Erico Veríssimo, "A Vila do Destino"

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ERICO VERテ行SIMO (1905-1975)

Imagem ~ aqui

A.A. ~ 2010-2011 Prof.ツェ eli


3 A “Vila do destino”

Foi então que ouvi falar pela primeira vez na “Vila do Destino”. Tínhamos descido para o jardim do hotel, depois do jantar. Sentei-me num dos degraus do alpendre e olhei para a Lua – uma Lua enorme, redonda, cor de melão. O major, de palito na boca, aboletou-se na cadeira de balanço, cruzou as pernas, tirou da algibeira uma palha e a bolsa de tabaco e começou a fazer um cigarro. – Então já sabem? – perguntou , sem erguer os olhos do cigarro. Os outros olharam para ele e ficaram à espera. A senhora gorda interrompeu um gemido de dor. A menina magra levantou os olhos do livro. O homem do colarinho de ponta voltada fingiu não ter ouvido a pergunta. Voltei a cabeça na direcção do velho. Silêncio curto. O major acendeu o cigarro e depois continuou: – O coronel Barbacuá, chefe político de S. Silvestre, vai mandar uma força ao casarão… O hoteleiro, que estava à janela, com ar sonolento, despertou de repente e exclamou: – Que está para aí a dizer, homem? – Pois é verdade – confirmou o major com o palito e o cigarro entre os dentes. O homem do colarinho de ponta voltada dignou-se fazer uma pergunta: – Complicações na política local? O major meneou a cabeça.


– Não. O caso é outro. A coisa parece que está feia na “Vila do destino”. – Não me diga! – Pois é verdade. O coronel Barbacuá quis propor um acordo ao chefe dos malucos. Mandou um emissário. Quem foi que disse que o emissário passava o portão? Apareceu aquele pretalhão e, quando o homem disse que vinha da parte da autoridade de S. Silvestre, o preto começou a rir-se na sua própria cara. – Veja lá… – disse a senhora gorda. A rapariga magra estava com uma expressão cómica no rosto miúdo: os seus olhos, muito abertos, cintilavam como os de um esquilo assustado. O major continuou: – O Barbacuá ficou furioso, vestiu o fardamento de coronel e foi em pessoa à “Vila do Destino”. Chegou cheio de importância, olhou e tomou a resolução de não tocar a campainha. Abriu o portão e entrou. Quando já ia no meio do jardim e se dirigia ao casarão, o Maluco apareceu numa janela e gritou: – Isca, Ferrabraz! – E um enorme canzarrão atirou-se ao coronel, caindo-lhe em cima. Foi um Deus te salve. O homem saiu a toda a brida… e o cão atrás dele. Dizem por aí que o coronel chegou a casa todo esfolado, com a farda em farrapos. É o que dizem… Não juro porque não vi… – Que coisa horrível! O senhor do colarinho de ponta voltada declarou, muito convencido da sua capacidade: – Isso equivale a uma declaração de guerra. Conservava-me calado, olhando de um para o outro lado sem compreender ainda o sentido daquela história.


– O povoado anda cheio de boatos. Todo o mundo diz que o Maluco está a inventar o raio-da-morte, um aparelho diabólico capaz de destruir S. Silvestre enquanto o diabo esfrega um olho. A senhora gorda susteve a respiração e pôs a mão no peito; a rapariga magra deixou cair Maria a Fada do Bosque; o hoteleiro soltou um som cavo; e todos os olhos se voltaram para a mesma direcção. Fitaram o «Morro Verde» que se erguia sombrio contra o céu da noite. Na sua encosta brilhavam dez rectângulos luminosos: as dez janelas da “Vila do Destino”. Do meu quarto via-as todas as noites. De dia, o casarão recortava o vulto de um branco lugubremente sujo contra o verde garrafa da vegetação do morro. Eu sabia que morava ali uma família esquisita e solitária que não saía dos muros da «vila» e não mantinha relações nem com os veraneantes nem com os habitantes de S. Silvestre. Houve um breve silêncio. Olhando ainda para o casarão, o senhor de colarinho de ponta voltada disse: – Ali há mistério. – Se há – reforçou o major. – Onde se viu gente assim’? Boa coisa não estarão a fazer ali. Ninguém sabe de onde vieram nem que pretendem. O hoteleiro deu uma palmada no braço peludo, onde lhe pousara um mosquito, e disse: – Faz seis meses que eles foram para aquela casa. Até hoje, não consegui ver qualquer pessoa da família. – Dizem que são sábios – arriscou timidamente a donzela, em voz muito fraca. – Dizem que são demónios – declarou a senhora gorda que tinha fígado.


– Quem sabe se não serão agentes estrangeiros reparando alguma máquina infernal? – sugeriu o homem do colarinho de ponta voltada, fixando a Lua como se a ela e não a nós estivesse a dirigir a sua ridícula sugestão. Não pude conter o riso e repliquei. – Talvez estejam a planear a conquista de Changai. Ninguém riu. Decerto achavam que a minha suposição nada tinha de absurda. Calei-me. Novo silêncio. Naquela noite outro hóspede contou-me mais minuciosamente a história do casarão e dos seus estranhos moradores. Esse hóspede era um sujeito, de ordinário calado, que, havia seis meses, estava ali com o fim de curar os nervos. Enquanto bebia a sua limonada, dizia-me que a “Vila do Destino” pertencera aos Boaventura, antiga família de S. Silvestre, agora extinta e que o casarão fora alugado a um grupo de sábios que estava empenhado em pesquisas de natureza misteriosa. Eram criaturas excêntricas, mas sossegadas. Via-se que tinham escolhido aquele lugar devido ao clima e à solidão. A casa ficava a dois quilómetros de S. Silvestre e a três do «Hotel Repouso». Naquela noite, meti-me no quarto, vesti o pijama e abri a janela. Um dos criados – um mulato franzino de ar apatetado – veio trazer-me uma bilha com água fresca. Fiz-lhe perguntas sobre a «Vila do destino». Com voz dramática contou-me horrores… Dizia que o guardião da casa era um preto enorme, com cara de fantasma. Um dia, passando perto da «vila», olhando-a com medo, vira, através das grades do portão, um homem de cabeleira enorme e ar de doido a perseguir, como uma criança, uma borboleta. O caboclo da bilha garantiu-me que uma noite ouvira, vindos de ali, gritos de mulher. A certa


hora da noite – quase sempre de madrugada – uma forte luz azulada saltava das janelas do andar superior e subia até o Céu, clareando-o como um relâmpago prolongado. Logo que o criado desceu, entreguei-me aos mais desencontrados pensamentos. Não tinha sono. Fiquei à janela a olhar a noite. A Lua, agora, estava mais alto, mais pequena e mais pálida. O céu parecia também um casarão misterioso com as janelas iluminadas pelas estrelas. Passaram-se os minutos. Fui, aos poucos, caindo numa espécie de sonolência. Despertou-me desse torpor um súbito clarão que de repente se elevou do casarão junto do morro. Era uma luz estranha de um cinzento

azulado,

caracterizada

por

indescritível

transparência

e

delicadeza. Esfreguei os olhos. Não havia dúvida, não era sonho. Lá estava “A Vila do Destino” como uma grande lâmpada acesa na noite. O meu coração começou a bater com mais força e a curiosidade dominoume o espírito. Só consegui dormir quando o dia começava a clarear.

Erico Veríssimo, em Viagem À Aurora Do Mundo

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