INÊS PEDROSA, A Eternidade e o Desejo

Page 1

Inês Pedrosa (1962 - )

Inês Pedrosa: aqui

A.A. ~ 2010-2011 Prof.ª eli


O coração, os pés, as mãos, as asas, tudo vem da cabeça, que é o molde da própria fantasia. Se esta for de homem, as acções serão racionais; se de águia, altivas; se de leão, generosas; se de boi, vis.

Pedes-me que te conte agora o que vejo. Que te conte, pelo menos, a causa do meu amor por esse padre, que afinal conheces pouco. O amor não tem causa, querido amigo. Mas posso dizer-te que António Vieira era um belo homem. — Belo? — Sim; belo, até dessa maneira imediata que se tem como ofensa: alto, espadaúdo, de olhos amplos, vestido com uma túnica grosseira, mais parda do que preta. Dormia pouco, comia farinha de pau, lia Santa Teresa de Ávila e, sobretudo, tinha o poder de transformar o mundo através da palavra. Teve esse poder como mais ninguém, até hoje. Ninguém? Nem Sócrates? Nem Cristo? Nem Buda? Nem os profetas? – perguntas. Queres dizer que sou uma exagerada, e é verdade. Temos de carregar nos contornos do mundo se pretendemos sacudi-lo — Vieira compreendeu-o

como

ninguém.

Sócrates

procurava

o

rigor

do

conhecimento, não a transfiguração do universo. Os líderes espirituais e os profetas fazem da palavra uma trincheira ou um jardim, não um engenho para caminhar no escuro, como fez Vieira. E Cristo, meu querido, que eu saiba, não deixou nada escrito, deixou que escrevessem por ele os homens, que sempre têm trinta versões para a mesma história. Deixou a palavra escrita aos homens – talvez por amor, até acredito que sim, como prova do amor extremo, que actua através do silêncio para não ser confundido com uma demanda de gratidão. Cristo deixou aos homens o arbítrio e o triunfo da palavra escrita. Para que o entendessem, e entendessem a arbitrariedade das coisas do mundo, usou a parafernália


dos milagres. Até os seus discípulos precisaram dos milagres para o seguirem. Vieira não precisava de nada nem de ninguém. No fundo, acho que lhe bastava a consciência de que tinha Deus dentro de si — ou a eternidade, ou o conhecimento, como preferires. Era um precursor; fervialhe no peito uma verdade e só com ela tinha ligação. Essa verdade libertava-o da dor comum; sentia as injustiças e ofensas — e não foram poucas as que lhe fizeram. Vingava-se, convertendo em palavras escritas a experiência da mesquinhez humana. Vingava-se, gritando do púlpito esses sermões irados, consciente de que não conseguiria reformar os costumes do seu tempo, mas ainda mais consciente de que esses textos, ateados por uma raiva íntima e incendiados pela lucidez genérica que consagra as paixões particulares, lhe sobreviveriam. Tratava como se vivesse no futuro — e por isso escreveu coisas que ainda hoje são arrumadas no altar dos prodígios, e adoradas pelo exterior do seu entendimento. Eu própria o adorava assim, pela pintura do texto e pela música da sintaxe, aquele amor reverente, escolar, cheio de presunção e desconhecimento, que se vota às ruínas do passado. Até que me apareceu outro António, o António que trouxe Vieira para dentro da minha vida — mas ainda é cedo para essa confidência. Como poderei falar-te, a ti, menino solene, mimado pelo aborrecimento do universo, desse olhar impermeável à ofuscação das lágrimas, o olhar de uma criança sem tédio? O círculo do tempo pára numa nova idade barroca, trabalhamos o supérfluo, a ideia de arte vale mais do que a arte, a ideia de cultura separa-se da cultura possível e particular de cada um, em rendilhados infinitos,

citação

da

citação

da

citação,

fragmento

do

fragmento,

intermitências de luz cosidas em brocados de sombra, a religião da ironia substituindo perfeitamente a religião dos deuses. Tornas a dizer que exagero, que há uma diferença essencial entre o livre arbítrio e a sujeição a livros sagrados, entre o ritual da irrisão e o ritual da oração — mas, talvez porque sou cega, ouço um mesmo rasgar de sedas, um mesmo


uivar de andrajos, um mesmo pavor animal gemendo sob a aparência humana. Pois não sentes a irracionalidade que grita no desejo de dominação humano? Não sentes a sede de domínio atrofiando todas as possibilidades de prazer? Não sentes que temos a cabeça a prémio? Não me entendes, caríssimo Sebastião; dizes que misturo tudo. Dizes que é incomparável a liberdade de que hoje dispomos para imaginar, escolher, criar, viver. Pelo menos na nossa civilização, dizes. E eu rio-me do que tu dizes, e tu zangas-te com o meu riso, cuidando, como tanto se cuida naquilo a que chamas a nossa civilização, que me rio de ti. Querido Sebastião, rio-me porque aquilo a que chamas a nossa civilização ainda nem sequer começou. Importa-me a liberdade, sim, mas vejo que a usamos ainda e apenas como uma outra espécie de grilhão. Vestimos a liberdade como outrora vestíamos a submissão; ela não é mais do que um traje de baile, com um carnet em que apontamos os nomes daqueles com quem dançaremos para brilhar diante dos outros. Democratizou-se o anseio de estatuto, mas não conseguimos ainda sair dele. É isso que vejo, Sebastião. Som e sentido, continente e conteúdo dilacerando-se, hoje como sempre, até que nada reste sob a superfície hiperbólica da realidade. Dizes que aquilo a que eu chamo estatuto pode também chamar-se ânsia de eternidade. Mas eu vejo tão pouca eternidade nos sonhos das pessoas, Sebastião. A eternidade que somos conduzidos a aspirar é a da juventude — o lugar mais rápido, inseguro e variável da existência humana. O lugar do querer ser. Não vês o contra-senso que isso representa? A violência? A prisão? Não, não vês, como eu não via. Pertencer a um país que de antigo se tornou velho também não ajuda a ver. Só através dos olhos desse António que veio do Brasil eu comecei a ver. Nos olhos dele aprendi a ler Vieira, como no seu corpo aprendi a saborear o desejo infinito, o desejo como


experiência da eternidade. Para essa experiência não tenho palavras. Nem sequer silêncio. Dessa experiência, sobrou-me o que sou. A tudo o que te vou dizendo sobre a superfície lisa do Barroco e a superfície barroca do nosso tempo aparentemente liso respondes-me com o discurso contemporâneo do progresso relativo, a música electrónica do humanismo de salão. Tolerância, dizes, tudo passa pela educação para a tolerância. Sim, Sebastião, és um homem de bem, de esquerda, um guardador de valores perdidos e de amanhãs desvirtuados. Lindo menino. Antes a tolerância do que as fogueiras da Inquisição, dizes tu. Bem sei que as comparações acalmam – também para isso me fazem falta os olhos. Mas se reparares, bom Sebastião, o cadáver da Inquisição ainda revolve a terra em que pretendemos tê-lo enterrado. Às vezes cansa-me falar contigo, Sebastião, tens as ideias demasiado arrumadinhas, como numa vitrine, proibido tocar. Portugal está cheio de gente assim, parece museu de frases consensuais pronunciadas por gente de

olhar

escorregadio.

Porque

será

assim

inclinado

o

olhar

dos

portugueses? Vícios de guerreiros, ardil de resistência aos cercos, excesso de imaginação? Tu que ainda tens olhos, Sebastião, repararás que os brasileiros, em geral, te olham nos olhos quando falam contigo. Esse olhar franco poupa muitas palavras, para o melhor e para o pior. Existe uma empatia imediata, que até da antipatia faz uma questão de lealdade. António Vieira olhava assim, com frontalidade bruta, de precipício. Olhava para o futuro e não tremia, lançava o pensamento sobre as muralhas do mundo, fixado no azul do céu. Era um pensamento irrequieto, incessante, incontrolável, o seu. Mas foi a arte que o safou. — Safou-o de quê? — Do esquecimento. A Inquisição bem tentou — e a dada altura conseguiu amordaçá-lo, mas não conseguiu queimar-lhe os escritos. Aí estão, até hoje, encandeando-nos com o seu esplendor ainda indecifrado.


— Exageras; o Padre António Vieira é estudado nas escolas. — Meia dúzia de textos, sim — sempre os mesmos, e os mais circunstanciais. Essa é a forma contemporânea de agrilhoar um autor: interpretar-lhe um pedaço da obra até à última letra, sugar-lhe a matéria temporal, entendê-la em cátedras até lhe esgotar o sopro. Compará-lo, medi-lo, debitá-lo — e esquecê-lo. — Tu não o esqueceste. Não, Sebastião, não o esqueci, e também por isso não sei dizer-te quem ele é; digo-te que é belo, esperando que isso te perturbe e te irrite e te conduza até ele, se for esse o teu caminho. Sei que lhe devo a raiva, a constância, e, acima de tudo, o privilégio da alegria. Mais uma vez, respondes que me invejas. Estou cansada da tua inveja de cartolina, Sebastião; peço-te que não estragues com graças pequenas a Graça do que partilho contigo. — Não sabes a Graça que há nas graças pequenas. Não sonhas como preciso dela. — Dá-me a tua mão, e guarda nela agora o meu silêncio.

Há de servir o corpo ao próprio conhecimento, como o aço no espelho serve à vista: o aço serve à vista; porque rebate e lança de si as espécies de quem se vê ao espelho; de maneira que o mesmo que impede o conhecimento directo, serve ao conhecimento reflexo. Assim é no homem o conhecimento de si mesmo; se pára no corpo, ignora-se; se reflecte sobre a alma, conhece-se; saia logo do corpo, e sacuda-se do pó, se quer conhecer-se: Si ignoras te, egredere.


E se alguém me perguntar a razão desta filosofia, porque o homem visto pela parte do corpo se ignora, e visto ou considerado pela parte da alma se conhece; a razão clara e fácil (posto que pareça injuriosa) é, porque quem vê o corpo, vê um animal; quem vê a alma, vê ao homem.

Inês Pedrosa, A Eternidade e o Desejo, pp. 25-31


 INÊS PEDROSA – A ETERNIDADE E O DESEJO

 wikipédia  Portal da literatura  A ETERNIDADE E O DESEJO  leitur@Gulbenkian Rodrigues

recenseador:

Urbano

Tavares


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.