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OAlgarve de Costa-a-Costa: D. Sancho I, Rei de Silves

PAULO LARCHER

Pé-ante-pé, percorro o extenso caminho de ronda da alcáçova do castelo de Silves, ou deveria dizer Xelb, como era designada pelos seus antigos senhores árabes?

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Perante mim e ao redor cercam-me as muralhas poderosas e, de quando em vez, o aparecimento de uma maciça torre quadrangular vem lembrar-me que aquela construção imponente era uma terrível máquina de guerra. A guerra, a arquitetura e as artes bélicas que a sustêm são cultura que é, como podem ver, o título geral deste conjunto de crónicas. Era nossa intenção ir respondendo a essa questão, de crónica para crónica, mês após mês. Tal não aconteceu, todavia, como o desejámos. De facto, definir o que é a “Cultura” não é uma tarefa fácil, dado que esta implica abordagens distintas para interesses multidisciplinares. Podemos, porém, afirmar que a “Cultura” engloba os traços distintivos que caracterizam uma sociedade, as suas artes, os seus modos de vida, os seus sistemas de valores, tradições e crenças. Resumindo e simplificando, podemos dizer, como Kuhn (2010), que a Cultura “é o esforço paciente - de séculos, de gerações antes de nós e depois de nós - para dar ao mundo esta espécie de carne que é a nossa alma.” 1 Que alma é esta? Que eu tento vislumbrar neste passeio lento pelo adarve do Castelo.

A forma poligonal da mais bela fortaleza portuguesa ergue-se no alto de uma colina escarpada. “Este castelo é obra árabe. Está uma ruína mas formosa”, não sou eu que o digo, é José Saramago, que continua: “E a pedra vermelha, já encontrada em S. Bartolomeu de Messines, dá-

-lhe, contraditoriamente, um ar de construção recente, como se fosse feito de argila ainda húmida, de barro acabado de amassar. Belas, ainda mais, devem ser estas pedras quando as molha a chuva.” 2

De facto o Castelo é maravilhosamente belo, e mágico e trágico. Nele se amou, se rezou, se festejou, mas também se sofreu e se matou.

Mas já lá iremos, a uma história que, de verdadeira, humedece a alguns os olhos de compaixão e saudade por um tempo perdido para sempre.

A cidade de Silves é campo de uma antiga história: fenícios, gregos, cartaginenses, romanos, visigodos, foram-na ocupando ao ritmo dos seus interesses comerciais, ou político-militares. Todos, à sua maneira, deverão ter marcado a sua alma, embora os muçulmanos com os seus quinhentos anos de permanência a partir do séc. VIII tenham sido os mais influentes.

No período do séc. IX ao séc. XII, torna-se o mais importante centro do Al-Andaluz, com o desenvolvimento de indústrias, agricultura de regadio, pesca, exploração mineira e também artes e ciência.

Nela viveram filósofos e poetas, como Ibn Qasi, Ibn Ammar ou o rei Al-Mutamid.

Reis lutaram pela sua posse. Houve vitórias, seguidas de alegria bruta, de saques e carnificinas, e foram-se alternando os atores desta trágica narrativa: mouros contra mouros, cristãos contra mouros e até cristãos contra cristãos.

Em 1189/90, o nosso Rei Dom Sancho I apoderou-se dessa magnífica presa mas foi dela desapossado logo no ano seguinte por Almançor - o grande guerreiro mouro. Isso não impediu que Dom Sancho ostentasse de forma efémera o título de Rei de Portugal e de Silves, nem que o nosso Leopoldo de Almeida lhe tenha dedicado uma estátua em que o Rei, de espada desembainhada, monta guarda à porta do Castelo conquistado e logo perdido. Nesse conjunto admirável existe algo de mais notável ainda: as cisternas, onde se guardavam as reservas de água que podiam alimentar a população da praça durante um ano. A cisterna principal foi muito apreciada pelo nosso Nobel que na sua “Viagem” a comenta do seguinte modo: “O viajante admira a enorme cisterna que está no meio da esplanada, com a sua abóbada sustentada por quatro ordens de colunas como uma mesquita. E vai ver, surpreendido pelo engenho da invenção, as pequenas construções subterrâneas do que os árabes faziam silos.” Os árabes foram guerreiros, poetas, cientistas; o conceito do zero, por exemplo, essencial para o desenvolvimento da matemática foi inventado por eles. As tecnologias do dia-a-dia que utilizavam no cultivo e irrigação dos campos foram na sua generalidade herdadas pelos povos cristãos que os precederam. A receção dos grandes filósofos gregos pela Europa medieval foi mediada pelas traduções a partir do latim e do grego produzidas por este extraordinário povo.

Pretender esgotar os sucessos dos árabes no Al-Andaluz e do brilho imenso da sua civilização dificilmente caberia numa biblioteca e muito menos numa crónica, pelo que falarei apenas dos seus poetas. Exagero meu: limitar-me-ei a falar de um único poeta, aliás, de dois. O primeiro, Ibn‘Ammâr, nasce em Silves (ou teria sido em Estômbar?), em 1031, de família camponesa muito humilde mas, segundo a tradição, a sua inteligência, beleza física e dotes de poeta catapultaram-no para altos cargos políticos os quais, hélas, lhe determinaram igualmente uma trágica morte, em 1084.

O segundo, Al-Mu’ Tamid

Ibn‘Abbâd, filho de rei, nasce em Beja em 1040, dotado para as artes bélicas e também ele extraordinário poeta. Em 1095 morre em Marrocos, numa prisão em Agmat, que se tornou desde então roteiro de peregrinação.3 No entretanto, em plena adolescência, é feito vizir de Silves pelo rei seu pai, após o ter auxiliado numa dura e prolongada guerra de cerco e de conquista. Na rica e poderosa cidade de Silves, Al-Mu’ Tamid, rodeia-se de uma corte digna das Mil e Uma Noites. Corte formada por homens de ciência, por filósofos e poetas, mas também por aqueles mais dados aos prazeres sensuais da vida, encorajados pelos perfumes que pairam no ar tépido do Al-Garb.

Ninguém assume com certeza a violenta paixão que uniu o jovem principezinho ao interesseiro e pérfido Ibn’Ammâr. O que sabemos, através dos poemas de um e de outro, é que Silves na memória de cada um se assemelha a um Jardim Celestial, diríamos nós, cristãos, um Paraíso Perdido.

“Saúda, por mim, Abú Bakr,/ os queridos lugares de Silves/ e diz-me se deles a saudade/ é tão grande quanto a minha./ Saúda o Palácio dos Balcões,/ da parte de quem nunca o esqueceu, morada de leões e de gazelas/ salas e sombras onde eu/ doce refúgio encontrava […]”

Suplica AlMu’ Tamid do seu longínquo desterro em Agmat.

E, na mesma toada, responde Ibn’Ammâr: “Como falar de ti, Silves,/ sem que uma lágrima me caia /como a do enamorado enternecido […] sem um suspiro de ansiedade?”

Recordam uma vida que passou mas deixou essa saudade imensa, porque não há nada que se firme mais numa memória que um amor retribuído:“Minh”alma quer-te com paixão/ ainda que haja nisso uma tortura/ e alegre vai na ânsia da procura/ que estranho ser difícil nossa ligação/ se os desejos d”ambos concordaram!/ que quereria mais meu coração,/ ao desejoso te buscar em vão,/ se meus olhos te viram e amaram?” Diz um e o outro parece responder: “Allâh bem sabe que não há razão/ de vir aqui senão para te ver/ que o vigia não nos possa achar/ se o nosso reencontro acontecer/ pra os teus lábios doces eu provar.”

Lá do triste futuro, a ferida que supura em versos a dor de uma ausência: “Assaltou-me a memória dos amores ardentes/ como se me consumisse um lume violento/ no mais profundo deste meu coração.”

E depois, num rompante o amante revolta-se: “Qoh noites minhas de antigamente!/ Que me importavam censuras dos críticos!/ Nada me desviava do amor mais louco.”

Que alma é esta, então, que tento perceber nesta cidade? Como posso definir as suas atuais linhas de força?: Urbanismo? Turismo?

História? Lendas? Saudades cristalizadas em Poesia? Que resultou afinal do “esforço paciente - de séculos, de gerações antes de nós e depois de nós - para dar ao mundo esta espécie de carne?” No lento passeio pelo caminho de ronda, procuro uma resposta e agora, mirando do alto as supostas ruínas do Palácio das Varandas - onde reza a lenda se encontravam e amavam os dois poetas - descubro que não tenho qualquer resposta. Irei buscando até finalmente a encontrar e, até lá, limito-me a afirmar a Silves, a partir do seu belo e enigmático castelo, com uma convicção semelhante à do poeta: “Nada me move, meu príncipe/ Senão a tua vontade.”

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