Uruguai chance maconha

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Às vésperas da legalização

Uruguai dá uma chance à maconha Sob o sol ameno do final da tarde de segunda-feira, Maximiliano Marín, 23 anos, já deixou o açougue onde trabalha em Montevidéu, passou em casa, tomou um banho, pegou o baseado (cigarro de maconha) que deixa preparado e com ele saiu às baforadas. Sentou-se num banco da Praça Independência, no centro da cidade, ao lado do palácio do governo. E lá ficou, observando o movimento e curtindo o encerramento de mais um dia.

Maximiliano Marín, açougueiro

- Só evito ser muito ostensivo, não passo na frente dos po- “Só evito ser muito ostensivo, não passo na frente liciais. Para quê? Estou bem, na minha, e eles também - diz dos policiais. a Zero Hora. Para quê? Eu estou bem, na minha, e eles também.” E ele tem razão. Não mais que cinco metros distante de Marín, está o policial Osvaldo Hornos, compenetrado na tarefa de resguardar as áreas turísticas da capital uruguaia.

Perto dali, dois amigos, Martín Diego e Adrián Zelis, debatem o assunto com argumentos bem mais práticos. Ambos têm a mesma expectativa: os preços serão mais baixos que os - O melhor é que não fumem na rua. O consumo, hoje, é atuais, pelo mercado informal. E têm a idêntica preocupação: permitido na casa da pessoa. Não é possível fumar na frente e se uma grande multinacional tomar conta do mercado? das crianças. E quem está fumando cometeu um ilícito ao comprar a maconha, porque a comercialização ainda é proi- Enfim, o assunto está na boca dos uruguaios, e seus rebida. Se alguém passa por mim, levo para a delegacia - diz presentantes no Legislativo debatem-no acaloradamente. A o policial. Câmara dos Deputados já aprovou o projeto. O Senado deve fazê-lo até o dia 10 de dezembro. Na iminência de se tornar uma “nova Amsterdã” (onde o consumo liberado é atrativo turístico), Montevidéu está di- - Há pesquisas mostrando rejeição de mais de 60% da povidida quando à regulamentação do comércio da maconha. pulação, mas os levantamentos variam. Quando os institutos ZH caminhou pelo centro da capital uruguaia e constatou: há de pesquisa perguntam se é melhor comprar maconha de quem concorde com a visão do governo, segundo a qual a traficantes ou de pessoas autorizadas, a grande maioria, cerregulamentação afastará o traficante. Outros ponderam que ca de 80%, opta pela segunda alternativa - diz o deputado a liberalidade teria efeito nefasto na educação dos jovens. governista Julio Bango, um dos autores do projeto. Participantes de uma mesma manifestação contra a violência de gênero e vestidas igualmente de preto como forma de protesto, uma mulher e um travesti se dividem ao opinar sobre a maconha.

- Essa lei ampliará o mercado da maconha. Será ruim para nossos jovens, haverá um aumento do vício, e isso é muito grave - contesta o senador oposicionista Alfredo Solari (Partido Colorado), presidente da Comissão de Saúde, que questiona de onde sairá o dinheiro para sustentar o Instituto de - É bom escolher o que é melhor para si - diz Paola Braccio, Regulamentação e Controle da Cannabis (IRCCA). o travesti. - A legalização não será boa para os jovens - retruca Consuelo Pérez.


Primeiro em tudo

Haverá clubes de cultivo, com máximo de 45 sócios e 99 plantas. A área a ser utilizada será de entre 30 e 40 hectares em algum local específico ou em espaços espalhados pelo O curioso nesse debate acirrado é que um ponto parece ser país - isso não está definido. pacífico: o Uruguai se mostra vanguardista, e isso enche os uruguaios de orgulho. É o mesmo país para onde aco- - Sim, o modelo uruguaio pode vir a ser uma referência para rriam brasileiros quando queriam se casar pela segunda vez, os países da América Latina. O que se está tentando é quequando o Brasil não tinha ainda o divórcio - as pessoas se brar o paradigma da guerra contra as drogas - diz o sociólo“desquitavam”. Também foi o primeiro país latino-americano go Sebastián Valdomir. a aprovar jornada de trabalho de oito horas e voto feminino. Recentemente, despenalizou o aborto e autorizou o casa- Que mercado o governo uruguaio pretende tirar dos trafimento homoafetivo. Por isso, a nação que já foi conhecida cantes? Dados da Junta Nacional de Drogas dizem que um como a “Suíça latino-americana” agora está sendo chamado em cada três jovens de Montevidéu consome maconha, 20 mil uruguaios a consomem diariamente, 75 mil uma ou duas de “Amsterdã latino-americana”. vezes ao mês e 120 mil pelo menos uma vez por ano. A poO sociólogo Sebastián Valdomir, entusiasta do projeto, faz pulação uruguaia é de 3,5 milhões de pessoas. uma ressalva: O sociólogo Julio Calzada, secretário-geral da Junta Nacional - Para começar, os estrangeiros não terão acesso aos pontos de Drogas, esclarece que haverá cadastro de usuários, dos de venda legais, porque precisarão ter um cartão que identi- quais será exigida idade superior a 18 anos e residência no fique o consumidor de Cannabis, a ser expedido pelo gover- país. Calzada diz que ainda não se sabe quantas associações no aos uruguaios. Outra diferença é que os locais públicos, vão cultivar a droga e quantos locais de venda estatais funcionarão. E quem descumprir os limites estabelecidos? como bares, não permitem o fumo, nem de cigarro. Metre do badalado bar El Pony, na Rua Bartolomé Mitre, Ariel Gasco confirma:

- Vamos controlar a quantidade plantada. Se ficar comprovado que há mais do que o especificado, a pessoa poderá responder por tráfico de drogas - diz o secretário-geral.

- Só não fumam dentro do bar porque a lei não permite qualquer tipo de fumo, mas eventualmente os clientes saem à O valor da maconha será definido de acordo com o mercado negro, que é a base utilizada pelo governo como paradigma. rua para fumar. O valor médio do grama fica em entre US$ 1 e US$ 1,50. O montante anual que será produzido e permitido pelo Estado chegará a 22 toneladas de maconha. É, em média, a quantiUm modelo em fase de teste dade que se consome atualmente no país. Em entrevista a Zero Hora na terça-feira, o presidente do Uruguai, José Mujica, enfatizou que o projeto a respeito da maconha é estritamente nacional. Ainda assim, ponderou que o exemplo pode ultrapassar fronteiras: - Pode ser que se aprenda alguma coisa, que outros países possam aprender alguma coisa. Põe em cheque a certeza de que a única maneira de combater o narcotráfico é com a repressão. Acreditamos que temos que combinar. A repressão não é suficiente. Mas o que já pode se saber desse modelo uruguaio que deve ser aprovado nos próximos dias e que levará ainda quatro meses para ser regulamentado? O peso do Estado será grande. Caberá ao governo conceder licenças de produção e autorizar pontos de venda nos quais usuários registrados poderão comprar um máximo de 40 gramas mensais.

O Instituto Nacional do Controle de Cannabis terá corpo funcional efetivo. Há preocupação de evitar desvios, especialmente para tranquilizar vizinhos como o Brasil. Apenas cadastrados terão acesso à maconha uruguaia.


Paola Braccio, travesti

“É bom escolher o que é melhor para si.”

Julio Rey, amigo de Calistro, quer criar a Federação dos Plantadores de Cannabis

“Fumo na rua tranquilamente. O que vai melhorar é que quem consome cannabis hoje no Uruguai o faz sem controles de qualquer tipo. O que o governo está fazendo é regular em vez de reprimir. Estamos vivendo um momento de debate profundo, e isso é ótimo”


Entusiasta do uso medicinal da erva, Calistro, que viveu 10 anos no Brasil, afirma que o óleo já é ministrado por médicos para tratar câncer de pele, especialmente em países como Israel, Holanda e Suécia. Julio Rey, que é amigo de Calistro, já prepara os papéis para a criação da Federação dos Plantadores de Cannabis. Diz que o governo dará verniz legal a uma situação já existente.

Oportunidade para os negócios Os uruguaios já estão preparados para os novos tempos que virão com a regulamentação da produção e do comércio da maconha.No bairro Porvenir, a 20 minutos do centro de Montevidéu, Zero Hora visitou um centro de cultivo que mantém seis variedades da Cannabis sativa e que conta os dias para enfim deixar a atual condição de clandestino.

- Eu fumo na rua tranquilamente. O que vai melhorar, basicamente, é que quem consome Cannabis hoje no Uruguai a consome sem controles de qualquer tipo. O que o governo está fazendo é regular em vez de reprimir. Estamos vivendo um momento de debate profundo, e isso é ótimo - diz. Em meio a baforadas de maconha, Rey diz quais são suas preocupações:

- A chance é de ouro, até para desenvolvermos os valores terapêuticos da Cannabis. Mas o governo, quando regulamentar a lei, precisa dar um aspecto social para o plantio. É importante que uma multinacional não venha aqui e tome É uma casa simples, com paredes caiadas e poucos móveis, conta. E temos de ser cuidadosos para defender a lei. onde vive a família de Álvaro Calistro, um homem magro, tatuado, com sua longa cabeleira apesar da calvície. Cada O que o motiva é simples: canto da casa remete à figura algo mítica da Cannabis, com desenhos, fotografias e frases em meio a nomes de bandas - Quem está contra a maconha está contra todas as liberde heavy metal. dades. Após atravessar uma sala e a cozinha, tudo muito simples, o visitante depara com uma Brasília verde-escuro estacionada com outro carro, também bastante antigo. Na direção da Brasília, o desenho de uma folha de Cannabis. Passando por dois cães, nos fundos do pátio está a parte mais curiosa da residência que abriga Calistro, a mulher, Milagros, e o pequeno Emiliano, dois anos, moreno, comunicativo e de riso fácil. Mas o que há nos fundos da casa? Uma grande estufa, devidamente iluminada com luz especial e com as paredes brancas para facilitar a claridade. - Tudo isso é de nossa cooperativa formada por 15 pessoas. Exploramos a maconha para tintura, óleo medicinal e fins recreativos. No pátio da casa de Calistro, há 40 plantas medicinais. - A Cannabis é só umas delas - diz ele.


E NA ONU “As mudanças culturais são enormemente difíceis”

Quando o senhor tenta legalizar a produção da maconha, é uma maneira de fazer com que um aspecto perverso do capitalismo, que é o narcotraficante, seja afastado do processo? “Nós não legalizamos a maconha. Regulamos um mercado que já existe. Nós não inventamos esse mercado. Ele já existe. Hoje. Aqui. Tratamos de regular e intervir nesse mercado. Porque o narcotráfico é pior que a droga. O narcotráfico nos traz outros problemas sociais terríveis. Ele degrada o mundo delituoso. Arruma tudo com dinheiro ou morte. Há um lema: “plata o plomo” (dinheiro ou chumbo). O mundo delituoso também tinha uma escala de valores. O narcotráfico significa uma degradação na degradada consciência delituosa.”

Se essa medida uruguaia for um sucesso, pode ser um modelo para outros países? “Pode ser que se aprenda alguma coisa, que outros países possam aprender alguma coisa. E põe em xeque a ideia de que a única maneira de combater o narcotráfico é com a repressão. Acreditamos que temos de combinar. A repressão não é suficiente. Por um lado, é preciso reprimir, mas por outro, é preciso dar uma alternativa conduzida.”

“O combate à economia suja, ao narcotráfico, ao roubo, à fraude e à corrupção, pragas contemporâneas, procriadas por esse antivalor, esse que sustenta que somos felizes se enriquecemos, seja como seja. Sacrificamos os velhos deuses imateriais.”

E NA ONU “O combate à economia suja, ao narcotráfico, ao roubo, à fraude e à corrupção, pragas contemporâneas, procriadas por esse antivalor, esse que sustenta que somos felizes se enriquecemos, seja como seja. Sacrificamos os velhos deuses imateriais.” ----------------------------------------------------------“Ocupamos o templo com o deus mercado, que nos organiza a economia, a política, os hábitos, a vida e até nos financia em parcelas e cartões a aparência de felicidade.”



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