afetar e ser afetado pelas imagens do sertão. Referências bibliográficas BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema: ensaios sobre o cinema brasileiro. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2007 DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo (Cinema 2). São Paulo: Brasiliense, 2007 GOMES, Marcelo. Entrevista ao site Omelete. Disponível em: http://www.omelete.com.br/cinema/omelete-entrevista-o-diretor-de-cinema-aspirinas-eurubus/ NAGIB, Lúcia. A utopia no cinema brasileiro: matrizes, nostalgias, distopias. São Paulo: Cosac Naify, 2006 MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1980 ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo, SP: Estação Liberdade, 2003 XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro nos anos 90. Entrevista à revista Praga – estudos marxistas, São Paulo, Editora Hucitec, n° 9, junho de 2000, p. 97-138. _______________. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac Naify, 2007
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