Jorge Castro, "como sentir a minha rua"

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JORGE CASTRO (1952-)

foto gentilmente cedida por Jorge Castro

A.A. ~ 2010-2011 Prof.ÂŞ eli


Como sentir a minha rua

Era quase dia feito quando João saiu de casa. Bem, nem se pode dizer que saiu de casa, não vá a ambiguidade da expressão levar-nos ao erro, porque, afinal, o que ele fez foi apenas sair à rua para, em breve, regressar a casa. Destino, a mercearia do Manel, a comprar pão fresco, conforme pedido da mãe, atarefada na lide doméstica para poder chegar a horas ao emprego. Mal pôs o pé na rua, uma nesga de Sol bateu na superfície quaseespelho do rio, parecendo iluminar aquele recanto da cidade quase sempre tão sombrio e colocou um sorriso na cara do João, ainda meio estremunhado pelo sono. Gritaram, de súbito, os amarelos vivos ou os brancos das casas, a diversidade multicor das portas, aqui e ali, um reflexo dourado roubado a um batente de porta ou ao espelho de alguma fechadura. Olhou para o céu, azul já e muito intenso, onde as andorinhas, pretas e malabaristas, buscando o sustento diário, pareciam desafiar o voo planado e mais pasmado das brancas gaivotas, que se aventuravam rio acima, desde a foz, comodistas pela certeza de apanharem algum desperdício em que os humanos são férteis. Rua fora, os poucos comerciantes preparavam o dia em cada estabelecimento. Abriam a porta, desdobravam o toldo, arrumavam a mercadoria… O João gostava particularmente daquela hora em que o rio ajudava a luz do Sol a dar maior intensidade à diversidade de cores com que a sua rua se pintava. Então, era ver o velho senhor Manel merceeiro, com os seus sacos de feijão, vermelho, branco, fradinho, lado a lado com o vermelhão das caixas dos tomates e o verde do feijão verde, tão próximo do verde


de palidez etérea das alfaces, o quase roxo das beterrabas, o castanho claro das batatas novas… Só lhe ganhava, em colorido, a menina Arminda, a florista, já também afadigada a montar o seu estaminé onde, então, as cores que ela tinha das suas flores eram tantas que nem um arco-íris para as descrever a todas! E João acenou-lhe um adeus de bons dias, já antecipando o carinho beijoqueiro com que ela o presenteava em cada dia, todo ele sorrindo, por dentro e por fora, pois a meiguice da menina Arminda, que parecia sempre cheirar a flores nos seus quase cinquenta anos, o enternecia mesmo sem saber porquê. Meia dúzia de passos à frente, o senhor Manel recebeu-o, também como sempre, cheio de salamaleques e fidalguia, com um forte aperto de mão, ele que era tão baixinho que até o João já lhe via a careca do lado de cima. Sem uma palavra – que o João, aliás, nem a ouviria – dirigiu-se ao balcão do pão, de onde chegava um odor de ficar com saudades de pequeno-almoço e, com uma palmadinha de afecto no ombro e um sorriso de orelha a orelha, que lhe arrebitava o bigodinho e parecia metê-lo pelo nariz acima, entregou-lhe o saco cheio de pão, que o João agradeceu, com um aceno de cabeça, estendendo o dinheiro que a mãe lhe dera e um sorriso ainda maior. Cá fora, como dentro da mercearia, o dia fazia-se maior e a vida seguia o seu caminho… - Jorge Castro 19 de Agosto de 2010


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coordenador e co-autor do projecto e do livro Carcavelos dos Cinco Sentidos (2008).

- EDIÇÃO DA CÂMARA MUNICIPAL DE CASCAIS: 

coordenador e co-autor do projecto e do livro PerCursos de Cascais – um mar de escritas (2008) – colectânea colectiva de textos de duas Oficinas de Escrita Criativa realizadas pela Câmara de Cascais.

 BlOG: http://sete-mares.blogspot.com/


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