História da Igreja Introdução Estudar a história da Igreja tem pelo menos quatro objetivos: 1) Ter conhecimento e uma visão panorâmica dos fatos que nos ajuda a entender melhor onde estamos e o que somos; 2) Conhecer os principais acontecimentos da cristandade; 3) Ter em mãos uma bibliografia aprofundada do que há de mais importante e útil dos dois lados do Atlântico (Oriente e Ocidente), fornecendo ao estudante a oportunidade de aprofundar seus conhecimentos; 4) Propor uma reflexão sobre a história por um seguimento não muito explorado no mundo atual. Devemos destacar a mútua influência dos eventos maiores da história e a narrativa da peregrinação do povo cristão. Qual é a utilidade do estudo da história da igreja na construção da fé cristã? Em primeiro lugar, o estudo da história da igreja nos ajuda a compreender quão rica é a fé cristã, que se manifesta em diversas ênfases, em tempos, povos e locais diferentes. Em segundo lugar, é um guia para evitar os erros e equívocos do passado, na medida em que aprendermos que a “ortodoxia” está onde há submissão às Escrituras Sagradas e “acordo com os Pais e os Concílios”. Em terceiro lugar, o estudo dessa disciplina infunde entusiasmo para que a proclamação do Evangelho seja renovada e reformada no tempo presente. Em quinto lugar, é um importante auxílio nos estudos da teologia bíblica, sistemática e pastoral, pois não se deve ler as Escrituras como se elas nunca tivessem sido lidas antes. Nesse sentido, precisamos ter em mente que “é na Igreja que a Bíblia é lida; é pela Igreja que a Bíblia é ouvida. Isso significa que ao ler a Bíblia nós deveríamos ouvir, também, o que a Igreja tem até agora lido e ouvido da Bíblia. Deve ser guardado na memória que, como membro da Igreja, não se deve falar sem antes ter ouvido.” 1 Pois, de acordo com o que o poeta medieval Pedro de Blois (c.1135/c.1203) afirmou, somos anões espirituais e, quando estudamos os escritos dos gigantes do passado, nos colocamos sobre seus ombros, vendo mais longe. Em sexto lugar, o estudo da história da Igreja nos ajuda a analisar nossas tradições, pois, como Jaroslav Pelikan (1923/2006) escreveu, “a tradição é a fé viva dos que morreram; o tradicionalismo é a fé morta dos que estão vivos”. Logo, tudo em que se crê – e o modo como se vive na Igreja e na sociedade – deve ser testado não apenas pelo tempo, mas especialmente pelas Sagradas Escrituras, a Palavra de Deus, que tem primazia sobre os cristãos. Por fim, ao estudarmos a história da cristandade, vivenciamos a unidade do corpo de Cristo através dos séculos. Somos desafiados a entender, ensinar e lutar por aquilo que é o âmago da fé cristã, a mensagem bíblica sobre ruína, redenção e regeneração. Meditar nessas doutrinas nos leva a entender que o senso de unidade e diversidade no corpo de Cristo deveria estender-se a outras Igrejas que confessam e praticam a verdadeira fé evangélica, não como participantes de uma competição religiosa, mas como congregações companheiras na Igreja Universal do Nosso Senhor – por isso, podemos afirmar que, “em coisas essenciais, unidade; nas não essenciais, liberdade; em todas as coisas, caridade.”2 Esse deve ser o nosso espírito no estudo da História da Igreja. 1 Karl Barth, Credo. São Paulo: Fonte Editora, 2005, p.231/232 2 Esta frase é atribuída alternadamente a Peter Meiderlin, Gregor Franke e Richard Baxter,
respectivamente, luterano, calvinista e anglicano. History of the Ecumenical Movement, 1517/1948. Londres: SPCK, 1954, p.82, 146, apud Páraic Réamon, “A Reformed Vision of Unity, em Reformed World 47/2 (1997), p.91.
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“Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.” (Mateus 16:18). Que Deus nos abençoe!
Parte I A Fé Cristã na Antiguidade Clássica 1. A Expansão do Império Romano Ao tempo em que são narrados os fatos descritos no Novo Testamento, Roma se solidificava como o maior império que já existiu, composto de cultura grega e poder romano. Os romanos já haviam conquistado grande parte do Oriente e todo o Ocidente durante os dois últimos séculos antes da era cristã. E, tendo vencido uma longa e sangrenta guerra civil, que ocorreu por cuasa do assassinato do ditador Júlio César (100 a.C./44d.C.), Otávio Augusto (63 a.C/14 d.C.), o primeiro imperador romano, reorganizou o estado, sedimentou as fronteiras, espalhou estradas – que cobriam quase 85 mil quilômetros – e construções por toda a extensão do império, de quase cinco mil quilômetros quadrados (divididos hoje entre trinta nações). Com isso, assegurou um período inédito de estabilidade em toda a região ao redor do mar Mediterrâneo. Nessa época, o mundo romano era dividido em trinta e seis províncias. Onze eram senatoriais, administradas por um procônsul, e vinte e cinco eram imperiais, onde ficavam estacionadas as legiões, governadas por um legado pretor ( legado Augusti pro
praetore). Entre estas últimas províncias, dez (como Judeia e Egito) eram dirigidas por um procurador (procurator ou praefectus). Nessa estrutura, a cidade era a menor unidade administrativa e a área rural ao redor fazia parte dela. Nessa conjuntura, um elemento importante era o exército romano, que então foi reorganizado. Era composto de vinte e oito legiões e mais um grande número de formações auxiliares ( auxilia) de infantaria leve, arqueiros e cavalaria, todos agregados de tropas da Gália, Germânia, Ilíria, Galácia, Síria e Egito. Em meados do século II, o exército tinha aproximadamente 300 mil homens, defendendo um império de cerca de 60 milhões de pessoas. No ano 66, começou uma revolta na província da Judéia. Vespasiano, um experiente comandante militar que havia participado da invasão das ilhas britânicas em 43, foi enviado para esmagar a rebelião. Ele conquistou a região da Galileia, mas sua ação foi interrompida pela guerra civil, em 69. Seu filho, Tito, substituiu-o, reconquistando grande parte da Judeia. Finalmente, em 70, após longo sitio, Jerusalém foi tomada pelo exército romano, seu templo, destruído, e a revolta, sufocada. Um pequeno grupo 2
de judeus resistiu na fortaleza de Massada até 73, quando a guarnição cometeu suicídio para evitar a captura.
2. O Crescimento da Igreja Cristã De acordo com as narrativas do Novo Testamento, terminada a trajetória de Jesus Cristo na terra (nascimento, vida, morte, ressurreição e ascensão), a Igreja Cristã cresceu rapidamente, após o derramamento do Espírito Santo sobre os apóstolos e discípulos na festa judaica do Pentecostes. Por intermédio da pregação apostólica e dos discípulos, a fé cristã partiu da cidade de Jerusalém, na província romana da Judeia, e em pouco tempo alcançou a Síria, a Ásia Menor, a Macedônia, a Grécia e a Itália. Desse modo, até aproximadamente a metade do século I, espalhou-se a mensagem de que Deus enviou a Jesus Cristo, o qual morreu pela redenção 3 de pecadores, ressuscitou, sendo assim exaltado como o rei messiânico, e voltará em triunfo e glória escatológica – de acordo com as Escrituras. Linha do tempo 64 a.C. 9 d.C. 26 d.C. 26-30 d.C. 31-33 d.C. 33-34 34-37 ou 38 d.C. 37-46 d.C. 43 d.C. 44 d.C. 46-48 d.C. 48 d.C. 48 d.C. 49 d.C. 50-52 d.C. 51-52 d.C. 53-57 d.C.
Evangelhos e Atos dos Apóstolos Nascimento de Cristo; morte de Herodes, o Grande (Mt.2/Lc.2). Primeira Páscoa em Jerusalém (Lc.2). Batismo de Jesus Cristo (Mt.3/Mc.1/Lc.3). Ministério, morte e ressurreição; Pentecostes, crescimento inicial da Igreja dentro e fora de Jerusalém (Mt.4/Mc.1/Lc.4/Jo.1/At.12). Acontecimentos especiais que fortalecem o crescimento da Igreja e causam preocupação nas autoridades judaicas. Saulo é convertido na estrada para Damasco (At.9/Gl.1). Saulo em Damasco e na Arábia; ele volta a Jerusalém pela 1ª vez como cristão em 37. Saulo enviado para Tarso e sua região natal. Pedro desenvolve um notável ministério em Lida, Jope e Cesareia (At.11). Tiago (irmão de João) é morto e Pedro aprisionado. Profecia de Ágabo em Antioquia; morre Herodes Agripa Fome na Judeia. Primeira viagem missionária de Paulo, Barnabé e Marcos (At.1314); Saulo passa a usar o nome grego-romano (Paulo). Segunda visita de Paulo a Jerusalém (com Barnabé Gl.2) para trazer auxilio aos que passavam fome naquela cidade (At.11:29,30). Cláudio expulsa os judeus de Roma; Priscila e Áquila vão para Corinto; concílio de Jerusalém (At.15). Segunda viagem missionária de Paulo acompanhado de Silas ((At.15). Incidente com Gálio em Corinto (At.18). Terceira viagem missionária de Paulo (At.18).
3 Libertação, resgate, salvação.
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57-59 d.C. 59-60 d.C. 60-62 d.C.
Paulo sob custódia de Félix e, depois, de Festo em Cesareia (At.22). Paulo vai para Roma (At.27). Paulo em prisão domiciliar em Roma (At.28).
O cristianismo surgiu num ambiente de pluralismo religioso pagão, em meio a pressões de movimentos sincretistas e heréticos, que colocaram em risco a unidade da igreja. Essa também foi uma época de severas perseguições movidas pelo Império Romano. E esse rápido crescimento ocorreu, em grande parte, porque a fé cristão tinha um elevado padrão ético – que incluía auxílio aos menos favorecidos, a proibição do infanticídio, a condenação do aborto, ao divórcio, ao incesto, à infidelidade conjugal e à poligamia – derivado de um conjunto de doutrinas, uma ortodoxia pela qual se podia lutar, enquanto o paganismo, desprovido de dogmas, era fragmentado em uma multidão confusa de divindades e de cultos que somente com muito esforço mereciam o nome de religião. Esta era uma mistura de culto ao imperador – que era estimulada ao mesmo tempo que o império se tornava uma ditadura militar, mudando constantemente de mãos em meio a conflitos sangrentos – e uma pluralidade de ritos e mitos locais. Já o mundo judaico era marcado por sua tensão sobre a forma como a identidade judaica deveria ser interpretada. Como Daniel Williams destaca, Hipólito de Roma (170-235) o mais importante escritor da igreja na capital do império em sua época, “mantinha uma lista de vívios e declarações que desqualificariam alguém para o batismo”. Desse modo, somente cristão batizados partilhavam a ceia do Senhor e confessavam o credo da igreja. Como Williams lembra, “em um grande número de igrejas, os não batizados, mesmo catecúmenos em preparação para o batismo”, eram convidados a se retirar “antes que a igreja celebrasse a Eucaristia e confessasse o credo”. Portanto, o convite do evangelho era apresentado com salvaguardas quanto à identidade, integridade, singularidade e exclusividade da mensagem cristã. Esta era a forma que os membros das primeiras comunidades cristãs encontraram para identificar-se com os problemas de seu mundo sem que, com isso, perdessem sua identidade, reencontrada nas celebrações litúrgicas, com ênfase na Palavra de Deus e na celebração da ceia do Senhor.
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O conteúdo da pregação na Igreja Primitiva O testamento pode ser resumido aos seguintes temas: 1. As promessas feitas por Deus começam a se cumprir, inaugurando a era messiânica, como predita pelos profetas do Antigo Testamento; 2. Isso ocorreu por meio do nascimento, ministério, morte e ressurreição de Jesus Cristo; 3. Em virtude da ressurreição, Jesus foi exaltado à direita de Deus, como o cabeça messiânico do novo Israel; 4. O Espírito Santo na igreja é o sinal de que o poder e a glória de Cristo estão presentes; 5. a era messiânica atingirá rapidamente sua consumação na vinda de Cristo; 6. Um apelo à fé, ao arrependimento e ao batismo, e a oferta do perdão e do Espírito Santo, com a promessa de salvação, ou seja, da vida na era vindoura para aqueles que entraram para a comunidade dos eleitos. Este esboço resume a proclamação (Kerygma) evangelista da cristandade primitiva e se distingue do ensino (didaquê), que trata das instruções éticas e da organização eclesiástica. Estes dois aspectos combinados formam a tradição ( paradosis) apostólica. A tradição é um resumo da mensagem contida nas Escrituras, ainda que distintas destas, ou seja, as Escrituras são a fonte derradeira da tradição, que é um sumário flexível no anunciado, mas fixo no conteúdo, e que estabelece o verdadeiro sentido da mensagem apostólica, sem ambiguidade alguma.
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3. Os Pais Apostólicos Nos primórdios da igreja cristã, os responsáveis por conduzi-la na ortodoxia ficaram conhecidos como Pais da Igreja. Essa expressão se refere ao escritor, pastor ou teólogo da antiguidade cristã considerado pela tradição como testemunho autorizado de fé. Eram homens ouvidos e respeitados por toda cristandade como pais. Havia três qualificações para alguém ser considerado Pai da Igreja: ortodoxia doutrinária, santidade de vida e antiguidade. Um primeiro grupo entre os Pais da Igreja tornou-se conhecido como Pais Apostólicos. Estes, como a geração que sucedeu os apóstolos no segundo século, prepararam e legaram uma série de textos. Entre esses escritos, podemos mencionar os seguintes: 1 – A Primeira Carta aos Coríntios, de Clemente Romano (c.96); 2 – A Segunda Carta aos Coríntios, erroneamente atribuída a Clemente Romano, é considerada um dos primeiros escritos homiléticos de que se tem registro; 3 – As cartas de Inácio de Antioquia (35-110) às igrejas de Éfeso, Magnésia, Trália, Roma, Filadélfia, Esmirna e a seu amigo Policarpo – Inácio foi o primeiro a fazer distinção entre bispos e presbíteros e a usar a expressão “Igreja Católica”; 4 – A Carta aos Filipenses de Policarpo de Esmirna (c.69-155), discípulo do apóstolo João e mártir. O relato de sua morte, escrito por testemunhas oculares, é o documento mais antigo desse gênero; 5 – O Pastor de Hermas (c.150), texto no estilo apocalíptico e 6 – A Epístola de Barnabé (c.130). De forma geral, esses escritos são intensamente pastorais, com poucas preocupações teológicas. Seus temas mais comuns são: necessidade de comunhão e cuidado entre os cristãos, cuidado com as facções e heresias e, principalmente, fidelidade em meio a perseguição. Nesses textos, observa-se grande influência dos escritos dos apóstolos Paulo e João. Nessa época, outro texto famoso, usado na catequese, é o chamado Didaquê ou
Ensino dos Doze Apóstolos (c.150). Esse documento trata dos seguintes assuntos: santificação; ensino sobre distinguir um falso profeta; os dois caminhos – um para a vida, outro para a morte; instruções para o culto cristão; menção às práticas do jejum, da ceia do Senhor, das orações e do batismo – em relação a este último, recomenda6
se que seja feito em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, por imersão ou aspersão, de acordo com o local. O livro termina com uma série de exortações sobre como provar se mestres e profetas itinerantes são cristãos verdadeiros. Nota-se grande influência do evangelho de Mateus.
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4. As Perseguições no Império Romano e Além das Fronteiras Desde o começo, a fé cristã foi severamente perseguida. Já no livro de Atos temos relatos das perseguições movidas pelos governantes do Império Romano ao cristianismo. No total, houve dez perseguições oficiais, isto é, perseguições patrocinadas pelo estado romano. As principais foram promovidas pelo imperador Nero, entre 64 e 68. Nesse período, houve a primeira perseguição oficial, na qual, segundo a tradição, Pedro e Paulo foram martirizados. A segunda, igualmente severa, foi suscitada pelo imperador Domiciano, entre 95 e 96. Nessa época, João foi exilado na ilha de Patmos. Segundo a tradição cristã, todos os apóstolos morreram de forma violenta ao final deste período. Mateus sofreu martírio pela espada na Etiópia. Marcos morreu em Alexandria, no Egito, depois de ser arrastado pelas ruas da cidade. Lucas foi enforcado, na Grécia. Tiago foi decapitado em Jerusalém. Tiago, o Menor, foi lançado de um pináculo do templo em Jerusalém e depois espancado até morrer. Filipe foi enforcado numa coluna na Frígia, a oeste da Anatólia (atual Turquia). Bartolomeu foi esfolado vivo em Albanópolis (Atual Derbent, na província russa de Daguestão). André foi preso a uma cruz, e dali pregou aos seus perseguidores até morrer, na cidade de Pátras, na Grécia. Matias foi primeiro apedrejado e depois decapitado em Jerusalém. Barnabé foi apedrejado até a morte pelos judeus, em Salônica, na Grécia. Paulo doi decapitado e Pedro foi crucificado de cabeça para baixo na capital do império, em Roma, por ordem do imperador Nero. João foi posto num caldeirão de óleo fervente, mas escapou da morte e foi deportado para a ilha grega de Patmos, no tempo do imperador Domiciano. Os imperadores Diocleciano e Galério lideraram a última perseguição oficial. Os prédios das igrejas e as cópias das Escrituras foram destruídos, e os cristãos, em vez de ser mortos, eram torturados com barbaridade até negarem a Jesus como único Senhor. Em virtude das hostilidades entre o Império Romano e o Império Sassânida, os cristãos acabaram por ser perseguidos pelos persas a partir de 337, suspeitos de traição por uma suposta ligação com Roma cada vez mais cristianizada. Em 341, o rei zoroastrino Sapor II (309-379) ordenou o massacre de todos os cristãos da Pérsia, e durante essa perseguição mil e quinhentos cristãos foram martirizados. Nos séculos III e IV, muitos 8
bárbaros godos foram levados a fé cristã, mas o rei gótico Atanarico (m.381) começou a persegui-los por supor que eram espiões a serviço do Império Romano do Oriente. Levou muitos deles à morte e expulsou outros, que atravessaram o rio Danúbio, estabelecendo-se na província romana da Mésia. O mais conhecido mártir godo foi Saba (334-372), chamado de Basílio de Cesareia de “atleta de Cristo” e “mártir pela Verdade”. Em 155, uma perseguição severa foi movida pelo Imperador Antonino Pio, e nessa época, Policarpo, bispo de Esmirna, foi morto. O relato do seu martírio é comovente. Quando o leram diante do procônsul da região, este tratou de persuadi-lo, dizendo-lhe que pensasse em sua avançada idade e que adorasse o imperador. Policarpo respondeu: “Vivi oitenta e seis anos servindo-lhe, e nenhum mal me fez. Como poderia eu maldizer ao meu rei, que me salvou?”. Assim seguiu o diálogo. Quando o procônsul lhe pediu que convencesse a multidão, Policarpo lhe respondeu que, se ele quisesse, trataria de persuadi-la, mas não considerava essa turba apaixonada digna de escutar sua defesa. Quando, por fim, o procônsul o ameaçou, primeiro com as feras e depois com a fogueira, onde seria queimado vivo, Policarpo respondeu que o fogo que o procônsul podia acender duraria somente um momento, e logo se apagaria, mas o castigo eterno nunca se apagaria. Então, o governador ordenou que Policarpo fosse queimado vivo, e toda a população saiu a apanhar ramos para preparar a fogueira. Quando o fogo estava a ponto de ser aceso, Policarpo, já atado e pronto para ser queimado, elevou os olhos para o céu e orou em voz alta: “Senhor, Deus TodoPoderoso, Pai de teu Filho amado e bendito, Jesus Cristo, pelo qual recebemos o conhecimento do teu nome, Deus dos anjos, dos poderes, de toda a criação e de toda a geração de justos que vivem na tua presença! Eu te bendigo por me teres julgado digno deste dia e desta hora, de tomar parte entre os mártires, e do cálice de teu Cristo, para a ressurreição da vida eterna da alma e do corpo, na incorruptibilidade do Espírito Santo. Com eles, possa eu hoje ser admitido à tua presença como sacrifício agradável, como tu preparaste e manifestaste de antemão, e como realizaste, ó Deus sem mentira e veraz. Por isso e por todas as outras coisas, eu te louvo, te benigno, te glorifico, pelo eterno celestial sacerdote Jesus Cristo, teu Filho amado, pelo qual seja dada glória a ti, com ele o Espírito, agora e pelos séculos futuros. Amém”. O fogo foi aceso, mas, como vento soprava as chamas para o outro lado e prolongava sua agonia, um soldado pôs fim ao seu sofrimento com um golpe de espada. As Perseguições no Império Romano Imperador Anos Acontecimentos Tibério 14/37
Mártires Estevão, c.35 9
Caio
37/41
Cláudio Nero
41/54 54/68
Vespasiano Tito Domiciano
69/79 79/81 81/96
Nerva Trajano
96/98 98/117
Adriano
117/138
Antonino, Pio
138/161
Marco Aurélio
161/180
177-Perseguição em Lyon e Vienne, na Gália.
Cômodo
180/193
Sétimo Severo
193/211
Vários cristãos condenados às minas na Sardenha foram soltos. 202-206-Decretou que era proibido tornar-se judeu ou cristão; perseguição no Egito e em Cartago.
Vários imperadores Décio
206/250
Paz, a igreja cresceu.
249/251
Valeriano II
253/259
250-251-Primeira perseguição em todo Império; Décio queria uma religião no Império, portanto requereu que todos tivessem um certificado de sacrifício (libelli) ao imperador; problemas dos caídos (lapsi) e de seu regresso na igreja. Em 253 diminuiu a perseguição deciana; mas em 257 proibiu reuniões cristãs nos cemitérios, suas propriedades foram confiscadas e, em 258, ordenou a execução de clérigos.
49-Expulsão dos judeus de Roma. 64-68-Perseguição ocorreu apenas em Roma e adjacências, depois do grande incêndio de Roma, em 64.
95-96-Centrada em Roma e na Ásia Menor. Os cristãos foram perseguidos por se recusarem a prestar culto ao imperador. Exílio de João na ilha de Patmos e exílio de Domitila. João e Domitila libertados c.112-Carta de Plinio, o Moço, na província de Bitínia: não procurar os cristãos nem aceitar acusações anônimas. Seguiu a politica de Trajano e não aceitava acusações anônimas contra os cristãos.
Tiago, o Grande, c.42 Tiago, o Justo, 62 Pedro e Paulo
Clemente Romano, 96
Inácio de Antioquia, c.112
Policarpo de Esmirna, 155 Justino de Roma, 165 Fotino de Lyon, 177 Bladina, 177
Irineu de Lião, 202 Leônidas de Alexandria, 202 Perpétua e Felicitas, 203
Fabiano de Roma, 250
Sisto II de Roma, 258 Cipriano de Cartago, 258 Orígenes, 258
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Vários imperadores
260/300
Diocleciano
2804/30 5
Galério
305/311
Constantino e Licínio
312/337
Paz; a igreja cresceu; o imperador Galieno (260-269) revogou os decretos contra os cristãos, restaurou seus cemitérios e proibiu os maus tratos. 303-305-Perseguição final em todo o Império e continuada por Galério; um edito ordenou a destruição dos edifícios onde as igrejas se reuniam e das cópias das Escrituras; os cristãos que entregavam as Escrituras eram chamados “traidores” (traditores). Perseguição até a proclamação do Edito de Tolerância. 313-Edito de Milão; liberdade de culto assegurada à igreja cristã em todo o Império.
Mauricio e a Legião Tebana, 286
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5. Movimentos Heréticos e Cismáticos No início da igreja, a principal heresia a ameaçá-la foi o Gnosticismo. Como movimento sincretista, o Gnosticismo se caracterizava por professar uma combinação de todas as principais ideias religiosas de sua época. Os principais líderes desse movimento foram Cerinto (c.100), Basílides (130-150) e Valentino (c.140-c.160), e o ensino desses homens se espalhou pela Ásia Menor, Itália, Gália e Egito. No entendimento desse movimento, o ser humano era salvo não apenas por um suposto conhecimento ( gnose) iluminado, mas também pelo aprendizado de várias fórmulas mágicas, por meio das quais poderia ter acesso ao mundo superior. O gnosticismo, então, pretendia transformar o cristianismo numa especulação mitológica, subvertendo todas as principais declarações de fé cristãs. Portanto, o gnosticismo ou rejeitava ou reinterpretava o conteúdo básico cristão, combatendo a crença cristã da criação divina: segundo os gnósticos, o criador não era o Deus supremo, e a própria criação era considerada vil e má. Eles também negavam a existência terrena de Jesus Cristo, afirmando que o Espírito Santo era uma energia espiritual que viera de algum deus inferior. Também negavam a ressurreição do corpo, baseados na ideia de que tudo o que é físico ou material é mau e não espiritual. No campo ético, oscilavam entre um legalismo radical e um estilo de vida libertino e grosseiro, a igreja prontamente enfrentou essa heresia, asseverando que o verdadeiro evangelho está na leitura do sentido natural das palavras das Escrituras. Nessa época houve duas tentativas de renovação da igreja que muito a ameaçaram. A primeira foi liderada por um homem chamado Marcião (c.85-160), natural de Sinope, no Ponto, e filho de bispo cristã. Ele nutria duas fortes antipatias: contra o mundo natural e contra o judaísmo – na época da Segunda Guerra Judaica (132-136). Ele esteve em Roma e foi excluído da igreja em 144. A partir daí, Marcião começou uma série de viagens estabelecendo comunidades marcionitas. Sua concepção de Deus aproximou-o dos gnósticos. A segunda tentativa de renovação foi conhecida como montanhismo, por causa do homem que a liderava: Montano (m.c.175), auxiliados por duas profetisas, Prisca e Maximila, na Ásia Menor, entre 134 e 177. Os montanistas afirmavam que tinham 12
chegado à “era do Paráclito”, pois no entendimento deles, o Espírito Santo finalmente chegara e flava mediante seus profetas. A tarefa desses profetas era preparar o caminho de Jesus para sua segunda vinda e para a instauração de um milênio terrestre literal. Eles também entendiam que estavam vivendo “os últimos dias” – então, sua mensagem era de que a igreja estaria nos últimos dias e precisava preparar-se para a vindo do reino justo de Jesus. Eles entendiam que a tarefa principal da igreja era viver uma vida moral rigorosa e buscar o martírio. A seita se espalhou pela Ásia Menos e pelo norte da África, abandonando alguns dos seus excessos proféticos e centrando-se numa vida rigorosa e moral. O maniqueísmo originou-se no território do Império Sassânico persa, quando o gnosticismo perdeu influência no mundo romano, espalhou-se pela Europa, norte da África e Ásia no final do século III. Algumas vezes classificado como heresia cristã, na realidade foi uma religião totalmente independente. O principal mestre do movimento era Mani (c.216-277). Partindo do entendimento de que Deus tinha falado de forma fragmentada por meio de Platão, Moisés, Buda e Jesus, Mani ensinava que por meio de si mesmo se daria a revelação plena. Ele almejava uma religião sincrética universal, unindo elementos do zoroastrismo, budismo e cristianismo, e afirmando que os apóstolos corromperam os ensinos de Jesus, que eram finalmente transmitidos de forma pura por Mani. Os maniqueístas defendiam uma visão dualista da criação, acentuando a tensão entre luz e trevas. Nesse caso, Cristo seria o representante da luz, procedente de Deus, e Satanás das trevas, identificado como matéria. Eram extremamente ascetas e sua compreensão de salvação era muito parecida com a ensinada no gnosticismo, no que diz respeito à vinculação da salvação ao conhecimento secreto dos passos necessários para escapar das trevas em direção à luz. O movimento era caracterizado por rígida estrutura hierárquica, dividida entre os “sacerdotes”, os “mestres”, os “eleitos” e os “ouvintes”. Mani foi crucificado na Pérsia, e os seus adeptos, rotulados como agentes estrangeiros, foram perseguidos no Império Romano, especialmente pelos imperadores Diocleciano e Teodósio I.
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6. A Defesa da Fé Um segundo grupo de Pais da Igreja foram apologistas e polemistas que serviram a igreja no segundo e terceiro séculos. Esses homens defenderam a fé de ataques procedentes dos judeus, dos pagãos e das heresias. Escrita em Atenas, em meados do século II, a Carta a Diogneto foi um dos primeiros textos apologéticos. Os argumentos dos Apologistas Argumentos judaicos contra o Respostas dos Apologistas cristianismo O cristianismo é um desvio do judaísmo. A lei judaica é temporária por definição e encaminhada para a nova aliança. A divindade de Cristo vai de encontro à O AT predisse os sofrimentos e também unidade de Deus. a glorificação do Messias. Argumentos dos Apologistas contra o judaísmo . As profecias do AT foram cumpridas em Cristo. . Os tipos do AT apontam para Cristo. . A destruição de Jerusalém confirma a visão de que Deus condenou o judaísmo e apoiou o cristianismo. Argumento pagão vs. Cristianismo Respostas dos Apologistas A doutrina da ressurreição é absurda. Os evangelhos mencionam testemunhas oculares. O efeito sobre os discípulos foi profundo. Existe analogia nos ciclos da natureza (as estações do ano). Há contradições nas Escrituras. Harmonias com o Diatessaron, de Taciano, esclarecem as contradições. O ateísmo conta com ampla aceitação. Mesmo Platão acreditava num deus invisível. O cristianismo é adoração de um A condenação de Jesus violou a lei. criminoso. O cristianismo é uma novidade. O cristianismo vem sendo preparado desde a eternidade. Moisés antecedeu os filósofos pagãos. O cristianismo evidencia falta de Os cristãos obedecem a todas as leis, patriotismo. desde que não violem a consciência. Os cristãos praticam incesto e Observe-se o estilo de vida dos cristãos, canibalismo. sobretudo o exemplo dos mártires. O cristianismo leva à destruição da As calamidades naturais de fato sociedade. representam o juízo divino contra a idolatria. Argumentos dos Apologistas contra o paganismo . Os filósofos pagãos cometeram plágio, roubando suas melhores ideias de Moisés e de outros profetas. 14
. O politeísmo é um absurdo filosófico e uma decadência moral. . Os filósofos pagãos contradizem uns aos outros e até a si próprios. Argumentos dos Apologistas a favor do cristianismo . Toda verdade encontrada nos filósofos pagãos prenuncia o cristianismo, sendo por ele coligida. . Os milagres operados por Cristo, pelos apóstolos e por outros cristãos comprovam a verdade do cristianismo. . A difusão do cristianismo, a despeito dos obstáculos avassaladores, comprova sua verdade. . Somente o cristianismo é capaz de suprir as necessidades mais profundas do ser humano. Os principais apologistas foram: - Justino de Roma (c.100-165) Fundou a Escola Filosófica Cristã na capital do Império, onde foi martirizado. - Irineu de Lião (c.130-c.195) Foi discípulo de Policarpo de Esmirna e bispo da Gália. - Tertuliano de Cartago (c.160-c.220) Ainda que não seja considerado um Pai da Igreja, é conhecido como o primeiro grande teólogo latino.
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7. O Relacionamento entre a teologia e a Filosofia Nos escritos de Tertuliano, Orígenes e Irineu, podemos ver três perspectivas diferentes da relação do cristianismo com a filosofia e as implicações dessa relação para a hermenêutica e o fazer teológico. Orígenes usava a filosofia como ferramenta apologética, Irineu subordinava a filosofia à teologia bíblica, e Tertuliano, de forma inconsistente, rejeitava o uso da filosofia ao fazer teologia. Nas palavras de Justo Gonzáles, “é provavelmente Irineu quem mais se aproxima do espirito original do evangelho. Infelizmente, com o correr dos séculos, a teologia de Irineu ficou relativamente esquecida, enquanto a influência dos outros dois tipos de teologia (legalista e especulista) se fez sentir cada vez mais. Três lugares Três teólogos Interesse Categoria principal Orientação filosófica Precursores
Três tipos de Teologia Cartago Alexandria Tertuliano Orígenes Moral Metafísico Lei Verdade Estoica Platônica Clemente de Roma Hermas
Filo Justino Policarpo
Criação
Legislador Juiz Completa
Pecado
Transgredir a lei
Inefável Transcendente Espiritual Dupla Não contemplar
Pecado original
Herança
Individual
Problema
Divida moral
Ignorância Confusão
Deus Uno
Ásia Menor e Síria Irineu Pastoral História Nenhuma O NT II Epístola de Clemente Teófilo de Alexandria Pastor Pai Começada Contínua Desobediência por antecipação Em um todos pecaram Sujeição ao maligno
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8. A Formação do Cânon do Novo Testamento Ao enfrentar as heresias gnósticas, marcionita e montanista, a igreja se viu às voltas com o problema do cânon. O primeiro Pai da Igreja a falar de forma inequívoca de um “Novo” Testamento em paralelo com o Antigo Testamento foi Irineu de Lião. Entretanto, Clemente, Inácio, Policarpo, Justino, Tertuliano, Orígenes, entre outros, já usavam o Novo Testamento, tratando-o como inspirado do mesmo modo que o Antigo Testamento. Após a época de Irineu, houve um reconhecimento universal do caráter plenamente canônico dos escritos especificamente cristãos, popularmente conhecidos a partir dessa época como “Novo Testamento”. A partir dos desafios lançados por gnósticos, marcionitas e montanistas, buscou-se com grande interesse ao Novo Testamento o número exato de livros e os livros certos. Em primeiro lugar, o critério que veio a estabelecer o cânon, em ultima instância, foi a apostolicidade. Se não ficasse provado que um livro era de autoria de um apóstolo ou que, pelo menos, tinha o suporte da autoridade de um apóstolo, ele era tecnicamente rejeitado, por mais que fosse edificante ou popular entre os fiéis. Entre eles, estavam o “Didaquê” e o “Pastor de Hermas.” Os outros dois critérios eram a autoridade reconhecida pela Igreja Primitiva e a harmonia com os livros a respeito dos quais não havia dúvidas. Durante muito tempo, então, a epístola aos Hebreus esteve suspeita no Ocidente, e, em geral, no quarto e no quinto séculos o livro de Apocalipse estava excluído do cânon em várias localidades. A igreja ocidental manteve absoluto silêncio sobre Tiago até a segunda metade do quarto século; e, em certos círculos, as epístolas de 2Pedro, 2 e 3João e Judas, que estavam ausentes de quase todas as primeiras listas, continuaram sendo tratadas como duvidosas por algum tempo. O cânon do Antigo Testamento, assim como está impresso, sem os livros apócrifos, já existia na época de Jesus. Contudo, ninguém pode indicar quando esse cânon teria sido adotado. A mesma coisa vale para o cânon do Novo Testamento. Em muitos livros, pode-se ler que ele foi aprovado definitivamente apenas no concílio de Cartago em 397. Portanto, a igreja guardou os escritos canônicos por causa do seu valor patente, da sua origem apostólica e da sua coerência interna.
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9. O Credo dos Apóstolos Segundo J.N.D. Kelly, a expressão latina credo (creio) é “uma fórmula fixa que sumaria os artigos essenciais da religião cristã e que que goza de sanção eclesiástica”, um afirmação dos pontos essenciais da fé cristã, com os quais se espera que todos os cristãos concordem. Há indicações claras de que, já no Novo Testamento, aparecem fragmentos de credos, estabelecidos no contexto da pregação da igreja, em sua adoração e em sua defesa contra o paganismo. Mas a forma integral do que conhecemos hoje como Credo os Apóstolos teve sua origem em torno dos séculos VII e VIII, na Gália. Entretanto, partes dele se acham nos escritos de alguns Pais da Igreja do século III e IV, e eram chamados de “regra de fé” ou “tradição”. Uma das mais antigas exposições do credo foi escrita por Rufino de Aquileia (c.345-410), que se baseou no “antigo credo romano”, usado na liturgia batismal na Itália.
“Creio em Deus, Pai Todo-Poderoso, criador do céu e da terra. E em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos; ressuscitou ao terceiro dia; subiu aos céus; está sentado á direita de Deus, Pai Todo-Poderoso, donde há de vir a julgar os vivos e os mortos. Creio no Espírito Santo, na santa Igreja católica, na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne e na vida eterna. Amém.” Os cristãos tinham consciência de quão fútil era argumentar com os hereges tendo como base somente as Escrituras, cujo significado eles podiam distorcer – e isso faziam com frequência. Então, os cristãos apelavam à “regra de fé”, que tinha sido preservada intacta na igreja desde os dias dos apóstolos. Portanto, em submissão às Escrituras, o Credo afirma o caráter trino de Deus, a encarnação de nosso Senhor Jesus Cristo, sua morte, ressurreição e ascensão, a igreja como criação do Espírito Santo, o perdão dos pecados, a ressurreição do corpo e a vida eterna. Servia como confissão de fé para candidatos ao batismo; esboço para ensino catequético; refutação das heresias, distinguindo claramente a fé verdadeira de desvios; guia do conteúdo da pregação; confirmação da fé no culto público.
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10. O Colapso e a Recuperação do Império Romano No fim do século II, o imperador se tornou o líder incontestável do Estado, algumas vezes com o apoio do senado, mas nem sempre. Este ainda podia fazer algumas leis, mas elas precisavam ser aprovadas pelo imperador, que passou a ditar a maioria das leis. Havia três classes de cidadãos romanos ao fim da república e no começo do império: patrícios (patricius), cavaleiros (equites) e plebeus (plebeii). Os patrícios eram descendentes das antigas famílias de Roma, proprietários de terras. Eles viviam em casas espaçosas na cidade ou em grandes propriedades rurais. Os cavaleiros desempenhavam uma série de funções subalternas importantes na estrutura imperial. Os plebeus, camponeses, trabalhadores e comerciantes eram livres, mas precisavam trabalhar muito. A população era dividida em cidadãos, que deveriam pertencer a uma família romana e ter nascido em Roma ou em território romano; e não cidadãos, que ram nascidos nas províncias ou de pais escravos. Uma boa parcela da população do império vivia em cidades grandes e populosas, mas muitos viviam no campo, trabalhando nas casas rurais que pertenciam aos patrícios. Os escravos faziam os trabalhos degradantes e difíceis, e a maior parte deles era prisioneira de guerra, levando uma vida extremamente dura. Ser germânico, isto é, ser alto e louro, era sinal de inferioridade. Por sua vez, os escravos gregos quase sempre eram letrados e, portanto, valorizados como médicos, mestres e secretários de senadores ou mesmo imperadores. Alguns eram bem tratados e às vezes obtinham a liberdade, passando a ser libertos ( libertus). Com o assassinato de Cômodo, o império mergulhou num período de grande instabilidade, período em que governaram vários imperadores, alguns deles impostos pela guarda pretoriana. Sétimo Severo (145/211), Caracala (188/217), Heliogábalo (203/222) e Alexandre Severo (208/235) se sucederam no trono, instaurando uma ditadura militar. Nessa época, foi concedida a cidadania romana a todos os súditos do império, aumentando a arrecadação dos impostos. Também foi tempo de vitórias militares sobre os persas sassânicos e estabilização das fronteiras, em meio a uma série de batalhas com os bárbaros pictos que pressionavam as fronteiras britânicas. Alexandre Severo foi um dos primeiros a tratar com benevolência os cristãos. Após seu assassinato, seguiu-se um longo período de anarquia militar, com vários imperadores sucedendo-se rapidamente no trono. As províncias romanas da Gália, Britânia, parte da 19
Hispânia e parte da Germânia se separaram do Império Romano, assim como o reino de Palmira, na Síria. Além disso, onze imperadores foram assassinados entre 235 e 284. Nessa época, segundo a tradição, Filipe, o Árabe (204/249) teria sido o primeiro imperador a ser batizado como cristão, assumindo o império após o Ano dos Seis Imperadores (238). Pouco depois, na batalha de Edessa (260), as forças romanas foram completamente destruídas pelos persas liderados pelo rei Sapor I (c.215/c.270), e o imperador Valeriano (253/260) foi capturado, morrendo no cativeiro. Quem salvou o Império Romano da desintegração foi o imperador Aureliano (214/275), hábil soldado que, em meio a várias guerras, conseguiu reunificar o império, vencendo as tribos bárbaras dos vândalos, jutungos, sármatas, alamanos e godos nas fronteiras e reconquistando as províncias ocidentais e de Palmira. A cidade de Roma foi fortificada com uma muralha em seu reinado.
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11. Os Pais Gregos Um terceiro grupo entre os Pais da Igreja é composto daqueles que se dedicaram a escrever os grandes tratados teológicos que guiaram a igreja. Eles podem ser divididos entre os que escreveram em grego, também conhecidos como Pais Gregos, e os que escreveram em latim, também conhecidos como Pais Latinos. Dos principais escritores gregos do período, podem ser mencionados: . Clemente de Alexandria (c.150/c.215) Foi um dos primeiros a unir a doutrina cristã à filosofia, desenvolvendo um tipo de platonismo cristão, e considerando o cristianismo a verdadeira filosofia que completa a filosofia grega. . Orígenes (c.185/253) Foi o maior erudito da igreja antiga e também professor nas escolas catequéticas de Alexandria e Cesareia, na Palestina. Orígenes dedicou bastante tempo ao estudo do Antigo Testamento, mas foi ele quem popularizou o método alegórico de interpretação das Escrituras. . Atanásio de Alexandria (299/373) Foi bispo na capital do Egito e um dos principais defensores das doutrinas da divindade de Jesus e do dogma da trindade, em sua luta contra o arianismo. Ele estava convicto de que o eterno Filho de Deus, Jesus Cristo, “tornou-se aquilo que somos, para que pudesse fazer de nós aquilo que ele é.” . Eusébio de Cesareia (260/339) Foi bispo na Palestina, primeiro historiador da igreja, autor da primeira história eclesiástica e firme apoiador do imperador Constantino. . João Crisóstomo (344/407) Foi patriarca de Constantinopla, considerado o mais importante pregador da igreja primitiva. Ele proferiu cerca de 900 homilias, e seu modelo de pregação era a exposição bíblica sequencial.
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12. Os Pais da Capadócia Há ainda um grupo de Pais Gregos que foram conhecidos como Pais da Capadócia. Esses clérigos viveram como monges em meados do século IV, na região da Turquia, e foram influenciados por Macrina (330/379), que forneceu um local para seus irmãos estudarem e meditarem. Dois irmãos de Macrina e um bom amigo de ambos se tornaram bispos e legaram importantes contribuições para a definição da Trindade como estabelecida no I Concílio de Constantinopla (381). . BASÍLIO DE CESAREIA (329/379) Bispo de Cesareia da Capadócia, opôs-se ao arianismo e ao apolinarismo – que afirmava que Jesus tinha um corpo humano, mas uma mente divina. Basílio definiu os termos da doutrina da Trindade: Deus existe como uma essência em três pessoas. . GREGÓRIA DE NISSA (334/395) Era irmão de Basílio e arcebispo de Sebaste. Mesmo sendo casado, promoveu o ascetismo. Opôs-se ao apolinarismo, ao macedonismo (que negava a divindade do Espírito Santo) e ao arianismo. Definiu a igualdade das pessoas da Trindade em termos de atividade: os que fazem as mesmas coisas têm a mesma natureza. . GREGÓRIO DE NAZIANZO (329/389) Era amigo dos dois irmãos e foi bispo de Sassina e, depois, Constantinopla. Era poeta destacado. Opôs-se ao arianismo, definindo o relacionamento entre a Trindade em termos de origem: o Pai é sem origem, o Filho é eternamente gerado, o Espírito Santo procede do Pai.
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13. Os Pais Latinos Foram os Pais da Igreja que, ao longo dos primeiros sete séculos da História da Igreja, construíram, consolidaram e defenderam a fé, a liturgia e a disciplina cristãs. Os que se destacaram no Ocidente foram: . CIPRIANO DE CARTAGO (C.200/C.257) Bispo na África romana, esteve envolvido nas tentativas de sanar o cisma liderado por Novaciano (c.200/c.257). Os novacianos defendiam que quem tivesse apostatado da fé durante a perseguição de Décio não poderia ser aceito de volta na igreja, mesmo que se arrependesse. Por isso, exigiam o rebatismo para a readmissão na igreja. Foi martirizado na perseguição movida pelo imperador Valeriano II. . Hilário de Poitiers (c.300/368) Bispo de Poitiers, na Gália, envolveu-se nas controvérsias arianas e foi exilado pelo imperador na Frígia, onde entrou em contato com a tradição teológica do Oriente. Ao retornar ao Ocidente, continuou sua luta pela ortodoxia até sua morte. . Ambrósio de Milão (339/397) Filho do governador da Gália, aclamado bispo antes de seu batismo, grande teólogo e pregador, foi instrumental na conversão de Agostinho. Foi um dos principais defensores da independência da igreja frente ao império. . Jerônimo de Strídon (348/420) Nascido na Dalmácia, foi o único Pai da Igreja a ter familiaridade com latim, grego e hebraico, tendo preparado uma das primeiras traduções das Escrituras. Para fazer a melhor tradução possível, foi à Palestina e fundou um mosteiro em Belém, onde viveu durante vinte anos examinando todos os manuscritos bíblicos que conseguiu localizar. Sua tradução para o latim tornou-se conhecida como Vulgata Latina, ou seja, uma tradução escrita na língua de pessoas comuns (vulgus). Embora não tenha sido imediatamente aceita, ela posteriormente se tornou o texto bíblico oficial do cristianismo ocidental. Jerônimo foi também um dos primeiros a tratar da questão do celibato e da virgindade consagrada. . Agostinho de Hipona (354/430) Bispo na província da Numídia, foi o maior de todos os Pais da Igreja latina e se tornou um dos maiores teólogos e filosófos da história. Passou por uma conversão dramática, na qual as orações de sua mãe, Mônica (331/387), foram instrumentais. Sua obra é imensa e abrange quase todos os temas da fé e vivência cristãs, consistindo de diálogos filosóficos, obras apologéticas teológicas e exegéticas, escritos eclesiásticos, cartas e numerosos sermões. . Vicente de Lérins (m.450) Foi monge num mosteiro perto de Marselha, na Gália, e semipelagiano quanto às doutrinas da graça. Estabeleceu o seguinte critério para saber 23
se uma doutrina é verdadeira ou falsa: “Conservemos aquilo que foi crido em todo lugar, em todo o tempo e por todos.”
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14. A Renovação do Império Em meio a uma situação política muito confusa, Diocleciano (244/311) assumiu o império, pondo fim à crise do terceiro século. Ele dividiu o império em Oriente ( pars
Orientis) e Ocidente (pars Occidentis). Em 285, indicou seu colega Maximiniano Galério (260/311 e Constâncio Cloro (250/306) como Césares, coimperadores juniores, formando um colégio imperial. Sob essa tetrarquia, ou “governo de quatro”, cada imperador tinha autoridade sobre um quarto do império, embora fosse um governo conjunto. Nessa época, portanto, Roma deixou de ser formalmente a capital do império. Tendose aposentado voluntariamente em 305, Diocleciano e Maximiano indicaram Galério e Constâncio como Augustos, e Maximino Daia (270/313) e Flávio Severo (m.307) foram elevados à posição de Césares.
15. A Ascenção de Constantino Com a morte de Constâncio Cloro, suas legiões na Britânia proclamaram como “césar” seu filho, Constantino (272/337), em York, Maxêncio (278/312), filho de Maximiano, apoderou-se da Itália e da África do Norte com o apoio da guarda pretoriana, vencendo Severo. Com isso, Galério apontou Licínio (250/325) como “augusto”, e o império viu-se diante de uma nova guerra civil que durou dezoito anos. Em meio a sangrentas batalhas, Constantino restaurou o império de forma surpreendente, não tendo como base a religião pagã, mas o cristianismo. Antes da batalha da Ponte Mílvia, em 312, Constantino teve uma visão de que, se ele se convertesse ao cristianismo, venceria o inimigo Maxêncio. Constantino se converteu, masrcou os estandartes de suas legiões com o labarum, formado pelas duas primeiras letras gregas do nome de Cristo, e e venceu. Em 313, ele e Licínio, que reinava sobre o Oriente, promulgaram o Édito de Milão, na época a capital imperial. Com isso, todas as perseguições aos cristãos no império foram encerradas e a partir de então os cristãos tiveram liberdade de culto. E, depois de vencer Licínio em Cibalis (314) o império provou um tempo de paz. Em 324, a guerra civil recomeçou. Constantino venceu o imperador do Oriente em três batalhas: Adrianópolis, Helesponto e Crisópolis; finalmente, o império foi unificado, e a capital do império passou a ser Constantinopla. Ainda que tenha sido batizado pouco antes de morrer, a partir de sua conversão a Cristo, o imperador passou a ter deveres com o cristianismo: Constantino deu apoio financeiro à igreja, construiu basílicas, e concedeu privilégio ao clero (por exemplo, 25
isenção de impostos), instituiu leis inspiradas pela fé protegendo crianças, escravos, aldeões e prisioneiros, promoveu cristãos a cargos importantes, estabeleceu o domingo como dia de repouso semanal, devolveu os bens confiscados durante a perseguição de Diocleciano e lutou pela unidade da igreja. Não utilizou a fé cristã, mas serviu-a. E essa conversão mudou os rumos da igreja e da história do Ocidente.
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16. Os Concílios de Niceia e Constantinopla Em meio às crises políticas do império, a igreja enfrentou uma série de ataques contra a doutrina do ser de Deus e da pessoa de Cristo. O resultado desses debates foi a formulação bíblica de uma das mais importantes doutrinas cristãs. Uma primeira heresia sobre a Trindade que a igreja enfrentou – muito popular nos dias atuais – foi o ensino Dabélio de Pentápolis (m.215), também conhecida por patripassianismo (monarquianismo modal). Ele propagou a noção de que só existiria uma pessoa divina, Deus o Pai, que se manifestaria nas três formas, Pai, Filho e Espirito Santo. Deus seria uma pessoa que se transformou no transcorrer da história, o que exclui a possibilidade de ele existir eternamente como três pessoas. Outra heresia estava relacionada com Paulo de Samósata (c.200/275), bispo de Antioquia e importante autoridade politica no governo de Zenóbia (240/275), rainha de Palmira. Ele ensinou o adocionismo (monarquinismo dinamista), ou seja, Jesus seria um homem que foi revestido pelo Verbo divino e que por ter sido deificado seria digno de honra, embora não pudesse ser considerado Deus. Com esta heresia, Ário (256/336), presbítero na igreja de Alexandria, ensinava que Cristo era apenas uma criatura, e não o eterno Filho de Deus. Como a igreja respondeu a essas distorções do ser de Deus? Para sanar as divisões que ameaçavam destroçar a igreja, o imperador Constantino convocou o primeiro concílio doutrinal da igreja, realizado na cidade de Neceia, na Ásia Menor, em 325. Cerca de trezentos bispos e quase mil e quinhentos auxiliares reunidos, entre eles Atanásio, elaboraram o Credo de Niceia. Este credo expressa precisamente a doutrina da Trindade contra o arianismo. Óssio de Córdoba (c.257/359), um dos principais conselheiros de Constantino, presidio o concílio. A assembleia afirmou que o Pai e o Filho são da mesma substância e coeternos, declarando que a doutrina da Trindade está ancorada na fé cristã histórica, transmitida desde os apóstolos. Essa posição foi reafirmada por uma revisão do Credo feita no I Concílio de Constantinopla, em 381, que também tratou da pessoa do Espírito Santo. Nesse concílio, a posição de Macedônio (m.360), patriarca de Constantinopla, que negava a divindade do Espírito Santo, foi rejeitada e considerada uma heresia. Ressalta-se ainda que o I Concílio de Niceia não encerrou os debates sobre a pessoa de Cristo. Vários bispos e simpatizantes do arianismo foram banidos do império. Constantino foi sucedido por dois imperadores arianos do império oriental, seu filho
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Constâncio II e Valente, o que trouxe sérios problemas para Óssio, Atanásio, Basílio e outros defensores do dogma trinitário. Deve-se destacar que, a essa época, a classificação “católico” ainda não implicava o reconhecimento de uma supremacia da igreja de Roma, sendo, para todos os efeitos, sinônimo de ortodoxo.
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17. O Declínio do Império Romano Com a morte de Constantino, o império foi dividido entre seus filhos Constantino II (317/340), Constance (325/350) e Constâncio II (317/361), o que gerou novas guerras civis. Constâncio II se tornou o único imperador. Quando ele faleceu, Juliano, o Apóstata (331/363), sobrinho de Constantino, tentou promover o retorno ao antigo paganismo, mas sua morte em batalha contra os persas sassânidas interrompeu o processo. As legiões romanas orientais apontaram um cristão, Joviano (c.332/364), como o novo imperador. Joviano morreu cedo, mas não antes de reverter as políticas de seu antecessor. Ele foi substituído por Valentiniano I (321/375), que gorvenou com seu irmão Valente (328/378). Entretanto, uma derrota humilhante dos exércitos romanos sob o comando de Valente diante dos bárbaros godos liderados por Fritigerno (369/380) em Andranópolis (378), na Tárcia, inaugurou uma nova época de turbulências. Esse período só se encerrou com a vitória de Teodósio I (347/395) sobre os usurpadores ocidentais na batalha do rio Frígido (394), quando o império foi unificado pela última vez. Com isso, toda a relação entre a igreja e o Estado modificou-se. Atribui-se ao imperador a responsabilidade de regular a doutrina, a disciplina e a organização da sociedade cristã, estabelecendo um padrão que duraria até o começo da Idade Média, no Ocidente, e até o fim dela, no Oriente. A riqueza e a pompa passaram a ser vistas com sinal do favor divino, pois a igreja se tornou a igreja dos ricos e poderosos, instaurou-se uma aristocracia clerical, paralela a aristocracia imperial, com o surgimento da divisão entre o clero e o laicato; a igreja começou a imitar os costumes do império não só em sua liturgia, mas também em sua estrutura social, tornando-se cada vez mais episcopal e monárquica; a igreja relegou o retorno de Cristo e do reino a segundo plano, com a ênfase escatológica mudando do pré-milenismo para o amilenismo – essas mudanças exerceram influência sobre o cristão comum.
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18. A Controvérsia sobre a Doutrina da Graça Na época anterior ao Concilio de Niceia, a doutrina da salvação era uma questão ambígua entre os escritos cristãos. A atitude dos Pais Latinos sobre o problema do livre-arbítrio era diferente da atitude dos Pais Gregos. Estes últimos partiam do intelecto, entendendo que a vontade está subordinada a ele e opera por meio dele. Desse mofo, o que o homem pensa poderá fazer. Além disso, consideravam que o homem opera o começo de sua salvação, para, depois, Deus cooperar com a graça. Em contrapartida, para os latinos, a vontade ocupa posição autônoma. Dessa forma, começaria a obra e, depois, o homem cooperaria com sua vontade, ressaltando com veemência a obra da graça, ainda que não exclusiva. Os mestres orientais enfatizaram, então, uma sinergia divina, e os ocidentais uma sinergia humana. Sendo assim, no século V, surge pela primeira vez a controvérsia sobre a doutrina da eleição e da predestinação. Pelágio (350/423) famoso por sua disciplina moral, ao cehgar a Roma, em torno de 400, começou a ensinar os seguintes pontos: Adão foi criado mortal e teria morrido, quer tivesse pecado, quer não; o pecado de Adão contaminou somente a ele, e não a raça humana: as crianças recém-nascidas estão no mesmo estado em que estava Adão antes da queda; a raça humana inteira nem morre por causa da morte de Adão, nem ressuscita pela ressurreição de Cristo; a lei, tanto quanto o evangelho, conduz ao reino dos céus; mesmo antes da vinda de Cristo, houve homens sem pecado. Para Pelágio, não haveria a necessidade de alguma graça especial de Deus, pois esta era algo que estaria presente em todos os lugares e em todo momento. Agostinho se opôs a esses ensinos, e sua resposta foi abrangente: na criação, Adão tinha a capacidade de pecar e a capacidade de não pecar. Contudo, a partir da queda de Adão, a humanidade se tornou totalmente depravada, ou seja, todas as esferas de nossa humanidade – razão, vontade e afetos – tonaram-se escravas do pecado. Como herança maldita, recebida de Adão, a natureza humana passou a ser escrava do pecado e tornou-se sujeita à morte. Como resultado, a humanidade continua tendo livre-arbítrio, mas não mais liberdade – a vontade humana não é mais dona de si mesma. A humanidade livremente escolhe o pecado. Em decorrência disso, o ser humano é incapaz de até mesmo buscar a Deus sem o socorro da graça especial. Assim, somos redimidos somente por causa da eleição livre e incondicional de Deus. Na época, a igreja condenou formalmente o pelagianismo como heresia nos concílios da Cartago (418), de Éfeso (431) e, finalmente, no Segundo Sínodo de Orange (529). No entanto, depois da morte de Agostinho, a igreja gradualmente mudou de posição e 30
aceitou uma espécie de meio-termo, combinando o primeiro ponto da formulação de Agostinho, a depravação total, com uma elaborada doutrina da graça presente nos sacramentos da igreja, com a qual o homem poderia cooperar para chegar a salvação. Posição Pelagianismo
Controvérsia Pelagiana e seus desdobramentos Resumo O homem nasce essencialmente bom e é capaz de fazer o
Agostinismo
necessário para a salvação. O homem está morto no pecado, a salvação é totalmente
Semipelagianismo
pela graça de Deus, que é dada apenas aos eleitos. A graça de Deus e a vontade do homem trabalham juntas
Semiagostinianismo
na salvação, na qual o homem deve tomar a iniciativa. A graça de Deus estende-se a todos, capacitando uma pessoa a escolher e a fazer o necessário para a salvação.
19. O Concílio de Calcedônia 31
Em meados do quarto século, vários ensinos heréticos ameaçavam a compreensão que a igreja tinha da pessoa de Cristo. O primeiro foi proposto por Apolinário (c.310/c.390), bispo de Laodiceia, na Síria, que negou a existência de uma alma humana racional na natureza humana de Cristo; sendo esta substituída nele pelo
Logos divino. Dessa forma, seu corpo seria, então, uma forma glorificada de humanidade. O segundo foi a posição controvertida de Nestório (380?451), patriarca de Constantinopla, que argumentou haver em Cristo duas pessoas distintas, uma humana e outra divina, completas de tal forma que constituíram dois entes independentes. Portanto, Maria seria apenas Christotokos (genitora de Cristo), e não
Theotokos (genitora de Deus), porque o corpo de Jesus pertencia à natureza humana, e não à divina. A terceira posição era a de Êutico (378/454), abade de um mosteiro de Constantinopla, que afirmava que a natureza divina de Cristo absorveu a natureza humana. Então, Cristo teria uma única natureza, a divina, revestida de carne humana, posição conhecida como monofisismo. Para preservar a unidade da igreja, foi convocado o Concílio de Calcedônia (451) pelo imperador do Oriente, Marciano (396/457) e por sua esposa, Pulquéria (399/453). O objetivo do concílio era acabar com essa série de controvérsias que se seguiram às declarações cristológicas formuladas no Concílio de Niceia. No credo de Niceia, foi feita a declaração de que Cristo é da mesma substância divina com o Pai, o que foi ratificado no Concílio de Constantinopla, que também fez uma declaração mais madura a respeito do Espirito Santo. Portanto, a Declaração de Calcedônia foi um chamado à unidade da igreja, fornecendo uma definição de fé para tratar do mistério do Verbo que se fez carne (Jo.1:14). O nestorianismo se estabeleceu firmemente na comunidade cristã da Pérsia, chegando até a China no século VII, e igrejas monofisitas passaram a existir no Egito, na Etiópia, na Armênia, na Síria, na Índia e fora das fronteiras do império. Entretanto, a definição de Calcedônia tornou-se o padrão da ortodoxia cristã.
20. O Movimento Monástico 32
Com a cristianização do império, alguns cristãos seguiram um caminho diferente. Para eles, a dita conversão dos imperadores aos cristianismo e, consequentemente, a facilidade de tronar-se cristão não eram uma bênção, e sim uma tentação. Algumas pessoas que assim pensavam, mas não queriam deixar a comunhão da igreja, retiraram-se para o deserto, onde se dedicaram à vida monástica. Isso aconteceu de tal forma que o século IV foi marcado por um grande êxodo de cristãos para os desertos do Egito e da Síria. Essas pessoas passaram a se conhecidas como anacoretas ou eremitas, e Antão (251/356) é considerado o fundador do movimento. Podemos definir essa primeira etapa do monasticismo como o desejo de alguns homens e mulheres de levar uma vida solitária com o objetivo de amar mais a Deus. Isso seria alcançado com o afastamento do mundo e a renúncia aos bens, dando-os aos pobres. Outro tema recorrente era a imitação de Cristo na simplicidade da vida, na pobreza, no celibato e na obediência. As motivações por trás desse movimento eram a iminência da segunda vinda de Cristo e o desejo de uma vida tão perfeita quanto possível. No entanto, os mosteiros rapidamente começaram a ser fundados, e a ênfase passou a ser a vida comunitária, dando origem ao movimento cenobita. - Em 323, Pacômio (c.292/348) fundou um mosteiro em Tabenese, no Egito, e as regras desse mosteiro enfatizavam a pobreza, a obediência e o trabalho manual. - Em 358, Basílio de Cesareia fundou um mosteiro em Íbora, na Ásia Menor, onde eram enfatizadas as orações sete vezes por dia, a obediência e a caridade. - Em 371, Martinho de Tours (316/397) fundou o primeiro mosteiro no Ocidente, em Ligugê, na Gália, de onde iniciou a evangelização das áreas rurais, plantando igrejas e mosteiros por toda a região. - Em 451, João Cassiano (c.370/435) fundou dois mosteiros em Marselha, na Gália. Ele elaborou uma alternativa à posição de Agostinho na controvérsia contra o pelagianismo. Sua proposta, conhecida como semipelagianismo, tornou-se a interpretação da graça mais aceita por grande parte do catolicismo medieval. - Em 529, Bento de Núrsia (c.480/c.547) escreveu sua Regra, para uso no mosteiro que ele fundou em Monte Cassino, na Itália. Essa Regra tornou-se o padrão para todo o monasticismo ocidental. Com isso, surgiu a primeira ordem monástica no Ocidente. As principais ênfases da ordem beneditina eram vida em comunidade, moderação, obediência ao abade e trabalho físico. Cada mosteiro era independente, ficando sob a liderança de seu próprio abade.
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O estilo de vida daqueles que se retiravam para o mosteiro era centrado na oração, na contemplação, na santidade pessoal, no trabalho para o autossustento e na ajuda àqueles que viviam na pobreza. Algumas das principais contribuições do movimento monástico para a cristandade podem ser destacadas: - Os mosteiros preservaram muitos dos livros antigos, pois apenas ali se faziam cópias de manuscritos; - A educação foi preservada nos mosteiros, tornando-se os centros de erudição e cultura da época; - Os monges foram grandes teólogos e serviram à igreja como missionários.
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21. Os Sete Concílios Ecumênicos Na história do cristianismo, os Sete Concílios Ecumênicos começam com o I Concílio de Niceia (325) e vão até o II Concílio de Niceia (787). Essas assembleias foram chamadas de “ecumênicas” (oikouménê) por reunirem bispos e presbíteros que representavam as igrejas cristãs espalhadas por todo o Império Romano, numa tentativa de afirmar um consenso doutrinal ortodoxo e estabelecer uma cristandade unificada. Todos esses concílios ocorreram no Oriente. Os temas tratados nos primeiros concílios ecumênicos foram: - I Concílio de Niceia (325). Cerca de 300 bispos de todas as regiões do império puderam estar presentes. Decisões principais: afirmou a igualdade de natureza entre o Pai e o Filho; refutou o arianismo; tratou da celebração da Páscoa, do cisma de Melécio (m.325), bispo de Licópolis, da necessidade do rebatismo dos heréticos, do estatuto dos prisioneiros na perseguição movida pelo imperador Licínio; discutiu a organização da igreja em províncias, pondo sob consideração o fato dos bispos de Roma, no Ocidente, e de Jerusalém, Cesareia, Antioquia, Alexandria e Constantinopla, no Oriente, terem mais autoridade. - I Concílio de Constantinopla (381). Participaram cerca de 150 bispos, sem representantes ocidentais. Decisões principais: revisou o Credo de Niceia; afirmou a divindade do Espirito Santo; condenou qualquer tipo de arianismo; tratou da criação de um patriarco para Constantinopla e da recepção de hereges na igreja. - I Concílio de Éfeso (431). Entre 200 e 250 bispos, inclusive representantes da igreja ocidental participaram do concílio, que teve em Cirilo de Alexandria um de seus protagonistas. Decisões principais: depôs Nestório; condenou o nestorianismo, o arianismo e o sabelianismo como heréticos; condenou Pelágio; asseverou o Theotokos. - Concílio de Calcedônia (451). Participaram cerca de 370 bispos ou presbíteros, e a influência de Leão, bispo de Roma, foi decisiva. Decisões principais: afirmou a unidade das duas naturezas, completas e perfeitas em Jesus Cristo, humana e divina; condenou a simonia, casamentos mistos e ordenações sem que o novo clérigo tivesse uma função pastoral; depôs e condenou êutico e Dióscoro I (144/451), patriarca de Alexandria; aprovou a carta dogmática Tomo a Flaviano, de Leão. - II Concílio de Constantinopla (553). Foi convocado pelo imperador bizantino Justiniano I (483/565) e contou com a presença de 152 bispos, incluindo sete da África e nove da Ilíria, mas sem representantes da Itália. Decisões principais: condenou os Três Capítulos escritos por Teodoro de Mopsuéstia (c.350/428), Teodoreto de Ciro (c.393/c.457) e Ibas de Edssa (m.457); condenou o monofisismo. 35
- III Concílio de Constantinopla (680). Reuniram-se cerca de 300 representantes, inclusive da igreja de Roma; 174 representantes assinaram as resoluções finais. Decisões importantes: afirmou que Jesus Cristo tem duas vontades, a divina e a humana; condenou o monotelismo, que ensinava que Cristo teria somente uma vontade, a divina; considerou o papa Honório (m.638) herético. - II Concílio de Niceia (787). Foi convocado por Irene (c.752/803), mãe do imperador bizantino Constantino VI (771/797), para encerrar a controvérsia iconoclasta. Reuniram-se cerca de 350 participantes; inclusive dois participantes da igreja de Roma. Decisões principais: aprovou a veneração (proskynêsis) dos ícones, pois tal adoração não se dirigia às gravuras em si, mas aos que estavam representados nelas, recuperando com isso a união com a igreja ocidental; condenou os iconoclastas.
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22. A Queda de Roma O fim desse período trouxe mudanças significativas, não só para a igreja cristã, mas também para a cultura da época. Em 410, o mundo romano ficou aturdido ao ouvir que os bárbaros godos liderados por Alarico (375/410) tinham capturado e saqueado Roma, o coração simbólico do império – nessa época, a capital imperial ocidental se encontrava em Ravena. Em vez de um incidente isolado, durante os anos seguintes, várias tribos bárbaras devastaram a Europa ocidental e a África do Norte ocidental. Todas as províncias do Império Romano Ocidental já eram dominadas pelos bárbaros, e os imperadores eram meros fantoches deles. Em 476, melancolicamente, o último imperador do Ocidente foi deposto por mercenários bárbaros hérulos que serviam ao exército romano, e Odeacro (c.434/493) se tornou o primeiro dos reis bárbaros de Roma. O Império Romano Ocidental foi, então, retalhado por hordas de tribos bárbaras que, no passado, viviam fora das fronteiras do império, às margens dos rios Reno e Danúbio. Toda a Itália e uma parte da Alemanha foram ocupadas pelos ortogodos. Os francos, os burgúndios e os bretões ocuparam a França e a Holanda. Os anglo-saxões ocuparam as Ilhas Britânicas, os visigodos, a Espanha, e os suevos, uma parte de Portugal. No norte da África os vândalos se estabeleceram, para depois serem derrotados pelos árabes, que, a partir do século VII, passaram a dominar toda a África do Norte e partes da Espanha e de Portugal. Diferentes dos europeus em termos culturais e religiosos, logo seriam inimigos, nas cruzadas. A parte oriental do império, englobando Grécia, Ásia Menor, Egito, Síria e Palestina, foi preservada no Império Romano do Oriente, que se tornou o Império Bizantino e sobreviveu até a queda de Constantinopla (1453). No vácuo do poder que se seguiu à destruição do Império Romano do Ocidente, o papado surgiu como uma instituição que dominaria grande parte da Europa na Idade Média, só sendo abalada no tempo da Reforma Protestante, no século XVI.
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