ALICE VIEIRA (1942-)
Alice Vieira ~ aqui
A.A. ~ 2010-2011 Prof.ª eli
[A separação]
– Tenho medo. Dissera-me há dias a Rita. Agora, olhando-a, não sei se o medo lhe passou de repente ou se o disfarça tão bem que nem mesmo eu sou capaz de o descobrir dentro dela. Neste momento, quando o relógio da sala […] avisa que faltam vinte minutos para o meio-dia, o medo parece ter passado todo para a cara do pai da Rita. Que olhou finalmente para nós, não mostrando importar-se muito com a minha presença. Acho até que nem deve ter dado por mim. Por momentos senti-me um pouco como a visita que ninguém convidara, o espectador entrado sem bilhete. Mas não podia voltar atrás: a Rita segurava a minha mão cada vez com mais força. Como eu segurava o chocolate, no primeiro dia de escola. – O carro está lá em baixo – disse ele, olhando para as mãos. A gente sabia que ele queria dizer muitas coisas, mas só olhava para as mãos, como se as tivesse subitamente descoberto vazias. – O que eu quero dizer é que… Tornou a parar. Ouviam-se, de repente, todos os barulhos da casa. A água nas torneiras, os minutos a correr no enorme relógio, o próprio ranger da madeira. A Rita também olhava para as mãos do pai e não dizia nada. Ele arranjou coragem para continuar: – Estava à espera que tu chegasses. Já lá fui pondo umas coisas, mas ainda falta muito. A tua mãe disse que não devias demorar. Falava aos soluços, como se cada palavra lhe ferisse a boca, lhe arranhasse a garganta.
– É claro que levo só o que é mais preciso para os primeiros dias, venho depois buscar o resto. Mas mesmo assim… […] – Eu sei que tudo isto é difícil de entender e de aceitar. Mas as pessoas não se podem amar umas às outras contra a sua vontade. As pessoas às vezes gastam-se, como as coisas. É a vida que nem sempre corre como a gente quer. É o trabalho que às vezes nos ocupa o tempo todo e não nos deixa olhar para os outros. Depois quando finalmente paramos um pouco e temos mais tempo para olharmos para eles, já é tarde: já nós mudámos muito e eles também, é como se fôssemos pessoas completamente diferentes, estranhos quase. Então descobrimos que temos de mudar de vida, porque é impossível vivermos ao lado de estranhos. A culpa não foi nossa. Nem foi deles. Ele tinha uma voz muito cansada, parecia ter arrastado grandes pesos até àquela sala e de súbito tê-los deixado cair a todos ao mesmo tempo à sua frente. Ia falando com a Rita mas acho que, lá no fundo, nem era bem para ela que falava. – Agora olho para ti e vejo que cresceste. Que cresceste muito. Que cresceste enquanto todas as manhãs e saía de casa às oito para o escritório, e voltava do escritório todas as noites, cansado e sem olhos para nada, nem para ti. Foi durante esse tempo que foste crescendo, e eu não dei por nada. Deu uma pequena gargalhada sem nenhum riso lá dentro. Para onde teria ido, subitamente, o riso do pai da Rita? Sem dar por isso acendeu novo cigarro, e nem se importou com o bocado de cinza caída no chão, mesmo em cima da alcatifa daquela sala que sempre me habituara a considerar museu. Daquela sala onde nunca tinha vivido ninguém. Daquela sala por onde as pessoas só passavam ao
de leve, sem deixar rasto nem cheiro. Talvez – pensava eu agora – por falta de tempo. A Rita olhou para o cigarro nos dedos do pai mas desta vez não disse nada. – Acho que comigo e com a tua mãe foi sobretudo isso que aconteceu. Deixámos de ter tempo de olhar um para o outro. Ela não gostava que eu falasse do escritório, eu não gostava que ela falasse dos vestidos e das vizinhas. E um dia entendemos que, para lá disso, nada mais tínhamos a dizer um ao outro. E quando fingíamos que tínhamos,
vinham
as
discussões,
as
zaragatas,
tu
sabes.
E
tivéssemos tido tempo, talvez eu pudesse falar de outras coisas além do que sucedia ou não sucedia no escritório, talvez ela pudesse falar de outras coisas além do comprimento das saias ou da gripe da vizinha do lado. Talvez. Levantou-se do sofá. – Bom, eu não quero agora estar aqui a fazer discursos… E sorrindo para a Rita: – Também não vamos agora ficar aqui a fazer drama disto. Ninguém morreu, que diabo! […] Alice Vieira, Chocolate à Chuva
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