LUIS de STTAU MONTEIRO, Angústia para o Jantar

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Luís de Sttau Monteiro (1926-1993)

Luís de Sttau Monteiro: aqui

A.A. ~ 2010-2011 Prof.ª eli


[Gonçalo e António]

Meu pai dizia-me que da janela da repartição onde trabalhava se via o mar… Que fazia teu pai? Que fazia meu pai? Não fazia nada, era oficial da marinha. Entrava na repartição às 10 e saía às 6… Lá o que fazia na repartição não sei… Preenchia papelada ou sonhava com navios… sei lá… talvez olhasse para o mar

através da janela… Quando chegava a casa lia o jornal, fazia as

palavras cruzadas e ia para a cama. Era oficial da marinha, digo-te eu… O criado aproximou-se e pôs uma garrafa de vinho sobre a mesa, ao lado de três já vazias. O filho do oficial da marinha encheu os dois copos, bebeu o dele e encostou-se outra vez à mesa, apoiando a cabeça numa das mãos. Esperou que lhe passasse, no estômago, o ardor causado pelo vinho e continuou: Minha mãe, coitada, que não era oficial da marinha, era a lutadora da família! O amigo sorriu. Lutadora? Sim, lutadora. Julgas que é fácil ser-se mulher de um oficial da marinha que não tem navios para se fazer ao mar? Julgas que é fácil ser-se mulher de um oficial da marinha que sonha com Índias e com Vascos da Gama e que passa as noites a fazer as palavras cruzadas do jornal? Não é nada fácil, amigo Gonçalo, mesmo nada fácil… Voltou a encher o copo e encostou-se para trás na cadeira.


Ainda por cima, vivia lá no prédio uma família burguesa que tinha uma fábrica para os lados da Amadora. Tinham carro e tudo… O amigo sorriu outra vez. E tudo? E tudo, pois! Tudo o que tem direito quem é proprietário de fábricas: o respeito dos vizinhos, a servilidade do porteiro, crédito na mercearia, opiniões sensatas… Minha mãe não tinha nada disso, mas não dava o braço a torcer. Lutava contra o merceeiro, o droguista, a mulher do lugar, o farmacêutico, o pecado, a maçonaria, o padeiro… eu sei lá! E sabes, ao fim e ao cabo, o que ela queria? Com dois gestos encheu o copo e bebeu. Levantou-se e, já de pé, com as mãos nos bolsos, continuou: Pois fica sabendo que só queria comprar um tapete novo para a sala. Um tapete encarnado com flores brancas. Estás-te a rir?! Então digo-te que ainda o ano passado conheci uma velha, perto de Caldelas, que apenas tinha um sonho na vida: juntar dinheiro para comprar uma cabra! De pé, com as pernas abertas, olhando de frente para o amigo, tirou do bolso um maço de Paris e acendeu um cigarro com a mão direita. Inspirou o fumo profundamente e passou o isqueiro para a mão esquerda. O raio da velha tinha setenta e sete anos e nunca amealhara dinheiro suficiente para comprar uma cabra… Meteu o isqueiro no bolso, com um gesto violento. Espantas-te por a minha mãe ter passado anos a juntar caroço para o tapete? Para o tal tapete encarnado com florinhas brancas? Se calhar espantas-te… Nunca te faltou nada… Se a tua mãe quisesse um tapete encarnado com flores brancas, era só ir à loja comprá-lo… Pois a minha mãe ia todos os dias à loja, ouviste? Todos os dias por lá passava! Mas


não ia comprar nada, percebes? Ia ver os tapetes! Todos os dias ia ver os tapetes! Voltou a sentar-se à mesa e, dum trago, despejou o copo que o amigo reenchera. Pegou na garrafa, mas voltou a pô-la sobre a mesa. O amigo tentou acalmá-lo: Compreendo perfeitamente o teu desespero. Nenhum filho se resigna a ver a mãe sofrer. É horroroso! Mas diz-me uma coisa: no dia em que a tua mãe conseguiu comprar o tapete, ficou doida de alegria, não? Aposto que te obrigou a tirar os sapatos antes de entrar na sala… A minha mãe nunca chegou a comprar o tapete. Olharam-se de frente e ambos desviaram os olhos. Beberam o resto da garrafa em silêncio e chamaram o criado para que trouxessem outra. Só depois de o criado se ter afastado, é que o filho do oficial da marinha continuou com tom mais calmo: Não faças essa cara tão triste por a minha mãe nunca ter conseguido comprar o tapete. Nada disto se relaciona contigo. Pertences a uma classe em que tudo acaba sempre bem. Até as histórias que vos contam em pequenos acabam bem: “casaram, tiveram muitos filhos e foram muito felizes”. Eu pertenço a uma classe em que tudo acaba mal: “casaram e no dia seguinte veio o homem exigir a segunda prestação da mobília do quarto…” “Também não julgues que a minha mãe lutou sempre sozinha. Tinha ao seu lado uma verdadeira hoste de gente delicada: santos, santas, beatos e arcanjos, que ela invocava a propósito de tudo. Assim que se aproximava a data de pagar a conta do gás ou da electricidade, começava ela a invocar os santos todos do Céu… S. João, S. José, Santo António, S. Gonçalo… Estás-te a rir? Fazes-me lembrar um médico que conheci: ria-se ao ver os doentes tomarem os remédios que lhes receitava! Já te disse


que não vale a pena fazer essa cara tão triste. A mãe era minha, não era tua! De qualquer forma, não fazes parte da família burguesa que morava lá no prédio e a minha mãe não atribuía, a ti e aos teus, a culpa de nada. Antes pelo contrário, atribuía tudo aos mações, aos comunistas, aos ateus, aos inimigos da ordem… Encheu outra vez o copo e bebeu. Com os olhos postos no desenho da toalha, começou a falar baixinho, como se estivesse naquele momento ao lado da mãe: Coitada! Para o fim tinha ideias fixas. Morreu com as mãos enlaçadas, rezando pela conversão da Rússia. Ainda bem que morreu naquele momento e não cinco minutos mais tarde. É que, cinco minutos depois, chegou o homem da Companhia para cortar a luz… Tinha-se gasto tudo nos médicos e na farmácia… Não havia um tostão em casa! Vocês não tinham um amigo, um parente, alguém que os ajudasse? Tínhamos dezenas de amigos: S. João, S. José, Santo António, o beato João de Brito… mas nenhum era estabelecido e nenhum deles tinha conta no banco. A morte da tua mãe azedou-te. Nunca mais esqueceste, mas, cós diabos, a vida não parou nesse dia… Para mim não, mas para a minha mãe sim. Um homem não pode ficar agarrado a um incidente… Há que andar para a frente! Pois. Há que andar para a frente! Não repitas o que eu digo! É um hábito que me irrita!


Desculpa. Não o fiz para te irritar. Ainda por cima não vale a pena irritares-te. Sais daqui e vais para o clube ou para casa. Daqui a duas horas já te não lembras de mim nem da minha mãe. Só daqui a um mês é que voltas a ver-me e a jantar comigo. É o teu sacrifício mensal. Se fosse um sacrifício não vinha. Talvez. Não sei… Durante uns segundos ficaram em silêncio, com os olhos nos criados que, ao fundo da sala, conversavam encostados ao balcão. O filho do oficial da marinha chegou-se para a frente na cadeira e chamou o amigo. Gonçalo! O amigo fez um gesto com a cabeça, indicando que estava a prestar atenção. És capaz de responder sinceramente a uma pergunta minha? Depende da pergunta, mas julgo que sim. Para que diabo vens tu jantar comigo todos os meses e conservas esta farsa que é a nossa amizade? Eu não posso interessar-te de forma alguma. Nasci na classe dos 2500$00 por mês e já atingi a minha craveira. Não tenho importância política. Não tenho futuro. Não conheço, sequer, as pessoas que tu conheces… Responde: para que vens tu jantar comigo todos os meses? Os dois amigos chegaram-se para trás nas cadeiras e despejaram nos copos o resto do vinho. O filho do oficial da marinha insistiu: Anda! Diz lá para que manténs esta tradição que nada te interessa… vá… anda… Responde tu por mim. Porque julgas que venho?


Não sei, e tenho pensado muito nisso. Tu e eu sabemos que os nossos mundos são diferentes e que se não misturam. Tu e eu sabemos que a amizade só é possível dentro de cada mundo. Como posso eu ser amigo de alguém para quem três whiskies antes de jantar são apenas três wiskies antes de jantar e não uma despesa incomportável? E tu? Como podes ser tu amigo de alguém que já classificaste mentalmente como pertencente à classe dos que não ultrapassam a barreira dos 2500$00? Há mais de trinta anos que jantamos juntos uma vez por mês, e tu nem sequer sabias que o meu pai era oficial da marinha… Todos os meses nos sentamos à mesa, e olhamos um para o outro, sem sabermos em que falar… Não conhecemos as mesmas pessoas, não lemos os mesmos livros, não temos os mesmos interesses. Até as nossas gravatas são diferentes. Eras capaz de aparecer junto dos teus amigos com a minha gravata? Não. Tens algum outro amigo que use gravatas semelhantes às minhas? Amigos, não. Eras capaz de me convidar para jantar num restaurante onde soubesses que irias encontrar amigos teus? Estás a fazer perguntas idiotas, que não levam a nada. Responde: eras capaz? Posso encontrar amigos meus neste restaurante… Não mintas. Sabes tão bem como eu que os tipos da tua classe não vêm ao Leão d’Ouro. Porquê? Pela mesma razão por que não compram gravatas iguais à minha. Julgas que sou parvo ou que nasci ontem?


Não tenho o mais pequeno desejo de te mentir e, já que tanto insistes, respondo-te sinceramente: era capaz de jantar contigo num restaurante onde estivessem amigos meus. Já atingi na vida uma posição que me permite ser visto com quem quiser. A tua resposta, Gonçalo, é mais do que elucidativa. Já agora, diz-me: porque manténs estes nossos jantares mensais? Tinha-te pedido que respondesses tu. Então, continuo. Virás aqui para depois, em casa, pensares contigo mesmo que continuas fiel às tuas amizades do liceu e que és um tipo superior ao teu mundo? Atribuir-me-ás influência política num campo em que te convém ser considerado um ser humano? Estou farto de pensar nisto e ainda não cheguei a qualquer conclusão. Inclino-me, no entanto, para a primeira hipótese. Creio que vens jantar comigo para não perderes completamente o respeito que desejarias ter por ti próprio. Queres pensar que, apesar das tuas administrações e da tua fortuna, continuas a ser o mesmo gajo de sempre, o mesmo gajo que eras no liceu. Eu sou a prova disso, o amigo do liceu com quem te continuaste a dar pela vida fora. Vens jantar comigo para poderes dizer a ti próprio que és um gajo porreiro. Acertei? Não. Então, porque é? Já que tanto insistes numa resposta sincera, vou dar-ta. O problema, porém é outro: quererás realmente saber a verdade? Quero. Ainda que te desagrade?


Já sabes que no meu mundo as mães nunca chegam a comprar os tapetes encarnados que tanto desejavam. O desagradável é, para nós, o menor dos males… Pois bem: aqui vai a resposta sincera que me pediste: não me interessas nada, absolutamente nada. Venho jantar contigo por uma questão de hábito e mais nada. Criou-se o hábito e olha… continua… Esqueceste-te duma coisa… De quê? De que eu sou, talvez, a única pessoa com quem podes ser verdadeiro, até por ser a única pessoa das tuas relações que não interessa aos teus negócios e que te não interessa socialmente. Uma vez por mês, vens ser verdadeiro comigo. É como se tomasses uma purga. O amigo rico sorriu: Lisonjeias-te a ti próprio, António, ao pensares que tens um efeito purgativo. Nem isso tens… Levantaram-se e chamaram o criado. Dividiram a conta ao meio e saíram. Cá fora chovia. Até ao dia 15. Até ao dia 15.

Luís de Sttau Monteiro, Angústia para o Jantar (1961) Ext. da ed. De Livros Unibolso, Editores Associados, Lisboa, s/d


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