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PAVILHÃO DAS SEREIAS
VANESSA SANDER, 2018-2019.
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Arame Farpado.
MENÇÃO HONROSA ENSAIO FOTOGRÁFICO
APRESENTAÇÃO DO TRABALHO
"Pavilhão das Sereias" mostra cenas cotidianas da penitenciária masculina de São Joaquim de Bicas. Essa instituição abriga, desde 2009, a primeira Ala LGBT do sistema prisional de Minas Gerais, onde ficam abrigados em um pavilhão anexo qualquer detento ou detenta que opte por firmar uma autodeclaração em que se identifique como travesti ou homossexual. As imagens foram registradas durante celebrações do Orgulho LGBT e do Dia da Visibilidade Trans, ocorridas em 2018 e 2019, e capturam um momento de articulação dos enunciados políticos sobre encarceramento e sobre gênero e sexualidade.
APRESENTAÇÃO EXPANDIDA
O ensaio está vinculado ao curso de uma pesquisa que se debruça sobre os circuitos de criminalização e encarceramento de travestis e transexuais, tendo como um de seus lugares-chave a Ala LGBT de uma unidade penitenciária masculina. Situando a prisão em uma trama alargada, descrevo os nexos que a conectam com movimento LGBT, normativas de Estado, discursos sobre violência sexual, territórios de prostituição e tecnologias de gênero. Assim, objetivo analisar as tramas institucionais que levaram à criação dos
Presos LGBT como um novo sujeito de direitos, bem como os dilemas envolvidos na gestão destes direitos pelos presos e pelas diferentes instâncias da administração prisional e os seus efeitos no próprio sistema de segurança pública. A pesquisa oferece assim elementos significativos para as análises sobre as relações de mútua constituição entre gênero e Estado, sobretudo entre gênero e sistema prisional.
Desde esse cenário, analiso os impasses institucionais que se impõem na gestão de travestis e transexuais em cumprimento de pena, evidenciando como as políticas prisionais, bem como as políticas prisioneiras, produzem sentido e inteligibilidade para sujeitos, corpos e relações, de maneira que os afetos e desejos cultivados por entre os muros se tornam lugares fundamentais tanto de regulação quanto de agência. Nesse sentido, o encarceramento das bichas, monas e seus maridos e o esquadrinhamento, a segmentação e a expansão socioespacial do espaço prisional que o acompanha diz muito sobre o aparato punitivo estatal em uma escala ampliada. Assim, a Ala LGBT, mais do que fornecer um retrato de um contexto prisional local, se converte em um espaço heurístico privilegiado para analisar os processos de co-produção entre gênero e Estado, que se emaranham ainda aos diagramas morais generificados do mundo do crime.
Dessa forma, esse registro fotográfico está conectado a uma reflexão sobre a natureza complexa e heterogênea dos modos de regulação moral das expressões de gênero e das práticas erótico-sexuais envolvidas nas querelas em torno da gestão cotidiana de travestis e transexuais presas. Se de um lado a criação de políticas e espaços penitenciários específicos para travestis e transexuais em unidades masculinas é justificada principalmente em torno do risco de que elas sejam vítimas de violência sexual, de outro, a supressão das travestis das possíveis transferências para presídios femininos, garantidas por expedientes recentes dos tribunais superiores, passa pela ameaça de que sejam elas as perpetradoras da violência sexual nesses espaços. Uma arquitetura narrativa e institucional complexa que constrói, a partir de determinadas noções de corpo e convenções de gênero emaranhadas a atributos de raça e classe, imagens de possíveis vítimas e algozes no sistema prisional
Esse lugar ambivalente de desejo e perigo que as travestis ocupam nas malhas do sistema prisional fez com que algumas de minhas interlocutoras de pesquisa se qualificassem como sereias. Essa interpretação alegórica de suas condições enquanto presidiárias tem a ver com a capacidade dessas
figuras de confundirem categorias fixas com seus corpos híbridos. Portanto, as sereias, as figuras de densidade mítica que dão título a esse ensaio visual, são lembradas pelo fascínio estético que geram, mas também pela dimensão de perigo do seu canto hipnótico, são uma expressão arquetípica da sedução. Essa ambiguidade também permeia a vida das sereias do pavilhão, que diante da presença dos homens que ingressavam na Ala LGBT, se definiam como essas entidades aquáticas capazes de desviar os marinheiros, como eram metaforizados os presos com quem se envolviam, de seus caminhos ordinários. Além disso, suas figuras pisciformes podem também ser vistas como possuidoras de algo monstruoso e abjeto, que gera medo e repulsa. Assim, as sereias que povoam essas imagens produzem uma espécie de dimensão mediadora entre oceanos e continentes, entre prisão e mundão, estabelecendo conexões múltiplas entre dentro e fora dos muros, trazendo fluidez aos territórios e identidades. Ademais, elas se deslocam em mares violentos, desafiando classificações generificadas simples de vítimas e algozes, rejeitando os contornos da “passividade” ou da “inação”.
MINIBIOGRAFIA
VANESSA SANDER é antropóloga, graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais. Possui mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com pesquisa sobre as relações intergeracionais tecidas no trabalho sexual de rua. Em 2021, concluiu o doutorado em Ciências Sociais na mesma instituição, vinculada ao Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, onde desenvolveu pesquisa sobre os circuitos de criminalização e encarceramento de travestis e transexuais.