1. RELACIONAR Implicar-se politicamente na luta contra a devastação começa com a possibilidade de dar lugar aos acontecimentos em nosso próprio corpo, reparando a lógica fragmentária que busca nos separar das problemáticas coletivas, considerando-as como completamente alheias ou muito distantes do nosso alcance. Quase tudo ao nosso redor – a estrutura capitalista, o consumo, o mercado, as disputas desiguais de poder, a financeirização do tempo e do espaço – tenta nos dizer isso: que não somos responsáveis e que não podemos influenciar a ordem hegemônica das coisas. Isso não é verdade.
Seis propostas para estancar o fogo O fogo que reduz a Amazônia a uma gigantesca nuvem de fumaça tornou-se o símbolo de uma devastação que não começa agora, mas que no momento atual encontra um ponto máximo na junção entre interesses econômicos destrutivos e a política predatória de um projeto liberal. Uma devastação perante a qual, portanto, é imperativo tomar partido e agir imediatamente. Neste momento em que tantas pessoas estão sensibilizadas pelo meio ambiente e pela necessidade de fazer frente ao horror, nos inspiramos nas 6 propostas para o milênio, de Italo Calvino, para propor esses 6 eixos de ação direta que também podem ser lidos como formas eficientes e urgentes de materializar a resistência.
Fazer da indignação um componente de ação politizada é o que nos parece importante neste momento, pois não há sentido político relevante em promover greves pela floresta enquanto continuamos nos recusando a olhar para a forma como a exploração desta força viva, que é a floresta, tem se convertido em mercadorias que a maioria das pessoas consome normalmente. Isso acontece dentro desse sistema capitalista, com fortes heranças coloniais, que acomodou como regular e até mesmo obrigatória uma série de práticas que ferem o entendimento originário sobre como devemos nos relacionar com o planeta e os outros seres vivos, sejam eles humanos, animais de outras espécies ou vegetais. As cosmologias dos povos originários são, via de regra, fundadas sobre a noção de que tudo se relaciona a tudo e todas as existências são interdependentes. Salvar a Amazônia passa necessariamente por escutar os povos que, há milhares de anos, a habitam sem destruí-la. Por isso propomos o exercício de relacionar o que está acontecendo com a floresta aos nossos modos de produzir e consumir.
2. TOMAR POSIÇÃO
3. DESVIAR
O modo como a floresta produz alimentos segue alguns paradigmas, dentre eles: a diversidade, a sazonalidade. Isso implica basicamente em: limite. Não há, na natureza, oferta excessiva e contínua de um mesmo alimento. O que existe é uma oferta muito mais saudável e interessante, a da multiplicidade.
Uma das promessas do capitalismo liberal é a liberdade de escolha. Mas é bastante ingênuo acreditar que se trata de uma opção plenamente livre quando se come alimentos ultraprocessados ou vegetais cheios de agrotóxicos.
A lógica capitalista, porém, trabalha com o acúmulo e, portanto, precisa encontrar meios de forçar a terra a produzir excessivamente e sem pausas. O nome desse modo de manejar a terra e fazê-la produzir é: monocultura. Não existe monocultura na floresta e, em verdade, a floresta se constitui como obstáculo material para esse modo exploratório de produção. Uma das principais monoculturas praticadas no Brasil atualmente é a pecuária, bem como a da soja, que é utilizada para alimentar esses animais exclusivamente criados para o consumo de alguns poucos humanos. Tal monocultura é duplamente devastadora, pois além de aplainar a complexidade da floresta, transformando-a em pasto, transforma ainda as vidas animais em mercadorias. Para além da importante discussão ética acerca do especismo, é materialmente inviável que todas as pessoas do planeta comam carne e que, ainda assim, haja planeta, devido à quantidade de solo, água, alimento e emissão de poluição que tal prática demanda. E é justamente por ser insustentável que sua perpetuação vai paulatinamente demandando ações cada vez mais destrutivas. O agronegócio destrói vidas indígenas, vidas animais, biomas complexos (como o cerrado e a Amazônia). E, nesse sentido, podemos pensá-lo como o herdeiro mais direto das práticas coloniais, que firmou uma verdadeira guerra contra a diversidade da floresta e de seus povos originários. Tal guerra segue em curso e, mais do que nunca, não tomar uma posição já é estar posicionado lá onde o sistema nos quer.
A verdade é que o capitalismo reveste suas ofertas desastrosas de rótulos e slogans, posiciona-as em supermercados iluminados e coloridos, e faz crer que há alergia e liberdade em comer alimentos que implicam na destruição, sendo eles próprios destruidores, uma vez que são envenenados ou quimicamente forjados. É preciso desviar desse modo de consumir que, em tudo, foi planejado para parecer mais cômodo e simples. E um desvio crucial a ser feito é desnaturalizar o consumo de animais e seus derivados. É preciso ser direto: não há como salvar a Amazônia e persistir nessa prática. Existe, atualmente, uma relação criada entre fartura, abundância, prazer e o consumo de animais e seus derivados. Tomar posição contra a monocultura e em favor da floresta implica em desfazer essa relação e construir uma outra, na qual uma relação abundante com a comida, em primeiro lugar, implique na possibilidade que todas e todos tenham acesso a ela. Depois, que a fartura não diga respeito à dominação (dos corpos dos animais ou dos modos de produzir da terra), mas à conexão com a multiplicidade de alimentos que a sazonalidade proporciona. O desvio, portanto, precisa ser feito recuando do consumo acrítico de carnes e derivados e na direção do consumo de vegetais produzidos por produtores locais, acessado sobretudo nas feiras ou diretamente com agricultores.
4. RETORNAR Uma alimentação baseada em frutas, vegetais e cereais é comumente chamada de vegana. Esta prática costuma ser considerada inacessível e elitista e, em certa medida, essa crítica procede. Entretanto, é preciso atentar: não é a alimentação baseada em frutas, grãos e vegetais que é, por si, elitista e complexa; mas o modo como as informações que fundamentam essa prática circulam. Há ainda um movimento de cooptação capitalista do veganismo, que o posiciona como um mero estilo de vida, e não como aquilo que pode efetivamente ser: um movimento político. Um veganismo político precisa ser necessariamente popular. Isso quer dizer que não endossamos um veganismo pautado no consumo de embutidos e processados veganos produzidos por grandes marcas, esses sim, caros e inacessíveis pela maioria. Apoiamos uma prática alimentar que tenha como fundamento o contato com a terra e seus trabalhadores. E isso passa por ir às feiras, produzir hortas comunitárias, plantar em casa, criar redes de articulação para facilitar e ampliar o acesso à produção rural. Propomos, portanto, um veganismo como via de retorno à terra. Sabe-se que uma das práticas que viabilizou a transição do feudalismo para o capitalismo foi justamente a desapropriação do camponês do acesso às terras comunais. Sem ter como subsistir, via-se obrigado a submeter-se às relações capitalistas de trabalho. O asfalto, a propriedade privada, a escassez de terras comunitárias são instâncias que nos distanciam da terra. E isso não é mera consequência da vida urbana, é um projeto. Retornar à terra, portanto, é criar vias, conforme cada realidade individual, para retomar o acesso direto a ela. Seja plantando, consumindo direto de quem planta ou se munindo de saberes acerca das
plantas, fazendo uso deles e transmitindoos. Retornar à terra é recusar o projeto desenvolvimentista onde o fogo da devastação tem origem.
5. PARTILHAR A alimentação tende a ser pensada como uma questão individual. Naturalizamos de tal forma a ideia de que a comida é um bem privado que, em vez de criarmos meios de partilhar nossos excedentes, produzimos diariamente toneladas de lixo constituído de alimentos, simplesmente porque se estabeleceu o entendimento de que o destino racional da comida que sobra é o compartimento onde acreditamos jogá-la “fora”. Além disso, os aplicativos de entrega de comida nunca foram tão acessados, dando a impressão de que comer um alimento que nos chega através da exploração de diversos trabalhadores é boa solução para nossas vidas atribuladas, cheias de trabalho. Compartimentar a alimentação, transformando-a em um processo individual e fragmentado, é mais um modo de nos alienar da nossa própria subsistência. Quando falamos em socializar os meios de produção como modo de promover justiça social, é preciso compreender que essa formulação não diz respeito apenas aos meios de produção de mercadorias, mas aos meios de produção de nossas próprias vidas. É preciso tornar a ver os trabalhos que geram e mantêm a vida como trabalhos de responsabilidade coletiva. Via de regra, a tarefa de garantir a alimentação recai sobre as mulheres, como recaem em geral as tarefas que sustentam a vida. Promover uma alimentação verdadeiramente libertadora, que faça frente à devastação, em maior ou menor escala, implica em que todos se
responsabilizem por esse trabalho que é acessar os alimentos. Um passo fundamental para isso é rever a estrutura individualista de nossas vidas e, na medida de nossas possibilidades, partilharmos tanto as tarefas como os resultados desse trabalho que é se alimentar.
6. TRANSMITIR Esse texto foi escrito em agosto de 2019 por duas mulheres brasileiras. Nosso objetivo é que essas informações, que chegaram a nós através de ativistas que dedicam seu tempo a socializar seus estudos e práticas, cheguem ao maior número de pessoas possível. Transmitir saberes libertadores é nossa última proposta para estancar o fogo da devastação, por isso, incentivamos a ampla reprodução e transmissão desse texto. Além disso, gostaríamos de compartilhar algumas vias através das quais esses saberes foram transmitidos para nós: Livros A Política Sexual da Carne – Carol J. Adams Calibã e a Bruxa – Silvia Federici Ecofeminismo – Maria Mies e Vandana Shiva
Filmes Martírio – Vincent Carelli Muito além do peso – documentário (disponível no youtube)
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