O discurso na contemporaneidade: materialidades e fronteiras
Organizadoras ◆ Freda Indursky ◆ ◆ Maria Cristina Leandro Ferreira ◆ ◆ Solange Mittmann ◆
Editora Claraluz 1ª Edição - São Carlos
2009
Coordenação Editorial Editora Claraluz ® Impressão e Acabamento Prol Gráfica Diagramação Tiago Pavan Elaboração de Capa Canal 6
Conselho Editorial
Prof. Dr. Cleudemar Alves Fernandes (UFU) Prof. Dr. Hermes Renato Hildebrand (UNICAMP) Profa. Dra. Maria do Rosário Gregolin (UNESP) Profa. Dra. Marisa Martins Gama Khalil (UFU) Prof. Dr. Nilton Milanez (UESB) Prof. Dr. Pedro Navarro (UEM) Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Prof. Achille Bassi, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação – ICMC/USP
O discurso na contemporaneidade: materialidades e
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fronteiras / Freda Indursky, Maria Cristina Leandro Ferreira, Solange Miittman, organizadoras. 1ª edição. São Carlos : Claraluz, 2009. 464p.
ISBN 978-85-88638-44-0 Discurso. 2. Contemporâneo. 3. Subjetividade. 4. Fronteiras. 5. Materialidades. I. Indursky, Freda, org. II. Ferreira, Maria Cristina Leandro, org. IV. Mittmann, Solange, org. V. Título.
www.editoraclaraluz.com.br
SUMÁRIO
I PARTE : FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE Eni Orlandi Historicidade, indivíduo e sociedade: o sujeito na contemporaneidade 13 Enrique Serrano Padrós Movimentos sociais: o paradoxo argentino e os desafios do tempo presente 29 Bethania Mariani Sujeito e discursos contemporâneos 43 Bernardo Kucinski Reflexões sobre o impacto da internet no campo do jornalismo 53
II PARTE : TEORIA E ANÁLISE EM PERSPECTIVA 1 – Língua, hiperlíngua e arquivo Suzy Lagazzi Recorte significante na memória 65 Kátia Menezes de Sousa “Os homens loucos por sua língua” e a sexualidade transformada em textualidade 79 Cristiane Dias A língua em sua materialidade digital 89 José Horta Nunes Discursividades contemporâneas e dicionário 99
Nádia Régia Maffi Neckel Tecedura e tessitura do discurso artístico da/na produção audiovisual: materialidades fronteiriças 107 Carolina Fernandes O ciberespaço no confronto de sentidos: uma nova leitura de arquivo 117 Fabiele Stockmans de Nardi Língua, cultura e competência: questões para o ensino e o discurso 125 Mónica Graciela Zoppi Fontana O acontecimento do discurso na contingência da História 133 2 - Real da língua, do sujeito, da história e do discurso Helson Flávio da Silva Sobrinho Os andaimes suspensos do discurso nos alicerces do real 147 Simone Hashiguti O corpo como materialidade do discurso 161 Rosane da Conceição Pereira Subjetividade e política de língua no discurso publicitário para o ensino de português no Brasil 169 Anne Francialy da Costa Araújo Uma língua no lugar do Um: efeitos reais de uma nomeação 183 Marluza Terezinha da Rosa Da (im)possível definição de língua no discurso do sujeito pesquisador em linguagem 193
Leda Verdiani Tfouni, Paula Chiaretti A mulher: inexistente ou evidente 205 Leda Verdiani Tfouni, Marcella Marjory Massolini Laureano As marcas do real e o equívoco da língua 2153 3 - Interdiscurso, pré-construído, discurso transverso e memória Lucia M.A. Ferreira Interdiscurso e memória: nas tramas dos discursos sobre a mulher 223 Patricia Laubino Borba O discurso do esquizofrênico e a apropriação do discurso-outro 233 Luiza Kátia Castello Branco O discurso sociolinguístico sobre a língua de cabo verde: lugar de encontro da memória e do interdiscurso 243 Carla Letuza Moreira e Silva Memória, atualidade e possibilidade: a polêmica do discurso do Referendo das Armas na mídia impressa 253 Luciana Nogueira A designação da palavra integração em documentos de constituição da ALCA: o processo de nominalização 267 Ângela de Aguiar Araújo A temporalidade discursiva: o deslizamento do enunciado “Brasil, país do futuro” no discurso jornalístico 281
4 - Ideologia, historicidade e condições de produção Carme Regina Schons, Solange Mittmann A contradição e (re)produção/transformação na e pela ideologia 295 Marci Fileti Martins O que pode e deve ser dito sobre ciência no discurso da divulgação científica: “Nós precisamos da incerteza, é o único modo de continuar” 305 Maria Virgínia Borges Amaral Evidências de responsabilidade no discurso do pacto global 317 Verli Petri A emergência da ideologia, da história e das condições de produção no prefaciamento dos dicionários 329 A. Martín de Brum Alguns pressupostos teórico-metodológicos da teoria funcional da tradução: elementos para uma teoria discursiva da tradução 337 Ivânia dos Santos Neves A invenção do índio: ideologia e história 347 Águeda Aparecida da Cruz Borges Índios Xavante X não-índios na cidade de Barra do Garças/MT: gestos de interpretação discursiva 357
5 - Escrita, efeito-sujeito e autoria Evandra Grigoletto, Carmen Agustini A autoria na escrita de adolescentes: interfaces entre o virtual e o escolar 369 Cleudemar Alves Fernandes Exterioridade e construção identitária em Pierre Rivière 381
Maria José Coracini Escrita de si, assinatura e criatividade 393 Eliane Marquez da Fonseca Fernandes A escrita e a reescrita: os gestos da função-autor-leitor 405 Wilton Divino da Silva Júnior Os mecanismos d’a ordem do discurso e a construção da autoria no Evangelho de Saramago 417 Maíra Nunes Um autor à esquerda? Copyleft e autoria na contemporaneidade 429 Viviane Barriquello Autoria e leitura: nas telas do discurso virtual 439 Eduardo Alves Rodrigues A relação verbal vs. não-verbal sob a sombra da autoria em “Substãncia”, de J.G.Rosa 451
• APRESENTAÇÃO Como vimos fazendo desde a primeira edição do SEAD, em 2003, reunimos no presente volume uma amostra bastante representativa da pesquisa que se vem fazendo em Análise do Discurso no Brasil. Neste volume, reunidos em torno de um eixo temático que discute as especificidades e tendências do espaço discursivo brasileiro, o leitor encontrará trabalhos de autores já consagrados na área, ao lado de novos pesquisadores, que enriquecem, revigoram e mantêm em constante renovação o campo sempre efervescente do discurso. O discurso na contemporaneidade: materialidades e fronteiras expõe os fundamentos teóricos e metodológicos da Análise do Discurso realizada do Brasil a partir do legado de Michel Pêcheux. Resultado das discussões promovidas no III SEAD Seminário de Estudos em Análise do Discurso, realizado em 2007 em Porto Alegre, esta obra reflete sobre fronteiras e interfaces epistemológicas, com atenção para os discursos contemporâneos. É nesse sentido que a primeira parte do livro, Formas de subjetivação na contemporaneidade, se apresenta como um diálogo entre Análise do Discurso e áreas que têm o discurso e a subjetividade como seu objeto de estudo. Nesse diálogo, são abordados a construção simbólica do sujeito pelo Estado e pelos movimentos sociais urbanos, o olhar artístico e psicanalítico sobre o sujeito da arte contemporânea, o questionamento político sobre o sujeito da imprensa no universo digital. A partir dessa proposta, será possível, então, encontrar aqui um forte, singular e harmonioso panorama das questões envolvendo o sujeito na contemporaneidade, sob a ótica muito particular de analistas de discurso, psicanalistas, historiadores e jornalistas, os quais, cada um com suas filiações e estilos, traçam um percurso novo e diferenciado na forma de abordar essa temática. O próprio caráter da teoria, de sempre rediscutir-se, exige dos analistas do discurso posicionamentos a respeito das fronteiras entre as noções teóricas e frente às materialidades discursivas da contemporaneidade. Assim, as reafirmações de nossa filiação e os avanços teóricos e metodológicos impostos pelas novas materialidades discursivas costuram os capítulos da segunda parte do livro: Teoria e análise em perspectiva. Para organizar essa segunda parte, centramos o foco em cinco pontos referenciais que, sob nosso juízo, representam, na cartografia do discurso, as direções de sentidos mais produtivas da pesquisa atual e que revelam muito de perto sua inquietante movimentação. Referimo-nos (1) à língua, aos desafios trazidos pela hiperlíngua e ao trabalho sempre instigante com o arquivo, em suas diferentes concepções; (2) à série produtiva da noção de real e seus desdobramentos, cuja dimensão mais completa ainda buscamos, em conceitos como o equívoco, o inconsciente, a ideologia e o silêncio; (3) às fronteiras e atravessamentos entre interdiscurso, pré-construído, 9
discurso transverso e memória, cuja distinção não cessamos de reivindicar; (4) à historicidade e à opacidade do imbricamento entre o lingüístico e o histórico, assim como o efeito de transparência da ideologia e, por fim, (5) à escrita, efeito-sujeito e autoria, que põe em jogo o efeito-autor, com todas suas conseqüências para a deriva e migração dos sentidos. Esperamos contribuir com a presente obra para divulgar a pesquisa de ponta que vem sendo feita no Brasil nos domínios do discurso. Pesquisa que não se cinge aos limites da área, mas busca com coragem e ousadia as contradições e dissintonias com os campos vizinhos, sem perder a fidelidade referencial e sem submeter-se a modelos fundadores. Pesquisa que constrói com clareza e sem concessões o campo brasileiro da Análise do Discurso. As Organizadoras
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PARTE I
FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE
• HISTORICIDADE, INDIVÍDUO E SOCIEDADE: O SUJEITO NA CONTEMPORANEIDADE Eni P. Orlandi (Labeurb/Unicamp) Mas onde cresce o perigo cresce também o que salva(?) Introdução Nosso objeto de reflexão é a relação entre o indivíduo e a sociedade, procurando compreender a forma e a necessidade dos movimentos sociais urbanos que, mal metaforizados, resultam na delinqüência – e ligamos a palavra delinqüência a delinquo que significa des-ligar, enfraquecer, pensando justamente a necessidade do sujeito histórico e simbólico de praticar laços sociais (E. Orlandi, 2004). Teoricamente, estabelecemos como quadro de referência uma teorização do sujeito (E. Orlandi, 2001) onde refletimos sobre a interpelação do indivíduo em sujeito (forma histórica do sujeito capitalista, sustentado pelo jurídico) e sua individualização pelo Estado, resultando daí um sujeito ao mesmo tempo livre e responsável. Visamos compreender o sujeito da modernidade e os movimentos sociais urbanos face à necessidade de se constituírem políticas públicas sustentadas na organização do consenso. Já analisamos - para compreender como este indivíduo se encontra na nossa formação social em que há uma sobredeterminação do social pelo urbano - o sujeito do grafite, do piercing, da tatuagem e do rap, o menino do tráfico (Falcões) que, em seu conjunto, constituem a produção do que tenho chamado de discurso urbano. Sentindo necessidade de situar a conjuntura social e histórica de nossa reflexão, atualmente, entram para nossas considerações o mundo globalizado e as tecnologias de linguagem (tanto o mundo eletrônico como a mídia). Mais especificamente, e dada a conjuntura sócio-política contemporânea, estamos também refletindo sobre a migração, a mundialização, e as tecnologias de linguagem como pano de fundo em que sobressaem a criminalidade/delinqüência, a guerrilha, o terrorismo. Que resultam na divisão maniqueísta entre o Bem e o Mal. Tudo isto bem sustentado por discursividades que se apóiam na tensa contradição entre, de um lado, a expectativa de uma democracia planetária ilusória e, de outro, a prática de uma real economia ditatorial. O político aparece nessa conjuntura como argumento. De certa forma, ligado a este discurso da mundialização, da globalização, há também um discurso sobre a subjetividade que gostaríamos de trazer para esta reflexão. 13
Na consideração deste sujeito da modernidade, somos sensíveis ao que diz Melman (2005) sobre a “nova economia psíquica”. Ontem, diz Jean Pierre Lebrun (2005), na introdução ao livro de Melman, mesmo os provérbios e as máximas lembravam ao sujeito que tudo não era possível (Não se pode ter tudo), que é preciso assumir as conseqüências de seus atos (Quem semeia vento colhe tempestade). Hoje, os adágios evocados são os que falam de um sujeito que quer tudo (Ele quer o pão e o queijo). Que pensa poder tudo. Constata-se a dificuldade dos sujeitos hoje de disporem de balizas tanto para esclarecer a tomada de decisões como para analisar situações às quais se confrontam. É espantosa diz Lebrun (idem), em um mundo caracterizado pela violência, uma nova atitude diante da morte (eutanásia, enfraquecimento dos ritos), a demanda do transexual, as coerções ou mesmo as imposições do econômico, a emergência de sintomas inéditos (anorexia masculina, crianças hiperativas), a tirania do consenso, a crença nas soluções autoritárias, a transparência a qualquer preço, o peso do midiático, a inflação da imagem, a alienação no virtual (jogos de vídeos, internet) a exigência do risco zero etc. Eu acrescentaria a corrupção e a impunidade. Não se trata, segundo o autor, de evocar simples modificações no social e suas incidências sobre a subjetividade de cada um, mas de examinar uma mutação inédita que está produzindo seus efeitos. O autor Melman (2005) se propõe a refletir sobre isso e analisar essa crise de referências. Pensando a subjetividade e o futuro psíquico do homem contemporâneo, ele debate as questões sobre o fato de que o homo faber cede lugar ao homem fabricado e, neste caso, ele se interroga sobre esses homens novos – esses homens sem gravidade, quase mutantes – que nós temos que compreender. Segundo Melman há emergência de uma economia psíquica que não existia antes. As que existiam eram de oposição (revolta, marginalidade etc). Hoje não é um movimento de oposição é um movimento que se faz sobre seu próprio impulso. Passa-se de uma economia organizada pelo recalque para uma economia organizada pela exibição do gozo. Não é possível abrir uma revista, diz Melman (ibid), admirar personagens e heróis de nossa sociedade sem que eles sejam marcados pelo estado específico de uma exibição do gozo (fruição). Isto implica deveres radicalmente novos, impossibilidades, dificuldades e sofrimentos diferentes. Há um progresso que traz suas ameaças. Tem-se efetivamente como medida que o céu é vazio, tanto de Deus como de ideologias, de promessas, de referências, de prescrições e os indivíduos têm de se determinar eles mesmos, singularmente e coletivamente. Este é o sujeito que vemos teorizado no Velho Mundo, nos países ricos. Queremos ver em nossa reflexão como isto se passa no sul do planeta. Que ecos vivemos nos países pobres. O que se passa com os que, por necessidade histórica, seriam mutantes, mas que, pelas razões da dominação, da ideologia capitalista, não podem sê-lo. Os mutantes, sem as condições favoráveis do capitalismo, estes, que são o resto, também são os monstros? Como significá-los em suas condições? 14
Mundialização A mundialização (L. Carroué, 2005) é um processo geo-histórico de extensão progressiva do capitalismo em escala planetária e que é ao mesmo tempo uma ideologia (O liberalismo), uma moeda (o dólar), um instrumento (o capitalismo), um sistema político (a democracia), uma língua (o inglês). A mundialização tal como a conhecemos hoje data de um século e meio e seu processo não é linear (S. Brunel, 2007). Vem desde o fim da Guerra Fria, da era da comunicação “sem limite”, fim da URSS e desemboca no mito da Democracia. Alguns fatos concorrem para isto: os movimentos migratórios e a mobilidade populacional. Estes, por sua vez, não são um fato sem polêmica: muitas vezes são mais sugeridos que existentes, Isso nos leva a concluir que são espaços idealmente abertos, mas concretamente fechados, materializando as novas divisões: Norte/Sul; Oriente/Ocidente. A mundialização é mais falada que praticada. Mas nem por isso deixa de ter seus efeitos. Como sabemos o imaginário tem fortes conseqüências sobre o real. Podemos mesmo adiantar que há uma formação ideológica capitalista dominante e que se pratica através da projeção de inúmeras formações discursivas que formam um complexo a dominante: a formação discursiva da mundialização, com a formação discursiva da migração, formação discursiva da ecologia, formação discursiva do terrorismo, formação discursiva da delinqüência etc. Esse complexo de formações discursivas é a manifestação, na linguagem, do fato de que o capitalismo mantém-se em sua dominância, praticando-se, para não ser deslocado, por estas diferentes falas da mundialização. Sustentadas por um mal estar de raiz: o preconceito. Que sujeito? Antes mesmo de entrar na questão do sujeito que se constitui nestas condições sócio-histórico-ideológicas, gostaria de realçar algo que venho dizendo ao longo de minhas reflexões. A forma-histórica do sujeito que estamos analisando é a forma-histórica sujeito capitalista. Por outro lado, mesmo havendo um deslocamento nas formas como o capitalismo se pratica e estabelece suas relações de poder, ainda assim continuamos no domínio ideológico do capitalismo. Por isso, o que dissemos antes deve marcar uma nossa posição que não visa reproduzir o discurso da inclusão, o que visa transformar o dominado, o excluído, para adequá-lo às formas dominantes seja da cultura, seja do conhecimento, seja da classe social, nem tampouco o que pretende inserir o não inserido, ou integrar o não-integrado (os apocalípticos?), ou seja, falar do lugar em que a gestão pública se coloca como lugar do assistencialismo, do multiculturalismo, do comunitarismo, face à ideologia da mundialização. Não supomos também que temos de um lado o sistema capitalista e de outro agentes/sujeitos/ 15
posições-sujeito inertes. Para nós tanto uns como os outros estão em movimento e se transformam. Interessa-nos pensar nos sentidos que a dominação e a resistência tomam nessa relação, já que tanto a estruturação como a desestruturação delas levam ao movimento da sociedade na história. Já que o tal consenso sobre o qual se apóiam as políticas “públicas” é um consenso imaginário, constituído no jogo do jurídico – que estabelece as bases da estrutura e funcionamento do capitalismo – e o administrativo, que se sustenta nas formas materiais da mundialização com suas práticas assistencialistas, multi-culturais e comunitaristas. Uma vez isto esclarecido, passemos à exposição do que é ou de quem é este sujeito da modernidade. Sujeito cujo percurso traçamos acima. Controlado em seu ir e vir, dividido entre o Norte (rico) e o Sul (pobre), submetido a redes de informação e comunicação, ameaçado em seus processos de memória, sujeito à delinqüência, à violência, ao terrorismo, sem falar das ameaças ambientais etc, no entanto, “livre”, “democrático”, “multi-cultural”, “comunitário”, “cidadão”. O espaço significativo da violência: ambiência e condições de produção Podemos pensar o “espaço” face à cidade como parte das condições de produção que constituem a prática significativa da/na cidade. Concebido desse modo, o espaço (urbano) é o enquadramento dos fenômenos ou práticas que acontecem na cidade (P. Henry, 1998, texto sem título e data). Estamos considerando o espaço como parte do acontecimento discursivo urbano. E nele incluímos o sujeito. Esta idéia de espaço como enquadramento permite-nos trabalhar com a forma e os meios materiais que constituem o espaço urbano como espaço significativo. O que isto quer dizer? Quer dizer que os sentidos são determinados pelas condições de produção, nesse caso, pelo modo como o espaço enquadra o acontecimento urbano. Para nós, enquadrar significa aqui determinar o espaço de significação. Uma pessoa atravessando a rua experimenta sentidos do espaço urbano que é diferente de uma pessoa atravessando a cidade em um ônibus. Porque sua experiência do espaço urbano é diferente. São condições de produção diferentes. São diferentes características e efeitos da ambiência. A maneira como as pessoas se posicionam em uma fila para retirar seu dinheiro no banco ou a maneira como as pessoas se posicionam em uma fila, desde a madrugada, para conseguir uma vaga para seus filhos em uma escola pública, são diferentes porque constituem espaços de significação urbanos diferentes, com diferentes efeitos de sentidos. São dis-posições diferentes do espaço (do sujeito e dos sentidos), dadas a condições de sua produção. Daí se conclui portanto que o espaço significa, tem materialidade e não é indiferente em seus distintos modos de significar, de enquadrar o acontecimento. Thibaud (2002) com a noção de “ambiência” procura compreender como os 16
moradores da cidade experienciam, percebem e usam lugares públicos. Segundo Thibaud é preciso distinguir entre o ambiente que é perceptível e o que não é perceptível. O primeiro é o que se pode ver, escutar, cheirar ou tocar e que podemos chamar de ambiente sensorial. Ele se relaciona diretamente à experiência e ao comportamento das pessoas na sua vida cotidiana. Deste ponto de vista podemos observar as relações entre os moradores e o ambiente construído. O segundo ambiente é o que não é diretamente perceptível, o extra-sensorial. Por exemplo, há produtos químicos que não são percebidos, a água pode estar poluída e não percebermos etc. Ele questiona a psicologia ambiental que é base da política ambiental por simplificar demais o modo como trata a percepção da ambiência. A dimensão humana está aí super-simplificada, segundo Thibaud. As pessoas não podem ser reduzidas a sujeitos médios idênticos entre si e não reagem do mesmo modo ao ambiente. Além disso, as pessoas não são sujeitos isolados. O ambiente é uma construção social. Enfim, não se deve reduzir o ambiente a seu aspecto físico e sim pensar o físico articulado ao social. Sai-se assim de um modelo baseado em estímulos para um ambiente baseado na experiência. Eu acrescentaria: se observaria o ambiente em suas práticas sociais. E concordo com o autor quando ele diz que o ambiente da vida cotidiana é mais significativo do que parece, pois ele é a espinha dorsal e o fundo sobre o qual construímos a base de nosso modo de ser-no-mundo. Eu diria que a pergunta que fica então é a de como o ambiente significa naquilo que nós significamos. Aqui podemos retomar a noção de condições de produção tal como a tratamos na análise de discurso e aproximá-la da noção de ambiência quando esta não se reduz ao físico e, nos termos de Thibaud, torna-se um dos termos incontornáveis na concepção arquitetural e da ecologia urbana. É então que Thibaud aproxima a noção de ambiência da de “qualidade difusa” de Dewey(1931) e, ao fazê-lo, às contribuições de ordem essencialmente técnica e instrumental, ele junta uma reflexão sobre sua dimensão estética, sensorial, e social. É uma abordagem como ele diz, qualitativa do meio ambiente sensível. Penso que é aí que podemos introduzir, pela aproximação com a noção de produções de condições (sujeito, situação, memória constitutiva), a questão da linguagem, do discurso, do confronto do simbólico com o político. E teremos uma noção de espaço não mais tecnológica mas significativa. Deixa-se de ter uma noção de espaço instrumental e idealista, sai-se do domínio dos projetos e do construído para a noção de processo de produção de um espaço em que entra a percepção e a prática pública. A noção de ambiência passa então a se relacionar com um espaço com suas características formais, materiais, físicas e plásticas. O que ele denomina de dimensão sensível do espaço eu denominaria, pela análise de discurso, de dimensão significativa, onde se juntam o físico e o espacial (material) e o humano, o simbólico. Ou seja, é aí que a questão do espaço se articula à do sujeito, em termos da significação. O modo de se 17
significar um espaço vai de par ao modo como são significados os sujeitos desse espaço. A questão do campo difuso está em que o sujeito percebido no mundo nos coloca em contato com a globalidade de uma situação. Eu diria que é a conjuntura significativa que está funcionando, ou seja, não só as condições imediatas e sócio-históricas como a memória discursiva, a filiação de sentidos em sua rede. Veremos como, na análise que fazemos mais adiante do menino do tráfico isto é presente: o que cria aquela situação de violência que está por todo lado? A forma das casas, a falta de espaço amplo e livre, as feições do menino? A situação é um todo, dada sua qualidade difusa perceptível. É a situação como uma totalidade unificada. A experiência engaja um pano de fundo indeterminado na base do qual se individualizam os objetos ou acontecimentos em questão. Aí também se individualizam os sujeitos.Este pano de fundo não pode ser discriminado precisamente justamente porque ele é que dá a fisionomia geral do que pertence a situação. Do nosso ponto de vista discursivo, este pano de fundo nos mostra o engajamento simbólico que nos remete por sua vez à memória discursiva. É isto que dá a unidade pressentida de uma situação, da ambiência, enquanto pano de fundo. O experimentado. O já significado sócio-histórica-politicamente. O que se chama de qualidade difusa, penso que podemos considerar como o enquadramento de que falamos mais acima, que assegura um campo, uma unidade sensível da situação, enquanto um domínio de experiência (não contexto mas práticas lingüísticodiscursivas). Daí, diante de um espaço, se tem “uma impressão dominante global”. E quando penso nos “falcões” esta impressão, este sentimento é o de insegurança, de impossibilidade, de confronto com a morte. Percebemos objetos e acontecimentos e experimentamos ou sentimos a situação, a ambiência. E ela é tácita, inconsciente, mas se manifesta. Nos meninos de tráfico, posso dizer que esta sensação é forte, difusa, é experimentada e fica inscrita na memória. Como existe neles mesmos? Que efeitos produz? Aquilo que os afeta tão profundamente, que não começa ali e que não pode nem mesmo ser descrito em termos “objetivos”. Temos nas condições de produção, pensado como ambiência, um campo mas é ao mesmo tempo um processo, instável, com tensões, conflitos. Instala-se uma sensação de inquietação, ou de prazer etc. E isto não é só um estado pessoal ou subjetivo mas também, eu diria, material, concreto. Segundo Thibaud, a ambiência nos coloca em uma certa disposição afetiva. Mais à frente falaremos do sentimento de “humilhação” como parte da individualização dos sujeitos na sociedade capitalista. Mas eu penso que isto é mais complexo e tem a ver com o funcionamento das condições de produção e com a ideologia. Uma certa “ambiência”, uma certa situação é constituída por certas condições de produção e como somos sujeitos ideologicamente constituídos, uma situação se carrega de sentidos e nos coloca em uma certa disposição (afetiva diz Dewey) significativa. Isto que estou chamando disposição significativa é o efeito ideológico. Tudo isso se 18
dá porque o ser, o sujeito é levado por uma exigência de organizar sua atividade em uma totalidade integrada e significante. Se assim é (e aí não falaríamos em atividade mas prática) o que se passa com o Falcão que vive sem as mínimas condições de integrar suas práticas em uma totalidade significante (vivendo “do lado certo na vida errada”)? O movimento do corpo não se faz em um espaço vazio mas um espaço de interpretação afetado pelo simbólico e pelo político, dentro da história e da sociedade. Dar conta do caráter ordinário da vida em comum supõe esclarecer de modo novo o problema da compreensão do pano de fundo, implícito: fundo comum para as relações sociais, condição para a sociabilidade pública. Consensual. Devemos problematizar o laço social em termos desta inter-coporalidade, dessa coreografia tácita de que tomamos parte mesmo sem saber. Questionar o ordinário permite colocar à prova o sentimento de familiaridade como componente fundamental do habitar mostrando a existência de uma “base comum”, um consenso produzido1 , que nos liga uns aos (e contra) os outros. Daí que para analisar o espaço não podemos vê-lo apenas como paisagem. E nos confrontamos então, segundo Thibaud (idem), com a categoria do familiar, com a espacialidade, com a hospitalidade, que são três dimensões essenciais do habitar. E o que é habitar? É entreter uma relação de familiaridade com o mundo pela qual damos sentido ao nosso entorno. É investir um espaço de sua presença o que significa lhe dar corpo integrando os sentidos em uma dinâmica de conjunto. É tornar um espaço hospitaleiro, engajando gestos elementares nos ligando uns aos outros. Dar evidência ao poder expressivo que constitui o estar-junto (Thibaud, idem). Como veremos a seguir, estas três definições do habitar mostram que, no caso que tomamos como exemplo, o dos meninos do tráfico, se há algum sentido em habitar, certamente está longe de ser o que apontam estas definições. Violência e processos de individualização dos Sujeitos na contemporaneidade2
“O crime realizou muito sonho meu”(Falcão, meninos do tráfico)
Tenho insistido em analisar materiais que possam me dar indicações sobre os processos de individualização do sujeito contemporâneo. Para isto tenho analisado manifestações do discurso urbano tais como o grafite, a pichação, o piercing, o rap, a tatuagem (E. Orlandi, 2004). De minhas análises restou que se pode reconhecer - pensando a relação desse sujeito assim individualizado, com o corpo político, de que recebe por este mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade - a forma da pessoa pública, 19
esta correspondendo a uma forma de individualização, o sentimento de ser Um, no todo da sociedade. É a forma de individualização em relação à sociedade em geral, de que resulta o “eu comum”. Mas, como diz Bataille (1946): o pertencimento de fato não esgota o desejo que têm os homens de estabelecerem com seus semelhantes um laço social. Daí a necessidade de, além da comunidade de fato (família, Igreja, empresa, nação etc), estabelecermos comunidades segundas (as que temos vontade de eleger, em que nossos desejos podem ser satisfeitos). É para ela que se dirige nosso imaginário. Essas comunidades segundas são “grupos em que cada um pode desempenhar seu desejo de reconhecimento como o reconhecimento de seu desejo e de seu ser”. Pois bem, o que acontece com este sujeito quando pensamos, no Brasil, a violência, mais precisamente quando pensamos um sujeito como está retratado em Falcão, meninos do tráfico? E esclarecemos que os tomamos apenas como exemplares dos milhares que estão pelas ruas.E esta é a palavrinha chave. Rua. Que está presente na expressão “meninos de rua”. São eles uma “comunidade”? Um “grupo social”? Como se relacionam com o movimento na/da sociedade? Meninos de rua inclui o Falcão, menino do tráfico? a) As formas da sociedade no Estado Segundo Schaller (2001) as relações sociais já não se estruturam como antes. Não temos mais a representação de classes, verticais, formando uma pirâmide em que estariam na base os mais pobres e no ápice a classe alta, podendo haver mobilidade em relação à ascensão. Os sujeitos seriam então incluídos ou excluídos socialmente. Já não é assim. Contemporaneamente, a relação não é de classes, segundo este autor, mas de lugares e se representa horizontalmente: ou se está dentro ou se está fora. As relações não são de inclusão/exclusão mas de segregação. Uma vez segregado, é impossível ao sujeito entrar nas relações sociais3. Há inúmeras teorias (por exemplo Lewkowitz e outros) que sustentam o esgotamento do Estado enquanto articulador simbólico e a sua redução ao técnico, administrativo, como ator coadjuvante enquanto o papel definidor é o da sociedade de mercado. Sem negar a força do mercado contemporaneamente, a nosso ver, quando pensamos o Brasil, não diríamos que o Estado já não exerce sua função de articulador simbólico. Penso que temos de conviver com a ambigüidade produzida pela existência de sociedades de mercado e com a nossa, em que o Estado tem seu funcionamento justamente regido por sua falta e afetado pelas sociedades de mercado. Ou seja, é em sua falta que o Estado existe e exerce seu poder articulador do simbólico com o político. Em suma, o Estado funciona pela falta, produzindo o que chamamos de sem-sentido, que não é um vazio, mas um modo de estar na relação do político com 20
a significação, estagnando-a no já-significado. Assim é que, nossa posição é de que temos de compreender os novos termos de dominação, através da compreensão de como se confrontam o simbólico com o político, nesses termos. b) O corpus Do PCC, sobre o telhado de um presídio “Liberdade para nossos presos”. De Marcola, no Caros Amigos, algumas palavras de seu depoimento à Comissão Especial – Combate à Violência, da Câmara Federal: “Deputado: E onde foi parar esse dinheiro? Marcola: Foi pago em extorsões feitas pela Polícia Civil e Polícia Militar. Deputado: Vocês pagaram? Marcola: Eu paguei Deputado: E a quem pagaste todo esse negócio? Não, isso eu não digo, porque NÃO TEM SENTIDO eu dizer que o policial, o fulano ou sicrano é corrupto, sendo que o sistema penitenciário não reabilita ninguém. A partir do momento em que o sistema tiver condição de reabilitar um ser humano, vou dizer quem é o policial corrupto(...)”.. Do livro Falcão meninos do tráfico, temos inúmeros enunciados. Vamos exemplificar através de alguns: “Criou uma mágoa dele mesmo, que até então eu comecei a entrar nessa vida que eu to agora, A VIDA DO CRIME, DO LADO CERTO NA VIDA ERRADA” “As crianças não são chamadas de traficantes mas de meninos.” Se os cana chegar aqui, não tem essa de trabalhador, não, eu sou bandido. Na realidade, eu não sou bandido, mas se eles chegar aqui eu sou. Pra eles, eu sou”. Amanhã ou depois tu morre, vários amigos já morreram assim.” “Os Falcões estão tão pobres que estão sem fé”. “Não eu não sou viciado, sou usuário”. “O que você quer ser quando crescer? Quero ser bandido”. “Você só vai botar a mão no que tu alcança”. c) Análise Retomemos o que colocamos em nossa introdução: como se individualiza o sujeito 21
contemporâneo? Pela leitura de nossos materiais de análise uma coisa se confirma: este sujeito se debate em uma falta de sentidos que vem do fato de que o Estado falha como lugar de articulação simbólica. Isto pode ser visto em várias ocorrências: Quando Marcola diz que não vai dizer o nome do corrupto porque não tem sentido dizer o nome dele pois o Estado, o sistema penitenciário não reabilita ninguém. Portanto a inscrição em uma instituição (sistema penitenciário ou família) que faça o sujeito individualizar-se em seu sentido não está funcionando nas atuais condições. Há muito, eles desistiram desse modo de inscrição. E usam o discurso institucional apenas como estereótipo, para responder ao modo como o outro pensa sua situação. Para eles mesmo este é um discurso sem-sentido. é só uma referência imaginária. Não faz mais nenhum sentido. É só para “engatar” na conversa com os “de fora”. Só existe “fora” do discurso deles. É parte do discurso “sobre” eles que eles repetem mecanicamente. No cotidiano eles matam, ou, como é o caso dos X9, eles matam e queimam. Outra coisa muito clara nestas falas é o fato de que a falta de sentido é a falta de espaço. Onde vivem? Em lugar nenhum. Eu durmo assim, em cima das lajes mesmo, fora de casa. Não tem como me esconder dentro de casa, porque se eu dormir, eu não sei nem o que pode acontecer.Falcão, ele só vê, não pode ser visto, não pode estar em lugar algum. Não tem um corpo reconhecido pela sociedade. É apenas o olho que vigia, do outro lado da lei, da sociedade. Não tem vida pública. Não é “comum”. Não existe. Não se significa no social. Não ter um lugar é estar dissolvido na fragmentação. Se os home chega aqui nóis vai ser tratado como bandido. Se pá, mete bala em nós, mata geral, nem leva de dura.(...) Na realidade eu não sou bandido, mas se eles chegar aqui eu sou. Pra eles eu sou. Atente-se para o fato do uso do “aqui”, do “espaço” como definidor, individualizador do sujeito: aqui ele é bandido para eles, os policiais. Não há espaço social e entre eles o espaço é disputado palmo a palmo. E como diz um deles: o limite é a rua. Lá todo mundo é igual. Não há opção: O que você vai ser quando crescer? Bandido. Quando o cara sai da cadeia sai neurótico. O cara sai com a maior marra de bandido. Portanto não há escolha, não há lado, não há sentido. O próprio sentido de crime, não faz sentido: “O que é crime? É cometer assaltos, é praticar o tráfico mas sem deixar de respeitar o cidadão comum”. E é assim que podemos entender o enunciado que me levou a esta reflexão. Um destes meninos conta que foi esbofeteado por um policial e acrescenta: criou uma mágoa dele mesmo, que até então eu comecei a entrar nessa vida que eu to agora. A vida do crime, do lado certo na vida errada. A vida é que está errada. O lado é certo. Mas se tentarmos mudar isto fica assim: A vida certa (?), do lado errado(?). Não há opção. Não há como des-virar este enunciado. Não há possibilidade de outro sentido. 22
Não há como estabelecer um (outro) sentido dentro desta ordem discursiva em que os processos de significação estão estabilizados em formações discursivas do capitalismo habitual: certo/errado, crime, bandido, menino/traficante etc. Contemporaneamente, há uma demanda social em que o jogo das formações, portanto a filiação de memória é outra. E, assombrados pela falta, pelo sem lugar, esses sujeitos vivem em cheio o sem-sentido, balançados de um lado para outro na sua insignificância para a sociedade e para a história. Na sua falta de “corporalidade” (no corpo social). Na sua inviabilidade. Em seu apagamento. Pois é essa a sua realidade. Já foram há muito segregados e nem chegam a ser um caso de polícia (repressão) só de extinção ( forma radical de segregação). Se há sentidos múltiplos e incertos eles não se sustentam numa racionalidade do Estado ou numa lógica do social mas na falta de espaço. Você só vai botar a mão no que tu alcança. d) Reflexões conclusivas provisórias Teriam os Falcões a impressão de fazerem parte de um grupo? Conseguiriam eles construir uma ilusão grupal capaz de “acalmar a angústia da cisão do sujeito?”. É-lhes possível imaginar-se em um corpo compacto que possui a liturgia e seus rituais comoventes em que a morte não entra? Ora, a morte é a experiência de seu dia-a-dia. Como habitar um espaço? Esta é a questão fundamental. E que espaço é este? São estratégias de subjetivação diversas – habitar, desacelerar, suspender etc – que trabalham sobre um mesmo material subjetivo: fragmentos e subjetividades fragmentadas. Fazer de um fragmento uma situação implica transformar cada situação em um mundo habitável. Pergunto-me - ainda que isto seja humanamente insuportável - se isto está ocorrendo com os meninos do tráfico, mas ocorre certamente com o pichador. Este é capaz, por seu gesto de simbolização, a letra, da produção de uma subjetividade capaz de habitar esse espaço e esse tempo ao irromper no social com seu gesto não desejado mas possível, pelo traço, pelo signo, pela grafia. É instantânea. Pode nem durar. Mas se dá. O pichador não sucumbe ao sem-sentido, ao contrário, afetado pelo não-sentido, ele rompe em “outro” sentido. Momentaneamente. Isto ocorre com o “Falcão”? Penso que não. No abismo social em que ele vive, preso da fragmentação, ele não consegue, nem por um átimo, constituir uma situação. Ele é apenas um fragmento. Descartável. E o que acabamos de dizer mais acima mostra que o “Falcão” é pressionado pela falta de lugar, pela impossibilidade de se criar uma “situação”, de se produzir um espaço. Ele não habita. Não pode ir e vir. Creio necessário explicitar aqui a distinção que tenho feito (E. Orlandi, 1992) entre o “não-sentido” – que é o não-experimentado, o que ainda não significa mas por 23
uma necessidade histórica poderá vir a significar – e o “sem-sentido” , que é aquilo que já fez sentido e fica apenas em um imaginário imobilizado incapaz de significar. Aquilo que já não significa mais. Tornou-se in-significante. Isto quer dizer, nos termos em que estamos desenvolvendo nossa análise, que encontrar uma situação(um (outro) espaço) para o sujeito é encontrar um sentido e tornar possível o movimento de sua individualização: poder estar; instalar (se em) uma situação. Passar do não-sentido ao sentido possível, “de modo que o irrealizado advenha formando sentido do interior do não-sentido” (Pêcheux, 1975). Mas, nas condições em que vivem esses meninos, como fazê-lo, tendo o Estado como funcionamento da falta enquanto articulador do político com o simbólico, e tendo o tráfico como condição de vida? Ficando do lado certo, na vida errada. É a única resposta que nossa sociedade disponibiliza nesse momento. E que estes meninos dolorosamente su-portam. Face ao sem-sentido em que estão mergulhados. Há possibilidade de transformar este espaço? Eu, de minha parte, serei sempre pessimista enquanto a palavra “democracia” surtir seu efeito mágico...É preferível dizer que não sabemos o nome do que virá do que tentar usar as palavras que já se historicizaram enquanto cortantes sentidos da nossa humanidade. Humilhação ou Execração Pública? Situando-nos criticamente em relação à questão da mundialização mas sem desprezar seus efeitos, podemos observar outros modos de tratar desta questão. É sabido como P. Ansart (2007) desenvolve uma rica reflexão sobre os sentimentos na política. Não é de se estranhar portanto que desenvolvam-se atualmente estudos e discursos sobre a “humilhação”. Interessa-nos a humilhação enquanto ela se oferece como uma prática social. O nosso sujeito – menino do tráfico, o falcão – certamente poderia ser pensado como um sujeito humilhado. Mas seria muito fácil. Seria ajustá-lo à sociedade rica de consumo que nos mantêm, países pobres, ao sabor de suas políticas de força e suas teorizações. Alguns destes autores, remetem a questão da humilhação ao conceito de alienação em Marx (1844,1867). Caso em que o objeto produzido pelo trabalhador aparece como estranho e independente a ele. Alheio a si mesmo. Quanto mais valor o trabalhador cria, mais ele fica diminuído, mais sem valor e desprezível se torna (Marx, idem). Claudine Haroche (2007) discorre depois sobre o que faz a sociedade de consumo com o indivíduo: perda de singularidade, de criatividade, de imaginação, a consciência de si. E penso como os meus meninos do tráfico já estão longe de poderem ser incluídos numa descrição como essa. Para isso, teriam que ser contados entre os que teriam um mínimo de relação com a sociedade envolvente. Eu me 24
pergunto se posso considerar, no caso dos falcões, meninos do tráfico, o trabalho para o traficante como um trabalho. E o que isto acarretaria ao eu interior deste indivíduo. Haroche acrescenta a isso a busca da visibilidade, aspiração pela qual o indivíduo é valorizado, que acompanha novas formas de poder, de dominação econômica, política e social. O que, por sua vez, se acompanha de transformações no tipo de personalidade. A invisibilidade seria sinônimo de inutilidade, de insignificância, de inexistência. No nosso caso, lembremos que o falcão evita justamente a visibilidade. É o que vê mas não pode ser visto. Onde o falcão se ancora na sua busca de poder? Na sua capacidade de ser invisível. Aí é que ele ganha importância, existência, significância. Na sua imagem franzina, aí ele ganha poder. Logo, não é na sua visibilidade que ele busca poder. É na sua relação com o tráfico, no fato de carregar uma arma, de ser Falcão. As sociedades, segundo alguns autores, podem ser distinguidas em duas categorias opostas: a de transcendência e a do individualismo. Se somos uma sociedade do individualismo – e é o caso da sociedade contemporânea – a questão do outro se coloca imediatamente. Como a presença do outro é incontornável, o problema que se põe é o de como tratar este outro. E o que se pergunta Enriquez (ibid) é se “eu devo respeitar sua dignidade ou ao contrário eliminá-lo de uma maneira ou de outra pela violência, e fazê-lo, pois sucumbir sob o peso da humilhação” Ora, se pensamos o menino do tráfico e as nossas sociedades do Sul a representação que prevalece na vontade de humilhar é a de uma distinção central e definitiva entre duas espécies humanas: os capitalistas e os proletários, os colonizadores e os colonizados, os superhomens e os sub-homens, aqueles que têm o direito de viver e aqueles que não têm o direito de existir. E aqui penso no que desenvolvo neste trabalho sobre preconceito: o preconceito incide sobre a existência mesma do indivíduo, negando-lhe a vida. Continuando, Enriquez (idem) define o que é humilhar, nestas condições: consiste em colocar o indivíduo em uma posição em que lhe é impossível responder à violência sem se arriscar, onde ele só pode se submeter calado, se situar na “sombra do nome” de quem o humilha, ser obrigado a se identificar com o agressor, de experimentar a vergonha, de mentir ou dissimular para se proteger. Progressivamente ele perde sua identidade, sua estima e o respeito de si. Aqui reencontramos nosso Falcão. Ele perde seus direitos estabelecidos, recebe desprezo, ele já não pode “enfrentar o abismo” em pé, como diria Enriquez, citando Castoriadis. Mas creio que já se foi, com estes meninos, além da humilhação: o sentimento é de execração pública. Quando nosso menino do tráfico diz que “está no lado certo da vida errada”, não estaria ele dizendo que está tentando ficar em pé frente ao abismo? Sua vida não tem sentido para si nem para os outros. Ele pode desaparecer sem deixar traço. Enriquez continua a falar sobre a humilhação de forma muito interessante –mas creio que é uma humilhação que se endereça ao homem médio. O delinqüente não 25
está a seu alcance. Se volto ao que diz Castoriadis, “enfrentar o abismo em pé”4 , e se procedo discursivamente, podemos produzir aí um efeito metafórico, uma deriva, deslocando de uma formação discursiva para outra, o que é dito relativamente à humilhação. Desse modo, o menino do tráfico, quando afirma “eu estou do lado certo na vida errada” está afirmando que não está ao alcance da humilhação. Ele está fora das relações sociais que se apresentam como dominantes na formação social capitalista, e a humilhação só é possível nelas (assim como o pichador está fora do alcance da escola porque não escreve com letras do alfabeto). Se estivessem no interior dessas relações seriam humilhados. Eles se negam a isso. Estão no lado certo (“em pé”). Da vida errada (“enfrentando o abismo”). Eis o efeito de sentido produzido por este deslizamento, por esta deriva metafórica. Esses sujeitos, do modo como são individualizados na sociedade sobre a qual estamos refletindo, sociedade que se constitui na conjuntura da mundialização com todos seus componentes como expusemos neste estudo, não estão ao alcance do consenso. Por isso são, de certo modo, para nós, in-compreensíveis. Assim como são in-compreensíveis os sentidos do que sejam movimentos sociais5, quando pensamos a sua “legalidade” se não nos limitamos às definições dadas pelos que tomam como referência o sistema capitalista. E se não o fazemos, e pensamos que todo o tempo a sociedade e seus sujeitos estão em movimento na história, movimento que, barrado, não significado politicamente, explode em sentidos que estão na base da produção da delinqüência, da marginalidade, do terrorismo, da ilegalidade etc, nos tornamos, nós mesmos, in-compreensíveis. Sem dúvida é assim que posso ler o que diz o secretário José Mariano Beltrame, na Veja de 31 de outubro de 2007: “No Brasil, e no Rio de Janeiro em particular, a convivência promíscua entre o legal e o ilegal provocou uma situação ambígua (incompreensível?eu diria). Chegamos a um ponto em que precisamos decidir. A sociedade deve escolher de que lado está”. Ainda que fale em situação ambígua, para ele não há ambigüidade. De acordo com os padrões da sociedade capitalista há linhas nítidas que separam o legal do ilegal quando se trata do pobre, do delinqüente, da criminalidade categórica. E dentro do discurso neo-liberal, ainda que ele declare que, ao longo do tempo, a insegurança atual foi construída por interferência política irresponsável e ausência de políticas públicas, é a sociedade que deve escolher seu lado. Já que não se discute o que o Estado está fazendo nesta história. É o mesmo que dizer que podemos saltar fora da história e escolhermos onde estaremos. É claro que então estaremos do lado certo, na vida certa. É o que falta para significarmos que quem não está na vida certa são os que podem, devem mesmo, ser extintos (”vidas vão ser dizimadas”). São os que não merecem viver. E se argumenta que a “geografia” do Rio de Janeiro favorece a situação atual de guerra6. Como se o espaço da violência fosse apenas um espaço 26
empíricamente discernível. E, portanto, uma vez a sociedade decidindo de que lado quer estar, o outro lado (o lado da vida errada) fosse finalmente solucionado. É só o que nos falta para vivermos um capitalismo sem risco, seguro, sustentável, feliz.
Bibliografia Bataille, G “Les sens moral de la sociologie” in Critique, Paris, 1946. Brunel, S. Qu´est-ce que la mondialisation, Sciences Humaines,nº 1805, Paris, 2007. Carroué, L. et alii, La mondialisation, genèse, acteurs et enjeux , Brésl, Paris, 2005. Castoriadis, C. Sujeito e verdade no mindo social histórico,Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2007. Castoriadis, C. As Encruzilhadas do labirinto,a ascensão da insignificância, Paz e Terra, São Paulo, 2002. Deloye e Haroche, Cl,(ed) Le sentiment d´humiliation, Paris, Ed. In Press, 2007. Enriquez E. “Croyances et mécanismes de défense dans les communautés”, in Esprit de corps , démocratie et espace public, Guglielmi et alii (org.), Paris: PUF, 2005. Enriquez E. in Deloye e Haroche, 2007. Guglielmi, GJ Esprit de corps, démocratie et espace public, Paris, PUF, 2005 Haroche, Cl. “Modèles de comportements et types d´aspirations dans les mouvements de jeunesse em Allemagne (1918-1933)”, in Esprit de corps, démocratie et espace public, Guglielmi et alii (org), Paris: PUF, 2005 Lewkowics et alii Del fragmento a la situación, Buenos Aires, Altamira, 2003. MV Bill e Celso Athayde Falcão,meninos do tráfico, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006. Marx K. O Capital(1867), Civilização Brasileira, 1980. Marx K. Manuscritos econômico-filosóficos (1844), Boitempo, Rio de Janeiro, 2005. Orlandi, E As Formas do Silêncio, Ed. Unicamp, Campinas, 1992. Orlandi, E. Discurso e Texto, Campinas, Pontes eds, 2001. Orlandi, E “A flor da pele: indivíduo e sociedade”, in Escrita e Escritos, B. Mariani (org), Clara Luz, 2006. Orlandi, E Cidade dos Sentidos, Campinas, Pontes eds, 2004. M. Pêcheux Les Vérités de la Palice, Maspero, Paris, 1975. Trad. Bras. Ed. Unicamp, 1988, Semântica e Discurso. Schaller, J. “Construire um vivre ensemble dans une démocratie renouvelée”, USP, São Paulo, 2001. 27
Notas 1 Fizemos um amplo estudo – em projeto temático da Fapesp (2004/2008) – em que mostramos como este “consenso” é produzido e como o imaginário desse consenso, assim produzido, serve de base à produção de políticas públicas. De meu lado, tenho pensado essa inter-corporalidade na formulação de que o corpo do sujeito está atado ao corpo urbano, tendo sua forma de vida determinada pela natureza e qualidade dessa relação. E me distingo aí do que desenvolve Thibaud a esse respeito. 2 Esta parte foi apresentada em uma versão mais extensa no CIAD, em São Carlos, em 2006. 3 Concordo com Schaller que a forma da relação é de segregação – uma vez posto fora, o indivíduo não conta para a sociedade, nem em sua existência política, nem física mesmo – e também concordo que esta é a forma da representação de classes, mas não aceito uma forma de interpretar isso, que é assim dito, como se não se pensasse mais a sociedade de classes, ou que a relação não é de classes. Estamos sempre ainda no sistema capitalista. O que está em questão, para mim, aí é a representação da relação social. Não o fato e a forma de sua existência. 4 Retomamos Castoriadis sem no entanto deixar de fazer a ressalva que esta (enfrentando o abismo) é uma expressão fortemente marcada pela discursividade religiosa (cf. por exemplo Gênesis). Daí propormos a deriva, o deslocamento para outra formação discursiva. 5 Os sentidos de movimentos sociais variam mas em geral têm sua padronização: a noção de movimento social tem servido para denominar uma organização estruturada com o fim de criar associação de pessoas ou entidades a fim de obter a promoção ou a defesa de objetivos face à sociedade. Podem ser legais ou ilegais. No modo como o vemos, discursivamente, assim como a identidade é um movimento na história, também a sociedade está em constante movimento na história. Há, pois, movimentos sociais contínuos. Qual a forma que eles apresentam e com a qual se representam? Quais são reconhecidos? Esta é a questão. Na formação discursiva dominante, o PCC, por exemplo, não pode ser considerado um movimento social. Toda sociedade constrói um sistema de valores e é em relação a eles que se considera um movimento social específico. 6 Claro que há sim um aspecto geográfico que favorece a criminalidade: entroncamento de grandes rodovias, aspectos de organização da cidade etc. Mas isto é só um elemento do modo de se praticar a criminalidade e não define sua existência como tal.
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MOVIMENTOS SOCIAIS: O PARADOXO ARGENTINO E OS DESAFIOS DO TEMPO PRESENTE Enrique Serra Padrós (UFRGS) Hermanos y Hermanas: (…) Toma ya nuestro rostro, toma ya nuestra voz. Nuestra vida la anda. Haste oído nuestro para escuchar del otro la palabra. (...) Ya no serás tu, Ahora eres nosotros. Subcomandante Marcos
Introdução O presente trabalho apresenta algumas reflexões introdutórias sobre os desafios que enfrentam os movimentos sociais desde os anos 90, quer dizer, dentro do período da história recente identificado como pós-guerra fria. A análise está centrada na experiência paradigmática da Argentina, laboratório de experiências sociais inéditas após a crise de 2001. Um esclarecimento inicial corresponde a uma opção metodológica do autor em tratar de movimentos sociais de forma genérica. Tal opção se justifica pelas características e formato do texto e pela compreensão de que o fundamental é a compreensão da lógica das situações percebidas e dos elementos comuns na atuação de protagonistas que, inquestionavelmente, detém particularidades e que possuem inteligibilidade a partir de fatores de origem, de efeitos conjunturais, de trajetórias específicas e de interação com o meio político e social em que atuam.
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Pós-guerra fria, neoliberalismo e pensamento único As profundas transformações estruturais que desde o final dos anos 70 foram corroendo as relações de produção vigentes, promoveram o gradual abandono da lógica fordista, do Estado de bem-estar e da defesa do pleno emprego. Tais transformações impactaram ainda mais, em função de estarem vinculadas a fatores que, agindo em outro plano da existência concreta, assinalavam a débâcle e desaparecimento da URSS e do socialismo real, a conformação da globalização neoliberal e a imposição do pensamento único (globalitário1), marcos fundamentais para a compreensão da nova realidade internacional e da nova relação de forças sociais derivadas daquela dinâmica. Enquanto repercutia o discurso apologético do fim da história e da consagração da superioridade do capitalismo sobre o socialismo, Eric Hobsbawm apontava para a configuração de um mundo de barbárie, marcado pela perda dos valores iluministas (racionalidade, cientificidade, fraternidade/solidariedade, felicidade coletiva, inclusão, etc.)2. Conseqüentemente, a banalização da violência, da indiferença e da desigualdade acompanhava o processo de desintegração político-social, gerando aquilo que Franz Hinkelammert denominou, na época, cultura da desesperança3, ou seja, a disseminação de uma percepção marcada pelo desespero, pela impotência diante da re-significação que transformava direitos historicamente conquistados em meros privilégios que, em nome de um igualitarismo de mercado, deviam ser extirpados. A ofensiva conservadora contra o socialismo (enquanto concepção) foi acompanhada de uma aguda escalada contra toda forma de organização e de participação que não fosse naqueles espaços de suporte da nova ordem. Dessa forma, o mundo do trabalho foi um dos alvos centrais, embora não ficasse restrita a ele. Nesse sentido, a intolerância passou a ser mecanismo de reordenamento restritivo, por parte do capital, produzindo, entre as populações visadas, incerteza, insegurança, violência, deterioração das relações de convivência e procura de saídas extremadas. Dentro dessa perspectiva, Zilda Iokoi4 aponta que “num mundo cada vez mais desigual, com expansão crescente da miséria, das guerras e as dificuldades decorrentes do descaso com o meio ambiente, vive-se como nunca situações de intolerância que inviabilizam o multiculturalismo”.Ou seja, paradoxalmente, no mundo da mundialização dos fatores econômicos e do estreitamento das distâncias, via rede mundial de computadores e revolução das telecomunicações, a tendência homogenizadora das práticas políticas, sociais e culturais dos centros capitalistas desenvolvidos denuncia como nocivos à civilização àquelas culturas e aqueles coletivos que resistem a essa onda pasteurizadora e destruidora dos sentimentos de pertencimento particular. 30
A perspectiva que Iokoi estabelece para a compreensão do fenômeno da intolerância é instigante: “A intolerância têm se manifestado em decorrência da idéia de que todos os povos do mundo não formam a humanidade (...)”.5 Portanto, há um componente fundamental dentro da lógica do tempo recente da globalização neoliberal, a idéia de uma exclusão que nega a própria identidade humana, relegando a uma situação de marginalização (de estar a margem) inédita na história contemporânea. Situações históricas anteriores, caracterizadas com esse teor de gravidade foram resultado da ação visível de decisões políticas (quase sempre estatais), diferentemente do que ocorre nas últimas décadas, onde a entidade mercado, apresentada como desconectada do mundo concreto dos homens, carrega, de forma abstrata, essa responsabilidade desumanizadora. Segundo Iokoi, a intolerância se manifesta, na atualidade através de Formas regressivas de práticas religiosas, xenofobias reabertas no continente europeu, fundamentalismos antigos e novos, disputas imperialistas, egoísmos e narcisismos individualistas e pela contínua imposição das desigualdades sociais. 6
Um dos aspectos destacados na dinâmica da ofensiva conservadora contra os trabalhadores e suas organizações foi o enfraquecimento dos partidos de esquerda e das estruturas sindicais, atingidos pela combinação de efeitos produzidos pelo colapso soviéticos (mudança de paradigmas) e pela desestruturação do Estado de bem-estar social. No caso latino-americano, a ofensiva sobre o mundo do trabalho e dos seus instrumentos de organização não conseguiu evitar o deslocamento da ação de resistência para velhos e novos movimentos sociais que foram se reestruturando ou constituindo durante a luta contra o neoliberalismo e as diretrizes do Consenso de Washington.7
Os novos movimentos sociais No final dos anos 80, as derrotas eleitorais de projetos de base popular no México, no Brasil e na Nicarágua (o melancólico fim da Revolução Sandinista), entre outros, simultâneos à simbólica queda do Muro de Berlim e, pouco depois, ao aparentemente desconcertante colapso soviético, produziram refluxos importantes nas organizações tradicionais da esquerda. A ofensiva contra as conquistas trabalhistas, a confusão dos partidos da esquerda tradicional (autocríticas, rupturas, divisões, mutações, etc.), a direitização de reconhecidos intelectuais à lógica do mercado e aos novos tempos e a ação em grande escala do pensamento único através das grandes corporações midiáticas induziram à despolitização da sociedade e, conseqüentemente, sua 31
desmobilização em defesa dos seus direitos. O estadunidense James Petras foi um dos primeiros a perceber que os efeitos negativos das políticas neoliberais aplicadas na América Latina, durante os anos 90, estavam gerando subjetividades, ainda pouco visíveis, entre os setores mais marginalizados e periféricos. Em 1996, antecipava os germes contestatórios que detectava a contrapelo da onda neoliberal. No artigo América Latina: a esquerda contra-ataca,8 apontava duas questões essenciais quanto à relação de forças naquela conjuntura. Por um lado, reafirmava as limitações de atuação e as contradições de certos partidos de esquerda e sindicatos, no embate contra a onda neoliberal sendo que, alguns deles, chegaram a assumir um claudicante adesismo. Por outro lado, identificava, de forma premonitória, o surgimento e a vitalidade de novos e desconhecidos movimentos sociais. Neles destacava uma certa autonomia de decisão e atuação diante das estruturas partidária e vislumbrava originalidade nas formas de organização, na coesão interna, nos mecanismos de solidariedade e, independente de reivindicações de ordem estrutural na ênfase em pautas específicas que davam sentido aos movimentos. Petras destacava que no MST (Brasil), no movimento dos cocaleros (Bolívia), na Confederação Nacional dos Camponeses (Paraguai), nas Madres da Praça de Maio e nos piqueteros (Argentina) assim como nas guerrilhas das FARC (Colômbia) e dos zapatistas do EZLN (México), afloravam disposição para o embate político (não-institucional), justamente no momento de maior refluxo da esquerda tradicional e suas formas de organização. Esses movimentos e organizações se consolidavam fora das tradicionais estruturas de manifestação dos anseios populares constituindo uma nova experiência que procurava resgatar alguns aspectos positivos da experiência acumulada das lutas sociais locais com modalidades originais surgidas nos embates aferidos diante das novas condições históricas que se ofereciam. Um dos principais exemplos a destacar é o uso inédito e eficiente das novas redes de comunicação por parte dos zapatistas. A imagem do subcomandante Marcos a cavalo e com um laptop no meio da selva Lacandona mas conectado com o mundo via Internet expressa essa adequação à nova realidade e o uso dos novos recursos potencializando politicamente um movimento que os incorpora no seu cotidiano de resistência. Uma outra característica desses movimentos, comum a todos eles e que se configura como resposta a um problema da maior magnitude colocado pelas práticas neoliberais é o combate à exclusão. Este fenômeno se mostra diferente daquilo que em outros tempos podia ser entendido como fases de desemprego conjuntural; a luta contra a exclusão estrutural passou a integrar um leque maior e diverso de atingidos nos ambientes urbanos, mas nas zonas rurais, acabou configurando uma identidade peculiar a determinados movimentos. Nesse sentido, o surgimento de movimentos camponeses originados de uma determinada atividade produtiva (caso dos cocaleros bolivianos), ou populações inteiras atingidas por deslocamentos 32
de rios, construção de barragens, vítimas de desmatamento ou de outras agressões contra o meio ambiente e o ecossistema no qual estão inseridos, mostram tomadas de consciência que fogem aos padrões tradicionais. Um outro elemento particular e de significado histórico tem sido o resgate do protagonismo dos movimentos indígenas. A recuperação dessa identidade assim como a dos mestiços têm adquirido conotações políticas inegáveis e acrescentado questões que impõem novos desafios para interlocutores governamentais que precisaram, diante dos fatos concretos, reconhecer um tardio estatuto de cidadania que apresenta singularidades de valores e referências. A Bolívia, o México, o Equador e o Peru são os países mais atingidos por essa crescente e persistente tendência. Mesmo o Chile, onde a comunidade Mapuche representa uma dimensão demográfica menor que a dos outros países citados quanto à presença indígena, suas demandas, denúncias e manifestações consolidam um espaço político que extrapola a própria comunidade para converter-se em ação que procura e gera apoio e solidariedade nacional.
O paradoxo argentino Um caso particular quanto aos limites e desafios para os novos movimentos sociais é o da Argentina pré e pós-2001, sendo esse ano, o da grande crise e falência institucional (Argentinazo). Para sua abordagem, partiremos da recente disputa eleitoral naquele país;9 entendemos que ela é paradoxal quanto à atuação e espaço político que ocupam e possibilidades concretas que projetam atualmente os movimentos sociais em um cenário de crises, incertezas e tensionamento políticomilitar ao qual não faltam os condicionantes externos. O caso argentino é ilustrativo das dificuldades de autonomização dos movimentos sociais que crescem exponencialmente em situações de crise profunda, mas que parecem ressentir-se quando, em fase posterior, encontram dificuldade para não serem cooptados pelo funcionamento político da tradição partidária ou da burocracia sindical. Ou seja, a revitalização e a re-institucionalização dos instrumentos político-partidários se colocam como desafios primordiais para os novos atores sociais. As iniciativas estatais e da sociedade política de, por vias formalistas, enquadrar as vigorosas mobilizações sociais originadas no ápice da crise econômico-financeira e política de dezembro de 2001 constituem uma ação de sobrevivência do establishment para evitar potenciais situações (impensáveis) de mudanças estruturais. É importante lembrar que a crise de 2001 foi o corolário do colapso político, moral e ético das instituições diante da tentativa de auto-desresponsabilização do poder econômico e da exigência aos setores médios (e populares, evidente), de pagar a conta 33
dos “alegres” anos do neoliberalismo desenfreado das duas administrações Menem. Os setores sociais médios vítimas de uma política estatal de confisco bancário (corralito) elaboraram formas de organização para proteger-se de uma situação de descalabro global. Para isso, se apropriaram de práticas de luta e resistência que os setores populares vinham desenvolvendo desde os anos 90, quando já sofriam os efeitos das políticas neoliberais (privatizações, desindustrialização, redução da prestação estatal de serviços sociais, etc.). Curiosamente o programa neoliberal do menemismo contou com a simpatia de significativa parcela dos setores médios, ofuscados com a ilusória fórmula da paridade cambial (um dólar = um peso). Esses mesmos setores, não só ignoravam ou negavam solidariedade àquelas primeiras vítimas das práticas neoliberais, como apoiavam as tentativas estatais de criminalização dos atos de resistência. O movimento piquetero surgiu em meados dos anos 90 quando pequenas cidades do interior da Argentina sofreram paralisia econômica com o fechamento ou privatizações de empresas estatais, fontes essenciais de trabalho e sobrevivência para a maior parte da população local. O desemprego crônico, a pobreza transformandose em miséria, a sensação de desamparo e a desobrigação do Estado de suas responsabilidades com essas pequenas populações, multiplicadas muitas vezes pelo interior mais pobre do país, geraram novas formas de denúncia e luta social. As primeiras organizações piqueteras foram associações dessas populações carentes, esquecidas pelos partidos políticos e sindicatos, que partiram para a interrupção das grandes estradas (piquetes, barreiras), impedindo o trânsito de caminhões que abasteciam cidades maiores e até a capital do país. Essa foi a forma mais eficiente encontrada para chamar a atenção dos grandes conglomerados urbanos e dos poderes constituídos e denunciar a dramática situação de abandono em que estavam imersas aquelas famílias. Paulatinamente, outras formas de lutas foram incorporadas ou adaptadas como marchas, greves, saques, ocupações e as ollas populares (sopões). A modalidade de luta piquetera se espalhou e se organizou por todo o país. As palavras do padre Spagnolo, vinculado às populações carentes, levantaram a auto-estima e a dignidade do movimento: “Se Jesus vivesse, seria piquetero”. 10 A causa piquetera e de outros grupos excluídos e esquecidos durante a festa neoliberal da paridade cambial foi acolhida, entretanto, pelas organizações de direitos humanos, especialmente pela associação Madres de Plaza de Mayo. Há quase quinze anos do fim da ditadura Madres, Abuelas, HIJOS, Familiares de Desaparecidos e outras organizações continuavam lutando contra o descaso governamental, a impunidade, a desmemoria e a permanência dos crimes cometidos pelo terrorismo de Estado. Com as consignas Verdad y Justicia, Nunca Más, as rondas na Praça de Maio, as manifestações e atos públicos diversos e a restituição de identidade de crianças seqüestradas, o movimento de direitos humanos, de forma, diversa e desigual, foi politizando sua forma de atuação. 34
O grupo que mais radicalizou nas suas posturas foi o liderado por Hebe Bonafini (Madres de Plaza de Mayo) e no final dos anos 90 começou a se aproximar das instâncias piqueteras e de outras organizações populares. As Madres foram e são uma expressão política curiosa da história política recente na Argentina. Primeiro, pela carga de tragédia que carregam e pelo fato de serem vítimas do mesmo processo que desapareceu e matou filhos e roubou netos. Segundo, porque até hoje, quase três décadas após os eventos que as originaram, ainda não se fez justiça no sentido pleno, e durante muitos anos, já em democracia, foram sistematicamente ludibriadas, enganadas ou ignoradas. Terceiro, porque diante da passagem inexorável do tempo conseguiram gerar relações sociais que através de muita disposição e luta política conseguiu sensibilizar boa parte das novas gerações tornando atual as suas demandas, mas assumindo também como suas as preocupações e os problemas das gerações mais jovens, as que corresponderiam aos seus filhos e netos. Diante de milhares de jovens as Madres marcam a sua função: “(...) llevaron a nuestros hijos, pero nacimos las Madres. Ellos nos parieron aquí, a esta lucha, tratamos de ser el puente entre ellos y ustedes.”11 Diante da coerência das posturas e da justeza das causas assumidas as Madres passaram a receber um reconhecimento ético quase universal entre os setores democráticos, em um país onde a corrupção se instalou nos altos escalões da vida política e econômica e passou a ser disseminada por toda a sociedade, mídia de por meio, como sinônimo de esperteza. A sabedoria das organizações de direitos humanos foi o de estar presente, na linha de frente, em toda manifestação reivindicada pelos setores populares e de incorporar a sua luta, as consignas por melhores salários, trabalho, educação, saúde, etc. Mostrando extrema lucidez na vinculação de suas demandas históricas com os problemas do presente, no final do governo Menem, denunciavam: “La falta de trabajo es un crimen, pero un crimen que nadie paga y nosotros queremos que los que hoy cometen el crimen dejándonos sin trabajo lo paguen y lo paguen caro”.12 Essa fala das Madres conferia à exclusão e seus derivados, uma conotação que ganhava outra dimensão nas palavras das suas lideranças. Se as Madres, as mesmas que eram vítimas do desaparecimento de filhos e seqüestro de netos, apontavam a exclusão social como ato criminoso de responsabilidade do governo, isto conferia outra legitimidade às denúncias dos setores abandonados ou em fase de sê-lo. Após a reeleição de Menem, em 1995, já eram perceptíveis os sintomas negativos do modelo e o seu esgotamento (desemprego crescente, dificuldade em manter a paridade cambial e o generalizado endividamento da população em dólares); os efeitos começaram a se espalhar por todo o tecido social. A situação foi herdada pela administração De la Rua, que não rompeu com o modelo vigente, frustrou os eleitores que o elegeram para mudar a orientação econômica e, com isso, aprofundou o impacto global da crise latente. Esta explodiu, após novos percalços, em dezembro 35
de 2001, com o decreto governamental de confisco das contas bancárias para fazer frente aos compromissos externos; ato seguido, o descontentamento acumulado durante meses, se traduziu em uma imediata e crescente resistência “quase” espontânea e um brutal incremento repressivo. Diante das manifestações de indignação, particularmente dos setores médios (principais atingidos com o confisco), o governo respondeu com ferocidade repressiva; os embates dos dias 19 e 20 deixaram um saldo de quase trinta pessoas mortas. Na quinta-feira dia 20, entre as imagens mais contundentes dos acontecimentos ocorridos no centro de Buenos Aires estavam as que mostravam uma coluna que avançava pela Praça de Maio. Na linha de frente caminhavam, de braços dados, as Madres, carregando a grande faixa da sua organização (quintafeira é o dia das clássicas rondas ao redor do monumento central da praça). As imagens da brutal arremetida da polícia a cavalo contra as Madres são portadoras de uma dupla expressão. Primeiro, a de um governo acuado e de um aparato de segurança impregnado de uma tradição de violência não descontaminada. Segundo, o significado político da postura daquelas mulheres, de idade variável entre 60 e 90 anos, encabeçando uma multidão multifacetada que as reconhecia na sua liderança e que atraiam a ira impotente do aparato repressivo. Diante dos fatos e tentando evitar o que considerava um desafio a sua autoridade, De la Rua decretou o estado de sítio, instrumento autoritário fruto de atitude irresponsável e insensível do presidente diante de uma sociedade argentina que expressava cotidianamente a tragédia de dezenas de milhares de desaparecidos e de centenas de crianças roubadas.13 O resultado foi que, superando pela primeira vez o medo residual do tempo da ditadura, a população, ignorando o decreto, como uma gigantesca onda pacífica sob a cadência dos panelaços, transbordou os esquemas coercitivos e fincou pé na histórica praça do centro de Buenos Aires onde ecoou a consigna emblemática “Que se vayan todos”, e forçou a renúncia do presidente. Nesse momento as instituições colapsaram. Em poucos dias, outros quatro presidentes interinos fracassaram na tentativa de encontrar alguma saída para uma crise inédita e de enormes proporções. Enquanto uma complexa engenharia política tentava recompor os “cacos” quebrados dos poderes constituídos, dos partidos14 e da estrutura sindical, a Argentina se converteu num verdadeiro laboratório de experiências sociais de um Estado literalmente quebrado. A peculiaridade daqueles eventos é que diante das notícias da fuga de especuladores, da opção repressiva do governo e do descaso das elites político-econômicos com o conjunto da população, ocorreu uma confluência de piqueteros, desempregados, jovens sem perspectivas de trabalho, familiares de desaparecidos e setores médios confiscados que superou o dique repressivo de contenção de uma democracia esvaziada de consciência cívica e descompromissada com o porvir da população. A população procurou saídas diante da crise de governabilidade e se organizou 36
de múltiplas formas para contornar uma situação dramática: sem presidente, sem sucessores, sem dinheiro, com bancos fechados, com o comércio fechado e boa parte da vida produtiva do país paralisada. Foi nesse momento que começaram a surgir novas formas de organização social, algumas micro, outras mais complexas. Assembléias vizinhais (barriales), feiras de troca (trueque), novos movimentos piqueteros, ações de ocupação e recuperação de fábricas, entre outras práticas, foram iniciativas que marcaram uma refundação cidadã que objetivava reconfigurar, sob certa forma, o Estado e os métodos tradicionais de fazer política. O caso mais emblemático dessa reconfiguração de experiências coletivas e solidárias para enfrentar situações tão adversas, a margem de partidos e sindicatos foi o movimento pela recuperação de fábricas. Nesse sentido, a ação pela manutenção dos postos de trabalho veio acompanhada pela iniciativa de incorporar e apropriar-se de saberes e funções não habituais, de desenvolver uma cultura de trabalho cooperativo e autogestionário e a criação e experimentação de redes de apoio comunitárias, interligando a unidade produtiva e fonte de trabalho, direta ou indireta, para muitas famílias do entorno barrial com as outras unidades produtivas ou prestadoras de serviço da vizinhança, passando pela própria discussão das prioridades comunitárias (escolas, creches, posto de saúde, etc) em profícua interação com as fábricas retomadas, sobretudo quando elas são fator vital de recuperação do conjunto global da comunidade. Símbolo de toda essa luta tem sido a fábrica de cerâmica Zanon (na província de Neuquén), a maior de todas as unidades recuperadas (com sete anos de experiência em andamento) e que tem enfrentado tentativas de retomada, por parte dos antigos proprietários, problemas de financiamento e de concorrência e a falta de apoio público; mesmo assim, tem resistido e conseguido aumentar índices de produtividade e incorporado mais trabalhadores a sua linha de produção. Apesar do revigoramento e da renovação de experiências inéditas, observadas, estudadas e analisadas internacionalmente, o paradoxo argentino apresenta uma frustrante surpresa. A criatividade e ousadia política para encontrar saídas coletivas àquela conjuntura acabou sofrendo erosão e acentuado refluxo poucos meses depois da queda de De la Rua. A institucionalização de uma saída provisória com o governo Duhalde e, posteriormente, a consolidação eleitoral de Nestor Kirchner, recuperou a dinâmica política de perfil mais tradicional e caudatária dos mecanismos históricos da cultura peronista. A estabilidade institucional apoiada pelos setores médios, como forma de esvaziar processos mais radicais, obteve resultados concretos. A volta à normalidade significou esvaziar correntes e lideranças mais radicais, recolocar a tradição sindical como mecanismo de controle institucional das demandas do mundo do trabalho e definir interlocutores confiáveis, por parte do governo. A eficiência discursiva do governo Kirchner, a incorporação do tema direitos humanos na agenda política do governo e certa cooptação de algumas 37
organizações de direitos humanos, a retomada de crescimento da economia Argentina, a recuperação da capacidade de consumo por parte de certos setores sociais e um discurso que às vezes lembra a velha tradição populista parecem ter minado o espaço de atuação daquelas experiências e provocado seu refluxo. As eleições de 2007 foram sintomáticas. Houve um recuo considerável no debate político. A apatia, a indiferença e o desinteresse foram registros desse processo. E diante disso, cabe a pergunta: o que ocorreu com aqueles movimentos que haviam conseguido derrubar ou rejeitar cinco presidentes durante o argentinazo? Tudo indica que a recuperação relativa da economia argentina retirou da oposição parte dos setores médios e alguns trabalhadores não-peronistas. Por outro lado, o medo dos setores dominantes da radicalização dos cabecitas negras (forma preconceituosa como a elite denomina à população da periferia urbana e do interior do país) estimulou a procura de soluções que pudessem atender minimamente algumas demandas, que pudessem reconstruir o aparato do estado e, sobretudo, sua estrutura jurídica e securitária. Entretanto, vale a pena lembrar. Movimentos piqueteros que não foram atendidos nas suas reivindicações pelo atual governo, ou que não foram cooptados pelas estruturas peronistas, ou que romperam com os setores que aderiram ao kirchnerismo, são apontados desde o governo e da mídia como grupos radicais, inconseqüentes e ameaçados, cada vez mais, com a criminalização dos seus atos.
Reflexões finais O laboratório social argentino permanece em inúmeras atividades que surgiram e se mantém desde a grande crise de 2001. O que não se confirma é a presença central da subjetividade daquele protagonismo político que organizado em miríade de pequenas organizações sobreviveu durante algum tempo, mas, finalmente, parece ter sido engolido pela máquina da estrutura sindical e dos seus vícios. Ou, talvez, foi cooptada dentro da retomada de um peronismo de perfil kirschnerista, o que significa marcar certa distância do menemismo (originário da mesma matriz), o que na história recente argentina não é pouca coisa, considerando a responsabilidade do período Menem na gestação da crise. O paradoxo argentino continua a ser, em pequena escala, a síntese da maior das dificuldades que enfrentam os movimentos sociais dentro do novo quadro mundial, ou seja, a criação de um elo político de ligação que permita superar a hiperfragmentação, a sedução da institucionalização, a aceitação da tentação paternalista ou o “canto de sereia” dos partidos políticos. Diante dessas ameaças está em jogo sua autonomia, indispensável, e a especificidade das suas demandas, fatores que têm sido responsáveis pela sua estruturação e sobrevivência em tempos de enquadramento geral de parte da esquerda. Isso sem 38
contar a ameaça permanente de que dispositivos jurídico-institucionais possam ser acionados para condená-los dentro do objetivo da criminalização de suas ações, objetivo pretendido a tempos pelos setores mais conservadores. Um dos grandes desafios continua sendo o de encontrar um campo comum de atuação com outras forças e organizações e de estabelecimento de uma agenda onde as suas demandas tenham vez e coexistam com as dos outros protagonistas, mas a partir da definição de alguns itens essenciais comuns a todos. Outro desafio consiste em estabelecer pautas de relacionamento com os partidos políticos sem perder identidade, autonomia nem protagonismo. Quando os movimentos sociais ficam reféns dos partidos políticos ou dos governos, começam a sofrer dissensões e divisões na sua base o que, em muitos casos, pode ser fatal. Finalmente, a observação sobre o(s) denominado(s) movimento(s) antiglobalização ou altermundismo permite refletir sobre as dificuldades de opor uma resistência mais eficiente às estruturas de poder em perspectiva macroestrutural. A pesar dos Fóruns Mundiais e de vários eventos do mesmo tipo que tem permitido acumular enorme experiência, constata-se o quão longe se está de resultados gerais mais conseqüentes, o que não invalida a experiência, bem pelo contrário. Nessa perspectiva, há um último elemento que precisa ser resgatado na lógica do embate e da atuação dos movimentos sociais nas atuais condições de mundialização; por mais ambicioso e distante que possa parecer, a priori, os movimentos sociais terão que enfrentar cada vez mais o desafio da sua própria internacionalização o que exigirá novos desdobramentos em termos de identidade(s), de formas organizacionais e de estruturação de redes de atuação combinada. Os desafios impostos pela atual fase do capitalismo impõem, exigem, essa nova dimensão de compreensão política dos espaços, dinâmicas de atuação e luta política.
Bibliografia AMÉRIQUE LATINE REBELLE. Manière de voir 90. Le Monde diplomatique, décembre 2006-janvier 2007. CULTURE, IDÉOLOGIE ET SOCIÉTÉ. Manière de voir hors-série. Le Monde diplomatique., mars 1997. FONTANA, Josep. La Historia después del fin de la Historia. Barcelona: Crítica, 1992. __________ História depois do fim da História. Bauru, SP: EDUSC, 1998. FONTES, Virgínia. O Marxismo Ontem e Hoje – Perspectivas. In: Ciências & Letras, Faculdade Porto-Alegrense de Educação/FAPA, Nº 18/1997. pp 81-100. HINKELAMMERT, Franz J. Democracia y nueva derecha en América Latina. In: 39
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Notas 1 Ignácio Ramonet elaborou o conceito “pensamento único” em meados dos anos 90. Para ele, era sinônimo de “consenso fabricado”. A evolução dos acontecimentos, a intensificação da agressividade privatista no Terceiro Mundo e no ex-campo socialista e o engajamento da mídia corporativa nesse processo levaram-no a readequá-lo como pensamento único globalitário. RAMONET, Ignácio. Regimes Globalitários. In: FIORI, José Luís; LOURENÇO, Marta Skinner de; NORONHA, José Carvalho de. Globalização: o fato e o mito. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1988. 2 HOBSBAWM, Eric. Barbárie: o guia do usuário. In: SADER, Emir. O mundo depois da queda. São Paulo: Paz e Terra, 1995. 3 HINKELAMMERT, Franz J. Democracia y nueva derecha en América Latina. In: Nueva Sociedad, Caracas, 98:104-114, 1988. 40
4 IOKOI, Zilda Márcia Grícoli. Movimentos sociais na América Latina: desafios teóricos em tempos de globalização. In: QUEVEDO, Júlio; IOKOI, Zilda M. G. (org.). Movimentos sociais na América Latina: desafios teóricos em tempos de globalização. Santa Maria: MILA, CCSH, Universidade Federal de Santa Maria, 2007. p. 15. 5 Idem. 6 Idem. 7 Nome dado ao conjunto de recomendações para América Latina, elaboradas no International Institute for Economy (Washington), em 1989, por funcionários estadunidenses, organismos internacionais e economistas latino-americanos. Após diagnosticar graves disfunções macro-econômicas na região como dívida externa elevada, estagnação econômica, inflação crescente, recessão e desemprego, encaminharam, como forma de recuperação do crescimento econômico, medidas coerentes com o escopo do avassalador pensamento neoliberal e com a reversão de programas de cunho estatista, nacionalista e industrialista. 8 PETRAS, James. Neoliberalismo: América Latina, Estados Unidos e Europa. Blumenau: Ed. da FURB, 1999. 9 Refiro-me ao pleito eleitoral de outubro de 2007, que consagrou a vitória de Cristina Fernández de Kirchner, ainda no primeiro turno. 10 Los “piqueteros”, parte de una forma histórica de lucha. Rebelión, 21/06/01 11 Hebe Bonafini. Discurso pronunciado no Estádio do Ferro, em 1997, por ocasião do vigésimo ano de fundação da organização - 20 Años - Ni un paso atrás! 12 Idem. 13 A decretação do estado de sítio foi uma infeliz determinação do poder executivo. Ignorando o recente passado repressivo argentino, a atitude presidencial foi surpreendida pela reação massiva de uma sociedade que, segundo diversas avaliações, finalmente superou o medo inercial resultante do terrorismo de Estado aplicado pela ditadura durante 1976 e 1983 e que se projetou, como seqüela, nos governos democráticos posteriores. 14 É importante lembrar que as Madres vinham questionando o comportamento e a incoerência das posturas dos principais partidos argentinos há alguns anos, embora fizessem a denúncia desde o lugar particular dos direitos humanos e das acusações por conivência ou omissão deles e seus respectivos governos com o aparato repressivo da ditadura e suas políticas de anestesiamento: “Las Madres 41
no creemos en los partidos políticos. Los partidos políticos nos traicionan.” (Hebe Bonafini. Discurso citado). Considerando o prestígio da organização, a crítica contra os partidos ganhava certa legitimidade. Da mesma forma, merece registro uma das imagens mais emblemáticas dos acontecimentos do dia da queda de De la Rua: um ataque da cavalaria bonaerense contra uma coluna que avançava dentro da Praça de Maio e sua linha de frente: as próprias Madres.
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SUJEITO E DISCURSOS CONTEMPORÂNEOS Bethania Mariani (UFF) “Fazer samba não é contar piada” (Vinícius de Moraes, Samba da bênção)
Um ponto de partida No título dado a esta mesa1 que abre o III SEAD, os significantes ideologia e inconsciente sugerem que trabalhemos a questão do sujeito na cultura contemporânea. Da minha posição de trabalho em análise do discurso, são as vicissitudes do sujeito que, na contemporaneidade, não reconhece sua subordinação ao Outro, à Lei, que trago como foco para discussão. A fim de discutir o sujeito na cultura contemporânea, de imediato lembrei de certas materialidades discursivas dispersas, em circulação na atualidade, que recentemente tenho visto, escutado, lido. São discursividades bastante heterogêneas entre si, mas de alguma maneira representam o modo como o sujeito na contemporaneidade se representa em sua relação com o cotidiano sócio-cultural, produzindo um ordinário do sentido (Pêcheux, 1981, p. 46) sem se mostrar afetado por um mal-estar, um mal-estar na civilização. A primeira dessas discursividades é um filminho, na verdade são duas ou três versões, de um minuto e meio a cinco minutos, todas as versões com o mesmo título, que circula no You Tube2. Esse filminho (e suas paráfrases) chama-se Ovos em Ipanema. Em Ovos em Ipanema; o início, aparece um grupo de jovens de classe média alta do Rio de Janeiro. Todos estão na varanda de um edifício na praia de Ipanema jogando ovos nos carros que passam pela Avenida Vieira Souto. Em outra versão — Ovos em Ipanema; escória eggs from... — repetem-se as cenas dos ovos sendo arremessados e, ao fundo, ouvimos uma moça cantar, ao ritmo de uma conhecida melodia da Bossa Nova, uma paródia, cuja letra diz mais ou menos assim: “Vou te tacar/ os ovso já não podem crer / coisas que só uma galinha pode entender / fundamental é mesmo o calor / é impossível ser chocado no frio”. Por fim, em sua terceira versão — Ovos em ipanema; ovos do inferno: ipanema ovos boninho narcisa ovos inferno —, o filme mostra diferentes pessoas sendo entrevistadas sobre o que já jogaram pela janela de suas casas. A segunda discursividade é a música Ode to my pills, da dupla pernambucana 43
que se chama Duo Montage. A letra da música é a seguinte: “lexotan / diazepan / hactapan / ripnol / rivotril / dualide / desobese / diempax / inibex / cytotec / dramin / pra mim / ketamin / pra mim / valium / vale um valium / vale um / prozac vale um / dramin vale um / benflogin faz bem / faz mal / faz bem / faz mal faz bem faz mal faz bem faz mal faz bem faz mal pra mim. A terceira discursividade em questão vincula-se a dois acontecimentos brutais, distanciados temporalmente entre si, mas que produziram enunciados em relação parafrástica. São enunciados formulados por sujeitos que justificam seus atos —arrastar por quilômetros um menino de três anos e roubar e espancar uma empregada doméstica. Os sujeitos envolvidos — rapazes de comunidades de baixa renda, no primeiro caso, e rapazes de classe média alta, no segundo caso — alegando um mal entendido, afirmam, respectivamente em seus depoimentos na polícia: “ Achei que era um boneco”, “Pensamos que era uma prostituta.” Para discutir essas discursividades, tendo em vista o sujeito na contemporaneidade, começo essa minha fala retomando os três significantes — ideologia, inconsciente e cultura — que figuram no título proposto para discussão sobre discurso e ética. Inicio pelo último — cultura. Como pensar discursivamente a cultura?
Breve digressão sobre cultura Cultura é um significante que até pouco tempo não circulava muito pela análise do discurso, em seus escritos que trazem a marca da relação entre a opacidade da linguagem, a historicidade como possibilidadade de inscrição dos sentidos na história, e a sociedade pensada em termos de relações de força. Ora, relendo Pêcheux3 , em suas raras incursões teóricas à temática da cultura, localizei dentre essas incursões, duas que me servem de pistas para desenvolver o que nos interessa aqui. Em Discurso: estrutura ou acontecimentacontecimento (1990 [1988]), Pêcheux faz duas afirmações que nos permitem pensar na cultura como uma forma de produção social que aponta para características, ou especificidades, das relações entre sujeitos numa dada formação sócio-histórica. A primeira dessas afirmações tem como referência a posição de trabalho da Análise do Discurso que, como sabemos, incide na compreensão do funcionamento das materialidades discursivas “implicadas em rituais ideológicos, nos discursos filosóficos, em enunciados políticos, nas formas culturais e estéticas, através de suas relações com o cotidiano, com o ordinário do sentido.” (Pêcheux, op.cit.,p. 49) A compreensão do funcionamento dessas discursividades supõe um trabalho de entremeio teórico no qual o registro da língua, da história e do inconsciente estão entrelaçados. Esse ponto é importante para retomarmos a outra menção à cultura feita por Pêcheux. Vejamos. A segunda afirmação de Pêcheux em que entra a questão da cultura está ligada 44
à “promessa de uma revolução cultural” resultante do encontro dos três campos marcados pela “ trilogia subversiva Marx-Freud-Saussure”, que deslocam o sujeito como centro ou origem. “Revolução cultural”, portanto, na medida em que as formulações teóricas desses autores colocaram em questão a fenomenologia, o existencialismo, as psicologias do ego, as filosofias da consciência de si que davam sustentação e buscavam explicar o sujeito. Um deslocamento conceitual se produziu ao se teorizar o sujeito em sua sujeição à esfera do econômico e à série de significantes que o constitui, o aliena e o divide. Althusser, em sua releitura de Marx e Lacan, em sua releitura de Freud, cada um a seu modo, colocam em cheque a fantasia autofundadora do sujeito. Mostram como aquilo que se apresenta como realidade para esse sujeito origem de si se afirma e se dissimula em construções discursivas. Com esses autores, há uma passagem para um outro registro conceitual, o de uma não transparência desse sujeito, um sujeito que não tem como ser reconhecido por um saber que o antecederia, por uma completude consciente ou por traços universais. “Os efeitos políticos e culturais desse movimento anti-narcísico não estão esgotados”, disse Pêcheux em 1981. Partindo dessas pequenas pistas formuladas por Pêcheux, entendo cultura – de uma maneira bastante ampla - como resultante de práticas dos sujeitos e entre sujeitos que remetem para um estado de coisas num determinado momento e em um determinado lugar em uma formação histórica; práticas vinculadas a maneiras de se relacionar em sociedade. Ao mesmo tempo, são práticas não dissociadas dos modos sócio-históricos de produção, reprodução, resistência e transformação dos sentidos. Práticas expostas também à errância e à não-totalidade dos processos de significação. Trazendo uma ótica psicanalítica4, e descartando o ponto de vista da psicologia individual ou da psicologia coletiva, pode-se compreender que a cultura supõe o encontro da “interioridade de uma situação individual — manifesta nos impulsos que vêm desde dentro do sujeito — e a exterioridade de um código universal, subjacente aos processos de subjetivação e aos regulamentos das ações do sujeito com o outro.” (Fuks, 2003, p. 10). A noção de cultura, portanto, supõe um forte vínculo ao laço social, na relação que se estabelece com a alteridade e, também, em relação ao Outro5. Falar de cultura, desse modo, é se situar em relação à questão da alteridade, pois não há prática sócio-cultural, não há organização social em que o Outro esteja ausente. Nesse sentido, pensar a cultura é, em muitas situações, falar do desejo do sujeito e daquilo que limita esse mesmo desejo em nome do laço social. Ou ainda, trata-se de discutir o narcisismo que não tolera as diferenças ou limites. Freud, em O mal estar na civilização (1930), relaciona cultura, civilização e neurose ao afirmar que a neurose surge em função da intolerância à frustração imposta pela sociedade a serviço de seus ideais culturais, entendendo como culturais “todas as 45
atividades e recursos úteis aos homens”. (Freud, op. cit., p. 94, 96). Nesse texto, Freud mostra que a cultura, a civilização, surge no embate entre os impulsos do sujeito e as restrições que a Lei impõe para a sociedade. Diz Freud: ... o elemento de civilização entra em cena com a primeira tentativa de regular esses relacionamentos sociais. Se essa tentativa não fosse feita, os relacionamentos ficariam sujeitos à vontade arbitrária do indivíduo, o que equivale a dizer que o homem fisicamente mais forte decidiria a respeito deles no sentido de seus próprios interresses e impusos institivos. (...) A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização. Sua essência reside no fato de os membros da comunidade se restringirem em suas possibilidades de satisfação, ao passo que o indivíduo desconhece tais restrições. A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça , ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo. Isso não acarreta nada quanto ao valor ético de tal lei. (...) Essa ´frustração cultural´ domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos.” (Freud, op. cit., p. 101, 103) Dessa longa citação da reflexão psicanalítica de Freud sobre a gênese da cultura / civilização, em que pese a marca do período histórico em que foi formulada, gostaria de chamar a atenção para essa tensão que marca o encontro entre “os impulsos do sujeito” e o seu assujeitamento às formas sociais de relacionamento com o outro. São formas sociais regidas pelo simbólico e que marcam os processos de subjetivação. Entre os sujeito e a cultura há convivência, mas também há conflito, confronto: do lado sujeito, o desejo que o constitui é acolhido e, ao mesmo tempo, é limitado em nome das relações sociais e culturais. O sujeito freudiano, nessa medida, é um sujeito dividido, marcado por desejos, sublimações e culpas. Se o inconsciente fala nesse sujeito, o “nascimento da consciência – do eu – não é possível sem a formação do supereu”, como afirma o filósofo Dufour. (19 p. 107)
E as discursividades? Volto, agora, às discursividades mencionadas no início do trabalho, quando menciono os dois acontecimentos violentos, as duas formas de confronto com a Lei mencionada por Freud. O promeiro desses dois acontecimentos foi cometido por três rapazes, moradores de comunidades carentes, que durante um roubo de carro arrastaram, preso pelo cinto de segurança, um menino de seis anos por diversas ruas cariocas6. Em depoimento, os rapazes disseram que não perceberam que era uma criança sendo arrastada, para eles se tratava de um boneco de Judas. Segundo José Nazar, psicanalista do Rio de Janeiro, essa “cena grotesca produziu uma rachadura identificatória em cada um de nós”. Vale a pena trazer um pouco mais as suas palavras, pois elas representam um importante gesto de interpretação. Cito: “Este acontecimento em si rompeu com todos os liames e pactos sociais 46
estabelecidos pelas leis dos humanos, as leis que orientam os padrões de uma vida em sociedade, entre semelhantes. Ou seja, produziu uma ruptura dos acordos sociais que são construídos ao longo dos tempos e que regem as relações de uma política de suportabilidade entre os viventes. Um assassinato, por assim dizer, contrário aos valores e às leis que sustentam o processo civilizatório, contra tudo e contra todos. (...) esta montagem sacrificial veio mostrar, tornar público, o fato de que alguma coisa não anda bem e que, portanto, torna-se necessária a reavaliação das nossas relações com os argumentos que sustentam as instituições brasileiras em sua vigência moral e ética.” (Nazar, 20077) “Alguma coisa não anda bem”, afirma o psicanalista, referindo-se ao crime que é “contrário aos valores e às leis que sustentam o processo civilizatório...”. Esse mesmo ponto de vista pode ser referido ao outro acontecimento que trago para discussão — o dos cinco rapazes de classe média alta que espancam a empregada doméstica em um ponto de ônibus na Barra da Tijuca, também na cidade do Rio de Janeiro. Nesse caso também ocorre a “ruptura nos acordos sociais que regem as relações de uma política de suportabilidade entre os viventes” em função da futilidade, da gratuidade com que a cena grotesca foi engendrada. Esses rapazes, que roubam e espamcam a moça, justificam seu ato dizendo que para eles a moça agredida seria uma prostituta, como se fosse permitido, ou possível, o espancamento de prostitutas. Em termos discursivos é importante retomar o modo como esses rapazes justificam seus atos. Refiro-me aos dois enunciados que portam enunciações que podemos situar em uma rede parafrástica: “Pensei que ([ele] era um boneco de Judas)”; “Achamos que ([ela] era uma prostituta)”. Para além da organização gramatical dos enunciados — duas orações subordinadas substantivas, construídas com verbo discendi que, na oração principal, formulam suposição — o que a ordem da língua me diz, em termos da discursividade que aí se instala, é um movimento de colocar a responsabilidade em quem sofreu a agressão, como se bonecos e prostitutas pudessem ser arrastados ou espancados sem haver problemas jurídicos ou éticos. Importa chamar a atenção para a enunciação aí instalada, uma enunciação que apontta para um lugar no qual o sujeito se exime de responsabilidade pelo que faz. Que sujeito é esse que aí se representa nos enunciados desses jovens? Trata-se de um sujeito que não se implica na cena. Um sujeito que alega um engano, um equívoco e, em função desse equívoco, se exime da culpa, se exime do crime cometido. Ele está na cena, mas a cena que ele vê e significa é de outra natureza. Ora, desde Freud sabemos que um equívoco, um ato falho, é, ao contrário do que parece, um ato bem sucedido, pois nele a verdade do inconsciente fala, se mostra. Assim, observemos, agora, as outras duas discursividades contemporâneas: a letra da música da dupla nordestina e os filminhos cariocas, também citados no início desse texto. Em Ode to my pills, o sujeito se anestesia. Um sujeito anestesiado, puro fluxo 47
metonímico sem amarras, sem pontos de significação. É uma montagem, o sujeito dessa enunciação. O que tem valor social para esse sujeito? O que vale esse sujeito? Como ele se significa ao enunciar esse fluxo metonímico de ansiolíticos e antidepressivos? Ele “vale um valium” e toda a série de medicamentos que a letra da música associa, fazendo uma ode. Ao invés de enunciados mais simples ou mais complexos, a letra da música, constituída majoritariamente por substantivos próprios que designam remédios, aponta para uma dessimbolização. Se nos acontecimentos violentos discutidos anteriormente o equívoco fala da agressividade sem limites, nessa música a série metonímicados nomes próprios dos medicamentos invocados anestesiam as possíveis frustrações do sujeito. Frente ao real, essa precária montagem de sujeito nem consente, nem se opõe, apenas se anestesia, dizendo pouco ou quase nada de si. Assim, anestesiado, desterritorializado, sem inserção social, sem interesses, sem memória, é desse modo que esse sujeito interropme a série metonímica, inscreve uma amarração, um ponto de basta na formulação de uma dúvida. Ou seja, o sujeito, (se) constitui um lugar discursivo localizado no movimento pendular de uma incerteza ao colocar os opostos fazer bem vs fazer mal. Situa-se, assim, entre o se drogar e o se cuidar: “faz bem, faz mal pra mim”. Em Ovos em Ipanema, para além da absoluta gratuidade do ato e das entrevistas filmados — jogar ovos em carros que passam na rua, perguntas sobre o que as pessoas jogam pela janela de seus apartamentos — a paródia musical resulta em uma resignificação que não formula nenhuma crítica específica. Uma resignificação sem força social, sem crítica e, como nas outras discursividades, sem jogar com a memória histórica. Observe-se que quem canta a paródia musical é Luisa Jobim. É sua voz que empresta sentidos a essa farra do narcisismo. Inscreve-se na música, nos filmes, nas entrevistas, um não reconhecimento das diferenças e, ao mesmo tempo, um narcisismo que não aceita ser questionado, pois tudo pode. Estar-nomundo nestes filminhos é um aqui-e-agora que aponta apenas para isso: estar-nomundo-aqui-e-agora. Nessas três discursividades, a função simbólica se encontra esvaziada.
Reflexões finais Bom, o que dizer desse sujeito na contemporaneidade? Caminho, em direção ao final dessas minhas anotações, com o filósofo Dany-Robert Dufour, e seu livro A arte de reduzir as cabeças; sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal e com o psicanalista Jean-Pierre Lebrun, com seu livro Un monde sans limite. Quero mencionar também o livro dos psicanalistas Charles Melman e Jean-Pierre Lebrun, O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. E por fim, trago também 48
as ponderações de Maria Onice Payer, com seu texto Linguagem e sociedade contemporânea: sujeito, mídia, mercado. O que essses autores têm em comum, mesmo partindo de campos conceituais diferenciados? Todos apontam para uma onipresença e onipotência do Mercado como instância máxima de Poder frente aos Estados Nacionais. O que rege a maioria das relações sociais na atualidade é uma submissão à circulação da Mercadoria, uma circulação volátil e em movimento rápido e constante. Do ponto de vista político e econômico, são os efeitos desse novo capitalismo, ou seja, são os efeitos do neoliberalismo que estão afetando a função simbólica, nosso estar-no-mundo e, em conseqüência, a própria constituição do sujeito. Lebrun (1997), logo na introdução de seu livro, discute essas modificações nas relações sociais e na função simbólica citando, por exemplo, a globalização, o crescimento do individualismo, do juridismo, o aumento da violência, o incremento da tecnologia e da ciência como elementos da história contemporânea intrincados em tais modificações8. Relembrando Freud em O mal estar na civilização, Lebrun sustenta que, ao elaborar uma escuta do social, a psicanálise pode atuar como “um médico da civilização científica”, ajudando a esclarecer em que “nosso social, marcado pelos implícitos do discurso tecno-científico leva a adesão a um mundo sem limite e autoriza, assim, a contravenção às leis da fala que nos especificam como humanos.” (Lebrun, op. cit., p. 23) De acordo com Dufour, retomando Melman e Lebrun em O homem sem gravidade, estamos passando “de uma economia psíquica fundada no recalque e, conseqüentemente, na neurose, para uma cultura que promove a perversão, última defesa contra a psicose.” (Dufour, 2003, nota 10, p. 15). Para Dufour, em termos filosóficos, se o sujeito moderno define-se duplamente como o sujeito crítico kantiano (nascido em torno do início do século XIX) e o sujeito neurótico freudiano (nascido em torno do século XX), é essa definição que está condenada na contemporaneidade (por ele designada como pós-modernidade). Dufour precisa que não está se referindo ao indivíduo em termos biológicos, psicológicos, sociológicos, enfim, em termos empíricos. Suas observações incidem sobre uma nova forma filosófica de sujeito — uma forma ainda em construção. Neste raciocínio, ao mencinar o enfraquecimento do sujeito kantiano e do sujeito freudiano, está se referindo a “formas construídas pelo entendimento para se fixar durante um certo tempo (...) formas do sujeito construído durante a modernidade e definidoras da própria modernidade.” (dufour, op. cit. , p. 16) De acordo com o autor, hoje, na economia neoliberal, assistimos a condenação desse sujeito duplamente determinado - pela lei e pela culpa – e vemos o nascimento de um sujeito a-crítico, “disponível para todas as conexões, um sujeito incerto, indefinidamente aberto aos fluxos de mercado e fluxos comunicacionais, em carência permanente de mercadorias para consumir.” (Dufour, op. cit., p. 118) A emergência desse sujeito a-crítico, psicotizante nas palavras de Dufour, ou 49
esquizóide, se retomarmos os termos de Deleuze e Guattari, não se dá ao acaso. Ao contrário, há mais de vinte anos filósofos vêm sinalizando para seu declínio. De acordo com Dufour, duas instituições — a televisão e a escola — são responsáveis por esse enfraquecimento. Um declínio que se marca pela dessimbolização, ou seja, “pelo enfraquecimento do Outro no sentido do Outro simbólico: um conjunto incompleto no qual o sujeito possa verdadeiramente enganchar uma demanda, formular uma pergunta ou apresentar uma objeção. Nesse sentido, é idêntico dizer que a pós-modernidade é um regime sem Outros ou que a pós-modernidade é repleta de semblantes de Outros, que imediatamente mostram o que são: tão cheios de presunção quanto as tripas.” (Dufour, op. cit., p. 59) Onice Payer, assim como Dufour, assinala a força da mídia na constituição dessa nova subjetividade. Para Payer, enquanto analista de discurso, em nosso tempo histórico, a mídia é o Texto fundamental que funciona como máxima capaz de fazer a “interpelação ideológica dos indivíduos em sujeito.” (Payer, p. 14, 15) Diz a autora: “O valor que a sociedade vem atribuindo à mídia — ou o poder de interpelação que a Mídia vem exercendo na sociedade — passa a assegurar-lhe o papel de Texto fundamental de um novo grande Sujeito, o Mercado, agora em sua nova forma globalizada.” (Payer, p. 16). Para fechar essas anotações sem necessariamente concluí-las, acho importante colocar, como questão para nós, analistas do discurso, até que ponto, em termos da formação social brasileira, estaríamos sofrendo os efeitos (ou imersos nesses efeitos) de uma nova forma-sujeito. Dessas minhas breves anotações sobre essas discursividades dispersas e heterogênesas, ficam minhas indagações sobre a natureza singular desse sujeito sem amarras, entregue à demanda e aos desmandos do mercado, da mídia. A que historicidade responde essa subjetividade, enfim, pouco sumetida à Lei e às leis, cujo simbólico encontra-se empobrecido? Estaríamos, de fato, diante diante de um sujeito anestesiado, sem memória e sem objetivos, desgarrado dos discursos que organizam um estar-no-mundo (“semanticamente estabilizado”, do qual nos fala Pêcheux)?
Referências bibliográficas DUFOUR, Dany-Robert. A arte de reduzir as cabeças; sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro, Ed. Companhia de Freud, 2003 FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização (1930 [ 1929]). Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Volume XXIRio de Janeiro, Imago Editora, 1988, p. 67 a 155. FUCKS, Betty B. Freud e a cultura. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003 LEBRUN, jean-Pierre. Un monde sans limite; essai pour une clinique 50
psychanalitique du social. Ramonville Saint-Agne, Éditions Erès, 1997. MELMAN, Charles. O homem sem gravidade; gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro, Ed. Companhia de Freud, 2003 ORLANDI, Eni P. Interpretação; autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Rio de Janeiro, Vozes, 1996. PÊCHEUX, Michel. Discurso; estrutura ou acontecimento? Campinas, Ed. da Unicamp, 1991.
Notas 1 Discurso e ética: o funcionamento da ideologia e do inconsciente na cultura contemporânea 2 You tube é um site na internet no qual os usuários colocam pequenos filmes que produzem sobre qualquer temática. Os filminhos em questão podem ser acessados em http://www.youtube.com/results?search_query=ovos+em+Ipanema&search=S earch 3 O que me veio primeiramente à lembrança foram as críticas de Pêcheux aos sociologismos e às etnologias/etnolingüísticas não somente pelo apagamento das condições históricas de produção do discurso como também pelo fato de trabalharem com a ilusão do sujeito da consciência. Além disso, até onde verifiquei, referências à cultura em Pêcheux aparecem lateralmente em alguns momentos de seus textos. Por exemplo, em A língua inatingível, ao apresentar a questão lingüística no processo da revolução de outubro de 1917, Pêcheux retoma os Proletkultistes para mostrar como a revolução cultural preconizada pelo stalinismo produziu um realismo literário que, ao desconhecer a ordem da língua, anula, justamente, o jogo metafórico, o equívoco, ou seja, o que desestabiliza a cadeia significante. 4 É importante ressaltar que se a psicanálise fala em laço social, em cultura etc, é porque a clínica psicanalítica permite a escuta do inconsciente e nesse inconsciente se marcam também os conflitos sociais. 5 Vou me valer aqui da ambigüidade que esse termo “Outro” tomou na Análise do Discurso, ou seja, designando a noção de interdiscurso (conforme formula Orlandi, 1996) e designando, por outro lado, a noção do grande Outro, tal como pensada por J. Lacan, sobretudo no início de sua obra: “... tudo que a linguagem traz em si, que se manifesta nos momentos de criação significativa, e que já está nela em estado não ativo, latente.” (Lacan, 1999, p. 121) 6 Esse crime ocorreu 08 de fevereiro de 2007 e o outro, descrito no parágrafo seguinte, em 23 de junho de 2007. Ambos foram amplamente divulgados pela mídia. 51
7 Disponível no site da Editora Cia de Freud, publicado em 10 de março de 2007: http://www.ciadefreud.com.br/artigos_detalhe.php?idartigo=4 8 Lebrun, partindo do campo da escuta clínica, face a essas modificações sociais, se coloca como questão: “Estaríamos vivendo em um mundo sem Pai”, ou seja, sem referência paterna, sem lugar para a Lei?
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• REFLEXÕES SOBRE O IMPACTO DA INTERNET NO CAMPO DO JORNALISMO Bernardo Kucisnki (USP) Introdução Este texto aborda algumas conseqüência das novas tecnologias da comunicação nas condições de produção e sistema de valores da produção jornalística. Assim como a engenharia genética e a biologia molecular mudaram as definições de vida, de morte e de paternidade, a microeletrônica e a nanotecnologia desafiam conceitos básicos do jornalismo entre os quais demarcações entre emissor e receptor, entre imprensa alternativa e de massa, entre esfera pública e privada. Em todos, a internet provocou um grande tumulto, mudanças que já são profundas e ainda não se esgotaram. Nas novas tecnologias, todos os sinais gráficos e sonoros são reduzidos a registros digitais básicos, que podem ser processados, combinados, manipulados , transmitidos e gravados, nas mais diversas formas, acessados dos mais remotos lugares, com um simples apertar de botão. A composição se torna um jogo de infinitas opções, no qual tudo é flexível, transformável e reciclável, tudo é matéria prima para novos jogos de composição. Todas as linguagens podem se fundir num mesmo suporte, de multimídia. O escrever tornou-se um exercício lúdico recuperando, num patamar superior, o antigo prazer da escrita caligráfica dos copistas. A internet renovou o encantamento do ser humano com a comunicação e com a arte de escrever . Por isso, tornou-se emblemática desta era que Pierre Lévy e Manuel Castells, chamam de “sociedade da informação”, ou “sociedade da comunicação”. Nessa nova era, a comunicação tornou-se ao mesmo tempo uma extensão dos sentidos de cada ser humano individualmente, conforme antecipava McLuhan, e o ambiente em que cresce forma-se e socializa o jovem contemporâneo. Ou seja, a comunicação adquire dimensão antropológica. Nessa nova era, todos os seres humanos podem informar e opinar disputando com o jornalista a exclusividade da intervenção jornalística.
Uma revolução para muito além nas comunicações O impacto das novas tecnologias no modo de produção depende de suas características intrínsecas e de como se dá sua apropriação social. A invenção das caravelas que podiam navegar contra o vento impulsionou o capitalismo mercantil. 53
A invenção do motor pelos ingleses criou o capitalismo industrial, concentrador e capital intensivo. A rede mundial da internet combina quatro funções principais relativamente distintas: a função de transmissão de dados, superando em muito a capacidade de transmissão do telefone do telégrafo e do fax e do teletipo; a de mídia, a mais nova mídia, depois da invenção da TV nos anos 50, a função de ferramenta da trabalho, que permite acessar bancos de dados, fazer entrevistas, ler jornais e publicações de todo o mundo, e trabalhar em cima desse material; a função de memória de toda produção intelectual artística e científica, na forma de arquivos digitalizados, acessíveis de qualquer parte do mundo. Além disso, exerce funções acessórias importantes no campo social, como articuladora de movimentos sociais e espaço de socialização. Um dos efeitos dessa poderosa combinação é a desconcentração da produção. O oposto do que aconteceu com a revolução industrial que criou um novo modo de produção concentrador e dominado pelos que tinham capital para construir os motores, os capitalistas. Essa produção em escala mais barata destruiu os artesãos. Destruiu os ofícios. Surgiram campos de concentração da produção chamados fábricas, onde operários eram dispostos em torno das máquinas e posteriormente, na e da fordista, em torno de uma linha de montagem. Fez-se a separação entre produção e consumo. Entre o trabalhador e o fruto de seu trabalho. Fez-se a alienação. A revolução de micro- eletrônica de hoje leva a organização da produção a uma direção totalmente oposta, descentralizada. Um modo de produção que alguns especialistas chamam tentativamente de digital ou colaborativo, dotado de altíssimo nível de eficiência, e que ao mesmo tempo dilui a separação entre produtores e consumidores, reabre espaços para a produção independente e até a artesanal e comunitária1. Esse é o primeiro aspecto básico a ser considerado.É como se fosse uma contra- revolução industrial. O segundo traço básico dessa nova tecnologia é o barateamento dos equipamentos portanto do custo, independente da escala de produção. Câmaras portáteis, gravadores, processadores de potencia cada vez maior e tamanho e custo cada vez menores. Pode-se montar uma central de produção ao custo de um equipamento doméstico, solapando o controle dos capitalistas sobre os meios de produção. A autonomia relativa do trabalhador intelectual é o terceiro traço básico desse novo modo de produção. Qualquer pessoa, hoje, pode ser um produtor cultural, de vídeo , música, ou de jornal. É o que está acontecendo com os músicos que podem gravar seus próprios discos, jornalistas e organizações da sociedade civil que podem publicar seus jornais a custo baixo mesmo com tiragens pequenas ou montar sites a custo quase zero. 54
A internet permite ainda que sejam entrevistados com facilidade e precisão técnicos e personalidades em qualquer parte do mundo, sem que o jornalista precise dos recursos técnicos ou financeiros de uma grande empresa. Com a internet, cada trabalhador intelectual esteja onde estiver, tem acesso aos bancos de dados de todo o mundo, e aos jornais e revistas, que cada vez mais produzem também uma versão para internet. Cada um é autônomo na sua produção. E mais, todo mundo é autônomo na reprodução. Pode reproduzir o seu CD, a sua matéria e espalhar suas ideais e criações pelo mundo afora a partir de sua casa. Certamente alguns traços essenciais da ideologia neo- liberal, dos novos valores e concepções, das novas relações de trabalho , tais como a flexibilização nos contratos trabalhistas, o culto ao indivíduo- empresário e à competição entre indivíduos, a desregulação, tem uma sólida base na materialidade das novas tecnologias. Toda pesquisa de discurso, linguagem, papel e ética do jornalismo, deve considerar essas novas condições oriundas dos atributos materiais das novas tecnologias, no contexto em que se dá sua apropriação. Cabe a pergunta: esse trabalhador intelectual manterá essa autonomia , ou será submetido pelo grande capital, que resiste, tentando manter a dominação e a concentração através do controle dos canais de distribuição e até através da criação de conceitos novos que criminalizam a reprodução autônoma, como, o de pirataria ? Outra reação do capital a esse processo são as mega-fusões. Elas podem ser vistas como tentativas de sobrevivência. São mega-fusões reativas, que tentam obstar o processo de fragmentação da produção, através de domínio de canais de distribuição, nos quais se dá a realização do lucro.
Desconcentração e fragmentação no mercado editorial. Depois de cinco séculos de continua concentração de capital na indústria da comunicação, a revolução da informática e da microeletrônica levou à uma fase de fragmentação do mercado midiático. Graças ao baixo custo de produção, mesmo para pequenas tiragens, multiplicam-se as publicações sobre os mais diferentes temas. Surgem todos os dias novas revistas temáticas mensais e semanais, e milhares de novos sites e blogs na internet. Graças à digitalização, o espectro televisivo multiplicou-se por cem admitindo até 500 canais . As gigantescas rotativas inventadas no final do século XIX capazes de imprimir um milhão de exemplares de jornais ainda existem, mas os jornais são cada vez mais jornais virtuais. Cada vez mais o jornal é recebido pela pessoa sob uma forma imaterial. Ele lê o jornal na Internet. E já existe uma tecnologia pela qual você baixa um jornal e imprime numa folha plástica e, no dia seguinte aquela tinta se apaga e você usa a mesma folha plástica para imprimir o jornal do dia seguinte. As novas gerações lêem mais Internet do que jornal. Hoje, toda a produção científica 55
já é disponibilizada pela Internet, não mais na forma impressa. Os exemplares impressos são em número reduzido para ficar em bibliotecas que também estão fadadas a desaparecer na sua forma material. Temos bibliotecas cada vez mais virtuais. O processo é muito rápido, violento, abrangente, profundo, ainda em curso, dai a dificuldade de conceituar, de entender e de saber até aonde vai. As bibliotecas convencionais tendem a se tornar apenas os depósitos de referência de novos livros e de acervos impossíveis de serem digitalizados. Com a informática e a internet é celebrada a terceirização no jornalismo, forma discreta de decretar a morte da fábrica de notícias que é a grande redação. Os grandes jornalistas passam a trabalhar em suas casas, sem vínculo de emprego, como produtores efetivamente autônomos. Hoje, ninguém vai à Marginal do Tietê para entregar a matéria para qualquer revista da Abril, ou para o Estadão. Esses edifícios viraram monumentos à obsolescência desse modo de produção concentrada.
Implicações da internet na narrativa jornalística Os primeiros estudos sobre a linguagem da internet identificaram a forma narrativa chamada de hipertexto, na qual predominam os núcleos de enunciados ( clarões), que se vinculam a outros núcleos, localizados em textos outros, que podem ser acessados através de links. Esse tipo de narrativa, ainda em fase de desenvolvimento, se assemelha, segundo Pierre Levy, à forma de percepção do ser humano baseada na associação ou identificação de imagens com significações já armazenadas no nossa mente. O hipertexto é fruto de duas características técnicas da internet aparentemente contraditórias: de um lado as possibilidades quase infinitas de associações de textos situados em locais distintos, mesmo remotos e de outro lado a severa limitação de espaço para leitura confortável pela internet. No jornalismo sempre houve uma relação contextual direta entre tecnologia e formas narrativas. Assim, a invenção da taquigrafia numa época em que o Parlamento britânico era o centro das decisões políticas, institui os relatos “verbatim” dos debates parlamentares. Posteriormente, a invenção do telégrafo que cobrava por palavra transmitida, na era de apogeu do jornalismo impresso, instituiu a linguagem econômica e objetiva, sem floreios, como a forma clássica da narrativa da notícia. Da mesma maneira, a eventual necessidade de cortar o despacho “pelo pé”, para que coubesse no espaço disponível do jornal, determinou a estrutura adotada até hoje do texto jornalístico: primeiro um resumo ( lead), depois os fatos pela ordem de importância e apenas depois os detalhes, também pela ordem de importância. Mais recentemente, a invenção dos gravadores portáteis instituiu o jornalismo das entrevistas em linguagem coloquial, não editada, legitimando inclusive as expressões chulas, inaceitáveis em eras anteriores. 56
O que mais muda na linguagem jornalística com as facilidades de transmissão e de fusões de linguagem propiciadas pela internet e pela digitalização? Ainda que o tempo de transmissão de um dado isolado pelo web seja o mesmo de todas as transmissões eletromagnéticas (telégrafo , teletipo, fax e telefone), na internet não há limites à quantidade de sinais que pode ser transmitida na velocidade próxima à da lua. Na internet, tudo é recebido em segundos e na forma de registro digital, pronto para ser processado, editado e reproduzido, inclusive registros algébricos, numéricos e de imagens. Devido a esse grande ganho no tempo de transmissão e à facilidade de transmissão, que pode ser feita de qualquer ponto, a internet propiciou o surgimento de um novo tipo de narrativa jornalística, chamada “jornalismo on-line”, ou jornalismo em tempo real, no qual os fatos vão sendo narrados continuamente, em fragmentos de narrativa, curtos e pouco acabados, à medida que vão acontecendo e não depois que aconteceram. Como a internet surge no contexto de hegemonia do capital financeiro e de exacerbação dos mercados especulativos, que também se desenvolveram com base nas novas tecnologias, o jornalismo on line surge praticamente como subproduto ou força auxiliar desse mercado. Dedica-se a fatos que podem afetar o mercado financeiro, no qual segundos de antecipação no processo decisório podem ser valiosos. O tempo do relato jornalístico era sempre um tempo deferido, posterior ao fato. No jornalismo on line, o tempo deferido é reduzido a quase zero. A partir do jornalismo on line, dá se um processo novo de construção de noticiário que pauta outros meios de comunicação e alimenta os blogs da internet, e as telas noticiosas de cristal líquido e de plasma que hoje nos acompanham em todas as partes, nos ônibus, grandes avenidas, terminais de transporte, celulares, ipods e até no interior dos elevadores. Esse processo tem as seguintes características: é continuo, é coletivo, envolve um grande número de atores, populares e não apenas jornalistas e quadros da elite. Algo semelhante ao que ocorreu com a pesquisa científica que se tornou um processo coletivo e não mais de um indivíduo genial, com o advento dos ciclotrons e outras grandes máquinas laboratoriais. A internet modifica a qualidade dos sujeitos do diálogo; materializa como nenhum outro meio o papel da reciprocidade e da inter-subjetividade na formação dos sentidos das palavras e da narrativa. Inclui as pessoas comuns no processo de formação da agenda pública, assim como no processo de produção ou apropriação de sentidos de cada narrativa jornalística, o que traz para esse processo diferentes sistemas de significações, incluindo dogmas, superstições e preconceitos. Na internet, mais do que em outros suportes narrativos jornalísticos, pode-se estudar a relação entre linguagem e mente humana, entre linguagem e ideologia, entre linguagem e sistemas de saber2. O fato da internet transmitir todos os tipos de registros, gráficos, algébricos, numéricos, sonoros ou fotográficos num único suporte operacional e 57
ainda permitir a elaboração direta nessa base de cálculos, gráficos e tabelas, levou ao surgimento dos infográfico, que combinam texto e informação estatística ou organogramas, percebidos elo receptor como uma peça única, uma espécie de montagem gráfico-visual. O infográfico simplifica a absorção do conhecimento e pelo seu grande poder de persuasão tem sido usado como função ideológica mais do que informativa. Nas pesquisa pela web a palavra adquiriu uma dimensão criptográfica ao mesmo tempo em que perdeu dimensão de signo. A busca não distingue resultados de significados diferentes originários de um mesmo significante. Mas já se anuncia uma próxima etapa, da “internet semântica”, que com base no recurso conhecido com “tag” associaria sentidos às palavras que estão sendo buscadas.
Uma nova esfera pública? Ao derrubar as barreiras à entrada e à saída da informação, e baratear todo o processo comunicativo, a internet permitiu, pela primeira vez, o efetivo exercício por todo ser humano, do direito de informar, como distinto do direito de ser informado. Por isso, ela define um novo tipo de esfera pública ontologicamente distinta e superior a que antes existia. Uma esfera pública dotada de canais e ferramentas de interatividade total,e na qual cidadão e movimentos sociais se tornam atores principais, em contraste com a esfera pública anterior na qual elites pensantes e intelectuais orgânicos do sistema, em especial jornalistas, eram os atores principais. Como meio de comunicação social, a internet se apresenta em quatro formas principais e não excludentes : sites e portais, que são amplos espaços com grande número de conteúdos e informações, inclusive publicidade e programas de venda direta; boletins, que são pequenos jornais ou newsletters em forma exclusivamente eletrônica, que não existiriam se não fosse a internet, jornais e revistas on-line, que são versões as vezes resumidas ou seletivas de publicações que já existiam e continuam a existir em forma impressa. Como comunicação pessoal aberta a públicos limitados aparece na forma de blogs , chats ou okurts, e como comunicação estritamente privada, na forma de e-mails. Em todas essas modalidades, as intervenções são rápidas e diretas, a interlocução é total. A internet permite o exercício da democracia direta, mesmo em sociedades de massa. É uma mídia muito adequada à comunicação interna, em grandes organizações, à comunicação entre profissionais, como os advogados, e sistemas legais ou oficiais, à comunicação alternativa, de grupos de ativistas e ONG´s, e à prática da cidadania digital, pela qual o cidadão cumpre suas obrigações ou exerce seus direitos diretamente através da internet, acessando portais de autoridades e serviços públicos, antes fechados em sistemas burocráticos de difícil abordagem. 58
A facilidade de atualização contínua, torna a internet e os bancos de dados virtuais especialmente apropriados para manter acervos cujos conteúdos mudam com muita freqüência, como são os acórdãos da justiça, as leis em geral e os dados estatísticos. Definiu-se , em função dessa novas tecnologias um novo tipo de organização do Estado, chamado “Sociedade da informação”, no qual o Estado adota políticas ativas de transparência e estímulo ao diálogo e á cidadania digital4. O novo “cidadão digital” é um ser engajado. Pode ser de esquerda ou de extrema direita, mas é um engajado. Essa nova esfera pública expande-se continuamente atropelando a esfera pública convencional , e já é um dos importantes fatores das disputas política e por hegemonia. . São milhares de sites e blogs criados a cada dia., alterando profundamente o espaço midiático dominado pela TV e pela vídeopolítica. O movimento de Chiapas inaugurou, através da internet uma nova modalidade de ação política, de alto potencial organizativo, comunicativo e transformador. A Internet atropela partidos, estruturas e modos de fazer política. Já teve um papel fundamental na mobilização em 24 horas daquele um milhão de espanhóis, em Madrid, depois do atentado terrorista, levando à vitória inesperada de Zapatero. Da mesma forma, Internet e celulares tiveram papel central nas mobilizações de imigrantes desempregados na França e nas organização de demonstrações de massa na Bolívia, Equador e Chile. A Internet foi decisiva para o sucesso dos Fóruns Sociais Mundiais. Na articulação dos ONGs e movimentos sociais, a internet tem tido papel decisivo, recuperando com vantagem o antigo papel atribuído por Lenin à imprensa partidária como “organizadora do movimento operário.” Os seguidores da visão apocalíptica dos meios de comunicação de massa ainda procuram o demônio escondido nas novas tecnologias. Mas,como disse Marx: “Tudo que é sólido se desmancha no ar”. Está se desmanchando a comunicação de massa vertical e concentrada.. Está surgindo uma coisa nova. Pode ser que dure pouco. Pode ser que comecem a colocar controles sobre isso.5
A internet espaço de socialização A internet é também um novo um hábito, cria costumes novos, como o sexo virtual, o chat. Na rede da internet, dá-se o diálogo entre os que nunca se conheceriam. A nova mídia é também o espaço de um novo tipo de socialização de grande alcance e capilaridade. É o mundo das orkuts e dos sites personalizados. É o mundo da inclusão de um grande numero de indivíduos prejudicados por uma menor capacidade de absorção e formulação lógico-formal em outros suportes materiais do conhecimento, em especial nos livros. Os costumes são determinantes dos valores éticos.Afastando fisicamente os indivíduos e os trabalhadores da comunicação, mas ao mesmo aproximando-os no 59
espaço virtual, ou criando uma nova modalidades de interação indivíduo-indivíduo individuo- aparelhos de estado, indivíduos –sociedade civil, a internet reflete bem o ambiente moral da pós-modernidade, caracterizado por uma ética de singularidades, pela aceitação de praticamente todos os padrões de comportamento, de casamento, de vestimenta, hábitos e sexualidade. Não por acaso, esse novo ambiente ético no jornalismo é adequado aos valores do neo-liberalismo econômico e foi instrumental ao seu processo de implantação. A internet paradoxalmente é o espaço em que melhor se manifesta o fenômeno da fragmentação ética de nossos tempos, mas também o refúgio ideal dos libertários, dos que não se resignaram.
Ruptura da demarcação entre o público e o privado A internet derrubou a demarcação entre comunicação pessoal e coletiva, e portanto entre os conceitos do público e do privado. A mensagem da internet pode ser filtrada, mas em geral não pede licença para entrar no seu computador. Acaba a demarcação entre o público e o privado. Na Internet, não sabemos se a comunicação é pública ou privada. Até hoje não se fez um protocolo que estabeleça essas regras para a internet. Tudo é público.Tudo é privado. E o privado se torna público. Você manda um informe para um amigo, por um e-mail e, no dia seguinte, ele mandou o mesmo informe para trinta destinatários pelo comando “encaminhe-se.”: E os trinta mandaram para outros trinta..E aquilo acaba indo para milhões. O acesso ao sistema irrestrito , tanto pelo emissor quanto pelo receptor. E graças ao baixo custo operacional, a mensagem, seja qual for o seu tamanho, pode ser enviada e reenviada a um número quase infinito de receptores. Uma carta de protesto ou um documento enviado de uma pessoa para a outra , transforma-se de repente numa circular que corre toda a world wide web. Nesse espaço, nessa mídia, ainda se pode manter uma distinção entre conteúdos de interesse público e de interesse privado, mas ela com freqüência transforma comunicação pessoal em comunicação social. E não há um código de ética que indique se e quando isso pode ser feito. Já há marcadores e filtros para mensagens pornográficas, e aos poucos haverá marcadores que digam que a mensagem é estritamente pessoal e não deve ser retransmita. Mas, quem garante que serão obedecidos,s e é tão fácil retransmitir?
Ruptura do conceito de direito autoral A internet implode o conceito de direito autoral por dois motivos: Primeiro, qualquer pessoa pode copiar. E segundo, não tem mais sentido reproduzir uma obra inteira, um CD inteiro ou o livro todo; as pessoas reproduzem o que lhes 60
interessa em cada coleção de músicas ou em cada livro. Esse fenômeno já vinha se manifestando desde a invenção da máquina copiadora xerox, gerando várias reações. Por um lado, foram criados livros de um tamanho tal a tornar a cópia mais cara do que a compra do original. Mas a evolução das máquinas xerox detonou essa solução. Surgiram então as campanhas dizendo que era anti- ético xerocar livros e depois as leis proibindo cópias extensas . Mas quem obedece? A tecnologia da cópia xerox é tão forte que ela modificou os hábitos acadêmicos . Hoje, estudantes em todo o mundo estudam capítulos de livros copiados em máquinas xerox, e não mais os livros inteiros. Só se lêem trechos de livros. Esse é um exemplo notável de como uma nova tecnologia cria novos hábitos e os novos hábitos geram novos valores. Esse é o processo de modificação da moral e dos códigos de ética. Copiar capítulos de livros era um valor negativo, uma conduta condenável. Ainda coexistem duas éticas em relação à cópia. O grande capital tenta emplacar o conceito de “pirataria”, para criminalizar a cópia. Mas a conduta mais comum é a de ter sempre à mão as cópias dos capítulos que o professor recomendou. O próprio livro mudou de função, e é hoje muito mais a matriz das cópias que serão feitas pelos tempos a fora, do objeto inteiro de estudo e leitura.
O enfraquecimento da demarcação entre o falso e o verdadeiro A Internet tem se mostrado também espaço ideal para a disseminação de assertivas falas porque aceita qualquer mensagem sem que sejam certificadas, seja de sua autoria, seja da sua veracidade. E as mensagens espalham-se rapidamente não só como verdade, mas como uma verdade que os meios convencionais quiseram esconder. Quando os meios convencionais de informação falseiam ou caluniam ou difamam, podem ser acionadas as leis de imprensa . Mas não há ainda uma lei de imprensa para a internet . A lei de imprensa tem sido aplicada apenas em alguns casos, em que a informação falsa, difamatória ou caluniosa, foi disseminada por um veículo de comunicação eletrônica devidamente registrado, no caso uma newsletter. Mas se a mensagem ofensiva foi disseminada por uma comunicação interpessoal que se disseminou pelo mecanismo forward? Pode-se aplicar uma lei de imprensa? Na internet reabrem-se discussões clássicas da ética jornalística , como o conflito entre o interesse publico e o respeito à privacidade, entre responsabilidade e liberdade.Nesta fase ainda de transição, uma parte considerável do jornalismo da internet, em especial os blogs, não conseguiu reestabelecer a distinção entre narrativa jornalística, que deve se pautar pela veracidade dos fatos e interesse público, e a mera especulação ou mesmo bisbilhotice. A restauração dessa demarcação é pré-condição para a recuperação da legitimidade 61
e autoridade da narrativa jornalista, portanto do jornalismo como o campo que conhecíamos até pouco tempo, construído por uma ética específica, e atribuição de papéis por delegação da sociedade.
O fim da periodicidade como critério do produto jornalístico Um veículo é jornalístico quando atende os critérios de periodicidade, novidade e interesse público. Com a internet acaba a periodicidade, acaba essa definição de produto jornalístico. Por isso, os produtos que por motivos técnicos ainda tem que manter periodicidade, com as revistas e jornais, criam sites e blogs que antecipam suas matérias e reportagens “em tempo real. Quando um jornal escala seu correspondente em Brasília para fazer um blog, é porque o próprio jornal não pode esperar o dia seguinte. E ele quer dar uma identidade a esse novo espaço, não quer que seja apenas uma agência de notícia do jornal, que os outros jornais depois vão pegar. Então, ele estimula os seus jornalistas a criarem os seus blogs. Tudo isso é transitório, mas evidencia o fim da periodicidade. O tempo é contínuo agora no jornalismo.
Inverte-se a relação entre jornais e agência de notícias A web como meio de transmissão é também um novo tipo de agência de notícias que rompe a verticalidade e concentração das agências tradicionais. Alimenta não apenas jornais a partir de escritórios centrais, também ONGs, produtores intelectuais independentes e movimentos políticos e sociais. Invertem-se alguns papeis: está comprovado que a internet é hoje o meio de informação jornalística mais denso, mais rico, que se utiliza de mais fontes. E, no entanto, as fontes da Internet são os jornais. O jornal que devia se valer de uma agência de notícias, operação típica de uma Internet, vira agência de notícia da Internet. É lá que ela vai buscar as suas informações.
O meio é a mensagem De novo, MacLuhan. Derrubou-se a demarcação entre meio de informação e mercado, já que num site você se informa sobre o preço e oferta de uma mercadoria e ao mesmo tempo efetiva a transação comercial.
Dilui-se a demarcação entre emissor e receptor Na Internet quebra-se a verticalidade na relação autor/leitor. O leitor interage, questiona, intervém e acaba se tornando um autor ele - mesmo. A interatividade 62
não tem limite na nova tecnologia. Na internet todos são emissores e receptores. E mais, na Internet, os usuários criam o tempo todo novas ferramentas. O usuário é também um inventor. É também um repórter . É também um comentarista. Ofusca-se a demarcação do jornalismo como um campo social, como um conjunto de regras, de ralações, de atribuições de papéis que legitimem uma certa prática. Quais são os papéis? Quem é na Internet o jornalista? E quem não é? E o que ele pode fazer e o que não pode? O blog é jornalismo, ou não é? E onde é que fica a ética jornalística, um das mais importantes fios condutores nessa teia de regras que se chama jornalismo. O jornalismo como campo social está sendo desafiado, ou seja, a profissão está sendo desafiada. Isso já começou antes, quando a comunicação começou a penetrar em todos os caminhos da sociedade. Jornalismo e comunicação começaram a se misturar muito. o que tem implicações éticas muito importante na identidade da profissão. Essa teia de relações que definiam o jornalismo foi num certo sentido corrompida porque os papéis foram subvertidos. O campo jornalismo como profissão foi invadido pelo homem comum.
Bibliografia CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo, Paz e Terra, 1999. CULLER, Jonathan.. As idéias de Saussure. São Paulo, Cultrix,1976. GADAMER, H. G. Philosophical Hermeneutics. EUA, Un. California Press, 1977. LAGE, Nilson. Linguagem jornalística. São Paulo, Ática, 1985. LEVY, Pierre. O que é virtual. São Paulo, Ed 34, 1997. LEVY , Pierre. Cibercultura. São Paulo, Ed 34, 1999. MCLUHAN, Marshall.Os meios de comunicação como extensão do homem. São Paulo, Cultrix, 1969. NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo, Cia das Letras, 1995. NICHOLAS, N.A vida digital. São Paulo, Cia das Letras, 2002. ORIHUELA. José L. Intenret: nuevos paradigmas de comunicación. Chasqui, Vol 77, 2002. SCHAFF, A . A . A sociedade informática: as conseqüências sociais da Segunda revolução industrial.. São Paulo, Brasiliense, 1995
Notas 1 Conf. Yochai Benkler, entrevista a ÉPOCA, 01/05/06. 2 As reações disparatadas dos internautas a um mesmo texto de internet parecem 63
corroboram as teses de Gadamer de que palavras e anunciados só adquirem sentido em cada processo de interação. 3 Conf. Britto, Rovilson Robbi. O ciberespaço e a recuperação dialógica. Trabalho de Conclusão de Curso,ECA/USP, 2002 4 Ver OCDE. Consultation and Communication: integrting multiple interests into policy. Public Management ocasional papers, N . 17. 5 Ver “Cidadão digital”, Gazeta Mercantil, 4/04/1998.Nos estados Unidos o ciberespaço também é uma espaço de articulação de grupos fascistas e terroristas. Conf. As rede do extremismo. Onias Rodrigo. TCC. ECA/USP,1998.
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PARTE II
TEORIA E ANÁLISE EM PERSPECTIVA
• O recorte significante da memória Suzy Lagazzi (UNICAMP) O trabalho analítico discursivo na intersecção de diferentes materialidades significantes impõe demandas que levam o analista a enfrentar a noção de recorte. Como estabelecer a(s) marca(s) significante(s) relevante(s) para o funcionamento discursivo em pauta? Teremos que buscá-las em cada uma das materialidades consideradas na análise? Por onde começar? Como relacioná-las na imbricação material? Perguntas que nos levam ao dispositivo teórico-analítico da Análise de Discurso. Um ponto a ser frisado é justamente a importância da noção discursiva de recorte, que Orlandi estabeleceu em 1984, ressaltando a diferença entre segmentar uma frase e recortar um texto, este concebido como uma unidade marcada pela incompletude. O gesto analítico de recortar visa ao funcionamento discursivo, buscando compreender o estabelecimento de relações significativas entre elementos significantes. É importante ressaltar que, na Análise de Discurso, os elementos significantes não são considerados tendo como parâmetro o signo, mas a cadeia significante, o que permite ao analista buscá-los sempre em uma relação de movimento, de estabelecimento de relações a_. É um trabalho que perscruta “o acontecimento do significante em um sujeito afetado pela história” (Orlandi, 1999), tomando a “forma material” (Orlandi, idem) no batimento entre estrutura e acontecimento (Pêcheux, 1990). Por ser procedimental, a Análise de Discurso é uma prática que não estabiliza suas noções e seus conceitos, mobilizando-os na tensão entre a formulação e a memória, e não frente a conteúdos específicos. Gosto sempre de lembrar a afirmação de Pêcheux (assinado, em 1966, como de Thomas Herbert), retomada por Henry (1990), de que “o ajustamento de um discurso científico a si mesmo consiste, em última instância, na apropriação dos instrumentos pela teoria. É isto que faz da atividade científica uma prática”. Assim, a menos que o dispositivo teórico seja praticado no dispositivo analítico, a própria compreensão da teoria não se realiza. Portanto, ‘recorte’, ‘efeito de sentido’, ‘acontecimento’, ‘arquivo’, ‘paráfrase’ e ‘família parafrástica’, ‘processo metafórico’, ‘memória discursiva’, ‘formação discursiva’, ‘ideologia’, ‘arquivo’, são noções e conceitos que significam na relação com os materiais tomados para análise, com distintas configurações em cada análise. As dificuldades analíticas impostas pelos materiais são a medida dos questionamentos teóricos necessários. Parto da noção de recorte para assumir que o dispositivo teórico-analítico discursivo apresenta as condições necessárias para a prática analítica de objetos simbólicos 67
constituídos por diferentes materialidades significantes. Esse dispositivo permite ao analista mobilizar, na relação teoria-prática, as diferenças materiais, sem que as especificidades de cada materialidade significante sejam desconsideradas. O batimento estrutura/acontecimento referido a um objeto simbólico materialmente heterogêneo, requer que a compreensão do acontecimento discursivo seja buscada a partir das estruturas materiais distintas em composição. Realço o termo composição para distingui-lo de complementaridade. Não temos materialidades que se complementam, mas que se relacionam pela contradição, cada uma fazendo trabalhar a incompletude na outra. Ou seja, a imbricação material se dá pela incompletude constitutiva da linguagem, em suas diferentes formas materiais. Na remissão de uma materialidade a outra, a não-saturação funcionando na interpretação permite que novos sentidos sejam reclamados, num movimento de constante demanda. Nesta exposição focarei a relação entre o verbal e o visual no documentário Tereza (1992), de Kiko Goifman e Caco P. de Souza. Uma primeira intersecção analítica, que se dispõe a explorar a composição material nesse documentário. Tereza impressiona pela instabilidade na espectação. A textualidade vai se compondo marcada por brechas na seqüência das formulações verbais e visuais, o que produz uma demanda em relação à unidade textual. Em minhas primeiras abordagens de Tereza, ressaltei que esse documentário apresenta um constante corte de cenas, marcado por um movimento a que chamei “reabertura em janelas”, cujo funcionamento tende à dispersão e leva ao não-fechamento interpretativo.
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As histórias contadas em Tereza aparecem como episódios amalgamados, em um contínuo que não define inícios ou finais. O cara pode entrar, pode cair como um ladrão de galinha. Pode cair como qualquer coisa, só não caindo como um sem-vergonha, ele é um bom ladrão. Ele roubou também, certo? Agora, os cara cai aqui como safado eles apanham mesmo, num dá boa, num tem boa mesmo.” “Comprava quatro gramas, às vezes, quando a gente achava que a gente ia conseguir tomar um pouco mais, a gente comprava cinco gramas. Aí, aí era aquela sessão de barrinha. A barrinha que a gente fala é um pro cê, um pra mim.” “O doze é o cara que mexe com maconha, ele vende maconha, vende cocaína, vende diversas coisas que seria droga. Então ele é o artigo doze. O dezesseis é um artigo que só é o viciado. Ele fuma maconha, ele toma pico, enfim, tudo o que for droga, se ele for é... se não pegarem ele vendendo, entendeu, então ele é um dezesseis.” “Todo mundo tem direito de errar, por que só eu não? Antes de eu nascer já existia roubo. Agora, vamos supor, pergunta pra mim quem que é mais ladrão nesse mundo: os próprio polícia que é tudo safado, certo? Polícia, como se diz, polícia, tenente, como se diz, o... como é que fala?... o juiz. Mais ladrão que ele não existe.” “Tereza existe de várias maneira, Tereza, por exemplo numa fuga, elas são cobertores, entendeu, trançado em nó, entendeu, que você coloca numa altura, ela serve de escada pra você conseguir a fuga, isso é a Tereza. Se existir Tereza dentro dum barraco, por exemplo, vamos supor, você vai fumar uma maconha, então são três pedaços de pano trançado em trança e assim aquilo ali vai segurar a fumaça pra evitar o cheiro da maconha, pra não ir pra fora. [...]” “Eu faço essas esculturas aí, mini escultura em sabão pra poder passar o tempo, poder desenvolver meu trabalho.” 72
“Tem hora que eu to assim jogado, assim, e fico pensando, faço esse monte, se sair a mulher é que ela tá pensando em mim, na hora que ela não tá pensando em mim eu fico nervoso.”
Tanto o verbal quanto o visual se conjugam na inconclusão e essa característica configura a regularidade da qual parto. Quero reiterar a importância de se considerar o funcionamento discursivo no conjunto da materialidade em análise, em sua difusão e convergência. No caso de Tereza, em que queremos compreender a inconclusão composta pelo visual e pelo verbal, o procedimento que se coloca é o de analisar marcas dessa inconclusão nessas duas materialidades significantes, buscando suas convergências. No que diz respeito ao verbal, justamente as histórias inconclusas, sem início ou final, que se configuram em ‘histórias episódicas’, constituem uma marca bastante relevante. Ao relacioná-las às personagens que as contam, observo que são os rostos dessas personagens que se apresentam ao espectador, num jogo entre a parte e o todo, entre o definido e o indefinido. A câmera joga com os rostos, e, como já vimos nos recortes anteriores, eles são mostrados em diferentes composições: rostos entrecortados, rostos atrás de grades, rostos na penumbra, rostos escondidos, rostos sobrepostos, rostos virados, rostos como plano de fundo... Rostos colocados em foco pelos detalhes que os recortam.
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Histórias e rostos remissivos, que se constituem em marcas regulares no funcionamento do documentário. Histórias e rostos que se demandam na sua inconclusão. Histórias que vão se somando, remetidas a diferentes rostos, numa intersecção significativa. Temos um pouco da vida dos presos e do cotidiano do presídio, questões duras, sofrimentos, curiosidades, mortes, droga, estupros, sonhos, enfim, um mundo que não é o do espectador, que lhe chega por essas histórias, como fatos em forma de ficção. Mas, “esta não é uma história de ficção” lemos em uma das cenas mostradas. Fatos ancorados em rostos verídicos, que se transformam em personagens do documentário. Presos que são personagens, protagonistas de um espaço de alteridade fundamental. Ver contada a morte, a droga, o estupro, em fatos que são histórias episódicas, por rostos perscrutados e significados ao mesmo tempo como de presidiários e de personagens, demanda uma reorganização de sentidos que fica marcada no olhar, na prosódia, no estranhamento de quem conta e de quem escuta. Fatos e/ou histórias, rostos verídicos e/ou personagens. Um jogo parafrástico essencial. Um e outro ao mesmo tempo, um pouco de cada um, na contradição equívoca de uma sociedade que dicotomiza realidade e ficção, desconsiderando as formações imaginárias e a ideologia. Importa o impasse equívoco entre o rosto de um preso e o rosto de uma personagem, o impasse equívoco entre um fato e uma história. TEREZA constrói uma escuta equívoca para o espectador nesse cruzamento entre rostos e histórias, ponto nodal na composição das materialidades verbal e visual. As histórias e os rostos desestabilizam o espectador na sua relação com uma memória discursiva pautada pela divisão entre a legalidade e a marginalidade. Colocam o espectador em suspenso, não respondendo às perguntas que o documentário instala. Os sentidos têm que ser buscados na composição entre as imagens e as palavras. Rostos e histórias sempre presentes, como fios condutores do documentário, na inconclusão. Uma das cenas capturadas do documentário e por mim analisada se mostra muito significativa para a discussão da composição material em Teresa.
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O rosto entrecortado nos permite dizer que não importa a identificação desse sujeito. Temos um foco que perscruta na indefinição, dizendo-nos que há um sujeito, que há sujeitos, assim como há ‘histórias...’. Rosto e frase inconclusos. Produz-se a remissão para fora dos limites marcados pelo enquadramento da imagem segmentada do rosto e pelas reticências que apontam para um encadeamento não formulado. Em audio ouvimos: “Ele quis matar eu por coisas banais, eu me, eu matei ele. Agora eu to jurado de morte pela quadrilha dele.”. Este trecho do depoimento verbaliza um crime – “eu matei ele”, permitindo que esse rosto possa ser interpretado como o de um criminoso. No entanto, essa interpretação é colocada em suspenso no documentário, pela prosódia dessa seqüência, totalmente inesperada: não há na voz do sujeito em questão o menor sinal de qualquer sentimento reconhecível quando temos o relato de uma morte. Não há comoção e a morte contada fica no patamar de tantos outros assuntos casuais. Esse crime fica contextualizado em suas contingências – “Ele quis matar eu” – e suas conseqüências – “eu matei ele/ agora eu to jurado pela quadrilha dele”. Esse sujeito é assistido pelo espectador de uma posição que fica desestabilizada em seu julgamento pela casualidade produzida pela cena. Uma posição de fora, que estranha a prosódia e incompreende a aparente naturalidade da ação relatada. Uma história? O espectador em uma posição que perscruta, na falta de identidade do rosto apresentado, respostas para a ignorância do que seja o cotidiano confrontado na tela. Um cotidiano no qual os significantes ‘matar’ e ‘morrer’ partilham a mesma cena numa relação de disjunção lógica. Um espectador que ouve a voz de um sujeito cuja posição de assassino se torna equívoca na imbricação de matar ou morrer. É o rosto de um criminoso? Como espectadores, confrontamo-nos com um funcionamento que nos escapa. A pergunta fica formulada e as expressões produzidas por esse rosto não são as esperadas. Nosso olhar encontra o rosto de um presidiário em posição de personagem e a conjunção aqui se faz importante: criminoso e personagem, fato e história, verdade e ficção. A preposição ‘em’ é também significativa: o criminoso na personagem, o fato na história, a verdade na ficção; assim como a inversão: a personagem no criminoso, a história no fato, a ficção na verdade. A possibilidade do deslize se apresenta, ancorando nossa escuta na inconclusão. Um rosto indefinido e uma história episódica compondo-se na inconclusão, ressoando na memória. Materialidades significantes distintas em composição na história. O jogo significante na história. O discurso. Referências Bibliográficas HENRY, P. “Os fundamentos teóricos da “Análise Automática do Discurso” de 77
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• “OS HOMENS LOUCOS POR SUA LÍNGUA” E A SEXUALIDADE TRANSFORMADA EM TEXTUALIDADE Kátia Menezes de Sousa (UFG) Em “Os homens loucos por sua língua”, Pêcheux (2004) fala da língua como ponto de fixação da lingüística moderna, afirmando que, por amor, alguns estudiosos se tornam “loucos pela língua”. Segundo o autor, há duas formas de demonstração desse amor: amor pela língua materna e amor pelas gramáticas lógicas e línguas artificiais. Na primeira forma, a loucura é traduzida por lingüistas que colocam a língua materna como fonte em que se nutre a lingüística. Explicando metaforicamente esse apego à língua-mãe, Pêcheux (2004, p. 45) ironiza: Então o simbólico faz irrupção diretamente no corpo, as palavras tornam-se peças de órgãos, pedaços do corpo esfacelado que o ‘logófilo’ vai desmontar e transformar para tentar reconstruir ao mesmo tempo a história de seu corpo e a da língua que nele se inscreve.
Na outra forma de amor, há uma loucura pelos enunciados, pelas frases e pela sintaxe. Segundo Pêcheux (2004, p.47), há uma “tentativa de dominar ‘racionalmente’ o corpo do pensamento, com a ajuda de uma língua ideal toda poderosa”. Há um desejo de uma língua universal, protegida das falhas das línguas naturais. Com base na preocupação de Pêcheux, nos aventuramos a pensar a relação dos indivíduos com sua língua e seu corpo na sociedade atual e, mais especificamente, na Internet. Elegemos para essa reflexão os sites de sexo virtual por acreditarmos que, nesse espaço, língua e corpo se relacionam na constituição das práticas que configuram esse tipo específico de relacionamento virtual. O estudo que aqui se apresenta parte da hipótese de que a comunicação virtual frustra, mais uma vez, o desejo da língua ideal e universal e, como em outros espaços de uso da língua, exige a mobilização de saberes apreendidos no real, com suas falhas e equívocos. Pode ser que o amor de que fala Pêcheux seja uma forma de mascarar o temor de ter de “entrar na ordem arriscada do discurso”. Apesar do caráter estável da linguagem da informática, que elimina o ambíguo e a possibilidade da falha, ao ser colocada em rede no espaço virtual, sua fixidez abre possibilidades de estabelecimento de sentidos diferentes, confirmando o fato de que o lugar da relação do sujeito com a língua é o espaço constituído pela história que permite certos movimentos de interpretação. Assim, da estabilidade irrompe o instável da língua e dos sujeitos na história. Ao tratar da irrupção do equívoco no real, Pêcheux (2004, p. 64) esclarece que “as 79
massas ‘tomam a palavra’, e uma profusão de neologismos e de transcategorizações sintáticas induzem na língua uma gigantesca mexida”. Dessa forma, o equívoco aparece exatamente como o ponto em que o impossível (o lingüístico) vem aliar-se à contradição, que é histórica. Assim, o equívoco é o ponto em que a língua atinge a história. Ainda na tentativa de elaboração de nossa hipótese, especulamos que a Internet, com suas salas de bate-papo destinadas ao sexo virtual, lança uma nova configuração da língua que, apoiada na realidade histórica, constrói virtualmente sentidos que criam sensações no corpo e o transforma em não-corpo, quando substituído pelo mental que o recorda. Trata-se do corpo tomado como máquina e da proliferação de tecnologias para investir sobre o corpo, que passa a exigir muito do indivíduo. Nesse sentido, a noção de hiperlíngua apresentada por Auroux (1997) nos dá subsídios para pensarmos essa nova relação espaço-temporal constituída pelo contato entre pessoas no mundo virtual. Segundo o autor, a hiperlíngua é o espaçotempo da intercomunicação humana estruturado pelos objetos e pelos sujeitos que o ocupam. A Internet seria um artefato da hiperlíngua, introduzindo novos objetos e novas formas-sujeito no espaço-tempo e operando mudanças na estrutura da hiperlíngua. Assim, o que tem história é a hiperlíngua e não a língua gramatical. O sonho da homogeinização e da higienização da língua parece ficar cada vez mais distante, pois, mesmo com a padronização da linguagem da informática, o uso real da língua no universo virtual não pode ser controlado por técnicas de universalização, já que “é impossível aprender a falar uma língua sem aprender a se movimentar numa hiperlíngua” (AUROUX, 1997, p. 248). Mesmo se tratando de um sistema estático, os sites da Internet exigem movimentos de interpretação que se ligam à realidade construída nas relações dos sujeitos com os discursos que os constituem. Sendo os discursos da ordem do acontecimento, eles transformam a estrutura da hiperlíngua. Podemos pensar que as novas configurações da hiperlíngua desenvolveram nos sujeitos um apego maior à língua, quando seus corpos, após um processo de higienização, foram transformados em textos no espaço-tempo virtual. Os sentidos atribuídos ao corpo não são garantidos pela troca de mensagens na rede de comunicação, mas pela elaboração coletiva que coloca em comum não somente os textos, hipertextos, como também as redes de associações, de anotações e de comentários no interior das quais eles são apreendidos uns em relação aos outros (AUROUX, 1997). O hipertexto é uma elaboração coletiva que exige o domínio de como se situar numa hiperlíngua específica. As salas de bate-papo, por exemplo, são divididas em grupos que podem ser acessados conforme o interesse do internauta: idade, tema livre, variados, encontros, sexo, vídeos e imagens eróticas. O grupo analisado para este estudo é o de sexo. Nele encontramos subgrupos como: virtual, heterossexuais (a dois), gays e afins, 80
bissexuais, lésbicas e afins, seguro, amantes, casais, descasados, fetichismo, gordinhas, trans-sexuais, travestis, sadomasoquismo, outros idiomas. As denominações dos subgrupos nada têm a ver com os significados das palavras no dicionário, mas com as regras sociais constituídas historicamente nas práticas discursivas e não-discursivas da sociedade. A escolha de um grupo ou outro já indica um certo posicionamento do sujeito que pode escolher, mas escolher dentro do já estabelecido pelos enunciados que circulam na atualidade e que favorecem um determinado tipo de padronização de grupos para a prática do sexo. A intercomunicação nesse espaço-tempo virtual, que passa a ser real assim que o sujeito navega com outro sujeito por meio da língua apreendida no real, exige também um trabalho da memória discursiva, configurando-se num movimento de interpretação de toda a situação que envolve o sexo virtual e o real. A hiperlíngua construída interdiscursivamente entrelaça as fronteiras que separam o virtual do real. As identificações que o sujeito pode realizar se baseiam nos valores agregados às palavras em seu uso real. O virtual fica restrito à realização dos desejos ocultados pelos discursos que estabilizam as práticas de contato corporal dos indivíduos. Ao mesmo tempo em que o sujeito se sente realizado em suas fantasias mais secretas, também ele se livra da culpa por infringir certas regras da sexualidade inculcadas por outros discursos, como o religioso, o familiar, o científico, o midiático etc. Se, para os lingüistas criticados por Pêcheux (2004), as palavras deveriam ser cortadas em pedaços como um corpo esfacelado, para os internautas que navegam pelas salas de sexo, as palavras dão a completude dos corpos, reconstituem pela memória discursiva o corpo idealizado para proporcionar prazer. A idealização é desejada na padronização dos corpos e não da língua. A logofilia sugerida por Pêcheux em “Os homens loucos por sua língua”, para falar da tentativa da lingüística da época em excluir o diferente, alcançou, na sociedade atual da informação, os corpos das pessoas. Contudo, podemos analisar como Foucault, em A ordem do discurso, que, sob essa aparente veneração do discurso, sob essa logofilia, esconde-se uma espécie de temor, uma logofobia. O autor (1998) analisa que, em nossa sociedade, a idéia da existência de uma logofilia deixa entrever que houve uma tentativa de apagamento das marcas de irrupção do discurso nos jogos do pensamento e da língua, quando o que houve foi uma espécie de temor dos acontecimentos, das coisas ditas de fato, do surgimento de certos enunciados. Apagar esse temor não é a questão para Foucault, mas trata-se de analisá-lo em suas condições, seu jogo e seus efeitos. Para isso, seria necessário “questionar nossa vontade de verdade, restituir ao discurso seu caráter de acontecimento e suspender a soberania do significante” (FOUCAULT, 1998, p. 51). Defendemos, assim, que há um temor do discurso sobre o corpo que tenta discipliná-lo não mais como forma de punição, como demonstrou Foucault (1987) em suas análises da sociedade disciplinar, em Vigiar e punir, mas como forma de 81
controle da população, que deve buscar a longevidade e o bem-estar físico e mental a qualquer custo. Na História da sexualidade I, Foucault (2001) mostra que o poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século XVII, centrando-se primeiro no corpo como máquina, com vistas no crescimento de sua utilidade e docilidade. No segundo momento, por volta do século XVIII, o poder centrou-se no corpo-espécie mediante uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população. Foucault (2001) fala em bio-política para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana. Com o desenvolvimento do biopoder, há uma proliferação das tecnologias políticas que vão investir sobre o corpo, a saúde, as maneiras de se alimentar e de morar, as condições de vida. A atuação da norma e do sistema jurídico da lei assume importância crescente, constituindo uma sociedade normalizadora, que é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida. Um poder dessa natureza, segundo o autor, tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar; não separa os súditos obedientes dos inimigos do soberano, mas opera distribuições em torno da norma. Sobre esse pano de fundo, Foucault (2001) aponta a importância assumida pelo sexo por fazer parte das disciplinas do corpo e por pertencer à regulação das populações devido aos efeitos globais que induz. Nesse sentido, o sexo é acesso à vida do corpo e à vida da espécie, e a sexualidade é objeto e alvo, é provocada e temida, é efeito com valor de sentido. Foucault ainda argumenta que a sociedade contemporânea é uma sociedade do sexo, de sexualidade, que longe de ter sido reprimida, está sempre sendo suscitada, pois a sexualidade encontra-se do lado da norma, do saber, da vida, do sentido, das disciplinas e das regulamentações. Pensando a sexualidade como um dispositivo nos termos de Foucault, é instigante analisar, na atualidade, os discursos que constituem o sexo como prática. Fazer uma história da sexualidade permitiu a Foucault a compreensão da relação poder-saber em sua atualidade, contudo, hoje, a nossa atualidade apresenta transformações nas quais ele não havia pensado, mas a sua análise contribui para que possamos discutir a sexualidade dentro de uma sociedade como a que temos. Podemos dizer que a sociedade do controle, do biopoder, ganhou contornos sofisticados com os dispositivos de informação instantânea e de valorização da visibilidade das ações e dos corpos dos indivíduos. Falando de uma modernidade líquida, fluida para se referir ao nosso tempo, Bauman (2001) analisa a fluidez dos laços sociais, mostrando a existência de um esforço para manter à distância o “outro”, o diferente, o estranho, o que coaduna com a preocupação contemporânea obsessiva com poluição e purificação, com a tendência de ver perigo para a segurança corporal com a invasão de corpos estranhos e de identificar a segurança não-ameaçada com a pureza. A idéia de higienização desenvolvida com as técnicas do biopoder ganha 82
importância maior com a possibilidade de mudança de referência para o espaço e o tempo. Foucault (1999), em um de seus cursos, que foram reunidos na obra Em defesa da sociedade, coloca a sexualidade na encruzilhada do corpo e da população, como dependente da disciplina e da regulamentação que se dá por meio de mecanismos capazes de garantir “sistemas de seguro-saúde ou de seguro velhice; regras de higiene que garantem a longevidade ótima da população; pressões que a própria organização da cidade exerce sobre a sexualidade, portanto sobre a procriação; as pressões que se exercem sobre a higiene das famílias; os cuidados dispensados às crianças, etc.” Com as novas tecnologias de informação e de comunicação, assistimos a um acirramento dessas preocupações. Com a mudança referencial do tempo e do espaço, os cuidados com o corpo e com a vida puderam ser levados a uma eficiência obsessiva. Com a modernidade leve e o capitalismo de software, como qualifica Bauman (2001), a irrelevância do espaço é disfarçada de aniquilação do tempo. A quase-instantaneidade do tempo do software anuncia a desvalorização do espaço. A diferença entre o longe e o perto é cancelada, pois “o espaço pode ser atravessado, literalmente, em tempo nenhum” (BAUMAN, 2001, p. 136). Levando-se em consideração as formas de comunicação implementadas no espaço virtual das salas de relacionamento sexual, é possível a afirmação, já que as hiperlínguas não possuem uma mesma estrutura, que estamos diante de uma nova estrutura de hiperlíngua, logo de espaço-tempo. Os acontecimentos possibilitados pelas tecnologias de acesso à informação mudaram a estrutura da hiperlíngua, mas não a dizimaram, pois, de acordo com Auroux (1997, p. 247), “em qualquer situação, ela é esta realidade última que engloba e situa toda realização lingüística e limita concretamente toda inovação. Se os sujeitos não se compreendem, não há hiperlíngua”. Podemos dizer que, mesmo com a irrelevância do espaço frente à instantaneidade temporal, a intercomunicação na Internet se dá num espaço-tempo estruturado. Assim, acreditamos que seja importante compreender as práticas discursivas e suas motivações desenroladas nesse espaço-tempo. Nas salas de bate-papo destinadas a sexo, como já citado anteriormente, há subgrupos que representam, no mundo virtual, as possibilidades de tipos de relacionamentos aceitos e não-aceitos na sociedade real. As salas oferecem sexo como produto de consumo para atender as mais variadas preferências; oferecem a possibilidade de realização de desejos que nem sempre podem ser satisfeitos no mundo real, pois são censurados com base em verdades construídas por saberes validados. Assim, é possível que o internauta consuma um produto de um departamento destinado a heterossexuais, gays, descasados, lésbicas, fetichismos etc., não precisando dividir esse espaço com outras pessoas de seu convívio, sem ter qualquer interação real. Conforme Bauman (2001, p. 114), “esses lugares encorajam a ação e não a interação 83
[pois] a tarefa é o consumo, e o consumo é um passatempo absoluta e exclusivamente individual, uma série de sensações que só podem ser experimentadas – vividas – subjetivamente.” Utilizando a expressão de Althusser, Bauman ainda diz que entrar nesses espaços de consumo é ser interpelado enquanto indivíduo, chamado a suspender ou romper os laços e descartar as lealdades. Lealdade, pode-se pensar, a certas funções do sexo construídas historicamente. Em um texto escrito em 1967, Foucault (2001) já dizia que sua época atual era a do espaço simultâneo, com o mundo se experimentando como uma rede que religa pontos e que entrecruza sua trama. Parece que o desenrolar das práticas que levariam à solidificação da globalização já o permitia pressentir um mundo futuro conectado em rede de comunicação instantânea. Nesse texto, Foucault analisa que o espaço já foi de localização, depois de extensão e finalmente passa a um espaço de posicionamento. Este é o motivo de inquietação, muito mais que o tempo, pois “o tempo só aparece como um dos jogos de distribuição possíveis entre elementos que se repartem no espaço” (FOUCAULT, 2001, p. 413). Contudo, ele mostra que o espaço do posicionamento ainda é sacralizado, pois há oposições intocáveis, que continuam como inteiramente dadas: o espaço privado e o espaço público, o espaço da família e o espaço social, o cultural e o útil, o do lazer e o do trabalho. A análise de Foucault permite-nos dizer que as comunidades virtuais de sexo, de comunitário, não têm nada, pois seu espaço marca e acentua a oposição entre o individual e coletivo, o permitido e o proibido, o sagrado e o profano, o puro e o pervertido. Essas diferenças tão bem definidas no mundo real e, por isso, mantenedoras de preconceitos, são amansadas, higienizadas no espaço purificado do mundo virtual. Podem ser vividas sem medo, pois, parafraseando Bauman (2001), o risco da aventura é eliminado e o que sobra é divertimento, sem mistura ou contaminação. Esse espaço oferece o que nenhuma realidade real poder dar: o equilíbrio entre liberdade e segurança. Segundo o autor, há ainda a impressão de fazer parte de uma comunidade, de estar junto a alguém, mas esse estar junto quase nunca acontece na vida real. Um estar junto definido pela semelhança por pertencer a um mesmo grupo oferecido como produto de consumo, que não apresenta problemas, não exige esforço e nem vigilância. Para atender os diferentes desejos de sexo, a rede conectada seduz os grupos pelas mesmas atrações, une seus navegantes, por meio de uma fabricação de experiências, num sentimento de identidade: somos gordinhas, somos sadomasoquistas, somos bissexuais, e assim por diante, conforme a construção de novas categorias. Explicando o espaço do posicionamento, Foucault (2001) o divide em dois grupos: as utopias e as heterotopias. As utopias são os posicionamentos sem lugar real, e as heterotopias são posicionamentos reais. Um dos traços da heterotopia é ter uma função em relação ao espaço restante. Essas heterotopias podem criar um espaço de ilusão dentro do espaço real, como a compartimentalização da vida humana, ou 84
podem criar um outro espaço real, perfeito, meticuloso, arrumado, apontando para a desorganização e confusão do nosso espaço. Para ele, essa heterotopia não é de ilusão, mas de compensação. As comunidades virtuais de sexo parecem criar essa última forma de heterotopia, pois permitem que tudo funcione bem, sem que as identidades criadas sejam contrariadas. Observando o interior das salas dos diferentes grupos de sexo, é possível perceber que os apelidos escolhidos pelos visitantes para identificação são bastante sugestivos e representam as imagens construídas no imaginário coletivo. Percebemos, neste ponto, a relação da escolha dos nomes com outros enunciados constantes nos filmes pornôs, nas revistas masculinas, o que, além de contribuir para a perpetuação de certas crenças discriminatórias, satisfaz a vontade de construção de outra identidade sexual para o visitante. No espaço virtual, as pessoas podem ser viris, fortes, musculosas, avantajadas em algumas partes do corpo, casadas, solteiras, morenas, loiras, executivas, militares, doces, serenas, machões, femininas, delicadas, sinceras, cretinas etc., conforme o grupo visitado e os estereótipos que constituem as fantasias do que significa fazer sexo com categorias já dadas como desejáveis. A compensação ocorre duplamente: ter o que deseja e ser objeto do desejo do outro. Esse desejo incide sobre o corpo idealizado, que, ao mesmo tempo em que é valorizado, controlado e higienizado, é também descartado, substituído pela máquina. Breton (2003), analisando as práticas atuais em torno do corpo, o vê como algo excedente, transformado em fardo que deverá ser descartado. Para ele, os corpos se dissolvem quando conectados ao ciberespaço, pois o cibernauta sai da prisão do corpo e entra num mundo de sensações digitais, explorando, sob diferentes identidades, um mundo imaterial. Ali, não importam sua idade, seu sexo, se está doente, se é deficiente, pois ele é livre para mover-se à vontade em um universo de dados. No espaço virtual, o sujeito libera-se das coerções da identidade, metamorfoseia-se, de forma provisória ou permanente, no que ele quer, sem temer que o real o desminta. [...] ele é o que pensa quando está conectado a um universo onde os outros são jogadores assim como ele. Não há mais o risco de ser traído ou reconhecido por seu corpo. A rede favorece uma pluralidade de ‘eus’ [...]. A identidade é uma sucessão de ‘eus’ provisórios, um disco rígido que contém uma série de arquivos que podem ser acessados ao sabor das circunstâncias (BRETON, 2003, p. 130).
A possibilidade de construção de diferentes identidades sem a necessidade de possuir um corpo comprova a tese de Foucault de que a sociedade contemporânea é marcada por um poder controlador que funciona por meio de mecanismos de regulação da vida, o biopoder. As exigências de ter prazer, beleza, saúde, higiene incidiram diretamente sobre o corpo, habilitando as práticas de uma pedagogia higiênica do espetáculo do corpo (SOARES, 2006). Com isso, ele é coagido a ser 85
cada vez mais saudável, jovem, belo, capaz de proporcionar prazer, o que “acaba provocando uma vontade crescente de resgatar esse corpo, adulá-lo e protegêlo, fornecendo-lhe quase a mesma importância e os mesmos cuidados outrora concedidos à alma” (SANT’ANNA, 2005, p. 99). O excesso de zelo e preocupação com o corpo, como ocorre na atualidade, e o desenvolvimento da informática podem levar esse mesmo corpo a viver uma situação oposta e ser definitivamente anulado. A atual preocupação excessiva com a defesa do corpo, a sua separação do perigoso mundo exterior, a busca ansiosa de sua imortalidade estão se tornando motivo de exaustão que se volta contra o mesmo corpo. Enquanto isso, o universo virtual promete livrá-lo dos perigos, sem que o sujeito deixe de ter identidades e prazeres. O preço pode ser a solidão, mas esta é compensada pela utopia do mundo virtual. Conforme Bauman (2001), a nova primazia do corpo se reflete na tendência a formar a imagem da comunidade no padrão do corpo idealmente protegido, a colocá-lo como uma entidade homogênea e harmoniosa, a isolá-lo da exterioridade estranha e suja, envolvendo-o numa armadura impenetrável. Assim, “a nova solidão do corpo e comunidade é o resultado de um amplo conjunto de mudanças importantes subsumidas na rubrica modernidade líquida” (BAUMAN, 2001, p. 211). Para viver nessa comunidade, o rosto já é algo totalmente descartável. Nas práticas de sexo virtual, alguns dispositivos foram surgindo e sendo acoplados ao computador e à Internet, possibilitando um contato maior entre os parceiros. Até pouco tempo, conforme relato de alguns internautas, o encontro entre os parceiros de sexo virtual se dava somente na própria sala destinada a essa prática. Com a chegada de novas formas totalmente reservadas de bate-papo online, como o MSN, e das Webcam, um encontro a dois (ou em grupo) se tornou mais privativo e ganhou a possibilidade da visualização, em tempo real, dos parceiros. Porém, segundo depoimentos de visitantes dessas comunidades, geralmente a câmara é colocada de forma a projetar para o outro apenas o corpo, um corpo sem rosto. Assim, sem o rosto, o sujeito não corre risco de ser visto, não precisa assumir responsabilidades e pode possuir identidades voláteis. Mesmo podendo ver partes do corpo do outro, não se trata do corpo do outro, mas da imagem que não pode ser tocada, acariciada, estimulada pelo tato. O efeito no contato virtual é conseguido, de fato, pelos sentidos das palavras trocadas, que, segundo Breton (2003), estimulam o cérebro e recordam uma relação sexual real, fazendo lembrar o tátil convertido em digital, a pele substituída pelo teclado, a mão pelo mouse. A sexualidade virtual é real em sentido metafórico, pois provoca sensações, mas sem o contato com o Outro. Dessa forma, conforme o autor, ela se transforma em textualidade e dispensa o corpo, a excitação verbal transmite-se a todo o corpo, como um terminal de prazer, fazendo com que, no sexo, o essencial seja o mental. Nessa relação sexual (ou textual), há a possibilidade de se criar personagens diferentes, de experimentar 86
papéis proibidos na vida real e de dizer coisas que jamais poderiam ser ditas se acompanhadas do corpo real. O acontecimento de um ato sexual é textualizado em enunciados que devem ser capazes de reconstruir até mesmo os movimentos, as impressões e as sensações do corpo. Mesmo com avanço inquestionável das tecnologias higienizantes do corpo, não podemos esquecer que há formas de resistência, tanto à anulação do corpo, acarretada pelas técnicas do mundo virtual, quanto à sua valorização excessiva com a obrigação dos cuidados. Mais uma vez, nos colocamos diante de uma aparente veneração, agora, do corpo, que esconde um temor por termos de carregá-lo e de mantê-lo conforme os padrões construídos. O temor, de fato, refere-se aos discursos sobre o corpo, configurando na logofobia de que falou Foucault (1998, p. 50), pois há “uma espécie de temor surdo desses acontecimentos, dessa massa de coisas ditas, do surgir de todos esses enunciados, de tudo o que possa haver aí de violento, de descontínuo, e de perigoso, desse grande zumbido incessante e desordenado do discurso”. O discurso impõe uma prática às coisas, as violenta, constrói contradições como as que presenciamos, quando, em nossa sociedade, somos impelidos a ter uma vida sexual ativa, mas, ao mesmo tempo, somos advertidos de que sexo pode causar doenças e até matar. Devemos buscar a prática sexual perfeita, prazerosa, mas devemos seguir certos critérios na seleção dos parceiros (há os grupos de risco) e usar preservativos em todas as práticas sexuais. Conforme Breton (2003), há um recuo da liberação sexual, e o puritanismo se uniu ao mito da saúde perfeita. “Existe o medo de pegar AIDS, e também o medo do sexo, simplesmente, medo de qualquer coisa que se assemelhe a paixão, a sedução, a responsabilidade” (BRETON, 2003, p. 135). O temor de Pêcheux (2004) de que, por uma logofilia, a lingüística conseguisse construir uma língua universal, não se sustentou. Ele só não percebeu que a logofilia estava nele, quando comentou: “não faltam boas almas se dando como missão livrar o discurso de suas ambigüidades, por um tipo de ‘terapêutica da linguagem’ que fixaria enfim o sentido legítimo das palavras, das expressões e dos enunciados” (Pêcheux, 1997). As “almas boas” de que ele fala, provavelmente, se apresentavam para fazer a higiene da linguagem porque tinham uma espécie de logofobia e não conseguiriam lidar com a língua que induz a equívocos. Como ele próprio mostraria mais tarde, em O discurso: estrutura ou acontecimento, todo discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação das redes de memória e dos trajetos sociais, é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, de deslocamento no seu espaço. Refletindo sobre a instabilidade da linguagem, Pêcheux (2002, p. 53) vai reconhecer que nos espaços sociais, “as ‘coisas-a-saber’ coexistem assim com objetos a propósito dos quais ninguém pode estar seguro de ‘saber do que se fala’, porque esses objetos estão inscritos em uma filiação e não são 87
o produto de uma aprendizagem: isto acontece tanto nos segredos da esfera familiar ‘privada’ quanto no nível ‘público’ das instituições e dos aparelhos de Estado”. Logo, a metalinguagem não existe. Finalizando a discussão, acreditamos que podemos elaborar a seguinte consideração provisória: em sua relação com o sexo virtual, o sujeito se nutre de um amor pela sua língua, como mecanismo que lhe permite se situar na hiperlíngua do ciberespaço para textualizar seu corpo (e o do outro) e sua sexualidade. Contudo, esse apego apenas engana o medo imposto pelos discursos que insistem em colocar o sujeito nas fronteiras movediças de sua vontade de verdade, que deslocam os sentidos para fora do alcance daqueles que insistem em fixá-los. Bibliografia AUROUX, S. “A hiperlíngua e a externalidade de referência”, In: ORLANDI, E. P. (org). Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas/SP: Ed. da UNICAMP, 1997. BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. BRETON, D. L. “Adeus ao corpo”. In: NOVAES, A. O homem máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Ed. Graal, 2001. ———————. “Outros espaços”. In: FOUCAULT, M. Estética: literartura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. (col. Ditos e Escritos III). ———————. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ———————. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1998. ———————. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. PÊCHEUX, M. e GADET, F. A língua Inatingível: o discurso na história da lingüística. Campinas: Pontes, 2004. ——————. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 2002. ——————.”Ler o arquivo hoje”. In: ORLANDI, E. P. (org). Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas/SP: Ed. da UNICAMP, 1997. SANT’ANNA, D. B. “ Transformações do corpo: controle de si e uso dos prazeres”. In: RAGO, M., ORLANDI, L. B. L. e VEIGA-NETO, A. Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. SOARES, C. L. “Pedagogias do corpo: higiene, ginásticas, esporte. In: RAGO, M. VEIGA-NETO, A. Figuras de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
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• A LÍNGUA EM SUA MATERIALIDADE DIGITAL Cristiane Dias (LABEURB) É no território digital da Internet, uma das facetas do acontecimento tecnológico do século XX, que desenvolvo minha reflexão sobre a língua em seu funcionamento, analisando-a no espaço digital de salas de bate-papo, redes sociais, e conversas instantâneas. Para tanto, vou partir da premissa de que a língua em sua materialidade digital constitui-se por um modo de escrita próprio da rede Internet. É nessa perspectiva que traçar as bases iniciais desse modo de escrita tem o intuito de chegar a um debate mais consistente sobre essa questão que tanto incomoda especialistas da língua portuguesa. O discurso sobre a língua no espaço digital nasce, na Internet, sobretudo, como uma reação a um modo de escrita, reação a uma grafia, que surge com a expansão da comunicação nas comunidades virtuais e redes sociais, o que, de modo geral, tem se chamado internetês e, de modo específico, encontra subdivisões, dependendo, sobretudo, do fator idade e tribo. De modo geral, o internetês é bastante conhecido dos “freqüentadores” das redes sociais da Internet. Ele caracteriza-se pela 1) abreviação das palavras, 2) uso de emoticons, smiles 3) uso de onomatopéias, 4) substituição de letras, 5) ausência de acentuação, 6) substituição de caracteres alfabéticos por numéricos. Essas características encontram certamente razão de ser pelas condições de produção que atravessam a língua em sua constituição na Internet. Essas condições de produção são, inicialmente, as da máquina, com sua linguagem específica: a linguagem de programação. Foi no impossível da linguagem de programação, a língua formal da Internet, que me detive para, então, pensar a língua no fluxo da história e do pensamento que articula linguagem e mundo. Pois temos, de um lado, a matematização ou codificação matemática da língua na linguagem de programação e, de outro lado, a língua no fluxo histórico dessa codificação. Quando falo do impossível da linguagem de programação ao falar do internetês, refiro-me ao que Pêcheux (1980) diz de um “resto irrepresentável” na lingüística, o que se manifesta pelo real da história, no internetês, uma vez que essa grafia surge, num primeiro momento, como um modo de otimização dos caracteres digitais. Para tanto, suprime-se os acentos, cedilhas, tils, com o intuito de que esses caracteres possam ser compartilhados em ambientes digitais diferentes, não sendo eles desconfigurados (não reconhecidos) ao serem lidos por diferentes softwares e sistemas operacionais/plataformas diversos. Num segundo momento, porém, o que ocorre com um fenômeno de caráter 89
meramente “técnico”, da linguagem da máquina, é uma apropriação social. É por essa apropriação social que o internetês extrapola o espaço digital. É essa apropriação social de um fenômeno técnico que justifica o uso dessa grafia na web, o que tenho entendido como um “resto irrepresentável”, a partir de Pêcheux. Apenas para exemplificar o que disse anteriormente, a falta de acentos, no internetês, é marcada pelo acréscimo do caractere “h”, que prolonga e abre o som da sílaba, produzindo o efeito do acento agudo. E outros caracteres, pouco utilizados no português, como o k, w, y, passam a ser muito utilizados no espaço digital, substituindo o qu, u, e i, respectivamente. Isso ocorre por serem os primeiros caracteres bastante utilizados no inglês, a língua que predomina no espaço web. O que me interessa aqui, no entanto, e que eu gostaria de enfatizar para dar continuidade à essa reflexão, é pensar o internetês como uma apropriação social de um fenômeno técnico. Conforme afirma Orlandi (1999), “as palavras mudam de sentido segundo as posições daqueles que as empregam” e eu acrescentaria que, hoje, com a Internet, as palavras mudam de sentido e de grafia, segundo a posição daqueles que as empregam. Essa afirmação pode ser melhor compreendida se pensarmos numa grafia muito utilizada na Internet e que se tem chamado miguxês. Miguxês é um termo que advém de miguxa, maneira carinhosa de dizer amiga, imitando o falar de uma criança. Apresenta um tipo de grafia que se diferencia do internetês, mas que para mim significa a partir da formação discursiva do internetês, nas condições de produção das redes de relações da Internet que, por essa razão, considero, nas reconfigurações das formações discursivas, como uma apropriação técnica do fenômeno social. Isso porque o miguxês é originalmente atribuído aos “Emos” (abreviação de emotional), uma tribo urbana formada por adolescentes, que nasce do meio musical, do estilo emotional hardcore, uma vertente do punk que mescla som pesado com letras românticas. Nesse sentido, partindo do pressuposto de que é o modo como o discurso circula e produz sentido num espaço determinado que institucionaliza um espaço de constituição do sujeito, entendo que a Internet, com sua linguagem própria, e eu falo aí de uma linguagem que “põe em relação sujeitos e sentidos” e que transgride o representável sistema da língua, cria um paradigma outro para pensarmos a língua no que diz respeito ao seu movimento histórico, social, cultural. Histórico porque temos aí implicada toda a questão do surgimento e expansão da Internet; social porque com esse surgimento há um movimento social e urbano que desemboca na cibercultura, ligada às tribos e suas linguagens específicas. É no cerne dessas questões que vou pensar a língua e o discurso que se produz sobre ela em espaços digitais de constituição do sujeito, a saber, espaços nos quais o sujeito pode “livremente” manifestar o seu desejo através da escrita, mas não qualquer escrita, falo da escrita instituída por aquele espaço específico de dizer, por 90
aquele modo de dizer. Refiro-me 1) às salas de bate-papo; 2) à página de recados do Orkut, 3) ao msn messenger. Meu intuito nessa reflexão é justamente mostrar que o sujeito e o modo de subjetivação é o que torna possível pensarmos a língua inserida em uma espacialidade que funda um modo específico de dizer, e esse modo de subjetivação se dá pelo afeto. Essa afirmação me permite avançar em duas direções importantes no que diz respeito ao triplo real apontado por Pêcheux (1981) em Matérialités Discursives, a saber, real da língua, real da história e real do inconsciente. Uma dessas direções é a que diz respeito à procura incessante da lingüística por uma língua ideal. A outra direção é a respeito da constituição do sujeito deflagrada na língua. Nesse artigo, vou discorrer mais explicitamente sobre a primeira dessas direções, a da língua, embora a segunda esteja a ela imbricada. Assim sendo, entendo que há uma tentativa de apropriação da língua pelas instituições ditas autorizadas, como a escola, por exemplo. Em outras palavras, há, nessa reação ao internetês, uma manutenção do desejo da língua ideal. Do ideal da língua. Uma tentativa de suturar a ferida narcísica e conter a “dispersão anagramática”1 “quando as massas ‘tomam a palavra’ e uma profusão de neologismos e de transcategorizações sintáticas induzem na língua uma gigantesca ‘mexida’, comparável, em menos proporção, àquelas que os poetas realizam” (Pêcheux e Gadet, 2004, p. 64). Vejamos um recorte dessa “reação ao internetês”, que se deu num fórum de debate de uma comunidade do Orkut, chamada Cibercultura.
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A discussão nesse tópico do fórum é sobre a “mudança ortográfica” na língua utilizada em blogs, salas de bate-papo, fóruns de discussão, redes sociais, e-mails, celulares, a saber, o internetês. Dando um zoom na imagem, temos o seguinte recorte: Pq vc naum escreve direito? Resolvi abrir este tópico estimulada pelo tópico “Quase ninguém lê”. Uma das coisas que mais me irritam e me fazem desistir da leitura na net são as abreviações das palavras. (Pq?, Vc, q, kd, blz, e etc...) Confesso que, às vezes, até eu mesma caio na tentação da preguiça e abrevio palavras, quando converso pelo MSN. Mas acho isso desonesto com uma série de coisas: desonesto com a nossa própria inteligência, com a inteligência alheia, com a gramática... Não suporto abrir um blog com textos totalmente desconfigurados dessa maneira. É como se eu estivesse tentando entender um outro idioma. A gente encontra coisas absurdas! Pior é quando as pessoas reescrevem palavras, como “não”, assim: “naum”. Isso é preguiça de colocar um acento no “a”?! Ou já foi mesmo esquecida a forma correta de escrevê-la? Como se não bastasse a escrita manuscrita estar cada vez mais distante do nosso cotidiano, o nosso rico vocabulário vai se perdendo a partir dessas reformulações. Isso me faz pensar sobre o futuro da escrita e da educação alfabética.
A discussão que se produz na seqüência mostra, de um lado, aqueles que “aceitam” essa escrita digital, e que são uma minoria dos participantes desse tópico, e, de outro lado, aqueles que não a aceitam. Os argumentos são quase sempre os mesmos, ou seja, o que prevalece é a preocupação quanto à passagem desse tipo de escrita utilizada na Internet, dessa “língua digital” ou “hipertextual”, para a escrita escolarizada, fora do espaço on-line e das relações mediadas por computador. Mais uma vez temos aí o lugar autorizado da língua, o lugar do conhecimento formal – a gramática – funcionando como leitmotiv para o conhecimento de si no que diz respeito ao modo como o sujeito é subjetivado pela língua. O que não se leva em consideração, entretanto, quando se pensa essa grafia do internetês é o modo de funcionamento da língua no espaço discursivo determinado da Internet, que tem a ver com a velocidade, com a linguagem de programação, que se constitui a partir de tecnologias numéricas e que por isso se diferencia radicalmente das técnicas da escrita tradicional. Assim como nas condições de produção da escrita na época do papiro, a “tecnologia da escrita”2 era outra, com sua temporalidade própria e suas condições de produção específicas, a saber, em sua materialidade digital. Nessa perspectiva, o que há é uma formulação determinada a partir de um 92
funcionamento discursivo específico da língua, o qual se dá a partir da relação do sujeito com o mundo, com as novas tecnologias numéricas, com a história. O que podemos observar, no entanto, na constituição do discurso do sujeito sobre a língua, nesse tópico específico, é uma resistência ao sentido da história e à significação do mundo. Minha pergunta, então, nesse momento da nossa história é: como nos apropriamos da língua na era digital? Que mudanças sócio-culturais estão aí refletidas nessa apropriação da língua? Que “tecnologias de escrita” produzimos? Considero, portanto, o uso do internetês uma manifestação da língua na história, em seu real constitutivo. Por essa razão, tenho me preocupado em descrever e compreender o modo como essa manifestação se dá. E é num ser outro da língua que me ancoro para desenvolver essa compreensão.
Simulacro da língua Para compreender o funcionamento discursivo dessa grafia em sua constituição na Internet, parto do pensamento deleuzeano para descrever o simulacro na relação com a língua. Para tanto, duas outras noções importante na obra de Deleuze se fazem necessárias: a de estilo e a de afeto. Para Deleuze (1997), o problema do estilo, no que concerne à escritura, toca diretamente o problema da língua. Daí a crítica que esse autor faz à lingüística que concebe a língua como um sistema em equilíbrio, já que, para ele, a língua é, ao contrário do que diz a lingüística, um sistema em desequilíbrio. “É um sistema por natureza longe do equilíbrio”, e isso porque ter estilo é justamente tornar-se algo pela língua, pela palavra in-exata. O estilo é a criação de uma língua, de uma sintaxe, mas de uma língua (estrangeira) funcionando num sistema em desequilíbrio. Segundo Deleuze (idem.), há dois aspectos que definem um grande estilo: 1) submeter a língua a um tratamento sintático original, contorcionante, deformador e 2) levar a linguagem até uma espécie de limite. São esses dois aspectos do estilo que fazem gaguejar a língua, não ao sujeito, mas a língua: “quando se cria uma outra língua no interior da língua, a linguagem inteira tende para um limite “assintático”, “agramatical”, ou que comunica com seu próprio fora” (Deleuze, ibidem. p. 9). Ter estilo é levar a língua ao limite que a separa da música, e produzir com ela, música. Há uma pintura e uma música próprias à escritura. Esse tornar-se algo pela língua, pela palavra in-exata é possível pelo funcionamento do simulacro. Esse modo de funcionamento da língua é aquilo que produz uma ruptura com o real, mas isso não significa que não há real, significa que o simulacro inventa um real, que não está sob o domínio da representação, da similitude. O simulacro é aquilo que transborda a representação. Por essa razão, a grafia do 93
internetês não quer representar estruturas cristalizadas da língua padrão, não quer responder a uma representação do real, mas simular, criar seu próprio real. Portanto, nessa grafia, a língua padrão é, pelo funcionamento do simulacro, destituída do lugar de modelo. Se, conforme nos ensina Orlandi (2001), os sentidos “são como se constituem, como se formulam e como circulam”, é aí que entendo que o internetês constitui sentido através de uma formulação específica de um sentido para a linguagem de programação, formulação esta que circula na web pelo gesto simbólico “teclar”, que desliza para “copiar”, “colar”, “clicar”, “entrar”, “sair”, “desconectar”, “enviar”, etc., que podem ser chamados, se recorrermos ao pensamento de Deleuze, de “infinitivosdevires”. Nessa “prática significante” do “infinitivo-devir”, podemos pensar a língua como multiplicidade - artigo indefinido, que libera a vida das determinações sociais; verbo infinitivo, que libera o acontecimento da relação sujeito-objeto – é pensá-la fora de toda gramaticalidade que a encerra em si mesma, e lançá-la ao acontecimento puro do infinitivo. Teclar: inserção num espaço físico-referencial, o que se dá sempre através de uma tentativa de inserir o outro (um saber) nesse espaço, o que é sempre uma inserção por fragmentários. No deslizamento da linguagem de programação, da linguagem da máquina, o internetês é, para mim, uma escrita de criação, regulada pelo imaginário da Internet, das relações lingüísticas que ali se estabelecem, regulada pela linguagem da máquina, e que eu tenho chamado de corpografia: alingua do afeto. Porque é uma grafia que inscreve o afeto no corpo irrepresentável. O corpo da tribo. Afetado ideologicamente pelo urbano.
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Portanto, sob o funcionamento do simulacro, pelo estilo, a língua produz afeto. Esse estilo tem a ver com o mundo, que produz novas formas de escrita. Se o mundo em que vivemos é o da velocidade e da instantaneidade (cf. Augé, 2003), essa velocidade do mundo contemporâneo textualiza a própria velocidade do acontecimento. Nessa perspectiva, não entendo, por exemplo, a abreviação das palavras no internetês como uma “economia de linguagem”, como o entende Robin (2004), mas sim uma linguagem que se faz numa velocidade tal que produz um clarão: o acontecimento, quando os corpos se encontram estilhaçando a língua e indefinindo o sujeito: o sujeito é “um”. É essa velocidade do mundo, portanto, que vai produzir um desequilíbrio na língua, uma “sintaxe em devir”3. Do devir-língua do corpo.
Conclusão Corpografia: a lingua do afeto A partir da minha compreensão da grafia do internetês, pude compreender que ela se constitui, num primeiro momento, porque o “real da língua” se impõe naquilo que não podia ser representado pela linguagem de programação, a saber, o modo como as relações se dão na Internet, pela linguagem própria a seus territórios, que é o que a institucionaliza como um espaço de constituição do sujeito. Num segundo 95
momento, porque o real do corpo se impõe, naquilo que lhe é o impossível e que, no entanto, o constitui no território da sala de bate-papo, do msn, dos recados no Orkut. Estou atravessando real do corpo e real da língua para pensar a língua que, pelo afeto, tornou-se corpo na grafia: corpografia. Ao inventar uma grafia, o sujeito deixa vestígios de si mesmo, de suas sensações e sentimentos, no corpo das palavras. Conforme mostra Orlandi (2001), “a letra é o traço da entrada no simbólico. Traço que marca o sujeito enquanto sujeito, em sua possibilidade de autoria, frente à escrita” (p; 204). Através dessa “manifestação significante” (escritura) o sujeito segue em sua viagem (corpórea). Concebo, então, a corpografia no paradigma do simulacro. A questão é pensar língua e corpo do paradigma do real-simulado, e não mais do real-presentado. Para mim há uma ruptura que se dá na relação real-representação, que passa para uma relação real-simulacro. Poderíamos, portanto, definir a corpografia a partir de dois critérios específicos da análise desses espaços digitais de constituição do sujeito: 1) a língua como processo criativo 2) o sistema irrepresentável da língua. Esses dois aspectos dizem respeito ao pensamento de Deleuze (1997, 1988) sobre a noção de ‘estilo’, e sobre a noção de simulacro, desenvolvidas acima, as quais estão ligadas a uma terceira noção, que é a do afeto. Sobre essa noção, cabe dizer que para Deleuze (idem.), a noção de afeto é inseparável daquela do estilo. O afeto, para esse autor, não é o mesmo que afeição, mas o que se extrai da afeição. O afeto é aquilo que transforma. Que faz uma coisa tornar-se outra. Em outros termos, para passar da afeição ao afeto, é preciso tornar-se o objeto, por exemplo, a paisagem que contemplamos e que contempla em nós: ao mesmo tempo em que o ser torna-se paisagem a paisagem torna-se cor, monocromo, número, vida, letra. A escritura pensada como corpografia tem, pois, o caráter de um devir, um fluxo, através do qual o sujeito explora o desconhecido num “corpo simbólico” no qual se funde corpo, escrita e tecnologia. Ancorada na reflexão de Orlandi (2001) sobre piercings, sustento que há na escrita de si da sala de bate-papo uma inscrição do corpo na língua, o corpo acontecendo na significação. O corpo textualizado nas letras digitadas na tela, nos emoticons, na grafia acrônima, agramatical, esquizo. O “corpo sem órgãos”, como mostram Deleuze e Guatarri (1995, p.57): parece um desfile de letras de alfabetos, e onde surgiram de repente um ideograma, um pictograma, a pequena imagem de um elefante que passa ou de um sol que se levanta. De repente na cadeia que mistura (sem compor) fonemas, morfemas, etc., aparecem o bigode de papai, o braço levantado de mamãe, uma fita, uma menina, uma tira, um sapato.
O corpo sem órgãos acoplado à grafia, uma corpografia. 96
Antenado >:-) Chorando (:-....
assustado =:-O beiçola :-} bonitão § :-) confuso :-/ lagrima caindo :*(
ahhhhhhhhhh uahsuhauhsuah ixiiii hummmmmmmmmm kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk A corpografia é, portanto, o simulacro da voz e do corpo na escrita. É por esse gesto que a escrita se resignifica no ciberespaço para dar visibilidade a um sujeito que constrói modos de subjetivação pela/nessa escritura.
Bibliografia AUGÉ, M. Le temps en ruines. Paris: Galilée, 2003. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Georges Lamazière. Rio de Janeiro: Imago, 1995. DELEUZE, G. Critica e clinica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997. DELEUZE, G. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal,1988.. DIAS, C. P. A discursividade da rede (de sentidos): a sala de bate-papo hiv. Tese de doutorado. Campinas/SP: Unicamp, 2004. ORLANDI, E. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2001. ORLANDI, E. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 1999. PÊCHEUX, M.; GADET, F. A língua inatingível : o discurso na história da lingüística. Trad. Bethânia Mariani e Maria Elizabeth Chaves de Mello. Campinas : Pontes, 2004. ROBIN, R. Cybermigrances: traversées fugitives. Québec: VLB editeur, 2004.
Notas
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1 O termo é de Baudrillard, citado por Pêcheux e Gadet (2004, p. 64). 2 A expressão é de Orlandi, 2001. 3 A expressão é de Deleuze, 1993.
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• DISCURSIVIDADES CONTEMPORÂNEAS E DICIONÁRIO José Horta Nunes (UNESP) Objetivamos neste trabalho refletir sobre a inserção de discursividades contemporâneas em dicionários de língua portuguesa. Para isso, vamos analisar de que modo a lexia “arte contemporânea” e outras relacionadas a ela são ou não definidas em um conjunto de dicionários de língua portuguesa e nos sítios do Wikcionário e da Wikipédia. Os dicionários consultados foram o Ferreira (1999), Houaiss e Villar (2001), Dicionário da Academia de Lisboa (2001), o Wikcionário (WIKIPEDIA FOUNDATION, 2007a) e a Wikipédia (WIKIMEDIA FOUNDATION, 2007b). Incluímos estes dois útlimos por serem sítios dos mais visitados na Internet. Este estudo visa a compreender alguns aspectos do modo de constituição de uma discursividade e seus efeitos na língua e no discurso. Nas últimas décadas, o adjetivo “contemporâneo”, quando associado a “arte”, além de outros nomes como “música”, “teatro”, etc., passa a compor uma unidade e a significar como tal. Assim, a unidade “arte contemporânea” se lexicaliza, ela passa a se apresentar como uma lexia da língua. E quando pensamos discursivamente, essa lexia funciona nos processos de nomeação, de definição, de construção de uma memória: não se trata somente de uma “arte” realizada em um tempo atual, mas do nome que se dá a um movimento artístico específico. Se isso se nota nos domínios da arte, da mídia e do cotidiano, o mesmo não acontece, de modo geral, com os instrumentos lingüísticos. Nos dicionários, como veremos, ainda é rara a presença dessa lexia. Isso nos leva a estudar a discrepância entre as práticas discursivas da atualidade e a produção de saber lingüístico. Tal discrepância tem a ver com a distância que há entre a língua fluida e a língua imaginária1. Enquanto construção imaginária da língua, o dicionário busca fixar seus sentidos e apresentá-los como estabilizados, como representativos da língua e dos falantes. Mas, ao fazer isso, sempre há um resto não contemplado, uma alteridade que lhe escapa; daí os dicionários sempre estarem sujeitos à reformulação, à revisão, à atualização. Isso sem dizer que o que é contemplado já produz uma divisão, na medida em que uma definição dicionarística é sempre uma dentre várias possíveis e ela é sempre efetuada a partir de uma posição de sujeito. Em outros termos, a definição como fato social está necessariamente relacionada à alteridade, à história e ao equívoco. Se tomarmos o aparecimento das discursividades contemporâneas como um acontecimento, no sentido de M. Pêcheux (1990), podemos analisar esse fato na sua relação com os equívocos na língua (palavras novas, confronto de palavras de diferentes línguas, processos de nomeação e de ajuste entre as palavras e as coisas) 99
e com as filiações históricas que elas evocam2. Além disso, ao observarmos os instrumentos lingüísticos, percebemos os modos de historicizar as discursividades contemporâneas, de delimitar-lhes os sentidos, de transformá-las em saber lingüístico estabilizado. De que modo isso é feito? A partir de que posicionamentos se dá a fixação imaginária desses sentidos? O que fica de fora nesses gestos de interpretação?
As discursividades contemporâneas como uma forma do discurso do novo As discursividades contemporâneas podem ser consideradas como uma forma do discurso do novo, no qual se dá a instituição de novos sentidos. Elas são próximas, portanto, dos discursos fundadores, na medida em que eles trabalham a passagem do sem-sentido ao sentido (cf. ORLANDI, 1993, p. 11). As novas discursividades, entrelaçadas aos acontecimentos, se mostram como lugares de instabilidade, nos quais as ligações entre as palavras e as coisas não estão estritamente ajustadas. Os equívocos são mais visíveis e as nomeações falham. Cabe distinguir aqui o discurso do novo, enquanto discurso que se produz diante de um real que clama por novos sentidos, das diversas formas de fixação do discurso do novo, dentre os quais podemos mencionar os do ”progresso”, os da “modernidade”, os da “contemporaneidade”. Esses discursos produzem uma certa domesticação do novo, na medida em que procuram constrolar seus sentidos, delimitar seus domínios, demarcar suas fronteiras. É o que vemos no discurso do contemporâneo, quando ele passa a ser datado, definido, inserido em certos domínos de saber, isto é, quando ele passa a ter sentido em certas formações discursivas. É nesse momento que os instrumentos lingüísticos como dicionários e enciclopédias interferem de modo visível, funcionando como lugares de estabilização dos sentidos. No processo de inserção das novas discursividades no instrumento lingüístico ocorre uma migração de sentidos, da qual resultam transferências e deslocamentos na passagem de um a outro discurso. Depois de ressoar diante do acontecimento, os discursos tornam-se objeto de um trabalho de arquivo e de construção de uma memória institucionalizada nos dicionários, de um trabalho da metáfora na disputa pela legitimação dos sentidos. Vejamos como se dá, então, esse jogo entre a instabilidade e a estabilidade quanto à lexia selecionada para análise.
Arte contemporânea: do invisível ao fragmentado O dicionário, por ser um discurso “sobre” a língua, está sempre à reboque das diversas práticas linguageiras em exercício na sociedade. Por vezes, passam-se anos ou décadas antes de um termo ser selecionado para figurar como entrada ou sub100
entrada de um dicionário, quando isso ocorre. Isso produz uma certa invisibilidade dos discursos. É o que vemos com o caso da “arte contemporânea”. De início, notamos uma ausência desse discurso nos dicionários, o que faz com que a discrepância entre língua imaginária e língua fluida se mostre. Depois percebemos a irrupção de enunciados de forma rarefeita nos dicionários, até que de modo mais decisivo tais enunciados aparecem no texto enciclopédico. A fim de compreender esse processo, sigamos o percurso da análise. Nos dicionários Houaiss e Villar (2001) , Ferreira (1999) e Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001), a lexia “arte contemporânea” não aparece. Além disso, no verbete “arte”, após as acepções relativas a essa entrada, são enumeradas e definidas várias unidades lexicais, como vemos no dicionário Houaiss e Villar (2001): arte concreta, arte de vanguarda, arte moderna, dentre outras, mas não arte contemporânea. O mesmo se nota nos outros dicionários consultados. Vemos aí uma primeira regularidade: a ausência, como sub-entrada, da lexia “arte contemporânea” nos verbetes analisados. O único material do córpus onde encontramos “arte contemporânea” foi na Wikipédia (WIKIMEDIA FOUNDATION, 2007b). Isso parece ser um índice de que esse instrumento é um dos que têm abrigado as discursividades contemporâneas. E que em alguns casos o saber enciclopédico precede o saber lingüístico. Na Wikipédia, os resultados são mostrados na tela diretamente, sem passar pelo verbete “arte”. O texto traz uma definição concisa, seguida de comentários históricos e enciclopédicos. A “arte contemporânea” é definida como “um período artístico que surge na segunda metade do século XX e se prolonga até aos dias de hoje.”. Nessa definição somente a significação temporal é contemplada, ou seja, aquela que vê a arte contemporânea como um “período” artístico. Na continuidade do verbete, os sentidos são identificados por meio da diferenciação de períodos artísticos que se sucedem. Assim, a arte contemporânea se distingue da Arte Moderna de inícios do século XX (“A arte começa a incorporar ao seu repertorio questionamentos bem diferentes das rupturas propostas pelas Arte Moderna e as Vanguardas Modernistas.”) e da Arte Pós-Moderna: (“Digamos que surge um novo conceito de modernidade, e a arte moderna começa a apagar-se dando lugar à Pós-Modernidade. Desta surge depois mum novo período com uma arte renovada, adaptável, prática, funcional, mas ainda sem nome.”). No momento em que o período da arte contemporânea é apresentado, o verbete o aborda como “ainda sem nome”. Nota-se aí que o novo discurso está nas fronteiras do sem-sentido. Podemos considerar esse fato como uma das figuras de nãocoincidência entre as palavras e as coisas, de acordo com J. Authier-Revuz (1998, p. 24). O real a nomear escapa ao simbólico. A falta da nomeação se mostra como um modo de dizer ausente, não realizado, deixado em suspense e projetado para uma futuridade. 101
E essa futuridade da nomeação surge na seqüência do verbete, quando se chega aos anos 70: “Na década de 70 a arte contemporânea é um conceito a ter em conta.”. Aqui a nomeação já se apresenta estabilizada e entram em cena, ao modo da enumeração e dos links, os movimentos do período: “A partir de meados das décadas de 60 e 70, notou-se que a arte produzida naquele período já não mais correspondia à Arte Moderna do início do século XX. A arte contemporânea entra em cena a partir dos anos 70, quando as importantes mudanças no mundo e na nossa relação de tempo e espaço transformam globalmente os seres humanos. Entre os movimentos mais célebres estão a Op Art, a Pop Art, o Expressionismo Abstracto, a Arte conceptual, a Arte Povera, o Minimalismo, a Body Art, o Fotorrealismo, a Internet Art e a Street Art, a arte das ruas, baseada na cultura do grafiti e inspirada faccionalmente na geração hip-hop, tida muitas vezes como vandalismo.” (WIKIMEDIA FOUNDATION, 2007b).
Poderíamos seguir vários desses links dos movimentos da arte contemporânea para prosseguir na análise. Mas vamos nos deter somente em um deles, que nos chamou a atenção pelo modo de definição. Trata-se do enunciado “Street Art, a arte das ruas, baseada na cultura do grafiti e inspirada faccionalmente na geração hip-hop, tida muitas vezes como vandalismo.”, no qual se nota uma posição ideológica que associa a “arte de rua” às divisões sociais em facções (“faccionalmente”) e ao “vandalismo”, que conforme a mesma Wikipédia “é uma ação motivada pela hostilidade contra a arte de uma cultura, ou destruição intencional de bens e propriedades alheios”. Ao clicarmos no link “street art”, que é o hiperônimo que domina os nomes grafiti, hip-hop e vandalismo, nos deparamos com o aviso “Seguiu uma hiperligação para um artigo que ainda não existe”. Isso mostra primeiramente o equívoco que coloca lado a lado o nome em inglês (street art) e o nome português (arte das ruas) e depois a falta de definição como o possível do sentido, na medida em que os leitores são convidados a escrever os verbetes. Assim, ao ser significada como arte contemporânea, a “arte de rua” se mostra como um real que falta (sem definição) e também como um real interpretado da posição do proprietário que se vê ameaçado por essas práticas urbanas e as nomeia como “faccionais” ou como “vandalismo”. Voltemos agora, na espiral da análise, às consultas aos dicionários de língua. Nos quatro dicionários pesquisados não há o verbete street art e no verbete “arte” dos mesmos dicionários não há a subentrada “arte de rua”. Tal ausência confirma que algumas palavras, tomadas como índices de discursividades contemporâneas, não estão inseridas nos dicionários, ou aparecem de modo raro, como acontece com hip-hop, pois esta somente está registrada em Houaiss (2001): hip-hop /’hip-hap/ [ing.] s.m.2n. (1983) movimento cultural da juventude 102
pobre de algumas das grandes cidades norte-americanas que se manifesta de formas artísticas variadas (dança, rap, grafites etc.). (HOUAISS E VILLAR 2001)
A definição de hip-hop nesse dicionário restringe seu alcance à “juventude pobre de algumas das grandes cidades norte-americanas”, o que silencia os sentidos que ele adquire no Brasil, ao passo que ressalta a condição econômica (“pobre”) dos sujeitos. Já a entrada grafite encontra-se em todos os dicionários. Na série abaixo elencamos somente as acepções relativas ao grafite enquanto escrita urbana: grafite: (...) 2. Palavra, frase ou desenho, geralmente de caráter jocoso, informativo contestatório ou obsceno, em muro ou parede de local público. (FERREIRA, 1999) grafite s.m. rabisco ou desenho simplificado, ou iniciais do autor, feitos, ger. com spray de tinta, nas paredes, muros, monumentos, etc., de uma cidade; (HOUAISS E VILLAR, 2001) grafito [grafitu]. s.m. (Do it. graffito) 2. Frase, palavra ou desenho geralmente de carácter jocoso, contestatário, obsceno, informativo, em muro ou parede de local público.” (DLPC, 2001) gra.fi.te masculino (plural: grafites) 1. (arte) forma de arte urbana. Pinturas feitas nas paredes e nos muros das ruas. (WIKIMEDIA FOUNDATION, 2007b)
Percebe-se nesta série que os três primeiros dicionários definem grafite ou grafito como um escrito (“palavra”, “frase”) ou um “desenho”, seja com a determinação de um sentido “contestatário”, como em Ferrreira (1999): “de caráter jocoso, informativo contestatório ou obsceno”, e no DLPC (2001): “geralmente de carácter jocoso, contestatário, obsceno, informativo”, seja de modo técnico, sem índices de movimento social ou político, como em Houaiss e Villar (2001): “feitos, ger. com spray de tinta”. Note-se que nenhum desses três dicionários define grafite como “arte”. Já o verbete do Wikcionário é uma excessão nessa série, pois é o único que define grafite como arte (“forma de arte urbana”). Além disso, a técnica não é a de “desenho” ou “rabisco”, mas a de “pintura”, o que consiste em um índice do discurso artístico. Há também um deslocamento que vai do “público” e da “cidade” para as “ruas” como local de prática do grafite. Todas essas marcas remetem à formação discursiva que determina a Wikipédia, da qual o Wikcionário é complemento, e que, como vimos, trata o grafite como uma “arte de rua”. Os sentidos artísticos do grafite funcionam algumas vezes como uma domesticação 103
do movimento social. Os sentidos contestários e políticos, produzidos a partir dos acontecimentos citadinos, são absorvidos em uma memória da arte esvaziada do conflito e do caráter contestatório das práticas urbanas. Desse modo, tal discurso é mais facilmente assimilável por certas camadas sociais médias e altas. Isso se mostra, por exemplo, na apropriação que se tem produzido dos grafites como forma de paisagismo urbano, elemento ornamental em muros, em praças, nas escolas, nos prédios públicos.
Conclusão O estudo das novas discursividades leva a compreender melhor a dimensão do acontecimento e do modo como ele demanda sentidos e é interpretado. Na migração dos sentidos novos para os discursos de estabilização, como os dicionários, nota-se inicialmente uma falta na relação do real com o simbólico: ausências de entradas, faltas ou excesso de nomes, nomes sem definições, equívocos multilíngües, definições sem hiperônimos. Como lugar de captura dos discursos do contemporâneo, a enciclopédia on-line se mostrou mais sensível ao acontecimento, o que acena para mudanças significativas nas tecnologias de linguagem e, ao mesmo tempo, para as limitações de certos instrumentos. Enquanto os textos on-line se proliferam, e com isso, a produção de um saber enciclopédico, os dicionários impressos tardam a se atualizar e em alguns casos tornam-se obsoletos. Ao analisarmos os dicionários, nos damos conta da invisibilidade de certos discursos para a sociedade. São discursos que não migram para os instrumentos de estabilização e que, portanto, não circulam por esse meio na sociedade, nas instituições, nas escolas. Já no momento em que eles aparecem nos instrumentos, notamos que os sentidos de “arte contemporânea” se mostram, não como um fato social mais amplo, mas sim de modo fragmentado, restrito a certos grupos sociais, de modo que na passagem para a “opinião pública”, eles aparecem relacionados a grupos fechados específicos (facções) ou a práticas da violência (“vandalismo”). S. Auroux, ao trabalhar a noção de hiperlíngua3, afirma que: “a externalidade da referência é um princípio que vai além da simples constatação segundo a qual os objetos dos quais fala a linguagem estão fora dela. É preciso compreender até este ponto último onde se deve admitir que o próprio mundo externo participa do sentido” (AUROUX, 1998, p. 23)
Podemos considerar que o acontecimento é um dos modos de se manifestar a externalidade da referência, ou, como diríamos na análise de discurso, a exterioridade do discurso. Desse modo, uma manifestação de hip-hop na rua, a feitura de uma pichação ou de um grafite, são acontecimentos que modificam a hiperlíngua. Tais 104
fatos podem passar desapercebidos nos dicionários, imersos em sua “cegueira verbal”, em sua ilusão da evidência. Mas eles existem e produzem seus efeitos nos falantes e por fim, ainda que tardiamente, nos próprios instrumentos lingüísticos. Para finalizar, diremos que as reflexões aqui empreendidas conduzem a pensar o lugar das discursividades contemporâneas nos estudos da Análise de Discurso. Perece-nos produtivo, como afirmamos no decorrer do trabalho, distinguir o discurso do novo, cujo real jamais é atingível de forma plena, dos discursos que metaforizam o novo, dentre os quais se encontram os discursos da contemporaneidade. Uma das marcas destes últimos é a lexicalização de unidades como “arte contemporânea”. Analisar essas marcas lingüísticas na relação com os discursos é pensar os efeitos dos acontecimentos, os gestos de nomeação e de interpretação, a relação da língua fluida com a língua imaginária no movimento dos sentidos. Com relação ao que temos considerado uma “lexicografia discursiva” ORLANDI, 2002, NUNES, 2006a, 2006b), pensamos que os trabalhos com os discursos contemporâneos podem contribuir no sentido de mostrar a discrepância entre as práticas discursivas em jogo na atualidade e o discurso do dicionário. Nesse contexto, seria produtivo dar visibilidade a discursos não contemplados nos instrumentos lingüísticos, bem como explicitar as posições discursivas, as filiações sócio-históricas que sustentam as definições e os exemplos dicionarísticos. Trabalhar desse modo nas fronteiras entre os discursos reais e os discursos de legitimação que sustentam um imaginário social, trazendo condições ao mesmo tempo para a compreensão dos instrumentos lingüísticos e para sua ininterrupta crítica e atualização. Referências bibliográficas AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas: Editora da Unicamp, 1992. AUROUX, S. “Língua e hiperlíngua”. Línguas e instrumentos lingüísticos, n. 1. Campinas: Pontes Editores, 1998, p. 17-30. AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas - As não-coincidências do dizer. Campinas: Editora da Unicamp, 1998. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. HOUAISS, Antônio, e Mauro de Salles VILLAR. Dicionário Houaiss da língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. INSTITUTO de Lexicologia e Lexicografia da Academia das Ciências de Lisboa. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea. Lisboa: Editorial Verbo, 2001. NUNES, José Horta. Dicionários no Brasil - Análise e História do século XVI ao XIX. Campinas: Pontes Editores, 2006a. 105
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Notas 1 Conforme E. Orlandi, “A língua imaginária é aquela que os analistas fixam com suas sistematizações e a língua fluida é aquela que não se deixa imobilizar nas redes dos sistemas e das fórmulas” (Terra à vista, Cortez: São Paulo/Unicamp: Campinas, 1990 p. 75). 2 “é porque há o outro nas sociedades e na história, correspondente a esse outro próprio ao linguajeiro discursivo, que aí pode haver ligação, identificação ou transferência, isto é, existência de uma relação abrindo a possibilidade de interpretar. E é porque há essa ligação que as filiações históricas podem-se organizar em memórias, e as relações sociais em redes de significantes.” (M. Pêcheux. Disucurso: estrutura ou acontecimento?. Campinas: Pontes Editores, 1990). 3 A hiperlíngua é um espaço/tempo estruturado pelos seguintes elementos: diferentes indivíduos em relação de comunicação; tais relações se efetuam sobre a base de competências lingüísticas (aptidões atestadas por sua realização); as competências lingüísticas individuais não são as mesmas; os indivíduos podem ter acesso a instrumentos lingüísticos; os indivíduos têm atividades sociais; as relações de comunicação têm lugar em certos ambientes. (Cf. S. Auroux. “Língua e hiperlíngua”. Línguas e instrumentos lingüísticos, n. 1. Campinas: Pontes Editores, 1998, p. 17-30). 106
• TECEDURA E TESSITURA DO DISCURSO ARTÍSTICO DA/NA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL: MATERIALIDADES FRONTEIRIÇAS
Nádia Régia Maffi Neckel (Universidade do Contestado) Este texto tem como proposta principal, pensar no funcionamento do discurso artístico, neste terreno des-territorializado e fronteiriço dos dizeres contemporâneos. Essa discussão nasce de dois pontos constitutivos de ancoragem: O primeiro vem de uma filiação teórica à escola francesa de análise do discurso a partir das proposições teóricas de Michel Pêcheux e, dos desdobramentos teóricos, no desenvolvimento das pesquisas brasileiras a partir das proposições de Eni Orlandi. E, o segundo vem de minha formação e experiência profissional na área da arte e da análise do discurso, em pesquisas e leituras iniciadas no mestrado delineando formulações a respeito do Discurso Artístico. A produção audiovisual contemporânea inscreve-se em condições de produção fronteiriças, pois lança mão da imbricação material, dito de outro modo, não se sustenta na égide da imagem ou do verbo. Essa materialidade singular (uma materialidade que desfaz a dicotomia verbal-não-verbal) da qual é constituído o vídeo contemporâneo não se deixa aprisionar por análises rígidas e apriorísticas, não há territórios demarcados, nem tão pouco, fronteiras definidas. Categorizar determinada produção como documentário, curta-metragem ou vídeo-arte, não especializa o gesto de interpretação, por isso, dificilmente, as teorias estabilizadas dão conta de compreender o funcionamento de tais dizeres e os deslizamentos de sentido que circulam em tal corpus. O dispositivo teórico-analítico da AD especializa a compreensão da tecedura e tessitura de uma produção audiovisual e rompe epistemologicamente com a rigidez metodológica e a redução estilística as quais, na maioria das vezes, se submetem os críticos de arte. Tessitura e tecedura, nesta pesquisa são tomadas como funcionamento da ordem da estrutura e do acontecimento do/no corpus de análise. Tomamos por tecedura, o tecer dos dizeres no fio do discurso, na trama dos sentidos, no jogo polissêmico e no interdiscursivo. E, tomamos por tessitura, o funcionamento próprio da materialidade discursiva em sua estrutura, na forma material ou, na imbricação da matéria significante. Desta forma, a perspectiva discursiva na leitura/interpretação de imagens e/ou produção artística é capaz de dar conta produtivamente da compreensão da produção e de deslocamentos de sentidos presentes em materialidades singulares como vídeo. A reflexão que se apresenta, faz parte das formulações da Tese de doutoramento 107
em Lingüística, tendo como corpus de pesquisa e análise materiais audiovisuais inscritos ou circunscritos pelo Discurso Artístico em seu jogo de polissemia. Tal pesquisa pretende trabalhar com as noções de intertextualidade e interdiscursividade deparando-se confrontadamente com as noções de arquivo da AD e de imagemarquivo nos vídeos e questionando-se constantemente sobre os aportes de campos teóricos vizinhos como, por exemplo, a Semiótica (principalmente nas noções de iconicidade, interpretante e indexalidade), considerando nosso corpus de analise e os movimentos de compreensão da imagem cinematográfica realizadas até então. Como nos lembra Xavier (2005:18) no que diz respeito a imagem fotográfica e cinematográfica: (...) toda uma série de comentários e discussões podem ser feitos quanto aos específicos mecanismos presentes no funcionamento da imagem fotográfica como signo, o que é justamente levado às ultimas conseqüências dentro de uma perspectiva semiótica. Foi começando por uma constatação da iconicidade e da indexalidade que a pesquisa semiótica iniciou sua lida com a fotografia e com o cinema.
Mesmo que nossa abordagem esteja filiada e comprometida com a perspectiva discursiva não podemos nos furtar das contribuições teórico-analítica-estruturais que as noções semióticas nos trazem. Afinal, se discurso é estrutura e acontecimento nosso compromisso analítico tem de ir nesta direção: a de compreender esforçadamente a imbricação material da tessitura da/na tecedura destas matérias significantes não verbais. E, por outro lado, o aparato analítico que tais materialidades possuem, em outras áreas, como por exemplo, a semiótica; dão conta apenas de seu aspecto estrutural e não da ordem discursiva. Desta forma, o que temos é um aparato em construção, o que é extremamente produtivo, pois não partimos do logicamente estabilizado, mas do curso, do movimento, do deslizamento, da falha. Acreditamos que pensar no funcionamento de materialidades de linguagem da arte e, nela a imagem, o gesto, o som, é perscrutar para além de sua estrutura aparente. Tal tarefa – nada fácil – configura-se em um exercício exigente. Assim, buscar os efeitos de sentido na opacidade de um discurso implica, como nos ensina Orlandi, ultrapassar a organização (regra e sistematicidade), para poder chegar à ordem (funcionamento, falha) da língua e da história (equívoco, interpretação) esse é o movimentar-se do analista de discurso. Nosso gesto de interpretação na análise de materialidades audiovisuais, conta com “o espaço do possível, da falha, do equívoco” (Orlandi, 1997, p. 22). A interpretação, como o lugar próprio da ideologia, materializado pela história, justamente porque linguagem é, estrutura e acontecimento. Conforme Pêcheux (1988), o discurso é produzido num espaço de redes de filiações sócio-históricas de sentido. Nesse espaço, irrompe o gesto de interpretação, como 108
efeito dessas redes, provocando sempre deslocamento. Assim, “o discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos: todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação” (p. 56). O discurso mantém sempre relação com outros dizeres, portanto, não é uma entidade homogênea; o sujeito, por sua vez, se constitui na relação com o outro, na interlocução com o meio sócio-histórico. E, estas perspectivas não se anulam quando falamos de dizeres artísticos, e, neste caso, audiovisuais, pois estamos falando em linguagem, sujeito e sentido. Segundo Orlandi (2004) “O gesto do analista é determinado pelo dispositivo teórico enquanto o gesto do sujeito comum é determinado pelo dispositivo ideológico.” (p.84). E do sujeito-artista? Afirmei em minha dissertação de mestrado que ambos, “analista e artista, produzem gestos de interpretação. O primeiro pelo dispositivo teórico e analítico e o segundo pelo dispositivo sensível e analítico” (NECKEL: 2004). O sensível aqui, está voltado ao movimento de estesia (saber sensível) em confronto com a estética (características materiais) lugar onde se instala o jogo polissêmico do Discurso Artístico. Pêcheux nos diz que “gestos são atos no nível simbólico”, Orlandi ancorada nesta formulação nos aponta para o fato que: Ao utilizarmos a expressão gestos de leitura, como é próprio à análise de discurso, e no meu caso específico gestos de interpretação, estamos pois fazendo da leitura, e da interpretação, um ato simbólico dessa mesma natureza de intervenção no mundo. Uma prática discursiva. Lingüístico-histórica. Ideológica. Com suas conseqüências. Com efeito, pode-se considerar que a interpretação é um gesto, ou seja, ela intervém no real do sentido. (2004, p.84)
Os sentidos produzidos no interior do Discurso Artístico1 sejam eles pela via de imagens, de sons, de movimentos ou palavras, são gestos de interpretação de acontecimentos outros que podem estar filiados a diferentes formações discursivas e ainda, produtos de discursos outros. São as características do DA em confronto com as características desses outros discursos que determinarão os efeitos de sentido do artístico reforçando os processos discursivos, predominantemente lúdico e polissêmico, sem, contudo, se fechar ao movimento parafrástico, mas constituindo-se no confronto de um e outro. Esse processo é o que chamamos do acontecimento próprio do DA2, é o ponto de tensão entre o mesmo e o diferente, o estranhamento. Dentre as discussões até hoje delineadas, tanto na teoria da arte, quanto na crítica de arte, encontramos a apropriação da denominação discurso em várias instâncias: discurso de arte, discurso sobre arte, discurso da crítica de arte. Mas, e sobre o DA? Sobre a obra de arte enquanto dizer? Ao formularmos tal conceito, compreendemos 109
o DA como, fundamentalmente, polissêmico, tecido no movimento, no deslocamento, na falha, e, por isso, predominantemente lúdico. E, é justamente o funcionamento do DA que pretendemos apontar em nosso corpus analise: o material audiovisual. O vídeo como uma das formas contemporâneas de produção de sentido, nos toma em meio ao bólido3 de materialidades expressivas. Temos uma materialidade ao mesmo tempo visual, sonora e verbal que nos provoca esteticamente de forma diferenciada, aguça-nos mais dois ou três sentidos ao mesmo tempo. Como esses efeitos de sentido nos provocam? O que nos desestabiliza? Qual a posição de espectação que tomamos? A desestabilização própria das produções contemporâneas e a cultura multimidiática como acontecimento do nosso século, é uma realidade dotada de complexidades, na qual a segurança das categorizações, nomeações e rotulações, são postas em xeque a todo segundo (ou até mais rápido que isso). Ao propormos pensar na tecedura e na tessitura da produção audiovisual a partir de uma perspectiva discursiva, faz-se necessário que olhemos para o vídeo não mais como meros espectadores, mas como propositores, pois faz parte da constituição de sentidos do/no vídeo, o lugar da espectação, não mais como o lugar da passividade, mas da interlocução ativa. O vídeo, não mais um produto, mas um processo, um suporte expressivo, um dizer que foi e está sendo construído a partir de outros dizeres-olhares e que, a partir dele outros olhares-dizeres são possíveis. Olhar analiticamente para o vídeo, não é aceitá-lo como produto, mas como processo, como dizer em curso, como algo que não se fecha, pois o movimento de interpretação se faz na lacuna, na abertura, naquilo que vaza. Assim, percebendo o vídeo como uma materialidade capaz de mobilizar a memória discursiva – o interdiscurso, “um já dito que possibilita a significação do que se esta dizendo” (FEDATTO E MACHADO IN: BOLOGNINI 2007:11). Ou seja, os modos de fazer o vídeo já estão carregados de interpretação, assim como, os gestos de leitura precedentes em sua espectação. Os gestos de interpretação têm sempre seus pontos de ancoragens e, estas ancoragens, são também atravessadas por discursos outros. Lidar com essas condições de produção da contemporaneidade é lidar o tempo todo com a condição de deslizamento, ‘o sentido sempre pode ser outro’. É inscrever-se num espaço-tempo sem demarcações de territórios definidos, é estar sempre numa relação fronteiriça da imbricação material. Apresentaremos a seguir alguns recortes retirados do corpus de análise de um audiovisual – curta metragem, inscrito nas condições de produção trabalhadas até agora. Tal produção trata-se do Curta-Metragem Experimental4 “Enigma de Um Dia” de Joel Pizzini produzido em 19965. O Curta é uma produção audiovisual que tem como materialidade predominante o som e a imagem, as únicas intervenções verbais se dão no início do filme em diferentes línguas e, estas “línguas”, em alguns momentos no decorrer do vídeo se repetem como murmúrios ao fundo da seqüência musical o que ocorre também no final. Uma metáfora da “Torre de Babel”? Uma marca que 110
a língua é polifônica? Ou um lembrete de que estamos diante da linguagem que é muito mais do que comunicação? Todo o vídeo é tecido, como já apontamos antes, em meio a um bólido de sentidos e, como é próprio dos dizeres contemporâneos, sua tessitura se dá na imbricação material. Por isso vamos optar nesta apresentação realizar um recorte pela materialidade significante da imagem, tentando trabalhar as noções de intertexto e interdiscurso e, neste movimento de analise buscar o funcionamento do DA do/no vídeo, uma relação de imbricação material entre memória e texto, ou seja, entre a intertextualidade e a interdiscursividade. O sujeito se constitui pelo “esquecimento” daquilo que o determina. Podemos agora precisar que a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito): essa identificação, fundadora da unidade (imaginária) do sujeito, apoia-se no fato de que os elementos do interdiscurso (sob sua dupla forma, descrita mais acima, enquanto “pré-construído” e “processo de sustentação”) que constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina, são reinscritos no discurso do próprio sujeito. (PÊCHEUX, 1997:163). (...) Propomos chamar de interdiscurso a esse “todo complexo dominante” das formações discursivas, esclarecendo que também ele é submetido à lei de desigualdade-contradiçãosubordinação que, como dissemos, caracteriza o complexo das formações ideológicas. (PÊCHEUX, 1997: 162)
Segundo Orlandi “é também o interdiscurso, a historicidade, que determina aquilo que, da situação, das condições de produção, é relevante para a discursividade”.6 É nesse sentido que o interdiscurso pertence à ordem do ‘saber discursivo’. Esse saber é afetado pelos esquecimentos que fazem parte da constituição do sujeito discursivo. Ainda para Orlandi, Para que a língua faça sentido, é preciso que a história intervenha, pelo equívoco, pela opacidade, pela espessura material do significante. Daí resulta que a interpretação é necessariamente regulada em suas possibilidades, em suas condições. Ela não é mero gesto de decodificação, de apreensão do sentido. A interpretação não é livre de determinações: não é qualquer uma e é desigualmente distribuída na formação social. Ela é “garantida” pela memória, sob dois aspectos: a. a memória institucionalizada (arquivo), o trabalho social da interpretação onde se opera que tem e quem não tem direito a ela; b. a memória constitutiva (o interdiscurso), o trabalho histórico da constituição do sentido (o dizível, o interpretável, o saber discursivo). O gesto de interpretação se faz entre a memória institucional (o arquivo) e os efeitos de memória (interdiscurso). Ser determinada não significa ser (necessariamente) imóvel. (ORLANDI,1999, p.49) 111
Por isso, a noção de interdiscurso nos é cara. Pretendemos, em seguida demonstrar o funcionamento desta noção nos recortes das materialidades audiovisuais que recortamos do frames do vídeo e assim esperamos mostrar, por meio do funcionamento discursivo, como estes efeitos de memória (o interdiscurso) deixam suas marcas no dizer, nos efeitos de sentido que a imagem provoca e, desta forma demonstrar que não se trata como pensamos comumente ser da ordem da materialidade física (se é imagem, gesto, som ou palavra), mas sim da ordem da materialidade discursiva (sócio-histórica-ideológica). Como delineamos acima: - a “Torre de Babel”, que língua falamos? Ou não falamos...
São diferentes pessoas, com diferentes línguas que “olham” a mesma imagem. A mesma imagem? São também diferentes imagens que se colocam frente a elas e a nós, na tela. Queremos entender o que eles falam. Esperamos que a imagem vista pelas personagens se revele a nós imediatamente. E, esperamos isso por que necessitamos apreender a linguagem, fechar o sentido (como se isso fosse possível). Nesta seqüência de cenas, o cineasta nos provoca ao jogo dos sentidos e, somos tomados por esse jogo, estamos embrenhados na tecedura do filme. Que, a partir desse momento, não nos falará mais pela linguagem verbal, a língua que “dominamos”. Dominamos? O jogo acabou de demonstrar que não, a ludicidade do DA nos arrebatou, e, deste momento do vídeo em diante, “correremos” atrás das imagens buscando o efeito de fechamento para os sentidos na tentativa vã, de desvendar o Enigma. E, a imagem da “Torre de Babel” se sustenta no/pelo interdiscurso, na imbricação material de palavras e imagem em movimento na tessitura do vídeo. Na tecedura, o funcionamento da memória discursiva enquanto pré-construído. É no interdiscurso que a tecedura se sustenta na seqüência das cenas. E mesmo que não tenhamos acesso, é no funcionamento histórico que essa imagem (da torre de Babel) já está lá, na opacidade da seqüência das cenas.
Imagem: “A Pequena Torre de Babel” -1563 – Brueguel (segunda versão)
Imagem: “A Torre de Babel” -1563 – Brueguel (primeira versão) 112
Pêcheux em seu texto “La langue introuvable” nos lembra que o mito de Babel apresenta a divisão das línguas que coincide com o começo do estado unitário, aqui no vídeo essa impossibilidade do único, trabalha no espaço de imbricação material e o faz recorrendo a essa imagem ausência-presença do interdiscursivo. O inatingível agora, é essa imagem, a imagem de um quadro, ou, a imagem-memória que tornou possível o pintor dizer o quadro. A qual, nós, espectadores não temos acesso. E quais são nossos acessos permitidos? Deparamos-nos, aqui, não apenas com as fronteiras de língua, mas com a posição fronteiriça de diferentes materialidades, próprio do discurso na contemporaneidade. Avançando um pouco mais, vídeo “adentro”, temos outras cenas, desta vez não na tessitura aleatória, não mais seqüencial. Tais frames nos parecem produtivos para pensarmos o funcionamento interdiscursivo, na posição do sujeito “personagem” do vídeo.
Estes são alguns frames em perspectiva, primeiro plano, closes e primeiríssimo plano enfocando a personagem principal do filme a que se pretende produzir o efeito de reflexão e pensamento da personagem no que diz respeito às imagens e sensações que a cercam. E, mais uma vez, é pelo funcionamento da imagem enquanto “operador da memória social”7, enquanto interdiscurso que o dizer se sustenta. Em diversas passagens do vídeo outros textos da história da arte se fazem presentes, para a construção de sentidos. Como o caso da personagem principal, o Zelador e o Pensador de Rodin8.
Os sentidos produzidos pela imagem do vídeo do “Pensador” à personagem não se dão pela forma da estrutura da imagem (forma física Pensador = forma física da personagem), ou seja, não pela paráfrase, mas por um processo de polissemia, no movimento de sentido é mais opaco provocado pela sutileza das imagens. 113
Desta forma, aqui se delineia uma das questões importantes em considerar quanto ao processo de tecedura e tessitura do vídeo. Interdiscurso e intertexto funcionam na imbricação material entre a memória e o texto. Compreendemos que a noção de texto passa por desdobramentos conceituais: ‘unidade de análise’, ‘produção de sentido’, ‘coerência’, ‘progressão’ e ‘finalidade’; questões estas, tratadas de diferentes modos, dependendo da ancoragem teórica na qual se apresentam. Cada disciplina, desde a perspectiva da Análise do discurso, passando pela Semiótica, pela Enunciação ou pela Semântica, tomarão o texto diferentemente, no entanto, sempre como unidade de análise, sendo que a questão do texto sempre se constitui numa questão intrigante. Pois bem, por uma questão de recorte, nos deteremos às proximidades teóricas da AD e da Semântica. Pois, o lugar que se nomeia o texto, e, como se nomeia, tanto na perspectiva Semântica, quanto Discursiva é o que nos interessa nesta discussão: O texto como unidade de sentido. Na matéria audiovisual essa questão da intertextualidade é tocada pelo interdiscurso, mas, no entanto reforçada pelas marcas discursivas nas formas utilizadas nos frames. Vejamos alguns recortes, como por exemplo, o texto de Tarsila do Amaral:
O funcionamento parafrástico reforçado pelo efeito de enquadramento e recorte da imagem no vídeo. Tarsila é parafraseada não só na imagem dos operários, mas no funcionamento interdiscursivo sendo a personagem principal também um operário. Outro movimento intertextual está nas imagens do surrealismo como nas imagens abaixo, em enunciados que recorrem à textos de Dali e Magritte:
O caráter intertextual se apresenta nos recortes das imagens pelo movimento de paráfrase das formas. As formas são parafraseadas no texto-imagem ora por um detalhe na composição, ora por um movimento de câmera. É o que acontece, por exemplo, nos enunciados que textualizam às composições de Volpi. É pelo movimento de câmera que a ausência da perspectiva é trabalhada, o que nos remete ao interdiscursivo. Já as bandeirinhas são textualizadas nos lambrequins e fachadas das construções que estão sendo filmadas. 114
Temos a consciência da imbricação material deste corpus e, que portanto, o som também significa. No entanto, não estamos, nesta análise, nos debruçando sobre tais materialidades, pois, reconhecemos a impossibilidade de dar conta analiticamente desta imbricação em tão pouco tempo. Igualmente, existem outros recortes possíveis para trabalhar as noções as quais nos propusemos. No entanto, o tempo exíguo, não nos permite. Também temos consciência de que nossos dispositivos analíticos ainda estejam em seu estado embrionário. Existem muitos desafios pela frente e uma necessidade ímpar de aprofundar a análise de tais materialidades, este é nosso intento de tese na qual pretendemos ocuparmo-nos de tais questões, deste, e de outros olhares por vir. Como nos ensina Gallo, temos a cada movimento analítico apenas o “efeito de fecho”.
Referências ANDREW, James Dudley, As principais teorias do cinema: uma introdução. Tradução Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2002. ARNHEIM, Rudolf, Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. Tradução Ivonne de Faria. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002. BOLOGNINI, Carmen Zink (org.) Discurso e ensino: o Cinema da Escola Campinas, SP: Mercado de Letras, 2007. CARRIÉRE, Jean-Claude A linguagem secreta do Cinema Tradução Fernando Albagli e Benjamin Albagli – 1.ed. especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. GALLO, Solange Leda, Autoria: questão enunciativa ou discursiva? Linguagem em (Dis)curso/ Universidade do Sul de Santa Catarina. V. 1, n.1 (2000) – Tubarão: Ed. Unisul, 2000 – v.1, n.2 p. 1-364, jan./jun. 2001. LAGAZZI- RODRIGUES, Suzy in: MORELLO, Rosângela (org.) Giros na Cidade: materialidade do espaço. Campinas: LABEURB/NUDECRI – UNICAMP, 2004. NECKEL, Nádia Régia Maffi. Do discurso artístico à percepção de diferentes processos discursivos. Dissertação de Mestrado. Unisul – Universidade do sul catarinense – Floranópolis, SC, 2004. ORLANDI E. Discurso e Texto: formação e circulação dos sentidos Campinas – SP: Pontes, 2001 __. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 1999. __. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas – SP: Pontes, 1987. __. Efeitos do verbal sobre o não verbal. Rua (Revista do Núcleo de Desenvolvimento 115
da Criatividade) Nº. 01 – Unicamp – Campinas, SP, 1995. PÊCHEUX, Michel Discurso: Estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Puccinelli Orlandi São Paulo: Pontes, 1997. ___. DAVALLON, Jean. ACHARD, Pierre. DURRAND Jacques. ORLANDI Eni. Papel de Memória. Trad. José Horta Nunes. Campinas, SP: Pontes, 1999. ___. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Puccinelli Orlandi Campinas SP: Unicamp 1988. RAMOS, Fernão Pessoa (org.) Teoria contemporânea do cinema. Vol.II – São Paulo: Ed. Senac, 2005. XAVIER, Ismail, O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 3ª Edição – São Paulo, Paz e Terra, 2005.
Notas 1 Conceito formulado em “Do discurso artístico à percepção de diferentes processos discursivos” Dissertação de mestrado defendida em 2004 – Unisul – Florianópolis – Programa de Mestrado em Ciências da Linguagem, orientado pela professora Dra. Solange Gallo. Discurso Artístico, doravante apenas DA. 2 É preciso salientar que não nos coube, durante nossas pesquisas (e muito menos agora), propormos definições para a Arte (nem acreditamos em ‘definição’). O que apontamos são características do DA. 3 Aproprio-me aqui da expressão utilizada por Orlandi em 2004 em seu texto “Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico”. 4 Tal designação vem no encarte junto ao filme designando do gênero do material audiovisual, no movimento de analise pretendemos também nos debruçar sobre isso, mas de momento deixamos em suspenso. 5 Recentemente (2006) distribuído como material educativo pelo Instituto Arte na Escola, para o trabalho no ensino da arte nas redes de educação básica. Pode ser acessado www.artenaescola.org,br . 6 1999, p.33. 7 Como nos ensina Pecheux em seu texto “O papel da memória”. 1999. 8 Rodin é considerado um artista obstinado pelas formas, principalmente a forma humana. “O Pensador” se transformou em verdadeiro ícone popular da imagem de um filósofo, renovando a arte da escultura no século XIX, sua posição reflexiva, constitui-se na representação da figura humana em profunda e sincera preocupação com seu destino. A aqui a personagem do vídeo vai estabelecer conexões com universos da imagem que só “farão” sentido, uma vez que a personagem se aproprie e se inscreva neste universo, e, este é o movimento da narrativa do filme. O “Pensador” como o já lá. É ele, ou a imagem dele, operando como memória, que mobiliza O “Estesiador”. 116
• O CIBERESPAÇO NO CONFRONTO DE SENTIDOS: UMA NOVA LEITURA DE ARQUIVO Carolina Fernandes (UFRGS) Introdução Todo trabalho de pesquisa passa por um processo de seleção de material. Para isso faz-se necessário recorrer a um determinado arquivo, ou seja, um conjunto de documentos sobre determinada questão, como propôs Pêcheux (1994, p.57), que é estabelecido pelo próprio pesquisador segundo seus objetivos. Ao realizar meu trabalho de mestrado a propósito do discurso da revista Veja sobre Lula, coletei diversos exemplares, não só da revista Veja, cujas reportagens de capa referiam-se a Lula durante os períodos eleitorais dos quais participara e também fora desses períodos. Desse material fiz recortes discursivos para compor meu corpus de análise que conta com sete capas da Veja e algumas seqüências discursivas do interior das revistas. Entretanto, não abandonei meu arquivo de pesquisa e, em alguns momentos, ainda me sirvo dele para constituir um outro arquivo, o arquivo de onde recupero outras seqüências discursivas que irão compor um corpus secundário de análise, o corpus de referência, mobilizado a fim de sustentar meu gesto interpretativo-analítico. Durante esse processo de construção do arquivo de análise, tive, em diversos momentos, de recorrer ao arquivo virtual da revista Veja. Gesto esse que me fez refletir sobre a noção de arquivo segundo a formulação e a circulação na rede eletrônica dos saberes que o constituem. Este artigo resulta, portanto, da reflexão que faço acerca da teoria pêcheutiana sobre as modalidades de leitura do arquivo, problematizada em torno do arquivo virtual disposto pela revista Veja on line em comparação com outro tipo de arquivo disponível em rede eletrônica, o das comunidades virtuais de relacionamento que se formam a partir de um tema. O propósito desse trabalho é compreender a produção de sentidos dentro do espaço disperso da web, compreendendo o intrincado de saberes que se confrontam nessa rede.
A leitura do arquivo virtual segundo a formulação e a circulação dos saberes na rede Dentre todos os textos sobre Lula apresentados de modo disperso no ciberespaço, a revista Veja dispõe de um arquivo específico que o percebo como uma construção discursiva, limitada e determinada por uma rede de sentidos específica que constitui 117
o discurso do grupo Veja sobre Lula. Através da home page da revista Veja, tive acesso ao hipertexto “capas” (figura 1) por meio do qual o navegador pode acessar um arquivo virtual de todas as capas da revista, desde sua origem em 1968 a atualidade. Para efetuar a pesquisa, basta selecionar uma ou mais palavras-chave e um recorte temporal que as capas são apresentadas em ordem cronológica decrescente, indo da mais atual a mais antiga, o que confere igualmente uma ordem linear de apresentação. Feita a pesquisa, o navegador ainda pode aumentar o tamanho das capas para obter uma melhor visualização, contudo o hipertexto se limita às capas, não há um outro link relacionado ao tema para acessar. As reportagens estão na página disponíveis em outro arquivo cujo acesso é restrito aos assinantes. Temos aí um modo de divisão do trabalho de leitura da revista Veja que distingue aqueles que são autorizados a ler suas reportagens daqueles que não possuem tal autorização. A partir disso, surge a questão: por que apenas as capas são autorizadas à leitura? Conforme o trabalho de análise que desenvolvo em minha dissertação de mestrado, percebo que as capas da revista Veja já representam o discurso de sua linha editorial que não considera necessária a recorrência ao texto completo da reportagem.
Figura 1
Percorrendo a página principal da revista Veja, ainda pude visualizar um outro tipo de hipertexto de arquivo, “o governo Lula”, disponível na home page da Veja on line. A partir desse hipertexto, o navegador encontra ali uma pesquisa já pronta com capas e reportagens da Veja sobre o primeiro mandato do governo Lula. Da capa da 118
posse, percebe-se que logo se passa às primeiras críticas e acusações de corrupção no governo, efeito de sentido que ressoa em paráfrase, circulando materialmente no site até até a capa da reeleição (figura 2), onde se escreve “o primeiro mandato de Lula foi pífio”. O efeito de sentido que esse hipertexto propõe é justamente mostrar que o governo Lula no primeiro mandato não passou de um governo sem expressão que construiu um ambiente propício a atos ilícitos. Além das reportagens e capas disponíveis, uma outra espécie de sub-arquivo (figura 3) é disponível ao leitor virtual, são links específicos sobre os itens governo, partido, política, economia, diplomacia e escândalos - nota-se que itens como programas sociais foram silenciados nesse recorte. Além da saturação do sentido de escândalo nas capas da revista, a Veja on line não se limita em apenas trazer um hipertexto com mais “informações” como traz esse último em evidência na forma de um hipertexto especial. Esse hipertexto põe em destaque mais links associados ao assunto, direcionando o olhar do leitor para o tema ao mesmo tempo em que facilita seu acesso aos textos autorizados. Figura 2
Figura 3
É interessante também notar que a home page da revista Veja, na mesma fluidez de tempo que evidencia o arquivo governo Lula, traz um outro sub-arquivo intitulado “Collor: 15 anos de impeachment” (figura 4). A comparação já explícita entre ambos os presidentes nas capas da Veja é estabelecida por meio de uma determinada rede de sentidos que faz com que o imaginário de presidente corrupto projetado sobre Collor passe a refletir no imaginário sobre Lula.
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Figura 4
Nesse sentido, o hipertexto capas, assim como os sub-arquivos da Veja on line, se apresentam como um efeito de completude do saber, de saturação dos sentidos, como se neles os sentidos estivessem completos por serem únicos e evidentes. Essa busca pelo efeito de completude causa o direcionamento do gesto de leitura/ interpretação do arquivo, ao mesmo tempo em que se dissimula para o sujeito-leitor como para o sujeito-autor a constituição ideológica desse processo. Conforme Pêcheux (1994, p.57), o arquivo compreende dois modos de leitura distintos: - aquele que se apresenta como mera “apreensão dos documentos”, como efeito de “pura referência”, do apontar para “as coisas como são”. O autor (idem) revela ainda que essa modalidade de leitura é regulada pelos aparelhos de poder, que causam o efeito de “leitura literal”; - a outra modalidade é a da leitura interpretativa, enquanto “espaço polêmico das maneiras de ler”, já que dá acesso à polissemia. Para a AD, essa é a vertente que possibilita um modo de leitura discursivo do arquivo. A partir das considerações de Pêcheux sobre as modalidades de leitura de arquivo, percebo que a leitura/interpretação do arquivo “capas” disponibilizada na web por meio de um hipertexto funciona como um espaço virtual regulado onde a leitura de arquivo se encontra limitada e direcionada de modo a compreender uma ordem parafrástica de repetição. Além disso, essa modalidade de leitura que se propõe literal visa ainda ao apagamento da incompletude da linguagem pela saturação dos sentidos e à inacessibilidade aos sentidos antagônicos. 120
Mariani (1998), ao refletir sobre o direcionamento do gesto de leitura de arquivo, compreende que os aparelhos de poder que o regulam ocupam um lugar legitimado pelo processo histórico de naturalização de suas práticas de modo que lhe seja autorizada a cristalização e a naturalização de sentidos, tornando-os “evidentes”. A autora (idem) salienta ainda que esse modo de leitura institucionalizado produz um efeito de memória coletiva que, ao apagar os sentidos não-autorizados, propõe-se como uma versão legitimada dos fatos, instaurando, assim, uma memória histórica oficial. Problematizando a noção de arquivo nessa mesma perspectiva, Zoppi-Fontana (2002, p. 183) o designa em função de seu aspecto institucional, definindo-o por “um dispositivo normalizador/normatizador dos gestos de leitura”. O arquivo institucional funciona, portanto, por acúmulo e não pela dispersão de saberes. Satura e estabiliza os sentidos de forma a manter seu retorno no intradiscurso constante, o que produz o efeito de memória assinalado por Mariani (ibidem). Desse modo, percebo que os sub-arquivos disponibilizados na home page da revista Veja funcionam como um modo de gerenciar, normatizar, o gesto de leitura que, ao mesmo tempo em que causa o efeito de completude, impõe um sentido unívoco e literal ao arquivo, produzindo, desse modo, um efeito de memória coletiva, institucionalizada, oficial que “congela” a história, estabilizando, petrificando os sentidos. Ao lado do gerenciamento do gesto interpretativo, percebe-se no ciberespaço a presença de blogs e comunidades virtuais cujos fóruns de discussão atuam numa forma de reação à legitimidade do discurso do grupo Veja. Temos, por exemplo, as comunidades da rede de relacionamentos Orkut: “Leu na Veja? Azar o seu!” (figura 5) com mais de 54 mil participantes, cuja descrição designa a revista por tendenciosa, panfletária, neoliberal, entreguista e derrotista; relacionada a esta há a comunidade “Nem veja, nem leia” (figura 6) que considera o grupo Veja defensor dos interesses de uma minoria. Como toda a comunidade da rede Orkut, há tópicos nos fóruns de discussão que podem ser acessados sem restrições para que os participantes dêem suas opiniões, ou seja, há um espaço de livre acesso à polissemia, a outros sentidos que podem se inscrever na mesma matriz significante ou em outra oposta.
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Figura 5
Figura 6
Além dessas duas comunidades, outras se fazem presente no plano ciberespacial de modo a se constituírem como perfeitas rivais. De um lado, a comunidade “Eu leio a revista VEJA” (figura 7), a apresenta como um meio de comunicação imparcial que apenas narra os fatos, independente de quem esteja envolvido, como foto ilustrativa tem-se a capa de Lula com a faixa presidencial servindo de venda aos olhos; de outro lado, encontra-se a comunidade “a revista Veja é do mal” (figura 8), como descrição apresenta o seguinte seguimento: comunidade destinada àqueles que abominam a linha editorial fascista e reacionária da Revista Veja - voz da elite mais retrógrada e golpista desse país, como ilustração traz a capa da Veja em que mostra o nome 122
Lula com os dois ‘l”, fazendo uma comparação com o nome do presidente deposto Collor. Figura 7
Figura 8
A partir das ilustrações, é fácil perceber que a relação antagônica entre esses 123
discursos se faz mais especificamente pelo modo como a revista Veja discursiviza sobre Lula do que por outros sentidos. A filiação ou a oposição à rede de sentidos em que se inscreve o discurso do grupo Veja depende do modo como este constrói o imaginário de Lula, com isso, dá-se a contradição no interior do arquivo disperso da web.
Considerações finais A partir dessas observações acerca do modo como os saberes circulam e são formulados na rede mundial de computadores, entendo que, enquanto o grupo Veja institucionaliza o arquivo de modo a produzir um efeito de memória coletiva que, por legitimação social, virá a produzir o efeito de verdade, os blogs e as comunidades virtuais em repúdio à Veja desestabilizam os sentidos impostos por esse aparelho de poder, abrindo espaço para novos sentidos, o que constitui um modo de leitura polêmico do arquivo virtual. A relação antagônica entre esses dois modos de conceber a leitura de arquivo se reflete na concepção de ciberespaço que, sendo o lugar de dispersão do arquivo, passa, a meu ver, a funcionar como um espaço que possibilita a leitura discursiva do arquivo virtual. Um espaço em que a memória discursiva encontra seu curso podendo partir em diferentes direções, sem que um modo de leitura se imponha apagando os outros sentidos, anulando a heterogeneidade constitutiva do dizer.
Referências Bibliográficas MARIANI, Bethânia. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais (1922-1989). Rio de Janeiro: Revan; Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998. PÊCHEUX, Michel. Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, E. et al. Gestos de Leitura. Campinas SP: Editora da UNICAMP, 1994, p.55-66. ZOPPI-FONTANA, Mónica. Acontecimento, arquivo, memória: às margens da lei. Leitura - Revista do Programa de Pós-graduação em Letras e Lingüística - UFAL, n.30, jul.-dez., 2002.
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LÍNGUA, CULTURA E COMPETÊNCIA: QUESTÕES PARA O ENSINO E O DISCURSO Fabiele Stockmans de Nardi (UCS)
A noção de competência1 há tempos faz parte das discussões e dos manuais2 que se ocupam do ensino-aprendizagem de língua estrangeira e aparece, em geral, associada à abordagem comunicativa, que propõe a compreensão da língua como um instrumento de comunicação ou de interação social. Nessa perspectiva, o ensino da língua objetiva o desenvolvimento da competência comunicativa do aprendiz, que deve ser levado a dominar a língua, sendo capaz de falar, ler e escrever orações, mas também conhecer as maneiras como ditas orações são utilizadas para se conseguir um determinado efeito comunicativo. Desse modo, não bastava mais apreender unidades lingüísticas isoladas, é preciso aprender a utilizá-las para um determinado fim. Essa orientação nasceu fortemente inspirada nos estudos da psicologia cognitivista e da gramática gerativo-transformacional, e de acordo com ela, deve-se levar o aprendiz a desenvolver a capacidade de encontrar as formas apropriadas aos contextos comunicativos em que ele venha a se inserir como falante da língua alvo. Isso requer que se trabalhe na aquisição tanto da capacidade de compor frases corretas, ou seja, que se leve o aluno a desenvolver um conhecimento acerca das formas gramaticais e de seu correto emprego; quanto da compreensão da adequação dessas frases a contextos específicos, visando o uso da linguagem e a possibilidade de, pelo emprego das formas da língua, produzir-se um efeito comunicativo. O conceito de competência comunicativa é atribuído a Hymes3 (1979), o qual defende que para a produção de um discurso apropriado é preciso o conhecimento das regras gramaticais de um sistema lingüístico e, também, das regras contextuais e pragmáticas que subjazem sua produção, sem as quais não há discurso. Isso faz com que o autor passe a trabalhar com um conjunto de regras sociais, culturais e psicológicas, que regem as atividades de linguagem em uma determinada comunidade, conhecimento sem o qual não se pode colocar a língua em uso. Produz-se, assim, um afastamento da idéia de suficiência da competência lingüística - uma vez que se entende que os falantes de uma língua precisam de muitas outras competências que não apenas essa para que efetivamente possam se comunicar nessa língua – e, teoricamente, da concepção de ensino de uma língua estrangeira pela repetição dos processos de aquisição da língua materna. Por outro lado, ganha força entre os comunicativistas a concepção cognitivista de aprendizagem, em que ela é entendida como um processo criador, determinado por mecanismos internos. Aprender uma língua consistiria em aprender a formar regras que permitissem produzir 125
novos enunciados, o que faz com que se delegue ao pensamento um papel significativo na descoberta de regras de formação de enunciados. (Mascia, 2002, p.134). Entendemos que a leitura do processo de ensino-aprendizagem de uma língua pela abordagem comunicativa, embora tenha promovido interessantes deslocamentos, faz com que admitamos novamente um predomínio do pensamento sobre a expressão, que é dominada por ele. Tal postura implica num retorno da língua à sua posição instrumental enquanto o sujeito ganha ares de seu grande senhor, apropriando-se dela para expressar aquilo que o seu pensamento criou. Para Coste (2002), a apropriação, por parte de muitos lingüistas aplicados, da noção de competência comunicativa cunhada por Hymes implicou numa série de deslizes, que levaram, entre outras coisas, à compreensão da competência comunicativa como uma totalidade única, como se não houvesse, numa mesma comunidade lingüística, diferenças significativas a serem consideradas. Apagando a heterogeneidade constitutiva da língua e dos processos discursivos, a noção de competência leva, assim, à homogeneização, tanto da língua, quanto de seus falantes, das possíveis situações de comunicação em que se inserem e, consequentemente, dos objetivos desse ensino. Mais recentemente, vinculando-se ao interacionismo sociodiscursivo, Baltar (2004, p. 40) propõe a noção de competência discursiva, por meio da qual se refere à divisão tênue das vozes sociais, das instituições que as sustentam. De acordo com o autor, os falantes de uma língua devem buscar aprimorar sua competência discursiva para agir através da linguagem em diferentes domínios discursivos e perceber a interdiscursividade que está presente nas relações sociais. (Idem, p. 40) (grifo nosso). Embora guardem diferenças entre si, as várias definições de competência acabam por gerar efeitos comuns, como a posição instrumental que é atribuída à língua, estrutura fechada por meio da qual o sujeito encontra as possibilidades de dizer o que deseja; e o caráter uno do sujeito, senhor da língua, a quem é negada sua dimensão inconsciente. O processo de aprendizagem passa a ser, assim, consciente e controlável, o que reforça a ilusão de que o sujeito pode dominar a língua e também as condições de produção de seu uso, caindo-se na fixidez das relações entre os indivíduos e na ilusão de eficiência da língua como instrumento de comunicação, uma língua sem ruídos que é, então, capaz de oferecer a esse falante, sempre, os recursos necessários para uma feliz atuação nos cenários de interação. Atualmente é visível a força desse ideário da competência entre aqueles que se ocupam do ensino-aprendizagem de línguas. Não é incomum que, quando perguntados sobre o que esperam do ensino-aprendizagem de uma segunda língua, a resposta quase que unânime seja o desejo de que o aluno venha a se comunicar de forma eficaz, tornando-se um falante competente na língua-alvo. E isso não é diferente quando se trabalha com os LDs para o ensino de língua. Tal postura aparece, por exemplo, em trechos da apresentação de um dos métodos4 utilizados 126
para o ensino de língua espanhola no Brasil, LD1, na qual se diz que os temas escolhidos para a organização das unidades de ensino têm como função permitir a aquisição de uma comunicação autêntica e motivadora. [...]Los temas elegidos permiten la adquisición de una comunicación auténtica y motivadora (...) (LD1, p. 3) (grifo nosso). Esse material - que explicita sua escolha pela abordagem comunicativa - é representativo de uma premissa que encontraremos em grande parte do material produzido para o ensino-aprendizagem de uma segunda-língua: a tarefa primeira desse ensino é produzir um falante da língua que seja capaz de se adaptar a situações comunicativas em que estiver diante de falantes nativos dessa língua. Fica claro, assim, o apelo comunicativo desse processo e a aceitação de que é compromisso do professor construir a competência comunicativa5 do aluno, trabalho para o qual o livro didático apresenta-se como o caminho facilitador (para não dizer como o único caminho). Al finalizar NUEVO VEN 1 el alumno será capaz de comprender y expresar ideas básicas y cotidianas, tanto de forma oral como escritas, correspondientes al nivel A2 de las directrices del Marco de referencia europeo. (LD2, p. 2). […] es un curso comunicativo de español dirigido a estudiantes adolescentes y adultos de nivel principiante, concebido con el objetivo de ayudar al alumno a alcanzar un grado de competencia lingüística y comunicativa. (LD4) (grifo nosso). […] Tanto en el libro del alumno como en el cuaderno de ejercicios se ofrecen unas propuestas didácticas que facilitan el aprendizaje del estudiante y lo sitúan en condiciones de abordar com garantias de éxito situaciones de uso de la lengua, así como cualquier prueba oficial própria del nível al que (...) va dirigido. (Idem) (grifo nosso).
Entre as concepções que sustentam essa busca pela competência está idéia de uma comunicação sem ruídos, que pressupõe a aquisição de um modo de falar essa língua que permita ao aprendiz portar-se como um nativo: com uma pronúncia perfeita, um vocabulário adequado, uma aguçada capacidade de prever os efeitos de seu dizer nas diversas situações comunicativas em que estiver inserido. Sustentar essa postura só é possível se trabalharmos com uma língua homogênea e transparente e com um falante-ouvinte ideal, nos modelos de Chomsky, idealização sem a qual nos parece difícil chegar a essa competência. Tal postura afasta-nos, ainda, da possibilidade de falarmos em sujeitos da língua, considerando que estamos, assim, nos limitando a produzir falantes. 127
Moita Lopes (1996) alerta para o perigo de uma tomada de posição como essa em termos de ensino-aprendizagem de segunda-língua, a qual tende a criar no sujeitoaprendiz um imaginário de perfeição em relação à língua alvo (e tudo que está envolto por ela), imergindo-o num espaço de idealizações. Consciência e controle, domínio e intenção, fixidez e eficiência. Quando passamos, no campo do discurso, a analisar a noção de competência, somos confrontados, imediatamente, com esse risco da homogeneização que tal noção traz consigo e com a possibilidade de que, por ela, sejamos levados ao apagamento de toda a diferença. E o risco da homogeneização merece um olhar atento daquele que se debruça sobre questões de ensino-aprendizagem de segunda língua, já que, em geral, tal concepção nega o caráter heterogêneo dos processos, apagando uma diversidade que, em termos de ensino, de sujeitos, de língua e cultura não é só desejável, mas necessária. É preciso lembrar, ainda, que entre as concepções que sustentam essa busca pela competência está idéia de uma comunicação sem ruídos, que pressupõe a aquisição de um modo de falar essa língua que permita ao aprendiz portar-se como um nativo: com uma pronúncia perfeita, um vocabulário adequado, uma aguçada capacidade de prever os efeitos de seu dizer nas diversas situações comunicativas em que estiver inserido. Como lembrou Túlio de Mauro, na introdução de A Babel do Inconsciente, o caráter heterogêneo das línguas tem sido, há muito tempo, negligenciado. Para ele, o plurilingüismo é reprimido por uma necessidade arcaica de segurança que tende a manter única a língua, de preferência a nossa (p 20), e o ensino tem sido exemplar nesse processo de exclusão, ocultando ou eliminando realidades lingüísticas heterogêneas e negando às línguas uma diversidade radical que lhes é inerente. E se essa heterogeneidade é uma realidade inegável ao se falar sobre língua, como ignora-la quando trabalhamos as relações entre língua e cultura? Ao falar sobre cultura, Marilena Chauí (2206, p. 9) se debruçou sobre o que chamou de ideologia da competência, a qual, segundo ela, divide a sociedade entre aqueles que sabem, e por isso mandam, e aqueles que não sabem, e por isso obedecem. Essa é a perspectiva que adotam, segundo a autora, aqueles que olham para a cultura como um saber de especialistas, que alguns poucos produzem e os outros recebem passivamente. Para não se cair nessa rede é que se faz necessário um questionamento sobre o que se entende por cultura6 e que noção de cultura mobilizamos ao falar de ensino-aprendizagem de línguas. Interessa-nos marcar, nesse momento, que, assim como ocorre com a língua, a insistência no desenvolvimento de uma competência cultural carrega consigo, em geral, a ilusão de que é possível dominar a cultura - no caso da língua estrangeira, a cultura do outro-; domínio que, conjugado àquele da língua, daria ao sujeito a possibilidade de considerar-se um falante dessa língua, capaz de utilizá-la, de acordo 128
com as suas intenções, para dizer o que deseja. Dominar a cultura, no entanto, pressupõe a idéia de que haja uma unidade cultural, o que não se pode defender nem mesmo no interior de uma mesma comunidade, já que é impossível ao sujeito partilhar da totalidade daquilo que se pode compreender como um sistema cultural. Nossa participação numa cultura é sempre parcial, pois há espaços culturais que nos são interditados, como há, na língua, espaços de interdição. Portanto, seria impossível falar em previsibilidade de situações e comportamentos, já que, como ocorre com a língua, há também nos sistemas culturais o lugar do equívoco, que faz com que algo sempre possa falhar. As contribuições de Michel Pêcheux sobre a noção de discurso nos levam a trabalhar com um sujeito duplamente afetado, pela ideologia e pelo inconsciente. Esses dois atravessamentos marcam a constituição do sujeito e revelam o seu caráter cindido: ao sujeito algo falta e é na falta que ele encontra espaços de movimento, de reconstrução. Por meio do modo como na AD se entende o processo de interpelação ideológica, é possível se pensar que o sujeito passa por incessantes processos de identificação, os quais não se realizam na sua totalidade, deixando sempre espaços em aberto, espaços de desidentificação que fazem com que sujeitos e sentidos possam ser outros. Pêcheux, na companhia de Milner, falou da língua como um espaço simbólico e nos fez ver a língua como o lugar material em que se encontram ideologia e inconsciente7, conceitos que articulam a individualidade do sujeito e a natureza social de sua existência. De acordo com Ferreira (2004, p. 43), o ponto em que se aproximam o sujeito da psicanálise e o do discurso é o fato de que ambos são determinados e condicionados por uma estrutura, que tem como singularidade o nãofechamento de suas fronteiras e a não-homogeneidade de seu território. Assim, enquanto a noção de competência implica totalidade, em AD somos levados a olhar para o não-todo como constitutivo dos processos discursivos e para a completude como uma ilusão. Para nós, a cultura, assim como ideologia e inconsciente, atravessa os processos identificatórios por que passa o sujeito, já que constitui o cerne da organização de sua relação com o outro. O sujeito está na cultura8 assim como está na linguagem, e essa relação implica, necessariamente, olhar para o Outro como um lugar de identificação, já que, como nos mostra Lacan, o sujeito se constitui no discurso do outro, havendo, como mostra Koltai (2000, p. 26), um elo entre o sujeito e a cultura, entre o individual e social no discurso. Para nós a cultura tem um caráter dinâmico e deve ser entendida, também, como um espaço simbólico, espaço de constituição do sujeito que produz cultura e por ela é produzido. A cultura é uma estrutura permeada de fissuras, como ideologia e inconsciente, chagas que colocam esse sistema em constante movimento. Falar em cultura implica, portanto, criar espaços de criticidade, olhando-a como um lugar de interpretação, já que as manifestações culturais reclamam sentido e precisam ser 129
pensadas a partir dos processos sócio-históricos que as condicionam. Portanto, a busca de uma interação perfeita entre os sujeitos, seja ela em sua língua materna ou na língua do outro, é ilusória, como ilusório é tratar o ensino da cultura como a garantia de aquisição de uma certa competência. Com isso não se quer menosprezar o valor da cultura no ensino de segunda língua, mas lembrar que só se pode conceber que é possível dominar uma cultura se aceitarmos que por cultura é possível entender um conjunto de traços estáveis, exteriores ao sujeito. Só assim olharemos para a cultura como algo a ser apreendido, algo que se aceita, fazendo de sua irrefletida reprodução parte do processo pelo qual nos tornaríamos falantes competentes de uma língua. Entendemos, assim, com Chauí, que falar em competência, seja em relação à cultura, seja em relação à língua, é assumir uma postura política diante de seu ensino que certamente nos levará a idealizações sobre a língua e a cultura do outro, ou, ao contrário, a restringi-las a traços apreensíveis que tão pouco dizem sobre os movimentos de sujeitos e discursos.
Referências AMATI-MEHLER, J.; ARGENTIERI, S.; CANESTRI, J. A Babel do Inconsciente: língua materna e línguas estrangeiras na dimensão psicanalítica. Rio de Janeiro: Imago, 2005. (Introdução de Túlio de Mauro) BALTAR, M. Competência Discursiva e Gêneros Textuais. Caxias do Sul:EDUCS, 2004. CHAUÍ, M. Cidadania cultural. O direito à cultura. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006. COSTE, D. Leitura e competência comunicativa. In. GALVEZ, C.; ORLANDI, E.; OTONI, P. O texto: leitura e escrita. Campinas: Pontes, 2002. p. 11-30 FERREIRA, M. C. L. Análise de Discurso e Psicanálise: Uma estranha Intimidade. Caderno da APPOA, n.131, dez.2004, p.37-52. FUCKS, B. Freud e a cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. HYMES, D. H. On communicative competence. In. BRUMFIT, C. J.; JONHSON, K. The communicative approach to language teaching. Oxford: Oxford University, 1979. KOLTAI, C. Política e psicanálise. O estrangeiro. São Paulo: Escuta, 2000. MOITA LOPES, L. P. da. “Yes, nós temos bananas ou Paraíba não é Chicago não”. Um estudo sobre a alienação e o estudo do inglês no Brasil. In.____. Oficina de lingüística aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 1996. (Coleção Letramento, Educação e Sociedade), p. 37-62. PÊCHEUX, M. (1975) Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3. ed. Campinas: UNICAMP, 1997(a). 130
_____. (1982) Sobre a (des)construção das teorias lingüísticas. Cadernos de Tradução. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2 ed., n. 04, outubro 1998, p. 35-55.
Notas 1 Os recortes de análise foram retirados das seguintes obras: CERROLAZA, M.; CERROLAZA, O.; LLOVET, B. Planet@ E/LE. Madrid: Didascalia, 2001. (LD1) CASTRO, F. et. al. Nuevo ven. Libro del profesor. Madrid: Didascalia. (Utilizamos apenas o livro do profesor porque ele reproduz o livro do aluno e inclui o material adicional) (LD2) BRUNO, F. C.; MENDOZA, M. A. C. M. Hacia el español – curso de lengua y cultura hispánica. 6 ed. Reform. São Paulo: Saraiva, 2004. (LD3) BOROBIO, V. Nuevo ELE. Curso de español para extranjeros. Madrid: Ediciones SM. (LD4) 2 Pode-se observar, nas apresentações de livros didáticos para o ensino de língua espanhola, a menção recorrente, seja ela explícita ou não, à construção da competência comunicativa como um objetivo a ser alcançado, a exemplo das seqüências abaixo: Nuevo Ele Inicial 1 es un curso comunicativo de español dirigido a estudiantes adolescentes y adultos de nível principiante, concebido en el objetivo de ayudar al alumno a alcanzar um grado de competência lingüística y comunicativa. (BOROBIO, p. 3) (grifo nosso).
[...]Los temas elegidos permiten la adquisición de una comunicación auténtica y motivadora, estimulan y potencian el compromiso social y vital de l@s estudiantes, y dan como resultado no sólo la realización de actividades significativas en el aula sino también la adquisición de una verdadera competencia intercultural. (CERROLAZA; CERROLAZA; LLOVET, 2001, p. 3) (grifo nosso).
3 O autor, para falar de competência comunicativa, retoma a noção de competência lingüística de Chomsky, aproximando competência e desempenho, que são tratados por ele como momentos indissociáveis na aquisição de uma língua. 4 Os livros didáticos analisados nesse trabalho definem como seu público-alvo adolescentes, jovens e adultos. 5 Coste (2002, p. 11), ao falar sobre a apropriação que a didática de línguas faz do conceito de competência comunicativa - criado pelos etnolinguistas -, aponta os deslizes interpretativos ocorridos nesse processo, ou seja, a tendência em (a) falar-se 131
em competência comunicativa restringindo-a à capacidade de trocas orais eficientes, limitando a amplitude do conceito aos diálogos; (b) considerar-se a competência comunicativa como uma totalidade única, supondo, a exemplo de Chomsky, que todos os falantes de uma língua têm a mesma competência; (c) produzir-se uma dicotomia entre competência lingüística e competência comunicativa. Para Coste é preciso abandonar a tendência de se considerar que a aquisição de uma sintaxe e de um vocabulário possa ser tomada como o objetivo do processo de ensino de uma língua estrangeira e buscar a aplicabilidade do conceito de competência comunicativa à reflexões sobre os processos de leitura em língua estrangeira. 6 O espaço de que dispomos aqui nos impede de expor as diferentes posições sobre cultura, que levam a considerar a heterogeneidade inerente à própria noção e que podem envolver reflexões que passam pelo campo da antropologia, da psicanálise, da literatura, do discurso, etc. 7 A noção de inconsciente com que se trabalha em AD é a de uma instância que se revela para o sujeito sob a forma de sonhos, lapsos, atos falhos, etc, à qual não se tem acesso pela consciência, e que seria para o sujeito um estranho familiar, na medida em que não pode ser controlado por esse sujeito, mas muito é capaz de dizer sobre ele. 8 Freud designa como cultura humana a interioridade de uma situação individual – manifesta nos impulsos que vêm desde dentro do sujeito – e a exterioridade de um código universal, subjacente aos processos de subjetivação e aos regulamentos das ações do sujeito com o outro. (FUKS, 2003, P. 10)
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O ACONTECIMENTO DO DISCURSO NA CONTINGÊNCIA DA HISTÓRIA Mónica Graciela Zoppi Fontana (UNICAMP-CNPq) A história não é mais do que a revogação permanente do fato consumado por um outro fato indecifrável a consumar-se, sem que se saiba antecipadamente nem onde, nem como o acontecimento de sua revogação se produzirá.(Althusser, 1982/2005:14)
Introdução A construção do conceito discurso demandou desde o início uma reflexão teórica sobre as articulações constitutivas de duas ordens de real: o da língua e o da história. Em um primeiro momento (Pêcheux, 1969), noções como estrutura e valor da língua (entendida como um sistema de diferenças que intervém enquanto base material na produção do sentido) se articulavam de forma privilegiada a noções como condições de produção e contradição de classe (entendidas como a materialidade dos processos sócio-históricos concretos que determinam os processos discursivos). Neste sentido, no arcabouço teórico vemos articular-se a noção de real à de materialidade simbólica e histórica: o real do discurso consistiria precisamente nessa articulação de duas ordens materiais irredutíveis embora imbricadas de forma constitutiva. Lembramos aqui da definição de discurso como um objeto teórico considerado ao mesmo tempo como sendo integralmente linguístico e integralmente histórico (Courtine, 1981). Somaram-se a estas noções a de inconsciente (Fuchs & Pêcheux, 1975; Pêcheux, 1975) (enquanto condição necessária para a interpelação ideológica do indivíduo em sujeito do discurso) e a de acontecimento (Pêcheux, 1983) (definido como ponto de encontro de uma atualidade e uma memória), que acrescentaram novas inflexões a essa reflexão. Por um lado, propôs-se a consideração da alíngua (lalangue, do que escapa a toda simbolização) e de seus efeitos-sintomas na linguagem: o equívoco, o lapso, o ato falho, todas as modalidades do não-um, em relação aos processos de constituição do sujeito e do sentido (Milner, 1978), o que reformulou a própria noção de língua (compreendida então como estrutura aberta, falha) na sua relação com o conceito de discurso. Por outro lado, a noção de acontecimento trouxe para o debate a questão da contingência histórica e de seus efeitos sobre as estruturas, o que, acreditamos, incentiva uma reflexão produtiva sobre a conceituação do real da história, também considerado na sua relação com o discurso. Dessa maneira, os 133
conceitos de língua e de história são afetados ao se integrarem nesta nova constelação conceitual em que as noções de alíngua e acontecimento são compreendidas na sua materialidade específica como modalidades do real. Numerosos são os autores que se debruçaram sobre a consideração do real da língua e suas formas de manifestação na materialidade discursiva, articulando suas reflexões com aquelas desenvolvidas por uma teoria psicanalítica filiada principalmente a Lacan. Neste trabalho, oriento minhas preocupações no sentido de pensar o real da história e sua relação com as materialidades discursivas complexas das quais se ocupa atualmente a área1.
A contingência como real da história Neste meu trabalho, inspirada no texto O discurso: acontecimento e estrutura de M. Pêcheux (1983/1990:42), exploro a questão do real da história, “encarando o fato de que a história é uma disciplina de interpretação e não uma física de tipo novo”, isto é, “[parando] de supor que ‘as coisas-a-saber’ que concernem o real sóciohistórico formam um sistema estrutural análogo à coerência conceptual-experimental galileana”. Assim, proponho pensar, especificamente no campo do discurso, o acontecimento como contingência. Para isso, retomo uma afirmação de Pêcheux (1983/1990:56) na sua reflexão sobre a relação entre acontecimento e discurso: “Não se trata de pretender aqui que todo discurso seria como um aerólito miraculoso, independente das redes de memória e dos trajetos sociais nos quais ele irrompe, mas sublinhar que, só por sua existência, todo discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos”
Lembramos, aqui, de algumas conseqüências teóricas que o autor tira desta sua insistência em não absorver o acontecimento do discurso na estrutura de uma série. Por um lado, ele se posiciona criticamente em relação às tentativas de interpretar o acontecimento do discurso nas malhas de uma ontologia marxista (e sua motivação teleológica) que tende a funcionar na análise como “trascendental histórico” (Pêcheux, op.cit:56) ou “a priori da determinação do discurso”(Maldidier, 1990/2003:96); por outro lado, ele se afasta de uma concepção estrutural da discursividade, o que o leva a revisar a noção de formação discursiva, especificamente no que tange a sua compreensão e utilização como máquina de assujeitamento e repetição que permite ao analista produzir uma “sobreinterpretação antecipadora” das discursividades em análise. Neste sentido, Pêcheux (op.cit.:57) esclarece que “a análise de discurso não supõe de forma alguma a possibilidade de algum cálculo dos deslocamentos de filiação e das condições de felicidade ou de infelicidade evenemenciais”. Porém, e 134
considero importante destacar este aspecto em sua reflexão, essa sua desconfiança face a qualquer “ciência régia” capaz de fornecer uma cobertura homogênea e logicamente estabilizada para o real sócio-histórico, não o leva, no entanto, a considerar o discurso como espaço das singularidades inefáveis produzidas por alguma subjetividade, reduto último de uma vontade de ação capaz de escapar a qualquer determinação (histórica e simbólica). E não o leva, tampouco, a abandonar teorica e metodologicamente a descrição e interpretação de regularidades nas materialidades discursivas em análise. Como aponta Maldidier (op.cit:92) “tratavase agora de construir ‘máquinas paradoxais’ [que permitissem abordar] ‘este espaço aberto de retomadas, formando trajetos em redes de textos (com pontos de acumulação instáveis, organizando redes de memória provisoriamente regularizadas, expostos ao choque dos acontecimentos)’” Assim, eu gostaria de destacar, na caracterização do discurso como acontecimento desenvolvida por Pêcheux (que citamos acima), a afirmação explícita de uma possibilidade em aberto, realizada ou realizável, no simples fato de um discurso ter existência: o seu potencial efeito desestruturador-desregularizador. Afirmação que nos permite pensar o discurso como acontecimento, na sua contingência constitutiva: um vir-a-ser-consumado que poderia não ter sido ou que poderia vira-ser-outro ou vir-a-não-ser. Ou dito de outra maneira, um fato consumado que não abole a contingência radical que lhe deu origem e que o assombra. Voltaremos sobre este ponto mais adiante. Nesta minha reflexão estou afetada pela tradução que fiz para a revista Crítica Marxista nº 20(2005) do texto de L. Althusser (1982) sobre o materialismo do encontro. Na minha opinião, nesse texto tardio Althusser, sem negar a sobredeterminação dos processos históricos, abre o conceito de história para a indeterminação potencial desses mesmos processos. Ou seja, como diz o próprio autor: Em lugar de pensar a contingência como modalidade ou exceção da necessidade, é necessário pensar a necessidade como o vir-a-ser-necessário do encontro de contingentes (Althusser, 1982/2005:p.29)
É sob o impacto deste gesto teórico irreverente, embora sustentado em uma longa tradição filosófica, que eu aproximo a noção de encontro em Althusser à noção de acontecimento em Pêcheux, para pensar a questão do real da história na conceituação do discurso.
O materialismo do encontro Para refletir sobre a contingência dos processos históricos, Althusser desenvolve no seu texto um percurso filosófico que tenta recuperar em diversos momentos e 135
autores o que ele denomina “a corrente subterrânea do materialismo do encontro”. No trajeto de pensamento que ele desenha se alinham Epicuro, Espinosa, Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Marx, Heidegger e Derrida. A metáfora usada para descrever este materialismo da contingência ou do aleatório é a da “chuva” de átomos descrita por Epicuro como consistindo em uma infinidade de átomos que caem desde sempre e ininterruptamente no vazio em trajetórias paralelas até que um desvio mínimo nessas trajetórias (o clinamen, conforme a designação proposta por Lucrécio) leva à colisão, ao encontro dos átomos. O clinamen é um desvio infinitesimal, ‘tão pequeno quanto possível’, que acontece ‘não se sabe onde, nem quando, nem como’, e que faz um átomo ‘desviar’ de sua queda a pique no vazio e, quebrando de maneira quase nula o paralelismo em um ponto, provoca um encontro com o átomo vizinho e, de encontro em encontro, uma carambola e o nascimento de um mundo, ou seja, de um agregado de átomos que provoca, em cadeia, o primeiro desvio e o primeiro encontro. (Althusser, 1982/2005:10)
O encontro é fortuito, é fruto do acaso, é puro acontecimento, é contingência, porém, para que haja um mundo, alerta-nos Althusser, é necessário que o encontro dure o suficiente para que os átomos que colidem entre si grudem, isto é, para que se dê liga, que haja “pega”, para que um mundo venha a existir. Para que o desvio dê lugar a um encontro do qual nasça um mundo, é necessário que ele dure, que não seja um “breve encontro”, mas um encontro durável, que se torna, então, a base de qualquer realidade, de qualquer necessidade, de qualquer Sentido e de qualquer razão[...] Podemos dizer isto de outra maneira. O mundo pode ser chamado o fato consumado, no qual, uma vez consumado o fato, se instaura o reino da Razão, do Sentido, da Necessidade e da Finalidade.(Althusser 1982/2005:11)
Na interpretação que eu faço desse texto, se o encontro é da ordem do acaso, a duração (“a pega”) não o é. Embora a indeterminação potencial dos processos históricos esteja na base, abrindo a história para um campo não fechado nem previamente definido de possibilidades de ação, a própria ação não se reduz ao encontro, ela já é duração, liga, pega, aglutinação. É processo, é prática, e por isso é afetada pelas relações de poder, pelo funcionamento das instituições e pelas contradições que conformam toda formação social, as quais podem ser conhecidas (interpretadas) como “leis” tendenciais. Ou seja, não se nega as diversas ordens de determinação que surgem como efeito dos processos históricos, mas se subsume sua necessidade à contingência de sua origem. Assim, a duração de um encontro, isto é, a “pega” que deriva dele instaurando um mundo (o fato consumado) não cancela o fundo aleatório sobre o qual ele se 136
ergue e que lhe dá origem (o encontro que é a sua causa). Nas palavras do autor: “a necessidade das leis surgidas da “pega” provocada pelo encontro está, mesmo na sua maior estabilidade, assombrada por uma instabilidade radical” (op.cit.: 30). Isto porque: O todo que resulta da”pega” do encontro não é anterior à “pega” dos elementos, mas posterior, e por isso poderia não ter “pegado” e, com mais razão ainda, “o encontro poderia não ter acontecido” (Althusser, 1982/2005:32).
E ainda: Jamais um encontro bem sucedido e que não seja breve mas dure garantirá a duração ainda no dia seguinte em lugar de desaparecer. Do mesmo modo que poderia não ter acontecido, pode não acontecer mais [...] Nada garantirá jamais que a realidade do fato consumado seja a garantia de sua perenidade (Althusser, 1982/2005:14).
Da descrição/interpretação da proposta de Epicuro desenvolvida no texto de Althusser, eu destaco especialmente a relação que ele estabelece entre o Sentido, o encontro produzido pelo desvio (clinamen) e a duração desse encontro. Conforme sua interpretação, a não-anterioridade do sentido é uma das teses fundamentais de Epicuro: “antes da formação do mundo, não existia nenhum Sentido, nem Causa, nem Fim, nem Razão, nem desrazão” (destaque e maiúsculas de Althusser, op.cit.:10). Isto significa que nenhuma determinação surgida da “pega” do encontro estava delineada, ou mesmo esboçada, no ser dos elementos concorrentes no encontro, mas , pelo contrário, qualquer determinação desses elementos é definível unicamente por meio de um retorno do resultado sobre seu vir-aser, na sua recorrência [...] (Althusser, 1982/2005:29).
Desta maneira, podemos afirmar, como o faz o autor que comentamos, que “se não há Sentido da história (um Fim que a transcenda, de suas origens até seu término), pode haver sentido na história, porque este sentido nasce de um encontro efetivo e efetivamente feliz, ou catastrófico, que é, também, sentido” (op.cit.:29). Porém, nas palavras de Althusser “é preciso avançar ainda mais”, e considerar que o sentido não se instaura por puro efeito do “desvio” imprevisto e esporádico de uma trajetória, mas pela duração desse “desvio” (sua “recorrência”), que permite que algum sentido “pegue”, mesmo que provisório.
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Acontecimento e discurso O texto de Althusser, escrito em 1982, é contemporâneo do texto de Pêcheux sobre o acontecimento, escrito em julho de 1983. Envolvida na tradução do texto de Althusser, a conferência “Discurso: Estrutura e Acontecimento” de Pêcheux, ressoava em mim constantemente como efeito do paralelo que pode ser traçado entre as noções de acontecimento de Pêcheux e encontro ou pega de Althusser, entre a noção de memória em um e de duração no outro. O acontecimento vem produzir uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, diz Pêcheux; o encontro produz rupturas e potencialmente uma aglutinação, diz Althusser2 . Ambos insistem na contingência constitutiva do acontecimento (Pêcheux) e do encontro (Althusser), o que leva ambos a defender a imprevisibilidade do discurso e da história3. O que nos leva de volta à questão inicial sobre a articulação teórica que permite pensar o conceito discurso, na sua complexidade. Que conceito de história se articula na construção do objeto teórico discurso, ou dito de outro modo, como definir o real da história? No texto de Pêcheux (1983/1990) encontramos já uma tomada de posição nessa direção: enquanto disciplina, a história é uma disciplina de interpretação (“e não uma física de tipo novo”), portanto, não é passível de sistematização no modelo galileano de ciência positiva. Isto porque o real do qual essa disciplina se ocupa é “um real constitutivamente estranho à univocidade lógica” (op.cit:43), no qual “as propriedades lógicas dos objetos deixam de funcionar: os objetos têm e não têm esta ou aquela propriedade, os acontecimentos têm e não têm lugar” (op.cit:52). Especificamente em relação ao discurso, Pêcheux insiste, num parágrafo largamente citado nos trabalhos da área, sobre os “pontos de deriva possíveis” que dão lugar à interpretação. Todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para um outro (a não ser que a proibição da interpretação própria ao logicamente estável se exerca sobre ele explicitamente) (op.cit:53)
Esta citação, comumente interpretada em relação ao real da língua, compreendido como aquilo que escapa necessariamente a toda simbolização, permite-nos lançar sobre o enunciado (portanto sobre o discurso) um olhar que considere também o real da história, entendido (como já vimos) como contingência radical. Desta maneira, o enunciado (o fato consumado, o encontro que “pegou”) é assombrado, mesmo depois de produzido (isto é, do acontecimento de sua enunciação) pela instabilidade radical do seu vir-a-ser-consumado, isto é, pela possibilidade nunca cancelada de vir-a-ser-outro ou de vir-a-não-ser (ou seja, de não durar o suficiente para produzir um encontro “feliz”, um sentido que “pegue” historicamente, para se 138
estabilizar como processo discursivo). Neste sentido, o acontecimento do discurso (definido como encontro de uma atualidade e de uma memória), enquanto fato consumado (há, é o caso, es gibt, der Fall ist), não se opõe nem exclui a possibilidade de ser outro. Como já vimos, segundo Althusser, o encontro e a duração que pode se seguir a ele não devem ser referidos nem a uma necessidade nem a um impossível que seriam a sua causa; ao contrário, a necessidade surge “como o vir-a-sernecessário do encontro de contingentes” (Althusser, 1982/2005:p.29) dando origem a estruturas e “leis” tendenciais válidas só para o mundo que resultou desse encontro. Colocando em relação essas afirmações com a caracterização de acontecimento do discurso, desenvolvida por Pêcheux durante o colóquio Matérialité(s) discursive(s), realizado em 1980 e cujas comunicações e debates foram publicados um ano depois, percebemos que ao considerar a dupla materialidade, histórica e simbólica, do acontecimento de discurso, somos levados a pensar seu funcionamento não só como descontinuidade ou ruptura, mas, e ao mesmo tempo, como emergência4. Penser le discours comme événement suppose de concevoir comment du discursif peut arrêter um processus, rompre une répétition, le ressassement. De ce point de vue, l’événement et fondamentalement une interruption et une émergence: l’interruption par et dans une parole; […] l’émergence dans une pratique discursive d’un énoncé ou d’une place énonciative. (Pêcheux et al., 1981: 201)
Na minha opinião, esta tomada de posição interpretativa dentro da teoria nos leva a não reduzir a contingência ao estatuto de uma ocorrência possível subordinada a um impossível necessário que funcionaria como sua causa5. Ou dito de outro modo, não reduzir o real da história ao real da língua quando definimos o acontecimento do discurso. É justamente esta a torsão que nos parece estar presente quando o discurso (e o acontecimento discursivo) é interpretado em relação ao real da língua, sem ao mesmo tempo considerar-se o real da história como ordem material diferente e irredutível. A noção de estrutura mobilizada pela Psicanálise supõe a necessária distinção do real enquanto ocorrência, referido à contingência e o real como o impossível de ser simbolizado, vale dizer como causa do furo no simbólico. Vale ressaltar que esta distinção é de natureza lógica, uma vez que a constatação da ocorrência do real como descontinuidade, ruptura, faz supor uma categoria que refira especificamente isto que não se escreve, vale dizer, uma categoria que escreva no interior da estrutura a impossibilidade como tal.(Leite, 1994:179)6
Assim, interessa-me destacar que interpretar o acontecimento como encontro, nos 139
leva a considerar que antes do encontro só há “matéria abstrata” no vazio, que é sua condição de possibilidade; é no encontro e a partir de sua duração que essa matéria abstrata se organiza em elementos de uma estrutura, cuja necessidade é efeito da duração, do fato consumado de um mundo. Neste sentido, concordo com a leitura do texto de Althusser realizada por Morfino (2006), que destaca que A contingência, o alea, é posta, na verdade, pelo encontro, não pelo nada/ vazio” (op.cit:19)[...] O vazio não é nada mais que a condição de possibilidade da flutuação, é o conceito necessário para pensar a flutuação, a ausência de plano que precede o encontro dos elementos, mas não tem nenhum significado em si (op.cit:21)
Dito de outra maneira, podemos a afirmar, de acordo com Labandeira (2008:62), que Althusser defende que “o primado da materialidade é universal”. Conforme a autora: La universalidad de la “materia” es um axioma que, indemostrable como tal, permite inteligir la “materialidad” de todo lo que hay. La materia abstracta –los átomos de Epicuro- es sólo condición de posibilidad del ser y del discurso sobre el ser. En el mundo sólo hay diferentes dimensiones de materialidad en las particulares formas en que los seres consisten (op.cit:63) [...] La materia como condición de posibilidad de toda existencia, no puede ser significada de antemano, a menos que tome existencia en alguna forma material específica (op.cit:64)
Neste sentido, considerar o acontecimento do discurso em relação ao real da história, nos leva a afirmar o primado da contingência sobre a necessidade, tal como o postula Althusser (1982/2005); do encontro sobre a forma, de acordo com a interpretação do texto althusseriano desenvolvida por Morfino (2006); da matéria sobre a materialidade (entendida por nós enquanto forma material), como proposto por Labandeira (2008) na sua leitura de Althusser e Pêcheux7; do ser sobre o pensamento, conforme a primeira tese materialista defendida por Pêcheux (1975/1990); e das possibilidades contingentes sobre a impossibilidade ou causalidade estrutural, no sentido que propomos neste nosso texto. Orlandi parece inclinar-se nesta mesma direção, ao afirmar que Cada acontecimento discursivo é inédito e o retorno da memória não é simples reprodução.[...] O investimento da regra e da memória sobre o sujeito discursivo pode ser visto, em termos gerais, como o fato de que, face a imprevisibilidade da relação do sujeito com o sentido, toda formação social tem formas de controle da interpretação, que são historicamente determinadas [...] Citando Jurandir Freire (Folha de São Paulo, Mais!, 13-11-94), eu diria que também quanto à ideologia “somos uma teia de acasos e contingências, 140
incontrolável no princípio e no fim, e no entanto temos de prestar contas pelo que não sabemos de onde veio e para onde vai”. Mas, eu diria, “acreditamos” saber. (Orlandi, 1996:93)
Neste momento de minha exposição, não é demais lembrar a definição de acontecimento discursivo proposta por Pêcheux (1983), que considera “o acontecimento no ponto de encontro entre uma atualidade e uma memória” (p.17) e descreve os sentidos possíveis que dele/nele emergem, afirmando que “entre esses gritos de vitória, há um que vai ‘pegar’ com intensidade particular: é o enunciado ‘On a gagné’ [‘Ganhamos!’] repetido sem fim como um eco inesgotável, apegado ao acontecimento” (p.21, destaques meus)9. Nessa sua reflexão, queremos ainda apontar para outro fato: o enunciado On a gagné em questão se caracteriza por “sua materialidade discursiva absolutamente particular” que consiste “na retomada (reprise) direta, no espaço do acontecimento político, do grito coletivo dos torcedores de uma partida esportiva cuja equipe acaba de ganhar. Este grito marca o momento em que a participação passiva do espectador-torcedor se converte em atividade coletiva gestual e vocal...” (Pêcheux, 1983:21; destaque meu). Observamos, então, que a reflexão sobre o acontecimento discursivo aparece nos últimos textos de Pêcheux acompanhada por uma análise das “materialidades discursivas complexas”, ou seja, dos processos discursivos que produzem sentidos a partir de diversas formas materiais além da língua, como podemos conferir também nos textos do colóquio Histoire et linguistique, realizado em abril de 1983: Corríamos o risco então de ter discussões agradavelmente paralelas, sem ponto de contato: por exemplo, uma sobre os textos e discursos e outra sobre a imagem10. De fato, a questão do papel da memória permitiu um encontro efetivo entre temas a princípio diferentes. (Pêcheux, apud Achard et al.,1983/1999:50; destaque meu).
Porém, as conseqüências teóricas da análise de materialidades discursivas complexas já estava presente no colóquio Materialité(s) Discursive(s) (1981), enunciada como uma questão desafiadora: La parole apparaît comme un jeu de langage au bord du silence [...] ce paradoxe atteint son point maximum au moment où, le symbolique faisant défaut, le visible d’un geste ou d’une image vient hanter l’absence de toute parole. (Pêcheux et al. 1981:201; destaque meu)
O acontecimento do encontro (teórico e político)
A aproximação entre os textos de Althusser e Pêcheux, no que diz respeito a suas noções de encontro e acontecimento, permitiu observar o desenvolvimento de 141
uma reflexão em paralelo, que privilegiando a questão da história a pensa nos seus efeitos em relação às formações sociais (o primeiro) e às materialidades discursivas complexas (o segundo). A partir dessa aproximação, tentamos mostrar que em relação ao objeto teórico discurso podemos pensar o real da história no seu funcionamento específico sem reduzí-lo ao real da língua, ou dito de outro modo, que é possível pensar a contingência radical dos acontecimentos históricos não só enquanto ocorrência (portanto enquanto efeito de uma determinação estrutural fundante que funcionaria logicamente como causa primeira, subsumindo assim a contigência à necessidade de um impossível), mas enquanto possibilidades contingentes irredutíveis. Dito de outra maneira, se o real da língua se funda em um impossível, o real da história se funda no possível, isto é, não há necessidade nem impossibilidade que estruture a priori os processos históricos. O que nos coloca uma questão interessante: se o discurso é definido a partir do encontro do real da língua e do real da história, como pensar a articulação destas duas ordens materiais irredutíveis no seu funcionamento, porém, que sobredeterminam conjuntamente os processos de produção de sentido? Que desafios enfrentamos quando na nossa prática analítica trabalhamos com materialidades discursivas complexas, nas quais o simbólico não se reduz à língua? Que sujeitos resultam desses encontros, tomados no fundo duplo de identificações falhas e indeterminação histórica num mundo que é? Perguntas que revelam a complexidade do conceito discurso, que se nos apresenta como um objeto teórico paradoxal. É justamente este seu paradoxo constitutivo que não nos permite reduzir a história à língua nem a língua a uma ação comunicativa; e que nos obriga, mesmo denunciando a falácia de encontrar um Sentido à história, a não renunciar a fazer sentido(s) na história. A partir destas questões, destacamos um aspecto da materialidade “absolutamente particular” do enunciado “On a gagné”, já apontado por Pêcheux na sua descrição desse acontecimento discursivo: trata-se do agenciamento coletivo desse enunciado na sua materialidade complexa gestual e vocal, que o converte em grito coletivo que intervém no campo do político. Sabemos que Althusser e Pêcheux, ambos, produziram pensamentos originais para pensar a política, o primeiro refletindo sobre a história e a ideologia; o segundo, sobre a língua e o discurso. Os dois enfrentaram o problema de compreender a emergência de movimentos de resistência: que encontros na história, que acontecimentos no discurso, dão lugar a uma ruptura nos processos de reprodução/ repetição e à emergência de uma prática transformadora, de sentidos outros? Vale a pena citar aqui, retomando um trabalho meu anterior (Zoppi Fontana, 2005), as colocações de Pêcheux sobre as lutas de deslocamento ideológico conduzidas por diversos movimentos sociais de resistência, cuja singularidade consiste: “na apreensão de objetos (constantemente contraditórios e ambigüos) paradoxais, que são, simultaneamente, idênticos em si mesmos e se comportam antagonicamente em relação a si mesmos [...] Esses objetos paradoxais (com 142
o nome de Povo, Direito, Trabalho, Gênero, Vida, Ciência, Natureza, Paz, Liberdade) funcionam em relações de força móveis, em transformações confusas, que levam a concordâncias e oposições extremamente instáveis.” (Pêcheux, 1983c: p.383 apud Zoppi Fontana, 2005: 56)
Neste sentido, consideramos, junto com De Ípola (2007:204), que “es el descubrimiento de nuevos posibles ‘en acto’ que hace torsión hacia la condición política”, ou dito de outro modo, reconhecer o contingente no acontecimento de discurso, suas diversas possibilidades de vir-a-ser-outro, abre um espaço produtivo para as práticas de resistência. É justamente nesses possíveis contingentes que constituem o próprio do real sócio-histórico (hoje e sempre) que “está la materia real de la toma de partido, la chance de un militante” (ib.), enfim, a prática política. Para Gadet & Pêcheux (1981/2004), as línguas naturais são capazes de política, pelo fato “das marcas sintáticas por sua essência serem capazes de deslocamentos, transgressões, de reorganizações”. Porém, como bem nos lembram os mesmos autores, para que haja equívoco é necessário que a história intervenha: O equívoco aparece exatamente como o ponto em que o impossível (lingüístico) vem aliar-se à contradição (histórica); o ponto em que a língua atinge a história. A irrupção do equívoco afeta o real da história, o que se manifesta pelo fato de que todo processo revolucionário atinge também o espaço da língua [...] As massas “tomam a palavra” e uma profusão de neologismos e de transcategorizações sintáticas induzem na língua uma gigantesca “mexida”.(Gadet & Pêcheux, 1981/2004:64).
Eis o discurso, enquanto objeto paradoxal. Finalmente, um último paradoxo: “as massas tomam a palavra”. De que sujeito aqui se trata? Lembramos que as posições sujeito a partir das quais Pêcheux (1975) propõe descrever os efeitos de sentido e os movimentos de identificação subjetiva produzidos na prática discursiva, “não são nem individuais nem universais” e, neste sentido, não podem ser compreendidas como um sujeito, mas como forma-sujeito: como um espaço ideologicamente marcado para a interpretação. O que coloca novamente a questão da política, “das chances de um militante” quando pensadas a partir do funcionamento do discurso: como descrever os acontecimentos através dos quais o gesto de um militante encontra outros e torna-se um grito coletivo que intervém no campo do político? Questão esta que parece ter perdido sua vigência nessa nossa contemporaneidade dita pósmoderna, para a qual só há pensamento (teórico e político) se sustentado na base das individualidades radicais (mesmo que líquidas). Para Pêcheux, o discurso, na sua dupla materialidade (da língua e da história), foi, desde o início, uma aposta teórica contra os postulados da psicologia social e do humanismo teórico, e uma aposta política contra o reformismo. O objeto discurso, definido pelo encontro paradoxal do real da língua e do real da história, lhe permitiu pensar teoricamente o que faz 143
laço social, o que produz subjetividades no coletivo, o funcionamento das formas sociais da individualidade, tal como elas se manifestam nas práticas discursivas e políticas11. Reduzir o acontecimento do discurso aos efeitos do real da língua, sem fazer ai intervir o real da história, não seria o desvio teórico pelo qual elidimos a questão de descrever o funcionamento destes encontros subjetivos, destes coletivos amplos, heterogêneos e mutáveis que produzem movimentos na história?
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Notas 1 Com o desenvolvimento de pesquisas sobre diversas materialidades discursivas (Pêcheux, 1981), a própria noção de discurso acolhe abordagens inovadoras que propõem outros sistemas simbólicos como base material para a produção dos efeitos de sentido. 2 Comentando este aspecto, De Ípola (2007:174-50) afirma: “Para el marxista que quería ser Althusser, la coyuntura era el lugar en donde una estructura, al presentarse en su insoslayable contingencia, exhibía no sólo sus puntos fuertes sino también, y sobre todo, sus puntos frágiles, sus grietas, sus debilidades, aquellas por donde una ruptura era posible”. 3 Após a tradução ao português do texto de Althusser e sua publicação na revista Crítica marxista, desenvolvi uma reflexão sobre a aproximação possível de ambos os autores (Pêcheux e Althusser) e ambos os textos (“O discurso, estrutura e acontecimento”, do primeiro, e “A corrente subterrânea do materialismo do encontro”, do segundo) que apresentei em diversas ocasiões, entre elas: na conferência “Discurso e acontecimento: repetição no arquivo, contingência na historia” (jun2005) proferida junto ao Curso de Mestrado em Lingüística da Univ. Federal de Uberlândia; no texto “Acontecimento discursivo e contingência histórica: refletindo sobre o estatuto teórico do acaso” publicado no “Caderno de resumos do II SEAD”UFRGS (nov-2005); no curso “Teoria da Ideologia e discurso”, ministrado junto à Maestría de Análisis del Discurso, Universidad de Buenos Aires (abril-2005). Do feliz encontro entre minhas preocupações teóricas e as questões de pesquisa de Maria Celia Labandeira, professora da UBA e participante deste curso, surgiu a brilhante síntese desenvolvida por Labandeira no seu trabalho final para esse curso, publicado pela autora em 2008 com o título “El ‘materialismo del encuentro’. Uma filosofia para la teoría del discuso” (in: AdVersuS, V, 12-13, agsoto-diciembre 2008:36-79), com o qual dialogamos neste nosso texto, compartilhando muitas das suas colocações, porém nos distanciando em alguns pontos específicos no que se refere à reflexão de M. Pêcheux sobre o acontecimento e o discurso, que apontaremos mais adiante. 145
4 Assim definíamos o acontecimento de discurso em Zoppi Fontana (1997:51) como: “a ruptura de uma prática discursiva pela trasnformação dos rituais enunciativos que a definem; a interrupção de um processo de reformulação parafrástica de sentidos pela mudança das condições de produção; enfim, a emergência de um enunciado ou de uma posição enunciativa novos que reconfiguram o discurso, e através deste participam do processo de produção do real histórico”. 5 Segundo De Ípola (2007), Althusser “al dar prioridad ontológica al azar, a los condicionamientos históricos, al acontecimiento, en especial a la contingencia, [...] cuestiona una por una las premisas fundamentales de todo estructuralismo (no ya sólo el de su fundador [Lévi-Strauss] sino también el de autores como Jacques Lacan)”, p.133. 6 Não é nosso objetivo discutir do ponto de vista de uma lógica modal o entendimento do real da história como contingência radical em relação aos autores que trabalham sob esse enfoque a questão do real da língua. Remetemos aos trabalhos de D’Agord (2006) e Tfouni (2008), que desenvolvem uma abordagem modal da questão do sujeito e do signo lingüístico, respectivamente. 7 Neste sentido, sustentamos que o acontecimento do discurso e os processos discursivos que dele resultam encontram sua possibilidade de ser na matéria e não no vazio Assim, concordamos com Orlandi (1992) quando afirma que “O silêncio é matéria significante por excelência, um continuum significante. O real da significação é o silêncio.” (p.31). Disto se infere, ainda conforme a autora, que “o silêncio como horizonte, como iminência do sentido [...] nos aponta que o fora da linguagem não é o nada mas ainda sentido” (p.13), dado que, enquanto “reduto do possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o que não é “um”, para o que permite o movimento do sujeito” (p.13). Neste ponto, distanciamo-nos de Labandeira (2008), que reduz o equívoco da “linguagem” a efeito material do real da língua, isto é, de sua falha estrutural. 8 Remetemos ao texto de Almeida (2009), que ao analisar o conceito de possibilidades contingentes desenvolvido por Aristóteles no cap. 9 do tratado Da interpretação, destaca que: “Existem proposições cujo valor de verdade depende de estados de coisas que não são necessários nem impossíveis [...] Neste tipo de estados de coisas subsistem possibilidades contrárias e simultâneas” (p.205). 9 No original em francês: “l’événement, au point de rencontre d’une actualité et d’une mémoire” (apud Maldidier, 1990: 305) e “parmi ces cris de victoire, il en est un qui va ‘prendre’ avec une particulière intensité: c’est l’énoncé ‘on a gagné!’ répété sans fin comme um echo inépuisable, attaché à l’événement” (op.cit:307). 10 Mais adiante Pêcheux vai mencionar “o risco evocado de uma vizinhança flexível de mundos paralelos”; a semelhança destas formulações com o texto de Althusser sobre a contigência do encontro é digna de nota. 11 Neste sentido, Evangelista (1984:38) afirma que “a Psicanálise, enquanto ciência do inconsciente, não poderá falar das formas histórico-sociais de individualidade, mas apenas da subjetividade individual ou das posições subjetivas face ao social”. 146
• OS ANDAIMES SUSPENSOS DO DISCURSO NOS ALICERCES DO REAL Helson Flávio da Silva Sobrinho Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Tá vendo aquele colégio moço? Eu também trabalhei lá Lá eu quase me arrebento Pus a massa fiz cimento Ajudei a rebocar Minha filha inocente vem pra mim toda contente Pai vou me matricular Mas me diz um cidadão Criança de pé no chão aqui não pode estudar Música: Cidadão/Autor:Lucio Barbosa Considerações iniciais
Mais de três décadas já se passaram desde a fundação da Análise do Discurso e nós, analistas, continuamos, consciente ou não, no vital embate teórico-prático com o idealismo. Para alguns, isso é pouco notório, mas o próprio Pêcheux reconheceu que não escapamos dos riscos de cair no idealismo justamente naqueles pontos onde mais “pensamos” ser materialistas. Quando encaramos isso com discernimento, podemos ver também que esta luta se renova a cada instante nos embates históricos que vivenciamos. No fundo, são questões cruciais que, se não encaradas com seriedade, podem obscurecer os possíveis enfrentamentos ao sistema desumanizante do capital. É justamente por ser uma questão crucial que buscamos, nos rastros dos trabalhos de Pêcheux, fazer uma leitura da AD à luz da perspectiva marxiana. Essa leitura é mais que provocativa; trata-se de uma tentativa de pontuar esse embate teórico-prático e, em seguida, lançar questionamentos aos nossos confrontos com o real, vividos na sociabilidade contemporânea regida pelas relações capitalistas de exploração do trabalho humano. O caminho escolhido utilizará a metáfora da aventura teórica do discurso1 que proporcionou ao filósofo Michel Pêcheux instituir uma teoria do discurso, de natureza não-subjetiva, no entremeio2 entre a Lingüística, o Marxismo e a Psicanálise. Ressaltaremos que, na aventura teórica para escapar do idealismo, o autor se apóia na tese materialista da dependência do pensamento em relação ao real. Por isso, também utilizaremos a metáfora do discurso cujos andaimes estão apenas simuladamente suspensos nos alicerces do real sócio-histórico (atualmente esse real diz respeito à formação social capitalista). 147
A autonomia dada ao discurso (seja como materialidade da ideologia ou mesmo como objeto do conhecimento) parece expressar mais fortemente o ponto cego do materialismo da AD. Dar vida própria ao discurso, tratando-o como algo suspenso e que caminha por si mesmo, é, na contradição, minimizar os sujeitos que concretamente fazem sua história3. Questionar essa postura nos revela como beiramos, ou pior, como caímos no abismo do idealismo. Parece ser aí um dos pontos onde os alicerces da teoria do discurso podem ceder e se desvencilhar do real da história ao decretar que ela acabou. Portanto, o real da história é o sustentáculo do discurso e da produção de sentidos; desse modo, seus andaimes, embora algumas e/ou muitas vezes distantes da concretude histórica, jamais escapam dos alicerces do real, a não ser enquanto efeito ideológico. O efeito Münchhausen, no qual o sujeito se eleva nos ares puxando-se pelos cabelos, jamais se efetiva concretamente senão como simulação de evidência, pois o discurso tem seus pés fincados nas relações histórico-sociais. E é considerando estes mecanismos de determinação dos processos discursivos que se torna urgente compreender que o real do discurso (intimamente constituído e afetado pelo real da língua e do sujeito) é, em sua essência, relativamente autônomo diante das práticas histórico-sociais.
1. O discurso e o real sócio-histórico: coisas-a-saber Sem dúvida a AD possui um fértil itinerário de pesquisa cuja reflexão se apresenta muitas vezes densa; outras vezes, um pouco mais fluida, mas nunca menos problemática, por tratar de questões bastante complexas: Sujeito, Linguagem e História. E é nessa complexidade que devemos nos inserir e ousar dizer o provavelmente não dizível, ou seja, que é preciso ouvir e compreender o objeto e não criar o objeto . Essa é uma primeira tese materialista, pois, segundo Pêcheux, “o mundo ‘exterior’ material existe (objeto real, concreto-real)” e, também, “o conhecimento objetivo desse mundo é produzido no desenvolvimento histórico das disciplinas científicas (objeto de conhecimento, concreto de pensamento, conceito)” (1988, p. 74). Com isso, pontuamos uma das contradições entre idealismo e materialismo. Enquanto a primeira perspectiva parte das idéias para criar o objeto, a outra parte do objeto para compreendê-lo em sua nervura. Por isso, é preciso questionar também de qual perspectiva partimos. Enquanto analistas, reconhecemos a prioridade do real sobre o pensamento ou estamos tentando explicar o pensamento (discurso) pelo próprio discurso (pensamento)? É inegável que a AD partiu do materialismo histórico. E foi desse lugar que teceu críticas às filosofias espontâneas, às teorias subjetivas da subjetividade, ao sociologismo e ao logicismo, no entanto, é preciso enfatizar que a AD, em um ritmo cadenciado, vem tomando o discurso como objeto próprio de pesquisa e 148
desvencilhando-o das suas bases histórico-concretas. Falar do real sócio-histórico e fazer referência a Marx na AD tem se tornado constrangedor em muitos congressos5, como se o “consenso” do fim da história tivesse produzido efetivamente o fim da história. É preciso configurar esse itinerário, quem sabe até re-configurar, lembrar que Pêcheux sempre pressupôs o real sócio-histórico justamente quando define que todo discurso tem condições de produção. Isso é o que caracteriza a AD e a diferencia das outras formas de compreensão da linguagem e dos sujeitos. Reconhecer esse pressuposto é atentar para o fato de que o real do discurso está justamente nas suas determinações histórico-sociais; são elas que sustentam seus andaimes e, por isso, em hipótese nenhuma deixam de sustentar os processos discursivos e os efeitos de sentidos. Na sua aventura teórica, Pêcheux (1988, p. 24) traz uma novidade quando reclama/pergunta pela história e problematiza ainda mais a linguagem, ao dizer que: “uma referência à História, a propósito das questões de Lingüística, só se justifica na perspectiva de uma análise materialista do efeito das relações de classes sobre o que se podem chamar as ‘práticas lingüísticas’ inscritas no funcionamento dos aparelhos ideológicos de uma formação econômica e social dada”. Essa fala de Pêcheux é esclarecedora, pois toma o discurso para compreender as contradições da ciência Lingüística como efeito derivado das contradições sociais (lutas de classes). Ainda que tenha apontado retificações, ele mesmo reafirmou ser “mais justo caracterizar a luta ideológica de classes como um processo de reproduçãotransformação das relações de produção existentes, de maneira a inscrever nessa noção a própria marca de contradição de classes que a constitui (e continuo, ainda hoje, a manter firmemente esse ponto)”6. Assim, reconhece o poder do discurso, mas também reconhece que ele tem determinações e, por isso, limites. O sentido não pode ser qualquer sentido; ele é regido pelas relações sociais historicamente determinadas. Compreender o discurso e suas mediações, fundadas na concretude histórica, é compreender o seu real. O discurso é o ponto de partida de todo analista (a própria empiricidade), mas não pode ser o ponto final da análise, porque assim declararíamos, vale dizer, falsamente, que é possível compreender o discurso pelo discurso, sem ir efetivamente à base concreta das relações sociais para compreender sua gênese e as determinações que o compõem. Nessa experiência arriscada de compreender o discurso, Pêcheux se lançou em busca de procedimentos metodológicos e categorias teóricas que viabilizassem as análises. Conceitos como interdiscurso, formação discursiva e formação ideológica são aquisições teórico-práticas que direcionam para a compreensão do discurso e das relações sociais. Na grande obra Les vérités de la Palice ele consegue, mesmo na abstração teórica, expor o movimento do discurso enquanto processo que não é linear, mas desigual e contraditório. Pêcheux instaura possibilidades de leituras que, sem fugir da interpretação, consegue revelar que nenhuma interpretação cai 149
do céu, pois toda interpretação tem sua gênese nas lutas sociais, nas atividades dos sujeitos. Levando em consideração a totalidade das obras de Michel Pêcheux, percebemos que o texto O Discurso: estrutura ou acontecimento? é hoje o lugar de maior polêmica e contradições entre os analistas, por isso, é sempre um risco fazer referência a ele. No entanto, não poderíamos deixar de lembrar que toda descrição abre para interpretação; é pressupondo essa assertiva própria de Pêcheux, no referido texto, que enfatizamos existir nele também um ponto exato onde há uma abertura a uma leitura ontológica do discurso. Esse ponto é onde nosso autor fala de coisas-a-saber que pelo fato de existirem nos ameaçam a felicidade. Considerando que ontologia diz respeito ao SER e não se reduz ao mero processo gnosiológico do conhecer, o texto de Pêcheux parece não ficar muito distante de uma concepção ontológica do discurso, ao destacar que há coisas e há interpretações dessas coisas, quando diz: “não é necessário ter uma intuição fenomenológica, uma pegada hermenêutica ou uma apreensão espontânea da essência do tifo para ser afetado por essa doença; é mesmo o contrário: há ‘coisas-a-saber’ (conhecimentos a gerir e a transmitir socialmente), isto é , descrições de situações, de sintomas e de atos (a efetuar ou evitar) associadas às ameaças multiformes de um real do qual ‘ninguém pode ignorar a lei’ — porque esse real é impiedoso”. (PÊCHEUX, 2002, p.34).
É evidente que essa leitura ousada do texto de Pêcheux pode gerar polêmica e ser alvo de interpretações impiedosas, mas diante de tantos impasses que vivenciamos cotidianamente urge perguntar o que é o discurso e não apenas como ele funciona. E essa é uma pergunta ontológica. A resposta exige tocar no nervo da questão e volver o olhar sobre o discurso, buscando suas raízes, ou seja, suas bases ontológicas. Daí a metáfora dos andaimes suspensos, pois todo discurso tem seu alicerce, ou seja, uma base histórica que o sustenta e que dinamiza sua processualidade. Podemos fundamentar esse gesto de leitura a partir do pensamento do filósofo Lukács, que, ao se referir ao entrelaçamento entre ser e consciência, nos fornece um exemplo também simples, mas capaz de esclarecer a prioridade do real sobre o pensamento: “Quando alguém caminha pela rua — mesmo que seja, no plano da teoria do conhecimento, um obstinado neopositivista, capaz de negar toda a realidade — ao chegar a um cruzamento, deverá por força convencer-se de que, se não parar, um automóvel real o atropelará, realmente; não lhe será possível pensar que uma fórmula matemática qualquer de sua existência estará subvertida pela função matemática do carro ou pela sua representação da representação do automóvel”. (1969, p.12) 150
Essa premissa, de uma posição ontológica, permite compreender os limites entre o real e o pensamento; isso revela a própria articulação entre o discurso e as práticas sócio-históricas7. O discurso não pode ir muito além das suas determinações históricas. Como nos afirma Marx (1996, p.52), “o modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”. Chegamos assim a mais uma questão importante que Pêcheux colocou para a AD: a relação entre ser e pensamento, e essa relação se dá no/pelo discurso enquanto um processo complexo e contraditório. Do modo como expõe a teoria (buscando compreender o real do discurso) Pêcheux toca na questão da determinação do pensamento. É justamente na conclusão do seu livro Semânica e Discurso que ele admite a tese materialista com toda clareza e firmeza: “tese 1: O real existe, necessariamente, independentemente do pensamento e fora dele, mas o pensamento depende, necessariamente, do real, isto é, não existe fora do real.” (PÊCHEUX, 1988,p. 255)
A determinação entre o real e o pensamento revela a determinação do discurso pelo real sócio-histórico. E esse conteúdo de pensamento diz respeito à concretude histórica, ou seja, às condições materiais de existência realizadas na/pela atividade humana onde os homens transformam a natureza e estabelecem relações sociais, construindo seu mundo. Quando tratamos de discurso, também tratamos de formas ou modalidades de apropriação do mundo. Segundo Pêcheux, “‘todo conteúdo de pensamento’ existe na linguagem, sob a forma do discurso” (PÊCHEUX, 1988, p.99) e esse conteúdo de pensamento é sempre uma forma de o sujeito se apropriar do mundo em que vive e atua. Essa apropriação do mundo pelo pensamento se dá historicamente de inúmeras formas e de modo desigual e contraditório através das artes, da religião, da filosofia, da ciência, dos mitos, dos discursos cotidianos que são produzidos pelos sujeitos para que estes possam atuar entre as alternativas possíveis na conjuntura histórica. Particularmente, Pêcheux (2002) fala dos universos discursivos logicamente estabilizados (ciências naturais) e não estabilizados (ciências humanas) para mostrar que esses universos discursivos sofrem os efeitos das modalidades de subordinação, contradição das relações histórico-sociais, mas nem por isso deixam de falar ou se deparar com o real. Aqui se revela novamente a profunda diferença entre uma perspectiva que reconhece a interpretação e a prática científica como uma prática ética e política (por isso, uma questão de responsabilidade), e uma perspectiva que não reconhece a interpretação, nem as tomadas de posição diante do real; e, se pudemos retornar ao livro Semântica e Discurso, veremos Pêcheux (p.209) argumentar que as tomadas de posição pela objetividade materialista se dão sempre através de pontos 151
de vista de classes em lutas “enquanto tomada de posição em relação ‘ao que é’”. Nesse sentido, o ponto de vista do proletariado “é enquanto ponto de vista de classe que ele é objetivo, e isso ao longo de toda a história”. Portanto, é preciso insistir, o discurso não funda a sociabilidade. O discurso resulta das práticas dos homens em determinada sociedade e, dialeticamente, é trabalho sobre elas8. A instância determinante do discurso não está nele mesmo nem no que se vem chamando de real da língua. A determinação do discurso está no real sócio-histórico, e isso é insuprimível. Mas é preciso destacar que este real não exclui o sujeito nem a língua, visto que é o sujeito que, em condições determinadas, produz sua própria história. É das contradições sócio-históricas que brota a natureza conservadora e/ou transformadora de todo discurso. São as formas de sociabilidade que exigem conservações e transformações revolucionárias que atuam nos processos discursivos. No caso da sociabilidade capitalista, suas contradições são fundadas na propriedade privada e na divisão social do trabalho, gerando antagonismos entre classes. As contradições do discurso são próprias das contradições da vida. E não adianta buscar explicações dessas contradições no discurso em si mesmo, no sistema lingüístico em suas falhas, ou mesmo, no inconsciente cujo real sempre escapa. Como veremos a seguir — e isto para não cedermos ao idealismo, submetendonos ao primado da teoria sobre a prática —, é preciso constatar que o discurso só aparentemente escapa do processo sócio-histórico, repetimos, só aparentemente, porque ele é o próprio desdobramento desse processo, especialmente hoje afetado pela ordem do capital. A ordem do discurso é subordinada as relações de compra e venda de mercadorias; tanto os sujeitos como seus discursos expressam essas relações estabelecidas de concorrência, de opressão e de exploração. Devido às relações dos sujeitos entre si e deles com a natureza serem estranhadas9, também o discurso se apresenta estranhado aos próprios sujeitos. E isto se efetua especialmente na interpelação ideológica, no chamado efeito Münchhausen, onde o indivíduo é chamado/convocado/recrutado a ser sujeito, entre outros, consumidor, vendedor, estudante, professor, pobre, rico, fracassado, vencedor, jovem, velho, patrão, sócio e/ou empregado. Se essa interpelação simula evidência para os sujeitos, ela também tem simulado evidência para nós, analistas de discurso, da existência todo poderosa de um objeto de conhecimento que caminha por si mesmo. Por isso, é preciso estar atento; só quando articulamos o dizer com suas condições de produção (as relações sociais historicamente determinadas) é que as contradições do discurso reaparecem e desvelam a verdadeira face de suas contradições (o seu real).
Nos entremeios do discurso, a dialética entre educação e sociedade: efeitos do/no real Como foi enfatizado, o discurso possui uma relativa autonomia diante das 152
práticas sociais. Estamos levando em consideração a assertiva de Pêcheux que diz ser o discurso efeito e trabalho nas filiações sócio-históricas. Diante desse processo dialético, julgamos que o discurso, quando submetido à análise, nos dá acesso às determinações sociais que sustentam a produção e circulação de sentidos, bem como nos revela as contradições que movem as relações sociais que lhe deram origem. Sendo assim, o sujeito se constitui nas práticas sócio-históricas e lutas ideológicas, e seu dizer é sempre parte dessas práticas cuja materialização é, conseqüentemente, uma relação tensa e contraditória entre a língua e a história. É esse olhar que direcionamos para a educação e seus processos discursivos veiculadores de idéias, valores, enfim, de ideologias dominantes e dominadas de uma época. A partir desse olhar crítico que aborda a língua na sua não-transparência é que buscamos — na intricada relação entre sujeito, linguagem e história — compreender a contraditoriedade dos sentidos de educação que transitam em nossa sociabilidade. Para isso é preciso partir do pressuposto materialista de que todo discurso possui condições de produção e, além disso, resgatar a relação fundante entre educação e trabalho. Esse gesto nos direciona à compreensão de que a educação surge com a atividade humana de transformar a natureza no ato do trabalho. É a própria necessidade de sobrevivência humana que exige que os conhecimentos produzidos sejam transmitidos para as novas gerações e dêem continuidade à existência humanosocial. É assim que a educação se entrelaça às práticas sociais de suprir as carências e necessidades humanas desde a alimentação —, na seleção e elaboração dos alimentos —, passando pelas formas de moradias e pelas vestimentas, indo às escolhas e tarefas mais elaboradas das práticas humanas, como o ato de filosofar e as atividades artísticas. Nesse sentido, a educação é essencialmente parte da vida social10. Mas é preciso lembrar que ela também é histórica, já que é produzida por sujeitos históricos. E a educação da qual tratamos hoje é uma educação perpassada e constituída por contradições da sociedade capitalista, o que conseqüentemente produz tensões, nas quais os sujeitos se vêem entre a submissão e a resistência às manobras da sociedade mercantil. Submissão porque o sistema capitalista precisa reproduzir seus valores, que se materializam nos discursos oficiais da competência, da educação para a vida, para a cidadania e para o trabalho11. E resistências porque todo ritual ideológico possui falhas e o sujeito não se deixa vencer sem lutar, sem se rebelar, quando se depara com as contradições. A Análise do Discurso tem ferramentas teóricas e metodológicas para desvelar o real contraditório dos processos discursivos. Paradoxalmente, isso tem escapado e não se percebe que compreender o discurso é desvelar as contradições sociais. Neste ponto, é preciso questionar o caráter crítico da AD. Até que ponto se compreendem de modo efetivo os processos discursivos? É preciso tocar de modo mais concreto na questão, desvelando os mecanismos ideológicos que atuam nos discursos oficiais ou do cotidiano. Muitos trabalhos ficam no fio do discurso, não mobilizam a história 153
e as relações contraditórias da sociedade capitalista e não percebem essa relação dialética entre sujeitos e sociedade atravessada, constituída, movente e movida no discurso, por isso, ficam no nível fenomênico, gramaticalizando a AD. É claro que tratar das interconexões do discurso entremeado na educação e nas práticas sociais não é simples, pois não se trata de indicar uma novíssima forma de leitura, mas de uma necessidade objetiva de falar/ler o mundo de um outro ponto de vista que possa compreender que o sentido sempre pode ser outro e que suas derivas são, em última instância, regidas pelas relações sociais estabelecidas em determinada formação social. E para não deixar esta nossa reflexão parecer abstrata, podemos aprofundar analisando slogans de escolas particulares recrutando/interpelando alunos ou pais de alunos, mas, ao mesmo tempo, revelando os silenciamentos, os valores dominantes e contraditórios da sociedade e mostrando como a educação entra nesse jogo. “O SEU FUTURO COMEÇA AQUI” “Seja um vencedor!” / “Quem estuda no colégio (X) sempre se dá bem”12
Testemunhamos nessa materialidade discursiva como as relações sociais afetam e orientam a intencionalidade dos processos educativos. Um exame atento revela onde o “seu futuro” (o futuro do indivíduo) começa. Parece começar justamente naquela escola, porque ela forma “vencedores”. O discurso põe em funcionamento as práticas sociais dominantes que tornam os sujeitos competitivos, individualistas, em busca de conquistar a vitória e se dar bem. Vale destacar que tais materialidades discursivas são facilmente encontradas em projetos pedagógicos de escolas, especialmente em escolas particulares que, além disso, apresentam como resultado sua lista de aprovados nos vestibulares de inúmeras faculdades como demonstração de que realmente seus alunos se dão bem por conta dos “sistemas avançados de ensino”. Engrenagem do marketing para mover as relações de compra e venda da educação através da garantia de que no futuro aquele determinado sujeito seja um vencedor. Com isso, “Compreende-se melhor, agora, de que modo o que chamamos ‘domínios de pensamento’ se constitui sócio-historicamente sob a forma de pontos de estabilização que produzem o sujeito, com, simultaneamente, aquilo que lhe é dado ver, compreender, fazer, temer, esperar, etc. É por essa via, como veremos, que todo sujeito se ‘reconhece’ a si mesmo (em si mesmo e em outros sujeitos) e aí se acha a condição (e não o efeito) do famoso ‘consenso intersubjetivo por meio do qual o idealismo pretende compreender o ser a partir do pensamento”. (PÊCHEUX, 1988, p. 162)
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A eficácia do discurso se realiza no seu aparecer ingênuo/evidente, onde produz o sujeito com aquilo que lhe é dado a ver, como se a linguagem fosse transparente. Mas não é. Esses dizeres atuam sobre os sujeitos e acomodam as consciências (também constituídas historicamente) que tomam a educação como pretexto para subir na vida. Afetada pelo mercado e cada vez mais privatizada, a educação na sociedade moderna interpela os sujeitos levando-os a crer na competição e no individualismo exacerbado como algo natural, pois, no íntimo, vencer e se dar bem é, na verdade, ser mais um burguês ou, ao menos, garantir um padrão de vida e bem-estar alicerçado no poder de consumo. Enquanto isso, o mundo continua sendo cada vez mais cruel na sua exploração dos homens sobre os homens. E a AD, ancorada numa perspectiva marxiana ontológica, leva-nos a ler o mundo pelo seu avesso, na dialética objetiva da produção dos sentidos. Vale ressaltar que entramos por uma porta no âmbito da discursividade sobre a educação, slogans que interpelam sujeitos a comprar educação; mas o processo discursivo nos instiga a buscar os silenciamentos, as contradições e, por isso, podemos derivar para outros discursos que parecem estar margeando esse processo educativo. Na dialética entre educação e sociedade, o discurso entremeia essa relação, dando unidade às contradições, concatenando as relações entre os sujeitos e suas práticas. É preciso trazer, para aprofundarmos a reflexão, uma cena muito “comum”/“evidente” no espaço urbano. Certamente muitas pessoas já se depararam com crianças pedindo nos ônibus coletivos. Contudo, foi observado que estas crianças vêm pedindo de um modo distinto; pedem por escrito em um recorte de papel semelhante a uma solicitação formal. Seguem as materialidades discursivas: “Peço sua ajuda para conpra o pão de cada dia E com sua ajuda que nos çobevivemos a final e melho pidir do que robar moito obrigado e ami o próximo” “Por favor, me ajude com o que puder para que eu possa comprar um pacote de leite para meu irmão minha familia está passando necessidades. Obrigado Pequena Mariza”
Encaminharemos esta reflexão questionando: Como essa criança lê o mundo? Como o discurso sobre educação ali funciona, seja no pedido por escrito ou oralmente? Como o falar/escrever/ler se torna um gesto de mendicância? Essa materialidade discursiva foi escrita e, por isso, exige ser lida13. Atribuímos sentidos a essa escrita movidos pela compaixão na identificação com o outro, mas também pela indiferença, por conta das paráfrases que naturalizam a crueldade de nossas relações sociais e, também, pelo medo de ler o incômodo e depararmo-nos com o escândalo da vida; no entanto, esse escândalo volta a acontecer diariamente nos 155
ônibus, nas avenidas, nas ruas, nos sinais, nos restaurantes, nas escolas, seguindo seu trajeto e exigindo muito mais que uma simples leitura. Esse acontecimento pede/exige/impõe que se leiam as contradições, o escândalo da vida no nó do semsentido, que é real, e contraditoriamente sentido. Que leitura essa criança faz do mundo e que leitura fazemos dela, de nós e da sociedade em que vivemos? Por que essa criança não foi chamada/recrutada/interpelada a ser uma vencedora, a se dar bem? Por que isso lhe foi negado? Quando transitamos por discursos outros, nos fios ideológicos da linguagem, e buscamos as relações sócio-históricas que os sustentam, as contradições se revelam, pois, como vimos, o imperativo seja um vencedor interpela apenas os potencialmente já-vencedores. A contradição está no acontecimento, essa criança resiste, ela pede por escrito sem mesmo saber ler nem escrever, sem mesmo ter tido oportunidade de ir à escola14. Usa das letras, da escrita, para pedir dinheiro, atenção, para fazerse ouvida, lida, interpretada. Ela, por sua existência real e por seu gesto, exige que atribuamos sentidos, fazendo uma leitura radical. Será que ela não quis ser uma vencedora? E assim se desvela o engano daqueles que pensam que nesta sociedade de livre concorrência e de livres iniciativas a vitória é uma conquista individual e que poderá ser garantida pela educação. A educação é hoje um setor rentável da economia, lugar de negócios, do lucro. E como esse lugar é espaço de alguns poucos, o conhecimento historicamente produzido também é diferenciador, pois sua distribuição é calculada e, sobretudo, como acabamos de ver, discursivamente diferenciada. Aquele slogan reproduz essa crueldade, fazendo do nosso futuro o mesmo, ou seja, reproduzindo a continuidade das relações entre explorados e exploradores, na qual os interesses da reprodução do capital permanecem. Paradoxalmente, a contradição nos toma e nos arrebata e se apresenta (se mostra) diariamente. Fazendo eco ao que disse Pêcheux (2002), não descobrimos o real como num cálculo das ciências matemática ou física, ou como se resolve uma fórmula ou uma equação; na verdade, quando tratamos de real sócio-histórico nos deparamos com ele. Por isso, voltemos a repetir: todos os dias nos deparamos com Pequenas Marizas nas esquinas, nas avenidas, nas praças, nos restaurantes, nos ônibus, nos arredores das escolas, nos lixões, nas instituições filantrópicas, nos viadutos ... e esta escrita precisa ser lida. A relação entre linguagem, educação e sociedade não é de oposição, mas de interrelação dialética e determinação recíproca; está aí o caráter material do sentido, o seu real. E para perceber isso temos de ter muita sensibilidade diante da complexidade do mundo e perguntar a quem estamos servindo, para assim buscar uma postura menos ingênua ou menos cientificista diante do discurso, pois ele está sempre entrelaçado nas relações sociais, sendo um ponto crucial para o desvelamento dessa realidade essencialmente contraditória15. No slogan da escola “seja um vencedor”, em contraposição com a mendicância da 156
criança pedindo por escrito sem mesmo saber ler nem escrever em uma sociedade que diz valorizar os sujeitos humanos e as letras, reluzem sentidos em confronto naquilo que parecia opaco. Nesse ponto do real, esta criança resiste e assina seu pedido/solicitação “por favor me ajude” como Pequena Mariza, escrito em maiúsculas, inscrevendo-se enquanto sujeito. Diante desse real do discurso, não podemos tomar essa escrita como exemplo de discurso em simples funcionamento, mas sim de constatação do real histórico que vivenciamos, pois nos deparamos com uma escrita que ocupa/invade o espaço, exigindo leitura e produção de sentidos que desvelem radicalmente o funcionamento do discurso nas práticas materiais, ou seja, que revelem sua constituição no real sócio-histórico e, também, seu efeito de retorno constituindo e atuando nas contradições desse próprio real.
Considerações finais Espero ter alcançado, ao menos, alguns pilares dessa construção. Vasculhado alguns pontos, desatado algumas amarras, apontado fissuras, tocado em declives que podem indicar a necessidade de pôr abaixo, ou mesmo, detonar essa estrutura e seus andaimes. Sei que o trabalho não foi finalizado e que a aventura continua a seguir seu percurso, pois é preciso tornar as contradições discursivas visíveis, já que elas são impiedosas e, mais que isso, tomá-las no seu efetivo lugar, ou seja, nos conflitos histórico-sociais. Esquecer que há um real no discurso e, principalmente, esquecer que ele pode ser objetivamente alcançado talvez seja fruto das desilusões que vivenciamos nesse começo de século com as “vitórias” das relações capitalista — que mesmo com suas contradições severas, que põem em risco a própria humanidade —, ainda se mantém dominante. Mas é nesta mesma sociedade que podemos ver que o discurso não se entifica por si mesmo, não se desgarra de suas bases históricas; mesmo parecendo se sobrepor aos sujeitos, ele não os domina por completo, pois os próprios sujeitos resistem e, se ainda não perceberam com clareza, perceberão, cedo ou tarde, que o discurso, por mais eficácia que tenha, não é capaz de criar o mundo por si mesmo, já que não mata a fome nem sacia a sede. Quando buscamos as contradições do discurso nele e por ele mesmo, estamos legitimando as formas de ser da sociedade capitalista. Aí erramos o alvo — e de sujeitos construtores da nossa própria história, passamos a meros suportes do discurso. Se continuarmos a ser apenas cidadãos, nesta história não poderemos entrar nem atuar, e, assim, o edifício do sistema capitalista continuará intacto, pois velamos o real da história e ficamos cegos diante de nossas próprias práticas, ou seja, ficamos cegos aos processos sociais que sustentam os discursos e, por fim, ficamos incapacitados de superar estas contradições. Então, sem percebermos a tragédia, declaramos a derrota e morte do sujeito em proveito da impiedosa vivacidade/ 157
ferocidade do discurso.
Referências Bibliográficas HOLZ, Hans et al. Conversando com Lukács. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1969. LESSA, Sérgio. Para compreender a ontologia de Lukács. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007. MALDIDIER, Denise. A inquietação do discurso. Campinas: Pontes, 2003. MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2001. MARX, Karl. Para a crítica da economia política. Col. Os Pensadores. SP: Nova Cultural, 1996. MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006. PÊCHEUX, Michel. O Discurso: Estrutura ou Acontecimento. 3° ed. Campinas: Pontes, 2002. PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso. Campinas: Ed. da Unicamp, 1988. RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 1995. SILVA-SOBRINHO, Helson Flávio. Discurso, Velhice e Classes Sociais. Maceió: Edufal, 2007.
Notas 1 Retomo as palavras de Maldidier ao afirmar que “o pensamento de Michel Pêcheux é um pensamento forte. (...) Ele é bem o homem dos andaimes suspensos de que fala, desde 1966, Thomas Herbert, sua máscara para os Cahiers de l’analyse. Em uma obra multiforme, que tocou domínios tão diversos como a história das ciências, a filosofia, a informática, etc., escolhi fazer prosseguir a ‘aventura teórica’ do discurso. (...) O discurso me parece, em Michel Pêcheux, um verdadeiro nó (...) É o lugar teórico em que se intricam literalmente todas suas grandes questões sobre a língua, a história, o sujeito.” (A inquietação do discurso, p.15). 2 Ao prefaciar o último texto de Pêcheux (O discurso: estrutura ou acontecimento), Eni Orlandi (p.07) afirma: “O que se pode depreender do percurso de Michel Pêcheux na elaboração da Análise de Discurso é que ele propôs uma forma de reflexão sobre a linguagem que aceita o desconforto de não se ajeitar nas evidências e no lugar já-feito. Ele exerceu com sofisticação e esmero a arte de refletir nos entremeios”. 3 Os princípios norteadores do presente artigo ratificam minha fala no último SEAD — onde foram questionadas as filiações teóricas da AD apontando avanços e recuos através do texto Trilhar caminhos, seguir discursos: aonde isso poderá nos levar? — e, também, configuram-se como um desdobramento das reflexões sobre o discurso realizadas em meu livro Discurso, Velhice e Classes Sociais, resultado da pesquisa de doutorado, onde pude compreender com mais clareza que o discurso está sempre imbricado com os interesses e posições de classes, logo, devem-se buscar os sujeitos históricos a partir dos 158
seus discursos, mas, sobretudo nas suas relações concretas, onde os interesses em jogo atravessam e regem os ditos e os silenciamentos. Portanto, compreendi também que “a teoria do discurso não pode estar separada do real sócio-histórico; buscar o real para a AD deve ser, antes de tudo, ir à base das relações sociais acompanhando o processo de autoconstrução humana” (2007, p.26). 4 A Lingüística é fundada nessa inversão quando Saussure afirma: “Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, diríamos que é o ponto de vista que cria o objeto; aliás, nada nos diz de antemão que uma dessas maneiras de considerar o fato em questão seja anterior ou superior às outras” (1995, p.15). 5 Ressalto aqui o empenho de muitos pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas, pois, mesmo sofrendo severas críticas, continuam dialogando com Marx e Lukács em busca de compreender o discurso e as práticas sociais, uma vez que compreendem que este dilema é muito mais que um conflito teórico. Entre estes trabalhos críticos, o leitor poderá conferir as pesquisas que vêm sendo desenvolvidas por Belmira Magalhães sobre a discriminação feminina e a reprodução da opressão, bem como os trabalhos de Virgínia Amaral sobre as relações de trabalho; de Mª do Socorro Cavalcante sobre os discursos oficiais da educação e Silva-Sobrinho sobre velhice. 6 PÊCHEUX, Michel. Só a causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação. In Semântica e Discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1988.p. 298. 7 Aqui justifico a necessidade de uma concepção ontológica do discurso, acompanhando Lessa (2007) quando este autor expõe a necessidade de uma ontologia em nosso século: “A resposta, na sua forma mais sintética, pode ser esta: porque a derrota das tentativas revolucionárias para superar o capital é de tal monta, até o presente momento, que gera a ilusão da impossibilidade de os homens construírem conscientemente a sua história. A derrota revolucionária revitalizou a concepção liberal segundo a qual a permanência da ordem capitalista se deve ao fato de ela corresponder a uma pretensa ‘essência’ humana. O homem seria, segundo esta concepção, de modo essencial e insuperável, um proprietário privado que se relaciona com os outros pela mediação dos seus interesses egoístas. Parafraseando Marx, a essência do homem capitalista foi elevada à essência capitalista do homem. A contraposição teórica a esta falsa concepção apenas é possível, hoje, por meio da mais profunda investigação acerca do que é o ser humano. (...) E esta demonstração apenas pode se dar de forma cabal no terreno da Ontologia.” (Lessa, 2007, p.13). 8 “Todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo modo atravessado pelas determinações inconscientes) de deslocamento no seu espaço”. (Pêcheux, 2002, p.56). 9 “Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, se a ele se contrapõe como poder estranho, isto só é possível porque o produto do trabalho pertence a outro homem distinto do trabalhador. Se a sua atividade constitui para ele um martírio, tem de ser 159
fonte de deleite e de prazer para outro. Só o homem, e não os deuses ou a natureza, é que pode ser este poder estranho sobre os homens (...) Toda a auto-alienação do homem, de si mesmo e da natureza, manifesta-se na relação que ele postula entre os homens, para si mesmo e para a natureza. (...) No mundo real prático, a auto-alienação só pode revelarse mediante a relação prática, real, com outros homens”. (Marx, 2001, p. 119). 10 Para Mészáros (2006, p. 263), a educação é responsável pela reprodução do sistema dominante de produção. Ele afirma: “Assim, além de reprodução, numa escala ampliada, das múltiplas habilidades sem as quais a atividade produtiva não poderia ser levada a cabo, o complexo sistema educacional da sociedade é também responsável pela produção e reprodução da estrutura de valores no interior da qual os indivíduos definem seus próprios objetivos e fins específicos. As relações sociais de produção reificadas sob o capitalismo não se perpetuam automaticamente. Elas só o fazem porque os indivíduos particulares interiorizam as pressões externas: eles adotam as perspectivas gerais da sociedade de mercadorias como os limites inquestionáveis de suas próprias aspirações. É com isso que os indivíduos ‘contribuem para manter uma concepção de mundo’ e para a manutenção de uma forma específica de intercâmbio social, que corresponde àquela concepção do mundo”. 11 Sobre essa temática o leitor interessado poderá conferir as pesquisas de Kátia de Melo, Socorro Cavalcante, Ana Florêncio, Alexandre Bastos e Aline Nomeriano, recentemente publicadas pela Edufal, Maceió. 12 O nome da escola foi ocultado, especialmente porque esse processo discursivo é bem mais amplo e não se trata de um caso restrito de uma escola em uma determinada cidade (Maceió) do Nordeste do Brasil. 13 Segundo Rancière: “Escrever é o ato que, aparentemente, não pode ser realizado sem significar, ao mesmo tempo, aquilo que realiza: uma relação da mão que traça linhas ou signos com o corpo que ela prolonga; (...) antes de ser o exercício de uma competência, o ato de escrever é uma maneira de ocupar o sensível e de dar sentido a essa ocupação”. (1995, p. 07). 14 Quando lhe foi perguntada se sabia ler, a Pequena Mariza respondeu de modo afirmativo; no entanto, ela mesma, em seguida, revelou que não sabia nem ler nem escrever e que também não freqüentava nenhuma escola. 15 Em um tom semelhante, Zoppi Fontana nos advertiu em uma palestra proferida na UFAL (maio/2007) que “o poder não tem pudor”, e ali questionava os analistas de discurso que fazem suas análises ou recontam a história da AD afetados por pudores políticos na teoria.
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O CORPO COMO MATERIALIDADE DO/NO DISCURSO1 Simone Hashiguti (UNICAMP)
Introdução No romance “A letra escarlate”, de Nathanael Hawthorne, a letra A, bordada em tecido escarlate e pontilhada com fios dourados, quando pregada ao vestido da personagem Hester, marca nela a infâmia, posicionando-a como pecadora para o olhar do outro. Condenada a usá-la até o fim de seus dias, a letra, com o tempo, passa a fazer parte de seu corpo, presentificando seu crime, tornando-o visível. Sem a letra, seu corpo fazia-a ocupar outra posição: Era jovem, esbelta e muito elegante. Seu cabelo basto e negro brilhava ao sol e seu rosto, além de formoso e suave, impressionava pela curva altiva das sombrancelhas e dos misteriosos olhos negros. Suas maneiras gentis caracterizavam-se, de acordo com a época, por uma compostura e dignidade (...)” (Hawthorne, 1850, p.15)
Mas com ela, Hester ganha uma nova marca que a identifica. A letra desloca-a para outra posição discursiva, outro lugar na comunidade e determina os dizeres a ela, sobre ela. Antes, eram sua estatura, seu peso, seus cabelos, olhos e gestos, em seu conjunto, que a posicionavam como digna. Hester é excluída e punida socialmente pelo sentido da letra que ela incorpora e que permite ao outro posicioná-la no discurso. Neste texto, trato também de marcas no corpo e de sua forma de significação no e pelo discurso. O foco da análise são as marcas que evidenciam a descendência japonesa em brasileiros, seus efeitos de sentido. Pensando que a identificação social, quando da inter-relação pessoal entre sujeitos, é um processo que se relaciona à condição corpórea, ao fato de que somos sujeitos de-em uma corporalidade e que essa corporalidade pode ser apreendida pelo olhar mesmo antes que se fale, considero que o corpo determina sentidos, funcionando como condição de produção, ao mesmo tempo em que é determinado, ele próprio, pela memória discursiva e por outras condições de produção na realização de seus gestos2. O corpo é, em muitas disciplinas da área de saúde, tomado como biológico, natural, segmentável, controlável e transparente, mas na perspectiva discursiva, ele se desloca para o lugar da opacidade, porque no discurso, ele é forma material que ganha sentido pelo olhar. Um corpo pode ser bonito, feio, obeso, magro, normal, suspeito, exótico, brasileiro ou japonês, por exemplo, a partir do olhar – um olhar entendido não como capacidade de visão – , mas como gesto de interpretação opticamente possível no discurso. Como aponta Orlandi (1996:12), “os sentidos não 161
são indiferentes à matéria significante” porque sua forma de percepção afeta o gesto de interpretação. O sujeito que fala é sujeito de corporalidade, de uma materialidade significante que se oferece à significação pelo olhar, e isso tem efeitos.
Corpo como forma material O conceito de corpo como forma material, baseado nas considerações de Orlandi (2005:77) e de Hjelmslev (1961:113) de língua como forma material, é o de um corpo que se afasta de uma realidade que poderia ser empiricamente apreensível e biologicamente funcional somente, para ser a materialidade simbólica que funciona na e pela linguagem em seu atravessamento pela história e pela ideologia. A regularidade da forma tem na materialidade a possibilidade da contradição, da não-transparência, porque significada diferentemente na história, interpretada no discurso. Tal qual a língua, essa forma material tem dimensões interconstitutivas: uma dimensão real ou biofísica, que se refere à sua estrutura, aos elementos específicos de sua composição, como as características físico-motoras e suas sintaxes específica3; uma dimensão simbólica, que diz respeito à atribuição de seus sentidos por gestos de interpretação na história e à sua constituição pela-na memória discursiva que possibilita o que considero ser suas formulações (os gestos corporais); e uma dimensão imaginária, pela qual o sujeito tem o sentido de uma unidade identitária. O corpo em sua dimensão real, como também os gestos que ele realiza são, no discurso, materialidades que, como a letra de Hester, são as primeiras a se apresentarem à significação para o outro quando do acontecimento no âmbito do visual. Elas significam no discurso porque na linguagem elas não são só estrutura bio-físico-mecânica, mas materialidades simbólicas. Na dimensão real do corpo do sujeito imigrante japonês e de seu descendente no Brasil, é possível reconhecer traços biofísicos comuns: os cabelos lisos e pretos, o formato do nariz e do rosto, a cor da pele, a altura, e sobretudo os olhos amendoados e geralmente escuros. Para mencionar alguns exemplos de gestos, uma certa forma de andar, outra de balançar a cabeça são também comuns a alguns sujeitos. Essas especificidades estruturais e gestuais, olhadas no discurso, constituem aquilo que permite a identificação social como japonês ou japonesa no Brasil, isto é, a identificação que o olhar pelos discursos de imigração (no Brasil e no Japão) constituíram na história4. Diante desse corpo, se se quer descrevê-lo, palavras como “japonês”, “japonesa”, “japa” ou “oriental”, por exemplo, são quase infalíveis, porque se referem ao todo de suas especificidades físicas. Elas soam como que “esclarecedoras” sobre esse corpo, como mencionou um sujeito em entrevista: Se vejo um japonês ou uma japonesa, só posso me referir a eles assim, para descrever, porque o que mais esclarecedor que isso, em termos de descrição, poderia haver? Não vou dizer: “aquela moça de cabelos pretos lisos”, por exemplo, porque poderia ser qualquer uma. Agora, “japonesa” já diz tudo. 162
Diferentemente, entretanto, de descrições do tipo “louro”, “negro”, “magra” ou “alta”, em que uma das características do corpo é enfocada, a descrição ou nomeação/ apelidamento com uma dessas palavras, ou ainda com o metonímico “Japão”, pode produzir como efeito o posicionamento como estrangeiro, metaforicamente funcionando como não-brasileiro. O “louro” ou o “magro” não deixam se ser brasileiros quando são assim nomeados, mas para “japonês”, essa é uma possibilidade.
A não-coincidência dos olhares e a contradição identitária No apelidamento, na nomeação, que funciona como uma faceta do olhar, não é a situação política de cidadania do sujeito descendente de japoneses que se põe como significativa, mas o corpo. Sua identificação como oriental e/ou japonês é possível pelo corpo real e pelo olhar discursivo que se lhe lança e o posiciona. Mas esse posicionamento pode não coincidir com a forma como o próprio sujeito descendente de japoneses se olha e se posiciona: Eu lembro que quando eu cheguei na escola normalista eu, eu, eu meio que tive uma decisão assim. Falei assim: eu quero ser mais brasileiro que esses caras, porque eu me sinto brasileiro, eu não sou japonês, sou brasileiro, né, sou, eu me sinto brasileiro, não me sinto japonês. Comecei a tentar me integrar, fazer as coisas que eles faziam. Só nunca joguei futebol, mas enfim (risos), nem um sambinha assim é meio difícil.5 Eu sou brasileiro, sempre fui brasileiro. E, só passei a me interessar pelo Japão, primeiro, porque eu não posso renegar a minha origem, por mais que eu diga que sou brasileiro, alguém sempre me dirá que eu sou japonês, eu tenho cara, tenho cara de japonês, tenho nome japonês. Nesse sentido não renego também, mas sou brasileiro por hábitos, costumes, por pensar, por gostos.6
A contradição identitária está entre o eu, que se vê imaginariamente como brasileiro, que crê enunciar do lugar do brasileiro, se posicionando assim (“eu não sou japonês, sou brasileiro”; “Eu sou brasileiro, sempre fui brasileiro”), mas que é olhado/nomeado/posicionado pelo outro como de outro lugar (“alguém sempre me dirá que eu sou japonês”). O que permite esse posicionamento é, sem dúvida, o corpo (“eu tenho cara, tenho cara de japonês”), a forma como ele é olhado no discurso, e não o posicionamento ideológico ou a situação política. Da mesma forma como ele é reconhecido como japonês aqui, no Japão, onde poderia haver a ilusão de que seu corpo seria reconhecido como japonês, ele não o é: Todo brasileiro mesmo descendente de japonês que chega ao Japão é estrangeiro, um gaijin. É um gaijin por vários motivos, os hábitos, a gesticulação, ainda que fale japonês absolutamente sem sotaque, as roupas, os gestos, a forma de rir, a forma de se vestir, a forma de andar o denuncia como um estrangeiro. É diferente dos demais japoneses. Ainda que domine bem a 163
língua. Então nesse sentido, eu era um estrangeiro. Toda parte do japão por onde eu passei, eu era um estrangeiro: “Nós temos aqui um gaijin.”, todos os lugares eram assim. Eu era um gaijin. Gaijin é a palavra pela qual os japoneses designam os que não são japoneses.7 Não sou considerado nem brasileiro nem japonês (no Japão). Todos me chamam de mestiço, mas não sou mestiço. Os brasileiros dizem que sou japonês, os japoneses dizem que sou brasileiro. Meus amigos (japoneses) dizem: “Você não é brasileiro e muito menos japonês.” Aí eu enlouqueço (...). Eu falo: “Mas eu tenho que ser um dos dois.”
A angústia que pode ocorrer para muitos desses sujeitos, que parecem ir em busca de uma solução identitária no Japão, é a de ser um sujeito de identificações sociais que não coincidem com as que ele tem para si mesmo nesses lugares. Se no Brasil ele é identificado como japonês porque o seu corpo o diz japonês para o outro, no Japão, ele é identificado, pelo mesmo corpo, como brasileiro. Mas o que ele talvez deseje é a coincidência de identificações em algum lugar, a possibilidade de ser reconhecido como pertencente a esse lugar. Posicionado aqui como “japonês” e lá como gaijin, que funcionam metaforicamente, ele acaba ocupando sempre a posição do estrangeiro. Como afirma Calligaris (1996:15), o sujeito precisa de uma filiação nacional, um significante nacional que lhe confira a “umtegração” em sua história, que lhe dê o sentido de unidade identitária de lugar, como a filiação familiar lhe dá o seu sobrenome. Segundo Melman (1992:61), esse lugar, além de ser topológico, deve ser topográfico, porque imaginariamente hoje9, a terra, como território em um registro psicanaliticamente materno, relacionada a uma língua materna (e também a uma palavra paterna), tem que poder ser representada topograficamente. Discursivamente, pode-se reconhecer aí um efeito da forma-sujeito-histórica atual, que é a de sujeito-de-direito do capitalismo. Como apontam Haroche (1987) e Orlandi (2005:51), a forma-sujeito-religioso da Idade Média, ao ser subordinada às leis do formalismo jurídico passa a ser individualizada por processos de uma nova forma de sociedade, na qual ele tem direitos e deveres. A terra, nesse sentido, a nação e a filiação que ela promove ao sujeito entram como aquilo que lhe é de direito, que faz parte do que ele necessita para ser individualizado e ter o sentido de uma unidade identitária. Como o termo “japonês” e suas variações funcionam discursivamente em relação ao termo “brasileiro”, que é um reconhecimento político e uma forma de individualização10, seu efeito, no caso dos sujeitos pesquisados, é o de posicionar em um não-lugar11.
Corpo como condição de produção Nesse jogo de significação em que o corpo entra como materialidade simbólica, o dizer e o fazer do sujeito brasileiro reconhecido como japonês fica, muitas vezes, 164
sendo determinado como o dizer e o fazer de um japonês, mesmo que o que ele diga ou faça seja completamente possível para um não-japonês. Em comentários como: “_Essa harmonia na vida, esse respeito ao outro que você sempre fala é bem japonês mesmo.”, ou “Vocês japoneses falam tão baixo, né? Brasileiro já não, fala tudo gritando.”, percebe-se que o corpo determina o sentido num discurso tido como japonês. Outros exemplos desse direcionamento de sentidos pelo corpo, são os seguintes: I(1): _ Você consegue dançar samba! I(2): _ Por que o espanto? I(1): _ Porque você é japonesa! I(3): _Você viu que no Santos tem um jogador japonês, agora? Não sei como ele consegue jogar, mas tá jogando futebol... I(4): _ Oh, you’re Simone? (…) But you’re Asian... Are you really from Brazil?
Nos dois primeiros fragmentos de diálogos acima, a identificação do corpo como de um japonês ou uma japonesa fazem com que os gestos por eles realizados, considerados gestos relacionados a um sentido de brasilidade, sejam considerados inusitados. Ao expressar a I(2) seu espanto por vê-la dançar samba, I(1) esquecese, discursivamente12, que a interlocutora é descendente de japoneses e brasileira, de forma que ela também é constituída pelas possibilidades históricas da memória discursiva de ser brasileira, podendo historicamente dançar samba. Da mesma forma, o jogador de futebol descendente de japoneses, na mesma condição, tem a possibilidade e a capacidade de jogar futebol. Entendendo a memória discursiva como memória de língua(gem), saber discursivo que constitui o sujeito, os gestos corporais (e.g.: formas de andar, de mover os braços, as mãos, balançar a cabeça etc.) são formulações do corpo que, como as formulações na língua, são constituídos por memória discursiva e determinados pelas condições de produção do discurso. Se os descendentes de japoneses são brasileiros, constituídos pela discursividade brasileira, eles certamente podem realizar os mesmos gestos que outros brasileiros não-descendentes de japoneses realizam. Não é uma questão, portanto, de capacidade física, mas de possibilidade histórica para o corpo, como estou considerando neste estudo. No discurso, contudo, a ilusão é a de incapacidade como conseqüência da descendência num corpo estritamente biológico. O comentário de I(4) por sua vez, mostra o espanto em conhecer uma professora de português, brasileira que era descendente de japoneses. Acontecendo numa cidade dos E.U.A., esse diálogo foi o primeiro a ocorrer pessoalmente, já que os contatos anteriores tinham sido por telefone. Sem a menção à descendência nestas ocasiões, o encontro com o corpo causou espanto, porque no imaginário do interlocutor, uma professora brasileira de português não poderia ser descendente de japoneses, o que 165
para ele instaurava até mesmo a dúvida sobre a origem e a competência lingüística da professora. Esses acontecimentos indicam que a descendência japonesa não se encaixa num discurso de brasilidade e na identificação como brasileiro ou brasileira por e nesse discurso, que se constitui, sim, e por outro lado, pelos imaginários relacionados ao futebol e ao samba. E é nesse sentido, por exemplo, e como foi possível apreender nos fragmentos acima, que o corpo do brasileiro descendente de japoneses, ao ser reconhecido como japonês, materializa uma contradição para o outro quando ele joga futebol ou dança samba. Esses gestos que não coincidem com os gestos imaginados possíveis para esse corpo, são gestos olhados como fora de lugar, estranhos a ele.
Corpo e espacialização Se o sujeito é sempre sujeito de corporidade, seu corpo é também sempre corpo no espaço. O corpo significa ao olhar do outro pela sua materialidade e pela sua localização. Como aponta Orlandi (2004:122), os espaços são organizados de forma política. Em diferentes espaços, o corpo significa diferentemente, havendo uma interconstitutividade entre corpo e espaço na identificação do sujeito no discurso, porque cada espaço determina quais corpos podem e devem estar ali, como devem agir e se apresentar. Para Hester, no romace de Hawthorne, além da marca no corpo, sua presença no pelourinho, diante do público viria reafirmar mais uma vez a infâmia, pois naquele lugar, só os pecadores se mostrariam. No Brasil, os corpos de descendentes de japoneses podem ser reconhecidos como japoneses, ao mesmo tempo em que, no Japão, podem ser reconhecidos como brasileiros, porque assim se lhes constituem os discursos sobre pertencimento a um país. O lugar, bem como o corpo e suas marcas, determina posições discursivas. A relação entre o corpo e o espaço é importante na reflexão sobre o funcionamento do corpo no e pelo discurso porque ele também funciona diferentemente em lugares distintos. A análise de gestos de descendentes de japoneses mostrou que, a depender do lugar e das pessoas com que aí se interage, o corpo produz diferentes formulações. Um exemplo é o gesto de cumprimentar as pessoas com o aperto de mão ou com beijos no rosto ou com o abaixar do tronco e da cabeça para a frente, como em uma reverência. Num clube nipo-brasileiro, numa noite de karaokê, foi possível presenciar pessoas se cumprimentando com a reverência (especialmente os mais velhos entre si e os mais jovens ao cumprimentarem os mais velhos), apesar de esse não ser um gesto comum a essas pessoas no cotidiano fora do clube. A regularidade desses gestos, e de tantos outros, no caso da descendência analisada, aponta para a consideração de uma memória discursiva híbrida, de discursividade brasileira e japonesa, que constitui esses sujeitos e possibilita, historicamente, a realização de gestos que os particularizam, identificam tanto como japoneses como 166
brasileiros, a depender de seus interlocutores, do lugar. Como no estudo de Payer (2006), que investigou a relação entre memória discursiva e a língua falada por imigrantes italianos e seus descendentes numa região do Brasil, mostrando que a língua trazia em si marcas da história desses imigrantes e das políticas de língua que os afetaram, também no estudo, ora apresentado, considero que o corpo traz nos seus gestos marcas de uma história de imigração, de políticas e discursos que assim os constituíram. São gestos de e na história desses corpos-sujeitos, determinados por outras condições de produção.
Conclusão O que concluo com essas considerações, até o momento, é que o corpo como materialidade do e no discurso é determinado pelo seu exterior, ao mesmo tempo em que determina sentidos para si mesmo e para seu dizer quando atravessado pelo olhar. O corpo tem sua dimensão real, biofisiologicamente construída, mas seus sentidos são sempre discursivos, políticos, sobretudo, contraditórios, já que ideológicos. Na discussão sobre o real da língua, do sujeito, da história e do discurso e suas materialidades, o corpo pode ser incluído como materialidade que se relaciona ao subjetivo, no sentido de que todo sujeito de linguagem é sujeito também de corporidade, e ao simbólico, já que é material de significação no discurso. O corpo discursivo é o corpo espacializado, falado, olhado, de opacidade e contradição, impossível de ser apreendido discursivamente em uma totalidade lógica, tal qual a língua. Corpo de marcas e gestos que posicionam em lugares de fala e gestos, que cria identificações e determina sentidos.
Referências Bibliográficas CALLIGARIS, C. Hello Brasil! Notas de Um Viajante Europeu Viajando pelo Brasil. São Paulo: Escuta, 1996. 173 p. HAROCHE, C. Fazer dizer, querer dizer. (trad. de Orlandi et. alii.) São Paulo: Hucitec, 1992. 224 p. HAWTHORNE, N. (1850) A letra escarlate. (trad. de I. Mielnik) Clube do Livro, 1949. 183 p. HJELMSLEV, L. (1961) Prolegômenos a uma teoria da linguagem. (Trad. J. T. C. Netto) São Paulo: Perspectiva, 1975. 147 p. LAUNAY, I. “O dom do gesto”. In: GREINER, C.; AMORIM, C.. (orgs.) Leituras do corpo. p. 89-117. São Paulo: Annablume, 2003. 200 p. MELMAN, C. Imigrantes: incidências subjetivas das mudanças de língua e país. São Paulo: Escuta, 1992. 107 p. ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2005. 6ª. Ed. 100 p. ______. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2005b. 2ª. Ed. 218 p. 167
_____. “Textualização do corpo: a escritura de si”. In: Cidade dos Sentidos. Campinas: Pontes, 2004. 159 p. _____. Interpretação: Autoria, Leitura e Efeitos do Trabalho Simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996. 150 p. PAYER, M. O. Memória da língua: imigração e nacionalidade. São Paulo: Escuta, 2006. 229 p. PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. (trad. de E. P. Orlandi et alli.). Campinas: Editora da Unicamp, 1988. 317 p.
Notas 1 Trabalho relacionado à tese de doutorado na área de Lingüística Aplicada, em andamento no Instituto de Estudos da Linguagem – UNICAMP, cujo tema central é a relação entre memória discursiva e o corpo do descendente de japoneses no Brasil. 2 A palavra gesto substitui movimento, neste trabalho, para se referir às formulações físicas do corpo porque expõe melhor o seu caráter simbólico, sua inscrição na e pela linguagem. 3 Launay (2003:115) explica que o corpo fabrica seus modos de articulação de movimentos a partir da percepção do contexto, do espaço e de seu próprio funcionamento respiratório e rítmico. 4 A imigração japonesa no Brasil, que completa 100 anos em 2008 e é relativamente recente, esteve vinculada aos discursos de colonização e de mão-de-obra para a lavoura, no Brasil, e de perspectiva de enriquecimento e retorno para o país natal, no Japão. Os primeiros imigrantes, ao serem sugeridos de emigrar pelo imperador japonês, dadas as condições econômicas do país então, chegavam ao Brasil como súditos que cumpririam uma ordem, tendo o país de imigração como um lugar de passagem. 5 Extraído de entrevista no programa Chegados – Série Japão (Canal Futura e Bossa Nova Produções, 2007). O sujeito é nissei (filho de japoneses, nascido no Brasil). 6 Extraído de entrevista no programa Chegados (idem). 7 Fragmento de entrevista extraído do programa Chegados (op.cit.). 8 Dado de entrevista com um brasileiro que trabalha no Japão fornecida a Jeffrey Lesser e publicada em artigo da Folha de São Paulo, 10/08/2003. 9 O autor se refere à diferença, na Idade Média, na relação entre a língua, a terra e o poder, pois considera que até certo ponto nesse período, a latinidade na Europa prescindia dessa relação. 10 Segundo Orlandi (2005b:106), na reflexão sobre a subjetividade, há dois momentos em que se pode considerar o sujeito como indivíduo. O primeiro é quando ele nasce, e é, portanto, o indivíduo biológico que, ao entrar na linguagem e ser afetado pelo simbólico e pela história, se subjetiva; e o segundo é quando, já sujeito de e na linguagem, atravessado pela ideologia, é individualizado pelos processos de individualização do Estado. 11 Em se tratando do Brasil, mais especificamente, e a partir de sua história de colonização, é relevante lembrar, como apontam Melman e Calligaris (Melman, op.cit.:94-95), pela perspectiva psicanalítica, que o discurso do mestre (cononizador) foi fundante das relações sociais no país. Como colônia de exploração, a ordem era gozar da terra e submeter o outro à sua lei. Esse sentido, para os autores, é o que prevalece quando se observa que a característica dessa sociedade é secretar o outro, excluí-lo como marginal ou reconhecê-lo inimigo, mas nunca semelhante. Não há lugar para o igual, só para o mestre e o que não o é. Nessa relação, o estrangeiro pode representar essas posições e estar sempre à margem de uma filiação nacional. 12 Refiro-me, aqui, ao esquecimento n. 2 (Pêcheux, 1975), que diz respeito à impressão de realidade do pensamento, de naturalidade entre palavra e coisa. 168
• SUBJETIVIDADE E POLÍTICA DE LÍNGUA NO DISCURSO PUBLICITÁRIO PARA O ENSINO DE PORTUGUÊS NO BRASIL Rosane da Conceição Pereira (UNICAMP) A Proposta: sobre leis, livros e linguagem publicitária Este trabalho é parte do Projeto de Pós-Doutorado “Subjetividade contemporânea: a política de língua no discurso publicitário para o ensino de português no Brasil” desenvolvido no Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas, desde agosto de 2007. Tem como tema a produção dos discursos publicitário, pedagógico e jurídico na subjetividade contemporânea, a partir do corpo textual do sujeito-leitor de propagandas em instrumentos lingüísticos de suposta comunicação na cultura. O corpus empírico (superfície lingüística de materiais) é composto de textos (FERREIRA, 2001, p. 22), as unidades de análise em dispersão, como leis, livros e propagandas; para a análise do corpus de arquivo (PÊCHEUX, 1975). Tais enunciados naturalizados como documentos históricos oficiais são pensados como monumentos (FOUCAULT, 1969), instâncias em que há a emergência de outras idéias possíveis, a formular durante a análise. No que se refere à análise da produção dos discursos publicitário, pedagógico e jurídico na subjetividade contemporânea, pretende-se mostrar como a língua portuguesa passa de objeto de ensino e de formação do aluno-cidadão a objeto de consumo no país. Este objetivo será realizado com a análise de anúncios e de tarefas discentes (corpo textual do sujeito-leitor de propagandas, o aluno-cidadão-consumidor), em livros de português e em gramáticas do ensino fundamental (antigas 5ª a 8ª séries do 1º grau) e do ensino médio (antigas 1ª a 3ª séries do 2º grau), editados por volta de 1978 a 2002, os instrumentos lingüísticos (GUIMARÃES; ORLANDI, 1998), materiais criados para assegurar certa ordem do discurso, mas nos quais os sentidos deslizam em detrimento do ideal de comunicação, completude e transparência da linguagem. Esta análise será feita a partir da elaboração de uma regularidade do dizer ressoando em leis sobre a proteção da língua portuguesa e sobre o uso da propaganda em livros didáticos, quanto à textualização do gesto político na lei, incluindo, excluindo, ordenando e organizando o discurso publicitário, no sistema capitalista de consumo (mercado global).
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Os conceitos: subjetividade, política de língua e discurso Segundo Pêcheux (1998, p. 160-216), a subjetividade (modo de ser sujeito) é a inter-relação dos conceitos de identificação (aliança dos sentidos em uma formação discursiva, matriz do que pode/deve ser dito/mostrado), contra-identificação (oposição na mesma formação discursiva) e desidentificação (contradição, deslizamento e construção de outra formação discursiva). De acordo com Orlandi (2001a, p. 99) a subjetividade interessa, discursivamente, pois “permite compreender como a língua acontece no homem”, uma vez que é estruturada no acontecimento discursivo ou que tem lugar no acontecimento significante que é, neste projeto, o discurso publicitário, o texto da mídia para o Sujeito de Mercado, capitalista (PAYER, 2005). Subjetividade é entendida aqui como o deslocamento do “eu” para toda linguagem mesmo que não enunciado conscientemente, uma vez que o sujeito discursivo não é fonte do sentido nem senhor da língua, mas sim descentrado, integrado ao funcionamento do discurso, determinando e sendo determinado pela língua e pela história (FERREIRA, 2001, p. 21). O discurso, o objeto teórico, histórico e ideológico (ORLANDI, 1999, p. 64), na forma do discurso pedagógico (ORLANDI, 2001c, p. 28) é, por sua vez, o dizer institucionalizado e circular, do sentido parafrástico ao polissêmico e vice-versa, assim como pode ser entendido o discurso publicitário (ORLANDI, 2001a, p. 210). O discurso jurídico, também considerado a ressonância de uma instituição e de suas normas como o pedagógico (ORLANDI, 1999, p. 85), diz respeito à questão do real da história e da língua na construção dos saberes, pois acolhe a contradição no discurso político de base para o capitalismo (o marxismo), e margeia outros discursos (publicitário, pedagógico, jornalístico, artístico etc.). O jurídico pode/ deve determinar o que é considerado sério, jogo, piada etc., como argumentos sobre a práxis discursiva nas materialidades linguageira e histórica. Mas, trata-se sempre da passagem do non-sens (irrealizado) para o equívoco (construído, ambíguo), o sentido possível que Pêcheux denomina discursividade (GADET; PÊCHEUX, 2004, p. 8), o “efeito da língua sujeita à falha que se inscreve na história”. Não se tratam de erros no que se refere às propagandas usadas para o ensino de língua, contradições a descartar, mas de formulações discursivas a pensar. É a subjetividade, em meio à proteção da língua pelo discurso jurídico, como acontecimento significante do discurso publicitário em livros de português e em gramáticas, que permite compreender como a língua acontece, constituindo uma política de língua ou política lingüística na América Latina como “processos institucionais, menos evidentes, inscritos de forma implícita nos usos diferenciados (e diferenciadores) da linguagem” (ORLANDI, 1988, p. 7). Política de língua ou política lingüística no Brasil é, conforme Orlandi (2007, p. 7-8), um “corpo simbólico-político”, composto de formas sociais sendo significadas necessariamente 170
por/para sujeitos históricos e simbólicos, no espaço político de seus sentidos (caso do discurso jurídico), de suas formas de existência e experiência (caso dos discursos publicitário e pedagógico). Não se trata de pressupor a existência de línguas e teorias manipuláveis (política das línguas), tampouco de planejamento lingüístico (organização e administração para implementar tais políticas) como estudam muitos pesquisadores americanos (CALVET, 2007, p. 17), pois no Brasil questionase o funcionamento da língua nos embates de poder (CALVET, 2007, p. 7-9;17), tais como uma “língua única” versus “línguas brasileiras” e como uma “virada políticolingüística” (da “colonização de saberes” para a “comunidade de saberes”), nos estudos de muitos pesquisadores europeus (franceses, espanhóis e alemães).
Primeiras análises As propagandas nos livros didáticos mostram os espaços de enunciação (GUIMARÃES, 2002, p. 11-15) de ensino, cidadania e consumo, nos quais o funcionamento da língua consiste na reformulação e atualização dos enunciados da forma do sujeito contemporâneo (PAYER, 2005), de Mercado, do capitalismo, interpelado ideologicamente nas posições de aluno (Figura 1), cidadão (Figuras 2 e 3) e consumidor (Figura 4), durante o período histórico determinado de 1978 a 2005. Figura 1
Figura 2
171
Figura 3
Figura4
Em relação à Posição-Sujeito como Aluno, a propaganda de um aparelho de som da Philips (Figura 1) é usada na tarefa (NICOLA; INFANTE, 1997, p. 203) como apoio às regras da língua portuguesa recorrendo à memória estática (SOUZA, 2000, p. 154) sobre os sentidos esperados do que sejam frases e orações (“1-‘Minha filha?’ e ‘Por quê?’ são frases? São orações? Explique.”; “2-‘Ela não é minha filha’ é uma frase? É uma oração? Explique.”; e “3-Retire do texto exemplos de períodos formados:/a)por uma única oração;/b)por duas orações;/c)por três orações;/d)por quatro orações.”). As demais perguntas remetem à memória alegórica (SOUZA, 2000, p. 155), aos vários sentidos possíveis, à polissemia, quer seja sobre o conflito de gerações como estratégia publicitária de vendas (“4-Você ouviu ou ouve essas frases de seus pais? Na sua opinião, o conflito de gerações deve ser usado como estratégia publicitária?”); quer seja sobre o tema polêmico para a defesa do purismo lingüístico (“5-O que você acha do uso da língua inglesa num anúncio publicitário brasileiro?”). Nenhuma questão é colocada sobre o conteúdo da folha de diário, no topo da qual há uma seta à direita apontando para uma fotografia 3X4, em preto e branco, do suposto pai com fisionomia soturna (“Será que você não tem nenhum/ amigo que seja normal?/Já acabou o dinheiro que eu te dei/na semana passada?/ Minha filha? Ela não é minha filha./Eu não tenho mais filha./Você odeia piano agora, mas um dia/você vai me agradecer./Nunca tenha vergonha de perguntar/nada. Só tome cuidado pra não fazer/perguntas idiotas./Olha o estado em que você deixou sua mãe./Não. Seu pai não fez isso por maldade./Ele estava apenas um pouco fora de 172
si./Se você não parar de chorar eu vou/arrumar um bom motivo para você chorar./ Agora senta aí, fecha a boca e come./Por quê? Porque eu sou seu pai, ora!”). O título da propaganda aludindo ao conflito de gerações (“Frases que você ouviu, ouve ou vai ouvir de seus pais.”) na página esquerda e o texto colorido naquela da direita (“Are you ready for Philips?” ou Você está pronto para Philips?), junto às características do produto e na língua inglesa do fabricante também não são questionados. Quanto à Posição-sujeito como Cidadão, a propaganda da capa da revista especial MERCOSUL (Figura 2) vendida com o Jornal Folha de São Paulo (em 26 de janeiro de 1995) tem esse título apontado como mau exemplo de uso da língua portuguesa na tarefa (NICOLA; INFANTE, 1997, p. 39): “6- Observe a capa da revista ao lado e responda: a grafia da palavra Mercosul obedece aos padrões da língua portuguesa?”. Silencia-se (ORLANDI, 1997) o discurso político-econômico do restante do texto (“ARGENTINA BRASIL PARAGUAI URUGUAI”, “As fronteiras começam a cair”), pois não se questionam nas tarefas quais fronteiras começam a cair (econômicas, políticas, culturais, lingüísticas etc.). Nem mesmo a imagem do globo terrestre estilizado com setas circundando-o assegura a complementação do sentido de globalização político-econômica, inferido pelo recurso à memória estática filiada ao movimento parafrástico dos sentidos (sobre economia, política, cultura, línguas etc.), sem abrir-se à memória alegórica, que instauraria a polissemia, sobre o funcionamento diferente dos sentidos nesses países (de esquerda, de direita, pela música, pelo esporte, pela linguagem etc.). Mas a língua espanhola, por exemplo, sofre a negociação política entre o primeiro-ministro espanhol José Luis Rodríguez Zapatero e o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva no âmbito cultural, supostamente para “reforço dos laços entre o espanhol e o português como idiomas globais” (LUSA, 2007, p. 2), com a venda de produtos e serviços, como livros, turismo etc.; e assim como acontece à língua inglesa nesse âmbito econômico (nas propagandas de nossos livros didáticos), ambas de grande circulação em países da América Latina, no MERCOSUL, instituição supra-estatal de natureza comercial. A propaganda da Fundação S.O.S. Mata Atlântica (Figura 3) é usada na tarefa (CEREJA; MAGALHÃES, 1999, p. 27) como apoio às regras da língua fundamentadas na memória estática ou parafrástica (“3-b: Que função de linguagem predomina nesse enunciado e em todo o anúncio?”, quanto ao título “Preencha os espaços em branco e ajude a manter o verde.”; e “3-c: Em sua opinião, o anúncio é convincente em seus propósitos? Por quê?”). Uma pergunta do texto evoca a memória alegórica ou polissêmica vinculada aos signos verbais (“3-Observe agora o enunciado da parte superior do anúncio./a: Note que intencionalmente é criado um jogo entre as palavras branco e verde, gerando ambigüidade. Explique os sentidos desse enunciado.”). Mas, as demais perguntas continuam evocando a memória estática que pressupõe a complementação entre os sentidos das cores da imagem e da bandeira brasileira (“2No centro do anúncio, está representada a bandeira brasileira./a: O que representa 173
a cor verde de nossa bandeira?/b: Logo, no anúncio, o que representa o branco, que ocupa o lugar do verde?”). Silenciam-se (ORLANDI, 1997) outras questões sobre o que significa aceitar a solicitação na argumentação da propaganda da Fundação S.O.S. Mata Atlântica (“Ajude a manter os 7% de Mata Atlântica que ainda restam no País e tenha acesso aos acervos da Fundação, além de obter descontos em cursos, seminários e programas ecoturísticos. Filie-se ainda hoje e faça um bom negócio para a manutenção da qualidade de vida.”); e sobre os efeitos de sentidos das implicações comerciais em voga (acesso aos acervos; descontos em cursos, seminários e programas ecoturísticos; bom negócio) assimilados à “preservação” do meio ambiente (ecoturismo, qualidade de vida). Sobre a Posição-sujeito Consumidor, a propaganda dos cadernos Tilibra (Figura 4) não está associada a nenhuma tarefa (NICOLA; INFANTE, 1997, p. 210), mas serve para ilustrar a norma culta (“A forma verbal ajudam não apresenta sujeito indeterminado. Seu sujeito é o pronome eles, oculto ou elíptico, e refere-se aos cadernos Tilibra”). Neste comentário, a memória estática ou parafrástica possibilita a identificação do ensino (sobre o sujeito oculto) ao consumo (sobre os cadernos Tilibra). Já o título e o subtítulo do anúncio (“Cadernos Tilibra. Ajudam você a conquistar tudo o que quer na vida.”), bem como a imagem do conversível vermelho com a espiral de um caderno na lateral esquerda remetem à memória alegórica, na qual a polissemia diz respeito aos sentidos de indeterminação e sucesso (PAYER, 2005) presentes no subtítulo (“conquistar tudo o que quer na vida”). A expressão “conquistar tudo” não identifica nenhum cidadão específico (local, localizável), mas possibilita que o sujeito-aluno-cidadão-consumidor de qualquer país se veja no banco do motorista do conversível (sonho de consumo global) conquistado ao que tudo indica pelo ensino. Também é possível dizer que o ícone do carro ao centro parece também flutuar acima do breve texto como sugere a composição de uma página de Internet, cuja linguagem (estilizada, breve e simplificadora) parece intervir nesta propaganda impressa. O objetivo principal deste projeto é, então, estudar a textualização do político (ZOPPI-FONTANA, 2005, p. 56), o “corpo simbólico-político” da língua portuguesa significado por/pelo sujeito aluno, cidadão brasileiro e consumidor global (histórico e simbólico), no espaço político dos sentidos regulados pelo discurso jurídico e pedagógico circulando na forma de experiência contemporânea do discurso publicitário nos livros didáticos. Para essa finalidade serão analisados três projetos de lei (o “Projeto de Lei brasileiro para Proteger a língua”, nº. 1.676, de 1999, do Dep. Aldo Rebelo; o Proj. de Lei nº. 65, de 2000 da Dep. Jussara Cony; e o Proj. de Lei nº. 5.136, de 2005, do Dep. Humberto Michiles, sobre o Artigo 79 que trata do uso de propagandas em publicações na Lei nº. 8.069); uma Lei (nº. 8.069, de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, assinada pelo ex-presidente Collor de Mello); e uma Resolução (nº. 038, de 2003, do Dep. Cristovam Buarque, sobre o uso do livro 174
simbólico), no espaço político dos sentidos regulados pelo discurso jurídico e pedagógico circulando na forma de experiência contemporânea do discurso publicitário nos livros didáticos. Para essa finalidade serão analisados três projetos de lei (o “Projeto de Lei brasileiro para Proteger a língua”, nº. 1.676, de 1999, do Dep. Aldo Rebelo; o Proj. de Lei nº. 65, de 2000 da Dep. Jussara Cony; e o Proj. de Lei nº. 5.136, de 2005, do Dep. Humberto Michiles, sobre o Artigo 79 que trata do uso de didático no ensino-aprendizagem, participação do 8.069, professor na oescolha propagandas em publicações na Lei nº.a8.069); uma Lei (nº. de 1990, Estatuto deste da Criança e do Adolescente, assinada pelo ex-presidente Collor de Mello); e uma gratuidade no ensino médio). Resolução (nº. 038, de 2003, do Dep. Cristovam Buarque, sobre o uso do livro didático no ensino-aprendizagem, a participação do professor na escolha deste e a gratuidade no ensino médio). DISCURSO JURÍDICO “Dispõe sobre a promoção, a proteção, a defesa e o uso da língua P Nº. 1.676, portuguesa e dá outras providências. (...) Art. 2° - Ao Poder Público, r de 15 de o setembro de com a colaboração da comunidade, no intuito de promover, proteger e defender a língua portuguesa, incumbe: (...) VI – atualizar, com j 1999. base em parecer da Academia Brasileira de Letras, as normas do e t Formulário Ortográfico, com vistas ao aportuguesamento e à inclusão de vocábulos de origem estrangeira no Vocabulário o Ortográfico da Língua Portuguesa. s § 1° . Os meios de comunicação de massa e as instituições de d ensino deverão, na forma desta lei, participar ativamente da e realização prática dos objetivos listados nos incisos anteriores. § 2° . À Academia Brasileira de Letras incumbe, por tradição, o L papel de guardiã dos elementos constitutivos da língua portuguesa usada no Brasil...”. AUTOR: Dep. Aldo Rebelo. e i Nº. 65, de “Dispõe sobre a promoção, a proteção, a defesa e o uso da língua 29 de março portuguesa e dá outras providências. (...) Art. 2º- Ao Poder Público, de 2000. com a colaboração da comunidade, no intuito de proteger, defender e promover a língua portuguesa, no Estado do Rio Grande do Sul, incumbe: (...) V- apoiar e incentivar a participação do País e do Estado na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (retirada do item VI) Parágrafo único- Os meios de comunicação de massa e as instituições de ensino, no Estado do Rio Grande do Sul, deverão, na forma desta lei, participar ativamente da realização prática dos objetivos listados nos incisos anteriores...” (retirada do § 2). AUTORA: Dep. Jussara Cony. “Acrescenta parágrafo único ao art. 79 da Lei nº 8.069, de 13 de julho Nº. 5.136, de 2005. de 1990. “O presente projeto de autoria da Deputada Selma Schons acrescenta parágrafo único ao art. 79 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 para vedar a propaganda comercial, sob
L Nº. 8.069, e de 13 de i julho de 1990. R Nº. 038, de e 15 de s outubro de o 2003. l u ç ã o
qualquer forma, em livros didáticos...”. RELATOR: Dep. Humberto Michiles. “Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, e dá outras providências...” — o Artigo 79 trata do uso de propagandas em publicações. AUTOR: Fernando Collor de Mello (Presidente da República). “O PRESIDENTE DO CONSELHO DELIBERATIVO DO FUNDO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO – FNDE, no uso de suas atribuições legais que lhe são conferidas pelo Art. 12, Capítulo IV, do Anexo I do Decreto nº 4.626, de 21 de março de 2003, e, CONSIDERANDO os propósitos de progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio preconizados no Art. 208, Inciso II, da Constituição Federal e emanados da Lei de Diretrizes e Bases da Educação; CONSIDERANDO ser o livro didático um recurso básico para o aluno, no processo ensino-aprendizagem; CONSIDERANDO a importância da participação do professor no processo de escolha do livro 175didático a ser utilizado em sala de aula, RESOLVE ‘AD REFERENDUM’...” — trata do uso do livro didático no ensino-aprendizagem, a participação do professor na escolha deste e a gratuidade no ensino médio. AUTOR: Cristovam
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qualquer forma, em livros didáticos...”. RELATOR: Dep. Humberto Michiles. “Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, e dá outras L Nº. 8.069, providências...” — o Artigo 79 trata do uso de propagandas em e de 13 de publicações. i julho de 1990. AUTOR: Fernando Collor de Mello (Presidente da República). “O PRESIDENTE DO CONSELHO DELIBERATIVO DO FUNDO R Nº. 038, de NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO – FNDE, e 15 de no uso de suas atribuições legais que lhe são conferidas pelo Art. 12, s outubro de Capítulo IV, do Anexo I do Decreto nº 4.626, de 21 de março de 2003, o 2003. e, l CONSIDERANDO os propósitos de progressiva extensão da u obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio preconizados no Art. ç 208, Inciso II, da Constituição Federal e emanados da Lei de ã Diretrizes e Bases da Educação; o CONSIDERANDO ser o livro didático um recurso básico para o aluno, no processo ensino-aprendizagem; CONSIDERANDO a importância da participação do professor no processo de escolha do livro didático a ser utilizado em sala de aula, RESOLVE ‘AD REFERENDUM’...” — trata do uso do livro didático no ensino-aprendizagem, a participação do professor na escolha deste e a gratuidade no ensino médio. AUTOR: Cristovam Buarque (Presidente do FNDE). Os projetos lei Dep. do Dep. Rebelo ee da da Dep. supõem um sujeito-leitor Os projetos de leidedo Rebelo Dep.Cony Cony supõem um sujeito-leitor identificado com a posição-sujeito aluno (“a comunidade”), pois se dirigem ao “Poder identificado com a posição-sujeito aluno (“a comunidade”), pois se dirigem ao Público, com a colaboração da comunidade, no intuito de promover, proteger e defender a língua portuguesa” 2º). No entanto, a deputada circunscreve incumbência proteger “Poder Público, com a(Art. colaboração da comunidade, no intuitoesta de promover, sobre a língua “noportuguesa” Estado do Rio(Art. Grande Sul”, em uma movimento contrae defender a língua 2º).doNo entanto, deputada de circunscreve esta identificação que opõe o sujeito-leitor do Brasil como um todo à posição-sujeito de incumbência sobre a língua “no Estado do Rio Grande do Sul”, em um movimento Estado (cidadão). O mesmo acontece no item V (“Os meios de comunicação de massa e de as contra-identificação que opõe o Grande sujeito-leitor do Brasil como instituições de ensino, no Estado do Rio do Sul, deverão, na forma destaum lei, todo à participar ativamente da (cidadão). realização prática dos objetivos incisosmeios de posição-sujeito de Estado O mesmo acontecelistados no itemnosV (“Os anteriores...”), como “Parágrafo único”, pelo qual o sujeito-leitor aluno (na seqüência comunicação de massa e as instituições ensino, no Estado do Rio Grande do Sul, discursiva sobre as “instituições de ensino”)de relaciona-se à forma-sujeito de Mercado, deverão, na forma desta lei, participar ativamente da realização prática dos objetivos no âmbito dos meios de comunicação. É possível dizer que há no projeto da deputada um movimento de desidentificação (uma contradição) entre o sujeito-leitor e a posiçãolistados nos incisos anteriores...”), como “Parágrafo único”, pelo qual o sujeitosujeito cidadão (brasileiro cuja língua deve ser submetida à ABL e/ou pertencente a um leitor aluno (na seqüência discursiva sobre as “instituições de ensino”) relacionaEstado em que isso não é dito no texto da lei), com a retirada do item VI e do § 2º do se àprojeto forma-sujeito de Mercado, no âmbito meios comunicação. É possível do Dep. Rebelo. Esta contradição dizdos respeito ao de silenciamento do poder conferido à Academia Brasileira de Letras no projeto da deputada, tanto na seqüência dizer que há no projeto da deputada um movimento de desidentificação (uma discursiva sobre a atualização das “normas do Formulário Ortográfico, com vistas ao contradição) entre o sujeito-leitor e a posição-sujeito cidadão (brasileiro cuja língua aportuguesamento e à inclusão de vocábulos de origem estrangeira no Vocabulário deveOrtográfico ser submetida à ABL e/ou pertencente a um Estado emsobre que “o isso nãodeé dito no da Língua Portuguesa”, quanto na seqüência discursiva papel guardiã dos elementos constitutivos da língua portuguesa usada no Brasil...” relativo à texto da lei), com a retirada do item VI e do § 2º do projeto do Dep. Rebelo. Esta ABL (e não a um Estado). Um dos efeitos de sentidos da “participação do País e do contradição diz respeito ao silenciamento do poder conferido à Academia Brasileira Estado na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa” (nos dois projetos) é a de Letras no projeto tanto na sobre a atualização pressuposição de quedaodeputada, aportuguesamento e aseqüência inclusão dediscursiva termos estrangeiros em por Formulário exemplo, é possível nos meioscom de comunicação e nas escolas, se das propagandas, “normas do Ortográfico, vistas ao aportuguesamento e à submetidos à ABL e/ou a um Estado. Mas a suposta aceitação do “uso de propagandas inclusão de vocábulos de origem estrangeira no Vocabulário Ortográfico da Língua em publicações” (Art. 79 do ex-presidente Collor de Mello, no Estatuto da Criança e do
Portuguesa”, quanto na seqüência discursiva sobre “o papel de guardiã dos elementos constitutivos da língua portuguesa usada no Brasil...” relativo à ABL (e não a um 176
Estado). Um dos efeitos de sentidos da “participação do País e do Estado na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa” (nos dois projetos) é a pressuposição de que o aportuguesamento e a inclusão de termos estrangeiros em propagandas, por exemplo, é possível nos meios de comunicação e nas escolas, se submetidos à ABL e/ou a um Estado. Mas a suposta aceitação do “uso de propagandas em publicações” (Art. 79 do ex-presidente Collor de Mello, no Estatuto da Criança e do Adolescente) não é um sentido que se mantém estável, quer para defensores do purismo lingüístico, quer para os críticos às finalidades comerciais da publicidade (“para vedar a propaganda comercial, sob qualquer forma, em livros didáticos”, no projeto do Dep. Michiles). Mesmo “a participação do professor na escolha” do livro didático (resolução 038 do presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, Cristovam Buarque) é relativa ao que é disponibilizado pelos órgãos de Estado, na ordem do sujeito contemporâneo de Mercado, para o qual a “liberdade” de consumo é a máxima do sucesso. O efeito contraditório mantém-se quanto à “gratuidade no ensino médio” (na mesma resolução), pois o sujeito-aluno, usuário dos livros didáticos pode/deve identificar-se aos sentidos de cidadania e de consumo que circulam nas propagandas (Figuras 1 a 4), seja rico ou pobre, sob o risco de insucesso e de anonimato nesse mundo contemporâneo no qual parece óbvio que ser é (ou é como se fosse) ter. Além da abordagem dos tradicionais textos dos autores de boa nota nos livros de português e nas gramáticas dos ensinos fundamental e médio brasileiros, o problema da análise do corpus do trabalho incide no aspecto simbólico do material em termos de relações de poder nos textos jurídicos das legislações a analisar (1990 a 2005). Regularidades possíveis ressoam no uso da publicidade para o ensino de português, com o texto da Constituição, fundamental para o Sujeito de Estado, atualmente submetido ao texto da mídia (publicidade e marketing) que é a máxima do atual Sujeito de Mercado, a ser capacitado para o sucesso ao preço do esgotamento e do seu anonimato, não visibilidade (PAYER, 2005). Importam efeitos de sentidos historicamente determinados no que pode ser dito/mostrado nos livros de português e nas gramáticas de autores como ANDRÉ (um livro), CEREJA & MAGALHÃES (um livro e duas gramáticas), FARACO & MOURA (três livros), e NICOLA & ULISSES (duas gramáticas), editados entre 1978 e 2002.
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visibilidade (PAYER, 2005). Importam efeitos de sentidos historicamente determinados no que pode ser dito/mostrado nos livros de português e nas gramáticas de autores como ANDRÉ (um livro), CEREJA & MAGALHÃES (um livro e duas gramáticas), FARACO & MOURA (três livros), e NICOLA & ULISSES (duas gramáticas), editados entre 1978 e 2002. DISCURSO PEDAGÓGICO ENSINO DISCURSO FUNDAMENTAL (F) E PUBLICITÁ ENSINO MÉDIO (M) RIO 3 L ANDRÉ, Hildebrando Afonso de. Curso de redação: M i técnicas de redação, produção de textos, temas de redação v dos exames vestibulares. 5ª ed. reform. São Paulo: r Moderna, 1998. o ________. Português: 1200 testes de vestibulares M 0 s resolvidos. 1ª ed. São Paulo: Moderna, 1986 (Ilustrações: Shiro Iwakura). d CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza M 4 e Analia Cochar. Português: linguagens. Literatura, gramática e redação. Vol. 2. 1ª ed. São Paulo: Atual, P 1990. o FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto de. M 2 r Língua e literatura. Vol. 1. 19ª ed. reform. São Paulo: t Ática, 1987 (Ilustrações: Tony Fernandes). u ________. Comunicação em língua portuguesa: F 18 g primeiro grau; 8ª série. 3ª ed. ref. e ampl. com novos u textos e numerosos exercícios. São Paulo: Ática, 1983 ê (Ilustrações: Jayme Leão). s ________. Português: volume único. 1ª ed. 3ª imp. São M 10 Paulo: Ática, 2002. TOTAL PARCIAL 1 5 37 F M 0 G ANDRÉ, Hildebrando Afonso de. Gramática ilustrada: M r com mais de 600 exercícios propostos. 2ª ed. rev. e aum. a São Paulo: Moderna, 1978 (Ilustrações: Shiro Iwakura). m CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza M 150 á Analia Cochar. Gramática reflexiva: texto, semântica e t interação. 1ª ed. São Paulo: Atual, 1999. i CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza M 100 c Analia Cochar. Gramática: texto, reflexão e uso. 1ª ed. a São Paulo: Atual, 1998. s FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto de. M 0 Gramática: fonética e fonologia; morfologia; sintaxe; estilística. 11ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Ática, 1992 (Edição de Arte: Irami B. Silva e Adelfo M. Suzuki). NICOLA, José de; INFANTE, Ulisses. Gramática F 3 essencial. 2ª ed. São Paulo: Scipione, 1989. ________. Gramática essencial. 11ª ed. rev. ampl. São F 43 Paulo: Scipione, 1997 (Ilustrações: Jinnie A. Pak e Adelmo Naccari). TOTAL PARCIAL 2 4 196 F M TOTAL GERAL 3 9 333 F M O corpo dos textos (jurídicos, pedagógicos e publicitários), bem como as 178 formulações do sujeito-leitor (ORLANDI, 2003, p. 8) para a escola, e entre ela e o mundo (determinação histórica e social), materializam-se nas possíveis respostas do sujeito dividido (aluno), que não é a fonte do sentido nem domina o dizer, mas que,
O corpo dos textos (jurídicos, pedagógicos e publicitários), bem como as formulações do sujeito-leitor (ORLANDI, 2003, p. 8) para a escola, e entre ela e o mundo (determinação histórica e social), materializam-se nas possíveis respostas do sujeito dividido (aluno), que não é a fonte do sentido nem domina o dizer, mas que, segundo Orlandi (1999, p. 39-42) aproxima-se do lugar em que seu interlocutor (Estado e Mercado) pode ouví-lo. Esse mecanismo da antecipação ao sentido que palavras ou imagens podem produzir regula a argumentação possível entre ambos (a escuta que o aluno-leitor faz do Estado-Mercado), em vista de um efeito de sentido sobre o interlocutor como se fosse um cúmplice (público-alvo, aluno, cidadão, consumidor de produtos e da própria língua). O próprio corpo do sujeito pode ser afetado pelos signos vistos e lidos (TUCHERMAN, 1995, p. 9-10), em termos de comportamentos, formas de falar, vestir, alimentar, trabalhar, pensar etc.
A hipótese principal é que os exemplos regulamentados de propagandas (cada vez mais freqüentes, quanto mais o tempo passa) afetam a ordenação/organização dos textos literários tradicionais (corpo do texto), sobretudo nas gramáticas (2º gráfico). Privilegia-se a brevidade do texto e o impacto visual das imagens, elementos presentes na publicidade e ausentes no texto literário desacompanhado de ilustrações, como nas Figuras 1 a 4 analisadas. A justificativa para a proposta é, assim, a explanação de questões pertinentes para o projeto nas áreas de Lingüística, Letras, Artes e Comunicação Social. Trata-se de uma análise do material, em que as legislações (três Projetos de Lei, uma Lei e uma Resolução, elaborados entre 1990 e 2005) e em que os instrumentos lingüísticos (cinco livros de português e quatro gramáticas, editados por volta de 1978 a 2002), podem/devem possibilitar a apreensão da produção de funcionamentos do sujeito-leitor (ORLANDI, 2003) contemporâneo, um corpo textual (ORLANDI, 2001a) dividido e afetado pelas idéias de virtualização e de rede de sentidos circulando na mídia eletrônica que afeta a publicidade impressa nos livros. Os sujeitos contemporâneos buscam ler cada vez mais brevemente os textos 179
e o mundo, bem como lêem imagens (PAYER, 2005), pois os corpos dos textos (leis, propagandas e livros didáticos) materializam modos de produção de corpos de outra natureza (aluno, brasileiro, consumidor), cuja visão é o ponto cego do princípio do saber, pois ser é ter estudo, cidadania e “liberdade” para comprar. Os discursos jurídico e publicitário dão a ver nos corpos textuais das propagandas dos instrumentos lingüísticos, a cidadania e o consumo inclusive da língua, que afetam os corpos dos alunos, a sua visão global de mundo, justificada pela visão “global” do mundo contemporâneo, extremamente excludente das visões diferentes e singulares, de resistência, por uma liberdade de não consumir, de criar moradias, vestimentas, alimentos, transportes, energia etc. com materiais reaproveitados, “restos” do mundo globalizado. Conclusão primeira A visão textualizada do poder (Estado e Mercado) nos livros didáticos pode se filiar à virtual e ramificada da mídia ou resistir-lhe na análise dos signos verbais e não verbais na publicidade. Muitas propagandas são usadas nos livros didáticos como maus exemplos normativos, outras como apoio às regras da língua portuguesa, outras como indutoras do consumo de produtos desnecessários, com a questão da cidadania evidenciada ou não, como tema para a defesa do purismo lingüístico etc. O modo de ser sujeito-leitor constitui a sua posição-sujeito (sujeito da enunciação, social e ideológico, aluno, cidadão e consumidor) e a sua forma-sujeito (sujeito do discurso, histórico e inconsciente, sujeito do capitalismo), que podem ser analisadas nas seqüências discursivas das legislações, dos livros didáticos e das propagandas. Restam investigar, no decorrer da análise do discurso publicitário proposta neste projeto, os modos de produção possíveis da subjetividade contemporânea, no que diz respeito às filiações de sentidos e às resistências dos sujeitos-leitores de propagandas regulamentadas em livros de português e em gramáticas no Brasil. Referências ANDRÉ, H. A. de. Curso de redação: técnicas de redação, produção de textos, temas de redação dos exames vestibulares. São Paulo: Moderna, 1998, p. 289-291. ________. Gramática ilustrada: com mais de 600 exercícios propostos. São Paulo: Moderna, 1978, p. 50-51. ________. Português: 1200 testes de vestibulares resolvidos. São Paulo: Moderna, 1986, capa. CALVET, Louis-Jean. As políticas lingüísticas. São Paulo: Parábola Editorial: IPOL, 2007. CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Analia Cochar. Gramática 180
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UMA LÍNGUA NO LUGAR DO UM: EFEITOS REAIS DE UMA NOMEAÇÃO
Anne Francialy da Costa Araújo (SEUNE) 1. Introdução Esta comunicação, em grande parte inserta em nosso trabalho de doutoramento, intitulado por Sujeito(s) ao Diretório1: uma contribuição discursiva ao estudo da língua e identidade nacional (ARAÚJO, 2006), expõe uma tentativa de dar continuidade a algumas das questões que, no Doutorado2, só nos foi possível indicar. Trouxemos para este III SEAD uma reflexão que parte da análise que Pêcheux (1997) faz em Semântica e Discurso sobre o nome próprio, tratando-o como uma “evidência suspeita”, para pensarmos sobre que língua faz Um na nomeação do idioma do Brasil. A partir da análise da assunção de um significante no lugar do Um, por meio da intervenção da lei do Estado, procuramos ampliar nossas elaborações sobre o real, por meio de uma articulação, ainda claudicante3, entre conceitos de Pêcheux e Lacan.
2. Quem és? Uma resposta em Pêcheux e Lacan Pêcheux (1997, p.102, grifo no original), em Semântica e Discurso, afirma que “[...] o nome próprio (sobrenome) é identificado administrativamente, por referência à filiação (legítima ou natural); e seu caráter propriamente inalienável faz com que toda mudança de nome seja assunto de discurso legal.” Em trabalho (ARAÚJO, 2007) filiado à perspectiva do projeto de História das Idéias Lingüísticas, consideramos a questão em torno da nomeação do idioma no Brasil, relacionando-a a essa discussão de Pêcheux (1997) sobre o nome próprio. Em sua análise, Pêcheux (1997, p. 102) cita uma expressão, mais tarde por ele retomada, qual seja a de uma “evidência suspeita”. Essa suspeição é mesmo uma “evidência do sujeito”, o único que poderia, respondendo ao quem és?, dizer: sou eu. Tal evidência ocultaria, ainda segundo Pêcheux (1997, p.155), a “evidência da identidade”, velando que esta, por sua vez, é resultado “da identificação-interpelação do sujeito, cuja origem estranha é, contudo, ‘estranhamente familiar’”. Lendo essas assertivas de Pêcheux (1997), entendemos como marcante a influência de duas reflexões da Psicanálise. Em primeiro lugar, o que Freud (1919, apud ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 382, grifos no original) denomina por Unheimliche, ou seja, “[...] a impressão assustadora que ‘se liga às coisas conhecidas há muito tempo e familiares desde sempre’”. Em sua análise, Pêcheux (1997) condiciona a 183
“identificação-interpelação do sujeito” a uma origem “estranhamente familiar”. Para vislumbrarmos a presença de outra influência psicanalítica nessas elaborações de Pêcheux (1997), retomemos uma afirmação lacaniana sobre o sujeito e o desejo, qual seja a de que: “[...] o desejo do homem encontra seu sentido no desejo do outro, não tanto porque o outro detenha as chaves do objeto desejado, mas porque seu primeiro objeto é ser reconhecido pelo outro” (LACAN, 1998c, p.269). Por isso, Lacan (1998a, p.829), citando o romance “O diabo enamorado”4, de Jacques Cazotte, afirmará que “[...] o desejo do homem é o desejo do Outro [...]”. Eis por que a pergunta do Outro, que retorna para o sujeito do lugar de onde ele espera um oráculo, formulada como um “Che vuoi – que quer você?”, é a que melhor conduz ao caminho de seu próprio desejo – caso ele se ponha, graças à habilidade de um parceiro chamado psicanalista, a retomá-la, mesmo sem saber disso muito bem, no sentido de um “Que quer ele de mim” (LACAN, 1998a, p.829, grifos no original).
Na Psicanálise isso vai fazer todo sentido. É por um amor transferencial, o qual o sujeito demanda ao seu analista, que o processo de análise se fundará. Enquanto o analista estiver, para o analisante, vale salientar, no lugar de sujeito-suposto-saber haverá demanda e, conseqüentemente, análise. O trabalho do analista é manter-se nesse lugar sem sê-lo, permitindo o deslizar da cadeia significante e mantendo vivo o desejo. Essas articulações produzem um sentido, devemos ressaltar, singular à Psicanálise. Queremos, aqui, fazê-las ressoar apenas para pensar uma continuação para os questionamentos de Pêcheux (1997, p. 102), relacionando a isso a nomeação de língua nacional. Segundo Pêcheux (1997, p. 156), a “estranheza” expõe o [...] efeito de pré-construído como a modalidade discursiva da discrepância pela qual o indivíduo é interpelado em sujeito... ao mesmo tempo em que é “sempre-já-sujeito”, destacando que essa discrepância (entre a estranheza familiar desse fora situado antes, em outro lugar, independentemente, e o sujeito identificável, responsável, que dá conta de seus atos) funciona “por contradição”[...] (grifos no original).
Em nossa perspectiva, a nomeação dada como resposta ao “quem és?” é proporcionada pelo efeito de identificação a uma filiação que, como dito por Pêcheux (1997), é “inalienável”, intransferível. Dir-se-ia, então, “sou eu, Fulano de Tal” e isso não é “evidente”? No funcionamento da cadeia significante, um significante ascende e ocupa o lugar vazio deixado pelo Um, enunciando um nome, um significante do Nome-do-Pai5, fazendo valer o Outro e a Lei. Para tentar exprimir o que estamos começando a articular6, retomemos o processo de nomeação que resultou na hoje 184
República Federativa do Brasil. Alguns significantes, relata a História, circularam no lugar do Um até que Brasil se fixasse. De acordo com Fausto (2001, p.16-7), no início, As atrações exóticas – índios, papagaios, araras – prevaleceram, a ponto de alguns informantes, particularmente italianos, lhe darem o nome de Terra dos Papagaios. O rei Dom Manuel preferiu chamá-la de Vera Cruz e, logo depois, de Santa Cruz. O nome Brasil começou a aparecer em 1503. Ele tem sido associado à principal riqueza da terra em seus primeiros tempos, o pau-brasil. [...] É curioso lembrar que as “ilhas Brasil” ou algo parecido são uma referência fantasiosa na Europa Medieval.
Sabemos, com Lacan (2003, p.109), que “[...] nomear é antes de tudo algo que tem a ver com uma leitura do traço 1 [...]” e que, como interpreta Dor (1995, p.84), “[...] o sujeito só pode nomear-se à medida que se identifica com este significante puro, que é o nome próprio, ou seja, algo que é da ordem do traço unário”. Veremos que nome próprio, traço unário e identificação estão imbricados no que Lacan (2003, p.109) denomina “o nascimento do sujeito”. Considerando isso e retomando o conceito de Nome-do-Pai como o significante da função paterna, e o processo de nomeação acima citado, articulamos que, em se tratando do nome próprio Brasil, este se funda como Um, relacionado a uma função paterna que não vem do colonizador, mas sim de algo característico da “terra brasilis”, uma madeira. Em sendo assim, poderíamos entender que o nome Brasil é resultado do fracasso da função paterna portuguesa7 que não consegue interditar, como seria esperado de tal função, a relação desse filho com a mãe “terra brasilis”. Há que se pensar, como sugere Souza (1994), o efeito de ser o significante de um produto explorado, paubrasil, o que nos dá nome. Curioso observar, também, com Menezes (1991/1992, p.79-80), [...] a ironia com que nos presenteou a nossa história em relação ao termo que nos identifica como povo. Estranhamente, não se trata de um adjetivo pátrio, à diferença do que ocorre noutras línguas que não nos chamam com tal desprimorosa designação profissional. De fato, o sufixo “eiro” que ele porta designa na verdade o sujeito que exerce um ofício conhecido. Portanto, em bom português, ser brasileiro é como ser pedreiro, porteiro, sapateiro, bodegueiro: um meio de vida.
Pensar esse “ser brasileiro” é um caminho que alguns estudiosos têm seguido, tanto na perspectiva discursiva como psicanalítica. A nosso ver, tratar de questões identitárias, aliás, é um caminho para tratarmos, por exemplo, a resistência do brasileiro em aprender a Língua Portuguesa, relacionando a isso o reconhecimento do fra185
casso da função paterna que precisou, entre outras coisas, de Leis como o Diretório, para nos impingir a Língua Portuguesa como idioma oficial. Ao lado dessa resistência, ou como marca dessa mesma resistência, há situações em que esse pai parece também ser desafiado. Referimo-nos, especialmente, a assunção de Brasil no nome da capital, Brasília; a discursos, comuns nas salas de aula do Brasil, os quais afirmam que a Língua Portuguesa é muito difícil e que, por exemplo, é melhor e mais fácil estudar inglês. Como também, a facilidade para que, principalmente em momentos de vitória ou de euforia coletiva, as massas se sintam à vontade para enunciar: “eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”.
3. Que língua faz Um na nomeação do idioma do Brasil A partir dessas elucubrações, pensemos o questionamento que dá nome a esse item do trabalho: que língua faz Um na nomeação do idioma do Brasil? O conceito de Um é basilar para que entendamos a máxima lacaniana de que o “inconsciente é estruturado como uma linguagem”, enunciado, por exemplo, no seminário “O inconsciente freudiano e o nosso”, de 1964 (LACAN, 1998b, p.25). A estrutura de que Lacan fala é uma cadeia de significantes que funciona por um duplo movimento: a ligação metonímica e a substituição metafórica. Para que essa cadeia como um conjunto consista, o Um ex-siste. Lembrando Freud e seu Totem e tabu, Nasio (1993, p. 63) afirmará: “Os filhos da horda têm que matar o pai primitivo e, solenemente, devorá-lo para ‘consistirem’ como clã. É preciso colocar o Um do lado de fora para continuar juntos, sob a égide dele”. Dessa forma, vemos, com Nasio (1993, p. 3), que o inconsciente funciona segundo uma lógica: “[...] a ex-sistência do Um e a consistência dos outros”. O Um bordeja a cadeia, deixando um lugar vazio, o furo, que é, precisamente “a falta deixada pelo Um que ‘saiu’ para tomar seu lugar no limite na rede”. Esse lugar vazio, o lugar do Um, será ocupado repetidas vezes por significantes metafóricos, garantindo assim a mobilidade da cadeia, de cujo efeito produzir-se-á o sujeito do inconsciente. Daí podermos dizer, com Lacan (1998b), que o sujeito é Um entre significantes. Precisamos, ainda, entender que a cadeia tem uma dinâmica: ela se renova na repetição, mas o que se repete “é a ocupação do lugar do Um”. Deve-se aí considerar, conforme Nasio (1993, p. 58), dois lugares: [...] o lugar do Um, ocupado pelo acontecimento que ocorre – o sintoma, por exemplo – e, depois, um segundo lugar, virtual: o da cadeia em que o acontecimento que antes ocupou o lugar do Um vem agora alinhar-se. Quando ele ocupa o lugar do Um, está sozinho, identificado com o Um; quando se alinha entre os outros na cadeia, é um significante entre outros.
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Decorre disso que o significante que ocupa o lugar do Um irá representar o sujeito para outro significante, representando-se nesse lugar, ao mesmo tempo, como já-Um e será-Um. Tentando articular isso a teoria discursiva de Pêcheux (1997), entendemos ser possível pensar que ser sujeito é ocupar esse lugar do Um esquecido de que é um entre outros e de que os dizeres são efeitos de suas identificações à memória discursiva. Relacionando acontecimento com essa noção de estrutura, retomamos Pêcheux (2002, p. 52) ao enunciar que “[...] os acontecimentos têm e não têm lugar, segundo as construções discursivas nas quais se encontram inscritos os enunciados que sustentam esses objetos e acontecimentos”. Esse tem e não tem lugar, a nosso ver, funcionaria segundo a lógica do significante. O acontecimento ocupa um lugar e, ao fazer isso já não tem mais singularidade, significa na sua relação com o que passou e com o que virá. Dessa forma, o acontecimento em si não teria lugar na cadeia discursiva, mas o que ele significa do sujeito no momento em que ocupa Um lugar. A partir disso é que lemos o que Pêcheux (1997, p.264) assevera quando, citando o Lacan de “A instância da letra no inconsciente”, diz que: [...] o significante toma parte na interpelação-identificação do indivíduo em sujeito: “um significante representa o sujeito por um outro significante”, o que acarreta que o significante não representa nada para o sujeito, mas opera sobre o sujeito fora de toda compreensão; “o sujeito, se ele já pode parecer escravo da linguagem, o seria tanto mais de um discurso – em cujo movimento universal seu lugar já está inscrito desde o seu nascimento – quanto se assim o fosse sob a forma de seu nome próprio”: o “nome próprio” não é uma “propriedade” como os outros, e ele designa o sujeito sem representá-lo (aspas no original).
Assim, retornando à questão do nome próprio, pensamos que este não é, de fato, simples representação do sujeito, é fundante, pois interpela o indivíduo em sujeito que se anuncia como um “sempre-já” (PÊCHEUX, 1997, p. 264). Dessa forma, ao responder ao “quem és?” com um “sou eu, Fulano de Tal”, além da “evidência estranha”, resultado de toda essa constituição inconsciente do sujeito na linguagem, o “Fulano de Tal” é mesmo uma re-inscrição de um “sempre-já” (PÊCHEUX, 1997, p. 176). Articulando isso ao diabólico “che vuoi” e sua leitura psicanalítica, entendemos que quando se responde “sou eu, Fulano de Tal” se está no trilho da Lei, sujeito ao Outro como Nome-do-Pai, inscrito como Um. “Che vuoi” é um apelo do sujeito ao outro, respondendo a uma demanda8 deste. “Quem és?” é um chamado ao sujeito, um chamado para que ele se mostre no lugar do Um, referendado pela filiação, pela identificação à metáfora paterna. O indivíduo interpelado em sujeito terá, então, que recorrer a um estranho “sempre-jálá” para responder à pergunta. Dessa maneira, mesmo “estranhando”, os sujeitos, 187
interpelados a partir da inscrição ideológica e inconsciente que lhe é singular, estão condenados a significar. Como afirmará Orlandi (2002, p.66): “Não se pode dizer senão afetado pelo simbólico, pelo sistema significante. Não há nem sentido nem sujeito se não houver assujeitamento à língua. Em outras palavras: para dizer, o sujeito submete-se à língua. Sem isto, não tem como se subjetivar”.
4. De significantes no lugar do um, um idioma nacional Seguindo o caminho do que se elaborou nessa discussão acerca do nome próprio, voltemos nossa atenção para outra nomeação, a de língua nacional, que originou toda essa análise. Tomando as interrogações de Pêcheux (1997), pensemos outra série de exemplos de nomeação, além do “quem és?” relacionado ao nome próprio. Um lugar é “descoberto”9 e depois de algumas nomeações responde ao “quem és?” com um significante: Brasil. Um país se forma nesse lugar e um país não existe sem seu povo. Os que nele moravam, os índios, passam a dividir forçosamente sua terra com europeus e africanos, inicialmente, e com o tempo, com povos de todo o mundo. Diversidade é a marca desse país. Na História das idéias lingüísticas, como apontamos (ARAÚJO, 2007), o Estado precisou intervir na política lingüística, visando garantir a unidade desse país, dessa nação, na língua. Relacionando o que discutimos no campo da Análise do Discurso ao que faz sentido na Psicanálise – relidos aqui numa outra perspectiva –, pensamos que, no lugar do Um, então, um significante, pela intervenção da lei do Estado, como lugar do Outro, é nomeado como língua nacional. Ocupando esse lugar do Um, o significante da língua nacional perde sua singularidade e passa a ser tomado na relação com o Um que está fora e com todos os significantes que podiam estar naquele lugar. Mas, quem seria esse Um, nessa relação? O que está fora? O que foi negado para deixar que Uma língua nacional ascendesse na cadeia significante e assumisse um lugar na memória histórica de Brasil? Uma resposta, articulada ao que vimos expondo até o momento, é a diversidade lingüística e com ela nossa História de Brasil constituído por/em diversas etnias, línguas e culturas. A história das idéias lingüísticas expõe como diversos significantes se colocaram dispostos a ocupar o lugar do Um. Recordemos alguns, como: (a) “Língua do Príncipe”, (b) Língua Geral, (c) Língua Portuguesa, (d) Língua Brasileira (DIAS, 1996) e (e) Língua Nacional que, conforme indica Guimarães (2000, p. 170) aparecia na Lei de 1827, a qual ordenava o ensino “da gramática da Língua Nacional”. Era preciso que Um se instalasse para garantir a unidade do Todo (nação 188
e língua, como estrutura que comporta a unidade e a dispersão). Forjado pela lei do Estado, como Um, um significante ocupa esse lugar do Um, significando, por exemplo, em nossa última Constituição, Lei Magna do país, o enunciado: “A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil” (BRASIL, 2004). Saliente-se que esse enunciado aparece no Título II – “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, em seu Capítulo III – “Da Nacionalidade”, art. 13. A nosso ver, é inquiridor que isso se estabeleça exatamente relacionado à nacionalidade, como se para nos definirmos pertencentes à nação brasileira e, portanto, denominarmo-nos como brasileiros seja nosso “direito e garantia”, entre outros itens apontados no Título II da Constituição, ter que assumir uma “estranha evidência” e responder ao “Quem somos?” com um, por exemplo, “somos brasileiros e falamos a Língua Portuguesa”. Isso tem conseqüências e relações, a nosso ver, singulares no que se refere à própria formação do sujeito brasileiro e da identidade nacional, temas que discutimos na Tese e ainda nos interrogam. Além disso, é interessante observar que em nossa Constituição Federal essa inscrição da Língua Portuguesa no lugar do Um se dê pela nomeação de um outro termo “idioma oficial” e não como “língua nacional” ou como a “língua oficial da República Federativa do Brasil é a Portuguesa” ou outro significante que poderia ascender aí. Parece mesmo que só idioma, por seu “efeito de idiomaticidade” (DIAS, 1996), poderia garantir a injunção da Língua Portuguesa ao lugar do Um, ainda mais quando é reforçado por “oficial”, que remete à autoridade (Outro), ao contrário de “nacional” que remete muito mais, a nosso ver, a nação, aos outros, a diversidade. De fora, o Um – em nossa construção, a diversidade e tudo o que ela poderia significar – propicia a unidade e a consistência da cadeia simbólica, permitindonos dizer, “estranhando”, “somos brasileiros e falamos português”. Ou seja, o Um excluído possibilita o surgimento do lugar vazio que “idioma oficial” ocupará, mas, de fora, esse Um exerce seus efeitos. (efeitos reais??) Lembrando a citação de Pêcheux (1997, p.300), a partir de Lacan, de que “só há causa daquilo que falha” e considerando, ainda com Pêcheux (1997, p.304), que “não há dominação sem resistência” e “ninguém pode pensar do lugar de quem quer que seja”, na língua nada é sempre evidente.
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Notas 1 Documento, com força de lei colonial, vigorou de 1757 a 1798. Na época de sua implementação, os habitantes do Brasil Colonial conviviam com uma situação lingüística bastante diversa. Como na Babel bíblica, misturavam-se: a língua geral, várias línguas indígenas, a Língua Portuguesa e a Língua Portuguesa do Brasil, entre outras. O Diretório interveio sobre o uso da língua geral, apagando outras línguas e institucionalizando o ensino da Língua Portuguesa no Brasil. 2 Na Tese, tomamos a interpretação do Diretório dos Índios e de suas inscrições na História das idéias lingüísticas do Brasil como motor para pensarmos os conceitos de língua (nacional e materna), idioma, identificação, identidade e sujeito. 3 Tomamos aqui o sentido figurado de “claudicar” para expressar, além do caráter inicial dessa nossa perspectiva de análise, nossa consciência de estarmos pisando em terreno movediço, posto que o conceito de real em análise de discurso parece, cada vez mais, provocar discussões, chegando até mesmo a multiplicar-se em “reais”. Além disso, deve-se observar que a articulação, a qual buscamos, de conceitos psicanalíticos com a teoria da análise de discurso também é motivo de questionamento para alguns. 4 Neste romance, Cazotte narra a história de Álvaro que, atendendo a um desafio de amigos, dirigir-se-á a morada de belzebu, com a intenção de matá-lo. Ao chegar ao portal, chama-o e ouve de volta um tenebroso “Che vuoi?”, (“que queres?”). O diabo se enamora por Álvaro que, apesar de aterrorizado pelo som que ouve e pela figura que se mostra, ordena que este o sirva como um escravo. O diabo fisgado pela coragem do rapaz procura realizar-lhe todos os desejos e passa a se mostrar para ele na forma da bela Biondetta. Os dois vivem um romance que é destruído quando a mãe de Álvaro lhe anuncia a escolha de uma mulher para ser sua esposa e Biondetta, enciumada, exige que ele lhe declare amor dizendo: “Meu caro Belzebuth, adorote!”. Ao fazer este pedido Biondetta se mostra com a mesma face de dromedário que, no início do romance, responde ao chamado de Álvaro com o “Che vuoi?”. Este, com muito medo se esconde embaixo da cama e adormece, sendo acordado por um serviçal que o chama para ir ao encontro da pretendente. O romance se encerra com Álvaro encontrando sua mãe e a pretendente por ela escolhida. 5 “Termo criado por Jacques Lacan em 1953 e conceituado em 1956, para designar o significante da função paterna” (ROUDINESCO e PLON, 1998, p.541-2). Saliente-se que estamos falando de uma função que “não é outra coisa senão o exercício de uma nomeação que permite à criança adquirir sua identidade”. Por se tratar de uma função não é necessária a presença de um pai, um homem e sua figura física, o que importa é a inscrição significante que essa função paterna terá para cada sujeito. Como bem aponta Miller (2005), “o Pai não tem Nome Próprio. Não é uma figura, é uma função. O Pai tem tantos nomes quantos suportes têm a função. Sua função? 191
A função religiosa por excelência, a de ligar. O quê? O significante e o significado, a Lei e o desejo, o pensamento e o corpo. Em suma, o simbólico e o imaginário.” 6 Referimo-nos, aqui, ao começo de uma articulação que se descortina a partir do que estamos discutindo sobre o Diretório e sua relação com a história das idéias lingüísticas no Brasil e o que daí pode resultar de reflexões sobre a constituição do sujeito brasileiro falante de língua portuguesa. Por isso, queremos deixar demarcado que algumas de nossas observações sobre a relação língua nacional/materna/ oficial, língua portuguesa/ identificação e sujeito ainda são ensaios. 7 Em nossa hipótese, esse fracasso está relacionado não apenas à nomeação definitiva da Colônia, mas também, entre outros aspectos, na inscrição da língua e cultura portuguesas que são até hoje motivo, inclusive, de piada entre os brasileiros. E a piada, sabemos, não está imune aos efeitos da língua e do inconsciente. 8 “Na terminologia lacaniana, a necessidade, de natureza biológica, satisfaz-se com um objeto real (o alimento), ao passo que o desejo (Begierde inconsciente) nasce da distância entre a demanda e a necessidade. Ele incide sobre a fantasia, isto é, sobre um outro imaginário. Portanto, é desejo do desejo do outro, na medida em que busca ser reconhecido em caráter absoluto por ele [...]” (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 147). O final do “diabo enamorado” de Cazotte é uma representação disto. 9 As aspas indicam a forma como entendemos a “descoberta” do Brasil, pois já se sabia, na Europa, da existência de terras por estes lados. 1500, nesse sentido, pode ter sido apenas o momento ideal para que o acontecimento se desse. Além disso, “apenas haveria descoberta do ponto de vista da ignorância européia, nos dirá um historiador português, ciente da visão de mão única embutida na expressão descobrimento. Assim, descobrir só tem sentido do ponto de vista de quem não sabe, não conhece ou nunca viu – descobre quem está fora, do exterior. As terras, o mar e as gentes que virão um dia a ser chamada de Brasil, lá estavam, independentemente da ciência ou da ignorância dos europeus” (SILVA, 1990, p.34, grifo no original).
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DA (IM)POSSÍVEL DEFINIÇÃO DE LÍNGUA NO DISCURSO DO SUJEITO PESQUISADOR DA LINGUAGEM
Marluza Terezinha da Rosa (UFSM) As palavras sempre faltam... (Jean-Claude Milner) Palavras iniciais O processo de escrita deste texto decorre de nosso interesse não somente em compreender o funcionamento da língua no discurso do sujeito pesquisador da linguagem, mas também em refletir sobre uma questão que, já há algum tempo, causa-nos desconforto em nossa pesquisa sobre a noção de língua: a problemática da definição1. Este estudo é, pois, uma conseqüência de nossa inquietação quanto à forma por meio da qual a noção de língua é definida por teóricos, que se filiam a uma perspectiva materialista de língua(gem)2. O incômodo de que falamos está exatamente no fato de que, em tal perspectiva, a língua é abordada como constituída pela incompletude, por pontos de impossível (cf. PÊCHEUX, 1990). Perguntamo-nos, então, como definir – gesto que teria como efeito um fechamento, uma saturação de sentidos – a língua, sendo esta uma materialidade passível de falha, de equívoco. Com esse intuito, é que procuraremos observar, no discurso do sujeito pesquisador da linguagem, constituído (o discurso) a partir de sua (do sujeito) posição teóricoinstitucional, de que modo os dizeres ou formulações buscam dar conta de uma possível estabilização dos sentidos. Em outras palavras, que estratégias discursivas são utilizadas (e de que forma) na tentativa de sanar essas zonas de incompletude. Por outro lado, objetivamos entender também como a própria definição se abre ao equívoco, marcando as impossibilidades do dizer. Entretanto, antes de adentrarmos nessa reflexão, gostaríamos de acentuar que falamos aqui em processo de escrita, pois é assim que a concebemos, não como o ato de produzir um texto, mas como um gesto de (re)escrita e (re)leitura. Um fazer que, como processo, apresenta-se incompleto. Assim, o que pontuamos aqui são mais questões do que respostas, mais reflexões do que resultados, mais processo do que produto.
Sobre a (im)possibilidade do dizer Na busca por um ponto de partida de onde lançar o fio de nosso discurso a propósito da noção de real, trazemos as palavras de Orlandi, ao tratar da incompletude do 193
sujeito. Comenta a autora que “aqueles que são sábios dizem que se deve começar do começo. Mas dificilmente definem o que é ou onde3 é o começo” (ORLANDI, 1988, p. 09). Sentimo-nos um pouco incertos quanto ao lugar por onde começar, pois ao abordar a questão da incompletude da língua, pela língua, entendemos que nosso dizer está permeado pela impossibilidade: impossibilidade de dizer tudo, de controlar os sentidos, de abarcar esse real do qual falamos. Lembramos também a afirmação de Revuz, quando esta coloca que “falar é sempre navegar à procura de si mesmo com o risco de ver sua palavra capturada pelo discurso do Outro” (REVUZ, 2002, p. 220). Nesse processo de dizer e de (se) constituir ao constituir sentidos, começamos, pois, por mobilizar a noção de incompletude. Nosso estudo tange a temática proposta para esta sessão – Real da língua, do sujeito, da história e do discurso – na medida em que leva em consideração não somente o caráter incompleto da língua, mas também a falta constitutiva do sujeito e, conseqüentemente, do processo discursivo, sendo este compreendido como resultante da relação entre sujeito e língua na história. Lembrando que o incompleto é justamente o lugar do possível ou, de acordo com Orlandi (1996, p. 71), “a condição do movimento dos sentidos e dos sujeitos”, tomamos como ponto de ancoragem, em um primeiro momento, a noção de real da língua, tal como desenvolvida por Milner (1987). Ao refletir sobre a não-totalidade e o não-idêntico na língua, Milner trabalha dois conceitos que se relacionam e que são caros ao analista de discurso, o real e o equívoco. A princípio é difícil estabelecer-se fronteiras entre ambos, pois, à proporção que o real irrompe pelo equívoco, o equívoco, em si, marca a presença de um real na língua. Entretanto, nos termos de Milner, “passamos nosso tempo a desconhecer que a língua seja da ordem do real: por exemplo, traduz-se a língua em termos de realidade, situando-a na rede do útil, a título de instrumento...” (MILNER, 1987, p. 19). Ou seja, concebe-se a língua (e o autor se refere à língua como objeto da lingüística) como não-equívoca; como uma forma que consagra o idêntico e que exclui os pontos de impossível que, pelo equívoco, remetem-na ao real. Poderíamos dizer que essa dificuldade em tratar a língua como perpassada por um impossível se deve ao fato de, para o sujeito, existir uma necessidade de representação e, se assim se pode afirmar, de regularização desse real. Nessa direção, observamos que Milner retoma o nó borromeano, por meio do qual Lacan desenvolve os conceitos de imaginário, simbólico e real, ao afirmar que, supondo-se que exista o real, “tudo o que o sujeito, se ele o encontra, demanda, é que de qualquer maneira uma representação seja possível: somente a este preço pelo qual o imaginário o espolia, o sujeito poderá suportar o que, por si mesmo, lhe escapa. Para tanto, há duas condições: que para o sujeito tenha o repetível e que este repetível faça rede” (MILNER, 1987, p. 20). 194
Entendemos que essas considerações nos ajudam a problematizar o próprio estatuto da definição, pois, da mesma forma que imaginariamente a cadeia significante deve representar o real, a definição de língua consiste também em uma demanda de representação. Desse modo, não basta a existência de uma concepção de língua a permear o discurso do pesquisador da linguagem. Essa concepção, para significar, deve estar definida e inscrita na ordem do repetível, como forma de regularização (cf. ORLANDI, 1996). Amparados na reflexão de Milner, pensamos o não-fechamento da definição como manifestação da incompletude da língua, pela língua, no discurso do sujeito. Incompletude que também é constitutiva deste. Quando tratamos de sujeito, observamos que este se constitui, não só por uma falta, mas também por uma busca pela completude. Essa vontade de ser inteiro é que o leva a se identificar com diversas formações discursivas e a assumir diferentes posições. Como sabemos, o sujeito em análise de discurso é “posição entre outras”, efeito do processo discursivo, e não origem deste, pois, como enfatiza Orlandi, “esse sujeito que se define como ‘posição’ é um sujeito que se produz entre diferentes discursos, numa relação regrada com a memória do dizer (o interdiscurso), definindo-se em função de uma formação discursiva em relação com as demais” (ORLANDI, 1996, p. 49). Em concordância com o que a autora desenvolve, concebemos o sujeito pesquisador da linguagem como uma posição, a qual se constitui discursivamente a partir de um lugar institucional, que legitima seu dizer, bem como a partir de um lugar teórico, que rege o âmbito do que pode e deve ser dito. Em outras palavras, que traça limites e estabelece possibilidades a esse dizer. O sujeito de que tratamos, além de se constituir entre discursos, comporta a singularidade do movimento entre línguas4, pois, dentre os fatores que o constituem, estão dizeres em espanhol, português, francês, etc. Indubitavelmente uma discursividade outra, embora não visamos a aprofundar aqui este particular. Consideraremos apenas que esse sujeito consiste, de acordo com Orlandi, em “uma posição na filiação de sentidos, nas relações de sentidos que vão se constituindo historicamente e que vão formando redes que constituem a possibilidade de interpretação. Sem esquecer que filiar-se é também produzir deslocamento nessas redes5” (ORLANDI, 1996, p. 15).
Nessa citação, consideramos ainda dois pontos significativos que merecem atenção: o sujeito, enquanto posição em uma rede de sentidos, e os sentidos constituídos historicamente. Tais considerações nos servem de via de acesso para adentrarmos em uma concepção materialista de real, como desenvolvida por Gadet e Pêcheux (2004). Enquanto as reflexões de Milner nos possibilitam compreender a constituição do sentido pelos vãos da materialidade lingüística, em que o equívoco consiste na 195
remessa do significante para a alíngua; o pensamento pecheutiano nos habilita a pensar nos sentidos como efeitos da materialidade discursiva (lingüístico-histórica). Afirma Pêcheux que “todo enunciado, toda seqüência de enunciados é, pois, linguisticamente descritível como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação” (PÊCHEUX, 1990, p. 53). Concebemos essa deriva de sujeito e sentidos, pela via da incompletude, mobilizando a concepção de Gadet e Pêcheux (2004), a partir da qual o real da língua é compreendido em relação com o real da história. Assim, a incompletude que sulca a língua se configura, ao mesmo tempo, como o possível e o impossível, pois os sentidos, da mesma forma que se constituem, deslizam, escapam, tornam-se outros (PÊCHEUX, 1990). Entendemos que esse vir-a-ser de sentidos, como não-totalidade, não se produz apenas na língua. Em outros termos, tomando uma perspectiva materialista, acreditamos que o equívoco não concerne somente a uma relação entre significante e significado. Esta é uma discussão, de acordo com Gadet e Pêcheux (2004), já trazida por Milner, ao tratar do real da língua como um impossível próprio à sua ordem. No entanto, apesar de constituir o pensamento desse autor, é em Gadet e Pêcheux que se encontra formulado o enlaçamento, necessário para a interpretação, entre os dois tipos de real, o da língua e o da história. Salienta Orlandi, na apresentação da obra de tais autores, que “é pela discussão do real da história em relação com o real da língua, pelo absurdo, pelo impossível, pelo equívoco, pela contradição (...) que Pêcheux sustenta teoricamente a história da lingüística que ele formula” (GADET e PÊCHEUX, 2004, p. 08). A partir dessa espécie de re-significação do pensamento de Milner, proposta por Gadet e Pêcheux, depreendemos que também a noção de equívoco vem funcionar diferentemente no lugar teórico onde passa a ser tomada. Cabe-nos, contudo, precisar o que entendemos como equívoco, segundo os referidos autores. Diríamos que, para Milner, esta noção estaria relacionada ao âmbito lingüístico, pois, como o autor coloca, “uma locução trabalhada pelo equívoco, é ao mesmo tempo ela mesma e uma outra. Sua unicidade se refrata seguindo séries que escapam ao desconto, visto que cada uma, apenas nomeada – significação, sonoridade, escrita, etimologia, sintaxe, trocadilho... – se refrata por sua vez indefinidamente (...)” (MILNER, 1987, p. 13).
Já Gadet e Pêcheux se referem ao equívoco como o lugar em que a língua toca a história, ou seja, “como o ponto em que o impossível (lingüístico) vem aliar-se à contradição (histórica)” (GADET e PÊCHEUX, 2004, p. 64). O equívoco emana, assim, no ponto em que as duas ordens se enlaçam. Ora, nesse encontro também se funda o lugar da interpretação. Pensamos, em 196
nosso estudo, a constituição material dos sentidos, considerando essa concepção de equívoco, ou seja, sua dimensão lingüística e histórica. Isso porque entendemos que o não-todo, que se inscreve na ordem significante como possibilidade, não significa somente aí, mas remete a uma exterioridade. Esse não-todo estaria no dizer, não se mostrando na língua, mas pela língua. Diríamos melhor, pelo funcionamento da língua no discurso. A noção de equívoco nos é pertinente, na medida em que nos autoriza a pensar a constituição histórica dos sentidos pelo deslize, como movimento. Isso explica, por exemplo, o fato de não bastar simplesmente afirmar que a língua é incompleta ou que não se fecha, como essa noção é compreendida nos estudos discursivos. É sempre necessário redizer, dizer de outra forma, acrescentar e, mesmo assim, é como se faltasse algo a ser dito. Efeito da incompletude que se mostra na língua? Sim, mas, sobretudo, efeito da não-saturação dos sentidos. Daí a necessidade de considerarmos o real da história para embrenharmo-nos na ordem do discurso, pois a falta também é constitutiva deste. Nas palavras de Leandro Ferreira, “se não houvesse a falta, se o sujeito fosse pleno, se a língua fosse estável e fechada, se o discurso fosse homogêneo e completo, não haveria espaço por onde o sentido transbordar, deslizar, desviar, ficar à deriva” (LEANDRO FERREIRA, 2005, p. 4). Logo, temos que a definição de língua, tal como a própria língua, em uma perspectiva discursiva, não é formulada de modo fechado: “língua é X”. Faz-se uso de artifícios, montagens discursivas, estratégias que tentam dar conta da incompletude e de uma significação. Em suma, existiriam outras formas de dizer que tudo não se pode dizer. A articulação6 de noções que analisamos neste estudo consiste, em nosso entendimento, em uma dessas outras formas de dizer. Temos observado, em textos de lingüistas contemporâneos no Brasil, que assumem uma concepção materialista de língua(gem), a recorrência da noção de língua associada a outras noções como discurso, sujeito, cultura e identidade, em um encadeamento bastante peculiar. Tal relação se dá em uma forma triádica, na qual as noções são justapostas. O objeto que abordamos em nossa análise consiste em uma dessas tríades, a qual se configura na articulação língua-cultura-identidade. Embora essa organização, como dissemos, aconteça de um modo singular, a ocorrência de tal espécie de tríade conceitual no discurso científico que concerne aos estudos discursivos, se não usual, é ao menos repetível. Lembramos, a título de exemplificação, tanto o nó borromeano por meio do qual Lacan concebe imaginário, simbólico e real – noções trazidas, posteriormente, para nosso campo de estudo – quanto a própria constituição da análise de discurso de tradição francesa, entre a lingüística, o materialismo histórico e a psicanálise. Inscrita em uma ordem de repetição histórica7, e aqui podemos tratar de história também cronologicamente, a organização triádica mobiliza e relaciona conceitos, seja de forma constitutiva, como o caso do nó borromeano, seja contraditória, como 197
a AD, situando-se no entremeio. Perguntamo-nos, então, de que natureza seria essa relação entre língua, cultura e identidade e como essa articulação funcionaria? Que sentidos seriam produzidos?
O itinerário dos sentidos na (in)definição de língua Antes de nos determos em um gesto de interpretação sobre os recortes que apresentaremos, não podemos prescindir de algumas considerações a respeito do corpus de nossa pesquisa, cujas primeiras reflexões são aqui formuladas. A fim de lançarmos um olhar analítico sobre os sentidos da noção de língua, constituídos a partir da posição sujeito pesquisador da linguagem, buscamos observar, como fato desencadeador, o movimento dos sujeitos entre línguas e territórios. Partimos, inicialmente, da hipótese de que o deslocamento por várias línguas exerceria influências no modo pelo qual esse sujeito definiria a noção de língua. Nessa direção, chegamos a quatro pesquisadoras da linguagem que possuem, em comum, não só esse movimento, mas também o fato de se filiarem ao âmbito dos estudos discursivos. Um outro aspecto, que levamos em consideração, concerne ao pertencimento teórico dos sujeitos, cujas publicações constituem nosso objeto de estudo, pois tal pertencimento está relacionado à historicidade dessas pesquisadoras. Acreditamos que o assujeitamento a esses lugares de reflexão é significativo para a constituição de seu discurso, bem como para a constituição dos sentidos relacionados ao dispositivo conceitual que o permeia, em especial à noção de língua. Quando observamos a formulação dessa noção em algumas publicações dessas pesquisadoras, entendemos haver uma remissão a duas tríades: língua-cultura-identidade e línguasujeito-discurso. Esse dizer consiste, no nosso entendimento, em um modo singular pelo qual a língua é concebida, uma vez que pode ser compreendido como resultante da própria história do sujeito em sua relação com a língua. Conforme mencionamos anteriormente, a ótica deste estudo recai sobre a tríade língua-cultura-identidade, tal como esta é formulada no dizer de uma das pesquisadoras, cuja proposta é a de traçar uma “cartografia imaginária do eu” a partir da referida tríade. Em um primeiro momento, apresentamos uma seqüência discursiva8 , na qual a tríade é esboçada. Já em um segundo momento, trazemos outras duas seqüências, que explicitam as reconfigurações da tríade proposta. Procedemos de tal forma, para que possamos observar de que modo se estabelece a tríade e como ela funciona, conforme as questões anteriormente colocadas. Desse modo, buscamos compreender, por um lado, a noção de língua ordenada no encadeamento e, por outro, a irrupção do equívoco em seu funcionamento, derivando sentidos. Vamos, então, ao primeiro recorte. S.1) Interrogarei em primeiro lugar a língua – no caso, o francês – enquanto 198
designa lugares ao sujeitos sob a égide do falar. A partir desse dispositivo posto em ação pela língua, seguiremos alguns itinerários do eu que se desenham na trilogia língua-cultura-identidade.
Observamos em S.1, no que chamaremos plano lingüístico, a organização em bloco de termos unidos por hífens, representando, imaginariamente, um único significante. Tais termos sustentariam, deste modo, uns aos outros, em cadeia, na linearidade sugerida pela hifenização. Esse tipo de organização nos guia a uma visão de completude e fechamento, pois o itinerário do eu se constituiria cerceado por esses três elementos, língua, cultura e identidade. No entanto, devemos nos perguntar, assumindo a perspectiva do analista: de que língua se fala e sobre qual língua? De qual cultura se fala sobre qual cultura? O que se entende por identidade?. Observamos, então, que a “simulação de completude” se desfaz, deixando aparecerem as bordas lingüísticas não suturadas. Somos remetidos, a partir daí, ao plano que chamamos discursivo, e lançamos nosso olhar para os elementos da tríade, não enquanto termos, mas enquanto noções que, como tais, descendem de um lugar teórico. No âmbito discursivo, compreendemos essa articulação como uma simbiose conceitual que se configuraria como uma remessa para: a identidade remete a uma cultura, que, por sua vez, remete a uma língua e vice-versa. No entanto, tal como em uma simbiose, as noções, ao mesmo tempo em que se relacionam e se sustentam, remetem a um exterior, pois necessitam de outras, para serem definidas, (como sociedade, por exemplo). Ainda quando pensamos na noção de língua e nos perguntamos que língua é essa, o próprio recorte nos responde ser o francês, ou seja, a língua que constitui o sujeito que produz conhecimento sobre a língua9. Diríamos, ainda, que parece existir uma estaticidade em tal organização, como esta é colocada em S.1, visto que é o itinerário do eu que se desenha, ou seja, é o eu quem se move na tríade, a qual consistiria em um caminho aparentemente estático. Ao prosseguirmos em busca do funcionamento da tríade e da forma como ela é reescrita, no decorrer do texto, acreditamos que há, em sua reformulação, uma (re) significação, pois a articulação não reaparece tal como primeiramente organizada. Trazemos, para experimentar essa hipótese, a segunda seqüência discursiva: S.2) Entretanto, cabe esclarecer o que entendemos por identidade antes de traçar as relações que podem se estabelecer entre os três pólos: línguasespaços-eu.10
Como podemos observar na segunda seqüência, a tríade é reconfigurada como três pólos: línguas, espaços e eu. Entendemos haver aí o princípio do movimento da articulação, em vários sentidos, a começar pelo fato de, apesar da hifenização, os elementos passarem a ser apresentados como pólos. Tomamos os hífens como simuladores de unidade, uma vez que estes marcariam uma “inter-relação” ou, como 199
desenvolvemos aqui, uma simbiose entre tais elementos. Estas marcas exerceriam, portanto, a função de elo significante entre a articulação. Acreditamos, em função disso, que, em S.2, o lugar dos hífens ainda implica uma sustentação mútua, mas não mais uma linearidade, como em S.1. Ainda observando o plano que chamamos lingüístico, entendemos a presença do plural como bastante significativa, já que não se trata mais de uma língua e uma cultura, mas de línguas e espaços. Essa abertura para a pluralidade é tanto mais relevante se pensarmos na textualização do discurso de um sujeito entre línguas. Assim, no plano discursivo, perguntamo-nos que línguas e que espaços são esses e quem é esse eu que passa a ser um dos vértices da relação? Entendemos essa primeira re-organização como a representação do deslocamento do eu do plano estático – minha língua11, país, cultura – para o dinâmico – contato com o outro, movimento entre territórios e espaços lingüísticos. A própria articulação é remontada, mostrando esse duplo movimento de sentidos e de sujeito. Para ponderarmos sobre o que concebemos como movimento e não mudança de sentido12, evocamos a imagem de um caleidoscópio, uma vez que neste, a cada vez que se olha, dependendo do modo como se olha, estabelecem-se novas combinações. A imagem do caleidoscópio também nos é sugestiva, porque remete a uma heterogeneidade, que constitui uma ilusão de unidade. Concebemos dessa forma a presença do não-todo, ou seja, da incompletude na língua, resultando em um efeito de completude, pois, como afirma Milner (1987, p. 19), remetendo ainda a Platão, “a língua, mesmo se a imaginamos como totalidade enumerável, é também necessariamente marcada de heterogêneo e de não superposto”. Pensamos que a definição de língua pela associação de noções se dá do mesmo modo: em uma espécie de troca contínua, estas se complementam e se auto-sustentam, resultando em uma ilusão de fechamento. Porém, ao mesmo tempo em que remetem a um ponto em comum, os elementos também fazem menção a um fora, transbordando o sentido que imaginariamente estava contido na aliança trina. Os recortes que trazemos nos levam a entender que o sentido se constitui como movediço, e a terceira seqüência dá ainda mais ênfase a esse processo de constituição. S.3) Assim, com base neste esclarecimento, podemos declinar os três pólos da seguinte maneira: (a) o espaço da língua (...) (b) a identidade de uma língua (...) (c) a identificação do eu pela língua.
Tal como vimos analisando o plano do significante e o do discurso, em S.3, chamamos a atenção primeiramente para os adjuntos “da língua” e “de uma língua”. Estes, em nosso entendimento, consistem em marcas da singularidade de uma língua diante de outras línguas e do espaço que esta língua ocupa dentre espaços. Além disso, a forma como se dá a identificação do sujeito (identificação, não mais 200
identidade) é “pela língua”. Salientamos, ainda, que a disposição inicial da tríade, por meio de hífens, é rompida e, se essa marca representava uma simbiose entre os elementos, esta relação já não existe. No plano discursivo, depreendemos que o deslocamento das tríades parece marcar o próprio deslocamento do sujeito e, nesse movimento, a língua é a única constante. Entre espaços e línguas, a língua ocupa seu espaço e possui algo que a singulariza como uma dentre as outras: o eu se identifica e é identificado por ela. Em meio a uma “coleção de singulares” (Milner, 1987), o sujeito identifica a sua língua como Uma. A língua materna se configura, para este, como uma marca, um ponto constante no movimento. Remetendo-nos à reflexão de Milner, no que concerne ao vínculo entre a língua materna e a alíngua, temos que “alíngua é o que faz com que uma língua não seja comparável a nenhuma outra, enquanto que justamente ela não tem outra, enquanto, também, que o que a faz incomparável não saberia ser dito” (MILNER, 1987, p. 15). Desse modo, a possibilidade de estar na(s) língua(s) representaria, para o sujeito, a sua língua. Observamos, assim, que a noção de língua é definida, não pelo dizer, mas pelo lugar em que é colocada na articulação. O fato de tal noção aparecer vinculada a outras noções-chave, no dizer desse sujeito pesquisador, leva-nos a entender que haveria uma tentativa (ilusória) de amenizar, por meio do estabelecimento dessas relações, a incompletude constitutiva da noção de língua e do próprio sujeito. Dessa forma, a necessidade de atribuir outras noções a esta, assim como de vinculá-las umas às outras, marcaria uma tentativa de suprir essa ausência. Ora, pensamos que é nessa busca que o real interfere como aquilo que excede a organização sistematizada e ordenada pela qual a língua é apresentada, deixando aflorarem sentidos que escapam ao domínio do sujeito. Essa possibilidade de leitura se deve ao fato de o sentido não se encontrar atrelado ao significante. É nessa direção que observamos que o sentido desliza: a tríade falta, porque o encadeamento de noções não encerra em si a totalidade dos sentidos.
Palavras finais Com este estudo, procuramos lançar um olhar mais aprofundado na tríade línguacultura-identidade, bem como na forma como esta se desdobra no decorrer do texto desse sujeito pesquisador, com a finalidade de compreendermos a deriva dos sentidos, dos conceitos e do próprio sujeito. Acreditamos que o gesto analítico nos leva não só à problematização de possíveis sentidos vinculados e veiculados pela tríade, mas também ao processo de constituição destes. Entendemos que, apesar de a articulação ser re-dita, re-escrita e re-estruturada, em uma possível busca pela saturação e pela completude do dizer, os sentidos são móveis e fugidios. Quando jogávamos, em nosso título com o impossível da 201
definição, ou com o possível da indefinição, remetíamos-nos a esse não-dito no dizer, a esse não-todo na simulação do todo. Poderíamos afirmar que há, nas seqüências que observamos, um movimento, o qual marca a definição de língua ou, em outras palavras, que a própria definição se configura a partir de um movimento. Essa mobilidade, representada na reestruturação triádica, consiste, para nós, na impossibilidade de se definir língua pela fórmula “língua é X”. No dizer do sujeito pesquisador da linguagem, constituído por deslocamentos entre línguas, a possibilidade de deriva se inscreve, fazendo com que à fórmula “língua é X”, acrescente-se “+ deslize”. Esses são efeitos de sentido produzidos via discurso e, quando tratamos de sentido, a partir do dispositivo teórico que mobilizamos, falamos, sobretudo, em possibilidade. Por esse viés, se o lugar de onde o sujeito fala é constitutivo do que ele diz, como nos coloca Orlandi (2001), por que o deslocamento do sujeito entre lugares não seria também constitutivo de seu dizer? O que fica como representativo, nessa forma de estruturação, é a noção de língua, que se configura como o fio de Ariadne nos labirintos das línguas, culturas e lugares, remetendo o sujeito ilusoriamente de volta à origem. Nas palavras da pesquisadora (DAHLET, 2003, p. 26), “o que nos liga à infância permanece através das peregrinações nos espaços e nas línguas”. Enfim, para que pensemos nas (im) possibilidades e nas (in)definições de nosso objeto, deixamos, como borda não suturada de nosso dizer, as palavras de Gadet e Pêcheux (2004, p. 58), quando estes afirmam que “o não dito é constituinte do dizer, porque o todo da língua só existe sob a forma não finita do ‘não-tudo’”.
Referências bibliográficas DAHLET, V. Culturas da identidade: o eu entre espaços e línguas. In: Revista Letras nº 26. Santa Maria: PPGL/UFSM, 2003 (p. 21 - 28). GADET, F; PÊCHEUX, M. A língua inatingível: o discurso na história da lingüística. Campinas: Pontes, 2004. GUIMARÃES, E. Designação e espaço de enunciação: um encontro político no cotidiano. In: Revista Letras nº 26. Santa Maria: PPGL/UFSM, 2003 (p. 53-62). LEANDRO FERREIRA, M. C. A trama enfática do sujeito. In: II SEAD. Porto Alegre: UFRGS, 2005. MILNER, J. -C. O amor da língua. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. ORLANDI, E. A incompletude do sujeito: e quando o outro somos nós? In: ORLANDI [et al.]. Sujeito e texto. São Paulo: EDUC, 1988 (p. 09 - 16). ______ . Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996. 202
______ . Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001. PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1990. ______. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp,1997. REVUZ, C. A língua estrangeira entre o desejo de um outro lugar e o risco do exílio. In: SIGNORINI, M. I (org.). Lingua(gem) e identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas: Mercado de Letras, São Paulo, FAPESP, 2002 (p. 213 - 230).
Notas 1 O que chamamos de definição diz respeito aos contornos por meio dos quais a noção de língua é formulada no discurso do sujeito pesquisador. 2 Embora a designação sujeito pesquisador da linguagem possa abranger estudiosos de diversos lugares teóricos, neste estudo, tratamos do sujeito que assume uma concepção materialista de língua(gem), seja ela filiada, ou não, aos preceitos teóricos pecheutianos. 3 Os grifos são da autora. 4 Quando tratamos desse movimento, não consideramos a possibilidade de se estar entre línguas dentro de um mesmo território ou de uma mesma língua, como desenvolve, dentre outros, Guimarães (2003). Falamos sobre línguas que carregam em sua designação (língua francesa, língua portuguesa, língua espanhola, etc.) as fronteiras entre um lugar e outro, com todas as implicações que isso possa ocasionar. 5 A autora desenvolve esta reflexão ao tratar da posição autor. 6 Estamos tratando de articulação como encadeamento de conceitos/noções, embora a aproximação com a idéia de articulação como o que “constitui o sujeito em sua relação com o sentido”, como desenvolve Pêcheux (1997, p. 164) possa ser profícua. 7 A esse respeito, conferir Orlandi (1996). 8 As seqüências discursivas foram destacadas do artigo Culturas da identidade: o eu entre espaços e línguas de Véronique Dahlet (2003) 9 Podemos dizer que esse sujeito que produz um saber científico sobre a linguagem o faz na e pela língua que o constitui. Acreditamos, dessa forma, que, assim como qualquer sujeito que se desloca concebe a língua de uma perspectiva peculiar, o sujeito que assume a posição de pesquisador da linguagem deixa aflorar, em seu discurso, por meio das designações que utiliza, o imaginário de língua que constitui sua subjetividade. 203
10 O grifo é da autora. 11 Destacamos que o indicativo de propriedade em “minha língua” marca apenas uma ilusão constitutiva do sujeito. 12 Falamos em movimento, e não em mudança de sentidos, a partir da reflexão de Orlandi (1996) sobre a constituição dos sentidos por efeito metafórico. Para a autora, “o deslize de sentido de a para g faz parte do sentido de a também” (ORLANDI, 1996, p. 81). Dessa forma, não haveria uma mudança, mas um movimento.
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A MULHER: INEXISTENTE OU EVIDENTE Leda Verdiani Tfouni (USP-RP) Paula Chiaretti (USP-RP)
A ignorância da anatomia como índice de diferenciação sexual pelo inconsciente coloca Freud diante das questões: como os seres humanos se dividem entre homens e mulheres? E o que leva um homem a uma mulher? É por conta do Édipo e da ameaça de castração que o sujeito renuncia ao seu objeto primordial (a mãe) e ao gozo que se refere a este objeto. E é esta renúncia (ao incesto) que leva um homem a amar sexualmente uma mulher. A pergunta freudiana “O que quer a mulher?” é resultado do seu fracasso em generalizar para a menina o Édipo e o posicionamento diante da castração. (SOLER, 2005). É assim que a mulher se torna uma questão para Freud. Prates (2001, p. 23) aponta para o fato de que “a mulher aparece freqüentemente como o que aponta para algo que escapa e a que se tem dificuldade de nomear ou sintetizar”. Esta impossibilidade de síntese é tratada pela psicanálise, especialmente a partir do retorno de Lacan à obra de Freud, e pela Análise do Discurso Pêcheutiana (AD) como real. O real, para a Psicanálise e a AD, é o impossível e o contingente, designando assim aquilo que resiste à simbolização. Neste trabalho pretendemos contrapor o sentido evidente de mulher encontrado em revistas femininas às formulações sobre a mulher na psicanálise. Para tanto, recorremos à leitura de Freud, Lacan e comentaristas de Lacan, seguida de uma análise de um slogan de uma revista feminina (revista CLAUDIA). Freud aponta para uma aparente evidência do que é um homem e uma mulher quando nos chama a atenção para o primeiro reconhecimento que fazemos frente a um sujeito: é homem ou mulher? Entretanto, afirma que em ambos (homens e mulheres) podemos encontrar elementos do sexo oposto, sejam eles de natureza anatômica ou psicológica. A isto, Freud irá relacionar o conceito de bissexualidade. Ele parte então para a formulação de como esta mulher se forma: “como a mulher se desenvolve desde a criança dotada de disposição bissexual” (FREUD, 1996 [1933], p. 117). As mais diversas formulações teóricas que de alguma maneira tentam abordar a questão da mulher e do feminino irão nos mostrar que a diferença anatômica não presta nenhuma ajuda neste campo. Freud sublinha: “a substituição do problema psicológico pelo anatômico é tão ociosa quanto injustificada” (FREUD, 1996 [1905], p. 284). Ao estudar a constituição do sujeito a partir da sexualidade, Freud divide o seu desenvolvimento em fases (ou estágios) que dizem respeito à organização sexual sob a primazia de uma zona erógena sobre as demais: a primeira chamada fase oral 205
ou canibalesca (caracterizada pela tentativa de incorporação de objetos - geralmente do próprio corpo - pelo chuchar desligado da alimentação); a segunda, fase sádicoanal (caracterizada por uma oposição entre atividade e passividade); a terceira, fase fálica (retomaremos esta fase mais abaixo), seguida por um estágio de latência que perdura até a entrada na puberdade, onde se inicia a fase genital (com a subordinação das zonas erógenas ao primado genital). Somente no estagio fálico é que encontramos diferenças entre os meninos e as meninas: o reconhecimento de um órgão em algumas pessoas e a ausência do mesmo órgão (a princípio negada) em outras. Essa observação levaria, na teoria freudiana, a menina à inveja do pênis e o menino à angústia de castração. Entretanto, ainda neste momento, ter ou não o falo não se relaciona de forma coincidente com ser homem ou mulher. Devido ao reconhecimento do órgão sexual masculino como único, os seres irão se dividir entre castrados e não-castrados (atribuições que mais tarde se transformarão em feminino e masculino), o que leva Freud a afirmar que a libido é masculina. Por não se tratar da primazia de um órgão sexual sobre outro, Freud vai tratar da primazia do falo (FREUD, 1996 [1923]). A formulação do Complexo de Castração coloca a simetria entre os sexos no complexo de Édipo em xeque. Enquanto para o menino, o complexo de castração seria a saída do complexo de Édipo, para a menina é a sua inauguração (FREUD, 1996[1925]). Lacan irá retomar a obra freudiana a partir do Estruturalismo. Em seu retorno irá justificar esta “dissimetria essencial do Édipo num e noutro sexo” (Lacan, 1985a, p. 201) por sua dependência do significante. Estende então a diferença entre os sexos para além da diferença anatômica, apoiando-se no plano simbólico, ou, como sugere André (1998, p. 11), “para além da materialidade da carne, o órgão enquanto aprisionado na dialética do desejo, e dessa forma ‘interpretado’ pelo significante”. A dissimetria entre os sexos, apontada mais acima, é aquilo que impede fazer Um. E é neste sentido que Lacan postula a fórmula “não há relação sexual”. O falo (que de forma alguma coincide com o órgão masculino) é tomado como significante atribuído ao terceiro da relação edipiano, o pai. A diferença real entre os sexos passa por uma construção imaginária feita pela criança tendo como indicador de divisão entre os sexos uma falta, a falta de um objeto imaginário, o falo. Esta falta no plano imaginário é sustentada, por outro lado, pela metáfora paterna no plano simbólico. A respeito do órgão sexual, Lacan (1985b, p. 15) irá dizer que é claro que o que aparece nos corpos, com essas formas enigmáticas que são os caracteres sexuais – que são apenas secundários – faz o ser sexuado. Sem dúvida. Mas, o ser, é o gozo do corpo como tal, quer dizer, como assexuado, pois o que chamamos de gozo sexual é marcado, denominado, pela impossibilidade de estabelecer (...) esse Um que nos interessa, o Um da relação sexual.
A impossibilidade da relação sexual é sustentada pelo discurso analítico e tomada 206
nos termos de uma relação matemática, ou seja, entre dois elementos. De acordo com Lacan “pelo discurso analítico o sujeito se manifesta em sua hiância, ou seja, naquilo que causa o seu desejo” (LACAN, 1985b, p. 20). É precisamente a descoberta freudiana de que “não há essência de macho e fêmea, que eles são apenas parcialmente representados, por exemplo, pelas noções de atividade e passividade, e que há algo de insatisfatório inerente à própria sexualidade” que possibilita que Lacan designe “o falo como o que faz obstáculo à escrita de uma relação sexual” (PORGE, 2006, p. 259). O falo como terceiro elemento impossibilita que os dois sexos sejam complementares ou simétricos. Os sexos assim não se diferenciam entre si, mas em relação ao falo. “É de uma dissimetria no significante que se trata” (LACAN, 1985a, p. 201). Assim, Lacan retomará a questão da mulher com o auxílio de uma lógica apoiada no não-todo para falar daquilo que em alguns seres não se inscreve na norma fálica; em outras palavras, que escapa à apreensão significante. Este não-todo (inscrito na norma fálica) é o que Lacan chamará de A mulher. Não é que ser mulher implique a inscrição do sujeito no lado não-todo, mas sim que aqueles sujeitos que se inscrevam neste lado são chamados de mulheres. Assim, enquanto a lógica do falo produz o homem, A mulher não cessa de não se escrever, o que a coloca no campo do real. A imposição do Nome-do-pai instaura no sujeito a lei do simbólico e institui um “a mais” ao gozo fálico, gozo que se inscreve no lado da mulher; gozo outro (SOLER, 2005). O conjunto dos homens é possível porque existe O homem: a castração é universal para todo ser falante e há ao menos um que dela estava excluído (o pai da horda primitiva). No entanto, no lado das mulheres, não há universalidade em nenhuma das fórmulas porque não há uma exceção que sustente a regra: não existe sujeito para quem a função fálica (castração) não funcione, ou seja, não há uma exceção como no lado do homem que vem fazer borda à regra; mas, este sujeito (mulher) é não-todo assujeitado à função fálica. Assim, Lacan (1985b, p. 108) irá dizer que este ser falante que se inscreve deste lado, “é impropriamente que o chamamos a mulher, pois, (...) a partir do momento em que ele se enuncia pelo não-todo, não pode se escrever. Aqui o artigo a só existe barrado”. A mulher não escapa totalmente, se assujeita de forma parcial a esta função. Lacan lembra que a escolha de um dos lados de inscrição é dos seres falantes: A todo ser falante, como se formula expressamente na teoria freudiana, é permitido, qualquer que ele seja, quer ele seja ou não provido dos atributos da masculinidade – atributos que restam determinar – inscrever-se nesta parte [a da mulher]. (LACAN, 1985b, p. 107).
Assim como a mulher é não-toda subordinada à norma fálica no plano da sua identidade, seu gozo também não o é; há uma parte do seu gozo que se situa naquilo que Lacan chamou de “gozo do Outro”, sobre o qual nada se sabe, pois se situa fora 207
da linguagem, relacionando-se ao real. A dissimetria entre os sexos lida, portanto, pela via do gozo e também é o que impede o sujeito de fazer Um. Neste sentido, Lacan postula a fórmula “não há relação sexual”: na medida em que há um ‘a mais’ de gozo, distinto do gozo fálico, que impede a completude. A falta constitutiva do sujeito (o que o faz falar) é inaugurada a partir da falta no Outro, “tesouro dos significantes”. Esta falta no Outro equivaleria a “tudo não se diz”, ou seja, o simbólico não recobre todo o real. Quando o sujeito diz x, ele deixa de dizer y (fórmula tão preciosa à Análise do Discurso). Lacan (1985a, p. 201) dirá que “não há (...) simbolização do sexo da mulher como tal”. Enquanto o falo é que é elevado ao significante, o órgão sexual feminino permanece fora do simbólico. Sauret (1998, p. 19) explica que “não existe no Outro um significante que diga o que é uma mulher: homem e mulher são significantes que, por essa razão, representam o sujeito que fala”. Isto devido ao fato de o sujeito do significante (sujeito falante, que habita a linguagem) estar inscrito na via do falo. O significante “A mulher” não existe, ele é cortado do simbólico, e por ser impossível de dizer se relaciona ao campo do real. Há alguma coisa que falta, que falha, de que a Análise do Discurso vai tratar como o real da língua (PÊCHEUX; GADET, 2004), ou seja, o simbólico não recobre todo o real, que por sua vez faz furo à linguagem, irrompendo e deixando indícios da sua passagem na materialidade do discurso, pelas elipses, falhas, atos falhos etc. O real da língua, que Milner (1987) vai tratar como a alíngua, se relaciona com o não-todo da mesma forma como a língua se relaciona ao todo. A alíngua, como aquilo que excede à língua, é o não representável. O que não impede que os sujeitos constantemente tentem contornar este real. É somente no plano imaginário que o sujeito pode fazer Um, ilusão de completude que cria o sentido da realidade, que se opõe na psicanálise ao real. A realidade se relaciona, para Sercovich (1977, p. 34), com as formações imaginárias, ou seja, com o “conjunto de los discursos predominantemente transparentes operantes en una coyuntura determinada”, enquanto o real é o impossível e o contingente. Lacan irá atribuir a aparente relação (de transparência) às convenções da coletividade. Lembrando que mesmo nesta coletividade, composta por homens, mulheres e crianças, “os homens, as mulheres e as crianças não são mais do que significantes” (LACAN, 1985b, p. 46). Na sua relação com o sujeito, um significante só pode representar o sujeito para outro significante. Isto vem de encontro à proposição de Pêcheux (1995, p. 161) de que uma palavra, uma expressão ou uma proposição não tem um sentido que lhe seria ‘próprio’, vinculado a sua literalidade. Ao contrário, seu sentido se constitui em cada formação discursiva, nas relações que tais palavras, expressões ou proposições mantêm com outras palavras, expressões ou proposições da mesma formação discursiva. 208
Assim, a passagem de uma mesma palavra para uma formação discursiva diferente modifica o significado da própria palavra. A análise, a partir da materialidade lingüística, visa atingir o processo discursivo (relações de substituição e paráfrases). A despeito do impasse freudiano (o que é a mulher?), da afirmação lacaniana acerca da inexistência de um significante do feminino, e da impossibilidade de se dizer tudo (há algo de real que escapa da inscrição significante, e o inconsciente diz não-todo), observamos mensalmente uma enxurrada de revistas autodenominadas femininas que supostamente falam sobre o que é a mulher e o que ela quer. Neste trabalho, partimos deste corpus e propomos uma análise a partir das formulações da AD e da psicanálise, tal qual se delineou aqui. A escolha de revistas femininas como corpus privilegiado de investigação segue os objetivos do trabalho e os postulados teórico-metodológicos da AD. De acordo com Althusser (1996), a luta de classes atravessa os aparelhos ideológicos de Estado. A mídia, como transformadora/reprodutora de um imaginário específico acerca dos mais variados temas, configura-se, de acordo com a leitura althusseriana, como um aparelho ideológico do Estado. Isso não quer dizer que as revistas veiculem uma ideologia, mas sim que são, dentre outros aparelhos, “seu lugar e meio de realização” (PÊCHEUX, 1995, p. 145). É importante lembrar que não existe uma ideologia própria de uma classe, como se cada classe fosse independente uma da outra e houvesse sempre existido. Eis o recorte, retirado do site da Editora Abril, que pretendemos analisar neste trabalho: “CLAUDIA: independente, sem deixar de ser mulher”. A primeira coisa que nos chamou a atenção para este recorte foi o “sem deixar de”, que indicia uma oposição entre a atribuição anterior (independente) e a posterior (mulher). Por oposição, neste caso, poderíamos supor a atribuição de “independente” ao homem, sendo este “independente” algo que ameaça o “ser mulher”, na medida em que esta, caso seja independente, corre-se o risco de deixar de ser mulher. Poderíamos, assim, supor que “ser mulher” é equivalente a ser “dependente”. Este “ser mulher”, neste enunciado, aparece como algo naturalizado e evidente, sobre o qual nem ao menos seria necessário precisar o significado: “ser mulher” é em si uma evidência. Esta naturalização de sentido é fruto da interpelação ideológica, resultando num efeito imaginário de identidade, que, por sua vez, advém da identificação de um sujeito a uma determinada nomeação que tenta camuflar sua falta, dando a ilusão de uma completude. Tenho trabalhado, no mestrado com genéricos discursivos, definidos por Tfouni (2004, p. 79) como “provérbios, slogans, máximas, rezas, ‘fórmulas encapsuladas’ (conforme LEMOS, 1984), resumos historicamente constituídos de experiências e atividades do homem sobre o (no) mundo (...) codificam valores e crenças”. Os genéricos retiram sua força da repetição, que os torna aparentemente transparentes, devido à sedimentação da evidência de um sentido. Estes genéricos tendem a regular as ações dos sujeitos na medida em que 209
condensam representações imaginárias. Não constituem um discurso que possibilita a transformação, uma descontinuidade, mas que sim que visa a continuidade e a permanência. O sujeito se identifica com a formação discursiva que o domina e repete, de modo a naturalizar os sentidos. Sercovich (1977) aponta como transparente o predomínio da função imaginária nos discursos. Podemos dizer que “mulher” neste recorte seria uma “imagem”, no sentido que Sercovich emprega o termo, já que põe em jogo mecanismos como “ocultamiento del significado, remisión directa a la ‘realidad’, sobredeterminación códica, ausencia de las condiciones productivas” (SERCOVICH, 1977, p. 34). Se supusermos que o recorte assim expõe uma contradição (a mulher pode ser ao mesmo tempo independente e dependente), podemos atribuir esta contradição ao fato de que a revista feminina como espaço de transformação/reprodução também é palco de continuidade e descontinuidade especialmente após a segunda grande onda do movimento feminista (principalmente na década de 60) que em grande parte lutou para a emancipação da mulher. Emancipação nos remete a independência. As relações entre os aparelhos ideológicos do Estado são dadas no interior de um conjunto complexo, onde existem relações de contradição-desigualdadesubordinação. Isto porque a ideologia é contraditória. Assim, por meio deste recorte podemos mostrar como “a objetividade material da instancia ideológica é caracterizada pela estrutura de desigualdade-subordinação do ‘todo complexo com o dominante’ das formações ideológicas de uma formação social dada” (PÊCHEUX, 1995, p. 147). Sendo que aqui as posições de classe, sejam as posições feministas de emancipação da mulher, aquelas ligadas ao consumo ou as machistas, estão todas numa mesma formação social, de maneira a assegurar o contato entre dominante e dominado. Esta presença de diferentes (e contraditórias) posições pôde ser resgatada pela materialidade lingüística e sua remissão às suas condições de produção. A constituição de um sujeito evidente “mulher” neste recorte é somente possível graças à dissimulação da relação de classes e das contradições do funcionamento ideológico, cuja função é interpelar indivíduos em sujeitos. A evidência de sentido se relaciona intimamente à evidência de sujeito. Ë através dessa interpelação ideológica e inconsciente que o indivíduo é assujeitado, de tal modo que acredita que o que está falando se origina nele mesmo, ou seja, imagina que ele é fonte do seu dizer (esquecimento constitutivo do sujeito) e que o seu discurso corresponde exatamente ao que pensa. Essas duas ilusões correspondem respectivamente às ilusões 1 e 2, sendo que a primeira é de natureza inconsciente, enquanto a segunda é de natureza pré-consciente, na medida em que o sujeito pode se corrigir para se explicar “melhor”, e reformular o seu discurso. As formações discursivas dissimulam a atuação da ideologia no efeito de transparência de sentido. O discurso retoma o que já foi dito (interdiscurso), porém sem que o sujeito tenha consciência disso. 210
Se tomarmos o “ser mulher” neste recorte e o relacionarmos à política editorial da revista, usualmente ligada à beleza e ao bem-estar, podemos dizer que “ser mulher” poderia ser equiparado a “ser bonita”, ou seja, consumir os produtos de beleza dos anunciantes destas revistas, sustentando assim a própria revista. Assim, apesar de a mulher ter conquistado seu lugar no mundo do trabalho, fora de casa, não poderia andar por aí feia e mal vestida, deveria conservar sua essência feminina, a de ser bonita. Ou ainda se tomamos o ser mulher por uma outra regularidade que encontramos em algumas regiões do discurso feminista: “ser mulher” é ser “coração”, “emoção”, enfim, o contrário de “racional”. Estes sentidos somente podem ser resgatados a partir de leituras daquilo que já foi dito (interdiscurso) sobre a mulher e sua condição. Segundo Haroche (1992) “seja pelas cifras ou pelas palavras, o projeto é idêntico: tornar visível a interioridade e o corpo por inteiro. Pelo viés da transparência, o poder procura tornar o sujeito ‘sem defesa’, procura disciplinar e normalizar a sua subjetividade” (HAROCHE, 1992, p. 21). Podemos dizer aqui que este também seria o projeto destas revistas femininas: domesticar sentidos sobre a mulher, que uma vez enunciados, perdem-se daquilo que a psicanálise irá chamar de A mulher. Os sentidos sobre a mulher, como propostos pela psicanálise lacaniana, não podem ser domesticados, porque ela mesma não se encontra toda inscrita na função fálica. Estas tentativas de contorno do real e de montagem de um todo não passam de fantasmas. A unidade imaginária das mulheres, como uma classe circunscrita, neste sentido, é resultado de uma injunção à interpretação/nomeação daquilo que faz furo ao simbólico, o real. Entretanto, ao se tentar dar contorno a este real, mais uma vez ele escapa. Retomando a afirmação de Freud de apreensão “imediata” sobre o gênero de uma pessoa qualquer que encontramos, Althusser (1996, p. 132) diria que “a categoria de sujeito é uma ‘evidência’ básica (as evidências sempre são básicas)”. Esta evidência, como efeito ideológico, é tanto composta pela nomeação (“independente” ou “mulher”) quanto pela transparência da linguagem, já que são supostos significados completamente inteligíveis às palavras empregadas pelo falante. Segundo Althusser (1996, p. 132): Com efeito, é uma peculiaridade da ideologia impor (sem aparentar fazêlo, já que se trata de ‘evidências’) as evidências como evidências, que não podemos deixar de reconhecer e diante das quais temos a inevitável e natural reação de exclamar (em voz alta ou no ‘silêncio da consciência’): ‘É evidente! É isso mesmo! É verdade!
Entretanto, esta evidência é um efeito ideológico de apagamento das condições de produção, do que resulta que essas sínteses imaginárias apaguem a história e memória que constituem o dizer. É apagado o fato de que o sujeito e o sentido são frutos de um processo (ideológico e inconsciente), aparecendo-nos como produtos evidentes. O conjunto das mulheres passa a ter uma existência evidente não somente para 211
as revistas femininas. Este conjunto em Freud é pautado pela “inveja do pênis” tida como obstáculo incontornável da análise. A leitura de Lacan dá um novo sentido: “o falo e a castração não mais se colocam como obstáculos à feminilidade, mas, ao contrário, como as condições para toda a feminilidade possível” (ANDRÉ, 1998, p. 28), uma vez que, em Psicanálise, só se chama mulher, aquilo que se inscreve na parte do não-todo, e que por não se inscrever toda na norma fálica, tem a ver com o real, é impossível de dizer. Bastante diferente da mulher evidente da revista feminina. Vale ainda citar Lacan (1985b, p. 106): “O que o discurso analítico faz surgir, é justamente a idéia de que esse sentido [pelo qual vivemos] é aparência”.
Referências Bibliográficas ALTHUSSER, L. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado (notas para uma investigação). In: ŽIŽEK, S (org.). Um mapa da ideologia. Rio de janeiro: Contraponto, 1996. ANDRÉ, S. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. FREUD, S. Três ensaios sobre a sexualidade. In: ___. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago. vol. VII, 1996 [1905]. ______. Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In: ___. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago. Vol. XIX, 1996 [1925]. ______. Feminilidade. In: ___. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago. Vol.XXII, 1996 [1933]. HAROCHE, C. Fazer dizer, querer dizer. São Paulo: Hucitec, 1992. LACAN, J. O seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985a. ______. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985b. MILNER, J. O amor à língua. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 2 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995. PÊCHEUX, M. & GADET, F. A língua inatingível. Campinas: Pontes, 2004. PORGE, E. Jacques Lacan, um psicanalista: Percurso de um ensino. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006. PRATES, A. L. Feminilidade e experiência psicanalítica. São Paulo: Hacker Editores: FAPESP, 2001. SAURET, J. O Infantil & A Estrutura. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 1998. SERCOVICH, A. El discurso, el psiquismo y el registro imaginário: ensaios semióticos. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1977. SOLER, C. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. TFOUNI, L. Letramento e Alfabetização. São Paulo: Cortez, 2004. 212
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AS MARCAS DO REAL E O EQUÍVOCO DA LÍNGUA Leda Verdiani Tfouni (USP-RP) Marcella Marjory Massolini Laureano (USP-RP)
Falar que existe o equívoco é atestar que algo escapa à língua, é vê-la como incompleta e com isso ver também o sujeito que faz uso dessa língua como incompleto. A relação entre o discurso (dizer do sujeito, efeito de sentido entre interlocutores) e a incompletude desse mesmo sujeito coloca lado a lado a análise do discurso pêcheutiana (AD) e a psicanálise, pois a primeira tem como objeto de estudo o discurso e a segunda tem, como um de seus conceitos chave, a incompletude do dizer permeada pelo desejo. Diversos trabalhos se propõem, atualmente, a articular a análise do discurso pêcheutiana e a psicanálise lacaniana (TFOUNI, 2001, 2003, 2003a; TFOUNI e CARREIRA, 1996, 2000; TFOUNI e LAUREANO, 2004, 2005; F. TFOUNI, 2003; e ZIZEK, 1992, 1996). Nosso propósito aqui não será diferente. Aventamos aqui a possibilidade de que o equívoco, como constituinte da cadeia significante, é sustentando pela pulsão, revelando a fala do desejo, sendo, portanto, uma fala marcada pela incompletude. Escolhemos, como base, conceitos que dizem respeito tanto à psicanálise quanto à análise do discurso, começaremos pelo conceito de real, depois abordaremos a questão do equívoco e, por fim, a pulsão. A partir de uma breve exposição de cada um desses conceitos, tentaremos ver quais as possíveis relações entre eles, articulando, desse modo, a AD e a psicanálise lacaniana. Como já dito, ao marcar a falta, o equívoco traz em seu seio os indícios de um real inatingível. Encontraremos tanto em Pêcheux (PÊCHEUX, 1983; PÊCHEUX e GADET, 1981) quanto em Lacan (1974-1975) definições do conceito real. O que nos interessa aqui, como já dito anteriormente, é ver no equívoco uma forma do real se manifestar/transitar na língua, marcando a incompletude dessa e também a incompletude do sujeito. Começando pela AD, Pêcheux entende o real da seguinte maneira: “(...) no interior do que se apresenta como universo físico-humano (coisas, seres vivos, pessoas, acontecimentos, processos...), ‘há real’, isto é, pontos de impossível, determinando aquilo que não pode não ser assim. (o real é o 213
impossível... que seja de outro modo). Não descobrimos pois o real, a gente se depara com ele, da de encontro com ele, o encontra.” (PÊCHEUX, 1983, p.29)
O autor, concordando com Milner – que diz que a língua nunca pode ser pensada sem se levar em conta sua poesia (MILNER, 1987) - diz que a lingüística deve ser capaz de abordar o equívoco “... como fato estrutural implicado pela ordem do simbólico. Isto é, a necessidade de trabalhar no ponto em que cessa a consistência de representação lógica inscrita no espaço dos ‘mundos normais’” (PÊCHEUX, 1983, p. 51). Nesse mesmo trabalho Pêcheux traz à cena a questão dos universos logicamente estabilizados em contraposição aos universos não logicamente estabilizados, sendo que estes últimos representam lugares resistência à ordem simbólica, permeada pela ideologia. O equívoco viria assim, como meio de se romper a consistência destes espaços estabilizados logicamente, testemunhando a não completude desses (é o deparar-se com o real a que Pêcheux referiu-se na citação acima). Sabe-se que se busca o sentido naquilo que escapa, no que está fora da língua. É na lalangue que o sujeito vai enlaçar seu desejo, ou seja, no excesso que escapa à língua, na fratura que a lalangue proporciona. Pêcheux (1983) diz, como vimos, que não se encontra o real, mas que se depara com ele. Como afirmam Pêcheux e Gadet (2004) o real da língua está atravessado por fissuras, e, segundo os autores, Saussure não resolve a contradição que une língua e lalangue; ele apenas a torna visível, pois traz à tona o real e o impossível da língua. Tais fissuras da lalangue trazem aos fatos lingüísticos o equívoco; afinal, sempre diz-se alguma coisa através da palavra que falta. É preciso destacar que partimos do pressuposto de que existe apenas um real e não diversos reais, não há real da língua, do sujeito, do discurso, o que existe são modos do real se manifestar e transitar de diferentes formas na língua, no sujeito, e no discurso. Já citando a psicanálise, Lacan no seminário 22 (1974 -1975) se dedica à questão dos três registros que compõe a funcionamento da cadeia significante, me refiro aqui aos registros do real, do simbólico e do imaginário (na notação lacaniana, RSI, respectivamente). A teoria lacaniana do RSI sustenta-se na notação do nó borromeano, um nó feito de três círculos onde os três registros entrelaçam-se e coexistem, em relação de dependência direta entre si, ou seja, um não pode existir sem o outro, como se nota no esquema abaixo:
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um nó feito de três círculos onde os três registros entrelaçam-se e coe de dependência direta entre si, ou seja, um não pode existir sem o o no esquema abaixo:
I
a R
S
Figura 1 : Nó borromeano de LACAN, 1974-1975, p. 19). Figura 1 (adaptado : Nó borromeano (adaptado de LACAN, 1974-1975,
O nó borromeano seráOnossa base para discussão de como as marcas do real estão nó borromeano será nossa base para discussão de como presentes no equívoco. Lacan vai mostrar que a figura do nó não é estática, ao estão presentes no equívoco. Lacan vai mostrar que a figura do nó contrário, o nó contrário, funciona deomodo dinâmico. o objeto (a), localizado centro nó funciona deSerá modo dinâmico. Será o no objeto (a), local do nó que fará interagir os três registros. nó que fará interagir os três registros. Apesar da proposta desse trabalho centrar-se no real, acreditamos que não é Apesar da proposta desse trabalho centrar-se no real, acred possível falar do real puro, pois como bem se nota no nó borromeano, os registros se possível falar do real puro, pois como bem se nota no nó borromea interpenetram. É interessante notar que o objeto (a), enquanto elemento “unificador” interpenetram. interessante notar quecom o objeto (a),queenquanto elem dos três registros, desempenharáÉdistintos papéis de acordo o registro toca. três(a) registros, desempenhará distintosimaginário papéis dee simbólico, acordo com o re Ao tocar o real, odos objeto marca a falta; inscrito nos registros tocar o real, o objeto (a) marca a falta; inscrito nos registros ele tem função de tamponar essa mesma falta. Nosso trabalho, como veremos adiante,imaginá tem função essa mesma centrará sua discussão na partededotamponar nó onde o objeto (a) toca ofalta. real. Nosso trabalho, como sua concevoir discussãoque na c’ parte nó onde o objeto (a) toca o real. Para Lacan « centrará Le Réel, faut est l’edo xpulsé du sens. C’est l’impossible Para Lacan « Le Réel, faut concevoir quevoulez, c'est l'expul comme tel. C’est l’aversion du sens, (1-apostrophe). C’est aussi, si vous l'impossible comme tel. C'estC’el'aversion sens,du(1-apostrophe). C l’aversion du sens dans l’anti-sens et l’ante-sens. st le choc enduretour Verbe, en voulez, l'aversion du sens dans l'anti-sens et l'ante-sens. C'est le tant que le Verbe n’est pas là que pour ça » (LACAN, 1974-1975, p. 106). Verbe, tant quesentido, le Verbe là que ça »impossível (LACAN, 1974 Para dar nome a esseen real (anti oun'est ante pas (antes do) pour sentido, como tal, como Lacan faz notar o real é a aversão (l’aversion) ao sentido e ao mesmo tempo a versão (la version) do sentido) que se manifesta na língua, Lacan vai criar o termo lalangue. Como afirma Arrivé (1998), Lacan opera “uma solda ortográfica entre o artigo e o nome” fazendo com que, conseqüentemente, “la langue” (a língua) se torne uma única palavra: “lalangue” (alíngua). Tal fato, explica Lacan, marca a não pertinência dos cortes da análise lingüística tradicional. Em “Conferência de Genebra sobre o sintoma”, ele acrescenta “(...) el lenguaje, esse lenguaje que no tiene 215
absolutamente ninguna existência teórica, interviene siempre bajo la forma de una palabra que quise fuese lo más cercana posible a la palabra francesa ‘lallation’ – laleo en castellano - , lalengua.” (LACAN, [1975] 2001, p.125). A lalangue é a presença do real na língua, ou seja, na língua o real transita em forma de lalangue, porém ele se revela no que escapa à língua, naquilo que lhe faz furo. É a irrupção do equívoco na língua que faz com que nos deparemos com a incompletude dessa, atestando assim a presença de um real que não pode ser dito e nem recoberto em sua totalidade. Esse real presente no equívoco pode se manifestar pela falta, pelo excesso, pelo repetido, pelo parecido, pelo absurdo, ou no nonsense (FERREIRA, 2001). Todas essas formas de manifestação rompem o fio discursivo, mostrando que a língua é lugar de jogo, onde um enunciado pode ser ao mesmo tempo ele e um outro. A AD postula assim que o equívoco situa-se numa área de tensão entre a materialidade lingüística e a materialidade histórica, onde o impossível da língua encontra-se com a contradição histórica (GADET E PÊCHEUX, 2004). Milner (1987) acrescenta que a língua é tocada pelo real, pois não se pode atribuíla totalmente ao imaginário. O autor chega a questionar os princípios da lingüística (o autor refere-se, sobretudo, à gramática, aos puristas e à lingüística saussuriana) que tentam “dar conta” do real numa tentativa de anulá-lo, suturá-lo e por fim ignorá-lo colocando-o num lugar de menor importância, de exceção (por exemplo, o a-gramatical de Chomsky). Para ele, a lingüística aborda o real, ao contrário da hermenêutica, que se interessa pelas condições de observação. Ele conclui que a lingüística interessada pelas propriedades do real da língua e o reconhecimento disso dá ao sujeito falante um estatuto, na língua e em toda locução, de não dominante, ou seja, ele não é mestre nem responsável por aquilo que diz. Esse também é o interesse e a zona de trabalho da AD e da psicanálise. De acordo com Pêcheux e Gadet (1981), temos ainda que o real na língua reside entre a noção de uma ordem própria da língua e de uma ordem exterior. Dentro de tal ordem, o real na língua está no fato de que ela é Um (relação com o nada, apreensão do impossível), já em relação a seu exterior, este real reside no proibido. A isso, Lacan ([1972-1973] 1996) pode acrescentar o fato de que o Um, encarnado na lalangue não é outra coisa senão o significante-mestre (S1)1 , que fica suspenso entre a palavra, o fonema e o pensamento. Um real que não pode ser dito, nem mesmo atingido, portador de um saber que não se sabe. Gadet e Pêcheux (1981) afirmam também que o real na língua é cortado/marcado por falhas e que essas falhas revelam-se nos lapsos e nos witz, por exemplo. É a presença da lalangue que fundamenta o espaço do repetível e do equívoco que afeta esse espaço. Propomos, desse modo, que o equívoco, como forma de manifestação da lalangue se localize no centro do nó, junto ao objeto (a), desse modo temos: 216
cortado/marcado por falhas e que essas falhas revelam-se nos lapsos e nos witz, por exemplo. É a presença da lalangue que fundamenta o espaço do repetível e do equívoco que afeta esse espaço. Propomos, desse modo, que o equívoco, como forma de manifestação da lalangue se localize no centro do nó, junto ao objeto (a), desse modo temos: Ideologia I
* a linha pontilhada representa o corte
a R
Impossível – onde a psicanálise trabalha. Lugar da lalangue.
no nó que propomos abordar nesse trabalho
S
Cadeia significante – lugar do discurso – onde a AD trabalha.
*
Lugar da falta (presentificada pelo objeto (a)) – onde se instaura o equívoco. 2 : Nó borromeano a notação do do que articula nos três (adaptado de Figura 2 :Figura Nó borromeano e a enotação quesese articula nosregistros três registros (adaptado LACAN, 1974-1975, p. 19). de LACAN, 1974-1975, p. 19). Fazendo o recorte teórico proposto pela linha pontilhada (ver figura acima),
como foco o objeto (a) comopela lugar onde também está o equívoco. Fazendo tomaremos o recorte teórico proposto linha pontilhada (ver figura acima), O objeto (a), como elemento unificador e ponto comum entre RSI, “aparece” tomaremos como foco o objeto (a) como lugar onde também está o equívoco. apenas no discurso do sujeito, ou seja, quando ele (o objeto (a)) é recoberto pelo e ditoelemento pelo simbólico. Ao falar para dar conta de sua falta o O objetoimaginário (a), como unificador e ponto comum entreestrutural, RSI, “aparece” próprio discurso do sujeito se marca faltoso, é um furo (que o discurso tenta, a todo apenas nomomento discurso do sujeito, ou seja, quando ele (o objeto (a)) é recoberto pelo tamponar), por isso Lacan vai localizar o objeto (a) no centro do nó imaginárioborromeano e dito pelo simbólico. Aofunção, falar funcionando para dar conta de sua falta estrutural, (o objeto (a) tem dupla positivamente no discurso ao tempo o marcasecomo não-UM). Marcado pelafuro falta,(que essa vai aparecer notenta, a o próprio mesmo discurso doquesujeito marca faltoso, é um o discurso discurso nos chamados atos falhos da língua, instaurados pelo equívoco. todo momento tamponar), por isso Lacan vai localizar o objeto (a) no centro do nó borromeano (o objeto (a) tem funcionando positivamente discurso não dupla é unívoco.função, Está representado, é claro, mas também não está representado.no Nesse nível, alguma coisa fica oculta em relação a esse mesmo significante.” ao mesmo tempo que o marca como não-UM). Marcado pela falta, essa vai aparecer no discurso nos chamados atos falhos da língua, instaurados pelo equívoco. É preciso lembrar que o objeto (a) circula nos três registros a partir do contorno que lhe é dado pela pulsão (LACAN, [1963-1964] 1998), contorno entendido aqui no sentido duplo do termo, qual seja, no sentido de envolver o objeto e de lhe dar contorno, forma. O conceito de pulsão, criado por Freud ([1915] 1996), deriva da palavra alemã Trieb; e constitui-se enquanto um conceito fundamental da teoria psicanalítica. Segundo Freud (op.cit.), a pulsão é o conceito limite para descrever a fronteira entre o psíquico e o somático. A teoria freudiana das pulsões parte do conceito de narcisismo e apresenta-se dividida em dois momentos bem marcados: inicialmente,
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Trieb; e constitui-se enquanto um conceito fundamental da teoria psicanalítica. Segundo Freud (op.cit.), a pulsão é o conceito limite para descrever a fronteira entre o psíquico e o somático. A teoria freudiana das pulsões parte do conceito de narcisismo e apresentase dividida em dois momentos bem marcados: inicialmente, Freud postula a questão das Freud postula(onde a questão das pulsões se incluem as pulsões sexuais ee, num pulsões parciais se incluem as parciais pulsões(onde sexuais e de autoconservação) de autoconservação) e, num traze àde cena as (Tânatos pulsões dee Eros, segundo momento, o autor traz segundo à cena asmomento, pulsões odeautor morte vida morte e de vida (Tânatos e Eros, respectivamente), cuja função é manter o “bemrespectivamente), cuja função é manter o “bem-estar” psíquico do sujeito. estar” psíquico do sujeito. Em Lacan, o conceito de pulsão é abordado sobretudo no seminário 11, onde Em Lacan, o conceito de pulsão é abordado sobretudo no seminário 11, onde o autor coloca a pulsão como um dos conceitos fundamentais da psicanálise e, portanto, o autor coloca a pulsão como um dos conceitos fundamentais da psicanálise e, essencial à experiência analítica. O primeiro ponto destacado por Lacan ([1963-1964] portanto, essencial à experiência analítica. O primeiro ponto destacado por Lacan 1998)([1963-1964] é que não se1998) deveé jamais a pulsão comaimpulso, pois, segundo que nãoconfundir se deve jamais confundir pulsão com impulso, pois,o autor, esses segundo dois conceitos são totalmente distintos. Lacan nos diz que o impulso faz o autor, esses dois conceitos são totalmente distintos. Lacan nos diz que oparte da pulsão, e quefaz essa última comporta ainda outros três elementos: fonte, o objeto e o impulso parte da pulsão, e que essa última comporta ainda outrosatrês elementos: alvo. a fonte, o objeto e o alvo. Lacan mostra que a tem pulsão uma força constante que vai ser o Lacan mostra que a pulsão aindatem umaainda força constante e que vai ser o epulsional pulsional que dará contorno ao objeto (a), contorno entendido, como já dito, no sentido que dará contorno ao objeto (a), contorno entendido, como já dito, no sentido duplo duplo do termo. A ligação entre desejo é revelada, partir da do termo. A ligação entreaapulsão pulsão eeoodesejo nosnos é revelada, assim,assim, a partirada sinalização de Lacan, queque nosnosmostra circuitopulsional pulsionalcircunda circunda o objeto do sinalização de Lacan, mostracomo como oo circuito o objeto desejo,doodesejo, objetoo objeto (a). Isso ficafica bem demonstrado esquemaproposto proposto pelo autor no (a). Isso bem demonstradono no esquema pelo autor no seminário 11: seminário 11:
Figura 3: Circuito pulsional (LACAN, [1968-1969] 1998, p. 169). Figura 3: Circuito pulsional (LACAN, [1968-1969] 1998, p. 169).
Onde, Lacan (op.cit.) explica : que o alvo da pulsão é o retorno no circuito,
Onde, Lacan (op.cit.) explica : que o alvo da pulsão é o retorno no circuito, por por isso sua circularidade; aim é o trajeto, ou seja, o caminho pelo qual a pulsão deve isso sua circularidade; aim é o trajeto, ou seja, o caminho pelo qual a pulsão deve caminhar; goal não é o alvo, mas sim a satisfação, é o acertar o alvo e; (a) é o objeto, caminhar; goal não é o alvo, mas sim a satisfação, é o acertar o alvo e; (a) é o objeto, não importando qual objeto seja, pois este comporta um vazio que nunca poderá ser não importando qual objeto seja, pois este comporta um vazio que nunca poderá preenchido. ser preenchido. Como bem destaca Juranville (2003), (a) é odaobjeto da Como bem destaca Juranville (2003), o objeto (a) oé oobjeto objeto próprio pulsão, próprio mas pulsão, mas também é o objeto do fantasma. Tendo em vista isso, o autor vai dizer que também é o objeto do fantasma. Tendo em vista isso, o autor vai dizer que o objeto
o objeto (a), enquanto objeto que falta não é objeto do desejo (pois sabemos que tal objeto não existe, é um engodo do sujeito), 218mas que o objeto (a) é um objeto para o desejo, na medida em que está ligado a ele, constituindo-se assim como objeto da pulsão. O que temos é uma articulação inevitável entre desejo e pulsão, afinal será a
(a), enquanto objeto que falta não é objeto do desejo (pois sabemos que tal objeto não existe, é um engodo do sujeito), mas que o objeto (a) é um objeto para o desejo, na medida em que está ligado a ele, constituindo-se assim como objeto da pulsão. O que temos é uma articulação inevitável entre desejo e pulsão, afinal será a partir da pulsão que o sujeito terá pela primeira vez uma relação efetiva com o objeto que se tornará, mais tarde, objeto causa do desejo. Lacan vai definir, então, a pulsão da seguinte maneira: “Direi que, se há algo com que se parece a pulsão, é com uma montagem. Não é uma montagem concebida numa perspectiva referida à finalidade. (...) A montagem da pulsão é uma montagem que, de saída, se apresenta como não tendo nem pé nem cabeça – no sentido em que se fala de montagem numa colagem surrealista.” (LACAN, [1968-1969] 1998, pp. 160-161).
Mas qual seria a relação da pulsão com o discurso? Dizemos que é a pulsão que irá dar sustentação ao dizer do sujeito (dizer da falta), ou seja, é ela que, em última instância sustenta a linguagem e toda a cadeia significante. Podemos dizer que a pulsão teria papel modulador, pois, ao sustentar o equívoco, ela vai marcar aquilo que faz furo na língua: toca-se aqui na localização da pulsão e sua relação com os três registros. Ao circular o objeto (a) a pulsão articula-se no plano dos três registros, mas de que modo? Lacan diz que o equívoco (e, por conseqüência, toda a cadeia significante) localiza-se no centro do nó borromeano, ou seja, onde se articulam os registros simbólico, real e imaginário e onde o autor coloca o objeto (a) (ver figura 2). Mas, como a pulsão sustenta o equívoco? Creio que ao contornar o objeto (a) (como pode ser visto na figura 3) e dar o “imput” ao desejo, ou seja, ao colocá-lo na cadeia significante e fazê-lo falar. Mas o fato lingüístico do equívoco revela ao sujeito que a língua é um sistema de diferenças, sendo assim também um sistema marcado pela incompletude. Seguindo essa linha de raciocínio, temos que para Lacan, a língua suporta o real da lalangue, e esta última, como já dissemos é entendida como não-toda e marcada pela falta. É esse não-todo da língua que sustenta a lalangue e que concerne esta à verdade e ao real. Como afirma Milner (1987), a lalangue é aquilo que torna possível um ser dito falante, pois segundo ele amor e língua se enraízam na lalangue enquanto lugar do impossível, daquilo que excede à língua e marca sua presença no desejo do ser falante. A esse respeito, o autor sintetiza: “(...) lá onde o amor é tecido de desejo, e nega a necessidade da lalangue, é o desejo que a língua faz como se não existisse, e é da lalangue que ela constrói seu material. (...). Que a lalangue existia de fato equivale a dizer, como vimos, que o amor é possível, que o signo de um sujeito pode causar um desejo, que 219
um sujeito de desejo pode fazer o signo numa cadeia; é por aí que a lalangue excede a língua e imprime nela a marca pela qual se faz conhecer”. (MILNER, 1987, p.64)
Há algo então que excede à língua e é neste ponto que Lacan nos chama a atenção para o lugar do trabalho do analista e a construção de sentidos que se dá no discurso analítico: “Seguir o fio do discurso analítico não tende para nada menos do que refraturar, encurvar, marcar com uma curvatura própria, e por uma curvatura que não poderia nem mesmo ser mantida como sendo uma das linhas de força, aquilo que produz como tal a falha, a descontinuidade. Nosso recurso é, na lalangue, o que a fratura.” (LACAN, [1972-1973]1996, p.61)
Pêcheux, por sua vez, afirma que todo enunciado está exposto ao equívoco da língua. A partir daí ele torna explícito o trabalho do analista do discurso: “(...) todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro. (...) Todo enunciado, toda seqüência de enunciados é, pois, lingüisticamente descritível como uma série (...) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar a interpretação. É nesse espaço que se pretende trabalhar a análise de discurso.” (PÊCHEUX, [1983] 1997, p.53).
Podemos dizer que o equívoco, entendido como manifestação da lalangue (o que o fratura), irá revelar aquilo que do real escapa à língua, fazendo-lhe excesso. Ou seja, tais falhas, equívocos da língua (manifestações da lalangue), são estruturantes da língua e não podem ser concebidas como problemas de interpretação, pois todo equívoco que incide na língua será para o sujeito a evidência de que a lalangue sabe. Neste ponto, ressalta Ferreira (2000), aparece o equívoco (e, acrescentaria, a lalangue) como o lugar no qual língua e história se tocam. É o equívoco, tecido de lalangue, que vai afetar o real que transita na história, produzindo sentidos. Ou seja, ver o real “aparecer” no equívoco revela ao sujeito sua incompletude constitutiva e interdita a esse sujeito o fazer-UM com a língua; esse não fazer-UM relaciona-se diretamente com duas máximas lacanianas: “não há relação sexual” (pois o desejo nunca pode ser satisfeito, afinal o objeto (a) é uma ilusão) e “não existe metalinguagem” (nada pode ser dito fora da linguagem e, tudo não se diz). Incompleto e sem conseguir fazer-UM o sujeito continua a desejar um objeto ilusoriamente perdido e que é trazido a todo o momento no discurso. Lacan “acerta o alvo” quando diz que “(...) l’inconscient, d’être ‘structuré comme um langage’, c’est-à-dire lalangue qu’il habite, est assujeti à l’equivoque dont chacune se distingue” (LACAN, [1972] 2001, p. 409). 220
Temos assim um sujeito que se move aparecendo entre significantes (pressuposto lacaniano) no discurso, um discurso marcado pela falta, na presença/ausência de um objeto que não existe senão por ilusão, por criação discursiva. Uma criação discursiva que está a todo momento pronta a se desfazer, revelar-se incompleta, eis o equívoco e os atos falhos da língua, como lugares privilegiados de análise, de onde podemos observar a língua incompleta funcionando a partir de uma fala desejante, e portanto, também marcada pela falta. Ao reconhecer tais equívocos, aquilo que da língua faz furo no real é que se reconhecerá a própria mola de funcionamento do inconsciente, e, em última instância, a dinâmica de produção dos sentidos. Ter em mente que há uma língua afetada pelo real e que este real lhe escapa, lhe faz excesso, nos permite a partir do que foi exposto conjecturar uma relação próxima entre a lalangue da psicanálise e o equívoco da AD. O equívoco revela marcas de um real impossível de ser apreendido, senão por trabalho da lalangue em sua articulação nos três registros: real, simbólico e imaginário.
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Notas 1 Segundo Lacan ([1969-1970] 1992), o significante-mestre é a marca da entrada do sujeito no simbólico e consequentemente opera na constituição deste sujeito enquanto faltante/desejante. Como explica o autor (LACAN, op.cit., p.38): “O que afirmo, o que vou hoje anunciar de novo, é que o significante-mestre, ao ser emitido nas direções do meio do gozo que são aquilo que se chama saber, não só induz, mas determina a castração. Voltarei ao que se deve entender por significante-mestre, partindo do que afirmamos a este respeito. De início, seguramente, ele não está. Todos os significantes se equivalem de algum modo, pois jogam apenas com a diferença de cada um com todos os outros, não sendo, cada um os outros significantes. Mas é por isso que cada um é capaz de vir em posição de significante-mestre, precisamente por sua função eventual ser a de representar um sujeito para outro significante. É assim que o defini desde sempre. Só que o sujeito que ele representa não é unívoco. Está representado, é claro, mas também não está representado. Nesse nível, alguma coisa fica oculta em relação a esse mesmo significante.” 222
• INTERDISCURSO E MEMÓRIA: NAS TRAMAS DOS DISCURSOS SOBRE A MULHER1 Lucia M. A. Ferreira (UNIRIO) Em sua reflexão sobre o papel da memória, Pêcheux (1999, p. 49) nos coloca diante de uma pergunta instigante: em que condições um acontecimento histórico “poderá vir a se inscrever na continuidade interna, no espaço potencial de coerência próprio a uma memória”? Neste trabalho, examino a questão posta por Pêcheux, levando em consideração alguns dos aspectos discursivos que propiciam a inscrição dos acontecimentos na memória social, aqui entendida não como uma representação coletiva, mas como um processo histórico, uma (re)construção que se dá no constante movimento da vida social e que resulta, portanto, de tensões e disputas de interpretações. Não se trata, contudo, de ver a memória social como evolução no tempo, nem como um processo de perda de referências. Pelo contrário, a reatualização da memória pressupõe um movimento constante de (re)construção do passado, que envolve esquecimentos, ressignificações e disputas, mas que também aponta para uma memória imaginária do futuro. O que se pretende neste tipo de investigação é entrever de que forma esses processos são mobilizados para que determinados sentidos se tornem hegemônicos e de que forma sua historicidade se inscreve na materialidade textual. Para que se possa melhor compreender sua presentificação e historicização, serão examinadas as noções de interdiscurso e memória discursiva no âmbito do discurso da imprensa, mais especificamente em enunciados sobre a mulher produzidos em diferentes momentos da nossa história. Apesar das tensões, dos confrontos e das alianças que orientam a produção de sentidos, as operações do discurso da imprensa se apagam, produzindo um efeito de transparência a ser desnaturalizado na análise.
As formações discursivas (FDs) e o trabalho da memória O sujeito enuncia a partir das formações imaginárias de seu grupo social, afetado pelos inúmeros discursos que participam de sua constituição e que se constroem no interior de FDs que, invadidas por sentidos oriundos de outras FDs, encontram-se em constante processo de estabilização e desestabilização. A historicidade desses pré-construídos e saberes partilhados socialmente encontra-se, no entanto, apagada para o sujeito (Mariani, 1999, p.32). Vale ressaltar que esta noção de FD como espaço heterogêneo pressupõe a alteridade e a diferença no âmbito dos saberes que a configuram. De fato, as primeiras formulações de FD são criticadas por Pêcheux (2002, p. 56), para quem elas muitas 223
vezes se assemelhavam a “uma máquina discursiva de assujeitamento dotada de uma estrutura semiótica interna e por isso voltada à repetição”. O discurso, nos diz o autor, não é independente das redes de memória e dos trajetos sociais em que ocorre, constituindo-se, ao mesmo tempo, em “um efeito dessas filiações e um trabalho... de deslocamento no seu espaço”. Na mesma perspectiva, Courtine (1981;1999) destaca que o domínio do saber de uma FD, que pressupõe a contradição e a heterogeneidade, funciona como um princípio de aceitabilidade e de exclusão de caráter instável. Não é possível definir seus limites, em função das disputas ideológicas e das transformações da conjuntura histórica. O domínio do saber de uma determinada FD – o interdiscurso - está em permanente reconfiguração, em função dos posicionamentos ideológicos que levam à incorporação de elementos pré-construídos em seu exterior, que podem atuar tanto reiterando os elementos já presentes e organizando a sua repetição quanto provocando a sua transformação ou mesmo seu desaparecimento. Da mesma forma, assim como devemos entender a FD como heterogênea em relação a si mesma por abrigar a diferença em seu interior, a memória, como propõe Pêcheux (1999, p. 56), “é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos, de regularização ... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos”. Voltando, então, à pergunta a que nos referimos no início, sobre as condições que propiciam a inscrição do acontecimento no espaço da memória, rompendo com uma possível estabilização anterior, percebemos uma imperiosa necessidade de integrálo e de filiá-lo a uma rede de sentidos para que ele mesmo faça sentido. Como nos diz Mariani (1999, p.41), “Filiar, neste caso, corresponde à busca de implícitos que permitam sua compreensão e integração no momento presente ou futuro”. É justamente este o trabalho e o papel da memória discursiva, definida por Pêcheux (1999, p. 52) como “aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os “implícitos” (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos transversos, etc) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível”. O choque do acontecimento faria sempre atuar forças antagônicas na memória: uma que visa manter a regularização e os implícitos pré-existentes e negociar a integração do acontecimento; a outra, ao contrário, visaria uma desregulação que vem perturbar a rede de implícitos.
Falando de mulher: interdiscurso e memória na imprensa Considerar que a memória pode se constituir sob diferentes modos de textualização, dentre os quais a produção jornalística, significa pensar a relação de forças que permitirá sua inscrição, muitas vezes atribuindo-lhe relevância histórica, em detrimento de outros sentidos que não se fixarão. 224
Um dos efeitos de sentido do discurso jornalístico, em decorrência de sua histórica inserção no tecido social e por força de sua própria institucionalização, é a aura de objetividade e de referencialidade que lhe confere eficácia simbólica. No âmbito da imprensa brasileira, esta característica é, via de regra, associada às transformações por que passou o jornalismo na década de 50, em decorrência da modernização tecnológica e empresarial. Antes disso, a escrita jornalística pautava-se no comentário e era normal a expressão de pontos de vista particulares. Os jornais eram instrumento da luta política e os debates eram apaixonados e agressivos (Sodré 1999; Ribeiro, 2007). Mas a relevância da fala autorizada no que diz respeito à construção dos sentidos sobre o real inscreve-se mesmo na primeira edição do Correio Braziliense, de Hipólito da Costa, em junho de 1808: “[...] Ninguém mais útil pois do que aquelle que se destina a mostrar, com evidencia, os acontecimentos do presente, e desenvolver as sombras do futuro. Tal tem sido o trabalho dos redatores da folhas públicas [...]”
Na discursivização do cotidiano nas páginas dos jornais, apaga-se, tanto para o leitor quanto para o sujeito enunciador, o elemento que autoriza a imprensa a agendar os temas sobre os quais podemos e devemos pensar, sem que se deixem perceber os mecanismos de filiação dos sentidos e os re-alocamentos da memória. “Há um fio que tece e conduz nos jornais o ecoar das repetições parafrásticas, impedindo o deslizar dos significantes e/ou as resistências históricas, misturando passado, presente e futuro” (Mariani, 1998, p 97). Focalizando mais pontualmente o objeto de minha reflexão, penso que alguns dos sentidos relacionados à figura feminina colocados em circulação em matérias jornalísticas de diferentes momentos da nossa história, ao longo de um período de cerca de 130 anos, embora atravessados por diferentes discursos, deixaram marcas não apenas nas páginas dos jornais, mas também na memória social. Dito de outra forma, certos objetos do discurso, por sua recorrência, adquiriram estabilidade no domínio da memória, tornando-se, então, hegemônicos. Para desenvolver este argumento e melhor compreender a que formações discursivas se filiam estes sentidos, analiso recortes de matérias publicadas em periódicos brasileiros em diferentes períodos da nossa história. Diante do pequeno corpus analítico aqui apresentado, as seguintes perguntas se impõem: em primeiro lugar, se supomos ser o discurso jornalístico um lugar de saber sobre o sujeito, que lugares são construídos para o sujeito-mulher nos textos? A segunda indagação diz respeito à inscrição dos sentidos na memória. Que implícitos são veiculados e de que forma contribuem para uma regularização dos sentidos?
225
Ecos do final do século XIX As seguintes seqüências discursivas exemplificam sentidos construídos sobre as mulheres em alguns periódicos da imprensa feminina do final do século XIX: (1) Se o homem trabalhar fóra de casa (e d’estes é o maior número) os desvelos da esposa devem prevenir-lhe a hora da chegada, tendo-lhe promptas as refeições, a roupa fresca no verão, conchegada no inverno, os sorrisos, as expressões que o indemnisem das fadigas diurnas. O esquecimento d’estes deveres póde trazer innumeras consequencias desagradaveis e funestas para a moralidade e para o bem estar das famílias (O Echo das Damas, 4 jan 18882). (2) Se as mães teem, pois, a parte mais importante e séria na educação da primeira idade, que é quando se formam o gosto e as observações que toda a vida nos encaminham; justo é que o seu desenvolvimento physico, moral e intellectual não seja mais comprido nos athrophiadores moldes; que nos legou a idade media (O Echo das Damas, 4 jan. 1888). (3) A mulher está, pois totalmente acorrentada ao negro pelouro do jesuitismo, essa hydra que é necessario esmagar (O Echo das Damas, 3 ago 1880).
A seqüência discursiva (1) encontra-se em um artigo intitulado “Deveres da mulher: no interior da sua casa”, publicado pelo periódico O Echo das Damas, editado pela escritora e jornalista Amélia Carolina da Silva Couto. O periódico circulou na Corte de 1879 a até pelo menos 1888. Seu âmbito de atuação é definido no subtítulo: “orgao dos interesses da mulher, critico, recreativo, scientifico e litterario” e em suas páginas foram publicadas matérias de diferentes matizes. A exemplo de outros periódicos da época, nas páginas de O Echo das Damas também ecoavam os discursos de reforma e modernização social fortemente calcados na organização e moralização da família. Muitas das matérias publicadas consistiam em recomendações à mulher em seu papel de mãe e esposa. No exemplo (1), essas recomendações detalham o elenco de ‘deveres’ impostos à esposa para garantir o conforto do marido e a moralidade do lar. A não observação das recomendações poderá levar o marido a procurar o conforto e o aconchego fora de casa. Eram também freqüentes as matérias em que se criticava a pouca atenção dada à educação feminina, como em (2), onde a reivindicação por melhores condições de educação era freqüentemente justificada pela necessidade de educação dos filhos, na medida em que a ‘atrofiada’ educação da mãe não poderia atender às demandas de modernização da sociedade com relação ao desenvolvimento infantil. Ecoam no periódico, muitas vezes materializadas em textos assinados por mulheres, as vozes dos higienistas e pedagogos, reformadores sociais do período, que vinculavam a 226
modernização e o desenvolvimento urbano à modificação do comportamento familiar. Na construção de uma imagem calcada no ideário moderno, colaboram os perfis de mulheres notáveis construídos no jornal, como, por exemplo, os das primeiras médicas brasileiras, que tiveram seus feitos amplamente divulgados e exaltados. A medicina e o magistério apresentam-se como espaços de atuação possíveis para a mulher, tendo em vista a melhor educação e a regeneração dos costumes da sociedade. É o interdiscurso que organiza e sustenta a enunciação, fornecendo-lhe os objetos do discurso. O espaço discursivo de O Echo das Damas era bastante heterogêneo e desde a sua fundação nele também eram abordados temas polêmicos, como a questão religiosa, debate acalourado entre os defensores da influência do catolicismo nos assuntos do Estado e os liberais, que defendiam as reformas de modernização do país. Em atitude de clara oposição à influência moral da igreja e mobilizando pré-construídos nos discursos da mitologia e da história, a articulista que assina a matéria intitulada “Questão religiosa”, no dia 3 de agosto de 1880 (3), por exemplo, exorta a mulher a abandonar o fanatismo encorajado pela igreja católica. A forte crítica ao comportamento conservador feminino, vinculado ao atraso promovido pela adesão às teses da Igreja aponta para o desfecho futuro das discussões acerca da questão religiosa. Na exterioridade do enunciável, no espaço interdiscurivo, estão os embates parlamentares que culminariam, em 1890, com a aprovação dos decretos relativos à separação entre Igreja e Estado e com a instituição do casamento civil, que passava a ser atribuição da República. A exemplo do que ocorria em O Echo, a imprensa feminina do final do século XIX, em sua heterogeneidade constitutiva, construía discursos atravessados pelas teses de modernização do país e da necessária reconfiguração dos papéis sociais femininos nessas transformações. Alguns periódicos, como por exemplo A Família, destacaram-se também por veicular veementes discursos favoráveis ao sufrágio feminino e por denunciar os preconceitos em que se baseava a negação do direito de voto às mulheres (Ferreira, 2006, 2007; Taddei, Turack & Ferreira, 2006).
Os anos 50 As seqüências a seguir exemplificam sentidos sobre a mulher construídos pela imprensa dos anos 50 do século XX: (4) A mulher que trabalha não deve levar uma vida de reclusa. Deve ter tempo e possibilidade (...) de se dedicar às distrações que preferir. Mas para isso é preciso que saiba organizar bem o seu dia (...). Trata-se, portanto, de um problema de organização (Grande Hotel, 21 out 1958). (5) Uma personalidade formada de um pouco de vaidade, um pouco de 227
coqueteria, um pouco de malícia risonha, um pouco de ternura, um pouco de abnegação. E muito, muito de feminilidade (Correio da Manhã, 30 dez 1959).
Os pré-construídos mobilizados pela memória discursiva no enunciado da revista Grande Hotel (4) nos anos 50 configuram-se de maneira diferente. O circuito capitalista de produção e consumo do pós-guerra constrói outros lugares sociais para a mulher. Embora continue a exercer os papéis que lhe são atribuídos na esfera do privado, amplia sua atuação no espaço público do trabalho e do lazer. Na edição da revista examinada neste trabalho, de 21/10/1958, foram também publicados capítulos de histórias ilustradas com desenhos, foto-romances e contos. A edição também apresentava seções de horóscopo, receitas culinárias, cinema, letras de canções famosas, humor, moda e colunas de conselhos às mulheres. Quanto à publicidade, anúncios de produtos de beleza e higiene pessoal, moda, produtos de alimentação infantil, produtos de limpeza e medicamentos. O exemplo encontra-se em uma coluna de conselhos ao público feminino, “De Eva para Eva”, publicada regularmente. O texto, publicado na página 28 da edição examinada, intitulava-se “Organize bem o seu dia”. Lembrando que a mulher que trabalha não deve se tornar reclusa, recomenda que se organize, para que possa também dedicar-se às atividades que lhe dêem prazer, como ir ao cinema e ao teatro. Ao longo do texto é apresentada uma detalhada relação de tarefas domésticas com recomendações dos horários em que devem ser executadas. Deve levantar-se às 7 horas e, enquanto toma banho, aquece a água do café e começa a preparar a refeição do meio dia. Às 7:30 toma o café da manhã na companhia do marido, da mãe e dos filhos. Às 7:45 faz a cama e a limpeza do quarto e dá uma olhadela nos alimentos no fogo. Às 8:15 está vestida, tira a mesa e preparase para sair de casa A organização permitirá à mulher cuidar melhor de si, inclusive tendo tempo para dedicar-se às atividades sociais. Grande parte das revistas dirigidas ao público feminino na década de 50, embaladas pelo desenvolvimentismo da época, busca seus referentes nos produtos da indústria cultural americana, principalmente no cinema, que disseminava o American way of life. Para que possa efetivamente cumprir todas as expectativas da agenda que lhe é imposta pela ordem social, a mulher “necessita” ter sua conduta orientada e normatizada, processo que se sustenta e se estabiliza a partir de pré-construídos sobre os papéis femininos na sociedade. Enquanto instância semantizadora de sentidos sobre mulher, a revista Grande Hotel apresenta-se como lugar de saber e autoridade, distribuindo e agendando espaços de dizeres possíveis, a partir de um imaginário já constituído. Este processo, que se vincula a uma memória já institucionalizada, no entanto, apaga-se tanto para o sujeito que enuncia quanto para o leitor. No enunciado seguinte (5), também do final dos anos 50, um recorte de matéria publicada na coluna feminina de um periódico da grande imprensa, escrita por 228
Clarice Lispector3, é proposto um jogo de sedução feminina que tem como meta inquestionável a conquista do homem. Se a sedução começa com os cuidados com a aparência física, é também preciso formar uma “personalidade cativante”. A alegria, a delicadeza e a feminilidade dos gestos despontam como principais atributos. Os homens fogem das muito tristes e das que adotam “liberdade exagerada de linguagem ou de maneiras (...). Até hoje não conheci um só homem que não confessasse preferir a feminilidade a todas as demais virtudes da mulher”, confere o sujeito enunciador, legitimado pelo periódico em que escreve, o Correio da Manhã, um dos periódicos de maior circulação na época. Desenha-se então uma imagem ambígua, vinculada a uma rede de sentidos pré-construídos sobre a mulher e sobre a sua mítica trajetória de conquistadora e detentora de poderes mágicos de sedução. A interpretação produzida no texto circunscreve o universo feminino à conquista e ao jogo de ocultações, pelos disfarces necessários à conquista de um marido. Afinal, conforme as configurações das relações de poder vigentes, o caminho para a realização feminina passa necessariamente pelo casamento e pela constituição da família. Ressoa, então, ‘a voz sem nome’ de que fala Courtine, espaços de enunciados pré-construídos dos quais o sujeito enunciador se apropria para construir o efeito de consistência e coerência do discurso. A legitimação pelo discurso jornalístico dos sentidos já inscritos no imaginário, tem, decerto, um valor simbólico, orientado para a reprodução do modelo proposto.
As vozes do século XXI A última seqüência encontra-se em um periódico mensal da editora Abril voltado para o mundo corporativo: (6) Parece exagerado, mas vou deixar duas obras para o mundo: os meus filhos, que serão cidadãos de bem, e os sistemas que eu construí. Sem esses grandes significados, o que eu faço perde a graça (Você S/A, ago 2006).
Segundo a diretora de redação, na página 9, Você S/A “é a terceira revista mais lida pelos presidentes de empresas no Brasil”, perdendo apenas para as revistas Veja e Exame. Ainda segundo a redatora, a revista quer falar àqueles que desejam pensar a própria carreira, “profissionais que já conquistaram muito, mas querem ainda mais”. A revista fala principalmente aos executivos e a maioria dos textos traz perfis de profissionais bem sucedidos. O espaço publicitário, ocupado principalmente por anúncios de bancos, empresas de tecnologia e programas de qualificação profissional, mobiliza pré-construídos da FD do mundo corporativo contemporâneo. A matéria examinada intitula-se “Eu amo tudo que faço” e destaca o perfil de três executivos, duas mulheres e um homem. No texto há a inserção de boxes com narrativas 229
pessoais que pontuam a trajetória profissional e o cotidiano dos executivos. A seqüência (6) faz parte de uma dessas narrativas. A mulher, formada em ciência da computação, lidera 19 executivos. Trabalha 11 horas por dia, enfrenta 80 km de viagem até o trabalho e, devido à natureza de sua atividade, pode ter que trabalhar de madrugada. Mesmo assim, não negligencia a vida pessoal. Participa de maratonas, corre, joga tênis e come pizza com os filhos e o marido 3 vezes por semana. Vai à missa aos domingos. Por não conviver muito com pessoas fora do círculo familiar e do trabalho, freqüenta happy hours. Também se considera recompensada pela vida que construiu para si e orgulha-se dos filhos e de suas conquistas profissionais. Observe-se que o enunciado em (6), na primeira pessoa, confere ao discurso efeito de referencialidade e veracidade. O sujeito feminino que enuncia constrói lugares e desloca sentidos previamente construídos. Do imaginário, mobilizam-se sentidos que reconfiguram no interdiscurso o universo feminino. Embora tenha deslocado suas fronteiras, principalmente no que diz respeito à produtividade, à competitividade e ao sucesso (fala-se da e à mulher que valoriza a carreira e não da mulher ou à mulher que trabalha fora, como na década de 50), o universo feminino permanece inextricavelmente associado à família e à maternidade. Integrada ao sistema produtivo, sua (inverossímil) agenda diária, revelada nas relações intradiscursivas nas seqüências que compõem a reportagem, indica que procura a realização tanto na esfera privada, junto à família, quanto na esfera pública, no mundo do trabalho, da produção, tornando-se profissional competitiva e consumidora de produtos e serviços valorizados pelo mercado. Considerações sobre as indagações ao corpus Ao engajar-se nas práticas discursivas do cotidiano, o sujeito interpreta e constrói a realidade retomando e ressignificando os processos de significação que constituem a sua historicidade, mas que não se iniciaram nele. Isto não significa, contudo, que o sujeito tenha controle sobre este processo. Estabelece-se então uma identificação simbólica com determinados significantes. Esta identificação produzirá um efeito de consistência e coerência imaginárias para o sujeito, que se colocará então na origem do que diz. A palavra escrita, em decorrência de sua permanência, constitui-se em lócus privilegiado para a inscrição daquilo que merece ser lembrado. Os enunciados examinados, construídos na confluência de diferentes formações discursivas, estão vinculados a redes histórico-discursivas bastante distintas entre si em muitos aspectos, dentre eles o temporal. Não se pretendeu, no entanto, ver a memória social como evolução no tempo, nem como um processo de perdas ou de ganho de novas referências. O que se objetivou foi perceber como as regularidades, os deslocamentos e as descontinuidades na construção da memória social do feminino 230
ecoam no acontecimento do discurso da imprensa, atravessado pelo ideológico, pelo histórico e pelo imaginário. O efeito imaginário de continuidade entre épocas e de uma narrativa coerente para a construção social do feminino é efeito da memória, do jogo entre lembrança e esquecimento. Os textos da imprensa, aqui tomados como “monumentos” textuais, evidenciam as formações imaginárias e o pensável numa determinada época e em determinadas circunstâncias sócio-históricas. Se, na prática da análise, são vistos como acontecimentos a ler, permitem que sejam percebidos as diferentes redes de filiação de sentidos e implícitos a que se vinculavam.
Referências bibliográficas COURTINE, Jean-Jacques. O chapéu de Clémentis. In: INDURSKY, Freda; FERREIRA, Ma. Cristina L. Os múltiplos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999. ______. Analyse du discours politique – le discours communiste adressé aux chrétiens. Langages, n. 62, Jun. 1981. FERREIRA, Lucia M. A . A escrita de si na imprensa: exemplos da fala feminina no século XIX. In: MARIANI, B. (org.) A escrita e os escritos: reflexões em análise do discurso e psicanálise. São Carlos: Claraluz, 2006. FERREIRA, Lucia M. A. Uma memória da normatização da conduta feminina na imprensa. In: RIBEIRO, Ana Paula G. & FERREIRA, Lucia M. A. (orgs) Mídia e memória:a produção de sentidos nos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Mauad, 2007. MARIANI, Bethania. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais 1922-1989. Rio de Janeiro: Revan; Campinas: Ed. da Unicamp, 1998. NUNES, Aparecida (org). Clarice Lispector - Correio feminino. Rio de Janeiro: Rocco, 2006 PÊCHEUX, Michel. O Discurso – estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 2002. ______. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre et al. Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. PÊCHEUX, Michel. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre et al. Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. RIBEIRO, Ana Paula Goulart. Imprensa e história no Rio de Janeiro dos anos 50. Rio de Janeiro: e-papers, 2007. SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999. TADDEI, Ângela; TURACK, Cynthia; FERREIRA, Lucia M. A. Imagens da 231
mulher na literatura e na imprensa no Brasil oitocentista. Trabalho apresentado ao II Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade, PUC-RJ, 2006.
Notas 1 Trabalho desenvolvido no âmbito de projeto que examina um corpus diacrônico constituído de matérias jornalísticas publicadas pela imprensa brasileira desde 1808, financiado pelo CNPq. Para a pesquisa das fontes primárias na Biblioteca Nacional, contribuíram Josiane S. de Alcântara (IC- Faperj) e Hendy H. Maciqueira de Melo (IC- PIBIC). 2 Na medida do possível, foi mantida a grafia com que os textos foram publicados. É provável, no entanto, que haja algumas inconsistências já que foram copiados à mão do acervo da Biblioteca Nacional. 3 Clarice usava o pseudônimo de Helen Palmer (NUNES, 2006).
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O DISCURSO DO ESQUIZOFRÊNICO E A APROPRIAÇÃO DO DISCURSO-OUTRO
Patrícia Laubino Borba (UFRGS) Para estudarmos a apropriação do discurso-outro no discurso do esquizofrênico, vamos nos valer da noção de incisa, pois, na Análise do Discurso, a incisa é a manifestação da alteridade1. Para Indursky (1997), as incisas “consistem em seqüências discursivas mais ou menos completas, mais ou menos fragmentadas, oriundas de outros discursos, que, ao serem interiorizadas, não deixam pistas de sua procedência externa, nem do processo de apropriação por que passaram” (idem, p. 244). Para a autora, as incisas marcam um processo de apropriação de outros discursos, ou seja, a adesão de saberes que pertencem a outras formações discursivas ao fio do discurso. Porém, esses fragmentos apreendidos têm a sua referência modificada. Há também um apagamento do sujeito do discurso apropriado, pois as incisas não possuem marcas formais que mostrem a alteridade. O processo de apropriação produz um efeito de monologismo, que “provoca a ilusão de que o sujeito está na origem de seu dizer” (idem, p. 246). O corpus2 que estudaremos é composto por três entrevistas de pacientes diagnosticados esquizofrênicos internados nos hospitais Espírita e Afonso Martins, sob medicação3. Nossa análise será realizada a partir de blocos discursivos. Esses blocos serão organizados segundo sua identificação com alguma instituição ou com saberes que podem transitar em diversos grupos sociais – senso comum. Abaixo, serão reunidas algumas seqüências discursivas de referência (sdr) marcadas pelo funcionamento de incisas discursivas encontradas no arquivo pesquisado.
Bloco discursivo 1 – discurso apropriado: senso comum Visamos, no presente bloco, a estudar a apropriação que dois pacientes - (R., 27 anos, sexo masculino) e (J, V., sexo masculino, 40 anos) - fazem de discursos do senso comum. Abaixo, exporemos duas seqüências discursivas de referências dos pacientes estudados. sdr1 Entrevistador 1: Tu tava conversando demais? Paciente: É, conversando demais. Entrevistador 1: Com quem? 233
Paciente: Sozinho mesmo. Entrevistador 1: Ah, tu conversa sozinho? Como é que é essa história de conversar sozinho? Paciente: É, esquisito, né? Entrevistador 1: Tu fala com alguém? Paciente: Com alguém, né? (R., 27 anos, sexo masculino). sdr2 Paciente: Né? Então passei só vejo depois, eu vejo vozes, sinto vozes, né? Parece que tão falando comigo. [...] Entrevistador 2: O que que elas dizem? Paciente: Me chamam o meu nome. Entrevistador 2: Só isso? Paciente: Só. Então aquelas vozes (...) não me deixam dormir. Às vezes eu perco o sono, mesmo tomando remédio. E agora eu tomando Neozine, não. Neozine incha muito, por isso eu não gosto, doutor. (J. V., sexo masculino, 40 anos).
Há uma quebra na linearidade tanto na frase quanto do discurso na sdr1 e na sdr2 desse bloco. Na sdr1, o referente esquisito, no contexto da produção discursiva, não só é imprevisível dentro do discurso do paciente, como também se contrapõe a esse. Até o aparecimento do termo esquisito, o efeito de sentido produzido remete ao fato de o paciente achar normal ouvir vozes. Após o atravessamento desse termo, esse efeito de sentido mantém-se. O termo esquisito é um corpo estranho no discurso produzido pelo paciente. Esse termo vem de outro lugar e o discurso que o hospeda não consegue interferir em seu sentido. O referente esquisito carrega consigo o discurso do senso comum - ouvir vozes é esquisito –, porém aparece dentro de um discurso que diz o contrário. Na sdr2, assinalamos o referente parece como uma incisa por ser um corpo estranho ao efeito de sentido produzido no discurso do paciente. O paciente afirma que ouve vozes e que elas perturbam-no muito. O discurso do paciente produz um efeito de sentido que sugere o caráter de veracidade dessas vozes. Enquanto isso, o referente parece remete a um discurso contrário, que afirma que as vozes não existem de fato. O termo parece, que formalmente deveria exercer uma função modalizadora na fala do paciente, não produz esse efeito de sentido dentro desse discurso. Esse termo não interfere no efeito de sentido produzido no discurso do paciente, pois não abala sua crença na veracidade das vozes ouvidas por ele. Na incisa discursiva produzida no discurso normal (neurótico), as palavras estabelecem referência a partir do assujeitamento do falante e das formações imaginárias que estão atuando em seu discurso. No discurso psicótico, não ocorre essa apropriação dos referentes discursivos. Os referentes vinculados à incisa trazem 234
uma referência cristalizada, não estabelecendo, desse modo, uma nova referência no fio do discurso. Não se trata de sentidos literais, mas de referentes pré-construídos que foram estabelecidos em determinado grupo social e que acabam inseridos pelos pacientes em seu discurso sem, entretanto, produzir os efeitos de homogeneidade e de origem que deveriam ser estabelecidos na apropriação. No discurso normal, esses efeitos fazem com que o dizer pareça ter sido produzido naquela cena enunciativa. Como isso não ocorre no discurso do paciente, produz-se um efeito de estranhamento. Esse efeito é o resultado de uma ponta solta na teia desse discurso. No próximo bloco, estudaremos incisas estabelecidas pelos pacientes vinculadas a discursos que pertencem a alguma instituição.
Bloco discursivo 2 – discurso apropriado: institucional Analisaremos, nesse bloco, a apropriação que dois pacientes esquizofrênicos - (E., 43 anos, sexo masculino) e (R., 27 anos, sexo masculino) - fazem do discurso de duas instituições, respectivamente: o ensino e a medicina. sdr1 Paciente: Como se eu tivesse poupando palavras, né? Fala, mas poupa palavras. E em português fala o resumo, né? Não se, não é permitido repetir uma palavra ou além daqui algum tempo pra botar no composto, né? Não é segredo dela, né? E passar a limpo, aquela que ela fez primeiro no rascunho. (E., 43 anos, sexo masculino). sdr2 Paciente: Não posso mais beber. Metade do meu corpo é epilético. Daí se eu tomo álcool, né? Daí se torna, aquela doença, né? E é só isso que eu tenho pra falar. [...] Paciente: É porque o médico de Caxias disse que eu, disse que a metade do meu corpo era epilético. Disse que... Entrevistador 1: Qual é a metade é epilética? Paciente: É a cabeça, né? Do corpo, né? Metade do corpo. O meu irmão sofria de ataque epilético até 22 anos, daí ele parou de dar ataque, né? Daí ele deixou o remédio. E agora ele tá...(R., 27 anos, sexo masculino).
Nas sdr 1 e 2 do Bloco 2, também não há quebra da linearidade da frase. Porém, acreditamos que as passagens destacadas são incisas porque há uma quebra na ordem discursiva. Não há uma integração discursiva: o paciente não consegue apropriar-se das palavras, dos sintagmas e das expressões que estão a sua disposição para constituir um discurso que produza os efeitos de origem e de homogeneidade no 235
sujeito falante, ou seja, um efeito de autoria. Na sdr1, apesar de os enunciados estarem mal articulados, sem coesão ou consistência, conseguimos perceber a que discurso o paciente está se referindo: o discurso escolar. O paciente apropria-se de palavras, sintagmas e expressões do discurso institucional, escola, mas não consegue produzir os efeitos de homogeneidade e de origem, que resultariam no efeito-autor. Somente ao relacionarmos as incisas ao discurso escolar, um tênue efeito de consistência é produzido. Dessa forma, podemos afirmar, em relação às incisas, que há uma imposição do discurso do outro sobre o discurso do esquizofrênico. Nesse caso, o discurso do paciente sofre imposição do discurso da escola, principalmente aquele que é produzido no ensino de língua portuguesa. É tamanha a imposição desse discurso que o paciente chega a afirmar em um momento da entrevista: Eu tô falando em português, é português, né?(E., 43 anos, sexo masculino). Por esse motivo, podemos perceber que as incisas, no discurso do esquizofrênico, não passam nem por um trabalho de sintaxe de sintagmatização, que permitiria que as incisas pertencessem à estrutura formal da frase, nem por um trabalho discursivo de re-significação, que as integraria semanticamente ao enunciado. No discurso dito normal, o trabalho de sintaxe e o trabalho discursivo fazem com que as incisas sejam interiorizadas no discurso hospedeiro e percam qualquer vestígio de seu discurso de origem. O efeito de homogeneidade é obtido pelo trabalho discursivo realizado pelo sujeito sobre seu discurso, que entrelaça exterior e interior. O efeito de linearidade é obtido pelo trabalho de sintaxe, que planifica os saberes numa formulação. Ambos trabalhos permitem que se produza o efeito autor. Na sdr2, apontamos o referente epilético como uma intercalação de outro discurso, pois esse referente, no discurso do paciente, produz um efeito de sentido de opacidade, não permitindo a compreensão do que está sendo dito. A proveniência desse termo é apontada pelo próprio paciente: médico de Caxias disse. Embora haja uma remissão ao discurso médico, a partir da formalização de um discurso relatado, é impossível constatar os efeitos de linearidade e de homogeneidade no discurso do paciente. Queremos ressaltar que não estamos trabalhando com o discurso relatado do médico – o médico de Caxias disse que eu, disse que a metade do meu corpo era epilético. Nosso objetivo é estudar a incisa estabelecida pelo referente epilético, na medida em que ele pertence ao discurso médico e, apesar da tentativa do paciente, não é re-significado, como veremos adiante. O discurso relatado pode ser uma citação textual do dizer do outro ou uma paráfrase desse dizer. O relato do paciente pertence à segunda categoria. Como ensina-nos Indursky (1997), nenhum dos discursos relatados é a apreensão exata do dizer do outro, há sempre um “espaço para interpretação e a distorção” (idem, p. 203). Em outras palavras, não há, no discurso relatado, uma imposição do sentido-outro, mas uma manipulação desse sentido pelo sujeito enunciador. Isso significa, no caso em 236
questão, que o referente epilético advindo do discurso relatado do médico poderia ter sua referência alterada quando passa para o discurso do paciente, mas isso não ocorre. Há uma tentativa do paciente esquizofrênico de re-significar epilético, articulando outros elementos ao saber que sustenta o referente: eu tomo álcool, né? Daí se torna, aquela doença, né? / É a cabeça, né? Do corpo, né? Metade do corpo. Porém, o paciente não consegue apropriar-se de fato desse referente. Caso a apropriação ocorresse, poderíamos ter um efeito metafórico, ou seja, ter a metade do corpo epilético poderia ter um significado outro, no discurso do paciente, que não estivesse relacionado ao discurso médico4. Para que a metáfora ocorresse, o referente epilético necessariamente deveria estar desvinculado do discurso médico, para poder re-significar-se. Mas esse referente, no discurso do paciente, só sustenta o discurso da medicina: aquela doença / médico de Caxias / o meu irmão sofria de ataque epilético. Dessa forma, concluímos que o paciente esquizofrênico não se apropria do discurso da medicina, mas é subjugado por ele, na medida em que esse discurso domina a cena enunciativa, não sendo possível ao paciente construir uma outra referência com essas palavras. O mesmo ocorre na sdr1 desse bloco: as palavras ficam presas ao discurso escolar e, dessa forma, não há uma apropriação dessas. A impossibilidade de apropriação, ou seja, o não estabelecimento de uma nova referência para as palavras de discursos-outros, resulta em falha no trabalho discursivo de re-significação e, por vezes, em falha no trabalho sintático de sintagmatização das incisas no discurso do esquizofrênico. Este é o funcionamento das incisas no discurso estudado. A partir do corpus estudado, percebemos que as incisas discursivas são, pelo menos, de dois tipos: a. sintagmas que rompem a linearidade sintática do enunciado (Bloco 2 (sdr1)) e b. palavras que estão inseridas na sintaxe do enunciado (Bloco 1, Bloco 2 (sdr15 e sdr3)). Ambos tipos de incisas são fragmentos do discurso-outro apropriados no discurso estudado. Concluímos também que, na esquizofrenia, há uma submissão aos discursos com os quais os pacientes têm contato. Essa submissão deve ser vista a partir da teorização de um sujeito clivado e dotado de inconsciente. Leite (1994) aponta-nos a questão da “anterioridade lógica do sujeito do inconsciente em relação ao sujeito da ideologia” (idem, p. 26). A partir das análises, constatamos que a estruturação da subjetividade é determinante para a interpelação do sujeito. Podemos perceber isso observando que o esquizofrênico possui uma relação com a ideologia diferente daquela apresentada pelo neurótico. A diferença na relação com a ideologia está no fato de que o esquizofrênico, apesar de poder estar inscrito no discurso, não é afetado pelos seus saberes da mesma forma que o neurótico. Enquanto esse interpreta os discursos-outros pelas formações discursivas que o afetam, o esquizofrênico não consegue re-significar esses outros saberes. O esquizofrênico, por ter uma estruturação subjetiva diferenciada, não passa por 237
um processo de interpelação ideológica igual aquele percorrido pelo neurótico. A falha na interpelação resulta em um discurso que vacila entre a normalidade, em determinados momentos, e a desestruturação, em outros. Apesar da desestruturação das formulações, o discurso do esquizofrênico continua ancorado nos discursos sociais. Conforme podemos perceber nas análises das incisas, os referentes produzidos em outros discursos mantêm suas configurações originais, não permitindo, assim, que outras referências sejam estabelecidas na cena enunciativa. O sujeito normal (neurótico) subverte os saberes inscritos em outras formações discursivas para produzir um efeito de sentido de pertencimento a sua própria formação discursiva. Esse é o modo de funcionamento das incisas no discurso normal. O esquizofrênico é submetido aos saberes do outro, não podendo transformálos. Disso resultam incisas que parecem funcionar de forma independente semântica e, em alguns momentos, sintaticamente na esquizofrenia. Essas incisas, diferentemente das do discurso normal, mantêm suas referências originais, o que resulta na impossibilidade de construção discursiva de um novo referente no discurso esquizofrênico. Acreditamos que isso se deva à diferença na constituição da subjetividade do paciente. Na sdr1 do bloco 2, a única referência possível é a que pode ser estabelecida pelas incisas em relação ao discurso escolar, porque não é possível estabelecer uma referência para a formulação do paciente dentro da cena enunciativa. O mesmo ocorre com as seqüências discursivas de referência do bloco 1, porque tanto nesse quanto no bloco 2, as incisas estão inseridas sintaticamente na frase. As incisas, nesses blocos, independem semanticamente da formulação em que estão inseridas para produzir um efeito de sentido. A submissão do discurso do esquizofrênico ao discurso outro produz efeitos de incoerência, de inconsistência e de não-sentido. Não há uma identificação entre o esquizofrênico e uma formação discursiva que funcionaria como centro organizador de sua produção discursiva. Essa identificação falha com as formações discursivas que o afetam faz com que o discurso do esquizofrênico não parta de uma matriz de saberes, mas se disperse em muitos domínios de saberes, todos aqueles com os quais ele tem contato. O discurso do esquizofrênico é um reflexo do interdiscurso e não um recorte filtrado por uma formação discursiva, por conseguinte, produz o efeito de non-sens de que fala Pêcheux (1975). Isso explica a sensação descrita por Calligaris (1989), ao narrar o caso de um paciente psicótico norte americano: “o sentimento que eu tinha, escutando o que ele contava, [era] que essa infância estava situada num espaço infinito, mas num espaço infinito que não era ‘ideologizado’. [...] O que era interessante, com respeito a esta experiência, é que ele não expressa posição ideológica sobre este assunto. Não havia posição ideológica alguma relativa a qualquer tipo de libertação, por exemplo, típicas 238
dos jovens americanos dessa época. Nada se apresentava, no que ele falava, como uma forma de significação eletiva, mas tudo tinha significação”. (idem, p. 12).
Conforme Orlandi (2004), “o sujeito só se faz autor se o que ele produz for interpretável. Ele inscreve sua formulação no interdicurso, ele historiciza seu dizer”(idem, p. 70). O discurso que não se historiciza é ininteligível, ininterpretável e incompreensível. Sendo assim, esse discurso não possui sentido nem no nível da língua, nem em relação à coesão textual, nem em relação ao contexto situacional (Orlandi, 1988, p. 115). O fato de podermos rastrear os outros saberes convocados no discurso do esquizofrênico mostra que esse, de certa forma, relaciona-se com o interdiscurso. Apesar disso, não há uma historicização desse discurso, porque falta uma posição de sujeito perante a materialidade histórica. Essa falta faz com que o discurso do paciente, em muitos momentos, não seja inteligível, interpretável, e compreensível. Na Análise do Discurso, a noção de autoria está relacionada à singularidade, a partir do dizível e das condições de produção. Ser autor é ter um posicionamento frente ao interdiscurso. A Análise do Discurso percebe o autor como uma singularidade discursiva: a autenticidade de um sentido em relação a um sujeito, dentro de sua constituição social, ideológica e subjetiva. Desse modo, o discurso do esquizofrênico perde a individualização - ou seja, perde os efeitos de homogeneidade, de origem e de linearidade -, permitida pela função-autor, para transformar-se em um emaranhado de formulações que apenas evocam referências produzidas em outros discursos, por outros sujeitos, não sendo capaz de apropriar-se efetivamente delas. Devemos ressaltar que o esquizofrênico pode apresentar-se de forma efêmera como origem de seu discurso, ou seja, há momentos em que seu discurso produz referência na cena enunciativa. São passageiros esses momentos em que se estabelece a ilusão de que os pacientes são a origem do dizer. Esses efeitos de origem, de homogeneidade e de linearidade acontecem quando a fala do paciente gera efeito de coerência, de coesão e de consistência. Apesar de, em algumas passagens da fala do esquizofrênico, esses efeitos estarem estabelecidos, iremos nos deter em funcionamentos lingüísticodiscursivos que privilegiam o efeito de perda da responsabilidade do dizer. Mesmo tendo sido descontextualizadas de seu discurso de origem, as incisas no discurso do esquizofrênico permanecem com as referências estabelecidas no discurso-outro. Como Indursky (1997) mostra-nos, as incisas produzem costuras invisíveis entre os discursos exterior e interior, o que apaga o sujeito do discurso e seu lugar de origem. No discurso do esquizofrênico, porém, esses traços permanecem inscritos na formulação. Mesmo alterando as condições de produção, não se altera a referência. Em relação a seu discurso, o esquizofrênico é um sujeito vacilante6, que oscila entre estar no discurso e desprender-se dele. Essa oscilação deve-se ao fato de, ao mesmo tempo em que há uma falha na interpelação ideológica, o esquizofrênico estar 239
imerso nos discursos sociais que o rodeiam. Percebemos, em relação ao estudo das incisas na esquizofrenia, que esse sujeito discursivo não se mantém totalmente fora do discurso, nem possui uma amarragem apropriada, oscilando, assim, entre esses dois pólos. Essa relação diferencial do esquizofrênico com seu discurso faz com que não haja uma apropriação efetiva dos referentes de outras formações discursivas, o que condena esse sujeito a repetir as referências estabelecidas em discursos-outros. É nesse vacilo que o sujeito do discurso esquizofrênico constitui-se. O resultado dessa incapacidade de uma apropriação eficiente dos discursos é a impossibilidade de o sujeito vacilante produzir os efeitos de homogeneidade, de linearidade e de origem. Isso impossibilita-o de assumir-se como sujeito do seu dizer. Para a Análise do Discurso, como mostra-nos Indursky (1997), as incisas são discursos-transversos, porque estão no nível da articulação, ou seja, na relação do sujeito com o sentido. Segundo Pêcheux (1975), “o efeito de determinação do discurso-transverso sobre o sujeito induz necessariamente neste último a relação do sujeito com o Sujeito (universal) da Ideologia, que é ‘evocada’, assim, no pensamento (“todo mundo sabe que...”, “é claro que...”)” (idem, p. 166). Ou seja, a articulação determinada no discurso-transverso demonstra o assujeitamento do sujeito-falante a um determinado discurso em detrimento de outros. Porém, percebemos que, no arquivo estudado, as incisas possuem outra relação com o interdiscurso. As incisas, no discurso dos esquizofrênicos, comportam-se como pré-construídos, na medida em que há uma independência semântica dessas nas seqüências discursivas em que estão inseridas. “O ‘pré-construído’ corresponde ao ‘sempre-já-aí’ da interpelação ideológica que fornece-impõe a ‘realidade’ e seu ‘sentido’ sob a forma da universidade (“o mundo das coisas”)” (Pêcheux, 1975, p. 164). O saber ingressa, no discurso do paciente, a partir de outra formação discursiva, que não afeta o paciente, sem ser devidamente apropriado. Como exemplo, retornaremos à sdr2 do Bloco 2. Nela, o referente epilético comporta-se como um pré-construído dos saberes da medicina e, por esse motivo, não consegue ser integrado ao discurso do paciente. Acontece o mesmo com todas as outras incisas estudadas, que não se desprendem do referente estabelecido nas formações discursivas de origem, apesar de apresentarem um funcionamento discursivo de incisas. Segundo Roustang (1987), o psicótico não pensa, menos ainda se pensa; ele é pensado, ele é puro destino (idem, p. 204). Se o autor parte da perspectiva psicanalítica para mostrar essa dependência do psicótico em relação ao pensamento do outro, nós partimos da perspectiva do discurso para mostrar a dependência do esquizofrênico em relação ao discurso do outro para produzir efeito de sentido. Isto é, a Análise do Discurso possibilita perceber este tipo de funcionamento: o discurso do esquizofrênico não produz um efeito de origem, de linearidade e de homogeneidade por si só, é necessário que o discurso de origem seja identificado para que seu discurso faça sentido. 240
Esse estudo nos leva a pensar o caráter dispersivo do discurso do esquizofrênico. Para finalizar essa reflexão, parafrasearemos Roustang (1987), o psicótico não fala, é falado, enfim ele é puro discurso. Referência Bibliográfica BORBA, Patrícia Laubino. O funcionamento da referência na perspectiva da Análise do Discurso: um estudo sobre o discurso do esquizofrênico. Dissertação de mestrado. UFRGS. Porto Alegre, 2006. CALLIGARIS, Contardo. Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. INDURSKY, Freda. A fala dos quartéis e as outras vozes. São Paulo: Ed. Da Unicamp, 1997a. LEITE, Nina. Psicanálise e Análise do Discurso: o acontecimento na estrutura. Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 1994. ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e Leitura. Campinas: Editora da Unicamp, 1988. PÊCHEUX, M. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. São Paulo: Pontes, 2004. _____. (1975) Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. São Paulo: Ed. Da Unicamp, 1997. ROUSTANG, François. Um destino tão funesto. Rio de Janeiro.: Libraria Taurus Ed., 1987.
Notas 1 Para visualizar como ocorre o deslocamento da noção de incisa, de uma inscrição da subjetividade (como podemos ver na gramática e na estilística), para uma manifestação da alteridade (Indursky, 1997), consultar Borba (2006). 2 O arquivo de que foi extraído tal corpus foi cedido pelo grupo de pesquisa Lingüística e Psicanálise, coordenado pela profa. Dra. Margareth Schäffer. 3 A medicação age sobre a alucinação, diminuindo sua freqüência e/ou intensidade, mas não modifica a relação do paciente com o delírio. 4 O psicanalista Alfredo Jerusalinsky, em palestra a respeito de sua entrevista com uma paciente esquizofrênica, ensina-nos que, para uma histérica, afirmar que perdeu o gosto para algo significaria que ela não sente vontade de realizar determinada tarefa, porém, para um psicótico, a mesma afirmação remeteria para a ordem do real: essa paciente realmente não sente o gosto dos alimentos, etc. (Evento realizado no Cais Mental em 9 de maio de 2005, associado ao Núcleo das Psicoses 241
da Associação Psicanalítica de Porto Alegre). 5 No Bloco discurso 2 na sdr 1 há os dois tipos de incisas encontradas no corpus. 6 A noção de sujeito vacilante, forjada nesse trabalho, distingui-se da de vacilo do sujeito em Pêcheux (1975). A nossa está relacionada à oscilação do sujeito esquizofrênico em relação ao discurso, a de Pêcheux está vinculada ao sujeito neurótico.
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O DISCURSO SOCIOLINGÜÍSTICO SOBRE A LÍNGUA DE CABO VERDE: LUGAR DE ENCONTRO DA MEMÓRIA E DO INTERDISCURSO1 •
Luiza Castello Branco (UFF) Um dos vieses para compreender o processo discursivo de construção lingüística de Cabo Verde é pensar em como as línguas portuguesa e cabo-verdiana são afetadas pelos fatos históricos e condicionadas pelo discurso da lingüística sobre elas. O percurso dos estudos lingüísticos mostra como se constituiu uma discursividade sobre as línguas em contato nos países colonizados que tiveram sua historicidade atravessada pelo europeu. O nome dado a estas línguas constitui um significante que não recobre todo o sentido do referente, constitui uma identificação particular que vai remeter a uma origem, a uma filiação. A sociolingüística, quando cria o conceito de línguas crioulas, silencia as diferenças entre as línguas ditas crioulas, e apresenta a palavra crioulo como metalinguagem, transformando-a em conceito e vinculando-a às línguas colonizadas. Nesse escopo, associa crioulo ao processo formador de variantes, falares ou línguas a partir de línguas européias. Essa forma-sujeito-cientista da linguagem ao pinçar o nome crioulo para se referir à língua de Cabo Verde o faz a partir de posições discursivas e interditando as zonas de silêncio (ORLANDI, 2001, p.128). Uma construção discursiva torna-se uma verdade para a maioria, quando o sentido tomado como verdadeiro circula no imaginário social como único – “a ilusão de consenso” (PÊCHEUX, 1988, p. 161-162). O discurso sociolingüístico sobre o termo crioulo naturalizou-o, homogeneizou-o, e os crioulos passaram a ser um grupo de línguas que vale a pena estudar pela característica da universalidade. Apagam-se as opacidades. Faz esquecer que são línguas nacionais diferentes. ‘Dar nome’ implica filiar a um legado, à própria condição de nomeação/silenciamento. Ressoam nesse nome os sentidos que homogeneízam, universalizam, domesticam e cientificam, a ponto de, mesmo trocando de nome, não se reconhecer como diferente. A situação lingüística vivida por Cabo Verde hoje é de tensão entre o cabo-verdiano/ crioulo, a língua materna dos cabo-verdianos, e a língua oficial, o português. A língua materna é falada em todas as ilhas, com suas variantes dialetais; é a que constitui, através das práticas linguageiras, todos os cabo-verdianos desde que nascem; e é com/por ela que se relacionam com o mundo real, formando seu imaginário lingüístico. A língua oficial, em contrapartida, entra de forma institucional na vida dos cabo-verdianos a partir da idade escolar. Ela é a língua do ensino, da mídia, do governo, da política, da administração por uma questão de poder e de interesse político e econômico. É a língua que vai dar visibilidade ao país, que vai projetá-lo para o ambiente internacional e também para o nacional. 243
Como essas duas línguas não disputam o espaço lingüístico de forma equilibrada, Cabo Verde é um país diglóssico. Ora a língua nacional é o cabo-verdiano, ora é o português. Para o Estado cabo-verdiano e para o outro, o que está fora de Cabo Verde, a língua nacional é a língua portuguesa. É a que torna o país integrante da comunidade lusófona. É a que escreve a história do país, a literatura, o cinema e o hino nacional cantado pela população. Para o cabo-verdiano, a língua nacional é o cabo-verdiano, ou, como eles a chamam, o crioulo. É a que constrói o imaginário da unidade, de identidade com a nação. Nessa língua são compostas parte das letras das canções populares – as mornas –, e parte da poesia. É a língua da oralidade e da informalidade. Essa tensão não se dá apenas pela língua portuguesa ter uma relação demasiado estreita com o passado colonial do povo cabo-verdiano, mas também pelo fato de, ainda hoje, permanecer como um fator de desigualdade em uma sociedade onde muitos de seus membros não dominam a língua oficial, por resistência ou por falta de escolaridade. Sobre isso, é oportuno referenciar um trecho de um trabalho apresentado pelo lingüista cabo-verdiano Manuel Veiga2 em setembro de 1981, publicado em seu livro A sementeira (1994, p. 257-277), “[...] se todo o nosso povo fala e compreende o Cabo-verdiano, a maioria, contudo, não fala o português. Apenas os nossos letrados, os que estudaram ou estudam são verdadeiramente bilingues. Na generalidade, o nosso povo tem um nível razoável de compreensão do Português, mas compreender uma língua não significa falar essa mesma língua.”
São línguas que se filiam a discursividades distintas, a memórias heterogêneas, mas que vão sofrer o efeito de homogeneidade produzido pela história da colonização. A memória histórica da colonização, hoje, produz essa homogeneidade entre a língua portuguesa e a língua cabo-verdiana em dois níveis: um, buscando, na materialidade lingüística, pontos de semelhança entre a língua cabo-verdiana e a portuguesa, para filiar a primeira como derivada ou variante da segunda – apesar de as diferenças fonológicas, morfológicas, sintáticas e lexicais serem flagrantes; outro, buscando filiar o imaginário cabo-verdiano de nação como sendo Cabo Verde uma extensão ainda: povo irmão que fala a mesma língua, o português. Dessa forma, apagando o sentido do diferente, de que o cabo-verdiano é constituído por outra língua, e de que pertence a uma outra nação. Nomear determinadas línguas como línguas crioulas significa excluir o outro, o diferente, para garantir o lugar de quem fala, e que, ao falar, produz um estranhamento. O verbo nomear, nesse caso, traz a escrita científica da intransitividade verbal, a que dá fôrma e forma, apaga, anula, dessubjetiva o lugar da singularidade do sujeito cabo-verdiano. O efeito desse discurso fundador da lingüística sobre as línguas crioulas “sustenta o sentido que surge e se sustenta nele. Intervém no já-dado, no 244
já-dito” (ORLANDI, 2003, p. 13). Interfere na questão da constituição da língua nacional/língua oficial em Cabo Verde. Esse conceito é construído a partir de posições discursivas que remetem a uma memória tecida por uma narratividade (MARIANI, 1998) que, pela paráfrase, conduz e reatualiza os sentidos para essas línguas de forma a contê-los na dimensão do discurso da colonização européia do Novo Mundo. Assim, quando temos denominações sobre as línguas crioulas como as seguintes: (a) “[...] os crioulos seriam constituídos por gramática indígena e vocabulário europeu3” (ADAM, Lucien4, 1886, p. 5, apud SILVA NETO, 1957, p. 437) (b) “modificações que as línguas cultas da Europa sofreram em terras extra-européias, na boca dos povos de civilização inferior, postas em contacto com línguas radicalmente diversas” (VASCONCELOS, José Leite de. Opúsculos IV, 1929, p. 1222, apud SILVA NETO, 1957, p. 433), (c) “tosco meio de intercomunicações, uma algaravia hoje batizada com o nome de ‘crioulo’” (SILVA NETO, 1957, p. 432), (d) “Simplesmente o nosso latim é o Português e a língua vulgar é o Crioulo” (VEIGA, 1994, p.258), (e) “[...] um crioulo é geneticamente um descendente de um pidgin” (MOTA, 1996, p.526),
vemos mobilizados, nesses discursos de temporalidades distintas (período de um século), efeitos de sentido sedimentados, instituídos e legitimados, reorganizados por uma memória tecida por uma narratividade que fixa o sentido oficial, literal para o referente língua crioula: ‘língua com gramática indígena e vocabulário europeu’, ‘língua culta européia modificada por povo de civilização inferior’, ‘língua radicalmente diversa da européia’, ‘tosco meio de intercomunicação’, ‘algaravia’, ‘língua vulgar’, ‘descendente de um pidgin’. Observar a discursividade dessas denominações, isto é, a relação entre linguagem e história no processo de produção de sentidos para os referentes lingua crioula e crioulo, conseqüentemente, permite-nos estabelecer relação entre essa materialidade lingüística e a reverberação de uma memória histórica intrincada na formação ideológica da colonização, no caso, a de que a civilização européia é superior e radicalmente diversa da civilização indígena, habitante das terras extra-européias; donde é possível concluir que essa língua misturada, apesar de língua culta européia modificada, é uma algaravia, vulgar, tosca. Fixando o sentido oficial para o referente crioulo, o discurso sociolingüístico inscreve-se no interdiscurso, onde o já-dito e esquecido (i.e., silenciado mas latente) faz ressonância. PÊCHEUX (1988, p. 162-3) denomina interdiscurso como o “todo complexo com 245
dominante das formações discursivas”. O interdiscurso é da ordem do não-formulável, espaço em que os dizeres se constituem; corresponde a algo que fala antes, em outro lugar, independentemente, sob o complexo das Formações Ideológicas representadas na linguagem pelas Formações Discursivas que o dissimulam, fazendo parecer que os sentidos ali formados são transparentes. É aqui que, no movimento do interdiscurso, um dizer é posto em relação com outros dizeres, o dito e o a dizer, ancorando-se em uma ilusão de indivisibilidade do sentido ao denominar. O processo da denominação representa um dizer ideologicamente marcado, diz da natureza das relações de força (se de imposição, de silenciamento, de ruptura, por exemplo) em determinada formação social e produz sentidos de acordo com as condições de produção, que fazem sobressair, dentre as formações discursivas, a dominante. Nos discursos dos filólogos e lingüistas, ao denominarem, fazem retornar pela repetição ao mesmo espaço do dizer, produzindo a variação do mesmo, o dizível do que já está instituído, sustentando assim o interdiscurso (ORLANDI, 1988, p. 20) (a colônia, agora Estado Nacional, e o escravo, agora cidadão, falando a língua algaravia/variante da língua portuguesa). O artigo Linguas em contato da sociolingüista portuguesa Maria Antonia Coelho da Mota, publicado em 1996, parece resumir muito bem o pensamento da sociolingüística sobre as línguas crioulas e os pidgins. Percebemos que o que importa no discurso científico da sociolingüística é tratar as línguas crioulas e os pidgins como “verdadeiros laboratórios”5. Diz-nos ela, “assim se justifica o título da obra de Bickerton Roots of Language, 1981: estas línguas são consideradas como verdadeiros ‘laboratórios’ que permitem a observação e a elucidação da génese das línguas em geral e dos processos universais que lhes são subjacentes. (p. 526)”6
Nesse mesmo artigo, define pidgin como uma língua que não tem falantes nativos, o que basicamente o diferencia do crioulo, que “tem falante nativo”. A isso soma que o crioulo “é geneticamente um descendente de um pidgin”. Dessa forma, atrelam-se as características estruturais do crioulo às do pidgin. E, aí, reside a “questão central” dos sociolingüistas, mais particularmente, dos crioulistas que é a da “determinação das características tipológicas de pidgins e crioulos”. Fala-se, então, em “redução” ou “simplificação como características inerentes à sua gramática”. Em outra parte do mesmo artigo, a sociolingüista diz que “crioulo é língua primeira, ou seja, tem falantes nativos, é a língua que estes falantes melhor dominam” . Intriga-me o fato de como uma comunidade de falantes pode não dominar bem sua L1, sua língua materna? Dominam melhor em relação a que outra(s) língua(s)? Se pidgin não tem falantes nativos, e se o crioulo vem do pidgin, não há outra L1 se não o próprio crioulo, que eles não dominam bem?! 246
Na verdade o que fica silenciado é que esses falantes não têm língua dominada, eles são dominados pela língua do colonizador, que não é sua língua. Na verdade, eles só têm um pidgin, mas como o pidgin não tem falante nativo, o próprio sujeito que fala o crioulo está apagado, silenciado, não se constitui como falante nativo segundo o conceito de língua materna da própria sociolingüística. Está privado de língua materna, da língua que o constitua e que seja por ele constituída. No artigo de Pierre Guisan (1996), Línguas Crioulas em Perigo: o Exemplo da Língua Kristang, o discurso científico da posição-sujeito sociolingüista manifesta o furo na materialidade lingüística de várias maneiras como, por exemplo, ao comparar a “riqueza das línguas crioulas” com a “gíria, forma de linguagem popular”, ou ao referir-se a elas tomando como seu o discurso do outro dizendo “línguas de excluídos”. Vejamos as seqüências. SD1 “Línguas Crioulas em Perigo8 : o Exemplo da Língua Kristang” SD2 “1 Línguas crioulas, línguas de excluídos” SD3 “[...] mostrar qual é a importância de estudar línguas crioulas para se tentar responder às grandes perguntas da lingüística tanto sobre os fenômenos de contato como sobre os processos de mudança.” SD4 “[...] ao considerarem os crioulos como constituintes de uma categoria lingüística, os lingüistas podem muito bem incorrer numa nova forma de exclusão.” SD5 “[...] insistir na riqueza das línguas crioulas, que constituem uma das áreas mais vivas e criativas no universo das línguas, assim como outras formas de linguagens populares dentro de uma língua, a gíria, por exemplo.” SD6 “[...] Não há dúvida que é de grande importância empreender um trabalho de comparação sistemática entre todos os falares crioulos, começando pelos crioulos de base portuguesa, de modo a reunir elementos em número suficiente para que se possa chegar a conclusões incontestáveis.” (GUISAN, 1996, p. 81-95)
O significante “em perigo” que compõe o título do artigo e funciona como uma designação da expressão nominal “línguas crioulas” traz à memória o fato de que quando se está em perigo, algo de muito grave está para acontecer à integridade física, moral ou psíquica do sujeito que é o paciente na situação, se nenhuma atitude for tomada no sentido contrário. Assim, uma das interpretações possíveis para esse artigo poderia ser a de uma voz de socorro em favor das línguas crioulas em geral e da 247
Língua Kristang, em particular, já incluída no grupo de línguas crioulas do mundo. É importante notar também que a generalidade com que a posição-sujeito-cientista designa esse grupo de línguas, usando o plural, “línguas crioulas”, para depois se singularizar na língua Kristang, leva a pensar que todas as línguas ditas crioulas são passíveis de estar em perigo, ou que trazem na sua natureza essa característica, ou, então, que precisam ser salvas para que as línguas crioulas não desapareçam, já que é necessário, como afirma no resumo do artigo, “estudar línguas crioulas para se tentar responder às grandes perguntas da lingüística tanto sobre os fenômenos de contato como sobre os processos de mudança.” Fica, então, a pergunta, está “em perigo” para quem? Para elas mesmas, para a comunidade que as fala, ou para a comunidade científica que precisa delas como objeto de estudo? O subtítulo com que a posição-sujeito-sociolingüista começa o artigo “1 Línguas crioulas, línguas de excluídos” traz uma igualdade semântica. Esta igualdade semântica silencia, por exemplo, o sentido de ‘não-excluídos’ e determina como “excluídos” os sujeitos falantes dessas línguas. Esse uso do significante ‘excluídos’ sem aspas, como que tomando do outro e assumindo como seu no discurso, tão óbvio e transparente para esse sujeito, remete-nos a uma memória histórica que se filia a FD do discurso colonialista. Uma memória que remete à dificuldade inconsciente do europeu português e de sua cultura de conferir existência ao africano e de considerá-lo não como objeto, mas como um outro sujeito cultural, portanto incluído nesse mundo de cultura e civilização europeu-ocidental. No decorrer do texto, a posição-sujeito-sociolingüista tenta desconstruir conceitos da própria teoria como o da categoria de línguas crioulas, dizendo que “ao considerarem os crioulos como constituintes de uma categoria lingüística, os lingüistas podem muito bem incorrer numa nova forma de exclusão.” Esse sujeito, em seu desejo de romper com a estrutura, equivoca-se sem, contudo, perceber que está assujeitado à ideologia positivista do discurso científico. Pois, além de chamar de “crioulo” a língua, ao terminar, compara as línguas crioulas entre si e as reduz à natureza da gíria, dizendo “insistir na riqueza das línguas crioulas, que constituem uma das áreas mais vivas e criativas no universo das línguas, assim como outras formas de linguagens populares dentro de uma língua, a gíria, por exemplo.”9 O discurso da ciência que se quer econômico, total, exaustivo e consistente se verifica nesse outro recorte do mesmo artigo, “Não há dúvida que é de grande importância empreender um trabalho de comparação sistemática entre todos os falares crioulos, começando pelos crioulos de base portuguesa, de modo a reunir elementos em número suficiente para que se possa chegar a conclusões incontestáveis.”10 Ao dizer “sistemática”, “todos os”, “suficiente”, “incontestáveis”, filia-se ao disc?urso científico-positivista, que se quer eficiente, econômico, e universal, procurando dar conta da totalidade dos fenômenos lingüísticos referentes a essas línguas classificadas como línguas crioulas. A busca pela ilusão da homogeneidade, 248
da igualdade, da universalidade, da totalidade é um modo de se vincular a processos de exclusão, pois o que for diferente do previsto é avaliado negativamente, silenciando a heterogeneidade que caracteriza a vida, fortalecendo assim a hierarquia que está posta. O controle só é indispensável quando se quer excluir. A ideologia do etnocentrismo europeu tem como característica principal o estabelecimento das diferenças para que sejam sintetizadas e eliminadas tendendo à hegemonia de um dos termos da operação. Essa ideologia leva a que o europeu reconheça a não-identidade e a não-alteridade do outro, habitante do Novo Mundo. Essa figura do outro, que não-europeu. Todavia, no jogo das relações de poder pelo estabelecimento dos sentidos, o sujeito cabo-verdiano constrói uma memória de resistência quando, por exemplo, inscreve na lei o seu desejo político de “promover as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana em paridade com a língua portuguesa” (Artigo 9º da Constituição de Cabo Verde, 1999), ou quando, por exemplo, em sua gramática descritiva sobre a variante dialetal da Ilha de São Nicolau, Eduardo Cardoso (1990, p. 23) faz questão de fixar o diferente, o que quer ser visto como o um, o africano, e não como o outro, o europeu. Trago aqui uma seqüência discursiva recortada do texto desse sociolingüista cabo-verdiano em que ele procura afastar estruturalmente a língua cabo-verdiana da língua portuguesa na tentativa de demonstrar que se trata de um outro sistema lingüístico, exemplificando sempre com a língua de Cabo Verde os fenômenos descritos, apesar de ter como termo de comparação a língua portuguesa. SD7 “Os casos de não correspondência que se nota entre o género do adjectivo e o do substantivo têm a ver com resíduos da flexão portuguesa, que enfermam o sistema do vernáculo crioulo. Desta maneira se explicam os casos caprichosos, como, por exemplo, a forma flíza, que encontramos no corpus, nas frases 24 e 28: El e flíza; Ez e flíza.”11
Ao descrever o sistema flexional da língua cabo-verdiana aponta a exceção – a não-concordância do adjetivo com o susbtantivo em determinado caso – como um “resíduo” deixado pela língua portuguesa e que, como “resíduo”, é indesejável a presença, é um resto de que precisam se livrar porque “enferma o sistema do vernáculo crioulo”. Note-se, ainda, o emprego do adjetivo “caprichosos” para caracterizar tais “resíduos”. Ao dizer “caprichoso”, está dizendo impulsivo, imprevisível, sem justificação ou motivação aparente, devendo ser, portanto, essa semelhança que aproxima o cabo-verdiano do português, desconsiderada, não usada. A argumentação em favor de uma idéia de unidade lingüística portuguesa, como se essa língua fosse herança favorável à comunicação e à unidade imaginária parece estar se deslocando, rompendo a estrutura e buscando sedimentar sócio249
historicamente novas relações de sentido que articulam língua-sujeito-história, apesar de o processo parafrástico do discurso científico ser dominante nos dizeres sobre as línguas crioulas, negativizando-as em relação às línguas européias. Não podemos nos esquecer também de que, ao lado disso, verifica-se que a política lingüística desenvolvida em Cabo Verde nos séculos XX e XXI com a CPLP, de algum modo ainda é tributária do passado colonizador português, fato da história da língua portuguesa em Cabo Verde. De qualquer modo, a disputa tensa entre os espaços enunciativos para a língua cabo-verdiana e/ou (não) para a língua portuguesa também, hoje, leva sempre a outras questões. Finalizo com esta que penso ser uma das centrais e mais intrincadas: como esses sujeitos devem se inscrever no simbólico para assegurar uma configuração de identidade lingüística e nacional que desloque os sentidos postos e faça-os significar a partir de uma memória de resistência, nesse silêncio interditado produzindo novas relações de sentido? Referências Bibliográficas BRANCO, Luiza C. Historicidade e sentidos: a palavra crioulo nos discursos sobre a língua de Cabo Verde. Niterói, 2007. 195 f. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) – Instituto de Letras, UFF, Niterói. 2007. CARDOSO, Eduardo Augusto. O crioulo da ilha de S. Nicolau de Cabo Verde. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa; Praia: Instituto Cabo-verdiano do Livro, 1990. CARREIRA, Antonio. Cabo Verde: formação e extinção de uma sociedade escravocrata (1460-1878). Com o patrocínio da Comissão da Comunidade Económica Europeia para o Instituto Caboverdeano do Livro, 1983. 2ª ed. CONSTITUIÇÃO da REPÚBLICA de CABO VERDE. Praia: Assembléia Nacional – Divisão de Documentação e Informação Parlamentar, 2000. 1ª revisão ordinária – 1999. COUTO, Hildo. Introdução ao estudo das línguas crioulas e pídgins. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1996, 341p. [Segundo livro introdutório à crioulística a ser publicado em português] Home Page da editora: http://www.editora.unb.br GUISAN, Pierre. Línguas crioulas em perigo: o exemplo da língua Kristang. Gragoatá, nº 1, 2º sem 1996. Niterói:EDUFF, 1996. MARIANI, Bethania. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais 1922-1989. Rio de Janeiro: Revan; Campinas, SP: UNICAMP, 1998. ______. Discurso, memória e acontecimento. Cadernos de Letras da UFF, Niterói: Instituto de Letras/ UFF, nº 14, p. 35-47, 1º sem 1997. 250
______. Colonização lingüística. Campinas, SP: Pontes, 2004. MOTA, Maria Antonia Coelho da. Línguas em contato. In: FARIA, Isabel Hub et al. (org.). Introdução à lingüística geral e portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 1996. Coleção Universitária, Série Lingüística. p. 505- 533. ORLANDI, Eni. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 1988. ______. A sociolingüística, a teoria da enunciação e a análise do discurso (convenção e linguagem). In: ORLANDI, Eni P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 88-104. ______. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2001. ______. Discurso fundador: a formação do país e a construção da identidade nacional. Campinas, SP: Pontes, 2003. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1988. ______. Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. ______. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2002. SILVA NETO, Serafim da. História da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Presença, 1957. VEIGA, Manuel. A sementeira. Portugal: Editor ALAC, 1994.
Notas 1 Este artigo traz parcialmente a pesquisa feita para a dissertação de mestrado intitulada Historicidade e sentidos: a palavra ‘crioulo’ nos discursos sobre a língua de Cabo Verde, orientada pela Profª. Bethania Mariani e defendida em fevereiro de 2007, junto ao Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa, especialidade Análise de Discurso, na Faculdade de Letras da Universidade Federal Fluminense. 2 Manuel Veiga é Doutor em Lingüística formado pela Universidade de Paris e foi Ministro da Cultura de Cabo Verde até março de 2006. É também autor de vários livros sobre política lingüística em defesa da oficialização de sua língua. 3 Grifo nosso nas citações de (a) – (e). 4 Les idiomes negro-aryens e tmaléo-aryens 5 E, com ela, concorda COUTO quando assevera que as línguas chamadas crioulas constituem ‘verdadeiros laboratórios’ de estudo “pelo fato de aí [nesse estado lingüístico] elas aparecerem em sua plenitude, e não camufladas por acidentes históricos que se deram freqüentemente há muitos séculos e que, portanto, são inacessíveis à observação direta.” (COUTO, 1996, p.205) 6 Grifo nosso. 251
7 Grifo nosso. 8 Grifo nosso nas seqßências 1- 6. 9 Grifo nosso. 10 Grifo nosso. 11 Grifo nosso
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Memória, atualidade e possibilidade: a polêmica do discurso do Referendo das Armas na mídia impressa
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Carla Letuza Moreira e Silva (UFAL) Este artigo faz parte de um estudo realizado área da Análise do Discurso francesa − AD1. Em uma Tríplice Aliança2, segundo Pêcheux (1997a), a AD aparece como uma disciplina de ruptura que delineia seu quadro epistemológico articulando Lingüística, Teoria do Discurso e Materialismo Histórico, sendo estas atravessadas pela Psicanálise, campo que inclui a subjetividade (sujeito de natureza psicanalítica) na linguagem (Pêcheux e Fuchs, 1997, p. 163). O título deste artigo por si mesmo pode delimitar o ponto central sobre o qual partirá a reflexão sobre o papel histórico e ideológico do discurso jornalístico: memória, atualidade, possibilidade. Atualizar, portanto, não significa somente mostrar o hoje, mas interpretá-lo. Portanto, o discurso jornalístico é o discurso que vai (re)construindo a história ininterruptamente na institucionalização dos sentidos. O discurso jornalístico sobre o Referendo do Comércio de Armas, mais conhecido como Referendo das Armas, trata das reportagens que foram veiculadas pelas revistas Época, Veja e IstoÉ no período que antecede o Referendo realizado em 23 de outubro do ano de 2005. Partindo da necessidade em compreender como este discurso trabalha a atualidade e mais especificamente como ele faz para construir efeitos de sentido é que se coloca o conector condicional Se como sendo o elemento discursivo que permite apreender os movimentos dos sentidos/sujeitos no discurso. No entanto, a noção de memória, dentre outras, como forma de trabalho com a exterioridade constitutiva da língua se fez imprescindível nessa trajetória de leitura. No Brasil, foram realizados dois plebiscitos e um referendo. O primeiro plebiscito aconteceu em janeiro de 1963 em que o presidencialismo substituiu o parlamentarismo como forma de governo. No segundo, o povo rejeitou a troca da república pela monarquia e optou pelo presidencialismo em lugar do parlamentarismo, em setembro de 1993 (no site do Governo Federal). O terceiro, o referendo, foi convocado para se optar pela manutenção ou proibição do comércio legal de armas de fogo e munição em outubro de 2005. A pergunta proposta no Referendo foi: O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil? Plebiscito e referendo são as formas de consulta popular de iniciativa do Estado previstas na Constituição (1988, Artigo 14) (Auad, 2004). No plebiscito o povo 253
aprova ou não “questões” decisivas para o rumo do país, como o sistema de governo. No referendo, o cidadão escolhe entre ratificar ou rejeitar uma lei proposta pelo Congresso. Poucos conheciam, quando da realização da consulta popular no dia 23 de outubro de 2005, o que é, porque foi convocado e como funciona o referendo. A primeira noção que se apresenta, então, é a noção de memória como pautada pela AD. Esta noção diz respeito às redes de filiação históricas que organizam os dizeres e que dão lugar aos processos de identificação a partir dos quais o sujeito encontra as evidências que sustentam-permitem seu dizer. Portanto, a memória é espaço dos efeitos de sentido que constituem para o sujeito a sua realidade enquanto representação imaginária da sua relação com o real histórico, no qual ele está inserido (Zóppi-Fontana, 2002). Portanto, na relação língua-história, a memória é constitutivamente afetada pelas falhas que atravessam a língua e estruturam a história e que materializam seu caráter lacunar e equívoco. Para trabalhar com a ordem dos processos de constituição dos efeitos de sentido e a própria linearidade do discurso a noção de interdiscurso se faz presente. Em Pêcheux (1997a, p. 162) o interdiscurso é o “’todo complexo com dominante’ das formações discursivas”, sendo ele também submetido à lei de desigualdadecontradição-subordinação que caracteriza o complexo das formações ideológicas. Portanto, a heterogeneidade é característica marcante do interdiscurso. Posso depreender disso que o interdiscurso e o intradiscurso são elementos relacionados, e o caráter da forma-sujeito que se identifica com a formação discursiva é que “simula o interdiscurso no intradiscurso”. Este sujeito do saber, universal e/ ou histórico, a forma-sujeito, é responsável pela ilusão de unidade do sujeito. A questão da forma-sujeito para a AD é a maneira pela qual o sujeito se identifica com a formação discursiva que o constitui, e se dá quando o sujeito retoma os elementos do interdiscurso que o determinam. Pêcheux traz da psicanálise para o discursivo a (re)significação da questão da determinação do sujeito do discurso e aciona a noção de pré-construído (o estranhofamiliar de Freud) na relação entre elementos do interdiscurso: “Os traços que permitem determinar o sujeito no discurso dependem do pré-construído (semprejá-aí, universal) e do processo de sustentação (articulação, discurso transverso)” (Ibidem, p. 163) e, portanto, em determinada formação discursiva, cujas margens “porosas” não permitem a estabilização dos sentidos, posso trabalhar com a formasujeito. Diremos, então, que o “pré-construído” corresponde ao “sempre-já-aí” da interpelação ideológica que fornece-impõe a “realidade” e seu “sentido” sob a forma da universalidade (o “mundo das coisas”), ao passo que a “articulação” constitui o sujeito em sua relação com o sentido, de modo que ela representa, no interdiscurso, aquilo que determina a dominação da forma-sujeito (Pêcheux, 1997a, p. 164). 254
Em suma, todo sujeito é assujeitado no universal como singular ‘insubstituível’ [...]” (Pêcheux, Ibidem, p. 171). Todo sujeito é uma particularidade. O efeito de universalidade através do pré-construído configura a relação interdiscursiva, e o efeito de linearização do discurso se dá através das relações intradiscursivas. Então, através do discurso-transverso é que o pré-construído se apresenta enquanto algo “naturalizado” discursivamente e sustenta o efeito de evidência. Diante da heterogeneidade da própria formação discursiva (de seus saberes, sujeitos, sentidos) e desta com outras formações discursivas, associa-se a idéia de alteridade, que é a presença do discurso do outro como discurso de um outro e/ou discurso do Outro, em que é articulada na memória discursiva a relação entre inter e intradiscurso. Mesmo na movimentação que vai da identificação à desidentificação (efeito de dissenso) com a forma-sujeito, a ideologia funciona às avessas, sobre e contra si mesma, sem, no entanto, implicar a morte/desaparecimento do sujeito, pois ele nunca será neutro ou indiferente ideologicamente. O que ocorre é um deslizamento para outra formação discursiva ou forma-sujeito (historicamente determinada), e nunca seu apagamento. A questão da determinação de fronteiras da formação discursiva para Pêcheux (1997c, p. 311-6) é algo que não pode ser feito através de classificações, categorizações ou quantificações, como postulado por outras tendências da área. O interdiscurso é a noção que mostra um todo complexo de formações discursivas em constante relação externa/interna. Em Courtine (1981, p. 33-49), a formação discursiva está intrinsecamente relacionada às condições de produção, ao interdiscurso, o que propicia constantes deslocamentos das fronteiras. Para este autor, as fronteiras da formação discursiva são instáveis, tendo em vista as posições ideológicas que coexistem no âmbito da formação discursiva. Por poderem incorporar elementos préconstruídos, os quais reconfiguram os saberes da formação discursiva, as fronteiras deslocam-se. Esses pré-construídos instauram a contradição interna à formação discursiva. Nesse movimento é possível perceber que sentidos se constituem na relação entre o exterior e o interior de determinada formação discursiva. O exterior à formação discursiva é dissimulado para o sujeito. Através do efeito do insconsciente e do ideológico o sujeito tem como mascarada a existência de um saber exterior, e dessa forma é ocultado ao sujeito falante que está dominado por determinada formação discursiva. A esse funcionamento, Pêcheux (1997a, p. 1737) chama de esquecimento número 1. Além dele, no processo de constituição do sentido, há o que Pêcheux (ibidem) chama de esquecimento número 2, relacionado à reformulação-paráfrase, em que o pré-construído é acolhido e reconfigurado para inscrever-se no intradiscurso. A formação discursiva cobre exatamente o funcionamento do sujeito do discurso na formação discursiva que o domina (determina), na esfera da consciência e da intersubjetividade. Para Pêcheux a exterioridade não é a remissão a um momento marcado da 255
História, mesmo que na dispersão, mas diz respeito às relações inter-intradiscursivas constantes das formações discursivas. Isso conduz a pensar no sujeito enquanto uma posição discursiva a partir das práticas de linguagem com as práticas sociais ideológicas. Portanto, a partir da relativização nas tomadas de posição, Pêcheux (1990a, p. 192-5) revê a noção de ideologia e conseqüentemente de formação discursiva. No âmbito da formação discursiva, portanto, coexiste a identidade e a divisão. Parafraseando o autor, diremos que uma ideologia não é idêntica a si mesma e existe sob a modalidade da divisão, realizando-se a partir da contradição que com ela organiza a unidade e a luta dos contrários. Se a formação discursiva é constituída pela diferença, pela divergência e pela igualdade, a forma-sujeito também o é. Sobre isso Courtine (1981, p. 51) afirma que chamar-se-á domínio da forma-sujeito o conjunto das diferentes posições de sujeito em uma formação discursiva como modalidades particulares de identificação do sujeito da enunciação ao sujeito do saber. Pode-se entender também que há mais que um desdobramento da forma-sujeito e das posições-sujeito discursivas na formação discursiva, tendo também como característica a contradição. A esse respeito, Indursky (1999) afirma que “Um sujeito [...] mostra-se mais que desdobrado. Ele é um sujeito dividido, heterogêneo e disperso em relação aos saberes da formação discursiva em se que inscreve e em relação aos sentidos que mobiliza e produz, constituindo o que estou chamando de fragmentação do sujeito em AD”, e orienta a pensar em um processo de tomada-de-posição do sujeito ante a ideologia que lhe é constitutiva. Frente ao retrato da violência urbana que assola o país, o discurso do Referendo do Comércio de Armas gera polêmica entre a manutenção do comércio de armas e munição ou não, tendo em vista a garantia da vida e dos direitos de todo cidadão pelo Estado. Portanto, para representar as condições de produção que sustentam os efeitos de sentido no discurso, localizo metodologicamente o discurso da Formação Discursiva Jornalística do Direito à Vida, campo que abrange os dizeres de sujeitos enunciadores jornalistas e que abrigam saberes advindos de outros discursos na relação com outras formações discursivas. No interior da Formação Discursiva Jornalística do Direito à Vida tem-se a contradição marcada pela diferença e pela divergência e, para começar, marca-se a diferença entre os dizeres de uma posição pelo Sim no Referendo do Comércio de Armas e outra pelo Não. Cada uma das posições-sujeito jornalísticas vai construir um horizonte de expectativas e perspectivas sempre em relação contraditória com a outra tendência ora retomando, refutando, rejeitando ou se aliando. Tratamos, portanto, de diferentes posições-sujeito em determinada formação discursiva em comunicação com a forma-sujeito da formação ideológica e que se comunicam com outras formações discursivas através do interdiscurso. Nessa perspectiva podemos dizer que há uma seleção “natural” feita pelo falante 256
que vai delimitando através dos meios formais o que diz e o que é possível dizer. Essa seleção não é feita individualmente, mas é uma apropriação da linguagem que reflete o modo como a fez, ou seja, sua ilusão de sujeito, sua interpelação pela ideologia. Portanto, o sujeito da AD não é origem nem fonte por estar representado pelo coletivo, mas uma posição que reflete/refrata outras posições no discurso. Um dos trabalhos que se destacam e que teve na paráfrase seu ponto de apoio foi o estudo de Serrani (1993 e 1994) sobre a noção de “ressonância interdiscursiva de significação” que será produtiva para pensar este discurso. Através das relações e funcionamentos das formas repetidas a autora observa ressonâncias de significação de unidades específicas e de modos de dizer. Afirma que “para que haja paráfrase a significação é produzida por meio de um efeito de vibração semântica mútua” (Ibidem, p. 47), ou seja, são postos em jogo vozes e discursos-outros como “espaços virtuais de leitura” do enunciado ou seqüência descrita. A noção de ressonância interdiscursiva de significação é constitutiva dos efeitos de sentido retratados nas análises desse estudo. Ao trabalhar com a construção discursiva da realidade (imaginária) de um sentido ela auxilia na apreensão das relações de força e de sentidos no discurso jornalístico. Essa noção estabelece relação com a noção de enunciado dividido trabalhada em Courtine (1981) e que permite trabalhar para além do seu funcionamento sintático, portanto, em relação com a sua exterioridade, com a memória discursiva e com uma ou mais formações discursivas. No mesmo texto o autor chega a comentar a heterogeneidade da formação discursiva com diferentes posições-sujeito. O objetivo em tratar do enunciado dividido aliado a noção de paráfrase discursiva é o de mostrar a oposição e a contradição entre discursos e entre posições-sujeito no/do discurso tanto em relações intradiscursiva quanto interdiscursivas. Para trabalhar com o enunciado dividido é preciso que o corpus discursivo permita trabalhar na coexistência de formações discursivas antagônicas, ou de uma formação discursiva com diferentes posições-sujeito operando na divisão entre o que pode/deve ser dito e o que não pode/não deve ser dito na determinação da fronteira da formação discursiva em questão. É o saber da formação discursiva que não é homogêneo, havendo disputa por espaço nesta formação discursiva, nos limites do sentido que ela pode suportar. Para dar a entender o modo de tratamento do enunciado dividido é de grande importância o funcionamento discursivo do conector condicional Se. Abaixo está colocada uma representação das relações entre posições-sujeito quando da consideração do trabalho com o enunciado dividido, pensando no discurso sobre o Referendo em uma luta pela instauração de discursos determinados no espaço da Formação Discursiva Jornalística do Direito à Vida − FDJDV. psj-Não (m/n-m) ...CP : FD : sd : EnD :--------------------- : (contradição ←→ efeitos de sentido)... 257
psj-Sim (m/n-m)
CP: condições de produção FD: formação discursiva sd: seqüência discursiva EnD: enunciado dividido psj: posição-sujeito-jornalística m/n-m: marcado/não-marcado
O enunciado dividido permite identificar diferentes posições-sujeito contraditórias pela marca discursiva do conector condicional Se. No entanto, pode-se dizer que nem sempre o que está pré-construído é o dito real de determinada enunciado dividido, pois se trabalha com a noção de memória discursiva que dispensa questões referenciais de origem, lugar e tempo cronológico. Esta relação com o discurso-outro pode revelar a tensão interna, como foi dito anteriormente, isto é, aquilo que não poderia/deveria ser dito em determinada formação discursiva ou de determinado lugar no processo de significação. As sds abaixo pertencem ao dispositivo Época e foram subdivididas tendo por critério a posição-sujeito assumida pelo sujeito enunciador jornalista da FDJDV. Isso significa dizer que no âmbito das formações discursivas, pelo interdiscurso, existem posições-sujeito em contestação, isto é, lutando por espaço. Nas análises das sds da revista Época divide-se as posições-sujeito-jornalísticas em posição-sujeitojornalística-Sim (psj-Sim) e posição-sujeito-jornalística-Não (psj-Não) e que fazem parte da FDJDV. A psj-Sim é aquela que defende o desarmamento. A psj-Não é aquela que defende a manutenção do direito de propriedade pelo comércio legal de armas de fogo e munição no Brasil.
A arma de fogo representa risco de morte à família sd1 “A arma torna a violência letal. Uma simples briga vira uma tragédia”, explica Josephine Bourgois, pesquisadora da ONG Viva Rio. O sociólogo Antônio Rangel, coordenador do Projeto de Controle de Armas da ONG Viva Rio, completa: “Se a idéia é usar arma para defesa, ela precisa estar com munição e sempre ao alcance, o que é um risco para a família. Então, de que adianta ter uma?”. (Revista Época, 29/09/2005, Armas na linha de tiro)
Na psj-Sim o sujeito-enunciador-jornalista organiza a contestação dos pressupostos do discurso do Não através da retomada desse discurso marcado pelo conector Se e acrescenta o pré-construído marcado na subordinada: a arma deve ser usada para defesa e, para isso, precisa estar com munição e sempre ao alcance. Através da observação de ressonâncias de significação de modo de dizer, as psj-Sim e psj-Não 258
ficam assim colocadas em contraste pela modalidade de enunciado dividido: Não O uso de arma de fogo garante a defesa da família CP3 : sd : EnD ------------ ------------------------------------------------------------- Sim O uso de arma de fogo apresenta risco à família
Esses enunciados divergentes marcam-se pelo diferente modo de considerar o uso de arma de fogo pela vida da família, como uma relação de diferença que evolui para a divergência pela discordância construída pelas posições-sujeito no acréscimo do pré-construído para sustentar o efeito de evidência no discurso. Embora as duas posições-sujeito defendam o direito à vida na mesma FD, nesta sd a psj-Sim acusa a psj-Não de defender exatamente o contrário do que se esperaria nesta FD. O interdiscurso enquanto discurso transverso atravessa e coloca em conexão os elementos discursivos enquanto pré-construído para o sujeito construir seu discurso e anular a reversibilidade do discurso. Funciona como se o sujeito enunciador-jornalista agisse para convencer o sujeito-leitor-cidadão da validade de seu discurso, ou seja, assegurar o efeito de verdade.
Sem munição, sem proteção sd2 NÃO – Elias Aloan – Há cinco anos, o médico Elias Aloan, de 43 anos, estava em seu carro quando um homem armado anunciou o assalto. Numa reação de pânico, Aloan esticou a mão espalmada na direção do bandido, que, assustado com o reflexo, atirou. Sua mulher, apavorada, estava logo atrás em outro carro. Antes do segundo tiro, o médico pegou sua pistola e, em menos de cinco segundos, efetuou três disparos certeiros na direção do assaltante. Ferido, o bandido fugiu com o comparsa. “Se o ‘sim’ vencer, não poderei mais comprar munições. Serei proibido de proteger minha vida e a de minha família”, diz. (Revista Época, 29/09/2005, Armas na linha de tiro)
O sujeito-enunciador-jornalista, na seqüência acima, traz a construção da cena em que há abordagem para assalto, reação do ladrão, reação do assaltado e fuga do ladrão. Uma cena típica de cinema e que coloca o retrato da violência urbana. Ao reagir, o pai de família protegeu sua vida e a dos seus, típico do herói que socorre as vítimas. Logo após, entra em cena o conector Se, inserindo um pré-construído através da relação interdiscursiva. As pesquisas apontavam a vitória do Sim no Referendo por larga margem (80%). Com base no efeito de verdade do discurso do Sim, o Não introduziu a possibilidade da vitória e a conseqüência para sustentar o seu discurso. Coloca-se, então, a sustentação dos dizeres da psj-Não pela contestação aos dizeres da psj-Sim, através do conector Se, o que constrói, pela divergência, 259
o efeito de contraste entre as posições-sujeito-jornalísticas. Através do enunciado dividido podemos visualizar a psj-Não e apanhar, no interdiscurso, o dizer da psjSim divergente: Não A proibição da venda de munição não permitirá defender a vida CP : sd : EnD ---------- ----------------------------------------------------------- Sim A proibição da venda de munição permitirá proteger a vida
Em comum esses diferentes modos de dizer têm a relação com o direito à vida, que faz parte dos saberes que circulam na FDJDV. A divergência encontra-se no fato de considerar a proibição como negação da defesa da vida com arma legal e a proteção da vida pela nocividade da arma de fogo. São os acréscimos no discurso que marcam a divergência e sustentam os discursos das posições-sujeito-jornalísticas. Esse efeito de contraste no discurso coloca frente a frente diferentes verdades que se complementam e que coabitam a FDJDV, mesmo que no limite permitido da convivência. Neste contexto, percebe-se que a revista Época fez forte campanha pelo Sim, mas assim mesmo apresentou sd em defesa do Não. Esse indício mostra o efeito contraste, através do conector Se, e sustenta o efeito de imparcialidade discursiva. Esse recorte vai apresentar as sds do dispositivo Veja e vai apreender nas relações interdiscursivas que são estabelecidas entre posições-sujeito da FDJDV. Portanto, o discurso jornalístico Veja não marca oposição ao Governo, mas contesta. A revista Veja constrói um discurso baseado no discurso da responsabilidade social (dos AIE: Estado, cidadão,...).
A proibição do comércio de armas de fogo aumenta a insegurança sd3 A idéia de um planeta sem armas é uma deliciosa utopia. Ninguém pode também se opor a ela desde que John Lennon pediu que se desse “uma chance à paz”. O desastre é que o referendo do dia 23 não será um passo na direção dessa utopia. Se vencer o SIM, ele apenas vai desequilibrar ainda mais o balanço de forças entre as pessoas comuns e os bandidos – a favor dos bandidos. “As mazelas da insegurança nacional não decorrem do excesso de armas nas mãos da população, mas de uma polícia, um sistema judicial e prisional eficientes”, diz José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública. (Revista Veja, 5/10/2005, Referendo da fumaça)
O conector condicional Se introduz, pelo pré-construído, o efeito de evidência de que o Sim venceria as eleições, conforme as pesquisas apontavam. Veja tenta fazer com que o leitor-cidadão imaginário faça o balanço da conjuntura social e pense na eficiência da proposta. O discurso jornalístico aqui mostra seu espaço para 260
pensar no hoje e projetar o futuro. É um discurso da atualidade com abertura de previsibilidades e possibilidades. Na modalidade de enunciado dividido que relaciona diferentes posições-sujeito no interior de uma mesma FD apreendo a divergência entre a posição-sujeitojornalística Sim e a Não, possível pelo conector Se que marca a contestação entre dizeres no discurso: Não A vitória do Sim favorecerá ainda mais a insegurança CP : sd : EnD --------------------------------------------------------------------------Sim A vitória do Sim poderá diminuir a insegurança
Esses diferentes modos de dizer causam o efeito de contraste entre as posiçõessujeito-jornalísticas Sim e Não no âmbito da FDJDV. Estão expostas as diferenças existentes entre os discursos relacionadas pelo interdiscurso. O que está sendo discutido neste enunciado é a questão de estabelecer um paralelo entre os argumentos utilizados pelo Sim e aqueles produzidos pelo Não. A partir da hipótese da vitória do Sim, que retoma estatísticas, dados numéricos e previsões, coloca-se a possibilidade de que a proibição da venda de armas venha a propiciar um futuro “melhor”, tranqüilo e livre da violência armada. A exemplo de como se apresenta a revista Época, a revista IstoÉ também divide-se entre duas posições-sujeito para sustentar seu efeito de imparcialidade. A posiçãosujeito-jornalística-Sim defende o desarmamento. Esta temática vai relatar através de depoimentos diferentes maneiras de pensar a nocividade e a utilidade da arma de fogo. O que se constrói pela possibilidade de evitar mortes em assaltos, acidentes e outros é a defesa da proibição de uso/porte/comércio de armas de fogo e munição no Brasil.
Sem arma, sem morte sd4 2ª razão para votar SIM: Morte com a própria arma – Há três anos, o metalúrgico aposentado Benedito Ismael da Silva, 59 anos, perdeu o filho Fernando. Ao apartar uma briga em um bar, ele teria sido morto com sua própria arma. Mas o laudo cadavérico, um ano após o episódio, revelou que foram três os disparos que o mataram. Dois frontais, realmente vindos de sua arma, e um terceiro, nas costas, com pistola de outro calibre. “Testemunhas dizem que depois de dar o tiro para o alto, ele teria ido telefonar. Deve ter sido nesse momento que os assassinos o acertaram pelas costas”, diz. Fernando era segurança, tinha porte legal de arma.“Se as armas estivessem proibidas nada disso teria acontecido. Por isso voto SIM”, diz Silva. (Revista IstoÉ, 12/10/2005, Sim? Não? Só você decide)
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A revista IstoÉ tem essa característica no discurso analisado, revelando experiências cotidianas. Com base nas vivências sociais expõe fatos que se dizem “reais”, no intuito de fazer crer no que será divulgado. No entanto, deve-se olhar para as narrativas (discursivas) e os narradores determinados pelo assujeitamento nos processos histórico-ideológicos, pois a narratividade não está completa neles, mas ela ilusoriamente se completa na voz do sujeito-enunciador/sujeito-leitor a cada narração, em suas condições de produção. Na sd acima, o sujeito-enunciadorjornalista utiliza o discurso relatado marcado para tornar mais “real” o fato de que a violência toma proporções maiores a cada dia e ninguém está livre dela, sustentando o efeito de evidência. O conector condicional Se introduz o discurso da psj-Sim que circula na FDJDV e que marca a contestação ao discurso-outro. Neste caso, a contestação referida à nocividade das armas de fogo para sustentar o discurso marca a divergência entre modos de dizer discursivos. Pela modalidade de enunciado dividido que permite apreender as relações entre posições-sujeito no âmbito da FD, relaciono a psj-Sim e a psj-Não por um efeito de contraste em relação ao interdiscurso: Não CP : sd : EnD --------Sim
A proibição do uso/porte de arma de fogo não evita mortes --------------------------------------------------------------------A proibição do uso/porte de arma de fogo poderá evitar mortes
Na sd, por um efeito de memória, considera-se a atualidade e a projeção de uma conseqüência futura no discurso. No âmbito da FDJDV relacionam-se as posiçõessujeito-jornalísticas pela divergência de dizeres, ou seja, pelas diferentes maneiras de se relacionar com a forma-sujeito pelo direito à vida. O que entre elas diverge é a forma de tratar da proibição do uso/porte de armas para evitar mortes: a posiçãosujeito pelo Não nega a afirmação da posição-sujeito pelo Sim.
O Estado deve garantir a segurança pública sd5 Quarta razão para votar NÃO: Bandido ferido – Em julho de 2001, o chileno René Massis, 51 anos, executivo da área de seguros, no Brasil a (sic) 30 anos, foi ao aeroporto internacional de Guarulhos buscar um amigo de infância que chegava de Nova York. Ao retornar à casa, foi parar o carro para abrir a garagem e notou que um Palio vinha de ré em sua direção. Acostumado a andar armado, Massis pegou seu revólver calibre 38 e aguardou a abordagem. O bandido anunciou o assalto, o executivo mandou bala. Ferido, ele fugiu e Massis não soube se foi capturado. “O que sei é que aquele foi o momento mais tenso da minha vida”, diz. O executivo, por ser estrangeiro, não votará no dia 23, mas é radicalmente contra a proibição do porte de armas. Para ele, se o Estado não dá segurança à população, a proibição do comércio de armas não faz sentido. 262
(Revista IstoÉ, 12/10/2005, Sim? Não? Só você decide)
O sujeito-enunciador-jornalista IstoÉ mostrou as “duas faces” do debate e se propôs a falar sobre as duas posições a serem confrontadas no debate para o pleito, construindo um efeito de imparcialidade. Esta sd mostra a condicionalidade da proibição do porte pelo oferecimento da segurança pública que está em falta. Isso mostra uma contestação da própria medida proposta pelo Referendo do Comércio de Armas pelas posições-sujeito em efeito contraste no interior da FDJDV. O conector condicional Se introduz essa “crítica” ao poder público por não garantir o direito à segurança (dos bens) à população, como marcador da contestação que mostra a divergência entre as posições-sujeito-jornalísticas da FD. A partir disso, a posição-sujeito-jornalista-Não contesta a medida proposta pelo Referendo do Comércio de Armas. Discurso este circulante no discurso da FDJDV que argumenta a favor da manutenção do comércio de armas de fogo pelo direito de defesa e direito de propriedade de arma e que sustenta o efeito de denúncia. Nesse processo, podem-se articular sujeitos e sentidos pelo interdiscurso. O efeito de contraste entre as posições-sujeito-jornalísticas Sim e Não no discurso pode ser apreendido pela forma de enunciado dividido que mostra a diferença/divergência: Não A proibição do comércio de armas de fogo não traz segurança à população CP : sd : EnD ---------- -----------------------------------------------------------------------------Sim A proibição do comércio de armas de fogo pode aumentar a segurança da população
Nessa relação de paráfrase, acham-se constitutivamente representadas as posiçõessujeito apanhadas no interdiscurso. O que se coloca são leituras diferentes sobre a proibição do comércio de armas. No discurso do Não o uso de armas representa a possibilidade de defesa da vida e, de outro, a proibição significa a segurança da vida. Esses diferentes modos de dizer em ressonância de significação marcam a divergência no âmbito da FDJDV.
Algumas considerações Para proceder às análises foi necessário um percurso metodológico particular, partindo exatamente da pergunta proposta no Referendo (sdr) e, a partir dessa, as sds se inter-relacionaram no âmbito de uma formação discursiva – FD − através da observação dos movimentos de sentidos no funcionamento do conector condicional Se. Então, as sds foram distribuídas em três recortes que, nos casos das sds das revistas Época e IstoÉ, subdividiram-se tendo como critério a relação entre as posições-sujeito-jornalísticas apanhadas no (inter)discurso. No recorte 263
das sds da revista Veja, foi marcada a posição-sujeito-jornalística-Não em relação interdiscursiva com a posição-sujeito-jornalística-Sim. Na relação entre os dizeres dos três dispositivos analisados (Época, Veja e IstoÉ), constata-se a contradição que norteou os estudos de Pêcheux desde o surgimento da AD. Pensando na contradição ideológica, foi possível apreender a diferença/ divergência em ressonância de significação de modos de dizer. Esses dizeres dispersos nos dispositivos analisados puderam ser apanhados quando da análise do conector Se, através da modalidade de enunciado dividido. Pêcheux (1990a) comenta a esse respeito que a ideologia não é idêntica a si mesma e que ela não existe sob a modalidade da divisão, dentro da contradição que organiza nela a unidade e a luta dos contrários, a luta de classes. Portanto, essas condições ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção são condições contraditórias constituídas em um momento histórico dado (1997a, p. 145), e que determinam as relações na FD. A partir das análises das sds, identifico uma FD, a qual nomeio Formação Discursiva Jornalística do Direito à Vida − FDJDV. Com base em diferentes modos de dizer, apreendo a contestação entre as posições-sujeito-jornalísticas Sim e Não o que foi possível pela observação do funcionamento do conector Se. Pela contestação apreende-se a retomada, reorientação, refutação e sustentação de um discurso em relação a outro discurso no nível da formulação na relação com o interdiscurso. Então, no discurso, esse elemento pode ser dito como marca discursiva de contestação por relacionar e mostrar o movimento dos sentidos/sujeitos pela diferença/divergência no interior de uma FD. Através do conector discursivo Se articulam-se sujeitos e sentidos em um processo de significação que sustenta determinados efeitos de sentido. Assim se pode observar a relação anterioridade-interioridade-exterioridade no discurso. Em Pêcheux (1997b, p. 32-33), a memória coloca-se no eixo da verticalização, do préconstruído (exterioridade/ anterioridade); enquanto no eixo da horizontalização da linguagem, da formulação, compreende-se o intradiscurso. Então, as relações intra e interdiscursivas definem o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam os dizeres num ciclo ininterrupto. As campanhas pelo desarmamento foram desde já institucionalizando os sentidos e determinando leituras para a manutenção do comércio de armas diante dos contextos de violência(s) que assolam o país. Ao mesmo tempo em que se coloca a necessidade de proteção (do direito) da vida com ou sem armas, constrói-se um imaginário determinado da violência, no caso, da violência urbana, que afeta a classe média. Fica assim exposta uma forma de ler a polêmica na contemporaneidade e de constatar a contradição nos discursos, em especial, no discurso jornalístico. Marcamos, então, nessa relação, uma memória comum e uma atualidade e a tentativa constante de fechamento de sentidos nesse discurso. 264
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Nota 1 O estudo completo faz parte de minha dissertação de mestrado intitulada ‘O Referendo do Comércio de Armas no Brasil: diferenças e divergências no discurso jornalístico sobre’, que será defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS, em novembro de 2007. 2 Esta é a Tríplice Aliança de que nos fala Pêcheux (1997a) em seu texto “Só há 265
causa daquilo que falha ou inverno político francês: início de uma retificação”, 197879, publicado na edição brasileira de Semântica e discurso, associando as figuras de Saussure (Lingüística), Marx (Marxismo) e Freud (Psicanálise) na constituição da AD. 3 As condições de produção aqui estão se referindo às formações imaginárias que remetem às relações de força (lugares sociais), relações de sentido (vozes) e a antecipação (imagens) em processo (Pêcheux, 1997b).
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• A DESIGNAÇÃO DA PALAVRA INTEGRAÇÃO EM DOCUMENTOS DE
CONSTITUIÇÃO DA ALCA: o processo de nominalização
Luciana Nogueira (UNICAMP) Introdução O tema da integração na esfera econômica, social e política, tem sido muito discutido há muito tempo na América Latina1. O projeto da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) surge como a grande aposta dos EUA para promover a integração das Américas. Através da ALCA deixariam de existir quaisquer fronteiras econômicas entre os EUA (que controla aproximadamente 77% do PIB de todo o continente) e os países subdesenvolvidos das Américas, com o livre ingresso de capitais, serviços e produtos norte-americanos. Segundo Jakobsen e Martins: “(...) a ALCA é um acordo negociado entre as economias mais desiguais do planeta: enquanto os Estados Unidos e o Canadá detêm mais de 80% do PIB hemisférico, Jamaica, Costa Rica, Honduras, El Salvador, Paraguai, Panamá, Guatemala, Equador, Haiti e Nicarágua respondem, conjuntamente, por menos de 1%. O Brasil, a maior economia da América do Sul, é responsável por 7,4%, e a Argentina, nosso principal parceiro no Mercosul, responde por menos de 3% de toda a riqueza produzida no continente.” (Jakobsen e Martins, 2004: 18).
Ou seja, a ALCA coloca em igualdade de condições, em sua negociação, 34 países de economias absolutamente assimétricas. Porém, esse projeto de integração não é consensual e há resistência à sua implementação. Alguns governos são contra a ALCA da forma como ela foi apresentada e também há um movimento popular contra a ALCA composto por partidos políticos de esquerda, setores da igreja, movimentos sociais, etc. Na América do Sul, o MERCOSUL (Mercado Comum do Sul) surge como um contraponto ao projeto da ALCA, mas também tem muitos pontos em comum com esse projeto. Há que se considerar, inclusive, o fato de que a maior parte das empresas instaladas no Brasil, por exemplo, são multinacionais. O projeto inicial da ALCA previa sua implantação definitiva para 2005, mas isso não ocorreu como foi visto na última Cúpula das Américas que aconteceu em Mar Del Plata em 2005. Surge então outra proposta alternativa à ALCA: A ALBA (Aliança Bolivariana para as Américas), que é um projeto liderado por Cuba e Venezuela. Esse projeto propõe a integração latino-americana com programas sociais compensatórios em escala continental. Ainda que faça parte de minhas 267
preocupações estudar a relação de litígio enunciativo entre ALCA, Mercosul e ALBA, não o farei aqui neste momento. Interessa agora analisar o processo de designação de “integração” no discurso promovido pela ALCA, e o que a forma nominalizada do enunciado pode nos fazer comprender. Farei aqui uma análise da palavra integração a partir de textos que são documentos que tratam da proposta de implantação dessa política de integração, mais especificamente as Declarações das Cúpulas das Américas desde 1994 a 2005.
Designação Para o procedimento de análise, me fundamento no conceito de relação de designação (cf. Guimarães, 1995). Para ele, designação “é uma relação instável entre a linguagem e o objeto”, no sentido de que o objeto é uma exterioridade produzida pela linguagem, mas não se limita a isso uma vez que essa exterioridade é objetivada pelo confronto de discursos, sendo o objeto constituído por uma relação de discursos e “o cruzamento de discursos não é estável, é ao contrário exposto à diferença.” (Guimarães, 1995: 74). Guimarães (2002), para tratar do conceito de designação diz que é necessário diferenciar designação de nomeação, referência e denotação. O conceito de designação é reelaborado e é especificada ainda mais a instabilidade da relação entre a linguagem e o objeto, e como esta é uma relação histórica, ou seja, que produz historicidade. Vejamos: “A designação é o que se poderia chamar de significação de um nome, mas não enquanto algo abstrato. Seria a significação enquanto algo próprio das relações de linguagem, mas enquanto uma relação lingüística (simbólica) remetida ao real, exposta ao real, ou seja, enquanto uma relação tomada na história.” (Guimarães, 2002: 9).
É nesse sentido que ele considera que os nomes identificam objetos e não classificam objetos. É considerar o fato semântico de que as coisas são referidas enquanto significadas e não meramente como coisas existentes no mundo. E essa significação é construída no dizer. Assim, identifica-se algo em virtude de significálo. Na cena enunciativa a designação estabelece uma relação com o real, através do simbólico, ou seja, não se trata de considerar a designação ontologicamente, mas de considerá-la como uma relação simbólica de modo que, em cada designação, o real é exposto de outro modo. Para se compreender a designação, ela precisa ser analisada relativamente a outras designações. Na relação que estabelecemos com a análise de discurso (AD) é preciso analisar essas designações de integração observando as marcas formais que constituem uma regularidade nesses textos para se chegar à propriedade do discurso. Assim, num 268
primeiro momento da análise desse corpus pude ver, através dos procedimentos de reescritura e articulação, que aparece sempre a palavra “integração” como enunciado nominalizado, predominantemente em expressões definidas. Portanto é a partir disso que, para a análise que farei da palavra “integração” como enunciado nominalizado no texto é preciso ter em conta que há marcas materiais que são relevantes para um estudo interpretativo/discursivo do(s) sentido(s) de integração na proposta da ALCA. Refiro-me à marca material tal como é tratada na análise de discurso. “(...) a análise de discurso trabalha com as formas materiais que reúnem formae-conteúdo. As marcas formais, em si, não interessam diretamente ao analista. O que interessa é o modo como elas estão no texto, como elas “encarnam” no discurso. Daí o interesse do analista pela forma-material que lhe permite chegar às propriedades discursivas.” (Orlandi, 2005: 90).
Interessa compreender aqui o que a designação dessa palavra traz nesse discurso das Cúpulas das Américas (o espaço de oficialização da proposta da ALCA), buscando apreender a exterioridade significada pela linguagem na relação das designações. O texto deve ser pensado como uma unidade imaginária, fazendo intervir na reflexão a ideologia, e é pelo texto que nós temos acesso à interdiscursividade. Orlandi diz que o texto é a unidade fundamental da linguagem quando se pensa no seu funcionamento e o funcionamento é o fato de que ele faz sentido. Sem texto não há significação. As palavras, para significarem, já foram texto. (Orlandi, 2001). Essas declarações que analiso são emitidas nas reuniões das Cúpulas das Américas. Nessas Cúpulas reúnem-se os chefes de Estados eleitos nas Américas, assim como são apresentados. A preocupação em analisar a designação de integração nesses documentos é um modo de colocar em questão os sentidos de que a ALCA é a favor da integração de um modo neutro. Saber o sentido de integração nestes textos é um modo de procurar compreender o que a designação desta palavra traz a propósito das relações políticas entre os Estados que estão negociando a ALCA. É também procurar compreender que outros discursos estão sendo apagados ou mobilizados no processo de designação.
A designação e o pré-construído De acordo como já vimos acima, entendemos o conceito de designação conforme Guimarães (2002). É preciso entender que as relações de designação são produzidas pelo cruzamento de diferentes posições de sujeitos e assim temos sentidos que são produzidos apagando outros sentidos possíveis. Marandin (1997), ao trabalhar com a relação sintaxe/discurso admite que a linguagem é estruturalmente heterogênea. Para definir seu plano de trabalho acerca 269
da relação de substitutibilidade em um domínio semântico (DS), diz que o que reúne tais substituíveis não está necessariamente presente no texto em análise. Há sempre a necessidade de se ultrapassar as fronteiras do texto. É imprescindível para a AD a presença dentro de uma seqüência discursiva de outras seqüências discursivas e isso é a base da distinção entre interdiscurso e intradiscurso, além de ser a origem da tese segundo a qual o intradiscurso só se constitui pelo interdiscurso que o atravessa (cf. Marandin, 1997). Tomando essas questões, Marandin discute a noção de pré-construído pensando justamente na relação que esse conceito tem com a sintaxe. E esta é, para Marandin, “uma ferramenta essencial que entra na construção de um observatório dos discursos.” (idem: 124). O pré-construído é definido como o que designa uma situação onde o modo de organização do objeto é indistinguível de seu modo de interpretação. Mais adiante diz: “tem-se pré-construído quando o diferencial interpretativo recorta uma diferença em uma construção ideológica. A eficácia é então máxima, pois a diferença se apresenta nas formas tais como a língua força a interpretá-las.” (idem: 131). É essa relação apresentada por Marandin que interessa para este trabalho como veremos adiante no caso da nominalização. A nominalização é um recorte do funcionamento da designação que o corpus em questão apresenta. É preciso distinguir, como diz Marandin, o estudo das formas dependentes da sintaxe do estudo do lugar da sintaxe na compreensão do discurso. A posição materialista exige que se analise a materialidade do discurso e do sentido. Então, de acordo com Pêcheux: “(...) o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe “em si mesmo” (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas). (...) as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam.” (Pêcheux, 1995: 160).
A descrição dos recortes Numa primeira etapa de análise, faremos um estudo descritivo dessas marcas formais. Retomemos alguns dos recortes apresentados anteriormente: Sd1. “Embora enfrentem diferentes desafios de desenvolvimento, as Américas estão unidas na busca da prosperidade por meio de mercados abertos, da integração hemisférica e do desenvolvimento sustentável.” (Primeira Cúpula das Américas, 1994).
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Sd2. “Promoção da prosperidade mediante a integração econômica e o livre comércio” (subtítulo). (Primeira Cúpula das Américas, 1994). Sd3. “O livre comércio e a integração econômica progressiva são fatores essenciais para elevar os padrões de vida, melhorar as condições de trabalho dos povos das Américas e proteger melhor o meio ambiente.” (Primeira Cúpula das Américas, 1994). Sd4. “Trabalharemos com base nos acordos sub-regionais e bilaterais existentes, com vistas a ampliar e aprofundar a integração econômica hemisférica e tornar esses acordos mais parecidos.” (Primeira Cúpula das Américas, 1994). Sd5. “comprometemo-nos a empreender iniciativas de energia renovável, promover a integração energética, aprimorar o marco regulatório e sua implementação, promovendo os princípios de desenvolvimento sustentável.” (Terceira Cúpula das Américas, 2001).
Como podemos ver nas seqüências discursivas (Sd) 1, 2, 3, 4 e 5 a palavra integração funciona como nominalização para a forma verbal “integrar”. Mas veremos que não se trata simplesmente de uma relação mecânica de derivação numa relação: verbo – nome. Não são estruturas fixas nas quais um deriva do outro, mas há num texto nomes que se diferenciam de outros nomes, uma vez que estão em relação com “outra coisa” e essa outra coisa é, a princípio, um enunciado verbal subjacente (cf. Sériot, 1985). Então, não se trata de analisar a passagem do enunciado verbal à nominalização, a partir de regras produtoras de frases gramaticais, mas o inverso. Para Sériot interessa saber como remontar da nominalização a essa “outra coisa”, a esse outro enunciado que não está no texto, mas que está constituindo sentidos no texto. Diante dessa caracterização, uma questão que se coloca é: o que se integra com o que, quando e como? A nominalização apaga outros dizeres e não explicita o agente, nem o paciente. Assim, quando temos um funcionamento de nominalização, perdem-se as propriedades do verbo, pois o processo não é nunca explicitado. Nos sintagmas nominais destacados “a integração econômica”, “da integração hemisférica”, “a integração energética”, etc, há um efeito de apagamento do sujeito, do tempo, do processo. Há aí um efeito de neutralização no modo de dizer a integração. Mas, por outro lado, temos as determinações que particularizam a integração funcionando como uma adjetivação para integração, nas relações que determinam a palavra “integração”. Retomemos mais dois recortes: Sd6. “A integração hemisférica é complemento necessário das políticas 271
nacionais para superar os problemas pendentes e alcançar maior grau de desenvolvimento. Um processo de integração em seu conceito mais amplo permitirá, com base no respeito às identidades culturais, configurar uma teia de valores e interesses comuns que nos ajude a cumprir esses objetivos. A globalização oferece grandes oportunidades para o progresso de nossos países e abre novos campos de cooperação para a comunidade hemisférica.” (Segunda Cúpula das Américas, 1998). Sd7. “Acreditamos que a integração econômica, o investimento e o livre comércio são fatores essenciais para elevar os padrões de vida, melhorar as condições de trabalho dos povos das Américas e proteger melhor o meio ambiente. Esses temas serão levados em consideração à medida que avancemos com o processo de integração econômica nas Américas.” (Segunda Cúpula das Américas, 1998).
Na Sd6, temos o sintagma nominal que determina integração, mas temos também integração como “um processo” trazendo aqui a relação de indeterminação, a partir do artigo indefinido “um”. Então, o funcionamento de integração aqui é diferente dos outros selecionados porque ele é indeterminado. Além disso, parece haver uma espécie de contra-palavra a um possível questionamento acerca do que seja integração. Porém, na Sd7, já não é mais novo porque é determinado. O que isso quer dizer? Quando é colocado como elemento novo “um processo de integração”, espera-se que se vá explicitar o que é, mas só se fala dos benefícios que a integração promoverá: “permitirá, com base no respeito às identidades culturais, configurar uma teia de valores e interesses comuns que nos ajude a cumprir esses objetivos.” O que interessa é mostrar os resultados benéficos da integração. Esses resultados que, de certa forma, predicam integração funcionam nas relações argumentativas direcionando para a aprovação da ALCA. Sd8. “Continuaremos a promover a plena integração das populações indígenas e de outros grupos vulneráveis à vida política e econômica (...)” “Reconhecemos que o desenvolvimento de vínculos energéticos entre nossos países e a intensificação do comércio no setor de energia fortalecem e impulsionam a integração das Américas. A integração energética, baseada em atividades competitivas e transparentes, (...) contribui para o desenvolvimento sustentável de nossas nações (...).”(Segunda Cúpula das Américas, 1998).
Na Sd8, “plena integração” da população indígena não diz nada sobre essa integração. Vemos que, quando a integração é determinada por econômica, 272
hemisférica, etc, os sintagmas são compostos com a determinação de integração na frente. Já no caso da integração indígena, “plena” é colocado antes produzindo um efeito de “enfraquecimento” da integração porque será plena, mas plena em quê? Outros exemplos: Sd9. “(...) o livre comércio, sem subsídios nem práticas desleais, associado a um crescente fluxo de investimentos produtivos e a uma maior integração econômica, promoverá a prosperidade regional (...)” (Terceira Cúpula das Américas, 2001). Sd10. Não receamos a globalização, nem estamos seduzidos por seu fascínio.” (Terceira Cúpula das Américas, 2001). Sd11. “Com uma visão renovada e fortalecida da cooperação, da solidariedade e da integração, enfrentaremos os contínuos e crescentes desafios do Hemisfério.” (Cúpula Extraordinária – Nuevo León, 2004). Sd12. “Alguns membros sustentam que devemos levar em conta as dificuldades do processo de negociações da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e reconhecer a contribuição significativa que os processos de integração econômica e a liberalização do comércio nas Américas podem e devem fazer para atingir os objetivos da Cúpula de criar trabalho para enfrentar a pobreza e fortalecer a governabilidade democrática.” (Quarta cúpula das Américas, 2005).
Observando as Sd2 e Sd12 temos o funcionamento da coordenação (e) e enumeração que constituem o efeito de pré-construído. Aqui “integração” e “livre comércio” são equiparados. Temos dois objetos como sendo equivalentes a partir de uma posição-sujeito. Neste caso vai para a posição-sujeito porque outra posição entraria em conflito. O efeito é de colocar em igualdade esses dois termos, que, para analistas econômicos, por exemplo, não é a mesma coisa. O discurso do livre comércio e o que é dito sobre isso vem do liberalismo e então a integração aqui equiparada pode assumir esse caráter de estar filiada a uma concepção liberal (no sentido político) do que seja integração. No conjunto dos textos que compõem o corpus, a palavra integração é sempre particularizada, na sua forma nominal. Há um não dito que funciona no já-dito constituindo também a designação dessa palavra. Nos recortes selecionados vemos que há uma determinação do nome integração, particularizando a integração e constituindo o processo designativo. Está posta também a questão da associação, da cooperação entre os mercados (não entre pessoas), mas uma relação de associação não pressupõe poder igual para os associados. Nas Sds 6 e 10 temos a palavra globalização, também funcionando como uma 273
nominalização. Nesse caso parece haver uma relação de sinonímia entre “integração” e “globalização”, ambas orientando para a direção de progresso, avanço, pois há aqui um discurso positivista que remete o tempo todo a idéia do avanço, do progresso e ambos num contexto global. Quando fiz a análise semântica das ocorências da palavra “integração” pelo procedimento de reescritura, vi que na maioria das vezes esta palavra aparece por repetição. Porém, há duas ocorrências da palavra por substituição, mas é pela mesma palavra “globalização”, de maneira que há só uma palavra que substitui “integração” na análise que fiz. Isto dá uma relação particular, a de totalização. As outras ocorrências se relacionam a partir de procedimentos de especificação “interna” (integração energética, integração econômica, integração hemisférica ....). Portanto essas palavras que estão em relação direta com “integração” funcionam como especificações, qualificações da articulação direta com “integração” a exceção da expressão “liberalização do comércio” quen tem um funcionamento diferente. Já a palavra “globalização”, pelo procedimento de substituição determina todo o conjunto das articulações diretas de “integração”, englobando todas essas especificações. “Integração” funciona, portanto, como hipônimo de “globalização”. O fato de “globalização” produzir um sentido hiperonímico não está na língua como uma forma fixa, mas no texto, ou seja, não é uma relação própria da língua, mas é produzida no texto. Assim, o hiperônimo “globalização” determina “integração”. Não se trata, portanto, como dissemos num primeiro momento, somente de uma relação de sinonímia entre as palavras “integração” e “globalização”.
O processo de nominalização Como já vimos no início das descrições das seqüências discursivas, a palavra “integração” está funcionando na sua forma nominalizada. Quando temos a nominalização, o processo não é explicitado e sendo assim, as propriedades do verbo são perdidas, como o tempo, o modo, etc. A abrangência dos temas incluídos nas negociações da ALCA constitui uma característica desse acordo. E isso aparece mesmo pelo processo de nominalização. Na nominalização o que está tematizado pelo verbo se transforma em nome e então as posições ficam com os conteúdos todos elididos. O que é a ação se transforma no resultado da ação. Tem-se uma estrutura não explicitada, não expandida e que supõe um conhecimento x. Na teoria lingüística mais geral a nominalização é o que “representa”, “é a forma transformada de”. Ela não é algo de inicial, mas é o produto, o resultado de certas operações efetuadas antes da realização material do texto. Pensando na derivação morfológica de “integração” temos: verbo - substantivo = integrar – integração. Mas essa derivação morfológica só nos mostra certa potencialidade do sistema da língua. Estou tomando Sériot (1985) para este trabalho porque ele trata justamente de expandir, de elaborar 274
teorias acerca da nominalização tendo como corpus o discurso político soviético. Vemos com Sériot que a questão lingüística somente não resolve o problema de interpretação do enunciado. O sistema da língua, que é relativamente autônomo serve de base potencial a um funcionamento de suas formas. A nominalização, para ele, ultrapassa o quadro de uma lingüística que seria concebida como descrição de um sistema, a língua, ou mesmo a competência de um locutor ideal. Isto se dá porque a superfície lingüística não é homogênea (cf. Sériot, 1985). Na relação que ele estabelece com o pré-construído vemos que o que é importante é que o enunciado nominalizado é pré-construído. Assim, a palavra nominalizada não é alterada pelo sujeito enunciador, mas está como objeto do mundo “já-lá”, preexistente ao discurso, que servirá para instanciar um lugar na relação, porém suas condições de produção foram apagadas. São essas formas particulares de pré-construído, as nominalizações, que Sériot vai analisar no corpus que ele toma em tal estudo. Para ele toda ocorrência de um encaixe sintático (a nominalização é apenas um caso particular), contribui potencialmente para fazer de um texto, em função das formas particulares da língua em que se dá, uma superfície heterogênea na qual se misturam e se articulam elementos de discurso de origem diversas. Para a nominalização, o exterior ao texto não é explícito, nem “mostrado”, ele é apenas indicado, utilizado, nomeado como objeto do mundo, se apresentando sob a forma de um nome. (Sériot, 1985). A nominalização traz o objeto como ponto pacífico, como algo que não está em discussão e é assim que temos que pensar o funcionamento da designação de “integração” para a ALCA. Quais são os efeitos que ela traz por não obrigar o verbo a preencher seus argumentos? É nesse sentido que o conceito de pré-construído é fortemente convocado, quando temos a nominalização. Para Pêcheux o pré-construído é o efeito pelo qual os objetos já estão dados para a identificação do sujeito e sua formulação. O efeito do pré-construído, como já vimos em Marandin (1997) e agora retomando Mariani (1998) é a ação vertical do interdiscurso no intradiscurso, obtido com a nominalização. De acordo com Mariani: “A denominação, enquanto um modo de construção discursiva dos ‘referentes’, tem como característica a capacidade de condensar em um substantivo, ou em um conjunto parafrástico de sintagmas nominais e expressões, “os pontos de estabilização de processos” resultantes das relações de força entre formações discursivas em concorrência num mesmo campo.” (Mariani, 1998:118). Assim, a autora se coloca numa perspectiva que considera que o processo de denominar não está somente na ordem da língua ou das coisas, mas sim na ordem do discursivo. Para Mariani as denominações tornam visíveis as disputas, as imposições 275
e mesmo os silenciamentos que há entre a formação discursiva dominante e as demais. E, no caso em que estamos analisando, temos a nominalização materializando esse cruzamento de discursos no qual atuam os domínios da memória, da atualidade e da antecipação, como veremos adiante. Mariani afirma que as denominações estão “instaladas no interdiscurso, impedindo outras significações, disfarçando as tensões, mas ao mesmo tempo e, contraditoriamente, tornando evidente a fuga dos sentidos.” (Mariani, 1998:119). Assim, para entender a designação de “integração” em sua forma nominalizada é preciso sair da superfície lingüística, ver com que outras palavras ela se relaciona, que efeitos isso produz, qual a relação com a história oficial, enfim, buscar compreender quais os efeitos de sentido que tem a palavra “integração” no funcionamento de nominalização. No exemplo dado na Sd3 acima, temos que a integração econômica progressiva e o livre comércio são fatores essenciais para elevar os padrões de vida, melhorar as condições de trabalho e proteger melhor o meio ambiente. Porém o compromisso com a verdade dessas conseqüências da integração fica por conta do locutor. Há um pressuposto de que a integração da qual ele fala funciona assim. Não está explicitado o que se integrará com o que? Por quem? Como será feito isso? Etc. Há um efeito de universalidade dos benefícios da integração proposta pela ALCA. Aí está funcionando o pré-construído. Usualmente, todos os acordos de livre comércio entre países têm sido denominados de integração econômica. Nesses casos, o termo “integração” é utilizado com uma conotação positiva, assim como o termo “livre” adjetivando o comércio. Quem em princípio é contra integração e liberdade? (Jakobsen e Martins, 2004). Mas, considerando toda a polêmica que existe em torno dessa questão, vemos que a nominalização apaga, neutraliza toda a polêmica. Não é dito em nenhum momento, nos recortes analisados, que existe uma gritante diferença econômica entre os países que compõem a negociação da ALCA, de forma que, numa livre concorrência uns são mais livres que outros. Vemos que integração é uma forma nominalizada e que isso também, materialmente, produz sentidos. O que está em questão é que esses sentidos de integração são produzidos no acontecimento de enunciação considerando-se, porém, as condições de produção desse discurso. A palavra integração aparece sempre como um sintagma nominal. Como a nominalização sempre traz o sentido como ponto pacífico, pois num processo de nominalização temos todas as propriedades do verbo perdidas (o processo não é explicitado, nem o sujeito, o tempo, o modo, etc.), é necessário ir para o préconstruído e ver como funciona o silenciamento. O valor da integração é préconstruído determinando o que seja seu valor por um lado, e indeterminando o valor de integração por outro. O efeito de pré-construído traz o efeito de completude, uma vez que a incompletude é a condição da linguagem, mas a questão que se põe é o que ficou dito e o que ficou sem dizer? (Orlandi, 2002). Desse modo é preciso não 276
trabalhar somente com as seqüências discursivas no domínio da atualidade como fizemos inicialmente, mas também no domínio da memória, conforme Courtine (1981). Que outros sentidos para “integração” estão sendo silenciados? Courtine (1981) trata da relação entre discurso e memória, discutindo o trabalho com o corpus. Refiro-me a esse trabalho constante de descrição e interpretação. A definição das condições de produção do discurso garante a legitimidade de certas homogeneizações sucessivas que conduzem a uma restrição do campo discursivo de referência. Com relação à determinação das condições de produção de uma seqüência discursiva de referência (sdr), no seio de um corpus discursivo, podemos trabalhar com os seguintes domínios, de acordo com Courtine: - Domínio de Memória. - Domínio de Atualidade. - Domínio de Antecipação. No domínio de memória nós temos os funcionamentos discursivos de encadeamento do pré-construído e de articulação de enunciados. É possível também, delimitar um domínio das formulações-origem, os quais não são absolutamente um “começo” do processo discursivo, mas constitui o lugar em que se pode detectar, no desenvolvimento do processo discursivo, a emergência de enunciados que figuram como elementos do saber próprio de uma Formação Discursiva (FD). O domínio de atualidade está formado por um conjunto de seqüências discursivas que coexistem com a seqüência discursiva de referência (sdr) em uma conjuntura histórica determinada. Todas essas seqüências discursivas que estão no domínio da atualidade se inscrevem na instância do acontecimento. O domínio de antecipação compreende um conjunto de seqüências discursivas que sucedem à sdr, no sentido em que certas formulações que esta última organiza em seu intradiscurso mantêm, a respeito das formulações detectáveis no domínio da antecipação, relações interpretáveis como efeitos de antecipação. Esses domínios não constituem uma interpretação cronologística, não é uma seqüencialidade desses domínios que está em discussão. O que interessa com isso é poder caracterizar as repetições, as rupturas, as transformações de um tempo processual. Diante disso podemos analisar o corpus em questão tratando também do domínio da memória e aí cabe pensar no discurso integracionista do século XIX que está apagado no domínio da atualidade, como vemos nas análises do corpus. O discurso integracionista do século XIX é o discurso bolivariano da integração americana. Simón Bolívar (1783-1830), que ficou conhecido como “o libertador”, foi a principal figura do século XIX no que se refere à integração latino-americana. Ele defendia, na verdade, a idéia de uma integração continental e para isso convocou, em 1826, o Congresso do Panamá, o qual daria início às Conferências Panamericanas. As 277
Conferências Panamericanas foram uma série de reuniões de delegados, ministros de relações exteriores e presidentes das nações da América que aconteceram entre 1889 e 1954 dentro das idéias e princípios do panamericanismo. Temos o sintagma nominal “integração americana” ou mesmo “integração panamericana”. Nesse caso, a adjetivação da nominalização “integração” mobiliza outra rede de formulações discursivas. Apesar de suas contradições, um dos princípios era a integração política dos Estados Americanos, a igualdade dos Estados nos organismos, entre outras coisas, ainda que, na prática isso não tenha sido concretizado, pois em 1823 os EUA proclamavam a Doutrina Monroe que defendia: “a América para os americanos”, sendo que “americanos” é a forma como os norte-americanos se autodenominam. Logo mais surge a questão do Destino Manifesto, como conseqüência do pragmatismo norte-americano em suas conquistas (Doutrina Monroe) e ambas parece seguir vigorando até hoje. Há marcas materiais desse apagamento no discurso promovido pela ALCA. É o caso, por exemplo, de não aparecer nunca nos documentos da ALCA a palavra “americana”, pensando em “integração americana”. O que aparece é integração “das Américas”, “hemisférica”, “econômica”. O efeito metafórico está em substituir “americana” por “hemisférica”, por exemplo. Aqui temos distintas formações discursivas. O que temos então, enquanto domínio de atualidade é todo um silenciamento sobre o discurso e a política de integração do século XIX, com os princípios bolivarianos. O apagamento dessa memória, que está igualmente constituindo sentidos no discurso da atualidade, revela justamente que há duas formações discursivas conflitantes. No domínio da memória podemos configurar uma rede de formulações discursivas que conforma uma FD de caráter mais de esquerda e no domínio da atualidade a rede formulações discursivas que trabalhamos conforma uma FD de caráter neoliberal. Arnoux (2005) a partir da análise que faz dos escritos publicados em Santiago do Chile em 1862, com o título de “Colección de ensayos i documentos relativos a la Unión i Confederación de los Pueblos Hispanoamericanos”, conforme já mencionado na nota nº 1 deste trabalho, mostra que os modos de designar politicamente a unidade (tratando do componente programático da questão da União Americana) são diversos e percorrem um continuum que atinge dois pólos. Um que atende mais os modos de organização (Confederação) e outro que está mais no identitário (Nação). Ela mostra então as designações: Federação americana, Confederação americana, Associação americana, União americana, grande “Pátria Comum”, enfim, e além disso faz uma retomada histórica da questão. Seria interessante estabelecer relações entre esse estudo o que que começo a desenvolver aqui, porque com a ALCA falamos de uma proposta de integração que parte do norte e toma em conta todo o continente a exceção de Cuba. Aparece então uma diferença significativa com o termo “globalização” que surge no discurso das Cúpulas 278
das Américas, a partir de certa posição de sujeito, marcando e caracterizando uma integração inscrita numa outra fase do capitalismo, o imperialismo. No que se refere às antecipações, quando temos a hipótese do que é que constitui a designação de integração nos textos que propõem a criação da ALCA, vemos que ao particularizar o setor de energia, por exemplo, está em questão a preocupação com setores estratégicos da economia nas Américas. O grande tema que envolve a integração é a economia, sendo, portanto as relações comerciais as que mais importam, ou que só importam para a integração proposta pela ALCA. Falar em integração hemisférica é delimitar não somente um espaço geográfico para dar limites a essa integração, mas também está em jogo um espaço político e, nessa medida, está em questão a distribuição das riquezas entre Hemisfério Norte e Hemisfério Sul. Assim, a globalização aparece como algo determinante para a integração e assim para o progresso, para o bem estar social que a ALCA vai promover. Está colocada a globalização dos recursos naturais, por exemplo. Ao se estabelecer essa divisão podemos pensar que há coisas que se globalizam e há coisas que não se globalizam e este seja talvez o caso da miséria (não “globalizável”) da América Latina.
Bibliografia ARNOUX, E. (2005). « El pensamiento sobre la Unión Americana”: estudio de una matriz discursiva. Revista Letras, Volumen de Estudios Lingüísticos, nº 10. COURTINE, J.-J. (1981). Algunos Problemas Teóricos y Metodológicos en Análisis del Discurso, a propósito del discurso comunista dirigido a los cristianos. Tradução: Maria del Carmen Saint-Pierre. GUIMARÃES, E. (1995). Os Limites do Sentido – um estudo histórico e enunciativo da linguagem. - 2. ed. – Campinas, SP: Pontes, 2002. GUIMARÃES, E. (2002). Semântica do Acontecimento – um estudo enunciativo da designação. Campinas – SP: Pontes Editores. JAKOBSEN, K. e MARTINS, R. (1996). ALCA – quem ganha e quem perde com o livre comércio nas Américas. 2ª edição atualizada. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. MARANDIN, J.-M. (1997). Sintaxe, discurso: do ponto de vista da análise do discurso. In: Orlandi (org.) [et al.]; Gestos de Leitura: da história no discurso. Tradução: Bethânia S. C. Mariani [et al.] 2ª edição, Campinas – SP: Editora da Unicamp. Pp. 119-143. MARIANI, B. (1998). O PCB e a Imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais (1922-1989). Rio de Janeiro: Revan; Campinas: Editora da Unicamp. ORLANDI, E. (1999). Análise de Discurso – princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2005. ORLANDI, E. (2001). Discurso e Texto – formulação e circulação dos sentidos. 279
Campinas, Pontes. ORLANDI, E. (2002). As Formas do Silêncio: no movimento dos sentidos. 5ª ed. – Campinas, SP: Editora da Unicamp. PÊCHEUX, M. (1995). Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp. 2ª edição. SÉRIOT, P. (1985). Langue russe et discours soviétique: analyse des nominalisations. In: Langages, 1985 ZOPPI-FONTANA, M. G. (1999). É o nome que faz a fronteira. In: Indursky, F. (org.) [et al.] Os Múltiplos Territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzatto. Pp. 202-215. Site oficial da ALCA: http://www.ftaa-alca.org/alca_p.asp. Declarações das Cúpulas das Américas.
Notas 1 Sobre este tema, há um estudo feito por Arnoux (2005) que trata de analisar os discursos sobre a “União Americana” que, de acordo com a pesquisadora, constituem a base da memória discursiva latinoamericanista.
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• A TEMPORALIDADE DISCURSIVA: O DESLIZAMENTO DO ENUNCIADO “BRASIL, PAÍS DO FUTURO” NO DISCURSO JORNALÍSTICO Angela de Aguiar Araújo (UNIS) 1. Da neutralidade à temporalidade discursiva Tornou-se natural reconhecer o papel da imprensa como veículo de transmissão da informação. As mídias jornalísticas conquistaram um lugar privilegiado ao se legitimarem como uma modalidade de discurso onde se destacam a neutralidade e a objetividade técnicas. Mas o que se esquece quando se afirma a metáfora do mito da informação jornalística? Como, ao comunicar ou não, se constitui o caráter político e simbólico pela inscrição do discurso jornalístico na rede de filiações de sentidos? A reflexão deste artigo resulta do trabalho1 desenvolvido no Programa de Pósgraduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Eu, jornalista, me lancei como mestranda no estudo, a partir do discurso jornalístico, sobre “o que foi” o movimento das Diretas Já. O foco era a relação entre a memória social e a linguagem. Logo questionei a evidência do jornalismo como lugar de isenção/neutralidade e de busca do fato inédito/atual. De imediato escutei de meus pares: “Isso é óbvio, já está ‘batido’.” Entretanto, foi questionando a evidência da crença na transparência da linguagem que foram perdidas as ilusões de clareza dos processos de significação pela comprovação empírica, descritível, “do que foi” o movimento das Diretas Já. Assim, o percurso delineado iniciou com o estranhamento em relação ao jogo de evidências construído, tal como descrito por Mariani (1998: 60), em torno do lugar do jornalismo como modalidade neutra de discurso sobre o mundo e do jornalista como “observador imparcial ao narrar / descrever um acontecimento singular”. A inquietação inicial levou-me a desnaturalizar o lugar por mim ocupado como jornalista e a esvaziar o valor de verdade comprovável / descritível ao pretender me incluir no campo das ciências humanas e sociais. De forma diferente, passei a procurar os modos de produzir sentidos tal como descrito por Nunes (2005: 5): “Tomamos como ponto de partida a questão da temporalidade do/no discurso e começamos a evocar o fato de que a AD não trabalha com a temporalidade empírica, cronológica, mas com a temporalidade dos processos discursivos. Um discurso remete a outros discursos dispersos no tempo, ele pode simular um passado, reinterpretá-lo, projetá-lo para um futuro, fazendo emergir 281
efeitos temporais de diversas ordens.”
Algo mudou pelo reconhecimento da espessura da linguagem quando houve a implicação com a noção de discurso como efeito de sentidos, tal como proposto pela Análise de Discurso de vertente francesa - vertente desdobrada no contexto brasileiro. A partir dessa implicação, veio a percepção da dispersão dos sentidos e do sujeito como condição de existência do discurso. A dispersão e a unidade dos sentidos e dos sujeitos remetem à constante movência entre a ilusão de unidade e o equívoco de todos os sentidos. Esse é um movimento contraditório, pois, segundo Pêcheux, citado por Orlandi (2007), “a forma unitária é o meio essencial da divisão e da contradição”. Ao retomar Pêcheux, Orlandi (2007: 18-19) ressalta que: “Se algo fica como alvo fixo nessa constante movência, é sem dúvida o reconhecimento de que se tem necessidade da “unidade” para pensar a diferença, ou melhor, há necessidade desse “um” na construção da relação com o múltiplo. Não a “unidade” dada mas o fato da unidade, ou seja, a “unidade” construída imaginariamente. Aí está a grande contribuição da análise de discurso: observar os modos de construção do imaginário necessário na produção dos sentidos. Por não negar a eficácia material do imaginário, ela torna visíveis os processos da construção do “um” que, ainda que imaginária, é necessária e nos indica os modos de existência e de relação com o múltiplo. (...) Ou, dito de outra maneira, a diferença precisa da construção imaginária da “unidade” (...) Sabemos que a dispersão dos sentidos e do sujeito é condição de existência do discurso (Orlandi e Guimarães, 1998), mas para que funcione ele toma a aparência da unidade. Essa ilusão de unidade é efeito ideológico, é construção necessária do imaginário discursivo. Logo, tanto a dispersão como a ilusão de unidade são igualmente constitutivas.”
Tratar o discurso jornalístico pela perspectiva da temporalidade discursiva implicou perceber a relação historicamente estabelecida de inscrição dos sentidos e de posições dos sujeitos que não são anteriores aos diferentes efeitos de sentidos entre os locutores. O caminho trilhado então foi o da desconstrução da afirmação do discurso jornalístico como técnica que busca sempre o fato mais atual (o ineditismo, o “furo”) pela objetividade e pela posição de neutralidade do jornalista. Um olhar diferente se descortinou, aquele em que o jornalismo passou a ser compreendido como uma modalidade de discurso a partir da temporalidade discursiva: um discurso sempre remete a outros discursos e insere a enunciação numa rede de filiação de sentidos, onde a memória é o ponto de sustentação entre sentidos retomados, sentidos silenciados e sentidos deslocados.
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2. Entre o mesmo e o diferente: a estabilização e a desestabilização dos sentidos Entender a temporalidade discursiva implica necessariamente em estabelecer a relação entre a historicidade e a discursividade. A historicidade é definida por Orlandi como o processo de discursivização. Os repertórios de formas discursivas resultam de longos processos em que práticas discursivas se legitimaram. A institucionalização organiza as direções dos sentidos e as formas de agir no todo social, bem como as adaptações às transformações sociais. A historicidade, portanto, não se confunde com os “conteúdos” da história, mas se constitui como o “acontecimento do texto como discurso, o trabalho dos sentidos nele” (ORLANDI, 2003: 68). O trabalho ideológico, responsável pela inscrição dos sujeitos e dos sentidos nas formações discursivas, tece a legitimidade das práticas discursivas: “Redefinindo, assim, a ideologia discursivamente, podemos dizer que não há discurso sem sujeito nem sujeito sem ideologia. A ideologia, por sua vez, é interpretação de sentido em certa direção, direção determinada pela relação da linguagem com a história em seus mecanismos imaginários. A ideologia não é, pois, ocultação mas função da relação necessária entre linguagem e mundo” (ORLANDI, 2004).
Os fios ideológicos inscrevem os sentidos na Memória Social. Ela produz o efeito imaginário de continuidade entre as épocas ou a coerência narrativa em determinado grupo social: “Entendemos por memória social (...) um processo histórico resultante de uma disputa de interpretações para os acontecimentos presentes ou já ocorridos, sendo que, como resultado do processo, ocorre a predominância de uma de tais interpretações e um (às vezes aparente) esquecimento das demais. Naturaliza-se, assim, um sentido ‘comum’ à sociedade, ou, em outras palavras, mantém-se imaginariamente o fio de uma lógica narrativa. Isto não quer dizer, porém, que o sentido predominante (anule) os demais ou que ele(s, todos) não possa(m) vir a se modificar. Muitas vezes os sentidos ‘esquecidos’ funcionam como resíduos dentro do próprio sentido hegemônico” (MARIANI, 1998: 345).
O trabalho ideológico de construção dos sentidos nas sociedades sinaliza, segundo Orlandi (2003), a existência: a)
dos eixos da memória e da atualidade; 283
b) dos processos de estabilização (paráfrase) e de ruptura (polissemia); c) do confronto entre o simbólico e o político.
Dois eixos são fundamentais para a realização de um discurso: o da memória e o da atualidade. A memória discursiva sustenta cada palavra através do “já-dito”, ou seja, daquilo que fala antes e em outra situação. Já a atualidade marca o contexto imediato, a situação em que é produzida cada enunciação. Como observa Orlandi (2003: 50), “o dizer tem história. Os sentidos não se esgotam no imediato”. A confluência dos dois eixos - memória e atualidade - se dá no contexto sóciohistórico. Ocorre aí a tensão entre a paráfrase e a polissemia (ORLANDI, 2003). Os processos parafrásticos representam aquilo que se mantém, a estabilização e o retorno aos mesmos espaços do dizer. Ao contrário, a ruptura, o deslocamento e o diferente acontecem nos processos polissêmicos. A linguagem se alimenta dos dois movimentos: estabilização e desestabilização. Por um lado, não há sentido sem repetição. Por outro lado, a fonte da linguagem está justamente na diferença de sentidos. Se eles não fossem múltiplos, não haveria necessidade de dizer. Além disso, para que haja a criatividade (ou ruptura), é preciso que o já-dito entre em conflito possibilitando outras direções. O trabalho ideológico se dá no confronto entre o simbólico e o político. O simbólico é visto como o “efeito de imaginação”. A significação não está em um lugar preexistente, como uma essência, mas resulta sempre da interpretação do mundo pela linguagem. Há uma relação com o imaginário que permite a projeção social no discurso, ou seja, quando falamos, por exemplo, do Brasil, falamos a partir das imagens acerca dele que se realizam e circulam no discurso: “por aí podemos refletir sobre o quanto nossas trocas de linguagem, nosso discurso, é en-formado pelo imaginário” (ORLANDI, 2006: 16). A face política é a disputa pelo sentido que revela as relações de poder nas práticas discursivas. Essa disputa, como explica Pêcheux (1995), se dá no “complexo contraditório-desigual-sobreterminado das formações discursivas”, onde há um “trabalho de recobrimento-reprodução-reinscrição ou um trabalho politicamente e/ou cientificamente produtivo” pela hegemonia de determinado sentido. A AD se destaca de outras teorias por, entre outros motivos, considerar o discurso, objeto teórico, como efeito de sentidos. Pêcheux define efeito de sentido como “relação de possibilidade de substituição de elementos (palavras, expressões, proposições) no interior de uma formação discursiva dada” (PÊCHEUX, 1995: 164). Isso nos permite dizer que o processo discursivo designa “o sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias, etc., que funcionam entre elementos lingüísticos – “significantes” – em uma formação discursiva dada” (PÊCHEUX, 1995: 161). Importa ao analista de discurso a passagem de um significante a outro e não a relação significante / significado que compõe o signo para a teoria lingüística. 284
Busca-se o deslizamento próprio da constituição do sentido, a matéria significante que pode deslizar sempre, como aponta Araújo (2007): Para a AD, trata-se do efeito de sentido Significante à Significante Deslizar sempre na(s) FD(s)
A partir da discursividade, abre-se a possibilidade de análise da linguagem como “lugar de discurso”, “lugar de descoberta” da Memória Social (ORLANDI, 2003). Ampliando a observação de Orlandi, lugares de descoberta das Memórias Sociais, ou os lugares das memórias discursivas - onde se materializa o mecanismo de significação na linguagem, pela ideologia, onde se percebe o caráter aberto da linguagem. O caráter aberto do discurso remete à possibilidade de novas significações pela relação de deslizamento entre significantes, pela eterna deriva dos sentidos. Para entender o uso das expressões “lugar de discurso”, “lugar de descoberta” é preciso clarear o conceito interdiscurso. Seu significado é “conjunto de formulações já feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos” (ORLANDI, 2003). Ele está ligado à memória e ao Outro, à permanência e à transformação dos sentidos. O interdiscurso, também chamado de memória discursiva, sustenta o dizer em uma estratificação de formulações já feitas - mas esquecidas - que vão construindo uma história de sentidos. O papel do analista está justamente aí na constituição de um “dispositivo de interpretação”, de um “lugar de interpretação”, que tem como característica: “colocar o dito em relação ao não dito, o que o sujeito diz em um lugar com o que é dito em outro lugar, o que é dito de um modo com o que é dito de outro, procurando ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz mas que constitui igualmente os sentidos de suas palavras” (ORLANDI, 2003: 59).
Pêcheux (1995: 162) chama de interdiscurso o “todo complexo com dominante” das formações discursivas: “ “algo fala” (ça parle) “antes, em outro lugar e independentemente”, isto é, sob a dominação do complexo da formações discursivas”. Há dois pontos que Pêcheux destaca na estrutura do interdiscurso: o “encadeamento do pré-construído”, importante para o estudo da memória, e “os efeitos sustentação” (efeitos de articulação). O primeiro diz respeito àquilo sempre-já-aí como uma “realidade”, como uma forma do “mundo das coisas”, sob as evidências do contexto situacional. Pêcheux (1995: 99), citando Henry, diz que o “pré-construído” designa “o que remete a uma construção anterior, exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é construído pelo enunciado”. Os efeitos de articulação-sustentação, por sua vez, representam a volta do discurso sobre si mesmo no fio intradiscursivo, como um 285
retorno do saber no pensamento. A retomada, pelo sujeito do discurso, desses elementos do interdiscurso (pelo pré-construído e pelos efeitos de articulação-sustentação) será responsável pela identificação do sujeito com a formação discursiva. Orlandi, citada por Ferreira (2001: 20), “diz que o sujeito toma como suas as palavras de uma voz anônima que se produz no interdiscurso, apropriando-se da memória que se manifestará de diferentes formas em discursos distintos”. Daí resulta a forma-sujeito (sujeito universal, sujeito do saber, sujeito histórico) responsável pela ilusão de unidade do sujeito: “O sujeito moderno é ao mesmo tempo livre e submisso, determinado pela exterioridade e determinador do que diz: essa é a condição de sua responsabilidade (sujeito jurídico, sujeito a direitos e deveres) e de sua coerência (não contradição) que lhe garantem, em conjunto, sua impressão de unidade e controle de sua vontade, não só dos outros mas até de si mesmo, bastando para isso ter poder ou consciência. Essa é a sua ilusão. O que chamamos ilusão subjetiva do sujeito e que se acompanha da ilusão referencial (sobre a evidência do sentido)” (ORLANDI, 2006: 20-1).
Apesar do espaço do interdiscurso, a ilusão de origem de sentido faz crer, entretanto, que se fala a partir de uma vontade imediata ou de um lugar neutro. Isso ocorre pois ao mesmo tempo em que a ideologia permite uma interpretação emergir, ela apaga o mecanismo que insere os sujeitos nas práticas histórico-discursivas de construção da significação. Interpreta-se e, ao mesmo tempo, nega-se a interpretação (ORLANDI, 2003). Retomemos Pêcheux (2002) para quem a memória não tem um sentido homogêneo de um reservatório, mas é um “espaço móvel de divisões, disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização” (PÊCHEUX, 1999). Ao analista de discurso cabe perceber a “desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos” históricos de filiações de sentidos (PÊCHEUX, 2002). A operação de substituição leva à compreensão do deslizamento próprio nas redes e trajetos dos sentidos. A matéria significante pode assim deslizar sempre, tendo o interdiscurso papel de sustentação do dizer. A memória cumpre papel na inscrição/identificação (bem como na reinscrição/desidentificação) dos sujeitos no processo discursivo. O discurso emerge como “lugar de descoberta” da Memória Social, na relação entre a linguagem e a historicidade, ou seja, no encontro entre a materialidade lingüística e a materialidade histórica.
3. O deslizamento do Brasil do Futuro De repente, não me perguntava mais sobre “o que foi” o movimento das Diretas 286
Já, mas me via diante da pergunta “e daí, como funciona e qual o efeito disso”. Compreender a abertura da linguagem e da memória foi importante para a constituição e recorte do corpus composto pelo livro-reportagem Explode um novo Brasil. Diário de campanha das Diretas (1984), compilado pelo jornalista Ricardo Kotscho. O livro resultou da decisão do jornal Folha de S. Paulo de aumentar a influência política cobrindo o evento e aproveitando o processo de abertura do regime militar. A outra publicação analisada foi o caderno-reportagem 20 anos sem Tancredo publicado pelo jornal mineiro O Tempo em 21 de abril de 2005, data de aniversário de morte de Tancredo Neves, presidente eleito ao final do regime militar. Entre os fundadores do jornal há um ex-companheiro de partido do atual governador de Minas, Aécio Neves, neto de Tancredo. Buscar o encontro da materialidade lingüística e da materialidade histórica levou ao deslizamento do enunciado “Brasil, país do futuro” no corpus analisado. O enunciado foi formulado nos anos 1940 pelo escritor Stefan Zweig no livro “Brasil, um país do futuro”. Entretanto, os sentidos que o atravessam percorrem a rede de filiação de sentidos anterior a essa formulação. Recorrendo à análise de Nunes (s.d.) temos que, na Lingüística, o nome próprio leva a uma operação de referencialização capaz de designar a coisa a que remete. No enunciado em análise, o nome próprio é acompanhado de expressão que, ao invés de fechar-lhe o sentido, funciona como uma promessa que se anuncia a partir de um referente que vai se realizar. Na medida em que não se cumpre, essa promessa pode ser sempre atualizada pela possibilidade do vir a ser que não cessa. Assim, o nome próprio, como ainda sugere Medeiros (2003), assume um lugar pleno de vazio, que permite principalmente o discurso político dele se apropriar trazendo pré-construídos sobre o Brasil e sobre a nação/o povo brasileiros. Os diversos sentidos associados ao enunciado “Brasil, País do futuro” ao longo do tempo mostram o caráter aberto do discurso e apontam para enunciados anteriores e futuros, pela possibilidade de deslocamento de sentido. Ao analisar o deslizamento do enunciado “Brasil, país do futuro”, Fico (1997: 78) conclui que há uma ilusão de unidade que se constrói pela convicção de um traço de singularidade do brasileiro e pela exuberância do Brasil: “A persistência da idéia de um futuro promissor só se explica pela crença em uma predestinação. Exuberância da natureza, tamanho continental, riquezas minerais – estas seriam algumas das características do Brasil que o fariam único. O vigor do discurso sobre o futuro é sustentado pela unidade de idéia, pela identidade que propicia essa convicção quanto à singularidade. O futuro promissor há de vir para um país tão especial – essa imagem tem força suficiente para situar-se como foco de referência de auto-reconhecimento social: “brasileiros” são aqueles que vivem no país do futuro.” 287
A idéia de futuro promissor nem sempre esteve ligada à “materialidade da geografia” e à “opulência da natureza brasileira”. Fico identificou que diversos sentidos foram agregados ao longo do tempo. Publicações trouxeram, no final do século XVIII e no início do XIX, soluções para o melhor aproveitamento do Brasil. Nos anos 1950, 1960 e 1970, a industrialização, a urbanização, a tecnologia e a construção de Brasília marcam o rompimento com o passado de atraso e o compromisso com um futuro de realizações. No período da ditadura, o “milagre econômico” e o projeto militar de integração do país foram responsáveis por aquilo que Fico define pela idéia-síntese “Brasil potência”. A comunicação foi um dos recursos utilizados pelo governo para difundir as idéias de transformação, de construção e de progresso. Entre as estratégias de difusão, estavam os “filmes educativos”, veiculados no cinema e na televisão, como a campanha Este é um país que vai pra frente. O “verdeamarelismo” é outro sentido que se colou ao enunciado “Brasil, país do futuro”. A vitória do Brasil nas copas do mundo de 1958 – durante o período desenvolvimentista do governo Juscelino Kubitschek - e 1970 – período de repressão pela ditadura militar e do projeto de “integração nacional” - coloriu de verde-amarelo as ruas, associando a vitória da seleção à identidade de povo brasileiro. Entretanto, Chauí (2004: 31) avalia que há um deslocamento de sentido pelos valores agregados à identidade brasileira nas duas situações: “Na década de 50, as músicas populares que festejaram a vitória “afirmavam que a “copa do mundo é nossa” porque “com brasileiro não há quem possa”, e o brasileiro era descrito como “bom de couro” e “bom de samba”. A celebração consagrava o tripé da imagem da excelência brasileira: café, carnaval e futebol. Em contrapartida, quando a seleção, agora chamada de “Canarinha”, venceu o torneio mundial em 1970, surgiu um verdadeiro hino celebratório, cujo início dizia: “Noventa milhões em ação Pra frente, Brasil, do meu coração”. A mudança do ritmo – do samba para a marcha -, a mudança do sujeito – do brasileiro bom no couro ao 90 milhões em ação – e a mudança do significado da vitória – de “a copa do mundo é nossa” ao “pra frente, Brasil” não foram alterações pequenas”.
O enunciado “Brasil, país do futuro” é um dos desdobramentos, como analisa Chauí (2004: 9), do mito fundador: “aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo”. Umas das interpretações do “verdeamarelismo” é a projeção para o futuro do país em construção: “É interessante observar que o verdeamarelismo opera com uma dualidade ambígua. De fato, o Brasil de que se fala é, simultaneamente, um dado (é um dom de Deus e da Natureza) e algo por fazer (o Brasil desenvolvido, dos anos 288
50; o Brasil grande, dos anos 70; o Brasil moderno, dos anos 80 e 90)” (CHAUÍ, 2004: 42). Assim passemos as recortes retirados do corpus analisado. A Seqüência Discursiva 1 (SD 1) retirada do livro-reportagem Explode um novo Brasil, resultante do projeto da Folha de S. Paulo. A SD 1 traz a epígrafe do livro: SD 1: Se todos quisessem, poderíamos fazer deste País uma grande Nação. Tiradentes (gripo nosso) (Kotscho, 1984: 5)
A promessa é construída aqui em uma oração onde o desejo de todos é a condição para a realização. Diante da estrutura condicional e do tempo verbal no futuro do pretérito, é possível questionar as contradições da totalidade da Nação, ou da unidade pela Nação, pela possibilidade (ou não) da relação de identificação entre “todos” e “nós”. Afinal, nem todos desejam o que se promete. A citação é a atribuída a Tiradentes, personagem da Inconfidência Mineira, incluído no sujeito da frase “nós” desejosos ou capazes de fazer desse grande País uma grande Nação. Não podemos esquecer o imaginário sobre o inconfidente incluído no grupo de opositores contra a cobrança de impostos pela metrópole durante o período colonial. Se considerarmos a Folha de S. Paulo, temos, , como afirma Kotscho, o “último jornal liberal”, que assumiu o movimento Diretas Já como “uma bandeira” pela volta à democracia em oposição ao regime militar. Nos dois casos – os inconfidentes e a Folha de S. Paulo -, temos uma situação de oposição a uma prática autoritária. A atualização da memória é feita na retomada da fala de Tiradentes por Kotscho, situando o discurso numa rede de filiação de sentidos. Foi mobilizando esse imaginário do “Brasil, país do futuro” que a Folha de S. Paulo realizou a cobertura do movimento das Diretas Já. Posicionando-se como um jornal liberal, portanto contrário à posição do governo, a Folha se lançou neste projeto mobilizando o imaginário da Nação brasileira, uma estratégia de construção da ilusão de unidade onde foram associados leitores a eleitores. Algo que vai ao encontro do próprio objetivo do jornal, nos anos 1980, de aumentar o seu peso político. A decisão de cobrir o movimento resulta dessa opção por aumentar a sua força política no contexto não somente local, mas nacional, o que foi possível pela agregação à sua imagem de uma posição de vanguarda e de inovação, por sua antecipação na cobertura e por seu engajamento no próprio movimento. A Seqüência Discursiva 2 (SD 2) é retirada do jornal O Tempo, em uma entrevista ping-pong com o atual governador de Minas Gerais Aécio Neves, neto e apontado como herdeiro político de Tancredo Neves. SD2: E o que ficou? A responsabilidade de novas gerações de homens públicos – entre as quais eu me incluo – de realmente transformar a democracia conquistada, o direito 289
da nossa gente de escolher seu próprio destino, em instrumento de melhoria da qualidade de vida das pessoas. (...) O Brasil é um país mais justo? O Brasil continua sendo um país extremamente injusto. (...) Que avaliação o senhor acredita que Tancredo faria da atual política brasileira? Ele estaria feliz de ver o país funcionando na plenitude das suas instituições democráticas. O Judiciário funcionando, a imprensa absolutamente livre. Certamente ele estaria ainda com os olhos buscando aquela pátria com a qual ele sonhou, onde não haveria mais homens sem trabalho, sem teto... então, eu acho que o Brasil ainda está longe de ser o Brasil dos sonhos de Tancredo e dos sonhos de tantos brasileiros (grifo nosso) (O Tempo, 2005).
O ex-presidente é convocado na condição de morto e não pode falar. Entretanto, Aécio Neves coloca-se na posição de tradutor do pensamento do avô. Há aí o que Pêcheux chama de simulação-presentificação, ao ser simulado que se Tancredo estivesse aqui, ele pensaria X. Há também a simulação do sujeito base do enunciado (“eu me incluo”, “eu acho”), um eu que acaba por se ligar à responsabilidade, à promessa de transformar um Brasil ainda injusto no Brasil sonhado pelo avô. Essa promessa só se realizaria no futuro por esse sujeito universalizado (“as novas gerações de políticos”), no qual Aécio se inclui. A construção de uma unidade aqui é trabalhada pela figura de um político hábil negociador, retomando o imaginário da mineiridade. O jornal O Tempo, ao rememorar o morto e ao apresentar um sucessor, tenta construir a unidade pela ação do político que faz a ponte entre o Estado e a Nação. É a partir do hábil negociador, representante da política da conciliação, que é construída a possibilidade do Brasil do futuro. Com isso, a narrativa acaba focando a negociação entre políticos no espaço burocrático das instituições políticas. Há uma diferença em relação à obra de Kotscho, que enfoca a movimentação dos políticos de oposição e a mobilização da população nos espaços públicos abertos, onde ocorrem os comícios, normalmente praças. Se no primeiro caso, há a idéia de movimentação política pelo planejamento, no segundo, a movimentação política está ligada à idéia de manifestação. Continuemos a reflexão sobre as razões de se lembrar de alguém justamente na passagem de aniversário de sua morte, para refletirmos melhor sobre a operação de tradução e substituição entre Tancredo e Aécio e as relações de sentidos aí envolvidas. Aí se anuncia a figura do político capaz de fazer a ponte entre Estado e Nação. Entretanto, ao contrário da Folha, que tem a unidade trabalhada a partir do imaginário da Nação, no jornal O Tempo essa unidade é construída pela figura desse político capaz de fazer essa ponte. 290
Comemorar, do latim commemorare, remete aos sentidos de “lembrar com”, “trazer à lembrança” (HOUAISS, 2001). Evocar o morto seria, segundo Abreu (1994), uma “modalidade de lugar de memória”, que, como vimos no capítulo I, tem o caráter aberto, podendo ter seus sentidos deslizados. A importância dessa modalidade de comemoração nas sociedades modernas é destacada pela autora, para quem a memória, nesse caso, assume papel significativo de “estabelecer laços de continuidade através dos tempos”. O ritual de evocação apresenta modelo de identificação e de continuidade ao recordar “história exemplar”. A recordação, ao mesmo tempo em que permite o laço de continuidade, confere ao morto uma espécie de imortalidade: “No mundo dos indivíduos, certos mortos tendem a desempenhar um lugar importante para a referência dos vivos. Em muitos casos, transformam-se em bens simbólicos disputados avidamente pelo mercado. Suas famílias passaram a disputar não apenas o prestígio mas histórias todos os anos. Por meio delas, valores são transmitidos para a ação no presente e no futuro” (ABREU, 1994: 208-9).
É importante lembrar que a data 21 de abril, em que se comemora a morte de Tancredo Neves e de Tiradentes, torna-se simbolicamente importante pela possibilidade de evocação dos dois personagens que figuram como heróis, mártires, no imaginário sobre a história política de Minas Gerais e do país. Nas comemorações do 21 de abril, que normalmente ocorrem na capital mineira, em Ouro Preto (antiga Vila Rica, palco do movimento da Inconfidência Mineira) e em São João Del Rei (onde nasceu Tancredo, mesma região onde nasceu Tiradentes e onde fica a cidade Tiradentes), são evocados valores cívicos e religiosos associados a esses personagens. O cenário é marcado pela arquitetura barroca, há normalmente celebração de missa, as ruas são adornadas com flores e pinturas como nas comemorações religiosas e não faltam autoridades políticas, como Aécio Neves. Vale ressaltar que São João Del Rei e Tiradentes são cidades históricas de Minas, marcadas pela arquitetura barroca, resultante do movimento artístico que teve início na Europa e chegou ao Brasil no século XVIII, com forte influência da Igreja Católica. É comum em sua temática a retratação de Jesus Cristo, o Deus-Filho que sofreu na carne como homem e morreu na cruz para salvar os homens. A evocação de Tancredo Neves e de Tiradentes no corpus em análise oferece um modelo de identificação que não pode ser dissociado de valores religiosos e políticos. Tancredo Neves é normalmente associado à figura de Tiradentes, da mesma forma que o político mineiro constantemente recorria em seus discursos à imagem do inconfidente. Tiradentes, por sua vez, após a Proclamação da República, foi iconograficamente representado como um homem de barba e cabelos longos, vestido com um amplo camisolão. Esta iconografia, presente em obras artísticas, e 291
reproduzida em livros didáticos, reforça (ou forja?) uma surpreendente semelhança entre Tiradentes e Jesus Cristo para, dessa forma, acrescentar a Tiradentes uma simbolização cristã. Essa foi a construção da imagem de um herói para a república que não promovesse a divisão: “Na figura de Tiradentes todos podem identificar-se, ele opera a unidade mística dos cidadãos, o sentimento de participação, de união em torno do ideal, fosse ele a liberdade, a independência ou a república. Era o totem cívico. Não antagonizava ninguém, não dividia as pessoas e as classes sociais, não dividia o país, não separava o presente do passado nem do futuro. Pelo contrário, ligava a república à independência e a projetava para o ideal de crescente liberdade futura. A liberdade ainda que tardia” (CARVALHO, 1990: 68).
Na França, houve um movimento mais intenso com a construção do Panthéon, que como explica Agulhon (2000), atende à necessidade de construção, durante a Revolução Francesa, de uma ordem cívica para superação do Antigo Regime e para edificar o nacionalismo. No caso de Tiradentes, ele foi inspiração não somente para Kotscho – como mostramos na análise da SD1 com a citação do inconfidente -, mas também para muitos políticos: “O primeiro compromisso de Minas é com a liberdade”, frase do discurso de posse de Tancredo Neves quando esse assumiu o governo mineiro, último cargo político por ele efetivamente ocupado antes de ser eleito presidente do Brasil e de falecer. Essa frase de Tancredo acabou por se tornar o lema em Minas Gerais para o movimento das Diretas Já. A mesma frase foi transmitida, inúmeras vezes, pela emissora pública de TV Rede Minas no dia 21 de abril de 2005, quando também foi publicado o caderno 20 anos sem Tancredo pelo jornal O Tempo. O próprio discurso de despedida de Tancredo no Senado, de onde O Tempo retira as citações para colocar nas margens nas páginas do caderno especial, faz constante menção aos ideais libertários dos inconfidentes. Nas duas seqüências discursivas em análise, percebe-se o potencial do enunciado “Brasil, país do futuro” deslizar numa rede de filiação dos sentidos que atualiza-se e, ao mesmo tempo convoca pré-construídos sobre o Brasil e sobre os Brasileiros. Esse foi um percurso no curso de mestrado, de onde o “eu” parti jornalista para chegar na eterna deriva dos sentidos. Para fechar, sem concluir, vou citar Foucault (2004), tomando emprestadas suas palavras: “Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo: bastaria, então, que eu me encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser percebido, em seus interstícios, como se ela 292
me houvesse dado um sinal, mantendo-se, por um instante, suspensa. Não haveria, portanto, começo; e em vez de ser aquele de quem parte o discurso, eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, uma estreita lacuna, o ponto de seu desaparecimento possível.”
Bibliografia ABREU, Regina. Entre a nação e a alma: quando os mortos são comemorados. In: Estudos históricos, n. 14, RJ: 1994. ARAÚJO, Angela Aguiar. (IN) Diretas quae sera tamen: país do futuro, nação e herói. Movimento(s) de conciliação no discurso jornalístico sobre as Diretas Já. Dissertação (Mestrado em Memória Social) – UNIRIO – 2007. CARVALHO, José Murilo de. Tiradentes: um herói para a República. In: A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CHAUÍ, Marilena. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. FERREIRA, Maria Cristina. Glossário de Termos do Discurso. Porto Alegra, RS: UFRGS, 2001. FICO, Carlos. Reinventando o otimismo. Ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997. FOUCAULT, Michael. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2004. HOUAISS, A., AMARAL, R. Modernidade no Brasil. Conciliação ou ruptura. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. KOTSCHO, Mara Nogueira: A cabeça do brasileiro - uma análise das pesquisas de opiniao pública.Petrópolis, Vozes, 1986 MARIANI, Bethânia. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais. Rio de Janeiro: Revan, Campinas, SP, UNICSMP, 1998. ________________ Discurso e instituição: a imprensa. Rua: Revista da Unicamp Nudecri, Campinas, SP, no. 5, março/1999. MEDEIROS, V. Dizer a si através do outro: do heterogêneo no identitário brasileiro. Tese (Doutorado em Lingüística) – UFF, 2003. MUSSALIM, Fernanda. Análise do discurso. IN: Introdução à lingüística 2. São Paulo: Cortez, 2004. NUNES, Jose Horta. Leitura de arquivo: historicidade e compreensão. Porto Alegre, RS: UFRGS, novembro de 2005. Anais do I Sead [http://www.discurso.ufrgs. br/sead/doc/interpretacao/Jose_horta.pdf] ___________ Janelas da Cidade: Outdoors e Efeitos de Sentido. Escritos, LABEURB-NUDECRI/UNICAMP, Campinas, v. 2, 1998. ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2003. 293
____________ Terra à vista. Discurso do confronto velho e novo mundo. São Paulo: Cortez, Campinas: Unicamp, 1990. ______________As formas de silêncio.No movimentos dos sentidos. Campinas, SP: UNICAMP, 2007. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Semântica e discurso, uma crítica a afirmação do óbvio. Campinas, SP: UNICAMP, 1995. PÊCHEUX, M. O Discurso - estrutura ou acontecimento. Trad. de Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 1999. ZWEIG, Stefan. Brasil, um país do futuro. Porto Alegre, RS: L&PM, 2006. Jornal O Tempo, caderno especial 20 anos sem Tancredo, publicado em 21 de abril de 2005.
Nota 1 As reflexões deste artigo estão contidas na dissertação (IN) Diretas quae sera tamen: País do futuro, Nação e Herói. Movimento(s) de conciliação no discurso jornalístico sobre as Diretas Já (ARAÚJO, 2007).
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A CONTRADIÇÃO E A (RE)PRODUÇÃO/TRANSFORMAÇÃO NA E PELA IDEOLOGIA
Carme Regina Schons (UPF) Solange Mittmann (UFRGS)
Trabalhar com o discurso em AD consiste em investigar o processo de imbricamento da materialidade histórica com a materialidade linguística, buscando desfazer os efeitos provocados pelo próprio processo. Os efeitos de linearidade, univocidade, continuidade e transparência da língua e da história - do discurso, portanto - só podem ser desfeitos a partir de uma perspectiva que considere a exterioridade como constitutiva, isto é, que não busque separar o dentro/fora do discurso. Nessa ausência de fronteira, não há separação entre a língua, o sujeito e a história. É nesse sentido, que a AD se propõe como teoria materialista dos processos discursivos oferecendo um olhar não subjetivista da subjetividade, um olhar sobre o teatro da consciência a partir dos bastidores: “lá de onde se pode captar que se fala do sujeito, que se fala ao sujeito, antes de que o sujeito possa dizer ‘Eu falo’” (Pêcheux, 1995, p. 154) e considerando que a evidência da identidade do sujeito oculta que ela mesma resulta da identificação, pelo retorno do estranho-familiar. O trabalho com o político/simbólico faz parte da História e é constituído de historicidade. A dupla materialidade - da língua (estrutura) e da história (acontecimento) - constitui o discurso e sustenta a memória, revelando a incompletude, os sentidos marginais: não há um sentido central, mas trabalho, em que a resistência, o opaco, o impreciso e o indefinido formam o avesso da estrutura. O trabalho com o político/simbólico é a movimentação na/da história, a autotransformação, no que diz respeito à relação entre a materialidade da história e a da língua, relação em que o sujeito é concebido como suporte e efeito necessário.
A perspectiva materialista sobre a ideologia e as ideologias Antes de definir ideologia(s) do ponto de vista da AD, é importante fazer um retorno, em busca do efeito de fundamentação possibilitado pela aproximação 295
(com deslocamentos, como mostraremos adiante) de Pêcheux com Althusser. A definição althusseriana da ideologia considera o retorno da superestrutura sobre a infraestrutura, fugindo ao simples determinismo desta sobre aquela. Mas tal retorno, segundo Althusser, só pode ser analisado sob o ponto de vista da (re)produção dos meios de produção, das forças produtivas, das relações de produção: “toda formação social para existir, ao mesmo tempo em que produz, e para poder produzir, deve reproduzir as condições de sua produção”. (Althusser, 1987, p. 54) Neste sentido é que funcionam os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE), promovendo a reprodução das relações de produção. Porém, ainda que os AIE funcionem a serviço da permanência do domínio das classes dominantes, neles mesmos se dá um embate contraditório: “a resistência das classes exploradas pode encontrar o meio e a ocasião de expressar-se neles, utilizando as contradições existentes ou conquistando pela luta posições de combate”, e desta forma, é possível voltar “a arma da ideologia contra as classes de poder”. (Ibid., p.72) Embora reconheça o combate interno, ou seja, a luta da ideologia das classes exploradas, o olhar althusseriano se dá numa direção que parte da determinação da ideologia dominante e a busca interminável desta pela superação de suas próprias diferenças. É sobre a ideologia em geral que o autor analisa a estrutura e o funcionamento, através de três teses, buscando explicar a intervenção da superestrutura sobre a infraestrutura, sob a forma da reprodução. A primeira é que a ideologia representa a relação imaginária (ilusória) dos indivíduos com suas condições reais de existência: “Então, é representado na ideologia não o sistema das relações reais que governam a existência dos homens, mas a relação imaginária desses indivíduos com as relações reais sob as quais eles vivem.” (Ibid., p. 88) A segunda tese é que a ideologia tem uma existência material, ou seja, a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência é dotada de existência material: “a ideologia existente em um aparelho ideológico material, que prescreve práticas materiais reguladas por um ritual material, práticas estas que existem nos atos materiais de um sujeito, que age conscientemente segundo sua crença.” (Ibid., p. 92) Essa consciência do sujeito, que o leva a decidir por seguir (ou não) os rituais impostos pelo AIE com que se identifica, é ironizada - já que é um efeito - por Althusser quando apresenta sua terceira tese, de que a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos: “Sabemos bem que a acusação de estar na ideologia vale apenas para os outros e nunca para si”, afinal, “é um dos efeitos da ideologia a negação prática do caráter ideológico da ideologia, pela ideologia”. (Ibid., p. 97) É essa negação que caracteriza a interpelação do indivíduo em sujeito. E, como a ideologia é a-temporal, os indivíduos são sempre/já sujeitos. Assim, a condição do reconhecimento do sujeito como sujeito é o seu reconhecimento no Sujeito, a submissão não negada, que se dá sob a forma da própria negação: 296
[...]envoltos neste quádruplo sistema de interpelação, de submissão ao Sujeito, de reconhecimento universal e de garantia absoluta, os sujeitos ‘caminham’, eles ‘caminham por si mesmos’ na imensa maioria dos casos, com exceção dos ‘maus sujeitos’ que provocam a intervenção de um ou outro setor do aparelho (repressivo) do Estado. Mas a imensa maioria dos (bons) sujeitos caminha ‘por si’, isto é, entregues à ideologia (cujas formas concretas se realizam nos Aparelhos Ideológicos do Estado). Eles se inserem nas práticas governadas pelos rituais dos AIE. Eles ‘reconhecem’ o estado de coisas existente (das Bestehende), que ‘as coisas são certamente assim e não de outro modo [...] (Ibid., p.103)
Como é possível perceber, para Althusser, a negação que sustenta a evidência dos sentidos e dos sujeitos, do caminhar “por si” não impede, porém, a atuação dos maus sujeitos. Afinal, como bem destaca o autor ao final de seu texto e também nas “Notas” que se seguem a ele, há conflitos ideológicos dentro da própria classe dominante (que luta sempre por superar suas contradições internas, sem nunca chegar a resolvê-las), como há atuação, resistência da classe dominada.
A (re)produção/transformação pela/na ideologia É partindo dessa premissa de contradição e resistência, que Pêcheux retoma a descrição althusseriana dos aparelhos ideológicos de Estado, salientando que eles não são máquinas que reproduzem as relações de produção. Num jogo complexo de relações de contradição-desigualdade-subordinação numa dada formação social, as ideologias - como forças materiais que constituem os indivíduos em sujeitos, num efeito retroativo, e como práticas de luta de classes na Ideologia - são espaço também de transformação das relações sociais. Segundo o autor (1995, p. 143), as condições ideológicas da reprodução/ transformação das relações de produção tem maior alcance na prática de produção dos conhecimentos e na prática política. Isso porque a (re)produção/transformação das relações de produção de uma formação social não ocorre somente na área da ideologia. As determinações econômicas, fato já evocado em Althusser, “condicionam essa reprodução/transformação”. Toda (re)produção/transformação possui o caráter contraditório de uma divisão de classes e os efeitos de sentidos que se atribui a ela e às suas práticas são heterogêneos, ou seja, toda “luta de classes atravessa o modo de produção em seu conjunto, o que, na área da ideologia, significa que a luta de classes ‘passa por aquilo’ que L. Althusser chamou de aparelhos ideológicos de Estado” (Ibid., p. 144). (Grifos do autor.) As condições ideológicas (contraditórias na luta de classes) de (re)produção/ 297
transformação são constituídas pelo conjunto complexo dos AIE (em desigualdade de relações entre si) que uma formação social comporta em dado momento histórico. Assim, de acordo com Pêcheux, em uma teoria materialista do discurso, esses AIE podem/devem ser pensados como espaço de contradição, pelas razões, a saber: 1. A Ideologia não é espírito, nem costume de pensamento de uma época, ou seja, os aparelhos ideológicos de Estado não são realização da Ideologia em geral, porque co-existem outras ideologias, independentemente de qual seja a dominante, e essa concomitância da existência das ideologias é a própria contradição. 2. Os aparelhos ideológicos de Estado não são a realização sem conflitos da ideologia da classe dominante, como se a Ideologia surgisse dentro da própria classe dominante e fosse imposta à classe dominada. É na concomitância de diferentes mundos em um só, que a contradição pode ser percebida como constitutiva da Ideologia, que é responsável pelas condições de (re)produção/ transformação. 3. Os aparelhos ideológicos de Estado são lugar e meio de realização da ideologia dominante, mas não a expressão dessa dominação. Logo, a ideologia dominante é atravessada por outras ideologias, em cuja confluência dão-se os efeitos de sentidos, os esquecimentos e os silenciamentos de seus discursos e práticas, já que a heterogeneidade e a contradição existentes passam a ser “encobertas” pelo efeito da igualdade, da homogeneização. A partir do trabalho de Pêcheux, o conceito de contradição é elementar para o entendimento do conceito produção/reprodução, já que a contradição é constitutiva de qualquer luta de classes e não é apenas oposição de idéias, nem antagonismos. “É pela instalação dos aparelhos ideológicos de Estado, nos quais essa ideologia [a ideologia da classe dominante] é realizada e se realiza, que ela se torna dominante...”(Ibid, p. 145) 4. Os aparelhos ideológicos de Estado não são puros instrumentos da classe dominante, máquinas ideológicas que reproduzem pura e simplesmente as relações de produção existentes. Mas constituem, simultânea e contraditoriamente, o lugar e as condições ideológicas da transformação das relações de produção (isto é da revolução, no sentido marxista-leninista). Percebemos na formulação de Pêcheux que a ideologia é da ordem do representável e da ordem do (ir)repetível, uma vez que ela se materializa no discurso e se desloca na própria movimentação/transformação das classes. O palco privilegiado e a condição essencial para a manifestação singular da 298
luta de classes é a língua. É nesse sentido que a língua não é só materialidade linguística (estrutura), mas materialidade histórica (acontecimento). Por isso a perspectiva da Análise do Discurso vai de encontro às tentativas das ciências da linguagem de “curar a ferida narcísica aberta pelo conhecimento da divisão” (Gadet e Pêcheux, 2004, p.19). Tomar a língua como plana, transparente, unívoca e homogênea é deixar-se levar pelas ilusões provocadas pela própria ideologia dominante, que, em sua ânsia por manter a todo custo um imaginário de sociedade sem conflito de classes, impõe o monologismo, o sentido único, nas constantes tentativas de silenciar o que sempre vem irromper: o próprio jogo de forças entre as ideologias. Nessa perspectiva, compreendemos o deslocamento do conceito de ideologias para formações ideológicas, feito por Pêcheux (1995, p.146): “em sua materialidade concreta, a instância ideológica existe sob a forma de formações ideológicas (referidas aos aparelhos ideológicos de Estado), que, ao mesmo temo, possuem um caráter ‘regional’ e comportam posições de classe”. E compreendemos também que a luta pela transformação é a luta por novas relações de desigualdade-subordinação entre as formações ideológicas, transformando a configuração do complexo (com dominante) de formações ideológicas numa dada formação social. Compreendemos também o movimento da concepção de ideologia: da perspectiva do materialismo histórico para a do materialismo dialético, já que é neste que se admite a contradição como constitutiva e a possibilidade de transformação das formações ideológicas e entre suas relações de desigualdade na formação social, já que a dominância é efeito da própria ideologia, efeito que está marcado no discurso. E é por essa razão que as formações discursivas vão representar uma das formas materiais da ideologia, já que é na formação discursiva que vamos observar os movimentos do dizer no discursivo. Para representar esse jogo complexo das relações de contradição-desigualdadesubordinação, formulado em Pêcheux, que é a própria condição das transformações dos meios de produção/reprodução pela/na ideologia, vem representado na figura1 ao final desta seção. Nele, trazemos a contradição articulada ao trabalho de memória e do interdiscurso, uma vez que, para nós, a contradição não resulta do contraste de homogeneidades antagônicas, mas de efeitos e sobreterminação das formações ideológicas. Vejamos:
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Imagem da representação do “efeito ideológico-contraditório-desigual” sobre o discurso e o sujeito Imagem da representação do “efeito ideológico-contraditório-desigual” sobre o discurso e o sujeito
Interdiscurso – o já‐dito – memória discursiva
ideologia A
ideologia B ideologia A’’ Formação Ideológica Heterogênea ideologia Y Ideologia X Formação Discursiva Heterogênea Formação Ideológica Heterogênea
ideologia B’’
ideologia Z
Tomada de Posição – Posição Sujeito
Discursos logicamente estabilizados Setas de ponta dupla indicam as contradições
Fio do discurso – materialidade linguística
Efeito de sentido - REFRAÇÃO Ocorre a refração: desvio que faz a materialidade lingüística parecer ter um “sentido transparente.” Por causa do efeito de sentido (refração), enxerga-se o discurso onde ele não está, ou seja, ignora-se toda a “contradição constitutiva” presente numa tomada de posição pelo sujeito afetado pela ideologia e pelo inconsciente. Ignora-se, da mesma forma, as contradições constitutivas das Formações Discursivas e das Formações Ideológicas.
O discursivo no jogo entre a contradição e a transformação na/pela ideologia Não apenas a materialidade histórica é constitutiva (com a linguística) do discurso, como também os próprios processos discursivos sustentam a materialidade da história, o que permite descortinar outra questão: a do sujeito materialista que efetua a “apropriação” subjetiva política do proletariado, vislumbrando-se aqui a possibilidade de apontar o inadequado das teorias subjetivistas sobre os sujeitos. Como Pêcheux (1995, p. 304) formula: quer queiramos quer não, trata-se bem mais de um “inverno político”, metáfora essa que torna possível atermo-nos a dois pontos incontornáveis:
- não há dominação sem resistência: primeiro prático da luta de classes, que significa que é preciso “ousar se revoltar”. 300
_ ninguém pode pensar do lugar de quem quer que seja: primado prático do inconsciente, que significa que é preciso suportar o que venha a ser pensado, isto é, é preciso “ousar pensar por si mesmo”. (Pêcheux, 1995, p. 304). (Grifos nossos) Como não há sujeito sem assujeitamento, todo sujeito age e toma posição sob os efeitos la Palice (da evidência de si) e Münchhausen (da auto-suficiência). O gesto político do sujeito (ou mau sujeito, para usar o termo de Althusser retomado por Pêcheux) de contra-identificar-se e de desidentificar-se de uma Formação Discursiva é ter uma tomada de posição, uma vez que ele próprio é a manifestação material e discursiva dessa relação (do sujeito) com as ideologias co-existentes, sob o efeito da Ideologia. Afinal, é a Ideologia que regula o jogo de desigualdade entre as ideologias, a contradição constitutiva da formação social, das formações ideológicas e das formações discursivas. E é ela que vai regular-transformar, sob a forma do esquecimento e do efeito de responsabilidade, o gesto político do sujeito. Daí a relação entre o sujeito de direito e o sujeito ideológico. E daí a relação entre Ideologia, ideologias e práticas discursivas. Se a história nunca é a mesma e se suas descrições se ordenam, necessariamente, pela maneira política de manter ou modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo, as transformações (revolução) são simultâneas tanto no plano das idéias quanto no das práticas: “as ideologias são práticas de classes (de luta de classes) na Ideologia” (Pêcheux, 1995, p. 146). Afinal, não se deve simplesmente aplicar as idéias marxistas ao socialismo ou em qualquer outra instância, sem levar em consideração as práticas de uma classe. A alerta feita por Pêcheux é de que algumas teorias linguísticas introduzem o estudo do sujeito, mas ignoram as condições de produção em que se realizam seus discursos, deixando-se conduzir sob os efeitos la Palice e Münchhausen. Por isso, há necessidade de pensar uma teoria materialista nos processos discursivos levando em conta a prática política. É nesse sentido que ele afirma que “nem Marx, nem lênin ou qualquer dos pensadores políticos do marxismo-leninismo debruçaram-se senão genericamente sobre as relações entre língua, discurso e ideologia” (Pêcheux, 1990a, p. 242), ou seja, não é possível conceber transformação sem a existência simultânea da contradição, presente na língua, na história e no discurso. Nunca é demais, lembrar que quando falamos em efeito ideológico estamos falando não de um engano, de um engodo, mas de ilusões necessárias. logo, a ideologia é, em AD, o modo particular com que cada sujeito se relaciona com a linguagem e produz, para ele, o seu lugar no interior do complexo de formações ideológicas. Se, como vimos na seção anterior nas formulações de Pêcheux, a ideologia é um mecanismo de produção/reprodução/transformação de saberes, processo por meio do qual se constrói o imaginário - já que encaminha o sujeito, de forma imaginária, às 301
condições reais de sua existência - os efeitos provocados por esse processo desigualcontraditório de suas relações projetam também a possibilidade da transformação de práticas. Rancière (1996) afirma que a existência do político é a contradição. “A política é uma aposta do jogo do próprio litígio que institui a política”. Segundo Rancière (p. 39 - 40), o “litígio refere-se à existência das partes como partes, a existência de uma relação que as constitui como tais. E o duplo sentido do logos, como palavra e como contagem, é o lugar onde se trava o conflito”, a cena da interlocução sobre a contagem das partes entre os que têm direito e aqueles que não têm direito de serem contados como seres falantes. O político assenta-se no fato de colocarem em comum o dano, que nada mais é que o próprio enfrentamento, a contradição de dois mundos alojados num só: o mundo em que estão e aquele em que não estão, o mundo onde há algo “entre” eles e aqueles que não os conhecem como seres falantes e contáveis e o mundo onde não há nada. Falar sobre a inclusão do político na linguagem significa buscar, de imediato, não apenas estabelecer relação com os princípios de igualdade de direitos, mas também levar em conta a igualdade de língua/nação. Todavia, antes de tudo é preciso dizer que o político implica trabalho com dupla materialidade – a da língua e a da história. Para Pêcheux (1984 e 2004), a perspectiva materialista da língua põe em jogo não apenas o real da história tomado como contradição. Consideramos, numa reflexão dialética da história, que os sentidos assumem uma temporalidade própria na medida em que a história começa a ser organizada não pela relação com o tempo, mas com o poder e a capacidade simbólica desses “efeitos de memória”. Desse ponto de vista teórico-metodológico, Pêcheux (1995, p. 206) nos diz que “a prática política é um espaço permanente de observação das relações contraditórias de reprodução e de transformação, uma vez que a sua constituição ocorre no seio de contradições e de relações desiguais dentro da luta de classes”. Dizendo de outro modo, a contradição é tratada como heterogeneidade discursiva. O discursivo (e com ele o gesto de interpretação), ao mesmo tempo em que constitui, transforma o objeto, os movimentos de suas contradições. Assim, quando fala em discursivo, o analista do discurso não cai nas armadilhas da redução do discurso à análise da língua, ou sua dissolução no trabalho histórico sobre a ideologia como representação, isto é, ele não nega o ato de interpretação no próprio momento em que acontece (Pêcheux, 1990b, p. 35); Isso porque tomar os processos discursivos como objeto de estudo é tomar a língua e a história em seu real, é considerar a estrutura e o acontecimento, o equívoco e a contradição constitutiva, é demandar o político (no sentido dialético) na história, na língua, no discurso. A contradição é o trabalho teórico-prático do discurso, isto é, intervém na representação do real histórico na medida em que as formações ideológicas 302
constituem-se de modo desigual e contraditório. Por isso uma FD não é “um só discurso para todos”, mas deve ser pensada como “dois (ou mais) discursos em um único”.
Considerações Finais Para se tirar consequências de tudo o que foi dito até aqui, será preciso reconhecer o discurso como constituído por dois lados, que não se contrapõem, mas, ao contrário, se entrecruzam: a materialidade linguística e a materialidade histórica. Em outras palavras: o ideológico atravessa a língua, como é atravessado por ela. Trata-se aqui de um atravessamento que já não permite pensar a univocidade lógica do discurso, em que o que é (o estabilizado) se contrapõe ao que não é (o não estabilizado), e sim pensar a plurivocidade, constituída pela própria contradição, que descrevemos no decorrer deste texto. É pelo duplo jogo da materialidade, como atravessamento, que se pode entender que o que não é constitui o que é. E disso se depreende que contradição e equívoco não são problemas a serem resolvidos num universo logicamente estabilizado, de bipolarização lógica, mas sim o que torna possível a deriva de sentidos e, por ela, a própria interpretação: “é porque há o outro nas sociedades e na história, correspondente a esse outro próprio do linguajeiro discursivo, que aí pode haver ligação, identificação ou transferência, isto é, existência de uma relação abrindo a possibilidade de interpretar”. (Pêcheux, 1990b, p.54) O trabalho com o político/simbólico faz parte desse jogo, uma vez que ele se dá no e pelo processo discursivo, através do qual ocorre a própria movimentação da história, garantindo auto-transformação, que emerge/permanece na língua, que também é instância de funcionamento da ideologia. Daí a necessidade de voltar à idéia de discursividade e historicidade para falar de (re)produção/transformação. A interpretação (a relação sujeito-sentido) se constitui pela historicidade, que, por sua vez, é feita de contradição e de transformação, já que envolve a dupla determinação: da história sobre o discurso e do discurso sobre a história, conforme demonstramos, na imagem acima. Quer dizer, da mesma forma que a ideologia é constitutiva do discurso, este, como prática num processo é (re)produtor/transformador das ideologias. Por isso falamos de tomada posição do sujeito a partir de uma perspectiva materialista dialética. Embora o sujeito só tenha acesso à parte do que diz, ele é estruturalmente dividido, desde sua constituição, justamente por causa desse movimento contraditório das formações. Não é uma forma de subjetividade, mas um “lugar” que ocupa para ser sujeito do que diz. E, nesta posição-sujeito de que é constitutivo, ele não tem acesso direto à exterioridade (interdiscurso). A linguagem, portanto, não é transparente nem o mundo diretamente apreensível, quando se trata da significação. Não se trata 303
aqui da língua como instrumento homogêneo de uma sociedade que se pretende homogênea, mas de, em oposição ao fechamento do monólogo, abordar a palavra viva do diálogo (conforme Gadet e Pêcheux, 2004, p. 101). É nesse sentido que a ideologia pode ser entendida como a “raia”, termo empregado por Pêcheux (1990a, p. 8), dos limites tensos e móveis das fronteiras discursivas em que se dá a constituição de sentidos e a identificação do sujeito nas suas diferentes formas de movimentação.
Referências ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. Trad. de Walter J. Evangelista e Maria Laura V. de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1985. ORLANDI, Eni P. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez; Campinas: Edunicamp, 1996. GADET, Fronçoise; PÊCHEUX, Michel. A língua inatingível: discurso na história da lingüística. Trad. Bethania Mariani e Maria Elizabeth Chaves de Mello. Campinas: Pontes, 2004. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni P. Orlandi [et al.]. Campinas: pontes, 1995. PÊCHEUX, Michel. Remontemonos de Foucault a Spinoza. In: L’inquiétude Du dicours. Textes choisis ET présentées par D. Maldidier. Pari: Cendres, 1990a. PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 1990b. RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento - política e filosofia. Trad. Ângela Leite Lopes. São Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleção TRANS)
Notas 1 A elaboração da figura conta com a colaboração de Mário Rafael Yudi FUKUE, aluno do PPG-Letras da Universidade de Passo Fundo.
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• O QUE PODE E DEVE SER DITO SOBRE CIENCIA NO DISCURSO DA DIVULGAÇÃO CIENTIFICA: “NÓS PRECISAMOS DA INCERTEZA, É O ÚNICO MODO DE CONTINUAR” Marci Fileti Martins (UNISUL)
Podemos afirmar que o que deriva da ciência, atualmente, não é mais de interesse exclusivo dos cientistas. De fato, a ciência ganha novos sentidos ao, intensamente, sair dos seus lugares de produção e circulação tradicionais (as instituições acadêmicas com seus papers e congressos, por exemplo) para se constituir noutro espaço social e histórico em que é ressignificada através de materiais midiáticos (revistas e programas de TV) denominados materiais de “divulgação” de ciência. Nesta conjuntura, interessa-me analisar nos materiais de divulgação científica, certos enunciados como “incerteza”, “incompletude”, “imperfeição”, “provisório”, “não pode ser comprovado jamais”, “nada existe a não ser que observemos” e “nós precisamos da incerteza, é o único modo de continuar” que materializam certos sentidos sobre ciência. Sentidos estes aparentemente conflitantes com o funcionamento de um discurso da ciência concebido tanto “como uma atividade de triagem entre enunciados verdadeiros e enunciados falsos”, quanto como a produção de um sujeito da ciência que está “presente pela sua ausência” (Pêcheux 1975:1997-98). Interessa-me, portanto, como propõe Pêcheux (1983), alcançar a objetividade material contraditória do interdiscurso que determina o discurso de divulgação científica, na atualidade, buscando, de um lado, compreender as condições de produção históricas e ideológicas que tornam possíveis o surgimento desses enunciados e, consequentemente, desses sentidos sobre ciência e, de outro, interrogar sobre o papel da divulgação científica no modo como se dá a produção circulação do conhecimento numa sociedade como a nossa. O que denominamos Divulgação Científica hoje, segundo alguns pesquisadores, (BUENO 1984, ZAMBONI 2001) pode ser relacionada a um conjunto de materiais que vão desde revistas, programas de TV e de rádio passando por livros didáticos, aulas de ciências do segundo grau, até revistas em quadrinhos. E tem, imaginariamente, como função colocar em linguagem acessível os fatos/pesquisas científicas os quais são herméticos e incompreensíveis para os sujeitos não especialistas. Interessa-me dentre esses materiais, aqueles produzidos na articulação entre a ciência e a mídia, pelo que é, tradicionalmente, chamado Jornalismo Científico. 305
Nesta relação, o discurso da ciência é re-significado a partir da sua “publicização”, ou seja, a ciência é “retirada” do seu meio de circulação tradicional e levada a ocupar um lugar no “cotidiano” do grande público. O efeito de sentido que aí se estabelece é o que podemos chamar de “efeito de informação científica” (ORLANDI 2001), em que o “conhecimento” científico passa a “informação” científica. Neste funcionamento o discurso de divulgação atua como um discurso sobre (MARIANE 1988) em que, ao falar sobre ciência coloca-se entre esta e os sujeitos não especialistas buscando estabelecer uma relação com um campo de saberes já conhecido pelo interlocutor. Os sentidos aí produzidos, por um lado, mostram a ciência, na maioria das vezes, apenas em seus resultados, como produtos acabados e por outro, constroem a imagem de um leitor de ciência que se constitui pela falta de conhecimento/informação, o que imprime a necessidade de um didatismo ao discurso de divulgação. De tal modo, através recursos lingüísticos como definições, explicações, estatísticas, citações, analogias, e outros como esquemas, desenhos e fotos, este discurso desloca o conhecimento científico que passa a significar a partir de outras condições de produção. O discurso de divulgação científica, portanto, se inscreve num espaço de negociação entre as FD da mídia (jornalismo), da ciência e do grande público (não especialistas), sendo esta negociação determinada por uma interdiscusividade que vai ela mesma produzir, através de encadeamentos e articulações a delimitação, evidentemente instável, entre estas FD, as quais não se constituem independentemente, mas sim reguladas no interior do Interdiscurso. De fato, essa relação interdiscursiva, com propõe Guimarães (1993 apud ORLANDI 1996:68) não se dá partir de discursos já particularizados, é ela própria a relação entre discursos que dá a particularidade, ou seja, são as relações entre discursos que particularizam cada discurso. Desse modo, proponho pensar o discurso de divulgação científica, especificamente, na sua relação com a FD da ciência, naquilo que essa FD particulariza o discurso de divulgação, buscando compreender como certos enunciados, que surgem no discurso de divulgação como “incerteza”, “incompletude”, “imperfeição”, “provisório”, “não pode ser comprovado jamais”, “nada existe a não ser que observemos” e “nós precisamos da incerteza, é o único modo de continuar”, podem estar materializando certos sentidos sobre ciência, aparentemente conflitantes com o funcionamento de um discurso da ciência concebido tanto “como uma atividade de triagem entre enunciados verdadeiros e enunciados falsos”, quanto como a produção de um sujeito da ciência que está “presente pela sua ausência” (Pêcheux 1975: 71-98). Inicio me posicionando, posteriormente, ao que Pêcheux e Fichant (1977) chamam de corte galilaico, num momento da história da ciência em que surgem fundamentos como o Princípio da Incerteza, de Heisemberg (1927), o Teorema da Indefinibilidade, de Tarski (1930) e o Teorema da Incompletude, de Gödel (1931). O meu objetivo é mostrar que os efeitos do aparecimento dessas definições na física 306
e na lógica-matemática são decisivos para o entendimento do funcionamento do discurso da ciência na contemporaneidade. Na terceira metade do século XX, a comunidade científica ainda se recuperava dos efeitos provocado pelo que chamarei de “corte einstainiano”, que colocava a ciência num “ponto sem regresso” (Regnaut apud Pêcheux e FichanT idem) a partir do qual novos sentidos começam a aparecer. A idéia de que tempo e espaço não são absolutos e se constituem relativamente (Teoria da Relatividade Geral) e mais ainda, que são deformáveis pela matéria (Teoria da Relatividade Restrita) apontava para uma visão da realidade que, ao mesmo tempo, que era para nós não especialistas, contra-intuitiva, era para a ciência estabelecida um ponto de ruptura com seus pressupostos mecanicista e deterministas, em que haveria tanto o repouso absoluto quanto o tempo absoluto ou universal, o qual todos os relógios mediriam. Segundo Hawking (2002), esses conceitos perturbaram algumas pessoas que se perguntavam: se tudo era relativo não existiriam, então, padrões morais absolutos? Entretanto, a mesma linguagem matemática e lógica que possibilitou o desenvolvimento da mecânica newtoniana e seus efeitos, também, foi responsável pelas “descobertas de Einstein”, o que não implica, portanto, estar em jogo, no discurso da ciência, uma negação de certo pré-construído envolvendo a infalibilidade da lógica-matemática. Dito de outra maneira, os sentidos aí constituídos para a para a lógica-matemática garantem-lhe o status de metalinguagem, que através da demonstração (axiomática e algorítmica) e da verificação (objetiva), é capaz de descrever, de forma inequívoca e absoluta, os fenômenos. Isso envolve a aceitação de um real independente do sujeito e acessível por essa metalinguagem. Um enunciado de Einstein, logo após a Segunda Guerra Mundial, em 1948, após lhe oferecerem a presidência do novo estado de Israel, a qual ele declinou, materializa os sentidos do discurso da ciência que sustentava as suas descobertas: “A política é para o momento, mas uma equação é para a eternidade (Hawking 2002:26). Curiosamente, no discurso da ciência, assim, logicamente constituído, outra ruptura, essa agora muito mais desestabilizadora começa a se constituir. Determinada pelo processo de “demarcações e “acumulação ideológica” que, segundo Pêcheux e Fichant (1977), “precede necessariamente o momento do corte e determina a conjuntura na qual este se produzirá”, essa ruptura ou corte é o que se convencionou chamar “mecânica quântica”, a qual traz profundas implicações para a maneira como a ciência, a partir desse momento, passa a ver a realidade e a participação do observador no processo científico. O aspecto perturbador da teoria quântica envolve as idéias de outro alemão, Wener Heisenberg, que, em 1926, formulou o “Princípio da Incerteza”. Esse princípio surge da necessidade prática de prever a posição e a velocidade futuras de uma partícula a partir dos postulados feitos por Max Planck, que em 1900, afirmou que luz sempre vem em pequenos pacotes chamados “quanta”. Segundo Heisenberg, a hipótese 307
de Planck implica que quanto mais exatamente se tenta medir a posição de uma partícula, menos exatamente se consegue medir sua velocidade e vice e versa. O “Princípio da Incerteza”, desse modo, assinala o fim do sonho de uma teoria da ciência que propunha um modelo de universo completamente determinístico. Nas palavras Hawking (1988:65) “não se pode por hipótese prever eventos futuros com precisão, uma vez que também não é possível medir precisamente o estado presente do universo [...] a mecânica quântica, portanto, introduz um inevitável elemento de imprevisibilidade ou casualidade na ciência”. Além disso, a mecânica quântica mostra que neste processo de medição, há ainda uma indeterminação no que diz respeito as características do elemento avaliado que pode tanto se comportar como uma partícula quanto como uma onda (de luz). O que determinará se ele é uma partícula ou uma onda é a observação. Desse modo, a mecânica quântica situase, em certa medida, numa relação contraditória com próprio funcionamento do discurso científico, que se constrói pela objetividade e neutralidade ao excluir o sujeito do processo. É preciso destacar, que para muitos, o “observador”, não é um sujeito autoconsciente, mas sim “um dispositivo físico que faz a medida”. Contudo, esses sentidos aí instaurados funcionam polemizando a posição de neutralidade do sujeito da ciência estabelecida, de onde agora emergem efeitos de uma outra posição do sujeito da ciência: aquela constituída por uma certa subjetividade. É assim que Niels Born, em 1955, falando da física quântica que ajudou a criar, mostra essa nova ciência que, contraditoriamente, constituía-se tanto pelos sentidos mecanicistas quanto pelos quânticos. Ele diz, em seu artigo “Física Atômica e Conhecimento Humano”: “Em vista da concepção mecanicista da natureza no pensamento filosófico, é compreensível que às vezes se tenha visto na noção de complementaridade uma referência ao observador subjetivo, incompatível com a objetividade da descrição científica [...] Longe de conter qualquer misticismo alheio ao espírito da ciência, a noção de complementaridade aponta para condições lógicas da descrição e da experiência na física atômica”. (BORN 1995:115).
Entretanto, no mesmo artigo, Born já anunciava certos efeitos dessa subjetividade ao afirmar também que “[...] devemos manter uma distinção clara entre observador e conteúdo da observação, mas devemos reconhecer que a descoberta do quantum lançou uma nova luz sobre os próprios fundamentos da descrição da natureza, revelando pressupostos até então despercebidos no uso racional dos conceitos 308
em que se baseia a comunicação da experiência. [...] Enquanto, na concepção mecanicista da natureza, a distinção sujeito-objeto era fixa, dá-se espaço a uma descrição mais ampla através do reconhecimento de que o uso coerente de nossos conceitos requer tratamentos diferentes para essa separação.” (BORN 1995: 115-116).
Mas foram outros físicos, sobretudo, Eugene Paul Wigner, que rompendo de forma mais decisiva com o pré-construído mecanicista, propõe a necessidade da consciência “para completar a mecânica quântica”. Contudo, mesmo aceitando, como propõe Roberto Covalon, em seu artigo “Consciência Quântica ou Consciência Crítica”,1 que a introdução de elementos subjetivos na Física Quântica é considerada altamente indesejável, tendo sido tentadas diferentes formulações para contornar esse problema, quero destacar aqui, que a mecânica quântica é decisiva no sentido de materializar certas contradições do discurso da ciência de uma forma até agora incontornável. E os seus efeitos podem ser observados, já que o sujeito que antes se constituía no discurso da ciência, exclusivamente, “presente pela sua ausência” (Pêcheux 1975: 71-98) passa a ser objeto de debate, agora, por sua possível participação no processo de produção de conhecimento. E essa discussão decorre da assunção diria “espetacular” da mecânica quântica, que garante para o sujeito uma posição ativa na construção da realidade. Retomando a questão inicial envolvendo o aparecimento de alguns enunciados no discurso de divulgação científica, que parecem contradizer os sentidos constituídos no discurso da ciência, podemos dizer agora, que esses enunciados materializam o funcionamento do discurso da ciência, determinado, em parte, pelos sentidos produzidos pelo aparecimento da mecânica quântica. Assim, o enunciado da Revista Superinteressante, da edição 107, de agosto de 1996: “Você acha que o gato desta página está saltando do telhado de cá para o telhado de lá? Pura impressão. É o mesmo gato em dois telhados ao mesmo tempo. Impossível? Não para a Física Quântica. Ela acaba de provar que um átomo é capaz de estar em dois lugares na mesma fração de segundo.”
Materializa no discurso de divulgação, sentidos sobre ciência, em que o préconstruído da mecânica quântica é determinante. A referência ao gato remete ao experimento de raciocínio, conhecido pelo nome de “Gato de Schrödinger, proposto pelo austríaco Erwin Schrödinger. O experimento busca ilustrar o caráter de incerteza que acompanha a caracterização dos objetos quânticos: uma partícula/onda só se torna partícula ou onda a partir da ação do observador. Outros enunciados, agora, 309
do programa de TV “Discovery na Escola”: “nada existe a não ser que observemos” e “Nós construímos a realidade?” materializam esses sentidos. O experimento de Schrödinger busca elucidar ainda, que o gato poderia, em certo momento, estar vivo e morto ao mesmo tempo, assim como uma partícula e uma onda que seriam onda/partícula ao mesmo tempo. Outro enunciado na mesma matéria, ilustra isso: “O problema é que para as regras quânticas nenhuma das duas possibilidades poderia ser excluída. Enquanto a caixa estivesse fechada e ninguém olhasse lá dentro, o gato permaneceria num estado indefinido, morto e vivo a um só tempo. Foi uma situação como essa que os físicos americanos David Wineland e Chris Monroe criaram agora no laboratório. Não é a mesma coisa, claro, pois eles observaram um simples átomo balançando de um lado para outro numa gaiola magnética.”
Isso posto, vemos que outros sentidos do discurso científico são questionados pela física quântica, agora envolvendo a lógica que funciona nos termos de Pêcheux (1975: 71) “como uma atividade de triagem entre enunciados verdadeiros e enunciados falsos”. De fato, a lógica clássica possibilitou o desenvolvimento tanto da Física Clássica quanto da Física Quântica, na sua origem. Contudo, os paradoxos que emergiam da mecânica quântica colocavam em colapso a própria lógica assentada em sentidos disjuntivos ou..., ou.... já que, voltando ao gato, haveria um estado indefinido em que o gato estaria vivo (partícula) e ao mesmo tempo morto (onda), mas destaque-se: isso ainda não seria a realidade, seria apenas probabilidade, pura matemática, a realidade: o gato vivo ou morto, se constituiria no momento da observação. Quero tratar agora, de maneira bastante sucinta, de outros fundamentos que também constituem o campo da física hoje: do Teorema da Indefinibilidade, de Tarski e do Teorema da Incompletude, de Gödel, relacionando-os com os da mecânica quântica. Acredito que esses fundamentos compõem, juntamente com as noções de domínio da Ciência Clássica, as relações de sentidos que instituem o discurso da ciência, contemporaneamente. O Teorema da Indefinibilidade, do polonês Albert Tarski, proposto em 1930, afirma que o conceito da “verdade” para as sentenças de uma linguagem dada não pode ser consistentemente definido dentro dessa linguagem, de modo que para se chegar a verdade que sustenta uma sentença é necessário, afim de evitar paradoxos semânticos, distinguir a linguagem de que se está falando (linguagem objeto) da linguagem de que se está usando (metalinguagem). Uma implicação disso, envolve a necessidade de uma interpretação da linguagem 310
utilizada, ou seja, deve-se aceitar, como propõe Santos2, que uma mesma cadeia de sons ou de sinais escritos pode pertencer a linguagens diferentes, ser em ambas uma frase, mas com significados diferentes de tal modo que, numa, ela é verdadeira, enquanto na outra é falsa, ou seja, não diremos que uma frase é verdadeira, mas sim que ela é verdadeira numa certa linguagem. Assim, “Tarski conclui que o que devemos procurar definir não é um predicado geral de verdade, mas uma série de predicados distintos” (SANTOS idem: 24). Alguns dos opositores Tarski, dentre eles Davidson, escreveu sobre a proposta de Tarski: “A menos que estejamos preparados para dizer que não existe nenhum conceito único de verdade (mesmo enquanto aplicado a frases), mas apenas um número de conceitos diferentes para os quais usamos a mesma palavra, temos de concluir que há algo mais a respeito do conceito de verdade” (DAVISON apud SANTOS idem: 24). Essa situação envolvendo a constituição dos sentidos da lógica no discurso da ciência, mostra também um rompimento com o pré-construído da lógica clássica (disjuntiva, absoluta no que diz respeito a verdade). De fato, de acordo com Chateaubriand3 a concepção semântica da verdade de Tarski conduziu à consolidação da concepção lingüística e matemática da lógica na sua forma atual. Diz ainda, que a concepção absolutista de lógica que se encontra em Frege, em Russell e até mesmo em Hilbert, deu lugar a uma concepção relativista de lógica centrada na teoria de modelos e na teoria da prova como teorias de sistemas formais. O que, evidentemente, a aproxima dos fundamentos da mecânica quântica. Já o teorema da Incompletude de Gödel proposto pelo matemático Kurt Gödel, em 1931, na mesma época das propostas de Tarski, envolve também uma ruptura com o discurso da ciência nos seus sentidos constituídos, agora, sobre a natureza da matemática. O teorema afirma, nas palavras de Hawking (2001: 139), que, “dentro de qualquer sistema formal de axiomas, como a matemática atual, sempre persistem questões que não podem ser provadas nem refutadas com base nos axiomas que definem o sistema. Em outras palavras, Gödel mostrou que certos problemas não podem ser solucionados por nenhum conjunto de regras e procedimentos”. Hawking diz ainda, que foi um grande choque para a comunidade científica, pois derrubou a crença generalizada de que a matemática era um sistema coerente e completo baseado em um único fundamento lógico. Outros enunciados “Existe harmonia no mundo? Qual o papel da imperfeição?” agora, da revista Época, de agosto de 2006, uma revista não especializada em divulgar ciência, são também reveladores, pois mesmo sendo ambos enunciados interrogativos, ao invés de se questionar através deles o papel da imperfeição, produziu-se um efeito de sentido em que a imperfeição é aceita como tendo já um espaço, uma significação no discurso de divulgação. A dúvida, neste caso, refere-se aos sentidos da harmonia. A busca pela harmonia e, consequentemente, pela beleza e simetria constituem 311
também o discurso da ciência desde Pitágoras, passando por Kepler chegando até a atualidade. Segundo, Oliveira (1996)4 enquanto para Pitágoras e Kepler a harmonia era constitutiva das esferas celeste ou do cosmos, o que demonstraria a perfeição desses objetos, na atualidade, a harmonia pode ser entendida como a busca por leis físicas fundamentais que, em princípio, descreveriam todos os fenômenos da natureza. Contudo, essa leis fundamentais esbarram em contradições criadas dentro próprio discurso da ciência, tanto pela mecânica quântica quanto pela “incompletude” da matemática e “indefinibilidade da verdade” na lógica. Assim, outros sentidos surgem através de enunciados como “imperfeição”, “desequilíbrio”, os quais se relacionam contraditoriamente, com a “harmonia” e “a desorganização”. No discurso de divulgação observamos estes sentidos quando, no mesmo artigo, o cientista e divulgador de ciência Marcelo Gleiser afirma: “Vou escrever sobre a importância da imperfeição. Todas as coisas fundamentais que existem dependem de um desequilíbrio. Quando o sistema está equilibrado não se transforma [...] não há criação, nada acontece”. (ÉPOCA 2006: 88).
Assim, a relação interdiscursiva entre o discurso da ciência e o da divulgação, que particulariza este último, pode aqui ser compreendida como resultado da própria relação interdiscursiva que articula e delimita o próprio discurso da ciência. Dito de outra maneira, o discurso da ciência na atualidade, é resultado de “demarcações ou rupturas intra-ideológicas” definidas como “aperfeiçoamento, correções, críticas, refutações, negações de certas ideologias ou filosofias” juntamente com um processo de “cumulação” (PÊCHEUX e FICHANT 1977), em que essas demarcações estariam como que maturando para, então, finalmente surgirem como sentidos determinantes dentro do discurso da ciência. A conjuntura delineada nesse trabalho, portanto, permite-nos considerar um funcionamento para o discurso da ciência, em que convergem FD resultantes desse complexo: demarcação/cumulação/ transformação. Essas FD articulam-se tanto por uma lógica 1 (clássica), uma lógica 2 (lógica relativista), uma matemática 1 (clássica), uma matemática 2 (matemática pós-Gödel) e, finalmente pela FD da mecânica quântica, que se constitui pelos sentidos da incerteza, da probabilidade e da subjetividade. Essa constituição do discurso da ciência, por sua vez, vai produzir encadeamentos, articulações e delimitações no e com o discurso de divulgação “regulando”, em certa medida, neste último, “o que o sujeito divulgador pode e deve dizer e também o que e não pode e não deve dizer” sobre ciência. Outros enunciados, além daqueles já destacado, agora da revista Scientific American Brasil, de dezembro de 2005 e do livro de divulgação “Uma Breve História 312
do Tempo, de Stephen Hawking, são resultado dessa interdiscursividade: “[...]Apesar de perspectivas tão distintas, ambas as abordagens descreveriam tudo que existe no Universo. Não haveria maneira de determinar qual descrição é “verdadeira”[...](Scientific American Brasil, dezembro de 2005:57). “[...] Qualquer teoria física é sempre provisória, no sentido de que não passa de hipótese: não pode ser comprovada jamais. Não importa quantas vezes os resultados de experiências concordem com uma teoria, não se pode ter certeza de que, da próxima vez, o resultado não vai contradize-la.[...]” (HAWKING 1988:23)
Alguns encaminhamentos Nas considerações sobre os discursos da ciência e da sua divulgação propostas aqui, optei por destacar das suas condições de produção, apenas um dos elementos que as constituem, aquele relacionado à história, especificamente, à história da ciência. Uma elaboração, portanto, na qual as condições de produção possam ser pensadas de maneira mais ampla, levando em conta as questões ideológica, políticas, econômicas (e não econômicas) são fundamentais para a compreensão das pontos, aqui, levantados. Pêcheux (1975:190) tratando das condições de aparição do que ele denomina ciências da natureza, vai afirmar que elas estão ligadas às também novas formas de organização do trabalho imposta pela instauração dos modos de produção capitalista. Portanto, uma questão que surge, envolve a compreensão dos modos de produção capitalista: suas condições de reprodução da força de trabalho e das ideologias aí inscritas, que na conjuntura delineada neste trabalho estão, juntamente com a história, sustentam a produção do conhecimento científico, contemporaneamente. Algumas cifras podem ilustrar o lugar, por exemplo, da física quântica na conjuntura econômica da atualidade. Os investimentos nessa área, chegam a 6 bilhões de dólares em tecnologia de imagem para a medicina, 10 milhões de dólares em medicina nuclear, 30 milhões em armas nucleares por ano, 40 milhões em energia nuclear. De tal modo, a seguinte afirmação do físico Leon Lederman, Coordenador do Laboratório Nacional de Aceleração de Partículas de Illinios: “[...] Parece uma arrogância cósmica acreditarmos que podemos prosseguir com uma declaração de que nada existe a menos que o observemos. No coração 313
da física quântica está a incerteza. Não apenas o “Principio da Incerteza”, mas todo o conceito de incerteza. Ele parece cativante se espalha por toda a ciência. Mas nós sabemos que a mecânica quântica funciona, olhe a sua volta. Só não sabemos porque funcionamaterializa sua posição enquanto cientista que se opõe aos sentidos estabelecidos dentro da ciência clássica, produzindo nessa posição uma relação de “desigualdade-subordinação” (PÊCHEUX 1975:191)
que reflete uma luta de interesses dentro do campo da ciência. Nessa conjuntura em que, segundo alguns dados, 30% do produto nacional bruto no mundo é devido ao conhecimento de como as partículas subatômicas funcionam, Lederman tem uma certa “vantagem econômica” sobre seus concorrentes. Finalmente, gostaria interrogar sobre o papel da divulgação científica no modo como se dá a produção e circulação do conhecimento numa sociedade como a nossa, relacionado com as formulações aqui apresentadas. Vemos que, sobretudo, a mecânica quântica intervém no discurso de divulgação, e este por sua vez, produz seus próprios encadeamentos, articulações e delimitações determinando o que pode e não pode ser dito sobre ciência. Contudo, do mesmo modo que no discurso científico, no discurso de divulgação também se inscrevem sentidos de uma ciência clássica. Assim, não estamos tratando, aqui, de um funcionamento discursivo homogêneo no sentido quântico, nem para o discurso da ciência nem para o discurso de divulgação. Além disso, um dos efeitos imediatos do aparecimento da mecânica quântica na produção e circulação do conhecimento, é na verdade um efeito de continuidade, que pode ser observado na conservação da posição (histórica-ideológica) de poder da ciência na nossa sociedade. Agora, esse lugar de poder, não é mais garantido somente pela capacidade da ciência em explicar de forma inequívoca a realidade, mas sim pela sua capacidade de dominar o conhecimento para a produção de uma tecnologia extremamente poderosa. As palavras do físico Yakir Altaranov, da Universidade da Carolina do Norte, quando afirma que se sabe “como” a mecânica quântica funciona, contudo, não se sabe “porque” funciona, ilustra esse ponto, ou seja, há um grande investimento nos produtos, mas nem tanto nos processos. De qualquer modo, outro efeito de sentido que parece estar surgindo também, pelo menos nos materiais de divulgação de ciência aqui analisados, é um conjunto de dizeres no discurso da ciência dos cientistas e tecnólogos (PÊCHEUX 1982) que em alguns casos, se aproxima do discurso da ciência dos literatos. O textos abaixo, retirados da revista National Geographic Brasil, de setembro de 2007 e do programa de TV “Discovery na Escola”, que trazem afirmações do arqueólogo dinamarquês Niels Lynnerup e do físico Leon Lederman, respectivamnte, parecem materializar 314
isso: “Niels Lynnerup, que usou o que a ciência tem de mais poderoso para penetrar nos segredos do Homem de Grauballe e que pode ver em seu computador as imagens tridimensionais dos ossos, músculos e tendões desses corpos, não se incomoda com os mistérios renitentes. “Coisas estranhas acontecem no pântano. Sempre haverá alguma ambigüidade”. Ele sorri. “Até gosto da idéia de haver mistérios que nunca desvendaremos””.(National Geographic Brasil 2007: 94) “Só podemos dizer que a natureza parece ser assim: a palavra incerteza por toda parte. [...] O Princípio da Incerteza pode ser chamado de princípio da tolerância no sentido de engenharia sim, eles fazem funcionar mesmo se o ajuste não for perfeito. Mas tolerância no sentido humano, precisamos ter pessoas perguntando umas as outras o que você acha? Qual é a sua opinião? Pode ser confortante para algumas pessoas ter certeza, certeza de que vai comer, certeza de que vai beber, de que vai fazer amor, mas certeza absoluta? Certeza absoluta é entorpecimento, é enfado. Nós precisamos da incerteza é o único modo de prosseguir” (Discovery na Escola ).
Bibliografia BOHR, Niels. 1995: Física Atômica e Conhecimento Humano. Ensaios 1932-1957. Contraponto. Rio de Janeiro. BUENO, W. Da C. 1984: Jornalismo Científico no Brasil: os compromissos de uma prática dependente. Tese (Doutorado) USP. HAWKING, Stephen W.1988: Uma Breve Historia do Tempo.Círculo do livro S.A. São Paulo. ______ 2002: O Universo numa casca de noz. Editora Mandarim. São Paulo. MARTINS, Marci Fileti. 2006: Divulgação Científica e a Heterogeneidade Discursiva: análise de “Uma Breve Historia do Tempo” de Stephen Hawking in Linguagem em Discurso v.6, n.2,maio/ago ORLANDI, Eni. 2001: Divulgação Científica e Efeito Leitor: Uma Política Social e Urbana in Produção e Circulação do Conhecimento Vol 1 (Estado, Mídia, Sociedade). Org. Eduardo Guimarães. Pontes, CNPq/ Pronex e Núcleo de Jornalismo Científico. MARIANI, Betânia 1998:O PCB e a Imprensa. Os comunistas no imaginário dos jornais 1922-1989 Campinas, SP: Editora da UNICAMP. ________. 1996: Autoria e Interpretação In. ORLANDI, E. - INTERPRETAÇÃO. Petrópolis. Ed. Vozes. PÊCHEUX, M. e FICHANT, M. 1977: Sobre a História das Ciências. Estampa 315
Lisboa. PÊCHEUX, M. 1975: Les Vérités de la Palice. Paris. Mespero (trad.bras.) Semântica e Discurso. 1975. UNICAMP.Campinas/SP. 1988 ________1982 “Lire l’archive aujourd’hui” .Trad.bras. Ler o arquivo hoje. In: Gestos de Leitura. Ed. da Unicamp, 1994.Campinas. ZAMBONI, Lilian Márcia Simões.2001: Cientistas, Jornalistas e a Divulgação Científica –Subjetividade e Heterogeneidade no Discurso de Divulgação Científica. Editora Autores Associados. Apoio FAPESP. Campinas, São Paulo.
Notas 1 www.comciencia.br/reportagens/fisica/fisica 2 pwp.netcabo.pt/0154943702/tarski.pdf 3 www.iupe.org.br/ass/filosofia/Fil-Logica_e_linguagem.htm 4 pordentrodaciencia.blogspot.com/2006/09/harmon
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Evidências de responsabilidade no discurso do Pacto Global Maria Virgínia Borges amaral (UFAL)
Neste trabalho mostraremos como o discurso da responsabilidade social está alicerçado em evidências de que todos sabem e aceitam a ação corporativa propagada pelo Pacto Global1 para amenizar os efeitos da globalização na vida das pessoas. Nosso estudo compreende que “o discurso é produzido em um determinado momento histórico [...] e responde às necessidades postas nas relações entre os homens para a produção e reprodução de sua existência em sociedade.” (AMARAL, 2005, p. 27). Com este fundamento retomamos questões da “teoria materialista dos processos discursivos” (PÊCHEUX, 1988, p. 189) e discutimos como a ideologia fornece evidências pelas quais “todo mundo sabe” (e aceita) o que é responsabilidade social, evidências que fazem com que essa expressão “queira dizer o que realmente diz”, mascarando sob a transparência desse dizer o “caráter material do sentido”. Favoreço-me da tese de que “a constituição do sentido junta-se à da constituição do sujeito” (PÊCHEUX,1997, p. 153 - 154). Para Pêcheux, o sentido, assim como o sujeito, é constituído pela ideologia: “É a ideologia que fornece evidências pelas quais ‘todo mundo sabe’ o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve etc. Evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado ‘queiram dizer o que realmente dizem’ e que mascaram assim, sob a ‘transparência da linguagem’, aquilo que chamaremos caráter material do sentido das palavras e dos enunciados.” (idem, p. 160). Observemos que Pêcheux põe certas expressões deste enunciado entre aspas, o que aponta para o outro lado de tais evidências: nem todo mundo sabe; discute-se o que se diz ser para o bem de todos; o que se diz não é, necessariamente, o que se quer dizer . As “evidências da linguagem” obscurecem ou apagam o outro lado do dizer, apagam as condições efetivas que levam o discurso a produzir certos dizeres cujos sentidos parecem óbvios. Sob as evidências de que isso é realmente assim há o processo de atuação da ideologia. Veremos no funcionamento do discurso do Pacto Global como as evidências ideológicas produzem sentidos de responsabilidade para enfrentar forças destrutivas do capitalismo2.
Sobre a ideologia e o discurso Num sentido amplo, a Ideologia se define como uma função social: “é acima de tudo aquela forma de elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis 317
social dos homens consciente e operativa” (LUKÁCS, apud VAISMAN, 1989, p. 420). Em qualquer forma de sociabilidade, a Ideologia tem sua existência real, não sendo produto de uma atitude teórica. É orientação das ações do homem em sociedade, procede da e volta para a prática social, conferindo-lhe um caráter ético e político. Sendo função social, a Ideologia, na sociedade capitalista, cumpre seu papel especifico junto à luta de classes. E, embora não seja restrita à luta de classes, é verdade que nesta sociedade a Ideologia produz “falsa consciência”, impulsiona a “forma de consciência estranhada [...] a ilusão necessária requerida pelo sistema capitalista para sobreviver [...] falso socialmente necessário” (LUKÁCS, apud VAISMAN, 1989, p. 405). Ideologia não é sinônimo de falsa consciência; ela gera falsa consciência. É devido à complexidade deste tema que esta discussão não poderá ser excluída do debate da teoria materialista dos processos discursivos. É no discurso que a Ideologia encontra a sua forma mais complexa de objetivação. O discurso sobre o trabalho, por exemplo, proclama idéias de autonomia, de liberdade, de livre escolha, através dos empresários ou de seus órgãos representativos. Estes são meios intermediários e necessários para o funcionamento da Ideologia; são tradutores dos discursos que sustentam as relações de trabalho e propagam idéias de liberdade e de individualidade3. Em Análise do Discurso compreende-se que o movimento de outros dizeres, nem sempre explicitados na “superfície discursiva”, constitui o “domínio discursivo”4 [como se fosse um território, a base de sustentação do dizer] – o “domínio da memória” do discurso, o interdiscurso. A memória discursiva é a existência histórica do discurso relativo às expressões concretas que, sob as evidências ideológicas, se põe em movimento e produz sentidos. Mais tecnicamente, a memória discursiva é concernente ao interdiscurso, ao pré-construído, aos discursos-transversos (PÊCHEUX, 1997), de onde decorre a condição material do sentido, um sentido mascarado por sua evidência transparente para o sujeito . Ora, o sentido de uma palavra ou de uma expressão não existe em si mesmo; ele é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico (PÊCHUEX, 1997). A condição material do sentido consiste naquilo que no campo discursivo constitui a base do dizer, mas que não pode ser descolada da condição objetiva da realidade, do processo sócio-histórico de uma dada formação social.
A condição material do sentido de responsabilidade social Sob a evidência de que responsabilidade social é uma ação que resolverá os problemas sociais gerados pelo desenfreado crescimento da sociedade capitalista, os empresários pactuam com as agências das Nações Unidas, organizações de trabalho, organizações não governamentais e outros autores da sociedade civil “para a promoção de ações e parcerias na busca de uma visão desafiadora: uma economia 318
global mais sustentável e inclusiva” (Pacto Global, 2007). Esta é a chamada da Organização das Nações Unidas (ONU) aos segmentos representativos da sociedade capitalista para a execução do Plano das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. A “novidade” do discurso é uma certeza manifesta de responsabilidade social corporativa, um ajuntamento de forças para encaminhar os programas de responsabilidade no manifesta mundo capitalista durante as duas décadas do discurso é umasocial certeza de responsabilidade socialprimeiras corporativa, um do século XXI.de Tem-se, prática discursiva, a evidência de um Pacto Global. ajuntamento forças na para encaminhar os programas de responsabilidade social no mundo capitalista as duasas primeiras décadas do século XXI. Tem-se, naosprática O Pacto Globaldurante sistematiza formas pelas quais serão alcançados objetivos 5 discursiva, a evidência de um Pacto Global . de Desenvolvimento do Milênio propostos pela ONU para a implantação e a O Pacto Global sistematiza as formas pelas quais serão alcançados os objetivos consolidação do PNUD. Os 191 chefes de Estados-Membros das Nações Unidas, de Desenvolvimento do Milênio propostos pela ONU para a implantação e a reunidos em Assembléia de 6 a de 8 de setembro de 2000, em Nova Iorque – consolidação do PNUD. OsGeral 191 chefes Estados-Membros das Nações Unidas, evento denominado –, assinaram Milênio e reunidos em AssembléiaCúpula Geral dedo 6 aMilênio 8 de setembro de 2000, aemDeclaração Nova Iorquedo – evento denominado Cúpula do Milênio os –, objetivos assinaramdoa PNUD Declaração do Milênio e se do se comprometeram a cumprir até 2015. No prefácio comprometeram a cumprir os objetivos do PNUD até afirma: 2015. No prefácio doque documento documento oficial, o Secretário-Geral da ONU “Pensamos o principal oficial, Secretário-Geral ONU afirma: “Pensamos que o principal desafio desafiooque se nos deparadahoje é conseguir que a globalização venha a ser que umaseforça nos depara hoje é conseguir que a globalização venha a ser uma força positiva para positiva para todos os povos do mundo, se é certo oferece que a globalização todos os povos do mundo, uma vez que se é uma certo vez que que a globalização grandes oferece grandes possibilidades, atualmente os seus benefícios, com seus possibilidades, atualmente os seus benefícios, assim com seus custos, sãoassim distribuídos custos, são distribuídos de forma muito desigual” (Declaração do Milênio, 2000). de forma muito desigual” (Declaração do Milênio, 2000). Vejamos os objetivos e as metas para o Desenvolvimento segundo a ONU. Vejamos os objetivos e as metas para o Desenvolvimento segundo a ONU. 1
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Objetivos Erradicar a pobreza extrema e fome Atingir a educação básica universal Promover a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres Reduzir a mortalidade infantil Melhorar a saúde materna
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Combater o HIV/AIDS, a malária e outras doenças
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Assegurar a sustentabilidade ambiental
Metas Reduzir pela metade a proporção de pessoas que vivem com menos de um dólar por dia Reduzir pela metade a proporção de pessoas que sofrem de fome Assegurar que todos os meninos e meninas concluam o curso completo da escola fundamental Eliminar a disparidade de gênero na educação fundamental e na secundária, preferencialmente até 2005, e em todos os níveis até 2015 Reduzir em até dois terços o índice de mortalidade entre as crianças com menos de cinco anos Reduzir em até três quartos o índice de mortalidade das mães Parar e começar a reverter o crescimento do HIV/AIDS Parar e começar a reverter a incidência da malária e de outras doenças importantes Integrar os princípios de desenvolvimento sustentável em políticas e programas nacionais; reverter a perda de recursos ambientais Reduzir pela metade a proporção de pessoas sem
O Global Compact (Pacto Global), iniciativa da ONU em prol da responsabilidade social, tem mais de 3,6 mil associados, faz parceria com GRI (Global Reporting Initiative), ONG que estimula a sustentabilidade das empresas. O Secretário Geral das Nações 319 Unidas, Kofi Annan, propôs primeiramente o Global Compact no Fórum Econômico Mundial em 31 de janeiro de 1999. Em seguida, fez “o convite” ao setor privado para que, juntamente com algumas agências das Nações Unidas e atores sociais, contribuísse para avançar a prática da responsabilidade social corporativa, na busca de uma economia
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Desenvolver uma parceria global para o desenvolvimento
Fonte: Manual do Global Compact, 2007
acesso sustentável à água potável Alcançar uma melhoria significativa nas vidas de pelo menos 100 milhões de moradores de favelas até 2020 Desenvolver ainda um sistema comercial e financeiro aberto com base em normas, previsível e não discriminatório. Inclui um compromisso para uma boa governança, desenvolvimento e redução da pobreza – nacional e internacionalmente Tratar das necessidades especiais dos países menos desenvolvidos. Isto inclui o acesso à isenção de tarifas e quotas em suas exportações; aumentar o perdão da dívida para os países pobres com dívida substancial; cancelamento da dívida bilateral oficial e assistência oficial mais generosa para o desenvolvimento de países comprometidos com a diminuição da pobreza Tratar das necessidades especiais dos Estados cercados e pequenas ilhas em desenvolvimento Tratar de forma abrangente os problemas da dívida de países em desenvolvimento por meio de medidas nacionais e internacionais para tornar a dívida sustentável a longo prazo Em cooperação com os países em desenvolvimento, desenvolver trabalho produtivo e decente para os jovens Em cooperação com as indústrias farmacêuticas, fornecer acesso aos remédios essenciais disponíveis nos países em desenvolvimento Em cooperação com o setor privado, disponibilizar os benefícios de tecnologias novas – especialmente tecnologias de informação e comunicações
o pacto está firmado e todos os sujeitos envolvidos. A evidência do EntãoEntão o pacto está firmado e todos os sujeitos envolvidos. A evidência do consenso está representada na assinatura do acordo. As empresas passam a assumir a 6 consenso está representada do acordo. empresasvoltadas passam para a assumir força-tarefa de realizar açõesna de assinatura responsabilidade socialAs corporativa a 6 acomunidade força-tarefa de realizar ações de responsabilidade social corporativa voltadas e cooperar para a diminuição da pobreza. A responsabilidade social extrapola os muros da eempresa; nãopara basta agora cuidar somente dos seus funcionários. para a comunidade cooperar a diminuição da pobreza. A responsabilidade Esta atitude empresarial é formalizada através de uma carta enviada ao Secretário-Geral social extrapola os muros da empresa; não basta agora cuidar somente dos seus da ONU, quando a empresa insere no Pacto Global, firmando-se o acordo. funcionários. Esta atitudeseempresarial é formalizada através de uma carta enviada ao
Secretário-Geral da ONU, quando a empresa se insere no Pacto Global, firmandose o acordo.
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Em janeiro de 2005, líderes mundiais renovaram seu compromisso com o objetivo global e se expressaram através de um plano para executar as forças-tarefas: Fome, Educação, Igualdade de Gênero, Saúde infantil e saúde materna, Aids, Acesso a Medicamentos essenciais, Malária, Tuberculose, Meio 320 ambiente, Água, Moradores de assentamentos precários, Comércio, Ciência, Tecnologia e Inovação. (www.pnud.org.br/milenio)
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es à s; es da sa os
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Com esta comunicação, expressamos nossa intenção de apoiar e difundir tais princípios dentro de nossa esfera de influência. Comprometemo-nos a fazer o Pacto Global e seus princípios parte da estratégia, cultura e operações diárias de nossa organização e empreender esforços para divulgar publicamente este compromisso junto a nossos empregados, parceiros, clientes e público em geral. Nós nos comprometemos a oferecer de forma pública e transparente informações sobre os progressos que realizamos na implementação dos princípios.7
Destacamos neste enunciado, trecho da carta de adesão ao Pacto Global pelo empresário8, o compromisso de divulgação do resultado das ações de responsabilidade social – “nós nos comprometemos a oferecer de forma pública e transparente informações sobre os progressos que realizamos na implementação dos princípios”. Esta prática é realizada através do Balanço Social da empresa, cujo objetivo é bastante discutido no campo social e administrativo. Conhecendo a memória do discurso (o território de sustentação do dizer, o discurso que está dito em outro lugar) da responsabilidade social, podemos ter mais elementos para compreender o “incentivo” dado às empresas para que divulguem os resultados de investimento no “social”. Além desta afirmação de adesão ao Pacto, o sujeito empresário é convidado a concorrer no mercado produtor de efeitos de sucesso e de comprometimento com o social. Através de concursos o empresário procura sua projeção de sujeito legitimado pela ideologia da responsabilidade e assume atitudes para além do compromisso com seus funcionários; é o que se pode ver nas exigências do Concurso de Experiência em Inovações Sociais na América Latina e do Caribe. No regulamento do concurso explicita-se: a organização empresarial que quiser concorrer no item de Responsabilidade Social Corporativa deverá incluir “projetos que expressam o compromisso da empresa para contribuir com o desenvolvimento social e econômico sustentável de comunidade, com a utilização de recursos próprios. Não serão considerados programas que beneficiem exclusivamente os empregados da empresa e respectivas famílias” ( www.cepal.org. 2007). Neste enunciado do discurso do Pacto Global evidencia-se a ação da empresa junto à comunidade. A responsabilidade social que esteve dividida entre os funcionários e a comunidade agora é “convidada” a investir mais na comunidade, assumindo ações voltadas para a educação de criança e adolescentes (objetivo n.2 do quadro acima), meio ambiente (objetivo n. 7), saúde pública, cuidando de doenças que põem em risco a coletividade, como é o caso de comprometer-se com o combate ao HIV/ AIDS, à malária e outras doenças (objetivo n. 5). Como vimos, a condição material do sentido de responsabilidade social está 321
definida no cenário discursivo do mundo capitalista. No PNUD estão definidas as condições para o consenso; todos passam a acreditar na ação corporativa e a ideologia capitalista avança ganhando adeptos para a grande empreitada de “acabar com a pobreza”. A formação discursiva9 do mercado cumpre a sua função de dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, esta objetividade contraditória dos discursos que dominam essa formação discursiva. O “sujeito universal”, aquele que não tem voz, mas fala através dos sujeitos personificados, dos porta-vozes da ideologia dominante10, é o sujeito da classe dominante. Esta atua sob a evidência de que as idéias capitalistas são idéias universais, apresentamnas como sendo as únicas racionais, as únicas universalmente válidas, e todos os membros da sociedade se supõem com interesses comuns. Neste processo a vitória do pensamento dominante, e neste caso, do qual estamos falando, do discurso da responsabilidade social corporativa, passa a ser uma vitória de utilidade pública (no sentido metafórico); todos os indivíduos que não pertencem à classe dominante são convidados a elevar-se a esta, incorporando as idéias e as ações celebradas e desenvolvidas pelos sujeitos porta-vozes do discurso empresarial, que “não medirá esforços para divulgar o discurso do Pacto Global” que se realiza junto às empresas, através do discurso da responsabilidade social corporativa: “Comprometemo-nos a fazer o Pacto Global [...] empreender esforços para divulgar publicamente este compromisso junto a nossos empregados, parceiros, clientes e público em geral” (Carta para a firmação do Pacto Global).
Os efeitos do Pacto Global no Brasil Muita coisa será vista até 2015, quando se dirá que nada mudou. No momento, pouco se tem alcançado em relação ao que foi programado em 2000. Nos relatórios anuais da ONU explicitam-se alguns pontos que não foram alcançados durante este tempo de ação do PNUD. No Brasil, em pesquisa realizada pelo IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada –, em 2004, com cerca de 871 mil empresas privadas com fins lucrativos, constatou-se que a ação social das empresas vem aumentando gradativamente desde 1990. Dessas 871 mil empresas entrevistadas, 600 mil atuam em prol da comunidade, o que equivale a 69% . Constatou-se também que 50% dessas empresas atuantes em algum programa de ação social são do Sudeste, para 10% , apenas, do Nordeste. Vale ressaltar que são as grandes empresas (mais de 500 empregados) que se mantêm com a maior taxa de participação em ações sociais (94%), e elas estão obviamente centradas no Sul do país. Mas há uma expressiva participação das microempresas (aquelas que têm de 1 a 10 empregados): 66% delas desenvolvem algum tipo de ação comunitária. 322
O que fazem e para quem fazem essas empresas? Verificou-se nesta pesquisa do IPEA que a ação do empresariado nacional concentrou-se nas atividades voltadas para a assistência e alimentação. Supõe-se que essa concentração deva-se à mobilização nacional e, até mesmo, internacional em torno do combate à fome. No Brasil tem-se o Programa Fome Zero. Os empresários têm uma ONG – Ação Fome Zero – que se diz comprometida com o desenvolvimento humano e social do país. Seus associados apóiam técnica e financeiramente ações que pretendam reduzir os níveis de pobreza do Brasil; estão assim antenados com os princípios do Pacto Global.11 De forma geral, conforme define o IPEA, o atendimento privado ainda é predominantemente emergencial, o que corrobora com a questão referida anteriormente sobre a exclusão social, concentrando-se as intervenções nos problemas da alimentação em detrimento de outras necessidades características do índice de qualidade de vida da população. No conjunto, as necessidades são as seguintes, por ordem de prioridades de ações desenvolvidas pelas empresas brasileiras em 2000 e 2004: alimentação e abastecimento, assistência social, saúde, educação/ elfabetização, lazer e recreação, desenvolvimento comunitário e mobilização social, esporte, qualificação profissional, cultura, segurança e meio ambiente. Em relação ao público mais focalizado pelas empresas, a maioria é a criança e o adolescente. Em seguida as empresas voltam-se para os idosos, depois para comunidade em geral, os jovens, os portadores de deficiência, adultos, portador de doenças graves, família e a mulher. A pesquisa do IPEA também constatou que a atuação social das empresas em sua maioria é feita por doações às ONGs. 12 Quando se questiona sobre os motivos de as empresas realizarem ações sociais, verifica-se que ainda é a filantropia que impulsiona o empresariado brasileiro, o que nos levar a perceber que o empresário brasileiro ainda é “interpelado pelas idéias da responsabilidade social”. O conhecimento das “bases universais” do Pacto Global, possivelmente comece a ganhar adeptos após 2005. Mais da metade das empresas entrevistadas pelo IPEA declarou motivos humanitários; isso implica a atitude informal das empresas ao tratar dessas ações, provavelmente conduzidas pela propaganda da “empresa-cidadã”, que se compromete para ser bem-vista pelo público consumidor. Em 2004, apenas 57% declararam que realizam ações sociais, mas não consta de documento nem dispõem de orçamento próprio. Disso decorre também que a responsabilidade social da empresa está centrada na mão do dono ou da diretoria, que, conforme o Relatório, é um segmento na maioria das vezes não dedicado profissionalmente a essas atividades, agindo filantrópicamente. Como mostra a pesquisa, a participação dos empregados ainda é muito baixa. Entretanto há o reconhecimento, por parte do empresariado, de os resultados gerados pelas ações sociais serem benéficos para as condições de vida da comunidade. Por ordem de prioridades, são estes os resultados: melhoram as condições de vida 323
na comunidade, aumentam a satisfação pessoal e a espiritual do dono da empresa, melhoram a relação da empresa com a comunidade, melhoram a imagem da empresa, aumentam a motivação e a produtividade dos funcionários, melhoram o envolvimento/compromisso do funcionário com a empresa, contribuem para os objetivos estratégicos da empresa, aumentam a lucratividade. Algumas empresas alegaram que o investimento em ações sociais foi maior do que o retorno; “não houve lucro”. Mesmo atuando com programas de responsabilidade social, as empresas não se reconhecem como responsáveis pelos problemas sociais; 78% consideram que “é obrigação do Estado cuidar do social e que as empresas atuam porque os governos não cumprem seu papel” (IPEA, 2006, p. 31). Na verdade, a realização de ações sociais por parte das empresas é impulsionada pelo lucro; 51% responderam que mais dinheiro nas empresas seria o principal motor para dar início à participação na área social. Muitas empresas, pois, visam essencialmente o aumento de recursos financeiros e, para não gastar dinheiro, recusam-se a atuarem no social.
Conclusão Sob a evidência do Pacto Global oculta-se um outro discurso – o rejeitado: o discurso de conformação do homem à estrutura da sociedade. Aparentemente todos estariam incomodados com a pobreza resultante da perversidade capitalista, e, por isso, estariam unidos para uma força-tarefa no sentido de amenizar tais destroços. Na superfície do discurso do Pacto Global explicita-se o que se quer que todos saibam: um discurso selecionado, acatado, o discurso de que todos devem assumir a sua parte de responsabilidade na força-tarefa, o discurso da responsabilidade social, aliado ao do corporativismo, da cooperação, da liberdade de escolha, da vontade individual. Um novo “sonho” é alimentado. A promessa é emancipar o homem de seu fatídico destino (revivificando a promessa iluminista do século XVIII). Instala-se em um “mundo global” de esperanças, de uma vida mais digna, com mais segurança, com mais qualidade. Destituindo o sentido de sofrimento dos que padecem na pobreza, na dependência, no favoritismo ou na filantropia, produz sentidos de alegria, autoafirmação, de colaboração entre os diversos segmentos da sociedade capitalista, como se isto pudesse libertar o homem das malhas da exploração. Mas a “libertação”, como diz Marx (1986, p. 65), “é um ato histórico, não um ato mental”. A liberdade real só é possível no mundo real e através de meios reais; os meios reais são as condições efetivas de se obter alimentação, habitação e vestimenta, em qualidade e quantidade adequadas. Contrariando a todas essas condições, a ideologia que orienta o Pacto Global cria a ilusão de união e interesse comum para a felicidade de 324
todos. Por fim, “se é verdade que a ideologia ‘recruta’ sujeitos entre os indivíduos (no sentido em que os militares são recrutados entre os civis) e que ela recruta a todos, é preciso, então, compreender de que modo os ‘voluntários’ são designados nesse recrutamento” (PECHEUX, 1997, p. 157). O discurso do Pacto Global produz esse “efeito fantástico” e todos os “voluntários” (os que fazem o pacto) recebem como evidente o sentido do que ouvem e dizem sobre a responsabilidade social.
Referências
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Organização das Nações Unidas - ONU. Declaração do Milênio. Disponível em www.pnud.org.br/milenio. Acesso em maio de 2007. Pacto Social. Manual do Global Compact. Disponível em www.pactoglobal.org.br. Acesso em maio de 2007. ____. Modelo Carta de Adesão. Disponível em www.pactoglobal.org.br. Acesso em maio de 2007. PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso – Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988. ____. Papel da Memória. In: ACHARD, Pierre [et al]. Papel da Memória. Campinas – SP: Pontes, 1999, p.49 – 57. PÊCHEUX, M. & FUCHS. C. A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas (1975). In Por uma análise automática do discurso, Introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1993. POCHMANN, Mário et. al. Atlas da Exclusão Social. São Paulo: Cortez: 2004. CEPAL - Concurso de Experiência em Inovações Social na América Latina e do Caribe. Regulamento. Disponível em www.cepal.org, acesso em maio de 2007. VAISMAN, Éster. A ideologia e sua determinação ontológica. In: Ensaio/17-18. São Paulo: Editora Ensaio, 1989, p 399-444.
Notas 1 Pacto firmado entre as lideranças empresariais, atendendo ao “chamado” da Organização das Nações Unidas – ONU – para comprometerem-se com os objetivos do Plano das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD –, elaborado e declarado em 2000, com metas para serem atingidas até 2015. Em 24 de junho de 2004 o Secretário-Geral Kofi Annan convocou a Cúpula das Lideranças do Pacto Global na Sede da ONU em Nova Iorque. Presentes quase 500 lideranças, autoridades e titulares do trabalho e da sociedade civil para tratar da cidadania global empresarial – o Pacto Global. (V. Relatório Preliminar sobre a Cúpula das Lideranças do Pacto Global Elaborado pelo Escritório do Pacto Global, em Nova Iorque, 2 de julho de 2004, disponível em www.pactoglobal.com.br). 2 “Os imperativos da lucratividade em escala inexoravelmente crescente – [...] – trazem consigo a desconcertante conseqüência de que, não importa quão “calculistas” 326
e “racionais” ou “economicamente conscientes” as empresas particulares possam (de fato, devam) ser, no interesse de sua própria sobrevivência no mercado, o sistema como um todo é absolutamente dissipador, e tem de continuar a sê-lo em proporções sempre crescentes.” (MÉSZÁROS, 1989, p. 27). 3 Idéias que se assemelham às do discurso do Iluminismo, séc. XVIII, com suas promessas de libertação do homem, através da razão. 4 Os domínios discursivos são: domínio de memória, domínio de atualidade e domínio de antecipação (Courtine, 1981). Superfície discursiva é uma expressão que equivale ao enunciado, expressão também devida a Courtine, 1981. 5 O Global Compact (Pacto Global), iniciativa da ONU em prol da responsabilidade social, tem mais de 3,6 mil associados, faz parceria com GRI (Global Reporting Initiative), ONG que estimula a sustentabilidade das empresas. O Secretário Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, propôs primeiramente o Global Compact no Fórum Econômico Mundial em 31 de janeiro de 1999. Em seguida, fez “o convite” ao setor privado para que, juntamente com algumas agências das Nações Unidas e atores sociais, contribuísse para avançar a prática da responsabilidade social corporativa, na busca de uma economia global mais sustentável e inclusiva. As agências das Nações Unidas envolvidas com o Pacto Global são o Alto Comissariado para Direitos Humanos, Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), Organização Internacional do Trabalho (OIT), Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (UNIDO) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). (www.pactoglobal.org.br, 2007) 6 Em janeiro de 2005, líderes mundiais renovaram seu compromisso com o objetivo global e se expressaram através de um plano para executar as forças-tarefas: Fome, Educação, Igualdade de Gênero, Saúde infantil e saúde materna, Aids, Acesso a Medicamentos essenciais, Malária, Tuberculose, Meio ambiente, Água, Moradores de assentamentos precários, Comércio, Ciência, Tecnologia e Inovação. (www.pnud. org.br/milenio) 7 O modelo da carta está na versão em Português, e pode ser encontrado no seguinte endereço: www.pactoglobal.org.br. 8 O sujeito empresário é, neste estudo, compreendido como a “forma-sujeito” (PECHEUX, 1997, p.163) que se constitui, interpelada pela ideologia do capitalismo, um sujeito do discurso, sujeito que se identifica com a formação discursiva – para nós esta formação discursiva do sujeito empresário é identificada como Formação Discursiva do Marcado (AMARAL 2005), que representa o complexo das formações ideológicas e fornece a cada sujeito a evidência da “realidade”. 9 “Aquilo que, numa formação ideológica dada, a partir de uma posição dada 327
numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa etc).” (PECHEUX, 1997, p, 160). 10 No sentido empregado por Marx, “as idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual...” ( Marx, 1986, p. 72) 11 No Brasil tem-se o Programa Fome Zero. Os empresários têm uma ONG – Ação Fome Zero – que se diz comprometida com o desenvolvimento humano e social do país. Seus associados apóiam técnica e financeiramente ações que pretendam reduzir os níveis de pobreza do Brasil; estão assim antenados com os princípios do Pacto Global. Este programa das empresas encontra-se em www.apoiofomezero. org.br 12 Essa é uma realidade também observada em Maceió. Em pesquisa realizada por nós, com a participação de bolsistas do PIBIC/ CNPq/UFAL, constatou-se que das ONGs da capital, que recebem doações de empresas e que, de alguma forma, se reconhecem nessa parceria como cumpridora de sua responsabilidade social, a maioria está voltada para o atendimento à criança e ao adolescente; de sete ONGs entrevistadas, cinco atuam nesta área. V. Relatório da Pesquisa Qualidade de Vida e o Sentido de Responsabilidade Social no Discurso Empresarial. – Maceió: UFAL, 2003 – 2004.
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A EMERGÊNCIA DA IDEOLOGIA, • DA HISTÓRIA E DAS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO NO PREFACIAMENTO DOS DICIONÁRIOS Verli Petri (UFSM) “Ninguém que tenha natureza de pessoa pode esconder as suas natências. Não fui fabricado de pé. Sou o passado obscuro destas águas? (Manoel de Barros)
Primeiro, as palavras... “Sou puxado por ventos e palavras.” ( Manoel de Barros) ... prefácio...
O processo de prefaciamento/apresentação de materialidades lingüísticas que produzem o efeito de unidade - com início, meio e fim, que é próprio dos livros, em geral - é algo que perpassa nossas reflexões há bastante tempo. Estamos retomando um referente que está posto em nosso trabalho de mestrado, desenvolvido em meados dos anos noventa, numa tentativa de compreender como se davam as relações entre o que estava sendo proposto no prefácio e o que de fato se realizava no interior do livro, nesse caso, um manual didático de Francês Língua Estrangeira. Uma das conclusões que este trabalho proporcionou e que ecoa até hoje, em nossos trabalhos de análise, é de que as relações não se dão de forma direta, transparente ou perfeita. O prefácio, nesse caso específico, revelou-se como lugar de produção de efeitos de completude e de homogeneização, o que no decorrer do manual didático não se realiza, revelando o prefácio como lugar de não-coincidência entre o que é a proposta inicial e o devir que constitui o manual didático de fato (Petri, 1998). A palavra persiste: prefácio! A instigação insiste. Mais de dez anos se passaram, adentramos o século XXI, a Análise de Discurso se reconfigura, em termos de Brasil, como Análise de Discurso Brasileira (ADB1), e – mais uma vez – somos interpelados a ler as “pré-faces” do livro, materialidade lingüístico-discursiva que nos seduz como se fosse a primeira vez. Hoje, ao analisar dicionários, nos perguntamos, o que é um prefácio, afinal? Não temos, ainda, uma definição que dê conta das possibilidades de sentidos que emanam deste “verbete” 329
e talvez seja esta incompletude desconcertante que tanto nos seduz. Deparamo-nos, sim, - e temos que sucumbir a este apelo dicionarístico – com um número substancial de sinônimos, tais como: advertência, introdução, apresentação, prefação, preâmbulo, prólogo, etc.. Importa destacar, neste momento, que estamos considerando o processo sinonímico como aquele que se constitui na imperfeição, no recobrimento, na falta, na saturação, podendo sempre promover deslizamentos de sentidos. Um prefácio é, simplificando bastante, um texto que precede o texto principal, povoado por palavras e por silêncios. É assim com os manuais didáticos, com os textos científicos, com as obras literárias e também com os dicionários. E é um texto com funcionamento muito próprio: ele vem antes, antecede, apresenta e representa a obra que vem na sua seqüência. Nele está contido o que pode e o que não pode ser dito, bem como nele se revelam marcas da posição-sujeito que produz a obra como um todo. O prefácio pode ser produzido pelos editores – com o objetivo explícito de vendagem da obra; pode ser escrito pelo autor – que estabelece relações de interlocução com os leitores; pode ser escrito por terceiros – que adjetivam a obra e o autor. Mas o fato é que o prefácio, inevitavelmente, funciona como lugar de descrição e qualificação da obra que ali está sendo apresentada, revelando-se representativo do espaço mercadológico, seja para representar o capital (lingüístico) cultural, seja para representar o capital econômico. Em estudo anterior2, começamos a observar a constituição dos dois dicionários, privilegiando os prefácios, que hoje são objeto de reflexão. A primeira investida sobre eles nos levou a diferenciá-los, essencialmente, da seguinte forma: um contempla o âmbito nacional de funcionamento da língua e o outro contempla aspectos regionalistas desta mesma língua. ... dicionário...
“De primeiro as coisas só davam aspecto Não davam idéias. A língua era incorporante.” (Manoel de Barros)
A partir desta reflexão inicial, adentramos a temática proposta para o simpósio e vamos falar sucintamente (em detrimento do tempo e do espaço) de como estamos entendendo que a ideologia, a história e as condições de produção emergem no prefaciamento dos dicionários. Estamos tomando o dicionário, conforme assinala Silvain Auroux (1992), como resultante da revolução tecnológica na área dos estudos da linguagem, constituindo-se como importante instrumento lingüístico. E acreditamos que ao tomar este objeto para análise precisamos “concebê-lo como uma alteridade para o sujeito falante, alteridade que se torna uma injunção no processo de identificação nacional, de educação e de divulgação de conhecimentos 330
lingüísticos” (Nunes, 2006, p. 43). Nosso olhar se volta, então, para o dicionário como representante do lugar de certeza, de interdito da dúvida, sustentado pela acumulação e pela repetição de saberes sobre a língua, onde é possível “observar os modos de dizer de uma sociedade e os discursos em circulação em certas conjunturas históricas” (Nunes, 2006, p. 11). Há todo um imaginário coletivo que garante o estatuto próprio ao dicionário, enquanto “peça de linguagem” que revela o funcionamento da ideologia, da história e das condições de produção. O prefácio do dicionário, por sua vez, funciona como um lugar de observação das tomadas de posição do sujeito lexicógrafo, bem como de observação do léxico próprio a uma língua3, não se restringindo ao papel de “apresentador” de um instrumento de normatização, pois o dicionário constitui-se como “um objeto discursivo” (Horta Nunes, 2001, p. 101) a ser lido. É assim que o tomamos em nossa reflexão. ... sujeito... “Preciso do desperdício das palavras para conter-me.” (Manoel de Barros)4
Assim sendo, nos inscrevemos nos estudos de lexicografia discursiva, tal como tem sido pensada por Eni Orlandi, José Horta Nunes, entre outros, no Brasil. E pensar nos prefácios dos dicionários é elegê-los como espaço de observação para os processos de produção dos efeitos de sentidos, onde se revelam facetas do sujeito do sujeito que produz um dicionário - e das relações que se estabelecem entre este objeto discursivo, que é o dicionário, e o sujeito falante de uma dada língua. O sujeito dicionarista, como cada um de nós, também toma a língua como “sua”, como “comumente falada por todos”, como “língua materna”, como “língua nacional”, mas nenhuma destas concepções de língua funciona como a relação única entre sujeito e língua. O sujeito dicionarista toma a posição de lexicógrafo, numa tentativa de apagar esta relação primeira de sujeito que se constitui na e pela “sua” língua e passa, então, nesse outro momento a trabalhar “sobre a língua”, sobre uma língua imaginária, resultado da gramatização e da “cientifização” do objeto língua. Na realização do seu trabalho, o dicionarista é afetado pela ilusão da completude da língua e pela ilusão de que ela pode ser “dada” aos seus falantes como transparente. Ilusões necessárias ao trabalho do lexicógrafo que deve acolher, sob a égide do dicionário, ao mesmo tempo, a dispersão e as diferentes formas de opacidade, constitutivas da língua.
Depois, as relações entre as palavras e as coisas Como pudemos observar, a tomada de posição do lexicógrafo exige que se 331
estabeleçam outras relações entre o sujeito e a “sua” língua e do sujeito com os saberes “sobre” a língua, levando-se em conta que o sujeito é dotado de inconsciente e interpelado ideologicamente (Pêcheux, 1995), no sentido de homogeneizar e aperfeiçoar a língua pela explicitação dos sentidos de cada verbete. Com isso, o lexicógrafo acredita, também, estar sendo “neutro” e “universalista”, desideologizando a língua contida no dicionário. Outras ilusões constitutivas funcionam neste espaço: a ilusão de que o sujeito pode ser a fonte do dizer e a ilusão de que pode controlar os sentidos (cf. Pêcheux nos mostra pela forma dos esquecimentos número 1 e número 2). O presente trabalho tenta, então, explicitar o funcionamento ideológico que emerge no prefaciamento do dicionário, onde não se marcar ideologicamente é, também, fazer funcionar a ideologia (Orlandi, 2002, p.108). Carolina Rodrigues afirmava no I° Sead que “os sujeitos da ciência, enquanto sujeitos da linguagem, não escapam às determinações ideológicas características do momento histórico e das sociedades em que vivem” (Rodrigues, 2003)5 e isso pode ser observado nos prefácios dos dicionários que selecionamos para esta análise, pois temos sujeitos lexicógrafos que, de alguma forma, se identificam com a forma-sujeito da ciência, mas que são marcados pela contradição, enquanto constitutiva das tomadas de posição. A fim de explicitar como isso se dá no interior do dicionário, enquanto objeto discursivo, selecionamos dois recortes conforme segue. O Novo Dicionário de Língua Portuguesa, (2.ed.)6, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, reconhecido lexicógrafo brasileiro; e o Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul, de Rui Cardoso Nunes e Zeno Cardoso Nunes, estudiosos da língua e da cultura gaúcha; ambos publicados na década de 80, do século XX. Nossas análises indicam a emergência de marcas ideológicas, históricas e circunstanciais, produtoras de efeitos de sentidos: ora aproximando, ora distanciando estes dois objetos discursivos. O que nos interessa especialmente, neste momento, é que podemos observar as tomadas de posição do sujeito lexicógrafo no prefaciamento dos dois dicionários em questão, bem como podemos observar as relações que se estabelecem com a ideologia, com a história e com as condições de produção que sustentam cada posição-sujeito. E, não se trata, aqui, de se pensar num sujeito empírico que tem convicções particulares, mas de compreender que cada tomada de posição resulta das relações desse sujeito com as formações ideológicas atualizadas pelos saberes da formação discursiva onde se inscreve prioritariamente. E neste espaço intervém também a história, como constitutiva de sentidos, e as condições de produção de cada prefácio, fazendo de “um” o representante dos saberes próprios da língua nacional e fazendo de “outro” o representante dos saberes locais, próprios ao imaginário de um grupo social que acredita na possibilidade de uma nação gaúcha, com língua e cultura próprias, fundando o diferente no interior do mesmo. No caso específico de um dicionário de regionalismos, encontram-se formalizados os sentidos correntes mobilizados pelos falantes daquela região. Este objeto discursivo também carrega as representações próprias das relações sociais que se 332
efetivam num espaço bem determinado: o campo (a campanha) gaúcho e suas relações com as fronteiras. É enquanto “um conjunto de modos de dizer de uma sociedade” (Nunes, 2001, p. 101), que o dicionário de termos regionalistas funciona como um lugar de referência e de preservação de um patrimônio lingüístico-cultural. Estamos tratando de um discurso que, supostamente, teria sido fundado no espaço campesino e rural do Rio Grande do Sul na época da monarquia portuguesa no Brasil e da colonização, o que aparece representado no discurso histórico oficial (que conhecemos atualmente) e que é parte constitutiva do imaginário social produzido (re-produzido) e instituído pela literatura regionalista que analisamos em outro trabalho (Petri, 2004)7, levandose em conta que o literário8 é um espaço discursivo “privilegiado” que revela um ponto de vista imaginário, urbano e civilizado “sobre” o gaúcho. O dicionário Aurélio traz uma apresentação detalhada do trabalho do lexicógrafo que se dedica inteiramente à tarefa de reunir verbetes da língua viva, atualizada cotidianamente, num esforço de controlar, ou pelo menos de conter, os possíveis efeitos de sentidos que essas palavras possam produzir na língua portuguesa atual, seu papel é, sobretudo, o de atualizar a língua. Então, nos deparamos com dois dicionários, importantes instrumentos lingüísticos, guardadas as especificidades de cada um, mas nos deparamos também com posições-sujeito que revelam diferentes modos de inscrição do sujeito na língua, considerando que não existe neutralidade do sujeito e que a ideologia se revela funcionando na própria forma de organização do objeto discursivo em análise (Orlandi, 2002, p. 107).
Por fim, algumas reflexões Quanto às textualidades, observamos ainda que o dicionário de Regionalismos tem breve e geral apresentação dos autores e uma apresentação não-acadêmica (e nem mercadológica) realizada por um terceiro, conforme segue: → Aqueles que produziram o dicionário de regionalismos são: “dois gaúchos autênticos”; “homens de Cima-da-Serra”; “poetas”; “brasileiros da gaucholândia”; “dois irmãos”; “almas eleitas” (por Hugo Ramirez ).
Isso destaca características dos “dedicados autores”, que em momento algum são designados como lexicógrafos, mas sim reveladores de uma face conservadora da tradição gaúcha na e pela língua. Neste caso, o dicionário é elaborado como um lugar de preservação de patrimônio lingüístico-cultural. Conforme ressalta, ainda, Hugo Ramirez: → “A obra os consagra, sem dúvida, mas consagra mais ainda ao Movimento Tradicionalista Gaúcho, de que são os dois irmãos expoentes de primeira linha.” → Tal movimento “erigiu um inestimável acervo espiritual que se transmitirá pelos séculos afora diante do testemunho bibliográfico (...)” (Hugo Ramirez9) 333
Trata-se de um objeto de consulta, sem dúvida, mas funcionando como referencial de tradicionalismo; e não se encontra vinculado, prioritariamente, ao processo de acúmulo de saber atualizado. É algo marcado pela especificidade de um grupo social; pela crença de que haveria uma nação imaginária (no interior de outra nação); por um imaginário coletivo que super-valoriza os costumes de outrora. Eis as palavras dos próprios autores: → “Assim, deixou este livro de ser o trabalho modesto (...), pois nele estão registradas, (...) mostradas nos exemplos de consagrados mestres, as vozes regionais, de múltiplas origens, que tanto enriquecem e embelezam a colorida e vigorosa linguagem falada em nossa Querência.” (os autores)
A língua, nesse caso, funciona como expressão maior de um grupo social tão específico, que se identifica como diferente no interior do mesmo; dando ao dicionário um estatuto diferenciado de conservador do passado mitológico, histórico e lingüístico-cultural. Temos, então, um instrumento lingüístico, resultado da revolução tecnológica, trabalhando a serviço da preservação em detrimento da atualização da língua. Já no Dicionário Aurélio evidencia-se a preocupação, no prefácio, com a legitimidade e a atualização, o que vimos silenciado no Dicionário de Regionalismos. Há referências ao árduo trabalho dos dicionaristas, dos incansáveis lexicógrafos, dentre os quais o autor (Aurélio) se inclui como tal, resultando a estes profissionais: “indesejáveis conseqüências físicas” e o “mais ingrato esquecimento”. Vejamos, a questão da atualização, tal como é apresentada no recorte do prefácio do Dicionário Aurélio: “dicionário médio, ou inframédio, etimológico, com razoável contingente vocabular (bem mais de cem mil verbetes e subverbetes), atualizado (dentro dos seus limites), atento não só a língua dos escritores (muito especialmente os modernos, mas sem desprezo dos clássicos (...)), senão também a língua dos jornais e revistas, do teatro, do rádio e televisão, ao falar do povo, aos linguajares diversos – regionais, jocosos, depreciativos, profissionais, giriescos...” Há um destaque especial dado aos cronistas, “por se mostrarem, em maior ou menor grau, bons espelhos da língua viva”; e aos letristas de sambas, marchas ou canções, porque “além de captarem a criação lingüística popular, não raro são, ainda por cima, criadores, inventores de palavras”.
Talvez possamos entender melhor estes posicionamentos pela via da interpelação. Segundo Orlandi (2002, p. 105) é possível “compreender o funcionamento da ideologia, pois ao tomar o dicionário como discurso, podemos ver como se projeta nele uma representação concreta da língua”, possibilitando a identificação de “indícios 334
do modo como os sujeitos – como seres histórico-sociais, afetados pelo simbólico e pelo político sob o modo do funcionamento da ideologia – produzem linguagem”. No caso do Dicionário de Regionalismos, nos deparamos com sujeitos que, além de produzirem um dicionário regionalista (tomando a posição de dicionaristalexicógrafo) são, ainda, interpelados a “dar conta” de especificidades regionais que os constituem e ao mesmo tempo os interrogam, num empreendimento que poderíamos definir como o desejo do sujeito de controlar os sentidos que lhes escapam. Isso se daria, então, pela dicionarização, via manutenção, revelando a posição-sujeito do “guardião da língua”, desta língua imaginária, fundadora de uma nação imaginária, que pretensamente separaria “gaúchos” de “não-gaúchos” no interior do grupo social de “brasileiros”. Isso, ao ser comparado com o que está posto no Dicionário Aurélio, nos leva a compreender que temos uma tomada de posição-sujeito funcionando como prioritária a de “sujeito dicionarista” com a qual se relacionam, de diferentes modos, o “lexicógrafo”, do Dicionário Aurélio; e os escritores, do Dicionário de Regionalismos. Essa tomada de posição revela os diferentes modos dos quais o sujeito dispõem para se relacionar com as formações ideológicas que o afetam, priorizando-se de um lado a língua nacional e de outro as especificidades regionais dessa língua; elegendo a atualização da língua (nacional) como essencial ou revelando a importância de se preservar o patrimônio lingüísticocultural, próprio do regionalismo. Enfim, o prefácio dos dicionários se revela como um espaço profícuo para observação do analista de discurso: ideologia, história e condições de produção emergem nos prefaciamentos analisados, revelando diferentes posições de sujeito, concepções de língua e de pertencimento.
Referências bibliográficas AUROUX, Sylvain. (1992) A revolução tecnológica da gramatização. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas, SP: Editora da UNICAMP. NUNES, José Horta. (2001) O espaço urbano: a “rua” e o sentido público. In: ORLANDI, Eni Pulcinelli (Org.). Cidade Atravessada: os sentidos públicos no espaço urbano. Campinas, SP: Pontes. p. 101-109. ___. (2006) Dicionários no Brasil: análise e história. Campinas, SP: Pontes; São Paulo: Fapesp; São José do Rio Preto: Faperp. ORLANDI, Eni Pulcinelli. (2002) Lexicografia discursiva. In: ORLANDI, E. P. Língua e conhecimento lingüístico. São Paulo: Cortez. p. 101-119. ___. (2005) A Análise de Discurso em suas diferentes tradições intelectuais: o Brasil. In: INDURSKY, F.; FERREIRA, M. C. L. (org.). (2005) Michel Pêcheux e a análise de discurso: uma relação de nunca acabar. São Carlos, SP: Claraluz. p. 75-88. PÊCHEUX, Michel. (1995) Semântica e discurso: uma crítica a afirmação do óbvio. Trad. Eni P. Orlandi. 2. ed. Campinas, SP: UNICAMP. 335
PETRI, Verli. (1998) A constituição do discurso do F.L.E.: uma possibilidade de leitura do avant-propos do manual didático Espaces I. Dissertação de Mestrado. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria. ___. (2004) Imaginário sobre o gaúcho no discurso literário: da representação do mito em Contos Gauchescos, de João Simões Lopes Neto, à desmitificação em Porteira Fechada, de Cyro Martins. Tese de Doutorado. Porto Alegre: UFRGS. Dicionários consultados: FERREIRA, A. B. de H. (1986) Novo Dicionário de Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. NUNES, R. C.; NUNES, Z. C. (1984) Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul. 2. ed. Porto Alegre: Martins Livreiro.
Notas 1 Cf. Eni Orlandi, 2005. 2 O trabalho foi apresentado no Congresso da ABRALIN (2007) sob o título: “A produção de efeitos de sentidos nas relações entre língua e sujeito: um estudo discursivo da dicionarização do “gaúcho”. 3 Estamos considerando, no presente momento, apenas os dicionários monolíngües. 4 Os versos citados até aqui são do Livro das Ignorãças, de Manoel de Barros, publicado em 1993. 5 Do texto “Em torno de Observações para uma teoria geral das ideologias, de Thomas Herbert” extraído do CD do I° Seminário de Estudos em Análise de Discurso (SEAD), 2003. 6 A Primeira Edição é de 1975. 7 Cf. Tese de Doutoramento. 8 Chamamos a atenção para o discurso literário, pois é importante fonte de exemplificação do dicionário de regionalismos que estamos analisando. 9 Escritor e poeta gaúcho, amigo pessoal dos autores.
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• ALGUNS PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA TEORIA FUNCIONAL DA TRADUÇÃO: ELEMENTOS PARA UMA TEORIA DISCURSIVA DA TRADUÇÃO A. Martín de Brum (UBA) Introdução A teoria da tradução ou tradutologia é uma ciência relativamente nova. Sua época fundadora data dos anos 50 e 60, mas é só nos anos 80 que ela se constitui como disciplina própria, momento em que são formuladas questões sobre o funcionamento do processo tradutor, a relação entre texto original e tradução e o papel do contexto (HURTADO ALBIR, 2001, p. 124). É entre essas duas épocas que a corrente funcionalista faz seu aparecimento, com um texto pioneiro de Reiss, publicado em 1971, na Alemanha. Desde esse momento, a teoria funcionalista da tradução foi ganhando espaço até se converter, na atualidade, em uma das disciplinas predominantes em tradutologia. Nesse trabalho, analisaremos alguns conceitos teóricos que são apresentados no texto Fundamentos para una teoría funcional de la traducción, texto que condensa a Teoria do Escopo, sempre dentro dos enfoques funcionalistas. Esse livro teve sua primeira publicação em alemão em 1984 e uma nova edição, também na Alemanha, saiu à luz com algumas modificações – nomeadamente, terminológicas - em 1991. O texto que nós, finalmente, analisaremos é a versão em espanhol de Sandra García Reina e Célia Martín de Leon1, publicada em 1994. Ora bem, o fato de analisarmos um texto em tradução e não em língua fonte poderia ser percebido como um problema, por exemplo, uma questão de “perda” do texto meta em relação ao texto fonte. Cremos, entretanto, que aí está funcionando um efeito de evidência, no sentido de transparência e completude que o texto fonte teria, deixando a versão no lugar da “cópia”, da imperfeição, da incompletude. Não negaremos o fato de que há maior mediação entre aquele texto e o leitor de língua espanhola em relação ao leitor em alemão – já que temos o trabalho do tradutor, mas a noção de perda em tradução implica pensar a língua fonte como transparente e o texto fonte como completo. No entanto, para a Análise do Discurso, a língua nunca é transparente e um texto nunca é completo, ele é constituído pela incompletude. Isto é, não se lê um texto em língua fonte “melhor” do que em língua meta. Se lê diferente, porque a materialidade significa e a leitura (o sentido) sempre pode ser outra, mas, como sabemos, não qualquer uma. Por isso, analisaremos esse texto em 337
espanhol como dizendo a teoria, ou melhor, como sendo o lugar de textualização dela, e pensando que nesse “como” habita o equívoco.
Língua/linguagem O primeiro conceito que achamos pertinente analisar é o de língua ou linguagem2, já que, a nosso ver, esses são conceitos que devem ser definidos, explicitados e caracterizados de modo coerente na constituição teórica de qualquer disciplina em que o trabalho com essas noções esteja diretamente envolvido. Do nosso ponto de vista, esse é um requisito fundamental que se relaciona com a construção epistemológica de tais disciplinas. A Tradutologia entra dentro dessa área disciplinar, portanto, devemos cobrar das teorias que a ela pertencem o trabalho teórico com os conceitos “língua/linguagem”. E, com efeito, já nas primeiras páginas do texto sob análise, observamos uma referência à linguagem, motivada, segundo os autores, pela ambigüidade que esse termo traz. Com o intuito de desfazer esse problema, eles delineiam os significados relevantes desse conceito para a tradução e consideram tal questão sob três aspectos. O primeiro diz respeito aos meios, isto é, os signos de que uma comunidade se serve para se comunicar. A linguagem aparece, assim, definida como uma “estrutura semiótica” formada por tais signos, tendo ela três características importantes: o caráter sígnico, ou seja, a capacidade de um elemento apontar para um outro diferente; o caráter estrutural, isto é, as relações que os signos têm entre si; e a capacidade comunicativa: a possibilidade de o receptor interpretar o signo no sentido dado pelo produtor (pp.15-16)3. O segundo aspecto trata da noção de língua como variedade, não só as línguas de cada país (os paraletos), mas também os dialetos, os socioletos etc. O terceiro aspecto se refere a expressões como “linguagem formal” e “linguagem coloquial”, isto é, a questões de estilo. Desses três aspectos, analisaremos, nesse trabalho, a definição do conceito de linguagem que aparece no começo, ou seja, como um conjunto de meios ou signos de que uma comunidade dispõe para se comunicar. Essa caracterização nos leva direto para a noção de linguagem como instrumento de comunicação. Pensar a linguagem desse modo é pressupor a completa exterioridade da língua em relação ao sujeito que a fala e a existência de alguma coisa chamada comunicação. Esse último fato se vê confirmado pela terceira característica dessa “estrutura semiótica”: a capacidade comunicativa. Ela, como vimos, diz respeito à possibilidade de o receptor interpretar o signo com o mesmo sentido com que foi emitido. Esse teleologismo, que se inscreve, como os autores querem, em uma teoria da ação, aponta para o fato de que há realmente uma possibilidade para a univocidade aparecer. O que está em jogo quando falamos em comunicação é a noção de língua como código, que, ao ser utilizada pelos falantes, dá a ilusão de homogeneidade, ou seja, o 338
fato de os sujeitos utilizarem o mesmo código instaura a comunicação no espaço do possível. No entanto, para nós, não é isso o que está em questão, já que a linguagem relaciona sujeitos que são diferentes, porque se inscrevem na história. Como diz Pêcheux (1997, p. 93), a língua “permite, ao mesmo tempo, a comunicação e a não comunicação, isto é, autoriza a divisão sob a aparência da unidade”. E isso é assim porque do que se trata não é da língua como código ou instrumento, mas da língua como base de processos discursivos, ou seja, para a Análise de Discurso, “o sistema é um sistema significante, capaz de falhas, que, para cumprir-se em seu desígnio de significar é afetado pelo real da história. É um sistema pensado no funcionamento da língua com homens falando no mundo” (Orlandi, 2001, p. 40). Desse modo, a transparência da linguagem ou o apagamento da opacidade é levado para dentro dessa teoria funcionalista da tradução, o que, com certeza, trará conseqüências teóricas. Uma delas é, justamente, a separação que se faz entre a língua e o sujeito que a fala.
Cultura Para apresentar a sua proposta teórica, os autores começam definindo a produção de um texto como uma ação, ou seja, como um comportamento intencional com o intuito de transmitir uma “informação” a um ou vários receptores. Nesse sentido, a produção textual é uma interação, ou melhor, uma comunicação como tipo particular dela. Essa ação depende, segundo eles, das circunstâncias do momento e lugar em que ela acontece, isto é, da “situação”. As pessoas que participam de uma interação fazem parte dela, portanto, sua disposição interior e circunstâncias pessoais são fatores determinantes da interação. Continuam os autores: “por otra parte, han de tenerse también en cuenta los factores ‘históricos’, puesto que los participantes en la interacción pertenecen a una comunidad cultural dada y tienen, al mismo tiempo, una historia personal” (p. 13, grifos dos autores). É interessante observarmos a ocorrência do “também”, como se fosse um acréscimo, algo que estaria completando os fatores que determinam a produção textual. Por outro lado, a palavra “históricos” aparece aspeada. Mas, como interpretar essas aspas? Logo após o enunciado citado, os autores dizem que “de este modo, la interacción está determinada por la realidad cultural ya dada, por las circunstancias exteriores del momento, por las condiciones sociales y personales de los interlocutores y por su relación mutua” (idem). Vemos que, no trecho citado antes, o sintagma “fatores ‘históricos’” entra em relação com “comunidade cultural dada” e, no último fragmento citado, isso é rescrito como “realidade cultural já dada”. Teríamos, portanto, a seguinte seqüência: fatores históricos – comunidade cultural dada – realidade cultural já dada. O deslizamento da palavra “históricos” do primeiro sintagma para “cultural”, nos dois últimos, nos leva a uma re-significação do histórico, não 339
como o ideológico, mas, justamente, como o cultural, em que há o apagamento do ideológico. Além do mais, o cultural refere sempre a uma comunidade e não mesmo às condições de produção do sentido. Voltando às aspas, pensamos que elas são o sintoma de um sentido que poderia ter sido dito, mas não foi. Para os autores, “la producción de un texto es una forma especial de interacción. De acuerdo con el modelo propuesto por determinadas escuelas lingüísticas, la producción de un texto (oral o escrito) se puede describir como un proceso que se desarrolla a través de varias estructuras profundas hasta alcanzar una estructura superficial. Podemos considerar la cultura como la estructura más profunda, ya que es el factor que determina, en última instancia, si algo se dice/escribe, sobre qué se habla/escribe y cómo se formula un enunciado” (p. 14).
Podemos observar, no entanto, como a noção de cultura como “a estrutura mais profunda” que determina o que se pode falar e a forma do enunciado entra em contradição com a seguinte afirmação aparecida em outra parte do livro: “todo texto es en sí un ‘individuo’ en tanto que refleja la elección de signos lingüísticos individual del productor/autor para la verbalización de su oferta informativa” (p. 132). Com efeito, vemos aparecer aí a possibilidade de escolha individual, não sendo afetada, nem condicionada, nem determinada por nenhuma “estrutura cultural profunda”. Pensamos que essas questões derivam do fato de se estar trabalhando dentro de uma teoria da ação, que, nesse enfoque, entra em flagrante contradição com a postulação de um nível cultural determinante.
As “refrações” Os autores apresentam uma intrigante teoria das “refrações”. Conforme eles, “el hombre contempla su mundo como si lo viera a través de varias lentes de distinta curvatura. Las diferentes refracciones se superponen unas a otras” (p. 18). Essa metáfora das lentes ou dos óculos pode levar a pensar que os sujeitos poderiam tirar livremente esses óculos e colocar outros. Mais uma vez, surge a idéia do exterior como acréscimo, em que se apaga o processo de constituição do sujeito. As refrações que os autores postulam são cinco: a primeira diz respeito às convenções específicas de cada cultura. A segunda tem a ver com a disposição individual e as convenções sociais. A terceira refração relaciona-se com variantes da realidade, isto é, a existência de mundos possíveis ou imaginários. A quarta refração se refere ao que os autores chamam de “fossilização das tradições” que ficam na linguagem de cada cultura. A quinta refração leva em consideração as valorações. Analisaremos, nesse trabalho, as primeiras duas. 340
A primeira refração se relaciona com as convenções específicas de cada cultura através das quais cada pessoa chega a ser membro de uma comunidade. Segundo os autores, “cada persona desarrolla sus opiniones, sus teorías, y su forma de ver el mundo a partir de lo que es propio de la cultura en la que se ha educado” (p. 19). Vemos aqui, então, que o sujeito é constituído a partir da cultura em que é educado. Entretanto, como dito acima, não fica muito claro como é que o sujeito se constitui, isto é, não se faz nenhuma referência ao processo de constituição do sujeito ou ao processo de subjetivação. A seguir os autores dizem que “de modo análogo, cada persona crece dentro de una comunidad lingüística o comunicativa y adopta sus modos específicos de expresarse, etcétera” (p. 19). Vários aspectos podem ser aí analisados. O primeiro é o lugar do texto em que aparece esse parágrafo, isto é, ele é apresentado, se bem dentro da primeira refração, em último lugar. No trabalho com essa refração, então, em primeiro lugar está a referência à educação, à socialização e só depois é que vem a referência à língua. O fato de ele constituir parágrafo à parte também significa para nós, e nos leva a pensar a questão lingüística como algo separado que é acrescentado. Essa idéia de separação e de acréscimo fica explícita na analogia apresentada pelos autores entre “comunidade cultural” e “comunidade lingüística ou comunicativa”. Vemos também, nessa formulação, que há, de modo conseqüente, identidade entre o que é lingüístico e o que é comunicativo, qual seja, o comunicativo recobre o lingüístico. Por último, observamos que as pessoas “adotam” os modos específicos de expressão de cada comunidade. A idéia de “adoção” volta sobre a questão de a linguagem ser pensada, nesta teoria, como acréscimo, como um conjunto de elementos que estão aí e as pessoas “pegam”, como se isso dependesse de um ato de vontade individual. Essa relação entre linguagem e cultura está nas antípodas do modo como isso é trabalhado na Análise de Discurso, isto é, como o sujeito sendo constituído no e pelo discurso, pela relação entre língua e ideologia. A segunda refração diz respeito à atitude individual. Citamos por extenso o fragmento em que isso é trabalhado: “Las convenciones sociales –y dentro de ellas, las lingüísticas- pueden romperse, rechazarse o corroborarse, de modo definitivo o provisional, partiendo de opiniones individuales condicionadas por determinadas situaciones (p. ej., conozco a tres italianos que son muy simpáticos, nuestro entrenador no sirve para nada).” (idem)
É interessante prestarmos atenção para a possibilidade de essas convenções se quebrarem ou rejeitarem. Mas isso é possível mesmo? E se é, como isso é possível? Para dar resposta a tais questões, podemos trazer à tona a “teoria das identificações” que Pêcheux formula em Semântica e Discurso. Nesse texto, são trabalhadas três modalidades que dizem respeito à relação que o sujeito tem com 341
a formação discursiva4 (Pêcheux, 1997 [1975], p. 215). A primeira modalidade se refere à identificação plena do sujeito com a formação discursiva que o domina, caracterizando o discurso do “bom sujeito”. A segunda modalidade é a contraidentificação, em que o sujeito rejeita a formação discursiva, isto é, o “mau sujeito” se contra-identifica com a formação discursiva que lhe é imposta. Por último, a terceira modalidade consiste na desidentificação, ou seja, em um trabalho de transformação e deslocamento da forma-sujeito (o sujeito da formação discursiva) e não na sua anulação (idem, p. 217). É preciso esclarecer que sempre há o sujeito tomado – interpelado - pela ideologia. Assim, pensar o sujeito fora da ideologia é pensá-lo fora da história, o que, para a Análise do Discurso, é uma impossibilidade teórica, e real. Esse processo de desidentificação não depende do sujeito, não pode se resolver numa atividade livre dele, numa escolha. Não há atividade ou prática de um sujeito, mas “sujeitos de diferentes práticas” (idem, p. 218). Portanto, essa possibilidade de deslocamento é a história que vai permitir, ou melhor, a língua significando na história, e não simplesmente, como no texto de Reiss e Vermeer, os atos livres dos indivíduos determinados por certas situações. Lembremos a esse respeito que situação para os autores significa “circunstâncias de momento e lugar” (p. 13). Os exemplos que eles colocam servem como ilustração da superficialidade com que essa questão é apresentada. Como os autores trabalham numa perspectiva pragmática, definindo a tradução dentro de uma teoria da ação, cremos pertinente, aqui, trazer um comentário crítico de Corrêa (2002, p. 48) em que ele postula duas possibilidades de se interpretar a teoria de Austin em relação às condições que um ato de fala deve cumprir para ser feliz: uma colocaria a noção de intenção por cima das convenções sociais; a outra interpretação – e com a qual esse autor concorda - é a que coloca as convenções sociais em um nível preponderante, isto é, condicionando o agir individual. As conseqüências de pensar o ato de fala como dependente da intenção do indivíduo levaria a pensar a performatividade da linguagem de modo localizado, o que, segundo Corrêa, “contraria a própria posição de Austin” (idem, p. 50). Pensamos, portanto, que, se bem é possível, como vimos, “ir contra as convenções”, isso não depende de um ato de vontade individual, por causa de o sujeito estar “preso” a uma ou várias formações discursivas ou, segundo a interpretação que Corrêa faz de Austin, estar dependendo da inscrição institucional.
O tradutor Na segunda parte do texto, os autores apresentam um modelo de fatores que intervêm em e condicionam o processo de tradução. Esses fatores são: o tradutor, o produtor/autor, o processo comunicativo, o texto, o tipo de texto, a(s) categoria(s) textual(ais), o contexto situacional, o contexto sociocultural e o receptor do texto 342
final. Nesse trabalho, analisaremos o fator tradutor. Reiss e Vermeer colocam o tradutor na posição central no processo de tradução. Nós concordamos com os autores a respeito do caráter essencial do tradutor, mas, ao elencar as características próprias desse fator, eles não mencionam nem trabalham certas questões, para nós, fundamentais. Citemos a passagem por extenso: “Entre estos aspectos propios del traductor se encuentra el grado de desarrollo de su competencia traslatoria considerada de un modo absoluto o en relación con diferentes tipos de texto. Su comprensión del texto de partida (que dependiendo de sus capacidades analíticas y hermenéuticas puede ser muy diferente a la de otro traductor) tendrá igualmente repercusiones en el proceso de traducción. El criterio subjetivo del traductor acerca de la calidad de su texto, tanto en lo que se refiere a la forma como al contenido, así como la circunstancia de ser solo receptor del texto de partida, o de pertenecer además al conjunto de receptores al que se dirigía el autor con ese texto, son otros dos aspectos a tener en cuenta, al igual que la decisión que adopta (en algunos casos determinada por el cliente) acerca del tipo de traducción y el método traslativo que han de escogerse. Todos estos aspectos determinan en mayor o menor grado el proceso de traducción, tanto si se trata de un solo traductor como de un equipo de traductores.” (p. 131)
Um aspecto que não é mencionado nesse texto é que o tradutor, como todo sujeito, é constituído pela língua na história. Isso significa que a tradução dependerá antes de tudo dessa questão, isto é, da ideologia do tradutor. Posto isso, podemos começar a tratar os demais aspectos, que terão relação com esse elemento constitutivo acima mencionado. A compreensão do texto fonte por parte do tradutor é relacionada às capacidades analíticas e hermenêuticas dele. Em vez de capacidades, propomos trabalhar aí o conceito de gesto de interpretação, como exposto por Orlandi (2004 [1996]). Segundo a autora, “o gesto da interpretação se dá porque o espaço simbólico é marcado pela incompletude, pela relação com o silêncio” (idem, p. 18). Pensamos que esse conceito leva a problematizar a tradução, seja a teoria seja o processo mesmo. Problematizar significa complexificar o trabalho teórico dos conceitos, mas também desautomatizar o próprio processo de tradução. O tradutor deve trabalhar não só com sua exterioridade no momento da compreensão do texto fonte e da produção do texto meta, mas também com a exterioridade própria do texto fonte. Todas essas exterioridades sendo constitutivas, isto é, constituindo sujeitos e sentidos. É aqui que o conceito de gesto de interpretação faz sentido. Como diz Orlandi (2001, p. 25), “o trabalho do analista é em grande parte o de situar (compreender) – e não apenas refletir – o gesto de interpretação do sujeito e expor seus efeitos de sentido”. E, se compreender o texto faz parte do processo tradutório, então podemos dizer que aí o tradutor se transforma em analista. 343
A noção de compreensão, nesse contexto, ganha estatuto teórico. Orlandi (2000) trabalha esse conceito em relação a outros dois. Temos, então, em primeiro lugar, a inteligibilidade, que se relaciona com saber a língua. Em segundo lugar, temos a interpretação, instância em que entra o trabalho com o co-texto e o contexto situacional. Por último, temos a compreensão, que “procura a explicitação dos processos de significação presentes no texto” (idem, p. 26). Nesse sentido, compreender o texto é compreender o sujeito que aí está, é abrir o espaço para a compreensão do autor. Autor que não escapa a seu tempo, mas é atravessado por ele. Isto é, é afetado pelas condições de produção. Então, noções como a de compreensão ou gesto de interpretação nos levam – e leva o tradutor – a pensar o tempo e o espaço do produtor do texto fonte – categorias que já fazem sentido para ele - e como ele textualiza isso, a memória que ele tem, ou melhor, que o constitui. Levando em conta esse processo, o tradutor tem mais entendimento sobre o texto fonte, e isso terá conseqüências para o texto meta. Mas ele deve estar atento para o fato de que as condições de produção de seu discurso devem incluir as condições de produção do discurso fonte. Daí o interesse para o tradutor de pensar como os objetos simbólicos podem significar em relação a seu tempo e espaço, isto é, em relação a suas condições de produção, a como funciona o texto traduzido dentro do sistema simbólico de que ele faz parte. Toda essa análise e reflexão anterior nos levam a dizer que o tradutor é constituído pela função-autor. Pensar o tradutor sendo tomado por essa função é, do nosso ponto de vista, dar-lhe visibilidade, e não apenas trabalhar esse “fator” tomando os aspectos que a ele se relacionam como determinando, em certa media, o processo de tradução. Com efeito, segundo Orlandi (2000, pp. 75-76), “é do autor que se exige: coerência, respeito às normas estabelecidas, explicitação, clareza, conhecimento das regras textuais, originalidade, relevância e, entre outras coisas, unidade, nãocontradição, progressão e duração de seu discurso, ou melhor, de seu texto”. São essas exigências que tornam visível o autor, portanto, o tradutor. Cremos que é extremamente significativo para refletirmos sobre o lugar que o tradutor ocupa no sistema do trabalho intelectual, isso que a autora chama de assunção de autoria e que se refere ao processo pelo qual o sujeito “‘aprende’ a assumir o papel de autor e aquilo que ele implica” (idem, p. 76). Por outro lado, o tradutor, como (o) autor não é só responsável pelo sentido(s) que produz na sua escrita, mas também pelo texto que tem na sua frente esperando ser traduzido por ele. Em outras palavras, o tradutor também é responsável pela leitura. É assim que para Orlandi (2001, p. 68), leituras diferentes “atestam modos de subjetivação distintos dos sujeitos pela sua relação com a materialidade da linguagem, ou melhor, com o corpo do texto, que guarda em si os vestígios da simbolização de relações de poder, na passagem do discurso a texto, em seus espaços abertos de significação”. 344
Conclusões A Análise do Discurso, acreditamos, tem muitas coisas a dizer em relação à teoria da tradução. Ela permite ver, por exemplo, como os diferentes enfoques se configuram ao formular os conceitos teóricos, mostrando os espaços de deriva dos sentidos. Assim, vemos que a consideração, por parte dos autores, da língua como meio de comunicação a separa do sujeito. Por outro lado, ver a cultura como o determinante último – “a estrutura mais profunda”, conforme os autores – na produção do texto faz surgir uma pergunta: cadê a língua? Aí eles respondem: a língua faz parte da cultura (p. 20), como os sujeitos, que são por ela determinados. Mas, aqui, caberia, talvez, uma outra pergunta: como esses sujeitos são determinados pela cultura se eles não “têm” língua ou se não tem “homens falando no mundo”? É justamente aí que um enunciado como “não há discurso sem sujeito nem sujeito sem ideologia” (Orlandi, 2004, p. 31) faz sentido, mostrando as falhas, os equívocos que afetam o modo como as teorias são construídas, no caso, a teoria funcional da tradução. Portanto, em vez de noções como a de cultura e situação, talvez, seria melhor pensar aí – e é esta uma contribuição da Análise de Discurso para a teoria da tradução - em termos de ideologia e condições de produção, que nos leva a considerar a língua, não como instrumento de comunicação, mas como base do processo de produção de sentidos, na história. A tradução não é uma técnica na qual devem ser seguidas diferentes normas ou regras. Ou não é só isso. A tradução é uma atividade discursiva, portanto, política. Nela, há em jogo sentidos, portanto, gestos de interpretação, portanto, ideologia. Uma teoria da tradução que se preze não pode deixar de levar em consideração essas questões. Sabemos que o tradutor é visível, no sentido de que no processo de textualização ele não pode não se fazer presente. Ele está efetivamente no texto da tradução. Ora, o trabalho com os conceitos aqui expostos é um gesto de crítica às concepções que continuam a pensar o lugar do tradutor simplesmente como um lugar de “passagem”. Interrogar as teorias da tradução que estão aí – como a teoria funcionalista -, a partir dos conceitos teóricos da Análise do Discurso e trazer esses conceitos para a discussão teórica, nos parece um passo fundamental para a construção de uma política da tradução, em que o tradutor é chamado a ocupar um lugar de plena visibilidade. Referências bibliográficas CORRÊA, Manuel L. G. Linguagem e comunicação social: visões da lingüística moderna. São Paulo: Parábola, 2002. 345
HURTADO ALBIR, Amparo. Traducción y traductología: introducción a la traductología. Madrid: Cátedra, 2001. ORLANDI, Eni. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 4ª ed. Campinas, SP: Pontes, 2004 (primeira edição 1996). ________ Análise de discurso: princípios e procedimentos. 2ª ed. Campinas, SP: Pontes, 2000 (primeira edição 1999). ________ Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2001. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997 (tradução de Eni Orlandi et al. da edição em francês de 1975). REISS, Katharina; VERMEER, Hans. J. Fundamentos para una teoría funcional de la traducción. Madrid: Akal, 1996 (tradução de Sandra Graciela Reina e Celia Martín de Leon da edição em alemão de 1991).
Notas 1 Nomear as tradutoras não é uma simples informação, mas um gesto que toca no que poderíamos chamar de política da tradução. 2 Deixaremos de lado, nesse trabalho, a especificação que cada uma dessas noções tem para as teorias que com elas trabalham. 3 Quando a referência bibliográfica não trouxer qualquer menção do texto, deverá ser lida como se referindo ao texto em análise: Reiss e Vermeer, 1996. 4 O conceito de formação discursiva é definido por Orlandi, que retoma Pêcheux, como “aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito” (2000, p. 43).
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• A INVENÇÃO DO ÍNDIO: IDEOLOGIA E HISTÓRIA Ivânia dos Santos Neves (UNICAMP/UNAMA) Oh, musa do meu fado Oh, minha mãe gentil Te deixo consternado No primeiro abril Mas não sê tão ingrata Não esquece quem te amou E em tua densa mata Se perdeu e se encontrou Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal Ainda vai tornar-se um imenso Portugal Chico Buarque e Ruy Guerra
Quando escrevi o resumo desta comunicação, minha intenção era analisar, a partir de narrativas indígenas, os processos de criação discursiva do índio pelo europeu e procurar mostrar a chegada do europeu à América, na visão dos grupos indígenas. Mas o assassinato do índio Xacribá, em setembro de 2007, deu um novo rumo para este trabalho: Adolescentes mataram a pontapés e socos um índio, porque ele não quis ficar nu. A sociedade brasileira, já há algumas décadas, vem acompanhando o comportamento de adolescentes de classe média que incendiaram o índio Galdino, porque pensavam que era um mendigo, espancaram uma empregada doméstica, acreditando que fosse uma prostituta. Enfim, com argumentos desta ordem, no mínimo, estes crimes colocam em evidência alguns discursos que circulam no Brasil de hoje. Aproveitando que este evento é especificamente de análise do discurso, quero marcar uma posição política. Não sou membro de nenhuma organização que defenda os direitos humanos, nem participo de instituições que lidem diretamente com a justiça. Mas, além de ser cidadã brasileira, trabalho com discursos e culturas indígenas. Algumas vezes, já estive envolvida em discussões sobre a materialidade do discurso e em poucas circunstâncias a materialidade do discurso fica evidente, de forma tão chocante como nas atitudes destes garotos e nos argumentos utilizados pelos advogados de defesa destes adolescentes. Que, na verdade, é a defesa de uma posição social, de uma história social. Vou fazer nesta comunicação aquilo que considero fundamental para quem assume uma posição política diante da situação dos índios na América Latina. Estou 347
no espaço da academia e tomo a palavra, aqui, para falar de invenção do índio. O que me leva, naturalmente, para o encontro do europeu com a América, quando os habitantes do Novo Mundo passaram a ser chamados de índios, no final do século XV. Vou pautar minhas análises nas primeiras representações escritas sobre os índios na América Central e no Brasil, respectivamente atribuídas ao próprio Cristóvão Colombo e a Bartolomeu Las Casas e Pero Vaz de Caminha e na movimentação de discursos que envolvem a reportagem da Folha de São Paulo sobre o assassinato do índio Xacribá Avelino Nunes Macedo, de 37 anos. Considerando que a nudez dos índios atravessa minhas análises, quero esclarecer que meu objetivo não é mostrar um fio linear de uma história positivista. Como esclarece Eni Orlandi (2002:p.14): “O discurso é um processo contínuo que não se esgota em uma situação particular. Outras coisas foram ditas antes e outras serão ditas depois. O que temos são sempre “pedaços”, “trajetos”, estados do processo discursivo”. Aqui, proponho fazer uma espécie de “crítica à afirmação do óbvio” sobre os índios e ir além do simplista e estabilizado “pensavam ter chegado às Índias”. O que significa ser índio? Que sentidos se movimentam em torno desta história contada por uma única versão? Que memória discursiva evoca? Que discursos silencia? Em mais de 500 anos de tensões de todas as ordens, mas, sobretudo discursivas, não é difícil encontrar arquivos que deixem ver as mais variadas formas de representações desta história.
No início era o verbo ... Erro de Português Quando o português chegou Debaixo de uma bruta chuva Vestiu o índio Que pena! Fosse uma manhã de sol O índio tinha despido O português Oswald de Andrade
Na mídia, nos livros de história, na legislação, enfim, nas mais variadas representações institucionais do Ocidente, podemos encontrar discursos estabilizados sobre os índios da América. E, embora seja, no mínimo, equivocada este denominação, é difícil falar das culturas nativas pré-colombianas, sem denominá-las de indígenas. As autodenominações dos grupos, por vezes até proibidas aqui no Brasil, não foram consideradas pelo europeu. Era preciso nomear tudo, as pessoas, os lugares. 348
Nem mesmo a denominação “americano”, depois que Américo Vespúcio provou que se tratava de um novo continente, conseguiu se sobrepor ao equívoco de Colombo. Atualmente americano já se constitui em um sentindo bem distante do que deveria ter significado no final do século XV, e pelo menos no Brasil, nos discursos midiáticos, diz respeito especificamente aos Estados Unidos. Essa movimentação de sentido, por si só, já merece uma boa análise. Mas não é dela que vou me ocupar diretamente aqui. Porque quando digo americano, não remeto aos índios, então, por esta falha no sentido, devo dizer índio americano. Os grupos indígenas tinham suas próprias autodenominações. Para exemplificar, vou usar duas palavras de duas diferentes culturas indígenas brasileiras: Awaeté, autodenominação dos índios Asuriní do Xingu e Tenetehara, dos índios Tembé. Awa significa “gente”, -eté significaria mais ou menos “daqui”, o que dá “gente daqui”. Entre os Tembé, Tenetehara, a autodenominação, significa “a gente”, enquanto que a denominação Tembé, dada por comerciantes das proximidades das aldeias, tem um caráter mais pejorativo, significa “nariz chato”. Além de serem genericamente chamados de índios, os europeus no início, e os seus descendentes depois, passaram a dar nomes específicos aos grupos, seguindo o exemplo de Colombo, sem consideras as autodenominações. Destas tensões discursivas nascem novas formas de subjetivação. E elas não se limitam apenas aos moradores do novo continente. Para Todorov (1993:p.3): é a conquista da América que anuncia e funda nossa identidade presente. Apesar de toda data que permite separar duas épocas ser arbitrária, nenhuma é mais indicada para marcar o início da era moderna de que o ano de 1492, ano em que Colombo atravessa o Oceano Atlântico. Somos todos descendentes diretos de Colombo, é nele que começa nossa genealogia – se é que a palavra começo tem um sentido.
Los hermanos Os sujeitos são submetidos ao acaso e ao jogo, mas também à memória e à regra. Face à imprevisibilidade da relação do sujeito aos sentidos, toda formação social tem formas de controle da interpretação institucionalmente, (mais ou menos) que são historicamente determinadas. Eni Orlandi Não encontrei, em minha pesquisa, nenhum registro nem de Colombo, nem do seu escrivão que colocasse em dúvida se as três expedições comandadas pelo almirante tinham chegado às Índias. Tanto o próprio Colombo, como o escrivão Bartolomeu Las Casas davam por certa esta chegada. Em seu diário afirmava: “O paraíso terrestre 349
está no fim do Oriente1 pois essa é uma região temperada ao extremo. E aquelas terras que ele acabava de descobrir são, segundo ele, o fim do Oriente”. Nem podia ser diferente, ainda que eles tivessem consciência do equívoco, já que dependiam desta certeza os financiamentos das viagens. Era a chegada às Índias o argumento principal para que os reis de Castella investissem nas expedições. Colombo chegou a alegar que recebera notícias de um grande rei do Oriente. É Colombo quem vai nomear os habitantes da nova terra: os índios, ainda que os classificasse como selvagens e tolos. Afinal, como poderia ter chegado às Índias, sem encontrar os índios? Segundo Todorov (1993:p. 33): Colombo fala dos homens que vê, unicamente porque estes, afinal, também fazem parte da paisagem. Suas menções aos habitantes das ilhas aparecem sempre no meio de anotações sobre a natureza, em algum lugar entre os pássaros e as árvores “No interior das terras, há muitas minas de metais e inúmeros habitantes (“Carta a Santangel”, fevereiro-março de 1493). “Até então ia cada vez melhor, naquilo que tinha descoberto, pelas terras, como pelas florestas, plantas, frutos, flores e gentes”(“Diário”, 25.11.1492)
Recorrentes vezes os índios são citados nas cartas, ora como medrosos, ora como ingênuos, como cruéis, como covardes. Mas, desde o primeiro contato, é o fato de estarem nus o que mais chama a atenção do almirante. São muitas as referências: “Então viram gentes nuas...” (11.10.1492)2 ou “Este rei e todos os seus andavam nus como tinhas nascido, assim como as mulheres, sem nenhum embaraço. As mulheres pelo menos poderiam ser mais cuidadosas” (16.12.1492)3. E foi justamente, neste cenário que se lançaram as bases da memória discursiva do Ocidente sobre os “índios”. O primeiro grande silenciamento. O batismo. Para Eni Orlandi (1990, p. 42): O sentido não tem origem. Não há origem do sentido nem no sujeito (onto) nem na história (filo). O que há são efeitos de sentido.” E quais os efeitos deste silenciamento? Que sentidos colocaram a circular? Que sujeito índio é esse nominalizado pelo europeu? A América que começa a ser contada no Ocidente só tem diferenças culturais, não tem história. A memória discursiva sobre os índios coloca a circular efeitos de sentidos relacionados ao pouco cristianismo da sua falta de roupas. Quando os espanhóis desembarcaram na América Central, o violento império asteca dominava a região. A chegada de uma cultura tão diferente, com armas muito poderosas fez cair por terra o sistema de crenças dos astecas. A noção de tempo circular, previsível, marcada por acontecimentos que se repetiam não previa a chegada de estrangeiros tão poderosos. Segundo Todorov (1993), as previsões que davam conta desta chegada foram elaboradas a posteriori, numa tentativa de reorganização social. Muito mais do que bélica, a dominação foi discursiva, ideológica. Os astecas não tinham, a princípio nem como significar aquele encontro. 350
Não eram mais astecas ou maias, passavam a ser todos índios e a Igreja Católica, a fé católica precisava chegar até eles. Além, é claro de um dos sistemas de exploração mais devastadores de que se tem notícia.
Chegaram os kamará4 Os fatos e a história recentes dos últimos 500 anos têm indicado que o tempo desse encontro entre as nossas culturas é um tempo que acontece e se repete todo dia. Não houve um encontro entre as culturas dos povos do Ocidente e a cultura do continente americano numa data e num tempo demarcado que pudéssemos chamar de 1500 ou de 1800. Estamos convivendo com esse contato desde sempre. Se pensarmos que há 500 anos algumas canoas aportaram aqui na nossa praia, chegando com os primeiros viajantes, com os primeiros colonizadores, esses mesmos viajantes, eles estão chegando hoje às cabeceiras dos altos rios lá na Amazônia. Ailton Krenac
No Brasil, os índios passam a ser contados a partir da Carta de Caminha. “Andavam nus”. Mas a perspectiva é outra. Em nenhum momento Caminha usa a palavra índio. Ele não afirma ter chegado a um continente e nem fala das Índias. Como nas expedições de Colombo, a carta deixa ver uma preocupação em encontrar ouro. Mas não há referências a possíveis reis do Oriente. A expedição de Cabral também vai nomear o ambiente. Caminha vai falando dos nomes da Terra de Vera Cruz, do Monte Pascoal. A posição de Cabral é diferente. Enquanto Colombo se incumbe de escrever aos reis, Cabral delega, de fato, esta função ao seu escrivão. Em relação aos índios, eles aparecem na carta como “homens”. Primeiro os portugueses avistam dois homens. Em seu processo de escritura, Caminha usa como estratégia textual o uso abundante de pronomes para se referir aos índios. Dá a impressão que não se sente à vontade com a imprecisão da denominação. Quando reli a Carta de Caminha, fiquei surpresa por não encontrar a palavra índio. Quando Pedro Álvares partiu Portugal, Cristóvão Colombo já havia voltado para a Europa depois da primeira viagem. Sei que o trabalho dos primeiros jesuítas vai falar em índio, mas vai tratá-los também como gentio e que outros sentidos circulavam na Europa do início do século XVI. Mas enfim, delimitei, para este trabalho, a análise da Carta de Caminha, e nela ele descreve os índios, sem nomeá-los. O que já demonstra uma posição discursiva diferente da defendida por Colombo. Não vou entrar no mérito dos encontros e desencontros da história ocidental a respeito da América, de Colombo, da Escola de Sagres. Meu objetivo é evidenciar como Colombo e Cabral colocaram em circulação sentidos sobre os moradores do Novo Mundo de diferentes formas. Na Carta de Caminha, a nudez também é o primeiro comentário significativo 351
sobre os índios: “Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas.” (Carta de Caminha). “A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência.” (Carta de Caminha)
Em suas descrições, primeiro ele só fala em homens. Mas, ele marca bem o momento em que vê pela primeira vez as mulheres. E também a elas não se refere como índias. No trecho seguinte, aparece a primeira referência Ocidental à mulher brasileira: “Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam.” (Carta de Caminha)
Tanto as cartas de Colombo e Las Casas, como a Carta de Caminha produzem efeitos de sentidos diferenciados sobre o homem e sobre a mulher. Existe uma marcação de gênero. A nudez das mulheres, dentro das diferentes condições de produção em que se desenvolveram os empreendimentos colonialistas na América, constitui, de uma forma particular, os discursos sobre o novo continente. A Carta de Caminha representa um dos discursos fundadores da cultura brasileira. Mas sua importância deve-se, fundamentalmente, do fato de ser escrita e por um português. Os métodos tradicionais da história ocidental sempre privilegiaram o olhar europeu sobre as populações indígenas. Nunca foram considerados os sentidos que os próprios índios davam a sua história. No processo de formação do Brasil, o europeu representaria o “outro”, mas sua presença é tão decisiva na formação discursiva da história, que anula o índio e deixa ao negro apenas uma condição de marginalidade. Para Eni Orlandi (1990:55): [n]o caso do contato cultural entre índios e brancos, o silenciamento produzido pelo Estado não inside apenas sobre o que o índio, enquanto sujeito, faz, mas sobre a própria existência do sujeito índio. E quando digo Estado, digo Estado brasileiro do branco. Estado que silencia a existência do índio enquanto sua parte e componente da cultura brasileira. Nesse Estado, o negro chega a ter uma participação. De segunda classe é verdade, mas tem uma participação, à margem, o índio é totalmente excluído. No que se refere à identidade cultural, o índio não entra nem como estrangeiro, nem sequer como antepassado. 352
Meu trabalho de tese é sobre discursos fundadores da identidade tupi. E toda vez que vou falar a uma platéia, pela primeira vez, causa estranhamento. Pensá-los como constituintes da cultura brasileira, seguindo o raciocínio de Bhabha (2003), perturba a noção de nacionalidade brasileira. Deixa, no mínimo, nebuloso o sentido do que é ser brasileiro nas lentes da história oficial. “O brasileiro se cria pelo fato de fazer falarem os outros. Há um espaço de diferença. O português se fala do lugar próprio, o brasileiro é deslocado de falas.” (Eni Orlandi, 1990, p. 35) É como se só os ingleses, ou outras sociedade européias (os colonizadores) pudessem se fundar. Os índios, ainda hoje, ocupam uma posição discursiva deslocada nas definições do que é ser brasileiro. Em julho de 2007, durante um congresso, lembro de um índio Xavante que falava bem alto no auditório, afirmando que era índio, mas que, antes de tudo, era brasileiro. E, sem dúvida, esta é uma bandeira de luta das populações indígenas no Brasil, e por que não dizer na América Latina?
Andavam nus... Como diria Marx, até uma criança sabe que uma formação social que não reproduz as condições de produção ao mesmo tempo que produz, não sobreviverá nem por um ano. Portanto, a condição última da produção é a reprodução das condições de produção. Louis Althusser Nesta parte final do trabalho, vou fazer uma análise da matéria a seguir, divulgada pela Folha online, dia 09 de setembro de 2007. O assunto da matéria é o assassinato do índio Avelino, o acontecimento. As alegações dos garotos são que ele os irritou e queriam vê-lo nu, mas que não desejavam matá-lo. Jovens são acusados de espancar índio até a morte em MG
THIAGO REIS DA AGÊNCIA FOLHA
Um índio da etnia xacriabá foi espancado até a morte na madrugada de anteontem, em Miravânia (714 km de Belo Horizonte), em Minas Gerais. Três jovens -dois deles menores- são acusados do crime. O maior de idade foi preso; os menores, apreendidos. Eles confessaram o crime, segundo a polícia, mas disseram tê-lo feito sem intenção. O crime ocorreu por volta das 3h30. Avelino Nunes Macedo, 37, voltava para sua aldeia após participar de uma festa na cidade, no distrito de Virgínio. Uma escola municipal havia montado uma quermesse para arrecadar fundos 353
para a formatura dos alunos da oitava série do ensino fundamental. Os três garotos -de 18, 16 e 15 anos- haviam saído do local, depois de causar um incêndio em uma das barracas. Segundo a polícia, eles disseram em depoimento que, no trajeto, o índio esbarrou em um deles sem querer, o que os irritou. Eles decidiram deixá-lo nu. “O ato demonstra que houve preconceito étnico. Fizeram isso porque ele era índio. Queriam despi-lo”, disse o delegado Airton Alves de Almeida. Quando retiravam as calças de Macedo à força, ele reagiu. Os três começaram, então, a dar socos e pontapés no índio, de acordo com a polícia.Um dos jovens deu uma rasteira em Macedo, que caiu de cabeça no chão e permaneceu imóvel. Os três continuaram, diz a polícia, a agredir o índio. Edson Gonçalves Costa, 18, foi preso e indiciado sob suspeita de homicídio qualificado (motivo fútil). Ele não tem advogado. Os outros dois garotos, um de 15 (de São Paulo) e outro de 16, também estão na Cadeia Pública do município de Manga, vizinho de Miravânia. Eles podem ser internados provisoriamente por 45 dias. Segundo o delegado, os três têm ensino fundamental incompleto. Os dois menores não estudam nem trabalham. Costa é funcionário de um supermercado. “Eles são de classe média tendo em vista a região, pobre. São de famílias conceituadas.” Há cerca de 8.000 xacriabás em Minas -a maioria em São João das Missões. O coordenador regional do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) Wilson Santana afirma que Macedo era uma das lideranças de uma área não demarcada, invadida em maio e reivindicada pelos xacriabás. “Não é um caso isolado. É fruto de um processo que levou a uma imagem deturpada do índio na região. O clima de tensão ainda existe e é a preocupação agora.”
O argumento de quererem Alvino nu, por ser um índio, revela uma memória discursiva que, de alguma forma dialoga com as primeiras representações escritas sobre os índios. Para Courtine: (1981) “toda produção discursiva se efetua em determinadas condições conjunturais de produção e remete, põe em movimento e faz circular formulações anteriormente já enunciadas, como um efeito de memória na atualidade de um acontecimento” A notícia não foi amplamente divulgada nos meios de comunicação. Mereceu apenas breves comentários na televisão. Quando pesquisei na internet, não encontrei a notícia em outros sites. Procurei, então, notícias sobre os índios Xacribá, mas os poucos registro tratam de um trabalho realizado pela UFMG sobre literatura Xacribá.. Nada que fale de conflitos de terra ou da situação grupo. O que é estranho, se considerarmos que são 8000 índios, em área de conflito. Este silenciamento revela o descaso da mídia com a situação dos índios. 354
Também saiu uma matéria na Folha de São Paulo impressa. O grupo Folha, com isso, marca uma posição. E, certamente existe um público, ainda que restrito, interessado pela situação dos índios. As vozes institucionais que aparecem, do Cimi, do delegado, marcam uma posição discursiva. O Cimi desconfia das verdadeiras intenções dos garotos, pois alerta sobre o conflito de terras. O delegado se mostra preocupado com questões antropológicas, fala em preconceito racial. Não foram ouvidos os meninos, nem ninguém que defendesse “a imagem deturpada do índio”. Não se ouviu um outro lado. Segundo a matéria, o comportamento dos três garotos, antes de cometerem o crime, já apresentava atitudes violentas. O que, de certa forma descaracterizaria uma questão étnica. Independente do crime ser com um índio, eles seriam violentos. Por outro lado, os garotos são caracterizados como de classe média, dadas às condições do município. A matéria ainda fala de conflitos com os Xacribá e sobre a liderança que Avelino exercia entre os índios. De qualquer forma, a posição do Grupo Folha está bem evidenciada. Mais de 500 anos depois, a matéria põe em evidência algumas instituições que continuam constituindo a história dos índios no Brasil: a Igreja Católica, forças armadas. A nudez expulsa do Paraíso bíblico também está aí nas tensões discursivas. Certamente, muita coisa mudou e já não são mais os portugueses que administram o Brasil. Fica difícil afirmar que os garotos são descendentes de europeus, negros, índios. Entretanto, parece haver uma memória social bem sólida de comportamentos baseados em inferioridades e superioridades culturais, no Brasil e por que não dizer, no mundo de hoje. Para finalizar, parto do da posição defendida por Michel Pêcheux (1983:p. 57): A posição de trabalho que aqui evoco em referência à análise do discurso não supõe de forma alguma a possibilidade de algum cálculo de deslocamentos de filiação e das condições de felicidade ou de infelicidade evenemenciais. Ela supõe somente que através das descrições regulares de montagens discursivas, se possa detectar os momentos de interpretação enquanto atos que surgem como tomadas de posição, reconhecidas como tais, isto é, como efeitos de identificação assumidos e negados.
O assassinato do índio Galdino, o espancamento da empregada doméstica, o assassinato do índio Avelino, as cartas de Colombo, Las Casas e Caminha marcam momentos de interpretações.
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Bibliografia ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos do Estado. Rio de Janeiro: Graal, 2003 BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003 CORRÊA, Ivânia et al. O Céu dos Índios Tembé. Belém: Imprensa Oficial do Estado, 1999. 1ªed. COURTINE, J. Analyse du Discurs Politique. Languages 62 PÊCHEUX, Michel. O Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Contexto, 1983 Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio; tradução Eni Pulcinelli Orlandi [et al] Campinas: Editora da Unicamp, 1997 ORLANDI, Eni Pucclineli. As formas do silêncio. Campinas: Unicamp, 1997 ________. Discurso fundador. Campinas: Pontes, 2003 ________ Interpretação. Campinas: Pontes, 2004 ________Terra à vista: discurso do confronto: velho e novo mundo. São Paulo: Cortez/ Campinas: Ed. da UNICAMP, 1990 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América - A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1993
Notas 1 In TODOROV, Tzvetan. A conquista da América - A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1993 2 Idem 3 Idem 4 Kamará é uma palavra de origem portuguesa, mas que muito índios do tronco lingüístico tupi usam para nomear os não-índios. Quando estive pela primeira entre os Suru-Aikewára, eles me chamavam de kamará-kusó, não índia.
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ÍNDIOS XAVANTE X NÃO-ÍNDIOS NA CIDADE DE BARRA DO GARÇAS/MT: GESTOS DE INTERPRETAÇÃO DISCURSIVA •
Águeda Aparecida da Cruz Borges (UFMT / UniAraguaia) Para Iniciar a Conversa
Muitos estudiosos orientam a pesquisa tendo como foco as desigualdades entre as pessoas, mesmo sob o enunciado de senso comum: “somos todos iguais perante Deus e perante a lei”. É nessa máxima, sob o domínio do Discurso Religioso e Jurídico que a “igualdade” ganha sustentação, todavia não é o que se apresenta aos olhos do pesquisador quando ele se debruça sobre o objeto no intuito de interpretá-lo. Na dinâmica da vida, muitas vezes, sem saber o motivo ou qual a memória que nos mobiliza nos iludimos ao acreditar que aquilo que fazemos ou sentimos, expressam a nossa ‘escolha’. A escolha deste trabalho que tem como tema o discurso dos moradores de Barra do Garças (Barra), cidade do Mato Grosso sobre os índios Xavante no espaço urbano, talvez tenha fundação no meu encontro com alguns deles, na antiga Rodoviária dessa cidade, no ano de 1982. Eu esperava aquele encontro, mas em aldeias, uma ignorância marcada pela aprendizagem escolar e pelo discurso familiar, ou pela exaltação romântica ou pelo preconceito construído historicamente. Fato é que, recentemente, no ano de 2003, volto a encontrar muitos Xavantes, na mesma cidade, ou no local onde funcionava a antiga rodoviária, ou em pensões e bancos de uma praça daquele entorno. A partir do momento em que assumimos o compromisso com a pesquisa, o nosso olhar sobre o objeto recortado muda, pois somos chamados a observar qualquer detalhe que se relacione a ele. No nosso caso, um dos elementos fortes da observação, o qual tomamos como parâmetro para questionar os discursos propostos é praça localizada no centro da cidade, contornada por esculturas indígenas, com características do povo Xavante, fato perceptível marcado pela gravata, própria desse povo; porque, no conjunto, o que aparenta é uma homogeneidade nas figuras regularizando um discurso: índio é tudo igual, como pode ser observado na fotografia 1:
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Foto da Praça dos Garimpeiros- datada do início da pesquisa-maio de 2003. Para levar o trabalho a cabo, foi preciso, além de releituras, novas leituras sobre a teoria da Análise de Discurso e precedentes; ainda, uma pesquisa sobre os “Índios do Brasil”, uma vez que, uma pesquisa envolvendo povos indígenas exige, segundo Silva & Grupioni (1988), alguns esclarecimentos a respeito de informações incorretas que circulam sobre eles. Uma visão que não procede é a que os coloca como se fossem um todo homogêneo; ora, Os índios do Brasil não são um povo: são muitos povos, diferentes de nós e diferentes entre si. Cada qual tem usos e costumes próprios, com habilidades tecnológicas, atitudes estéticas, crenças religiosas, organização social e filosofias peculiares, resultantes de experiências de vida acumuladas e desenvolvidas em milhares de anos. E distinguem-se também de nós e entre si por falarem diferentes línguas. (RODRIGUES, 1985 p.17).
Pensar que os índios são todos iguais é uma ignorância oriunda da relação que o termo “índio” tem em oposição ao “branco”. O índio genérico não existe. Existem os Yanomami, os Kaiapó, os Karajá, neste texto os Xavente e muitos outros grupos falando mais de 180 línguas e dialetos, distribuídos em centenas de aldeias localizadas em diferentes áreas indígenas que ocupam apenas 10% do território nacional. Estima-se que são aproximadamente 250.000 pessoas indígenas. É importante ressaltar, nessas considerações, ainda iniciais, que, embora situado 358
na cidade, o Xavante em Barra, mantém um distanciamento que o separa dos outros moradores. Por mais que utilizem os aparatos da sociedade ocidental e que, na medida da necessidade, usem a língua Portuguesa, existe uma fronteira significante que os exclui do convívio social urbano, como observaremos adiante. Trabalhar com a hipótese de que toda e qualquer dominação no plano físico e cultural não se dá de forma absoluta, nos possibilita pensar que, apesar do aperfeiçoamento dos sistemas de dominação que foram amplamente utilizados pelos agentes colonizadores e reproduzidos ao longo dos tempos, os índios utilizaram-se de mecanismos que de certa forma os caracterizam enquanto tais, mantendo assim a sua condição de índio, segundo Silva1 (1999, p.111).
Nesse panorama, despertou-me a atenção o paradoxo entre o que se diz e o que se vê, resultando na minhas indagações: Por que há uma resistência discursiva em aceitar o povo Xavante na cidade? Por um lado, e por outro por que a escultura, se o próprio índio é um componente do espaço barra-garcense? O Corpus A escolha de um objeto para ser analisado, com fundamentação na Análise de Discurso que é o nosso caso, não é aleatória. Os recortes têm que vir com as nossas indagações, “fazem parte de um passado real que pulsa em nós na espessura do nosso corpo”2, ou seja, é estar num certo tempo presente que mobiliza um certo passado e fala de um lugar da memória que, estruturado pelo esquecimento, funciona, significa por não lembrar. Conforme Orlandi (1999), o objeto discursivo não é dado, ele supõe um trabalho do analista e, para chegar a ele, é preciso, numa primeira etapa de análise, converter o corpus bruto, empírico, neste caso, os discursos sobre os Xavante em Barra, em um objeto teórico, que critique a impressão de “realidade” do pensamento, ilusão que sobrepõe palavras, idéias e coisas. Em outras palavras, o trabalho, nessa perspectiva, começa pela conformação do corpus e se estende em todo o processo de sua construção. Assim, todos os dizeres que se referem aos índios na cidade compõem um campo discursivo referencial, sobre o qual, a partir de um gesto analítico constante, que é o que prima na metodologia da AD, farão parte do corpus discursivo deste trabalho. É necessário então estabelecer um campo discursivo e a partir daí, através de análises, selecionar seqüências discursivas que serão organizadas, de acordo com o que objetiva o analista. Sendo o corpus na AD, provisório e instável, a partir das análises se organizam os recortes discursivos3 que o compõem. Como estamos vendo, a constituição do corpus passa por um processo analítico, pois é pelos procedimentos de análises que 359
podemos dizer o que faz e o que não faz parte dele.
“A Torto e a Direito”
O “branco” fala o índio Delimitamos a pesquisa, restringindo as entrevistas a grupos de moradores de Barra do Garças que podem ser identificados da seguinte maneira: estudantes universitários (EU), estudantes do Ensino Médio (EEM), pais (PA), professores (P) e funcionários da educação (FE), ao números que acompanham a sigla são distintivos em cada grupo. As entrevistas foram gravadas e transcritas, pedimos para que falassem livremente sobre o que achavam da presença indígena na cidade. Para esta comunicação selecionamos algumas seqüências discursivas que demonstram a fronteira existente na relação “índio” X não-índio em Barra. A (EU4) pelo meio da nossa conversa diz: _Quando viajo só com o meu filho, torço para um índio viajar no mesmo ônibus, porque aí eu digo: _ se você não ficar quietinho, o índio vai te pegar. Ele fica quietinho; ele morre de medo de índio.
Entendemos que o medo além de funcionar como barreira para o relacionamento com o índio, retoma os sentidos de índio selvagem, bicho...historicamente constituídos e que por certo vai perdurar por muito tempo, pois a criança que morre de medo carregará esses sentidos. De um outro modo, mas falando o mesmo, (EEM3), na ilusão de dizer que não é contra os índios, deixa marcado lingüisticamente o que foi determinado pela ideologia: - (...) eu não tenho nada contra eles, né, não tenho assim contra os índios, mas eu... sinto um pouco receio deles, porque não se comunicam, né, com a gente... e parece que eles se afastam um pouco (...) porque o que você vê, ouve falar deles é que eles são agressivos, que eles são violentos tal esse tipo de coisa, e aí a gente fica com medo, né, de conversar com eles assim tentar um diálogo, né, e eles acharem ruim, com a gente (...)
A repetição do né, ao longo da seqüência, sob nosso parecer, funciona como um apelo à cumplicidade do interlocutor no sentido de convencê-lo de que só esse modo de dizer e que essa é a verdade. Para a AD o conceito de ideologia é amplo, conforme Orlandi (1994, p.296) a ideologia trata-se de um necessário apagamento, para o sujeito, de seu movimento de interpretação, na ilusão de “dar” sentido a produção do efeito de “evidência”. Pechêux (1975 apud ORLANDI, 1986, p.117) considera que não existe discurso sem 360
sujeito, nem sujeito sem ideologia. Assim, não é possível entendê-los separadamente. Por mais que trabalhemos a autoria como ilusória, a ideologia como enganadora e o discurso como materialização da ideologia, não podemos desprezar a relação que se estabelece entre eles e o sujeito. É necessário que o sujeito tenha a ilusão de que é ele mesmo que diz, de que o seu discurso não é plágio. Dessa forma, os sujeitos reproduzem discursos sem temerem qualquer acusação. Percebemos a preocupação com a originalidade em seqüências de algumas entrevistas: as pessoas, para expressarem “seu” ponto de vista sobre o índio, utilizaram marcas lingüísticas que nos remeteram ao princípio de autoria. Destacamos algumas expressões como: penso que, na minha opinião, particularmente, dentre outras, que são usadas a fim de se reafirmar a posição sujeito do dizer. Vejamos: Penso que são cidadãos comuns, mas não deviam ficar na cidade (FE02) Eu acho que também eles devem ser julgados na nossa lei, quem sabe poderia ter algum tipo de cadeia lá... (EEM03) Bom, no meu pensar eu acho que sim, eu acho que ele deve ser tratado como o branco, mas eles são difíceis a senhora sabe (P02) Na minha opinião, índio não devia existir de jeito nenhum (PA04)
Além do esquecimento em relação à origem, instaura-se aí nesse grupo de paráfrases que imprime toda a aversão ao índio e a impossibilidade de qualquer forma de convívio, até a cadeia teria que ser lá, no caso na aldeia. Observemos a próxima seqüência: Pra nossa sorte, pra sorte dos brasileiros, o Brasil teve que ser descoberto. Cê já pensou se a gente fosse todo mundo índio, que que num seria o Brasil?! Tá loco! (...) Com o descobrimento do Brasil é... com o descobrimento ... melhor ser filho de português, do que ser filho de índio.Fico triste quando vejo que eles ainda estão aí pra gente ficar vendo (PA5)
Supomos que os sentidos inscritos nessa seqüência materializam a fortaleza do discurso da descoberta e estabelecem a separação, não deixa nenhuma bracha para a aproximação. Na AD, trabalhamos com fragmentos de linguagem-situação, o recorte, que se faz de acordo com o objetivo da análise. É por isso que não existe um método fixo como já dissemos e escolha das seqüências é concomitante à análise. Como vimos, o sentido não tem origem no sujeito, mas é reproduzido por ele no ato de enunciação, falamos em memória discursiva. Conforme Orlandi (idem, p.51) o brasileiro, para significar, tem como memória (domínio do saber) o já dito europeu. Logo, a prática discursiva dos barra-garcenses recupera o discurso do colonizador. 361
O Mesmo Dito Diferente: Famílias Parafrástica Na tentativa de ordenar esses discursos “a torto e a direito”e trazer outros organizamos seqüências cujo sentido se repete, modificando-se apenas em nível de formulação, ou seja, em famílias parafrásticas. A “repetição” se dá porque o sentido é disperso e o sujeito está em constante movimento. Os sentidos migram, sendo trazidos para o presente da linguagem; isso, porque o que foi dito historicamente, o já-lá, é retomado e “atualizado” no momento da formulação dos enunciados. O quadro de seqüências discursivas leva em consideração suas condições de O quadro de seqüências discursivas leva em consideração suas condições produção, sendo relacionadas às Formações Discursivas a que pertencem: de produção, sendo relacionadas às Formações Discursivas a que pertencem: FDs
Índio é preguiço so
Índio é sujo
Os índios são protegid os pelo governo
Estudantes universitário s (EU) (...) “tinha lixo pra tudo quanto é canto, e a gente foi catar junto com eles; (...) eles sentaram e ficaram olhando a gente catar o lixo.” (...) “a gente estava explicando pra eles como fazer... até como fazer a: aquelas privadas, sabe, porque eles faziam tudo na beira dos rios”... “Aí, o governo, né, dá aquela aposentadoria pra eles hoje. Então, nessa questão eu particularmen te acho arbitrária.”
Estudantes de Ensino Médio (EEM) “Índio é vagabundo, preguiçoso, quer tudo na mão.”
Pais (PA) “índio gosta de tudo na mão; trabalhar que é bom, nada.”
“É... eu, pra mim eles são pessoas excelentes, né; tem alguns que são sebosos, mas tem uns que dá pra levar.”
...”a sua esposa anda totalmente bagunçada, de pés no chão”...
“Faz tudo o que quer porque é protegido.”
(...) “o índio ele tem uma proteção muito grande”...
362
Professores (P) ...”eu vejo que hoje o índio eles tão muito, assim, preguiçoso”
Profissio nais da educação (PE)
(...) “eu num concordo, porque o índio a partir da hora que ele nasce, ele tem um salário, né, que eles
protegid os pelo governo
dá aquela aposentadoria pra eles hoje. Então, nessa questão eu particularmen te acho arbitrária.”
porque é protegido.”
proteção muito grande”...
Somos descende ntes de portugue ses
“As terras brasileiras, no caso, quando aqui chegamos, já eram dos índios.”
“Quando aqui chegamos eles já estavam aqui.”
Índio é agressivo
(...)”não num foram agressivos, NADA!”
(...) “podemos contar com a presença dele; agora se for pra... tipo brigas, confusões, que já teve muito envolvendo os índios aí eu acho, eu sou contra.”
... “com o descobriment o do Brasil... menos mal pra nós, né, porque a gente ia ser só um monte de índio; Já pensou se fosse assim?! E com o descobriment o... melhor serfilho de português do que ser filho de índio.” “maltratam o branco, por causa de coisas que pertencem à gente.”
Índio é bicho (selvage m)
“Muitas pessoas acham que os índios eles são bichos su/ sujando a cidade” (...)”se o índio ele tem
“Índio parece que não é gente.”
O índio é inferior
“(...)de certa forma ele é agressivo”
(...) “a própria sociedade trata o índio como um animal”
(...) “de certa forma ele é agressivo, ele é por causa do instinto dele.”
“Eles poderiam até
(...) “eles têm algumas
363 (...) ”o índio, apesar de ser
concordo, porque o índio a partir da hora que ele nasce, ele tem um salário, né, que eles recebe do governo, então eu acho que não deveria ser assim”...
“...eles se defendem , se um briga ali entre/pes soa maltrata um deles, um branco, eles vão em cima e vai, né, pa pra proteger aquele índio.”
((o índio))
Índio é bicho (selvage m)
O índio é inferior ao branco
“Muitas pessoas acham que os índios eles são bichos su/ sujando a cidade” (...)”se o índio ele tem toda uma cultura, uma ideologia diferente, ou nem se sabe se ele tem uma ideologia, né.”
“Índio parece que não é gente.”
(...) “a própria sociedade trata o índio como um animal”
(...) “de certa forma ele é agressivo, ele é por causa do instinto dele.”
(...) ”o índio, apesar de ser índio, como todos dizem, ele é um cidadão barragarcense , no nosso caso.”
“Eles poderiam até pôr os filhos pra estudar junto com os nossos filhos”
(...) “eles têm algumas regalias, pois são incapazes para os atos da vida civil e criminal.”
aquele índio.”
((o índio)) “Represe nta os primitivo s brasileiro s”
O quadro4: Mostramos no grupo de paráfrases, que, mesmo depois de muito tempo, os sentidos “coloniais” se manifestam no discurso das pessoas entrevistadas por nós, e que supomos tendem a uma generalização, de modo que, analisando o corpus, percebemos pistas que apagam os índios como sujeitos históricos, para destacá-los como seres culturais, que devem estar longe dos que não são índios.
Para Fechar a Conversa Alguns séculos na história podem distanciar pouco os sentidos. Não é nada, a não ser cronologicamente. A história não é uma questão de evolução de tempo, é uma questão de sentidos e da sua duração. E esses podem circular indefinidamente. Como diz Orlandi: Cinco séculos após o “descobrimento” do Brasil, como, até hoje, alguns insistem em tematizar o encontro do nativo brasileiro com o europeu, percebemos um encontro interno - no domínio de um mesmo país, de uma mesma região, e, até, numa mesma cidade – entre culturas, que apesar de pertenceram a uma mesma localização geográfica são distintas e, em muitas vezes, conflitantes. De um lado, os “brancos” que negam a provável ascendência indígena, julgando-a pejorativa, vergonhosa; de outro, os índios, que sentem a necessidade da inclusão na outra cultura, para serem considerados brasileiros. (1996, p. 235).
Observamos que posições-sujeito distintas resultam das posições variadas que os sujeitos ocupam na sociedade, que os permitem dizer ou não determinados discursos. Numa entrevista com uma estudante de Pedagogia e professora primária (EU04), destacamos a preocupação em justificar sua visão a respeito do índio, a 364
s
qual melhorou devido ao fato de estar estudando a história da educação: (...)Talvez eu tinha assim algum tempo, assim, atrás, eu tinha uma visão, assim que o índio não era uma coisa boa, eu tinha assim uma visão, assim que índio não era uma coisa boa, mas hoje inda bem que eu estou, que eu já estou mudando, assim, o próprio estudar a história da educação eu já tenho uma visão melhorzinha de índio, de que é ser índio, e já tô conseguindo, assim, valorizar.
Atentemos para o mas, que divide o discurso estabelecendo uma ruptura entre o antes e o depois de estudar a história da educação. No entanto, ao dizer visão melhorzinha, ressalta o valor pejorativo do diminutivo interrompendo a ruptura. EU04 não se descola da idéia “antiga”, do índio do tempo das “descobertas” e provoca uma outra separação índio de hoje X índio da história, como pode ser observado na próxima seqüência: Mas ... é porque os índios de hoje tá fazendo a gente ter essa idéia, assim, de que índio é vagabundo, que índio não quer fazer nada, mais se nós formos olhar pela história, nossa! Ele representa muito é um um personagem, assim, importantíssimo na nossa história.
Romper com os preconceitos que constituíram seu modo de pensar até o contato com a graduação não é tarefa fácil, às vezes, impossível. Por isso o sujeito se inscreve em duas Formações Discursivas distintas. E por mais que, em determinados momentos percebamos marcas da tentativa de ruptura com os sentidos determinados histórica e ideologicamente o que prevalece ainda é a de que:
Lugar de Índio é na Aldeia ((o índio deve estar)) “bem distante assim de mim, não vejo nenhum aproximamento” (EU) Eu...eu vejo que...é importante assim, o índio... a presença dele aqui na nossa cidade, porém eu vejo que o lugar dele é mesmo nas aldeias...”(EEM) “De índio eu quero distância. É ele lá e eu cá. (PA) .............................................................................. (P) “O que que eu penso sobre o índio na nossa cidade é que ele não tinha que tá na nossa cidade.” (PE) Podemos dizer, após a análise, que, independentemente do grupo entrevistado há uma FD que domina, a de que lugar de índio é na aldeia. Além dos sentidos de repulsa instaurados pela negação:”(...) bem distante assim de mim, não vejo nenhum aproximamento” em (EU), ou eu quero distância, em (PA), 365
que funciona também pela negação: eu não quero aproximação.
Então, na perspectiva da AD, há uma dispersão de sujeitos, pois, devido a sua incompletude, eles ocupam várias posições ao longo do discurso, inscrevendo-se em FDs diferentes. Entretanto, notamos que algumas dessas FDs são dominantes em relação a outras, tendo cada texto certa unidade discursiva. A cidade incorpora o índio, criando uma naturalização. Entretanto, fica marcada na materialidade lingüística uma presença coisificada, ou seja, o índio não é um indivíduo no convívio das relações sociais, mas é parte de um cenário, como se fosse um “enfeite” dispensável, no caso das esculturas da Praça, que, hoje, já não fazem parte do cenário, pois passados alguns dias que fizemos uma apresentação da primeira parte da pesquisa, numa Semana de letras, as esculturas sumiram da Praça, como pode ser observado na foto 2, da mesma Praça que mostramos no início, agora datada de 26/09/2007.
Corre um boato de que as esculturas foram arrancadas pelos Xavantes, estamos em busca do que ocorreu de fato e aí produziremos um novo texto. Ainda, considero que, pouco a pouco, questões como as que tratamos nesta pesquisa, vão fornecendo sustentação a um parâmetro de cidadania para a sociedade do futuro, em que se estabelecem novos problemas nacionais que nos mobilizam a criar, pelo menos, perspectivas de soluções recarregadas de valor democrático e por que não afetivo. Os fenômenos interculturais, marcados discursivamente, podem servir para o debate em torno do papel das instituições superiores sobre a responsabilidade na elaboração de políticas educacionais que contemplem a diferença. No caso presente, foi de grande valia para as discussões/reflexões, do grupo de professores 366
do Departamento de letras do IUniAraguaia/UFMT, que fundamentaram o texto da Matriz curricular que está em período de implantação. BIBLIOGRAFIA AUTHIER-RÉVUZ, Jaqueline. Palavras Incertas. Campinas Editora da Unicamp, 1998. Educação Escolar Indígena 2. Parâmetros Curriculares Nacionais I. GRUPIONI, luís D. Benzi (org) II. Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. BARONAS, Roberto leiser (org.). Identidade Cultural e Linguagem. CáceresMT:Unemat Editora; Campinas, SP: Pontes editores, 2005. FAUSTO, Carlos. Os Índios antes do Brasil. Jorge Zahar – Editor – Rio de Janeiro, 2000. ________________. A arqueologia do saber. Campinas, Forense Universitária, 1997. Governo do Estado de Mato Grosso. 3º Grau Indígena: Projeto de Formação de Professores Indígenas. Barra do Bugres: UNEMAT; Brasília: DEDOC/FUNAI, 2001. INDURSKY, Freda. A fala dos quartéis e outras vozes. Campinas, SP. Ed. Da Unicamp, 1997. __________________& FERREIRA, Maria Cristina leandro.(orgs.) Os múltiplos territórios da Análise do Discurso, Porto Alegre, RS, Editora Sagra luzzatto 1999. lAGAZZI, Suzy. O desafio de dizer não. Campinas, Pontes, 1988. ORlANDI, Eni Puccinelli. “O estatuto do liberal e a reforma da terra”. In: Religião e sociedade, 12/3, 1983.p. 65-73. ____________________. A Linguagem e seu funcionamento; as formas do discurso. SP, Brasiliense, 1988. _____________________.Terra à vista. Discurso do confronto: velho e novo mundo. S.P., Cortez & Ed. da Unicamp, 1990. _____________________. “Um Sentido Positivo para o Cidadão Brasileiro”, In: Sociedade e Linguagem, Campinas, Editora da UNICAMP, 1997. PÊCHEUX, Michel. (1969) “Análise automática do discurso (AAD-69) “. In GADET, Françoise & HAK, Tony. Por uma análise automática do discurso, uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, Ed. Da Unicamp, 1990. _________________.(1983) O discurso, estrutura ou acontecimento. Campinas, Pontes, 1990. Relatório do III Encontro Nacional de Educação. Subsídio do Estudo ANE/CIMI – 367
Luziânia – GO, dezembro/1999. ZOPPI-FONTANA, Mónica G. Cidadãos Modernos, discurso e representação. Campinas, Ed. da Unicamp, 1997. _________________________. “Camelôs e o direito à cidade”. In: Anais do 7° Encontro da ANPUR: Novos recortes territoriais, novos sujeitos sociais: um desafio ao planejamento. Recife, MDU/UFPE. 1997 p.1160-1179. _________________________. “É o nome que faz fronteira”. In: Indursky, F. (org) Os Múltiplos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre, Coleção Ensaios do CPG-Letras/UFRGS, 2000.
Notas 1 SILVA, Raimundo N.P. Revista RUA, Nº 05, Campinas, SP: Março de 1999. 2 GUIMARÃES, I Encontro de Linguagem História e Cultura, Cáceres-MT, fev/2000. 3 A noção de recorte discursivo foi formulada por Orlandi (1983:128-9; 1984:137) para separar o gesto do lingüista, que se segmenta na frase, do gesto do analista de discurso que, ao recortar uma seqüência discursiva, recorta uma porção indissociável de linguagem e situação. 4 Esse quadro foi inspirado no trabalho desenvolvido pela profª. Elizete Azambuja, recentemente publicado no livro: Olhares, vozes e silêncios que excluem: estereótipos de índio, pela Editora UNEMAT.
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A AUTORIA NA ESCRITA DE ADOLESCENTES: INTERFACES ENTRE O VIRTUAL E O ESCOLAR Evandra Grigoletto (UFP) Carmen Agustini (UFU)
1. Situando a reflexão
Escrever na adolescência é uma atividade que pode exercer fascínio, revelando os desejos mais íntimos do sujeito, ou constituir obrigação, preenchimento de linhas para alcançar uma nota1. Não precisamos mencionar que essa segunda característica da prática de escrita na adolescência está ligada à escola. Mas será que a escola não pode propor atividades de escrita que rompam com essas características, possibilitando ao adolescente o exercício da subjetivação e da autoria, inerente à primeira prática de escrita apresentada? Esse deveria ser o desafio da escola, sobretudo nas aulas de Língua Portuguesa. No entanto, nem sempre é isso o que se verifica quando nos deparamos com textos escritos por alunos do Ensino Médio. Partindo dessa problemática e considerando que as novas tecnologias, principalmente a internet, têm produzido mudanças no traço identitário dos cidadãos, sobretudo de nossos adolescentes, produzimos uma tentativa de aproximar esses dois espaços de produção e circulação da escrita – a escola e a internet – por meio de práticas de escrita. Tal tentativa consistiu na oferta de um curso de extensão a alunos de Ensino Médio, de escolas públicas e particulares, no âmbito do projeto de pesquisa “Discurso, mídia e escola: questões de identidade e escrita”,2 realizado no segundo semestre de 2007, na Universidade de Passo Fundo. A proposta do curso era baseada em oficinas de produções textuais, em que os alunos deveriam produzir textos - alguns com temas livres, outros com temas orientados - para serem publicados em um site. Nesse site, que era o site do projeto, havia um espaço intitulado “oficina de textos”, para o qual qualquer usuário cadastrado poderia enviar seu texto para ser publicado. Para a reflexão que pretendemos empreender neste artigo, selecionamos dois textos da mesma adolescente: um produzido nesse curso de extensão, e outro produzido na escola, a pedido da professora de Língua Portuguesa. Assim, esperamos abordar as duas práticas de escrita apontadas acima: uma escrita mais livre e outra condicionada à solicitação da professora. Partindo, então, desse recorte de um corpus maior, constituído de textos de outros alunos adolescentes, nossa proposta, no presente artigo, é analisar a relação entre escrita, identidade e autoria, tomando esses jovens, estudantes de Ensino Médio, como sujeitos de linguagem, que se subjetivam pela/na escrita. Escrita aqui tomada como prática social, espaço simbólico, lugar de interpretação, a partir da qual é possível resistir, produzir rupturas e (des)legitimar sentidos. A prática da escrita, 369
por sua vez, não está dissociada da assunção à autoria, que carrega traços da singularidade do autor, produzindo marcas/cicatrizes na/pela escrita naquilo que é dito ao escrever.
2. Adentrando no escopo teórico Tratar de escrita e autoria numa perspectiva discursiva implica considerarmos o sujeito do discurso, já que sem ele tais práticas não seriam possíveis. E, ao trabalharmos com a noção de sujeito numa perspectiva discursiva, é preciso esclarecer que não estamos trabalhando com o indivíduo, o sujeito empírico, mas com o sujeito do discurso que, ao produzir um determinado discurso, está duplamente determinado: pela ideologia e pelo inconsciente. Essa dupla determinação, como nos mostra Pêcheux (1975), produz “um tecido de evidências “subjetivas”’ (1995, p. 153 – os grifos são do autor), a partir das quais o sujeito se constitui. O sujeito, assim constituído, vê-se como fonte do que diz e a ideologia, enquanto um mecanismo de produção de sentidos, produz o efeito de evidência e de transparência do sentido que produz. No entanto, tais evidências são da ordem do funcionamento do imaginário, que resultam no efeito-sujeito e, também, nos efeitos de sentido, uma vez que não há sujeito sem ideologia, tampouco há sentido único. Portanto, nessa perspectiva, a ideologia é responsável pela constituição do indivíduo em sujeito e o inconsciente é responsável pela produção do imaginário de autonomia do sujeito, que pensa controlar e ser origem do discurso que produz. E uma das formas, senão a principal, de materialização do discurso é a escrita. Assim, o sujeito, quando escreve, assumindo posição de autor, projeta uma imagem de si ao outro (seu leitor) e do outro de si, afetado pelo efeito de que controla não só o que diz, mas também os sentidos do que diz. E, nessa relação de dizer para/com o outro, Coracini (2007, p. 9) postula que “cada um de nós tem a ilusão de que faz um, de que é um, de que tem uma identidade, inventada pelo outro e assumida como sua, ficção que se faz verdade para si e para os outros.” No entanto, nesse movimento da escrita, o autor é capturado na e pela ordem do simbólico e o que ele julgava ser da ordem do seu controle torna-se determinação, já que, ao escrever, não só ele próprio se inscreve, mas também inscreve seu texto numa dada discursividade, sócio-historicamente determinada. Partindo das relações de identificação com outro - outro sentido, outro sujeito, outro discurso – é que se constrói uma identidade para o sujeito, a qual não é única, já que podemos somente capturar momentos de identificação do sujeito. Constituída de representações imaginárias que se imprimem no e pelo espelho do olhar do outro, a identidade de cada um se faz escrita, se faz texto, narrativa, ficção (Cf. Coracini, 2007). Ainda, segundo Orlandi, (2001, p. 204), a identidade não resulta de processos de aprendizagem, mas refere, isso sim, a posições que se constituem em processos de memória afetadas pelo inconsciente e pela ideologia. 370
Não sendo a memória homogênea, ela se transforma e está diretamente relacionada à conjuntura sócio-histórica em que o sujeito está inserido, e, dependendo do mesmo, se inscreverá numa determinada rede de memória ou noutra. No caso desta pesquisa, o aluno inscreve o seu dizer nas redes de memória que regulam o que pode e deve ser dito no espaço escolar e/ou no espaço virtual. E, nesse último, o espaço virtual, é possível percebemos marcas lingüísticas próprias ao espaço escolar que o aluno, mesmo estando exposto a um espaço diferente, carrega. Isso mostra a presença de dizeres, sentidos que circulam em outras redes de memória e que atravessam o dizer do sujeito, apontando para o fato de que nem a rede de memória, nem o sujeito, tampouco os sentidos são homogêneos, completos. Por isso, tomar a escrita numa perspectiva discursiva significa, sobretudo, considerá-la uma prática social, que não está separada do discurso, já que este é sócio-historicamente constituído. E, enquanto prática social, movimenta sujeitos e sentidos, articulando o lingüístico, o histórico e o ideológico. Constitui-se, assim, num lugar de interpretação, espaço de memórias e de construção de identidades, cuja materialidade é lacunar, justamente por que abre possibilidades para diferentes interpretações. Então, a relação do autor com a escrita, no espaço de uma folha em branco ou na tela do computador, é tensão, já que o processo da escrita não é linear. O sujeito, ao escrever, se singulariza, se expõe no texto, deixando marcas próprias, mas, ao mesmo tempo, é determinado pelo outro, seja esse o sujeito a quem se dirige, ou a instituição a que está vinculado - a escola e a internet, no caso em análise. Conforme Grigoletto & Schons (2008), o sujeito do discurso, no seu fazer, traz consigo o refletido de sua subjetividade, ao mesmo tempo em que impõe/dissimula (significando para ele o que ele é e também o que ele não é) sua situação de assujeitamento, o que acarreta o efeito de autonomia. E tais condições ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção são determinantes no processo da escrita. Nesse sentido, a escrita aponta sempre para um efeito ideológico, pois o sujeito produz um texto que acredita ser coerente e verdadeiro, isto é, um texto legível, correto, cuja exigência, própria do escrito, visa eliminar tudo que possa figurar como lapso ou equívoco e que, por isso, coloca-se como contrário ao capricho, à consistência. É um texto legível e coerente que a escola cobra do aluno, com uma escrita que segue determinados modelos e o emprego da língua-padrão. No entanto, embora a escola cobre essa escrita legível e perfeita, com um sentido único e desambigüizado, ela não ensina ao aluno o discurso da escrita, “exatamente porque esse discurso tem um lugar próprio para existir, e um lugar sempre institucional, que não é a Escola” (GALLO, 1992, p. 59). Essa autora é quem propõe esse conceito de discurso da escrita. Segundo Gallo (op. cit), o discurso da oralidade é aquele que produz um sentido ambíguo e inacabado, enquanto o discurso da escrita produz um sentido único e desambigüizado, sendo legitimado institucionalmente. Por isso, 371
é o discurso da escrita aparentemente linear, sem ambigüidades e equívocos que é aceito e valorizado pela escola. A escola é a principal mantenedora do discurso escrito, mas não uma instituição produtora. Aos alunos é apresentado o discurso da escrita como o discurso legitimado socialmente, por isso, serve como objeto de estudo e, algumas vezes, até de análise, mas não é ensinado. O papel da escola deveria ser o de fazer a passagem do discurso da oralidade para o discurso da escrita que, segundo a autora, só se dá pela assunção da autoria. E, ao fazer essa passagem, se constrói para o aluno uma identidade pela escrita. Como a escola, tradicionalmente, não trabalha o processo de autoria, a escrita do aluno é, na maioria dos casos, uma reprodução do discurso da escrita que lhe apresentam como modelo, com um formato pré-determinado; escrita homogeneizante que produz a impressão de que essa escrita não procede do aluno. No entanto, com o aparecimento do chamado internetês, a escola sente que o seu modelo de repetição está ameaçado; afinal, o seu compromisso é com o idioma pátrio, aquele da gramática e do livro didático. Então, é possível problematizar a suposição posta pela escola: o internetês prejudica a escrita na escola ou não? Refletiremos sobre essa questão nas análises que apresentaremos a seguir, observando a escrita de uma mesma aluna adolescente nos dois espaços: a escola e a internet. No entanto, a afirmação de Orlandi (2006, p. 24) de que a escrita “é uma relação do sujeito com a história” e de que “a inscrição do sujeito na letra é um gesto simbólico-histórico que lhe dá unidade, corpo, no corpo social” já nos aponta um caminho para essa reflexão, uma vez que a escrita não está desvinculada do sujeito e da conjuntura sócio-histórica e ideológica que determinam os seus processos de identificação. As condições de produção da escrita na escola e na internet são diferentes, uma vez que se trata de instituições com conjunturas, regras e organização próprias. Portanto, de nossa perspectiva, compreendemos o internetês como sendo um fruto da crise que o homem contemporâneo manifesta em sua relação com a escrita, considerando o termo “crise” no sentido de “virada”, “mudança”, “resistência”; ou seja, uma crise daquilo que o sujeito pode construir de si na e pela escrita, dado que, nesse espaço, um outro instrumento tecnológico de escrita se coloca. Nesse sentido, o espaço virtual promove uma repetição histórica (ORLANDI, 1996), cuja constituição implica que o repetível comporte um irrepetível, uma abertura para outros processos de subjetivação possíveis. Processos esses que comportam em si a manifestação de traços de singularidade do sujeito. Assim se constituindo, o espaço virtual se opõe ao espaço escolar3, dado que neste as formas de repetição recorrentes promovem o apagamento da manifestação de traços de singularidade, possibilitando um efeito homogeneizante (Cf. AGUSTINI & GRIGOLETTO, 2008, p.150), cuja implicação naquilo que se representa da constituição identitária dos sujeitos nele inseridos tende à unidade, à identificação de grupo (social), ao coletivo, 372
ao indistinto. No espaço escolar, por sua vez, prima-se pela repetição empírica e pela repetição formal4 (Orlandi, 1996). Essa autora define essas formas de repetição do seguinte modo: a repetição empírica é aquela que se pauta no exercício mnemônico e que, por isso, não historiciza. Podemos pensar, no espaço escolar, naqueles conhecimentos decorados pelo aluno e que, por não lhe afetarem constitutivamente, se perdem. Já a repetição formal é aquela baseada na técnica da (re)produção do conhecimento por meio de frases, exercícios gramaticais. Essa forma de repetição também não historiciza, segundo essa autora, dado que não atende a um gesto de interpretação do sujeito. Para Orlandi (1996), a forma de repetição que historiciza é a que denomina repetição histórica, dado que mobiliza, ao mesmo tempo, sistema e acontecimento, fazendo a história se inscrever na língua sob a assunção de gestos de interpretação do sujeito. Nesse caso, o dizível é o repetível passível de interpretação, deslocamento, deslize, diferença; ou seja, passível de “transformar” via escrita a ordem instituída, (se) corporificando (n)a escrita, fazendo-se singular.
3. Mergulhando nas análises: a escrita de uma adolescente Segundo Orlandi (1994, p. 298), “é tarefa da AD analisar os processos característicos de uma formação discursiva que devem dar conta da articulação entre o processo de produção de um discurso (aí incluída a língua) e as condições em que ele é produzido.” Desta forma, propomo-nos a analisar, a seguir, a escrita de uma aluna adolescente em condições de produção diferentes – a escola e a internet. Para tanto, observamos como é a relação dessa adolescente com a escrita, o que implica considerar a subjetividade e, por sua vez, como se constrói sua identidade na e pela escrita, a partir da análise dos processos de produção do sentido. Antes, no entanto, de procedermos à análise, faremos uma breve discussão acerca das condições de produção da escrita em espaço escolar e virtual. A escola, conforme já mencionamos anteriormente, é o espaço em que o aluno deveria ter a oportunidade de desenvolver seu senso crítico, sendo capaz de produzir diferentes sentidos, assumindo a autoria do discurso da escrita. No entanto, a fim de padronizar uma forma pré-estabelecida como correta pela sociedade contemporânea e, consequentemente, de incluir os estudantes em uma forma ideal de escrita legitimada social e historicamente, a escola inibe a manifestação de singularidade do aluno na e pela escrita, pois isso foge ao esperado pela instituição escolar. Com o intuito de preencher os requisitos necessários ao sucesso escolar, estudantes acabam por tentar seguir uma forma pré-estabelecida de escrita e, muitas vezes, desenvolvem uma prática de escrita que compromete o processo de autoria de seus textos e, por sua vez, de sua constituição identitária. 373
Para complicar a questão do apagamento da singularidade nos textos escolares, há, para esses textos, um leitor marcado, o professor de Língua Portuguesa, ao qual é projetada uma imagem - histórica, ideológica e socialmente construída - de uma figura que exerce um poder de alguém que detém o saber sobre o suposto autor - o estudante. Assim, a avaliação do processo de autoria, na maioria das vezes, se resume a apontamentos de deslizes coesivos e gramaticais das normas da língua padrão, desconsiderando os efeitos de sentido produzidos pelo texto. A interação leitor/autor se torna, então, automática e atende a uma única exigência: inserir os alunos em um modelo de texto, com uma escrita padrão. O controle do discurso ultrapassa aqui as fronteiras da forma, da escrita e passa a determinar o sentido produzido também. A internet, por outro lado, também constitui-se em um lugar de dizer, legitimando uma escrita que não é nem tão formal e normatizada como a produzida na escola, tampouco livre de qualquer determinação. Embora, na internet, não se tenha, necessariamente, um leitor marcado para a sua escrita, ele também não é totalmente livre, sendo sempre determinado pelo olhar do outro, ainda que não saiba quem é esse outro, uma vez que se trata de uma escrita para ser vista por outro(s); uma escrita publicizada. O internetês surge, assim, como uma forma de escrita que tenta dar conta das condições de produção que a escrita na internet exige, ou seja, há uma maximização da produção de sentido e uma minimização do tempo gasto com a escrita. Aparecem, então, nessa forma de escrita, novas formas de grafar as palavras, suprimindo acentos, etc.; assim como incorporam-se à materialidade da escrita virtual as falhas, os silenciamentos, as imagens, os símbolos, os emotions. Nesse sentido, trata-se de uma forma de escrita que permite o movimento, a (re)criação, o jogo da e com a língua, uma espécie de “brincadeira” com a língua, seus recursos, possibilidades e outros caracteres simbólicos das outras formas de linguagem que a escrita em espaço virtual disponibiliza, abrindo-se como instância para o sujeito se colocar, resistir. Conforme reflexão de Grigoletto (2009), a escrita ganha, nesse espaço, uma nova configuração, é (re)inventada, incorporando à sua materialidade imagens, emotions, sinais gráficos, erros de digitação e até novas palavras, que são formas de trazer para o discurso da escrita as marcas da oralidade. E a internet legitima essa outra forma de escrita, tão rechaçada pela escola, oportunizando ao aluno, por exemplo, uma instância não só de subjetivar-se na e pela escrita, mas também de lidar com a falta, com o desejo endereçado ao outro que o constitui irremediavelmente. A seguir, apresentamos excertos de textos construídos nesses dois espaços: a escola e a internet. O responsável pela autoria de ambos os textos é única, ou seja, apesar de os textos serem produzidos em dois espaços distintos, a autoria é de uma mesma aluna adolescente, estudante do Ensino Médio. 374
O texto abaixo foi escrito em espaço virtual, a partir de uma proposta em que os estudantes, participantes de uma oficina de produção textual, deveriam se apresentar, escrever sobre si. A proposta não determinava o formato do texto, nem propunha um modelo a ser seguido, apenas indicava que se tratava de um determinado gênero textual, neste caso, a apresentação, a ser publicado em um determinado espaço de circulação: um site na internet. Vejamos o texto escrito por essa adolescente, selecionada para análise: Quem sou eu? Meu nome é A.C.S.5 Tenho 16 anos e estudo no C.L.C. Gosto de ouvir música, ler, assistir a filmes, caminhar, entre outras coisas. Sou um pouco tímida, mas tenho muitos amigos. Pretendo fazer faculdade de Biologia Marinha, na FURG, em Rio Grande e, futuramente, trabalhar em um Museu Oceanógrafo. Meus maiores ídolos são meu pai, Jesus Cristo, Martin Luther King, Thedy Correa, Renato Russo, Fredy Mercury, entre outros. Meus livros preferidos são Harry Potter e o Cálice de fogo, Anjos e demônios, O Código da Vinci, etc. Meus filmes preferidos: O Senhor dos Anéis, A Era do Gelo, Shreck, etc. Enfim, sou como todas as garotas de 16 anos.
A partir da leitura do texto acima, percebemos que, apesar de a proposta não direcionar o formato que deveria ter essa apresentação, a opção da aluna, mesmo que de forma inconsciente, foi a de seguir um padrão social, e também escolar, ao apresentar-se listando os principais tipos de informações que são requeridos em apresentações pessoais: nome, idade, ocupação, interesses. Fazendo isso, essa adolescente é determinada não só pelo padrão escolar da escrita, mas também pelo grupo social em que ela se insere. Assim, a imagem de si passa pela imagem do outro, a imagem que o outro faz de seu grupo social (Enfim, sou como todas as garotas de 16 anos). E o que significa ser como todas as garotas de 16 anos? A própria adolescente responde isso ao leitor, ao mencionar suas características ao longo do texto, declarando a um leitor, possivelmente desconhecido, o que gosta de fazer, os seus projetos de futuro, os seus ídolos, livros e filmes preferidos. Observamos, assim, que sentidos que circulam no interdiscurso sobre o que gosta e o que espera do futuro uma adolescente de 16 anos determinam a constituição identitária dessa adolescente. Como nos diz Coracini (2007), o sentimento de identidade emana necessariamente do outro, já que a imagem de si é construída pelo olhar do outro, nesse caso, do pai, de Jesus Cristo, de Martin Luther King, de Renato Russo e outros. Pessoas íntimas, personagens históricas, artistas, outras adolescentes de 16 anos – figuras aparentemente sem nenhuma ligação – mas que participam daquilo que se representa nessa escrita da constituição identitária dessa aluna, que, num constante 375
movimento entre singularidade e alteridade, busca ser inteira. Tal movimento, da ordem do inconsciente, é ratificado pela afirmação de Coracini (2007, p. 143) de que “é pelo e no olhar do outro que me vejo como um, outro que internalizo como sendo o “eu”, outro que me constitui como sujeito de linguagem, pelo discurso que diz o que e quem sou, como e por que sou.” Por fim, é possível observar que a adolescente, apesar de estar escrevendo no espaço virtual, não faz uso do internetês em seu texto; talvez, pelo fato de estar participando de uma oficina de produção textual, oferecida por uma instituição escolar. Mesmo a proposta sendo encaminhada de forma diferente das propostas do padrão escolar, com possibilidades de outros interlocutores, e que o texto teria um destino diferente da avaliação (seria publicado em um site), a determinação da instituição escolar se mostra, nesse caso, tão forte e tão arraigada nos padrões socialmente aceitos, que a adolescente entendeu que não poderia ousar, limitandose a escrever ao modo como a escola determina. Dessa forma, sua escrita (con) fundiu-se entre a “liberdade” e as possibilidades de escrita que a internet e o espaço virtual propiciam e as delimitações que o discurso pedagógico carrega como marcas que lhe são próprias. Abaixo, apresentamos excertos de um texto dessa mesma adolescente, produzido no espaço escolar. Tais excertos apresentam o início de cada parágrafo do texto e nos permitem verificar a determinação de um modelo, de uma forma préestabelecida pela escola como sendo a mais adequada, a correta. Trata-se de uma proposta de um texto dissertativo. A impunidade no Brasil toma a cada dia proporções preocupantes (...) (...) Primeiramente, deve-se observar que os políticos brasileiros são freqüentemente envolvidos em escândalos como o “mensalão” (...) (...) Mas assim como há impunidade no meio político, existe também esse problema no nosso quadro social (...) (...) deve-se em primeira estância (sic), criar leis que realmente sejam cumpridas, não importa a classe social do criminoso (...) (...) diante disso, conclui-se que a impunidade é algo inevitável em um país que não tem severas leis de punição e que, tanto os políticos como o povo, são corruptos (...)
Esses excertos seguem o modelo de estrutura de um texto dissertativo ensinado pela escola, isto é, o primeiro parágrafo deve apresentar a problemática acerca do tema (a impunidade no Brasil toma a cada dia proporções preocupantes), dois ou três parágrafos de desenvolvimento devem mostrar mais de um lado envolvido na problemática sobre o assunto (Primeiramente, deve-se observar que os políticos brasileiros são...; Mas assim como há impunidade no meio político, existe também esse problema no nosso quadro social...) e um ou dois parágrafos de 376
conclusão devem apontar possíveis soluções para o problema discutido, retomando o que foi apresentado no desenvolvimento (deve-se em primeira estância, criar leis que realmente sejam cumpridas... conclui-se que a impunidade é algo inevitável em um país que não tem leis severas de punição...). Além disso, observamos também a presença da determinação escolar de que um texto dissertativo deve ser escrito em 3ª pessoa, como se fosse possível escrever um texto imparcial e objetivo. Se analisarmos esse texto do ponto de vista de sua estrutura formal (e, possivelmente, essa foi a avaliação feita pelo(a) professor(a) de Língua Portuguesa na escola), podemos dizer que se trata de um bom texto, de um texto bem organizado, já que segue, como mostramos no parágrafo anterior, a estrutura do texto dissertativo ensinada pela escola, inclusive no que se refere ao uso da pessoa verbal e, de um modo geral, à adequação da escrita às regras gramaticais. E isso nos aponta para os padrões e regras institucionais determinando a escrita da aluna. No entanto, se analisarmos esse mesmo texto, buscando marcas de autoria e, por sua vez, da constituição identitária da aluna, observamos que ela repete um dizer padronizado pela escola, não historicizando o seu dizer. Identifica-se, assim, com um saber institucional, mas não pessoal, já que os sentidos presentes em seu texto fazem parte, (re)produzem já ditos da ordem do senso comum: quando o tema impunidade é colocado em pauta os políticos são os primeiros a serem citados, faltando não só cumprir as leis já existentes, mas criar leis mais severas. De qualquer forma, ela se subjetiva na e pela escrita do texto, ainda que esteja determinada pelo outro, nesse caso, a escola e a sociedade, via o apagamento de si e a pregnância ao imaginário de que assim deve ser um bom texto e de que esses são os sentidos possíveis de se (re) produzirem ali. O que acontece nesse texto, diferentemente do texto anterior, é que a aluna não está escrevendo sobre si, mas sim sobre um tema que lhe foi (im)posto pelo(a) professor(a). Assim, mais do que uma busca de uma identidade pessoal, do desejo de completude, a representação de sua constituição identitária encontra-se aqui determinada pela identidade institucional, ou seja, independente do seu desejo pessoal, ela deve buscar unidade no que a escola cobra dela e, por sua vez, no que a sociedade espera dela. Logo, o espaço aberto para a singularidade na proposta do texto anterior é aqui preenchido por uma determinação social. Portanto, conforme Agustini & Grigoletto (2008, p.148) “a escrita não pode ser separada nem da história nem do sujeito, uma vez que é na escrita que se materializam os fios da história, os quais determinam os modos de individuação (subjetivação) do sujeito”. A escrita é corpo em tensão.
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4. Encaminhando um efeito de conclusão A partir da análise apresentada acima, ainda que contemple textos de uma única adolescente, podemos observar algumas regularidades na escrita nesses dois espaços distintos - a internet e a escola. Quais sejam: em ambos os espaços, há subjetivação, mas o modo como essa subjetivação acontece é diferente, isto é, o modo como a adolescente se relaciona com a escrita sofre determinações sóciohistóricas de ordens distintas. Enquanto, na internet, a subjetivação acontece por meio do exercício da escrita de si, o qual possibilita movimentos identitários em que o eu se mostra, buscando no outro um pouco de si; na escola, esse exercício é pouco praticado, e o sujeito é mascarado pelo uso obrigatório da terceira pessoa no texto dissertativo, o que sugere uma subjetivação evanescente. Talvez, portanto, um dos caminhos que a escola possa trilhar é valorizar mais a prática da escrita de si, dando oportunidade aos alunos de se singularizarem, tornando-se autores do que escrevem. A partir dessa proposta, é possível trabalhar com o texto dissertativo, ou melhor, de opinião, sem padronizá-lo de tal forma que não possamos vislumbrar marcas de autoria. Afinal, a obrigatoriedade da escrita de textos dissertativos em terceira pessoa, projetando uma suposta imparcialidade do autor, deveria ser coisa do passado nas escolas, haja vista todos os avanços dos estudos lingüísticos, notadamente a partir da década de 60 do século passado, que mostram que a imparcialidade não existe e que todo e qualquer texto é atravessado de subjetividade. Também a prática da escrita da e na internet pode ser um caminho para que a escola amplie horizontes no que se refere às práticas de escrita. Então, em vez de tomá-la como uma inimiga, a internet deve ser encarada como uma aliada no ensino de línguas, especialmente nas práticas de leitura e escrita no espaço escolar. Tanto é assim que o chamado internetês se mostra como um indício de uma mudança na relação com a escrita e o espaço de sua produção. Uma nova tecnologia demanda uma outra relação com a escrita, dado que afeta o modo de as relações sociais se configurarem; essa escrita também apresenta coerções; no entanto, trata-se de coerções diferentes, de outra ordem, já que dependem dos aspectos constitutivos de sua produção. Nesse sentido, não é cabível encará-lo como inimigo. É necessário, no entanto, trabalhar essa diferença de modo produtivo. Se a questão é dar condições de o aluno se tornar autor de seus escritos, é ocasião de fazê-lo.
Referências Bibliográficas AGUSTINI, Carmen & GRIGOLETTO, Evandra. “Escrita, alteridade e autoria em Análise do Discurso”. In: Matraga. v.15, n.22. Rio de Janeiro: UERJ, janeiro/junho 378
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Notas 1 Sobre essa dicotomia, parece importante interrogar-se a quem se endereça a escrita, uma vez que há a impressão de que a escrita não procede inevitavelmente dele se é vista como uma tarefa. 2 Coordenado por Evandra Grigoletto. 3 Dizer que o espaço virtual se opõe ao espaço escolar não significa dizer que aquele exclui este; mas que são diferentes, embora, dependendo das condições de produção da escrita, possam se imbricar. 4 Como há implicação da subjetividade nesses espaços, não há uma divisão estanque das formas de repetição nesses espaços; portanto, tanto no espaço virtual 379
quanto no espaço escolar pode ocorrer as três formas de repetição propostas por Orlandi (1996). 5 Por questões éticas, mantivemos somente as iniciais, tanto do nome da aluna quanto do nome da escola onde ela estuda.
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Exterioridade e Construção Identitária em Pierre Rivière Cleudemar Alves Fernandes (UFU)
a escrita representa o papel de um rito de sepultamento; ela exorciza a morte introduzindo-a no discurso [...] permite a uma sociedade situar-se, dandolhe, na linguagem, um passado, e abrindo assim um espaço próprio para o presente (Michel de Certeau). É consenso entre analistas do discurso que a obra de Michel Pêcheux é marcada por revisões e deslocamentos feitos por ele mesmo e caracteriza-se como um projeto teórico inconcluso. Os apontamentos desse pensador têm eco na atualidade e são sempre revisitados por estudiosos da Análise do Discurso. Inseridos nessa filiação teórica, vislumbramos ecos de Pêcheux consistentemente arraigados nas tendências atuais da Análise do Discurso. Referimo-nos a indicações encontradas em seus escritos, quando assinala as projeções, então atuais, dos estudos do discurso; a saber: “na análise das discursividades, as posições teóricas e práticas de leituras desenvolvidas nos trabalhos de Michel Foucault constituíram um dos signos recentes dos mais claros da projeção da análise de discurso” (PÊCHEUX, 1999, p. 9). A leitura de Michel Foucault para sua articulação na Análise do Discurso apresenta-se amplamente difundida entre pesquisadores e estudiosos dessa área de conhecimento e constitui fecundas abordagens de estudos vigentes. No rastro das discussões arroladas por Michel Foucault e diante da amplitude e complexidade de suas problematizações teóricas, limitaremos nosso estudo às noções de autor e exterioridade, visando a desenvolver uma reflexão sobre a escrita (e não o ato de escrever) como uma exterioridade ao sujeito-autor, cujo efeito constitui-lhe existência como um efeito-sujeito, e até mesmo uma criação de si. Isto, porque entendemos com Certeau (2002) que a escrita fornece a uma sociedade um passado e abre-lhe o presente, ela cria também um futuro. Nesse movimento, constroem-se sujeitos. Considerando a dissociação que Foucault (1992a) faz entre o funcionamento do nome próprio de indivíduo e do nome de autor, não trataremos, obviamente, do sujeito empírico, mas de um efeito-sujeito decorrente/produzido pela escrita. Nossa proposta consiste em uma análise do Memorial de Pierre Rivière sustentada com as noções de exterioridade e autor, em Foucault. Pela recorrência a esses conceitos, focalizaremos não o sujeito autor do texto, ainda que o texto aponte para este 381
sujeito, mas um efeito-sujeito produzido pela escrita. Trata-se da análise de um texto que remete a recortes da vida de seu autor, a partir do qual há, na verdade, a construção de um sujeito pelos discursos materializados em seu próprio texto, e pelos discursos suscitados por essa escrita. Logo, um sujeito reconstruído sempre, exterior e posterior ao texto, deslocado, em torno do qual discursos digladiam.
Exterioridade e autor – balizamentos teóricos Michel Foucault, em seus textos dedicados a reflexões sobre literatura, afirma que no espaço literário há um desaparecimento do sujeito em virtude do (re)aparecimento do ser da linguagem. Esse ser da linguagem, que promove o desaparecimento do sujeito, é pura exterioridade, uma vez que a literatura remete para fora do “eu”. A literatura apresenta-se como espaço exterior, exterior a si, exterior de si, como uma multiplicidade de lugares e de subjetividade que serão sempre (re)duplicados. Pensar a literatura em sua exterioridade, fora de si, como o que promove o ser da linguagem, leva-nos a refletir sobre esse ser produzido fora do texto, mas possibilitado por ele. A partir dessas considerações, podemos vislumbrar sujeitos construídos e reconstruídos como exterioridade ao texto, sujeitos que se dissociam do autor, mesmo quando o texto produzido toma seu autor como objeto de discursividade. Se um texto é redigido em primeira pessoa, ele pode trazer representações que o sujeito faz de si, e representações que esse sujeito faz de suas imagens do mundo que o cerca, e das imagens que ele tem das imagens que os outros fazem dele1. No entanto, o sujeito não é o que é construído como tal no ato da escrita de seu autor, mas se dá por uma exterioridade a esse ato e a essa produção; por representações e construções sociais que serão possibilitadas a partir da escrita; isto porque haverá uma interlocução da escrita com outros sujeitos inscritos em diferentes lugares sócio-históricos. Atestamos com isso que a escrita, tomada como exterioridade, constrói sujeitos, ou faz emergir de si efeitos-sujeito. Se a literatura é linguagem ao infinito, que constrói seu ser, esse ser da linguagem carrega sujeitos construídos por discursos, exteriores e posteriores ao texto; dissociados do sujeito autor. Trata-se de uma exterioridade às representações (nunca coincidentes) que os sujeitos fazem, ou pensam fazer, de suas realidades; como uma interioridade ao exterior. “A literatura [...] é uma linguagem transgressiva, mortal, repetitiva, reduplicada: a linguagem do próprio livro”, como atesta Foucault (2001a, p. 154), considerada como espaço exterior, exterior a si, exterior de si, é também uma multiplicidade de lugares e de subjetividade. Exterioridade, fora de si, como linguagens que apontam para a dispersão e, ao mesmo tempo, para diferentes unidades. “O ser da linguagem não aparece por si mesmo mais do que no desaparecimento do sujeito” (FOUCAULT, 1990, p. 20). 382
A escrita, compreendida como obra de linguagem, avançaria sempre suscitando a reduplicação; a linguagem busca romper o limite da morte, e, pela palavra, constroem-se rastros de identidades perdidas. A linguagem revela palavras que matam, ou fazem morrer, para se viver fora e muito além do texto. Não nos restringido à literatura, mesmo porque não interessa para o momento discutir o ser da literatura, vislumbramos o Memorial tomado para análise como uma escrita, obra de linguagem, que evoca a existência de uma sujeito exterior a si, (re)duplicado sempre, que faz emergir o ser da linguagem. Um texto que fala e é falado por si. Na Análise do Discurso, comumente a exterioridade é, de certa forma, de natureza lingüística, no sentido de remeter aos aspectos históricos, sociais e ideológicos exteriores à língua e que se materializam por meio dela. Tem-se, portanto, por meio da língua em funcionamento, uma materialidade discursiva. Já a noção de exterioridade que colocamos em pauta implica algo externo e posterior ao texto, de contornos indefinidos, mas que lhe possibilita existência. É uma exterioridade marcada por um devir discursivo, que irá construir inclusive sujeito(s) a partir da escrita e de sua articulação no social e na historicidade, constituindo também instâncias sociais e discursivas; remete ao funcionamento e à produção de discursos, e ainda à produção de saber. A noção de exterioridade coaduna com a noção de autor também proposta por Foucault (1992a). Grosso modo, autor pode ser compreendido como aquele que reúne um conjunto de vozes históricas, sociais e ideológicas na produção de um texto. Acerca do autor, Foucault reitera que o sujeito da escrita, pela abertura de um espaço produzido pela obra, está sempre a desaparecer, não se fixa um sujeito numa linguagem ou o exalta pelo gesto de escrever. Há inclusive um parentesco da escrita com a morte pelo apagamento da própria existência do escritor, uma vez que a escrita desencadeia a abertura de um espaço, a partir do qual o sujeito da escrita está sempre a desaparecer. Sabendo-se que o autor é anterior e exterior ao texto, esse apontamento é sustentado pela formulação “que importa quem fala”, buscada em Beckett. A indiferença vislumbrada por essa afirmação é norteada por um princípio ético, por preceito valorativo do que se pode falar e/ou escrever em uma dada época, em dado momento na história. Não obstante, se “o nome do autor não transita, como o nome próprio, do interior de um discurso para o indivíduo real e exterior que o produziu, [...] manifesta a instauração de certo conjunto de discursos [...] no interior de uma sociedade e de uma cultura” (FOUCAULT, 1992a, p. 45-46). Essa afirmação é reiterada por Foucault (2000, p. 26), quando apresenta o autor dissociado do indivíduo que escreveu o texto, como um “princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações”. Em se tratando da escrita, “o autor é aquele que dá à inquietante linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real” (FOUCAULT, 2000, p. 28). Se a escrita promove a morte do autor, conforme assinalamos, ela é também 383
responsável pelo nascimento do autor fora, posterior e além do texto, mas a partir dele. “O nome de autor é um nome próprio” (FOUCAULT, 1992a, p. 42), envolto, em seu funcionamento, por uma significação complexa, que se situa entre os pólos da descrição e da designação. Constrói-se, nesse ínterim, a ligação do nome de autor com o que ele nomeia. Com isso, o nome de autor exerce certo papel nos discursos materializados pela escrita e suscitados por ela. Em torno desse nome, tem-se uma função classificatória e um agrupamento de textos. Como assevera Foucault (1992a, p. 45), o nome de autor caracteriza certo modo de ser do discurso, dissociando-o do cotidiano: “trata-se de um discurso que deve ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura, receber certo estatuto”. E ainda na mesma página, “o nome de autor [...] bordeja os textos, recortando-os, delimitando-os, tornandolhes manifesto o seu modo de ser”. A função atribuída ao nome de autor marca, em nossa sociedade, o tipo de funcionamento e a circulação de discursos a ele correlacionados. Logo, o nome de autor caracteriza um discurso que o porta2; e há, nesse discurso, uma pluralidade de “eus”, diferentes posições-sujeito. Reiteramos que o nome de autor é construído posterior e exterior à escrita. Com isso, à função autor podemos acrescentar as construções imaginárias e as produções identitárias, não fixas, que bordejam seu nome próprio. Acerca da inserção do sujeito no discurso, Foucault (1992a, p. 69-70) interroga: “segundo que condições e sob que formas algo como um sujeito pode aparecer na ordem dos discursos? Que lugar pode o sujeito ocupar em cada tipo de discurso, que funções pode exercer e obedecendo a que regras?”. Michel Foucault apresenta o autor como uma das especificações possíveis da função-sujeito. A noção de autor apresentada por Foucault (1992a, 2000), ao atestar o caráter histórico que a integra e a pluralidade de sujeitos integrantes de uma escrita, tem lugar profícuo na Análise do Discurso. Para a literatura afim, nada melhor foi produzido até o momento, no sentido de problematizar a escrita como o trabalho de um sujeito, cujo nome de autor dissocia-se do indivíduo que escreveu, mas é produzido por discursos exteriores a esse ato. O nome de autor, como um nome próprio, é uma produção discursiva, exterior ao texto, mas assegura-lhe certo estatuto e se correlaciona ao funcionamento de discursos produzidos pela e a partir da escrita. Daí a possibilidade de falarmos em representações imaginárias e construções identitárias do autor pelos discursos que remetem a ele, e pelo estatuto que assegura o funcionamento desses discursos. Esse estatuto sofre alterações, deslocamentos na história, fazendo com que a identidade de um nome de autor, compreendido como uma função-sujeito, não seja fixa, esteja em constante produção, e se transforme em conformidade com o modo de funcionamento dos discursos que remetem a um nome de autor. O autor refere-se a um nome próprio que funciona nos discursos, no sentido de atribuir-lhes certo estatuto. 384
Esses apontamentos teóricos balizarão a leitura que faremos, a seguir, do Memorial de Jean Pierre Rivière.
Pierre Rivière: exterioridade e identidade Atestamos que a escrita, tomada como exterioridade, constrói sujeitos, ou faz emergir de si efeitos-sujeito. O texto, por carregar um nome de autor, ou por remeter a um sujeito e narrar facetas de suas histórias, constrói o sujeito, reduplicado sempre, deslocado, exterior e dissociado do ser empírico que efetuou o gesto da escrita. Assim é que além de literatos, inumeráveis para o momento, construídos após o ato de escrever, quando o texto ganha forma e vida em uma exterioridade longínqua do sujeito que exerceu a função autor, vemos, como aponta Costa (2007), personagens de romances ganharem vida e continuarem tão presentes entre nós. Em meio à inquietação causada por essas reflexões, deparamo-nos com o encanto de Foucault com a efervescência de discursos em torno de Pierre Rivière, a quem dedica uma obra: FOUCAULT (1984). O nome Jean Pierre Rivière refere-se a um jovem camponês, de 20 anos de idade, habitante de Aunay - França, que, em 03 de junho de 1835, assassinou, a golpes de foice, sua mãe grávida de 7 meses, sua irmã de 18 anos, e seu irmão de 8 anos. Nossa abordagem recai sobre um Memorial escrito por ele, quando se encontrava preso, após o parricídio. Esse texto, pelos discursos nele materializados, e pelos discursos produzidos a partir dele, assegura certa existência a esse sujeito. Interessanos justamente o sujeito construído como efeito da escrita, exterior e até mesmo posterior ao texto. O referido Memorial integra a obra Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão (FOUCAULT, 1984), que, produzida sob a coordenação de Michel Foucault, reúne também peças judiciárias, laudos médico-legais, matérias publicadas em jornais da época, e estudos sobre o “caso Rivière”. Os estudos reunidos priorizam o debate instaurado na ocasião desse assassinato entre a justiça e a psiquiatria, mais especificamente a recorrência a esta por aquela. A esse embate praticamente dedica-se a obra; nela encontram-se “discursos concorrentes [...], onde há as histórias concorrentes e justapostas do padre, do policial, do magistrado, e dos psiquiatras, assim como a lúcida afirmação do próprio Pierre Rivière” (MARSHALL, 1999). Discorreremos então sobre discursos que, se matam, tendo a morte também como objeto, fazem nascer e quiçá imortalizam um sujeito chamado Pierre Rivière, porque esse sujeito escreveu, e, por isso, continua sendo reduplicado e sofrendo deslocamentos em constantes construções de si pela exterioridade que o envolve. Talvez, desejamos com Levy (2003, p. 62) “atingir esse ponto, onde só a linguagem age” e corrobora a produção de discursos, sendo a escrita exterioridade de uma 385
linguagem em linha tortuosa estendida ao infinito. Foucault (1984, p. XIV) apresenta-se como tomado por “uma espécie de veneração e também de terror por um texto que devia arrastar com ele quatro mortes”. Pierre Rivière, apreendido por Foucault, não se refere a um sujeito empírico, mas sim a um efeito-sujeito produzido, principalmente, por um memorial que teria sido assinado pelo próprio Rivière. Sujeito efeito de uma escrita, em torno do qual discursos digladiam. O sujeito tomado como efeito-sujeito também não é fixo, tem um caráter de inapreensibilidade e é marcado por movências na história, é deslocado e sofre construções identitárias marcadas por mutabilidade. Eis o que, trazido por Foucault, interessa-nos: produção de discursos, materializados pela escrita, em torno de um acontecimento produzido por esses mesmos discursos, que se opõem e que constroem um sujeito a partir de efeitos desse mesmo sujeito derramados por essa escrita. Foucault (1984, p. XII) propõe-se a “reencontrar o jogo desses discursos, como armas, como instrumentos de ataque e defesa em relações de poder e de saber”. Propomo-nos a encontrar o sujeito construído pelo Memorial que ele mesmo escreveu; um sujeito expresso pelas representações que faz dos outros e com isso diz de si, mostra-se por meio de recortes do mundo – representações imaginárias que o sujeito faz de si e do mundo – e acontecimentos que narra. Jean Pierre Rivière são discursos de reiteração e de enfrentamento à violência e à morte. Esses discursos contemplam uma brutalidade que em muito transcende o ser humano. O horror discursivizado constitui representações que recaem sobre o sujeito Pierre Rivière dando-lhe corpo (figura humana: olhos, rosto, pele...), voz (e movimentos), e uma existência estendida ao infinito em linhas tortuosas. Isto se deve menos a seus atos, e mais à sua escrita. Vida infame de um homem que gira em torno da morte. Com a morte daqueles que assassina, conclama a própria morte. É de si que afirma ser a morte: “Era a mim mesmo que matava [...] eu morro por... meu pai”, afirma em seu Memorial. Todavia, trata-se de ações e dizeres que o levam à transgressão da vida, e a escrita apresentase, também, imbuída do papel de uma confissão, e, como uma construção discursiva, funciona ainda como o que, “ao trazer à luz os movimentos do pensamento, dissipa a sombra interior onde se tecem as tramas do inimigo” (FOUCAULT, 1992b, p. 130). Efeitos escorregadios, fios de um vermelho mercúrio aterrorizante, que banham uma escritura e fazem nascer um sujeito: o degolador Jean Pierre Rivière. Rivière é para o olhar de todos um assassino, para uns louco, para outros o mal encarnado. Eis representações não coincidentes que se fazem desse sujeito, a partir das quais vislumbramos construções identitárias exteriores e posteriores a ele e à sua escrita. Seu Memorial está dividido em duas partes: a primeira destina-se a um relato dos infortúnios que a mãe de Rivière teria causado a seu pai, infortúnios sofridos pelo tão amado pai. Nessa parte, o pai é apresentado como um homem dócil, porém, freqüentemente hostilizado pela mãe, apresentada como cruel, como um monstro. 386
Se Pierre Rivière dedica-se a falar dos outros, e se “o sujeito que fala é o mesmo que aquele do qual se fala” (FOUCAULT, 1990, p. 12), ele fala de representações imaginárias que constrói dos pais e do lugar que o envolve. Sua narrativa caracterizase como representações que fazem dos outros. Essas representações mostram certa inscrição discursiva desse sujeito, totalmente simpático ao pai e avesso à mãe. Antes mesmo de iniciar a primeira parte do Memorial, há uma breve apresentação de Pierre Rivière, que se afirma como o autor da ação que será narrada, apresenta os objetivos dessa escrita, e informa como irá organizá-la. Vejamos algumas ocorrências nos fragmentos abaixo. a) “Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, e querendo tornar conhecidos os motivos que me levaram a esta ação, escrevi toda a vida que meu pai e minha mãe levaram juntos durante seu casamento” (p. 51). b) “Toda essa obra será escrita em estilo muito grosseiro, já que sei apenas ler e escrever” (p. 51).
Nesses fragmentos, notamos a exterioridade atuando na construção da subjetividade do sujeito. Em “a)”, temos o início do Memorial, momento em que Pierre Rivière se apresenta e, sem fazer juízo do ato que cometera, propõe-se a apresentar suas causas e ainda escrever toda a vida dos pais. O uso de “toda”, longe de refletir uma completude do que o sujeito propõe, reflete um recorte: trata-se, na verdade do que está ao alcance do narrador, e, principalmente, das representações imaginárias da relação dos próprios pais para esse sujeito. No fragmento “b)”, Rivière traduz uma imagem de si como sujeito de baixo nível de escolaridade que fará uma escrita grosseira; no entanto, a acuidade de seu texto é considerada por vários estudos reunidos em Foucault (1984) como uma surpresa, mesmo porque era consenso atribuir a Pierre Rivière uma imagem de imbecil e semi-analfabeto. A contraposição do texto (marcado por coerência e clareza) às ações atribuídas ao seu autor antes do assassinato aquece o embate entre psiquiatras, e entre psiquiatras e o magistrado, no que concerne ao diagnóstico de louco ou não. A primeira parte propriamente dita intitula-se “Resumo dos sofrimentos e aflições causadas por minha mãe a meu pai de 1813 a 1835”. Vejamos alguns recortes do que é relatado, seguindo a enumeração dos fragmentos anteriormente iniciada. c) “Nos primeiros tempos de sua união com minha mãe, ele ia freqüentemente visitá-la, mas era por ela recebido com uma frieza que o desconcertava” (p. 54).
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d) “Apesar dos cuidados que meu pai e minha avó tinham com ela, cobria-os de insultos e palavras mortificantes” (p. 56). e) “Minha mãe lhe fazia todas as maldades possíveis” (p. 57). f) “o sr. vigário não fez muita fé no que minha mãe lhe tinha dito” (p. 60). g) “meu pai [...] preparou o porco, era hábito ele levar um pedaço para provar, mas desta vez não levou” (p. 64). h) “minha mãe pensava que iria e viria e recolheria o dinheiro de tudo; ela não se contentava em gozar de sua propriedade toda pronta e trabalhada, mas queria também gerir a de meu pai, e que ele não administrasse nada...” (p. 65). i) “Esse juiz, conversando um dia com meu pai, perguntou-lhe se sua mulher não era de maus costumes, se não tinha outros homens além dele” (p. 74). j) “minha mãe continuou com suas provocações para com meu pai, caçoando da tristeza que o acabrunhava” (p. 83).
Em todo o texto, Pierre Rivière ressalta a conduta do pai, sempre o mostrando como humano, ponderado e amável, ao passo que a mãe é caracterizada por uma monstruosidade, como dotada de uma crueldade sempre visando a atingir o pai. Para reiterar esse posicionamento, encontramos várias vezes a presença explícita de outras vozes sociais manifestando-se em defesa do pai. Essas presenças na voz do sujeito que nos relata, como o vigário e o juiz, respectivamente em “f)” e “i)” acima, têm a finalidade precípua de assegurar a verdade ao que é narrado e à voz de quem narra, uma vez que reiteram o bom caráter do pai em oposição às atrocidades constantemente cometidas pela mãe. A construção do sujeito Pierre Rivière se dá pelas representações que faz dos outros, ele é constantemente povoado pela exterioridade, e sua escrita constrói o sujeito como um ser de linguagem. Usando palavras de Coracini (2007, p.11-17), afirmamos que esse Pierre Rivière construído pela escrita aflora ainda “pela memória que se faz discurso, nas histórias de vida, nas invenções de si” [...] e “o sujeito é uma construção social e discursiva em constante elaboração e transformação”. A exterioridade funciona na construção da subjetividade e corrobora a produção da identidade do sujeito. Nesse sentido, é interessante destacar que em um mesmo momento sócio-histórico, Pierre Rivière ama o pai e guarda um sentimento contrário à sua mãe; ao passo que sua irmã Victoire Rivière, por ele assassinada, ama a mãe e despreza o pai. Na segunda parte do Memorial, Pierre Rivière ocupa-se da narrativa do que ele denomina sua “vida particular e dos pensamentos que até hoje me ocuparam”. 388
Nessa parte, ele narra detalhadamente o planejamento e a execução dos crimes. Os fragmentos seguintes trazem algumas imagens desse sujeito pelas suas próprias palavras. l) “Na minha infância [...] tive uma grande devoção. Isolava-me para orar a Deus [...] Pensava em ser padre e meu pai dizia que me ajudaria a conseguir isso. Decorei sermões e pregava perante várias pessoas” (p.93). m) “gostava muito de ler [...] mesmo se encontrasse um pedaço de jornal que tivesse sido usado eu o lia” (p.93). n) “a paixão carnal me incomodava [...] tinha sobretudo horror ao incesto e isso fazia com que eu não quisesse me aproximar das mulheres de minha família [...] diziam também que eu tinha horror das outras mulheres” (p. 94). o) “Eu crucificava rãs e pássaros, imagina também outro suplício para fazê-los perecer. Consistia em pregá-los com três pregos na barriga, em uma árvore” (p. 96). p) “gostava muito de meu pai, e suas infelicidades me comoviam sensivelmente. [...] Concebi o horrível projeto que executei, pensava nele há mais ou menos um mês. [...] vi meu pai como se ele estivesse em mãos de cães raivosos ou bárbaros, contra os quais eu deveria lutar” (p.96). q) “mas eu só posso libertar meu pai morrendo por ele”. (p. 97). r) “Estava resolvido a matar os três: as duas primeiras por estarem de acordo para fazer meu pai sofrer, e quanto ao pequeno eu tinha duas razões: a primeira por ele amar minha mãe e minha irmã, e a outra porque temia que, se matasse somente as outras duas, meu pai [...] me lastimasse quando soubesse que morrera por ele, eu sabia que ele amava tanto aquele menino que era inteligente, pensava: ele terá tanto horror de mim que se regozijará com minha morte, e por isso ficará livre das lamentações e viverá feliz” (p. 98). s) “Aproveitando essa oportunidade apanhei a foice, e entrei na casa de minha mãe e cometi esse horrível crime, começando pela minha mãe, e em seguida minha irmã e meu irmãozinho, depois redobrei os golpes. [...] Em seguida saí para o pátio e [...] disse-lhes eu, para que meu pai e minha avó não tentem se suicidar, eu morro para devolver-lhes a paz e a tranqüilidade” (p. 103).
Após narrar o crime cometido, apresentado em “s)” acima, Pierre Rivière continua relatando suas andanças durante um mês, período que antecede sua prisão, e seus primeiros dias na condição de presidiário, enquanto encontrava-se em julgamento. Como parte de seus planos, afirmou também em seu Memorial que teria iniciado o 389
relato de suas razões antes do crime, para, assim que o cometesse, levá-lo ao correio e encaminhá-lo ao pai, para em seguida cometer suicídio. Houve a tentativa de escrita conforme planejado, mas não foi bem sucedido nesse empreendimento, o que conseguiu realizar mediante pedido judicial quando se encontrava preso. Os fragmentos anteriormente apresentados mostram a constituição de Pierre Rivière marcada por contradições: manifesta em sua infância o desejo de ser padre e apresenta-se como assassino quando adulto; de leitor ávido é considerado semianalfabeto e imbecil; pelo temor ao incesto, mantinha-se distante de toda mulher; por amor a seu pai, retira-lhe entes queridos; enfim, mata anunciando a própria morte. Eis então que “o sujeito é também alteridade, carrega em si o outro, o estranho, que o transforma e é transformado por ele” (CORACINI, 2007, p.17). Com isso, essa escrita oferece-nos construções imaginárias de um sujeito fragmentado, heterogêneo, cuja construção, a partir do texto que escreve, será duplicada e transformada como uma exterioridade ao texto. Vemos nesses fragmentos uma pluralidade de sujeitos próprios à constituição discursiva de Pierre Rivière. Esses “eus” dissociam-se do sujeito empírico e corroboram a construção de um sujeito autor, que carrega um nome próprio. Correlato a esse nome de autor, visualizamos, explicitamente, os deslocamentos, as movências, e a pluralidade da identidade, sempre em construção, que ele carrega. Como exterioridade à escrita, ao nome Pierre Rivière atribuem-se construções identitárias caracterizadas como aterrorizantes. Para uns, ele é visto como um bruto; para outros como um louco. O funcionamento da escrita como exterioridade ao sujeito que corrobora construções identitárias que lhe são atribuídas é atestado pela presença do verbo “degolar” no título da obra que lhe é dedicada. Esse verbo é empregado pelo próprio Pierre Rivière quando inicia seu Memorial e diz da ação que cometera. “Eu, Pierre Rivière que degolei minha mãe...” (“Moi Pierre Riviere, ayant egorgé ma mère...”). Dessa construção verbal feita pelo sujeito para dizer de si surge o substantivo “degolador” como um elemento identitário que aponta para Rivière. Essa produção de identidade é possibilitada pela escrita, mas se dá exterior e posterior a ela. Com o crime cometido, Rivière parece devolver a sua mãe toda a brutalidade que ela estende a seu pai, quem ele ama. Com a ação do crime, deposita no sentimento de uma sociedade uma experiência do exterior, algo horripilante para o qual, por meio de evocações divinas e de apelos a recursos legais, todos deveriam se voltar e combater, para manter fora da subjetividade de toda a sociedade.
Considerações Finais Uma das funções da escrita, conforme atesta Foucault (1992b), é de um operador da transformação da verdade em ethos, compreendendo verdade como decorrente de uma posição sujeito, produzida histórica e socialmente. Trata-se de “reunir aquilo 390
que se pôde ouvir ou ler, e isto com uma finalidade que não é nada menos que a constituição de si” (FOUCAULT, 1992b, p. 137). Ainda nos valendo das palavras desse pensador, observamos pela clareza, pela coerência e organização do texto de Pierre Rivière, aspectos reiterados pelos estudos que o envolvem3, que “a escrita [...] é um exercício de razão que se opõe à [...] agitação do espírito, à instabilidade da atenção, à mudança das opiniões e das vontades, e conseqüentemente, à fragilidade perante todos os acontecimentos que possam ter lugar” (FOUCAULT, 1992b, p. 139). Daí, alguns médicos psiquiatras se valerem do Memorial para atestar a sanidade mental de seu autor. A unidade assegurada no texto de Pierre Rivière corrobora também a heterogeneidade de discursos nele materializados; atesta o exterior funcionando na construção da subjetividade desse sujeito; é o exterior que o move e o leva a sua dupla autoria: a do assassinato e a do texto. Se o papel da escrita é construir um corpo, esse texto constrói um sujeito exterior àquele que efetuou o gesto da escrita, sempre duplicado, reduplicado, e deslocado pelas interlocuções que estabelece. Se, por um lado, a escrita carrega representações imaginárias que o sujeito escritor faz de si e de sua existência real; por outro, ela desencadeia inúmeras representações que os interlocutores possíveis, de seus lugares socioculturais, históricos e ideológicos, fazem do sujeito que o texto carrega. No Memorial de Pierre Rivière, o espaço próprio da linguagem é distribuído por duas grandes categorias: a transgressão e a morte. Intrínsecas a essas categorias, encontram-se a afetividade e a brutalidade. No entanto, a escrita é uma forma de resistência à morte, pois se o Memorial serve a uma instância jurídico-institucional, à qual Pierre Rivière encontra-se submetido, ele é também uma forma de resistência, pois permite a esse sujeito colocar-se como uma compensação à perda, e, pela escrita, manter-se vivo. Pierre Rivière se oferece, pela escrita, como um prêmio ao seu pai; e pela escrita, o autor está renascendo sempre. Todavia, entremeando essas questões, se se deseja um curso sereno à vida, a morte, quando não interrupção, é invasão.
Referências CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. CORACINI, Maria José. A Celebração do Outro Arquivo, Memória e Identidade. CAMPINAS: Mercado de Letras, 2007. COSTA, Hermes Honório. E Aquelas Mãos que Confessam. In: FERNANDES, Cleudemar Alves; SANTOS, João Bôsco Cabral. Percursos da Análise do Discurso no Brasil. São Carlos: Claraluz, 2007. p. 163-176. FERNANDES, Cleudemar Alves. Literatura em Foucault: infinita exterioridade. In: __; SANTOS, João Bôsco Cabral. Análise do Discurso: objetos literários e midiáticos. Goiânia: Trilhas Urbanas, 2006. p.15-24. 391
FOUCAULT, Michel (Coord.). Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Trad. de Denize Lezan de Almeida. Rio de Janeiro: Graal, 1984. ______. O Pensamento do Exterior. São Paulo: Princípios, 1990. ______. O Que É um Autor?. Lisboa: Passagem, 1992a. ______. A Escrita de Si. In: __. O Que É um Autor?. Lisboa: Passagem, 1992b. p. 129-160. ______. A Vida dos Homens Infames. In: __. O Que É um Autor?. Lisboa: Passagem, 1992c. p. 89-128. ______. A Ordem do Discurso. São Paulo: Layola, 2000. ______. Linguagem e Literatura. In: MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001a. p. 139-174. ______. A Linguagem ao Infinito. In: MOTTA, Manoel Barros (org). Michel Foucault Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001b. (Ditos & Escritos. v. III) p.45-59. GREGOLIN, Maria do Rosário. Foucault e Pêcheux na Análise do Discurso diálogos e duelos. São Carlos: Claraluz, 2004. LEVY, Tatiana Salem. A Experiência do Fora Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. MARIGUELA, Adriana Duarte Bonini. A Emergência do Autor Pierre Rivière. In: Educação Temática Digital, Campinas, v. 8, n. esp., jun. 2007. p. 227-249. MARSHALL, Jim. Foucault, Ciência e Educação. University of Auckland: Encyclopedia of Philosophy of Education, 11/10/1999. In: http://www.ffst.hr/ ENCYCLOPAEDIA/foucault.htm. Consulta feita em 06/10/2007. PÊCHEUX, Michel. Sobre os Contextos Epistemológicos da Análise de Discurso. In: Escritos, nº. 4, Campinas: Nudecri, 1999. p. 7-16.
Notas 1 Na verdade, esta observação não se limita à escrita em primeira pessoa. Mesmo com o uso da terceira pessoa, o sujeito que escreve pode trazer representações imaginárias que faz de si e do mundo que o envolve. 2 Foucault (1992a) enumera quatro características diferentes no que concerne ao autor de texto/livro: 1) o livro é objeto de apropriação; 2)não se exerce de forma universal e constante, ou seja, sofre alterações de natureza histórica; 3) não se trata da atribuição de um discurso a um indivíduo. Resulta de “uma operação complexa”; 4) não reenvia para um indivíduo real, mas implica vários “eus”, várias posiçõessujeito. Com isso, Foucault (1992a) não ignora a existência de autor em outros “objetos”, que não texto/livro. 3 Sobre a originalidade da escrita de P. Rivière, Foucault (1984, p. XV) assevera: “reconstruímos o texto, a ortografia e a pontuação do manuscrito”. 392
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Escrita de si, assinatura e criatividade1 Maria José Coracini (Unicamp)
Objetivando problematizar as noções de autoria, efeito-sujeito e escrit(ur)a, proponho realizar um percurso sobre a escrita – insólito e produtivo ao mesmo tempo. Apoiando-nos no pensamento de Foucault e de Derrida, passaremos rapidamente por algumas noções psicanalíticas pelo viés teórico de Freud e Lacan, cujas concepções, de alguma forma, atravessam o pensamento dos dois filósofos e nos colocam diante de problematizações que nos interessam para a compreensão da escrita. Inicialmente, cabe explicitar o uso da palavra escritura, neste texto, embora criticado por alguns estudiosos, dentre os quais Rego 2006: 16), por constituir um galicismo. Optei, entretanto, pelo uso do termo grafado com parênteses - escrit(ur) a -, para marcar que a escrita, em seu significado comum de ato de escrever, de escrita visível, grafada em alguma superfície (papel, parede, tela, quadro-negro etc.), está imbricada e se (con)funde na escritura (termo usado por Derrida), que traria em seu bojo a idéia de escrita psíquica ou, melhor dizendo, de escrita do e no inconsciente, escrita que remete a letra, que remete a traço, que, por sua vez, remete ao Real, retornando, portanto, ao inconsciente, que, assumimos a partir de Lacan, se estrutura como uma linguagem. Na esteira de Derrida (1967c), não faço distinção entre os dois processos – como o fazem tanto Freud quanto Platão: escrita hipomnésica e escrita da alma ou escrita psíquica –, postulando que não há escrita que não seja marcada, tecida, pela subjetividade e, portanto, pelo inconsciente. Considero, ainda, apoiada em Derrida que a escrit(ur)a ultrapassa as bordas (sem bordas) da linguagem escrita (visível ou psíquica) e engloba também a linguagem falada, pois há escrita (de si) e, portanto, assinatura, na fala. Em vez de conceber a escrita como forma de comunicação como o outro – forma essa recusada pelos três estudiosos que servem de base para este estudo – ou como meio de interagir com o outro, que se encontra distante, ausente, interessa-nos abordá-la – ou bordá-la – nas bordas da escrita de si como forma de se dizer, ainda que fragmentária e incompletamente, talvez a única maneira, como diria Lacan, de nos constituirmos sujeito. Foucault, por exemplo, em seu texto sobre a escrita de si (1983), considera-a, ao mesmo tempo, como forma de resistência e de submissão ou assujeitamento, pois vários são os casos estudados por ele em que a escrita (visível, grafada na exterioridade do sujeito que é, sempre e inevitavelmente, também e a um só tempo, interioridade – ex-scripta e in-scripta -, escrita e inscrita) acontece em decorrência 393
da imposição de uma autoridade – soberano ou juiz – que, ao pretender obter, por escrito, a confissão necessária para o exercício do seu poder – socialmente legitimado, diga-se de passagem – permite, sem o querer, que o sujeito construa para si e para os outros, uma identidade. Ilusão ou sentimento de inteireza, de totalidade, a identidade confere àqueles que se encontram à margem da sociedade, vislumbrarem para si um lugar no mundo: indivíduos desconhecidos, vivendo no anonimato, infames, no duplo sentido que Foucault (1977/ 1992) confere ao termo – sem fama e difamados pelo crime que cometeram – dão-se a conhecer pela escrita, a quem quiser lê-los e a si próprios, construindo uma história de si, inventada, engendrada, com elementos da vida (história, passado interpretado) e da ficção, que se cruza com aqueles, através de gestos de interpretação, na busca de justificativas plausíveis para os crimes cometidos. Isso ocorreu, por exemplo, com Pierre Rivière (Foucault, 1973), que viu em seus atos criminosos uma missão salvífica: salvar o pai das garras torturantes de sua mãe. Ao narrar, pela escrita, a sua história – tarefa que lhe foi imposta pelo soberano –, Rivière confessa que pretendia escrevê-la antes do crime. Mas, não houve tempo hábil para tal: viu-se tomado pela necessidade de agir diante das atitudes hediondas de sua mãe e de sua irmã que a defendia, posicionando-se contra seu pai. Não posso deixar de conjecturar: teria Rivière chegado às vias de fato se tivesse feito conforme planejara? Lançadas no papel, suas fantasias se materializariam e, talvez, satisfeito, Pierre pudesse perceber o absurdo de seu projeto. Seja lá como for, diante do relato e do plano de escrever o crime antes mesmo de praticá-lo, redigido com tamanha propriedade e correção, poderíamos nos perguntar se a história narrada seria, de fato, o romance de uma vida que, construída no próprio processo de escrita, se deu a conhecer a si mesmo e aos outros, concretizando a famosa frase popular “Minha história daria um romance” (Khel, 2001) ou se se trata de uma ficção (romance?) posto em prática. Pouco importa! É através dessa con-fusão entre história e ficção que se torna possível compreender como procede a memória e, consequentemente, a escrita de si. Muitos outros exemplos poderiam ser aqui trazidos com o intuito de mostrar a função da escrita como um modo de construção do eu, antes ignorado, marginalizado, mas também como a possibilidade de tornar visível uma habilidade, um conhecimento ou um saber, que foi se construindo à medida que os traços se fazem letras e estas, palavras, frases, textos –, sempre escritura de si e do Outro que, embora fragmentariamente, emerge pela porosidade da língua. Um exemplo interessante é o do ensaísta Henry David Thoreau, cujo ensaio “Desobediência Civil” pode ser considerado como um discurso fundador (Foucault, 1969/1992). Alguns críticos literários consideram essa obra como a bíblia dos libertários e dos movimentos separatistas (cf. Wikipedia). O curioso é que o autor escreveu tal ensaio 394
enquanto se encontrava preso por sonegação dos impostos que julgava abusivos. Lacan (1971-1972 / 2003:19) também se pronuncia a respeito dessa função da escrita, ao revelar a sua importância na constituição de seus pensamentos que vão se construindo no próprio ato, ao mesmo tempo gesto de interpretação, de organização e de construção de algo anteriormente inexistente. Lacan afirma que a escrita [é] um fato que, pelo menos para mim, é quando eu escrevo que eu encontro alguma coisa. Isso não quer dizer que, se eu não escrevesse, nada encontraria. Mas, enfim, eu talvez não fosse capaz de perceber o que encontrasse.
Não que o escrito seja uma garantia contra a deformação da memória. Esta, viva, em permanente movimento de retorno a um passado que, ilusoriamente, acreditamos inalterável, fixo no tempo e no espaço, se reescreve a cada gesto de interpretação, “tornando a tarefa de apurar “a verdade” impossível” (Rego, 2006: 131), ou melhor, tornando impossível a tarefa de apurar até mesmo “uma” verdade (pois, para os três intelectuais aqui trazidos, não existe a verdade, mas verdades construídas – social ou individualmente). Pelo contrário, tanto quanto a memória, que podemos considerar como uma escrita psíquica, o escrito (visível) – “como se fosse uma parte de meu aparelho mnêmico, que sob outros aspectos, levo invisível dentro de mim” (Freud: 1924 [1977, p. 285) –, “padece das mesmas vicissitudes [...]: estará entregue à leitura que repetirá eternamente, como um eco, a deriva do sentido” (Rego, 2006:131). Portanto, toda narrativa, ou como prefere Khel (2001), todo romance de si é ficção e memória, não uma ou outra, mas uma e outra, memória que se dá sempre a posteriori, e que, ilusoriamente, se apresenta estável na instabilidade do momento, na impossível fixidez do eu que, heterogêneo, constituído do/pelo outro, é apenas processo e movimento. Tal constatação remete a Derrida (1972/1991: 47]) que, inspirando-se em A Farmácia, de Platão, define a escrit(ur)a como phármakon: ao mesmo tempo remédio e veneno ou droga2. Remédio, porque significa a permanência do dizer, e veneno, porque sob o pretexto de suprir a memória, a escritura faz esquecer ainda mais; longe de ampliar o saber, ela o reduz. Ela não responde à necessidade da memória, aponta para outro lado; não consolida a mnéme, somente a hupómnésis3. Ela age, pois como todo phármakon.
Sabemos que, na Antigüidade greco-latina, a presença dos interlocutores era fundamental para o exercício da memória (cognitiva) e para a garantia da permanência da verdade: só face a face, pela linguagem oral, era possível “conduzir” o interlocutor à verdade. Ora, a escritura – ou o pharmakon –, contrária à vida, apenas desloca e irrita o mal” (Derrida, 1972: 47): ao receber de presente os textos escritos de seus discursos proferidos oralmente, o rei fica indeciso com relação ao 395
que fazer: aceitá-lo ou recusa-lo; afinal, a escritura é eternização de sua palavra feita discurso, mas é morte, porque ficará à deriva, como um barco em mar aberto, sem pescador, sem condutor: in absentia, sua palavra receberá tantos sentidos quantas forem as leituras. A escrit(ur)a se apresenta, assim, como remédio para a fugacidade do tempo, para o esquecimento, e como veneno para a garantia da verdade e, portanto, para a defesa do sentido desejado (intencionado) pelo “autor”, que, diante de um mal-entendido, não poderá defender “a sua verdade”. Platão revela, como que por denegação, nessa obra - considerada menor pelos filósofos metafísicos -, que a linguagem não é transparente e que, portanto, o sentido não está atrelado à palavra: não é apenas múltiplo, mas está à deriva. A citação acima referida sugere que a escrit(ur)a não substitui a memória; antes, a transforma ao (re)interpretar, ou melhor, ao reescrever algo que, por estar esquecido, é trazido à lembrança, que, aliás, é sempre marcada pelo esquecimento. Mas, a autoria, segundo Foucault (1969), é uma função jurídica, na medida em que responde, em Direito, pelos escritos que, tornados públicos, levam a sua assinatura. Com tal afirmação, o filósofo questiona a autoria enquanto inspiração individual e propõe que nenhum texto é obra de um único indivíduo (in-diviso), mas resulta de um entorno social ou de uma subjetividade – sempre híbrida, constituída pelo(s) outro(s), atividade, ao mesmo tempo social e singular, já que o modo como se organiza o já-dito confere, ou não, à obra o estatuto de criativa. Quanto mais se der a ler, quanto mais prenhe de sentidos e de possibilidades de leituras – dilacerando, acrescentando, refutando – mais a obra será produtiva ou, como diria Derrida, mais será original, no sentido de que daria origem a discursividades outras, a (re) leituras, a (re)inscrições infinitas de leitores e de leituras, garantindo, assim, a sobre-vida da obra e do autor, na sobre-vinda de sentidos outros, dis-seminados, tal qual sementes, sem que nada e ninguém os possa controlar, a não ser o grupo social ou a formação discursiva (Foucault, 1969, que compreendo como discurso em formação) – responsável pela regulação e pela ordem do discurso –, em que se inscrevem seus leitores, num dado momento histórico-social, num dado espaço geográfico, que delimita sem limitar os sentidos e os aspectos lingüístico-culturais – discursivos – colocados em prática. É preciso considerar que a escrit(ur)a envolve tanto o ato de escrever quanto o gesto de leitura, ambos reunidos na mesma teia que tece os sentidos. Sem contrariar Foucault, Derrida assume que o efeito de subjetividade (termo que os dois filósofos preferem a sujeito4) resulta da própria da escritura, que, na différance (diferença e adiamento do desejo, a um só tempo)5, não se reduz à linguagem escrita nem se limita ao corpo lingüístico (Derrida: 1992: 33): falar, ensinar são também formas de escritura, de inscrição de si (Derrida, 1992: 211), ainda que se tenha de obedecer a normas que regulam cada tipo de texto. Ambos admitem a retomada do 396
já-dito ou do mesmo que se cruza com o novo, o jamais dito, o diferente, na medida em que a situação de enunciação é sempre outra, em que a subjetividade daquele que enuncia está em constante mutação, inscrevendo no velho a sua singularidade, a sua marca, o(s) seu(s) traço(s). Por isso mesmo, toda escrita busca uma assinatura, expressão de singularidade e de responsabilidade política; mas, essa assinatura pode “dissimular uma outra assinatura, a assinatura de um outro ou de uma outra, mais poderosa, mais arguta, mais velha, pronta para todos os golpes e todos os nomes”6 (Derrida, 1992:33). Essa idéia remete – sem igualar – à noção de poder e de autor como função jurídica (Foucault, 1969/1992), problematizando a noção de autoria como origem ilusória de um texto e postulando a intertextualidade, ou melhor, a heterogeneidade do texto, resultante da (re)organização de outros textos, de outros discursos, do já(mais)-dito, do mesmo e do diferente, do velho que se faz novo a cada situação de enunciação (Foucault, 1971). Na entrevista intitulada “Le presque rien de l’imprésentable”7, Derrida (1982/1984) explica que podemos “abrir e generalizar o conceito de escritura, estendê-lo até à voz e a todos os traços de diferença, todas as relações com o outro”8 (p.89). Vale compreender que a différance só se manifesta deixando um traço, traço de vida, que não seria um signo nem um significante ou qualquer coisa que “se pudesse dizer “presente” ou “ausente”, mas apenas um traço. Esse traço – interno, invisível (inconsciente, escondido) e, ao mesmo tempo, externo, já que um se imbrica no outro – constitui a escrit(ur)a. Assim, não haveria sociedade sem escritura, isto é, sem marca genealógica, sem marca de sua história, sem arquivação etc. Do mesmo modo, não haveria sujeito sem arquivo do inconsciente (Derrida, 1995): a memória ou escritura invisível, que Freud denominou escrita psíquica, seria esse arquivo. Aliás, segundo o filósofo francês, nem uma sociedade animal existiria sem traço, sem marcação territorial... Esses traços ou rastros, embora desprovidos de sentido, carregam formas de singularidade, na medida em que servem para marcar diferenças, inscrever modos de ser e de ver o outro, de se ver e de se ver no outro. De certo modo, pode-se dizer que o traço unário de que fala Lacan, é responsável pelas marcas, que se imprimem no corpo e nos atos de cada um, determinando sua especificidade, sua diferença. Lacan se refere aí à estrutura psíquica que Derrida, com razão, parece questionar na defesa da constante mutação, da impossível delimitação que apontaria para uma certa fixidez, que o próprio Lacan abandona na terceira fase de sua obra (Rego, 2006). Aliás, é preciso lembrar que Lacan reconhece que “o inconsciente é estruturado como uma escrita de traços que não cessa de não se ler, mas que, paradoxalmente, só revela sua estrutura pela escrita” (Rego, 2006:177). O mesmo e o diferente que, segundo Derrida, caracterizam toda escrit(ur)a, cujos traços constituem, como apontamos acima, o arquivo do inconsciente, apresentamse para Lacan, segundo a leitura que faço de seus textos, como a possibilidade de 397
certo deslocamento em relação ao sintoma que remete à repetição: no final da análise, por meio da transferência, é possível ao sujeito tornar-se poeta, fazendo de seu sintoma um uso diferente, ou melhor, transformando o sintoma, que se caracteriza por sua reincidência, em algo produtivo para si e para os outros. Já que não é possível livrar-se da falta, das falhas, da impossível realização do desejo, oculto ao próprio sujeito, mas que nele trabalha incessantemente, só resta a este o que Freud denominou sublimação, buscando suprir no trabalho científico, no trabalho intelectual, na religião, na arte, na literatura (portanto, na escrita) a falta constitutiva de todo sujeito. Compensação que não anula a falta, mas a torna suportável e até instigante, porque a escrita – como, aliás, as outras formas de arte – concilia o princípio de prazer com o princípio de realidade, possibilitando ao artista dar vazão aos seus desejos mais eróticos e ambiciosos (Freud, 1908). Lacan, no Seminário 17, se pronuncia a esse respeito referindo-se à “criatividade”: deslocamento de sintomas singulares, seguido de um trabalho com a letra – borda do que não cessa de não se escrever, letra que “cai” do significante e se torna resto (objeto a)–, com o significante ou com o(s) traço(s); letra – essência do significante, tanto quanto o traço unário (Rego, 2006: 186) – que atravessa o corpo, modifica-o, deixa marcas e se manifesta em obra de arte, em produção que se dirige ao outro, promovendo deslocamentos em si e no outro: obra, na qual o sujeito se diz e não apenas diz, se inscreve e não apenas escreve. Seria isso fazer da vida uma obra de arte ou da obra de arte a própria vida, como sugeriu Foucault (2004), para escapar dos agenciamentos, das tecnologias que se inventam para moldar o eu, sem que disso o indivíduo se aperceba? Ora, os agenciamentos – que agem de fora para dentro do sujeito, de modo que o fora é também o dentro e vice-versa – apontam sempre para relações de poder que, disseminadas por toda a microfísica social, se caracterizam pela mobilidade, reversibilidade e instabilidade, mas também pelo desejo de controle. Mas, para Foucault (1979), só há relações de poder se os indivíduos forem livres, não no sentido de uma liberdade absoluta, impossível, embora almejada, mas no sentido de que poderão, a qualquer momento, reagir, resistir, mudar o rumo daquilo que estava planejado; se isso não ocorrer, afirma Foucault, encontramo-nos na presença de um estado de dominação, o que acontece “quando as relações de poder são fixadas, perpetuamente dessimétricas e a margem de liberdade é extremamente limitada” (Foucault, 1984: 277). Mas, ainda assim, segundo o filósofo e historiador francês, haverá a possibilidade da greve, da revolução, da luta parlamentar, no caso da dominação política, ou, no caso da dominação conjugal, a fuga, o divórcio e, em casos extremos, até o suicídio poderá constituir uma forma de resistência. Ou, por que não, a escrita, a escrita de si como o fez Pierre Rivière, responsável pela construção de um eu, de uma identidade que cria, como decorrência, um efeito de subjetividade? Para Michel Foucault e para Derrida, o sujeito é efeito de um processo que se dá na relação com o outro, 398
no contexto social, através de certo número de práticas, isto é, de jogos de verdade9 - que definem a cultura e/ou a ideologia de um grupo –, que o fazem agir, reagir, interagir, ver o mundo de uma determinada maneira e não de outra. Relação com o outro que é sempre permeada, atravessada, constituída por relações de poder-saber (Foucault, 1979). Lacan define também o sujeito como efeito, mas do significante - um significante representa o sujeito para outro significante10 -, já que se trata do sujeito de linguagem, postulando também a alteridade, uma vez que o sujeito se constitui no outro e pelo outro (estádio do espelho: Lacan, 1949/1998), com cujos traços pode se identificar; sujeito que se constitui à medida em que se submete à linguagem, ao Outro do inconsciente. Colocando-se, tanto quanto Derrida (1967a), numa posição crítica com relação ao eurofonocentrismo, Lacan afirma que a leitura – não-linear – precede a escrita, já que é preciso que alguém confira sentido às palavras para que o texto tenha existência, e que a escrita não é um instrumento nem um acréscimo nem um complemento da oralidade; a escrita opera uma metamorfose na palavra oral, transformando-a em outra coisa que a afasta de sua condição primeira, qual seja a de reconhecer, nessa coisa nova, a estranheza de algo desconhecido, mas que é, ao mesmo tempo, familiar (Machado, 1998), dando lugar ao que Freud denominou unheimliche (o estranho-familiar ou o familiarmente estranho). Tanto quanto Derrida, Lacan defende a legibilidade como a mais importante característica da escrita: as imagens – sejam as das telas de vídeo e de computador ou aquelas produzidas pelos sonhos – são sempre visuais, materializadas e, como tal, se dão a ler, para que existam e ganhem sentido. Além disso, a escrit(ur) a inconsciente, que transborda, podendo se tornar parcialmente visível, graças à porosidade da língua (Authier-Revuz, 1998), permite a transformação, pois é capaz de suportar o apagamento, a rasura. Rasura que Derrida (1967b) propõe como a única possibilidade de permanência (em paradoxal movimento) de toda escrit(ur)a: cicatriz, marca, traço indelével sobre o qual outros traços se superpõem sem que se apaguem totalmente os anteriores, tal como o pergaminho, o palimpsesto ou a cera dos blocos mágicos (referindo-se a Freud). É aí que se encontra o poder subversivo da escrit(ur)a: ao mesmo tempo em que as palavras permanecem, elas – a escrit(ur) a e, com ela, as palavras, a letra, o traço – podem sofrer rasuras, apagamentos, transformações. Do mesmo modo, o significante, desprovido, vazio de sentido11 tanto quanto a letra e o traço, pode, ele também, ser apagado ou barrado, ou melhor, o que foi recalcado – censurado pela cultura, posto de lado – constitui uma operação de apagamento que conserva e guarda intacto, ao mesmo tempo em que promove ilusoriamente o seu desaparecimento (Machado, 1998). Machado (1998: 250) conclui que “a escrita, pelos artifícios que ela permite operar, é, para o inconsciente, ao mesmo tempo, a técnica de recalcamento e de revelação”. Mas a escrita strictu sensu tem outras funções: como afirma Barros (2007: 175), 399
“escrever impõe algum domínio sobre o real, se não impedindo pelo menos nos auxiliando a elaborar a situação traumática, refazendo os acontecimentos até o ponto em que deixamos por conta do outro a continuidade da reflexão”. O leitor tem, assim, a oportunidade de, ao se solidarizar com o autor, insatisfeito com a renúncia à realização pulsional, imposta pela cultura e civilização, encontrar, tanto quanto ele, um meio de construir identificações e, assim, tecer com as palavras as bordas do vazio, da falta constitutiva. Mas, o escrito pode, também, exibir contradições, como ocorre, com certa freqüência, com a ciência (Goody, 1979), contradições nas experiências científicas, contradições em nós mesmos, de outro modo elididas pela tendência a um estado consciente, logocêntrico e, portanto, marcado pela racionalidade. Escrever tem, assim, a grande função de ajudar a nos conhecer e a conhecer os outros, embora sempre fragmentária e parcialmente. Esse exercício remonta, como sabemos, à Antigüidade grega, embora esta cultivasse a consciência e a perfeição. Finalmente, vale lembrar que os três intelectuais concebem a escrit(ur)a como uma espécie de arquivo (não apenas inconsciente): arquivo da civilização, permitindo a conservação e a transmissão de dados e informações através do tempo e do espaço, mas, ela é também o que da linguagem é passível de apagamento ou de rasura. O arquivo, responsável pela memória social, é também parcial, fragmentário e orientado por interesses, por relações de poder. Voltemos, por mais um instante, nosso olhar para os ensinamentos de Lacan, no que diz respeito à identificação (que é sempre identificação ao traço) e ao sintoma, na tentativa de fazer surgir a função primordial da escrit(ur)a ou de qualquer obra de arte. Como o inconsciente é inacessível à investigação direta, ele só se presentifica fragmentariamente, pelos atos falhos, pelo equívoco da língua que, porosa, permite que algo do Real, da verdade do sujeito – verdade que ele não sabe que sabe – transborde e se faça sintoma. Para Lacan, é possível alcançar uma identificação que preserve certa distância, ou certo deslocamento em relação ao sintoma, mudando a relação do sujeito com a repetição, e, no final da análise, com a ajuda do analista ou de outro sujeito-suposto-saber (por meio da transferência) é possível, a partir de seu sintoma, o sujeito tornar-se poeta ou artista, o que remete à sublimação em Freud: se, no início, o sujeito é usado pelo “saber fazer” do sintoma, onde isso goza sem que ele saiba, no final, resta-lhe a possibilidade de “saber fazer” com ele, isto é, de, cada vez que o sintoma se repete, fazer dele um uso diferente, fazer algo com a letra (significante-mestre – S1) do sintoma (Lacan, (1964/1998).
Alguns alinhavos... Os ensinamentos dos três intelectuais, que têm servido de base para nossas pesquisas há vários anos, permitiu-nos problematizar as noções de escrita, de autoria e, conseqüentemente, de sujeito. Cada qual à sua maneira – alguns imbricamentos ficam perceptíveis, assim como diferenças –, defendem a idéia de que a escrita 400
visível não é técnica que se aprende como se nada tivesse a ver com o sujeito, como se nada tivesse a ver com a linguagem, como se fosse apenas uma questão de língua e de organização que segue as convenções em vigor num dado momento históricosocial, como se escrever fosse um ato consciente e estivesse sob o controle daquele que escreve, incluindo aí o que se chama escrita criativa ou “original”. O que esses intelectuais nos ensinam – e que, quero crer, foi ressaltado neste texto – é que a escrit(ur)a é tecida pelos fios da subjetividade, de modo que o sujeito se inscreve – ainda que não o queira – nas letras (sinais gráficos), nas palavras, que pensa escolher e colher segundo uma lógica racional, enfim, no texto que é sempre tessitura, tecido, levando-nos a questionar a objetividade, a isenção e a presentificação do texto científico, bem como o controle dos efeitos de sentido do dizer, de uma língua que se quer transparente e unívoca. Seus ensinamentos permitem-nos, ainda, vislumbrar como se dá o que o senso comum costuma chamar de “criatividade” ou “originalidade” que, afinal, nada mais é do que o deslocamento de sintomas singulares (sinthoma, cf. Lacan, Seminário 23), seguido de um trabalho com o significante (a letra) – com o que do real excede – que passa pelo corpo, modifica-o e se manifesta (dá-se a conhecer pela interpretação) em obra de arte ou em produção em que o sujeito se diz e não apenas diz, se inscreve e não apenas escreve12. E o sujeito – efeito do encontro do corpo com alíngua (“lalangue”, significantes que excedem, não formam sistema ou estrutura e, portanto, não fazem sentido para o eu) – goza desse trabalho que preenche ou supre, ao menos por um momento, o furo, a falta constitutiva ou permite a ilusão desse (im)possível suplemento. E, ao mesmo tempo, se oferece ao outro como dádiva, capaz de proporcionar prazer e fazer laços: para alguns, o único modo de ser o desejo do outro. Finalmente, eles nos ensinam que não existem as dicotomia oralidade/escrita, escrita / leitura, assim como não existe a dicotomia escrita psíquica e escrita visível, já que uma constitui a outra, num entrelaçamento que questiona o sistema de oposições tão do agrado da epistemologia ocidental de que somos herdeiros. É Foucault (1983/2004: 156) que, com suas reflexões sobre a correspondência pessoal, nos leva a concluir que escrever é [...] “se mostrar”, se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro[,] (...) ao mesmo tempo um olhar que se lança sobre o destinatário (...) e uma maneira de se oferecer ao seu olhar através do que lhe é dito sobre si mesmo.
Escrever é, como diria Derrida (1992; 2004), responsabilizar-se, colocando no corpo do texto e no corpo próprio sua assinatura.
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Notas 1 Agradeço a Eliane Righi e a Juliana Santana Cavallari pelos comentários e contribuições à escrit(ur)a deste texto. 2 Droga, termo que se liga etimologicamente a drogaria (ainda hoje, farmácia) – remédio e veneno – e que, de algum modo, tem a ver com drogas alucinógenas, na medida em que estas, também, constituem ilusoriamente remédio para os males e insatisfações da vida e trazem, ao mesmo tempo, conseqüências desastrosas para o corpo (e mente) daquele que as consome. 3 Mnéme remete a lembrança e hupómnésis, a uma espécie de caderneta individual de notas, “exercícios de escrita pessoal”, que consistiam numa maneira de reter as leituras, o ensino e a escuta do dia, usadas pelos estóicos e epicuristas, como guia de conduta. Os hupomnemata não constituem, portanto, uma narrativa de si mesmo (Foucault, 1983 / 2001: 147-8). 4 Aliás, cabe observar que Lacan , 1969-1970 / 1992: 11]) define o sujeito como efeito entre significantes. 5 Différance, como se sabe, é um termo criado por Derrida para, de um lado, chamar a atenção sobre a grafia (a em vez de e, em francês) e, de outro, sobre os vários sentidos presentes (e ausentes) num mesmo vocábulo. Neste caso, trata-se de guardar o 403
sentido de diferença, de heterogeneidade, sem que seja oposicional, e de adiamento (diferimento): um significante remete a outro significante, numa cadeia infinita, de modo que nunca chegaremos a um sentido final, acabado, fixo. Este sentido – ideal ou idealizado – se acha para sempre diferido, adiado. Assim se pronuncia Derrida (2001/2004: 33-34) a respeito: “a différance não é uma distinção, uma essência ou uma oposição, mas um movimento de espaçamento, um “devir-espaço” do tempo, um “devir-tempo” do espaço, uma referência à alteridade, a uma heterogeneidade que não é primordialmente oposicional. Daí uma certa inscrição do mesmo, que não é idêntico, como différance. Economia e aneconomia ao mesmo tempo Tudo isso era também uma meditação sobre a questão da relação do significado com o significante (e, portanto, de uma certa lingüística saussuriana como dominava, em sua forma esquemática e freqüentemente simplificada, muitos discursos da época). Mais adiante, prossegue: “Différance quer dizer simultaneamente o mesmo (o ser vivo diferido, continuado, substituído por um suplemento vicariante, por uma prótese, por um supletivo no qual aflora a ´técnica´) e o outro (absolutamente heterogêneo, radicalmente diferente, irredutível e intraduzível, o aneconômico, o todo-outro ou a morte). A interrupção diferancial é ao mesmo tempo reinscrita na economia do mesmo e aberta a um excesso do todo outro.” (p. 56) 6 Tradução minha. 7 O quase nada do impresentável (trad. minha). 8 Tradução minha. 9 Segundo Foucault (1984/2004a: 282]), trata-se de um “conjunto de regras de produção da verdade, não um jogo no sentido de imitar ou de representar...; é um conjunto de procedimentos que conduzem a um certo resultado, que pode ser considerado, em função de seus princípios e de suas regras de procedimento, válido ou não, ganho ou perda”. 10 O verbo ‘representar’ não tem o sentido de substituir x por algo semelhante, mas o que é representado (o sujeito) não é senão um efeito efêmero da passagem de um significante a outro, retirando da representação toda idéia de profundidade e de presença. 11 Em L’ecriture et la différence (p.22), Derrida afirma que “Escrever é saber que o que não foi ainda produzido na letra não tem outra morada, não nos espera como prescrição [em algum lugar] (...) ou algum entendimento divino. O sentido deve esperar ser dito ou escrito para se habitar e tornar-se o que a diferir de si ele é: o sentido”. Mais adiante na mesma página, Derrida continua: O sentido não existe nem antes nem depois do ato [de escritura]” (tradução minha). 12 Ler também, a esse respeito, Foucault (1983). Para compreender essa afirmação no discurso de professores, remeto a Eckert-Hoff, 2004.
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• A ESCRITA E A REESCRITA: OS GESTOS DA FUNÇÃO-AUTOR-LEITOR Eliane Marquez da Fonseca Fernandes (UFG) ...o comentário não tem outro papel (...) senão o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro. Deve (...) dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito. Michel Foucault, A Ordem do discurso.
A busca da interpretação Partimos da consideração de que o texto escrito, como objeto de interpretação, não é uma unidade fechada e, muito menos, um produto acabado, mas um trabalho lingüístico e discursivo, processado por um enunciador num jogo que envolve escolhas, negociações de sentido e re-elaborações. Desse modo, entendemos que o ato de redigir um texto leva o autor a deixar marcas discursivas inscritas em sua materialidade para serem interpretadas pelo “outro” leitor. Neste artigo, nosso objetivo é lançar um olhar investigativo sobre textos produzidos, em situação escolar, para tentar vislumbrar como atua o aluno-autor ao agenciar saberes na ação de produzir a materialidade discursiva e, num segundo gesto, reler e reescrever seu produto. Nossa reflexão recai sobre a noção de autoria para sondar os procedimentos de escrita e de reescrita, processados por estudantes da última série do Ensino Médio. Esses jovens, ao realizarem o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), em alta percentagem, têm sido avaliados como fracos nas habilidades de produção textual. Outros pesquisadores como Lemos (1983), Britto (1985), Geraldi (1985 e 1986) e Barros (2002) ecoam a crítica de que os textos escolares apresentam circularidade de raciocínio e abuso do lugar-comum. Sentimos a necessidade de tentar interpretar como o texto do estudante organiza sua discursividade. O aluno, na posição de autor, vislumbra seu interlocutor-leitor? O aluno-autor consegue alçar-se ao lugar de leitor de seu próprio texto? A troca de papéis entre autor e leitor permite alterações positivas na reescrita? Para tanto, tomamos como linha teórica a Análise do Discurso originada na França a partir de concepções delineadas por Bakhtin, Pêcheux e Foucault. Em Bakhtin (1995 e 2000), fomos buscar os conceitos de língua como o lugar da ideologia, do dialogismo e da atitude responsiva ativa. Em Pêcheux (1990), recolhemos a noção de interpretação de redes de sentido, geradas em dadas condições de produção, sem perder de vista a idéia de interdiscurso. Em Foucault (2006), temos a reflexão sobre a 405
função-autor como as relações de um sujeito submetido a regras sociais na circulação e funcionamento dos discursos. Essas linhas discursivas serão retomadas no decorrer do artigo para proceder à investigação de algumas das possibilidades interpretativas de uma unidade, como o texto, que pode sempre ter sentidos outros. Justamente porque “os sentidos estão sempre ‘administrados’, não estão soltos” (ORLANDI, 2002, p. 10).
Os já-ditos teóricos Nossa investigação toma o texto escolar como um processo discursivo no qual o sujeito, tocado pela história, situa-se na necessidade de construir sentidos. A partir de Bakhtin (1995, 2000), compreendemos que o texto do aluno, como todos os acontecimentos sociais, está historicamente entrelaçado a outros acontecimentos e que sua produção é fruto da comunicação humana, estabelecendo um diálogo em continuidade ininterrupta. Por isso, vemos que o texto escolar não existe desconectado do ambiente educacional ou da complexidade das relações fora da escola. Assim, a teoria acerca do dialogismo se estabelece como forma de inter-relação entre os humanos e todo dizer desencadeia uma atitude responsiva ativa, isto é, toda e qualquer fala ou texto é uma réplica a algo que os precede. O professor entende que os alunos, por meio da linguagem, estabelecem uma interação socialmente organizada e estão construindo formas de dizer direcionadas a um interlocutor previsto. O exercício escolar não é o resultado de uma criatividade subjetiva, mas é a permuta de idéias e de ideais partilhados socialmente. Dessa maneira, o estudante está, historicamente, inserido numa época e em grupos sociais que lhe oferecem um conjunto de formas discursivas. Essas discursividades refletem posturas ideológicas da sociedade nas quais se inscreve o produtor do texto. Segundo a filosofia bakhtiniana, a consciência, não se fundamenta em aspectos fisiológicos ou biológicos, mas nos fatos sócio-ideológicos, por isso a linguagem não é só o reflexo do mundo. O aluno, nem sempre, tem a compreensão de que os dizeres refratam as verdades, isto é, distorcem-nas, dessa forma, produz um texto marcado pelo que acredita ser o “real”. Ao colocar sua produção no espaço da contradição, o estudante não percebe que a ideologia fala por meio de suas palavras mesmo que haja marcas de heterogeneidade. A partir de Pêcheux (1990), entendemos que os papéis sociais desempenhados pelo aluno incidem sobre os efeitos de sentido construídos num texto. Esses sentidos estão envolvidos numa complexidade, pois o texto escolar não se circunscreve a uma percepção prevista do sentido das palavras, mas é o resultado das relações socialmente dispostas na memória discursiva do contexto em que vive esse jovem. Cada produtor de um texto só pode falar do lugar que 406
ocupa no discurso, isto é, as formulações de um estudante não se ligam apenas a escolhas segundo regras da língua, mas envolvem um conjunto de valores inscritos no interdiscurso. Desse modo, um dizer escolar está sempre marcado pelas condições de produção que circundam o texto, assim encontramos marcas indicadoras do interdiscurso tanto no processo de produção quanto no de leitura. Com isso, devem ser consideradas as formações imaginárias que o aluno tem em relação a si mesmo, em relação ao interlocutor, bem como em relação aos papéis desempenhados por si no evento comunicativo da avaliação escolar. O estudante não tem clareza de que todos os dizeres estão interligados a enunciados já-ditos anteriormente e que o falante, embora inserido numa memória discursiva e numa formação ideológica, tem a ilusão de ser a fonte do sentido. Para Foucault (2002a), todo enunciado faz parte de um conjunto de outros enunciados, portanto o texto do aluno está como que imerso em campos enunciativos com relações no passado ou no futuro. No caso do texto escolar, não podemos perder de vista que todo enunciado supõe uma série de discursos que coexistem em torno dele, não é apenas um exercício com finalidade específica. Esse exercício é um acontecimento irrepetível porque está situado socialmente e mantém marcas da singularidade do aluno num conjunto de regularidades discursivas. Em A ordem do discurso (2006), o filósofo afirma que a produção de discursos sofre controle por três tipos de mecanismos: (1) Os procedimentos externos podem realizar uma interdição, uma exclusão ou uma força de verdade para controlar o que se diz ou se escreve. Assim o aluno, submetido a normas escolares e a relações sociais e políticas, já tem conhecimento do que pode e do que deve ser dito na atividade escrita que desenvolve. (2) Os procedimentos internos podem monitorar os dizeres por meio do comentário, da autoria ou da disciplina. Dessa forma, o estudante submetese às concepções educacionais de autoria, aos comentários do corretor bem como às exigências da disciplina pedagógica. (3) Os procedimentos de circunscrição dos falantes podem exercer controle por meio de rituais, de grupos fechados ou de princípios específicos. Entendemos que o texto produzido na escola está ligado, ainda, a determinados rituais de avaliação que atuam como princípios organizadores.
Em O que é um autor? (2002b), Foucault discute a relação do texto com o autor, aquela figura humana, que se colocaria exteriormente ao produto escrito, responsável pelo que é dito. A autoria não é mais vista como uma marca de individualidade, mas é concebida como uma função de forma que o texto nunca reenvia o interlocutor para o escritor, nem para o momento da produção, “mas 407
para um ‘alter-ego’ cuja distância relativamente ao escritor pode ser maior ou menor” (p.55). O professor-leitor não percebe o estudante como uma voz individualizada, mas como um educando a ser observado e controlado. O nome do aluno-autor exerce um determinado papel discursivo e, na representação desse papel, dessa função, o jovem conduz escolhas, faz cortes e delimitações, imprimindo ao texto o seu modo de ser. “uma certa quantidade de discursos são providos da função ‘autor’, ao passo que outros são dela desprovidos. (...) A função autor é, assim, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade.” (FOUCAULT, 2002b, p.46).
Entender a autoria como uma função nos leva a relacionar as escolhas promovidas pelo aluno-autor a uma apropriação de textos do interdiscurso em gestos de seleção ou no estabelecimento de oposições. Assim, a função autor atua como um “princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência.” (FOUCAULT, 2006, p.26). No trabalho escolar, o alunoautor não é o sujeito jurídico e institucional matriculado na escola e proprietário do texto, assim como não é o discípulo que, no papel de aprendiz, é responsável pela autenticidade de um exercício obrigatório, mas é um “eu” que congrega uma pluralidade de vozes em dispersão. Esses “eus” não se distribuem uniformemente, colocam-se de modos diferentes tanto na posição desempenhada quanto em seu funcionamento e, também, podem dar lugar a outros “eus” enunciadores. A escola como parte das instituições sociais, não se situa isolada dos discursos que permeiam, historicamente, a sociedade, está povoada de rituais da palavra, de grupos doutrinários e da apropriação de discursos que estabelecem um controle sobre os professores e sobre os estudantes. Para Foucault, “O que é um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra; senão uma qualificação e uma fixação de papéis para os sujeitos que falam; senão a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso; senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes?” (FOUCAULT, 2006, p. 44-45).
Temos que considerar que o ponto de interrogação empregado aí é mero recurso retórico, o que observamos na citação acima é a afirmação de que a escola controla a apropriação de discursos. De fato, o texto produzido como atividade escolar é regido por um conjunto de forças, embora, quase sempre, essas formas de controle não sejam levadas em conta no processo avaliativo. Acreditamos que o denominado “fracasso da redação” esteja ligado exatamente às práticas educacionais que adotam a atividade de escrita como um exercício disciplinar com finalidade avaliativa. O aluno 408
perde de vista o interlocutor como um sujeito socialmente constituído, tem como objetivo a nota e exerce a sua função autor muitas vezes de modo descuidado.
O autor-leitor O aluno, na função autor, agencia seus saberes em operações específicas e complexas do redigir, atendendo a um feixe de controles discursivos. O estudante submete-se a procedimentos de escolha e procede a uma organização controlada discursivamente. Na visão bakhtiniana, os textos se constroem dialogicamente em relação a outros, por isso “todo autor é sempre um leitor que se apropria de textos para compor um novo texto formado por descontinuidades e por dispersões” (GREGOLIN, 2001, p. 65). Isso ocorre porque o sujeito produtor do discurso incorporou vozes já legitimadas pela sociedade, essas vozes não são absorvidas de modo organizado, mas vêm permeadas por contradições e dispersões. Com isso, vemos que o texto escolar, criticado negativamente por ser uma “colcha de retalhos” de lugares comuns, carrega vestígios da materialidade do interdiscurso, não é criação original da mente estudantil. Conforme Gregolin (2001, p.65), “Toda produção de textos é, por isso, um processo que se realiza por um gesto de organização de discursos, retirados do passado, da tradição. Por estar ligado, assim, a uma memória discursiva, esse gesto se define pelo que inclui e pelas suas faltas. Incluindo e excluindo, fazendo recolhas, o autorleitor executa operações que regulam a escrita e constroem um novo objeto de leitura, com sua nova organização de espaço e de tempo.”
A exigência de originalidade, por parte do aluno, na produção do texto escolar, insere-se em uma contradição perversa. Ora, se texto escolar, ou melhor, qualquer texto, se constrói a partir da organização de escolhas sobre a memória discursiva, não há como conceber a possibilidade de um estudante escapar à noção de autoria foucaultiana. O trabalho escrito do aluno, fatalmente, inscreve-se em operações controladas discursivamente e, ao exercer a função de autor, não se posiciona diferentemente de qualquer outro autor. Para Gregolin (2001, p.65), “Quando o autor lê o trabalho do outro e produz um novo texto, ele explicita sua relação com um saber, criando o espaço de uma ‘representação’, de uma figuração em que ocorre a substituição de um trabalho de lacuna por uma presença de sentido. Ao inscrever sua leitura no texto, o autor se mostra como sujeito de um fazer e traz o corpo para a fala enunciadora. Nesse sentido, o autor-leitor se inscreve como corpo e como palavra enunciadora. A análise das organizações do sentido implicadas nessas operações interpretativas pode revelar o lugar de onde esse autor-leitor fala, pois seus recortes são feitos em 409
um tecido de tradição.” (grifos nossos).
Conforme as posturas pêcheutianas, o contexto discursivo insere marcas específicas no texto. Assim, o texto escolar não atua de modo diferente, a produção do aluno deixa evidentes indícios dos papéis desempenhados pelo estudante e pelo professor no ambiente educacional institucionalizado. Com a finalidade de exemplificação, observamos dois textos (escrita e reescrita) de um mesmo aluno da última série do Ensino Médio, produzido no mês de agostoo de 2004.discursivo insere marcas Conforme as posturas pêcheutianas, contexto específicas no texto. Assim, o texto escolar não atua de modo diferente, a produção do deixa evidentes indícios dos papéis desempenhados pelo estudante e pelo Oaluno exercício da função autor professor no ambiente educacional institucionalizado. Com a finalidade de exemplificação, observamos dois textos (escrita e reescrita) de um mesmo aluno da do Ensinopelo Médio, produzidoé no mês de agosto dede 2004. Oúltima temasérie proposto professor acompanhado uma coletânea (proposta
em anexo) que questiona as concepções acerca do valor do dinheiro em nosso meio O exercício da função autor social. Esse aluno estuda em um colégio de classe média em Goiânia e a carência O tema proposto pelo acompanhado uma coletânea (proposta econômica não o oprime, masprofessor há um éconflito entredevalores monetários concretos e em anexo) que questiona as concepções acerca do valor do dinheiro em nosso meio valores abstratos como amor, honestidade, respeito, tranqüilidade, saúde. A proposta social. Esse aluno estuda em um colégio de classe média em Goiânia e a carência evidencia imagem que mas o professor faz doentre aluno, poismonetários o pressupõe comoeum jovem econômicaa não o oprime, há um conflito valores concretos valores abstratos como amor, honestidade, respeito, saúde. APedagogicamente, proposta que valoriza o consumo, mas não despreza os tranqüilidade, valores humanos. evidencia a imagemde queque o professor faz do aluno, pois questionamento o pressupõe como um jovem eque tem a expectativa o estudante faça um crítico espera que, valoriza o consumo, mas não despreza os valores humanos. Pedagogicamente, tem a como autor,deelequesaiba expor faça as contradições ideológicas. A pergunta da proposta expectativa o estudante um questionamento crítico e espera que, como “Afinal, tudo que aso contradições dinheiro compra é barato?” quer desencadear uma reflexão autor, ele saibaoexpor ideológicas. A pergunta da proposta “Afinal, tudo o que dos o dinheiro compra é barato?” quer desencadear reflexão dos valores acerca valores pessoais do aluno. A temáticauma sugere queacerca os objetos têm um preço pessoais do aluno. A temática sugere que os objetos têm um preço e as pessoas também. e as pessoas também. Mas, implicitamente, o discurso Mas, implicitamente, apresenta o discurso ambíguoapresenta de que o dinheiro compraambíguo tudo que de que o dinheiro é baratoé ecaro, o que não pode ser comprado é caro, valioso. é barato ecompra o que nãotudo pode que ser comprado valioso. 1ª versão cri
a ganância
25/08/2004
Toda pessoa que tem dinheiro quer ter sempre mais, não se contentam com o que tem como se o que tivessem fosse pouco. Um bom exemplo disso são os políticos. Os salários deles são o que diríamos elevadíssimos que “compraria” qualquer nível de vida e eles são os mais corruptos e mais ladrões que qualquer pessoa de uma favela que rouba pela fome. O dinheiro é necessário, não se pode negar, tudo depende dele, a alimentação, saúde, transporte, diversão, mas para que ter rios e rios de dinheiro, porque não se contentar apenas como o necessário para ter uma vida boa, tranqüila, saudável, sem abusar dos outros pra cada dia ter mais. É um fato de que pessoas ricas de mais, não todas mais a maioria, são hipócrita e gostam de humilha os mais humildes. E fica a pergunta: - Será que compensa poder comprar tudo e ser infeliz? A reflexão é fundamental para isso.
Deparamo-nos, com um acúmulo de formasintensificadoras intensificadoras como a Deparamo-nos, na versãona1,versão com 1, um acúmulo de formas como a reiteração da palavra “mais”, além dos termos “elevadíssimos”, “tudo depende reiteração daepalavra “mais”, além dostudo”. termos “tudo depende dele”, dele”, “rios rios”, “maioria”, “comprar A “elevadíssimos”, seleção insere um discurso que “rios e rios”,um “maioria”, A seleção insere um discurso que estabelece estabelece efeito de “comprar dissidência tudo”. entre “os vorazes X os frágeis”. As hipérboles geram umadeintensificação aspectos negativos Xdoos dinheiro, no As estabelecimento um efeito dissidênciados entre “os vorazes frágeis”. hipérboles de geram uma uma fronteira maniqueísta entre “bons X maus”, entre “a ambição X os valores intensificação dos aspectos negativos do dinheiro, no estabelecimento de uma abstratos”. Esse discurso dual reproduz o senso comum do contexto social que não entende fronteiras diluídas. A função autor repete, num eco de sua memória discursiva, a cisão entre os aspectos negativos e os positivos 410 como se o dinheiro não pudesse conviver com outros valores. O aluno-autor parece apagar a própria voz ao reproduzir o discurso dominante de que “dinheiro não traz a felicidade”. Consideramos que isso se deve à formação imaginária que construiu acerca do discurso escolar ou religioso. Esse
fronteira maniqueísta entre “bons X maus”, entre “a ambição X os valores abstratos”. Esse discurso dual reproduz o senso comum do contexto social que não entende fronteiras diluídas. A função autor repete, num eco de sua memória discursiva, a cisão entre os aspectos negativos e os positivos como se o dinheiro não pudesse conviver com outros valores. O aluno-autor parece apagar a própria voz ao reproduzir o discurso dominante de que “dinheiro não traz a felicidade”. Consideramos que isso se deve à formação imaginária que construiu acerca do discurso escolar ou religioso. Esse apego ao politicamente correto está fundado na imagem que o aluno-autor faz de seu interlocutor. Percebemos a formação imaginária do leitor conservador que visualiza: o professor. Pior: escreve para um interlocutor-avaliador, trabalha para persuadir um professor idealizado, “armado” com uma caneta vermelha. A adesão a esse juízo de valor apaga a marca singular do aluno, pois, na função autor, julga que o poder do discurso dominante parece ser mais forte que o seu próprio. Ao desempenhar o papel de um aprendiz da produção textual, não confia em suas próprias idéias para convencer o leitor, assim eclipsa as vozes que valorizam a moeda. Essa postura é muito comum em qualquer situação escolar brasileira, pois o poder do professor-leitor leva o estudante a simular valores com os quais não comunga totalmente. Embora a proposta apresentada direcione o educando a escrever para um leitor virtual, o aluno-autor não perde de vista a situação concreta na qual produz o texto e as formações imaginárias que construiu. Tem presente que está fazendo uma atividade escolar, que a situação vivida é uma simulação e que o leitor a quem se dirige faz uma avaliação de suas habilidades e concepções. O jovem quer ser aprovado, quer ser aceito, logo registra não o que pensa, mas o que imagina que o outro pensa. Ao simular essa adesão, mimetiza a voz da tradição, faz um arremedo do que considera a voz do outro/leitor. Temos, no desfecho da 1ª versão de CRI: “E fica a pergunta: - Será que compensa poder comprar tudo e ser infeliz? A reflexão é fundamental para isso.” Por que o alunoautor pede mais reflexão para um problema que, à primeira vista, parece simples? Essa última sentença permite-nos dizer que há uma abertura para uma outra visão do problema. A necessidade de se “refletir” mais sobre o fato lança uma insegurança em relação a outros efeitos de sentidos a serem apresentados sobre a questão do dinheiro. A 1ª versão, entregue no dia 25/08/2004, foi avaliada e depois de três dias devolvida, a partir daí, aluno decidiu, por conta própria, refazer o texto.
A função-autor-leitor O autor-leitor de outros textos, agora, assume um novo papel: a de leitor-avaliador de seu próprio produto. Nessa atitude, depara-se com a formação imaginária que faz de si mesmo, percebe a artificialidade da posição tomada, dialoga com 411
insegurança em relação a outros efeitos de sentidos a serem apresentados sobre a questão do dinheiro. A 1ª versão, entregue no dia 25/08/2004, foi avaliada e depois de três dias devolvida, a partir daí, aluno decidiu, por conta própria, refazer o texto. a função-autor-leitor
seus enunciados e com sua memória discursiva. leitor, observa, O autor-leitor de outros textos, agora, assume um Na novoposição papel: a de de leitoravaliador de seu próprio produto. Nessa atitude, depara-se com a formação imaginária criticamente, os efeitos produzidos por suas próprias palavras e isso o leva a uma que faz de mesmo, percebe a artificialidade posição tomada, dialoga com seus revisão desiseu próprio papel como autor. da A releitura provoca um distanciamento da enunciados e com sua memória discursiva. Na posição de leitor, observa, criticamente, função autor e o conduz uma avaliação da posição leitor. Segundo Garcez (1998), os efeitos produzidos por suas próprias palavras e isso o leva a uma revisão de seu a releitura ao aluno-autor encarar o texto comodaum “objeto” e próprio papelpermite como autor. A releitura provoca um distanciamento função autor distanciado eo conduz uma avaliação da posição leitor. Segundo Garcez (1998), a releitura permite ao uma reavaliação dos papéis discursivos ali impressos. O trabalho de reler permite aluno-autor encarar o texto como um “objeto” distanciado e uma reavaliação dos papéis ao aluno-autor fazer novas intervenções em seu projeto de dizer e a realimentar as discursivos ali impressos. O trabalho de reler permite ao aluno-autor fazer novas formações em discursivas. O dizer jovem diálogo discursivas. como o próprio intervenções seu projeto de e apromove realimentarum as formações O jovemtexto, joga promove diálogo texto, jogaalterações. com os papéis de leitor e de autor e faz com os um papéis de como leitoroepróprio de autor e faz alterações. Na 2ª versão, os caminhos trilhados pelo aluno parecem se abrir para uma seleção Na 2ª versão, os caminhos trilhados pelo aluno parecem se abrir para uma mais próxima da suadasubjetividade contraditória. AsAs escolhas seleção mais próxima sua subjetividade contraditória. escolhasexecutadas executadas permitem interpretar que o enunciador é capazéde perceber o maniqueísmo comocomo problemático. permitem interpretar que o enunciador capaz de perceber o maniqueísmo problemático. Surpreendemo-nos pela organização lingüística indica a presença de de um autor Surpreendemo-nos pela organização lingüística queque indica a presença um autor que reflete sobre suas escolhas. que reflete sobre suas escolhas. 2ª versão cri
sabe usar!
s/d
Que o dinheiro é fundamental não se pode negar. Quem vai ao supermercado sem dinheiro, ou se veste sem tê-lo? Ninguém, ele é inevitável. O mundo de hoje, ou melhor, as pessoas de hoje no mundo extremamente capitalista querem mais e mais sem se contentar com o suficiente para ter vida boa e tranquila. Os que tem pouco, sabe das dificuldades, da falta que ele faz e feliz é aquele que sonha em crescer, em ter condições melhores de vida e não em ter rios e rios de dinheiro. E os que o tem com fartura querem cada vez mais acumular bens, cédulas nos bancos, não importa o que tem que fazer ou por cima de quem tenham que passar. Um bom exemplo disso são os políticos, seus salários estão extremamente superior ao de trabalhadores comuns e mais extremo ainda que aquele que ganha salário mínimo, com ele já podiam levar uma vida super tranquila e até mesmo luxuosa e por incrível que pareça são os que mais (robam) roubam e roubam milhões que são por direito daqueles que realmente trabalham, pagam seus impostos para ter direitos no país e porque políticos que são “representantes” do povo fazem isso?! porque querem mais e mais. O dinheiro em mãos erradas ou nos pensamentos de pessoas erradas para gerar conflitos, mortes e guerra como no caso dos Estados Unidos atacar o Iraque e os conscientes sabem que a única razão foi o poder que é gerado pelo dinheiro, aqui pelo petróleo que vale muito. A conclusão que se pode tirar é que o mundo está com problemas que está devido a cabeças egoístas e gananciosas que estão no poder e até mesmo “do nosso lado”.
Essadenominada versão denominada “Sabe usar!”relativiza relativiza ootítulo da versão anterior Essa versão “Sabe usar!” título da versão anterior “A “A ganância”. A alteração estabelece uma mudança de ponto de vista do aluno-autor. ganância”. A alteração estabelece uma mudança de ponto de vista do aluno-autor. Os efeitos de sentido da 2ª versão nos levam a perceber uma tentativa de aproximar-se Osoutro-leitor. efeitos de Asentido da 2ªemprego versãodonos levam aeperceber uma tentativa de aproximardo opção pelo imperativo o reforço de entonação emotiva dado ponto de exclamação são escolhas casuais. A busca de um indica se dopelo outro-leitor. A opçãonãopelo emprego do imperativo e odiálogo reforço de entonação uma tentativa de aproximar-se Assim, as não escolhas função autor deixam emotiva dado pelo pontododeleitor. exclamação são daescolhas casuais. A busca de surgir uma nova voz que questiona os limites rígidos entre as ideologias, pois insere a um diálogo indica uma tentativa de aproximar-se do leitor. Assim, as escolhas da possibilidade de convivência entre os discursos do dinheiro e da felicidade. No percurso função autor deixam surgir uma nova voz que questiona os limites rígidos entre temático, o primeiro título traz o discurso do pessimismo e da infelicidade, mas o segundo título considera que o “uso” envolve responsabilidade. Esse título deixa as ideologias, pois insere a possibilidade de convivência entre os discursos do implícita conciliação dinheirotemático, e felicidadeo se houver sabedoria no uso. dinheiroa idéia e da de felicidade. Noentre percurso primeiro título traz o discurso do Dessa forma, o efeito responsivo ativo obtido descarta a conotação de o dinheiro ser um pessimismo e da infelicidade, mas o segundo título considera que o “uso” envolve fenômeno apenas negativo. responsabilidade. Esseem título deixa a idéia de conciliação entre O efeito autor diálogo comimplícita o efeito leitor conjuga vozes num jogo de dinheiro e “discordâncias X concordâncias”. peloforma, menos,o três linhas discursivas felicidade se houver sabedoriaVemos no uso.que, Dessa efeito responsivo ativo obtido apresentam exemplos expressivos na 2ª versão. A primeira linha contempla o discurso “necessidade X ambição” nas seguintes escolhas lexicais: “é fundamental”, “é 412“ter rios e rios de dinheiro”. Essas inevitável”, “querem mais e mais sem se contentar”, opções parecem introduzir uma fissura no discurso. A segunda linha discursiva opõe “riqueza X pobreza” nos termos: “os que têm pouco”/“sonha em crescer” X “os que o
descarta a conotação de o dinheiro ser um fenômeno apenas negativo. O efeito autor em diálogo com o efeito leitor conjuga vozes num jogo de “discordâncias X concordâncias”. Vemos que, pelo menos, três linhas discursivas apresentam exemplos expressivos na 2ª versão. A primeira linha contempla o discurso “necessidade X ambição” nas seguintes escolhas lexicais: “é fundamental”, “é inevitável”, “querem mais e mais sem se contentar”, “ter rios e rios de dinheiro”. Essas opções parecem introduzir uma fissura no discurso. A segunda linha discursiva opõe “riqueza X pobreza” nos termos: “os que têm pouco”/“sonha em crescer” X “os que o tem com fartura”/“acumular bens” muito ligado aos arquétipos sociais. Na terceira linha, evidencia-se o discurso das injustiças opondo “aproveitadores X prejudicados” por meio de uma crítica: “seus salários [dos políticos] estão extremamente superior” ou “roubam milhões” X “trabalhadores comuns” ou “ganha salário mínimo”. O percurso temático sofreu modificações em relação ao discurso da infelicidade trazida pelo dinheiro. Não há mais uma conexão precípua entre dinheiro e hipocrisia ou abuso de poder. Desde o primeiro parágrafo, deparamo-nos com um questionamento acerca das oposições em relação ao valor do dinheiro. Esse metal não é visto como causa/efeito de negatividade, mas como ponto de ambigüidade. Insere-se uma fissura no discurso da negatividade, passa-se à reflexão: “O dinheiro é imprescindível para viver, traz dificuldades a quem não o possui e há pessoas que são capazes de tirar o que é devido a outrem.” Ao praticar a releitura do texto, o autor questiona as certezas e imobilidades desses princípios e personifica uma voz mais ambígua ao duvidar de que se pode viver sem o dinheiro. Na 2ª versão, o enunciador pressupõe que seu leitor o observa e o julga por meio de suas escolhas. Por isso, faz opções que considera mais convenientes para evitar arquétipos condensados no discurso dos “vorazes X fracos”. Apreende-se o discurso da “necessidade financeira X a perda dos valores abstratos”. Há, portanto, um deslocamento de postura quanto à ambição e à necessidade. Essa 2ª versão mostra uma ênfase na necessidade do dinheiro. O aluno teria mudado de opinião entre a 1ª e a 2ª versão? Ou teria apenas deixado a sua voz aparecer? Não cremos que tenha ocorrido uma mudança de postura ideológica tão radical repentinamente. Consideramos que os efeitos de sentido obtidos indicam uma libertação dos limites que o aluno julga serem do professorleitor e percebe que há outros leitores para seu texto. Isso contribui para um trabalho de responsividade mais efetiva: a apresentação de conceitos menos rígidos acerca dos valores sociais que estabelece para si e para o outro como ser humano. O alunoautor aproxima-se do aluno-leitor, amadurece a percepção acerca da mobilidade dos discursos contraditórios. Percebe que o posicionamento submisso da 1ª versão não atingiu o seu objetivo de captar a simpatia do leitor-professor. Essa mudança no comportamento discursivo é primordial para o conhecimento das habilidades de escrita que precisa desenvolver. O aluno não mudou as próprias concepções, apenas 413
trabalhou o texto com uma responsividade aberta a muitos leitores virtuais.
A escrita e a reescrita: uma dimensão pedagógica A releitura da 1ª versão e o julgamento da função autor permitem uma abertura na vontade de verdade da voz do aluno. No seu gesto de autoria, entende o produto como propriedade sua, sente-se autorizado a fazer as alterações que considera necessárias. É a esse gesto que denominamos função-autor-leitor, primordial para haver um amadurecimento da relação do aluno com o texto. Cada escolha realizada pelo aluno-autor reflete uma relação de contigüidade entre o sujeito criador e o objeto de sua criação e refrata os sentidos que considera imprescindíveis no diálogo autorleitor. Esse autor que representa a si mesmo numa percepção negativa em relação ao dinheiro na 1ª versão, ao fazer a revisão, dialoga com seus próprios princípios. O insucesso atribuído ao aluno-autor nos textos escolares nada mais é do que o poder distorsivo das formações imaginárias nos gestos da função autor. Quando o estudante assume a função-autor-leitor de seu próprio texto, procede a uma revisão da autoria executada anteriormente, de modo a reinterpretar seus dizeres e efetuar novas escolhas significativas. Desse modo, o jovem se constitui como sujeito e como autor ao proceder uma reinterpretação da função-autor, inserindo-se no processo histórico da construção do outro-leitor. O trabalho de escrita e reescrita permite uma vivência da própria individualidade, uma compreensão mais profunda das estratégias textuais como objeto simbólico e um desenvolvimento das habilidades do manejo da língua.
Referências BAKHTIN, M. /VOLOCHINOV. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do Método Sociológico na ciência da linguagem. Traduzido por M. Lahud e Y. F. Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 1995. BAKHTIN, M. A estética da criação verbal. Traduzido por M. E. Galvão e G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BARROS, D. L. P. Estudos do texto e do discurso e questões de ensino no Brasil. In: VALENTE, A. (org.) Aulas de Português: perspectivas inovadoras. 5. ed. Petrópolis: Vozes. 2002. p. 101-112. BRITTO, L. P. L. Em terra de surdos-mudos – um estudo sobre as condições de produção de textos escolares. In: GERALDI, J. W. (org.). O texto na sala de aulaleitura e produção. 2. ed. Cascavel: Assoeste, 1985. p.109-120. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de L. F. B. Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002a. FOUCAULT, M. O que é um autor? Tradução de J. A. B. Miranda e A. F. Cascais. 4. ed. Lisboa: Passagens, 2002b. FOUCAULT, M. A ordem do discurso.Tradução de L. F. Almeida Sampaio. 13. ed. São Paulo: Loyola, 2006. 414
GARCEZ, L. H. C. A escrita e o outro: os modos de participação na construção do texto. Brasília: UnB, 1998. GERALDI, J. W. (org.) O texto na sala de aula-leitura e produção. 2. ed. Cascavel: Assoeste, 1985. GERALDI, J. W. Prática de produção de textos na escola. In: Trabalhos em lingüística aplicada. Campinas, nº 07, 1986. LEMOS, C. Coerção e criatividade na produção do discurso escrito em contexto escolar: algumas reflexões. In: Subsídios à proposta curricular de língua portuguesa para o 2º grau.V. III. SÃO PAULO, Secretaria de Estado da Educação, Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. São Paulo, 1983. ORLANDI, E. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 4. ed. Campinas, SP: Pontes, 2002. PÊCHEUX, M. A Análise Automática do Discurso. Traduzido por E. Olrlandi. In: GADET, F. e HAK, T. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, SP: UNICAMP, 1990. p. 61-161.
Anexo
TEMA - O VALOR DO DINHEIRO Criado há milhares de anos, o dinheiro tem ocupado mentes e corações da maioria da humanidade há muito tempo. Muitas pessoas ricas só pensam na forma de ganhar mais e acumular a riqueza que têm. Outros, pobres, vivem na angústia de ganhar o mínimo para sobreviver. Alguns vivem do capital aplicado, mas há também quem vende a sua força de trabalho e nada mais tem na vida. O dinheiro é importante para se viver na modernidade, no entanto, não podemos viver sem ele e não podemos viver em função dele. AFINAL, TUDO O QUE O DINHEIRO COMPRA É BARATO? COLETÂNEA: 1. Muito cedo, na história da humanidade, surgiu a necessidade de um instrumento monetário que servisse como intermediário nas trocas, como medida e reserva de valor. Segundo diferentes épocas e regiões esse instrumento teve diversos suportes materiais: plumas, conchas, grãos de cacau, ouro ou prata. Suas funções também se diversificaram: a moeda permitiu contar, pagar e poupar, mas também expressar o preço dos bens e o valor dos serviços, além de saldar dívidas. Finalmente, terminou por traduzir o grau de confiança que se deposita na organização social da comunidade. A moeda resolve alguns problemas, mas também cria outros. Gera seus próprios paradoxos. Instaura um espaço social homogêneo e coerente – o mercado – mas cria dentro desse espaço desigualdades, ou seja, uma hierarquia econômica. Define a riqueza e, de forma indissociável, a pobreza. Converte-se em atributo do poder, mas também num meio para impugná-lo. Estabelece as fronteiras de um território monetário, para abri-lo imediatamente aos mercados internacionais... Vilipendiada pelos moralistas, rejeitada pelos utopistas, às vezes ignorada até pelos economistas, a moeda está, porém, onipresente em nossa realidade cotidiana. Ao facilitar o intercâmbio e liberar a economia, ela contribuiu para alguns decisivos avanços da civilização. (Internet – História do dinheiro- 2002) 2. Nisan Guanaes – Discurso a formandos de Propaganda em São Paulo- 2001 Primeiro: Não paute sua vida, nem sua carreira, pelo dinheiro. Ame seu ofício com todo o 415
coração. Persiga fazer o melhor. Seja fascinado pelo realizar, que o dinheiro virá como conseqüência. Quem pensa só em dinheiro não consegue sequer ser nem um grande bandido, nem um grande canalha. Napoleão não invadiu a Europa por dinheiro. Hitler não matou seis milhões de comunidade. judeus por alguns dinheiro. Michelangelo não 16 anos pintando a Capela Sistina dinheiro. A moeda resolve problemas, mas também criapassou outros. Gera seus próprios paradoxos. Instaura um por espaço E,homogêneo geralmente, os que pensam nele o ganham. Porque são incapazes dehierarquia sonhar. E tudo social e coerente – osó mercado – mas crianão dentro desse espaço desigualdades, ou seja, uma econômica. Define a riqueza e, de forma indissociável,antes, a pobreza. em atributo disso, do poder, mas tambémde uma que fica pronto na vida foi construído na Converte-se alma. A propósito lembro-me num meio para impugná-lo. Estabelece as fronteiras de um território monetário, para abri-lo imediatamente aos passagem extraordinária, que descreve o diálogo entre uma freira americana cuidando mercados internacionais... Vilipendiada pelos moralistas, rejeitada pelos utopistas, às vezes ignorada até pelos de lepeconomistas, está,eporém, onipresente texano. em nossa O realidade cotidiana. Ao facilitar o intercâmbio liberar a disse: rosos noa moeda Pacífico um milionário milionário, vendo-a tratar daqueleseleprosos, economia, ela contribuiu para alguns decisivos avanços da civilização. (Internet – E História do dinheiro- “Eu 2002)também não, “Freira, eu não faria isso por dinheiro nenhum no mundo.” ela responde: 2. Nisan Guanaes – Discurso a formandos de Propaganda em São Paulo- 2001 meu filho”. Nãosua estou com isso apologia à pobreza, contrário. Primeiro: Não paute vida,fazendo nem sua carreira, pelonenhuma dinheiro. Ame seu ofício com todo omuito coração.pelo Persiga fazerDigo o melhor. Seja que fascinado peloem realizar, que otem dinheiro virá mais como conseqüência. Quem pensa só dinheiro apenas pensar realizar trazido fortuna do que pensar ememfortuna. não 3. consegue sequercomo ser nemDinheiro, um grande bandido, um grande canalha. Napoleão não invadiu a Europa por as que Palavras Créditonem e Lucro ganharam tanta importância quanto dinheiro. Hitler não matou seis milhões de judeus por dinheiro. Michelangelo não passou 16 anos pintando a embalavam os sonhos dos nossos antepassados como: e atédemesmo Capela Sistina por dinheiro. E, geralmente, os que só pensam nele não o Amor, ganham. Família, Porque sãoVida incapazes sonhar. E tudo que fica pronto na vida construído alma. A propósito disso, lembro-me Sonho e Felicidade. A falta defoidinheiro ouantes, a suanabusca tem tomado grande partededouma tempo do passagem extraordinária, que descreve o diálogo entre uma freira americana cuidando de leprosos no Pacífico e homem moderno. É fato que até certo nível de enriquecimento que gere conforto, segurança um milionário texano. O milionário, vendo-a tratar daqueles leprosos, disse: “Freira, eu não faria isso por e liberdade ação, Eo ela dinheiro constitui um não, fortemeu aliado Felicidade, então, o homem dinheiro nenhum nodemundo.” responde: “Eu também filho”.da Não estou fazendo com isso nenhuma apologia pobreza, muitopara pelo compartilhar contrário. Digo apenas pensar em realizar tem trazido mais fortuna de ser busca uma àcompanhia suas que conquistas e se depara com a ilusão do que pensar em fortuna. querido, admirado e respeitado, enquanto seu ego disfarça sua vaidade. O homem moderno 3. Palavras como Dinheiro, Crédito e Lucro ganharam tanta importância quanto as que embalavam os sonhos dos ainda quer ser feliz peloFamília, que tem posses mas estabelece sua principal meta para nossos antepassados como: Amor, Vidade e até mesmoefêmeras, Sonho e Felicidade. A falta de dinheiro ou a sua busca tem alcançá-la, tomado grandeno parte do tempo farto. do homem moderno. É fatoeque até certo nível de quase enriquecimento gere Dinheiro A paz, o Amor a Família ficam semprequeem segundo conforto, segurança e liberdade de ação, o dinheiro constitui um forte aliado da Felicidade, então, o homem busca plano. Tem gente que nem consegue dormir preocupada com o amanhã. uma companhia para compartilhar suas conquistas e se depara com a ilusão de ser querido, admirado e respeitado, 4. Frase sobre dinheiro: Administrar dinheiro é fácil. Difícil é administrar a falta mas dele. enquanto seu ego disfarça sua vaidade. O homem moderno ainda quer ser feliz pelo que tem de posses efêmeras, estabelece meta para paz, o Amor e a Família ficam quase sempre em 5. O sua queprincipal as pessoas sãoalcançá-la, capazesnodeDinheiro fazer farto. peloAdinheiro? segundo plano. Tem gente que nem consegue dormir preocupada com o amanhã. 4. Frase sobre dinheiro: Administrar dinheiro é fácil. Difícil é administrar a falta dele. 5. O que as pessoas são capazes de fazer pelo dinheiro?
dissertação- Redija um texto dissertativo debatendo o tema: Tudo o que o dinheiro compra é barato? carta- Redija uma carta para o diretor do FMI, expondo sua opinião sobre o valor do dinheiro. Redija uma narrativa personagem em conflito poro causa dinheiro. Caracterize bem ocompra narraçãoDissertaçãoRedija umsobre textoumdissertativo debatendo tema:doTudo o que o dinheiro personagem e o espaço durante todo o texto. Trabalhe o tempo.
é barato? Carta- Redija uma carta para o diretor do FMI, expondo sua opinião sobre o valor do dinheiro. Narração- Redija uma narrativa sobre um personagem em conflito por causa do dinheiro. Caracterize bem o personagem e o espaço durante todo o texto. Trabalhe o tempo. 416
• Os mecanismos d’A ordem do discurso e a construção da autoria no Evangelho de Saramago Wilton Divino da Silva Júnior Universidade Federal de Goiás.
Uma introdução O presente artigo apresenta as análises iniciais de minha dissertação de mestrado, que trata da constituição do discurso literário sob duas perspectivas: (I) como um saber determinado por uma rede de relações de poder estabelecidas a partir de um conjunto de fatores e circunstâncias que se constituem como condições de existência do discurso, de sua produção. Orlandi (2001, p.30) considera que tais condições de produção do discurso incluem tanto um contexto imediato (o da enunciação), como um contexto sócio-histórico e ideológico, acessado pelos sujeitos a partir da memória discursiva; (II) além de ser determinado por essa rede de relações de poder, o discurso literário se constitui como um saber determinante da elaborada trama de exercício de poderes pela sua característica de discurso transgressor que instaura a resistência a certas formas de poder, posto que não há um saber neutro que renuncie ao poder e julgue-se “apolítico” e “desinteressado” para, efetivamente, produzir conhecimento puro: “poder e saber estão diretamente implicados”(FOUCAULT, 1987, p.27). Procedo à análise a partir da obra O Evangelho segundo Jesus Cristo (doravante ESJC) de José Saramago, publicada em 1991. Em princípio, procuro me deter somente sobre esta obra, entretanto já vislumbro a necessidade de pensar num discurso literário saramagueano – não no sentido de estabelecer uma tipologia, mas em possibilitar uma percepção mais ampla da multiplicidade de discursos e suas regras constitutivas – discurso construído pelos infinitos atravessamentos de sentidos materializados pela escrita, numa suposta unidade: as obras. A escolha de ESJC se justifica por dois motivos: (I) a repercussão da obra quando de sua publicação produzindo inúmeros comentários: reações contra e a favor do autor; e (II) a transgressão que o literário faz do discurso religioso – encarado na obra a partir dos evangelhos (Bíblia). A maneira de Kazantzakis em 1954 com seu A última tentação de Cristo, e Salman Rushdie em 1989 com Versículos satânicos; José Saramago transgride a ordem do discurso religioso questionando-lhe dois campos de evidências: (a) as verdades que fundamentam a religião católica, e, conseqüentemente, (b) os preceitos de uma ética cristã.
A ordem do discurso e a AD francesa Detenho-me, neste artigo, a compreender o funcionamento dos mecanismos de 417
controle discursivo – apresentados em A ordem do discurso (2006) pelo filósofo francês Michel Foucault em 1970, por ocasião de sua aula inaugural no Collège de France – organizados em três grandes grupos: a exclusão a sujeição e a rarefação; e os princípios (inversão, descontinuidade, especificidade e exterioridade) de um método que permita uma análise capaz de investigar o discurso, no caso desta pesquisa, o discurso literário saramagueano. É importante ressaltar que Foucault não trata dos procedimentos discursivos como categorias didáticas aplicáveis ao discurso com o intuito de buscar os sentidos de um texto a partir deles. Tais procedimentos encontram-se vinculados à produção dos discursos na sociedade – Foucault analisa os discursos institucionalizados – que realizam as seguintes funções (FOUCAULT, 2006, pp.9-10): controlar, selecionar, organizar e redistribuir os discursos; conclamar seus poderes e perigos; determinar seu acontecimento aleatório (ao determinar quem pode ou não dizê-lo, estabelecer sua origem e associar-lhe a um dado campo de saber cria-se a ilusão de que o discurso não seria um acontecimento aleatório); e tratá-lo para além de sua materialidade de coisa pronunciada ou escrita, porém entendendo-o como um conjunto de enunciados “para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência” (FOUCAULT, 1995, p.135). Entendo que os procedimentos discursivos abordados em A ordem do discurso funcionem como regras1, como leis que atuam na constituição dos discursos – em seu aparecimento, em seu apagamento e em seu retorno – assim como, na definição das condições para que isso ocorra (quem diz, o que diz, a quem diz, como diz, onde/quando se diz – não penso aqui num trabalho com as categorias enunciativas de Pessoa, Tempo e Espaço, mas num conjunto de condições sóciohistoricamente estabelecidas e que determinam o exercício da função enunciativa). Importa esclarecer que, como materialidade lingüística primeira (já que este estudo, por sua característica discursiva, não poderia limitar a isso) estudo uma obra literária, um romance, uma suposta unidade discursiva – ilusão de controle. Para Foucault, a obra se constitui num feixe de relações construído somente a partir de um campo complexo de discursos. as margens de um livro jamais são nítidas nem rigorosamente determinadas: além do título, das primeiras linhas e do ponto final, além de sua configuração interna e da forma que lhe dá autonomia, ele está preso em um sistema de remissões a outros livros, outros textos, outras frases: nó em uma rede (FOUCAULT, 1995, p.26).
Que não se acredite na possibilidade de desfazer os “nós” desta intrincada rede de significações para buscar uma evidência dos sentidos, este estudo não se presta a semelhante tarefa. Proponho-me a analisar o discurso literário levando em consideração os “regimes de luz”2 que tornam parte da trama enunciativa visível, porém sem isolar os enunciados para descrição. A obra é um todo discursivo, não-decomponível, sua 418
análise só é possível dado os direcionamentos de luz que possibilitam a observação e o estudo dos atravessamentos de sentidos que a constituem. Para dar conta do literário é necessário evocar teorias do discurso cuja concepção de linguagem delineie e seja delineada pelas noções de sujeito e história. Ler e interpretar diferentes textos em Análise do Discurso (doravante AD) – campo de saberes no qual se situa este estudo – implica desvelar questões obscuras, não explícitas somente na materialidade lingüística, cuja existência compõe-se também na exterioridade, no social, espaço este que joga com diversas posições nas quais os sujeitos se inscrevem. A AD da Escola francesa [...] problematiza as maneiras de ler, isto é, coloca em questão a leitura e a interpretação – não à maneira da hermenêutica clássica, que busca o sentido verdadeiro do texto lido –, levando o leitor e quem com a leitura trabalha, a se perguntarem sobre a linguagem e suas implicações históricas e sociais.[...]. A AD possibilita ao leitor empreender movimentos no texto a fim de saber como funcionam os discursos que o constituem, o que implica investigar suas condições de produção, o que, por sua vez, equivale a dizer, apreender as formas de instituição dos sentidos de um texto. (CRUVINEL, 2002, pp.133-134).
A AD permite o trabalho com a linguagem tomada sob diferentes condições de produção, pois fornece um dispositivo teórico-metodológico que considera os elementos históricos, sociais e ideológicos na produção dos discursos. Tomando, além da materialidade lingüística, a materialidade discursiva para apreensão dos possíveis olhares, a AD preocupase em desvelar o espaço da enunciação e os sujeitos nela envolvidos.
O discurso literário saramagueano e ESJC O discurso literário saramagueano é atravessado por elementos constitutivos do discurso histórico – tendo os evangelhos como documentação histórica – e, ao mesmo tempo, por elementos do discurso religioso – os preceitos e fundamentos de uma ética cristã católica – e acaba propondo uma releitura dos fatos, do dado histórico, o que permite os sujeitos analisarem os efeitos de verdade produzidos a partir desse novo olhar transgressor instaurado pelo discurso literário e questionem seu modo de pensar e atuar sobre o mundo. O ESJC não é uma obra teológica nem tampouco um trabalho sobre dados de pesquisas historiográficas recentes sobre Jesus de Nazaré; é um romance, assim como o próprio Saramago explicita nas primeiras páginas de seu livro, portanto, lerse-á uma obra de ficção e não religiosa. Segundo Flores (2001, p.48), Saramago dá o direito a Jesus – agora feito personagem ficcional – “de repensar os evangelhos que, em seu nome, foram escritos” – uma pequena trapaça que se presta a determinados fins. Apesar de o título da obra conter a palavra “segundo”, permitindo pensar que a 419
autoria de tais escritos fosse do próprio Jesus, a maneira dos evangelhos canônicos, na verdade, anuncia a ótica da narrativa, fazendo coincidir a verdade do narrador com uma visão possível de Jesus. Saramago organiza a trama argumentativa de seu discurso numa rede de relações que se alinhavam através das diferentes vozes que ele traz para compor o seu discurso literário. Não me refiro a uma observação “óbvia” das citações do evangelista Lucas, de Pôncio Pilatos ou da gravura de Albrecht Dürer, entretanto a representatividade institucional que estes nomes carregam: A Igreja e o Período Renascentista.
O comentário e a construção do Evangelho de Saramago Um mecanismo discursivo muito relevante na análise que empreendo do discurso literário saramagueano a partir da obra ESJC é a noção de comentário. O evangelho de Saramago organiza-se como um grande comentário dos evangelhos que narram a biografia de Jesus, além disso, Saramago comenta uma gravura do renascentista Albrecht Dürer, e também, um trecho do Evangelho segundo São Lucas (1:1-14) e uma citação atribuída a Pôncio Pilatos (três importantes aspectos que “evidenciam” um discurso construído através do comentário). O comentário destas duas últimas citações bíblicas se constrói sem que o autor português altere um único vocábulo, ou acrescente uma vírgula; ele se produz por dois aspectos: pelo deslocamento temporal a que a citação é submetida, e devido a uma articulação de vozes num outro suporte – o romance: obra ficcional. Tratarei mais adiante destes aspectos com pormenores. A noção de comentário que orienta esta análise é de base foucaultiana. Foucault aborda a noção de comentário como um mecanismo interno regulador dos discursos, aquilo que amplia a propagação dos mesmos ao infinito, entretanto de modo “restritivo e coativo” (LARROSA, 1999, p.119), já que não se diz qualquer coisa, a qualquer um, em qualquer lugar ou época. Posto dessa forma, tem-se os dois papéis que o comentário desempenha discursivamente: construção de novos discursos e dizer o já dito no discurso primeiro – o que não pressupõe a repetibilidade dos enunciados. Para Foucault (2006, p.22, grifo do autor), os comentários se constituem num “certo número de atos novos de fala que os retomam [discursos fundamentais ou constituintes], os transformam ou falam deles, ou seja, os discursos que, indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer”. É fundamental compreender o sentido da palavra “novo” associada a discurso. O “novo” não pressupõe a originalidade, ou seja, o inusitado, o originário, o jamais dito – tais características aproximam-se, e ainda assim com ressalvas, dos discursos denominados fundadores de discursividade – a novidade é a articulação de discursos primeiros num dado tempo e espaço diferenciados, por isso afirma Foucault (2006, p. 26) que “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”. É exatamente este retorno do mesmo, porém diferente como acontecimento que 420
marca profundamente a constituição do discurso literário saramagueano. Buscando uma organização didática – acredito eu –, analiso o mecanismo discursivo do comentário. Estabelecendo uma divisão entre os comentários produzidos por Saramago e que constituem a obra ESJC, e os comentários (algumas reações críticas negativas) publicados na imprensa portuguesa nos anos de 1991 e 1992 sobre o romance e que evidenciam a proliferação de discursos que parecem interditar o discurso literário saramagueano.
O primeiro capítulo de ESJC: a noção de comentário O romance possui, ao todo, vinte e quatro capítulos que seguem e obedecem a uma determinação histórico-cronológica, nos quais é apresentada a vida de Jesus desde o momento da sua concepção, através da relação sexual entre José e Maria, até o momento último e derradeiro de sua vida na cruz. No primeiro capítulo da obra, Saramago descreve uma gravura do artista alemão Dürer (1471 – 1528), “A Grande Paixão”.3 Como Dürer viveu sob o signo do Renascimento, ou seja, tendo então o homem como o centro e medida de todas as coisas, sua obra propõe uma mudança de atitude mental, há uma redescoberta da cultura clássica e uma nova visão de mundo em que o sagrado não somente ressalta o testemunho religioso, mas revela a ficção artística, ou seja, surgem as possibilidades de leitura. A partir da interpretação que Dürer faz da Paixão e Morte de Jesus, Saramago narra e reinterpreta o instante final da trama logo no início da obra. A escolha da gravura renascentista coaduna com a proposta de ESJC, pois Dürer foge aos padrões convencionais da iconografia cristã, utilizando, por exemplo, elementos míticos pagãos, moinhos e muralhas góticas como pano de fundo da cena da crucificação. A obra de Dürer representa o rompimento com a contemplação dos símbolos cristãos no intuito de manter viva a mensagem cristã – o artista é criador de um universo fictício e a arte sacra participa desse projeto – rompe-se com o sagrado, já no primeiro capítulo permitindo que o leitor vislumbre a travessia da leitura de ESJC (FLORES, 2001). A gravura de Dürer é construída segundo um esquema de sobreposição. Para alguns estudiosos, “O Grande Calvário” teria sido produzido em dois momentos e lugares diferentes. Primeiramente, a parte de baixo, aqueles que se encontram na base da cruz e, posteriormente, Jesus, os anjos, o sol e a lua. Portanto, a leitura que Dürer faz da cena da crucificação parte do Humano (parte inferior) em direção ao Divino (parte superior). Para Dürer, o Divino se sobrepõe ao Humano – diferentemente do que observaremos na leitura de Saramago. Além do possível direcionamento vertical (de baixo para cima) da leitura , é possível inferir um outro direcionamento para a leitura de Dürer na produção de sua obra – uma leitura horizontal (de fora para dentro) que exalta o centro da gravura onde se encontra a imagem do cristo crucificado. Também, a partir dessa leitura, observa-se um olhar que é conduzido 421
ao Divino, que parte da periferia do Humano e dirige-se ao centro do Sagrado, do Mí(s)tico. Se poderia pensar que não há elementos em consonância entre Dürer e Saramago que permitissem uma apropriação por parte deste da figura daquele, já que Saramago caminha para uma idéia de valorização do Humano em detrimento do Divino. Entretanto, a gravura renascentista não é uma exata “reprodução” do ideal cristão, posto que o período histórico renascentista em que se introduz, produz uma atemporalidade – período da crucificação associado ao período renascentista – que altera o sentido exclusivo da gravura como uma obra de cunho religioso, para torná-la uma obra crítica, caracteristicamente vinculada ao início do período da Renascença em que a noção do Humano como centro e medida do universo começou a vigorar, porém com uma certa restrição. Não era possível, num momento inicial do Renascimento, descartar toda uma ideologia cristã que ainda exercia poder sobre as instituições e os sujeitos, por isso a figura do crucificado é central e os anjos se encontram em primeiro plano. Observe o seguinte trecho: [...] o que está no horizonte, ao fundo, torres e muralhas, uma ponte levadiça sobre um fosso onde brilha água, umas empenas góticas, e lá por trás, no texto duma última colina, as asas paradas de um moinho. Cá mais perto, pela ilusão da perspectiva, quatro cavaleiros de elmo, lança e armadura fazem voltear as montadas em alardes de alta escola [...] (SARAMAGO, 1999, p.18).
Estes elementos, próprios da época de Dürer, assim como a personificação dos astros celestes (cunho pagão), a preocupação com os mínimos detalhes para a retratação do corpo humano num retorno aos traços da Antigüidade clássica promovem a gravura como ficção artística e não somente testemunho religioso. O mito bíblico fica submetido, portanto, a outras possibilidades de leitura comprometidas com a profanação do sagrado, estabelecendo o conflito no discurso religioso. Surge um discurso que lança sombras sobre a palavra autoritária da Bíblia anunciando que a história do autor português será bem diferente das narrativas canônicas, porém construída a partir delas. Saramago, ao descrever a gravura, inicia pelo canto superior direito (à esquerda de quem olha) depois desce num alinhamento vertical ao canto inferior direito, depois ao inferior esquerdo e subindo, novamente, em linha reta ainda percorrendo as laterais da gravura, chega ao canto superior esquerdo (à direita de quem olha). Este percurso para a leitura da obra de Dürer remonta, segundo Fiorin (2001, p.260), a cosmologia grega que considerava as direções Direita e Esquerda, respectivamente, Propícia e Funesta. Saramago realiza um percurso descritivo sobre a gravura que se assemelha a forma da vogal U, partindo do sol, do bom ladrão, do direito e chegando à outra ponta que possui elementos “funestos” como o mau ladrão, a lua e o esquerdo, onde se anseia chegar, é aquilo que se objetiva. Posteriormente, descreve o plano de fundo. Mergulhando a cena da crucificação num outro espaço e tempo, alterando os sentidos usuais do motivo religioso utilizado na gravura e produzindo outros. 422
As epígrafes: Autoria e Interpretação Antes de analisar as epígrafes de abertura de ESJC é pertinente tratar de uma noção fundamental para este estudo: a noção de interpretação. Se, como já foi dito, a AD “problematiza as maneiras de ler, isto é, coloca em questão a leitura e a interpretação”, faz-se necessário explicitar como este campo de saber (AD) compreende a interpretação. Essa discussão se insere neste ponto do artigo, pois há um estreito vínculo com a noção de autoria – aqui abordada mais detidamente – vista como um procedimento discursivo que articula os enunciados e suas diversas vozes na ordem do enunciável; e não como uma característica intrínseca a todo discurso e que lhe remete a uma fonte originária. Foucault (2000, p. 47) afirma que “se a interpretação nunca pode terminar, é que simplesmente não há nada a interpretar. Não há nada de absolutamente primeiro a interpretar; porque no fundo tudo já é interpretação, mas interpretação de outros signos”. Interpretar, portanto, seria uma ação interminável, na medida em que se supõe a interpretação como busca da origem primeira das coisas. As questões não se encontram mais na busca de uma fonte, de uma raiz principal que as justifique, mas em como os enunciados se organizam na ordem do enunciável, e as regularidades observáveis na prática discursiva para constituição dos sujeitos e da própria linguagem. Há uma ruptura com a busca pelo segredo essencial das palavras, primeiramente porque as peças que as constituíram são completamente estranhas entre si. Por trás dos discursos, convergem ou divergem-se forças inúmeras num contínuo jogo de poder, de micro-poderes, porque interpretar é uma das formas para se assenhorear de algo; recriar incessantemente é possuir. Orlandi (1996) afirma que a tarefa do analista do discurso não é nem interpretar o texto, como o faz um hermeneuta, nem descrevê-lo, antes é explicitar processos de significação e mecanismos de funcionamento, ou seja, como um dado texto produz sentidos. O analista “procura determinar que gestos de interpretação trabalham aquela discursividade que é objeto de sua compreensão” (ORLANDI, 1996, p.64). Tais gestos são constitutivos tanto da leitura quanto da produção do sujeito, porque quando o sujeito diz, ele também interpreta. Para dizer, ele necessariamente se filia a um determinado saber discursivo. “Em suma, interpretar, para o analista do discurso, não é atribuir sentidos, mas expor-se à opacidade do texto” (op. cit.). Observo a obra ESJC como um movimento de dupla interpretação. Saramago tanto ocupa a posição de leitor de uma determinada ordem discursiva (discurso religioso), como a posição de autor em uma outra ordem discursiva (discurso literário). Ora é o sujeito interpretante (enquanto leitor), ora interpretado (produtor de discursos outros). Ricoeur (1969, p. 375), assim como Foucault, fala de uma interpretação da interpretação: [Os textos do Novo Testamento] são a primeiríssima confissão de fé da 423
comunidade e, portanto, receptam uma primeira camada de interpretação. Nós próprios já não somos essas testemunhas que viram, nós somos os ouvintes que ouvem as testemunhas: fides ex audito. Por conseguinte, apenas podemos crer ao escutar e ao interpretar um texto que é ele próprio já uma interpretação[...].
Já é ele próprio – o texto neo-testamentário – uma interpretação, entretanto que não admite ou legitima, dentro do discurso religioso, qualquer possibilidade de sentido, pois há um conjunto de estratégias discursivas e não-discursivas organizadas de modo a permitir que esse discurso exerça poder e para isso é preciso controlar os sentidos produzidos, interditando as possíveis transgressões através de um controle da articulação das vozes que compõe o discurso religioso (controle sobre a função-autor). No discurso religioso, “o sujeito religioso não interpreta, ele repete a interpretação que lhe é dada. Não há um espaço de interpretação para ele, não há espaço entre ele e o dizer. Ele está colado à letra. Nessas condições não há resistência, há heresia” (ORLANDI, 1996, p. 90-91), o que faz Saramago, segundo os preceitos da Igreja, ao ocupar a posição de autor no discurso literário: heresia, porém encarada como forma de resistência, posto que a noção de “oposição a” é condição para existência da heresia. Para evitar questionamentos no que se refere ao discurso religioso católico manifesto através da Bíblia, a instituição Igreja no Concílio Ecumênico Vaticano II aberto em 1962 e finalizado em 1965 regulamentou a “verdadeira” hermenêutica dos textos bíblicos através do documento Dei Verbum. Neste documento depois de se afirmar que o autor dos textos foi Deus, através da inspiração direta incutida nos seus redatores humanos, define-se a quem cabe a última palavra acerca da correta interpretação dos textos. Afirma-se que “o encargo de interpretar autenticamente a palavra de Deus4 escrita ou contida na Tradição, foi confiado só ao magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo. [...] tudo quanto diz respeito à interpretação da Escritura, está sujeito ao juízo último da Igreja, que tem o divino mandato e o ministério de guardar e interpretar a palavra de Deus”. Há uma necessária busca pelo autor e suas intenções, neste caso, “sagradas”, excluindo-se todo um conjunto histórico de elementos que propiciaram a produção de tais discursos; surge, inclusive, a própria necessidade da instituição religiosa em estabelecer um documento interditando outros discursos no que se refere sobre sua própria origem. Para a AD, uma das funções da forma-sujeito é a função-autor, cujo papel não se encontra mais associado à origem, à fonte do discurso, embora e, fundamentalmente no discurso literário, não se desconsidere a figura do autor (nome próprio, indivíduo) como produtor de dada estilística que permite sua caracterização e seu reconhecimento. A função-autor caracteriza um certo modo de circulação e funcionamento dos discursos em nossa sociedade, instaurando um grupo de discursos e sua maneira singular de ser. Inúmeros comentários (reações críticas negativas) supostamente voltados à obra ESJC dirigiam-se, na verdade, ao autor, ou melhor, a uma determinada idéia que a 424
sociedade tem cristalizada da figura do autor. Foucault (2001) apresenta dois fatores que contribuem para a permanência da idéia que se faz, comumente, de autor como fonte de um dado discurso: a noção de obra e a noção de escrita. A primeira acaba por estabelecer, de modo redutor, à idéia de obra literária o estigma de uma unidade discursiva fechada e produzida por um alguém. O segundo fator insere o texto num determinado tempo e espaço vinculando-o a uma certa transcendência, a algo para além da morte e do esquecimento. Dada a permanência dessa noção de autoria são possíveis discursos como os que se seguem: toda a tradição ocidental cristã não se baseia em algo ‘verdadeiro’ mas num vazio, numa fraude colossal. Seria esta a verdade dialectizada, purgante e eficaz no demolir da mentalidade religiosa, conservadorista e ideal, a denunciar o que pareciam as formas alienatórias e impeditivas. [...]. Neste sentido é como se se advogasse um eco de puro incómodo psicológico de Saramago em relação aos Evangelhos e a tudo quanto de ‘doentio’ neles, ou melhor, numa hermenêutica e moralização longamente estabelecida, se veio a decantar. Irritação, misto complexo de recusa e de cumplicidade bem lá no fundo de si mesmo, o autor defende-se e ironiza nas suas páginas aquela imagem mesma que ‘exorcisa’ do trauma profundo. [...] O crime está pois em re-escrever os Evangelhos na sua verosimilhança literária, como pasquim menor (SILVA, C., 1992, pp. 75, 80-81). O Sr. Saramago tem a sorte de não ter, como Salman Rushdie, nenhuma seita fundamentalista à perna. [...]. Não há dúvida que estes literatos de hoje não percebem a linguagem ética, mas entendem bem a do cacete [...] (ALMADA, G., 1992).
Nesse sentido, Saramago não só produz uma dada estilística e a caracteriza, como também é o louco e o criminoso. Ele preenche, a partir da posição ocupada na função de autoria, outras posições como sujeito, segundo os discursos outros evocados para a busca dos sentidos de sua obra. Tanto se evoca o discurso do psicanalista sob a forma de diagnóstico do paciente emocionalmente incapaz, como o discurso da aplicabilidade impositiva das leis duras e rígidas de determinada sociedade afim de que não se perca o controle sobre o que pode e deve ser dito, portanto, é necessário punir. Há necessidade em inscrever o sujeito Saramago em outras posições que não a de autor, seja o louco a extravasar múltiplos complexos e traumas profundos, quando alinhava os discursos e produz sua obra; seja na posição de criminoso, que falta com a ética – entendida no comentário de Almada por descumprimento ou rompimento com a norma vigente e historicamente firmada – e que merece um castigo medieval como a punição corporal (“a do cacete”), posto que isso definiria uma suposta sujeição a um poder maior: o do psicanalista ou o do jurista. Foucault (2001), ainda em seu texto O que é um autor? delineia quatro características como fundamentais para determinar se um discurso é portador ou não de uma 425
função-autor. Explicito, aqui, a última delas que evidencia que todos os discursos que possuem uma função-autor apresentam uma pluralidade de egos aos quais é preciso dar um “nó de coerência”, daí o autor como um procedimento discursivo que alinhava os discursos produzidos pelos diversos sujeitos nas diversas posições que os mesmos podem ocupar. Foucault observa a atuação da função-autor da seguinte forma: ela não se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; ela não é definida pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série de operações específicas e complexas; ela não remete pura e simplesmente a um indivíduo real, ela pode dar lugar simultaneamente a vários egos, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem vir a ocupar (FOUCAULT, 2001, p.280).
Analiso a epígrafe de ESJC em que o autor se apropria de um trecho do Evangelho de Lucas5 para introduzir seu discurso. Para Flores (2001, p.48), “como um prelúdio, a epígrafe é uma introdução à enunciação, representando o livro [...]. É a ‘alfinetada’ inicial que introduz o texto [...]”. Assim como Lucas, Saramago não presenciara os fatos sobre a vida de Jesus como testemunha ocular, assim como ele, baseia-se em pesquisas acuradas sobre tais fatos e, por fim, ambos são “servidores da Palavra”. “O que muda radicalmente é o enfoque, pois é a solidez da doutrina que será abalada através do desmonte paródico-irônico” (FLORES, 2001, p. 49). Os próprios comentaristas, ainda que radicalmente, observam a articulação discursiva do início da obra – epígrafe – a fim de produzir um efeito de verdade. No entanto, partindo daquilo considerado historicamente estabelecido, José Saramago escreve um quinto Evangelho e diz que é Jesus Cristo. Coloca dum lado e d’outro do livro um excerto de Lucas, espécie de contra-forte, que lhe autorizará todos os devaneios, ressentimentos e perguntas sobre a história e missão de Jesus. A seguir, a tudo isso chama Romance, o que irresponsabiliza completamente pelas alucinações teológicas e narrativas de feição histórica (REGO, 1992, p.10).
É o próprio Saramago que, fazendo uso de uma outra citação bíblica em latim - O que escrevi, escrevi6 - regula sua posição como autor, respaldando-se mais uma vez nos textos bíblicos para criar um efeito de verdade em sua obra, trazendo vozes inúmeras do discurso do Mesmo – evangelhos canônicos e apócrifos – a comporem com o discurso do Outro – ESJC – , produzindo, então, o insuportável. Saramago desloca o enunciado de Pilatos que, biblicamente, respondia aos sacerdotes que “queriam ver escrito na tabuleta que encimaria a cruz ‘Este homem disse ser o rei dos judeus’, em vez de ‘Jesus de Nazaré, rei dos Judeus’” (FLORES, 2001, pp.49-50), e abriga junto a seu discurso elementos que 426
possibilitam um outro efeito de sentido para a verdade religiosa. Já que “as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam” (PÊCHEUX, 1988, p.160, grifos do autor), cabe, neste momento, compreender a dupla articulação de vozes a partir das epígrafes da obra. As vozes do evangelista Lucas, como voz de autoridade, e a voz de Pôncio Pilatos, como voz para exemplificação, retornam num outro suporte (obra literária e não documentação histórica e sagrada) e em outras condições sociais, históricas e culturais para funcionarem como “espécie de contra-forte”. É possível pensar que o retorno dessas vozes prepara a construção de uma narrativa que se dobra sobre ela mesma, pois é esta a reflexão que ESJC produz. Outro ponto para que se possa compreender essa dupla articulação de vozes a partir das epígrafes é a própria definição de autor. Um sujeito localizado num outro tempo e espaço histórico articula outros discursos e transforma-lhes os sentidos; presentificando uma história e suas possíveis verdades que não permanecem, em absoluto, cobertas pelo pó do tempo, mas que se fazem contemporâneas.
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de texto a partir de Foucault, Bahhtin e Borges. In: ABREU, Márcia. Leitura, história da leitura.Campinas, SP: Mercado de Letras: Associação de leitura do Brasil, São Paulo; Fapesp, 1999, p. 115 – 145. ORLANDI, Eni Puccinelli. A interpretação; autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 3.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. __________. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 3.ed. Campinas, SP: Pontes, 2001. POSSENTI, Sírio. “Sobre linguagem científica e linguagem comum”. In: POSSENTI. Os limites do discurso: ensaios sobre discurso e sujeito..2.ed. Curitiba, PR: Criar Edições, 2004. REGO, Antônio. “O Evangelho segundo Saramago”. Miriam. Nº 445, janeiro de 1992, p.10. RICOEUR, Paul. O conflito da interpretações. Tradução de M. F. Sá Correia. Porto: Rés, 1969. SARAMAGO, J. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. SILVA, Carlos H. da C. “Reflexão crítica sobre o romance ‘O Evangelho segundo Jesus Cristo’ ou o ‘Kakangélion’ de José Saramago”. Revista Humanística e Teológica. Tomo XIII, fasc. 1, 1992, p. 75, 80 e 81.
Notas 1 Esclareço que a palavra regra aqui utilizada não pressupõe prescrição, mas aquilo que dirige, que rege. Assim como exemplifica Possenti (2004), lembrando que todo jogo possui regras, porém as regras nunca são as mesmas para os diferentes jogos; elas possuem sua especificidade e estabelecem um curso determinado – que pode até ser outro (caso as regras se alterem), porém sempre um curso se estabelece determinado por regras. 2 Termo utilizado por Gilles Deleuze no texto: O que é um dispositivo? In: Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990, pp. 155-161. tradução de Wanderson Flor do Nascimento. 3 FLORES (2001) nomeia a série de gravuras de Dürer, cuja estampa é a descrita por Saramago no primeiro capítulo de O Evangelho segundo Jesus Cristo como “A Grande Paixão”. Já DINIZ (http://www.eventos.uevora.pt/comparada/VolumeII/ TRADUCAO%20INTERSEMIOTICA.pdf) apresenta a gravura de Dürer em análise como pertencente à série de três estampas nomeadas “O Grande Calvário”. No fim deste artigo apresento uma reprodução da obra de Dürer. 4 Dei Verbum., pp. 225-226. 5 “Já que muitos empreenderam compor uma narração dos factos que entre nós se consumaram, como no-los transmitiram os que desde o princípio foram testemunhas oculares e se tornaram servidores da Palavra, resolvi eu também, depois de tudo ter investigado cuidadosamente desde a origem, expor-tos por escrito e pela sua ordem, ilustre Teófilo, a fim de que reconheças a solidez da doutrina em que foste instruído.” (Lucas, 1:1-4). 6 “Quod scripsi, scripsi”. Pôncio Pilatos. (João, 19:22). 428
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UM AUTOR À ESQUERDA? COPYLEFT E AUTORIA NA CONTEMPORANEIDADE Maíra Nunes (UNESP) 1. O autor na era digital sob a apreciação da Análise do Discurso. É notório que as tecnologias da comunicação materializam um suporte criador para novas práticas de linguagem, colocando-nos problemas diante da questão da autoria. A emergência de um espaço em que os textos estão dispostos em rede, como a internet, excita novas formas de ocupação e reclama uma relação diferente com o autor. Debates em torno da pirataria, do software livre versus software proprietário, são temas recorrentes que geram polêmicas na contemporaneidade. Para se lançar ao problema, é preciso, antes, inscrever-se num campo conceitual e esclarecer o que compreendemos como função-autor. Este artigo examina o problema do autor na contemporaneidade sob a perspectiva da Análise de Discurso, sobretudo a partir de uma vertente que incorpora a leitura da obra de Michel Foucault como agente criativo e dialógico para esse campo teórico. Verificamos, com Foucault, a aparição da função-autor na modernidade, articulando, metodologicamente, suas reflexões, a fim de compreender a emergência do Movimento do Software Livre (MSL), mais especificamente o copyleft, enquanto acontecimento discursivo que deflagra o deslocamento do paradigma de autoria que norteou a modernidade. Para a Análise de Discurso, em que o sujeito é constitutivo da linguagem e inscrito na história, o autor é uma condição discursiva, cuja função forja uma unidade de significação, um foco de coerência para os enunciados. De acordo com Orlandi (1996), o autor é uma função enunciativa do sujeito, quando este se representa enquanto produtor e origem da linguagem, em busca de um texto coerente e com unidade. Gregolin (2001) destaca a função-autor como um dispositivo de constituição e controle das redes de memória, sendo esta uma série sócio-histórica de vestígios legíveis que compõem trajetos de sentidos. Segundo Foucault (2004), a autoria é um dispositivo que agrupa os discursos, controla a circulação dos textos, emprestando-lhes legitimidade e responsabilidade. O autor moderno é regulado segundo um regime de propriedade sobre os textos: um conjunto complexo de regras a propósito de direitos sobre produção e reprodução textuais, relações entre autores e editores. 429
Nem sempre a exposição intelectual de palavras e idéias significou tomar posse de um bem (texto) sob o signo da propriedade. A apropriação de textos e livros acontece em seguida à sua apropriação penal, isto é, quando o autor se tornou passível de ser punido (FOUCAULT, 2000). De tal modo que a função-autor está relacionada a uma esfera jurídica que articula os discursos sobre a autoria. A modernidade regula a circulação dos textos na personificação do autor como seu foco coeso e organizador. Essa regência é constitutiva de uma formação histórica que tem, na representação do sujeito, a imagem do indivíduo dotado de uma identidade fixa, bem como na propriedade um regime de organização social. Entretanto, é também na modernidade que se subleva a institucionalização da linguagem, subvertendo a estabilidade que compõe o par homem/obra. Para o desenvolvimento da nossa pesquisa, interessa averiguar que dispositivo, com as suas demandas políticas e históricas, norteou o funcionamento do autor na modernidade, a fim de compreender as suspensões a que está sujeito na contemporaneidade.
2. Copyleft, um autor à esquerda? O Movimento do Software Livre (doravante, MSL) emerge na década de 80 como um contradiscurso ao mercado das tecnologias. Este, amparado pelo discurso jurídico dos direitos autorais, constitui a prática de patentear softwares e cobrar royalties. O MSL propõe uma licença alternativa ao copyright, a Licença Pública Genérica (GPL), polemizando as práticas discursivas que representam o autor moderno. A nova licença protege o código de linguagem, o software, como bem público. Entra em circulação o termo “copyleft”, que oferece a possibilidade de colocar o programa em domínio público, com uma única restrição: não ser usado, em hipótese nenhuma, como proprietário. Sabemos que nem sempre o software foi uma mercadoria. Na década de 70, ainda não se vendia programas de computador: o que se vendia era a máquina mesmo. Os códigos-fontes1 eram partilhados pelos programadores, de modo que o conhecimento se construía a partir de uma rede de colaborações. Com a ampliação do mercado de informática, o software adquire valor comercial e passa a ser vendido. Para concorrer no mercado, empresas impedem o acesso ao seu código-fonte e buscam amparo jurídico através de direitos autorais (copyright) e patentes. A expressão “copyleft” se corporifica no discurso do MSL e produz, a partir desse lugar de enunciação, um caráter polissêmico: tanto sugere a permissão para a distribuição livre do software, quanto a marcação de uma posição política. Os termos “copyright” e “copyleft” circulam associados, respectivamente, às posições políticas “direita” e “esquerda”. A concepção do copyleft vem sendo debatida no 430
campo de produções culturais, em que intelectuais se mobilizam a favor de uma nova concepção de cultura e comunicação. É preciso, entretanto, volver as condições históricas de geração desse discurso. Sabemos que sua aparição está diretamente ligada à constituição de um suporte que autoriza novas formas de materialização e circulação da linguagem. É certo, também, que a composição de um suporte, com a instalação de suas práticas, é um processo complexo que envolve relações de poder e a configuração de novas sensibilidades. Com este entendimento, podemos propor o seguinte problema: como circulam os textos com o advento da rede de computadores? E, por conseguinte, que condições históricas originam esse emergente dispositivo de autoria?
3. Por mares nunca dantes navegados: a navegação eletrônica. A instalação do suporte eletrônico possibilita diversas maneiras de ler, oferecendo ao texto uma nova materialidade e um estatuto diferente. O advento da internet e o exercício de navegar por diversos textos, interagindo com eles, ratificou a importância do leitor na construção dos sentidos e na circulação dos textos. É possível dizer que as práticas de leitura na rede mundial de computadores potencializaram, e muito, a participação do leitor. A ponto de excitarem questões frente ao problema da autoria. Ao tempo em que o novo suporte consolida um lugar mais ativo para o leitor, torna o texto vulnerável a “riscos de interpolação”, “embaçando a idéia de texto, e também a idéia de autor” (CHARTIER, 1999, p.24). O espaço do texto, no suporte eletrônico, organiza-se pela mobilidade: trata-se de uma nova prática de leitura, nomeada navegação. A navegação eletrônica é um processo de cerzidura textual: o navegador não cumpre um percurso de leitura orientado por um eixo linear. Se o códice cuidou de arrumar o corpo do texto segundo certa ordem, materializada pela organização do sumário e sua disposição estrutural da obra (a paginação; a seqüência de capítulos; as formas de narrativa); a navegação eletrônica possibilita a expansão de novas marcas textuais: o link; a busca; a interatividade (NUNES, 2005). O suporte eletrônico amplia as condições do leitor, na medida em que faz dele um agente de seu próprio percurso. Como aponta Jean Lebrun, em sua conversação com Chartier, o texto se torna, também, mais “maleável e aberto a reescrituras múltiplas”, o que coloca em cheque “os fundamentos da apropriação individual dos textos” (CHARTIER, 1999, p.49). A naturalização do “autor proprietário” não resiste a um exame acerca das práticas que teceram essa identidade. Sabemos, com Foucault (2000), que antes do autor receber privilégios, ele foi perseguido e interditado. Ou numa imagem carregada de alegoria, como Jean Lebrun confabula com Chartier, “a fogueira em que são lançados 431
os maus livros constitui a figura invertida da biblioteca encarregada de proteger e preservar o patrimônio textual” (CHARTIER, 1999, p. 23). O dispositivo da autoria serviu, e muito, como confisco aos discursos malditos à ortodoxia política e religiosa. Nomear o autor era fazê-lo responsável pelo que dizia. A propriedade literária é, também, uma invenção do século XVIII, devendo assaz a campos de saber como o direito natural e a estética da originalidade (Ibid., p.49), mas também favoráveis ao mercado de edição. Auscultando a gênese do “autor proprietário”, Chartier nos revela que sua consolidação se deve a uma incitativa muito mais do livreiro-editor do que do escritor, já que aquele também retém privilégios do reconhecimento desse direito (Ibid., p.64). Os “direitos de cópia” (copy right) eram vendidos dos autores aos editores, que detinham recursos tecnológicos e capital para fazer circular os exemplares e, claro, lucrar com eles. É de tal modo que o copyright se institui como uma prática que protege o livro enquanto objeto material que é passado do autor ao editor para publicação impressa. Ainda de acordo com Chartier, há um esforço, durante o século XVIII, para “desmaterializar” essa propriedade: “para fazer com que ela se exercesse não sobre um objeto no qual se encontra o texto, mas sobre o próprio texto, definido de maneira abstrata pela unidade e identidade de sentimentos que aí se exprimem, do estilo que tem, da singularidade que traduz e exprime” (CHARTIER, 1999, p.67)
Sob esse ponto de vista, o advento da textualidade eletrônica pode ser encarado como uma intensificação da “desmaterialização” da obra, se percebermos que a esfera jurídica caracteriza a obra como uma categoria passível de assumir diferentes formas na era multimídia. Para Chartier (Ibid.,p.67), as polêmicas em torno do plágio, por exemplo, revelam uma preocupação em identificar o caráter da obra para além das diversas materialidades; assim, há um acordo de sentidos entre o discurso jurídico e o discurso da estética. Se é certo que os contratos de autoria se tornam cada vez mais atentos às variações a que um texto está sujeito, segundo as práticas multimídias (estamos falando das diversas “adaptações”: de um livro impresso para um filme, ou CD-Rom); não é menos verdade que a própria condição do autor está em cheque, face à aparição de movimentos sociais e licenças alternativas ao copyright. É notório, também, que o suporte abre novas possibilidades de circulação dos textos, muitas vezes ensejando um fluxo dinâmico de posições para um mesmo indivíduo, que assume os lugares de autor, editor e leitor concomitantemente. Além disso, a tecnologia potencializa práticas de reprodução, combinação e reescritura de textos, desestabilizando a representação do “autor proprietário”.
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4. Notas sobre “imaginação tecnológica” e as vanguardas modernistas É possível apanhar, na emergência do movimento estético modernista, elementos que sublevam a estabilidade do par homem/obra. A revolução industrial e o desenvolvimento dos meios de comunicação avizinham – não sem conflitos – racionalidade técnica, industrialização e produção cultural. O aperfeiçoamento das tecnologias aproxima a literatura da propagação dos jornais e de seus modos de leitura. Populariza-se o romance-folhetim, notadamente pela crescente alfabetização do público-leitor europeu. A aceleração do cotidiano, o crescente processo de urbanização e as novas práticas de linguagem experimentadas pelos meios de comunicação excitaram transformações de ordem estética que culminaram na eclosão das vanguardas modernistas. O movimento vanguardista se insurge contra a institucionalização da arte e a crença de que uma obra precisa ser “única” e “autêntica”; para isso fez uso de novas técnicas e do que Huyssen vai chamar de “imaginação tecnológica”: A verdadeira invasão da tecnologia na obra de arte e o que se poderia chamar vagamente de imaginação tecnológica podem ser melhor entendidos através de práticas artísticas como a colagem, a montagem e a fotomontagem; de desembocam ainda na fotografia e no filme, formas de arte que podem não ser reproduzidas, mas que são na verdade planejadas para a reprodutibilidade técnica (HUYSSEN, 1997, p. 30).
Ao aproximar criação e tecnologia, as vanguardas subvertem tanto a concepção de arte como obra única, como a condição instrumental da tecnologia. A tecnologia, assim, adquire um sentido crítico, e não se torna um mero pivô (ou refém) da industrialização e do progresso. Huyssen examina como as diversas vanguardas, do início do século XX, incorporam uma “linguagem tecnológica” às suas formas de expressão. Ele observa que o movimento dadaísta atribuía um valor iconoclasta à tecnologia, incorporando-a à prática artística, desarrumando, portanto, os cânones da tradição. Ademais, o Dadá embaraça a lógica burguesa, porque desfuncionaliza a tecnologia enquanto realidade meramente instrumental e econômica, trazendo-lhe uma razão estética e cultural. O fato de que estas representações não visavam a algo abstrato, tal como retratar a condição humana, mas sim criticavam a invasão da instrumentalidade tecnológica do capitalismo na fabricação do cotidiano, e mesmo no corpo humano, é talvez mais evidente nas obras do Dadá de Berlim, a corrente mais politizada do movimento Dadá. (HUYSSEN, 1997, p.32)
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Na vanguarda russa pós-17, os artistas engajavam arte e política. De tal modo que era preciso romper com a concepção decorativa da arte e lhe devolver o potencial político. Havia um desejo de transformar o cotidiano e desfazer a separação entre trabalho e lazer, produção e cultura; algo como uma “produção industrial socializada, uma cultura socialista de massa”. A partir de uma leitura de Benjamin, Huyssen examina de que modo sua teoria se ocupa da recepção da arte como arma política para uma transformação social do cotidiano. Assim, Benjamin endossa a estratégia poética futurista do “choque” como uma ruptura com os modos de recepção já estagnados, propondo assim uma transformação nas formas de sensibilidade. Após a Segunda Guerra Mundial, o mercado cultural cresceu vertiginosamente e o uso de determinadas técnicas (como o choque) deslocou-se de suas motivações políticas e adquiriu um outro sentido social, normalizando-se nos mass media. Huyssen deduz, com alguma melancolia, que “foi a indústria cultural, e não a vanguarda, que conseguiu transformar o cotidiano no século XX” (HUYSSEN, 1997, p.37).
5. Com licença, o autor mudou – cultura hacker e open source. Com a emergência da Guerra Fria, investiu-se, furiosamente, em produção de tecnologia, de tal modo que o sonho do desenvolvimento tecnológico acalentou pesquisadores, constituindo uma cultura acadêmica nas organizações de pesquisa e na geração de cientistas que se formou nas décadas de 60 e 70. Havia, nesse contexto, também uma “imaginação tecnológica”, só que de outra ordem. Uma imaginação que motivou projetos e viu constituir um movimento que pregava a programação criativa e a autonomia perante as instituições que desejavam controlar as informações. Estamos falando dos hackers, uma cultura que emerge das redes de programadores. É certo que os institutos de pesquisa e os centros acadêmicos sediaram a formação de comunidades competentes de programadores, investidos do desejo de pesquisa, ávidos pela construção de um campo de conhecimento cujo valor dominante era o progresso tecnológico. Segundo Castells (2003, p.37), é nesse ambiente fomentador de inovações científicas e constituído a partir de práticas de cooperação (conhecimento em rede) que surge a cultura hacker. Entretanto, é possível distinguir esse grupo dos demais tecnólogos: Duas características críticas devem ser enfatizadas: por um lado, autonomia dos projetos em relação às atribuições de tarefas por instituições ou cooperações; por outro, o uso da interconexão de computadores como a base material, tecnológica da autonomia institucional (CASTELLS, 2003, p.38). 434
De tal modo que se negocia a constituição de uma identidade hacker na “transição de um ambiente de inovação acadêmica, institucionalmente construído, para o surgimento de redes auto-organizadas que escapam a um controle organizacional” (Ibid.,p.38). Os hackers escamoteavam códigos de segurança e pregavam a informação livre de barreiras institucionais. A cultura hacker é, sobremodo, heterogênea e diversa. Tratar de suas variações foge aos propósitos específicos deste artigo2. O que nos interessa destacar é a formação da identidade hacker, constituída a partir de um saber tecnológico e de práticas de linguagem materializadas no novo suporte. Ainda que sob condições históricas diversas, é plausível confrontar os ideais libertários dos hackers com o sonho modernista da transformação estética pela linguagem da tecnologia, passível de desmantelar o controle exercido pelas instituições sobre as formas de expressão e conhecimento. Assim como os vanguardistas, os hackers enaltecem o processo de criação, aproximando-se, em alguma medida, do mundo da arte. Castells ratifica isso, quando destaca no hacker “um ímpeto de criar, independentemente do cenário institucional dessa criação” (CASTELLS, 2003, p.43). Interessa-nos, especialmente, ressaltar a constituição da identidade hacker no interior do laboratório do MIT, de onde emergiram manifestações que, na década de 80, derivam na organização do Movimento do Software Livre e na proposição do copyleft. As trocas simbólicas efetuadas pela negociação dessa identidade remetem à imagem de uma grande rede de conhecimento. Trata-se de uma organização comunitária baseada na informalidade e na descentarlização: a construção do conhecimento se faz por um constante fluxo de informações e trocas; um circuito de criação coletiva. É também com o desejo de proteger essa cultura da partilha que se constitui o discurso dos ativistas do software livre. O grupo reivindica acesso aberto ao código-fonte, com a liberdade de modificá-lo e distribuí-lo. As reivindicações dos ciberativistas esbarram em práticas jurídicas como o copyright que, conforme já sublinhamos neste artigo, descoporificam a obra, estendendo seus privilégios de propriedade intelectual a diversos bens, inclusive aos softwares. As práticas de partilha, cruzamento, combinação e difusão são constitutivas da própria materialidade do suporte eletrônico, não sendo - como já ficou claro - uma “invenção” dos hackers. Entretanto, há relações de poder que disputam sentidos na incorporação das tecnologias à sociedade contemporânea. Sob esse prisma, é relevante retomar a discussão de Castells (2003), quando ele esclarece que o desenvolvimento da Internet não se deve somente, embora em grande parte, à cultura dos hackers, ou de pesquisadores acadêmicos, mas que ela também se encontra com uma lógica empresarial. É justamente a partir da incorporação de práticas comerciais às redes tecnológicas que se reconhece o direito de patentear o software, instigando a interferência de uma lógica de mercado nos laboratórios de pesquisa. O confronto entre essas posições - uma que prega a tecnologia criativa 435
e aberta versus outra que assimila o apetite do mercado ao progresso tecnológico – gera uma tensão entre as formas de regulação da propriedade intelectual na sociedade em rede. Compreendemos, portanto, que a proposição do copyleft, como uma licença de uso alternativa às práticas jurídicas vigentes que protegem a propriedade intelectual, é um “acontecimento discursivo” (PÊCHEUX, 1990), que produz visibilidade à questão do autor na sociedade contemporânea. O Linux, hoje principal concorrente da Microsoft, materializa um sistema operacional baseado na partilha do código-fonte. O exercício do copyleft não ficou restrito às licenças de software, disseminando-se em outras práticas culturais. Para muitos ativistas, o copyleft é uma estratégia de esquerda para resistir ao mercado que agencia os saberes tecnológicos e a rede de comunicações na contemporaneidade, a fim de satisfazer à sua ideologia. É válido destacar a composição da Ciranda Internacional de Informação Independente3, com o slogan “para que outro mundo seja possível, é preciso reinventar a comunicação”. A ciranda é associada ao Fórum Social Mundial e formada por um grupo de jornalistas que praticam o copyleft, permitindo a republicação e a partilha de seus textos. A Creative Commons é mais uma alternativa ao copyright, seguindo a tendência de novas formas de amparo e proteção ao autor. A licença substitui a legenda do copyright “todos os direitos reservados” (copyright), para adotar o seguinte mote: “alguns direitos reservados”. A Criative Commons já agrega a adesão de diversos artistas e intelectuais interessados em difundir suas obras sem se tornarem tão reféns das práticas da indústria cultural. Através de sua adoção, o intelectual pode autorizar a partilha de sua produção, ainda que restrinja sua comercialização ou alteração.
6. Apontamentos para uma discussão acerca da autoria na contemporaneidade Levantamos, durante o artigo, alguns apontamentos para pensar o autor contemporâneo. São eles: 1) o suporte eletrônico possibilita novas práticas de linguagem (leitura/escrita) e, portanto, diferentes relações entre autor/leitor; 2) o copyleft é um acontecimento discursivo que traz para o campo da enunciabilidade o problema do autor no suporte eletrônico, munindo-se de táticas enunciativas que convidam o mercado das tecnologias a um embate discursivo acerca do sentido da propriedade intelectual hoje. Por último, queremos pontuar um terceiro quesito para o problema do autor: a emergência de novas formas de identidade. A sociedade em rede acelera as trocas, esgarça fronteiras e desnuda os processos de negociação simbólica que compõem as subjetividades. Cada vez mais se torna visível que a identidade não é fixa e que 436
nós, sujeitos, somos fragmentados. De tal modo que a representação do sujeito se transforma. Para a Análise de Discurso, o autor é uma função do sujeito. Logo, se as representações do sujeito se transformam, assim também as formas de regulação da autoria tornam-se vulneráveis a essas mudanças. O autor moderno era a fábula da coesão dos sentidos, função de um sujeito centrado. O que o discurso dos ativistas do software livre nos provoca a analisar é: então, quem é esse autor (à esquerda?), que emerge no desalinho das redes, em que o conforto de uma identidade estável, a tinta borrando os dedos, os traços caligráficos de uma assinatura, parecem um gesto perdido, ou a miragem de um mundo cujos hábitos nós nem reconhecemos mais?
Referências Bibliográficas CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Tradução Reginaldo de Moraes. São Paulo: Ed. Unesp, 1999. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 11. ed. São Paulo: Loyola, 2004. ____.O que é um autor? Tradução de Antonio Fernandes Cascais e Eduardo Cordeiro. 4º ed. Lisboa: Passagens, 2000. GREGOLIN, Maria do Rosário. Com que sonha nossa vã autoria? In: ____; BARONAS, R. Análise do Discurso: as materialidades do sentido. São Carlos: Claraluz, 2004. HUYSSEN, Andreas. A dialética oculta: vanguarda – tecnologia – cultura de massa. In: ____. Memórias do Modernismo. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997. NUNES, Maíra Fernandes Martins. Tempo e linguagem no webjornalismo. 2005. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Centro de Estudos Gerais. Programa de Pós-Graduação em Comunicação – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2005. ORLANDI, Eni Puccinelli. Interpretação; autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução: Eni P. Orlandi. 3. ed. Campinas, SP: Pontes, 1990.
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Notas 1 Código-fonte (em inglês, source code) é o conjunto de escritos cuja compilação constitui o software, isto é, o programa executável num computador. 2 O hacker é comumente associado à pirataria e ao crime virtual, sobretudo pelos meios de comunicação de massa, num processo discursivo de apagamento da história desse movimento. A cultura hacker reage, produzindo um discurso de distinção entre o “hacker” e o “cracker”, identificando estes como praticantes de violações e atos ilegais. Castells, entretanto, considera, em termos analíticos, que os crackers são subculturas do universo hacker. 3 Para consultar o site da Ciranda Internacional de Informação Independente, acessar: http://www.ciranda.net
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• AUTORIA E LEITURA: NAS TEIAS DO DISCURSO vIrTuAL Viviane Barriquello (UFRGS) Introdução O discurso, objeto de estudo da Teoria da Análise do Discurso (AD), é considerado, seguindo o pensamento de Pêcheux (1969/1975)1, não como transmissão de informação, mas como “efeito de sentidos entre interlocutores, enquanto parte do funcionamento social geral”. Falar em discurso, significa reportar-se a um dos aspectos materiais da ideologia, pois é nele que língua e ideologia se encontram. Em AD, o que interessa é compreender como um discurso funciona e, ao funcionar de uma maneira e não de outra, que efeitos de sentido produz. Considerando que não existe prática sem sujeito e, uma vez que os indivíduos agem sempre na forma de sujeitos como sujeitos, refletir sobre a prática discursiva levará necessariamente à questão do efeito do complexo das formações discursivas (o interdiscurso) na forma-sujeito. Não se trata, no entanto, de dizer que uma prática discursiva seja a prática de sujeitos, mas sim de constatar que todo o sujeito é constitutivamente colocado como autor e responsável por seus atos em cada prática que se inscreve; e isso pela determinação do complexo de formações ideológicas (e, em particular, das formações discursivas) no qual ele é interpelado em “sujeito responsável”. Desta forma, propomos a discussão em relação à noção de sujeito-autor e leitor perpassando por um dos fenômenos que mais tem chamado a atenção neste momento da história da Internet é, justamente, o fenômeno dos weblogs. O presente artigo centra-se no aprofundamento de estudos acerca da Análise do Discurso de corrente francesa, propondo direcionar a investigação ao Webjornalismo com o enfoque voltado aos blogs2 jornalísticos, por entender que estes se constituem, nos dias atuais, como um novo veículo de construção do processo de efeitos de sentido entre interlocutores que permite, dentre as possíveis análises, o aprofundamento das noções de autoria e leitura. Optamos pelo estudo de blogs jornalísticos por acreditarmos ser um meio que precisa ser melhor investigado, pois no Brasil a pesquisa, visto pelo prisma da AD, ainda é muito incipiente.
Sujeito-autor Pensar a noção de autor é mover-se por caminhos que nos levam, em primeira instância, a refletir sobre a noção de texto, tendo em mente que este representa a materialidade lingüística que nos possibilita o acesso ao discurso. Trabalhar sob a 439
perspectiva teórica da Análise do Discurso requer um direcionamento de análise para o modo como o texto organiza sua relação com a exterioridade e o modo como organiza internamente estes elementos provenientes desta exterioridade com o objetivo de produzir um texto que represente ser homogêneo. Assim, diferentemente das demais teorias textuais, para a AD o que menos interessa é a organização lingüística interna ao texto. Seguindo os parâmetros desta teoria, é possível pensar o texto como entreaberto, ou seja, um espaço que não se fecha em si mesmo, pois estabelece relações com outros textos e com outros discursos. Nessa perspectiva, o texto segundo Indursky (2001, p 29-30) se constitui a partir de uma série de fatores como: relações contextuais, que remetem o texto para o contexto socioeconômico, político, histórico, determinando assim as condições de sua produção; relações textuais, relacionam o texto com outros textos, é o que habitualmente se nomeia como sendo intertextualidade3; relações interdiscursivas4, aproximam o texto de outros discursos de tal forma que não é possível identificar o que foi produzido no texto e o que é proveniente do interdiscurso. Diante de tais características o que se evidencia é um texto heterogêneo que comporta em sua constituição diferentes textos, diferentes discursos e diferentes subjetividades. Pensar o texto como sendo homogêneo requer que seja acionada outra noção teórica, a de função-autor. Para Foucault (2004, p. 26) o autor é entendido não como o indivíduo empírico que pronuncia ou escreve um texto, mas sim como um “princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência”, o que o torna responsável pelo texto que produz. Foucault, em O que é o autor?, diz que todos os discursos que são providos da função autor comportam uma pluralidade de “eus”. Mais adiante afirma que o sujeito ocupa um lugar, uma posição discursiva5 que tem a forma da individualidade do eu. Ou seja, a partir da nossa leitura de Foucault, o autor ocupa a função de unidade, coesão e homogeneidade do texto, assim ele organiza de tal forma todos os “eus” que passam a ocupar, aos olhos do leitor, uma única posição discursiva. Adentrando no campo da Análise do Discurso, Orlandi, retomando as reflexões de Foucault sobre o autor, diz que essa noção já é uma função da noção de sujeito, portanto, responsável pela organização do sentido e pela unidade do texto produzindo o efeito de continuidade do sujeito. Para a AD a função-autor “se realiza toda vez que o produtor da linguagem se apresenta na origem, produzindo um texto com unidade, coerência, progressão, não-contradição” (ORLANDI, 1996, p. 69). A partir dessa afirmação pode-se pensar a função-autor também como o lugar em que se constrói a unidade do sujeito, revelando assim, uma das dimensões da interpelação do indivíduo em sujeito, interpelação esta que traz consigo a aparência de unidade que a dispersão6 toma. 440
Desta forma, segundo Orlandi e Guimarães, o que se observa são os efeitos da ideologia produzindo a aparência da unidade do sujeito e a transparência do sentido. É a relação do sujeito com o texto, deste com o discurso, e a tomada de posição frente a uma formação discursiva determinada que produz a impressão da unidade, da transparência, da completude e da coerência criada pelo sujeito autor. Ao fazerem uma interface com Ducrot, Orlandi e Guimarães (1988) propõem pensar a função-autor como correspondente a diferentes funções enunciativodiscursivas, como segue, nessa ordem: locutor, enunciador e autor. Em que o locutor é aquele que se representa como “eu” no discurso, é o falante material empírico bruto, o enunciador é a perspectiva que esse “eu” assume enquanto produtor da linguagem, ou seja, é o sujeito dividido em suas várias posições no texto. Já o autor é, dentre as demais dimensões enunciativas do sujeito, a que mais se determina pela exterioridade, afetada, portanto, pelo social e suas coerções. O autor apaga o sujeito7 produzindo uma unidade que resulta de uma relação de determinação do sujeito pelo seu discurso, tem-se assim, a ação do discurso sobre o sujeito. Uma outra noção necessária a ser abordada em relação à autoria diz respeito à interpretação. Para Orlandi (1996, p. 70) o sujeito só se faz autor se sua produção for passível à interpretação. Ao assumir sua posição de autor produzindo um evento interpretativo ele inscreve sua formulação no interdiscurso e passa a historicizar seu dizer. Desta forma, a autoria é caracterizada por Orlandi (1996, p. 97) como sendo: “A produção de um gesto de interpretação, ou seja, na função-autor o sujeito é responsável pelo sentido do que diz, em outras palavras, ele é responsável por uma formulação que faz sentido. O modo que ele faz isso é que caracteriza sua autoria. Como, naquilo que lhe faz sentido, ele faz sentido. Como ele interpreta o que interpreta.” (ORLANDI, 1996, p. 97)
Diante de tal constatação se recorre a Pêcheux (1975)8 para poder explicitar que a afirmação de que o sujeito é responsável pelo seu dizer se constitui como uma ilusão necessária do falante. Ou seja, é pelo funcionamento da ideologia que ele assim se “vê”, mas de fato o que ele faz é retomar sentidos preexistentes e inscritos em formações discursivas determinadas. É da representação do sujeito como autor que mais se cobra esta ilusão de ser a fonte e origem do seu discurso, pois sua relação com a linguagem está mais suscetível ao controle social. Em outras palavras, o sujeito tem como impressão: 1º - de ser a fonte e origem do que diz, e 2º - da realidade do seu pensamento, já que o que diz só poderia ser dito daquela maneira. Estes dois esquecimentos, ou então estas duas ilusões é que permitem ao sujeito falar e ao falar pensar o sentido como transparente, o texto como único e fechado e sua autoria como origem do dizer, sendo que na verdade seu discurso não nasce e nem termina nele. Permeando este campo de ilusões, Gallo, em Discurso da escrita e ensino (1992), 441
pensa a função-autor concretizando-se ao se dar o fecho a um texto, ao se colocar o ponto final. “A assunção de autoria pelo sujeito, ou seja, a elaboração da função-autor consiste, em última análise, na assunção da ‘construção’ de um ‘sentido’ e de um ‘fecho’ organizadores de todo o texto. Esse ‘fecho’, apesar de ser entre tantos outros possíveis produzirá, para o texto, um efeito de sentido único, como se não houvesse outro possível. Ou seja, esse ‘fecho’ torna-se ‘fim’ por um efeito que faz parecer ‘único’ o que é ‘múltiplo; transparente o que é ‘ambíguo’”. (GALLO, 1992, p.58)
Para a Análise do Discurso a linguagem assim como o discurso são sempre incompletos, e por isso o autor jamais realiza o fechamento total de um texto. O texto só é fechado enquanto unidade empírica de análise, visto como uma superfície fechada nela mesma, aí sim possui começo, meio e fim. Gallo atesta que o fim é, na verdade, o efeito de sentido que o “fecho” produz. Efeito esse que faz parecer “único” e “absoluto”, o que é sempre “arbitrário”. Outra noção desenvolvida por Gallo que requer nossa atenção diz respeito ao que ela define por função-autor e efeito-autor. Para a AD o sentido das palavras se dá pelo posicionamento do sujeito em uma formação discursiva, e esta por sua vez se define como sendo heterogênea, ou seja, comporta em seu interior diferentes posições-sujeito que correspondem a maneira de como o sujeito se relaciona com a forma-sujeito, a função-autor, portanto, seria o modo particular de cada indivíduo se colocar na posição-sujeito. De acordo com o que salienta Gallo (1999, p. 200), o “efeito-autor se produz sempre e exatamente no confronto entre duas formações discursivas dominantes”. Assim, pela função-autor e pelo efeito-autor, o texto apresenta unidade do dizer, coerência e fechamento. Constituindo-se pela dominância de uma FD sobre outras e pela dominância de uma posição-sujeito sobre as demais. A função-autor é própria de todo discurso de escrita9. Assim, a cada função-autor há um efeito-autor correspondente, efeito este de unidade do dizer, de coerência e homogeneidade. Um texto produzido diante de tais perspectivas tem como produtor um sujeito interpelado ideologicamente e identificado com uma posição-sujeito inscrita em uma formação discursiva, ou seja, produz seu texto a partir de um lugar social e com isso exerce a função enunciativa de autor. De acordo com Indursky (2001, p. 30-31) esse sujeito-autor mobiliza diferentes relações com a exterioridade, mobiliza vários recortes textuais relacionados a diferentes redes discursivas e diferentes subjetividades10 e os organiza, dando-lhes a configuração de um texto uno e significativo. Ou seja, o sujeito-autor, ao reunir e organizar os recortes heterogêneos e dispersos provenientes do exterior, produz a textualização desses elementos que, ao serem aí recontextualizados, se naturalizam “apagando” as marcas de sua 442
procedência, exterioridade, heterogeneidade e dispersão, e com isso o que se torna perceptível é uma superfície textual plana, lisa e uniforme. Sob a ilusão da homogeneidade textual, da completude e do fechamento, vai se instaurar o processo de leitura. Cabe assim pensar como se dá o processo desta prática de leitura frente a um texto com tais características.
Sujeito-leitor Se o autor, conforme discorrido anteriormente, é um sujeito interpelado ideologicamente que se identifica com uma formação discursiva assumindo posição frente a um texto, o leitor também o é. Isso nos leva a pensar que o sujeito-leitor ocupa uma posição-sujeito em relação à ocupada pelo sujeito-autor, podendo identificar-se ou não com tal posição. Cada leitor produz sua leitura de um lugar social determinado, que pode ou não coincidir com o lugar social em que o sujeitoautor produziu o texto. Assim, o leitor passa a instaurar o seu próprio trabalho discursivo. Concordamos com Indursky (2001, p. 35) quando diz que o sujeito-leitor ao dialogar com o efeito-texto11 entra no jogo ilusório e acredita que o texto se configura como uma superfície homogênea e que a única voz com a qual se defronta é a do sujeito-autor, quando, sob a perspectiva da Análise do Discurso, sabemos que aí estão representadas outras vozes, outras posições-sujeito advindas de diversas formações discursivas que o autor, a partir de recortes, mobilizou e textualizou, unificando assim o que era disperso. Mesmo sob o efeito da unicidade, o leitor não tem como evitar a interlocução com as demais vozes presentes no texto, com isso, sua prática de leitura se lança em uma interdiscursividade insuspeita que lhe faz interagir com todos os outros sujeitos presentes no efeito-texto além do sujeito-autor. Desta forma, tornando presente os parâmetros da AD em que afirma que o texto é heterogêneo em sua essência, temos a interlocução produzida pela prática de leitura também fortemente heterogênea. Vale ressaltar, que esta interdiscursividade, ou seja, que o interdiscurso quando materializado no intradiscurso assume a modalidade de uma presença ausência, conforme assinala Courtine (1999). Em outras palavras, o interdiscurso está presente, mas não é totalmente perceptível, pois cada sujeito-leitor tem um domínio maior ou menor de perceber esta interdiscursividade, vai depender, em grande parcela, de sua história particular de leituras, ou em outros termos, das condições de produção de leitura de cada sujeito-leitor. Desta forma, a cada novo sujeito-leitor, novas relações surgirão, novas leituras serão possíveis, novas interpretações serão projetadas, enfim, novos sentidos serão produzidos. Ler, de acordo com Pêcheux (In: Maldidier, 1990, p. 286), é mergulhar nessa teia invisível, constituída de palavras já-ditas e já esquecidas que constituem um “corpo sócio-histórico de vestígios” a serem lidos. 443
Frente ao efeito-texto o sujeito-leitor sob a prática discursiva de leitura passa a debater, discutir e interagir, assumindo uma postura crítica e com isso, conforme constata Indursky (2001, p. 38), o sujeito-leitor promove a “desconstrução” do efeito-texto desestabilizando a superfície dita “plana”, “bem estruturada” e “homogênea”, reconhecendo e introduzindo aí elementos que lhe são externos. Como conseqüência, o efeito-texto de homogeneidade, de fechamento e de completude passam a ser propriedades estritamente simbólicas, pois o texto reaparece na sua plenitude de heterogeneidade e se transforma em um espaço discursivo incompleto e fortemente lacunar. Em suma: nas palavras da autora recém citada, “o resultado do trabalho discursivo da produção de leitura é desestabilizar sentidos que parecem estabilizados, podendo mesmo levá-los ao deslocamento, à deriva, à ruptura”, podendo, desta forma, produzir sentidos divergentes dos inicialmente pretendidos pelo sujeito-autor. Entretanto, a produção discursiva da leitura não se limita única e exclusivamente à desestabilização do efeito-texto produzido pelo sujeito-autor. É função imposta ao leitor a reconstrução textual que se efetiva ao preencher as lacunas produzidas por sua prática discursiva. Sintetizando: ao mesmo tempo em que o sujeitoleitor desconstrói o efeito-texto produzindo certas lacunas em sua estruturação, resultado do atravessamento da interdiscursividade, ele também reconstrói o texto preenchendo estas lacunas a partir de sua história particular de leituras que é acionada pela memória discursiva. Desse trabalho de desconstrução/reestruturação o texto é ressignificado e se reconstrói um novo efeito-texto. Assim, deste processo podemos considerar o sujeito-leitor como um sujeito-autor, pois assume, no momento da reconstrução textual, a função de organizar as diferentes vozes anônimas da interdiscursividade que fazem presença constante na prática de leitura, e recaindo, assim como o autor, na ilusão do sentido único e na homogeneidade textual. Ver o texto pelo prisma da função-autor e da função-leitor, sob os parâmetros da Análise do Discurso, é estar diante de um texto duplamente heterogêneo, e caso este mesmo texto tenha mais de um leitor, estaremos diante de um texto infinitamente heterogêneo, como é o caso dos blogs.
Weblog O fenômenos dos weblogs é relativamente recente. De acordo com Rebecca Blood (2002a, online), a idéia do weblog (websites “pessoais” ou “temáticos” que são atualizados constantemente) ), remonta ao início de 1999, quando começaram a aparecer os primeiros blogs. Logo, o número começou a aumentar de modo significativo. Os weblogs inicialmente eram filtros do conteúdo na Internet. Baseavam-se em links e dicas de websites pouco conhecidos (BLOOD, 2002a, online), bem como comentários, ou seja, funcionando, também, como publicação 444
eletrônica, destruindo o mito de que weblogs tenham sido criados com a função exclusiva de servirem como diários eletrônicos. O formato diário parece ter surgido ao mesmo tempo com igual força, segundo as observações de Blood,. O conhecimento da linguagem HTML era uma barreira constante para o aumento do número de usuários, que só foi quebrada com o surgimento das ferramentas dos sistemas baseados na Web, como o Blogger12 e o Groksoup13, lançados pela Pyra14 em agosto de 1999. Os weblogs originais eram dirigidos por links. Cada um era uma mistura de proporções únicas de links, comentários e pensamentos e ensaios pessoais.Weblogs podiam apenas ser criados por pessoas que já sabiam como fazer um website15. Passando a classificar-se como diários virtuais, os blogs têm recebido as mais variadas atenções. Eles se caracterizam, principalmente, pela forma de micro conteúdo, se organizam cronologicamente e passam por atualizações freqüentes. Os blogs são herdeiros das páginas pessoais, com mais dinamismo e mutabilidade. Os blogueiros escrevem sobre os assuntos que mais lhes agradam, podendo um blog versar sobre, praticamente, qualquer coisa. Além disso, muitos blogs contam com uma ferramenta que permite aos leitores manifestarem-se através de comentários. Enquanto no blog apenas o blogueiro pode manifestar-se, na ferramenta de comentários qualquer leitor pode discutir ou argumentar sobre o texto. Uma outra ferramenta importante é o trackback, que permite que um determinado assunto discutido em um post (bloco de texto) e que também está sendo discutido em outros blogs, possa ser referenciado. Em cada blog é comum encontrarmos uma lista de outros blogs que o blogueiro lê e recomenda a leitura. Quase como uma “vizinhança” no ciberespaço, conforme afirma Recuero (2003). Além disso, a ferramenta de comentários permite que o weblog seja um espaço de discussão, de interação mútua, capaz de gerar laços sociais e, também, comunidades, são os denominados webrings: “utilizamos o termo webring para definir círculos de blogueiros que lêem seus blogs mutuamente e interagem nesses blogs através de ferramentas de comentários” (RECUERO, 2003, online). Os blogs são linkados uns aos outros e formam um anel de interação diária, através da leitura e do comentário dos posts que os vários indivíduos, que chegam a comentar os comentários uns dos outros ou mesmo deixar recados para terceiros nos blogs.Os comentários tornam aquilo que seria um bloco de texto estático em um conjunto dinâmico de interação. A realidade é que a ferramenta proporciona um fórum um espaço de manifestação democrática. E muitas dessas ferramentas de comentários proporcionam também que os comentaristas acrescentem links aos seus comentários, configurando assim, uma grande rede de hipertexto. É o conjunto dessas características e ferramentas que faz dos blogs um objeto de pesquisa rico para a Análise do Discurso, e em especial às noções de autoria e leitura. 445
Blog: autoria e leitura Como escrito anteriormente, os blogs podem versar sobre qualquer assunto, podem ser pessoais, temáticos ... Neste artigo o foco está direcionado ao blog-jornalístico que, mesmo tendo a característica de pessoal, está atrelado a um jornal on-line. Os críticos do uso jornalístico de weblogs salientam a informalidade do meio e afirmam não se tratar de jornalismo como é o caso de Rebecca Blood “Apesar de considerar os weblogs como um componente vital de uma rica dieta de mídia, no fim das contas, weblogs e jornalismo são simplesmente coisas diferentes. O que os weblogs fazem é impossível para o jornalismo tradicional de reproduzir, e o que o jornalismo faz é impraticável de ser feito em um weblog. Para mim, reportar notícias consiste em entrevistar testemunhas e especialistas, checar fatos, escrever uma perspectiva original sobre um assunto, e supervisão editorial: o repórter pesquisa e escreve a história, e seu editor assegura-se de que ela está de acordo com suas expectativas. Cada passo é desenvolvido para se alcançar um produto consistente que é divulgado de acordo com os padrões da agência de notícias. Weblogs não fazem nada disso. Weblogs não têm supervisores (gatekeepers), eles são geralmente produzidos nas horas vagas dos seus donos. Blogueiros não adotam a checagem dos fatos, e eles não têm de responder a ninguém, exceto a si mesmos.” (BLOOD, 2002b, p. 19) (Tradução da autora)
Considerando as palavras do fragmento acima, encontramos na própria crítica jornalística indícios que nos apontam para uma nova função-autor dentro do jornalismo. O jornalista em um blog não tem mais por função checar os fatos, ir à fonte.... O blogueiro tem por tarefa, conforme as palavras de Noblat16, ler as notícias dos principais jornais que circulam, tanto na mídia nacional quanto estrangeira, e postar comentários, fragmentos e opinião. Ao assumir a função-autor este sujeito se depara com o dever de organizar as demais vozes que circulam pelo seu dizer unindo-as como se fossem uma só. Assim, o sujeito assume a função de proporcionar linearidade, coesão, coerência, fechamento de sentido e unidade ao texto. Levando estas considerações para o foco de análise que se propõe este artigo, pensar o fecho e a unidade de um texto é uma tarefa um tanto penosa . Explico: o que seria o fim de um texto quando se pensa o campo do hipertexto? Afinal o texto empiricamente apresenta uma estrutura visível com começo, meio e fim, mas no momento em que se coloca um link e este texto deixa de ser único e passa a se inter-relacionar com outros textos, tornando-se um hipertexto, quem coloca este ponto final (mesmo que imaginário) não é mais o autor em si, mas o leitor que vai construir seu próprio caminho de leitura, concebendo assim um novo texto. Com 446
isso, frente à perspectiva de Gallo de que o autor é quem dá este efeito de “fecho” nos deparamos no hipertexto com a função-autor/leitor. Para pensar a autoria de um blog é preciso conceber tanto autor quanto leitor responsáveis pelo efeito-autoria. Vejamos o blog do Noblat (29 de out. de 2006):
(http://oglobo.globo.com/pais/noblat/default.asp?periodo=20061029)
No blog acima temos um post de Ricardo Noblat enviado dia 29/10/07 às 20h e 11m. Este texto é um recorte de outro texto retirado do Blog do Reinaldo Azevedo (revista Veja On-line). Como se trata de um recorte, poderíamos nos perguntar como fica a questão da autoria, já que não foi Noblat quem produziu lingüisticamente o texto e, portanto, não organizou o efeito-texto (coerência, unidade, homogeneização de sentido...). Entendemos, neste caso, que o sujeito por estar interpelado ideologicamente se posiciona e, frente ao texto, recorta uma parte dentre tantas para postar na página principal. Desta forma, concebe ao fragmento o efeito de coerência, unidade e também de fecho. Retomando as palavras de Foucault (2004, p. 26), constatamos que o autor é entendido não como o indivíduo empírico que pronuncia ou escreve um texto, mas sim como um “princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência”, o que o torna responsável pelo texto que produz. No fim do fragmento selecionado Noblat tem um link para o blog do Azevedo e outro para os comentários, que no total contabilizam um número de 163. Diante do 447
exposto, o leitor tem várias opções: ler só o post do Noblat; ler o post e os comentários; ler o post e o blog do Azevedo; ler o post, o blog do Azevedo e os comentários do blog do Azevedo; ler o post, os comentários, os links dos comentários, o blog do Azevedo, os comentários do blog do Azevedo, os links disponibilizados nos comentários do blog do Azevedo; enfim, o percurso de leitura pode ser variado, mas a cada percurso é um novo texto e um novo efeito de sentido que será produzido. Quem delimita o que pode ou não escrever, quem delimita os links centrais a serem explorados é o autor, assim como, quem delimita o efeito de coerência e o efeito de fim do hipertexto, o que pode ou não ser lido, é o leitor. Outra função exercida pelo leitor é a desestabilização do texto, ou seja, ele o fragmenta em inúmeros recortes e torna visíveis as vozes que o autor tentava esconder e unificar como suas. Com isso, o blog se torna um lugar privilegiado de pesquisa por possibilitar a análise tanto da função-autor quanto da função-leitor, pois este ao desconstruir o efeito-texto o reconstrói marcando o seu posicionamento através dos comentários que passam a se configurar como um novo efeito-texto, é a desconstrução e a reconstrução marcadas em um mesmo espaço, funcionando como efeitos de sentido.
Bibliografia BLOOD, Rebecca. Weblogs: A History and Perspective. Disponível em: <http://www. rebeccablood.net/essays/weblog_history.html> (01/08/2002a) ______. The weblog handbook. Cambrige (USA): Perseus, 2002b. COURTINE, Jean-Jacques. (1983) O chapéu de Clémentis. Observação sobre a memória e o esquecimento na enunciação do discurso político. Tradução de Marne Rodrigues de Rodrigues. In: INDURSKY, Freda; LEANDRO FERREIRA, Maria Cristina. Os múltiplos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999, p. 15-22. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 2.ed. São Paulo: Passagens, 1992. ______.A ordem do discurso. 10.ed. São Paulo: Loyola, 2004. GALLO, Solange. Discurso da escrita e ensino. Campinas: UNICAMP, 1992. _______. Autoria no mito indigena. In: INDURSKY, Freda e FERREIRA, Maria C. L., Os múltiplos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999. INDURSKY, Freda. Da heterogeneidade do discurso à heterogeneidade do texto e suas implicações no processo da leitura. In: A leitura e a escrita como práticas discursivas. EDUCAT – Pelotas, 2001. MALDIDIER, Denise. L’inquiétude du discours; textes de Michel Pêcheux. Paris: Ed. Des Cendres, 1990 ORLANDI, Eni P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 448
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Notas 1 Tradução brasileira em 1997 2 Blog é uma abreviação de weblog, qualquer registro freqüente de informações pode ser considerado um blog (últimas notícias de um jornal on-line por exemplo). A maioria das pessoas tem utilizado os blogs como diários pessoais, porém um blog pode ter qualquer tipo de conteúdo e ser utilizado para diversos fins. Uma das vantagens das ferramentas de blog é permitir que os usuários publiquem seu conteúdo sem a necessidade de saber como são construídas páginas na internet, ou seja, sem conhecimento técnico especializado. 3 Pensar em intertextualidade sob o ponto de vista da AD é deslocar um conceito proveniente da literatura e passar a entendê-lo como uma noção que aponta não apenas para um efeito de origem, quando trabalha com o discurso fundador, mas aponta igualmente para outros textos inscritos na mesma matriz de sentido. 4 Conforme Indursky (2001, p.30) “o interdiscurso pode ser entendido como a memória do dizer, remete a redes discursivas tais que já não é possível identificar com precisão a origem de um texto, visto que o discurso está disperso em uma profusão descontínua e dispersa de textos relacionando-se com FDs e mobiliando posições-sujeito igualmente diversas”. 5 “Para a AD além de ocupar uma posição esta também se inscreve em uma FD específica.” (ORLANDI e GUIMARÃES, 1988, p.57) 6 O discurso é caracterizado pela dispersão: dos textos e do sujeito. Dispersão de 449
texto por este ser sempre atravessado por várias posições do sujeito. Dispersão do sujeito por este ser descontinuidade. 7 O autor é a instância que haveria maior apagamento do sujeito. Apagamento no sentido de ser a própria possibilidade de transmutação do sujeito em suas múltiplas formas e funções. 8 Tradução brasileira em 1988 9 Ver noção de discurso de escrita em GALLO, Discurso da escrita e ensino (1992) 10 De acordo com Indursky (2001) “palavras já-ditas em outro lugar, ao serem apropriadas pelo sujeito-autor, precisam ser atravessadas pela modalidade do esquecimento para que possam ressoar como novas no interior do texto que está sendo produzido”. 11 Entendemos por efeito-texto este espaço ilusório criado pelo autor de completude, transparência, homogeneidade, enfim, o efeito-texto reflete uma aparente unidade. 12 http://www.blogger.com 13 http://www.groksoup.com 14 http://www.pyra.com 15 Refero-me aqui à linguagem HTML 16 Noblat tem um blog político no jornal O Globo e durante o evento MediaOn (1º Seminário Internacional de Jornalismo Online), realizado nos dias 12 a 14 de junho de 2007, relatou sobre o ato de ser blogueiro.
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• A RELAÇÃO VERBAL VS. NÃO-VERBAL SOB A SOMBRA DA AUTORIA EM “SUBSTÂNCIA”, DE J. G. ROSA Eduardo Alves Rodrigues (MEL/ILEEL/UF) 1. Considerações Iniciais A produção de Guimarães Rosa é reconhecida como patrimônio artístico-cultural brasileiro; desde sua primeira aparição pública, em 1929, quando publicou o conto “Mystério de Highmore Hall” na revista carioca “O Cruzeiro”; e mais tarde, em 1937, quando inscreve o volume Contos – que, posteriormente, em 1946, integrará o saboroso Sagarana – ao Prêmio Humberto de Campos. Consagrouse, definitivamente, entretanto, com Grande Sertão Veredas, de 1956. Ao fazermos lembrança desse percurso, visamos a apontar a representação de um escritor que sempre, a nosso ver, marcou (e provavelmente foi marcado por) um trabalho peculiar com a linguagem e com seus enigmas; o que parece definir o que se convencionou aludir por estilo rosiano. Esse trabalho parece-nos, contudo, ainda mais elaborado na coletânea Primeiras estórias, de 1962, onde “o índice é ilustrado, conto por conto, linha por linha, segundo esboços de sua mão, habilmente redesenhados por Luís Jardim” – explica sua filha Vilma G. Rosa, em Relembramentos (1999, p. 83). Desse modo, ao manusearmos Primeiras estórias, deparamo-nos com o desconforto de encontrar o índice posposto ao texto propriamente dito e, além disso, encontrarmos ali proposições de novos enigmas – a “disfarçar, para farçar o que não ousamos responder?” – já questionara outrora Carlos D. de Andrade1. Enigmas porque, ao modo das cartas enigmáticas presentes em almanaques produzidos durante todo o século XX (assim como nos jogos de palavras, as palavras cruzadas, por exemplo), há desenhos e símbolos relacionados ao verbal, cabendo ao seu leitor decifrá-los. No caso das Primeiras estórias, não nos parece possível decifrá-las sem cifrá-las novamente. Daí o movimento de leitura dos enigmas rosianos se constituírem como interpretações possíveis. Em relação ao trabalho de descrição-interpretação de Primeiras estórias, lidamos com a hipótese de que elas constituem enigmas, para os quais, entretanto, não existem chaves de leitura. Os enigmas rosianos são elaborados a partir do traço pictórico que desenha-mostra pequenos quadros desguarnecidos de molduras, os quais, assim compreendemos, marcam pontos de deriva para as estórias, por sua vez construídas via outra materialidade, a verbal. Isso porque, ao alcançarmos o índice ilustrado, como leitores, somos convidados a reconhecer em Primeiras estórias um conjunto, na verdade, de estampilustradas estórias, em que a ilustração indicial demanda interpretação. Uma interpretação que se mantém em aberto, isto é, constitui lugar de ancoragem para a 451
produção de (re)leituras, ou seja, novos movimentos de deciframento-ciframento: edições de outros enigmas. Eis, a nosso ver, o jogo estruturador dos enigmas rosianos em Primeiras estórias, engendrados sobre outro jogo, no nível de sua forma multimodal, em que o verbal e o não-verbal se relacionam de modo a costurar uma plataforma de discursividades possíveis. Assim é que o movimento de leitura demandado pelas estampilustradas2 implica operações concomitantes de deciframento e ciframento3. Logo, em relação a elas, o trabalho de decifrar-cifrar deve ser operado tanto sobre a estória, quanto sobre a ilustração, que as compõem enquanto formulações. Ou seja, ao empreendermos o trabalho de decifrar-cifrar a forma verbal, deparamo-nos com o buraco do nãosentido; cuja borda, por sua vez, deve ser desenhada a partir do movimento de deciframento-ciframento que a ilustração lhe impõe. Sem que seja possível, contudo, produzirmos uma interpretação definitiva para o conto. Assim, dada a relação ali construída, que investe no jogo entre formas verbais e não-verbais para significar, qualquer movimento de leitura que tenda ao um do sentido é imediatamente furado pela necessidade imposta pela materialidade multimodal de ser cifrada, sobretudo por causa da presença do não-verbal, cuja função não é a de dizer, mas a de mostrar. Isso se dá pela via de uma radicalidade constitutiva do verbal: não poder dizer tudo. E por necessidade, recorrendo ao não-verbal, de formular isso que pretende significar um ponto de vista acerca de um tema, mas que, contudo, consegue apenas significá-lo também parcialmente. Pois, como sujeitos, só nos é possível semidizer, uma vez que isso que aparece encadeado na escrita e/ou no desenho é produção que só pode comportar o não-todo do sentido, o não-um da interpretação. Consideramos as ilustrações constitutivas das estampilustradas, portanto, compostas pela regra de um outro estatuto, distinto daquele que comumente rege, por exemplo, as ilustrações dos livros infanto-juvenis, em que o pictórico aparece como decalque do verbal, de modo a cercá-lo e produzir uma explicação visual para a palavra escrita. Daí se acentuar, a nosso ver, nosso desconforto, com leitores, diante de Primeiras estórias, à medida que não nos parece sustentável tomarmos as estórias pelas ilustrações, isto é, tentar explicar as primeiras pelas últimas e vice-versa; e, assim, estabelecermos uma interpretação que pudesse dar conta da abrangência do ponto de vista apresentado sobre a problemática em torno da qual o volume encontra sua unidade. As estampilustradas estórias, dizemos, propõem um contar-mostrar – adverte-nos ainda Drummond – “sem desvendar/ o que não deve ser desvendado”, ou, como descreveu o poeta: João era fabulista? / fabuloso? / fábula? / Sertão místico disparando / no exílio da linguagem comum? / (...) / Embaixador do reino / (...) / Reino cercado / não de muros, chaves, códigos, / mas o reino-reino? / Por que João sorria / se lhe perguntavam / que mistério é esse? / E propondo desenhos figurava / menos a resposta que / outra questão ao perguntante?4 452
É nesse sentido que compreendemos as estampilustradas estórias como um jogo entre narrativas que se relacionam, tendo sido construídas a partir de um suporte material híbrido, pois montado sobre uma base multimodal, em que o verbal e o não-verbal encontram-se relacionados. Denominamos a esse suporte teia, por englobar fios narrativos que se configuram sob a forma do título, da estória (palavra escrita) e da ilustração (forma pictórica); fios que se entretecem e configuram o modo singular de Rosa discorrer a respeito de um tema que é de todos os escritores, porque não dizer de todos os homens, o estar-no-mundo – nas palavras de Vilma G. Rosa, “(...) que, para meu pai, é o nosso conflito essencial, drama talvez único.” (Op. cit., idem) Essa materialidade híbrida em Primeiras estórias também constitui, para nós, um ponto de partida para discutirmos a relação entre diferentes formas de linguagem, contestando um mero caráter ilustrativo da presença do não-verbal ali indiciando o volume de contos – em que a operação de primazia seria a de repasse do nãoverbal pelo verbal (ORLANDI, 1995). Como dissemos, interpretamos as ilustrações como narrativas construídas com uma linha distinta capaz de produzir, enquanto formulação, o desenho, a imagem; portanto, assim como as estórias formuladas pela via da palavra, as ilustrações indiciais também narram, tão-somente porque, via linguagem não-verbal, mostram uma narrativa e, dessa forma, também determinado ponto de vista acerca de um tema. As ilustrações narram, portanto, pelo mecanismo da mostração5, adquirindo materialidade sobre certa extensão horizontal, em que linhas e hachuras são intercaladas a espaços em branco, sugerindo formas, desenhos, símbolos, gravuras. Enfim, quadros estáticos que ganham dinamicidade porque apresentam certos encadeamento e linearidade, possíveis de serem identificados em, no mínimo, duas direções, à esquerda e à direita. Como leitores, ao percorrermos as ilustrações seguindo essas orientações (da esquerda para a direita e vice-versa), encontramos as extremidades (limites gráficos) das ilustrações, onde é possível reconhecer, na nossa maneira de compreender, interrogações, ali travestidas de símbolos enigmáticos, que colocam em xeque qualquer restrição definitiva, isto é, qualquer certeza definidora de interpretações infalíveis. Logo, concebemos Primeiras estórias como uma discursividade – que produz efeitos de sentido entre interlocutores (PÊCHEUX, 1993) – híbrida: um espaço discursivo, em que discursos são agenciados e ali dizem e significam, ao se reportarem – apontando, imbricando, sustentando e contradizendo – uns aos outros; discursos que significam e significaram outrora-e-alhures. É nesse sentido que apontamos para um jogo funcionando em Primeiras estórias; constituído por essa rede de narrativas que se reportam umas às outras, sem, contudo, a nosso ver, exercerem a finalidade de se explicarem, se complementarem ou se traduzirem. Ou seja, a significação em Primeiras estórias parece ser dependente do reconhecimento 453
e da interpretação desse jogo, que, por sua vez, determina o movimento de sentidos ali possível e, por conseguinte, seus efeitos.
2. Discursividade sob a sombra da autoria: (re)formulação de estereotipias Em “Substância”, assim como nos demais contos de Primeiras estórias – essa é nossa hipótese – a montagem do suporte teia resulta da atividade agenciadora de uma função-autor, que dispõe os elementos de linguagem, verbais e não-verbais, em certa relação; esse procedimento se desdobra em um modo de disposição da linguagem – dessa forma material híbrida – em discurso(s). No que concerne à função-autor, compreendemos que ela projeta a subjetividade de tal operação. Subjetividade que corresponde, por sua vez, à transcrição do movimento do (traço desse) sujeito, que, pela via da linguagem, cria, produzindo senão objetos culturais (DAVALLON, 1999) por excelência. Em se tratando da autoria rosiana, podemos reconhecer também ali as marcas do processo de inscrição na cultura de um traço de singularidade. Nesse sentido é que pensamos esse movimento do sujeito sendo materializado pela via de uma função-autor, responsável por organizar o movimento de constituição de uma unidade singularizante no âmbito da dispersão constitutiva dos sentidos e dos discursos (FOUCAULT, 2001 e 1992); função que passa a significar, de certo modo, o movimento do sujeito na/pela estrutura da linguagem, cuja inscrição parece ser de dupla natureza: da ordem da história e da ordem de um não-saber. Por isso, dizemos também que essa função opera certo movimento que denuncia a singularidade do estilo rosiano, de sua relação com a linguagem; o que, por sua vez, denota não só a marca de sua escritura, mas também certo enviezamento na abordagem aos temas de Primeiras estórias; é isto, a nosso ver, que garante unicidade ao volume e que permite que os contos ali estejam reunidos estabelecendo determinadas relações. Se considerarmos esse traço como marca da subjetividade autoral, fazendo operar certa relação entre verbal e não-verbal em Primeiras estórias, a análise das estampilustradas – é o que constatamos em “Substância”, assim como em “Sorôco, sua mãe e sua filha”, que não abordaremos aqui6 – demonstra reducionista uma leitura literal, em que o NV parece traduzível pelo V, e/ou lateral, em que a relação entre o V e o NV parece de complementaridade ou de suplementaridade; equívoco que se fundaria sobre um pressuposto de linguagem transparente e homogênea. Ao contrário, a presença(ausente) dessa função de autoria investe o suporte híbrido (teia) das estampilustradas de modos de significação distintos, constituídos justamente na/pela diferença de formas de linguagem ali agenciadas com o intuito de fazer dizer e significar (mais precisamente, semi-dizer/significar). Por esse suporte, título, estória e ilustração não se sobrepõem, nem se intercambiam uns aos 454
outros, garantindo um suposto sentido aos contos, nem mesmo um direcionamento seguro onde este pudesse se aportar e, dali, ser “descoberto”. Desse modo, avaliamos a função-autor em Primeiras estórias como inibidora de tal leitura redutiva. Por outro lado, o que identificamos é que o investimento no suporte híbrido, articulado pela função-autor, direciona a leitura para o não-fechamento da interpretação, mantendo em suspenso ali uma direção definitiva a ser apontada pelo movimento dos sentidos; isto é, mantendo o mistério como elemento caracterizador da forma de dizer rosiana – enigmática, por meticuloso zelo/labor7. O que não implica dizer que não seja possível reconhecer abordagem aos temas que os circunscrevam à problematização do estar-no-mundo. Ao contrário. Nossa tese é a de que o investimento no suporte híbrido produz estereotipias que são (re)formuladas como resultantes de movimentos parafrásicos, operados sobre formas verbais e não-verbais e que surgem como efeito da presença do interdiscurso sobre a formulação intradiscursiva, a partir de condições materiais específicas de reprodução-transformação. Essas condições se nos apresentam como determinantes das relações de produção de sentidos (PÊCHEUX, 1997), as quais produzem, como resíduo, uma direção dominante que orienta o percurso dos sentidos (e das posições dos sujeitos); determinando assim, por conseguinte, a produção de efeitos de sentido; logo, efeitos de interpretação a serem materializados e projetados sob a ancoragem da base material que sustenta os dizeres e os discursos. Dessa maneira, a função-autor, a nosso ver, faz cumprir a função de tratar o estar-nomundo, recorrendo à (re)formulação, no campo discursivo, de estereotipias relativas aos temas do amor ou da natureza mutante (a ele inescapável) do homem, e também do homem de interior (sertanejo), como pudemos constatar em “Substância”. Por outro lado, esses estereótipos designam um funcionamento discursivo que produz fórmulas, que se repetem e circulam socialmente, passando a constituir o imaginário social. Erigida justamente no fundamento da repetição, a (re)formulação de estereotipias se configura como um fenômeno de duas faces, articuladas sobre sua equivocidade constitutiva: por um lado, reforça o que se apresenta como da ordem do senso comum; por outro, efeito inverso, concorre para o esvaziamento desse lugar-comum aparentemente estabilizado e compartilhado por adesão social inequívoca, produzindo um gradual enfraquecimento do estereótipo: um deslizamento dos sentidos que assim o significam (FERREIRA, 2001) de um modo distinto, permitindo, por exemplo, que o seu retorno produza diferentes efeitos de significação e/ou interpretação. Sendo assim, parece-nos possível afirmar que o funcionamento do estereótipo é potencializado no jogo entre as materialidades verbal e não-verbal em Primeiras estórias, gerando uma abertura para a significação dos contos, condicionada ao batimento entre o dizer e o mostrar, que ali nunca podem ser tomados como equivalentes. 455
senso comum; por outro, efeito inverso, concorre para o esvaziamento desse lugarcomum aparentemente estabilizado e compartilhado por adesão social inequívoca, produzindo um gradual enfraquecimento do estereótipo: um deslizamento dos sentidos que assim o significam (FERREIRA, 2001) de um modo distinto, permitindo, por exemplo, que o seu retorno produza diferentes efeitos de significação e/ou interpretação. Sendodeassim, parece-nos possível afirmar que o com funcionamento do teia estereótipo é 3. Análise recortes discursivos: operando o suporte potencializado no jogo entre as materialidades verbal e não-verbal em Primeiras gerando uma abertura para a significação dos contos, condicionada ao estórias, Selecionamos, para efeito das nossas discussões aqui, recortes discursivos batimento entre o dizer e o mostrar, que ali nunca podem ser tomados como (RD) que compõem a estampilustrada “Substância”; com esses recortes consideramos equivalentes.
possível explicitar como se constitui e funciona, e que efeitos produz, o arranjo do conto, a partir da perspectiva do que denominamos suporte 3. análise de recortes discursivos: operando com o suporte teiateia; tendando operar com esse suporte na construção de um dispositivo de análise. Abaixo, apresentamos Selecionamos, para suporte. efeito das nossas discussões aqui, recortes discursivos (RD) um possível arranjo desse que compõem a estampilustrada “Substância”; com esses recortes consideramos possível explicitar como se constitui e funciona, e que efeitos produz, o arranjo do conto, a partir da perspectiva do que denominamos suporte teia; tendando operar com esse suporte na construção de um dispositivo de análise. Abaixo, apresentamos um possível arranjo desse suporte. T (Título) rd1
E (Estória) rd2 e rd3
“Substância” RD2: “Sim, na roça o polvilho se faz a coisa alva: mais que o algodão, a garça, a roupa na corda. Do ralo às gamelas, da masseira às bacias, uma polpa se repassa, para assentar, no fundo da água e leite, azulosa – o amido – puro, limpo, feito surpresa. chamava-se Maria Exita. Datava de maio, ou de quando? Pensava ele em maio, talvez, porque o mês mor – de orvalho, da Virgem, de claridades no campo. Pares se casavam, arrumavam-se festas; numa, ali, a notara: ela, flor. não lembrava a menina, feiosinha, magra, historiada de desgraças, trazida, havia muito, para servir na fazenda. sem se dar idéia, a surpresa se via formada. se, às vezes, por assombro, uma moça assim se embelezava, também podia ter sido no tanto-e-tanto. Só que a ele, Sionésio, faltavam folga e espírito para primeiro reparar em transformações.” (ROSA, 2001, SUB, p. 205) [destaques nossos] RD3: “Assim; mas era também o exato, grande, o repentino amor – o acima. Sionésio olhou mais, sem fechar o rosto, aplicou o coração, abriu bem os olhos. Sorriu para trás. Maria Exita. Socorria-a a linda claridade. Ela – ela! Ele veio para junto. Estendeu também as mãos para o polvilho – solar e estranho: o ato de quebrá-lo era gostoso, parecia um brinquedo de menino. (...) E seu coração se levantou. — “Você, Maria, quererá, a gente, nós dois, nunca precisar de se separar? Você, comigo, vem e vai?” Disse, e viu. O polvilho, coisa sem fim. Ela tinha respondido: — “Vou, demais”. Desatou um sorriso. (...) Sionésio e Maria Exita – a meios-olhos, perante o refulgir, o todo branco. Acontecia o não-fato, o não-tempo, silêncio em sua imaginação. só o um-e-outra, um em-si-juntos, o viver em ponto sem parar, coraçãomente: pensamento, pensamor. alvor. Avançavam, parados, dentro da luz, como se fosse no dia de Todos os Pássaros.” (idem, p. 212) [destaques nossos]
IA (Ilustração) rd4
Para esse suporte, fazemos as seguintes considerações: Para esse suporte, fazemos as seguintes considerações: 3.1. do Título (rd1) Com base no título da estampilustrada, não identificamos referente único explícito para o termo “substância”. No contraste com os demais elementos do suporte, entretanto, “substância” parece poder referir tanto o polvilho, quanto o amor, ou a 456 própria personagem Maria Exita; ou, ainda, algo que não se sabe o que é, mas que constitui o homem e o faz (se) transformar. Desse modo, consideramos que o título não é explicado por alguma referência às
3.1. Do Título (RD1) Com base no título da estampilustrada, não identificamos referente único explícito para o termo “substância”. No contraste com os demais elementos do suporte, entretanto, “substância” parece poder referir tanto o polvilho, quanto o amor, ou a própria personagem Maria Exita; ou, ainda, algo que não se sabe o que é, mas que constitui o homem e o faz (se) transformar. Desse modo, consideramos que o título não é explicado por alguma referência às narrativas verbal (estória) e/ou não-verbal (ilustração); ele mantém em aberto a significação do termo “substância”. Compreendemos, nesse sentido, que uma valoração do termo só pode ser dada no âmbito de uma interpretação particular, sustendada, entretanto, no jogo (no contraste) articulado em relação aos demais elementos do suporte teia.
3.2. Da Estória (RD2 e RD3) Os dois recortes discursivos selecionados, transcritos dos primeiro e último parágrafos do conto, respectivamente, permitem que façamos uma associação entre a “substância” e sua propriedade: a de precipitar, como surpresa, após a realização de dado processo – como aquele que transforma a mandioca em polvilho: “Sim, na roça o polvilho se faz a coisa alva: (...) Do ralo às gamelas, da masseira às bacias, uma polpa se repassa, para assentar, no fundo da água e leite, azulosa – o amido – puro, limpo, feito surpresa.” (destaque nosso) O que precipita faz alusão ao polvilho, que resta após o trabalho sobre os duros blocos de mandioca. A nosso ver, essa alusão designa um procedimento metafórico que explicita, por sua vez, como se dá o processo de transformação que produz como resultado o ser humano enquanto um precipitado de si mesmo. Processo a ele inescapável, e impulsionado pela ação da presença do sentimento de amor. O amor, ali, parece, dessa forma, representar a substância responsável por essa purificação do ser humano, que o surpreende, dado a radicalidade de sua presença e dos efeitos que ela produz: o de torná-lo um-outro-de-si-mesmo. Nas palavras do narrador, “Sem se dar idéia, a surpresa se via formada”. Inferimos, desse modo, que o argumento trabalhado no conto seria o de que o homem se purifica à medida que é capaz de amar; amor que, ao se precipitar, faz precipitar outro homem, puro, alvo. “Assim; mas era também o exato, grande, o repentino amor – o acima.” –, fazendo Sionésio e Maria Exita desejarem se tornar “um em-si-juntos”. Esse amor, assim sugere a narrativa, nasce e arrebata Sionésio; não sem, contudo, ele 457
muito resistir. Ao longo da estória, o narrador delineia esse movimento que marca a trajetória da personagem masculina, Sionésio, hesitando em se precipitar-purificar pela via do amor; o que parece advir do medo e sofrimento que também constituem, inevitavelmente, como efeitos colaterais, qualquer processo de mudança. Nesse sentido, não nos parece mero acaso a ambigüidade produzida a partir do segundo nome de Maria Exita, cuja sonoridade rememora o verbo hesitar (vacilar; ficar irresoluto); mas também o substantivo exitância, que significa radiância (aquilo que possui brilho ou luminosidade interna, própria). Ou, ainda, o substantivo êxito, comumente usado para designar aquilo que aparece como conseqüência, efeito de sucesso. Com isso, dizemos que, diante de Maria Exita, Sionésio hesita, pois não fazê-lo implica ignorar o sofrimento compulsório de enfrentar o desconhecido, aqui, a nosso ver, representado pela luminosidade – do polvilho ao irradiar a luz do sol; metáforametonímica da luminosidade de Maria Exita, que irradia a própria luz tradutora, por sua vez, de sua beleza-pureza. Luz que cega, isto é, atravessa, pulverizando, a certeza com que, aparentemente, Sionésio controlava a vida da roça de Samburá e a dele próprio. O processo, que transforma Sionésio pela via do amor por Maria Exita, pode ser descrito a partir deste outro recorte:
RD6: “Saíra da festa em começo, dada mal sua presença; pois a vida não lhe deixava cortar pelo sono: era um espreguiçar-se ao adormecer, para poupar tempo no despertar. Para a azáfama – de farinha e polvilho. (...) Nem por nada teria adiantado atenção a uma criaturinha, a qual.” (pp. 205, 206) “(...) Prazer era ver, aberto, sob o fim do sol, o mandiocal de verdes mãos. Amava o que era seu – o que seus fortes olhos aprisionavam. Agora, porém, uma fadiga. O ensimesmo. Sua sela se coçava de uso, aqui a borraina aparecendo; tantas coisas a renovar, e ele sem sequer o tempo.” (p. 206). “O quieto completo, na Samburá, no domingo (...).” (p. 207) “Sionésio nem entendia. Somente era bom, a saber feliz, apesar dos ásperos. Ela – que dependendo só de um aceno. Se é que ele não se portava alorpado, nos rodeios de um caramujo; estava amando mais ou menos.” (p. 208) “Sionésio passara a freqüentar nas festas, princípios a fins. Não que dançasse; desgostava-o aquilo, a folgazarra. Ficava de lá, de olhos postos em, feito o urubu tomador de conta. (...) Sem embargo de que, ele, a queria, para si, sempre por sempre. E, ela, havia de gostar dele, também, tão certamente. (p. 209) “As muitas semanas castigavam-no, amiúde nem conseguia dormir, o que era ele mesmo contra ele mesmo, consumição de paixão, romance feito.” (p. 210) “A hora era de nada e tanto; e ela era sempre a espera. Afoito, ele lhe perguntou: — ‘Você tem vontade de confirmar o rumo de sua vida?’ — falando-lhe de muito coração. — ‘Só se for já...’ (...) A alumiada surpresa.” (p. 211) [destaques nossos] 458
Em RD6, identificamos uma organização narrativa pautada na alternância entre diferentes referências à temporalidade verbal – futuro do pretérito (teria), alternado com o Pretérito Imperfeito (entendia; coçava; ficava), o Mais-que-Perfeito (passara) e o Perfeito (perguntou); fazendo contraponto com a marcação dêitica apontando para um tempo de enunciação presente que refere a narração (agora). Esse movimento construído via forma verbal marca, por sua vez, a trajetória de transformação de Sionésio, que passa a ser incomodado por uma fadiga; esta o obriga a reconhecer que sente afeto por Maria Exita – estava amando-a mais ou menos! Se antes ele não se reservava tempo para os folguedos, na Samburá, à medida que o amor por Maria Exita nele cresce, ele passa a freqüentar as festas com a intenção de admirá-la e guardá-la. Até que, afoito e castigado por não conseguir dormir, consumido de paixão, cessa de hesitar: interpela Maria Exita sobre a possibilidade de os dois nunca mais precisarem de se separar (cf. RD3). Nesse sentido, fazemos notar o processo de (re)formulação que, ao mesmo tempo, reproduz e rompe com (desloca) o estereótipo do homem sertanejo, caipira, supostamente abrutalhado pela rudeza do seu meio (à exemplo de Sorôco de “Sorôco, sua mãe e sua filha”), e agudamente avesso à mudança; que, no entanto, assim como pretenso ao homem cosmopolita (urbano), passa também a revelar certa sensibilidade para identificar e deixar-se tocar pelo amor; e, dessa maneira, transformar a si mesmo e o seu entorno. Já, em relação à Maria Exita, podemos dizer que, enquanto personagem, ela é construída como representação, metáfora e metonímia do próprio amor. Amor também referido, via mecanismos de metáfora e metonímia, pelo elemento polvilho: “substância” que representa o ser precipitado, porque já transformado, puro e alvo. Isso é marcado na narrativa, conforme notamos em RD2, pelo deslocamento do referente anafórico do verbo “chamar”, da seguinte forma: “(...) na roça o polvilho se faz a coisa alva (...). Do ralo às gamelas, da masseira às bacias, uma polpa se repassa, para assentar, no fundo (...) o amido – puro, limpo, feito surpresa. Chamava-se Maria Exita. (...)” Neste caso, o deslocamento do suposto referente do verbo “chamar”, ali o amido ou o polvilho, produz um efeito de equivalência entre este referente anafórico e o nome Maria Exita, subordinado ao verbo pronominal “chamar” – o polvilho ou o amido chamava-se Maria Exita. Esse deslocamento do referente é permitido pela justaposição desses enunciados, destacados de RD2. Podemos ainda inferir, com base no que acabamos de considerar, que o que precipita é o próprio sujeito, assim: de repente, como surpresa, resultado desse processo de transformação. Nesse sentido, os dois momentos – inicial e final – do conto tornam-se representativos do processo de transformação dessas personagens pelo amor, cumprindo trajetórias distintas de transformação, que, no entanto, as conduzem à união afetiva. Eis o drama, a nosso ver, tematizado pela via da função 459
de autoria, qual seja, o de o sujeito ver-se na situação de não poder escapar à dor e à angústia causadas pela inalienável condição de ser, isto é, a de não ser o mesmo sempre, tendo sua suposta unidade esfacelada, ante a inconstância da vida. O polvilho “substância”, desse modo, parece fazer funcionar, dado a sua alvura e pureza, a construção, via mecanismos de metáfora e metonímia, da verdadeira substância pura, alva e transformadora, o amor. Eis aí, a nosso ver, a (re) formulação estereotípica, via palavra escrita, que rememora a suposta existência de uma “substância” encantada e enigmática, responsável por determinar, de forma irrevogável, o curso do homem – o curso que o inscreve num permanente e implacável processo de transformação. Essa reformulação, ao mesmo tempo, desloca o caráter abstrato geralmente atribuído ao sentimento de amor para, pela via de um procedimento parafrástico, com recurso aos mecanismos de metáfora e metonímia permitidos pela língua, materializá-lo sob a alcunha de “substância”; esta passa a assumir ora uma referência ao elemento polvilho, ora à personagem Maria Exita. Dessa forma, dizemos que a (re)formulação estereotípica funciona no conto de forma a colocar em xeque o caráter permanente, imutável e sob controle da vida pelo homem.
3.3. Da Ilustração (RD 4) Já em relação à ilustração indicial do conto, como dissemos, a narrativa se desenrola na instância da mostração. Mostra-se, nesse sentido, o que é, de certo modo, em um dado instante. A ausência de molduras a demarcarem o perímetro da ilustração, contudo, requer, de nossa parte, a revisão da idéia de que é possível enquadrar e capturar a efemeridade dos acontecimentos que circunscrevem o estado de ser-e-estar no mundo. Pois algo excede e transborda. A ilustração, portanto, como dissemos, mostra, sem, contudo, retratar pura e simplesmente, um ponto de vista, um modo de ler tal efemeridade. Daí julgarmos possível ler ali certo efeito especular, tanto em relação à narrativa escrita, quanto em relação aos acontecimentos no mundo: assim como um espelho, a ilustração não só reflete, como também refrata aquilo que se lhe apresenta enquanto objeto – sua contraface. Esse transbordamento, que representa a impossibilidade de conter o resto que constitui a ilustração, obrigando-nos, leitores, a nos reportar para um fora da ilustração, parece estar reforçado pela presença, nas duas extremidades direita e esquerda, respectivamente, os símbolos comumente designativos das noções de infinito e feminino; o que sugere um para além do que está ali literalmente sendo mostrado. O pontilhado que, a nosso ver, define um eixo horizontal para a ilustração, parece funcionar como um recurso que resgata ao quadro sua dinamicidade e movimento; reportando, mais uma vez, a um para além da ilustração. 460
A discursividade pictórica, dado a especificidade de sua materialidade, projeta coordenadas a partir das quais nos é possível enredar novos fios narrativos; quando nos é tornado possível fazer uso da linguagem verbal para descrever/dizer o que é apenas e tão-somente mostrado via ilustração. Contudo, não nos parece possível reconhecer na ilustração a trajetória percorrida pelas personagens do conto, que é delineada via forma verbal. Noutras palavras, como leitores, somos convidados, ao nos apropriarmos da linguagem verbal para descrever-interpretar a ilustração, a cifrá-la de forma a criar outra história, já marcadamente distinta, pela via de nossa subjetividade, da estória rosiana. Poderíamos descrever o que se nos apresenta ao longo da extensão que delimita a ilustração indicial como as figuras (imagens estilizadas) de um homem e uma mulher, a se darem as mãos; essa aliança parece receber, diríamos nós, a concessão do sol, que brilha, iluminando, o casal assim disposto. Além disso, a presença dos símbolos tradicionalmente reconhecidos como “infinito” e “feminino”, sugerem que o que é mostrado é, de fato, da ordem de um é-assim-sempre; ou seja, o que é mostrado ao leitor é a condição inescapável de vida ao homem: o (se)transformar sempre (infinitamente). O símbolo do infinito, disposto na extremidade esquerda da ilustração, parece-nos suficiente para sustentar tal interpretação. É assim que, a nosso ver, reformula-se, na instância da forma material pictórica, o estereótipo de uma “substância” motora desse movimento de transformação ao qual o homem não escapa, permitindo-lhe ascender, ou seja, purificar-se, pela via do não-todo, ali referido, a nosso ver, pelo símbolo do feminino, disposto na extremidade direita da ilustração. Dizemos, portanto, que é pela via da estrutura feminina, do não-todo, da hesitação, que o campo das certezas – sobre as quais Sionésio tenta costurar o seu entorno e também é costurado – é desestabilizado; a estrutura feminina parece representar o furo na estrutura de completude “sem fim” sugerida pelo infinito; é ela, desse modo, que determina um ponto de basta para tal funcionamento, marcadamente imaginário. Imajar esse funcionamento nos parece possível, se considerarmos uma projeção especular para a leitura da ilustração. Ou seja, tomado o ponto central da ilustração, onde localizamos a representação estilizada de um casal, compreendemos o símbolo do infinito numa relação especular – reflete e distorce ao mesmo tempo – com o símbolo do feminino; o que sustentaria nossa afirmação de que o campo da incerteza (campo feminino) desestabiliza o campo da certeza (campo do infinito), produzindo, contudo, o equilíbrio, a nosso ver, necessário à precipitação do sujeito, do ser – como uma surpresa; pois ali já-está-sempre, aparecendo, contudo, só quando se faz notar. É nesse sentido que Sionésio, por exemplo, consegue amar, à medida que sua 461
estrutura cede, acomodando a “substância” pura e os efeitos que ela produz – a transformação. “Substância” que, como o sol de todos os dias, como se todo dia fosse “dia de Tosos os Pássaros”, “ilumina” sem deixar de “ofuscar” a trajetória desse homem-ser.
4. Considerações finais Nossa análise aponta para a singularidade do traço autoral em Primeiras estórias, que organiza o arranjo multimodal entre formas materiais verbais e não-verbais, que não significa por meio de uma operação de repasse da última pela primeira. O que identificamos é um arranjo híbrido ancorando, de forma solidária, práticas narrativas que se entretecem por meio de fios materiais distintos e que se reportam umas às outras, operando a representação de pontos de vista distintos sobre um mesmo tema. Em “Substância”, o tema do amor transformador do homem-ser, principalmente. Além disso, a disposição desse arranjo multimodal em discurso(s) abre a significação dos contos, determinando o modo como os sentidos ganham certo direcionamento; sendo este fortemente pautado no processo da (re)formulação de estereotipias, que ali ajudam a materializar certos pontos de vista acerca da temática abordada. Outrossim, a análise da discursividade em “Substância” nos permitiu identificar referências a modos distintos de reformulação estereotípica, que se dão tanto sobre o verbal, quanto sobre o não-verbal. Essas reformulações, assim constatamos, são determinadas pelo traço autoral que ordena o arranjo híbrido da estampilustrada estória, de modo que o tema do estar-no-mundo tenha sido abordado pela via de uma substância fundamental; que, por sua vez, parece sobredeterminar a condição de ser (estar-no-mundo) do homem: o amor. É por meio do amor que o homem – seja ele o sertanejo ou o cosmopolita – se purifica: precipita-se como umoutro-de-si-mesmo, reconhecendo-se humano ao experimentar-se suficientemente sensível para amar (e buscar o amor). Nesse sentido, a análise nos levou a concluir que tal reformulação estereotípica ganha materialidade e funciona à medida que faz jogar com a equivocidade que é própria à constituição do estereótipo; este, por sua vez, por circular socialmente, fica sujeito a diferentes movimentos de interpretação, quando é circunscrito ao conflito-contraste relativo ao movimento histórico dos sentidos, tornando-se, por isso, permanentemente passível de sofrer reformulações.
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Notas 1 Conforme seu poema “Um chamado João”, publicado no Correio da Manhã de 22 de novembro de 1967, três dias após o falecimento de J. Guimarães Rosa. Também publicado em Rosa (2001, pp. 9-12). 2 Termo de nossa alcunha; doravante, não mais o destacaremos, valendo o mesmo 463
para o termo “estória”, de Rosa. 3 Flores (2005), ao distinguir dizer de mostrar, a partir de uma contraposição às proposições de Wittgenstein, no Tratactus Logico-Philosophicus, e de Lacan, sobretudo no Seminário 20, apresenta a operação de ciframento como um primeiro tempo do processo de transcrição de dados orais para a modalidade escrita. Para ele, a operação de ciframento – produto da operação que produz um objeto constituído por um conjunto de caracteres (sinais do código escrito ou não) – é seguida de uma operação de deciframento; ambas compondo o processo enunciativo da transcrição, que ele concebe como o ato de mostrar o objeto (fato discursivizado de algum modo). Para nós, contudo, ao pensarmos na leitura cabível às estampilustradas rosianas, não julgamos possível escalonar essas operações; ao contrário, julgamo-las interdependentes uma da outra. Ou seja, para haver ciframento é preciso que haja, ao mesmo tempo, deciframento. 4 Drummond, poema já citado. 5 Com base em Lacan (1993), compreendemos o mecanismo da mostração, em relação ao do dizer, como aquele que se dá pela impossibilidade de a palavra dizer tudo. Ao dizermos algo, produzimos um resto que passa a constituir o que dizemos. No caso das ilustrações, constituídas pela não-palavra (elemento pictórico), o seu modo de significar é da ordem do mostrar, já que não cessa de se dizer. A mostração designa, portanto, a operação que também constitui a imagem de um resto, que nela permanece. Dessa forma, enquanto uma operação linguageira, corresponde a um modo de significação que faz recurso ao pictórico para representar e transmitir algo que não se pode dizer, mas que não cessa de se mostrar (significar), reclamando, para isso, alguma forma material (neste caso, não-verbal). 6 Além de “Substância”, compõem o corpus de nossa dissertação, em desenvolvimento, os contos “Sorôco, sua mãe e sua filha” e “O espelho”. 7 Haja vista, por exemplo, o gosto pelas cartas-enigmas que o autor, desde pequenino, endereçava às irmãs e, posteriormente, às filhas, como aquelas que Vilma G. Rosa reúne em seu livro Relembramentos (op. cit).
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