uma revista de jornalismo literário
Ano II / Edição 1 Dezembro 2012
proa
tripulação COORDENAÇÃO EDITORIAL Paulo Roberto Araujo MTb/RS 4219/14/23 v RS Viviane Borelli MTb/RS 8992 EDIÇÃO Kamila Baidek Marlon Dias Olívia Scarpari EDIÇÃO DE TEXTO Iuri Müller Olívia Scarpari EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA Dairan Paul DIAGRAMAÇÃO Daniele Bubans Gabriela Belnhak Ronei da Cruz CAPA E CONTRAPA Dairan Paul REVISÃO Andréa Ortis Débora Dalla Pozza Giuliana Seerig Marlon Dias Natascha Carvalho FINALIZAÇÃO Gabriela Belnhak Ronei da Cruz IMPRESSÃO Imprensa Universitária dezembro de 2012 500 exemplares proanarrativa@gmail.com A revista proa é uma publicação do Curso de Comunicação Social - Jornalismo e tem apoio do FIEX/2012 do Centro de Ciências Sociais e Humanas (CCSH).
embarque Aparentemente, parece não haver mais possibilidade de contemplação do mundo. O tempo impõe um ritmo acelerado e, por vezes, até sobre-humano. Histórias, relatos, personagens e fatos pitorescos nos rodeiam, mas passam despercebidos. Perdemos a capacidade de olhar para o outro e de admirar sua luta diária pela vida, seu esforço para concretizar seus sonhos. Muitas vezes, pensamos na beleza num sentido estrito e raso, que estaria relacionado à moda e riqueza. Esquecemos que o belo está no olhar, num sorriso com poucos dentes, num gesto de carinho, num sofá velho ou numa paisagem bucólica. proa é idealizada por professores e estudantes de Jornalismo que acreditam na possibilidade de um outro olhar sobre o cotidiano. A observação da realidade é o ponto de partida para a experimentação de um estilo literário no jornalismo que permite o relato de histórias diferentes das que ouvimos por aí, mas que, na realidade, fazem parte de nosso cotidiano. Após a primeira edição experimental, proa chega aos leitores com algumas alterações estéticas: mais margens e espaços em branco para favorecer a leitura, liberdade na escolha dos caracteres dos títulos para criar contraste com o texto e mais imagens para valorizar a visualidade da revista. Em termos de conteúdo, há entrevista, reportagens, perfis, ensaio fotográfico, que buscam mostrar que é possível compreender o mundo e suas histórias através do jornalismo. Esta edição ainda traz um espaço para a crônica, intitulado escotilha – pequena janela das embarcações. Nada mais apropriado, já que o gênero é um recorte do cotidiano, o que faz uma janela em relação a uma paisagem. Esperamos que nossos leitores mergulhem na revista e desfrutem de uma leitura prazerosa. Que se aproximem, mais e melhor, de um dos principais escritores brasileiros. Que sejam passageiros da Maria Fumaça e viajem pelo tempo através do relato de memórias da imigração italiana. Que fiquem embalados pelo ritmo genuinamente brasileiro e conheçam a história do Clube do Samba. Que apreciem vozes enigmáticas que saem de uma caixinha que irrompe no silêncio da campanha gaúcha. Que conheçam as lembranças que emanam do ferro-velho. Intencionamos que todos admirem a plasticidade de imagens urbanas que revelam a história de Santa Maria e de Pelotas. Que reconheçam o trabalho de Chico, um, dentre tantos entregadores de jornal. Que se comovam com a história de Floravante, que não pode ser contada em exíguas cinco linhas de uma nota jornalística. Que vistam o uniforme amarelo e azul e sintam-se carteiros. Que recordem da história de Santa Maria, através do resgate da memória de livrarias tradicionais, que fecharam as portas há algum tempo. Que acompanhem aqueles que fazem caminho no gelo e na chuva. Que viajem pelo mundo e descubram as surpresas de uma livraria londrina e de um café portenho. Paulo Roberto Araujo e Viviane Borelli
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bússola L E M E | “ele faz os personagens viverem”
com a doutora em Letras, da Universidade Federal de Santa Maria, 04 Entrevista Vera Lucia Lenz Vianna da Silva sobre o autor do clássico “Ópera dos Mortos” R D O | trajetória selada | “carteiro!” 07 APelasB Omãos de Totonho, histórias se cruzam e se correspondem
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R O T A S | pela serra gaúcha | o mar era o trilho
As memórias da imigração italiana desembarcaram para um passeio de Maria Fumaça
O R D O | falando na lata | memórias do ferro-velho 18 AUmBferro-velho é uma sucata de lembranças que ainda conservam um gosto amargo na boca
22 A B O R D O | notícias madrugada adentro | uma manchete para Chico Mineiro Chico é uma inversão: entrega jornais, 24 mas nunca viu seu rosto estampado em uma página À D E R I V A por Liana Coll | reminiscências desbotadas da rua
32 E S C O T I L H A | aquela caixinha preta na janela 36
R O T A S | recortes do desexílio | a triste história de Floravante Evangelista à espera de seu lar
O T A S | na palma da mão | samba! samba! samba! 37 RArrebatando emoções e mantendo suas raízes
42 R E S G A T E | livrarias de outrora de Fitzcarraldo em Werner Herzog 44 UP AMRCAOUPMO HDOEMMEAMR N| háA Vmuito E G A R | a chuva convida a sair filosofia nas estantes londrinas 46 D E S E M B A R Q U E | café com leite e duas metades de lua
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“Ele faz os personagens viverem” Entrevista com a doutora em Letras, da Universidade Federal de Santa Maria, Vera Lucia Lenz Vianna da Silva sobre o autor do clássico “Ópera dos Mortos”
O relógio parou às sete horas e trinta minutos do dia 31 de setembro de 2012. Não no sobrado dos Honório Cota, mas sim em um antigo edifício no Botafogo, zona sul carioca. Morria, naquela manhã de domingo, um dos mais importantes escritores brasileiros: Autran Dourado. Deixava a esposa, Lúcia Campos, com quem foi casado por mais de 60 anos, quatro filhos, dez netos, dois bisnetos e uma obra de inestimável valor artístico e literário.
entrevista marlon dias foto kamila baidek ilustração mariana michelotti
Waldomiro Freitas Autran Dourado nasceu em Patos de Minas (MG), em 18 de janeiro de 1926. Passou sua infância na cidade de Monte Santo de Minas, para onde seu pai, que era juiz, foi transferido. Estudou num internato em São Sebastião do Paraíso, concluindo seus estudos na Faculdade de Direito, em Belo Horizonte. Trabalhou como jornalista e taquígrafo. Em 1954, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde viveu até o fim da vida. Entre 1958 e 1961, foi secretário de imprensa do presidente da República, Juscelino Kubitschek.
Autran Dourado publicou seu primeiro livro, Teia, em 1947. De lá pra cá, construiu sólida carreira literária. Tornou-se um artífice de nossa língua, desempenhando um trabalho quase artesanal com a palavra. Suas histórias nos levam a um lugar singular e mítico: o interior mineiro, representado por Duas Pontes, cidade fictícia recorrente na obra do escritor. Mas Autran afasta-se dos regionalismos e ocupa-se das inquietações da alma humana, com personagens de densidade psicológica, tendo como influência as tragédias gregas e os grandes clássicos de nossa literatura. Avesso aos holofotes, Autran Dourado foi reconhecido no meio literário com importantes prêmios: Goethe de Literatura (1981), Jabuti (1982), Camões (2000) e Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras (2008). Uma de suas obras mais celebradas, Ópera dos Mortos (1967), foi listada pela UNESCO como uma das mais representativas da literatura mundial, enquanto Os Sinos da Agonia foi adotado nos exames de agrégation das universidades francesas. Sua obra foi objeto de estudo de dezenas de dissertações e teses. Dentre esses trabalhos, está “Autran Dourado e William Faulkner: Poéticas em Comparação”, de Vera Lucia Lenz Vianna da Silva. Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora no curso de Letras da Universidade Federal de Santa Maria, Vera Lúcia aponta aspectos importantes da produção douradiana, as principais obras do escritor e as semelhanças com o norte-americano William Faulkner.
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proa Como aconteceu o seu encontro com a obra de Autran Dourado? Vera Lucia Lenz Vianna da Silva: Foi na academia. Eu sou apaixonada por alguns dos livros do William Faulkner e uma colega de doutorado sabia desse meu interesse. Eu tinha feito o meu projeto de pesquisa sobre a obra do Faulkner e de outro autor, mas não estava satisfeita. Daí, em uma das nossas conversas, ela disse: “Tu já leste alguma coisa do Autran Dourado? Se tu não leste, te aconselho, porque ali tu vais encontrar diversas conexões com o Faulkner”. Então, eu comecei a ler os seus livros e me encantei. Achei importantes pontos de comparação entre ele e o Faulkner. proa Existe muita semelhança entre as obras de ambos? VL: Sim. Claro, guardadas as diferenças estilísticas e toda uma questão do lugar de onde eles falam, que são culturas diferentes. A escrita de ambos tem muito a ver com o lugar de onde eles vêm. O contexto do sulista, no caso do Faulkner, e o contexto das Minas Gerais, no Autran Dourado. Os ambientes são personagens importantíssimos. No Faulkner, sentimos os cheiros das fazendas antigas do sul, assim como a alma barroca e elementos arcaizantes de Minas Gerais afloram nos livros do Autran. Tanto em Faulkner como em Dourado, observamos a decadência de famílias da nobreza. No Autran, a decadência das famílias que pertenciam à aristocracia imperial, e no Faulkner, as famílias que pertenciam à suposta aristocracia sulista que se esfacela. Famílias que já estão empobrecidas, mas que ainda são vistas como nobres. proa Assim como o William Faulkner, o Autran Dourado retrata uma cidade fictícia que se repete em várias de suas histórias. Como isso influencia no conjunto da obra do escritor? VL: Eles criam um condado mítico. Do Faulkner é Yoknapatawpha e do Autran é Duas Pontes. E mesmo sendo fruto da imaginação, existe sempre um subtexto histórico que tem muito a ver com essa mescla de criatividade com memória, com as vivências. Lugares onde passam uma galeria de variados e complexos personagens que dão toda a riqueza para a obra. Percebemos que alguns personagens surgiram daquela terra, que é árida, que é estéril, e isso
parece ser transpassado para o personagem. Parece que eles são sufocados pelo ambiente, voltando-se para o tempo que já foi, entrando em descompasso com o presente da narrativa. Isso faz nascer a natureza trágica e dramática da obra do Autran. proa A utilização de uma família e de personagens que se repetem em alguns livros também seria uma maneira de voltar e reviver esses dramas? VL: Sim, e mais, essa repetição fornece uma ideia de verossímil. Para alguns críticos, há uma verossimilhança maior na obra do Autran Dourado, justamente porque ele utiliza os mesmos personagens em várias obras. A família Honório Cota, por exemplo, recorrente em suas histórias.
São dramas vividos por homens e mulheres de qualquer época. É a questão do ser e do estar no mundo
proa Podemos dizer que o Autran Dourado não é um regionalista, mas que suas histórias partem da região de Minas Gerais para a construção de narrativas que tratam de valores universais? VL: Certamente, ele não é regionalista. Temos um subtexto histórico que subjaz ao texto literário, que remete a uma Minas Gerais, mas a trama vai de uma forma que tu vês que transcende. São dramas vividos por homens e mulheres de qualquer época. É a questão do ser e do estar no mundo. O [crítico literário brasileiro] Antônio Cândido já dizia que a literatura parte de um contexto, mas que transcende e se alimenta de questões universais e pode ser compreendido por pessoas de diferentes gerações. É claro, levando em conta os valores diversos de cada geração.
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proa Quais seriam as inovações do Autran Dourado no estilo de literatura brasileira? VL: Não sei se em termos de experimentação literária ele inovou, mas ele tem um estilo muito interessante. Ópera dos Mortos, por exemplo, é composta em blocos e a arquitetura do livro, desde a cena de abertura, tem muito a ver com a arte barroca. Por influência do barroco mineiro, ele compõe o livro nesse estilo, muito contraste de sombra e luz, volteios, representações labirínticas da casa, da família. Ele toma para si o estilo barroco e constrói seu próprio estilo, com esses jogos narrativos que numa hora esconde e noutra faz aparecer. proa Ele também utilizava fluxo de consciência e monólogo interior? VL: Sim, sim. Assim como a Clarice Lispector, ele trabalha com a crise existencial, mergulhando nas profundezas do ser humano. Como esse ser está no mundo. Como ele mesmo dizia, o interesse era representar o homem na sua natureza abissal e metafísica, em caráter profundo. O narrador de Autran Dourado e de Clarice Lispector entram nas mentes dos personagens e nos transmitem sua essência. E essas estratégias narrativas que o escritor utiliza inovam, como a utilização do narrador-coro. proa O que seria esse narrador-coro? VL: É o narrador que faz parte do contexto que está sendo representado e também testemunha os fatos. Ele traz o ponto de vista de uma coletividade através do seu ponto de vista. Isso não é comum de ser ver em outros autores. É uma estratégia mais do Autran Dourado. E essa característica não deixa de criar um efeito de novidade.
Autran toma para si o estilo barroco e constrói o seu próprio, com esses jogos narrativos que ora escondem e ora fazem aparecer
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proa O Autran Dourado também escreveu livros de teoria literária, como o “Uma poética de romance: matéria de carpintaria”, que é bastante citado... VL: Sim, ele pensou e repensou o seu fazer literário. Apaixonado e atormentado pela ideia de dar o máximo de si, de ter uma representação que pudesse fazer com que o público leitor se identificasse com ela, de alguma forma. Seu estilo é muito trabalhado, um estilo até artesanal com o uso da palavra. O Autran achava que no Brasil as pessoas liam muito pouco. E pensando que o leitor também deveria saber o modo que ele escrevia, até para entender melhor a própria ficção dele, achou que era muito importante escrever sobre suas estratégias literárias, seus truques. Eu acho isso muito interessante nele.
tem inovações”. E o público é influenciado por isso. proa O que impediria o Autran Dourado de se tornar um desses cânones? VL: Nada. Absolutamente nada! Ele merece mais visibilidade, é um grande escritor. Tanto que Ópera dos Mortos foi escolhida pela UNESCO para ser uma das obras representativas da literatura universal. Além dos importantes prêmios que recebeu.
proa Se a senhora tivesse que apresentar o Autran Dourado para um leitor que não o conhecesse, qual livro indicaria? VL: Esses dois aqui são meus preferidos [mostra Ópera dos Mortos e Uma Vida em Segredo]. Em Ópera, ele prima pela densidade psicológica, o que talvez assuste o leitor num primeiro momento. Mas é maravilhoso! Já Uma Vida em Segredo tem algumas partes que nos remetem Seu estilo é muito trabalhado, à Macabéa, de A Hora da Estrela, da Clarice um estilo até artesanal Lispector, que é um livro bem conhecido. Eu não considero um livro difícil, mesmo porque com o uso da palavra ele traz certos segmentos narrativos que são uma verdadeira poesia, com uma maneira muito singela, muito doce, de colocar, que torna mais agradável e fácil a leitura. proa Não seria algo raro isso, de um escritor proa Qual expressão poderia caracterizar analisar sua obra? VL: Ele não é o único, existem outros que es- Autran Dourado? crevem sobre o seu fazer literário. Mas, real- VL: Pra mim, ele é um escritor que diz muito. Ele consegue fazer com que eu me mente, não é algo comum. enxergue nos personagens dele, que eu veja proa E a que se deve o fato de Autran Dou- os personagens e que eu consiga sentir seus dramas. É uma leitura que faz os personagens rado não ser tão popular? VL: Eu nunca fiz uma pesquisa quantitativa estarem vivos. Tu vais lendo e imaginando para ter dados mais seguros sobre isso, mas eu onde e como eles estão. O modo como ele tenho impressão de que vai da seleção de livros fala, nas palavras dele, de uma personagem a que somos submetidos, e que já está pronta, mulher que está no oco do escuro, de longas estabelecida por alguém, desde a escola. Temos mãos vazias, que anda pelos cantos da casa, livros selecionados pelos professores, por sem ver ninguém, apenas tendo a presença dos vários motivos, como o fato de ser obrigatório mortos perto dela. Tu estás vendo, consegueno vestibular. Existem aqueles que chamamos se enxergá-la. A força descritiva dele faz com de cânones literários. Há um grupo pequeno que o leitor consiga delinear um retrato desse que, mais ou menos, dá as coordenadas. “Ah, personagem. Ele trabalha artesanalmente essa esse livro é maravilhoso, esse livro deve ser palavra e dá força para ela, que dá vida ao lido, esse livro causa um impacto ou esse livro personagem e sensibiliza.
“Carteiro!” Pelas mãos de Totonho, histórias se cruzam e se correspondem
perfil patricia michelotti foto dairan paul
Aos poucos, cada um dos vãos das prateleiras azuis é preenchido pelas cartas, amparadas pelas mãos que as encaminham. Enquanto ordena as correspondências da maneira que julga mais fácil, de modo a agilizar seu trabalho, Totonho conversa com os colegas de profissão. O jovem carteiro vai encontrando rapidamente o lugar certo para cada um dos envelopes. Até aquele momento, era a cadeira ao lado da que Totonho sentava, preenchida pela calma de dona Eva, uma mulher de pele negra, próxima da terceira idade, que atraía a atenção da jornalista que buscava uma história pra contar. Mas as palavras saíam com dificuldade. As perguntas recebiam respostas monossilábicas, e o máximo que conseguia era através do auxílio de Totonho, que tentava desinibir a senhora. “Não é verdade, dona Eva?”, indagava o carteiro em busca de confirmação para mais uma de suas teorias cotidianas. Dona Eva permanece quase todo tempo calada e responde as provocações dos companheiros com sorrisos tímidos. “Tem que concordar, dona Eva, tem que concordar...”, continua a brincar Totonho, que, diante do rubor da senhora, fica ainda mais desembaraçado. Foi o momento de trocar o foco das atenções e adentrar um mundo que tinha muito a ser explorado. O rosto que carregava apenas leves traços do tempo queria falar. Antônio Batista Lopes Noschang tem apenas 27 anos de idade e é visivelmente um dos mais jovens entre os cerca de quarenta carteiros que trabalham no Centro de Distribuição Domiciliar, na rua Venâncio Aires, em Santa Maria. Foi em Tupanciretã, município da região central do Rio Grande do Sul, que iniciou a carreira a qual segue há três anos. A saudade das suas origens e da família fez o santa-mariense retornar na primeira oportunidade que teve. Em 2009, Antônio voltou para sua terra natal e, desde então, entrega cartas na cidade.
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As mãos fazem movimentos cuidadosos para que as cartas sejam colocadas na ordem em que devem ser entregues. Dessa forma, é fácil perceber a aliança que brilha na mão do rapaz. Mora no mesmo local, na Cohab Santa Marta, desde o casamento com a professora de filosofia Tatiana, há dois anos. “Hoje nos mudaremos pra casa do lado, passamos da casa 02 para a 01.” Além da casa própria, fazem planos para a chegada do primeiro filho, previsto para o próximo ano. A vontade de constituir uma família é facilmente explicada pela origem de Totonho. É o mais velho de seis filhos homens, o único já casado, e, até hoje, é quem visita com frequência os pais que moram no mesmo bairro que ele. Totonho é um homem magro, de estatura mediana, mãos e braços finos, dentes pequenos e olhos de um azul desbotado, quase cinza, por trás dos óculos de lentes grossas. Sorridente, ele conversa com todos os carteiros que passam por perto. Cumprimenta, pergunta da vida e manda recado: “Cícero Barreto, número 45. Dona Maria mandou um abraço pro senhor, seu Pedro!”. Essa disposição toda não diminui quando ele vai à rua. Seu Elizeu, chefe dos carteiros, por precaução, pede a Totonho que “vá com calma, pra moça poder acompanhar”. Com o habitual sorriso, tranquiliza o chefe e “a
moça”. “Pode ficar tranquilo, Elizeu. Hoje tem pouca correspondência... A gente só corre se precisar fugir dos cachorros”, brinca. Às dez horas da manhã, as cartas já estão devidamente organizadas, dispostas em montes numerados e sendo colocadas na tradicional bolsa azul dos Correios, prontas para serem levadas a seus destinatários. – Mas me diz uma coisa, guria – questionou Antônio, voltando-se para mim – se eu arranjar uma camiseta dos Correios pra ti, tu te anima a usar? – Claro! – Vou lá dentro buscar! Fica à vontade, toma uma água e passa protetor solar. Ainda bem que tu veio de tênis... Ambos devidamente vestidos de amarelo e azul, com a pele cheirando ao creme protetor, saímos à rua. O experiente carteiro, que apenas seguia a rotina, estava tão animado quanto quem andava ao seu lado e adentrava um mundo novo. O céu nublado daquela manhã não trazia nenhuma certeza. Antônio leva um grande guarda-chuva preto junto de si, “o pessoal que entrega aqui no centro fica caçoando quando a gente sai com guarda-
chuva, mas ali onde é mais retirado não tem as marquises pra nos proteger, caso o tempo mude”. Antes da primeira esquina, Totonho compra um punhado de balas de chocolate. – Tem problema de glicose? – Não, não... – Pega aqui umas balinhas pra ir chupando no caminho pra não ficar com fome. – Capaz, não preci... – Pega aqui! Eu sei que tu também gosta de bala. Agora, qualquer ônibus que vier, a gente pode pegar. Enquanto espera em pé, no ponto de ônibus, ele olha para o celular e avisa que logo a sua “prenda” pode ligar. Mas, naquele dia, ela não ligou. O ônibus vem descendo a rua dos Andradas. O uniforme dos Correios, acompanhado da bolsa de lona, dá o direito de entrar pela porta do meio. Dois? Nunca tinha visto andarem juntos. Nem eu e nem nenhum dos passageiros pela cara de curiosidade com que olham pra eles... Se entrassem aqui na frente, eu perguntaria que moda é essa. Mas tudo bem. Eu faço o meu trabalho, que é abrir a porta pra eles entrarem. Eles que façam o seu, que é entregar as cartas em seus destinos. E deve ter carta hoje, hein, para terem duas dessas bolsas cheias a tiracolo...
Multas de trânsito, catálogos odontológicos, cobranças de lojas, revistas científicas ou de moda revelam muito sobre a personalidade
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A Avenida Liberdade tem pouco movimento às dez e meia da manhã. Nenhum movimento se comparado com aquelas noites de fevereiro em que os blocos de Santa Maria desfilam e fazem o carnaval da cidade. Mas agora era o sol discreto de uma manhã nublada no mês de outubro que me deixava descobrir as vias percorridas. Há alguns metros, o asfalto dava lugar ao calçamento, onde ainda menos homens, mulheres, carros e cães passavam. Àquela hora não havia crianças nas ruas e, apenas de vez em quando, bebês eram transportados em carrinhos. “A partir daquela casa roxa, ali na esquina, sou eu que entrego”, indica o carteiro, apontando para uma residência. O amarelo desperta a atenção dos insetos, que seguidamente interrompem o voo na parte clara das camisas. Enquanto olha para o monte de cartas em suas mãos, o rapaz desvia, quase instintivamente, dos buracos das calçadas irregulares, dos galhos de árvores e, principalmente, das fezes de animais que estão nas ruas. “Acho isso uma enorme falta de respeito. O pessoal sai passear com seus cachorros e não recolhe o que eles deixam na rua. A cidade fica feia, e nós, pedestres, acabamos pisando onde não devemos”. Mesmo com todos os obstáculos, o carteiro continua atento ao trânsito e às suas correspondências. Um menino lava uma mesa, próximo ao portão da casa roxa. Totonho nem precisa tocar o interfone e ele vem nos receber. “Tenho uma carta registrada pra dona Lúcia. Tu recebe ela pra nós, cara?” Com a resposta afirmativa, o carteiro complementa dizendo que precisa da identidade do garoto. Ele corre para buscá-la e some pelo corredor de entrada. Passam-se mais de dois minutos até que ele volte com a identidade de outra pessoa. “Espera só um pouquinho que ele já vem aí.”. Quanto maior o número de cartas registradas, maior o tempo que cada carteiro levará para fazer todas as entregas. E maior também será a oportunidade de contato humano. Enquanto espera pela assinatura dos destinatários, surgem assuntos como o clima, a saúde, as construções e a greve dos correios. Após mais de quatro minutos, Totonho consegue, finalmente, partir para a próxima casa. O local é formado por ladeiras recobertas por várias casas antigas. As tintas já desbotadas e os muros de tijolos nos velhos casarões se mesclam com as construções novas e seus
pátios decorados por esculturas. Os poucos prédios visíveis, no início do percurso, têm dois ou três pisos. Por vários momentos, é possível esquecer que poucos quilômetros acima está o movimentado calçadão de Santa Maria. As ruas parecem ser de um pequeno vilarejo e as pessoas se cumprimentam e sorriem umas para as outras. Totonho não deixa de falar com ninguém na rua, nem que seja apenas um “opa!”. Na frente de um bar, um senhor pergunta se não tem nada para ele. “Deixa eu dar uma olhada aqui, mas acho que tem sim, Seu Nelson... ah, sim, aqui: uma continha pro senhor!”. Com a correspondência em mãos, ele agradece retribuindo o sorriso do carteiro. Multas de trânsito, catálogos odontológicos, cobranças de lojas, revistas científicas ou de moda endereçados a uma pessoa revelam muito sobre sua personalidade. Totonho sabe quem são quase todos os moradores das casas onde entrega correspondências. “Aqui nessa casa mora aquele político famoso na cidade [...] na outra é um dentista [...] naquela ali da esquina é uma senhora muito simpática que é professora aposentada [...] tá vendo aquela casa de dois pisos, ali no final da rua? Lá mora aquele músico, o João Chagas Leite, conhece?”. Tem gente que ele nunca viu, mas mesmo assim sabe nome, profissão e horário em que trabalha. – Aqui nesta casa mora um vendedor de livros, daqueles que vão de porta em porta. Qualquer pessoa que tu precisar encontrar, é só ir nos Correios que, com certeza, algum dos carteiros conhece. Na rua Ana Nélia, número 36, tem mais uma carta que precisa ser entregue em mãos. Com o grito de “Carteiro!”, uma senhora espia pela janela e quando comprova do que se trata, abre a porta dos fundos e, com passos lentos, vai em direção à correspondência. Totonho já avisa que precisa do número da identidade dela, economizando assim o seu tempo e o trabalho da senhora que caminha com dificuldade. Diante do aviso, ela retorna para dentro da casa e reaparece após alguns minutos. As costas um pouco encurvadas e os passos lentos não parecem adequados para a senhora que não tem mais do que sessenta anos. Quando chega mais perto, percebe-se uma atadura em sua mão direita.
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– Tudo bom, dona Rosa? – É, vamos indo... – O que aconteceu na mão? – É a tal da tendinite! Depois de preencher o formulário, Totonho segura o envelope sobre outras cartas para que fique firme e estende para dona Rosa. – Vou ter que judiar um pouco da senhora... Preciso do seu autógrafo aqui. Mas pode ser só o primeiro e o último nome. Dona Rosa faz um gesto de quem está conformada e assina com dificuldade no local indicado. Totonho agradece e se despede deixando a recomendação: “Cuida dessa mão, hein!”. Recebe um sorriso como resposta. Passado um pouco do meio-dia, as folhas das árvores estão desenhadas no chão. O sol iluminou Santa Maria e deixou para trás as nuvens que encobriam a cidade. O horário do almoço é precioso para Totonho. Ele guarda o monte de cartas que restam em sua mão e para numa esquina à espera do ônibus que o levará até onde mora. Hoje vai almoçar sozinho. Não é um bom cozinheiro, mas não abre mão de almoçar em casa. “É pertinho daqui, pego o ônibus que me deixa em frente de casa em cinco minutos. Almoço com calma e a uma e meia já estarei exatamente no ponto onde parei.” – Só não te convido pra almoçar comigo porque minha esposa não está em casa e não fica bem tu ir pra lá só comigo. – Imagina, não tem problema, Antônio! – É uma pena, mas é que hoje ela tem reunião na escola que ela trabalha. E não quero dar motivos pra ninguém maliciar... – Não te preocupa com isso... Eu almoço nessa lanchonete aqui e nos encontramos de tarde! Totonho é batizado pela Religião Católica, mas, desde 1997, pertence à Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Depois de completar dezenove anos, passou dois anos em São Paulo fazendo trabalho missionário. Ele recorda que, certa vez, ajudou a carregar lajes para a construção de casas para vítimas de tempestades. Quando retornou a Santa Maria, conheceu sua esposa e “selou-se” com ela. Para os Mórmons, o casamento é também um selamento, pois é para a eternidade; ultrapassa essa vida. 10 / proa
Todo domingo, o casal vai às reuniões do grupo e procura seguir os ensinamentos que recebe. “Somos orientados a ter uma alimentação saudável. Não tomo cafeína, nem álcool”. Os olhos se iluminam quando Totonho fala de sua fé e de como é um homem abençoado por ter encontrado “sua pequena”, uma mulher em que pode confiar e amar. O carteiro é um homem romântico e apaixonado. Manda flores para a esposa e gosta de comemorar todas as datas importantes para o casal. Totonho lamenta que a juventude tenha vulgarizado o amor. Depois de ter trabalhado por algum tempo como garçom, o rapaz diz já ter visto muita coisa. “Meninas que a gente viu crescer se estragando, faltando com respeito consigo mesmas... dava vontade de ir lá e pedir ‘Fulana, não faz isso’. Os caras hoje em dia não respeitam mais as mulheres”. A pureza do carteiro é refletida também através de cada um dos seus pequenos gestos. Em uma das caixinhas de correio, das centenas pelas quais cruza todos os dias, ele coloca a carta sempre no lado esquerdo, já que no direito tem um ninho de passarinho. É um gesto pequeno e simples, desses não custa nada fazer, e que Totonho faz todo o tempo, mesmo sem perceber.
*** Pontualmente, à uma e meia da tarde, o trabalho reinicia do local onde parou. A rua Goiânia começa com casarões, geralmente de dois pisos, construções novas e coloridas. Os jardins são floridos e quase sempre aparece um cachorro de pequeno porte com latidos agudos, saindo de dentro das casas. As poucas cartas entregues em mãos acabam ficando com senhoras de meia-idade, responsáveis pela organização da casa dos patrões ou com as patroas aposentadas, que agora aproveitam os seus dias de sossego. Uma senhora com vestido florido larga na cadeira o livro que está lendo e sai de sua varanda em direção à caixa de correio, mas já era tarde, Totonho já havia depositado os envelopes. “Opa! Desculpe, não vi a senhora aí”. “Não tem problema”, ela responde simpática enquanto pega as cartas que recebeu. O carteiro segue seu percurso, desejando uma boa tarde. Mais de um ano que me divorciei e as cartas do meu ex-marido ainda vêm parar aqui. Já falei
Totonho fala de sua fé e de como é um homem abençoado por ter encontrado “sua pequena” pro carteiro que não quero ficar com elas. Ele me diz que não pode fazer nada, já que o endereço que consta é o meu. Tinha parado de entregar por um tempo. Até o dia que veio uma carta pra minha filha, que está lá em São Paulo – essa bem que poderia morar aqui comigo ainda – e ele deixou junto uma carta pro pai dela. Fui falar com o carteiro, perguntei por que ele ainda colocava as cartas de alguém que não mora mais aqui na minha caixa de correio. Ele me explicou que havia esquecido e até vi que ele escreveu no envelope “AUSENTE/ MOTIVO: mudou-se. Informou Suzana”. Passou um tempão sem colocar as cartas aqui de novo. E hoje, olha só o que aparece! Mas não vou brigar com o carteiro, coitado. Sempre tão gentil: me dá bom dia quando passa e eu estou regando as flores. Vou ligar pro meu ex-marido e pedir pra ele dar um jeito nisso. Não quero essas cartas lotando minha caixinha de correspondência... Ao passar de uma quadra pra outra, na mesma rua, a cidade já parece ser outra. As casas são de madeira, pequenas e sem cor. No lugar das flores, o que se vê nos pátios são pneus velhos e alguns capins que sobrevivem em meio ao chão batido. Os cachorros são maiores e, muitas vezes, estão soltos nas ruas. Em quase todas as casas há alguém observando o movimento. As crianças se aglomeram em alguma calçada pra jogar taco. Quando enxergam o carteiro, correm ao seu encontro e pedem pelas borrachinhas, utilizadas por ele para manter os maços de cartas e transformadas por elas em brinquedo. Prevenido, Totonho tirou-as do pulso – para onde vão quando acabam os maços – e as colocou de volta na bolsa. “Eu não gosto de dizer ‘não’ pra elas, mas isso pode ser perigoso”. Perigoso mesmo são os cachorros soltos na rua. Totonho é prova viva da velha rixa entre cães e carteiros.
O maior problema de ser carteiro é esse. Uma vez fui derrubado por um cachorro. Era daqueles pequeninhos, mas se enroscou nas minhas pernas... Caí deitado no meio da rua. O pessoal veio me ajudar e, no que me puxaram pra eu levantar, senti uma fisgada nas costas. Achei melhor ficar deitado mesmo. Chamaram os bombeiros, ambulância e o pessoal do Correio. Eu tinha combinado de sair com a Tatiana depois do trabalho, vi que, pela hora, ela já deveria estar na parada de ônibus e pedi para um colega ligar para ela avisando que estava indo pro hospital. Nosso encontro acabou sendo no Hospital de Caridade. Mas no final das contas fiz raios-X e não deu nada, foi só um susto mesmo. Agora, lembrando, é engraçado. Mas confesso que na hora fiquei bem assustado. Então, só por garantia, vou fazer um volta um pouco maior pra desviar do cachorro que está aqui deitadão na sombra dessa árvore. Hoje estão em dois, sem falar nesse guarda-chuva que ele tem nas mãos. Deve ser só por minha causa já que, nesse sol, pra que ele iria carregar isso? Dia desses quis fazer uma graça e rosnar pra ver a cara de assustado dele, mas só eu achei engraçado! Meu dono me deixou vários dias preso em uma corrente por causa da brincadeira. Fiquei uma fera e, toda vez que ele virava essa esquina, eu começava a latir. Sempre fui o primeiro a ver ele passar. Aí depois os outros cachorros da vizinhança me acompanhavam. O brabo é que a gente fica mais corajoso quando está no nosso território. Aqui, solto na rua, dá um certo receio... não que eu seja covarde, imagina! Mas é que hoje eles estão em dois e tem esse troço na mão dele. Não tenho medo, mas tô tão bem deitado no meu canto... Às três horas da tarde a bolsa se esvaziou e as últimas cartas que estão nas mãos de Totonho serão entregues até o final da rua, que começa no ponto de ônibus onde fico. É hora de nos despedirmos e de deixar as ruas contarem suas inúmeras histórias que se cruzam e se correspondem pelas mãos de Antônio e de tantos outros funcionários dos Correios espalhados pela cidade e pelo país. O jovem carteiro não tem grandes ambições profissionais e já não quer mais fazer um curso universitário. “Aqui o emprego não é ruim. A gente ganha bem... O problema é que é cansativo, tem que passar o dia caminhando na rua, faça chuva ou faça sol. Mas só saio daqui se for pra ir pra outro emprego que me dê segurança”. O bom humor que mantém do início ao fim da jornada indica que o resultado do trabalho é satisfatório. Por enquanto, ele continua distribuindo cartas e sorrisos pelos arredores do Estádio Presidente Vargas até a hora de voltar pra casa e encontrar sua pequena.
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rotas / pela serra gaúcha
O mar era o trilho As memórias da imigração italiana desembarcaram para um passeio de Maria Fumaça
reportagem jean machado senhorinho foto gabriela kleinowski
A senhora de ferro acorda mais uma vez. Expele jatos fumegantes pelas caixas laterais. A caldeira superaquecida libera o vapor pela longa narina apontada para o céu. Os braços mecânicos que seguram as rodas vermelhas começam o movimento compassado de rotação. A locomotiva solta um grito estridente e parte da estação de Bento Gonçalves. A cidade carrega o nome do herói e líder da Revolução Farroupilha desde 1890. Mas não é a primeira homenagem a uma personalidade na área de colonização italiana. Bento Gonçalves nem sempre foi Bento Gonçalves. O primeiro nome dado à região, Cruzinha, não fazia menção a alguém ilustre, apenas aludia à pequena cruz usada para marcar o túmulo onde jazia um tropeiro ou traçador de estrada. Porém, em 1870, o Governo da Província alterou a denominação de Cruzinha para Colônia Dona Isabel, em homenagem à princesa brasileira que colocaria fim à escravidão ao assinar a Lei Áurea. Os colonizadores oriundos do norte da Itália ansiavam encontrar a prometida prosperidade quando partiram rumo à Colônia de Dona Isabel. Para alcançá-la, porém, sofreram muitas perdas e reveses. Muitos anos se passaram e muito mudou desde 1870, ano da chegada da primeira leva da imigração ao nordeste gaúcho. Ainda assim, há uma grande semelhança entre a sensação dos primeiros imigrantes e a dos turistas antes do embarque: a expectativa. A dos italianos era por uma vida nova; a dos turistas, pelo momento único, transformador. Senhores, senhoras e pequenos andam de uma ponta a outra da estação. Conversam sobre assuntos amenos, gracejam, observam a loja de lembrancinhas ou se deixam embalar pela música ao vivo. Apanham da mesa uma tacinha de plástico e a preenchem com vinho ou suco. Como fosse sem querer, a hora de partir chega. O grupo anda em direção às escadinhas que conduzem aos carros do trem. Sobem e são recepcionados por moças de modos simpáticos.
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A atmosfera de dentro do vagão é de ansiedade. De mãos dadas com a mãe, o garotinho de cabeça coberta por poucos fiapos loiros avança a passos curtos e recebe um cafuné do velhinho sentado à sua esquerda. Em seguida, uma mulher de cabelos amarelos chega berrando: Buon Giorno! Ela tropeça nos próprios pés, gira o tronco, tateia a guarda do assento e enfim se equilibra o suficiente para conseguir se acomodar no banco da primeira fileira. A vontade de começar a percorrer os trilhos é grande e uma senhora fica impaciente, pois deseja sentar o mais rápido possível para descansar as pernas e aproveitar o percurso. – Eu posso ficar aqui? – pergunta a mulher de costas encurvadas, cabelos pintados de cor avermelhada, calça florida e blazer azul. – No outro vagão, mãe. Os lugares são marcados. A velhinha faz careta, encara a filha com um olhar insistente e assim permanece por alguns segundos. Mas desiste e parte à procura do lugar correto.
RETRATOS DESBOTADOS
Apesar das semelhanças entre os embarques, a epopeia italiana e o passeio se diferenciam em um ponto crucial. O preço pago pelos imigrantes foi significativamente mais custoso do que os setenta e dois reais da alta temporada (janeiro, julho, novembro e dezembro) do passeio de Maria Fumaça. Os óbitos foram numerosos e muitos sequer pisaram na “Terra da Esperança”. Doenças e dificuldades no início do plantio ainda levariam outras tantas vidas dos italianos; que foram empurrados para fora do país pelo avanço esmagador das indústrias.
Aos poucos, a locomotiva deixa para trás a construção de telhas laranja, teto branco e detalhes rosados na parede. Os bancos de madeira, a voz pujante do cantor de cavanhaque, as caixas de som e a listra amarela sob o piso de pedra ficam distantes. As inscrições “fotografia à moda antiga” da plaquinha já não podem ser lidas. A foto não é “das antigas” somente por causa do preto e branco da revelação fotográfica. Os turistas fotografados podem se caracterizar à italiana. Os ternos, coletes e chapéus de cores escuras são para os homens. As vestes floridas – lenços e vestidos – e pequenas mantas estão disponíveis para as mulheres. Para recriar fielmente a sensação de ser um imigrante, as malas quadradas de tons em marrom são indispensáveis. A propósito, os flashes são constantes do início ao fim do passeio. O casal de velhinhos cariocas pretende registrar cada momento. Momentos que antigamente ilustrariam o álbum da família, mas que, nos dias atuais, vão parar no disco rígido do computador. A mãe coruja continua vigilante à prole mesmo pelo olho da câmera. Faz questão de fotografá-lo algumas dezenas de vezes. O garoto estica a boca e exibe bem os poucos dentes ainda firmes. Satisfeita, ela pressiona o botão e pronto!, mais um retrato para posteridade. A própria Maria Fumaça seria apenas um retrato estático do passado a enfeitar uma praça pública ou algum museu. Estaria absolutamente imobilizada, fora dos trilhos, perdida na incontinência do tempo, não fosse o passeio turístico pela serra gaúcha. Fabricada no ano de 1941, nos Estados Unidos, a locomotiva Mikado 156 funcionou em solo catarinense, na estrada de ferro Teresa Cristina.
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Sob o teto branco em arco, no interior dos vagões, os estofados escuros são ocupados por pares de pessoas. Um curioso mecanismo permite mudar a direção dos assentos, caso os passageiros queiram ficar de frente para o banco de trás. As paredes são revestidas de lâminas de madeira clara e as janelas têm o seu vidro atravessado pela luz do sol. O senhor enrugado de pouco cabelo e muito bigode faz esforço para levantar a moldura que guarda o vidro. “Olha! Quando você levanta o vidro parece uma guilhotina. Imagina deixar a mão embaixo...”, comenta. Da porta divisória, que separa um vagão do outro, surge uma moça de rosto redondo. Os seus olhos escuros são contornados por maquiagem verde, os cabelos morenos, a pele clara. Está uniformizada com as sóbrias vestes da empresa de turismo e gesticula bastante quando fala. – Bom dia pessoal, eu me chamo Mônica! Murmúrios esboçam um cumprimento inaudível, que é mais próximo do resmungo de segunda-feira do que do bom-dia de feriado. – Eu disse bom dia, pessoal! Dessa vez, despertos, os passageiros se animam e respondem entusiasmados à saudação. – Agora sim! Passageiros, a viagem tem aproximadamente uma hora e meia. A Maria Fumaça parte de Bento Gonçalves, passa por Garibaldi e para em Carlos Barbosa. Sintam-se à vontade para abrir as suas janelas e verem a beleza dos parreirais. As mãos e os braços podem ser colocados para fora da janela, mas cuidado, porque a fuligem expelida do trem pode causar irritação na pele e olhos. Daqui a pouco, o trem vai fazer uma curva para esquerda. O momento é muito bom para se bater fotos da locomotiva. Aproveitem a viagem! Os olhares se perdem na imensidão e ninguém fala mais nada. Lá fora, o verde dos parreirais, a curva das colinas e a madeira lenhosa das casinhas. Os cachos das videiras recordam sobre a fonte de prosperidade e empregos da economia local. Desde o começo da colonização, o potencial da viticultura era registrado nos relatórios do agente consular italiano. No início, o vinho era ácido e o plantio das uvas não recebia uma atenção meticulosa. Alertava-se para a necessidade da presença de enólogos capacitados a ensinar aos colonizadores como cultivar a vinha. Atualmente, a região é referência mundial na produção de vinhos. O trem segue chacoalhando suavemente de um lado para o outro. Os seis carros são puxados pela locomotiva a uma velocidade que alcança até 25 km/h. A locomotiva é uma máquina bastante sedenta e gulosa. Alimenta-se de uma porção generosa de lenha e consome cinco mil litros d’água por viagem. Como toda boa senhora de idade, a locomotiva 156 precisa de um acompanhante à altura. O quepe no alto da cabeça lembra o usado por capitães de navio. Seu bigode cinzento lhe confere ares de autoridade e
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as rugas da pele curtida pelo calor da caldeira são como cicatrizes de batalha; a orelha direita, marcada por uma mancha escura, parece ter sido chamuscada por um pedaço de carvão. O maquinista José Dal Castel – ou talvez, José Fumaça – encara a temperatura intensa sem demonstrar desconforto. A união entre homem e máquina começou no ano de 1993, quando a Maria Fumaça passou a estrelar o passeio turístico na serra gaúcha. Mas José já pensa em se despedir do ofício e aproveitar a aposentadoria longe de Maria.
ALEGRIA, ALEGRIA!
Em um instante, a música de versos italianos invade o vagão. O cantor é um homem corpulento, que parece ser ainda mais alto por estar em pé e os passageiros sentados. Usa óculos e carrega um acordeão. O som zombeteiro do instrumento não demora a sair. Dois senhores, trajados com colete e camisa xadrez, vestes semelhantes a que usa o gaiteiro, começam a dançar com duas senhoras no salão. É o Coral Terra Nostra que se apresenta. As senhoras estão de vestido, sapatinhos e lenço na cabeça. De repente, os casais soltam as mãos e convidam os passageiros a dançar. Alguns anseiam pelo convite, outros se encolhem o máximo que podem. Dentre os tímidos, um rapaz moreno de sobrancelhas grossas e nariz largo – um dos poucos a viajar desacompanhado – se aproveita da situação. Agilmente, escorregou
– Foi o pão com manteiga mais gostoso que eu comi na vida. Os passageiros aproveitam a calmaria para beliscar o grostoli – também conhecido por cueca virada: bolinho frito de massa crocante, generosamente açucarado – e bebericar o refrigerante. Não há conversas muito intensas, todos parecem relaxados. O movimento se resume a uma breve olhadela para o lado. O trem está sonolento quando uma rotunda senhora entra abruptamente no vagão. Tem a voz exaltada e veste roupas típicas italianas. O seu rosto parece um pimentão, tamanha a sua impaciência. – Alguém vio o Piero, meu namorado? Hein? Os passageiros se recompõem e perscrutam com atenção o vagão em busca do tal de Piero. Eis que surge um homem alto, magro e de barba por fazer. Um tipo vivo trajado de boina cinza, colete por cima da camisa de botões, calça escura e sapatos pouco lustrados. Faz gracinhas para as passageiras e se diverte. A sua namorada, Elvira, não gosta. Ele se queixa do jogo duro imposto no relacionamento. — Já son cinco anos sem nada. Nada! — Claro! Só depois do casamento, de pôr o anel na mão esquerda, né gurias?
para o banco próximo da janela e fingiu contemplar a mata fechada à direita do trem. Enquanto isso, senhores e senhoras sarandeavam pelo corredor em meio aos solavancos da máquina a vapor. O jovem encosta a cabeça na janela e pensa de maneira quase suplicante: “Por favor, não me chamem para dançar. Eu não sei dançar e não quero dançar. Prefiro ficar sossegado olhando as árvores. Imagina! Se eu já piso nos pés delas quando o chão não se mexe. Caso eu aceite o convite, a dança vai virar tragédia. Melhor assim, deixar a dança com quem sabe ou pensa saber. Aqui está bom, daqui não saio”. Ao contrário do rapaz, as senhoras dos bancos da frente, quando chamadas para dançar, não hesitavam em ceder sua mão e deleitavam-se ao acompanhar os passos do senhor de olhos azuis e feições de galã ítalo-americano. Em seguida, o barulho do acordeão cessa e as palmas ocupam o vazio deixado pela música. Os passageiros se ajeitam, gargalham e suspiram com os rostos em brasa. A porta do vagão se abre. Mônica e outra moça de cabelos avermelhados, Viviane, entram segurando um carrinho abarrotado de comes e bebes. Entretanto, o aviso sempre impopular de que o lanche representaria um gasto extra aos interessados desmanchou a expectativa do “boca livre”. Os passageiros começaram a apalpar o bolso das calças ou a revirar a bolsa à procura da carteira. Alguns resistiram, dentre eles, uma senhora de cabelos curtos que estava muito contente com o seu café da manhã, a ponto de anunciar em voz alta:
O casamento possuía um significado ainda mais especial na realidade dos primeiros imigrantes. A pobreza não permitia extravagâncias: tudo precisava ser contado. Um dos únicos momentos de fuga das agruras do frio e da fome era a criação do enxoval. As tarefas árduas do cotidiano davam lugar aos bordados caprichosos riscados em panos, toalhas e lençóis. As peças costuradas não traziam materiais luxuosos na sua confecção. Eram feitas a partir de sacos de açúcar reaproveitados e, vez ou outra, de algodão comprado nas lojas. A única herança, ou melhor, dote – la dote, como se costumava falar – destinado à mulher era o enxoval. Quando ficasse pronto, ele seria exposto primeiramente às amigas próximas. Na festa do casamento, a exposição do enxoval prosseguia e os convidados tinham a oportunidade de avaliá-lo. Talvez fosse o caso de Elvira, ansiosa para consagrar a união e enfim utilizar o enxoval. Planos bem diferentes dos de Piero, claro. De qualquer forma, o matrimônio não ocorreria no vagão. Sob as exigências furiosas de Elvira, o rapaz de lábia frouxa escapuliu de mansinho. A sua namorada seguiu no seu encalço. Aplausos. O Grupo Teatral Orelhas de Abano se apresentara. Mais uma pausa para o lanche. Viviane e Mônica novamente conduzem o carrinho dos comes e bebes. Dessa vez, os passageiros não demonstram tanto interesse em adquirir os produtos. A caixa de som, posicionada no canto superior direito, ao lado da porta, volta a bufar sons de ritmo alegre.
FAROESTE GAÚCHO
O cheiro da fumaça expulso pela locomotiva entra pelas poucas janelas abertas, misturando-se ao perfume adocicado das senhoras. E logo
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se dissolve e desaparece. No passado, houve personagens tão voláteis e densos quanto a fumaça expelida do trem. A serra gaúcha guarda a história de um homem além da matéria. Um famoso bandoleiro comparável ao temível cangaceiro Lampião. O lendário Paco – capaz de matar, mas também de ajudar os camponeses italianos desafortunados. Nascido em 1886, filho de espanhóis, era de estatura baixa e robusto. A simples menção do seu nome infundia o terror entre os seus inimigos. Constam mais de 150 mortes creditadas às balas das suas armas de fogo e à lâmina de sua faca. Tempos nervosos aqueles. Paco era uma figura bastante influente na comunidade. Por vezes, seu prestígio trabalhou a serviço de interesses dos poderosos. Homens da política se valeram da fama de Paco para a arrecadação de votos. Porém, tal função não duraria para sempre e, em pouco tempo, Paco deixaria de ser útil aos propósitos dos grandes. Foram muitas tentativas de derrubar o bandoleiro. Mas Paco movimentava-se com astúcia, ficando longe do raio de ação das autoridades. Seu nome se tornava cada vez mais mítico. Mas havia uma maneira de encontrá-lo e a isca usada foi uma reunião escolar de pais. Na ocasião, decidiriam se uma professora protegida de Paco permaneceria no cargo. Ele não percebeu a trama e se envolveu no assunto. Os pais dos alunos votaram em favor da permanência. No entanto, Paco não obteria a vitória plena. Ao sair da sala, fora alvejado por dez exímios atiradores. Caído, já sem pulso, recebeu outras várias rajadas de pessoas da comunidade. Foram mais de duzentas perfurações no corpo. O homem morria para eternizar a lenda. Alheios ao passado de ação do bandoleiro, os grupos de turistas ficam imersos no passeio. Não é todo dia que se anda de trem. O burburinho de vagão é incompreensível e interrompido quando três homens pilchados adentram o corredor. O pisar das botas reverbera no vagão. O tradicionalismo gaúcho também ganha seu espaço no rol das apresentações da Maria Fumaça. O gaiteiro chega de mansinho e contorce a gaita botoneira para arrancar notas expressivas. As palmas do integrante de bombachas largas explodem na percussão à medida em que são entoadas as canções dos pampas gaúchos. Para o final, o hino do Rio Grande do Sul, que
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só não foi cantado em coro devido à presença majoritária de passageiros de outros estados. Aplaudido, o trio se despede. Mônica reaparece para contar um pouco da história do município. Estamos na cidade de Garibaldi, que já superou os trinta mil habitantes e recebeu esse nome em homenagem a um dos grandes heróis da Revolução Farroupilha, Giuseppe Garibaldi. A memória de Mônica impressiona. Ela tem a capacidade de falar enormes trechos informativos sem hesitar. Há mais de um ano dedica-se a apresentar as atrações do passeio.
O ÚLTIMO FÔLEGO DA MARIA
São curiosos os laços de denominação entre os municípios de Garibaldi e de Bento Gonçalves. Ambas as cidades levam o nome dos heróis farrapos da Revolução Farroupilha (1835-1845), a mais longa guerra civil de caráter separatista, símbolo do orgulho gaúcho. Mesmo antes de serem municípios, ainda quando colônias, os seus nomes estavam ligados. A atual Garibaldi era a Colônia de Conde D’Eu; Bento Gonçalves era a Colônia de Dona Isabel. O Conde D’Eu e a Princesa Isabel formavam o casal da monarquia brasileira. O marfim das paredes e o branco das janelas da estação de Garibaldi ficam mais nítidos. Mônica aproveita para dar alguns avisos. Estamos nos aproximando da plataforma da cidade de Garibaldi, onde faremos uma parada para degustação de suco de uva filtrado e doce. – Seremos recepcionados por um show de música ítalo-gaúcha e a última música a ser tocada será La Bella Polenta. Essa é uma canção regional que conta a trajetória do milho, desde o plantio até a degustação da polenta. Após o término da canção e o badalar do sino, peço por gentileza que retornem ao mesmo carro, para prosseguirmos com o passeio até a cidade de Carlos Barbosa. A locomotiva desacelera até repousar em frente à estação. Uma multidão toma a plataforma. Sotaques de cariocas, gaúchos, paulistas e baianos se misturam. A tempestade de flashes parece não perturbar o cantor de músicas italianas e gaúchas. Os passageiros que optam por não assistir ao show aproveitam a parada para visitar
o interior do “Vagão das Celebridades”. Reportagens e cenas do filme O Quatrilho foram gravadas ali, por isso o apelido. O vagão nº 215 é o único que mantém o ambiente original de época. Os assentos não dispõem de estofamento, mas a ausência do conforto tem como compensação proporcionar uma experiência mais próxima do passado. Os minutos passam depressa e já se ouve o desfecho de “si gusta così, fenisce cosi”, última canção da apresentação. O sinal de embarque é reforçado pelo badalar do sino. Aos poucos, os passageiros voltam aos seus vagões e se acomodam nos bancos. A Maria Fumaça recomeça a trilhar o caminho. O artista de rosto faceiro segura o seu chapeuzinho e balança efusivamente o braço livre para se despedir. Os passageiros sorridentes respondem abanando as mãos. Falta apenas o trecho da estrada de ferro que liga Garibaldi a Carlos Barbosa. Os quilômetros restantes foram inaugurados em 7 de setembro de 1918, quase um ano antes dos trilhos chegarem em Bento Gonçalves. A linha Bento Gonçalves/Garibaldi/Carlos Barbosa começou a operar no ano de 1919. Três anos foram dedicados à sua construção. Os comerciantes, desde 1895, solicitavam ao governo a criação de uma linha ferroviária que facilitasse o transporte e a comercialização dos produtos coloniais feitos na região, como uva, milho, trigo e batata doce. A viabilização da ferrovia significou desenvolvimento econômico e progresso para a região, mas, gradualmente, o meio de transporte ferroviário foi abandonado. Em 1993, tornou-se uma ferramenta para o turismo: o retorno ao passado através de um meio de transporte antigo. A próxima atração do passeio propõe analisar uma manifestação popular dos italianos: a Tarantela. O senhor de gaita em mãos, sobrancelhas escuras e cabelos brancos entra no vagão. Ele cumprimenta e começa a
explicar a origem da tarantella. “No sul da Itália, no século catorze, as tarântulas... Sabe as tarântulas, as aranhinha? Pois é. Tomaram conta e envenenaram tutti os italiano. Na época, não tinha remédio pra esse mal. Então, eles começaram a chacoalhar o corpo e descobriram que o segredo prá se curar era se mexer que nem uma tarântula. Por isso, o nome é Tarantela. Vem de tarântula. Mas chega de papo. Agora andiamo com a música”. Os sons que saem do acordeão têm ritmo acelerado. Ninguém se arrisca a dançar, entretanto participam de outro modo. – Jammo, jammo, ‘ncoppa jammo ja; funiculí, funiculá, funiculí, funiculá! – E o grito? Hei! – Funiculí, funiculá, funiculí, funiculáááá... Mal o gaiteiro se despede e o sino do trem começa a anunciar que a estação final se aproxima. Mônica retorna para falar sobre a última cidade da linha férrea. Estamos na cidade de Carlos Barbosa, que recebeu o nome em homenagem ao médico e governador da província do Rio Grande do Sul no período entre 1908 a 1913. Carlos Barbosa Gonçalves era sobrinho-neto de Bento Gonçalves da Silva. A locomotiva alcança a plataforma. Ouve-se, ao fundo, a música italiana romântica cantada por uma mulher morena de batom vermelho. Os passageiros esfregam os olhos e se espreguiçam como se despertassem. O levantar moroso e a difícil ambientação das pessoas são comuns em viagens pelo tempo. De volta à realidade, os versos das músicas típicas italianas costumam ecoar nas lembranças dos que percorreram aqueles trilhos. Muitos não querem deixar de ouví-las. E não deixam. *Utilizou-se como fonte de reportagem a pesquisa sobre imigração italiana da historiadora Assunta de Paris
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a bordo / falando na lata
Memórias do ferro-velho
Um ferro-velho é uma sucata de lembranças que ainda conservam um gosto amargo na boca
perfil gabriel eduardo bortulini ilustração mariana michelotti Naquela tarde chuvosa de quinta-feira, a água caía intermitentemente e azar de quem não estivesse preparado. Meu guarda-chuva era pequeno e a água só não me molhava a parte superior do tronco e a cabeça. Para piorar, soprava um vento que fazia a sombrinha balançar. Sentia-me num circo: eu era o equilibrista que tentava, sem sucesso, manter o prato sustentado em cima da varinha. Andava de um lado para o outro acompanhado daquele tosco objeto. Por sorte, a pancada teve um dos seus momentos de trégua, eu fechei o guarda-chuva e segui caminho. O trajeto iniciara na Avenida das Dores em Santa Maria. Eu andava em direção a um ferro-velho que encontrara na Avenida João Luiz Pozzobon. Nessa hora, já estava chegando. Caminhava espremido no acostamento. Na fronteira das vias, a calçada se extingue. Passavam carros, caminhões e ônibus colados em mim. Por vezes, a água jorrava da borracha dos pneus e me encharcava. Segui firme. Avistei uma fila de carros que me chamou a atenção. De carros não, de latas. Todos os veículos estavam na capa da gaita. Nem isso. Não havia gaita, era só a capa. A fileira acabava quando paredes de concreto erguiam-se verticalmente e formavam uma estrutura quadrada, reta, em forma de caixa. Em cima dessa construção, havia duas carcaças de automóveis. Uma delas, creio que de um Corcel amarelo, era um pedaço aparentemente inútil de ferro com formas arredondadas, sem faróis, sem pneus e sem asas. A entrada do lugar era feita por uma descida preenchida com britas. Sorte a minha que elas estavam aí. Se fosse chão batido, teria me embarrado todo. Não havia escada ou coisa parecida para quem quisesse entrar a pé. E por que teria? É um ferro-velho! Quantas pessoas vão ao lugar a pé? Que eu saiba, ninguém leva a lata velha na garupa. Desci. Nos fundos, uma área coberta, onde estava
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um automóvel desmontado, provavelmente era feito o desmanche dos carros. Parei na frente da casa quadrada. Do lado de fora, estava um funcionário. – Opa. – Daí, tchê. O Adriano tá por aí? Eu já tinha falado com ele ontem... – Oh, Adriano, tem um rapaz que quer falar contigo aqui – gritou. Esperei na porta e logo o homem apareceu. Saiu do quarto com o rosto amassado, colocou seus óculos e, com as mãos, ajeitou os cabelos. – E aí? Como tá? – perguntou-me. – Tudo bem. E contigo? – Tudo certo... Entra aí. Pode sentar no sofá. Na casa, havia quatro cômodos: uma sala, um quarto, uma cozinha e um banheiro. Quase uma kitnet perdida em meio a um ferrovelho. Eu estava na sala. Pouco podia ver dos outros ambientes. O lugar tinha paredes azuis.
Ferramentas estavam por todos os espaços. Sentei-me no único sofá do lugar que ficava no canto direito da casa, com o encosto do braço direito embaixo da janela, ao lado da entrada. Do meu lado direito, uma mesa branca, redonda, daquelas de plástico, sustentava martelo, alicate, furadeira, chaves de fenda, serras, parafusos e pregos. Na minha frente, mais ferramentas espalhadas – agora no chão – ao lado de um objeto que eu não consegui identificar. Um amontoado de madeira velha em formato quadrado. Talvez fosse um banco, ou servisse para alcançar lugares mais altos. Não sei. Parecia-me inútil, mas não ousei perguntar sobre a sua serventia. No canto oposto ao sofá, uma geladeira velha, quase idêntica à primeira que eu lembro ter visto em minha casa. Era quadrada, amarela, enferrujada e ficava a uns dez centímetros do chão, suportada por quatro pezinhos finos. Adriano pegou a cadeira que estava encostada na mesa redonda e se sentou à minha diagonal. Logo pôs o pé direito por cima da coxa esquerda, espalhou-se no assento e apoiou as costas no suporte traseiro da cadeira. Eu o acompanhei: cruzei as minhas pernas e me escorei no encosto do sofá. Segurava o guarda-chuva em cima das calças que já estavam molhadas. – Muito serviço com essa chuva? – Bah, não, não. Pouca coisa. Hoje foi tranquilo. O pessoal vê que tá chovendo e nem dá as caras por aqui. Adriano Magalhães da Costa tem 46 anos, mas parece ter menos, apesar dos cabelos levemente grisalhos. Eram curtos, lisos e penteados para trás. Naquele dia, usava calça jeans, camiseta vermelha e botas cor de café com leite. Homem de estatura mediana, tem barba rala, pele branca e é um pouco gordo, não muito. Usa óculos de hastes finas e lentes pequenas que não escondem seus olhos escuros. Não há rugas em seu rosto. Estava fumando. Segurava o cinzeiro na mão esquerda e o cigarro entre os dedos da mão direita. – Eu trabalho de sucateiro desde que me conheço. A gente trabalha com desmanche, vende aos pedaços. Tamo toda hora em leilão procurando alguma coisa pra vender depois.
– Como funcionam esses leilões? – Às vezes são empresas que leiloam os carros, às vezes é o DETRAN. Depende. A gente tá sempre metido por aí. – Então quem quiser compra os pedaços do carro? – Isso, o cara vem aqui, olha o carro e pede o motor, por exemplo. A gente desmancha, tira o motor e vende pro cara. É o cliente que manda. – E o que vocês fazem com a lata? – O ferro, ferro mesmo, a gente vende pro Gilmar, que é de outro ferro-velho aí. Ele trabalha com isso. A gente faz revenda também, quando o carro tá em bom estado. O funcionário com quem falei antes entrou pela porta. Nisso, Adriano deixou o cigarro de lado e foi para o banheiro. – Às vezes se arrebentemo na estrada aí – falou o funcionário. – Lembra daquela vez que fiquei na estrada de noite com os quatro pneus furados, Adriano? – Lembro, lembro – gritou do banheiro. O funcionário saiu da casa e Adriano voltou à sala ainda secando as mãos. – Esse cara chegou de madrugada aqui, apavorado. Nem sei como conseguiu vir. Furou os pneus e foi parando pela estrada toda. – Noite azarada, hein? – Bastante. Já com as mãos secas, acendeu outro cigarro e se sentou novamente. O som da chuva ambientava nossa conversa. As gotas eram como baquetas na bateria formada pelo ferro da sucata grisalha como aquela tarde. O guri, de fato, tinha vindo. Fazia-me perguntas e eu respondia sem medo. Ele estava sentado no meu sofá anil, com seu bloquinho de notas em mãos, e anotava quase tudo o que conseguia. Trazia-me lembranças. A água que lhe encharcava as calças produzia duas tonalidades no brim cinzento. Fez bem em vir de dia. Depois do anoitecer, os meus seis cachorros não o deixariam entrar sem alarde. Eles são os guardas da sucata e a minha companhia noite adentro. Vivo sozinho nessa casinha de fronte à rua. Da porta da casa, o olhar choca-se com um gigantesco muro de tijolos à vista que delimita a parte leste da propriedade. A parede estende-se desde a entrada até onde se finda a área coberta aos fundos. Atrás da casa, ferro-velho. A lata preenche o vazio da barranca que afunda o chão da parte oeste. Hoje, a sucata é minha, mas quem começou com isso foi o meu pai há quarenta e cinco anos. Amauri Ribas da Costa era o nome dele. Foi o sucateiro mais antigo de Santa Maria. Montou o primeiro ferro-velho da cidade. Eu continuei com essa vida. – O meu pai morreu em 2002. Tinha diabete, gastou muito pra morrer. Ele tava sentando aí onde tu tá e disse que ia morrer. Foi dez dias antes de falecer. Mas não te preocupa, era outro sofá. Esse aí não é assombrado... – contei, aos risos. O guri, que já não era muito corado, ficou mais pálido ao ouvir minha brincadeira. Mudei de assunto para quebrar o gelo: – Eu nasci e me criei aqui em Santa Maria. Estudei até a 7ª. Depois fui crescendo, arrumei namorada... Se criamo mais um pouco e fomos trabalhar. Pra viver, precisa de dinheiro, né. E tu? É daqui? – Não, não. Sou de uma cidadezinha perto de Erechim. Campinas do Sul é o nome. – Nunca ouvi falar. – Nada mais normal. – Teu pai faz o que lá? – É contador.
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Adriano levantou-se e cuspiu porta afora. Parou de perguntas e voltou a falar do seu pai: – Meu pai era muito mulherengo. Mas não gostava de china. Eu era piá e ele me mandava buscar cerveja. Eu ia. Mas ele não bebia muito. Era muito trabalhador. Eu também sou mulherengo. Tive gonorreia quando era novo, mas aí tomei aquele negócio, como é? Insulina? Não, penicilina. Tava curado em dez dias. Só que surgiu a AIDS e aí comecei a me cuidar. O homem gostava de falar sobre mulher. Vangloriava-se das tantas que tivera e continuava tendo. Levantou outra vez e foi buscar uma jaqueta. – Eu era muito namorador, casei pela primeira vez com 33, mas sempre tive muita mulher. A gente precisa delas, umas a gente namora, umas a gente casa, outras a gente se apaixona. Mas não dá pra se apegar muito. A minha última quis me tirar quase tudo, mas eu não cedi. Deixei ela criando o nosso filho na casa que eu tinha, mas só porque o guri precisa dela. Não dei a casa pra ela, é meio a meio... – Tu casou mais de uma vez então? – Sim. Duas. Tenho esse guri de nove anos do segundo casamento. Do primeiro, tinha outro guri,
mas perdi ele... Ele tinha 19 anos. – É a minha idade. – É? Ele era bem parecido contigo. Rapaz alto, magro, meio loiro. Era um guri esperto, vivo, malandro, trabalhador... Fez-se um silêncio. Era parecido comigo, então. Talvez por isso ele se sentia tão à vontade para conversar sobre assuntos constrangedores. Voltou então a falar sobre mulheres. – Mas é isso, mulher prende o cara. Mulher é bom pra cama – riu-se. Prosseguiu: – Uma quer um vestido, outra quer um sapato. Tão sempre querendo. Eu ainda falo com a primeira mulher. A gente se dá até hoje. Mas a última não deu mais. Queria tudo... O cigarro acabou. Levantou-se, foi ao banheiro, encheu a boca de água e cuspiu novamente. Voltou e me ofereceu um copo de suco. – É suco de uva. Minha mãe que faz e me manda. – Tá bom, aceito. Pegou a garrafa, encheu um copo e me entregou. Bebi uns goles e procurei algum lugar daquela mesa cheia de ferramentas para deixá-lo. – E quando tu não tá trabalhando, tu faz o quê? – A gente tem namorada, gosta de carreira de cavalo. Vamos no Prado. Somos frequentadores faz anos. Eu já tive cavalo. Às vezes vamos pescar. Adoro baile do Chope. Credo! Chope Brahma é o melhor, mas um dia tomei o da Colônia e gostei. Quando tem cerveja, tá bom. O importante é que seja gelada. Gosto de CTG também. Vou muito em CTG. É a melhor sociedade que tem. Não entra marginal, maconheiro, ladrão. Frequento muito, mas não ando pilchado. Mais na Semana Farroupilha... – Pois é. Isso é normal. Eu também gosto de CTG. Dançava em invernada... – Lá na tua cidade? – Isso. – E por que não continuou aqui? – Boa pergunta... – Fui num baile dos Serranos no Piá do Sul. Encheu. Isso é música gaúcha de verdade. Até gosto dos Tchê, mas não é música gaúcha. CTG não aceita. Pra tocar lá tem que ser tradicionalista.
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– E mais de que tipo de música tu gosta? – Gosto de tudo... Compro CD de Rock. Tenho CD do Rolling Stones, essas coisas. Quando eu era novo, eu ia em CTG, em boate, nem tava. Ouvia de tudo. Se eu tivesse melhor de dinheiro, eu ia no show do Paul McCartney. Vai encher, mas tá muito caro. Novamente o cigarro acabou. Foi ao banheiro, encheu a boca de água e cuspiu. Seria um costume fumar e limpar a boca? Voltou e retornou a falar sobre o trabalho. – A gente trabalha todos os dias aqui. Só paramos no domingo. E não aceitamos cheque. Cheque sempre dá problema. – Sei bem, meus pais tão sempre lidando com cheques. E muitos não têm fundo. – É bem assim. Querem passar a perna na gente... Quando o negócio é dinheiro a gente tem que ter cuidado. Me embrulhei com o cartão de crédito esses tempos. Devia quase cinco mil. E cobravam uns juros absurdos. Mas eu consegui pagar depois de muita conversa. Fui falar com o gerente: “Se tu não fizer um juro justo, tu não vai receber”. Esses caras tiram juros sei lá de onde. Já tem imposto pra tudo nesse país e eles conseguem tirar mais dinheiro de nós. A gente é escravo do governo. – É... O Brasil é virado em imposto mesmo. – Por isso eu gosto de mudança. Toda eleição eu procuro mudança. Esses caras ficam anos e anos e não fazem nada. Mas também não votaria no Tiririca. O povo é burro mesmo. O que esse cara vai fazer lá? Ri e concordei com Adriano. Ele continuou: – Ainda bem que o Collor de Mello não se elegeu. Ele roubou do meu pai. Eu tinha uns 23 ou 24 anos. O pai tinha 300 mil, em valores de hoje, na conta. A gente foi viajar, viajamos por tudo. Aplicamos 150 mil em caminhões. Era o nosso negócio. Na volta, em Santa Cruz, eu falei: “Pai, sobrou 150, vamos comprar mais esse aqui”. O pai não quis. Custava 120 mil. Chegamos aqui em Santa Maria e dois dias depois o Collor roubou tudo. Quebrou com a gente. – E aí vocês fizeram o quê? – O pai não podia esperar, o governo pagava
parcelado e o pai precisava do dinheiro. Vendeu a conta que tinha por 35 mil pra um cara... – Bah, perdeu muito! – comentei, pegando o meu copo de suco. – Sim, mas ele precisava do dinheiro. O pai começou a fumar no dia. Antes ele não era fumante. A gente foi pro Banco do Brasil naquele dia, mas tinha o exército. Ninguém entrava no banco. A gente ia fazer o quê? Eles tavam armados... No fim, quem ganha é a força. Adriano falava com raiva. Seus movimentos bruscos e tom de voz alterado mostravam a indignação com o ex-presidente. Continuou: – O Collor é um baita de um safado, sem vergonha. Pode escrever aí. Eu acompanho a vida desse cara desde aquele dia. Quem apanha nunca esquece. Larguei o copo na mesa e fiz o que ele me pedira. Tossiu. – Tô gripado. Terça-feira, um amigo meu me convidou para um churrasco e eu fui. Tomei umas cinco cervejas geladas e amanheci com a garganta ardendo. Me estraguei – contava enquanto discava um número no celular. Colocou o telefone no ouvido: – E daí, tchê. Vamo no bolicho mais tarde? Feito então. Abraço. Pegou mais um cigarro e me perguntou: – E como é a gente lá da tua cidade? É muito diferente daqui? – A diferença é que lá todo mundo se conhece, mas tem todo tipo de gente. Gosto de Santa Maria porque tem bastante gente simples. – É verdade... Mas tu conhece bastante gente daqui já? Tá há quanto tempo na cidade? – Faz mais de um ano e meio já. Tenho vários amigos... – É bom conhecer gente, fazer amizade. – E tu? Tem muitos amigos por aí? – Tenho sim. Gente do Prado, do Rio Grande, de São Paulo. Gente que compra cavalo. Viram amigos. Ligam pra dizer que compraram cavalo e tal. A amizade é assim né... O cara conhece as pessoas por aí e cria contato. – E tu sai muito por aqui? Vai pra boate? – perguntou. – Saio sim. Vou pra onde os amigos vão. – O meu guri, o que eu perdi, ia pra tudo quanto é boate. Tava sempre saindo por aí... Silenciou, apagou o toco de cigarro no cinzeiro que estava na mão esquerda, levantou-se, foi ao banheiro e encheu a boca de água novamente. Cuspiu. – Eu fumo e fico com um gosto amargo na boca. Eu não fumava, comecei há um ano e oito meses, quando perdi meu filho... Eu choro às vezes. Choro, sinto saudades – falava enquanto me fitava com olhos esbugalhados e molhados. Todavia, nenhuma lágrima caiu. – Criei ele no meu colo, levava ele nos leilões. Baita de um guri. Trabalhador, namorador. Mas deu essa zebra com ele. Zebra que acabou com a vida dele. Eu era contra ele comprar a moto, mas ele insistiu. Fez a carteira com 18, comprou a moto, fez 19 e durou mais dez dias. Faleceu. Nesse momento, Adriano já não me fitava. Seus olhos estavam fixos em um ponto qualquer da casa, mas certamente não era isso o que ele enxergava. Repentinamente, voltou ao mundo e quebrou a melancolia. – Quando eu tinha 18, eu namorava uma de 22. Vi ela esses dias, casada. Mas ela me deu umas olhadas, eu percebi...
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Ă deriva / pelotas 22 / proa
ReminiscĂŞncias desbotadas da rua
Embaixo de chuva, a lente embaçando as fotos e depois gotejando. As nuvens escuras do céu e o colorido às vezes desgastado dos prédios. Estórias e História mesmo. Tempo de barões e de sinhás. E também daqueles que sempre existiram: os que só de passagem presenciam a imponência de uma arquitetura que copia e que transpira uma quase insustentável luxuosidade. Esplendor imerso num caos urbano, restaurado ou já adaptado em meio às aglomerações comerciais. Em Pelotas, naquele centro de paralelepípedos e umidade, a arquitetura ora resiste, ora desaba e é remontada. Em Santa Maria, escondida entre lojas, escritórios, bancos e bares, fachadas espiam sem serem espiadas. Em Pelotas, pombas buscando abrigos, pessoas pisando em poças sob uma chuva sem trégua. Um gris misturado ao cheiro de tinta fresca de alguns prédios recémrestaurados. Em Santa Maria, um bafo que saía do chão. Bafo da água derrubada nos dias de aguaceiro que começava a ir de volta para o céu. Molhadas, cinzas, exibidas ou meio esquecidas. Assim são as fotos desse ensaio: o moderno e o obsoleto, o hoje e o ontem, uma conversa com o passado. Uma milonga urbana, talvez. Um pequeno pedaço do concreto nesses cantos do sul da América do Sul.
ensaio liana coll
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a bordo / notícias madrugada adentro
Uma manchete para Chico Mineiro Chico é uma inversão: entrega jornais, mas nunca viu seu rosto estampado em uma página perfil e foto dairan paul Eles despertam a cidade. É mais ou menos isto: eles levam o dia pelas frestas, janelas, garagens e caixas de correspondência. Demitem a noite e entram em um acordo com a lua: até as seis da tarde do próximo dia, um astro dourado cuidará do que acontece no céu. Eles são uma nuvem tempestuosa de más notícias e carregam a morte e a tragédia. Mas também podem ser uma nuvem envolta em um papel recheado de boas novidades e oportunidades de carreira. Eles brigam com os olhos que se fecham, com a boca que se abre e com o som preguiçoso de um bocejo. Eles pregam a realidade e não a salvação. Portanto, é natural que troquem o pão e o vinho pelo café e pelo pastelzinho de carne, afinal sempre bate uma fome na madrugada. Um pavilhão verde e branco localizado na Avenida Borges de Medeiros, em Santa Maria, comporta sessenta e cinco pessoas. A partir das duas da manhã, elas empacotarão em plásticos verdes os principais assuntos do dia. É o Centro de Despacho, o CD, uma espécie de galpão gigante. Treze lâmpadas fluorescentes ajudavam os entregadores de jornal a ignorar que lá fora a escuridão engolia Santa Maria. As vozes eram altas e o assunto, aquele típico das madrugadas de domingo para segunda. – E o Corinthians, hein? Será que leva o Brasileirão? Ganhou mais uma ontem! – É, e o Colorado também. Eu te disse! A batalha era contra o inimigo sono e cada um que usasse as armas que tivesse à mão. Para a maioria dos jornaleiros, a melhor das táticas consiste em discutir a rodada do campeonato, analisando com gritos fervorosos a possibilidade do coringão levar o título. Mas nem todos compartilhavam do interesse futebolístico. Inspirado talvez pelo show que o jovem músico faria em Porto Alegre naquela noite, houve quem ecoasse baby, baby, uuuh, canção de Justin Bieber, para continuar em pé e não dormir. Pois o sono, derrotado, pediu licença e resolveu sair pela porta do CD. Os bocejos já eram escassos: o clima no Centro de Despacho era descontraído, próprio das pessoas que já se conhecem há tempos. 24 / proa
O trabalho começa às duas da madrugada. Dos sessenta e cinco entregadores – homens com trinta anos de idade, em média –, cinco trabalham em Kombis e o restante utiliza motos. Todos os veículos são próprios; a empresa não fornece nenhum dos transportes. A partir do momento em que o jornal chega no Centro de Despacho, os entregadores têm cinco horas para colocá-los de casa em casa, seguindo um roteiro pré-determinado e que dificilmente muda. É a “janela do tempo”, sistema que busca cobrar e estimular o serviço eficaz do entregador. Se o jornal chega às duas horas no CD, até as sete da manhã ele deve estar embalado e passar pela fresta de entrada do edifício Cirilo Costa Beber, na rua Venâncio Aires – o primeiro ponto de entrega do jornaleiro Chico Mineiro. Essa lógica de tempo tem um sentido: a partir das sete horas abre o serviço para reclamações e o leitor está apto a soltar os mais diversos xingamentos contra os entregadores. Uma pequena sala escondida em um dos cantos do despacho abriga o homem por trás da supervisão das entregas. O aposento, naturalmente, continha canecas e café. Jornais, revistas e capacetes de moto também decoravam o escritório. A prancheta em cima da mesa denunciava o apelido, escrito com letras garrafais tracejadas com tinta espessa: BIRA. Ubirajara Azambuja da Costa Filho é um sujeito careca, postado com sua camisa de listras verticais azuis e brancas e um grosso casaco da empresa. Trinta e seis anos de trabalho registrados em uma cara com barba por fazer e a felicidade em declarar: “já nem sei mais o que é jornal”. Bira vivia seus últimos dias na empresa, trabalharia no Centro de Despacho só até o fim daquele mês.
O emprego que acompanhou parte da vida de Ubirajara tem algumas semelhanças com suas características pessoais. Após concluir o Ensino Médio, rumou direto para o Exército. Adquiriu uma liderança natural, além da frieza necessária para lidar com situações de muita pressão. Trabalhou em Bagé, sua cidade natal, e depois foi para Guaíba. Nos dois lugares, também supervisionou entregas de jornal. Resolveu então vir para Santa Maria, onde está há um ano e meio. Bira não consegue esconder o orgulho ao contar um dos seus maiores feitos assim que assumiu a supervisão: estabilizar o limite de entrega dos jornais. Os periódicos passaram a chegar pontualmente às sete horas nas residências e as reclamações diminuíram consideravelmente. Porém, as noites de sono de Bira estão mais próximas. Ele já está treinando Aldomar Pinto da Silva, um homem de orelhas largas e alguns fios brancos na cabeça. Aldomar trabalhou como entregador por dezessete anos – já foi reserva e auxiliar de supervisor. E agora chegou a vez de ele ocupar o cargo que Bira não quer mais ver por perto. Após sair da empresa, o supervisor em fim de carreira comenta que não sabe o que vai fazer, mas que, definitivamente, não quer saber de jornal. Ubirajara tem ideia do trabalho árduo dos entregadores.
Treze lâmpadas fluorescentes ajudavam os entregadores de jornal a ignorar que, lá fora, a escuridão engolia Santa Maria
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– A madrugada assusta muito. Tem cara que não consegue. Tem frio, chuva, sono. Segundo Bira, a maior parte deles é de classe baixa e têm até a oitava série completa. Boa parte também possui algum trabalho além da profissão de jornaleiro. E a grande maioria lê os periódicos que entrega. – A Zero Hora tem um público muito específico, de classe mais alta, e eles geralmente não leem ela. É só ver pelas palavras cruzadas. A da Zero tu tem mais dificuldade. Do Diário de Santa Maria, que é o que a maioria lê, tu tem que olhar uma ou outra resposta. No Diário Gaúcho, dá pra fazer as palavras cruzadas de olho fechado. Os motoqueiros que chegam no Centro de Despache às duas horas se postam em dez mesas dispostas à esquerda do pavilhão. Começam então a embalar os jornais. Quem trabalha com a Kombi, assim que entra no CD vai ajudando os motoqueiros na tarefa. Só depois partem para as próprias mesas, à direita, e empacotam os seus jornais. Chico Mineiro pertence ao último grupo. Naquele dia, Chico dormiu às dez e meia da noite e acordou no início da madrugada. Ele mora na Vila Carolina e, portanto, não leva mais do que cinco minutos de sua casa até o trabalho. Entrou no CD às duas da manhã. Bateu o ponto, descarregou os jornais, auxiliou os motoqueiros no processo de embalagem e partiu para os seus próprios jornais no “grupo das kombis”, representado por cinco mesas à direita do pavilhão. A pequena repartição consegue ser tão barulhenta quanto a dos motoqueiros, que estão em número bem maior. Entretanto, Chico é um dos mais quietos. Absorto em seu trabalho, o homem cujo nome real é Francisco Carlos Antero, de 38 anos, está lá, envolvendo os jornais em um plástico verde, puxando a ponta de um fio, dando um nó com os dedos gordos e enrolando os periódicos em pequenos grupos. Volta e meia tira a caneta preta da orelha e escreve nos jornais o número do apartamento a que eles são destinados – a distinção é importante, já que algumas pessoas recebem uma versão light do periódico, que contém algum caderno a menos. Usa uma calça larga e marrom, com sapatos da mesma cor. A camiseta preta se confundirá em breve com a escuridão a ser enfrentada. Chico deve ter em torno de 1,60m e seus cabelos já estão algo esbranquiçados. Quando abriu a boca para contar há quanto tempo trabalhava como entregador, os dentes protuberantes revelaram que o mineiro exerce a profissão há cinco anos. O motor das motos já pode ser ouvido. Enquanto isso, a ala das kombis ainda está embalando jornais e fazendo brincadeiras. Alguns se irritam com o falatório e o clima leve às vezes é quebrado. – Não teve infância? Alguém tem que trabalhar aqui. – Sim, porque se tu sair daqui vai fazer o quê? Só sabe andar de moto. Chico ri e aproveita o momento que a tensão se evaporou para ir pegar uma bebida antissono. Existe um pequeno ‘tráfico’ de café no Centro de
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Despache. Em uma térmica amarela, são servidos copos por cinquenta centavos. Quem traz é Rodrigo, um dos entregadores que fala mais alto e conta mais piadas. É a sua esposa que faz os pastéis e as negas malucas disponíveis para todos. Mas o café é o que obtém mais sucesso e geralmente acaba rápido. Chico trabalha há um ano com Márcio, um rapaz jovem de 29 anos. Quem entrega de Kombi trabalha em duplas ou trios. Os dois estão lendo o roteiro de entrega que os ajudará a distribuir os 734 jornais daquela noite. No script, certas orientações localizam a dupla: “acima do Bradesco Seguros. Modo de entrega: Caixa Correio. André Marques – AP. 2010 – sacada”. Já são quase cinco da manhã. Jornais embalados, tudo certo. Mas o café não desceu muito bem para um dos entregadores. Chico dá uma rápida passada no banheiro. Os colegas pressionam: “vamos, Chico, o cara tá esperando!”. Ele sai, rindo, e começa a carregar os jornais junto com Márcio.
INTRODUÇÃO ÀS RUAS
Os periódicos são levados para uma Kombi branca e desgastada. Quando Chico a abriu, a única coisa que havia dentro dela era uma cadeira de praia, que logo foi colocada em um canto para dar espaço aos jornais. Na traseira do veículo, dois adesivos denunciavam parte da personalidade do entregador: “Orgulho de ser gaúcho” e “Eu sou educado, e você?”. Meio sem querer, ele faz o sinal da cruz antes de partir. Chico não é muito religioso: a última vez que foi à igreja, há uns dois ou três anos, era para um batizado –, mas isso não o impede de realizar o ritual católico de gestos rápidos sempre que se lembra. Então, a Kombi atravessa a noite, solitária e silenciosa. Quando passa pela praça Saldanha Marinho, Márcio desce para começar as suas entregas. Chico ainda dirige até a rua Venâncio Aires e só então para. Os entregadores utilizam uma bolsa de pano verde-escuro para estocar o máximo de jornais possível. Chico ocupa a dele conforme o número de periódicos a serem entregues na rua Venâncio Aires. Primeira parada: edifício Cirilo Costa Beber. Não há ninguém para recebê-lo e Chico apenas passa os jornais pela fresta da entrada. No próximo edifício da mesma rua, há um porteiro pronto para atender o entregador. Chico, no auge das cinco horas da manhã, solta um “bom dia, seu Valdemar”, conta os jornais a serem entregues, confere, passa-os para as mãos do senhor e agradece. Rua Silva Jardim. O entregador está andando livremente, atirando jornais de casa em casa. – Segunda é bom porque o trânsito flui. Quarta, quando é dia de jogo, chego a esperar dois minutos para atravessar a Rio Branco. Não há carro algum na rua, muito menos qualquer som. Vez ou outra se encontra algum bêbado parado em frente a um prédio ou um grupo de jovens passeando e rindo. Quando avista um saquinho de jornal pela rua, – a cor do plástico, azul, denuncia que é da concorrência – põe no lixo. “Não deixo um no chão”.
Agora é a vez de colocar os periódicos nas caixas do prédio. Entra em cena outro inimigo dos entregadores de jornais: a publicidade. Panfletos de supermercados entopem as caixas e mal deixam espaço para que os periódicos possam levar suas notícias ao leitor. Muitas vezes, Chico retira alguns folders inoportunos porque, no final das contas, “eles mal leem isso”. Não é implicância do entregador. Acontece que o jornal precisa de espaço na caixa, pois não pode ficar à mostra. Caso ele esteja dando seu ar da graça para toda a rua, pode muito bem ser roubado. E aí, advertência na certa. A operação é interrompida bruscamente. Chico se dá conta de que um dos periódicos não deve parar na caixa. Conforme o roteiro da noite, o morador de um dos apartamentos prefere ter seu jornal entregue em sua sacada. “Pra ele é mais fácil”, justifica. “Agora eu vou jogar basquete. Tem que concentrar”. Parado no meio da rua, com seus 1,60m e uma barriga levemente saliente, Chico está pronto para o lance. A impressão que eu tenho é que tem entregador que erra o jornal de propósito, por desavenças pessoais com o dono do apartamento ou da casa que ele está distribuindo. Pelo menos foi o que me disseram nessa madrugada, lá onde nasci, em uma gráfica de Cruz Alta. Tenho quinze mil irmãos gêmeos. Me contaram que também tenho outros oito mil primos da capital. Aliás, acho que as palavras cruzadas deles são mais difíceis que as nossas. Parece que nossas vidas são curtas. Fiquei pensando nisso durante toda a viagem de caminhão que fiz de Cruz Alta até Santa Maria. Mal nasci e já vou morrer? “Você vai virar embrulho de peixe, é pra isso que você serve!”. Que destino triste acabar assim, sendo que demorei tanto para ser feito... Bem, na verdade, foi tudo meio às pressas, e meu corpo tomou forma em meio ao caos daquela sala – chamada redação, pelo que eu ouvi falar. Aliás, meu corpo é um pouco estranho e talvez até nem seja de se surpreender que eu acabe tão rápido. Não tenho cérebro – no lugar disso, possuo uma manchete. A minha falava sobre Inter ou coisa que o valha. O importante é que minha roupa era vermelha naquele dia. Tampouco tenho um apêndice, que só serviria para incomodar. Ao invés desse órgão, colocaram em mim uma coisa que também só tem como utilidade ferir quando cutucado. Coluna de
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fofoca é o nome aparentemente. E assim vai. Só não queria embrulhar peixes, queimar em lareiras ou parar em algum cesto de banheiro. Sei que também noticio pessoas de vida curta, mas isso não quer dizer que eu seja uma delas. Não sou e nunca serei uma celebrid... Aaaai! Bati em uma sacada! Esse entregador podia ser mais delicado para me jogar! O lance é perfeito e Chico consegue acertar seu alvo. Quase nunca erra. Exceto quando acertou em um ar condicionado e lá ficou o jornal. Quem era o culpado? O vento, claro. No fim, teve que fazer um registro no apartamento para informar ao dono onde estava seu noticiário das manhãs.
O lance é perfeito e Chico consegue acertar seu alvo; quase nunca erra Em meio às paradas para jogar um pouco de basquete, Chico fica feliz que pelo menos realiza alguma atividade física. Segundo seus cálculos, percorre mais de dez quilômetros a pé. Com orgulho, diz que tem mais trabalho que o Márcio, já que precisa estacionar a Kombi, fazer as entregas e voltar até ela – ao passo que seu companheiro apenas segue andando em frente. E assim os bocejos desaparecem aos poucos. Na verdade, Chico acha que quase tudo pode ser feito com sono, “menos cuidar de crianças”. Ele se refere aos tempos em que sua esposa arranjara outro emprego e não podia ficar de manhã com os filhos. Assim, Chico permanecia com elas logo depois que voltava do trabalho e a irritação do entregador era constante. Sua filha vivia dizendo que “o papai era mau”. As duas crianças são Francisco, de seis anos, e Letícia, de dois. A esposa é santa-mariense e se chama Mara. Atualmente, trabalha no departamento financeiro de um hotel. São casados há sete anos e a forma como se conheceram é uma história de “uma em mil”. Chico a conta para poucas pessoas, desculpando-se com argumentos como “ela é muito longa” ou “não conto isso nem para quem é muito próximo de mim”.
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NOTAS CANINAS
Foi o amor por Mara que o moveu até o Rio Grande do Sul. Chico nasceu em Dores do Turvo, cidade da região sudeste de Minas Gerais, a 323 quilômetros da capital. Com menos de cinco mil habitantes, a economia de Dores é baseada na agricultura. Chico plantou milho, arroz, feijão e café na roça que tinha perto de sua casa de beira de estrada. Ele e seus oito irmãos – quatro homens e quatro mulheres, sendo que a mais velha tem hoje 60 anos – ajudavam os pais na roça. Por conta do trabalho no campo, Chico teve que parar o Ensino Médio, que havia recém iniciado. Quando se mudou para Belo Horizonte, em 1989, Chico tornou-se um ser notívago e o fato de trabalhar durante as madrugadas passou a ser normal desde então. Por quinze anos, foi empregado de uma lanchonete, onde fazia sanduíches (o “xis” mineiro). Mas não era um lugar qualquer: era o Comilão, estabelecimento popular na época, que ficava apenas atrás do McDonalds na preferência dos mineiros. Seguiu sua especialidade quando veio para Santa Maria, em agosto de 2004, e continuou em uma lanchonete. Entretanto, por se sentir desvalorizado, largou o emprego depois de um ano. Foi então que começou a conhecer as ruas de sua nova cidade. Não precisou recorrer a nenhum coelho branco de algum país qualquer das maravilhas: bastou entrar em uma empresa de transportes para se familiarizar com a Boca do Monte. Foi então que, em 2006, o motorista da empresa de jornais que trabalhava com o cunhado de Chico saiu do emprego. Tempos depois, seu cunhado também se desligou da empresa e deixou a Kombi para Chico. As entregas de jornal começaram. Dores do Turvo foi visitada pela última vez por Chico Mineiro em 2008. Com um e outro estabelecimento novo, no geral, a cidade continuava a mesma para o jornaleiro. Todos os seus irmãos estão morando em Minas Gerais atualmente. Os pais já faleceram. Além da família, Chico sente falta – como bom ser noturno que é – das noitadas de Belo Horizonte. Durante o tempo em que trabalhou
no Comilão, saía quase todas as noites. De Minas, Chico herdou as raízes sertanejas que o acompanham até hoje. O estilo musical ainda é o seu preferido, embora escute desde o brega de Amado Batista até o heavy metal melódico dos Scorpions. “É mais fácil dizer do que não gosto: rap e funk. Gosto de sertanejo. O Vitor e Léo são mineiros...”. Mas pode-se dizer que Chico já se sente em casa morando em Santa Maria. Não guarda muitos vestígios do sotaque mineiro – e até utiliza algumas gírias gaúchas, como “piá”. Talvez já tenha orgulho da nova terra. Sua principal reclamação em Minas Gerais era a violência. Foi assaltado quinze vezes enquanto trabalhou no Comilão. Se agora as coisas pioraram? “Pior do que tá, não fica”, responde o entregador, parafraseando um famoso palhaço-político. Na Boca do Monte, Chico não sofreu nenhum assalto, mesmo lidando com as ruas da cidade durante a madrugada. Na verdade, o principal inimigo de Chico em Santa Maria não é a violência humana, mas a canina. Boa parte dos problemas reside na Rua Comissário Justo. Ironicamente, um dos cães também se chama Chico. “Ele é terrível! Às vezes tu entra e esquece que ele tá ali e ele vem, de repente, que nem um foguetinho atrás de ti”.
Engordou tanto que parecia um porco, o desgraçado. Tinha o Lobinho, um pastor alemão chamado Turco... Se deixassem, eu até dormia com os cachorros”. A paixão dos cães com os donos era recíproca. O cachorro Jaú era tão apegado ao pai de Chico que chegou a ficar três dias fora de casa e foi encontrado na roça da família, perto de um espantalho que vestia as mesmas roupas de seu José Arlindo.
RODAPÉ
Pessoas bocejam nas paradas de ônibus. Carros circulam pela cidade. São 6h24min e o dia finalmente começa a tomar forma. Na rua José do Patrocínio, Chico segue na reta final das entregas dos jornais. Um deles é deixado pela fresta de uma janela de casa – aquelas manias que alguns donos têm e que os entregadores devem seguir à risca conforme manda o roteiro. Mas começar o dia tomando café da manhã com um jornal que inesperadamente surge dentro de casa parece uma boa ideia. Quando pega um jornal, Chico vai direto para os cadernos de futebol e entretenimento. Gosta de ler revistas de fofocas e de celebridades. É fã de novelas e assiste “só umas duas por dia, da Globo”. Não lê livros por preguiça.
Quando pega um jornal, Chico vai direto para os cadernos de futebol e entretenimento. Gosta de ler revistas de fofocas e de celebridades. Não lê livros por preguiça
Seu filho Francisco segue os mesmos passos: sabe o nome de todos os personagens da novela das oito. O menino também contesta e argumenta frequentemente em discussões familiares. Talvez siga o sonho do pai. “Queria fazer a faculdade de Direito. Advocacia é estratégia! Vagabundo eu não defenderia por dinheiro nenhum”, vocifera Chico, convicto de seus valores. Só não parou nos tribunais por conta da agricultura e da necessidade de ajudar a família quando era adolescente.
Apesar dos desafetos, Chico gosta muito de cachorros. Só não tem um em casa porque a esposa não é fã dos caninos. O pai de Chico, seu José Carlindo Antero, o Ticaca – apelido cuja origem ou significado nunca foi descoberto – possuía vários cães de caça. As presas, em geral, eram os tatus. “Meu pai sempre tinha no mínimo três cães. O Piloto era o marrom. Esse era sem vergonha e nunca prestou pra caçar.
As casas coloridas da Vila Belga contrastam com a escuridão da aurora na rua Venâncio Aires. Os últimos jornais são entregues aos seus donos. Chico é assim, um quase-invisível: quando todos vão para seus trabalhos, ele toma o rumo de casa para descansar de mais um expediente. E o começo do dia se aproxima nas mesmas proporções que a tarefa do entregador chega ao seu fim. Nem tudo vira notícia. Nem todos conhecem Chico Mineiro.
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Ă deriva / santa maria
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rotas / recortes do desexílio
A triste história de Floravante Evangelista à espera de seu lar reportagem maurício brum Naquele dia o sol não brilhou. Era uma semana em que as últimas chuvas de outubro ainda não tinham se dissipado totalmente e os trilhos molhados do trem refletiam qualquer iluminação num caminho de luz a perder de vista. O trem, quando passa longe, parece um trovão. A muitos metros de distância, só se ouve o clangor da locomotiva puxando os vagões de carga. Trovão lento, arrastado. Então se escuta o apito que é como uma certeza – não se trata de um rancor do céu; o ruído está no chão, rumo à próxima parada. Mas, nesse lugar, ninguém confunde o trem com trovão. Estão perto demais para isso. O trem, quando passa perto, não é mais que o guincho das rodas de aço sobre o paralelo dos trilhos. E invariavelmente apita. Na altura do povoamento da antiga estrada de terra que ligava Ijuí a Cruz Alta, no noroeste gaúcho, o trem sempre apita: pode haver alguém em seu caminho. O centro de Ijuí está a quarenta e quatro quilômetros de distância do centro de Cruz Alta. A estrada de chão entre as duas cidades era mais frequentada nos tempos em que essa jornada se fazia em carroças e podia levar dias. Hoje, os poucos que se lembram do caminho o chamam de Faixa Velha. A aglomeração de casas formada ali margeia pelo lado de fora os limites da zona urbana de Ijuí e nunca recebeu denominação oficial. Nas vezes em que se referem ao local, duas coisas se repetem – primeiro, a notícia em geral é ruim; segundo, a região é identificada genericamente como “a Faixa Velha para Cruz Alta”, às vezes com um acréscimo para reduzir as dúvidas: “na altura do distrito de Alto da União”. Em 29 de outubro de 2010, uma sexta-feira, a Faixa Velha voltou a ser notícia. Ruim e de modo genérico. Os jornais da cidade já haviam fechado suas edições para o final de semana e, como só retomariam as atividades na terça, não registraram o ocorrido em tempo hábil. Mas um portal de informações locais lançou uma nota de meia dúzia de linhas naquela tarde:
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O Corpo de Bombeiros de Ijuí se deslocou, na manhã desta sexta-feira (29), às proximidades do Alto da União, na Faixa Velha para Cruz Alta, para controlar um incêndio em residência. Por volta das 09h, a pequena casa de madeira, onde o idoso Fioravante Evangelista de Almeida, 74 anos, morava sozinho, foi destruída pelo fogo. O morador acredita que as chamas tenham iniciado em um fogão à lenha. Ele encontrava-se no pátio e não se feriu. E estava tudo lá, para quem quisesse ver, no boletim dos Bombeiros. Acionados precisamente às nove horas e cinco minutos da manhã pelo telefone de emergência 193, eles atenderam à ocorrência com uma guarnição de serviço composta por dois sargentos e dois soldados. A casa de madeira de cento e oitenta metros quadrados foi encontrada inteiramente consumida pelas chamas quando chegaram ao local, com atraso. Estava quase tudo lá, no boletim dos Bombeiros. Mas a solidão de Floravante, que nem teve direito a uma grafia correta de seu nome no noticiário, a resistência que sua casa representava, as intrigas por trás do incêndio e a ironia de suas consequências, isso não constou em nenhum papel.
Naquele dia o sol não brilhou porque, para além das metáforas, chovia. E, no entanto, a casa de Floravante foi queimada até o solo. Na Faixa Velha para Cruz Alta, não se confundem trens com trovões e se sabe que incêndio algum começa sem razão em dia de chuva.
II.
O pioneiro da área foi Euclides, irmão mais velho de Floravante – e isso tem como quarenta anos. Depois vieram outros, saídos na maioria de bairros periféricos e ainda bucólicos da cidade. O próprio Floravante saiu de um desses bairros, o Getúlio Vargas, para se instalar na Faixa Velha, trinta e sete invernos atrás. No início, compravam as terras. Os antigos donos reconheciam a soberania dos compradores sobre o terreno e não havia maiores incômodos – apesar de fértil, aquele chão era um pedaço encravado no meio da estrada e da ferrovia. Era inclinado, apertado e desinteressante para quem podia estender seus alambrados por áreas mais vastas e planas. Mas era um chão que bastava a quem tinha pouco. Quem tinha pouco, como Euclides e Floravante, também se contentava com a escassa segurança de acordos verbais firmados em torno de uma mesa com alguma bebida alcoólica em cima. A maior parte dos moradores, mesmo os primeiros, jamais recebeu qualquer escritura sobre o que dizem ter comprado. Se tivessem alguma garantia legal, porém, também teriam impedimentos. Não tardariam a descobrir que suas casas, beirando o caminho dos trens, estavam irregulares. E que, sustentadas pelo descaso de sucessivas Prefeituras, permaneceram irregulares por décadas, crendose corretas por conta de numerosas promessas segundo as quais, num mês não muito distante – que depois virava semestre e depois ano – a água encanada, a energia elétrica e o saneamento básico chegariam ali. E os lampiões, as latrinas e o poço artesiano das redondezas passariam ao ostracismo do desuso. Há pouco mais de três anos, impulsionado pelos projetos de habitação do Governo Federal, o poder público finalmente iniciou a realocação dos habitantes da Faixa Velha. Uma a uma, as antigas casas de madeira no costado da ferrovia foram caindo. Na mesma proporção, erguiamse residências de tijolos a trezentos metros do povoamento original, numa área terraplanada e suficientemente distante dos trilhos para reduzir os riscos. As novas habitações eram sorteadas entre
os moradores estáticos. E um dia tocou à dona Tereza receber sua nova casa. Ela era a esposa de Floravante, mãe das duas filhas já adultas do casal, e o lar, em tese, caberia aos dois. Mas foi o nome dela que chamaram. E Tereza, numa decisão cuja justificativa não foi tão evidente num primeiro momento, nunca convidou Floravante para acompanhá-la. Havia tempos que o amor entre eles findara. Nas vizinhanças, comentavam à boca pequena e olhar torto que, em certas noites, podiam-se ouvir gritos e indícios de que as brigas chegavam à violência física, mas só com a recusa de permanecer juntos a situação ficou escancarada. Tereza foi. Floravante ficou. Aqui eu tenho tudo. Passei a vida inteira construindo isso. Só preciso arranjar outra mulher. Tereza, com os olhos miúdos afundados na face, cabelos brancos desalinhados e pés descalços, as rugas traçando sulcos profundos por todo o rosto, tem dedos inseguros nas mãos leves. Escolhe o silêncio na maior parte das vezes. Ao rompê-lo, exibe uma boca sem dentes e uma voz rouca. Sua capacidade de se comunicar está reduzida e encadear um diálogo pode ser um acontecimento. Tereza saiu dos dias com o ex-marido para mergulhar num isolamento só seu, uma contracorrente em meio a tantas casas novas que refizeram o conceito de comunidade que havia na Faixa Velha.
III.
A renovada Faixa Velha é um lugar em que as crianças pequenas são ensinadas pelas maiores a andar de bicicleta, puxadas com uma corda enrolada no guidão como um potro laçado, todas elas têm piolhos na cabeça e quase nenhuma escapa dos bichos de pé. É um lugar em que os pais mantêm a família através de bicos eventuais, o Bolsa Família sustenta a vida na ausência de emprego fixo, e parece não haver jovens – os adolescentes se convertem em adultos cedo demais, casam-se ou juntam-se antes dos dezoito e iniciam a prole antes dos vinte anos. É um lugar em que oitenta e duas pessoas se dividiram em vinte e quatro casas, a mais povoada delas tem nove moradores e, boa parte das habitações recém-construídas, inicialmente de tijolos, já possui puxados de madeira. No mesmo processo, iniciado há quatro décadas, os forasteiros adotam um pedaço de chão ao redor dos lares já existentes e instalam uma moradia de tábuas. A renovada Faixa Velha é um lugar em que a água segue faltando, porque poucos pagam a conta e os que pagam também têm o suprimento cortado; em que um homem analfabeto veste uma camisa doada, de marca estrangeira, listrada horizontalmente em verde e branco e que estampa no peito a mensagem “Banned Forever” – sem desconfiar que aqueles termos incompreensíveis têm tanto a dizer sobre seu destino de banido das oportunidades fora do perímetro das casas. Onde se sabe ler, faltam livros e sobram revistas antecipando o desfecho de novelas da tevê vendidas a um real e noventa e nove centavos. A renovada Faixa Velha não tem escola, mercado ou posto de saúde e, no dia do incêndio, os Bombeiros levaram mais de uma hora para atingir o local do sinistro, mas ali há um templo da igreja Assembleia de Deus, onde os cultos mais exaltados vez que outra provocam sustos nos católicos remanescentes da comunidade. É um lugar a apenas seis quilômetros do centro de Ijuí e a 1500 metros do fim da zona urbana, mas parece estar muito mais longe. Até 29 de outubro de 2010, a renovada Faixa Velha era ainda o lugar em que todos os habitantes haviam se afastado da linha do trem, atraídos por casas melhores, mais salubres e mais sólidas, com exceção de um: Floravante Evangelista de Almeida. Antes do dia em que as chamas levaram ao solo a construção de toda uma vida – sua vida – a casa era a última elevação vertical na borda da ferrovia. A memória do que já se fora estava agora cercada por lixo, entulho e tudo o que era abandonado por não se desejar mais nos novos lares. Floravante ficou porque Tereza não quis mais o proa / 33
casamento hostil e sem paixão, mas também por se ver satisfeito onde estava. Com seus cabelos grisalhos e barba branca, que quando rala lhe confere um aspecto jovial, mas, se não aparada, acrescenta até dez anos à sua idade incerta, Floravante parecia convicto a permanecer. Ele diz ter 64 e 65 anos, longe dos 74 que o noticiário lhe deu. Entretanto, os documentos queimados no incêndio e refeitos posteriormente negam as duas idades. Afirmam que ele é ainda mais moço: tem 61 anos. Talvez baseada na data do registro e não na do nascimento real, a carteira de identidade de Floravante sustenta que sua vida começou em onze de junho de 1951. Alheia aos documentos, a maior marca natural da idade está em seus olhos castanhoclaros. Faz alguns anos que eles vêm se tornando ainda menos escuros, escondidos atrás da catarata. Floravante já não enxerga com a vista da direita. Em breve a esquerda estará sob a camada esbranquiçada que anula as cores de seu mundo. Ele sabe que ficará cego. E desistiu de fazer algo a respeito. Retorna dos oftalmologistas com receituários e recomendações de exames que não pode ler por não saber. A cegueira que já lhe acompanha é a do analfabetismo. Essa dói mais, pois não lhe impede de ver a indiferença dos que se recusam a ajudá-lo na interpretação das verdades e das palavras. Eu nem quero muito. Só quero voltar a saber escrever meu nome. Quando as labaredas engoliram qualquer papel que pudesse comprovar de algum modo a posse do terreno onde estava sua casa, Floravante salvou apenas uma folha das muitas que guardava. Exibe-a esperançoso de que tenha algum significado para os que podem decifrá-la. Nela, não há certificações ou assinaturas. Somente uma lista de itens necessários para refazer a ligação com a rede elétrica, um informativo qualquer, que no passado lhe deram instruindo como proceder diante de um eventual corte de energia.
IV.
Aquela sexta-feira começou cedo para Floravante. O corpo lhe doía por dentro. Como costuma acontecer no prelúdio das chuvaradas, as velhas fraturas exigiam sua dose tradicional de sofrimento. Mas não era somente a chuva que molestava suas costas e seus braços. Havia meses que lhe seduzia o desejo de se aposentar, como a ex-mulher fizera, e poder garantir uma renda fixa de forma mais sossegada. Difícil para alguém oficialmente mais novo do que diz ser e que trabalha na informalidade. Na manhã de 29 de outubro de 2010, ele tinha agendado mais um de seus bicos. Em troca de quarenta reais, duas notas de vinte, pegaria a bicicleta, pedalaria cerca de três quilômetros e então trocaria o guidão pela enxada. Campesino de campo alheio, ajudaria a sacar as macegas de um terreno nos arrabaldes da cidade. Tinha ido dormir às nove horas da noite anterior e acordava, agora, às cinco da manhã. Esgotado, Floravante vislumbrava um final de semana de descanso, as horas infinitas assistindo a algo que o divertisse em uma das duas tevês que acumulara em casa – e possuía ainda outras duas, muita velhas e com tubo em preto e branco, já fora de uso. Coisas que fora ganhando ou arrematando de quem tinha mais necessidade e vendia barato, que Floravante era um homem de posses para os padrões do local onde vive. Tinha boa extensão de terra para plantar – a qual estimava hiperbolicamente em até cinco hectares não contínuos –, uma casa espaçosa e os eletrodomésticos que necessitava para fugir da solidão e se entreter. Não era bem visto por alguns dos antigos vizinhos e, desde que relutara em se mudar para a nova área, era encarado com desconfiança, chamado de louco por alguns e acusado de certo esnobismo por outros. Num fim de tarde, quando voltava do trabalho, chegou a ver dois filhos adultos de um vizinho observando sua casa, armas em punho, e pôs-se de sobreaviso. Sem sustentar a mirada nos olhos deles, para que não soasse à provocação, bateu de leve a mão na cintura. Se havia deixado a espingarda lá dentro, conservava um facão afiado ao alcance dos dedos.
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Essa inquietude não era a tônica. Pelas tardes de folga, num abandono de sem-vizinhança nas proximidades, Floravante gostava de adormecer solitário ouvindo no rádio a seleção das músicas mais pedidas da semana, num programa emitido há décadas por uma estação local. Funciona assim: a emissora atribui às canções preferidas pelos ouvintes uma quantidade de pontos; tanto mais pontos quanto mais requisitadas forem e, a cada sábado, a classificação das trinta mais populares nos sete dias anteriores é dada. Os sucessos são de gostos ecléticos. Em geral, se repetem os hits do momento, mas há vezes, e não tão poucas, em que é possível escutar, lá pelo vigésimo quinto ou vigésimo sexto lugar da semana, um esquecido Chico Buarque perguntando O que será, que será? / O que não tem certeza, nem nunca terá / O que não tem conserto, nem nunca terá... No começo de 29 de outubro de 2010, Floravante não girou de imediato o botão que servia para ligar o aparelho de rádio e aumentar o volume. Não lhe apeteciam as músicas nas primeiras horas da manhã. Como esfregar os olhos não ajudasse a afastar a sonolência do cansaço acumulado, preparou um chimarrão muito quente para despertar, aconchegou um dos cachorros aos seus pés de unhas partidas e se acomodou num banco próximo ao fogão. Havia uma pilha de toras por ali perto, dentro da casa: uma torre de lenha que se tornava refúgio de aranhas fugidas do mato que cercava a casa. Ele se levantou rapidamente para buscar um toco pequeno, apenas para manter o calor já iniciado. Floravante trocou a poesia variável das músicas pelo crepitar certeiro e inconfundível das brasas; pela alternância entre o ruído da madeira se quebrando pelo calor e o respingo leve da garoa se chocando contra os pedaços de metal espalhados pelo terreno. Ainda não havia crueldade nessa imagem, nesse contraste de sons antagônicos que, mais tarde, remeteriam ao improvável incêndio abaixo de chuva que devoraria aquele mesmo espaço. Tudo ainda era apenas o cheiro de terra molhada e foi com esse aroma característico adoçando o início da manhã que Floravante trancou seus cães em casa para não sofrerem com a chuva e subiu na bicicleta rumo ao trabalho. O primeiro trem do alvorecer ainda não havia estremecido as tábuas de sua casa. Eram por volta de sete e meia. Algumas horas mais tarde, se a chuva parasse, Tereza, a exmulher, cumpriria um hábito que havia se tornado ritual. Ninguém na Faixa Velha era capaz de explicar
a razão de ser assim, mas, quando o homem saía de casa, ela punha os olhinhos para fora do novo lar e balançava as pontas de cabelo ensebadas até a antiga residência. Como uma guardiã de saudades esmaecidas, sentava-se diante da habitação de madeira e, por horas, contemplava a paisagem de tantos anos, saindo pouco antes do ex-marido voltar. Não era que sentisse falta do seu Floravante. Estranhava a ausência do cenário e das memórias outrora cotidianas que ele evocava. Houve épocas ruins e épocas não mais que razoáveis, mas, sobretudo, houve algumas épocas boas – de um jeito que nenhuma ainda havia conseguido ser após a mudança. Estar ali era recuperar um pouco dessa lembrança. O fogo começou em torno das oito horas da manhã. Tereza ainda não havia posto a cabeça para fora da janela para conferir se o tempo favorecia sua ida. Nem todos já estavam despertos. Boa parte das crianças deixara de ir à escola, intimidada pela chuva a embarrar todas as rodas. Floravante estava então na altura da rodovia, pedalando com alguma lentidão rumo ao trabalho. As juntas doloridas cobravam gemidos a cada puxão dos pedais na correia. Temendo carros que poderiam vir pelas suas costas rápido demais, ele olhou para trás, na direção da Faixa Velha. E viu a fumaça.
V.
Uma incipiente coluna de fumaça negra, espessa, incomum, saía dos lados do povoamento. Lutava com a chuva para se fazer visível no horizonte e ganhava a batalha. Não era possível saber de qual casa vinha. No entanto, tratava-se nitidamente de um incêndio em algum ponto da Faixa Velha. Floravante, arriscando os quarenta reais que nunca receberia – o patrão, ouvindo a história mais tarde e sem se compadecer por completo, ainda lhe daria metade do valor –, decidiu voltar. A meio caminho entre a casa em vias de calcinação e o ponto de retorno, ele encontrou um vizinho que possuía motocicleta e saíra apressado à sua procura. O incêndio era na casa de Floravante. Muitas pessoas das redondezas já se aglomeravam no pátio de casa, observando com incredulidade o fogo alaranjado. Floravante chegou a tempo de ver sua casa ainda com algo mais do que apenas um amontoado de madeira carbonizada. Quem não viu mais que isso foram os Bombeiros. Quando Floravante parou na frente de sua casa, alguns minutos antes da destruição total, ela ainda estava inteira o bastante para que ele contrariasse
os conselhos todos e bradasse. Vou entrar. Vou entrar. E entrou na casa em chamas, ignorando os gritos que voltavam a atestar a opinião geral quanto à sua loucura. Entrou para salvar os cachorros – os quais, nesta altura, resultaram prisioneiros de uma armadilha acidental –, um envelope com o dinheiro guardado para emergências e o papel com instruções para reativação da energia elétrica, aquela folha que julgava ter alguma serventia para lhe assegurar, no futuro, a posse do terreno. Ao sair, tinha a pele queimada e as mãos em carne viva. Sem alternativas – a chuva estava fraca demais e, na falta de abastecimento, não havia de onde tirar água –, Floravante se pôs a observar como tombava a última casa de uma outra Faixa Velha. Os Bombeiros confirmaram que o fogo não poderia ter surgido naturalmente. E desde então uma dúvida se mantém sobre os tocos de madeira enegrecidos que jazem ao lado do caminho do trem. Uma dúvida mais sonora que os trovões e as rodas arrastadas pelas bitolas dos trilhos antigos. Floravante, quando não quer intrigas, diz acreditar que tudo foi consequência de um curto-circuito, um fio solto sobre seu sofá que às vezes faiscava. Ou, numa hipótese menos provável, uma brasa que tenha escapado do fogão e caído perto de algo inflamável. Quando quer acreditar que há algo mais, porém, levanta a possibilidade de que o responsável por atear fogo à casa seria algum dos vizinhos que o olhavam torto e faziam ameaças veladas. Na Faixa Velha, aos sussurros que depois viraram berros, surgiu uma quarta versão. A de que o velho louco não era tão louco assim e armou um grande teatro pra ganhar uma casa temporã, de material como as outras, mas agora só sua. Floravante, para essa versão, teria principiado o incêndio – segundo alguns, com um tiro de revólver dentro do fogão. Esse lado da história se apoia em uma dupla de perguntas sem resposta – por que ele teve a intuição de voltar, num horário em que deveria estar trabalhando, muito longe para ver qualquer coisa; e se, ao invés de ter recuperado o dinheiro das economias quando entrou na casa em chamas, ele já não o havia guardado anteriormente noutro local. A versão da tragédia forjada para comover as autoridades e ganhar uma casa – que só foi requisitada em setembro de 2011, quase um ano depois do ocorrido –, ignora que Floravante perdeu praticamente tudo o que tinha, e não apenas bens materiais. Depois do incêndio, não lhe restou alternativa além de se mudar para a casa da Tereza que não lhe quer mais. Da casa construída ao longo de trinta e sete anos, com quase duzentos metros quadrados, passou a um quarto que era usado para depositar tralhas – e os objetos não saíram quando ele entrou. A autonomia de que gozava deu lugar à dependência da boa vontade da ex-mulher. Sem permissão para tocar no fogão, espera que ela cozinhe para os dois. Se antes tinha a marca pouco usual de quatro televisores, que via à noite e no descanso dos finais de semana, agora só assiste à novela que Tereza desejar, quando ela desejar. Floravante só manteve um persistente sorriso. E até o sorriso é, ironicamente, um dos resquícios do tempo em que ele era um dos tipos abonados do local. Ao contrário da maioria, ele pôde comprar uma dentadura. Que não se fixa bem na boca, obriga-o a falar chiado e prejudica até a pronúncia do próprio nome. Floravante se anuncia Fioravante e, em seguida, pede desculpas, envergonhado. Mas é um dos poucos que pode exibir um sorriso repleto de dentes em toda a Faixa Velha. Logo ele. Na casa de Tereza, tenta ser um intruso discreto, sabendo-se imperdoável para sempre na visão da ex-mulher. Sobre um móvel do lar que não é seu, há um papel que nem Floravante nem ela sabem ler. Um pequeno panfleto azul, dado a algum deles – já não se lembram a quem – por algum grupo religioso querendo transmitir motivação pela fé. É um livreto de quatro páginas, que tem na capa uma só pergunta. Como vencer as tempestades da vida?
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escotilha
Aquela caixinha preta na janela texto bibiano girard Não por acaso, Juca Terra, pai de Maneco, avô de Ana, firmou residência no Rio Grande depois de se encantar pelos campos que conhecera enquanto fazia tropa de mulas entre São Paulo e o Sacramento. Juca construiu seu rancho nas terras de Rio Pardo, onde o pampa, ao norte, começa a dar adeus. O Sacramento, para onde carregava mulas, fora entregue aos espanhóis em pestilenta transação com os portugueses. Com o Tratado de Madri, destruíram-se os Sete Povos das Missões, de onde, em debandada, surge Pedro Missioneiro, futuro pai de Pedro Terra. A partir daí, Erico Verissimo escreve uma ficção que, no imaginário popular, mais parece que existiu. Os personagens ganharam vida entre as páginas de “O Tempo e o Vento”. O tempo é o companheiro leal do gaúcho, e o vento, das noites e dos mortos, todos os anos faz visita.
senta-se à mesa para almoçar - seja mandioca com carne, carreteiro, linguiça frita na panela – mas também se senta em reverência à voz que sai do rádio e alcança até mesmo o que se deita nos galpões para sestear. A voz do rádio é a voz dos homens de lá: convite para enterro lido com pesar, internações no hospital local, o tempo – a chuva tão esperada depois de um ano de seca. O poço secou.
Para o lado que se olhe, vastidão. A vida deserta, quase calada, de quem perambula durante as horas iluminadas sobre a camada fina de capim que veste o horizonte. São pessoas acostumadas com o silêncio. Seus sorrisos têm outra forma, mais arredia, e seus assuntos às vezes acabam de solavanco no findar da água do chimarrão. Os dias ainda são assim por aqui: demorada espera entre passado e presente, de rebanhos novos em mangueiras de pedra. Mas o silêncio é sempre cortado pela caixinha preta.
Numa dessas casas, na década de sessenta, casa de paredes grossas, sem enfeites, típicas da campanha, homens, mulheres e crianças se encontravam nas “surpresas” – noites nas quais as salas se enchiam de gente, vindas dos quatro cantos daquela terra infinita. Tinha marido e mulher, tinha guria solteira, peão que chegava para noitar, tia velha, bêbado, gaiteiro e também, na casa em que no escuro do pampa deixava brilhar as sombras de gente feliz, havia dois irmãos.
Em 1820, o naturalista francês Auguste de Saint-Hillaire descreveu o Rio Grande do Sul de maneira que o seu relato, até hoje, visita os campos da fronteira: “À ceia tivemos [...] primeiro um prato de assado, depois um prato de carne cozida, nadando no caldo. O assado é de sabor delicioso, mas de extrema dureza. São sempre as postas muito grandes, de pouca grossura que se levam ao fogo, primeiro, de um lado, depois de outro, enterrando-se, como disse, o espeto, verticalmente. Em várias casas este espeto é de ferro”. Que susto levaria Saint-Hillaire se fizesse uma saborosa viagem ao futuro! Entre acanhadas mudanças, a mesa estará posta quase do mesmo jeito, e o churrasco continuaria sendo assado da mesma forma. A diferença é que, agora, há sempre por perto uma caixinha preta. O pampa mudou. Os filhos foram morar na cidade. Os homens da televisão parecem mais felizes. Mas estes mesmos filhos, quando podem, prendem o rádio ao ouvido na hora do almoço. Um almoço cheio de saudade, mas também de rancor delicado. Para se aproximarem aos poucos, ligam o rádio no parapeito da janela, deixam que os homens da terra contem que a Maria morreu, que a Andreia, a filha mais nova dos Silva, lá do rincão, enfim se casou. Há pelas casinhas recém-erguidas em tempo de divisão, ou também nas janelas dos casarões das grandes fazendas, o rádio sempre ligado, a cantar o choro triste da música da região, mergulhada em reminiscências e louvores à lida do campo. Ao meio-dia de todos os dias do ano, o gaúcho 36 / proa
O pai, sempre orgulhoso, pedia silêncio. As crianças dos outros riam, sem esconder o que os adultos também nunca entendiam. Os irmãozinhos iam para outra peça, escurecida pela ausência de velas acesas, e pediam que alguém fechasse a cortina que separava os ambientes. O menino tocava uma gaita enquanto a irmã cantava. E do outro lado da cortina estendida, no lusco-fusco de uma sala apinhada de estranhos, os ouvintes permaneciam imóveis. Muito depois de me relatada essa história é que pensei: de certo os irmãozinhos imitavam, no escuro de uma música cantada por ninguém, aquela caixinha preta de todos os meio-dias.
rotas / na palma da mão
Samba! Samba! Samba! Arrebatando emoções e mantendo suas raízes
Os últimos raios de sol ainda iluminavam o fim de domingo quando, um a um, eles começaram a chegar. Alguns, silenciosos e de cabeça baixa, vão montando os instrumentos. Outros, já animados e conversadores, apostam no sucesso da noite de hoje. Pelo menos é o que acha Raul Sachs, o técnico do som. Ele comenta sobre o que viu à tarde, na internet, pelas redes sociais, e arrisca lotação máxima para esse domingo de véspera de feriadão. Sob o som tímido da flauta de Fábio Rosa, chegam ao Muzeo Pub os componentes do Clube do Samba que faltam para passar o som. Enquanto os instrumentos maiores são montados, o suave cavaquinho de Estevan Pereira se une ao som da flauta e, juntos, regem a sinfonia desordenada dos preparativos. Entre acordes, cabos e conversas sobre a noite passada, os integrantes do grupo, e mais o pessoal da técnica, organizam o domingo de samba. Depois de montado, o primeiro instrumento a entrar em harmonia é a estrondosa bateria de Sandenir, o Denir Susback. Sentando frente ao instrumento, o rapaz simpático de trancinhas negras faz o ruído dos bumbos e dos pratos ecoarem pelo local. Quem estiver passando pela Rua Doutor Bozano, em Santa Maria, e ouvir a passagem de som, dificilmente poderá imaginar que aquela barulheira se transformará em batidas ordenadas, num show de samba, dentro de algumas horas. O som da flauta, agora não mais tímido, segue embalando os preparativos no antigo casarão. As notas que saem do instrumento de sopro de um dourado metálico, agora são sedutoras e chamam a atenção também dos ouvidos dos garçons que vão chegando ao local para mais um dia de trabalho. Músicos passando som, funcionários arrumando a casa, o chão sendo limpo para solados o sujarem novamente. O ambiente pouco iluminado, daqui a pouco, estará pronto para receber seus frequentadores – alguns deles, sambistas natos, outros, nem tanto.
reportagem e foto natascha carvalho
São quase nove horas da noite quando Pedro Ribas, vocalista do Clube do Samba, chega para entoar os versos da canção de João Nogueira que dá nome ao grupo. É por isso que eu vivo no Clube do Samba. Dono de um sorriso juvenil e cabelos grisalhos, Pedro sobe ao palco, testa os microfones e avalia a qualidade do retorno do som, com essa gente bamba eu me amarro de montão. E seguem os versos ao fundo, em busca de um som impecável. É preciso cautela para que tudo saia na mais perfeita harmonia, mas o tempo corre e ainda falta Daniel Fortes, o Dadazinho, passar som com seu violão de sete cordas. Violão, cavaco, instrumentos de sopro e percussão afinados, repousam sobre o palco à espera da hora em que, todos juntos, farão o público sambar. proa / 37
O Clube do Samba poderia ser considerado um nome pouco criativo não tivesse sido esse o nome de um movimento fundado por João Nogueira no final da década de 1970, no Rio de Janeiro. A ideia do sambista, juntamente com outros grandes nomes como Beth Carvalho, Clara Nunes, Clementina de Jesus e Martinho da Vila, era a de dar espaço aos mais novos no métier, além de resgatar velhas composições que faziam parte do cancioneiro do samba e que, portanto, eram pertencentes ao patrimônio nacional. Na mesma época, o ritmo americano discoteca ingressava em paragens tupiniquins e atraiu de maneira considerável os jovens. O Clube do Samba, de Nogueira, mais uma vez vinha para não deixar que o ritmo tipicamente brasileiro fosse esquecido por aquela geração. De certa maneira, esse também é o ideal dos rapazes do Clube do Samba de Santa Maria. Em uma época distinta, em que tchus e tchas acabam abafando produções de maior qualidade, o grupo trabalha reafirmando e divulgando a tradicional música popular brasileira na forma do samba. Eles não se pautam pela mídia tradicional na hora de montar o repertório, fruto de uma pesquisa que parte dos poeirentos discos de vinil até a busca por novos compositores no www. A prioridade é o samba em sua forma mais pura.
As paredes de tijolos à vista são as mesmas que sustentam os modernos televisores de plasma distribuídos pela casa noturna Muzeo Pub, local que funciona em dias variados, com atrações que vão do sertanejo universitário até o rock and roll. É aos domingos, porém, que o som do pandeiro e do cavaquinho embalam a noite. E se hoje é assim, pode-se dizer que é devida a uma feliz coincidência. Amante da música brasileira, Pedro Ribas deu início a um projeto, há cerca de dois anos, em que o samba de raiz seria o carro-chefe. Ele foi reunindo amigos também ligados à música, conhecendo outros que se destacavam no ritmo, e, assim como letra de samba, acabou criando um grupo para tocar uma vez por mês em algum local da cidade. O projeto recémnascido, então sem forma definida, mas com um ideal promissor, ganhou um local fixo para apresentações. Foi quando o proprietário da casa propôs a Pedro e seu grupo um domingo por mês dedicado ao samba de raiz. A procura do empresário e a formação do grupo dos rapazes confluíram para o sucesso da parceria. O que costumava ser uma celebração mensal do ritmo brasileiro atraiu um público considerável e, então, coube ao Clube do Samba a tarefa de animar todo o início de semana dos frequentadores do Muzeo.
Eles já foram seis. Uns se desfiliaram, outros viraram sócios. Hoje são sete, unidos pelo samba, divididos em bateria, percussão geral, violão, cavaco, voz, pandeiro e flauta e sax. Ainda que o grupo arranque palmas e sorrisos em eventuais apresentações em outros lugares, a sede do Clube do Samba continua sendo o antigo casarão que abriga o Muzeo. A fachada de tijolos à vista traz consigo quatro janelões brancos de um misto entre o rústico e o sofisticado. Ao lado, uma escada de pedra convida para entrar. No hall de entrada, chega-se ao espaço amplo do pub que pode ser atravessado facilmente de ponta a ponta enquanto os rapazes passam o som – algo impossível em dia de casa cheia. Expostas nas paredes, fotografias em preto e branco reavivam uma Santa Maria de um tempo remoto, realçando o ar retrô do pub. As molduras arcaicas douradas contornam os quadros que, por sua vez, contrastam com as televisões de plasma. Enquanto os rapazes do Clube do Samba não começam a tocar, exibem DVDs de clássicos, como os de Bezerra da Silva e os do grupo Fundo de Quintal. Se o Clube tem sede, tem que ter uniforme personalizado também. De camisas horizontalmente listradas, calças e sapatos brancos, que remetem aos malandros cariocas, eles se legitimam como conjunto e como profissionais do samba. Para as datas comemorativas, traje especial. Camisas de tecido brilhoso fechada por botões dão o requinte necessário ao grupo. Jonas, na percussão, e Pedro, no vocal, vão além: trazem chapéus brancos envoltos por tiras pretas que os caracterizam ainda mais como sambistas. Assim como nos times de futebol, suas camisas estampam um brasão negro bordado no peito que identifica o Clube dos rapazes: o do Samba. O público no local já é relativamente satisfatório. Passa das onze da noite e o show se inicia. É no pequeno palco de madeira, de cerca de meio metro de altura, que cada integrante do Clube do Samba vai se instalando e tomando em mãos seu instrumento. Todos a postos, o “ok” ao técnico de som Raul, que está do lado direito do palco, e os meninos podem finalmente dar início ao que todos aguardam ansiosos. O show começa e o público é receptivo já nas primeiras músicas. Aos poucos o local vai enchendo e o ambiente fica mais descontraído. Não demora muito para a famosa “fila do gargarejo” se formar do lado de fora. É lá onde moro, e eu me sinto bem.
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Como de costume, os que se dispõem a ficar em frente ao palco e acompanhar o show a poucos centímetros da banda, são donos de uma alegria transbordante e conhecedores das músicas como ninguém. Fã de carteirinha do Clube, Ariane Freitas, mesmo tendo que trabalhar na manhã de segunda-feira, não deixa de prestigiar o grupo aos domingos. Estudante de Direito e auxiliar de Contabilidade, a loira de trinta anos de sorriso destemido – que não se ofusca nem mesmo pelo aparelho ortodôntico que usa – conta que o motivo de ela sacrificar suas horas de sono do último dia do fim de semana se deve ao simples fato de o Clube do Samba tocar o que ela realmente gosta, o samba de raiz. E Ariane canta e ri e se diverte e a música não para. As mãos ágeis, decoradas por anéis e pulseiras de prata, de Estevan dedilham o cavaquinho, que indica a próxima música a ser tocada. Ele e o percussionista Jonas são os mais novos do grupo. Conversa de Botequim, de Noel Rosa e Vadico, foi a escolhida e passa a embalar os passos do público. Em meio a tantos dançarinos esforçados, alguns até embriagados, certos casais se destacam pela forma como rodopiam pelo recinto. Com o braço direito envolto na cintura da parceira, o homem conduz a moça, que em meio a tantos giros e firulas, tem seus cabelos e vestido esvoaçados. A maneira elegante e coreografada de dançar, e que chama a atenção dos demais, é executada por alguns integrantes de academias de dança
embalados pelo samba de gafieira. O Clube SAMBA SEM PRECONCEITO tem espaço para todos, dos profissionais aos amadores, dos pares aos solitários, do samba- Não é preciso conhecer o que é um tantã ou canção ao samba de roda. uma cuíca para saber a importância do samba em nossa cultura. Mais do que isso, não é Ao fim de meia hora de intervalo, mais um bloco necessário conhecer o Arnesto, saber que ele de música faz as pessoas se divertirem como mora no Brás, nem mesmo que foi Adoniran se amanhã fosse um dia sem compromissos. Barbosa quem compôs esses versos em 1952. E, na verdade, será: a segunda de amanhã, O ritmo não requer explicações para paixões excepcionalmente, é dia de descanso – repentinas. Quem observa – ainda que timidacomemora-se a Proclamação da República mente – pela janela de um reduto do samba, no país. Enquanto sambam despreocupados, vê o riso solto no ar, o clima que contagia as a beirada do palco é tomada por garrafas de pessoas. É assim no Café Cristal: bar onde o cerveja, eu bebo sim e estou vivendo [...] tem gente ritmo sincopado ultrapassa a famosa fachada que não bebe e está morrendo, deixadas pelos que de vidro e arrebata até mesmo aqueles que gostam de acompanhar o show de perto e passam na rua. acabam fazendo o palco de mesa. Clarissa Fortes via o lugar com olhos de esQuero ver a palma da mão ecoar (...); Se eu perder esse tranhamento, mas só até descobrir algo que a trem que sai agora às 11 horas, só amanhã de manhã atrairia até lá: o samba. Desde então, não ar(...); Chora! Não vou ligar, chegou a hora, vais me reda mais o pé do bar simples de paredes de pagar! são os trechos de algumas das músicas que madeira pintadas de um verde já desbotado e indicam que mais um domingo de samba com azulejos brancos. A moça de formas bem deo Clube do Samba se encerra. Há ainda quem lineadas canta os sambas com propriedade de peça mais uma!, mas Pedro tira seu chapéu rainha de bateria, dança com elegância de pase, com ele ao peito, anuncia o final do show sista em véspera de Carnaval – tudo isso com “com dor no coração”. Já são quase três horas um belo sorriso de dentes alinhados estampada madrugada. Daqui a pouco o galo canta, o do no rosto. “Aqui o ambiente acaba se torcelular desperta e começa mais uma semana. nando familiar, as pessoas são respeitadoras”, No próximo domingo, os rapazes estarão de conta. Como uma porta-estandarte, ela faz as volta, discretos ou comunicativos, montando honras da casa recepcionando os amigos, coseus instrumentos para esperar os sócios do nhecidos no samba do Cristal, e esbanja simClube, afinal, o show tem que continuar. patia também com os novos frequentadores. proa / 39
– Oi, Seu Miyagi! Tudo bem com o senhor hoje? – Clarissa dá as boas-vindas, seguidas de um longo abraço, a Diran Soares, um senhor com traços orientais de 73 anos, que ganhou o apelido carinhoso dos amigos do bar devido a sua semelhança com o personagem do filme Karatê Kid. Seu Diran frequenta o Cristal há mais de 40 anos, quando este ainda era propriedade dos antigos donos portugueses, e localizava-se na “Primeira Quadra”, atual Calçadão de Santa Maria. Ele fica ora sentado, em frente ao balcão branco que se estende por toda área do bar, ora na parte da frente, onde acontece o samba – e até arrisca uns passos junto a alguma moça que lhe conceda a dança. Mas Seu Diran, boêmio nato que frequenta o bar quase diariamente, é exigente em relação às músicas: – Tu ouviu essa? O Canto da Sereia? – ele pergunta com o dedo em riste – Não é nesse tom não... – ensina, antes de se acomodar em um dos bancos em frente ao balcão. – Toca a música aí, aquela que vai tocar no meu velório! – pede Clarissa, em voz alta, a Antônio Carlos, que só é conhecido assim em seu trabalho como assistente administrativo na Universidade Federal de Santa Maria. Lá, ele é o Antônio do Protocolo, aqui, simplesmente Chuca. Hoje, ele toca com os também veteranos Chicão e Mestre Bica, da Escola de Samba Unidos do Itaimbé. Juntos, os três formam a Velha Guarda, nome rejeitado por alguns deles. “Eu nem sou tão velho assim pra ser da Velha Guarda”, brinca Mestre Bica no auge de seus quase cinquenta anos. Cada um deles tem seus grupos próprios, que tocam alternadamente no bar. Chuca lidera o grupo Som de Cristal, Chicão, o Quarteto do Samba, e Mestre Bica, o Samba e Companhia. Com a proposta de animar os finais de tarde de domingo, os velhos conhecidos acabaram se reunindo para tocar, mas sem abandonar seus grupos. – Essa já foi Clarissa! – responde Chuca, também em tom elevado, sentado na típica cadeira de madeira de bar com seu cavaco em mãos. – Ah, eu devia tá no banheiro. É que eu tô de dona aqui, cheguei às oito e meia hoje! – ela responde, sorriso no rosto e copo de cerveja na mão. Antes de me despedir deixo ao sambista mais novo o meu pedido final. A música que Clarissa queria, e 40 / proa
que já havia sido tocada, é o clássico de Alcione Não deixe o samba morrer, composta em 1975. O repertório tocado no Café Cristal é diversificado e o samba de raiz acontece há cerca de cinco anos. Mas foi sob nova direção, assumida há três anos, que o som ao vivo acabou se organizando no Cristal. Hoje, é cobrado couvert artístico nos dias em que o batuque rola solto. Displicentemente sentados um ao lado do outro, em uma meia-lua, os músicos que tocam no bar contam apenas com uma caixa de som que fica em cima de uma mesa escorada no canto do bar. Todos os três microfones são ligados diretamente nessa caixa, e é dela que sai o som abafado que chama a atenção dos transeuntes da Rua Alberto Pasqualine. Os curiosos, frente ao vitral que permite ver o interior do bar, juntam-se aos apreciadores do cigarro que, desde maio de 2010, precisam sair do recinto se quiserem fumar. O vidro que separa a rua da festa os mantêm em contato com quem ficou lá dentro. Atentos ao público, os grupos que tocam no Cristal não costumam ter uma lista de repertório fechado. “A gente percebe o que o público quer ouvir e tocamos tudo que é samba, de Agepê a Zeca Pagodinho.” Assim eles entram noite adentro, alternando artistas e épocas do samba, sempre acompanhados pelo coro do público que aumenta nas quartas e sextas-feiras, dias em que o samba embala o happy hour do
bar. Além de cantar junto, alguns dos frequentadores do Cristal ganham um voto de confiança dos músicos, que, não raro, cedem um lugar para eles. É o que acaba de acontecer: Bica dá uma pausa na cantoria para molhar a garganta e tem sua cadeira ocupada por Douglas, de apenas 19 anos. O que iniciou como uma meia-lua, agora já se configura literalmente como roda de samba. Clientes que já viraram amigos do trio aumentam o grupo com pandeiro, banjo e tamborim em mãos. Os mais tímidos acompanham o ritmo batucando discretamente com o dedo ou balançando as pernas. Dois chocalhos também contribuem para o som que toma o local. Um deles chama a atenção pelo improviso: trata-se de uma pequena caixa metálica de cigarros, cheia de areia e lacrada por um durex, que passa de mão em mão dos interessados em arriscar um som. Além do contingente musical, os dançarinos, espremendo-se por entre as mesas e por entre os músicos, dão o toque final à roda de samba. Homens engravatados saídos do trabalho, donas de casa depois de um dia de serviço, estudantes e seus livros, aposentados e seu tempo. O Café Cristal cumpre com o que Chuca, antes de iniciar a próxima música, anuncia no microfone: no samba todo mundo se iguala. A alguns metros, contrastando com Clarissa, que segue seu show particular, uma moça se destaca pela cor
de seus cabelos, metade laranja e metade verde, e pelo estilo excêntrico. É Loredana, uma roraimense de calça estampada e pena verde pendurada na orelha esquerda. Estudante de Educação Especial, ela frequenta o Cristal desde julho de 2011. “Minha ligação com o samba vem de família. Aqui no Cristal, a gente ainda consegue fazer amizade, todo mundo aqui é simples”. Ainda que muito diferentes, Loredana, de sandálias rasteiras de couro, e Clarissa, encimada por um salto de doze centímetros, mostram muito samba no pé e ilustram as palavras do veterano Chuca: no samba, elas são iguais. Outra figura que se destaca no Cristal é Jorginho. Algum desavisado poderia, à primeira vista, dizer que ele não bate bem da cabeça. Jorginho é gremista e começa a dar seus passos solitários ao primeiro acorde do cavaco. Alheio a quem possa lhe lançar algum olhar de reprovação, ele só para quando a roda de samba chega ao final. O samba inicia no bar por volta das nove horas da noite e segue por mais quatro ou cinco horas – só sendo interrompido pelas justas pausas feitas pelos músicos para tomar uma cerveja. Com sua camisa do tricolor gaúcho ajustada para dentro das calças, Jorginho interpreta as canções e arrasta seus tênis brancos sem parar. É só trocar algumas poucas palavras com o metalúrgico aposentado para perceber que sua única estranheza é ter a perna esquerda mais curta que a outra – o que confere um ba-
lanço diferente ao samba ensaiado por ele. Com improváveis 52 anos, ele representa os versos indispensáveis de Gonzaguinha: viver e não ter a vergonha de ser feliz... Ainda que o Kiko, gerente do Cristal, se veja obrigado a pedir que os músicos encerrem a cantoria devido ao avançado da hora, ele, o personagem principal, não vai embora. O samba já se infiltrou nas frestas das mesas simples de madeira, nos dentes à mostra das mulheres faceiras. Ele é soberano, da primeira tampinha de cerveja a cair no chão ao cadeado colocado na porta. São quase cem anos desde a composição do primeiro samba, Pelo telefone. De lá pra cá, compositores foram eternizados cada vez que se repetiram os versos de suas canções. De cá pra lá, o samba quase se perdeu. Em alguma esquina virou pagode, noutra flertou com variações que se apoderaram de seu nome forte. Samba é raiz. E, para assim seguir, conta com a devoção de estudantes, trabalhadores e outros diletantes. Entre os que podem viver dele, e os que, com prazer, vivem para ele, o samba se mantém. O samba vive nas rodas e nos bares, no requinte e na simplicidade, no acorde mais perfeito e mais sincero. O lugar dele é cativo e seguirá assim até que se prove o contrário. Uma vez disse um tal Nelson Sargento: o samba não é uma onda nem um movimento, o samba é uma instituição.
O samba não é uma onda nem um movimento, o samba é uma instituição
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resgate
Livrarias de outrora texto kamila baidek foto acervo casa de memória edmundo cardoso
Eram as primeiras décadas do século XX. Santa Maria vivia o apogeu de sua viação férrea e quem flanasse pelas ruas da cidade percebia isso. A avenida principal, antes de chamar-se Rio Branco, ostentava o nome pomposo de Avenida do Progresso e era considerada por alguns como a mais larga e bela de todo o país. Seu início encontrava a estação ferroviária e as pessoas costumavam descer das máquinas a vapor e percorrer a extensa via que, à época, era o endereço de importantes estabelecimentos comerciais e de residências atraentes.
A sala ampla e iluminada da Livraria Commercial abrigava os mais encantadores romances, variados livros didáticos e uma infinidade de papéis e miudezas para escritório. A loja chegou a contar, inclusive, com mais de dez funcionários, alguns deles fiéis escudeiros e excelentes amigos de Chico Dania, como Gentil Maciel e Osvaldo Dias.
O diferencial do estabelecimento era calcado na presença e vigilância constantes dos proprietários. O filho dos imigrantes italianos Luís e Hermínia Dania, com suas feições plácidas e gestos largos, e a espanhola carinhosa e companheira construíram uma vida junto aos livros, vendendo sonhos e arrecadando sorrisos.
Passear por essa parte da cidade era como descobrir, a cada novo ângulo, a alma encantadora das ruas. E era próximo a uma das esquinas, entre a atual Avenida Rio Branco e a rua Vale Machado, onde havia uma pequena casa de comércio: a Livraria Dania. O proprietário era o sonhador João Francisco Dania. Chico, como era conhecido, fundou a livraria em parceria com seu irmão, Hermínio. O livreiro, ainda que modesto, enxergou além. Aquele singelo negócio seria apenas o começo. Chico Dania e a mulher, a espanhola Conceição Plascencia, a Conchita, trabalharam muito para, em 1925, erguerem o Edifício Dania na Primeira Quadra da rua do Comércio, atual Calçadão da cidade. Com trabalho e com afeto, surgiu um lar para a família e mais um recanto para os livros: a Livraria Commercial. O negócio já firmado na avenida ficou sob os cuidados do irmão e sócio de Dania e acabou por tornar-se filial do recém-inaugurado estabelecimento.
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Chico Dania acompanhado dos funcionários e amigos, Osvaldo Dias (à esq.) e Gentil Maciel (à dir.)
A livraria ainda contava com uma pequena tipografia que funcionava nos fundos do lugar. Chico foi o editor de inúmeros autores que, sem o seu apoio e desprendimento em relação aos lucros editoriais, jamais teriam sido publicados. Além de apadrinhar prosistas e poetas desconhecidos, ele também editou títulos de autores locais já bastante consolidados por um baixíssimo custo. Esse desprendimento material e o amor pelas artes viviam em Chico Dania desde a juventude, período em que começou a se envolver com o teatro amador. Subiu aos palcos diversas vezes e, depois, quando não mais pisava na ribalta, agiu nos bastidores, ajudando na divulgação dos espetáculos com a impressão gratuita de panfletos. Dona Conchita, por sua vez, apadrinhava os estudantes mais pobres, doando livros e material didático. Para isso, ela exigia que as crianças sempre mostrassem o boletim escolar. Conchita era ainda uma costureira de mão cheia: quando as companhias de teatro vinham a Santa Maria para se apresentarem nas casas de show e cabarés, alocados próximo ao antigo Cine Glória, era com ela que as artistas encomendavam os vestidos e adereços. “Eram as mais belas peças de roupa que já vi”, lembra a filha Luisa Dania, hoje com 87 anos. Mesmo localizada ao lado de outra livraria – a do Globo –, a Commercial vivia sempre cheia de clientes. Na época das festas de final de ano e início das aulas, momentos de maior movimento, até as filhas e netas ajudavam a vender e embalar os presentes. “Depois o meu avô levava todos nós, parentes e funcionários, para jantar no Restaurante Concórdia. Era uma festa!”, conta a neta de Chico, Neusa Dania. E assim iam passando os dias naquela livraria no centro de Santa Maria. Chico até chegou a fundar uma outra, denominada Colegial, que ficava na rua do Acampamento, mas hoje pouco se sabe sobre o estabelecimento que, diferentemente da Livraria Commercial, teve existência breve. Nos anos 1960, com a morte do gerente Hermínio, a Livraria Dania fecha suas portas. E, feito nas malhas de um romance, o desenlace foi repleto de melancolia.
Francisco Dania
No início dos anos 1970, depois de cinquenta anos em atividade, a Livraria Commercial também acaba – pouco tempo antes da morte de Dona Conchita. Ela passou os últimos três anos de vida enferma, sob os cuidados da filha Luisa, em Santa Maria. Chico foi levado para morar com o filho Amílcar, em Porto Alegre, vivendo os últimos anos de sua vida longe de seu amor. Sempre muito ativo, o livreiro e artista agora não mais encontrava razões para sorrir. Na manhã do dia 23 de maio de 1978, com quase 90 anos, Chico Dania morre. Não por estar doente; morre de saudade. Encerra-se, então, um ciclo. Mas o valor e a contribuição de Chico para a difusão cultural em Santa Maria perduraram. Foram esforços evidentes e dignos de homenagem, seja por acreditar que os livros poderiam fazer a diferença na vida das pessoas, seja por vivenciar as artes com a alma. Suas livrarias ainda conservam lembranças vívidas na memória de todos os que tiveram a oportunidade de conhecê-las.
Um dos raros registros do interior da Livraria Commercial (foto acima) e um exemplar de propaganda do estabelecimento.
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um copo de mar
Há muito de
Fitzcarraldo em Werner Herzog
texto: olívia scarpari foto divulgação
Em meados de 1974, o cineasta Werner Herzog recebeu um telefonema perturbador. Avisaram-no que sua amiga Lotte Eisner estava muito doente, internada em um hospital em Paris. Inconformado com a morte premente da crítica de cinema responsável por elevar o expressionismo alemão ao status de movimento estético, Herzog decide empreender uma peregrinação de fôlego: partiria a pé, em pleno inverno europeu, de Munique até a capital francesa em um trajeto que totalizaria mil quilômetros. Sua decisão, embora intempestiva, não foi de todo disparatada. O diretor tinha uma ligação bastante forte com Eisner. Foi ela uma das primeiras autoridades do cinema a perceber que, vinte anos após o surgimento do movimento expressionista, um novo fazer cinematográfico despontava no país, o Novo Cinema Alemão, encabeçado pelo próprio Herzog e por outros novatos promissores como Win Wenders e Rainer Fassbinder. Desse modo, Herzog encarava a expedição que durou impressionantes 22 dias como um processo de expurgo do impuro: acreditava que se conseguisse passar por isso, também Eisner conseguiria manter-se viva. Da experiência, o cineasta escreveu seu primeiro livro, Caminhando no gelo (1978), um relato em que descreve as impressões, por vezes delirantes, de uma viagem que se propõe a se dar sob condições limítrofes. Escrito em forma de diário, a narrativa tenta traduzir com imagens mentais as sensações desse viajante e o processo de transformação que é intrínseco aos deslocamentos. A solidão que anda lado a lado com ele durante todo o processo, transforma a viagem em um misto de alucinações, nem sempre de fácil compreensão, e descrição dos espaços e comunidades obscuras, escondidas pela neve. Algumas figuras pitorescas como a mulher rotunda e macilenta que fala de seus filhos enquanto forne44 / proa
ce instruções ao andarilho são marcantes: “Ao perceber que quero prosseguir o percurso, começa a falar três vezes mais depressa, resume destinos inteiros e a morte de três filhos. Tudo isso num dialeto que não facilita as coisas.” São, contudo, os personagens de suas películas que lhe fazem companhia na caminhada – especialmente em momentos em que Herzog atinge o ápice da imersão em si mesmo. De súbito, Bruno, um jovem com distúrbios psiquiátricos que estrelou dois de seus filmes, – O Enigma de Kasper Hauser (1974) e Woyzeck (1979) – surge e dá vida ao cenário de uma estação de teleférico abandonada, fazendo-a funcionar a noite inteira. É a dimensão cinética quebrando a monocromia dos caminhos cobertos pela neve. Como um fiel escudeiro, Hais, de Coração de Cristal (1976), aparece a seu lado dizendo que
finalmente os dois juntos experimentariam uma sensação de perigo. E assim, o diretor vai povoando seus cenários até então ermos e sem vida. Indicações fragmentárias das paisagens, a viagem como um lugar de encontro da essência dos outros e de si mesmo, os limites borrados entre loucura e lucidez: todos esses elementos conformam um relato caleidoscópico, partido e psicodélico. Por isso, mesmo que o livro seja um diário de viagem, vê-lo com olhos objetivos pode empobrecer a narrativa. O melhor a se fazer então é deixar-se escorregar pelas vias esburacadas sugeridas pela subjetividade do narrador, e ele será generoso: apresentará sem pudores a mente desnudada e até frágil de quem está em pleno processo de criação. Seu fluxo de consciência frenético e sua capacidade fabulatória infinita nos revelam uma persona de alta complexidade, incapaz de diferenciar um set de filmagem da própria vida. Famoso por levar os atores à agonia corpórea durante as gravações de suas produções, Herzog certa vez disse que o norte de sua arte não era a cabeça, mas sim as pernas. Desde muito jovem, quando descobrira a fé católica, era dado a caminhar por longas distâncias visando descobrir o mundo e transcender espiritualmente. O resultado dessa postura é um livro de visceralidade ímpar, escrito de modo sistemático, tal qual um roteiro de cinema. Se fosse, seria mais um dos épicos argumentos de Herzog. A diferença é que ele mesmo encarnaria Fitzcarraldo em pleno gelo.
Caminhando no Gelo, de Werner Herzog. Tradução de Lúcia Nagib. Editora Paz e Terra, 2005, 104 páginas
para um homem navegar
A
chuva convida a sair
texto marlon dias foto divulgação
Em 1982, o escritor gaúcho Charles Kiefer lançou, pela editora Mercado Aberto, aquela que é considerada sua estreia na literatura: o livro infanto-juvenil Caminhando na chuva. Antes disso, Kiefer lançou outros três livros, os quais omitiu de sua bibliografia. A escolha por Caminhando não poderia ter sido mais oportuna, afinal, a novela agradou o público e os críticos, que a consideram um típico relato de formação. Passados trinta anos, mais de cem mil exemplares vendidos, com vinte edições no Brasil e uma em Portugal, Caminhando na Chuva ganha edição comemorativa pela Editora Leya. A edição é primorosa e conta com dois ensaios críticos, de Sissa Jacoby e Deonísio da Silva. “Uma edição de luxo, para colecionador”, como afirma o próprio Kiefer, agora já considerado um nome de destaque da atual safra de ficcionistas gaúchos e laureado com importantes prêmios literários, dentre eles, três Jabutis. A história é narrada por Túlio Schüster, um jovem pobre de vinte anos, que está prestes a deixar sua pequena cidade para trás. Com medo de perder a poesia da vida quando partir para Porto Alegre, ele resolve escrever um memorial sobre a infância que se foi e a adolescência que passou despercebida. Ao escrever suas breves memórias, Túlio rompe com o passado para ingressar em uma nova vida. A narrativa desenrola-se num cenário pitoresco: Pau-d’Arco. Localizada no noroeste do Rio Grande do Sul, a cidade fictícia de Charles Kiefer está presente em quase todas as suas obras e remete à cidade natal do escritor, Três de Maio. De início, o rapaz se apresenta, diz quem é, do que gosta, fala sobre sua família e sua cidade. A insegurança de um narrador iniciante faz Túlio não perder o seu leitor de vista. Túlio estabelece um diálogo constante com o leitor, interrogan-
do-o, pedindo aprovação de suas atitudes e, por vezes, pondo-se no lugar de quem lê. Os onze primeiros capítulos são dedicados à infância. As lembranças giram em torno de sua relação com o avô, “dono dos insondáveis mistérios do mundo”, responsável por incrustar no menino o gosto por contar histórias. A relação de Túlio com os pais também é explorada. Ao falar de sua mãe, sempre dedicada ao marido, expõe a submissão na qual vivem as mulheres, principalmente nas cidades do interior. Ainda sem entender muito bem os porquês do mundo, questiona o papel da mulher na sociedade – que tem certeza não ser apenas o de “lavar, cozinhar e parir”.
O pai de Túlio é caminhoneiro e bastante ausente. O momento em que nosso narrador mais se aproxima dele é no capítulo “Pelas estradas do Brasil”, quando conta das vezes em que o acompanhou. Este capítulo, aliás, é significativo na história, pois é quando percebemos um narrador mais maduro e reflexivo. Túlio surpreende-se: “Percebo que minha forma de narrar está ficando diferente”. A partir daí, o saudosismo de uma infância feliz dá lugar a dramas juvenis como o amor proibido, as barreiras sociais e o preconceito que sofre por estudar em um colégio de pessoas ricas, sendo ele “o ‘ovelha negra’ da turma, o pobretão”. Caminhando na Chuva é uma narrativa quase autobiográfica. Deonísio da Silva, em seu ensaio crítico, vai além e afirma que a narrativa de Kiefer é o relato de toda uma geração de escritores que viveu sua juventude nos anos da ditadura. E muito da história de Kiefer está lá: o sonho de ser escritor, a influência dos professores de Língua Portuguesa, o avô contador de histórias, a vida no interior de poucas oportunidades, o racismo, o machismo e os julgamentos de uma sociedade moralista. E em meio aos desalentos da vida, Túlio encontra refúgio na cidade quando chove. É nesse momento que, para o menino, a cidade se abre. Não há o incômodo ruído dos habitantes barulhentos. Todos se ausentam. Ao caminhar sozinho na chuva, quando a transparência de cenários já não é tão nítida, é que ele consegue ver melhor dentro de si, encontra-se. E chora, porque suas “lágrimas vão se confundir com a água da chuva, que é também um choro, acho que de Deus, sei lá!”. Caminhando na chuva, de Charles Kiefer. São Paulo: Editora Leya, 2012, 148 páginas proa / 45
desembarque
Filosofia nas estantes londrinas Manhã e ideias nubladas, ainda tonta, os vapores do álcool consumido na noite anterior não se dissipam tão rapidamente como eu gostaria. Penso comigo mesma: “justo rum, dentre todos os destilados possíveis”. Quem penso que sou? Hunter Thompson? O tempo, porém, é escasso, e as ruas da capital inglesa são de um gris triste e solitário.
texto e foto caroline hausen
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Deixo a estação de Russel Square e sigo até encontrar, no prédio de número setenta da Marchmont Street, a livraria The School of Life. A vitrine abriga livros coloridos de autores diversos e um pôster amarelo anuncia que “se você perder seus sonhos, você perderá a sua sanidade”. Apesar dos dizeres de autoajuda, a livraria não tem como propósito servir como um armazém de palavras bonitas. Assim como seu fundador, o escritor e filósofo Alain de Botton, o local promove a ideia de “pensar inteligentemente sobre as questões importantes da vida”. Pelo menos é o que está escrito na parede da loja.
O número moderado de obras e as cores sóbrias criam a sensação de que somos bem-vindos em uma sala de estar particular, aconchegante e organizada. Vejo alguns autores conhecidos, entre eles o próprio Botton, Paul Theroux, alguns russos e muitos anônimos. A temática parece ficar no terreno do pensamento e da filosofia, e a escola exibe uma mesa convidativa com café e croissants para aqueles que tiverem uma fome menos filosófica e mais imediata. Um corvo empalhado na estante traz recordações sobre Poe. O local oferece workshops sobre assuntos variados. Hugo, nosso palestrante, chega para conversar sobre trabalho, tema da aula de hoje. A nossa palestra envolve imaginar o trabalho que amamos, e Hugo repete que devemos pensar todos os dias sobre o que queremos e gostamos de fazer. Ao final do encontro, nos despedimos. Sinto o corvo na estante fixar o seu olhar vítreo em nossas costas. O céu de Londres continua cinza.
Café com leite e duas metades de lua texto thaís brugnara rosa foto iuri müller Sob o entardecer, a jornalista italiana Manuela Bianchi caminha com pressa no centro de Buenos Aires. Passa pelo Obelisco e por uma série de teatros baratos da Avenida Corrientes. Desde que se mudou para a Argentina, sua vida tem sido correr contra o tempo, tomar café com pessoas interessantes e oferecer artigos para revistas europeias em que relata a sua própria visão de Buenos Aires: um misto de melancolia e agitação, o tango perdendo espaço para o reggaeton, o que sobrou da boa literatura em livros mofados, todos os labirintos portenhos destruídos para construção dos templos do comércio. “A Buenos Aires que eu busco está em outra época, por isso prefiro os cafés antigos”, afirma ao avistar o toldo verde da cafeteria Gato Negro, fundada em 1927 pelo espanhol Victoriano Robredo. Conta-se que, depois de viajar pela Ásia, ele se casou com uma argentina. De suas aventuras pelo mundo, trouxe temperos exóticos e diferentes tipos de
chás e cafés. O negócio passou para o filho e, agora, pertence ao neto. A decoração que Manuela encontra ao chegar testemunha essas décadas de tradição. Lustres antigos, balcão com tábua de mármore e prateleiras de madeira nobre, onde são armazenados os temperos. “Canela com curry, que mistura! Já é senso comum dizer que este é o café mais cheiroso de Buenos Aires”. Ela passeia o olhar por entre as mesas. O grupo de senhoras que pediu chá de gengibre, o casal de jovens que divide um brownie, o estudante que utiliza o laptop enquanto o capuccino esfria, o senhor que lê um livro sem capa. “Este deve ser o entrevistado. Esteban Ierardo?”. Eles pedem café com leite e croissants. “Em espanhol, ‘medialunas’. Comem a metade de uma lua”, ri Manuela Ela liga o gravador e começa a conversa informal. Ierardo, professor de Filosofia, divaga sobre escritores argentinos e seus rios metafísicos. “Ah, e aqui também deve haver algum porão onde está o Aleph de Borges. Não pensas que este seria um lugar ideal? No centro de Buenos Aires, um café antigo guarda o segredo do universo...”. Enfim, diverte-se com a arte e a
irrealidade que há em tudo, pois, para ele, é para isso que servem os cafés: eles são um intervalo entre a objetividade que nos é cobrada todos os dias. Manuela acha engraçado que, justamente quando o garçom retira as xícaras, Ierardo fala que a vida é apenas um sonho. Ele percebe que ela tenta segurar o riso e complementa: “Este é o garçom mais antigo. Cansou dos milhares de diálogos que passam por estas mesas, já nem presta atenção”. Pedem a conta. Ierardo faz questão de pagar e deixa uma boa gorjeta, a que o garçom agradece e avisa: “eu escutei”. Ierardo ri. “Ele me conhece, sabe que tendo a transformar tudo em ficção”. Manuela responde que ainda não sabe qual é o seu limite entre a veracidade do relato e a ficção. “Como uma jornalista pode manter o texto em termos estritos se é desafiada por atmosferas de sonho enquanto come metades de lua?”. Enfim, despedem-se. Cada um segue o seu caminho em direções opostas da Avenida Corrientes, onde neons e buzinas agridem a consistência da noite. Em silêncio, Manuela agradece por um simples café que trouxe à tona uma Buenos Aires que parece cada vez mais esquecida.
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