UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA E SOCIEDADE LUISA VASCONCELOS HARDMAN ATAR O NÓ(S): Estudo sobre práticas artísticas contemporâneas e vida coletiva Salvador 2019 LUISA VASCONCELOS HARDMAN
ATAR O NÓ(S): Estudo sobre práticas artísticas contemporâneas e vida coletiva Dissertação apresentada ao Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia como requisito final para obtenção do título de Mestre. Orientadora: Prof.ª Dr. Djalma Thürler Coorientadora: Prof.ª Dra. Ines Karin Linke Ferreira Salvador 2019
LUISA VASCONCELOS HARDMAN ATAR O NÓ(S): Estudo sobre práticas artísticas contemporâneas e vida coletiva Dissertação apresentada como requisito final para obtenção do grau de Mestre em Cultura e Sociedade, da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 18 de dezembro de 2019 Banca examinadora Djalma Thürler – Orientador ___________________________________ Doutor em Letras pela Universidade Federal de Fluminense Universidade Federal da Bahia Ines Karin Linke Ferreira – Coorientadora ___________________________________________ Doutora em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais Universidade Federal da Bahia Felipe Milanez Pereira _______________________________________________________ Doutor em Ecologia Política pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Universidade Federal da Bahia Marisa Flórido Cesar _________________________________________________________ Doutora em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Universidade Estadual do Rio de Janeiro
AGRADECIMENTOS Depois de uma longa jornada, o desejo é agradecer à todos e todas que estiveram pelo caminho. Ainda que não seja possível citar todos os encontros, ainda que provavelmente esqueça de gente importante que atravessou este trabalho, irei saudar a parceria, a solidariedade, os tantos coletivos, grupos e rodas que me fizeram acreditar que dividir é multiplicar e que juntos somos mais fortes. Salve! Line e Ronald, agradeço pela possibilidade de retornar à Bahia para desenvolver esta pesquisa, por terem ensinado o valor das nossas raízes e do lugar que viemos, por mostrarem que às vezes é preciso voltar para seguir em frente. A base é aqui, a base é vocês. Agradeço à Ines Linke, por apresentar caminhos possíveis e por tantas partilhas: sem você nada disso teria sido possível. Agradeço ao grupo de pesquisa Urbanidades da Escola de Belas Artes da UFBA, muito obrigada pelo acolhimento e pela reflexão conjunta. Agradeço à Renata Berenstein, à Esther Martins, à Fabiana Marques, à Agnes Cajaiba e à Sofia Mettenheim e Clara Pássaro – a força, os palpites, as revisões e os empurrões diários foram fundamentais para chegar até aqui. Tamo junto. Agradeço à Marisa Mello, mentora e amiga querida, você segue sendo uma referência importantíssima nessa árdua tarefa que é pensar criticamente o mundo e nosso lugar nele. Agradeço ao Santo Antônio Além do Carmo e toda sua rede afetiva e criativa – viver neste bairro me fez e me faz querer viver junto. Agradeço à La Paternal e à Platohedro, espaços que fizeram brotar esta reflexão e reforçaram o desejo de construir outros modos de criar e produzir no campo da arte. Viva a rede latinoamericana que nos conecta, sigamos juntos. Agradeço à Mônica Nador por compartilhar da sua trajetória de forma tão generosa – toda minha admiração e afeto à você. Agradeço ao JAMAC por existir nesse mundo caduco, vocês são a possibilidade real de um mundo mais justo, mais sensível e mais bonito. Agradeço à Tiago Ribeiro pelo carinho na diagramação deste trabalho (e por todo resto) e à Alex Simões pela revisão cuidadosa e interessada. Agradeço ao meu orientador Djalma Thurler pelo estímulo e confiança. Agradeço à Marisa Flórido e à Felipe Milanez – é uma honra tê-los como parte desta história. Avante!
RESUMO A pesquisa em questão afirma a dimensão política do comum a fim de identificar, no campo das artes, experiências que conectam e articulam pessoas, ferramentas, ações conjuntas, espaços físicos etc., formando sistemas sociais de colaboração e reciprocidade, no âmbito da vida coletiva. Para pensar a experiência do comum por meio da arte contemporânea, foram formulados seis tópicos – o político, o limite, o relacional, a casa, a escola e o ecossistema – estes irão guiar a investigação, reunindo autores de diferentes campos do saber, em especial, os campos da arte, da filosofia, da sociologia. Em diálogo com o conteúdo desenvolvido, iremos aterrissar na experiência do projeto Jardim Miriam Arte Clube (JAMAC), na periferia de São Paulo, articulada a uma rede maior de projetos e agentes afins, no intuito de incluir uma abordagem mais prática acerca das questões apresentadas. A partir destas experiências, se constatou o cruzamento entre a dimensão da arte, da política e do f azer-comum, no qual se observou caminhos possíveis para uma reinvenção da vida social. Concluiu que a prática do comum quando disparada pelo campo da arte, possibilita modos de vida mais colaborativos, críticos e criativos e que, para tal, é necessário participação e envolvimento dos indivíduos na partilha da vida coletiva. Palavras-chave: Comum; Arte; Política; Vida Coletiva.
ABSTRACT This research affirms the political dimensions of the commons to identify, in the field of the arts, experiences that connect and articulate people, tools, actions, physical spaces, etc., that create the social systems of collaboration and reciprocity of collective life. To consider the experience of the commons through contemporary art, six topics were formulated - the political, the limits, the relational, the home, the school, and the ecosystem. These topics will guide the investigation by gathering authors of different fields of knowledge, especially from the disciplines of art, philosophy, and sociology. In dialogue with the content developed, the research will focus on the experiece of Project JAMAC (Jardim Miriam Arte Clube) in the periphery of São Paulo city, a project which is linked to a larger network of projects and agents, in the intent of including a more practical approach to the questions presented. From these experiences, a criss-crossing among different dimension of art, politics, and the making of commonalities can be observed that reveal new possible pathways to the reinvention of social life. The research suggests that the practice of the common, when engendered by the field of arts, makes possible ways of life that are more colaborative, more creative, and more critical in which the participation and engagement of individuals sharing a colective life is necessary. Keywords: Common; Art; Politics; Collective Life.
SUMÁRIO
PREFÁCIO.........................................................................................................
08
1
A DIMENSÃO POLÍTICA DO COMUM......................................................
12
1.1
CERCAR, CERCEAR E RESISTIR: BREVE PANORAMA CRÍTICO...........
14
1.1.1
Lei do cercamentos............................................................................................ 14
1.1.2
O neoliberalismo e a lógica do capital.............................................................. 17
1.1.3
Lugares de subordinação..................................................................................
19
1.1.4
Ocupar e resistir: focos de insurgência............................................................
21
1.2
CONCEITO ENQUANTO PRÁTICA................................................................
25
1.2.1
Comum como verbo........................................................................................... 25
1.2.2
Da comunidade à multidão .............................................................................. 29
1.3
SISTEMAS SOCIAIS NAS TRAMAS DO COMUM.......................................
32
1.3.1
Gestão de recursos e suas possíveis tragédias.................................................
32
1.3.2
Anos 2000: tecnologia livre e cultura do compartilhamento.........................
36
1.3.3
O urbano: espaço político do com-viver..........................................................
39
1.3.4
A cosmovisão do Buen Vivir ............................................................................. 42
2
2.1
ENGENDRAMENTOS DA ARTE: ENTRE AS ESFERAS COGNITIVA, 47 POLÍTICA E AFETIVA.................................................................................. O POLÍTICO....................................................................................................... 50
2.2
O LIMITE............................................................................................................ 57
2.3
O RELACIONAL................................................................................................
2.4
A CASA .............................................................................................................. 75
2.5
A ESCOLA.......................................................................................................... 81
2.6
O ECOSSISTEMA..............................................................................................
87
3
PÓSFACIO
102
REFERÊNCIAS.................................................................................................
108
64
8 PREFÁCIO A discussão do comum, para mim, surge no contexto dos coletivos e coletividades, a partir de uma experiência no espaço da La Paternal Espacio Proyecto1, na cidade de Buenos Aires. Neste lugar, fui convidada, em 2015, a pensar através da arte, mas, sobretudo, para além dela. Lá se defendia a importância de chegar ao limite do campo da arte justamente para articulá-la com o mundo, relacionando-se com as problemáticas da vida em comum, rompendo com a produção de trabalhos estritamente ligados às linguagens artísticas. Os programas desenvolvidos pela La Paternal reuniam artistas, designers, cientistas políticos, ativistas sociais, biólogos e outros, que buscavam desenvolver ações que se desdobravam para além do espaço expositivo da sua sede: intervenções que se davam a partir de experimentos e acontecimentos artísticos, mobilizações para reivindicar participação e escuta frente às instâncias governamentais e atividades de formação nas mais diversas áreas. De forma auto-organizada, com os projetos quase sempre desprovidos de financiamentos, a La Paternal se propunha a contrapor à lógica do mercado da arte, à lógica do isolamento, à lógica do consumo, à lógica da indiferença em relação ao outro. Tanto a La Paternal quanto outras experiências surgiram no percurso do desenvolvimento dessa pesquisa: a Platohedro e Casa Tres Patios (Medellín/ Colômbia), Casa do Povo (São Paulo - SP), Casa Tomada (São Paulo - SP), Condôminio Cultural (São Paulo - SP), Vila Tororó (São Paulo - SP), Instituto Procomum (Santos - SP), JA.CA (Nova Lima - MG), Terra Una (Liberdade - MG) entre outras, provocaram-me a possibilidade de pensar a arte como disparadora de processos que se imbricam no tecido social da vida. Era possível reconhecer nas hortas comunitárias, nos espaços de encontro, na partilha das ferramentas (físicas e sociais), a prática de uma inteligência coletiva, crítica, sensível e criativa. Por outro lado, era possível também revirá-las ao avesso e relatar sobre os inúmeros desafios e contradições que estes processos abrigavam, desde o questionamento quanto à disponibilidade para uma experiência de alteridade, até a percepção de que, em certa medida, intervir nas dinâmicas do território e transformá-lo positivamente tornava-o mais interessante para os moradores, mas também aos olhos do capital. Em 2017, fui selecionada para participar do programa de residências no espaço da corporação Platohedro – uma plataforma criativa dedicada à experimentação e criação artística, à investigação da cultura livre e aos processos de aprendizagens não formais, La Paternal Espacio Proyecto (LPEP) é um espaço dedicado a promover o cruzamento entre arte e sociedade, a partir de três eixos de trabalho: programas de investigação e produção, residências artísticas e exposições. Fiz parte da equipe gestão e produção deste espaço, entre julho e dezembro de 2015. Disponível em: www.lapaternal.org. 1
9 situada na cidade de Medellín, na Colômbia. A partir dessa experiência, foi possível vivenciar de forma mais profunda um espaço que pautava o compartilhamento como posicionamento político, no qual a vida coletiva, em suas diversas dimensões, estava no horizonte das ações propostas. Tanto internamente, ao observarmos as metodologias de trabalho, quanto nos projetos e propostas da Platohedro, a convivência tinha um papel central – e neste espaço, aprendi que conviver é necessariamente negociar diferenças diariamente. O terreno em frente à casa-sede funcionava como uma espécie de laboratório que punha em prática estes propósitos e, desde 2011, vinha sendo gerido, ocupado e transformado pelos integrantes da Platohedro, junto aos moradores do bairro, em colaboração com amigos e projetos parceiros. Os ocupantes/gestores afirmam experimentar e construir uma “utopia urbana” a partir de processos comunitários para apropriação comum deste território. “Em que nós desejamos que este lugar se transforme, e como desejamos que isto aconteça?”2, eles questionavam. Eu acrescentaria, ainda: “Como este lugar também pode nos transformar?”. A partir dessas duas experiências, a pesquisa assume seu campo de investigação: o comum. Pensar o comum enquanto uma prática coletiva e social me fez olhar para o mundo e reconhecer em seus detalhes como poderíamos viver juntos3, entre tanta dissonância e singularidade, como se davam esses arranjos cotidianos e quão políticas eram as partilhas diárias. Desta maneira, formulei a hipótese central para este trabalho: podemos afirmar que o dispositivo político do comum opera a partir do campo da arte, possibilitando visionar outros modos de viver e criar coletivamente, em contestação aos sistemas hierárquicos, hegemônicos, ordenadores da vida social? Vale ressaltar que mais do que a noção de “em comum” – ou seja, o que há de igual entre dois entes diferentes – me interessou a ideia do fazer-comum4, que inclui tanto o que é partilhado (os recursos e os espaços, por exemplo) bem como o processo social envolvido nesta partilha. Recorri ao verbo “fazer” justamente para sustentar que o comum, no âmbito desta pesquisa, não seria algo dado e sim produzido. O trabalho foi estruturado da seguinte forma: um prefácio, dois capítulos e um posfácio. Cada capítulo tem sua própria introdução. O percurso se inicia aqui, neste prefácio, no qual estou elencando as motivações e escolhas centrais para a formulação desta pesquisa. Em seguida, dividirei o conteúdo central em dois blocos de reflexão, sintetizados em dois capítulos: (1) a dimensão política do comum e a (2) arte entre as esferas cognitiva, Disponível em: https://vimeo.com/212280445. Expressão faz referência à obra de Roland Barthes, “Como viver junto. Simulações romanescas de alguns espaços cotidianos” (1968). 4 A expressão fazer-comum faz referência ao termo “commoning”, popularizado pelo historiador americano Peter Linebaugh a partir da obra Manifesto da Magna Carta: Liberdades e Commons para Todos (2008). 2
3
10 ético-política e afetiva. E, para encerrar, farei considerações finais no posfácio, para concluir, sem esgotar, as reflexões em questão. No primeiro capítulo, proponho um p lano de voo. Nele irei demarcar a área, formular as bases, estabelecer os alicerces conceituais centrais que irão guiar nosso percurso, para que tenhamos a dimensão política do comum como uma referência para os debates que se seguirão. Em seguida, no segundo capítulo, aterrissaremos em um determinado campo de referências e experiências específicas para pensar a arte entre as esferas cognitiva, ético-política e afetiva na contemporaneidade. Neste capítulo, imagens e pequenos fragmentos trazem a experiência do Jardim Miriam Arte Clube (JAMAC) e sua rede de articulações e conexões. De uma forma geral, tentarei combinar reflexões conceituais e teóricas com experiências concretas. Pensamento e prática irão corroborar para construir caminhos possíveis para se pensar as questões abordadas. É importante frisar que o JAMAC não é um estudo de caso – seria necessário mais tempo e profundidade para construir uma análise coerente com as diferentes camadas e complexidades que abarcam este projeto. Por isso opto por outro tipo de aparição: o JAMAC se configura como um espaço de visualização, por onde o leitor pode se aproximar das questões de forma mais direta e fluída – reforçando que outras naturezas de percepção contribuem também para o pensamento crítico. Neste sentido, trazer à tona a experiência do Jardim Miriam Arte Clube é apresentá-la como um orifício por onde se vê insurgir caminhos possíveis para pensar o comum a partir do campo da arte. Vale uma ressalva quanto ao tempo verbal que será utilizado na escrita deste trabalho, não apenas como uma escolha gramatical, mas como um posicionamento perante o que é desenvolvido. A primeira pessoa do plural sugere aqui um convite para adentrar um nós circunstancial, construindo uma reflexão conjunta – um paradoxo se pensarmos o quão solitário é o processo desta escrita. Trata-se de um recurso de caráter imaginativo que reposiciona o leitor como aquele que, junto, constrói o que está sendo lido e será utilizado em ambos os capítulos5. Coletivizar o ponto de vista é lembrar que acessamos conteúdos vários, o tempo todo; nos contaminamos com o que é visto, dito, pensado; somos implicados em uma rede maior de referências; e nos reinventamos e nos posicionamos no mundo tal e qual. Ainda que este “nós” seja impreciso, seja uma hipótese, assumi-lo é convocar o comum como princípio que nos conduzirá ao longo desta reflexão.
A primeira pessoa do plural será utilizado no capítulo e 1 e 2, enquanto o prefácio e posfácio estarão em primeira pessoa do singular. 5
11 1. A DIMENSÃO POLÍTICA DO COMUM
Não há́ benefício sem participação; e não há participação sem benefício.6 Boaventura de Sousa Santos No intuito de escolher um ponto de partida, nos atentaremos à origem do termo comum para compreender a raiz do seu significado. Se dissecarmos sua etimologia, nos depararemos com o prefixo c o, do latim cum, que significa “mutuamente”, acompanhado de múnus, do latim mūnus, que significa cargo, função, dádiva, graça. Interessante perceber que, ao mesmo tempo que remete à ideia de obrigação, a raiz etimológica do termo está relacionada à ideia de benefício, de forma que ambos – cum e múnus, obrigação e benefício – coexistem em reciprocidade (SANTOS, B. S., 2005). Este movimento constante entre pertencer e ser pertencido será essencial na busca pela significância do comum, no âmbito desta pesquisa. De modo a pensar o contracampo, qual poderia ser a alternativa política ao que vem ocorrendo desde a acumulação primitiva, entendida por Marx como a gênese histórica do capitalismo? Por mais genérico que seja este questionamento, irei atravessar alguns teóricos para entender o comum posto como potência viva de um contragolpe que traz consigo um horizonte político e intelectual relacionado a lutas concretas alternativas ao capitalismo. Desta forma, dividimos este capítulo em três blocos de conteúdo: 1.1 Cercar, cercear e resistir; 1.2 Conceito enquanto prática; e 1.3 Sistemas sociais nas tramas do comum, no intuito de construir uma reflexão acerca da dimensão política do comum. Vale ressaltar que a escolha por esmiuçar e desdobrar conceitualmente o termo no segundo capítulo – e não logo aqui no primeiro – se dá de forma consciente e estratégica. A primeira parte desta caminhada é de reconhecimento das forças que incidem sobre nós, os enunciados de cima para baixo que dizem por onde podemos andar e por onde não podemos, a partir de uma breve leitura crítica desses imperativos que cercam e cerceiam a vida social. Desta forma, o intuito é demarcar, primeiramente, sob quais conjunturas o comum se configura como uma prática anti-hegemônica: se o afirmamos como “contragolpe”, de que “golpe” estamos falando? Apresentaremos alguns aspectos de fases distintas do sistema vigente a fim de reforçar que a sua lógica, seja no seu processo de implementação, seja em seu estado mais recente, é avessa ao princípio político do comum. 6
Santos,
2005, p. 15.
12 Para tal, retornemos, neste primeiro bloco, ao episódio conhecido como “cercamentos”, ocorrido na Inglaterra do século XVII ao XVIII, para defender que a lógica fundamental e permanente do capital parte daí: cercar, privar, privatizar, cercear, coibir, restringir, separar. Saltaremos temporalmente para reconhecer, na fase atual do capitalismo, como o regime de expropriação e exploração sustenta os pilares neoliberais no contexto da globalização. Em contraponto aos vetores hegemônicos que incidem no tecido social e organizam o mundo a partir da lógica do capital, atravessaremos brevemente alguns exemplos de resistência a esses imperativos, no intuito de afirmar que grupos sociais criam alternativas aos modelos dominantes, adotam táticas para intervir ou recriar os sistemas sociais impostos e reivindicam politicamente seus lugares no mundo, numa espécie de ajuste no campo de forças. Abordaremos a resistência da etnia indígena Munduruku, em um contexto específico de intervenção no seu território de forma análoga aos “novos cercamentos”, bem como citaremos o movimento Zapatista e sua posição radicalmente antineoliberal e antiglobalização. Ressalta-se que trazê-los à tona, observando como podem contribuir com aspectos pontuais e estratégicos para esta discussão, não os torna foco de análise desta pesquisa. Não abordaremos as questões relativas às comunidades tradicionais e sua imensidão plural e complexa de atravessamentos. Consideramos arriscado generalizações neste sentido, por isso, vamos nos ater a reconhecer como, politicamente, sua forma de resistir à ordem vigente parte de uma “ecologia do comum” (NEGRI; HARDT, 2016) em situações específicas. Em seguida, a segunda parte deste capítulo é relevante tanto para repensar o que foi lido quanto para o que está por vir. O conceito central que servirá de referência para os desdobramentos que seguem está relacionado à ideia do comum como verbo (LINEBAUGH, 2008). Buscar a dimensão da ação neste termo implica atribuir a ele seu potencial de transformação: é a partir da práxis que a vida coletiva reproduz a vida coletiva; é por intermédio do viver junto e da negociação inerente à partilha da vida (e dos seus inúmeras dilemas) que visionamos novas formas sociais que resistem à ordem vigente. Reuniremos autores e autoras que “comungam” desta perspectiva, que convergem no sentido de pensar o comum como um princípio mútuo de coabitação no mundo, pautado pelo cuidado e pela colaboração. A fim de pensar o sujeito social que põe em prática e se organiza politicamente em torno do comum, convocaremos o conceito de multidão (NEGRI; HARDT, 2005). Em certa medida, o traremos em contraste com as ideias mais convencionais em torno da comunidade da forma como foi historicamente construída. Convocar a multidão é apostar
13 nas singularidades que formam o coletivo, é evidenciar as diferenças que há dentro dos grupos sociais e, mais, é inferir que são elas que movem este corpo em direção à reinvenção do viver junto. Na terceira e última parte, rastrearemos o fazer-comum em diferentes instâncias concretas. Passaremos pela problemática da gestão dos recursos compartilhados, pelas tecnologias livres e cultura do compartilhamento, pelo espaço urbano e, por último, pela proposta epistemológica do B uen Vivir. Escolhemos quatro aspectos a serem evidenciados como critérios de análise que ancoram o conceito e, de certa forma, operacionalizam o comum como um contraprograma. Não sem contradições e limitações, mas apontando para caminhos possíveis de outras formas de relação de nós para com nós e para com o mundo. 1.1
CERCAR, CERCEAR E RESISTIR: BREVE PANORAMA CRÍTICO
1.1.1 Lei do cercamento O intuito ao debruçar sobre o exemplo histórico não é abordar o cercamento como evento isolado, mas compreendê-lo como fato que altera a lógica das relações sociais profundamente: ao cercar, estabelece-se um limite, instituindo a propriedade privada a partir do que antes era comum. Para nós, é justamente a partir desse dispositivo que o capitalismo e, mais recentemente, o neoliberalismo continuarão se apropriando de forma privada dos bens comuns em um sentido cada vez mais expandido – da água à subjetividade humana. É por considerar importante nos debruçarmos sobre essa construção lógica que acionamos esse momento de transição para o capitalismo, pois entendemos que ele institui também uma chave de análise sobre o capital, que serve para compreender como essa lógica se transmuta e se reproduz até os dias de hoje. A política dos cercamentos na Inglaterra, entre os séculos XVI e XVIII, promoveu a concentração de riqueza e a necessidade iminente de os plebeus venderem sua força de trabalho. As terras cercadas pela nobreza para a produção de lã, antes compartilhadas, representam justamente a separação dos camponeses dos seus meios de produção. Para Karl Marx, esse episódio é responsável por criar as condições para o surgimento do modo de produção capitalista, referindo-se a ele através do conceito de acumulação primitiva. Os cercamentos expropriaram as terras camponesas com o intuito de promover o acúmulo do capital, impedindo o uso coletivo e deslocando a população do campo para a cidade, sendo apontado como um dos motivos para o surgimento da proletarização. É
14 importante notar que os processos de desapropriação se dão sob condições violentas e arbitrárias, e é neste momento que surge a noção de propriedade privada tal como entendemos hoje, uma vez que as terras passam a ser encaradas como mercadoria e a ter valor de troca. Para De Angelis (2001, n.p.): De acordo com uma das mais correntes interpretações tradicionais, o conceito de Marx de acumulação primitiva refere-se ao processo histórico que deu origem às pré-condições de um modo de produção capitalista. Essas pré-condições se referem principalmente à criação de uma secção da população, sem outros meios de subsistência, senão a sua força de trabalho para ser vendida num nascente mercado de trabalho e à acumulação de capital que pode ser usado em indústrias nascentes. Partimos de um pressuposto importante pautado pelo professor e pesquisador Massimo De Angelis7. Diferente de uma leitura marxista ortodoxa, na qual a acumulação primitiva é compreendida como um período que antecede o capitalismo – o primeiro como pré-condição do segundo; Angelis defende que a acumulação primitiva é uma característica contínua e permanente da lógica do capital, porque “o pré-requisito extra econômico da produção capitalista – aquilo que chamamos de acumulação primitiva – é uma condição inerente e contínua das sociedades modernas e o seu campo de ação se estende ao mundo inteiro” (DE ANGELIS, 2001, n.p.). Mais que interessados em um aprofundamento neste evento histórico e suas possibilidades de interpretação, referenciá-lo é sustentar a ideia de que permanecemos tendo a vida coibida, restringida, visto que as cercas e a propriedade são, simbólica e literalmente, estruturas fundantes do modo capitalista de produção. Devemos atentar para a importância que os recursos comuns abertos e disponíveis tinham para o sustento dessas comunidades na Inglaterra pré-industrial e como o impedimento massivo do acesso a esses recursos “contributed to mass poverty among the commoners, to mass migration and mass criminalization, especially of the migrants” (DE ANGELIS, 2010, n.p.)8. Neste sentido, assumimos a proposta de atualização do termo clássico marxista para dar conta de sua inserção de forma mais ampla, substituindo o termo “primitivo”, que sugere relação com a ideia de acumulação prévia – referindo-se à origem do capitalismo –,
Massimo De Angelis (Roma, 1954) é professor de Economia Política na Universidade de East London, na Inglaterra. Sua pesquisa se concentra na globalização, nos movimentos sociais e na leitura política da narrativa econômica, tendo pesquisado e escrito extensivamente sobre a noção do “commons”. Ele é autor, mais recentemente, de O mnia Sunt Communia (2017) e de O Início da História: lutas pelo valor e capital global (2007). Além disso, é editor da revista on-line The Commoner. 8 “Isso contribuiu para a pobreza em massa entre os plebeus, para a migração em massa e para a criminalização em massa, especialmente dos migrantes” (Tradução nossa). 7
15 por acumulação por despossessão (HARVEY, 2014). O geógrafo britânico David Harvey9, assim como Massimo De Angelis, defende a permanência da lógica da desapropriação, consolidando um regime de acumulação por diversos meios, que passam a extrapolar a questão fundiária para atravessar diferentes âmbitos – em sua maioria, processos marcados por toda sorte de violência. Conforme relaciona o sociólogo Michael Levin (2014), a acumulação por desapropriação representa um avanço significativo em relação à acumulação primitiva, justamente em virtude de sua capacidade de compreender diversas desapropriações contemporâneas em suas formas específicas aos seus setores e localizações geográficas dispersas e cuja relevância para o capital – pelo menos em seu sentido aproximado – se encontra mais no bem expropriado do que no dono desapropriado (a primeira das transformações de Marx) (p. 15). Ou seja, os novos cercamentos demonstram o desenvolvimento capitalista ao assumir novas roupagens e condições para permanecer tal e qual. Conforme afirma Massimo De Angelis: The neoliberalism was rampaging around the world as an instrument of global capital. Structural adjustment policies, imposed by the IMF (International Monetary Fund), were promoting enclosures of “commons” everywhere: from community land and water resources to entitlements, to welfare benefits and education; from urban spaces subject to new pro-market urban design and developments to rural livelihoods threatened by the “externalities” of environmentally damaging industries, to development projects providing energy infrastructures to the export processing zones. These are the processes referred to by the group Midnight Notes Collective as “new enclosures” (DE ANGELIS, 2010, n.p.).10 1.1.2 O neoliberalismo e a lógica do capital
David Harvey (INGLATERRA, 1935) é um geógrafo britânico marxista, reconhecido internacionalmente por seu trabalho de vanguarda na análise geográfica das dinâmicas do capital. É professor de antropologia da pós-graduação da Universidade da Cidade de Nova York (The City University of New York – Cuny) e trabalha com temas ligados à geografia urbana. 10 “O neoliberalismo estava furioso em todo o mundo como um instrumento do capital global. As políticas de ajuste estrutural, impostas pelo FMI (Fundo Monetário Internacional), estavam promovendo cercas de “comuns” em todos os lugares: da terra comunitária e dos recursos hídricos aos direitos, aos benefícios previdenciários e à educação; de espaços urbanos sujeitos a novos projetos urbanos pró-mercado e desenvolvimentos para meios de subsistência rurais ameaçados pelas “externalidades” de indústrias prejudiciais ao meio ambiente, a projetos de desenvolvimento fornecendo infraestruturas de energia para as zonas de processamento de exportação. Estes são os processos referidos pelo grupo Midnight Notes Collective como ‘new enclosures’”(Tradução nossa). 9
16 Pensar o mundo hoje é reconhecer, de forma geral e ampla, os fracassos e horrores do capitalismo global moderno que se alastram em boa parte do mundo, em suas diversas dimensões. Devemos supor, evidentemente, que a pequena parcela da sociedade que se beneficia diretamente da exclusão e da desigualdade para se manter no “topo” dela não concorda com esta afirmação. Vale lembrar que seis brasileiros – todos homens, todos brancos – concentram a mesma quantidade de riqueza que a metade mais pobre da população, isto é, mais de 100 milhões de pessoas11. Portanto, seguimos a evidência apontada por De Angelis (2010) e por Harvey (2014) de que o sistema vigente é fruto da permanência da lógica dos cercamentos, do banimento, da escassez, poucos em detrimento de muitos, estruturas de poder que moldam modos de vida e subjetividades. Tenhamos como premissa que um sistema baseado no lucro e na acumulação de riquezas, no qual os modos de produção são privados, necessariamente estabelece formas de dominação entre os que têm e os que não têm, os que podem e os que não podem, formas de dominação relacionadas a fatores sociais, étnicos, geográficos, políticos, entre outros. Para construirmos uma breve crítica acerca da conjuntura que vivemos hoje, retornemos para o fim do século passado. A derrocada do muro de Berlim e a dissolução da União Soviética confirmam o triunfo de um sistema que estabelece a dissolução das fronteiras para um fluxo global do capital (e não para as pessoas), autorregulado pelo mercado e marcado pela privatização como alicerce fundamental, no qual o Estado passa a ser uma peça fundamental na consolidação e reprodução da vida neoliberal. Podemos falar em um “declínio do modelo estatal de revolução que durante décadas consumiu os esforços dos movimentos radicais para construir uma alternativa ao capitalismo”, conforme afirma Silvia Federici (2018, n.p.). Afirmar isto não é negar o papel do Estado, em diferentes momentos da história, como contraponto justamente à lógica do mercado, mas é salientar que nem por isso foram agentes na redistribuição de riqueza, como o próprio estado de bem-estar social, por exemplo. O protagonismo do Estado não necessariamente solucionou os problemas intrínsecos ao modelo capitalista; ao contrário, cumpriu, na maior parte das vezes, um papel dentro dele, ora mais conservador ora mais progressista, ora mais regulador ora mais ausente. Para compreender esse processo, vale adentrar as análises de Boaventura de Sousa Santos (2002) sobre a globalização hegemônica e as formas de governar do neoliberalismo.
11
Dados oferecidos pela Oxfam Brasil, entidade que, junto com outros 19 países membros, forma uma cooperação internacional que trabalha no combate à pobreza, às desigualdades e às injustiças sociais. Disponível em: https://www.oxfam.org.br. Acesso em: 10 abr. 2019.
17 Os processos de globalização e as ciências sociais”, obra lançada no princípio deste milênio, caracteriza a globalização pela “intensificação das interações econômicas, políticas e culturais transnacionais” que “inaugurou um novo período e um novo modelo de desenvolvimento social (SANTOS, B. S., 2002, p. 89). Boaventura já se referia às intensas contradições deste processo que perpetuavam as profundas assimetrias sociais entre os diferentes países ou regiões do mundo há quase três décadas atrás. Do artigo intitulado “A crítica da governação neoliberal: O Fórum Social Mundial como política e legalidade cosmopolita subalterna” (SANTOS, B. S., 2005), nos interessam os argumentos deste sociólogo português no intuito de elucidar as matrizes políticas que sustentam essa nova governabilidade: em vez de transformações sociais, a resolução de problemas; em vez da participação popular, participação dos titulares de interesses reconhecidos (stakeholders); em vez do contrato social, a autorregulação; em vez da justiça social, jogos de soma positiva e políticas compensatórias; em vez de relações de poder, coordenação e parcerias; em vez de conflitualidade social, coesão social e estabilidade dos fluxos (SANTOS, B. S., 2005, p. 14). A “governação” neoliberal, para o autor, consiste justamente nesta aliança da exigência de participação e de inclusão com a exigência de autonomia e de autorregulação, havendo a troca do léxico, mas não a substituição do modo liberal de operar: temos nossas vidas mercantilizadas em todas as esferas, inclusive naquelas que o Estado gere (SANTOS, B. S., 2005). O discurso de que todos são incluídos por meio do conceito de “diversidade”, amplamente adotado, por exemplo, não reconhece a diferença, tampouco a existência daquilo que não está dentro dos seus princípios de seletividade, do que escapa ao seu crivo. “Neste caso, contudo, os excluídos, em vez de estarem presentes como excluídos, estão completamente ausentes” (SANTOS, B. S., 2005, n.p.). O que nos parece é que as pautas sociais e ambientais são muitas vezes incorporadas nas diretrizes políticas, desde que conciliadas com os interesses do mercado, passando longe das mudanças estruturais, formuladas de cima para baixo. E, pior, passam a ser exploradas na lógica do consumo, afinal de contas, tudo pode ser vendido, inclusive modos de vida. Devido ao processo que foi denominado pela cientista política Evelina Dagnino como “confluência perversa” para referir-se à apropriação das pautas oriundas da efervescência participativa por narrativas neoliberais rumo à uma democracia elitista e restrita (DAGNINO, 2004, p. 144-145), entendemos que é do interesse estratégico do Estado e do mercado atentar-se a dimensões da vida coletiva, sobretudo aos recursos
18 comuns compartilhados pela sociedade. Surge daí um tal “ecocapitalismo”, que faz com que instituições financeiras como o Banco Mundial, por exemplo, a pretexto de proteger a biodiversidade e conservar os bens comuns globais, (...) [tenha transformado] florestas tropicais em reservas ecológicas, [expulsado] as populações que delas tiravam seu sustento havia séculos, ao mesmo tempo assegurando o acesso àqueles que podem pagar, pelo ecoturismo, por exemplo (FEDERICI, 2018, n.p.). Os bens comuns entram para o discurso, a inclusão e a participação também, mas o que vemos é uma incompatibilidade entre a ideia de sustentabilidade e responsabilidade socioambiental e o modelo de desenvolvimento pautado pela exploração, expropriação e acumulação. “O capitalismo só é verde nas cédulas do dólar, não é verde em nenhum outro sentido” (SANTOS, B. S., 2012, n.p.), comenta Boaventura. A lógica neoliberal prevê tais “disfarces” no campo discursivo como um alinhamento a um projeto político que não lhe pertence. Na prática, seguimos nos deparando com as cercas que mercantilizam a vida, agora reformuladas, muitas vezes invisíveis e dispostas a tudo subjugar, inclusive a nossa própria subjetividade.
1.1.3 Lugares de subordinação Neste sentido, reiteramos o neoliberalismo como um sistema de dominação e privação que alcança inclusive as camadas mais profundas do indivíduo, como seus desejos, sentimentos e percepções. A estratégia do pensamento neoliberal, ao pautar o sistema de livre mercado como a melhor maneira possível de organizar a sociedade, nos faz crer que nossos desejos e escolhas são também livres e independentes, como se nossa subjetividade – nossa produção de si no mundo – não fosse igualmente construída a partir dos mecanismos de poder e controle que incidem sobre nós. Desta forma, sob a chancela da liberdade, vende-se a primazia do indivíduo em detrimento do coletivo, com o que não se busca implicação na trama social, ou seja, enquanto se pensa que a individualização da vida é sinônimo de liberdade, trata-se, na realidade, de mais uma forma de aprisionamento e empobrecimento do sujeito contemporâneo. Os filósofos Antonio Negri e Michael Hardt12, em “Isto não é um manifesto” (2016), reiteram o triunfo do neoliberalismo e apontam para a fabricação de figuras “despotencializadas” do poder das suas singularidades, assujeitadas, que vivem uma Antonio Negri (ITÁLIA, 1933) é um filósofo político marxista; Michael Hardt (Estados Unidos, 1960) é um teórico da literatura e filósofo político estadunidense. 12
19 espécie de “enclausuramento de subjetividades” (NEGRI; HARDT, 2016) no contexto da crise social e política corrente. Este regime de submissão traz o mercado financeiro como protagonista, não só determinando a geopolítica do mundo a partir da distribuição de poderes, mas também interferindo na construção do sujeito e de seus modos de vida. Conforme sinalizam os autores, “o capital explora progressivamente toda gama de nossas capacidades produtivas, nossos corpos e mentes, nossa capacidade de comunicação, nossa inteligência e nossa criatividade, nossas relações afetivas mútuas etc.” (NEGRI; HARDT, 2016, p. 24). Desta constante exploração e alienação, Negri e Hardt (2016) sistematizam os principais lugares de subordinação da subjetividade que encontramos hoje, nesta fase do capitalismo, caracterizando quatro condições de assujeitamento centrais para o neoliberalismo: o endividado, o mediatizado, o securitizado e o representado. Para eles, a hegemonia das finanças e dos bancos produziram o endividado. O controle das informações e das redes de comunicação criam o mediatizado. O regime de segurança e o estado generalizado de exceção construíram a figura oprimida pelo medo e sequiosa de proteção: o securitizado. E a corrupção da democracia forjou uma figura estranha despolitizada: o representado (NEGRI; HARDT, 2016, p. 21). Estes regimes de opressão – a dívida, a mídia, o medo e a despotencialização política – nos limitam subjetivamente e nos isolam, funcionando metaforicamente como cercas. Para os autores, estas nos separam justamente do que podemos fazer, pois “quando você se verga sob o peso da dívida, quando sua atenção está hipnoticamente dirigida para a tela, quando você transformou sua casa numa prisão, você percebe o quanto a crise capitalista individualiza” (NEGRI; HARDT, 2016, p. 50). No entanto, afirmam que é sobre e contra estas figuras que os movimentos de resistência devem agir, no sentido “não só de recusar essas subjetividades, mas também de invertê-las e criar figuras capazes de expressar sua independência e seus poderes de ação política” (NEGRI; HARDT, 2016, p.22). Através desse caminhar, buscamos chamar atenção para a transmutação da apropriação capitalista enquanto barreiras físicas de separações diversas, e de reconhecê-las como gesto inaugural que estrutura o capitalismo, sendo incansavelmente repetido e “refinado” nas últimas três décadas pelo repertório neoliberal, seja nas desapropriações pela gentrificação, seja pela pressão do agronegócio, seja no controle e aprisionamento de corpos e mentes.
20 1.1.4 Ocupar e resistir: focos de insurgência Evocamos novamente o pensamento de Negri e Hardt (2016), agora para refletir sobre a existência de um “kairós da resistência” e de um “kairós da comunidade” (NEGRI; HARDT, 2016, p. 51), no sentido oposto ao das forças dominantes apresentadas anteriormente, isto é, em contraponto a elas. Kairós, na mitologia grega, compreende o tempo em sua natureza qualitativa (e não cronológica), no sentido da experiência do momento oportuno. Pensar a condição coletiva de empobrecimento, angústia e solidão que desmantela a potência das singularidades, conforme vimos, faz deste um momento chave para, coletivamente, tomar uma “decisão de ruptura” e partir para “uma proposição de agir juntos”. “Devemos descobrir uma força que reconecta a ação de estar juntos” (NEGRI; HARDT, 2016, p. 51). Sobre resistir coletivamente diante da ameaça constante dos interesse do mercado e do Estado, observemos como a reivindicação pelo uso comum da terra e pela participação na gestão de territórios, feita por aqueles que ali vivem, se dá no contexto dos indígenas da etnia Munduruku, a fim de examinarmos os imperativos, tanto do mercado quanto do Estado, que incidem sobre o território e na vida desta comunidade. A intervenção da “governação neoliberal” (de que falamos anteriormente através de Boaventura) vai além da expropriação das terras em si – modos de vidas são também desapropriados, ou seja, desapossam os povos indígenas tanto na dimensão do espaço físico quanto no da sua relação com aquele lugar e todas as dimensões simbólicas envolvidas neste elo. Para contextualizar, devemos nos atentar ao fato de que o projeto do Governo Federal de construção de um complexo de hidrelétricas possui muitas já implantadas e em funcionamento, outras seguem em avaliação e, a maior delas, a usina São Luiz, foi embargada, devido a não ter obtido licenciamento do Ibama13. O projeto ameaça a vida de mais de doze mil indígenas Munduruku que vivem ao longo do Rio Tapajós e seus afluentes. Um “projeto de morte”, diz Ana Alaíde Barros, ativista do movimento Xingu Livre para Sempre, em sua participação no documentário “Índios Munduruku: tecendo a resistência” (2014)14. Neste documentário, o depoimento de Raoni Valle, arqueólogo da Universidade Federal do Oeste do Pará, reitera que a região tem indícios de onze mil e duzentos anos de ocupação humana. No início, eram pequenos grupos seminômades que foram se 13
Conforme matéria do Jornal Extra de junho de 2018. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/economia/estudos-sobre-hidreletricas-do-complexo-tapajos-tem-pra zo-ampliado-ate-fim-de-2019-22744007.html. Acesso em: 20 mai. 2019. 14 Disponível em: https://vimeo.com/112160970. Acesso em: 10 mai. 2019.
21 desenvolvendo e se tornaram o que hoje são, entre outros, os Munduruku. “A história natural da Amazônia é uma história cultural” (VALLE, 2014), afirma o arqueólogo. Neste mesmo sentido, Bruna Rocha, também arqueóloga da Universidade Federal do Oeste do Pará, reforça que a história desses povos não é escrita, mas contada a partir de lugares como o rio Tapajós, e, se destroem o rio, destroem a referência de memória destes povos. A barragem Teles Pires foi construída ao longo da cachoeira Sete Quedas, sagrada para os Munduruku, Kayabi e Apiacá porque para eles esse é o lugar onde o mundo começou. (Para um ocidental) é como se dinamitassem Jerusalém ou o Vaticano (ROCHA, 2014, n.p.). Vale ressaltar que os mecanismos adotados, como as consultas públicas, por exemplo, não são suficientes para sustentar o discurso acerca da participação desses indígenas nas decisões sobre o território que os envolve. Tais processos são conduzidos politicamente e pressupõem a compreensão da linguagem das entidades que os formulam, não representando de fato um instrumento de escuta efetivo (VALLE, 2014). A ocupação do canteiro de obras da Usina de São Manoel pelos indígenas da etnia Munduruku, ocorrida em julho de 2017, evidencia a dimensão política da vida coletiva e tudo o que envolve essa partilha. A ação foi um encaminhamento do encontro de mulheres da tribo, sendo conduzida pacificamente por lideranças femininas, que reivindicam doze urnas funerárias, objetos sagrados para os Munduruku, que haviam sido retiradas em 2014 sem permissão pela Companhia Hidrelétrica de Teles Pires e inseridas no museu da própria Usina. O sagrado, conforme consta no manifesto15, é parte do que são, de como vivem, um “comum” compartilhado que posiciona eles no mundo, orienta suas ações, confere significados diversos, explica a própria existência. É importante evidenciarmos o quanto, neste corpo de reivindicações, se reforça o desejo de mais autonomia em relação ao seu território e a maior escuta do poder público, enfatizando a importância da demarcação das terras indígenas para garantir-lhes uma série de proteções e direitos. Haveria muito o que se desdobrar a partir da relação entre o comum e a etnia Munduruku, mas não daremos conta de aprofundar essa discussão com o devido cuidado. Nesta breve explanação, nos interessa tanto identificar as armadilhas da governação liberal quanto observar no que consiste a reivindicação – o que está sendo demandado e como se demanda.
15
Disponível em: https://medium.com/f%C3%B3rum-teles-pires/somos-feitos-do-sagrado-a82afd45a1b4. Acesso em: 20 mai. 2019.
22 A ênfase no episódio relacionado à musealização das urnas contribuí para visualizarmos como a lógica neoliberal intervém no campo simbólico partilhado por esta comunidade. O processo de expropriação pelo qual se destitui dos indígenas elementos de sua cultura e os realocam dentro de uma lógica externa a eles – inserindo os seus objetos sagrados em um contexto museográfico e expositivo próprio do mundo ocidental – interfere diretamente na relação subjetiva dos indígenas com sua própria existência, individual e coletiva. Outro exemplo que pode nos auxiliar a compreender essas imbricações foi a privatização das terras de propriedade coletiva, conhecidas como “ejidos”, no México, que levou à insurreição do movimento Neozapatista16, no começo da década de 1990. Mais uma vez, o ataque ao uso comum dos recursos reforça a ferocidade do sistema neoliberal, episódio, neste caso, relacionado ao favorecimento do Tratado de Livre-Comércio da América do Norte (NAFTA) entre empresas transnacionais e os governos do México, dos Estados Unidos e do Canadá. Como reação, uma série de levantes e mobilizações por todo o país irromperam em 1994, levando a acordos que consistiam no reconhecimento, por parte da sociedade, do governo e da comunidade internacional, da existência das comunidades indígenas mexicanas. Desta forma, se constrói um sistema social altamente complexo que se torna uma afronta ao sistema vigente. Mais de 600 organizações, incluindo camponesas, indígenas, estudantis, sindicais, entre outras, formam uma rede de cooperação que experimenta um modelo alternativo de sociedade, radicalmente contra o neoliberalismo. Conforme aponta o sociólogo e pesquisador mexicano Adrián Sotelo Valencia17, se pode definir o movimento Zapatista como um modelo de democracia direta e radical experimentado pelas cerca de centro e cinquenta mil pessoas estabelecidas em cinco cidades da região de Chiapas. Essa população vive do cultivo de subsistência (café, feijão, milho, chilli), vende o excedente para arrecadação de fundos e exerce cotidianamente a autogestão, o que inclui um sistema próprio de saúde, de justiça e de educação. As escolas das comunidades zapatistas, por exemplo, seguem uma metodologia particular de ensino, que inclui aulas do idioma maya (VALENCIA, 2015, n.p.). O movimento tem vínculos estreitos com o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que representa a “continuidade histórica da vertente radical da Revolução Mexicana Refere-se ao movimento Zapatista também como “neozapatismo”, pois este inspirou-se na luta de Emiliano Zapata contra o regime autocrático de Porfirio Díaz que encadeou a Revolução Mexicana em 1910. 17 Na enciclopédia Latino-Americana organizada pela editora Boitempo. 16
23 encabeçada por Emiliano Zapata” (VALENCIA, 2015, n.p.). Desde então, muitas etapas de uma luta em prol da sua emancipação e de seus direitos têm ocorrido, exigindo que se cumpram os acordos estabelecidos e tentando conter a invasão do seu território. Em 2006, na tentativa de ampliar e recrutar para além do campesinato-indígena zapatista, tentou-se incorporar ao movimento o conjunto das classes sociais exploradas do México, mediante a construção de um projeto alternativo de nação. Na eleição de 2006, o movimento lançou uma campanha, chamada de “Outra Campanha”, que propunha uma nova constituição, partindo dos interesses e necessidades dos explorados, promulgando “princípios de democracia desde a base, igualdade, justiça social e novas relações sociais anticapitalistas e antineoliberais” (VALENCIA, 2015), reunindo, em torno desta proposta, diversas organizações de esquerda, grupos sociais, associações não governamentais e pessoas de praticamente todo o país. Mais do que à oposição em si, chamemos a atenção para como um foco de resistência ao programa de poder pode desembocar em um contraprograma, um contragolpe, uma “outra” plataforma política e outros princípios de vida em sociedade. Para concluir – haveria inúmeras questões a serem abarcadas acerca do movimento Zapatista, mas, assim como com as questões indígenas, não daremos conta da sua complexidade e especificidade aqui – evocamos o discurso emblemático acerca do comandante Marcos, líder do movimento, um representante que não mostra o rosto justamente pela possibilidade de ser qualquer um dos representados por ele: Marcos é gay em São Francisco, negro na África do Sul, asiático na Europa, hispânico em San Isidro, anarquista na Espanha, palestino em Israel, indígena nas ruas de San Cristóbal, roqueiro na cidade universitária, judeu na Alemanha, feminista nos partidos políticos, comunista no pós-guerra fria, pacifista na Bósnia, artista sem galeria e sem portfólio (...) e, sobretudo, zapatista no Sudoeste do México. Enfim, Marcos é um ser humano qualquer neste mundo. Marcos é todas as minorias intoleradas, oprimidas, resistindo, exploradas, dizendo ¡Ya basta! Todas as minorias na hora de falar e maiorias na hora de se calar e aguentar. Todos os intolerados buscando uma palavra, sua palavra. Tudo que incomoda o poder e as boas consciências, este é Marcos. Às vezes é necessário cobrir o rosto para mostrar a realidade (MOVIMENTO ZAPATISTA, 2019, n.p.). Com isso, vemos que, dentro de um sistema avassalador, há quem o freie, há quem opere internamente desvios, há quem criativamente o reinvente. Entre massacres e conquistas, seguimos. O que essas experiências teriam em comum com a dimensão política do comum? Alguns aspectos são óbvios e já puderam ser observados na reflexão que tecemos, mas o que entendemos por comum e como ele se configura como um modo de
24 operar e construir alternativas frente aos regimes hegemônicos? Discorreremos, na segunda parte deste capítulo, sobre o conceito de comum e sobre como defenderemos ele neste trabalho. 1.2
CONCEITO ENQUANTO PRÁTICA
1.2.1 Comum como verbo A partir de agora, nos dedicaremos a compreender a ideia do comum como um princípio que conecta sujeitos e que os fazem partilhar práticas orientadas pelos interesses de uma vida compartilhada. De forma recíproca (conforme exposição inicial da sua etimologia), a prática do comum e pelo comum evoca corpos implicados na tessitura da vida social, que tanto se responsabilizam como usufruem, ao mesmo tempo em que deliberam, criando normas de uso e aplicando decisões. Para dar partida à conceituação do comum, utilizaremos a obra “Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI” (2017), na qual os filósofos franceses Pierre Dardot e Christian Laval tecem uma reflexão profunda a partir da arqueologia do conceito, afirmando que “o termo ‘comum’ é particularmente apto a designar o princípio político da coobrigação para todos e todas que estejam engajados numa mesma atividade – de acordo com um sentido mais amplo do que o da estrita ‘função” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 25). Interessa observar como esses autores formulam o comum em oposição à noção que recorrentemente o termo carrega: “o comum não é um bem, e o plural nada muda nesse aspecto, porque ele não é um objeto ao qual deva tender vontade, seja para possuí-lo, seja para constituí-lo” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 51). Assim, optam por entendê-lo enquanto força de ação que engaja sujeitos em uma mesma atividade, mantendo níveis de relação no sentido de uma coexperiência que os mantém conectados, numa espécie de regência mútua daquilo que é partilhado. É bastante recorrente esbarrar-se numa concepção de comum pautada pela teologia, pelo discurso político e/ou pela economia, como quando nos deparamos com as expressões “bem comum”, “patrimônio da humanidade”, “produção de bens comuns”. Estas noções permeiam nosso imaginário, que historicamente foram construídas dentro da estrutura de poder da igreja ou do Estado e nos conduzem a pensar o comum como algo dado e não como um processo social. Para os autores, é necessário desconfiar destas designações a fim de buscar a potência ativa do comum enquanto uma força contra hegemônica, tecida na
25 dimensão horizontal das relações dos sujeitos com o mundo, afinal, compreendemos que o “comum é o princípio político a partir do qual devemos construir comuns e ao qual devemos nos reportar para preservá-los, ampliá-los e lhe dar vida. É por isso mesmo, o princípio político que define um novo regime de lutas em escala mundial” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 54). Uma metáfora em que podemos visualizar o comum enquanto um princípio é quando pensamos em um rio que percorre diferentes terras e perpassa a vida de diferentes pessoas: não é o rio que é comum, comum é a nossa relação com ele, numa espécie de recíproca na qual a dádiva de tê-lo (não como bem, mas como direito de uso) é a mesma responsabilidade de mantê-lo, estabelecendo necessariamente um fluxo de relação com aqueles igualmente atravessados, mas também necessariamente engajados, por esse comum. Para Laval e Dardot (2017), “somente a atividade prática dos homens pode tornar as coisas comuns, do mesmo modo que somente essa atividade prática pode produzir um sujeito coletivo, em vez de afirmar que tal sujeito preexista a essa atividade na qualidade de titular de direitos” (p. 52); o “comum do comunismo” aqui não pode ser encontrado em um “Objeto” é um processo de diferenciação, de abertura singular que resiste a qualquer identidade, medida ou regra de comensurabilidade (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 53). O termo “commoning” foi popularizado pelo historiador Peter Linebaugh (2008)18 ao se referir ao commons a partir do seu verbo, afirmando que, a partir deste, melhor se compreende o termo. “To speak of the commons as if it were a natural resource is misleading at best and dangerous at worst – the commons is an activity and, if anything, it expresses relationships in society that are inseparable from relations to nature”19 (LINEBAUGH, 2008, p. 279). Desta forma, a fim de firmar a ideia do comum como verbo – e pela falta de uma tradução compatível ao termo “commoning” – utilizaremos também a expressão f azer-comum justamente para evidenciá-lo enquanto uma práxis. Mais uma vez, recorremos a Antonio Negri e Michael Hardt, em sua obra “Bem-estar comum” (2016), terceiro livro da trilogia que traz antes as edições intituladas “Império” Peter Linebaugh é professor de história na Universidade de Toledo e escreveu extensamente sobre temas correlatos ao comum. Em um dos seus livros mais conhecidos o M anifesto da Magna Carta: Liberdades e Commons para Todos (2008), ele apresenta o documento fundador da democracia anglo-americana reforçando a centralidade dada às questões relativas ao uso compartilhado dos bens comuns para contemplar as necessidades básicas dos cidadãos. 19 Falar dos bens comuns como se fosse um recurso natural é na melhor das hipóteses enganoso e, na pior das hipóteses, perigoso - o commons é uma atividade e, no mínimo, expressa relações na sociedade que são inseparáveis das relações com a natureza. (Tradução nossa) 18
26 (2001) e “Multidão” (2005) – deste último, falaremos mais adiante. Ambos corroboram para a ampliação do conceito do comum no sentido de ir além da ideia de recursos e incorporar a ideia do comum enquanto uma produção relacionada a práticas sociais coletivas (NEGRI; HARDT, 2016). “Este comum é não só a terra que compartilhamos como também as linguagens que criamos, as práticas sociais que estabelecemos, os modos de sociabilidade que definem nossas relações” (NEGRI; HARDT, 2016, p. 162). Os autores partem do comum como aquilo que escapa ao público e ao privado, sendo uma terceira via, que representa uma alternativa radical ao binarismo composto fundamentalmente pela oposição mercado e Estado. “O projeto político de constituição do comum, que desenvolvemos, neste livro, opera um corte transversal nessas falsas alternativas – nem privado nem público, nem capitalista, nem socialista – abrindo um novo espaço para política” (NEGRI; HARDT, 2016, p. 9). Se entendemos que a propriedade privada, conforme já repetimos algumas vezes, é central para a lógica do capitalismo, romper com ela é romper com seu epicentro – não recorrendo à estatização e sim pensando a propriedade como direito de uso coletivo, articulado, autogerido e autorregulado. O que não significa que excluímos a presença ativa do estado no que tange as problemáticas sociais, diante os âmbitos da vida, em seus diversos níveis e possibilidade de atuação. Por muitas vezes, fazê-lo mediador e aliado é fundamental, atentar as suas intervenções no desenvolvimento do território e na vida dos sujeitos que ali habitam também. Mas, aqui, nos interessa a pensar para além do estado, os formatos possíveis que se dão na escala da relação entre os criadores, usuários, gestores, ou melhor, entre todos os personagens da cadeia, que compartilham realidades e cotidianos, virtuais ou presenciais, partilhando dos recursos, estratégias, espaços de troca, enfim, uma infinidade de relações e usos. Convergimos com a ideia de que O comum que compartilhamos, na realidade, é menos descoberto que produzido. (...) Nossa comunicação, colaboração e cooperação não se baseiam apenas no comum, elas também produzem o comum, numa espiral expansiva de relações. Esta produção do comum tende a ser central a todas as formas de produção social, por mais acentuado que seja o seu caráter local, constituindo, na realidade, a característica básica das novas formas dominantes de trabalho hoje (NEGRI; HARDT, 2005, p. 14).
27 Nos interessa, neste trabalho, ver o comum a partir destes circuitos heterogêneos de comunicação, cooperação e colaboração – funcionando tal qual uma espiral crescente, retroalimentando os recursos e as relações que o mantêm, produzindo o comum e nutrindo-se a partir dele. Novamente, nos remetemos à ideia de um sistema de reciprocidade e exploraremos mais adiante como se formam esses circuitos no contexto da arte. Entendemos que é nesta rede de articulação entre agentes, ferramentas, espaços e ações coletivas que se dá uma “ecologia do comum” (NEGRI; HARDT, 2016), na qual constantes tomadas de decisão coletivas, bem como negociações das diferenças, constroem uma vida compartilhada. Entendemos a ecologia do comum como “uma ecologia centrada igualmente na natureza e na sociedade, nos seres humanos e no mundo não humano, numa dinâmica de interdependência, cuidado e transformação mútua” (NEGRI; HARDT, 2016, p. 196). Negri e Hardt (2016), ao mesmo tempo em que se alinham ao marxismo operário, incorporam as perspectivas do pós-estruturalismo francês, neste caso, utilizando o conceito de biopolítica de Foucault. Para eles, o comum como prática se dá justamente no seio da produção biopolítica20, em que formulamos outros modos de viver socialmente e outros modos de nos posicionarmos no mundo, sendo, portanto, o território político onde se dá a resistência e a criação de novas subjetividades (NEGRI; HARDT, 2016). Desta forma, concebemos a produção coletiva do comum como uma intervenção nas atuais relações de força, com o objetivo de subverter os poderes dominantes e reorientar as forças em determinada direção. Entretanto, diante de uma sociedade plural e complexa, “a questão é saber se essas singularidades podem agir juntas politicamente e de que maneira” (NEGRI; HARDT, 2014, p. 35). Como pensar o sujeito social e seu campo de relação? Com este questionamento, seguiremos para o próximo bloco de questões, que convoca o conceito de multidão a fim de pensá-lo como uma tática do estar-junto, como parte do contraprograma político do comum, renunciando às ideias em torno da comunidade como um grupo coeso de vínculos permanentes.
1.2.2 Da comunidade à multidão 20
A noção de biopolítica, a partir da leitura de Negri e Hardt acerca do conceito de Foucault, está relacionada aos poderes produtivos localizados na vida, ou seja, a produção de afetos e linguagens a partir da cooperação social e da interação de corpos e desejos, a invenção de novas formas de relação com o self e com os outros, assim por diante, conforme afirma a biopolítica como criação de novas subjetividades, apresentadas ao mesmo tempo como resistência e de subjetivação (HARDT; NEGRI, 2016).
28 Optamos aqui por pensar a comunidade sem pressuposto – ou seja, partimos da ideia de que não há algo anterior que te faça pertencer a determinado grupo. Busquemos fugir dos essencialismos atrelados à ideia de comunidade, como está relacionada à família natural, as comunidades cristãs, as corporações, as irmandades, entre outras formas de reunião e vinculação a priori, modelos que proclamam suas condições de pertença de fora para dentro. Busquemos escapar desta ideia essencial de comunidade, reunida por laços harmônicos e inquebrantáveis normalmente voltados para si mesmo, por meio de suas instituições, rituais, símbolos, representações de si, e sustentada por uma ideia de unidade. Na obra “A comunidade que vem”, publicada em 1990, Giorgio Agamben defende a ideia de uma comunidade que não está condicionada ao pertencimento, uma comunidade formada pelo “ser qualquer”, que não se funda em nenhuma reivindicação identitária tampouco proprietária. A afirmação de Agamben “O ser que vem é o ser qualquer” (AGAMBEN, 2013, p. 19) não remete à indiferença relacionada ao que seria “qualquer ser”, “qualquer um”, mas traz à tona a singularidade, “o ser tal qual ele é”, nem universal, nem individual, mas singular. “A singularidade se desvincula do falso dilema que obriga o conhecimento a escolher entre a inefabilidade do indivíduo e a inteligibilidade do universal” (AGAMBEN, 2013, p. 10). A ausência de uma propriedade anterior e a dimensão singular do sujeito nos faz pensar esta comunidade que acontece, que se dá na constante relação, negociação, contaminação com o que difere de nós. A comunidade que vem se constitui na sua impropriedade. Nela, as singularidades quaisquer, de acordo com o autor, encontram-se isentas de qualquer papel numa suposta obra comum pela qual devam lutar. Não há compromisso algum com qualquer destino a perseguir, como tampouco há uma origem à qual poderia ser atribuído o dever de preservar ou, se perdida, de resgatar. Nesta, o ser-qual é recuperado do seu ter esta ou aquela propriedade, que identifica o seu pertencimento a este ou aquele conjunto, a esta ou aquela classe (os vermelhos, os franceses, os muçulmanos) – e recuperado não para uma outra classe ou para a simples ausência genérica de todo pertencimento, mas para o seu ser-tal, para o próprio pertencimento (AGAMBEN, 2013, p. 10). Mas como pensar esse agrupamento de singularidades, diverso e dissonante, que se autorregula, se refaz, em constante movimento de formação e vinculação? Para tal, atravessamos novamente o pensamento de Negri e Hardt (2005), ancorado também na singularidade, para pensar a comunidade a partir do conceito-chave de multidão.
29 Negri (2004) reforça a ideia da multidão, alegando que o pensamento da modernidade
desconsidera
a
multiplicidade
das
singularidades,
unificando-a
transcendentalmente no conceito de povo, dissolvendo o que é singular para transformá-la em uma massa de indivíduos (NEGRI, 2004). É interessante observar a impossibilidade de mensurar a multidão, de representá-la. A potência encontra-se justamente no que Negri aponta como “singularidades em cooperação”, ajuste constante entre o eu e o(s) outro(s), não mediado por relações contratuais e sim por negociação. O povo é uno. A multidão, em contrapartida, é múltipla. A multidão é composta de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade ou identidade única – diferentes culturas, raças, etnias, gêneros e orientações sexuais; diferentes formas de trabalho; diferentes maneiras de viver; diferentes visões de mundo; e diferentes desejos. A multidão é uma multiplicidade de todas essas diferenças singulares (NEGRI; HARDT, 2005, p. 12). Deparar-se com uma multidão vindo em sua direção – tantas partes, tantas diferenças ali reunidas em negociação, um corpo coletivo que se move a partir da associação de diversas singularidades, “Entrecruzando-se na multidão, cruzando multidão com multidão, os corpos se mesclam, misturam-se, hibridizam-se e se transformam; são como ondas do mar em perene movimento, em perpétua transformação recíproca” (NEGRI, 2013, p. 21). É nesse sentido que tomamos a forma da multidão para pensar a comunidade, multidão como tática do estar junto de forma recíproca, de forma “co-”, justamente pela possibilidade de alteração e alteridade.
Con el término de multitud, en cambio, designamos a un sujeto social activo, actúa partiendo de lo común, de lo compartido por esas singularidades. La multitud es un sujeto social internamente diferente y múltiple, cuya constitución y cuya acción no se fundan en la identidad ni en la unidad (ni mucho menos en la indiferenciación), sino en lo que hay en común (NEGRI; HARDT, 2004, p. 80).
Negri e Hardt (2004), ao mesmo tempo em que nos fazem olhar criticamente para a globalização evidenciando a permanência das hierarquias a partir de novos mecanismos de controle, agora em rede, nos arremessam também para o seu avesso – para como horizontalmente esses vetores imperativos se desdobram, como socialmente se reage. A multidão seria justamente essa rede aberta e expansiva, essa possibilidade de reinventar os sistemas, por dentro dele. É importante lembrar que, antes de M ultidão, veio o I mpério, primeira obra da trilogia, que expõe mais profundamente a formação dessa ordem política global e o campo de forças por onde ela se sedimenta. Nos termos dos autores:
30 Esta otra faceta de la globalización no significa que todos vayamos a ser iguales en el mundo, pero brinda la posibilidad de que, sin dejar de ser diferentes, descubramos lo común que nos permite comunicarnos y actuar juntos. La multitud también puede ser concebida como una red abierta y expansiva (NEGRI; HARDT, 2004, p. 15). Ao assumir as diferenças internas nesta composição da comunidade, potencializamos sua força, a partir do conceito de multidão. E como funciona, por dentro, o espaço no qual há encontro, choque, embate, contaminação, diálogo, negociação? Por isso, retomamos aqui o processo de partilha da vida e da construção subjetiva daqueles que partilham nosso terreno de investigação. Como estas singularidades se organizam e atuam juntas? É pelas fissuras causadas pela crise financeira e política de 2008-2010 que muitos movimentos da sociedade civil eclodem em diferentes partes do mundo. O caráter insurgente deste ciclo de lutas21 desestabilizou a ordem vigente, “mudou o terreno do debate político e abriu novas perspectivas de ação política” (NEGRI; HARDT, 2016, p. 10). A fagulha inicial se deu na Tunísia e no Egito, reverberando tanto nos países do norte da África e Oriente Médio como em lugares mais distantes, como Nova York e Madri. Praças ocupadas e estratégias comuns, ainda que “cada uma dessas lutas seja singular e orientada por condições locais específicas” (NEGRI; HARDT, 2016, p. 12). Não vamos nos aprofundar particularmente nos acontecimentos, pois cada contexto traz especificidades infinitas, e não temos a intenção de agrupar em uma só categoria o que ocorreu em diferentes continentes. Entretanto, concordamos com Negri e Hardt (2016) quando afirmam que existe um diálogo entre os movimentos. Além da estratégia comum de “ocupação e acampamento” que marca todos eles, vejamos como não havia líderes ou figuras centrais à frente das mobilizações, observemos como “compartilham suas organizações internas como se fossem uma multidão” (NEGRI; HARDT, 2016, p. 12). Multidão justamente pela renúncia a um representante que dê conta do seu corpo complexo e dissonante e das suas pautas emaranhadas. Esses movimentos não partiram de vínculos harmônicos e certamente têm muito a dizer sobre a complexidade – para não dizer dificuldade – que é negociar e decidir coletivamente. Interessante observar como eles não apenas pautaram a questão do comum – discutindo, por exemplo, o uso de espaços e recursos partilhados, gestão participativa,
21
Negri e Hardt usam a expressão “ciclo de lutas” para se referirem aos movimentos que ocorreram ao longo de 2011 em países na África, Oriente Médio, Europa e Estados Unidos, organizando uma série de protestos e ocupações em diferentes cidades.
31 novas economias, reformas na política – como também lidaram no dia a dia com questões mais triviais, como gerir a comida, compartilhar conteúdos, construir posições e significados, desenvolvendo i n lócus q uais poderiam ser as estratégias para uma vida coletiva. Dessa forma, entraremos na terceira e última parte deste capítulo, interessados em ir mais adentro do comum, tendo justamente ele mesmo como princípio organizador de multidões. Nos dedicaremos a pensar como, na prática, o comum propõe alternativas, como transforma os sistemas tais como os conhecemos, possibilitando outros fluxos e relações. Serão quatro situações discutidas: 1) o comum abrindo radicalmente a circulação e compartilhamento de conteúdo; 2) o comum construindo sistemas descentralizados de gestão; 3) o comum na transformação social do espaço urbano; e, por último, 4) novas epistemologias para o comum a partir do “Buen Vivir”. Ver o comum “rebatido” nestas dimensões nos ajudará, no segundo capítulo, em vê-lo operando no campo da arte, justamente com as mesmas bases e princípios. 1.3
SISTEMAS SOCIAIS NAS TRAMAS DO COMUM
1.3.1 Gestão dos recursos e suas possíveis tragédias Para falarmos sobre a gestão do comum, partimos das suas possíveis tragédias. É importante citar a publicação do texto “A tragédia dos comuns”, de Garrett Hardin, na revista Science, em 1968, a que fazemos referência. Hardin apresenta a hipótese de um grupo de pastores que recorre à mesma terra e parte do pressuposto de que todos, para maximizarem sua receita, fariam com que as ovelhas comessem a maior quantidade possível de capim disponível. Desta forma, o esgotamento dos recursos seria de fato inevitável. Porém, entre outras fragilidades, podemos suspeitar que a crítica de Hardin parte de determinadas bases às quais, justamente, o comum se opõe. David Harvey (2014) ressalta que, se o gado fosse criado em comum, a metáfora não funcionaria. “Isso mostra que a propriedade privada do gado e o comportamento individual de maximização das vantagens é o que constitui o cerne do problema, e não a natureza de propriedade comum do recurso” (HARVEY, 2014, p. 135). Para Massimo de Angelis (2007), “Hardin criou uma justificação para a privatização do espaço dos bens comuns enraizada em uma suposta necessidade natural” (p. 134). A perspectiva de que mais eficaz seria manter o pasto o mais apto possível, fértil a partir do uso moderado que possibilita a coexistência de vários usos, favorecendo inclusive
32 que outras trocas ocorram a partir da partilha em questão, nos remete à essência do comum como prática. É necessário diálogo, normas, embates, debates, para que o uso seja regulado por aqueles que o utilizam – e não necessariamente pelo Estado, pelo capital privado ou por um ente externo, que dite as regras. Dardot e Laval (2017) fazem uma sutil referência à publicação em questão quando dizem que “viver juntos” não é, como no caso do gado, “pastar juntos no mesmo lugar”, assim como não é pôr tudo em comum, mas “pôr em comum palavras e pensamentos, [...] produzir, por deliberação e legislação, costumes semelhantes e regras de vida que se aplicam a todos que buscam o mesmo fim” (p. 45). Não são apenas recursos abertos que estão em jogo, são formas de negociar modos de vida e subjetividades, atravessando camadas mais profundas do que apenas o compartilhamento dos recursos, o que está longe de ser um processo harmonioso e pacífico, vale salientar. A verdadeira tragédia dos comuns, a partir da perspectiva desta reflexão que vamos tecendo, ocorre não em situações sem êxito, e sim quando se engrenam processos comunitários: a mercantilização é tão corrosiva que a prática do comum passa a ter valor e gera riqueza dentro da lógica do capital. David Harvey nos alerta para o fato de que, recorrentemente, vemos processos nos quais grupos sociais se engajaram em transformar cotidianos urbanos e reinventar sistemas sociais obtendo resultados expressivos, para em seguida, ali na frente, serem engolidos pelas forças predatórias do mercado imobiliário, por exemplo; “(...) quanto melhores as qualidades comuns de um grupo social, mais provável é que sejam tomadas de assalto e apropriadas por interesses privados de maximização de lucros” (HARVEY, 2014, p. 152). Conforme exemplifica o autor, um grupo comunitário que luta por manter a diversidade étnica em seu bairro e protegê-lo da gentrificação pode descobrir repentinamente que os preços (e os impostos) de suas propriedades aumentam à medida que os agentes imobiliários propagandeiam para os ricos o “caráter” multicultural (HARVEY, 2014, p. 153). Uma das vozes que emergem em contraponto à perspectiva de Hardin é a da cientista política americana Elinor Ostrom. Na obra “Governing The commons: The evolution of institutions for collective action” (1990), ela propõe a “superação” da “tragédia dos comuns” com exemplos concretos que comprovam que as sociedades são capazes de prosperar, substituindo a lógica da competição pela cooperação. Ostrom (1990) desenvolveu uma pesquisa ampla sobre os recursos de propriedade comum, chamados de
Common Pool Resources - CPR, no intuito de provar que a alternativa à privatização e estatização era um “autogoverno”. Sua amostra incluía experiências nas montanhas da Suíça
33 e do Japão, de áreas pesqueiras da Turquia e do Canadá, de florestas na África e na Ásia etc., reforçando que não eram todos os casos que alcançavam resultados positivos. O reconhecimento do seu trabalho foi condecorado com o Prêmio Nobel da Economia em 2009, tendo sido a primeira mulher a recebê-lo. O principal aspecto de sua pesquisa premiada se refere à gestão de recursos compartilhados, elencando os “oitos princípios do design” para a prática do comum. No decorrer do desenvolvimento de seu trabalho e trajetória, algumas variantes foram adicionadas, outras foram modificadas. Resumidamente, os oito princípios são: 1) Limites claramente definidos; 2) Equivalência proporcional entre benefícios e custos; 3) Arranjos de escolha coletiva; 4) Monitoramento; 5) Sanções sancionadas; 6) Resolução rápida e justa de conflitos; 7) Autonomia local; 8) Relações apropriadas com outros níveis de autoridade normativa (governança policêntrica). Em entrevista dada ao Canal Futura, em 2010, a cientista política é questionada sobre a eficácia de se observarem as estratégias destas pequenas comunidades para dar conta de problemas maiores, como as cidades grandes, por exemplo. Para respondê-la, Ostrom (1990) nos traz a noção de policentrismo, a partir da sua aproximação com os estudos de Vincent Ostrom e Charles Tiebout, que desenvolveram o conceito de sistemas policêntricos para áreas metropolitanas. No texto “Más allá de los mercados y los Estados: gobernanza policéntrica de sistemas económicos complejos” (2009), apresentado na conferência do prêmio Nobel, ela faz citação direta aos estudiosos a fim de afirmar que: el término “policéntrico” denota múltiples centros de toma de decisión que actúan independientemente. Qué tan independiente es su comportamiento, o qué tanto constituyen en realidad sistemas de relaciones, es una pregunta empírica con respuestas específicas en cada caso. Mientras estas instancias tomen en cuenta a otras en relaciones competitivas, participen en iniciativas contractuales o cooperativas o bien recurran a mecanismos centralizados para resolver conflictos, las diversas jurisdicciones en un área metropolitana pueden operar de forma coherente con patrones predecibles de conducta interactiva. En tanto esto suceda puede decirse que funcionan como un “sistema” (OSTROM; TIEBOUT; WARREN, 1961, p. 831-832 apud O STROM, 2009, p. 19). Dessa forma, nos interessa a perspectiva sistêmica desses pensadores que apostam em uma rede complexa de relações com uma grande diversidade de atores e níveis de ações, diferentes setores e funções, para a gestão dos recursos comuns. De certa forma, a autora demonstra a capacidade de auto-organização da sociedade, na qual a participação do Estado pode ser secundária, mas não dispensável, na qual a possibilidade de
34 descentralização corrobora para a tomada de decisões em prol do bem comum e por meio dele. Em suas palavras: Essencialmente a proposta é de que existam camadas sobrepostas de centros de tomada de decisão, inseridas umas nas outras – sem necessariamente uma estrutura rígida hierárquica – e que haja relações de cooperação e mecanismos de resolução de conflitos (OSTROM; TIEBOUT; WARREN, 1961 apud OSTROM, 2009, p. 411). Estudos ainda são necessários para a compreensão de como diversas instituições neste sistema policêntrico auxiliam ou obstruem inovação, aprendizado, adaptação, confiança, nível de cooperação entre participantes e alcance de resultados mais efetivos, equitativos e sustentáveis em múltiplas escalas (OSTROM, 2009, p. 436). Na entrevista citada, Elinor salienta a importância e a eficácia dos arranjos cooperativos quando pensados na escala “bairro”, por exemplo, afirmando que, mesmo dentro dos centros urbanos, as “organização comunitárias, hortas comunitárias e até cozinhas comunitárias” são a espinha dorsal da gestão do comum (OSTROM, 2010). De tal modo, compreende que os atores e as agências em nível local são os mais aptos à gestão dos dilemas coletivos. Ainda assim, Harvey reforça que a escala da pesquisa de Ostrom jamais ultrapassou “uma centena ou pouco mais de apropriadores, qualquer exemplo maior (seu maior eram 15 mil pessoas) dentre as que ela encontrava, exigia uma estrutura ‘por subordinação’ de tomada de decisões, uma vez que a negociação direta entre todas as pessoas era impossível. Isso implica formas por subordinação, e, portanto, em algum sentido, hierárquicas” (HARVEY, 2014, p. 137). Incorporamos aqui a ponderação de Harvey (2014) a fim de, em certa medida, complexificar a autogestão, abrindo a possibilidade de processos mistos, transitórios, experimentais – ao invés de modelos de horizontalidades que nem sempre dão conta das particularidades ou escalas em questão. Um fetichismo de preferência organizacional (a pura horizontalidade, por exemplo) quase sempre atravanca o caminho de exploração de soluções apropriadas e eficazes. Que fique bem claro: não estou dizendo que a horizontalidade seja ruim – na verdade, considero-a um objetivo excelente – mas que deveríamos reconhecer seus limites como princípio organizacional hegemônico e estar preparados para ir além quando necessário (HARVEY, 2014, p. 139). Elinor Ostrom manteve, por muitos anos, um produtivo grupo de pesquisa e foi criadora da Associação Internacional para o Estudo dos Comuns – IASC Commons. É central
35 para este grupo a tese de que as comunidades podem sustentar um sistema de auto-organização e cooperação, e mais, considera que, desta forma, em muitos casos, é possível empreender uma gestão ainda mais eficiente dos recursos e das relações, em lugar de seguir as ordens de um agente exterior. The International Association for the Study of the Commons (IASC) nasceu do encontro entre cientistas políticos, antropólogos, economistas, historiadores e gestores de recursos naturais que, juntos, fundaram, inicialmente, a associação sob o nome de Associação Internacional para o Estudo da Propriedade Comum (IASCP), em 1989. A mudança do nome revela justamente os avanços nesse campo de estudo e o distanciamento do comum da ideia em torno da propriedade. O IASC reúne, em sua plataforma virtual, um mapeamento de estudos de caso relacionados ao comum – trata-se de um mapeamento aberto onde os autores incorporam e editam seus conteúdos. São apresentadas experiências variadas, como: práticas de cogestão na pesca costeira japonesa, sistemas sócio ecológicos no Equador para preservação das florestas, formação de associações de produtores de café na Colômbia em prol da manutenção de suas atividades. Podemos observar como a maioria delas giram em torno da partilha e gestão de recursos naturais, como de alguma forma estão relacionadas aos tradicionais “bens comuns da humanidade”, como as florestas e recursos hídricos. Mais do que constatar ou utopicamente defender que a gestão comum dos recursos é possível, ou que apresenta vantagens sociais, o panorama dessa discussão é importante porque evidencia a materialização do conceito do comum como prática em uma diversidade de contextos. 1.3.2 Anos 2000: tecnologias livres / cultura do compartilhamento Pensar sobre a “propriedade intelectual” na era da informação, passa pela compreensão do “capitalismo cognitivo”, que faz do conhecimento e demais competências relacionais fonte de geração de riqueza, exatamente como a indústria fez com a força de trabalho humana na fase anterior. Essa transformação dos modos de produção e da natureza do trabalho faz parte do processo de expansão da apropriação capitalista, na qual o capitalismo tudo coopta, em tudo está, nas entranhas inclusive do subjetivo e do sensível. A Creative Commons, fundada em 2001, na Califórnia, é uma organização sem fins lucrativos que possibilita formas legais de compartilhamento de conteúdo, oferecendo “licenças de direitos autorais gratuitas e fáceis de usar para criar uma maneira simples e padronizada de dar ao público a permissão de compartilhar e usar seu trabalho criativo”, de
36 acordo com o site da Creative Commons no Brasil; copiar, distribuir, editar, remixar, utilizar para criar outros trabalhos, desde que dentro de determinados limites, determinados acordos. As licenças variam entre mais restritivas e mais amplas, tendo a opção, por exemplo, de adquirir uma “Marca de Domínio Público” que possibilita conceder todos os direitos para os usuários, o que, na prática, trata-se de uma renúncia da propriedade total daquilo produzido. Poderíamos nos perguntar qual a necessidade de reconhecer algo que possui sua propriedade renunciada ampla e integralmente, como neste caso. Podemos afirmar a relevância de uma legislação, não enquanto normativa de cima pra baixo, mas enquanto conjunto de regras que necessitamos estabelecer para que, de baixo para cima, consigamos gerir coletivamente o que é de todos. Não só por criar um regulamento de partilha da produção criativa e intelectual, mas também por operar por meio de uma rede aberta e expansiva de colaboradores, a autogestão da organização Creative Commons é desenvolvida a partir de grupos de trabalho que giram em torno de eixos temáticos, construindo coletivamente a partir de atravessamentos comuns, desprendendo-se de um formato estruturado por representações nacionais. A dimensão local não é suprimida, ao contrário, os contextos de aplicação da licença são de suma importância para a constante revisão e reinvenção dela. Vale notar que, na Creative Commons, se condensa uma série de questões importantes para pensarmos o comum, inclusive suas limitações e críticas. Não alcançaremos aqui uma discussão mais profunda acerca da propriedade intelectual, tampouco quanto a se os mecanismos de licenciamento reforçam ou subvertem a mercantilização da produção criativa e intelectual; mais importante para nós é saber que o comum (que antes abarcava apenas recursos naturais) é ampliado no sentido de um “comum criativo”, e isso pode ser visto com bastante clareza nas tentativas de gestão, regulamentação e produção que a Creative Commons executa. É importante dizer que as transformações na internet e a consolidação de uma cibercultura marcam a virada dos anos 2000, “uma estrutura midiática ímpar na história da humanidade”, conforme aponta André Lemos no artigo “Ciber-cultura-remix” (2005). Precisamos dar o devido enfoque à importância do trabalho dos defensores da cultura livre na discussão política do comum. A Wikipédia, por exemplo, foi posta online em 2001 e pode ser vista com uma plataforma emblemática para a discussão do compartilhamento de conteúdo. Quando se imaginou que seria possível construir uma enciclopédia colaborativa à qual o mundo inteiro pode agregar e editar conteúdos, diante de regras de uso e interação entre quem está colaborando?
37 As práticas ciberculturais assumem o remix, a colagem, a recombinação de conteúdos também como plataforma política, e vemos o c ommons de forma bastante precisa. “Agora o lema da cibercultura é ‘a informação quer ser livre’. E ela não pode ser considerada uma c ommodity como laranjas ou bananas. Buscam-se, assim, processos para criar e favorecer ‘inteligências coletivas’ (Lévy) ou ‘conectivas’ (Kerkhove)” (LEMOS, 2005, p. 2). Ou seja, circuitos expansivos e abertos tecem possibilidades de encontro e contaminação em que “qualquer indivíduo pode, a priori, emitir e receber informação em tempo real, sob diversos formatos e modulações, para qualquer lugar do planeta e alterar, adicionar e colaborar com pedaços de informação criados por outros” (LEMOS, 2005, p. 2). André Lemos nos apresenta um fenômeno importante e ainda mais radical para pensar a relação da cultura livre: o modo p eer-to-peer (P2P) de compartilhamento. P2P consiste em uma rede na qual “cada usuário é também fornecedor de informação” (LEMOS, 2005), permitindo compartilhamentos de serviços e dados sem a necessidade de um servidor central. Essa nova “arquitetura” capilar permite, conforme sinaliza o autor, redes de sociabilidade destituídas de um organismo de controle e, por isso mesmo, se configuram como sistemas que desestabilizam as mídias convencionais. Outro caso é o Linux, sistema operacional de código aberto, alternativa ao Windows ou Macintosh, um dos exemplos mais proeminentes de software livre. O código fonte pode ser usado, modificado e distribuído – com fins comerciais ou não – por qualquer um, desde que se respeitem as licenças. A pauta do compartilhamento do conhecimento a partir da abertura e da transparência, proposta pelos ativistas e defensores da cultura livre, apontam para perspectiva coletiva dos bens intelectuais. “Na cultura hacker, que o software livre nos ensina, há uma máxima que diz assim: ‘publique logo, publique sempre’. Afinal, para que guardar uma informação se você pode compartilhá-la com mais gente?”, aponta Rodrigo Savazoni (SAVAZONI, 2018, p. 11), diretor do Instituto Procomum22. A imbricação do comum com as tecnologias livres se dá justamente na possibilidade de ferramentas de compartilhamento que nos reposicionam frente à produção e circulação de conhecimento. Faz parte do contraprograma do comum, no qual a informação é tão importante, como a maneira como é compartilhada. Trata-se de plataformas que constroem espaços virtuais nos quais é possível interagir, conviver e construir juntos o meio e o 22
O instituto Procomum, com sede na cidade de Santos – São Paulo, é uma organização que
desenvolve projetos, ações, laboratórios, pesquisas e articulações desde 2015, a partir de novos modelos de gestão comunitária que estimulam o convívio e o compartilhamento. Pautam a inovação cidadã em prol da transformação social, na construção coletiva e colaborativa da ação cultural e política. Neste sentido, reconhece a importância de “inventar, ativar e participar de redes cujo foco é promover acordos de convivência e modelos de colaboração para a transformação social, contribuindo de forma criativa e inovadora para a construção de um mundo comum entre diferentes.” (PROCOMUM, 2019)
38 conteúdo, alternativa anti-hegemônica que também busca, dentro da rede, espaços outros que não pertençam às grandes corporações como Google e Facebook. Estes últimos representam os grandes monopólios que estão sob a vigilância dos mecanismos de controle da internet que passam desapercebidos. O princípio que nos interessa evidenciar é justamente o reposicionamento do conhecimento da instância privada para uma instância compartilhada, deslocamento que faz parte do escopo do fazer-comum. Atrelamos ao conhecimento, desta maneira, o seu processo de construção – somente é possível vislumbrar a produção do conhecimento a partir do que já temos disponível. Nesse sentido, dissolve-se também a ideia do conhecimento como algo dado e instituído, trazendo a concepção do conhecimento como algo constantemente (re)construído. 1.3.3 O urbano: espaço político do com-viver Trazer a cidade como dimensão importante a ser elucidada dentro do contexto desta pesquisa é afirmar a relação da prática do comum com a construção do espaço urbano. Primeiramente, precisamos reforçar que concebemos o conceito de espaço justamente na interação dos fenômenos sociais e físicos, fenômenos que se alteram, reciprocamente, em constante movimento. Temos como premissa o pensamento de Milton Santos (2008), que se refere ao espaço como algo dinâmico e unitário, onde se reúnem materialidade e ação humana. O espaço seria o conjunto indissociável de sistemas de objetos, naturais ou fabricados, e de sistemas de ações, deliberadas ou não. A cada época, novos objetos e novas ações vêm juntar-se às outras, modificando o todo, tanto formal quanto substancialmente (SANTOS, M., 2008, p. 46). O ponto de partida para pensar a discussão do comum diante do espaço urbano consiste justamente em diferenciá-lo da noção de público. O termo público implica, necessariamente, que exista uma relação/vinculação entre o espaço e o poder do Estado, sob o comando de uma administração pública, enquanto o comum, por sua vez, refere-se justamente ao processo social que concretiza as “qualidades” da dimensão pública, põe em prática o compartilhamento de espaços e serviços (HARVEY, 2014, p. 134). Isto é, a ação política dos usuários converte o público em comum, na compreensão de Harvey.
39 Na obra “As Cidades Rebeldes” (2014), esse autor traz alguns exemplos dessa transformação, como a educação pública [que] torna-se um comum quando as forças sociais se apropriam dela, protegendo-a e aprimorando-a em benefício mútuo (três vivas à Associação de Pais e Mestres!) [...] as praças Sintagma, em Atenas, Tahrir, no Cairo, e da Catalunha em Barcelona [...] espaços públicos que se tornaram comuns urbanos quando as pessoas ali se reuniram para expressar suas opiniões políticas e fazer suas reivindicações (HARVEY, 2014, p. 134). Nesta diferenciação, vemos que o comum está relacionado à prática do espaço, esta que “começa no nível do solo, com passos”, com homens ordinários praticantes da cidade, conforme afirma Michel de Certeau (2014, p. 190). O sociólogo, por sua vez, evidencia que é no “no corpo a corpo”, na dimensão horizontal, que a efetivação dos sistemas verticais se dá, convergindo com o pensamento de Harvey. O conceito de “lugar praticado” de Certeau, presente na obra “A invenção do Cotidiano”, atribui às práticas do comum a potência de reorganizar o espaço urbano, práticas que escapam do controle e do ordenamento que incide sobre a cidade, sendo vetores determinantes na malha da vida social. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto de movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais (CERTEAU, 2014, p. 184). Para pensar a produção social do espaço, evocamos “O Direito à Cidade”, tese de Henri Lefebvre, justamente no intuito de pensar a politização deste processo a partir da perspectiva dos citadinos (e não da administração). Lefebvre (2001) defende o direito à cidade na sua luta pelo direito de criação e plena fruição do espaço social, ampliando e aprofundando a discussão acerca da participação na vida urbana. Com isso, avança numa concepção de cidadania que vai além do direito ao voto: na altura dos olhos, evoca noções radicais de democracia direta, discute o controle das pessoas sobre a forma de habitar a cidade, de vivê-la coletivamente diante das singularidades. Aparece no pensamento de Lefebvre a ideia de “apropriação”, ou “reapropriação”, que diz respeito ao rompimento das formas hegemônicas que alienam e impõem modos de vida e nos fazem reproduzir o espaço e as relações a partir dos modelos dominantes. A reapropriação é um princípio pelo qual os indivíduos e coletividades reforçam seu lugar de
40 sujeitos ao invés de assujeitados, se reapropriam daquilo que foi expropriado, adotando práticas que subvertem (por dentro) os imperativos verticais. É importante contextualizar a crítica lefebvriana ao urbanismo moderno, inferindo as forças políticas e econômicas que organizam e reproduzem relações abstratas no intuito de homogeneizar e normatizar o espaço da cidade. Para ele, a cidade traçada sob os preceitos da urbanística modernista está relacionada à funcionalidade e à segregação, ao produtivismo, à hegemonia da razão, na qual a impessoalidade, o não-contato e a mercantilização da vida substituem a rua, o encontro e o intercâmbio de experiências. “A vida urbana pressupõe encontros, confrontos com a diferença, conhecimentos e reconhecimentos recíprocos dos modos de viver, dos padrões que coexistem na cidade” (LEFEBVRE, 2001, p. 15), afirma o autor. Sobre o objetivo do urbanismo haussmaniano, emblemático projeto de cidade moderna, Lefebvre comenta que o barão Haussmann [...] substitui as ruas tortuosas mas vivas por longas avenidas, os bairros sórdidos mas animados por bairros aburguesados [...]. Os vazios têm um sentido: proclamam alto e forte a glória e o poder do estado que os arranja, a violência que neles pode se desenrolar (LEFEBVRE, 2001, p. 16). “O Direito à Cidade” foi publicado em 1968, entretanto, se mantém contemporâneo, suas pautas seguem sendo defendidas pelos movimentos que eclodem na sociedade civil pelo direito de ir e vir, de pertencer e ser pertencido, de tomar decisões a respeito do entorno e do cotidiano, de requerer envolvimento e participação. Os pesquisadores da UNB João Elias e Gabriel Medeiros (2010) analisam o movimento passe-livre em Brasília para tecer uma reflexão acerca do direito à cidade, a partir do pensamento de Lefebvre. Vale salientar que esta análise foi feita antes de 2013, quando as ações deste movimento tomam uma escala nacional e reverberam de forma bastante complexa no cenário político, merecendo uma análise extensa e cuidadosa. Nem entraremos nesta alçada, nem nos aprofundaremos na trajetória do movimento passe livre, buscando evidenciar apenas a “crítica à cidade capitalista e à forma como o transporte serve aos interesses privados” (ELIAS; MEDEIROS, 2010, p. 19), que faz com que o movimento passe a defender o passe livre universal, também conhecido como tarifa zero. Trazemos o movimento à tona a fim de observar como a problematização de uma das questões vitais para a vida urbana, o transporte público, a circulação e os fluxos na urbe, constrói um movimento organizado horizontal de reivindicações. O que estamos interessados em ver é a possibilidade de os sujeitos tomarem o bastão de suas próprias vidas e da vida coletiva, reivindicando condições de existência, de habitação e de
41 subjetivação na reconstrução (física e social) do espaço urbano. Conforme discorrem tais pesquisadores, lutar pelo direito à cidade é romper com a sociedade da indiferença e caminhar para um modo d iferenciado de p rodução do espaço urbano, marcado pelo florescimento e interação igualitária de diversos ritmos de vida, expressão das diferentes formas de apropriação do espaço. Avesso às “impecáveis matemáticas”, ao planejamento metafísico que pretende resolver em definitivo os problemas sociais e declarar o fim da história, a intervenção transformadora desse espaço é ciente de sua historicidade, procurando no tempo sua reconstrução cotidiana pelas tensões entre as experiências do real e as utopias construídas a partir delas (ELIAS; MEDEIROS, 2010, p. 13). 1.3.4 A cosmovisão do B uen Vivir O conceito indígena do Buen Vivir resgata os saberes dos povos tradicionais andinos (preexistentes à colonização europeia na América), se relacionando diretamente ao conjunto de ideias em torno do sumak kawsay, dos Quéchua e suma qamaña dos Aimará, conforme elucidação do ativista político e ambiental boliviano Pablo Solón. Ao discorrer sobre o Buen Vivir, ele nos alerta que este se tornou um “espaço de controvérsia e diálogo, no qual não há uma verdade absoluta, mas múltiplas verdades – e inumeráveis mentiras canonizadas em seu nome”(SOLÓN, 2019, p.19). Primeiramente, partindo da sua teorização, podemos descrevê-lo como uma profunda implicação do homem na natureza, ele como parte dela, e vice-versa. Esse entendimento irradia sobre o sujeito outra base filosófica que altera substancialmente sua forma de conceber as dimensões política, econômica e social, para além da espiritual. No entanto, tenhamos em mente que “não se trata de um conjunto de receitas culturais, sociais, ambientais e econômica, mas uma mistura complexa e dinâmica” (SOLÓN, 2019, p.23), a fim de tentarmos escapar de uma possível asfixia de uma definição absoluta deste termo. Esta visão de mundo – ou cosmovisão – é completamente distinta da ordem hegemônica, configurando-se como resistência ao modelo dominante, isto é, ao “modelo ocidental do capitalismo patriarcal”, conforme sinaliza o antropólogo colombiano Arturo Escobar em entrevista dada em 2016 a um jornal espanhol: Las ontologías o cosmovisiones indígenas no implican una noción lineal del desarrollo ni un estado de subdesarrollo que hay que superar, no están basadas en la escasez o la primacía de los bienes
42 materiales. Haciendo eco de estos principios el Buen Vivir pretende introducir una filosofía de vida diferente en la visión de sociedad. Esto hace posible una ética del desarrollo que subordine los objetivos económicos a criterios ecológicos, a la dignidad humana y a la justicia social (ESCOBAR, 2012, p. 34-35).
A mudança é paradigmática, de fato. O B uen Vivir s e opõe à ideia do desenvolvimento tal como é elaborado na modernidade, questiona os padrões de consumo e acumulação de riqueza, nos faz repensar nossa relação com o mundo em diferentes aspectos. É interessante, sobretudo, vê-lo ganhando contornos práticos, tal qual a adoção pela Constituição da República do Equador e pela Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia, nos anos de 2008 e 2009, respectivamente. A ideia de que epistemologias do sul23 interferiram diretamente e juridicamente nas diretrizes políticas de uma população é, de certa forma, “crear condiciones para que estos mundos subalternos puedan sobrevivir en el
planeta” (ESCOBAR, 2016, n.p.). Entretanto, faz-se necessária uma leitura mais atenta acerca da aplicação destas ideias, pois a teoria e o discurso nem sempre refletem a realidade. Apostar no B uen Vivir é acreditar na possibilidade de ativação de um lugar de enunciação no qual seja possível medir o desenvolvimento a partir de suas próprias bases, com o resgate das noções dos povos tradicionais, redirecionando-o para a sua própria história contemporânea. A ideia do desenvolvimento como um fantasma inalcançável é o primeiro ponto da reflexão do economista equatoriano Alberto Acosta quando publica “O Buen Vivir: uma oportunidade de imaginar outro mundo” (ACOSTA, 2016, p. 209). Ele problematiza a perseguição pelo desenvolvimento proveniente dos países hegemônicos e sinaliza a necessidade de “uma reconstrução e inclusive pela superação da base conceitual, das práticas, das instituições e dos discursos do desenvolvimento” (ACOSTA, 2016, p. 208). Para ele, “uma das tarefas fundamentais reside no diálogo permanente e construtivo de saberes e conhecimentos ancestrais com a parte mais avançada do pensamento universal, em um processo de contínua descolonização da sociedade” (ACOSTA, 2016, p. 209). Aqui vale fazermos uma ressalva para, em seguida, retornarmos à discussão: a necessidade de uma descolonização se dá justamente porque partimos da perspectiva de Boaventura, quem diz que a colonização “não acabou, apenas mudou de forma ou de roupagem” (SANTOS, B. S., 2018, n.p.). Ele explica que o que aconteceu no século XX foi a tentativa de extinção de uma forma específica de colonialismo, e não do colonialismo como modo de dominação. Ou seja, “a degradação ontológica das populações dominadas por razões étnico-raciais” (SANTOS, B. S., 2018, n.p.) permanece do mesmo modo e no mesmo fluxo. 23
(SANTOS, 2009).
43 É importante ressaltar que não se trata de um modelo a ser implementado, “nem é uma espécie de superstição ou poção mágica para todos os males do mundo” (ACOSTA, 2016, p. 208). O Buen Vivir é a própria busca, uma espécie de devir, movimento constante em direção à emancipação da vida (ACOSTA, 2016, p. 208). “Tiene sus raíces en las reivindicaciones y luchas antineoliberales planteadas por los pueblos indígenas y también alimentadas por otros grupos sociales como el ecologismo, el feminismo, el socialismo y la Teología de la Liberación, que han confluido en la contestación del paradigma del desarrollo”, conforme expressa Francesca Belotti (2013, n.p.). Para visualizarmos melhor como esta cosmovisão pode interferir nas diretrizes e nos posicionamentos políticos a partir de sua inserção nas constituições de países da América Latina, analisemos o caso da Bolívia. Um trecho de sua constituição diz: Un Estado basado en el respeto e igualdad entre todos, con principios de soberanía, dignidad, complementariedad, solidaridad, armonía y equidad en la distribución y redistribución del producto social, donde predomine la búsqueda del vivir bien; con respeto a la pluralidad económica, social, jurídica, política y cultural de los habitantes de esta tierra; en convivencia colectiva con acceso al agua, trabajo, educación, salud y vivienda para todos ( CONSTITUIÇÃO DA BOLIVIA, 2009). Boaventura, mais uma vez, nos ajuda a compreender mais profundamente o contexto em que estas mudanças insurgem ao discorrer sobre “La refundación del Estado en América Latina” (2010), título do texto que apresenta uma versão mais concisa do seu livro sobre as epistemologias do sul. A importância de reconhecer o estado Bolivariano como um estado plurinacional implica reconhecer os direitos dos povos e grupos sociais minoritários, justamente estes que possuem seus direitos individuais violados, vítimas de discriminação social (SANTOS, B. S., 2010, p. 287). As mudanças que ocorrem na constituição de 2009, nas palavras do sociólogo, configuram-se como un constitucionalismo desde abajo, protagonizado por los excluidos y sus aliados, con el objetivo de expandir el campo de lo político más allá del horizonte liberal, a través de una institucionalidad nueva (plurinacionalidad), una territorialidad nueva (autonomías asimétricas), una legalidad nueva (pluralismo jurídico), un régimen político nuevo (democracia intercultural) y nuevas subjetividades individuales y colectivas (individuos, comunidades, naciones, pueblos, nacionalidades). Estos cambios, en su conjunto, podrán garantizar la realización de políticas anticapitalistas y anticoloniales (SANTOS, B. S., 2010, p. 286).
44 No entanto, devemos salientar que existem críticas e ressalvas importantes quanto à incorporação do Buen Vivir neste contexto e, para isso, recorremos ao posicionamento da socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui (2015). Em uma conversa entre ela e Boaventura, a socióloga argumenta que, apesar dos avanços que representa, a maneira superficial e fetichista pela qual o Estado se apropriou deste termo contribuiu para reforçar uma suposta plurinacionalidade que não possui normas jurídicas, nem um interesse político que a efetive. “El Suma Qamaña se incorpora en la Constituición, pero se incorpora solo una parte. Es una incorporación selectiva” (CUSICANQUI, 2015, p. 88). Ela considera importante o reconhecimento coletivo que ocorreu por parte da sociedade bolivariana como um todo – os temas, demandas e ideias dos povos originários foram amplamente difundidos e incorporados no campo simbólico, a partir do processo constitucional que pauta o B uen Vivir (CUSICANQUI, 2015, p. 90). No entanto, aponta que vivir bien quiere decir hablar como gente y caminar como gente. Y hablar como gente quiere decir: 1) escuchar antes de hablar, 2) decir cosas que sabes y no hablar de lo que no sabes, y 3) refrendar tus palabras con tus actos (...) Pero a nadie le interesa saber eso porque es justamente lo que los gobernantes no hacen: no escuchan, hablan de lo que no saben y no compatibilizan sus actos con las palabras (CUSICANQUI, 2015, p. 88-89). Portanto, é importante salientar que a filosofia do Buen Vivir influencia outros contextos, para além de uma apropriação governamental – na qual se tornou um campo de disputas – como movimentos sociais, cooperativas campesinas, projetos culturais, por exemplo. Vale frisar que não é de exclusividade ameríndia, possuindo correspondências na sabedoria de outros povos e culturas tradicionais ao redor do mundo, como o ubuntu, na África do Sul e o teko kavi, dos Guarani. No âmbito deste trabalho, consideramos que o B uen Vivir s istematiza valores fundamentais para pensar o comum como um projeto alternativo de sociedade – ainda que nos questionamos sobre sua capacidade plena de aplicabilidade e superação da sua retórica.
Para construí-lo, conforme Pablo Solón afirma, “devemos descolonizar nossos
territórios e nosso ser. A descolonização implica na autogestão e a autodeterminação em todos os níveis”. (SOLÓN, 2019, p.32).
Ao pautar um modelo social que rompe
fundamentalmente com uma perspectiva civilizatória ou desenvolvimentista, desconstrói-se o próprio lugar da natureza como recurso, resgatando perspectivas originárias dessa como outro ente integrante do cosmos.
45 Percebemos, aqui, como este conjunto de ideias estabelece novas formas e normas de convivência social, em processo de maior ou menor institucionalização, inclusive pelo Estado. O Buen Vivir reforça a dimensão política do comum justamente por oferecer um horizonte conceitual e prático que implica outras formas de estar e pensar o mundo, não enquanto modelo a ser seguido e sim como plataforma a ser experimentada e construída coletivamente. Para tal, conforme nos sugere Solón, reforçamos de que o primeiro passo é ver com os nossos próprios olhos, pensar os nossos próprios pensamentos e sonhar os nossos próprios sonhos. Essa viagem começa com o encontro das nossas raízes, nossa identidade, nossa história e nossa dignidade. Descolonizar é recuperar a nossa vida, recuperar o horizonte. Não é voltar ao passado, mas dotar o passado de conteúdo presente. É fazer da memória um sujeito histórico (SOLÓN, 2019, p.32). _ Ver as cercas, mas ver através delas – este capítulo se propôs justamente a delimitar um espaço para pensar o comum. Delimitar aqui tornou-se estratégia de cuidado e foco ao invés de privação e restrição: escolher algumas direções a fim de tecer uma superfície política que o comum atravessa. Sem a pretensão de dar conta das tantas possibilidades de abordagem da sua dimensão política, tentamos aqui construir um determinado percurso com muitas janelas, para conseguir ver o fazer-comum sob multidimensões. Neste caminho, vimos a cidade ser fundamental para os processos de partilha, diante da possibilidade de reapropriação das formas de vida e dos modos de interação. Reconhecemos a cidade como direito, no sentido de reconhecer e conferir a plena possibilidade de existir, fruir e usufruir dentro dela. Vimos também a prática do comum adensar uma cultura de compartilhamento, pautando, muitas vezes, aberturas radicais, trânsitos livres de conhecimentos, informações e criações, um comum em rede, virtual, expansivo. E mais, uma cultura do remix, que produz a partir de recombinações, a partilha como ferramenta criativa, que subverte as noções de propriedade e autoria. Neste caminho, cercas físicas e simbólicas marcaram lugares de enfrentamento e tensionamento, evidenciando, ainda mais, o lugar político do comum e sua capacidade de desestabilizar o sistema vigente. Vimos que, através dele e por ele, movimentos, no campo e na cidade, perturbaram estratégias de dominação que controlam vidas e corpos. Do contragolpe ao fazer-comum, seguimos afirmando-o como alternativa a ser construída dia a dia em diferentes escalas e níveis.
46 Observamos, neste rastro, a insurgência de sistemas sociais (dos mais simples aos mais complexos) que, por dentro dos sistemas hegemônicos, encontraram falhas e fraturas por onde se insurgir. Vimos também que um sistema deste tipo, para funcionar, depende necessariamente da participação dos elementos envolvidos, justamente por não possuir um “servidor
central”,
requer
outro
tipo
de
participação:
não
a
de
meros
consumidores/clientes/público, mas a de cocriadores. Implicar-se por um “Buen Vivir”, construindo sistemas de reciprocidade e de colaboração com os próprios antes “recursos”, hoje partes. De forma recorrente, vimos o policentrismo como estratégia, a descentralização em níveis e camadas, a intensificação dos fluxos de relação e trocas, negociação constante das singularidades, em exercícios de reinvenção da vida coletiva. Seguimos aprendendo com os manejos de ecossistemas de outras cosmovisões. A dimensão sistêmica da vida presente na profunda integração humanidade-natureza estimula relações mais equilibradas, solidárias e colaborativas, evoca práticas de cuidado e autogestão, forma organizações rudimentares e, ao mesmo tempo, sofisticadas, que nos fazem perguntar como podemos ativar uma inteligência coletiva sensível e criativa nos contextos em que nos inserimos. Será a arte um campo possível de experimentação do comum? O salto para o próximo capítulo se dá justamente quando avistamos a questão central para esta pesquisa: como no campo da arte contemporânea o comum se apresenta enquanto mola propulsora, construindo um horizonte intelectual e político? Quando experiências na arte disparam na vida modos de fazer outros, formando sistemas de colaboração e reciprocidade entre agentes diversos, em torno da vida comum? A partir da imbricação entre arte e política, apostamos que é possível construir práticas de interação, cuidado e coabitação em um mundo compartilhado.
47 2.
ENGENDRAMENTOS DA ARTE: ENTRE AS ESFERAS COGNITIVA, POLÍTICA E
AFETIVA Antes de mais nada, é importante discorrer brevemente sobre a importância da vigésima sétima Bienal de Arte de São Paulo (2006), intitulada “Como viver Junto”, no âmbito deste trabalho. A edição em questão tomou emprestado o título da obra de Roland Barthes (2003), mas foi além dela, articulando a dimensão discursiva por meio de diferentes plataformas de trabalho e de diferentes vozes, alargando a reflexão barthesiana em direção aos dilemas contemporâneos. O time curatorial, encabeçado pela Lisette Lagnado, foi formado por Rosa Martinez, Cristina Freire, Adriano Pedrosa, José Roca e Jochen Volz. A vigésima sétima Bienal forneceu alguns caminhos para a reflexão acerca da arte como terreno político de reinvenção da vida social, da vida compartilhada – questão central para a segunda parte deste trabalho. Ela abarcou projetos, processos, coletivos, promoveu exibições de filmes, organizou uma residência, um programa de seminários. Ela expandiu para fora do pavilhão e se consagrou como uma bienal emblemática para pensar o viver junto – não sem contradições, vale lembrar. A partir dela, conhecemos o Jardim Miriam Arte Clube (JAMAC) e, não por acaso, este projeto saltou aos nossos olhos como uma possibilidade de ver com mais proximidade e atenção o que foi formulado no campo teórico. Logo adiante explicitaremos como se dará a presença do JAMAC na reflexão em questão. Desta edição, vale destacarmos o programa público de seminários, que além de ter servido como fonte de referências conceituais24 para esta pesquisa, nos inspirou pelo formato que foi concebido. Entre janeiro e dezembro de 2016, foram organizados seis blocos temáticos de discussão reunindo críticos, historiadores, artistas, sociólogos, psicanalistas e etc., para formular ideias a partir de um tópico comum. Vale atentar que estes se relacionam, mas que não necessariamente constroem uma narrativa linear, muito menos um panorama, os temas funcionam como blocos descontínuos, espécie de dossiês de investigação que permitem conhecer e comparar várias formas de se enganchar e se posicionar com o tema em questão. “Marcel, 30”, “Arquitetura”, “Reconstrução?”, “Vida Coletiva”, “Trocas” “Acre”, são agrupamentos feitos por categorias – amplas e chave, ao mesmo tempo – que vão desde a produção de um artista específico, como no caso do seminário sobre o Marcel Broodthaers,
24
Foi possível acessar o conteúdo produzido pelos seminários a partir de sua publicação, editada pela Lisette Lagnado e Adriano Pedrosa, produzida logo após a vigésima sétima.
48 até desembocar na generalidade das ideias de colaboração e parcerias no bloco “Trocas”, por exemplo. Trabalham, portanto, sobre diferentes bases para abarcar pontos que consideramos vitais ao viver junto. Podemos afirmar alguma semelhança com a forma com a qual Roland Barthes concebe os seminários realizados no Collége de France, entre 1976–1977, e que deram origem à publicação citada. Nas palavras de Barthes: O método adotado foi, ao mesmo tempo, seletivo e digressivo. De acordo com os princípios do trabalho semiológico, buscamos destacar, na massa de modos, hábitos, temas e valores do "viver junto", traços pertinentes e por isso mesmo descontínuos, dos quais cada um pudesse ser subsumido por uma palavra de referência. A pesquisa constituiu, portanto, em "abrir dossiês", tendo sido deixado aos ouvintes o encargo de preencher esses dossiês à sua maneira, e o papel do professor consistiu principalmente em sugerir certas articulações do tema (BARTHES, 2003, p. 329). As articulações temáticas de Barthes formam um tipo de “arquipélago”, um formato que remete a uma constelação de “ilhas de conteúdo”. Apropriarmo-nos deste formato – em outras escalas – formulando seis tópicos para desenvolver neste capítulo: (1) o político, (2) o limite, (3) o relacional, (4) a casa, (5) a escola e (6) o ecossistema. Estes foram definidos ao longo desta investigação, mudaram algumas vezes de direção, inclusive, foram amadurecidos a partir do aprofundamento das questões. É importante ressaltar que estes são disparadores de uma reflexão que extrapola a própria Bienal, funcionando como dispositivos para dialogar com outras referências e com outras situações que contribuem para a reflexão deste trabalho como um todo, sobretudo nos três últimos tópicos, nos quais a reflexão absorve tendências mais recentes, incorporando projetos e perspectivas mais atuais – vale lembrar que já se passaram 15 anos desta Bienal, as conjunturas não as mesmas de outrora. A primeira parte consiste nos tópicos: (1) o político; (2) o limite; (3) o relacional. Primeiramente, iremos fazer algumas delimitações e imbricações conceituais a fim de afirmar a dimensão do político que nos acompanhará para pensar o campo da arte. A partir das considerações iniciais sobre a rtepolítica, ética e estética, anunciaremos algumas premissas para as discussões que sucedem. Em seguida, alcançamos o limite: nos interessam as práticas de fronteira, estas que se articulam com a vida, bordas do campo expandido da arte que desembocam no cotidiano, nos contextos e nas experiências compartilhadas. Iremos aportar na historiografia da arte, trazendo o paradigma relacional a partir da década de 1960 e como se dá a virada social (BISHOP, 2008) na arte nos anos 1990 e anos 2000. Sublinhamos aspectos centrais como a participação e a colaboração, os formatos abertos e
49 laboratoriais e as tendências que insurgem dentro da perspectiva de uma arte socialmente engajada. A segunda parte, por sua vez, apresenta (4) a casa; (5) a escola; (6) o ecossistema como possíveis eixos para pensar as práticas artísticas contemporâneas articulada ao tecido social. Primeiramente, a alusão à ideia de casa sugere pensar a habitação como uma condição de uma outra presença no espaço. Podemos pensar a casa como estratégia de vínculo com o território e com a vizinhança, como lugar de referência e empoderamento, como possibilidade de uma arquitetura que comungue e abarque outros tipos de experiências. Em seguida, o foco será nos processos de aprendizagem instaurados por esses coletivos e coletividades, formais e não formais. Evocaremos a escola como possibilidade de outras pedagogias que desmanchem os limites entre arte e educação. Por último, vamos observar como estes projetos e propostas se articulam entre si, e o quanto se articulam com entidades, redes municipais e estaduais, movimentos sociais, espaços de acolhimento, organizações políticas, para dar conta de uma perspectiva sistêmica que conecta pessoas em processos de colaboração e troca. Afirmar o político, transpor o limite, provocar o relacional, habitar a casa, construir a escola e conectar o ecossistema. Assumimos os riscos de atravessar essas “ilhas de conteúdo”, sem absoluta precisão quanto à direção que estamos indo. Optamos por criar zonas de reflexão, ao invés de fechar-nos em rotas estabelecidas. Para tal, reforçamos que a bússola segue sendo a prática do comum – o princípio político que nos engaja mutuamente, reciprocamente e coletivamente, algo que não é meu, nem seu, é nosso. Ainda que este “nós” permaneça vago e indeterminado, amplo por caber eu, você e todxs xs outrxs, seguimos neste tempo de locução como estratégia de envolvimento e participação dos que leem com aquilo que é lido. Cabe explicar brevemente como se dá o nosso encontro com o JAMAC e de que forma ele será acessado neste trabalho. Em julho deste ano (2019), estive ao longo de duas semanas, entre manhãs e tardes, na sede do clube. A partir deste encontro presencial, tive a oportunidade de conviver e participar do cotidiano deste espaço, a fim de observar como essa experiência desenvolve a relação da prática artística com a perspectiva do desenvolvimento social e criativo de uma comunidade. As percepções e leituras foram construídas também a partir de consultas a textos e conteúdos já produzidos sobre o JAMAC, que se costuraram as longas conversas e partilhas que tivemos neste período, sobretudo com a artista Mônica Nador.
50 Em 2004, o Jardim Miriam Arte Clube (JAMAC) abre suas portas25. Depois de quinze anos, são muitas as dimensões abarcadas, escolher sobre o que falar é construir uma perspectiva parcial deste projeto, e disso não teremos como escapar. Optamos por discorrer sobre a experiência do projeto do JAMAC de forma fragmentada, distribuída ao longo deste capítulo, nas brechas que se abrem entre um conceito e outro, entre os anos 1960 e o agora, entre referências do campo da arte e da filosofia. É preciso afirmar o JAMAC não como mera ilustração do que teoricamente vem sendo elaborado – inclusive porque não necessariamente ele reforça o que está sendo dito, muito menos é anexo/complementar à discussão. Neste sentido, mantê-lo dentro do segundo capítulo é afirmá-lo como parte da formulação, nem maior, nem menor, é parte do caminho desta investigação. Através dele se materializou as dimensões do “político”, do “limite”, do “relacional”, e foi nele que se apontou para a emergência da “casa”, da “escola” e do “ecossistema” – além de ter sido uma experiência afetiva importante para firmar posições e compreender contradições. 2.1.
O POLÍTICO Partimos de uma imbricação, uma implicação, uma existência atravessada: arte e
política aqui não serão campos a serem relacionados. Não se trata da arte de um lado e a política de outro, conforme afirma a cientista social Chantal Mouffe26 (2019), tão pouco entendemos a política como um adjetivo para a arte. Para que se compreenda este ponto de partida, recorremos à Mouffe quando reconhece de que há uma dimensão estética na política e uma dimensão política na estética (MOUFFE, 2019, p. 190), igual convocamos o pensamento do filósofo Jacques Rancière27 (2010) que também desdobra, em diferentes ocasiões, a relação da estética com a política. Primeiramente, o filósofo, ao afirmar que “temos de pensar na estética em sentido largo como modos de percepção e sensibilidade, a maneira pela qual os indivíduos e grupos constroem o mundo” (RANCIÈRE, 2010a, n.p.), compreendemos com mais clareza qual sentido deste termo. Nesta perspectiva, ambas, política e estética, se configuram como
25
Mônica Nador fundou o JAMAC, formando uma associação composta pelo galerista Eduardo Brandão, a artista Lucia Koch, o sociólogo Miguel Chaia, o curador Ivo Mesquita, o sociólogo e professor Mauro Pinto de Castro, a historiadora da arte Aracy Amaral e o participante do núcleo Aparecida de Gerônimo Antônio José Gomes, em Assunção, 2012. 26 Chantal Mouffe, natural de Charleloi, nascido em 1943, é uma cientista política pós-marxista belga que desenvolve trabalhos na área da teoria política. 27 Jacques Rancière, nascido em 1940, é um filósofo e professor francês, seu trabalho se concentra sobretudo nas áreas da história, da filosofia, da estética e da política.
51 “maneiras de organizar o sensível: de dar a entender, de dar a ver, de construir a visibilidade e a inteligibilidade dos acontecimentos” (RANCIÈRE, 2010a, n.p.). Rancière afirma que As práticas artísticas não são instrumentos que proporcionam formas de consciência nem energias mobilizadoras em benefício de uma política que seria exterior a elas. Tais práticas não saem de si mesmas para se converterem em formas de acabo política coletiva. Elas contribuem para desenhar uma paisagem nova do dizível, do visível e do factível. Elas forjam contra o consenso outras formas de sentido comum, formas de um sentido comum polêmico. (RANCIÈRE, 2010, p. 77). Isto posto, a expressão artística que se funda nesta concepção de estética, necessariamente, carrega consigo potencial político – é inerente a sua prática. Mouffe (2019) defende de que as “práticas artísticas desempenham um papel na constituição e manutenção de uma determinada ordem simbólica, desafiando-a, e é por isso que possuem necessariamente uma dimensão política” (p. 191). Neste mesmo sentido, Rancière (2005) atribui às práticas da arte essa possibilidade de redistribuir os objetos, imagens, significados que formam o mundo existente, que formam nosso cotidiano partilhado, assim como a criação de situações que chacoalham a nossa relação com o outro e com os lugares que ocupamos na vida coletiva (RANCIÈRE, 2005, n.p.). Em suas palavras, (...) a arte não é política antes de tudo pelas mensagens que ela transmite nem pela maneira como representa as estruturas sociais, os conflitos políticos ou as identidades sociais, étnicas ou sexuais. Ela é política antes de mais nada pela maneira como configura um sensorium espaço-temporal que determina maneiras do estar junto ou separado, fora ou dentro, face a ou no meio de. (RANCIÈRE, 2005, n.p.). Mas de que política estamos falando? Jacques Rancière, bem como Mouffe, corroboram com a construção dos pressupostos dessa reflexão ao afirmar a concepção de política não vinculada à política governamental, mas à política da repartição da vida comum, ou melhor, ao processo de partilha deste comum, como cada um de nós tomamos parte e participamos dele. “A política, bem antes de ser o exercício de um poder ou uma luta pelo poder, é o recorte de um espaço específico de ‘ocupações comuns’; é o conflito para determinar os objetos que fazem ou não parte dessas ocupações, os sujeitos que participam ou não delas, etc.” (RANCIÈRE, 2005, n.p.). Mouffe (2005) também vai nesta direção quando afirma que (...) “o político” refiro-me à dimensão do antagonismo inerente às relações humanas, um antagonismo que pode tomar muitas formas e emergir em diferentes tipos de relações sociais. A “política”, por
52 outro lado, indica o conjunto de práticas, discursos e instituições que procuram estabelecer uma certa ordem e organizar a coexistência humana em condições que são sempre conflituais porque são sempre afetadas pela dimensão do “político” (p. 20). A dimensão do antagonismo para Mouffe converge com a noção de conflito apresentada por Rancière, no sentido que “questões políticas sempre envolvem decisões que demandam uma escolha entre alternativas conflitantes” (MOUFFE, 2013, p. 184), conforme afirma a teórica. No sentido de uma radicalização da democracia moderna, Mouffe propõe um modelo agnóstico que reconhece, legitima e defende o direito da reivindicação do outro ainda que discorde com ele, convocando o antagônico como componente fundamental para pensar um projeto político democrático que se opõe aos modelos deliberativos e liberais (MOUFFE, 2013). Por esse ângulo, se a prática do comum, necessariamente, esbarra em processos de negociação das singularidades, iremos convocar o dissenso como via, como meio, a fim de apontar para os caminhos pelos quais a arte é fundamentalmente política. A partir deste ponto de vista, devemos ter em mente que a hegemonia do liberalismo – esta que individualiza e racionaliza – é incapaz de compreender e lidar com o pluralismo social e os conflitos inerentes a ele. A proposta de pensar a política enquanto antagonismo, partindo da diferença e do conflito, é se contrapor à lógica dos sistemas homogeneizantes, hierárquico e de controle, afirmando que “o liberalismo tem que negar o antagonismo, uma vez que (...) o antagonismo revela o próprio limite de qualquer consenso racional” (MOUFFE, 2019, p. 185). O conflito é a possibilidade de emergir uma “anti-ordem”, ou seja, inverter padrões e romper com a hegemonia que destina o visível e o dizível para poucos em detrimento de muitos. A potência desta política – ao nível de solo, relacionada a partilha do comum – é romper “a evidência sensível da ordem “natural” que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou obediência, à vida pública ou à vida privada voltando-os sobretudo a certo tipo de espaço ou tempo a certa maneira de se ver e dizer” (RANCIÈRE, 2010, p. 59). O diálogo com o pensamento de Rancière e de Mouffe, nos ajuda a questionar se a arte se configura como terreno possível de desestabilização dos regimes hegemônicos. Evidenciando o que estava oculto, ocultando o que sempre esteve à luz, a arte tem a capacidade de intervir criativamente, afetivamente e criticamente nos sistemas sociais que estamos envolvidos, recriando-os?
53 O curador e pesquisador Moacir dos Anjos28 reivindica a noção de “uma política da arte” em detrimento das ideias em torno da arte política, reforçando que durante muito tempo “o segundo termo foi somente uma maneira de adjetivar o primeiro, supostamente dando-lhe pertinência e importância para além do campo da estética” (ANJOS, 2012, n.p.). Para Anjos (2012), a política da arte encontra-se na criação artística quando esta embaralha as coordenadas de localização do sujeito para com o mundo. Deste modo, se aproxima das apostas de Rancière, ao passo que ambos pautam a importância das fissuras nas convenções e das brechas nos consensos que organizam a vida partilhada. “E é por ser capaz de desconcertar os sentidos, e de subjetivar esse desconcerto, que a arte pode, pelos próprios meios, reconfigurar os temas e as atitudes que se inscrevem nos espaços comuns de existência” (ANJOS, 2012, n.p.). Nas palavras de Farias e Anjos (2009 apud VERNASCHI, 2009): A arte pode muito. E pode porque ela é capaz de mudar a compreensão que temos de nosso entorno, ou porque abre fissuras nas convenções que nos ajudam a formar julgamentos. Nesse sentido, é quase impossível dissociar arte e política. Mas menos do que afirmar noções tradicionais sobre ‘arte política’, em que a arte, através de clichês estéticos apenas repete o que já sabíamos por outros meios, estamos interessados em afirmar uma ‘política da arte’, em que a arte inventa formas inéditas de entendimento sobre algum aspecto da vida (p.3).
O que torna a arte mais importante no contexto atual, e o que define a sua política é justamente seu poder de questionar e de pôr pelo avesso aquilo sobre o que tínhamos dúvidas. Nesse sentido, é mesmo possível pensar numa ‘política da arte’ – ou seja, na capacidade de a arte abrir fissuras nas convenções que ancoram nosso entendimento da realidade (p.3). Como essas práticas artísticas, diante as “fraturas do mundo”, fizeram de suas frestas, espaços de resistência? Como, através delas, experimentaram abrir “mundos inesperados no mundo que lhes opunha?” (CÉSAR, 2014, p. 14). Por dentro dos enunciados hegemônicos do neoliberalismo, nos questionamos se a arte pode desestabilizar suas normativas, e de que forma aponta para modos outros de atuar juntos no mundo. Da mesma forma que estamos atentos, por outro lado, os mecanismos de controle do sistema estão o tempo todo enclausurando estas experiências dentro da lógica do mercado.
28
Moacir dos Anjos, natural de Recife, nascido em 1963, é curador e crítico de arte contemporânea. A sua formação se dá integralmente na área da economia e sua atuação é atravessada pela história, teoria e crítica de arte, além da curadoria e administração cultural.
54 “Insistir em sua própria política é, talvez, a maneira mais efetiva de a arte lutar contra as forças regressivas que habitam o corpo social, as quais teimam em suprimir a diferença e o dissenso” (ANJOS, 2012, n.p.). Moacir dos Anjos, bem como Rancière, acredita na necessidade de aprofundar o desentendimento entre as partes, evidenciando a importância de se ativar e adensar o lugar de expressão dos invisibilizados e subalternizados. A antropóloga e pesquisadora Julia Ruiz Di Giovanni29, no texto “A arte de abrir espaços” (2015), apresenta a complexidade dos cruzamentos entre experiência política e criação estética, explorando suas intercessões e sobreposições nas formas contemporâneas de ação coletiva. Para tal, convoca o termo “artivismo” no sentido de explicitar, a partir deste neologismo, a possibilidade de contaminação das noções em torno da prática artística e do ativismo político – e mais, acaba por denunciar a necessidade de ultrapassar os limites de ambos os campos. Mais do que aprofundar-se no desenvolvimento do artivismo como uma categoria, o esforço está em pensar sobre os modos de fazer que constituem uma dimensão da ação social comum entre ativismos e processos artísticos, “práticas em trânsito entre arte e política, que contravêm e manipulam as fronteiras entre os dois termos” (DI GIOVANNI, 2015, p. 16). Acreditamos que (...) a ação coletiva – na arte ou no ativismo – recorta o “sensível comum”, cria espaços e temporalidades, altera os limites do que é visível e dizível. As práticas organizativas, comunicativas e táticas de um movimento não apenas representam conflitos sociais, mas criam formas da experiência mesma desses conflitos. (DI GIOVANNI, 2015, p. 18) Di Giovanni fará referência tanto aos movimentos antiglobalização da virada do século, quanto aos protestos que insurgiram em 2011, nos EUA e na Espanha, defendendo a importância da dimensão estética e simbólica para o desenrolar destas ações coletivas. Denuncia a presença de uma práxis de origem “artística” em tais movimentos de organização política que terminam por provocar “deslocamentos importantes no campo da arte, desafiando os limites do possível também em termos do que é artístico e do que não é” (DI GIOVANNI, 2015, p. 17). Ademais, evidencia o alargamento das fronteiras convencionais da política, explicitando que “formas de dissenso e reivindicação ‘se aproximam mais’ à dimensão cotidiana dos “modos de vida” e “contraculturas”, do que das
Julia Ruiz Di Giovanni (São Paulo) é doutora em Antropologia Social e pesquisadora em Pós-Doutorado no PPGAS-USP. Bacharel em Comunicação Social, possui formação em dança, performance e educação somática, áreas nas quais convergem seus interesses atuais de pesquisa sobre as relações entre arte e política. 29
55 estruturas programáticas e ideológicas que o senso comum atribui aos movimentos sociais” (DI GIOVANNI, 2015, p. 14). A pesquisadora se debruça sobre dois aspectos importantes que marcam essa zona de contaminação entre arte e política: “espaço aberto” e “ocupação”, práticas que, segundo a autora, fazem parte do repertório tanto dos artistas quanto dos ativistas. É interessante observarmos quanto a estratégia de “acampamento” recorrente nos movimentos de 2011, sob o lema “ocupar e resistir”, está relacionada à tentativa de “criação de um espaço de experiência em que fosse possível construir vontades compartilhadas e uma força política capaz de expressar, legitimar e fazer valer essas vontades” (DI GIOVANNI, 2015, p. 19). E conclui que a política se dá na fusão da experiência subjetiva e corporal de ocupar a praça, se dá nas relações sociais e sensoriais que a prática da ocupação estabelece (DI GIOVANNI, 2015, p. 19). Vemos aí uma reorganização semântica, gestos que para além de políticos, são estéticos, porque movem de lugar significados, reordenam a dimensão sensível na relação com o mundo, tal qual Mouffe e Rancière nos apresentaram. Vale lembrar que o esforço aqui consiste no tensionamento dos limites em torno da arte e da política, a fim de reconhecer transversalmente o que atravessa ambos os campos, formando uma zona intersticial no qual se dá ao fazer-comum. O que pode nos ajudar a compreendê-la melhor, é nos debruçar acerca da noção de liminaridade, proposta pelo antropólogo britânico Victor Turner (1982), a fim de vermos com mais nitidez como se dá às formas híbridas, “fenômenos liminóides” que ao mesmo se tempo se inscreve na dimensão estética e política. A direção no pensamento de Turner aponta para os ritos e o estado transitório no qual os sujeitos apresentam-se indeterminados, como se houvesse uma morte social seguida de uma reintegração na estrutura, “quando o passado está momentaneamente negado, suspenso ou revogado e o futuro ainda não começou, um instante de pura potencialidade em que tudo, tal como era, estremece.” (TURNER, 1982 apud DI GIOVANNI, 2015, p. 20). Di Giovanni, ao referenciar o pensamento de Turner, sugere que o “processo de abertura de espaços “liminares” torne possível produzir dispositivos experimentais, “para que os sujeitos mudem coletivamente, a ordem transtornada se transforme e se prefigure outro mundo possível” (EXPÓSITO, 2014 apud DI GIONANNI, 2015, p. 20). Como se pelas brechas, fendas, fosse possível a insurgência de práticas contra hegemônicas, e por estes espaços abertos se dê o fazer-comum tal qual evidenciamos na primeira parte deste trabalho. Em suas palavras,
56 Como se produz uma “ocupação”? Que modos de fazer, dizer ou representar estão implicados na criação de “zonas autônomas temporárias”? Como estas figuras de ação e pensamento atualizam a relação entre estética e política, entre a manipulação das formas sensíveis e a transformação ativa das relações de poder? (DI GIOVANNI, 2015, p. 15). Não podemos deixar de citar as Zonas Autônomas Temporárias (TAZ), que dialogam com a noção de zonas liminares, definida acima, mas que trazem como aspecto central o caráter impermanente e transitório. O escritor anarquista Hakim Bey30 (1990) cunhou a expressão em questão, designando uma área “de terra, tempo ou imaginação” (BEY, 1990, n.p.) liberada, em que a recusa da ordem política imposta se converte em formas positivas de experimentação. No instante que antecede e ao mesmo tempo precede, se tornava possível a irrupção de outros mundos possíveis, outras formas de fazer e conceber, revoltas e reverberações, em espaços liberados, reais ou metafóricos, politicamente implicados e pela natureza temporária, parece escapar da cooptação dos sistemas hegemônicos. A ordem é provisoriamente interrompida para que novas conexões possam ser produzidas. A TAZ é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se refazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la (BEY, 1990, n.p.) O conceito em torno da TAZ afirma o levante e renúncia a revolução, trata-se da fagulha que necessariamente implode uma determinada zona para partir para outra, fazendo questão de ironizar as “bem-sucedidas” revoluções burguesas, fascistas e etc. Afirma o bando e renúncia a família nuclear, e ao invés de escassez, abundância. Inverte paradigmas modernos e ocidentais e se desenvolve na contramão radical das experiências sociais em curso. A família é fechada, geneticamente, pela posse masculina sobre as mulheres e crianças, pela totalidade hierárquica da sociedade agrícola/industrial. Por outro lado, o bando é aberto - não para todos, é claro, mas para um grupo que divide afinidades, os iniciados que juram sobre um laço de amor. O bando não pertence a uma hierarquia maior, ele é parte de um padrão horizontalizado de
Peter Lamborn Wilson, natural de Baltimore, nascido em 1945, conhecido pelo pseudônimo de Hakim Bey, é um historiador, escritor e poeta, pesquisador da organização social dos Piratas do século XVII, teórico libertário cujos escritos causaram grande impacto no movimento anarquista das últimas décadas. Seu livro T.A.Z.: Zona Autônoma Temporária foi traduzido para vários idiomas sendo lido no mundo todo. 30
57 costumes, parentescos, contratos e alianças, afinidades espirituais etc. (BEY, 1990, n.p.). É interessante como as TAZ estão relacionadas aos modos de fazer e não a um lugar propriamente dito, e ainda que se intitule zona, “ela aponta para uma forma essencialmente inacabada da ação social” (DI GIOVANNI, 2015, p. 22). Pensar a TAZ como a prática de abrir espaços, metaforicamente, é pensá-la enquanto experimentação estética e política, conforme afirma a pesquisadora, que não é “mantido aberto por alguém: não é um lugar, nem um princípio, mas um artefato” (DI GIOVANNI, 2015, p. 22) que resiste ao ordenamento, ao enclausuramento e a permanência.
Estas noções nos ajudam a compreender melhor a relação entre as táticas que permeiam tanto as ações coletivas dos movimentos políticos quanto as prática dos artistas, “sendo possível analisar ambas como modos de abrir espaço para a rearticulação das capacidades humanas de cognição, afeto e criatividade, criando experiências de revogação momentânea das estruturas normativas de um sistema sociocultural“ (DI GIOVANNI, 2015, p. 20). Por isso, apostaremos nesta possibilidade da arte como forma de “reconfigurar os modos e as relações entre o sentir, o agir e o pensar, ou seja, entre as esferas ética, cognitiva e ético-política” (CÉSAR, 2014, p. 25). Desta confluência, seguiremos abrindo espaços de reflexão sob diferentes perspectivas, e iremos em direção ao o que tece o nó(s), entre a arte e o fazer-comum. Se falamos da dimensão política do comum a partir de um sobrevoo, na primeira parte deste trabalho, agora nos interessa aterrissar e falar de dentro do campo da arte – tendo em vista que falamos da beira dele, formulamos a partir de suas zonas liminares, conforme as premissas já elencadas aqui. O político segue nos acompanhando para pensar os limites entre arte e a vida, entre mim e outro, entre o centro e a periferia e como essa discussão ressoa na historiografia da arte. 2.2.
O LIMITE
Aqui iremos observar como as fronteiras do campo da arte são implodidas na direção da criação de zonas limítrofes, nas quais as práticas artísticas contemporâneas assumem formas híbridas em espaços de intersecção entre arte e vida. A implosão sugerida não exatamente promulga o “fim da arte”, mas o fim de uma compreensão histórica que agrupa estilos e movimentos em uma linha quase contínua e progressiva, a renúncia das linguagens enquanto categorias fechadas e desarticuladas, distanciando-se da defesa da “arte pela
58 arte” – ou seja, da defesa por uma arte que gira em torno do seu próprio eixo. Se a noção de política, conforme anunciamos no tópico anterior, está relacionada à partilha da vida, vejamos quando a arte se envolve nesta trama de forma a se diluir e se fundir em instâncias insuspeitas e inesperadas. Vale salientar que ao nos referirmos à arte contemporânea, estamos considerando a produção que insurge a partir dos anos 1960 comungando com o pensamento dos teóricos Michael Archer (2012), Fernando Cocchiarale (2005), Renato Rezende (2010), entre outros. No entanto, mais interessados do que estabelecer um marco referencial que separa a arte moderna da arte contemporânea (não há um consenso e os debates acerca de quando começa uma e termina outra são muitos), tendemos a evidenciar justamente a prática que desmancha e redesenha as linhas que separam as práticas artísticas do que é vivido cotidianamente e coletivamente. Observemo-la enquanto interface que articula questões – o que não significa que a relação arte e vida não foi explorada em outros períodos, por outros artistas e movimentos, como os surrealistas e dadaístas, por exemplo. A contemporaneidade rompe com aspectos centrais da modernidade, ainda que haja uma série de continuidades e progressões. A partir da formulação do sociólogo Nestor Garcia Canclini31 (2008), o que seria romper com a utopia moderna? Se tal utopia consiste exatamente na ideia de processos simbólicos inseridos em um campo emancipado, seria o esforço da modernidade em separar, segmentar e postular uma independência para arte, como se esta não tivesse atravessada pelas questões sociais, políticas e econômicas do seu meio. Canclini (2008) aponta para as contradições deste projeto emancipador, apresentando autores como Pierre Bourdieu como representante da corrente que sustenta a ideia de autonomia da arte. “Para Bourdieu, cada campo cultural é essencialmente um espaço de luta pela apropriação do capital simbólico, e em função das posições que se tem em relação a esse capital” (CANCLINI, 2008, p. 41), no qual se estabelecem convenções, sistemas de legitimação, paradigmas da forma, independente das dimensões fora do campo. A arte, desta forma, se autorregula a partir de si mesma. Em contraponto, Canclini (2008) reforça que “mudar as regras da arte não é apenas um problema estético: questiona as estruturas com que os membros do mundo artístico estão habituados a relacionar-se, e também os costumes e crenças dos receptores” (CANCLINI, 2008, p. 41). O sociólogo defende que a visualidade pós-moderna (ou
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Néstor García Canclini, natural de La Plata, nascido em 1939, é um antropólogo argentino contemporâneo. A sua pesquisa é atravessada pelas relações entre estética, arte, antropologia, estratégias criativas e redes culturais, com foco na compreensão da cultura na pós-modernidade a partir de ponto de vista latino-americano.
59 contemporânea) remete ao mesmo tempo a duas perdas: tanto do roteiro, quanto do autor. A desaparição do roteiro significa a ausência das grandes narrativas que organizam e hierarquizam o mundo da arte, enquanto a desaparição do autor refere-se à incompatibilidade da figura do artista como criador proprietário de gestos fundantes - quase como um Deus em um mundo “pseudolaico” (CANCLINI, 1998, p. 329). O sociólogo afirma que, na pintura recente, um mesmo quadro pode ser ao mesmo tempo hiper-realista, impressionista e pop, concluindo que “o pós-modernismo não é um estilo, mas a co-presença tumultuada de todos, o lugar onde os capítulos da história da arte e do folclore cruzam entre si e com as novas tecnologias culturais” (CANCLINI, 1998, p. 345). Vale atentar aos suportes e práticas de caráter essencialmente híbridos, como o vídeo, a performance, a instalação, que se popularizam e problematizam os binarismos que separam o culto do popular, o visual do literário, o artesanal da produção industrial e da circulação massiva, bem como a proliferação dos dispositivos de reprodução como o videocassete e a fotocopiadora (CANCLINI, 1998, p. 336). Não podemos deixar de dar a devida ênfase na cidade como espaço da heterogeneidade e do encontro com a diferença – o desenvolvimento do urbano, para Canclini, é um aspecto fundamental para pensar os hibridismos, mutações, contaminações e contágios. Em suas palavras, (...) a vida urbana transgride a cada momento essa ordem. No movimento da cidade, os interesses mercantis cruzam-se com os históricos, estéticos e comunicacionais. As lutas semânticas para neutralizar, perturbar a mensagem dos outros ou mudar seu significado, e subordinar os demais à própria lógica, são encenações dos conflitos entre as forças sociais: entre o mercado, a história, o Estado, a publicidade e a luta popular para sobreviver (CANCLINI, 1998, p. 301).
Em oposição às categorias modernas que situavam a arte em um campo cultural nitidamente definido, passamos a ver as práticas na arte como ferramentas enunciativas, como catalisadoras de novas formas sociais. Se Bourdieu delimitou um campo voltado para si, seguimos na direção contrária - a partir do conceito de “campo expandido”, observamos na contemporaneidade o transbordamento das práticas artísticas para fora dos circuitos e dos sentidos que lhe são habitualmente atribuídos. O conceito de “campo expandido”, foi formulado pela crítica e pesquisadora norte-americana Rosalind Krauss, no renomado texto “A escultura no campo ampliado” (1984), em busca de observar o transbordamento dos processos artísticos para fora dos circuitos e dos sentidos que lhe são habitualmente atribuídos. “Se a arte moderna defendia a autonomia da arte e a especialidade de cada gênero artístico, a partir dos movimentos de
60 contracultura da década de 1960 (...) a arte foi retirada do seu pedestal” (REZENDE, 2010, n.p.). Krauss parte sua reflexão elencando as diferentes instâncias que são atribuídas a categoria “escultura”, referindo-se a sua maleabilidade em agrupar uma diversidade grande de ações e práticas. Segundo ela, tanto a pintura quanto a escultura foram categorias esticadas e torcidas, “numa demonstração extraordinária de elasticidade, evidenciando como o significado de um termo cultural pode ser ampliado a ponto de incluir quase tudo” (KRAUSS, 1984, p. 129). Ela menciona que entre os anos 60 e 70 considerou-se esculturas pilhas de lixo enfileiradas no chão, toras de sequoias cerradas e jogadas na galeria, por exemplo, entre outras composições aleatórias, tornando-se ainda mais difícil uma definição precisa que dê conta. Ao invés de jogar com oposições, como fizeram os modernistas ao negar a tradição e instaurar um “novo”, ao invés de se ater as categorias que afirmavam sua autonomia e suas regras próprias, o “campo expandido” remonta outro tipo de estratégia. Trata-se de produzir composições complexas de linguagens, técnicas, agentes, propostas, etc., sem uma adesão a um meio especifico de expressão (escultura, pintura, por exemplo), articulando diferentes materiais, recursos e proposições. Apropriamo-nos da ideia em torno do campo expandido, e seguimos para além da discussão em torno do gênero e linguagens abordada por Krauss no artigo referenciado. Interessa-nos aqui a formação de zonas fronteiriças, nas quais se converge o além-arte e por meio da arte, reconhecendo nestes espaços “entre” a potência inventiva em reorganizar os signos, re-dispor criativamente por meio de outras sensibilidades e ressignificar os sistemas cotidianos da vida comum – zonas fronteiriças se afastam da ideia de linhas precisas e compreendem-se enquanto espaços de trânsito que permitem ambiguidades, confronto, metamorfoses, movimento. A fim de comportar trabalhos e experiências que se inserem nas margens ou nas fronteiras do campo artístico, seguimos não somente interessados nas fusões das linguagens, mas como se dão estes momentos em que arte e não-arte se provocam e contaminam, não enquanto uma diluição total, mas como um interstício no qual ambos os lados, arte e vida, são tensionadas, convergindo com a afirmação do artista Ricardo Basbaum: Acho mais interessantes essas provocações recíprocas entre o campo da arte e o campo da vida, sem que um se resolva facilmente no outro, senão a gente perde o tensionamento. A obra de arte é um tipo de produção que também serve para transformar e provocar a vida, nos seus hábitos, naturalizações, costumes, regramentos e na
61 sua regularidade. Então é preciso sempre preservar uma certa dose de estranhamento (BASBAUM, 2016, n.p.). A partir da segunda metade do séc. XX, o sistema e as instituições de arte passaram a ser questionados, assim como os processos de legitimação e canonização de objetos de arte e de artistas, que passaram a assumir papéis múltiplos, atuando não somente como “artistas” (criadores de “obras” de arte), mas como críticos, curadores, produtores e editores. Apropriamo-nos da ideia do “artista como um agenciador” (BASBAUM, 2006, p. 63) ou “artista-etc.” (BASBAUM, 2016, n.p.), expressões cunhadas por Basbaum para expandir o papel do artista no fazer-contemporâneo da arte. Os artistas, neste sentido, são responsáveis por “articulações e deslocamentos que permitam o trânsito – de ideias, problemas, obras, artistas, eventos etc.” (BASBAUM, 2006, p. 65), formando circuitos que interfiram na trama social: Esse “artista-etc.” vem querer reforçar o artista enquanto produtor, no sentido de reconhecer esse artista com ferramentas conceituais, capaz de sentar em uma mesa de negociação com todos os outros interlocutores, capaz de intervir em cada um desses campos e também de exercer papéis em todos esses campos, pensando que a obra de arte é sim algo de produção material, mas também de produção crítica, histórica e teórica. (BASBAUM, 2016, n.p.). A noção de artista-etc. de Basbaum nos remete ao que Walter Benjamin, em 1934, defendeu no texto “o autor como produtor”. Ali, em certa medida, já se anunciava o desmoronamento de aspectos centrais para modernidade, como a autoria. Segundo Hal Foster32 (2014), Benjamin enxergava que os novos meios técnicos disponíveis e a possibilidade de reprodutibilidade com a fotografia, o cinema e a música, tornam-se pressupostos de criação de novas formas artísticas, alargando limites e fronteiras antes estabelecidas para o que seria a prática do artista/autor, superando dicotomias entre formas
versus conteúdo, estética v ersus política (FOSTER, 2014, p. 158). Dos limites do moderno e contemporâneo, presente em Benjamin, saltamos para os limites entre o eu e o outro, a partir da obra de Hal Foster, em referência direta ao texto do filósofo, que propõe o “artista como etnógrafo”. Se pensamos os limites como zonas, conforme trouxemos no enunciado anterior, partimos para a fronteira com o “outro”, a fim de reconhecer quando a relação com ele
Hal Foster, natural de Seattle, nascido em 1955, é crítico de arte e historiador americano, professor da Universidade de Princeton desde 1977. Ele é conhecido por suas reflexões sobre as vanguardas artísticas do pós-modernismo. 32
62 passa a ser um paradigma para as práticas artísticas. Mouffe (2013) nos traz a ideia de que o outro é o limite social que desestabiliza o próprio eu, num jogo de interferências mútuas, no sentido de “que toda identidade é relacional e que a afirmação da diferença é precondição para a existência de qualquer identidade, ou seja, é na percepção de um ‘outro’ qualquer que seu ‘exterior’ se constitui” (MOUFFE, 2013, p. 186). Para Marisa Flórido, é nas fronteiras que as “identidades se denunciam improváveis, mutáveis e instáveis: fundem-se, metamorfoseiam-se e extraviam-se em fugas aleatórias” (CÉSAR, 2014, p. 142). Quando aceitamos que identidades não são, nunca, predeterminadas, mas sempre o resultado de um processo de identificação – construído discursivamente – nos põe a pensar como as práticas artísticas interferem no processo de subjetivação entre sujeitos. A arte é endereçamento, afirma Marisa Flórido, ou seja, nela contém o ato de ir em direção ao outro, marcando uma saída de si, recompondo tanto o emissor quanto o receptor. Hal Foster aprofunda-se na chamada “virada etnográfica na arte”, no seu livro “O retorno do real”, reconhecendo esta como um novo paradigma estruturalmente compatível ao que se propunha “autor como produtor” (FOSTER, 2014, p. 160). Enquanto Benjamin conectava o artista ao trabalhador proletário, no sentido da luta de classes, Foster (2014) assinala para o campo das disputas simbólicas e culturais, das relações de identidade/identificação nas relações presentes nos anos 1990. O autor afirma que há muitas maneiras de envolver o outro na arte produzida no séc. XX (FOSTER, 2014, p. 170), salientando quais momentos e movimentos, em certa medida, dimensionam e recorrem ao “outro” em suas práticas. Para Foster, há dois antecedentes fundamentais que devem ser sublinhados para pensar o paradigma etnográfico da arte contemporânea, que são: “o surrealismo dissidente”, com Georges Bataille e Michel Leiris entre as décadas de 1920 e 1930, e o movimento da negritude, associado a Léopold Senghor e Aimé Césaire, entre as décadas de 1940 e 1950. “Ambos os movimentos conectaram, de diferentes maneiras, potencial transgressor do inconsciente alteridade radical do outro cultural” (FOSTER, 2014, p. 162). Ele reforça a antropologia cada vez mais percebida como a “língua franca” das práticas artísticas sobretudo a partir dos anos 1990, no entanto, aponta os riscos dessa guinada em direção ao outro, “na medida em que a fantasia do primitivismo não é desarticulada (...) as explorações da alteridade até os dias de hoje irão alterizar o eu à maneira antiga, em que o outro permanece o contraponto do eu” (FOSTER, 2014, p. 165). Hal Foster (2014) chama-nos a atenção para o interesse artístico pelas relações com a sociedade, a história, a economia e a política, sugerindo que para localizarmos estas práticas, temos que operar alguns desvios: “da superfície do meio ao espaço do museu, dos
63 enquadramentos institucionais às redes discursivas”, afirmando que “muitos artistas e críticos passaram a tratar as condições como desejo ou doença, AIDS ou carência de moradia como lugares para arte” (FOSTER, 2014, p. 173). Conclui, desta forma, que ao recorrer às ferramentas e metodologias da antropologia e da sociologia, a arte passou para o campo ampliado da cultura, cujo impacto se dá na dimensão social, no eixo horizontal. Essa análise leva o autor a discutir o lugar das práticas artísticas a partir do que denomina de virada para o referente – a saber, uma virada das elaborações específicas do meio artístico para projetos artísticos no campo social. A partir da elaboração de Foster, conseguimos reconhecer nos projetos artísticos contemporâneos a busca por adentrar na vida de grupos sociais cujos artistas não fazem parte, a fim de desenvolver proposições e processos circunscritos por esse ímpeto etnográfico. Por um lado, marca-se a diferença e a distância, por outro, o desejo de aproximação e encontro, e assim, inúmeras contradições e ambiguidades caminham lado a lado de interessantes ativações e intervenções nos cotidianos de ambas as partes. O desafio é não exotizar, tão pouco tentar se igualar, estabelecer canais sinceros de troca de saberes sem nunca esquecer as posições que se ocupa dentro do jogo relacional, partir da diferença, ao invés da semelhança, permitindo invadir-se pelo outro, na tentativa de provocar inversões e alterações na “ordem natural” estabelecida pelos sistemas hegemônicos. Foster reforça as armadilhas destes projetos criados em contribuição com grupos locais, afirmando que em muitas casos, (...) poucos princípios do observador-participante etnográfico são observados, quando não criticados, e o envolvimento da comunidade é limitado. Quase naturalmente, o projeto se extravia da colaboração à automodelagem, de um descentramento do artista como autoridade cultural a uma reconstrução do outro sobre a capa neoprimitivista (FOSTER, 2014, p. 179). O interesse em desenvolver projetos artísticos na periferia, por exemplo, por artistas ou grupos que habitam os centros, é uma constante. Testar os limites da cidade e atravessá-la é um exercício de muitas dessas práticas de cunho etnográfico, no entanto, ir em direção à margem não pode ser mais uma forma de marginalizá-la? As ações muitas vezes são pontuais, extraem desses territórios, se relacionam com eles, mas não alcançam demandas estruturais: faltam rastros mais profundos, falta escuta e sensibilidade para com o outro. Obviamente que há experiências efetivas, bem como Foster (2014) nos chama atenção ao afirmar que “muitos artistas aproveitaram tais oportunidades para colaborar com as comunidades de forma inovadora, para resgatar histórias reprimidas” (p. 179), por
64 exemplo, quando se propõe a “ocupar espaços culturais perdidos e propor uma revisão da memória histórica” (p. 179). Vejamos os limites: entre o eu e outro, entre arte e a vida, entre as margens e os centros, acreditamos menos na ideia de superá-los, pois deles surgem uma centena de possibilidades de relação, choque e negociação, os limites se prolongam em “zonas liminares” reformulando ambos os lados. Seguiremos atravessados pelas bordas, vendo através delas – as margens tanto definem o que tem dentro, quanto possibilitam o contato e contágio com o que tem fora. Para elucidar, as últimas intervenções feitas no muro que separa os Estados Unidos do México, erguido pelo atual presidente Donald Trump, são emblemáticas (poderíamos citar os tantos muros na história que cumpriram o mesmo papel deste). Foi justamente na divisa entre o opressor e o subalterno, justamente nas fronteiras onde tantos morrem tentando atravessar, que foram instaladas três gangorras pelo arquiteto Ronald Rael e pela designer Virginia San Fratello. Crianças de um lado e crianças do outro, brincaram, por alguns instantes, onde foi possível transmutar aquilo que as separam, física e simbolicamente33. 2.3.
O RELACIONAL A capa da revista Select desse trimestre34 estampa o coletivo indonésio Ruangrupa,
responsável pela direção artística da Documenta 1535 a ser realizada em Kassel em 2022. O título provisório “Lumbung”, remete ao celeiro de arroz de uso coletivo próprio da sua região, projeto no qual a curadoria propõe um convite à construção de ecossistemas. Em entrevista à Benjamin Seroussi (diretor da Casa do Povo), o integrante do coletivo Farid Rakun nos atenta que nenhum artista indonésio jamais participou das quinzes edições realizadas e nenhuma delas a curadoria foi diluída em um agrupamento. A revista ainda reúne a perspectiva da curadora e pesquisadora Daniela Labra sobre as redes colaborativas de artistas e ativistas brasileiros que promovem modelos de vida alternativos em Berlim, apresenta também a discussão a partir dos colaboradores do trabalho da Bárbara Wagner e do Benjamin Burca em relação a atuação coletiva na arte, aposta no título “estética da convivência“ para contar como a plataforma Explode! organiza
33
Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/07/31/muito-comovente-diz-arquiteto-que-montou-gangor ra-na-fronteira-entre-mexico-e-eua.ghtml. Acesso em: 18 nov. 2019. 34 Referência à 43a edição da revista Select, lançada em junho de 2019. 35 A Documenta é considerada como uma das mais importantes exposições da arte contemporânea e da arte moderna que ocorre a cada cinco anos em Kassel, na Alemanha.
65 os projetos de imersão coletiva, entre outras matérias que se inscrevem nesse campo de reflexão. A proliferação de projetos processuais, relacionais, colaborativos e desmaterializados que tomam o campo social como horizonte de atuação marcam as práticas contemporâneas na arte nas últimas décadas. O interesse no outro e na coletividade, o viés político e sociológico que se dão a partir de propostas abertas que se desenvolvem como laboratórios experimentais, ampliam as noções de participação do público e compartilhamento da autoria. Associar-se, reunir, agrupar, conviver, criar junto/viver junto – não é uma tendência exclusiva da contemporaneidade – no entanto, observar o engajamento e as estratégias coletivas em voga (conforme vimos nos temas que revista Select aborda) nos diz muito sobre o mundo que vivemos hoje. A dimensão política do comum é experimentada através de práticas que reorganizam as relações com o outro e com o espaço, consigo mesmo e com a cidade, possibilitando outros processos de subjetivação através da arte, com a arte, por meio dela. Pensar de forma genealógica, nos leva a observar a conjuntura na qual surge essa “tendência” na arte a partir dos anos 1990 e que se fortalece no séc. XXI. Se afirmamos nesse trabalho que vivemos a fase cognitiva do sistema vigente, em uma mudança de uma economia de bens para uma economia de serviços, no qual o fenômeno da globalização diante do mundo ultraliberal altera os fluxos, as fronteiras e as relações, as práticas contemporâneas também estão inscritas sob essas condições. Para o sociólogo Nestor Garcia Canclini (2012), nos encontramos no período da arte “pós-autônoma”, ou seja, vivemos a intersecção do sistema de arte com outros campos de enunciação, no qual passamos “das práticas artísticas baseadas em objetos a práticas baseadas em contextos até chegar a inserir as obras nos meios de comunicação, espaços urbanos, redes digitais e formas de participação social (CANCLINI, 2012, p. 24). No intuito de fazer uma breve contextualização historiográfica, podemos afirmar que a passagem da tradição modernista para a arte contemporânea, no Brasil, se dá a partir das experiências de Flavio de Carvalho; da participação do público e a integração entre arte e vida propostas por Lygia Clark e Hélio Oiticica, passando pela crítica institucional de Nelson Leirner até́ as situações e experiências de Artur Barrio e as Inserções em Circuitos Ideológicos de Cildo Meireles (COCCHIARALE, 2005). Segundo Cocchiarale (2005), foi introduzido “pela primeira vez no campo da arte a temporalidade como fluxo ou processo – experiência, apropriação, e com elas, aproximação entre arte e vida” (COCCHIARALE, 2005, p. 14). Discordamos parcialmente desta afirmação: o caráter processual e outras
66 temporalidades podem ser observadas no percurso dos dadaístas, futuristas e no próprio Duchamp, ainda que o encontro da arte com a vida tenha sido aprofundado. Nos Estados Unidos e na Europa, a pop arte e o minimalismo, segundo o crítico e teórico Michael Archer, são responsáveis por essa passagem, na qual se destacam os artistas Andy Wahrol, Frank Stella, Donald Judd e Robert Smithson. Ainda como antecedentes, podemos citar o desenvolvimento da arte conceitual que, por sua vez, traz à tona a dimensão do que vem por dentro, a primazia do conteúdo, da ideia e do pensamento crítico em detrimento da forma, “onde antes havia pinturas e esculturas, agora havia itens de documentação, mapas, fotografias, listas de instruções e informações” (ARCHER, 2001, p. 78). Existem diferenças óbvias entre estes citados acima e o que vem sendo experimentando a partir do fim do séc. XX, sobretudo na virada do milênio, pois tratam-se de conjunturas bastante distintas socialmente, politicamente e economicamente. Contudo, o que nos interessa é observar como a produção artística dos anos 1960 e 1970 renúncia, em parte, o seu lugar ensimesmado, “invadindo-se pelas exterioridades, deslocando-se para os lugares do mundo e para as contradições da vida” (CESAR, 2014, p. 105). A ideia em torno da pós-autonomia de Canclini se dá justamente nesta chave de leitura que reconhece que “compreender a obra de arte em sua soberania absoluta, definindo-se a partir do que lhe é específico soaria cada vez mais insuficiente” (CESAR, 2014, p. 105). Devemos salientar que os agrupamentos artísticos permearam todo o séc. XX e o fazer coletivo esteve presente enquanto prática que experimentou outras formas de estar no sistema da arte. Daniela Labra (2009) nos lembra que os futuristas, dadaístas e surrealistas, por exemplo, são movimentos marcados pela sua formação grupal (LABRA, 2009). Convergindo com o pensamento do crítico e escritor Ricardo Rosas36 que reforça que “coletivos, em si, nada têm de novo. Já são uma tradição na arte, na literatura, que percorreu todo o século vinte, aqui como lá fora” (ROSAS, 2008). Nos cabe pensar como, em diferentes tempos e contextos, se rearticulou as esferas cognitiva, ética-política e sensível a partir destes coletivos / coletividades e até que ponto o fervor contemporâneo aprofunda e dialoga com as problemáticas deste século – com foco nas últimas três décadas. Cabe esclarecer que utilizamos os termos coletivo e coletividade, para nos referir tanto aos agrupamentos de artistas e etc. reconhecidos como coletivos artísticos, além das ações e agenciamentos operados por arranjos coletivos, muitas vezes 36
Ricardo Rosa, natural de Fortaleza, foi um escritor, net crítico, tradutor e ativista brasileiro. Como
um dos idealizadores e organizadores do Festival Mídia Tática Brasil, ele aproximou artistas, techs e ativistas políticos. Ele criou o Rizoma.net, um site que entre 2002 e 2009 abrigou o um amplo acervo nacional de artigos sobre hackativismo, contracultura e intervenção urbana.
67 pontuais em torno de um projeto específico ou em torno de uma ocupação de um espaço, por exemplo, mas que se realizam a partir da colaboração/interferência de outro(s) coautores. Em todos os casos, o intuito é observar o transbordamento no social e sua articulação com esferas além-arte – seguimos interessados nas ações que partam da sociedade e retornem para ela, em alguma dimensão, onde arte e a política estejam implicadas operando no mundo. Dos anos 1960 e 1970, aqui evidenciamos três casos emblemáticos que contém partículas do que iremos ver mais à frente: primeiramente, a articulação translocal entre artistas, pesquisadores, escritores, poetas, músicos, a partir do grupo Fluxus. Em seguida, os projetos de espaços vivenciais de Hélio Oiticica e seu encontro com Gordon Matta Clark que, por sua vez, manteve uma obra-restaurante no Soho em Nova York. Vale citar que estes dois últimos, sobretudo HO, estão presentes na concepção da vigésima sétima bienal. São exemplos para que vejamos alguns aspectos importantes para pensar a “virada social” a partir dos anos 1990, apontam e experimentam saídas do campo, articulação comunitária, práticas relacionais, incorporando o outro mediante outras sensibilidades. A leitura que o crítico de arte e curador Walter Zanini37 faz do grupo Fluxus reforça que “menos que um estilo, um conjunto de procedimentos, um grupo específico ou uma coleção de objetos, o movimento Fluxus traduz uma atitude diante do mundo” (FLUXUS, 2019, n.p.). Zanini (2004) nos lembra o quanto o Fluxus catalisa uma série referências de movimentos e artistas, como o futurismo, dadaísmo, a Black Mountain College, Marcel Duchamp, entre outros (ZANINI, 2004). Oficialmente, o marco inicial do grupo está relacionado ao Festival Internacional de Música Nova que foi realizado em Wiesbaden na Alemanha, em 1962. Foi George Maciunas (1931-1978), artista lituano radicado nos Estados Unidos, o responsável por referenciar-se ao movimento com uma palavra de origem do Latim FLUXUS, “o que escorre”, de FLUERE, “fluir, deslizar, escorrer” (FLUXUS, 2019, n.p.). Zanini salienta que se pretendia afirmar a prática artística “que desfizesse a distância entre artista e não-artista, uma arte em estrita conexão com a normalidade da vida e segundo princípios coletivos e finalidades visceralmente sociais” (ZANINI, 2004, n.p.), definindo-os Walter Zanini (1925 – 2013), natural de São Paulo, foi um professor, historiador, crítico de arte e curador brasileiro, responsável por estabelecer as bases conceituais e curatoriais do primeiro museu universitário do Brasil dedicado à arte contemporânea (MAC/USP), no qual atuou como diretor entre 1963 e 1978. oi curador das 16a e 17a edições da Bienal Internacional de Arte de São Paulo ocorridas em 1981 e 1983 respectivamente. 37
68 (...) como uma comunidade informal de músicos, artistas plásticos e poetas radicalmente contrários ao status quo da arte. Não obstante ainda hoje atraia detratores, a alternativa anti culto que o movimento revelou nos inícios da década de 1960 foi altamente contagiante, recebendo, em sua trajetória, consciente ou inconscientemente, o acatamento de múltiplos artistas espalhados pelo mundo (ZANINI, 2004, n.p.). George Maciunas caracteriza o movimento como um estado coletivo e não como um segundo eu (MACIUNAS, 1964 apud ZANINI, 2004, n.p.) justamente para reforçar seu caráter fluido que não deveria se estagnar tampouco se institucionalizar. Conforme afirma, “o fluxus tem mais valor como ideia e como potencial para a mudança social do que como grupo concreto de pessoas ou como coleção de objetos” (MACIUNAS, 1964 apud ZANINI, 2004, n.p.). Vale comentar que a presença do Fluxus se dava em massa em apenas dois continentes, apesar de alcançar países menos centrais no circuito da arte como Japão e Canadá. Fizeram parte desse grupo nomes como Dick Higgins, Yoko Ono, George Brecht, Nam June Paik, Wolf Vostell, Ken Friedman, Shigeko Kubota, Yasunao Tone, Ben Vautier, entre muitos outros. Joseph Beuys, artista alemão, considerado emblemático no sentido de práticas fronteiriças na arte, em 1963 concretizou sua “filiação” ao grupo. Dentre as produções mais marcantes do grupo, estão os happenings e concertos: atos cênicos de inspiração conceitual, em que se exploravam os sons produzidos por objetos cotidianos, associando-se elementos da música, do teatro, da poesia e do vídeo. Renunciava-se a ideia do artista como “sujeito privilegiado da expressão individual, dotado de uma consciência estética particular e uma visão transcendente do mundo” (CÉSAR, 2014, p. 108). Reivindicava-se a potência criadora que habita todas as pessoas em geral, artistas e não-artistas, culminando na máxima de Joseph Beuys “todo homem é um artista”. Hoje, seria necessário acrescentar: “e todas as mulheres também!”. Nos interessa observar como os artistas do Fluxus experimentam uma formação interdisciplinar e translocal, no contágio entre as linguagens e na articulação em rede que anuncia, em certa medida, o que iremos ver na escala contemporânea: “a rede com suas fronteiras físicas, políticas e simbólicas fluidas e difusas. Uma rede que entrecruza tramas, que se move em direções abertas, que faz confluir distâncias e proximidades” (CESAR, 2014, p. 109). A “comunidade” fluxus precede de vínculos permanente e estáveis, não há um território comum e são as práticas que os conectam, as linguagens não são as mesmas e os princípios políticos movem (dentro e fora) o sistema da arte. Vale ressaltar que as intenções nem sempre se concretizaram, muitos dos projetos não foram desenvolvidos na prática, mas devemos reconhecer a importância desse
69 “princípio Fluxus” que irrompe neste período e para alguns permanece até os dias de hoje. Fluxus defendia uma “produção anti-individualizada” – o que o insere dentro do campo da criação coletiva - e a rejeição da obra de arte enquanto objeto único e acabado. Conforme Zanini (2004) nos elucida, (...) a comunidade criada por Maciunas e seus colegas históricos distanciou-se no tempo, mas indaga-se sobre o que hoje prossegue sendo Fluxus. Um agrupamento que penetrou tão intensamente a arte no contexto transformador de nosso Zeitgeist requer essa atenção. Um "estado de espírito" ou uma "atitude Fluxus" não deixou de existir, na opinião de muitos (n.p.). Enquanto o Fluxus estrutura-se em rede, com artistas de diversas nacionalidades e uma coexistência transversal de trabalhos e posicionamentos, tanto o artista Gordon Matta Clark e o que está por trás do restaurante Food38 quanto o artista Hélio Oiticica e suas ideias em torno do Barracão (), voltam-se para a aterrissagem no território, se propõe a relacionar-se com os contexto no qual se inserem. Abordar estes dois trabalhos é reconhecer neles a importância do espaço e da convivência na cidade, para a irradiação de propostas que incidem na vida coletiva, que interferem em cotidianos (não só de artistas como dos moradores, transeuntes, pessoas em geral). Vale lembrar que ambos os artistas permanecem artistas individuais e suas trajetórias foram amplamente reconhecidas pelo sistema da arte. Consideramos que não há como escapar do percurso de Oiticica para pensar as questões levantadas neste trabalho. Não iremos dar conta de um aprofundamento maior em sua obra, no entanto, tanto a discussão da arte e vida, quanto a participação do público, são centrais em sua trajetória e devem ser citadas aqui, ainda que de forma breve. Nos interessa, além de pontuar ambas as discussões, referir-se ao texto-obra Barracão, escrito em 1969, considerados como parte do desenvolvimento dos Parangolés, dos Labirintos, dos Édens, ou seja, a continuidade do seu programa ambiental. Ao extrapolar a capa, Oiticica propõe estender para um contexto arquitetônico vivencial. Em Nova York, o artista se dedicou a produzir textos-obras, nos quais o artista visionou a construção de espaços compartilhados na cidade, “para servir à comportamentos. Para as pessoas, no seu dia a dia, fruírem, seja descansando, seja se amando, seja conversando, seja fazendo suas refeições e etc.” (FAVARETTO, 1992, p. 196). Barracão nada mais é que uma proposta de estrutura orgânica, uma alusão ao que ele havia encontrado nas favelas cariocas: casas sem distinção de cômodos, espaços compartilhados por todos que habitam, onde o dentro e o fora se misturam. Oiticica desenvolveu a proposta do
O restaurante FOOD foi fundado pelos artistas, além de Matta-Clark, Carol Goodden e Tina Girouard. 38
70 Barracão explicitando a ideia de “células comunitárias” ou “comunidades experimentais”, ao transformar a moradia em obra aberta para viver o “dia-a-dia como campo experimental aberto” (FAVARETTO, 1992, p. 197). A escolha por citar este trabalho do HO se dá justamente por esse espaço proporcionar justamente a convivência, espaço de liberdade e experimentação - algo que já está presente em seu percurso, conforme podemos ver, mas que se materializa nesta ideia de uma “comunidade experimental“, livre e coletiva, ainda que não tenha sido realizado de fato. Neste mesmo sentido, trazemos o restaurante de Gordon Matta Clark – inclusive existe a hipótese que o próprio Oiticica esteve lá, onde se conheceram, no período em que ele viveu em Nova York (LAGNADO, 2006, p. 228). Matta Clark mudou-se para o Soho39 no final dos anos 60. Depois de uma mudança de lei de zoneamento, foi estimulado a ocupação de armazéns vazios a fim de serem utilizados como estúdios – conhecida como a “lei dos artistas em residência”, favorecendo artistas, músicos, poetas e intelectuais a irem à margem do centro, desvalorizada com a crise industrial, subsidiados pelo estado, mediante esta política de habitação. A trajetória deste artista já indica interesse pela cidade, pela arquitetura, pelo uso do espaço, um “arqueólogo urbano” (CRAWFORD, 2006, p. 236) afirma Jane Crawford, mulher do artista, em sua participação no seminário da vigésima sétima. Crawford (2006) ainda nos conta sobre o espírito cooperativo entre os moradores e a intensa vida coletiva que eles compartilhavam. “O Soho foi re-construído pelos artistas que lá moravam. Um ajudava o outro, em troca de trabalho, numa atitude de reciprocidade” (CRAWFORD, 2006, p. 237). Em 1972, Matta Clark, abriu um restaurante, chamado Food (CRAWFORD, 2006, p. 236), um lugar de encontro que ao longo de dois anos configurou-se como um espaço localizado entre a arte, comida e articulação comunitária. Conforme Guilherme Wisnik elucida, no texto crítico no âmbito da exposição do artista no MAM (São Paulo), em 2010, definindo como um “um lugar de happenings e improvisações artísticas e culinárias” (WISNIK, 2010, p. 193) cujas “ações críticas no espaço já não se encerram em campos disciplinares puros e autônomos. Atividades contaminadas pela heterogeneidade imperfeita do mundo real, da qual elas são ao mesmo tempo parte e contraponto” (WISNIK, 2010, p. 197).
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O Soho até os anos 60 havia sido um promissor bairro destinado a atividade comercial, abrigando a indústria têxtil no começo do séc. XX, entre outras empresas, por exemplo. A arquitetura é marcada pelo uso de ferro fundido nas fachadas, permitindo espaços amplos, sem divisões, com entrada de luz e pé-direito alto. O declínio da atividade industrial, por sua vez, esvaziou esta região, tornando ocioso estes edifícios (ALMEIDA, 2015, n.p.).
71 Aqui nos interessa a experiência comunitária desenvolvida a partir da noção do “Food” como espaço social, ponto de encontro e projeto de arte em andamento, que repercutiu, sobretudo, na comunidade emergente de artistas do centro da cidade. A comida (incluindo o cozinhar e o comer), neste e em muitos projetos de arte contemporânea, são também recursos para agregar e coletivizar, através deste fazer-comum, por onde muitos se reúnem e compartilham – trata-se de uma estratégia de colaboração que seguirá sendo importante e recorrente para pensar o comum e a arte. “Arte socialmente engajada, arte baseada em comunidades, comunidades experimentais, arte dialógica, arte litoral, participatória, intervencionista, arte baseada em pesquisas“ (BISHOP, 2008, p. 146) – são muitas as formas de se referir, conforme aponta Claire Bishop40, denunciando a dificuldade em reunir em uma só nomenclatura (assim como fizeram os movimentos na arte do séc. XX) o domínio expandido de práticas relacionais na arte. A desmaterialização torna-se ainda mais radical e o foco nas relações estabelecidas a partir da arte é o tema que Nicolas Bourriaud41 desenvolve em sua obra emblemática intitulada “Estética Relacional”, publicado em 1998. Neste livro, Bourriaud enfatiza o rompimento com as ideias modernas em torno da autonomia da arte, afirmando que o horizonte da arte passa a ser “a esfera das interações humanas e seu contexto social” em detrimento de um espaço simbólico autônomo e privado (BOURRIAUD, 2009, p. 19). Ou seja, é a partir do encontro (seja ele literal, seja ele em potencial) que os sentidos são elaborados coletivamente. Desta maneira, a forma da obra de arte contemporânea vai além de sua forma material, segundo Bourriaud, considerando-a enquanto elemento de ligação, um princípio de aglutinação (BOURRIAUD, 2009, p. 29). A diferença que Bourriaud faz questão de reforçar em relação a arte-política dos anos 1960 e 1970 é que a estética relacional se dá dentro da realidade existente, criando modelos de existência por dentro ao invés de esperar a revolução que vem de fora como fizeram as utopias modernas. Na verdade, Bourriaud se esforça em inúmeras passagens de marcar a diferença do que foi produzido nas décadas que antecedem a arte relacional, reconhecendo alguma relação com a trajetória do Fluxus e Gordon Matta Clark, por exemplo, no entanto enfatiza que os modos de articular o pensamento são completamente Claire Bishop, natural de Londres, nascida em 1971, é historiadora da arte, crítica e professora britânica, conhecida como uma das teóricas centrais na discussão acerca da participação e colaboração no campo das artes visuais e da performance. 41 Nicolas Bourriaud, natural de Niort, nascido em 1965, é curador, ensaísta, crítico de arte francês, foi cofundador e codiretor do Palais de Tokyo (Paris) entre 2000 a 2006 e diretor da Escola Nacional de Belas Artes de Paris, entre 2011 e 2015. 40
72 distintos (BOURRIAUD, 2009, p. 64). Segundo Claire Bishop (2008), a tentativa de Bourriaud de afastar a prática dos anos 1990 das gerações anteriores, se dá pelo argumento de que “os artistas de hoje buscam apenas encontrar soluções provisórias aqui e agora, em vez de tentar transformar seu ambiente, os artistas hoje estão simplesmente aprendendo a habitar melhor o mundo” (p. 3). Vale frisar o desconhecimento total da obra de Oiticica, que nem sequer é citado como influência ao campo relacional da arte, reforçando os limites de sua perspectiva eurocêntrica. Participação e interatividade são atributos fundamentais na reflexão deste teórico, para ele, “o artista concentra-se cada vez mais decididamente nas relações que seu trabalho irá criar em seu público ou na invenção de modelos de sociabilidade” (BOURRIAUD, 2009, p. 40). Reuniões, encontros, manifestações, jogos, festas, locais de convívio – são tidos como potenciais espaços de colaboração entre pessoas, “modos de contato e de invenção de relações representam hoje objetos estéticos” (BOURRIAUD, 2009, p. 40). Neste sentido, o autor sugere que o artista leva o observador a participar de um dispositivo, convida-o a completar a obra e a participar da elaboração de seu significado que só ocorre conjuntamente (BOURRIAUD, 2009, p. 82). Claire Bishop (2008) questiona a tese de Bourriaud justamente pela defesa de “como consequência, o trabalho é compreendido para ser político, em implicação, e emancipatório, em efeito” (p. 8). A crítica pergunta-se “qual o tipo de política está em jogo aqui?” E apressa-se em responder: “porque o trabalho é inclusivo e igualitário no gesto, político aqui implica uma ideia de democracia” (BISHOP, 2005, p. 118-119). As críticas ao trabalho de Tiravanija e Liam Gillick (ambos os artistas ícones na teoria de Bourriaud), giram em torno do tipo de relações de troca que se estabelecem em eventos como realizados por eles. A crítica de Bishop consiste em salientar que embora haja debate e diálogo nas peças culinárias de Tiravanija, não há suficiente fricção, tensão, ou qualquer outro termo que a qualificasse como democrática. Conforme a artista e pesquisadora Fabíola Tasca reforça: Os membros dessa comunidade temporária, instituída pela ação de Tiravanija, já se identificam uns com os outros, na medida em que têm em comum seu pertencimento ao mundo da arte. Todos têm um interesse comum em arte, e o resultado é uma fofoca do mundo da arte, revisões de exposições e flertes. Tais comunicações são boas em certa medida, mas isso não é em si emblemático da democracia. Para ser justa, eu acho que Bourriaud reconhece este problema – mas ele não eleva isto em relação aos artistas que ele promove: “conectar pessoas, criar experiências interativas e comunicativas”, ele diz, “para que? Se você esquece o ‘para que?’ eu temo que você fique com simples Nokia art – produzindo relações interpessoais para o próprio
73 bem deles e nunca endereçando a aspectos políticos” (TASCA, 2015, p. 15). Canclini também se posiciona de forma crítica à teoria da estética relacional, apontando para a falta de uma perspectiva mais complexa, mais sólida. Converge com Bishop, no argumento relacionado ao tipo e qualidade de relação que se estabelece nas práticas relacionais defendidas por Bourriaud. “Diante da desordem de um mundo sem relato unificador surge a tentação, como nos fundamentalismos (e de outro modo na estética relacional), de retroceder a comunidades harmoniosas onde cada um ocupe seu lugar, em sua etnia ou sua classe, ou em um campo artístico idealizado” (CANCLINI, 2010 apud TASCA, 2015, p. 16). Canclini pontua o modo espetacular que permeia os interesses em torno das escolhas e formulações desta teoria: Nesta recomposição mundializada, a estética relacional aparece como uma “reformulação apressadinha” de um crítico-curador interessado em intervir espetacularmente na crise analítica da arte com um repertório enviesado de obras e sem se encarregar da complexidade social (CANCLINI, 2012, p. 146). Para Claire Bishop, as relações intersubjetivas pressupõem mais aspereza, mais conflito, mais problematização para constituírem-se em relações que implicam a ordem do “político”. Assim como Chantal Mouffe, evidencia a importância do antagonismo no sentido de incorporar as fissuras e os dissensos, deixá-los à vista, afirmando a diferença ao invés de apaziguá-la. Em suas palavras, O antagonismo relacional a que me refiro não seria baseado na harmonia social, mas na exposição daquilo que é reprimido ao se sustentar uma aparência de harmonia. Ele, portanto, proveria bases mais concretas e polêmicas para repensar nossa relação com o mundo e uns com os outros (BISHOP, 2012, p. 132) Concordamos com ambas as autoras e apontamos para a potência do encontro com a diferença, a fim de provocar deslocamentos que permitam outras formas de se relacionar, que permitam a irrupção de outros processos de subjetivação. O “político”, no sentido do dissenso tal qual elucidado anteriormente, esteve presente nos coletivos artísticos, no Brasil, que emergiram entre os anos 1990 e os 2000? Mais do que responder essa pergunta, vejamos como se dão estes agrupamentos artísticos sob a ótica das redes, tendo como pressuposto que de uma forma geral, podemos afirmar que sim, estes incidiram diretamente no tecido social da cidade e geraram lugares importantes para debates, encontros, exposições ou mesmo para a formação de jovens artistas.
74 Primeiramente, devemos lembrar que existe uma variedade enorme de grupos circunscritos nesta categoria, sendo sempre uma tarefa delicada propor uma taxonomia que dê conta da diversidade de perfis. Cocchiarale (2005) nos chama atenção que “sua existência é possível graças à crescente indefinição (e confusão) de fronteiras entre arte, ética, política, teoria, afeto, sexualidade, público e privado” (p. 15).
A participação nestes grupos não exigia compromissos estáveis e permanentes, nem um reconhecimento absoluto – ao invés de identidade grupal fixa, havia processos de identificação que permitiam que artistas se vinculassem e se desvinculassem, “conexões feitas, desfeitas e refeitas, análoga à rede eletrônica por meio da qual se comunicam” (COCCHIARALE, 2005, p. 16). E, desta forma, se propunham provocar curtos-circuitos no sistema da arte, por dentro dele, na, a partir de estratégias virais que discutiam tanto a institucionalização quanto a mercantilização do campo. No entanto, devemos atentar que esta mesma fluidez e abertura foi também responsável por experiências superficiais, que se auto denominavam ativistas, praticantes da transversalidade e de coletividade, que assumiram “um vago estilo rebelde ou ‘da hora’, um hype passageiro e indevido” (ROSAS, 2005, n.p.). Essas iniciativas, pouco embasadas e aterradas, estavam ainda mais suscetíveis a processos de cooptação, justamente pela indefinição de pautas e posições claras – o potencial libertário e crítico dos coletivos foi por diversas vezes transformado em mercadoria. Pensar que é (...) no cerne mesmo destas contradições que se assenta o risco de descaracterização de coletivos artísticos que agem na esfera da intervenção política. Recentes casos de absorção de coletivos em ações de claro viés publicitário, como em festivais patrocinados por empresas como a Skol, Nokia ou Tim, arriscam por em cheque um ideário que diz muito mais respeito a uma prática de ação colaborativa fora dos esquemas de pressão capitalista, à semelhança de coletivos contemporâneos de ativismo tout court ou mesmo de comunidades de desenvolvedores de software livre ou open source, do que à cooperação forçada e vigiada do “trabalho flexível” das empresas criativas, como agências de publicidade ou escritórios de design, para citar alguns exemplos. (ROSAS, 2005, n.p.). A fim de expandir a categoria “coletivos artísticos” para fazer caber arranjos e iniciativas que não necessariamente se entendem como um grupo, mas que atuam e praticam a coletividade / colaboração, vejamos estes projetos autogeridos por equipes de trabalho constituídas por artistas ou mistas, que se formam para um determinado fim, sem um propósito de torna-se um coletivo, mas enquanto iniciativa coletiva. O artista e pesquisador Newton Goto, aponta para a prática de circuitos heterogêneos (GOTO, 2005)
75 como forma de encarar estas experiências de coletividade (seja em projetos, seja ações, seja em programas), afirmando que não são, necessariamente, vinculados a uma categoria ou especificidade da arte. Estão, diferente disso, abertos a multipadronagens culturais, são supra-linguagens. São circuitos constituídos geralmente no agenciamento coletivo e em redes de afinidades, criando um campo singular e aberto à participação (GOTO, 2005, p. 8). Não nos parece que seja necessário concluir e definir um escopo para a arte relacional, importante mesmo é apontar para algumas direções no sentido de como essas práticas, na contemporaneidade, se relacionam, como se dão as conexões, os espaços de encontro, a natureza da articulação. Goto convoca outros sentidos (e circuitos) políticos da arte, perpassando o afeto, a crítica, a heterogeneidade e a autogestão como modo de pensar estas experiências de coletividade “entre tramas produtivas da cultura” (GOTO, 2005, p. 1), conforme afirma no próprio título do texto em questão. Esta perspectiva nos interessa, pois converge com a perspectiva desta investigação: o conceito em torno do comum a partir do seu “fazer” e dos sistemas possíveis que se formam em torno dele. Reconhecemos assim, no emaranhado e na potência das conexões, os vários agentes e grupos que tramam experiências de colaboração e reciprocidade, a partir da arte, circuitos onde cada ponto é vital e viral, sempre abertos a relacionar-se perante um sistema maior. Renuncia as noções abstratas de espaço e tempo próprias do universo autônomo da arte moderna, se contaminam com as margens, engendrando nos espaços do mundo, alternativas ao que se espera, afetividades como estratégia. 2.4.
A CASA
Ainda que o mundo em sua “versão virtual” dê conta de uma série de encontros e convívios, possibilitando o uso de ferramentas efetivas de articulação em rede diante experiências que se dão na “nuvem”, as casas, as moradias, as residências e as ocupações, são formas de implicação nos contextos e territórios nos quais se encontram. Reconhecemos na essência da casa a possibilidade de constituir-se subjetivamente, amparado pelas noções de abrigo e acolhimento, segurança e proteção, que nos possibilitam, em seguida, habitar o mundo e inclusive, chamá-lo de casa – ainda que tenhamos que nos deparar com sua hostilidade e desamparo. Trazer a dimensão da casa é discutir, na verdade, a importância do habitar. Habitar vai além de residir, ao ser empregado em seu sentido figurado, relaciona-se a estar
76 presente, a permanecer, a enraizar-se – vai além da concretude associada a moradia, conforme o filósofo e arquiteto Bollnow42 (2008) nos elucida: Habitar é uma constituição básica da vida humana, que somente agora, lentamente, vem sendo reconhecida em seu significado. O homem habita a casa. Em um sentido mais geral, ele também habita a cidade (...) Habitar, no entanto, significa sentir-se em casa num determinado local, com enraizamento, pertinência (p. 135). O filósofo e poeta Gaston Bachelard ao discorrer sobre a “Poética do Espaço”, relaciona ao habitar as noções essenciais atreladas à casa, como esse lugar no mundo que construímos e que nos constrói, reciprocamente, culminando na afirmação de que “todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa” (BACHELARD, 1993, p. 25). Ele remonta a estrutura do sujeito a partir da estrutura da própria casa, de forma análoga, como a extensão do corpo que abriga a alma – a casa se estabelece justamente no cotidiano de vivências efetivas e afetivas dos espaços. Neste sentido, Bollnow converge com o pensamento de Bachelard e evoca o “o espaço vivenciado” (BOLLNOW, 2008, p. 16) a fim de ampliar a noção do espaço vivencial, ou seja, do espaço concreto, real e matemático no qual se desenrolam e acontecem nossas vidas - o espaço vivenciado deve ser tomado num sentido subjetivo, podendo ser compreendido como a “experiência do espaço” (BOLLNOW, 2008, p. 16). Martin Heidegger colabora com essa discussão – ainda que não adentraremos suas concepções e teorias filosóficas com densidade – no sentido de aproximar o habitar do construir, em referência ao artigo “Construir, habitar, pensar” no livro “Ensaios e conferências” (2001). A partir dele, reforçamos a compreensão de que habitar é o modo como o ser ocupa o mundo, antes ocupando-se de si, do seu local de abrigo e referência. O filósofo afirma que é na construção da sua morada que o homem estabelece vínculo e pertença – o espaço vivenciado (e não vivencial) requer participação e envolvimento, no mesmo sentido do espaço praticado de Certeau, desenvolvido no primeiro capítulo. Nas palavras do filósofo, (...) uma ponte, um hangar, um estágio, uma usina elétrica são construções e não habitações: a estação ferroviária, a auto-estrada, a represa, o mercado são construções e não habitações. Na auto-estrada, o motorista de caminhão está em casa, embora ali não Otto Friedrich Bollnow (STETTIN, 1903 — 1991) foi um arquiteto, pedagogo e filósofo alemão. A sua pesquisa se dá, sobretudo, no cruzamento entre a filosofia e a educação. 42
77 seja a sua residência; na tecelagem, a tecelã está em casa, mesmo não sendo ali a sua habitação (HEIDEGGER, 2001, p. 125). Assim como Heidegger (2001), que afirma que o construir é indispensável ao habitar, Bachelard nos adverte que, num processo de construção de espaços de moradias, aqueles que ali vão morar devem participar ativamente desse trabalho (BACHELARD, 1993). Vale salientar que no âmbito desta reflexão, construir não é necessariamente colocá-la de pé, mas dar-lhe vida, dar-lhe sentido, efetivar suas possibilidades de uso, cuidá-la. E mais, coletiviza-la, torná-la útil para o coletivo, abrigar desejos e demandas para além de si, ser um ente em um sistema maior de relação e troca. Lembremos que o termo ““construir” vem do latim com, “junto”, mais struere, que significa “amontoar, empilhar, reunir, criar, erguer” (ORIGEM, 2017, n.p.). Ainda que a casa seja um símbolo da propriedade privada – o tal sonho da “casa própria” – vejamos como se transfigura para abrigar a prática do comum, a partir de uma ocupação que vai além do residir. Ainda que conviva com a existência de um proprietário, seja uma pessoa ou uma entidade, ainda que represente aquilo que não é público, ainda que possua horários restritos de uso, dentro da casa se constroem formas políticas e sensíveis de habitar. Se consideramos a casa como elemento estruturante nos processos de subjetivação, observamos como também representam nas práticas da arte contemporânea uma espécie de ancoramento no território em que se inserem, uma forma de estar presente e permanente (enquanto durar, naturalmente). Lugar de referência, encontro, assentamento, acúmulo, memória, enfim, “fazer-se casa” evoca uma infinitude de partilhas, em processos diários de construção de uma vida coletiva. Casa do Povo (São Paulo), Casa da Ribeira (Natal), Casa da Xiclet (São Paulo), A Casa do Cachorro Preto (Recife), Casa Camelo (Belo Horizonte), Casa da Grazi (São Paulo), Casa Nexo Cultural (São Paulo), A menor casa de Olinda (Olinda), Casa Tomada (São Paulo), Casa1 (São Paulo), Casa Rosada (Salvador), Casa da Lapa (Rio de Janeiro), Casa Três Pátios (Medellín), Casa Nuvem (Rio de Janeiro), Casa Charriot (Salvador), Casa Comum (Porto Alegre)43. São muitos os espaços que se intitulam casas, reconhecem no símbolo da moradia a possibilidade de incorporar o sentido de um habitar mais profundo e integral, renunciam seu lugar de passagem, para casar, atar, reunir, ainda que os contratos sejam desfazíveis, instáveis e infinitos apenas no tempo que duraram ou irão durar.
43
A listagem destes espaços se deu majoritariamente a partir do mapeamento da Kamilla Nunes na obra Espaços autônomos de arte contemporânea (2013).
78 Algumas dessas experiências se dão literalmente em casas de artistas que compartilham seus espaços domésticos com ocupações artísticas e coletivas. Como é o caso da “Casa da Grazi – Centro de Contracultura de São Paulo”, conforme a curadora Kamilla Nunes (2013) relata em sua pesquisa sobre espaços autônomos no Brasil. Segundo ela, “utilizar o espaço da “casa” como um lugar de convivência e experimentação envolve diversas camadas de acordos, integrações, limites, regras e afetividades, a tal ponto que nem sempre é possível separar “obra” e “gestão” (NUNES K., 2013, p. 37). Ousaria ainda escolher um cômodo em especial para representar como o lugar coletivo e “preferido” dos coletivos praticantes de coletividade: a cozinha. Se vemos a casa relacionada a nossa construção de si e da relação com o mundo, a cozinha é um ponto chave para pensar os espaços autogestionados. Podemos observar certa “vocação” para colaboração, em torno de algo que nos é comum: a fome, a mesa, as refeições, os modos de preparo. A cozinha (incluindo o cozinhar e o comer) permeou uma série de ações artísticas já realizadas, algumas delas, inclusive, levaram as cozinhas para o espaço público, como no caso das ações do Coletivo Opavirará44 na praça Tiradentes em 2012, bem como as performances envolvendo o preparo e compartilhamento de refeições de Tiravajina, amplamente conhecidas, em diversas ocasiões nos museus e galerias por onde passou. Cozinhar passa a ser uma estratégia de provocar o fazer-comum, que se relaciona com o outro, evocando a presença de quem tem fome, ou seja, de todxs: estar ali, partilhando tarefas e sabores, solicita engajamento, interação e cuidado. Não é por acaso que muitos dos projetos que se propõe a desenvolver trabalho com incidência em algum determinado contexto, ainda que estejam interessados nas vizinhanças e entornos, ainda que intervenham nos espaços públicos do seu bairro, se estabelecem em espaços físicos, que lhe permitem possibilidades de outras ocupações (ou melhor, outras existências). “Gradualmente, os artistas reconheceram que ocupam um lugar estratégico na sociedade contemporânea, fazendo com que a dicotomia “dentro” e “fora” deixasse de ser um limite, para se tornar um lugar de contato” (NUNES K., 2013, p. 27). Estes espaços, muitas vezes, tornam-se referência no sentido do acolhimento e do abrigo, permitindo-se ser invadido pela rua, espaços que não são públicos tampouco se configuram dentro da lógica do privado. Vale frisar que possibilitam atividades que necessitem ser alocados no seu 44
“OPAVIVARÁ! AO VIVO! foi um programa de intervenções urbanas realizadas pelo coletivo de arte OPAVIVARÁ! na Praça Tiradentes, nos meses de maio e junho de 2012. O programa, financiado através do edital Pró Artes Visuais, de 2011, da Secretaria de Cultura da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, consistiu em montar duas vezes por semana, durante o mês de maio de 2012, uma cozinha coletiva na praça, equipada com bebedouros de água potável, tanques para lavagem de louças e alimentos, forno e fogão à lenha, mesas e bancos, além de um estar coletivo com cadeiras de praia triplas e um mural aberto para a livre intervenção do público” (OPAVIVARÁ, 2012, n.p.).
79 interior, possibilitam que o coletivo possa partilhar o íntimo e o interno, por exemplo, em um outro grau e natureza de convivência. O “partilhar” destes espaços poderiam trazer diversas elaborações sobre a experiência do fazer-comum – as partículas do dia-a-dia muitas vezes oferecem uma reflexão ainda mais real e precisa sobre a vida coletiva. Como arquitetar uma casa menos ensimesmada que possibilite diferentes usos apostando na heterogeneidade como pilar de sua construção? Projetar uma casa que se interesse pelo nós, pelo juntxs, por ambiências que nos reposicione também nestes espaços? Que outras arquiteturas são possíveis, afinal? Assim seguimos nos perguntando. Para Nunes K. (2013), Em muitos casos a arquitetura contribui para a formação da identidade dos espaços. Ela pode ou não ser convencional, mas o que modifica a experiência espacial são as relações simbólicas que a transformam em um lugar de vivência, e não apenas de apreciação da arte. (...) As fisionomias arquitetônicas, em consonância com a formação de esferas públicas, enfatizam a dinâmica de suas interações sociais, seus vínculos afetivos e suas condições estruturais (p. 55). Pensar a prática das ocupação artísticas-culturais reforça ainda mais o caráter político da habitação, a permanência em um espaço abandonado ou desocupado alude, em muitos casos, à resistência de se manter e preencher o que antes estava vazio e ocioso. Ocupar com pessoas, ações, gestões, pensamento, posições, ou seja, preencher com vida e produzir a partir dela. A aproximação aos movimentos sociais, por exemplo, reforçou este terreno comum onde se partilham estratégias políticas de disputa e tomada de espaços por artistas e não artistas. Nas ocupações por direito à moradia e cultura, por exemplo, se demonstra o potencial de atuar juntos, como no caso do Hotel Cambridge45 (MSTC, 2016) bem como na ocupação Nove de Julho46 (KACHANI; SILVA, 2018). Vale citar, ainda que o “tipo” de
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O Hotel Cambridge, situado no primeiro quarteirão da Avenida 9 de Julho, fechado desde 2002, foi ocupado pelo Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC) em 2012. O edifício com 15 pavimentos e 241 quartos, antes ocioso, passou a abrigar mais de 170 famílias, cerca de 500 pessoas. Em 2016, após uma grande batalha frente ao poder público, o MSTC conseguiu aprovar o projeto de revitalização do prédio para que seja destinado para habitação popular, sendo transferindo a posse do edifício da Ocupação Cambridge para o próprio movimento (MSTC, 2016, n.p.). 46 A Ocupação 9 de Julho é uma ocupação de um prédio abandonado pelo INSS, no centro de São Paulo, pelo Movimento dos Sem Teto do Centro - MSTC e mais amplamente pela Frente de Luta por Moradia (FLM) desde 2016. A Ocupação Nove de Julho conta com 131 famílias morando no prédio e um dia-a-dia super intenso: “ há um bazar de roupas. Uma biblioteca comunitária. Uma brinquedoteca. Uma marcenaria. Um espaço para exposições, com direito a obra do artista Nelson Xavier, pela Bienal. Maria Gadú, Luedji Luna, Edgard Scandurra, Ana Cañas, Criolo, já se apresentaram por lá” (KACHANI; SILVA, 2018).
80 abandono seja outro, a ocupação das escolas pelos secundaristas e o envolvimento de diversos agentes, artistas, teóricos em prol das pautas da educação. O que nos parece é que “ocupar” é erguer por dentro de estruturas ociosas, uma casa que não é sua, mas nossa – ainda que a pauta seja a necessidade de moradias individuais para as famílias que fazem parte dos movimentos por habitação – ela precisa ser erguida a partir da coletividade. Neste sentido, se reforça, para além de tudo, o potencial de se fazer casa, tornando-se lugar de referência onde se abriga gente, ideia, projeto, cozinhas partilhadas, corredores-galeria, espaços de lazer e convívio, como vimos nestas experiências citadas. Ao longo da ocupação do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), no Antigo Hotel Cambridge, situada na região central da cidade de São Paulo, foi realizada um programa de residências, entre março de 2016 e março de 2017, com curadoria da Juliana Caffé e Yudi Rafael. “Quando ocupamos estava tudo um verdadeiro lixo. Transformamos o prédio para que ele fosse receptivo para outras áreas além de moradia, como saúde e cultura, dando função social à arquitetura”47, enfatiza Carmen Silva, líder do movimento por moradia e cultura do centro. Juliana Caffé ressalta que foi a partir da aproximação com a ocupação e com a própria Carmen Silva, ao longo da gravação do longa metragem “Era o Hotel Cambridge” que surgiu o desejo de realizar o projeto. “Com ênfase em práticas colaborativas, desenvolvidas em diálogo com a comunidade local e com parceiros, cuja pesquisa se relaciona com assuntos ligados ao cotidiano da ocupação, sua história e entorno”, à convite da curadoria, os artistas Ícaro Lira, Jaime Lauriano, Raphael Escobar, Virgínia de Medeiros estiveram ao longo de 3 meses, cada um, se relacionando intensamente com o cotidiano da ocupação e realizando uma série de atividades públicas nas áreas comuns do edifício. “Nossos trabalhos lidam com relações. A materialidade do trabalho é o índice das relações com pessoas e contextos”, contou Lauriano à revista Select48. “Escolhemos nomes com projetos experimentais e colaborativos, sem pretensão de produzir obra para o mercado”, reforça a curadoria. Como poderíamos pensar a relação entre as residências artísticas – um modo de atuação na produção contemporânea bastante difundida – e os sentidos atrelados à casa, tal qual definimos nesta reflexão? Residir artisticamente sugere uma experiência de habitar, ainda que de forma temporária? Não há uma única resposta, o universo das residências é bastante amplo e não podemos generalizar a implicação e o envolvimento com o espaço 47
Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2016/12/com-auto-construcao-de-areas-para-cultura-oc upacao-do-hotel-cambridge-ganha-premio-8380/. Acesso em: 22 out. 2019. 48 Disponível em: https://www.select.art.br/residencia-artistica-cambridge-vozes-plurais/.
81 vivencial local como um pressuposto para todas elas – como foi o caso da proposta para o Hotel Cambridge. Vemos residências de todos tipos com os mais variados propósitos, no entanto, concordamos que estas se configuram como uma possibilidade de um deslocamento que te arremessa em determinadas condições de vida e habitação, determinadas contingências, em uma determinada casa e te permite produzir através delas (e não a partir delas). O processo criativo e a experiência de habitação se encontram – não é por acaso que muitas das casas que citamos possuem programas de residências (Caso do Povo, Casa Três Patios, Casa da Grazi, Casa da Ribeira, entre outras). A proliferação das residências artísticas se dá a partir dos anos 1990, e torna-se uma maneira de experimentar modos de criação que leva em conta a alteridade, o encontro com outro(s) modos de vida, borrando ainda mais os limites entre a prática artísticas e o próprio viver. As casas não apenas abrigam esses artistas e agentes culturais, quanto fornecem espaços criativos, sociais e intelectuais para o desenvolvimento de si e das proposições, na constante relação com aqueles que ali estavam. Conviver em uma mesma casa é praticar o comum na sua gênese, é por aí que começa a dimensão política deste “comum como verbo” que defendemos neste trabalho. Para concluir, afirmamos a metáfora da casa – sabemos que a possibilidades do habitar vão muito além dela. Contudo, os sentidos de pertença e acolhimento, simbolicamente, cabe dentro dessa poética do espaço, evocando novamente Bachelard. Deixamos claro a importância da rua, da cidade, do mundo externo e desta forma, apostamos na porosidade entre estes: portas e janelas abertas permitem que a luminosidade de fora clareie os mundos internos, apostamos em salas que virem galerias e que por sua vez se tornem auditórios. Casas amplas – não em tamanho – mas em amplitude, em possibilidade, espaço de se refazer, reconectar, subir e descer, achar-se nos cantos, gavetas e armários. 2.5
A ESCOLA Retomando a revista Select e a matéria sobre o Ruangupura “faça amigos, não arte”,
Rakun nos conta que antes de serem convidados para a curadoria da Documenta, depois de um período fértil e produtivo no qual compartilharam uma espécie de armazém coletivo com outros grupos, foi possível obter recursos para a compra de um terreno juntos, no sul de Jacarta, capital da Indonésia. Neste momento, tiveram que pensar para que direção iriam: “Ampliando ainda mais o ecossistema, lógico”, reforçou um dos seus integrantes. “Então o
82 que fizemos foi decidir que íamos nos tornar uma escola. A partir daí nos tornamos Gudskul (pronuncia-se “good school”)” (RAKUN, 2019). Eles nos contam que Gudskul: estudos coletivos e ecossistemas de arte
contemporânea começou com 11 disciplinas diferentes, conduzida por um dos membros do coletivo e estava voltada justamente para uma espécie de “formação em coletividades”. As disciplinas abordavam assuntos como: sustentabilidade coletiva; educação para e através da prática de arte coletiva; ética coletiva e política; curadoria coletiva; arquitetura e arte; alguns dos temas citados pelo artista. Ele reforça o quão desafiante e instigante é esse “ser-escola” e nos faz pensar como a prática artística se dilui em processo de aprendizagem, transmissão de saberes e partilha de ferramentas. Será a partir de uma pedagogia do sensível? Com quais modos de estar e compartilhar, ensinar e aprender? Uma inteligência que preza o outro, a recepção, a troca, o retorno? Desenvolver o diálogo crítico e experimental, por meio
do processo de
compartilhamento e aprendizado, incluindo vivências e experiências, passa a ser o foco de muitos projetos artísticos contemporâneos. O programa da Gudskul torna o aprendiz, colaborador, envolvendo-o em um ecossistema artístico, dando-lhe a possibilidade de viver um local de exploração, experimentação e crítica de práticas coletivas de trabalho. A experiência de Joseph Beuys nos anos 1970 nos interessa, sobretudo, pelo entroncamento arte, política e educação, com foco na forma pela qual sua própria prática artística se converte na fundação de uma escola para pesquisa criativa e interdisciplinar. No caso, a Universidade Livre Internacional (FIU), criada em 1971, visto como um local vivo, onde era possível discutir questões reais da vida, no qual o potencial criador e crítico é a base do processo de aprendizagem. “O projeto se adere à arte através de uma interessante inversão: não é a FIU que está dentro da arte, e, sim, a arte que é inserida nas atividades educativas” (ROSENTHAL, 2011, p. 117), o que não remete a uma submissão de uma para com a outra mas uma integração que agiria diretamente na organização social da vida. Mais do que ensinar “algo” específico, se tratava de revelar dentro de cada um, a possibilidade de criar, efetivando sua máxima de que “todo homem é um artista”, no sentido de ativar seu potencial de invenção de si no mundo, invenção do mundo para o mundo. O manifesto reforça que (...) a criatividade não está limitada às pessoas que praticam uma forma tradicional de arte, e mesmo no caso dos artistas, a criatividade não está restrita aos seus exercícios artísticos. Cada um de nós é possuidor de grande potencial criativo encoberto pela competitividade e as agressões das cobranças de sucesso. Conhecer, explorar e desenvolver este potencial é o objetivo desta escola. A
83 criação, independente de ser expressa na forma de pintura, escultura, sinfonia ou um conto, não inclui apenas a necessidade de se ter talento, intuição, forças da imaginação e compromisso, mas também a habilidade de dar forma a materiais que podem ser estendidos a outras esferas de importância social (BEUYS, 1974 apud ROSENTHAL, 2002, p. 116). Vale frisar de que Beuys, na década anterior, lecionava na Academia de Arte de Düsseldorf, na qual mantinha severas críticas ao sistema de educação vigente, sobretudo acerca da relação professor / aluno. Ao longo dos anos 1970 e 1980, a FIU foi central para sua produção, a partir dela, Beuys sustentava a ideia da modelagem de uma p lástica social na qual “política e espiritualidade, materialidade e história, economia e natureza, entre outros pares dialógicos, eram recorrentes na intenção de provocar impulsos que promovessem ações de encontro e confronto” (BEUYS, 1974 apud ROSENTHAL, 2002, p. 117) reverberando diretamente na organização do mundo em suas diversas camadas. A dimensão de uma educação para além dos espaços formais e dos métodos convencionais, encontra-se com uma noção também expandida da arte, provocando processos pedagógicos ou processos de aprendizagem nesta zona de intersecção entre os campos. Às vezes mais pontuais, às vezes mais contínuos, essas ações se caracterizam por questionar as duas áreas em questão: o que pode a educação aprender das artes sobre a prática da educação e vice-versa? Celso Favaretto (2010) nos lembra que “a experiência da arte e sua possível função na educação não está na compreensão e nem no adestramento artístico, formal, perceptivo, embora possa conter tudo isto” (p. 232). Ele atribui à arte contemporânea a possibilidade de um “deslocamento da subjetividade”, na qual as proposições artísticas funcionam como “interruptores da percepção, da sensibilidade, do entendimento; funcionam como um descaminho daquilo que é conhecido” (FAVARETTO, 2010, p. 232). Neste sentido, apresentamos o conceito de “transpedagogia” elaborado pelo o artista e pesquisador Pablo Helguera, curador pedagógico da oitava Bienal do Mercosul49. Esse termo trata de projetos feitos por artistas e coletivos que fundem processos educacionais com a criação artística. Helguera salienta seu interesse pela relação profunda e criativa que possuem com a pedagogia (HELGUERA, 2011). Vale reforçar que, assim como faz Helguera, devemos evidenciar contraste com a disciplina da educação da arte, que 49
A Bienal do Mercosul, conhecida por sua preocupação e, portanto, respeito para com a educação, realiza projetos pedagógicos desde a primeira edição do evento (1997).
84 “tradicionalmente, está focada na interpretação da arte ou em ensinar habilidades para criar arte” (HELGUERA, 2011, p. 11).
Em seu texto de apresentação, ele sugere a expansão
da ideias convencionais acerca da pedagogia, afirmando que a “pratica da educação não é mais restrita às suas atividades tradicionais, que são o ensino (para artistas), conhecimento (para historiadores da arte e cura- dores) e interpretação (para o público em geral)” (HELGUERA, 2011, p. 12). Helguera (2011) aposta que ampliar a noção de pedagogia é incorporar “a realização criativa do ato de educar” (p. 12), a partir da ideia de que a construção coletiva de um ambiente artístico, com obras de arte, processos e ideias, é também uma construção coletiva de conhecimento. Talvez, ainda mais importante, reforça que o “conhecimento sobre arte não termina no conhecimento da obra de arte, ele é uma ferramenta para compreender o mundo” (HELGUERA, 2011, p. 12). Mônica Hoff (2011) foi também responsável pela organização da publicação “pedagogia no campo expandido”, junto à Helguera, fruto da experiência da oitava bienal do Mercosul. Em referência à “virada social” da Claire Bishop, ela propõe a “virada pedagógica”, na qual se “poderia garantir um câmbio verdadeiramente epistemológico para o campo da arte” (HOFF, 2011, p. 116). A premissa de que a arte é um processo pedagógico é sustentado pela autora que insere no tempo esta tendência ao sinalizar que a discussão toma corpo nas últimas décadas com a insurgência de iniciativas colaborativas. No entanto, a autora sugere alguns questionamentos: “é possível realizar experiências produtivas que integrem o mundo artístico contemporâneo e o sistema educativo sem que, na prática, um seja acessório do outro? Ou ainda, é possível que arte e educação sejam protagonistas em um mesmo processo?” (p. 117). A partir da colaboração da curadora e educadora Jessica Gogan, nesta mesma publicação, entendemos os “projetos artísticos que incorporam a pedagogia como um meio” definidos como aqueles que (...) usam práticas participativas que enfatizam a experiência, os encontros ou a relacionalidade frequentemente com intenções éticas e sócio-culturais específicas. A crítica contida nessas práticas parece se esforçar para enfatizar uma mudança da forma como nós entendemos o conhecimento para uma noção de conhecimento-criação como um processo participativo em si mesmo. (GOGAN, 2011, p. 16). Para que possamos aprofundar como se articula na prática, tomemos os “Laboratórios Comunes de Creación (LCC)” metodologia desenvolvida pela Casa Três Patios (C3P) desde 2012. O centro de arte contemporânea na cidade de Medellín, Colômbia, se configura como espaço transdisciplinar, combinando práticas artísticas, pedagógicas, teoria
85 da arte, ciências sociais e filosofia a fim de “estimular nuevas preguntas y respuestas que aborden los temas culturales, urbanos y sociales más importantes de los tiempos en que vivimos“ (LCC, 2016, p. 6). Sobre a metodologia desenvolvida, afirma-se que se buscan precisamente desarrollar la conciencia de la transformación en sus participantes, en donde el conocimiento, ese bien intangible, se entiende en relación consigo mismo, con el otro y con el mundo en una conversación curiosa, creadora y abierta, que tiene distintos fines y niveles de comprensión, desde lo concreto hasta lo abstracto. (LCC, 2016, p. 7). A metodologia é adotada pela rede de artes visuais de Medellín, possibilitando que um grupo de educadores / aprendizes, associados a C3P, realizem um programa profundo que articula a experimentação e criação coletiva, a fim de promover a transformação de si e do entorno. A partir de processos de subjetivação que levam em conta os contextos e as escolhas, se desdobram questões como direitos humanos, direito à cidade, cidadania e processos de pacificação. Os educadores estão em constante processo de formação: transversalmente ao que desenvolvem com as crianças e adolescentes, o grupo de condutores, junto à Casa Três Patios, adquirem ferramentas, experimentam proposições, discutem os processos vividos coletivamente. Ou seja, ensinar e aprender é uma via de mão dupla, continuamente estimulados, em experiências provocadoras e transformadoras, educadores também se tornam também aprendizes. No contexto brasileiro, a revista Select tem se dedicado a fazer uma série de reportagens que abarcam projetos de artistas, históricos e atuais, que estiveram ou estão engajados em construir escolas. O quarto capítulo desta série gira em torno da Escola do Por Vir, iniciativa do projeto Lanchonete <> Lanchonete que desde 2017 parte da cozinha como espaço de aprendizagem, construída com, na e para comunidade da Pequena África, na Gamboa, situada na zona portuária do Rio de Janeiro. Lanchonete assim se chama porque nasceu em torno de uma cozinha”, diz a artista Thelma Vilas Boas a Select. “A cozinha funda os princípios de uma escola. Uma escola de mundo. Através da alimentação, a gente cria processos: de alfabetização, de politização, de reconhecimento das faltas. Quando eu trouxe o projeto pra cá, a primeira coisa que eu ouvia era ‘estou com fome’. Como você ensina qualquer coisa pra uma criança que tem fome?” (ALZUGARAY, 2019, n.p.). A Lanchonete <> Lanchonete exalta a emergência do agora, “não é cedo, nem tarde, é a hora”, nas palavras da artista Thelma Villas Boas. A Lanchonete <> Lanchonete pode ser entendida como uma práxis, uma tomada de posição: trata-se de um processo de
86 envolvimento na construção de um outro tecido social – neste sentido, Thelma renúncia sua centralidade e convoca todos aqueles disponíveis para se enganchar e colaborar em um dispositivo local: “ele é antes de tudo um processo de aprendizagem coletivo desde o início, de troca e de escuta entre todos seus interlocutores: articuladores, crianças, jovens, adultos, artistas, trabalhadores, professores, pesquisadores, vizinhos, amigos e parceiros no propósito do bem-estar social” (VILLAS BOAS; QUINTELLA, 2019, n.p.). A Pequena África inclui os bairros de Gamboa, Saúde, Santo Cristo e Morro da Providência, historicamente reconhecida tanto pela chegada no séc. XIX de cerca de um milhão de africanos escravizados, quanto por ter sido a região com a primeira Favela do Brasil, no começo do séc. XX. Nas últimas décadas, tornou-se um palco de disputas e complexidades devido às transformações urbanas, ou melhor, as diretrizes políticas que orientaram os grandes projetos de “revitalização” da região portuária. Desta forma, devemos ter em conta que esta zona acumula algumas das mais severas fraturas da história do Brasil. “Depois que você cuida da fome, e de uma criança que se alimenta só com coisas processadas, industrializadas, como é que a gente pode educar um corpo que tem cansaço? Uma criança preta, pobre e favelada é uma criança exausta. Ela não tem onde descansar. Então, aqui é também um lugar de descanso, de segurança, de acolhimento”, reforça Thelma – nos remetendo à dimensão da casa que desenvolvemos no tópico anterior. Depois de ocupar o Bar Delas, boteco na esquina das ruas Pedro Ernesto e Sacadura Cabral, em frente à Praça da Harmonia, a Lanchonete <> Lanchonete acaba de mudar-se para um galpão de 240 metros quadrados na mesma rua, tornando-se associação, reunindo gente, organizando mutirão, reformando o telhado e lançando um grande desafio coletivo: uma cooperativa-escola, a escola do por vir, ou seja, uma outra escola, livre, politizada e de constituição de sujeitos criativos, críticos, propositivos e saudáveis. O programa perpassa seis eixos principais: alimentação, identidade e bem-estar social, educação, práticas e residências artísticas, comunicação e documentação e moradia e cidade. A Escola do Por Vir propõe uma “afrobetização”, proposta elaborada em conjunto com uma professora e pesquisadora do próprio Morro da Providência. O que se defende é que o processo de letramento das crianças deve perpassar as referências e significados da sua própria história, “porque essas crianças são herdeiras da diáspora africana. No entanto, não se reconhecem como herdeiros de rainhas e reis. São crianças que não sabem de sua origem. Esse apagamento histórico é comprometedor. Uma fratura enorme da história e de sua ancestralidade” (VILLAS BOAS, 2019, n.p.). Neste sentido, a formação é integrada à vida e as subjetividades daqueles indivíduos, a partir de uma “constelação curricular” que
87 estimulará a autonomia e emancipação, reconhecendo a importância de outros paradigmas e epistemologias no processo de alfabetização. Concluímos, desta forma, que construir e estimular uma pedagogia do sensível é pautar uma pedagogia expandida orientada também pelos modos de ver e apreender o mundo, pelas camadas subjetivas, pelas temporalidades e espacialidades que estão em jogo, pelo presente e passado, pela história e pela memória individual e coletiva. As práticas artísticas como terreno possível da reinvenção de nós mesmos parecem ser propícias para processos pedagógicos que visem a emancipação, que levem em conta realidades e singularidades, que possibilitem espaços comuns de compartilhamento e formação. 2.6.
O ECOSSISTEMA Pensar o ecossistema, no âmbito deste trabalho, é partir da noção da “arte como
produção de modos de organização”50 título do texto do artista e ativista político espanhol Marcelo Expósito, escrito em 2014. A renúncia da tradição centrada no objeto e na autoria, vem sendo pautada desde Walter Benjamin em “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica” e “O autor como produtor”, ponto de partida para Expósito. “Se pensamos justamente a prática da arte como a invenção de modos de organização, de modos de organizar a produção e a cooperação social... Aí temos uma chave” (EXPÓSITO, 2014, p. 6). Neste sentido, incorporamos ao horizonte da arte a capacidade de interferir e reinventar o modo que se tece a teia de relações, modo pelo qual se conecta diversas pessoas e práticas, em diferentes níveis de ação, conforme Expósito (2014) propõe. Aqui propomos pensar as práticas artísticas enquanto modos de cooperar socialmente, no sentido de “agir juntos”, do “agir comum”. Expósito (2014) reforça, primeiramente, a arte como um dispositivo concreto de cooperação, em seguida, com resultados tangíveis, bem como evidencia o conhecimento produzido, algo que não se pode mensurar. Afirmamos a importância de uma perspectiva sistêmica que se dá quando a arte se torna interface, quando ela se posiciona “entre” e evidencia o comum entre as partes, apontando para a potência de operar de forma conectada. Nosso esforço será questionar se a prática da arte pode abrir espaço e inventar modos de organização não condicionados aos sistemas hegemônicos, disponibilizando ferramentas e bagagens do seu próprio campo, aproximando os agentes, articulando camadas do sensível, do ético e do estético, deslocando o foco do objeto para a prática.
50
A arte como produção de modos de organização - apresentação de Marcelo Expósito no Museu de Arte Contemporânea de Castilla y León (MUSAC), 2014.
88 Daí vejamos de cima como se trama relações de ganha-ganha – no sentido do que Richard Sennett nos apresenta em sua obra “Juntos”. Segundo ele, “a cooperação azeita a máquina da concretização das coisas, e a partilha é capaz de compensar aquilo que acaso nos falte individualmente” (SENNETT, 2015, n.p.). Como se aproveitar as conexões para um melhor aproveitamento das potencialidades / singularidades a fim de que beneficie ambas as partes? A cooperação social, atualmente, significa exatamente disponibilizar ferramentas justamente para que esta cooperação seja potencializada de maneira autônoma, e não condicionada aos mecanismos de valoração que são característicos do capitalismo. O que o artista faz é disponibilizar ferramentas, muitas destas já́ compartilhadas com outras práticas (EXPÓSITO, 2014. p. 10). Nesta direção, tomamos emprestado as ideias em torno das ecologias culturais que o filósofo e crítico de arte argentino Reinaldo Laddaga. Na apresentação do seu livro, “A Estética da Emergência”, é sinalizada a irrupção de “projetos criativos que se articulam em redes de colaboração entre artistas e não-artistas e que, menos do que produzir obras de arte no sentido modernista do termo, se agrupam para participar da formação de ecologias
culturais” (ARANTES, 2006, n.p.), conforme afirma Priscila Arantes no prefácio do livro. A realidade cotidiana passa ser um “laboratório” que experimenta formas de colaboração entre sujeitos diversos, operando relações de alteridade, troca e compartilhamento – casas, escolas e sistemas de reciprocidade e cooperação funcionam sobrepostos. Laddaga (2006) aponta para a produção colaborativa complexa e hibridizada de caráter transdisciplinar que provoca ‘comunidades experimentais’, reuniões de pessoas em torno de questões, comunitarismo que eclode da prática e da necessidade articular-se (LADDAGA, 2006). Não significa que as instituições culturais “disciplinares” deixam de existir e de que as formações hierárquicas dentro do campo, por exemplo, são substituídas por formas colaborativas. No entanto, Laddaga (2006) reforça alguns aspectos conjunturais como as mudanças nas instituições culturais e circulação da arte nas condições modernas, apontando para a mudança de uma economia de bens para uma economia de serviços – tal qual nos referimos aqui como a fase do capitalismo cognitivo. Todavia, Laddaga (2006) aponta para a emergência de processos guiados por trocas pós-disciplinares e transdisciplinares possibilitando outro tipo de participação: ativa, crítica e criadora que resulta em proposições de sociabilidade e práticas de convívio que repensam o próprio espaço comum. A aproximação da arte com as noções em torno da ecologia evoca sua organização sistêmica, suas dinâmicas e qualidades relacionais entre os seus diferentes elementos.
89 Conforme nos elucida a artista e educadora Flávia Vivacqua, quando nos referimos à ecologia, “não trata-se de uma apologia à arte-ecológica ou de um retorno à natureza como única forma de vida interessante” (VIVACQUA, 2009, p. 28). O diálogo com seus princípios éticos e valores evocam relações de respeito e equilíbrio, tanto com o meio quanto com aqueles que compartilham deste meio, sendo possível a coexistência da diferença das espécies e das suas culturas, sem que uma subjugue à outra, mas que se nutram. Desta forma, sem cristalizar qualquer espécie de rótulo, preserva-se as sabedorias tradicionais ao mesmo tempo que são gerados novos paradigmas, vocabulários, metodologias, organizações e mais práticas em campos de atuação consciente (VIVACQUA, 2009). Em suas palavras, Plante ou acompanhe o ciclo de desenvolvimento de uma árvore frutífera, ou qualquer espécie vegetal próxima de você e de seu grupo local. A ideia é que seu ciclo de vida vai gerar volts, energia para ser consumida e transformada em catarse em nossos rituais de recombinação de dados. Trabalharemos com a poética deste acompanhamento de um ciclo biológico, como uma metáfora do nosso próprio ciclo de relacionamentos em rede e como um estímulo para aproximar o processo tecnológico do tempo de seu ecossistema.” (VIVACQUA, 2008 apud ORQUESTRA ORGANISMO, 2009, p. 28). Concordamos com Vivacqua quando sinaliza que estão emergindo novas formas de organização social rumo a governança não-hierárquica, mobilizadas pela confiança, transparência e colaboração entre os integrantes, focados no conhecimento livre, na ressignificação do trabalho, no estabelecimento de novos valores e ética, na busca por outras economias e sobretudo, outros modos relacionais, uma ecologia da cultura colaborativa (VIVACQUA, 2009, p. 29). É importante, no entanto, conferir complexidade aos sistemas de colaboração e diferenciar o horizontalismo das noções em torno da horizontalidade, conforme o professor Rodrigo Nunes, dedicado ao tema, nos apresenta em uma matéria publicada pela nona edição da revista Pise a Grama (2019), sobre liderança distribuída. O horizontalismo deve ser reconhecido pelo seu critério absoluto, enclausurado por um conjunto específico de práticas e de formas organizacionais estagnadas, negando os limites e os conflitos internos, para o autor. A necessidade de aderência a certos procedimentos e uma expectativa irreal, por sua vez, acabam por minar as experiências que se propõe uma inversão do vertical para o horizontal.
90 A horizontalidade, por sua vez, convida os seus próprios limites e os trata como constitutivos, conforme explicita Nunes R. (2016). “Desistir da fantasia de alcançar o modelo significa compreender a horizontalidade como algo que, para citar Deleuze e Guattari, “só funciona rangendo”: a falha constitui uma parte essencial do seu funcionamento” (NUNES R., 2016, p. 13). Passamos a entender a horizontalidade como um ideal regulativo: embora ela implique um princípio válido – um máximo de democracia, abertura e participação – esse princípio, irrealizável em termos absolutos, pode servir apenas como orientação para a prática, nunca como fim em si. A horizontalidade está relacionada, para Nunes R. (2016), ao aprofundamento do paradigma da rede, “tanto no sentido de realmente generalizá-lo como chave de compreensão quanto de adotar uma posição mais realista em relação às próprias redes, questionando o pressuposto de que seriam democráticas por natureza” (NUNES R., 2016, p. 13). Nunes R. (2016) reforça que não podemos colocar em oposição o mundo da organização em rede, do mundo das organizações verticais, afirmando que as redes não designam uma forma organizacional específica e que, inclusive, ela está presente nos partidos, sindicatos e nas organizações que operam verticalmente – “existir é estar em rede”. Ele conclui que a partir dessa generalização, o foco torna-se ao invés de organizações ou agentes individuais, ecologia que os mantém relacionados em: (...) um sistema-rede que nunca é plano ou indistinto, mas que está constantemente se diferenciando, adquirindo e perdendo nós e laços de diferentes intensidades, desenvolvendo clusters (zonas mais densas, onde os nós estão mais integrados) e h ubs (nós com alto número de laços e que conectam várias zonas diferentes da rede). Esta própria rede está situada, por sua vez, em outras redes mais amplas e assim sucessivamente (p. 17). Nunes R. (2016) define “sistema-rede” como um sistema que conecta indivíduos, grupos (temporários ou permanentes, formais ou informais), perfis (individuais, coletivos, pseudônimos) seja em plataformas digitais, seja em espaços físicos, compondo “uma série de camadas que interagem entre si sem que possam ser reduzidas ou superpostas umas às outras, e cujas partes também são redes”. Desta forma, o sistema internamente (ao invés de igualar conforme a noção em torno do horizontal absoluto) se diferencia, apresentando zonas mais esparsas e núcleos mais densos, alguns mais orgânicos, outros mais organizados, que a partir de interações contínuas e relações em movimento, conecta partidos, sindicatos, pequenos coletivos, redes informais de amigos, indivíduos e etc. Esta perspectiva sistêmica
91 (...) nos permite ver como coisas que não estão direta ou conscientemente ligadas se comunicam. Por exemplo, como os “rolezinhos”, cujos organizadores talvez não estivessem inicialmente pensando em política, foram rapidamente politizados; ou como o Bom Senso FC, cujos membros provavelmente não estiveram nas ruas em junho, foi influenciado pelos protestos. Permite, ainda, entender como diferentes grupos tomam a dianteira em diferentes lugares e momentos, ou como as pautas e reivindicações vão se conectando, se diferenciando, se transformando (das tarifas à Copa, da Aldeia Maracanã ao “Onde Está Amarildo?” e ao “Fora Cabral”, de volta às tarifas (p. 10). É interesse perceber como, no decorrer desta pesquisa, os diferentes projetos e espaços citados, por exemplo, se atravessaram entre si a partir das mais diversas formas de articulação: coexistindo e co-criando, se dando suporte, se visitando, disponibilizando ferramentas, oferecendo um serviço, são só alguns dos vetores que enredam essas experiências contemporâneas compartilhadas aqui. O que nos faz pensar que em tempos de desmonte, diante da crise institucional e política, sistemas como esse se configuram como uma possibilidade de existir, nutrem efetivamente e afetivamente as iniciativas, conferindo autonomia, por um lado e de interdependência, por outro. Podemos afirmar que essa tendência em dialogar com instâncias além arte se dá principalmente por reconhecer a importância de atuar em determinadas lacunas sociais, tornando-se agente de um sistema maior que inclui diversas esferas da vida. Por exemplo, além de ser casa e ser escolas, estes espaços articulam pequenos produtores a partir da rede de produtos da agricultura familiar, estão presentes nas assembleias de bairro, se relacionam com movimentos sociais, com os espaços vizinhos, com a rede de professores do município, com os centros assistenciais da igreja, enfim, posicionando-se na vida comum. Ainda que haja muitas contradições e problemáticas, arriscamos dizer que as práticas artísticas contemporâneas potencialmente podem ser disparadoras dos elos, dos nós, deste sistema-rede, como a partir delas, pautas foram articuladas, pessoas se encontraram, espaços físicos e virtuais se cruzaram. A arte acaba por se relacionar com a sociabilização humana e ambiental, interfere nos meios de compartilhamento e dos modos cognitivos: como se experimenta, como se aprende, como se inventa, como se imagina, como se constrói. Favorece, muitas vezes, a intensificação dos processos de troca, estimulam o encontro e o convívio das várias camadas do sistema, injeta o lúdico, desencobre o político, se alimenta da reciprocidade.
NO ES UN MAPA, SON VARIOS
A 3 km da Cidade Ademar – ABC paulista, a 2000 quilômetros de Salvador, a 20 quilômetros do centro de São Paulo, 3 quarteirões do limite da cidade, está o JARDIM MIRIAM ARTE CLUBE (JAMAC). Não é por acaso que partimos de sua localização, estar na periferia não é um mero detalhe, é sua condição de produção e existência. Por isso a importância de ir ao Jardim Miriam, para conhecer o JAMAC em sua dimensão mais concreta, mais geográfica e mais sincera. Consta no artigo 2 do seu estatuto: “O JAMAC tem por finalidade lutar contra a exclusão social; desenvolver a consciência crítica e trabalhar a noção de cidadania dos moradores do bairro Jardim Miriam; constituir-se como centro de trabalho da arte social, onde artistas interessados possam desenvolver essa atividade; tirar as artes plásticas do ‘circuito protegido‘ das artes, explorando efetivamente seu potencial transformador” (CHAIA, 2015, n.p.).
FESTA DE BAIRRO
A permanência é um aspecto que é necessário de evidenciar – ainda que o JAMAC tenha feito diversas travessias, saídas, inclusive para outras cidades, outros países, para outros espaços – os quinze anos de ancoramento na zona Sul de São Paulo, na subprefeitura de Cidade Ademar, no bairro do Jardim Miriam permitiram a construção de relações de vizinhança e vínculos com o território. O tempo é um dado, neste caso e por isso, para atravessá-lo, devemos respeito aos aprendizados, amadurecimentos e desafios proporcionados por ele.
NARRATIVAS COLECTIVAS
Vale frisar que no âmbito desta investigação, não iremos separar o trabalho da Mônica Nador com o percurso do JAMAC, entendemos que não se faz necessário demarcar onde começa um e termina outro. Veremos o JAMAC quanto uma proposição da Mônica que se dar no seu encontro com outros colaboradores, como uma expansão do seu próprio corpo em direção ao corpo coletivo. Colaboradores das mais diversas áreas, entre artistas, arte-educadores, professores, sociólogos, produtores, arquitetos, todxs fizeram e fazem parte deste clube construindo diferentes níveis de vínculos e engajamento. Atualmente fazem parte do JAMAC: Mônica Nador e Bruno Oliveira, coordenadores do projeto; Renata Carvalho, assistente administrativa; Izabel Gomes, cozinheira, auxiliar de limpeza e principal pintora dos panos de prato; Ana Beatriz Domingues, professor de Yoga e responsável pela clínica de educadores, Daniela Vidueiros, professora de estêncil; Quincas Avelino, Wesley Vieira da Silva, Vitor Fonseca, colaboradores do espaço e aprendizes nas oficinas de estêncil e serigrafia; Thais Scabio, coordenadora do JAMAC Digital; Anderson Rubbo, serigrafista; Mauro Pinto de Castro e a Zulmira Fonseca, colaboradores e conselheiros.
ARTE Ã&#x2030; UM VERBO
A Mônica Nador, em diferentes ocasiões, cita a influência do crítico de arte Douglas Crimp, a partir da obra “Sobre as ruínas do museu” (1993). Mônica reforça a importância deste livro para sua trajetória, justamente pelos questionamentos suscitados em torno da tradição iluminista que separa a arte da vida. Miguel Chaia nos lembra que a Mônica deixou de “produzir suas belíssimas pinturas a partir de 1994 (deve-se lembrar que ela era muito bem reconhecida pelo sistema da arte no Brasil) e recolhe-se a um auto-exílio de quase dez anos” (CHAIA, 2015, n.p.). Mônica Nador rompe em meados dos anos 1990 com os caminhos mais óbvios que a manteriam dentro das galerias, o pulso de ir em direção ao mundo e trabalhar para sua transformação fez com que ela redirecionasse sua prática. “Os antecedentes do JAMAC estão, portanto, na nova concepção de arte que Nador recompõe e na afirmação da sua sensibilidade social” (CHAIA, 2015, n.p.).
“MURO GRANDE E BONITO”
Do período anterior a construção do JAMAC, vale destacarmos a participação da Mônica Nador na quarta edição “inSITE”, projeto realizado na fronteira dos EUA e do México, entre San André e Tijuana, em 2000, a convite de um dos integrantes da curadoria, o crítico de arte Ivo Mesquita. A artista participou de uma residência ao longo de seis meses, resultando na construção de um trabalho com pessoas locais a fim de identificar os símbolos ancestrais e imagens regionais de um lugar composto de imigrantes. Estes, em seguida, foram reproduzidos nas paredes de suas casas. O interesse pelas bordas, pelos espaços fronteiriços, vai sendo articulado em diferentes contextos e a metodologia de trabalho também, antes de chegar ao bairro do Jardim Miriam.
FAZER EMERGIR NOVOS ESPAÃ&#x2021;OS-TEMPOS
O JAMAC surge como desdobramento da pesquisa do projeto Paredes Pinturas concebido e desenvolvido nos anos anteriores pela artista Mônica Nador. O ponto de partida é a ocupação da parede do MAM São Paulo, em 1996, intitulada “Parede para Nelson Leirner” uma primeira experiência que permitiu o contato da artista com a técnica do estêncil e sua replicação neste suporte. Das telas para as ruas, o projeto se direcionou para fora do circuito convencional e para fora dos limites das instituições, realizando em 1998 e 1999, respectivamente, o Paredes Pinturas em Coração de Maria (Bahia) e Beiru (Amazonas), possibilitado pelo financiamento da Universidade Solidária, aprofundando neste momento a participação das comunidades na construção dos padrões. Ao envolver o morador ou usuário do espaço no qual se realizam as intervenções, Mônica rever os limites do papel do artista enquanto autor da obra. Das palafitas para o município de Santo André, dos muros para retornar as instituições, o percurso do Paredes Pinturas é longo, agregador e reforça a busca pelo potencial transformador da arte no seu encontro com o mundo.
EXTRAMUROS
Paredes Pinturas é um trabalho fruto da construção coletiva de desenhos que são transformados em matrizes de estêncil para a disseminação de padronagens em paredes e outros suportes, onde se “testemunha o engajamento, a colaboração e a coletividade – artista e moradores – localizando-se na fronteira entre o figurativo e o abstrato, a produção em série e a artesania, a identidade do lugar e a metodologia em rede” (MARQUEZ, 2012, p. 15). É necessário envolvimento, negociação e produção para juntos formular sistemas de cores, formas, ritmos que se repetem nas estampas e são aplicadas nos muros das casas. Concebê-las, é de alguma forma, entrar em contato com a própria subjetividade, com a percepção e a memória coletiva e individual dos colaboradores.
EM NÃ&#x201C;S ALGUM LUGAR AINDA SONHA
Mônica Nador, conhecida também por Conca, nos contou sobre o desejo de comprar a casa que, desde 2003, serve como sede para o projeto do Jardim Miriam Arte Clube. Foram tantas vezes que mais parecia que outros significados moravam no concreto desejo da casa. Assim como parecia que o projeto “Paredes Pintura” era mais do que aquilo que víamos: a Conca parecia criar condições para sonhar com a casa a partir da possibilidade de uma transformação pontual e visual da moradia das pessoas. Eram sobre cores, estampas, mas eram sobretudo sobre a linguagem, sobre o dizer, sobre o contar. O que você gostaria de contar através de suas paredes? Quais outras narrativas podem insurgir a partir da liberdade de criar e realizar? se fazemos juntos, como se sobrepõe nossas histórias, como se mesclam nossos padrões e como co-criamos – com nossos retalhos de vida – uma colcha de nó(s) mesmos?
CONVIVÃ&#x160;NCIA E PERTENCIMENTO
Quando Bachelard diz que “todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa” nos faz pensar que o JAMAC tenta instaurar justamente a dimensão do habitado, desenvolvendo um trabalho por dentro do cotidiano, através dele, dia a dia. Neste sentido, o JAMAC fez e faz casas em muitos lugares por onde passa, habitar é revirar as camadas de histórias, é se relacionar, é instaurar a liberdade da criação, convidando para partilhar a autoria e o processo de produção.
ENCONTRANS
A questão, para Nador, não é transformar a sociedade no seu conjunto (...), Nador pensa a mudança de subjetividade no interior do grupo associado, da casa do outro ou dentro do bairro, mesmo que guarde o desejo da transformação global do sistema. A artista e a associação estão voltadas para as pequenas transformações. Assim, o palco dos acontecimentos gerados pelo JAMAC é o ateliê. O JAMAC é a vontade de fazer o ateliê funcionar como local de formação, aprendizado, reflexão e produção. Como contraponto encontra-se a casa, o ambiente nuclear da vida que deve ser pintado a partir da participação dos proprietários, que deverão descobrir padrões ou estruturas plásticas recolhidas no próprio ambiente doméstico. Entre essas duas unidades – ateliê e casa – existem as paredes e os muros externos, locais de passagem, sejam elas faces externas de edificações, praças, muros de galerias ou paredes de museus” (CHAIA, 2005, n.p.).
NARRATIVAS E AFETOS
A aproximação da artista com o Jardim Miriam foi tanta que “visitar não bastava. Era preciso viver lá, conhecer as pessoas, enfrentar o mesmo transporte precário, fazer as mesmas compras, ter os mesmos movimentos de lazer. Conviver” (TURINO, 2013, p. 17) e desde então sua casa é o atelier e o atelier é a sua casa. Estar de corpo presente e fazer deste lugar sua morada, implica em outras formas de envolvimento com o território no sentido de que a condição da criação e realização se dá no seio das questões cotidianas e coletivas, reforçando a zona limítrofe que este projeto habita. “Cultura viva é o que se encontra no JAMAC. Cultura em cultivo permanente, como processo dinâmico, envolve o reconhecimento e a interação com o entorno, valorizando conhecimentos, saberes e tradições. E vai além. (...) Cultura como criação e produção instigando a inventividade e habilidade a (arte) de articulação das pessoas como seu meio e delas entre si” (TURINO, 2013, p. 17).
MÁSCARAS, MANDALAS, CASAS, TANTAS HISTÓRIAS
Em 2011, no Pavilhão das Culturas Brasileiras, no contexto da mostra “Mônica Nador: Autoria Compartilhada”, a artista e mais integrantes do JAMAC mudaram-se temporariamente para o Ibirapuera, ocupando o espaço expositivo com o seu atelier, convidando o público a se tornar co-criador, reforçando o processo enquanto obra. Foram produzidas pinturas em grandes tecidos que iam sendo penduradas no pavilhão, à medida que iam sendo feitas. Ainda que seja uma estratégia recorrentemente adotada em trabalhos em processo (work in progress), transformar em ateliê o espaço da exposição é romper com determinada lógica expositiva e incorporar a relação com outro na produção visual do trabalho. As relações ali estabelecidas são componente fundamental para pensar a produção do JAMAC nesta ocasião, a partir de uma fazer-comum, em torno de uma prática sensível, é possível construir coletivamente, uma vivência aberta e laboratorial que pode ser vista enquanto o próprio trabalho de arte.
NÃ&#x201C;IS
Ainda que o JAMAC não seja um coletivo no sentido mais formal, vemos as coletividades sendo ativadas justamente a fim de tensionar as fronteiras entre os espaços de arte e a sociedade, são coletividades temporárias, que se dão na conjuntura de ações, projetos, participações em bienais e exposições. O JAMAC organiza uma cadeia de criação e produção a partir da constelação de cada ação / projeto. Interferem no contexto que os espaços estão inseridos, vão para o tecido social produzir pinturas em tecidos, construindo canais de diálogo. As zonas de trabalhos expandem os limites do museu como a experiência que foi desenvolvida em parceria com o Museu de Antioquia, na cidade Medellín, Colômbia, em 2016, envolvendo mulheres de situação de vulnerabilidade social que trabalham no centro da cidade – região onde está localizado o museu – na criação de um mural coletivo exposto na fachada do externa. “Deveríamos investir mais na formação do artista como agente social (...) A arte serve para criar vida, sociabilidade, redes de convivência. O produto final do meu trabalho artístico deve ser o reflexo da minha relação com o outro” (NADOR, 2006, n.p.).
COLETIVOS
“Compartilhar a autoria do trabalho não é desfazer-se como artista, mas interagir com as dinâmicas do mundo e inventar um mecanismo artístico que privilegia o processo coletivo. Paredes Pinturas implica negociação e multiplicação no âmbito do território urbano, com seus agentes e instituições. Não há desmistificação da arte (deselitização sim) mas, pelo contrário, há uma retomada do homem estético, que toma temporariamente o poder do homem econômico, deslocando recursos de produção de obras de arte para intervenções feitas com comunidades específicas, estabelecendo o jogo das relações sociais da arte (...) É um método que consegue ser sempre inaugural e, ao mesmo tempo, ser feito das singularidades das pessoas e lugares” (MARQUEZ, 2012, p. 16).
A EMERGÊNCIA DE UMA SAÍDA
O fim das representações nacionais, a relação com públicos potencialmente afastados do circuito da arte contemporânea, a presença da equipe de educadores em bairros periféricos da cidade de São Paulo e a crença que é onde “a maioria da população da cidade constroem seus espaços sociais que nos interessa construir programas para arte” (LAGNADO, 2006b, n.p.), fazem da vigésima sétima bienal um prato cheio para se pensar a espessura política da arte. Lagnado evoca Rancière justamente para reforçar a implicação ética-estética das suas escolhas e caminhos, para afirmar o quão política é a vida coletiva, na qual partilhamos e negociamos uma série de questões, inclusive a dimensão sensível do mundo. Sobre a presença do JAMAC no espaço expositivo, ela se deu através de um convite: expandir os limites do pavilhão e ir em direção aos limites da cidade. Uma pintura na parede externa, próxima ao ponto ônibus, sinalizava que era ali onde o público poderia aproveitar o transporte disponibilizado pela Bienal para seguir em direção à sede do JAMAC. Ao longo de dois meses, foi realizada uma programação extensa e diversa, que intensificou as atividades do espaço, articulou outros agentes e outras ações, promoveu almoços coletivos, oficinas, uma mostra, algumas conversas, entre outras ativações.
REENCONTROS GLORIOSOS
A participação do JAMAC na exposição “Somos muit+s: experimentos sobre coletividade” se deu a partir do encontro com o Projeto Extramuros, desenvolvido pelo NAE – Núcleo de Ação Educativa da Pinacoteca. “Outras línguas” convoca outros discursos, daqueles “outros”, abre espaço para outras vozes. O processo do trabalho foi disparado no contexto das oficinas realizadas pelo Extramuros, na Casa de Oração do Povo da Rua e na Casa Florescer, ambas instituições localizadas no entorno da Pinacoteca. A partir das histórias contadas e dos desenhos produzidos pelos participantes, da xilogravura para o estêncil, foram produzidos dezenas de fragmentos de tecido, cada um com sua estampa, cada um com sua história. Em seguida foram costurados, formando assim uma grande colcha de retalhos. “Outras línguas” tem sua autoria compartilhada e politicamente seu interesse no que o outro tem a dizer, estimulando outras formas de expressão.
COMUNIDADES IMAGINADAS
Ainda que o JAMAC esteja no sistema da arte – isso significa estar dentro das instituições, selecionado por curadorias, presente em eventos e exposições – a estratégia para estar ali é, em certa medida, estar fora dali, convocando outras histórias, a partir do envolvimento destes outros que não fazem parte dos centros irradiadores dos discursos. De outras línguas, na Pinacoteca, à outras gramáticas, na Bienal de Oslo – o trabalho realizado “Another Grammar for Oslo” (2019), com concepção de Mônica Nador e Bruno Oliveira, também se refere a linguagem. Ambos os projetos, tanto na Pinacoteca quanto em Oslo, em suas particularidades, especificidades e escalas, confirmam a busca pela periferia que habitam os centros – sendo assim compatível com sua posição estratégica de estar dentro e fora ao mesmo tempo. O que nos faz pensar que o sentido político que evocamos conceitualmente neste trabalho está atrelado justamente em desocultar o que antes era invisível, tanto os sujeitos quantos suas narrativas, se dão nessas experiências, se dão na forma que este projeto atua.
YOGA
Além das participações em projetos, exposições, bienais, o JAMAC conta com atividades regulares em sua sede, como clubes de desenho e oficinas de stencil. As padronagens produzidas pelo JAMAC estampam peças de roupa, utensílios de cozinha, almofadas, entre outros objetos, tornando-se assim produtos, além de trabalhos de arte. Além do que ocorre dentro de sua sede, Mônica conecta o JAMAC à uma rede de distribuição de produtos orgânicos proveniente do assentamento do movimento dos sem-terra (MST), junto a outros agentes e parceiros da região.
ESCUTADORES
Além das oficinas, o JAMAC desenvolve uma clínica de educadores organizado pela artista e terapeuta Ana Beatriz Domingues que acontece desde março deste ano e surge da demanda de educadores, sobretudo da rede pública, por formações continuadas associadas a práticas integrativas. “Participam educadores de diversas áreas e atuações, promovendo experiências coletivas a partir de três eixos: autocuidado e bem-estar; técnicas de aprendizagem; discussão de casos práticos. As trocas têm evidenciado a urgência das práticas integrativas para o trabalho com a educação que apresenta índices alarmantes de doenças psíquicas e estresse entre seus profissionais; bem como, da criação de espaços e dispositivos de articulação criativa entre educadores” (JAMAC, 2019, n.p.).
ATIVIDADES DA VILA
Além das aulas de yoga promovidas com foco nos moradores do Jardim Miriam e colaboradores do projeto, o JAMAC se articula ao Encontro Literário #CaiuNaRedeÉCultura, em sua 4ª edição, realizado no CEU – Caminho do MAR realizado em colaboração à vários educadoras e educadores, agentes culturais, escolas e equipamentos da região. A soma destas práticas, articuladas e em constante ajuste, apontam para as novas formas de organização social que convidam à participação de todos aqueles envolvidos em determinado contexto / território nas questões circunscritas por ele. Relacionar-se com assuntos como alimentação, movimento social, educação, se posicionando enquanto colaborador/potencializador – ainda que de forma coadjuvante, sem buscar a centralidade na ação – marca a tendência destes projetos em atuar de forma sistêmica, na busca por aumento da qualidade das relações e dos processos sociais vividos coletivamente.
DEDICAÇÃO, AFETOS E CUIDADOS
“Ao mesmo tempo que tenho que negociar com os outros, tive que negociar com a outra, a ‘artista’ e tudo o que ela implica. Isso significa que mudar as coisas e pensar um outro mundo possível é mais importante do que a arte. A multiplicação está tanto na própria construção plástica (o módulo que se repete no estêncil) quanto na prática das pessoas que participam fazendo espontaneamente novas pinturas, como ocorreu em Tijuana, por exemplo” (NADOR, s/d apud MARQUEZ, 2012, p. 16).
REDE VIVA
Mauro Pinto de Castro e Zulmira Fonseca (mais conhecida como Zuca) são colaboradores do JAMAC e atuam no Centro Popular de Defesa e Direitos Humanos do Frei Tito. Esta ONG possui 26 anos de existência no zona sul de São Paulo e atende crianças e adolescentes, oferecendo-lhes um espaço alternativo e complementar à escola, disponibilizando ferramentas para o convívio social e para formação cidadã. Mauro é professor de geografia da rede pública e Zuca trabalha como educadora social na preparação de jovens para o primeiro emprego; ambos se dedicam à formação política de base e são atravessados diretamente pelas problemáticas sociais do entorno. Mauro e Zuca, de certa maneira, conectam o JAMAC à outras realidades, outras entidades, outros espaços e outras ações – como a rádio poste, por exemplo. A trajetória de ambos reforça o compromisso com transformações mais profundas no qual a educação / formação é a principal estratégia. Vale lembrar que Mauro está presente desde a fundação do Jardim Miriam Arte Clube e segue sendo uma peça fundamental para pensar a rede na qual este projeto se insere e se articula.
COMUM COMO PRINCÍPIO POLÍTICO
Vale comentar que a noção de atuação em rede foi reconhecida através da política pública do Ministério da Cultura do governo federal, parte do programa Cultura Viva. O JAMAC tornou-se ponto de cultura em 2010 propondo ser um ponto de articulação entre a arte, o cinema e ação social, na busca por estimular nos moradores do bairro Jardim Miriam tanto a reflexão quanto a produção artística. Ao longo de três anos, a proposta foi desenvolver as oficinas de estêncil e estamparia e o Café Filosófico – que consistiu em debates regulares em torno de questões do mundo, para além da arte, com convidados de diferentes perfis – além do desenvolvimento do núcleo do JAMAC digital. Nas palavras de Célio Turino: “cultura viva é o que se encontra no JAMAC. Cultura em cultivo permanente, como processo dinâmico, envolve o reconhecimento e a interação com o entorno, valorizando conhecimentos, saberes e tradições. E vai além. Cultura como criação e produção, instigando a inventividade e a habilidade (arte) de articulação das pessoas como seu meio e delas entre si” (TURINO, 2013, p. 18). Ovid molutesTa dolup-
CONFLITO
O JAMAC colaborou para desconstruir algumas fantasias acerca da partilha. Dividir não é fácil. Os mecanismos de escuta e os canais de comunicação quase sempre podem ser melhorados, ou melhor, eles requisitam atenção contínua e revisões constantes, não há como escapar. O conflito, ainda que seja importante e necessário, é desgastante, o diálogo direto e o espírito da negociação devem saber que algum dos lados precisará ceder, cedo ou tarde. São muitas as nuances entre o eu e o outro e o risco de enganchar e ninguém se ouvir é alto, por isso, a clareza parece um atributo bastante importante. No dia a dia, a teoria é substituída pela prática, sem roteiro, sem tanta harmonia, muitas vezes, no entanto, permeada por processos profundos de aprendizados mútuos e amadurecimento coletivo.
88 PÓSFACIO
Em tempos catastróficos, com o avanço do conservadorismo em escala global, o fundamentalismo presente nas bancadas e espaços de poder, a Amazônia em chamas, a redução das políticas sociais, a continuidade de um programa de extermínio da população jovem negra deste país, a falta de demarcação das terras indígenas, me questionei se haveria alguma conclusão possível, se haveria alguma forma de escapar de um tom pessimista e devastado por esse mundo que não deu certo. Não há como escapar. No entanto, nos coube o exercício de atentar às estratégias, perceber como se disparam, sob tais condições, como resistir em meio a um jogo cheio de armadilhas, o que é possível driblar e subverter. Em uma conferência ocorrida na Universidade Federal da Bahia, no dia 7 de outubro de 2019, reunindo a autora ítalo-americana Silvia Federici com a representante dos movimentos feminista e negro da Bahia, Vilma Reis; e a escritora e historiadora Carolina Rocha, do Rio de Janeiro, reconhecemos a potência da balbúrdia dos movimentos / organizações que lutam pelos direitos de existência, centrados na questão racial e na questão de gênero, como a possibilidade de incendiar as estruturas de dominação e posicionar historicamente vozes e discursos. Expandir a concepção de mundo, afirmar que a luta de classes não dá mais conta da complexidade que são as opressões do agora, recorrer a bruxaria enquanto tática daqueles que sempre precisaram ser criativos e resilientes para sobreviver. Vilma Reis nos traz a noção em torno da “pedagogia da desobediência” (REIS, 2019) que significa uma desobediência à ordem hegemônica – a fim de reforçar de que esta ordem de que falamos que nos parece natural, no entanto, nos foi imposta, essa organização social, fruto do capital, escravizou e subjugou tudo que não estava no escopo do seu sistema mercantil. Tornou universal um lado da história e sabemos que esse lado tem cor, tem gênero e não habita o nosso lado dos trópicos – algo repetido muitas vezes pelas três participantes. Como forma de resistir e propor modos outros de vida em sociedade, entendemos (e defendemos) no contexto desse trabalho, que desobedecer significa renunciar a alienação, a imobilidade dos corpos, a omissão frente às injustiças sociais, a subversão é nadar contra correnteza ultraliberal deste tempo. Neste sentido, o fazer-comum foi e segue sendo nossa proposta de enfrentamento. Em algum momento do percurso desta pesquisa, me questionaram sobre dizer o indizível: se o comum é uma prática, conceituá-lo, não seria, de certa maneira, enclausurá-lo? Concordei, inclusive, porque ele me já parecia intraduzível: não haveria de fato expressão
89 que desse conta da força que nos move a partir do comum e nos enlaça e nos engaja, não haveria estatuto adequado ou suficientemente estável para servir de material à análise acadêmica. A antropóloga, já citada neste trabalho, Julia Di Giovanni, converge com esta perspectiva, ao viver os movimentos antiglobalização entre 1999 e 2001, afirma que “embora para uma antropóloga em campo trate-se de algo facilmente perceptível, as sensações dessa potência e as formas pelas quais ela se expressa são dificilmente traduzíveis em termos sociológicos” (GIONANNI, 2015, p. 15). Para ela, ainda que consiga apreender e elaborar, a potência intrínseca a ocupar uma praça, sair em passeata, convocar uma reunião, planejar um confronto, erguer paredes ou tomar uma decisão em assembleia, não era contornável, lhe atravessava de forma que era irredutível. Talvez por isso o comum passou a ser um filtro – distanciando-se da ideia de objeto de pesquisa – foi através dele que passei a observar os eventos, acontecimentos, pessoas, espaços, organizações, situações, meu próprio bairro, minha própria rede, minha forma de se relacionar com a vida coletiva. Parecia que o comum estava próximo, sempre me rodeando, mas sempre escapando quando tentava explicar do que se tratava, era quase estratégico, vê-lo em quase tudo e ao mesmo tempo, não conseguir pinçá-lo e vê-lo fora daquilo. Nessa perspectiva, concluímos que não há fora para o comum, ele é invisível como um princípio, imensurável e intrínseco, ele não exclui outros tipos de força, ele existe porque é produzido. Enquanto anteparo, o comum permitiu ver formas efetivas de organizações pautadas na coletividade, permitiu ver insurgir, nos detalhes da vida, uma existência – ainda que mergulhada em um sistema excludente e individualizante – interdependente das relações com o outro e com aquilo que compartilhamos (espaços, recursos, símbolos, etc.). Passei a observar aquilo que escapava a regência e controle do estado ou do capital, aquilo que se dava ali, no ajuste do cotidiano, no próprio viver, deliberado horizontalmente, criativamente solucionado por quem estava em jogo. Vale frisar que se optamos por trazer espaços, projetos e iniciativas afirmando-os como experiências que testam comunitarismos e coletividades, não significa que concluímos que são efetivos na construção de mundos mais diversos e mais plurais. O engajamento social não necessariamente implica no empenho para uma transformação mais estrutural, nem sempre é possível ir até o cerne das questões, abrindo-se mão de privilégios que marcam a prática artística. Além de que, muitas vezes, a dimensão relacional, foco deste trabalho, mantém estas ações na superfície, por mais potente que sejam, sua efemeridade não deixa lastro, não gera impacto de longo prazo.
90 Por este motivo, na segunda parte deste trabalho – quando tudo pareceu muito fugaz – nos voltamos para a casa, para a escola e para o ecossistema, intuindo que é a partir destas três alegorias que podemos pensar de forma mais profunda como a arte pode se relacionar com a vida compartilhada. A casa, a escola e o ecossistema, de forma gradativa, representam os níveis de vínculo entre o eu, o outro e o espaço que vivemos: de dentro para fora, do íntimo para o sistêmico, do corpo para a floresta. Destas três instâncias, surge a possibilidade de estar de outra forma no mundo, em consonância com o lema freiriano que diz que “a educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo” (FREIRE, 1987, p. 84). E se me permitem expandir, diria o mesmo da arte e sua capacidade de interferir na construção de outras subjetividades que por sua vez, abrem espaços no mundo para outras existências. Voltar-se para história da arte nos permitiu ver que a modernidade artística, construída sob as bases iluministas, entra em colapso justamente na renúncia da possessão, justamente quando o outro entra em cena, justamente quando a vida torna-se substrato ao ponto de se confundir com as práticas deste campo. Longe de achar que este processo se dá plenamente e que a linha do tempo é algo contínuo e unidirecional, afirmamos que vivemos de vai e vem, construções e desconstruções, temporalidades paralelas, enfim, nos parece equivocado achatar a contemporaneidade em uma só maneira de ser e produzir. Contudo, podemos atestar a proliferação de posicionamentos e práticas na arte que entre si guardam determinada semelhança (ainda que possuam diferenças profundas). Ao longo do segundo capítulo, no caderno de imagens e fragmentos textuais recolhidos ao longo desta reflexão – sempre à esquerda no sentido de quem ler – aparecem as redes sociais de projetos, espaços e agentes diversos. As capturas de tela evidenciam que as experiências precisam comunicar-se e articular-se, estas constroem perfis e atualizam suas redes constantemente, através delas, se apresentam, pautam, se posicionam, divulgam. É inegável a importância destes espaços virtuais para os novos modos de operar no sentido da prática do comum que estamos pautando aqui, na verdade, é condição sine qua non. Vale salientar que muitos destes projetos foram diretamente citados; menos ou mais profundamente, ou seja, atravessaram de alguma forma esta reflexão e muitos deles, já se envolveram ou ainda se relacionam com o JAMAC, em algum âmbito. É possível observar algumas recorrências: coincidem no interesse em disponibilizar ferramentas, serviços e espaços para um público que não necessariamente está indo consumir arte, ou seja, se relacionam diretamente com outras esferas da vida. A relação com a saúde, educação, economia, cidadania e etc. enredam estas experiências em uma teia que faz da arte, conexão, encontro, articulação, possibilitada por equipes multidisciplinares, envolvidas,
91 em sua maioria, no processo para além de sua estrita função. Muitas vezes estes espaços/projetos tornam mais sensível e acessível uma experiência que seria puramente objetiva, quando ofertada em outro espaço, outras vezes tornam a recepção mais aconchegante, ainda que seja puramente a prestação de um serviço funcional. Enfim, são muitas as formas de incorporar estes lugares insuspeitos, são muitas formas de incorporar uma pauta social, uma demanda específica do bairro, são muitas as formas de construir sua dimensão política no mundo. Não podemos esquecer que estas se desdobram também em experiências sensíveis, plásticas, lúdicas, experimentais e afetivas, sem uma diferenciação lógica do que é ou não da alçada da arte. A partir destas imagens, vimos o interesse pela rede e pelo estar juntos, vimos aparecer inúmeras vezes espaços de convivência, feiras, reuniões, mutirões e etc. como parte das suas estratégias – estar junto serve à muitas dimensões. Neste sentido, não se trata de uma “pregação” da coletividade, muito menos uma exigência de filiação – a proposta que permeia estas práticas sugere uma forma de acionar o que entendemos por inteligência coletiva. Como disparar um melhor aproveitamento das potências e singularidades que compõem os grupos, como ativar relações que provoquem benefícios para ambos os lados? Eis o desafio. Neste sentido, concluímos que a reciprocidade é essencial, equilibra este mundo tão assimétrico, nela mora um ir e vir, um vai e volta que torna saudável as relações de colaboração, ainda que não seja necessário igualar plenamente os fluxos – não devemos horizontalizar sem complexificar, conforme já vimos. Observando as redes sociais, reforçamos aqui a importância da parceria e da amizade que criam elos e atam nó(s) – estes projetos falam entre si, colaboram uns com os outros, “se curtem” e “se compartilham”, “se visitam” – não só virtualmente – criam juntos, apoiam uns aos outros naquilo que convergem. Longe de querer apresentar um diagnóstico ou construir uma categoria, que fique bem claro, inclusive porque são projetos e iniciativas que por si só merecem análises minuciosas e individuais. O que não impede de pensarmos de que há uma tendência da arte em instaurar formas de auto-organização libertadoras, criativas e possíveis que produzem trabalhos, pesquisas, dispositivos, ações, espaços físicos, ou seja, uma diversidade de aparelhos que interferem tanto nos sistemas sociais quanto nos processos de subjetivação. Devo lembrar que o interesse pelos limites, bordas e fronteiras atravessa este trabalho de ponta a ponta. Houve um episódio interessante, ao longo da residência na Platohedro (esta que comentei ao longo do prefácio) que disparou questões fundamentais para o desenvolvimento desta pesquisa. Durante o período que estive como residente, toda corporação estava profundamente engajada com a mudança da cerca da horta coletiva que
92 se encontra em frente à sede. Ao longo de um mês, foram tantas conversas, embates, negociações entre eles – e eu me perguntava o porquê que este processo levava tanto tempo, se era apenas uma cerca. Madeira ou ferro, antiga ou nova, sem cerca, com cerca, ferro velho ou doação – ao me distanciar temporalmente, consigo compreender o valor simbólico desta decisão. A cerca – este elemento que tanto problematizamos aqui – tinha uma função fundamental: proteção, envolvimento, cuidado de algo que lhes é comum. Decidir sobre a cerca era ir além dela, uma expansão no sentido horizontal que colocava em questão o próprio cerne, o centro, ou seja, a horta e seus cuidadores. As estratégias de negociação, o campo de disputa, o ir e vir, experimentar aqui e acolá, tudo fez parte e fortaleceu um propósito comum. A cerca, ao invés de separar, reuniu. Flavia Vivacqua (2009) nos traz uma perspectiva bastante interessante sobre a borda, que gostaria de abraçar neste encerramento: na ecologia, as bordas são o espaço limite entre territórios e sabidamente o lugar mais fértil e produtivo que podemos encontrar para a biodiversidade``. É ali, na borda, que se estabelece o campo de encontro entre ecossistemas distintos possibilitando a mescla e potencializando a vida, gerando assim maior resiliência ambiental e preservação de espécies. Além disso, uma borda sinuosa é sempre mais extensa que uma linha reta delimitante ainda que conecte os mesmos dois pontos, o que também a faz mais criativamente potente (p.15).
Concordamos com ela e seguiremos pela borda. A margem nos permite o contato e contágio com a diferença, no interstício, nos alimentamos do que está fora de nós, nos fazendo olhar para dentro. Bem como ocorreu no episódio citado: a cerca tanto provocou relação entre aqueles que a negociavam, quanto provocou questionamento em relação a sua própria função ali, o que de essencial estava em jogo. Vale uma ressalva importante: o interesse pelas margens em nada se relaciona com o enaltecimento da marginalização dos indivíduos, desprovê-los do que está no centro, conferir a eles um lugar marginal, de menor importância, de maior precariedade é a força que move o sistema vigente. A revolução não aconteceu e muitas vezes nos perguntamos se não estamos vivendo uma verdadeira distopia. Todavia, o que acontece no Jardim Miriam Arte Clube todos os dias, não são pequenas revoluções cotidianas, que possibilitam que há 15 anos um projeto aconteça e resista aos inúmeros imperativos que desejam que a periferia siga periférica no sentido da ausência de serviços, ferramentas, espaços e etc.? A realidade, nua e crua, é a pauta deste tempo. Olhar pra ela não basta, algo nos impele a aproximação, mais e mais e quando você vê, ela te convida a atuar de dentro dela, a partir dela, a fim de transformála. Devemos permanecer e insistir – me parece que este foi o grande ensinamento da Monica
93 Nador e da experiência do JAMAC – o tempo possibilita o amadurecimento deste embrião. O desejo que insurge e irrompe, como vimos nos movimentos de 2011/2013 precisam durar até o dia seguinte para que sóbrios, seja possível planejar o amanhã. A luta é todo dia, entre acordar e dormir, nos cabe vivê-la em sua inteireza. Para encerrar, retomamos ao título da obra de Roland Barthes, citada algumas vezes neste trabalho. Por mais que nela caiba inúmeros questionamentos, a expressão Como Viver Junto, tanto aqui como em Barthes, não traz uma interrogação, ainda que sigamos nos perguntando como será possível, nesse mundo, vivermos coletivamente, seguimos encarandoa e afirmando-a. Concordamos com Barthes que não é sobre proximidade, sobre estar perto fisicamente – ou não só sobre isso, mas sobre como viver a diferença, sem subtraí-la, como a partir dos diferentes ritmos, posições e singularidades, é possível criar espaços plurais e heterogêneos para se viver.
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92 PÓSFACIO Em tempos catastróficos, com o avanço do conservadorismo em escala global, o fundamentalismo presente nas bancadas e espaços de poder, a Amazônia em chamas, a redução das políticas sociais, a continuidade de um programa de extermínio da população jovem negra deste país, a falta de demarcação das terras indígenas, me questionei se haveria alguma conclusão possível, se haveria alguma forma de escapar de um tom pessimista e devastado por esse mundo que não deu certo. Não há como escapar. No entanto, nos coube o exercício de atentar às estratégias, perceber como se disparam, sob tais condições, como resistir em meio a um jogo cheio de armadilhas, o que é possível driblar e subverter. Em uma conferência ocorrida na Universidade Federal da Bahia, no dia 7 de outubro de 2019, reunindo a autora ítalo-americana Silvia Federici com a representante dos movimentos feminista e negro da Bahia, Vilma Reis; e a escritora e historiadora Carolina Rocha, do Rio de Janeiro, reconhecemos a potência da balbúrdia dos movimentos / organizações que lutam pelos direitos de existência, centrados na questão racial e na questão de gênero, como a possibilidade de incendiar as estruturas de dominação e posicionar historicamente vozes e discursos. Expandir a concepção de mundo, afirmar que a luta de classes não dá mais conta da complexidade que são as opressões do agora, recorrer a bruxaria enquanto tática daqueles que sempre precisaram ser criativos e resilientes para sobreviver. Vilma Reis nos traz a noção em torno da “pedagogia da desobediência” (REIS, 2019) que significa uma desobediência à ordem hegemônica – a fim de reforçar de que esta ordem de que falamos que nos parece natural, no entanto, nos foi imposta, essa organização social, fruto do capital, escravizou e subjugou tudo que não estava no escopo do seu sistema mercantil. Tornou universal um lado da história e sabemos que esse lado tem cor, tem gênero e não habita o nosso lado dos trópicos – algo repetido muitas vezes pelas três participantes. Como forma de resistir e propor modos outros de vida em sociedade, entendemos (e defendemos) no contexto desse trabalho, que desobedecer significa renunciar a alienação, a imobilidade dos corpos, a omissão frente às injustiças sociais, a subversão é nadar contra correnteza ultraliberal deste tempo. Neste sentido, o fazer-comum foi e segue sendo nossa proposta de enfrentamento. Em algum momento do percurso desta pesquisa, me questionaram sobre dizer o indizível: se o comum é uma prática, conceituá-lo, não seria, de certa maneira,
93 enclausurá-lo? Concordei, inclusive, porque ele me já parecia intraduzível: não haveria de fato expressão que desse conta da força que nos move a partir do comum e nos enlaça e nos engaja, não haveria estatuto adequado ou suficientemente estável para servir de material à elaboração acadêmica. A antropóloga, já citada neste trabalho, Julia Di Giovanni, converge com esta perspectiva, ao viver os movimentos antiglobalização entre 1999 e 2001, afirma que “embora para uma antropóloga em campo trate-se de algo facilmente perceptível, as sensações dessa potência e as formas pelas quais ela se expressa são dificilmente traduzíveis em termos sociológicos” (GIONANNI, 2015, p. 15). Para ela, ainda que consiga apreender e elaborar, a potência intrínseca a ocupar uma praça, sair em passeata, convocar uma reunião, planejar um confronto, erguer paredes ou tomar uma decisão em assembleia, não era contornável, lhe atravessava de forma que era irredutível. Talvez por isso o comum passou a ser um filtro – distanciando-se da ideia de objeto de pesquisa – foi através dele que passei a observar os eventos, acontecimentos, pessoas, espaços, organizações, situações, meu próprio bairro, minha própria rede, minha forma de se relacionar com a vida coletiva. Parecia que o comum estava próximo, sempre me rodeando, mas sempre escapando quando tentava explicar do que se tratava, era quase estratégico, vê-lo em quase tudo e ao mesmo tempo, não conseguir pinçá-lo e vê-lo fora daquilo. Nessa perspectiva, concluímos que não há fora para o comum, ele é invisível como um princípio, imensurável e intrínseco, ele não exclui outros tipos de força, ele existe porque é produzido. Enquanto anteparo, o comum permitiu ver formas efetivas de organizações pautadas na coletividade, permitiu ver insurgir, nos detalhes da vida, uma existência – ainda que mergulhada em um sistema excludente e individualizante – interdependente das relações com o outro e com aquilo que compartilhamos (espaços, recursos, símbolos, etc.). Passei a observar aquilo que escapava a regência e controle do estado ou do capital, aquilo que se dava ali, no ajuste do cotidiano, no próprio viver, deliberado horizontalmente, criativamente solucionado por quem estava em jogo. Vale frisar que se optamos por trazer espaços, projetos e iniciativas afirmando-os como experiências que testam comunitarismos e coletividades, não significa que concluímos que são efetivos na construção de mundos mais diversos e mais plurais. O engajamento social não necessariamente implica no empenho para uma transformação mais estrutural, nem sempre é possível ir até o cerne das questões, abrindo-se mão de privilégios que marcam a prática artística. Além de que, muitas vezes, a dimensão relacional, foco deste trabalho, mantém estas ações na superfície, por mais potente que sejam, sua efemeridade não deixa lastro, não gera impacto de longo prazo.
94 Por este motivo, na segunda parte deste trabalho – quando tudo pareceu muito fugaz – nos voltamos para a casa, para a escola e para o ecossistema, intuindo que é a partir destas três alegorias que podemos pensar de forma mais profunda como a arte pode se relacionar com a vida compartilhada. A casa, a escola e o ecossistema, de forma gradativa, representam os níveis de vínculo entre o eu, o outro e o espaço que vivemos: de dentro para fora, do íntimo para o sistêmico, do corpo para a floresta. Destas três instâncias, surge a possibilidade de estar de outra forma no mundo, em consonância com o lema freiriano que diz que “a educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo” (FREIRE, 1987, p. 84). E se me permitem expandir, diria o mesmo da arte e sua capacidade de interferir na construção de outras subjetividades que por sua vez, abrem espaços no mundo para outras existências. Voltar-se para história da arte nos permitiu ver que a modernidade artística, construída sob as bases iluministas, entra em colapso justamente na renúncia da possessão, justamente quando o outro entra em cena, justamente quando a vida torna-se substrato ao ponto de se confundir com as práticas deste campo. Longe de achar que este processo se dá plenamente e que a linha do tempo é algo contínuo e unidirecional, afirmamos que vivemos de vai e vem, construções e desconstruções, temporalidades paralelas, enfim, nos parece equivocado achatar a contemporaneidade em uma só maneira de ser e produzir. Contudo, podemos atestar a proliferação de posicionamentos e práticas na arte que entre si guardam determinada semelhança (ainda que possuam diferenças profundas). Ao longo do segundo capítulo, no caderno de imagens e fragmentos textuais recolhidos ao longo desta reflexão, aparecem as redes sociais de projetos, espaços e agentes diversos. As capturas de tela evidenciam que as experiências precisam comunicar-se e articular-se, estas constroem perfis e atualizam suas redes constantemente, através delas, se apresentam, pautam, se posicionam, divulgam. É inegável a importância destes espaços virtuais para os novos modos de operar no sentido da prática do comum que estamos pautando aqui, na verdade, é condição sine qua non. Vale salientar que muitos destes projetos foram diretamente citados; menos ou mais profundamente, ou seja, atravessaram de alguma forma esta reflexão e muitos deles, já se envolveram ou ainda se relacionam com o JAMAC, em algum âmbito. É possível observar algumas recorrências: coincidem no interesse em disponibilizar ferramentas, serviços e espaços para um público que não necessariamente está indo consumir arte, ou seja, se relacionam diretamente com outras esferas da vida. A relação com a saúde, educação, economia, cidadania e etc. enredam estas experiências em uma teia que faz da arte, conexão, encontro, articulação, possibilitada por equipes multidisciplinares,
95 envolvidas, em sua maioria, no processo para além de sua estrita função. Muitas vezes estes espaços/projetos tornam mais sensível e acessível uma experiência que seria puramente objetiva, quando ofertada em outro espaço, outras vezes tornam a recepção mais aconchegante, ainda que seja puramente a prestação de um serviço funcional. Enfim, são muitas as formas de incorporar estes lugares insuspeitos, são muitas formas de incorporar uma pauta social, uma demanda específica do bairro, são muitas as formas de construir sua dimensão política no mundo. Não podemos esquecer que estas se desdobram também em experiências sensíveis, plásticas, lúdicas, experimentais e afetivas, sem uma diferenciação lógica do que é ou não da alçada da arte. A partir destas imagens, vimos o interesse pela rede e pelo estar juntos, vimos aparecer inúmeras vezes espaços de convivência, feiras, reuniões, mutirões e etc. como parte das suas estratégias – estar junto serve a muitas dimensões. Neste sentido, não se trata de uma “pregação” da coletividade, muito menos uma exigência de filiação – a proposta que permeia estas práticas sugere uma forma de acionar o que entendemos por inteligência coletiva. Como disparar um melhor aproveitamento das potências e singularidades que compõem os grupos, como ativar relações que provoquem benefícios para ambos os lados? Eis o desafio. Neste sentido, concluímos que a reciprocidade é essencial, equilibra este mundo tão assimétrico, nela mora um ir e vir, um vai e volta que torna saudável as relações de colaboração, ainda que não seja necessário igualar plenamente os fluxos – não devemos horizontalizar sem complexificar, conforme já vimos. Observando as redes sociais, reforçamos aqui a importância da parceria e da amizade que criam elos e atam nó(s) – estes projetos falam entre si, colaboram uns com os outros, “se curtem” e “se compartilham”, “se visitam” – não só virtualmente – criam juntos, apoiam uns aos outros naquilo que convergem. Longe de querer apresentar um diagnóstico ou construir uma categoria, que fique bem claro, inclusive porque são projetos e iniciativas que por si só merecem análises minuciosas e individuais. O que não impede de pensarmos de que há uma tendência da arte em instaurar formas de auto-organização libertadoras, criativas e possíveis que produzem trabalhos, pesquisas, dispositivos, ações, espaços físicos, ou seja, uma diversidade de aparelhos que interferem tanto nos sistemas sociais quanto nos processos de subjetivação. Devo lembrar que o interesse pelos limites, bordas e fronteiras atravessa este trabalho de ponta a ponta. Houve um episódio interessante, ao longo da residência na Platohedro (esta que comentei ao longo do prefácio) que disparou questões fundamentais para o desenvolvimento desta pesquisa. Durante o período que estive como residente, toda
96 corporação estava profundamente engajada com a mudança da cerca da horta coletiva que se encontra em frente à sede. Ao longo de um mês, foram tantas conversas, embates, negociações entre eles – e eu me perguntava o porquê que este processo levava tanto tempo, se era apenas uma cerca. Madeira ou ferro, antiga ou nova, sem cerca, com cerca, ferro velho ou doação – ao me distanciar temporalmente, consigo compreender o valor simbólico desta decisão. A cerca – este elemento que tanto problematizamos aqui – tinha uma função fundamental: proteção, envolvimento, cuidado de algo que lhes é comum. Decidir sobre a cerca era ir além dela, uma expansão no sentido horizontal que colocava em questão o próprio cerne, o centro, ou seja, a horta e seus cuidadores. As estratégias de negociação, o campo de disputa, o ir e vir, experimentar aqui e acolá, tudo fez parte e fortaleceu um propósito comum. A cerca, ao invés de separar, reuniu. Flavia Vivacqua (2009) nos traz uma perspectiva bastante interessante sobre a borda, que gostaria de abraçar neste encerramento: na ecologia, as bordas são o espaço limite entre territórios e sabidamente o lugar mais fértil e produtivo que podemos encontrar para a biodiversidade``. É ali, na borda, que se estabelece o campo de encontro entre ecossistemas distintos possibilitando a mescla e potencializando a vida, gerando assim maior resiliência ambiental e preservação de espécies. Além disso, uma borda sinuosa é sempre mais extensa que uma linha reta delimitante ainda que conecte os mesmos dois pontos, o que também a faz mais criativamente potente (p.15). Concordamos com ela e seguiremos pela borda. A margem nos permite o contato e contágio com a diferença, no interstício, nos alimentamos do que está fora de nós, nos fazendo olhar para dentro. Bem como ocorreu no episódio citado: a cerca tanto provocou relação entre aqueles que a negociavam, quanto provocou questionamento em relação a sua própria função ali, o que de essencial estava em jogo. Vale uma ressalva importante: o interesse pelas margens em nada se relaciona com o enaltecimento da marginalização dos indivíduos, desprovê-los do que está no centro, conferir a eles um lugar marginal, de menor importância, de maior precariedade é a força que move o sistema vigente. A revolução não aconteceu e muitas vezes nos perguntamos se não estamos vivendo uma verdadeira distopia. Todavia, o que acontece no Jardim Miriam Arte Clube todos os dias, são pequenas revoluções cotidianas, que possibilitam que há 15 anos um projeto aconteça e resista aos inúmeros imperativos que desejam que a periferia siga periférica no sentido da ausência de serviços, ferramentas, espaços e etc.? A realidade, nua e crua, é a pauta deste tempo. Olhar pra ela não basta, algo nos impele a aproximação, mais e mais e
97 quando você vê, ela te convida a atuar de dentro dela, a partir dela, a fim de transformá-la. Devemos permanecer e insistir – me parece que este foi o grande ensinamento da Mônica Nador e da experiência do JAMAC – o tempo possibilita o amadurecimento deste embrião. O desejo que insurge e irrompe, como vimos nos movimentos de 2011/2013 precisam durar até o dia seguinte para que sóbrios, seja possível planejar o amanhã. A luta é todo dia, entre acordar e dormir, nos cabe vivê-la em sua inteireza. Para encerrar, retomamos ao título da obra de Roland Barthes, citada algumas vezes neste trabalho. Por mais que nela caiba inúmeros questionamentos, a expressão Como Viver Junto, tanto aqui como em Barthes, não traz uma interrogação, ainda que sigamos nos perguntando como será possível, nesse mundo, vivermos coletivamente, seguimos encarando-a e afirmando-a. Concordamos com Barthes que não é sobre proximidade, sobre estar perto fisicamente – ou não só sobre isso, mas sobre como viver a diferença, sem subtraí-la, como a partir dos diferentes ritmos, posições e singularidades, é possível criar espaços plurais e heterogêneos para se viver.
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107 FIGURA 9: INSTAGRAM JAMAC | OFICINA EM OSLO | 23/06/2019 https://www.instagram.com/p/BzD6xdAn8Xn/ FIGURA 10: INSTAGRAM GALERIA RE-OCUPA | NÓIS | 13/10/2019 https://www.instagram.com/p/B3k7C4sHM6e/ FIGURA 11: INSTAGRAM LANCHONETE <> LANCHONETE | ESCUTADORES | 21/02/2019 https://www.instagram.com/p/BuJfZ22gjub/ FIGURA 12: INSTAGRAM REVISTA SELECT | PLATAFORMA EXPLODE! | 21/08/2019 https://www.instagram.com/p/B1bktXhhUbe/ FIGURA 13: INSTAGRAM CASA 1 | ENCONTRANS | 22/09/2019 https://www.instagram.com/p/B2uUOiIl6mO/ FIGURA 14: INSTAGRAM JAMAC | NARRATIVAS E AFETOS | 12/09/2017 https://www.instagram.com/p/BY8pfxYgBAw/ FIGURA 15: INSTAGRAM CASA DO POVO | YOGA | 16/05/2019 https://www.instagram.com/p/Bi2AaTfAMZW/ FIGURA 16: INSTAGRAM REDE DE ARTE INCOMUM | REDE VIVA | 08/10/2019 https://www.instagram.com/p/B07NacBHGuH/ FIGURA 17: INSTAGRAM VILA ITORORÓ | QUADRO DE ATIVIDADES | 10/10/2019 https://www.instagram.com/p/B3Z27WEnhJp/ FIGURA 18: INSTAGRAM BEM COMUM | COMUM COMO PRINCÍPIO POLÍTICO | 01/04/2019 https://www.instagram.com/p/Bvu--McH8WG/ FIGURA 19: INSTAGRAM LANCHONETE <> LANCHONETE | CONVERSAÇÕES CONTRAPEDAGÓGICAS | 14/10/2019 https://www.instagram.com/p/B3mW6HRJMnY/ FIGURA 20: INSTAGRAM ARTE!BRASILEIROS | COMUNIDADES IMAGINADAS | 30/10/2019 https://www.instagram.com/p/B4QOxBqn3LC/ FIGURA 21: INSTAGRAM INSTITUTO PROCOMUM | DEDICAÇÃO, AFETOS E CUIDADOS | 17/10/2019 https://www.instagram.com/p/B2hSiybH0gC/ FIGURA 22: INSTAGRAM REVISTA SELECT | RUANGUPARA | 29/05/2019 https://www.instagram.com/p/ByDGJsBAPZD/
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