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NOS MUNDOS DA DEMÊNCIA MEMÓRIA, COTIDIANO E IMAGINAÇÃO
BÁRBARA ROSSIN
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Tornar-se outro; tornar-se muitos
1º LUGAR DESENHO
RESUMO
Neste ensaio, procuro explorar diversas possibilidades de observação, descrição e registro dos mundos que compõem as demências. Pela justaposição de desenhos e fragmentos de diários pessoais, evidencio experiências e percepções sobre a doença e as transformações operadas sobre a própria subjetividade, memória e relação com o ambiente. A partir desse material, espero abrir novos caminhos para a descentralização e ampliação da escrita, bem como deslizar por entre a documentação e a imaginação.
APRESENTAÇÃO DO TRABALHO
Neste ensaio, procuro explorar diversas possibilidades de observação, descrição e registro dos mundos que compõem as demências. Pela justaposição de desenhos (desenvolvidos por mim e por Regina - diagnosticada com a Doença de Alzheimer há 10 anos) e fragmentos de diários pessoais (de Pedro, único filho e principal cuidador de Regina), evidencio experiências e percepções sobre a doença e as transformações operadas sobre a própria subjetividade, memória e relação com o ambiente doméstico. A partir desse material, espero abrir novos caminhos para a descentralização e ampliação do processo de escrita, bem como deslizar por entre a documentação e a imaginação.
APRESENTAÇÃO EXPANDIDA
"Escrevo e desenho para lembrar o que é desaparecer do meu mundo habitual e continuar ainda assim vivo, a poder ver, ouvir, cheirar e falar. Faço-o para criar um testemunho gráfico do que sinto como viagens de ida e volta a um mundo ao contrário". (RAMOS, 2010, p. 19)
“Olha meu desenho, Bárbara! É o carro do Roberto Carlos. Desenhei uma casa, um carro e uma árvore com frutas”, interpelava-me Regina em uma manhã de março de 2021 pela tela do Google Meet. Todas as segundas, Regina e eu nos encontrávamos nos grupos de estimulação cognitiva para pessoas com demência do Centro de Referência em Atenção à Saúde do Idoso (CRASI), da Universidade Federal Fluminense. Durante dois anos e meio, período em que realizei minha pesquisa etnográfica nas oficinas da instituição, participamos conjuntamente de atividades lúdicas (jogos, conversas, exercícios, desenhos) que buscavam socializar, conscientizar sobre a doença e desenvolver áreas consideradas básicas da função mental: atenção, linguagem, memória, capacidade visio-espacial e associação de ideias.
Na literatura biomédica, demência é um termo genérico utilizado para descrever uma constelação de condições progressivas, incuráveis e comumente associadas ao processo de envelhecimento (ENGEL, 2020; FEATHERSTONE, NORTHCOTT, 2020). Embora difusas, estigmatizadas socialmente e ainda pouco compreendidas em suas realidades e sintomatologias, as demências são condições conhecidas por impactar a memória, o comportamento, a percepção, a capacidade para a realização de atividades da vida diária, a linguagem e o raciocínio - sendo a Doença de Alzheimer a sua manifestação tipológica mais comum.
Neste ensaio, procuro explorar diversas possibilidades de observação, descrição e registro dos mundos que compõem as demências. Pela justaposição de desenhos (desenvolvidos por mim e por Regina - diagnosticada com a Doença de Alzheimer há 10 anos) e fragmentos de diários pessoais (de Pedro, único filho e principal cuidador de minha interlocutora), evidencio experiências e percepções sobre a doença e as transformações operadas sobre a própria subjetividade, memória e relação com o ambiente doméstico.
Nas ilustrações e colagens que apresento, objetos e paisagens que integram a vida de Regina (carros, casas, frutas, bolsas, roupas, viagens) são decompostos e entrecruzados com fabulações e torções sobre o real. Os fragmentos dos diários pessoais de Pedro, escritos entre 2012 e 2014, estabelecem uma relação de complementariedade ou ruptura com as ilustrações e grafismos produzidos por mim e Regina entre 2020 e 2022. Em muitas das obras, um certo efeito de incoerência ou entre-temporalidade entre os elementos gráficos foi intencionalmente buscado. A partir desse contrassenso, procuro colocar em evidência como Regina parece desafiar os prognósticos médicos e as expectativas passadas de seu filho, (re)costurando uma nova vida com e apesar da doença. Hoje é ela quem me acorda, que me mostra as horas… “olha, dez pras sete, hein. Não vai levantar não?” Me cobra os remédios....Ela sabe todos os dias dos santos no calendário (Igor, em entrevista no final de 2021).
A partir desse trabalho de observação, diálogo e prática participativa com as pessoas com as quais realizo pesquisa (INGOLD, 2021), espero abrir novos caminhos de descentralização e ampliação do processo de escrita (por meio uma construção coletiva e imaginativa, dentro de suas possibilidades). Se a doença reorganiza fronteiras e se multiplica por espaços-tempo intersticiais (CRAPANZANO, 2005), experimento neste ensaio também deslizar por entre a documentação e a imaginação, entre o passado e o presente, entre o dentro e o fora, entre o eu e o outro.
MINIBIOGRAFIA
BÁRBARA ROSSIN é mestre e doutoranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/Museu Nacional). Graduada em Ciências Sociais pela mesma instituição e membro do Laboratório de Etnografias e Interfaces do Conhecimento (LEIC/UFRJ). Tem experiência de pesquisa nas áreas da Antropologia do Direito, Antropologia da Morte e Antropologia da Saúde, com ênfase nos seguintes temas: demências, tempo, materialidades, memória, morte e emoções. Nos últimos anos, tem feito do desenho um pequeno refúgio para suas crises de ansiedade e paralisia com a escrita formal.