NOVEMBRO 2015
CORPO QUE HABITO Vamos falar de gênero sim
CORPO QUE HABITO Texto:
Mariana Barbosa Natália Queiroz Priscilla Junqueira
Ilustração:
Raniel Andrade
Diagramação: Charles Jônatas
Crianças são alvos de estereótipos sexistas desde o nascimento, mas nem sempre permanecem nos padrões
NINGUÉM NASCE, TORNA-SE Apaixonada por Mike, cantor da banda infantil Balão Mágico, ela trancava a porta do quarto e deixava o rosto colado na foto dele – imaginando que o namorava. Adorava brincar com as bonecas das irmãs, vestia os vestidos da mãe e, de vez em quando, até se maquiava. Era o mundo perfeito para uma menina de 8 anos. Se ela não fosse considerada um garoto. Symmy Larrat, 37 anos, relata que na infância já se sentia diferente e sabia que poderia ser recriminada pela maneira como se comportava. Gostava de se isolar, pois acreditava que sozinha podia ser quem realmente era. “Eu não tinha nitidez que era uma menina no corpo de um menino, até porque criança não trata a questão dessa forma”, diz. Aos 15 anos, a certeza do que era crescia, sempre cercada por medos. Symmy conta que tinha várias revistas da Roberta Close. Todas as vezes que a modelo aparecia na televisão, a mãe a chamava para vê-la. “Minha mãe pensava ‘meu filho quer ver mulher’, mas no meu íntimo eu estava olhando para o que eu queria ser”, relembra. Ser homem, ter uma namorada, um cachorro e um carrão. Parece simples, no entanto, para Lam Matos era utópico. Quando tinha entre 4 e 5 anos, acordava antes da mãe e imaginava, incessantemente, a mesma situação: deitava-se, cobria-se até a cabeça e passava por uma cirurgia em que deixava de ser menina e tornava-se menino – com direito a namorada, cachorro e carrão. Quando ouvia a mãe acordar, corria para as cobertas e fazia o processo reverso. Hoje, aos 32 anos, Lam não precisa mais se esconder. Homem transexual, casado e bem resolvido, ele conta sobre algumas lembranças da infância em Vitória, no Espírito Santo. “Sofria repressão indireta, minha mãe me dava sinais de que eu não podia fazer tal coisa porque era pecado, porque eu iria para o inferno”. Em função disso, relata ter vivido muitos anos interiorizando o que era e o que sentia.
Ser menina é “gostar de rosa e brincar de boneca”. Catarina Oliveira, 23 anos, fingia que isso lhe agradava para não ser repreendida pelos pais. Entretanto, gostava mesmo das coisas ditas de menino: azul, subir em árvores, brincar na rua e esportes radicais. Nunca passou pela cabeça dela que aquele comportamento se devia, no seu caso, a uma identificação com um sexo diferente do biológico ou com uma orientação sexual que não fosse a esperada. “Eu estava confortável comigo mesma. Mas sentia que, tanto a sociedade quanto meus pais, esperavam certas atitudes de mim”, conta. Na escola, ela era a única menina em um grupo de vários garotos. Queria jogar futebol, mas sofria preconceito das colegas e até dos professores. Ela tentava não se importar com os comentários, porém confessa que não era alheia a eles. “Eu ficava triste, claro. Por isso, às vezes assumia comportamentos que não condiziam com a minha vontade para me passar por uma pessoa mais ‘normal’”. A menina lembra que pediu para os pais um Hot Wheels no aniversário, no Natal e no Dia das Crianças e nunca foi presenteada. Apesar disso, Catarina não carregou nenhum trauma da infância e conta o fato com naturalidade. Diz entender as atitudes dos pais, mas afirma que não as repetirá com os filhos. Coincidentemente, Symmy e Lam são trans. No entanto, as histórias deles durante a infância não estão, necessariamente, atreladas à transexualidade. Catarina é cisgênera e o caso dela exemplifica que também há situações de crianças que não apresentam o comportamento esperado, como ser agitado e curioso, no caso dos meninos, ou ser doce e obediente, no caso das meninas. Ou ainda, crianças que se interessam por brinquedos socialmente considerados do sexo oposto e que não se identificam com um gênero diferente do biológico. É apenas uma questão de preferência.
Transexualidade: Condição de pessoa que não se identifica com o gênero biológico e pode ou não ter feito a cirurgia de readequação sexual.
Cisgênera: Mulher cuja identidade de gênero se identifica com o sexo biológico.
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“Certo dia, o João me pediu para vestir uma fantasia de princesa e eu me questionei: ‘por que não?’”, conta a mãe e blogueira Erika Mazolini, 26 anos. Para ela, a discussão de gênero é natural e, assim como todo processo de educação, deve começar dentro de casa. “As coisas mais importantes que aprendemos na vida vêm dos pais e responsáveis. A discussão de gênero pode ser feita na escola, mas se não tiver suporte em casa, nada adianta”, acredita. Mãe de Alice, 5 anos, e João, 2, Erika dispensa os padrões sociais de gênero não só na infância, mas em qualquer período da vida. Como mãe, considera que o mais importante é educar crianças seguras e felizes. “Os ensinamentos que eu passo aos meus filhos são para serem pessoas de caráter, honestas e sem nenhum tipo de preconceito”, afirma Erika. Contudo, quando engravidou da primogênita, Alice, seguia certos padrões sexistas. “Comprei muitas bonecas e roupas cor de rosa. À medida que foi crescendo, ela passou a preferir brinquedos de animais, mas não deixou de lado as fantasias de princesas. Quando o João nasceu, compramos carrinhos e roupas azuis também. Já quando ele começou a brincar, via Alice se divertindo com panelinhas e bonecas e passou a brincar com ela”, conta. À frente do Maman, blog com dicas de maternidade, Erika quer fazer com que os pais repensem certas determinações sociais. “Tínhamos que ser livres para sermos quem queremos ser”, afirma. Porém, confessa receber críticas de alguns leitores, que dizem que esse tipo de criação confunde o gênero e, na fase adulta, pode causar sofrimento. A blogueira, que conta com o apoio integral do marido, Pietro Pissara, é segura da criação que escolheu. “Não acho que a nossa sexualidade ou gênero sejam tão frágeis para serem influenciados. A criação que optamos ajuda na desconstrução desse preconceito social”, diz. Quando questionada sobre a aceitação de outros pais com aquilo que é diferente, Erika é clara ao dizer que a carga de preconceito que algumas crianças carregam vem dos responsáveis.
“Certa vez saí com o João vestido de Anna, do Frozen. As crianças que o viram foram falar sobre o filme e personagens. Eles não tinham problema algum com o fato de ser um menino com vestido de princesa. Quando existe preconceito nas crianças é porque os pais as ensinaram”, enfatiza. A respeito da setorização estabelecida pelo mercado, Erika demonstra insatisfação. “Muitos brinquedos existem para ajudar no desenvolvimento profissional das crianças. Dificilmente vemos brinquedos de construção para as meninas e de cozinha para os meninos. Profissões não têm sexo, por que brinquedos devem ter? Afinal, brinquedos não formam caráter e nem querem dizer nada sobre gênero e sexualidade”, finaliza.
“Certo dia, o João me pediu para vestir uma fantasia de princesa e eu me questionei: ‘Por que não?’” Erika Mazolini A psicóloga infantil Esther Viana enfatiza que não são os brinquedos ou as brincadeiras escolhidas pelas crianças que influenciam quem elas vão ser. “O que influencia é a maneira com que as pessoas se relacionam nas suas redes”, diz. Segundo Esther, a falta de diálogo sobre gênero, em grande parte das famílias e escolas, se deve ao medo. “Aquilo que não se controla, gera medo”, diz. Para ela, impor gênero pode gerar consequências na vida adulta. Frases comuns – “isso é de menina” e “homem não chora” – podem criar características de um adulto preconceituoso e intolerante com quem não é igual. Esther afirma que as crianças são seres pensantes e capazes de fazer escolhas, enquanto os pais têm o papel de orientar nesse processo. No entanto, diante de hostilidades, a criança pode 5
ser influenciada a mudar de comportamento rapidamente. Em algumas famílias, a construção do gênero bem definido é uma regra. Como na casa do empresário Rafael Pacheco, 35 anos, pai de Cecília, 7 anos, e Davi, 5. Para ele, o gênero deve ser estabelecido desde cedo, para não criar complicações mais tarde. “Desde pequenas, as crianças devem aprender o que são, e, principalmente, que meninos e meninas são diferentes e precisam ter posturas diferentes”, afirma. O empresário acredita que meninas devem se comportar como meninas e meninos como meninos com base nos padrões sociais, tanto na escolha das roupas, como dos brinquedos e brincadeiras. Diferente de Erika e Esther, Rafael acha importante impor o gênero e não concorda que essa postura possa causar qualquer prejuízo. “O dano que eu geraria criando meus filhos sem identidade, seria torná-los adultos perdidos e confusos, que acham que podem tudo”. Criado em família evangélica, ele faz questão de passar os valores cristãos para seus filhos e diz que, caso algum deles assuma uma identidade diferente do seu sexo biológico, conversaria com a família e deixaria claro o posicionamento dele. “Não sou preconceituoso, só acho que toda essa discussão de gênero é desnecessária”, afirma. Para o empresário, as coisas já são bem definidas por meio do sexo biológico. Por outro lado, a jornalista Jalila Arabi, 32 anos, mãe de Maria Clara, 1 ano e 6 meses, cria sua filha livre das amarras de gênero. Ela acredita que essa discussão é benéfica e trará um futuro com mais liberdade e respeito. Também de uma família cristã, Jalila afirma que esse debate não diz respeito à religião: “Acredito que o amor deveria pautar todas essas discussões”, diz. A psicóloga finaliza defendendo uma criação livre de preconceitos e limitações. “É dever da família proporcionar meios para que as crianças sejam quem realmente são e desempenhem papéis de acordo com as habilidades e, não baseado no sexo. As crianças aprendem por meio de imitações e, assim, constroem seus valores”, conclui.
ENTREVISTA
Lise Eliot, autora do livro Cérebro rosa ou azul, lançado no Brasil pela editora Pensar, é formada pela Universidade de Harvard e PhD pela Columbia. Professora associada de neurociência na Faculdade de Medicina de Chicago, Lise fez pesquisa de Pós-doutorado na Faculdade de Medicina de Baylor. Em entrevista exclusiva, a autora fala da construção do gênero na infância, ressaltando a importância da família e da escola nesse processo. 1- Os pais devem evitar rotulação de gênero? Quais são as consequências que essa imposição pode causar na vida adulta? Pais e professores devem evitar a rotulação de gênero porque isso coloca a criança em uma caixa, limitando a completa expressão de suas habilidades. Meninas ficam com a ideia de que não devem fazer coisas de meninos como, por exemplo, construir, escalar, atirar, se arriscar ou agir como líder. Meninos ficam com a ideia de que não devem gostar de arte ou literatura, ou cantar, ou de rosa e coisas chamativas. 2- Como o gênero é construído na infância e o que acontece no cérebro de uma criança transgênera? A identidade de gênero se desenvolve a partir de uma mistura da natureza (genes e hormônios) e da criação (rotulação social). É difícil dizer qual é a mais importante, mas ambas claramente desempenham um papel. Por exemplo, alguns meninos foram bem sucedidos sendo criados como garotas por terem nascido com defeitos nas genitálias. Para transgêneros, suspeito que a criança que não se identifica com os estereótipos do seu gênero (como um menino que não gosta de brincadeiras violentas) pense que é homossexual, mas isso não ocorre necessariamente. A causa, provavelmente, é genética ou hormonal, mas cientistas ainda tentam encontrar um gene para a identidade de ambos os gêneros. Também nunca foi provado que pessoas trans foram expostas a uma anormalidade hormonal antes do nascimento. 3- As crianças nascem com alguma noção de quais são os brinquedos, roupas e comportamentos apropriados para homens e mulheres? Não. Isso é aprendido, embora garotos sejam mais ativos fisicamente, por isso, eles preferem brincadeiras de carros e esportes. As diferenças são estatísticas, não categóricas. Mas também, podemos perceber que meninos e meninas preferem bonecas a outros brinquedos nos primeiros 6-8 meses de vida, independente do gênero. 4- Como a família e a escola deveriam tratar gêneros? Meninos e meninas deveriam ser tratados igualmente. Mas não é isso que ocorre, pois nas atividades, interesses e trabalhos, os meninos possuem um status mais elevado do que as meninas. Gostaria que as crianças fossem criadas em um mundo livre de gênero, mas nós estamos muito longe disso, mesmo em países como a Suécia.
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5- Qual seria o cenário ideal para uma sociedade que se importa com a saúde no desenvolvimento do cérebro das crianças? As crianças precisam de amor, proteção e educação. Qualquer coisa que a sociedade possa fazer para dar aos pais mais tempo e recursos para se dedicarem a essas três coisas, seria ideal para as crianças.
O ESTADO DO GÊNERO Dados da organização não-governamental Internacional Transgender Europe revelam que o Brasil é o país que mais mata por transfobia – 486 casos, de janeiro de 2008 a abril de 2013. A maioria dos crimes está concentrada na América Central e do Sul, que apresentam 79% das ocorrências. Esses números geraram polêmica e o assunto ganhou maior visibilidade no cenário legislativo. A partir dessas evidências, o Projeto de Lei nº 2138/2015, da deputada federal Erika Kokay (PT-DF), visa a alteração da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que criminaliza a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional para punir, também, a discriminação ou preconceito quanto à identidade de gênero ou orientação sexual. A visibilidade de um grupo marginalizado no Congresso Nacional significa muito para todo o segmento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais), que vem ganhando voz e, aos poucos, direitos de igualdade. No Projeto de Lei é citada a “ideologia de gênero” – nome dado ao conjunto de ideias que afirma que ninguém nasce homem ou mulher, mas constrói a própria identidade ao longo da vida. Os debates acerca do tema não buscam somente a igualdade de direitos e oportunidades para homens e mulheres, mas também desconstruir as expectativas geradas antes do nascimento de acordo com o sexo biológico. Nos últimos três anos, mais de 20 projetos de lei foram apresentados no Congresso Nacional com a tentativa de introduzir o termo “gênero” na educação dos brasileiros. Érika Medeiros, advogada do Cedeca (Centro de Defesa das Crianças e Adolescentes), diz que a construção do gênero realmente precisa ser debatida. “O primeiro ponto para conseguir alcançar alguma notoriedade no país é falando sobre o gênero, que ele existe e que há diferenças entre as pessoas. Os adultos precisam dialogar com as crianças.” A abertura que os deputados encontraram para introduzir o gênero no ensino infantil foi no novo PNE (Plano Nacional de Educação – Lei nº 13.005/2014). Votado no Congresso em 2014, o plano traz diretrizes para o ensino nacional nos próximos dez anos. Entre as emendas, a que causou mais polêmica foi a que determina a “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”. Esse artigo, não 7
aprovado na Câmara dos Deputados, foi alterado para “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”, e seguiu para votação no Senado Federal, sendo sancionada pelas duas casas em junho de 2014. Barrado no PNE pelo Congresso, o trecho que trata da discussão da ideologia de gênero nas escolas seguiu para votação nas assembleias estaduais. A palavra “gênero” virou pivô de uma queda de braço na educação. Por um lado, acredita-se que o país está retrocedendo ao não aprovar essas medidas, pois as escolas precisam estar preparadas para combater a discriminação de gênero e para dar formação básica sobre sexualidade. Por outro, a bancada cristã afirma que essa corrente deturparia os conceitos de homem e mulher, destruindo o modelo tradicional de família. O pedagogo e secretário parlamentar Francisco da Costa, especializado em políticas públicas para a primeira infância, se posiciona contrário à discussão da ideologia de gênero nas escolas. “Não podemos ir contra ou impor modelos educacionais que não priorizam a natureza humana”, afirma. Francisco acredita que a forma que o novo PNE busca tratar gênero é imprudente e nociva. Segundo ele, não existe embasamento científico de que esse seja o meio correto de educar, já que o conceito de identidade de gênero só faz sentido no âmbito social. “A infância é um período muito importante para fazermos experiências sociais e criar confusão na cabeça das crianças”, defende. Para Francisco, a imposição de gênero faz parte de um processo natural e essencial para orientar que os filhos cheguem com segurança à vida adulta, já que os pais são os responsáveis por determinar como será a educação moral, sexual e religiosa dos filhos. No que se refere às políticas públicas para o segmento LGBT, o pedagogo acredita que sejam medidas desnecessárias. “É um pouco de exagero. Eles já têm uma proteção legal. O que mais eles querem? Cota no Minha Casa, Minha Vida? Preferência na fila de supermercado?”, questiona. Costa completa dizendo que cada vez mais, um homem branco, católico e heterosexual, como ele, é o último da fila. Andreia Crispim, secretária executiva do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), pensa diferente. “Esse cenário de repulsa que nos encontramos, onde
o legislativo se organiza para achar formas de repudiar e reprimir as diversidades, está nos fazendo caminhar para trás, retroceder no tempo”, diz. Ela acredita que a bancada religiosa da Câmara tem medo do desconhecido e, por isso, prega que o desvio de padrões deve ser combatido, excluído. As representantes do Cedeca acreditam que a discussão sobre ideologia de gênero causa várias distorções. De acordo com a advogada Érika, a primeira seria da própria palavra gênero, que foi omitida do PNE – o que cria uma falsa ideia de que gênero não deve ser discutido. A segunda seria o pensamento errado de que, caso o termo não entre nos planos educacionais, a diversidade vai deixar de acontecer, pois, para ela, isso não vai fazer com que deixem de existir crianças em conflito com o gênero ou futuros transexuais. Andreia complementa dizendo que as escolas precisam estar preparadas para auxiliar as crianças na hora em que as dúvidas surgem. “Se já é um tabu falar sobre isso com adulto, imagina com crianças? As famílias se encontram muito fechadas para discutir sobre as diferenças. Mas o momento ideal para que essa conversa ocorra é antes da adolescência, quando as crianças ainda estão livres de preconceitos e formando caráter e opinião”, acredita a secretária. “As pessoas não estão preparadas para lidar com a transexualidade, principalmente na educação infantil”, afirma Érika. Como exemplo do despreparo do Estado, a advogada cita um fato emblemático que ocorreu no sistema socioeducativo do antigo Caje (Centro de Atendimento Infantil Especializado do Distrito Federal). “Na época do Caje, havia duas alas: feminina e masculina. Eles estavam com a demanda de uma garota transexual e, a fim de assegurar os direitos humanos, parte
da equipe a deixava ficar durante o dia na ala feminina. No entanto, quando chegava a noite, não sabiam o que fazer: se a colocava na ala dos meninos – onde correria o risco de sofrer abusos sexuais e psicológicos, ou se a mantinha na ala das meninas. No desespero, eles faziam o que acontece até hoje no sistema socioeducativo: a colocavam no castigo – como é chamado a solitária”, relata. O Centro de Defesa das Crianças e dos Adolescentes, que trabalha com educação e direitos humanos, vem oferecendo oficinas sobre diversidade e orientação sexual em diversas escolas públicas do Distrito Federal. “Queremos dar lugar e voz para as crianças e adolescentes”, afirma Andreia. No âmbito escolar, a negação de outras identidades de gênero pode causar um impacto negativo, como a evasão. “As estatísticas de abandono de alunos trans é alta no Brasil, cerca de 73%. Esse é um aspecto muito cruel, afinal o Plano Nacional de Educação deveria estar preocupado em garantir o direito do aprendizado dos jovens e não retroceder a ponto de atingir diretamente o acesso à educação de milhares de pessoas”, acredita Érika. Parte das dificuldades que ocorrem no ambiente escolar é devida à discriminação dos outros estudantes, ao constrangimento enfrentado por não poderem usar o nome social e ao fato de terem que frequentar banheiros que não condizem com a respectiva identidade de gênero. Na tentativa de mudar essa situação e promover maior inclusão no Ensino Superior, desde 2014, o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) passou a reconhecer o nome social e neste mesmo ano, 102 alunos trans participaram do certame. Em 2015, o número cresceu para 278, representando um aumento de 172%.
ESCOLA PREMIADA
IRÃ
O ambiente escolar tem importante papel na formação infantil e no processo de construção da moral e dos valores das crianças, além de também ser o espaço onde muitas recebem apelidos e sofrem discriminação, principalmente quando são consideradas diferentes. A partir dessa análise, e a fim de reduzir a incidência de casos de violência e intolerância, o ex-coordenador pedagógico do Centro de Ensino Fundamental 1 de Planaltina, Carlos Magno, criou o projeto institucional Diversidade na Escola em 2013. Em pouco mais de dois anos da implantação do projeto, a escola, popularmente conhecida como Centrinho, já recebeu dois prêmios: o Construindo a Igualdade de Gênero, concedido pela Secretaria de Direitos Humanos em 2014 e, em outubro deste ano, o Educar para a Igualdade Racial e de Gênero, do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, em São Paulo. Ambos de âmbito nacional. Segundo dados da Regional de Ensino de Planaltina, o projeto que nasceu no CEF 1 já inspirou outras cinco escolas na região. Ainda em 2013, o idealizador do “Diversidade na Escola” deixou o cargo pedagógico para se dedicar à pesquisa sobre homosexualidade durante a ditadura no curso de mestrado da Universidade de Brasília. Dando continuidade a esse trabalho, Lúcia Pedroza, atual supervisora do projeto, e outros colaboradores aprimoraram a ideia inicial para também debater sobre racismo, sexismo, diversidade de gênero, homofobia, violência contra a mulher, entre outros. “A intenção é abrir a visão dos alunos para reconhecerem e respeitarem as diferenças. Nós queremos informar, pois conhecimento é uma arma do bem”, explica. Lúcia garante que, após a implementação do projeto,
houve significativa melhora na conduta dos alunos diante da diversidade. No que diz respeito às diferenças de gênero, ela conta que dois adolescentes foram identificados como transexuais, mas tiveram histórias diferentes. Em um dos casos, quando o projeto ainda não existia, o aluno transexual passou por dificuldades e sofreu a típica discriminação dos colegas. “Hoje ele participa de atividades aqui e diz que, se na época dele a escola tivesse a postura que tem hoje, teria sofrido bem menos”, conta Lúcia. É o que aconteceu com a menina transexual que teve a chance de estudar no colégio quando o projeto já existia. Por isso, teve uma trajetória diferente: adotou o nome social no ambiente escolar, se vestia da forma que se sentia mais confortável e era respeitada pelos colegas. “O projeto empodera o aluno. Ensina que ele não é motivo de vergonha e que não tem que sofrer. Quando a pessoa tem autoestima elevada, se respeita, vê que não tem que se esconder, que tem voz como qualquer pessoa e se sente segura. A relação com a sociedade, com os pais, parentes e amigos fica mais fácil”, explica a supervisora. Embora o tema seja polêmico, a escola – que tem cerca de 2 mil alunos matriculados – recebeu a desaprovação de apenas três pais, que consideraram a abordagem um pouco inadequada. No entanto, após conversa, perceberam que o objetivo é uma melhor convivência entre todos. “Não temos a intenção e nem o poder de transformar as pessoas em trans ou homossexual”, diz Lúcia em resposta a críticas. Ressalta que a intenção do projeto é de preparar as pessoas para, independentemente da diferença, terem forças para enfrentar o mundo.
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ARGENTINA
No país, a homossexualidade é punida com pena de morte. Entretanto, a cirurgia de adequação sexual é permitida por lei e encorajada pelo governo, que subsidia parte do valor da operação - somente para homens que se identificam como mulheres. O paradoxo se dá porque o Estado considera a homossexualidade uma doença passível de cura. O Irã é o país com segundo maior número de transexuais, perdendo somente para a Tailândia. Afinal, é melhor passar pela cirurgia do que ser levado à forca.
Em 2013, a presidente Cristina Kirchner aceitou o pedido de uma mãe que solicitou, por meio de uma carta, a mudança do nome do filho de 6 anos. Esse foi o primeiro caso de menina transexual a receber um documento oficial com a identidade de gênero autodeclarada. A Lei de Identidade e Gênero que vigora desde 2012 no país, além de garantir a retificação do registro civil sem aval da justiça, também prevê tratamentos com hormônios e cirurgias gratuitas para adequação de sexo em hospitais públicos.
ALEMANHA
SUÉCIA
Tornou-se o primeiro país europeu a permitir que bebês intersexuais sejam registrados sem a identificação de menino ou menina. Os pais podem deixar em branco a lacuna correspondente ao sexo nas certidões de nascimento, criando assim uma categoria indefinida nos registros civis. Essa lei dá a oportunidade para a criança, quando tornarse adulta, escolher se prefere ser definida como homem ou mulher.
A fim de combater o estereótipo de gênero, alunos de uma pré-escola evitam usar “ele” e “ela”, chamando uns aos outros de “amigos”. Também não há divisão entre meninos e meninas nos banheiros ou na hora das brincadeiras, todos brincam de tudo. O país ocupa o 4.º lugar (entre 142) no ranking do Fórum Econômico Mundial que mede a igualdade de gênero.
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“EU PREFERIA QUE VOCÊ FOSSE BANDIDO” As experiências vividas na infância são levadas por toda a vida. Uma criança trans geralmente passa por momentos difíceis, que começam dentro de casa e se estendem para a vida escolar e social. “Meu maior medo era passar por uma inquisição, ser jogada na fogueira”, relata Symmy Larrat sobre os sentimentos de ter sido uma criança transgênera. Hoje, à frente da Coordenação-Geral de Promoção dos Direitos LGBT da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, ela lembra da infância no Pará: “Eu tinha pânico da rejeição, medo de ser olhada como bicho, como uma coisa estranha”. Desde criança, Symmy manifestava preferências por coisas ditas de meninas. Porém, como a maioria das crianças que não se identificam com o sexo biológico, Symmy não se sentia segura para revelar quem realmente era. “Quando todos saíam era o meu momento, eu podia ser eu mesma”, revela. Antes de assumir o atual cargo, no qual coordena um trabalho interdisciplinar que dialoga com diferentes áreas do governo sobre políticas públicas LGBT, Larrat esteve à frente de vários projetos no estado do Pará. Apesar do extenso currículo na militância, Symmy fala das dificuldades de inserção no mercado de trabalho. Para ela, estar à frente de uma coordenação LGBT a coloca em uma zona de conforto. “Será que as pessoas vão entender que eu tenho capacidade para estar em outro espaço de gestão que não
seja esse? Será que as pessoas vão me querer como atendente de uma farmácia?”, questiona-se. De acordo com Larrat, a construção do gênero de uma criança transexual pode ser um processo traumático, tanto para os pais, quanto para as crianças. Isso se deve, geralmente, a um protecionismo exagerado, em que os pais se sentem responsáveis pelas atitudes dos filhos, enquanto deveriam deixálos livres para escolherem os próprios caminhos, inclusive no que diz respeito ao gênero. Symmy relata que, logo após se assumir como travesti, aos 30 anos, prostituiu-se por dois. “É a prostituição que paga o aluguel e um novo smartphone”, afirma. Ser garota de programa, no entanto, lhe rendeu gosto para lutar pelos direitos humanos. Segundo Larrat, esse é, na maioria das vezes, o único trabalho que as trans têm acesso. “Minha luta é para que a prostituição não seja a única opção”, diz. Assim como Symmy, a transexual Ludmylla Santiago, coordenadora do Centro de Promoção de Direitos da Diversidade da Secretaria de Estado de Política para as Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, fala sobre a dificuldade que homens e mulheres trans têm no acesso ao mercado de trabalho. “Eu me formei em Publicidade e Propaganda pela Universidade Católica de Brasília e nunca consegui um emprego nessa área devido ao preconceito contra quem eu sou”. A situação relatada é comprovada pelos dados da Antra (Associa-
FILMES QUE DEBATEM GÊNERO ção Nacional de Travestis e Transexuais), que revela que 90% das travestis e transexuais estão se prostituindo no Brasil. No que diz respeito à patologização, as duas pensam diferentes. Por um lado, Symmy afirma que o gênero é uma questão de direitos humanos e não uma doença. “A patologização torna a sociedade ainda mais alheia ao entendimento dos transexuais. Não sou transtornada, não preciso de um diagnóstico para ser mulher”, ressalta. Por outro, Ludmylla diz que, infelizmente, a patologização é necessária. “É isso que nos assegura os direitos”, afirma. No caso dos transexuais que querem fazer o tratamento hormonal e a redesignação sexual pelo SUS (Sistema Único de Saúde), é preciso um diagnóstico de Transtorno de Identidade de Gênero. “É triste ser considerado transtornado para ter acesso ao tratamento, mas é o que acontece”, finaliza. “Qual pessoa em sã consciência escolheria morrer simplesmente por ser o que é?”, referindo-se aos dados que apontam o Brasil como país que mais mata por transfobia. Ludmylla conta que cresceu ouvindo da família frases como: “Eu preferia que você fosse bandido a ser uma transexual”. O preconceito e a violência psicológica começavam dentro de casa e se estendiam até a rua, por desconhecidos. Ludmylla afirma que isso gerou traumas e desequilíbrio emocional. “Em meio a tanta violência, é fácil pirar”, finaliza.
Tomboy (2011) | Direção: Céline Sciamma | Após se mudar com sua família, Laure, uma menina de 10 anos, com cabelo curto e jeito de moleque, passa a se apresentar como Mikael para os novos vizinhos e esconder o próprio gênero. Até quando dá.
Má Educação (2003) | Direção: Pedro Almodóvar | Dois meninos homosexuais conhecem o amor e passam por momentos difíceis num colégio religioso no início dos anos 60. Duas décadas depois, eles se reencontram e têm a vida transformada.
Minha Vida em Cor-de-Rosa (1997) | Direção: Alain Berliner | O menino Ludovic Fabre, 7 anos, acredita ser uma garota em um corpo masculino. Seus pensamentos e sua manifestação de gênero fazem com que ele e a família sofram grande repressão.
Meninos não choram (2000) | Direção: Kimberly Peirce | Baseado em uma história real, o filme relata a vida de Teena Brandon, que aos 21 anos se torna Brandon Teena e passa a reivindicar a nova identidade masculina na cidade rural de Falls City, Nebraska.
PROCESSO TRANSEXUALIZADOR (SEGUNDO SUS) Após o diagnóstico, é realizado o tratamento para induzir o aparecimento de características compatíveis com o gênero identitário. Para mulheres transexuais é administrado antiandrogênicos e estrogênio. Para homens transexuais, o principal hormônio utilizado é a testosterona. O tratamento deve ser feito pelo resto da vida, sendo interrompido somente para realização da cirurgia.
Tratamento Hormonal
Cirurgia de redesignação sexual
Diagnóstico de Transtorno de Identidade de Gênero
A cirurgia de mulheres transexuais envolve a reconstrução genital, feminilização facial e do contorno corporal, aumento de seios, cricotireoplastia (retirada do pomo de Adão) e cirurgia de cordas vocais. No caso de homens transexuais, acontece a histerectomia (remoção do útero) e faloplastia. Além disso, a operação inclui a remoção dos seios e lipoaspiração.
É dado por um psiquiatra ou psicólogo, baseado em evidências de uma forte e persistente identificação com o gênero oposto, além de evidências de sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo. (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM 5)
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